\" SUBTRACÇÃO DE COISA MÓVEL ALHEIA \" Os efeitos do admirável mundo novo num crime \" clássico \"

June 4, 2017 | Autor: P. S. Matta | Categoria: Criminal Law, Direito Penal, Código Penal de Portugal, Direito Penal Crimes
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“SUBTRACÇÃO DE COISA MÓVEL ALHEIA” Os efeitos do admirável mundo novo num crime “clássico” Paulo Saragoça da Matta

Mestre em Ciências Jurídico-Criminais Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa

SUMÁRIO: i – O Homem, o Ser e o Ter ii – Enquadramento geral do crime de furto iii – O tipo objectivo do crime de furto simples iii.a) Coisa iii.b) Coisa móvel iii.c) Coisa alheia iii.d) Subtracção iii.e) Valor patrimonial da coisa iv – Nota conclusiva

I. O HOMEM, O SER E O TER

A experiência histórica de cada um, o desenvolvimento filogenético da Humanidade e, inequivocamente, a evolução ontogenética de todo e cada um dos Homens na sua individual existência, tudo depõe a favor da fundamentalidade sociológica, psicológica, filosófica e jurídica da relação entre os Homens e as coisas. Por outras palavras, toda a vivência experimentada pela humanidade, no seu conjunto e em cada

um

dos

seus

seres,

desde

os

mais

remotos

tempos

a

que

conseguimos

documentadamente recuar, torna ocioso discutir sobre se “Cristo possuía ou não as sandálias com que caminhava”. A relação do Homem com as coisas é-lhe conatural e imprescindível. E as concretas experiências de inversão dessa regra, colhidas em momentos tão díspares como os tempos primitivos do Cristianismo por confronto com a cultura soviética, e com suportes axiológicos tão diversos como o amor ao próximo ou o rugido iconoclasta da apropriação colectiva, servem-nos hoje essencialmente para confirmar a perenidade e essencialidade da relação que necessariamente o Homem e os homens têm que ter com aquilo a que chamaremos de património. Ora, ainda sem precisões jurídico-conceptuais, pode dizer-se que o património é um agregado de coisas… coisas que o Homem fabrica ou produz, coisas que são objecto do seu comércio, coisas de que necessita para sobreviver, e, ainda, coisas que lhe dão prazer ou lhe aumentam

a qualidade de vida1. Daí que o Direito se tenha preocupado, desde sempre, em regular as relações do Homem com as coisas, e, mais precisamente, do Homem com as suas coisas e com as coisas dos outros, criando além permissões de fruição, e aqui proibições de intromissão. Mas também para estes efeitos reguladores, a relação entre os Homens e as coisas surge de modos diversos, quer perspectivando-se as coisas singularmente compreendidas, quer visualizando-as integradas numa esfera. Esta a noção básica e sociológica daquilo a que nos referimos sob a designação de património. Ora, é a “violação” das “relações” (em sentido impróprio) estabelecidas entre Homens e Coisas que se erige como objecto de tutela jurídica que agora cumpre apreciar. Não os mecanismos de tutela da “propriedade” e da “posse”, que nos remetem para o direito civil, mas os mecanismos – subsidiários é certo, por opção dogmática e constitucional –, do direito criminal. Não que sem antes lancemos um olhar de relance para o conceito jurídico de património. Optando por um conceito civilista de património, então este significará o conjunto de bens ou direitos e obrigações pecuniariamente avaliáveis de que alguém é titular, com o que serão excluídas do património todas as coisas desprovidas de valor pecuniário ( admitindo que as há, pois que algum valor sempre hão-de ter as coisas, segundo cremos).

Se ao invés se der preferência ao conceito

económico, então a essência do património será ainda mais explicitamente pecuniária. Abreviando razões de uma discussão que julgamos resolvida, cabe concluir que o conceito jurídico criminal de património não pode confundir-se com o conceito de património que é usado por outros ramos do direito, nem com conceitos desenhados pela ciência económica. Socorrendo-nos de trabalho alheio de individualização do conceito, posto que por nós acolhido, diremos com Faria Costa2 que património é o complexo de relações jurídicas encabeçadas por um sujeito, relações essas que encontram objecto último em coisas dotadas de utilidade, i.e., coisas susceptíveis de satisfazer necessidades humanas materiais e, bem assim, espirituais, afectivas ou emotivas3. Mas daí decorrerão consequências que a própria

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Neste sentido toda a doutrina social da Igreja dos últimos 150 anos, de entre a qual se respigam as seguintes encíclicas: Rerum Novarum, Quadragesimo Anno, Octogesima Adveniens, Centesimo Anno. 2 Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Direcção de Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Anotação ao artigo 203º, § 16, p.29, com referência a Mantovani, Trattato del furto e delle varie sue specie, I, 217. 3 E precisamente mercê desta última valência referida, i.e., da inclusão no património de coisas cuja utilidade se cinge à satisfação de necessidades espirituais, afectivas ou emotivas, é que consideramos que o conceito de património abarca coisas

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doutrina defensora do conceito visto, incompreensivelmente, não extrai. Quanto ao nosso actual código penal, o mesmo vem tipificar os Crimes contra o património no respectivo Livro II (Parte Especial), Título II, precisamente sob essa epígrafe4. E é a utilização do vocábulo património nessa sede que levou ao breve excurso acabado de percorrer, para concluir que ao património, para efeitos criminais, deverá ser atribuído um significado próprio e autónomo. Com o que igualmente pensamos ficar resolvida a questão largamente discutida relativa ao bem jurídico que com o crime de furto a Lei Penal visa tutelar. É que sendo certo que com o furto se põe em causa, muitas vezes – e talvez mesmo a maior parte das vezes –, a relação de propriedade que liga o sujeito ao seu património, não menos certo é que a relação de fruição de utilidades entre os Homens e as coisas não tem que ser sempre coberta por um nexo juridicamente conformado como de propriedade. Bem ao invés, muitos, e cada vez mais, são os casos em que há efectivamente distinção jurídica formal entre quem é o proprietário da coisa e quem frui ou goza as respectivas utilidades. E nesses casos, a violação da relação de fruição é tão carecida e merecedora de tutela penal como o é a violação da relação de propriedade5. Atente-se, contudo, que a utilização das expressões “relação de fruição” ou “relação de gozo” não é inócua e não pretende ser inocente. Com efeito, o que expressamente se pretende sublinhar com o uso de tais expressões é que não deve ser usado como critério aferidor da intervenção ou não do direito penal o facto de o fruidor das utilidades da coisa ter ou não, à luz do direito civil, posse6. Por outras palavras, seja ou não a qualificação legal atribuível a determinada relação, segundo os cânones do direito civil, de posse ou de fruição, a reacção criminal à luz do furto deve actuar desde que exista uma relação de gozo entre alguém e determinada coisa, relação essa que não seja proibida juridicamente. Neste sentido deve ser

muito díspares, tantas delas quase que sem valor objectivo de mercado que não seja o valor venal da matéria de que são compostas 4 Sobre a evolução do direito pátrio no que concerne à previsão e punição do crime de furto, cfr. José A. S. Manso-Preto, Novos aspectos da punição do crime de furto segundo o projecto de revisão do Código Penal de 1982, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, n.º 4, pp. 543 e ss. Paralelamente, sobre as origens da punição do furto no seio do Direito Romano, cfr. O. F. Robinson, The Criminal Law of Ancient Rome, Duckworth, London, 1995. 5 Ainda há menos de uma década, contudo, escrevia J. António Barreiros que o bem jurídico tutelado pelo furto era a propriedade, ou, em alguns casos, a detenção, num apego incompreensível a conceitos civilistas (Crimes contra o património, Universidade Lusíada, Lisboa, 1996, p. 20). 6 Principalmente no Direito italiano ainda hoje faz vencimento a tese de que o fim do tipo penal do furto (art.ºs 624º e 625º do CP italiano) consiste na protecção da posse, na esteira do defendido por Antolisei, por reacção à tradicional concepção do crime de furto como modo de tutela da propriedade, como era visto por Carrara, Manzini e DeMarsico – assim o refere Luigi Delpino, Diritto Penale – Parte Speciale, 11ª Ed., Ed. Giuridiche Simone, Napoli, 2001, p. 588.

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entendido o bem jurídico subjacente ao tipo do art.º 203º do CP. Paralelamente, julgamos infrutífera para efeitos de realização de juízos de aplicação do tipo do furto, saber se a relação de gozo a que atrás aludimos constitui uma mera relação de facto com a coisa, indiciada na posse ou mera posse (como o faz grande parte da doutrina italiana), ou se se consubstancia antes numa relação jurídica decorrente dos direitos reais legalmente previstos ou dos direitos pessoais de gozo. Pensamos, com efeito, que o bem jurídico subjacente ao tipo do furto fica suficientemente precisado e identificado pela simples alusão à “relação de fruição de utilidades possibilitadas ou emergentes da coisa”, resolvendo-se qualquer concreta dúvida que surja pela simples aplicação do conceito, e do critério, apontados. Não obstante, dúvidas havendo em determinados casos limite, pensamos ser erróneo apelar a representações jurídicas próprias dos direitos reais para determinar a abrangência do bem jurídico em questão. Na verdade, e em nosso entender, é irrelevante para efeitos de determinação das relações de fruição a que julgamos quadrar a tutela do furto descortinar esta ou aquela tipologia ou categoria resultantes dos direitos reais ou obrigacionais. Importa, isso sim, determinar se existe ou não um poder de facto sobre a coisa que permite a fruição das respectivas

utilidades,

poder

esse

que

assentará

numa

representação

jurídica

cuja

consistência não precisa ser maior do que a social legitimidade da fruição pretérita à prática da subtracção essencial ao furto7. Assim sendo, como nos parece ser, constituirá furto a ilegítima (porque injustificada), agressão ao status predeterminado das relações dos homens com as coisas, precisamente porque o estado prévio de equilíbrio social constitui a base de legitimidade da fruição daquele que se vê subtraído. Com o que fazemos entrosar em simultâneo a descrição típica da conduta do furto (e que constituirá o objecto primeiro da nossa análise nesta sede ), com a circunscrição do bem jurídico apresentada, e dessas realidades com o próprio fundamento último da punição da conduta proibida: assim que possa dizer-se certa a construção que apresenta como fundamento da punição do furto o alarme social causado por quem, subtraindo coisa móvel alheia, perturba o equilíbrio das relações sócio-patrimoniais que existe entre aqueles que aceitam a distribuição de coisas e bens previamente estruturada. Outro entendimento, mais restritivamente civil-conceptualista, deixaria de permitir tutelar ao abrigo do tipo do furto todas as situações em que, havendo rompimento do dito equilíbrio

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Termos em que partindo das mesmas premissas de que parte Faria Costa (op. cit.), chegamos a um entendimento que por ser mais lato não autoriza sequer a utilização da expressão mera posse ou detenção. Se efectivamente determinada relação

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pretérito e o concomitante alarme social, não fossem, ao abrigo do direito civil ou de outro ramo de direito, cobertas por determinado título jurídico, mais ou menos formalizado. O que podendo não ser negativo em todos os casos, pelo menos deixava campo para dúvidas, que seriam em princípio resolvidas no sentido de as excluir de um âmbito de regulação que se quer subsidiário e restritivo, como o é o direito penal8. Por fim, refira-se que todas as linhas argumentativas no sentido de fazer coincidir o bem jurídico protegido pelo crime furto com o direito de propriedade que assentam no facto de o próprio tipo referir a necessidade de existência, por parte do agente do crime, de intenção de apropriação, improcedem, como bem foi demonstrado já por Faria Costa, com argumentos que integralmente acolhemos9.

II – ENQUADRAMENTO GERAL DO TIPO

O actual Código Penal português tipifica os crimes de furto, directamente, nos respectivos artigos 203º e 204º, encontrando-se normas complementares ou acessórias de tais tipos nos respectivos artigos 202º, 206º e 207º. A norma incriminadora principal é a do furto simples, previsto e punido no art.º 203º do CP10,

constitui direito de propriedade, exercício de posse, ou mera detenção, será questão a ser analisada pelos civilistas, sendo alheia e desnecessária a qualificação para determinar a intervenção da tutela penal consubstanciada no tipo do furto. 8 Outra das vantagens, se é que a questão assim pode ser colocada, do entendimento propugnado, é o facto de com tal enquadramento se permitir uma constante adaptação da tutela penal às evoluções que noutros ramos do direito se vão dando relativamente aos títulos que legitimam aos Homens a fruição das utilidades de coisas. Permita-se-nos o seguinte exemplo: até ao momento em que o furto foi entendido como servindo para tutelar o bem jurídico propriedade, outras formas muito próximas, no plano dos factos, de aproveitamento de utilidades ficariam de fora da tutela dada pelo tipo do furto, tudo porque juridicamente não se trataria a subtracção de um rompimento do vínculo juridicamente conformado como de direito de propriedade. Assim aconteceria, por exemplo, quando se tratasse de subtracção de coisa que se encontrava a ser fruída ao abrigo de um contrato de leasing, de renting, de aluguer de longa duração, etc. Idêntica situação nos casos de venda da coisa com reserva da propriedade. Dir-nos-ão: mas em qualquer desses casos existe sempre um titular do direito de propriedade respectivo que veria a sua propriedade tutelada! Mas o problema põe-se de modo inverso: que poderia fazer o efectivo e real fruidor das utilidades da coisa? Nada, absolutamente nada! Com efeito, não sendo proprietário, via-se tolhido de exercer a actuação da arma criminal, ficando antes o proprietário da coisa com o poder de o fazer. Tal situação, por maior que seja a possibilidade de encontrar para ela uma solução ao abrigo do direito dos contratos, é no entanto claramente merecedora, além de que é carente, de tutela ao abrigo do furto, tutela esta que deve poder ser actuada por aquele que efectivamente tem o poder de facto sobre a coisa que lhe permite dela auferir utilidades. Com o que se conclui, igualmente, que a construção sustentada é mais aderente à realidade, e com ela mais consentânea. 9 Faria Costa, Comentário…, Anotação ao art.º 203º, §§ 22 a 25, pp. 31 a 33, onde muito correctamente se analisam, e “desmontam”, todos os ditos argumentos. 10 Estatui o art.º 203º n.º 1 do CP: “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Paralelamente, o art.º 624º do CP italiano dispõe: “Chiunque si impossessa della cosa mobile altrui, sottraendola a chi la detiene, al fine di trarne profitto per sé o per altri…”. O art.º 311-1 do CP francês afirma: “Le vol est la soustraction frauduleuse de la chose d’autrui”. O art.º 461º do CP

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a qual apresenta três elementos fundamentais, de cuja análise depende a conformação típica, a saber: 

A descrição da conduta objectiva – subtracção de coisa móvel alheia;



A indicação da posição subjectiva do agente – ilegítima intenção de apropriação;



O objecto de ataque da conduta – coisa dotada de valor patrimonial.

A par do furto simples, e já no art.º 204º do CP, encontramos a tipificação do furto qualificado, sendo que dentro desta norma se distinguem dois níveis distintos de qualificação. Quanto aos elementos objectivos destes furtos qualificados, são os mesmos múltiplos, apresentando-se pura e simplesmente numa posição “agravada” em relação ao tipo base de que partem, termos em que pressupõem a verificação do elemento objectivo constante do art.º 203º. E diz-se agravada na medida em que não se encontra razão outra para justificar a qualificação que não seja uma de duas situações que patentemente demonstram ser a conduta proibida no art.º 204º dotada de desvalor acrescido: características ou qualidades próprias da coisa objecto da acção do agente e circunstâncias ou características da própria acção do agente. Já no que concerne à posição subjectiva do agente, a mesma é, na sua essência última, idêntica no crime de furto simples e no crime de furto qualificado, quedando-nos, nesta sede, por referir que se trata de um crime necessariamente doloso. Não obstante o afirmado atrás, o certo é que em alguns dos crimes de furto qualificado se detecta, na descrição legal, como meramente presente, nuns casos, ou como requisito típico imprescindível, noutros, uma especial ou “mais exigente” relação cognoscitiva e volitiva do agente com a coisa objecto da acção ou mesmo com respectiva conduta, mas essa questão extravasa já o objecto da análise que aqui se pretende empreender. Esta introdução geral aos tipos do furto não seria todavia integral se se omitisse que, para a interpretação, circunscrição e aplicação dos tipos que prevêem e punem o furto, é necessário socorrermo-nos de precisões, descrições ou limitações de alguns dos elementos descritivos e normativos utilizados nos tipos. Precisões, descrições e limitações essas que se encontram quer no art.º 202º, quer no art.º 206º.

belga estatui : “Quiconque a soustrait frauduleusement une chose que ne lui appartient pas, est coupable de vol”. O art.º 234º do CP espanhol dispõe : “El que, con ánimo de lucro, tomare las cosas muebles ajenas sin la voluntad de su dueño…”. Por último, o § 242 do CP alemão, afirma: “Wer eine fremde bewegliche Sache einem anderen in der Absicht wegnimmt, deselbe sich rechtswidrig zuzueignen…”.

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Por último, refira-se que encontramos ainda conformações à circunscrição típica dos furtos em tipos penais que lhe são vizinhos, quais sejam, entre outros e porque mais relevantes ou patentes, os tipos penais do abuso de confiança (205º), dos furtos especiais (furto de uso de veículo – 208º, apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada – 209º, roubo – 210º),

e do dano (212º).

Posto isto, cumpre proceder à análise do elemento objectivo fundamental do tipo penal do furto simples, que foi a quanto nos propusemos.

III. O TIPO OBJECTIVO DO CRIME DE FURTO SIMPLES

O tipo objectivo do crime de furto simples preenche-se com a prática de uma conduta material de “subtracção de coisa móvel alheia”. O significado do conteúdo jus-penal de tal expressão está, contudo, longe de ser pacífico ou unívoco, necessitando de pormenorizada densificação, como passa a analisar-se, pela ordem que consideramos mais útil aos fins do aplicador do Direito. Comecemos, pois, por determinar o conceito de “Coisa móvel alheia”, para os efeitos penais em análise. Subsequentemente, analisar-se-á o momento radical da prática do crime, i.e., a “subtracção”. Para o final deixa-se a análise de um requisito ou elemento que alguns entendem ser um elemento implícito do tipo, a saber, o do “valor” da coisa móvel, com o que encerraremos a circunscrição do tipo objectivo do crime de furto11. III – a) “Coisa” i. Generalidades – Numa acepção comum, coisa é todo o objecto do mundo real diverso do Homem12. Filosoficamente, e a despeito das polémicas desenvolvidas desde Aristóteles e Platão até Sartre sobre o mundo do real e o mundo ideal, coisa será sempre algo distinto do Homem, como algo que objectivamente, ou por projecção do intelecto, se opõe ao sujeito da gnose. 11

A jurisprudência portuguesa é, todavia, e por vezes, pródiga na exigência de elementos típicos inexistentes. Assim sucede com múltiplos acórdãos de várias instâncias, nos quais se apresenta um outro elemento para o tipo de furto, a saber, o de que a subtracção seja “fraudulenta”. Assim, e por todos, cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 18/10/1994, no processo 45445, n. publicado, e o Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 17/04/2002, no processo 714/02, n. publicado, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. Atente-se, em acréscimo, que nem sequer se pode entender a exigência do dito elemento, nos acórdãos referidos, como querendo referir-se ao elemento “ilegítima intenção”, pois não é isso que sucede. E mesmo que o fosse, então estar-se-ia incompreensivelmente a confundir um elemento objectivo com um elemento subjectivo. Ademais, sempre se diria que a ilegítima intenção não é, nem tem que ser, fradulenta. 12 Luigi Delpino, op. cit., p. 584.

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Quanto ao ordenamento jurídico, o mesmo apresenta no art.º 202º n.º 1 do Código Civil um conceito de coisa. Aí se define “coisa” como “tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas”. Logo em seguida o n.º 2 do artigo referido esclarece que se consideram “fora do comércio” (privado) todas as coisas que não possam “ser objecto de direitos privados”, que o mesmo é dizer todas as coisas que não permitam uma apropriação individual de utilidades. Como exemplos de realidades excluídas do conceito civil de coisa temos o domínio público (litoral marítimo, águas territoriais, estradas, baldios, etc.), e coisas que por natureza não são susceptíveis de apropriação individual (bens da personalidade, bens dominiais, o cadáver humano, etc.)13. Será esse o conceito a importar para fins penais? Mais especificamente, será esse o conceito a utilizar para fazer operar o furto? A resposta a esta última questão é necessariamente negativa, como aliás seria adivinhável em face das considerações atrás expendidas quando da análise do conceito de património14. Como nota geral poderá dizer-se que o conceito de coisa para os efeitos do disposto no art.º 203º do CP, até pelas especificidades próprias dos fins do direito penal e da imperiosa necessidade de comunicação deste com todos os seus destinatários, aproxima-se do conceito que vulgarmente, ou socialmente, é dado pelo homem comum a tal significante. Aliás, esta é uma patente manifestação da relevância do “entendimento” comum ou da “esfera do leigo” na conformação e determinação dos conceitos penais. Mas apontar tal conceito vulgar ou social de coisa não basta para suficientemente precisar o que seja coisa para efeitos do crime de furto. I.e., tal definição não é por si susceptível de resolver todas as dúvidas do intérprete. É pois necessário caminhar no sentido de estabelecer fronteiras concretas entre os conceitos civil e penal de coisa. Seguindo um caminho óbvio de

Sobre o conceito de coisa para o direito civil, cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, n.º 4-A, p. 17; n.ºs 15 a 24, pp. 38 a 52. Igualmente de valia na esquemática apresentação e análise do conceito de Coisa, cfr. Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Direitos Reais (segundo as prelecções do Prof. Dr. C. A. da Mota Pinto), Livraria Almedina, Coimbra, 1971, pp. 17 e s., 82 e ss. 14 Por exemplo, sobre o conceito de “coisa” para o crime de dano, cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Direcção de Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Anotação ao artigo 212º, § 15, p. 208, onde o autor escreve: “O conceito de coisa é aqui mais restrito do que em direito civil (…) uma vez que só as coisas corpóreas podem ser objecto do Dano. (…) Ficam, assim, excluídos do conceito de coisa como elemento da factualidade típica do dano os possíveis objectos da relação jurídica que se revestem de uma estrutura relacional (v.g. os direitos), por contraposição às realidades de índole ou estrutura ‘substancial’. A ‘corporeidade’ deve entender-se no sentido de se tratar de coisa materialmente apreensível ou, de qualquer forma, exposta à acção (destruidora ou modificativa) do homem (…). Tendo de ser corpórea, neste sentido, é indiferente o seu estado físico: sólido, líquido ou gasoso. Também vale como coisa para este efeito o documento que incorpora um direito”. No entanto, se nos socorrermos do entendimento de Oliveira Ascensão (op. cit.), concluímos que se calhar o conceito jus-civil serviria perfeitamente para os efeitos hermenêuticos necessários ao crime de dano. Com efeito, escreve Oliveira Ascensão: “O regime do Código Civil pressupõe o carácter 13

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circunscrição das realidades a que nos atemos, tome-se o caso dos “direitos” (para quem os veja como coisas),

v.g., de um direito de crédito ou mesmo de um direito de gozo. Tais direitos serão

então coisa para múltiplos efeitos jurídicos, mas não sendo susceptíveis de subtracção, visando a respectiva apropriação física ou material, nunca poderiam integrar o conceito de coisa operacional para o tipo do furto. O processo indutivo de determinação do conceito que ora se trilha, e que parte em última análise dos concretos tipos desenhados na legislação vigente para determinação do conceito global, permite constatar que a coisa susceptível de subtracção para que de um furto se trate tem de ter características que nem todas as coisas, para o Direito em geral, têm. Daí que Faria Costa, tanto quanto nos é dado a perceber, utilize indiciariamente, e bem – a nosso ver –, o critério da “autónoma corporeidade” para significar a susceptibilidade de física apropriação que as coisas têm que ter para poderem ser objecto material de subtracção para os efeitos do crime de furto15/16. Em sentido delimitativo inverso, tomem-se os exemplos de todas as coisas corpóreas, autónomas e susceptíveis de serem subtraídas, que sendo coisas de acordo com a regra básica do direito civil, são excluídas desse conceito civil e do regime estatuído nos art.ºs 202º e ss. do C.C., porque integram áreas de excepção legalmente impostas (i.e., porque integram o domínio público ou porque, por natureza, não podem ser objecto de apropriação individual ).

Exemplos de escola do

caso enunciado são as universalidades agrupadas em museus, os items que integram o património de entes públicos, etc., etc., etc. Tais coisas, estando fora do comércio, e como tal não sendo coisas para os efeitos do direito civil geral, não deixam todavia de ser susceptíveis de se constituir como objecto de ataque de um crime de furto – i.e., temos coisas que o não são, hoc sensu, para o direito civil, sendo-o para os efeitos aqui em análise. Analisem-se, seguidamente, alguns casos que têm vindo a ser objecto de especial discussão na doutrina, tomando-se posição acerca da respectiva susceptibilidade de se erigirem em

corpóreo da coisa, e é portanto inaplicável às coisas incorpóreas” (op. cit., n.º 24, pp. 50 a 52). I.e., para o citado Autor nem os direitos nem as universalidades de direito constituem coisas, não estando abrangidas pela definição do art.º 202º do C.C. 15 Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, §§ 35 a 38, pp. 36 e ss. Todavia, apesar da bondade manifesta do critério utilizado por esse autor, constata-se que o mesmo considera que o critério não é esgotante no processo determinativo de um conceito jus-penal operacional de coisa. Segundo se depreende do raciocínio que expende, coisas existem que sendo corpóreas e autónomas, ou seja, sendo delimitáveis fisicamente, ainda assim não são susceptíveis de subtracção. A título de exemplo identifica coisas que apenas deixam de o ser no sentido próprio do art.º 202º n.º 1 do CC porque, “por natureza”, escapam à vontade normativa subjacente ao regime instituído na lei civil, sendo que, precisamente por isso, também nunca poderiam integrar o conjunto de realidades visadas pelos crimes de furto. Desde já deixando anotada a nossa indiciária discordância da linha de raciocínio seguida pelo autor, remete-se para diante a nossa tomada de posição (cfr. infra III-a) ii).

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objecto de ataque da acção criminosa prevista e punida no art.º 203º CP. ii. O Cadáver Humano – Alguma doutrina refere a existência de “coisas” que preenchendo as características da corporeidade, da autonomia e da subtraibilidade, não são tidas tecnicamente como coisas, nem para efeitos de direitos reais nem para efeitos do furto. Assim o entende Faria Costa, dando como exemplo, que se julga único, o caso do cadáver humano. Nessa senda argumenta o autor que o cadáver humano não é admitido enquanto objecto de relações jurídicas civis, nem é visado –por opção do legislador–, como objecto de ataque nos crimes de furto. Esta posição parece-nos integralmente de repudiar. Com efeito, não pode ser o facto de o Direito Civil o excluir do comércio privado que faz do cadáver humano algo que não possa ser subtraível e apropriável. Aliás, o próprio argumento utilizado em tal defesa é incompreensível para quem atrás pugnava pela autonomia do conceito penal de coisa em face do conceito civil respectivo. Dizer-se que “não se concebe a apropriação de um cadáver humano e isto desde logo pela razão bem simples – mas não determinante – de que é o próprio direito civil a considerá-lo como coisa fora do comércio jurídico”, é totalmente inaceitável, posto que também o “quadro de Columbano” utilizado pelo mesmo autor como exemplo de coisa fora do comércio susceptível de ser apropriada para efeitos do furto, é para a lei civil insusceptível de apropriação privada. E que assim é, aliás, resultava patente para o próprio autor, quando reconhecia que o argumento dado não era determinante (mas mais do que não ser determinante, o argumento prova em sentido inverso ao pretendido ).

Com efeito, não só a conclusão que atrás repudiámos decorre pura e simplesmente, s.d.r., da incursão numa errónea abordagem metodológica do problema, como afinal demonstra assentar em critérios delimitativos de conceitos que incumprem a regra básica do que seja um “critério”, que mesmo não tendo que ser perfeito e esgotante do Universo, tem pelo menos que ser constante e coerente. Ora, se o argumento visto nada prova quanto ao facto de um cadáver ser ou não objecto de ataque num crime de furto, ainda prova menos alegar que “nessa circunstância a intencionalidade jurídico-civil pode e deve ser assimilada pelo direito penal na medida em que o âmbito de protecção das normas atinentes aos crimes patrimoniais visam coisas, isto é, realidades corpóreas que se não confundam com a pessoa humana ou mesmo com a sua Luigi Delpino, Diritto Penale, cit., p. 584, afirma: “Giuridicamente cosa è tutto ciò che può formare oggetto di diritto patrimoniale, e cioè che há un autónomo valore ed è suscettibile di appropriazione”. 16

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realidade ultra-existencial”17. Ressalvado o devido respeito, a definição do conceito é, deve ser e tem de ser, prévia a qualquer juízo conclusivo sobre intencionalidades normativas, sob pena de se apelar à intencionalidade normativa quando se quer definir um conceito em certo sentido, e depois se apelar a “preconceitos de conceitos” para sustentar a existência de determinada intencionalidade normativa. É pois nosso entendimento que um cadáver humano é uma substância corpórea e autónoma (além de móvel e subtraível, como decorrerá do demais que adiante se verá), termos em que se concluirá que é susceptível de integrar o conceito jus-penal de coisa subjacente ao tipo do furto18. E apenas aqui chegados poderemos questionar-nos sobre se a intencionalidade normativa subjacente ao crime de furto deve ou não abranger cadáveres humanos. Mas esta questão já não depende da definição prévia do conceito de coisa, nem da subsunção nessa categoria da realidade cadáver, antes as pressupondo. Assim, cabe determinar a intencionalidade normativa subjacente aos tipos penais do furto, para dilucidar a discussão sobre se os cadáveres humanos devem ou não ser neles enquadráveis. E neste ponto afigura-se-nos existirem múltiplos argumentos no sentido afirmativo. Assim, tendo dado como pressuposto que o cadáver humano é susceptível de ser subtraído e apropriado, precisamente porque constitui substância corpórea autónoma, caberá perguntar se cabe no espírito legislativo punir o comportamento daqueles que subtraiam cadáveres, com intenção de deles se apropriarem. Para tanto, necessário é recordar tudo quanto atrás se disse sobre a razão de ser dos crimes de furto e sobre o bem jurídico que lhes está subjacente, para onde se remete. Posto isto, não se olvide que, se há alguns anos dúvida poderia haver sobre a existência de interesse abstracto, e de prática crescente, de subtrair cadáveres, a evolução recente da vida em sociedade demonstra que cada vez mais está generalizada a perspectivação dos cadáveres como

fontes

de

órgãos,

bens

estes

cujo

“mercado”

oficial,

e

exponencialmente a cada dia que passa, em moldes verdadeiramente

criminoso,

cresce

aterrorizantes19.

Por

outras palavras, o cadáver humano é um “bem” dotado de utilidades susceptíveis de ser aproveitadas pelos Homens, e tanto assim é que os legisladores do mundo inteiro se

Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, § 38, p. 37. Aliás, para a maioritária doutrina penal italiana o cadáver é ainda “coisa”, apenas sendo remetido para fora do tipo penal de furto por razões históricas, filosóficas e afectivas, razões que atrás se viu também motivarem a doutrina portuguesa em tal exclusão. 19 Juízo conclusivo que desde já nos permite alertar para o sentido em que se resolverá uma outra dúvida que abaixo se coloca, a saber, a dúvida do regime aplicável à subtracção de partes destacáveis do corpo humano. 17 18

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preocupam em regular o modo (lícito) de aproveitamento das utilidades ínsitas no corpo humano defunto20. Em resumo, não só os cadáveres constituem uma substância corpórea autónoma e subtraível, como são portadores de utilidades para os vivos. E se são susceptíveis de ser geradores de utilidades, óbvio é que a Lei se preocupe em pré-determinar as regras de distribuição e de aproveitamento dessas utilidades. Havendo quem viole as regras de aproveitamento dessas utilidades, e sendo patente que tais utilidades são dotadas de valor21/22, não se encontram argumentos que nos possam levar a excluir do âmbito da proibição do furto tais condutas23. Pergunte-se então: se o cadáver preenche todos os requisitos pré-exigidos para que de coisa se trate, porque razão exclui-lo do rol de coisas susceptíveis de serem furtadas? Desconhece-se argumentário aceitável em sentido negativo, sendo certo que mesmo estendendo a dignidade da pessoa humana à sua manifestação “ultra-existencial”, tal em nada depõe contra a conclusão sustentada, antes se traduzindo na inserção, não admissível, de argumentos de ordem psicológica, afectiva e religiosa no campo da hermenêutica penal. iii. Partes individualizadas do corpo humano: órgãos, sangue, esperma e óvulos



Paralelamente, são também coisas para os efeitos em apreço as partes individualizadas do corpo humano susceptíveis de serem autonomizadas. Dito de outro modo, todas as partes individualizadas do corpo humano, desde que dotadas das características vistas (corporeidade e autonomia),

e porque susceptíveis de subtracção, são também coisas para efeitos dos crimes de

furto. Também nesta questão, s.d.r., a doutrina portuguesa escrita relativa aos crimes de furto tergiversa de modo que consideramos insuficientemente fundamentado. Na verdade, é genericamente aceite que serão coisas susceptíveis de ser furtadas “as partes do corpo 20

Assim também o legislador português, como decorre: da Lei n.º 12/93, do Decreto-Lei n.º 274/99 de 22 de Julho e da Portaria 31/2002 de 8 de Janeiro, aquela primeira e esta última regulando as colheitas de órgãos em cadáveres. Aliás, a preocupação do legislador é bem notória ao cominar, no respectivo artigo 16º, as condutas violadoras da Lei n.º 12/93, com todos os tipos possíveis de responsabilidade. 21 Com isto se abordando desde já outro dos requisitos doutrinalmente exigido para a verificação de crimes de furto, requisito esse que abaixo se abordará. 22 Anote-se ainda, porque de interesse manifesto, o referido por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, quando afirmam: “…o facto de uma coisa ser explorada por alguém, é um valor económico, é algo que não só deve ser respeitado em geral pelos outros, como é algo que tem interesse económico” (op. cit., p. 195). Ou seja, mesmo para os civilistas a coisa se apresenta como fonte de utilidades aproveitáveis, aproveitamento esse dotado de expressão económica, e que resulta em valor económico. 23 Aliás, nem se compreende que Faria Costa admita que os órgãos destacados do corpo humano vivo possam ser objecto do crime de furto – o que constitui admissão de que o órgão destacado preenche todos os requisitos do conceito de coisa jus-penal – (como abaixo melhor se verá), e retire tal “qualidade” de coisa àquilo que mais não é, em termos físicos e materiais (que não religiosos, psicológicos e afectivos), do que um conjunto de órgãos susceptíveis de serem separados e aproveitados, prontos a serem utilizados…

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humano (…) já destacadas e nesse sentido absolutamente autónomas e individualizáveis”24/25. Mas já se entende que se não tiver havido uma prévia separação física dessas partes do corpo em relação a este último, tais partes do corpo não são susceptíveis de integrar o lote de objectos de ataque de um crime de furto. Como resultará das linhas que seguem, tal entendimento também não merece a nossa adesão. Mas mesmo relativamente a algumas partes já destacadas do corpo humano, doutrina há que lhes retira a qualidade de coisas para efeitos do tipo penal do furto. Assim sucede, v.g., com Faria Costa, quando afirma que “o esperma e os óvulos – mesmo que destacados – não são susceptíveis de apropriação porque são, de certa maneira, um prolongamento, no sentido mais profundo, da própria pessoa humana e daquilo que representa a sua dignidade. São, por conseguinte, coisas extra commercium”26. Ora, como avançado atrás, não se acompanha o entendimento visto em nenhuma das suas vertentes. Antes de mais, não se aceita a exigência do prévio destaque da parte (destacável) do corpo humano para que de furto se possa falar, pois que a subtracção, fundamental ao furto, pode consistir precisamente no acto de proceder ao destaque, acompanhado da intenção de apropriação. Vejamos: para a doutrina tradicional, é susceptível de integrar a previsão do crime de furto a conduta daquele agente que, aguardando seja feita a colheita de sangue, tão logo a mesma termine, subtraia o recipiente em que o mesmo está contido; já não se subsumirá a tal previsão a conduta daquele que, procedendo à recolha de sangue o subtraia ao fim para o qual foi colhido. Compreende-se que a opinião tradicional assente no facto de a conduta daquele que procede à colheita de sangue, sem ser com a intencionalidade que justifique a prática de uma ofensa à integridade física, encontrar enquadramento legal no seio dos crimes contra a integridade física. Mas pensamos que tal perspectivação da questão não é correcta. E não o é por, pelo menos, três ordens de razões. Antes de mais, por não ser pelo facto de determinada conduta encontrar arrumação em um determinado tipo penal, que cessa o dever de buscar a respectiva subsunção numa qualquer outra norma penal – se assim não fosse, aliás, perdia todo o sentido e utilidade a disciplina do concurso de crimes. Por outro lado, porque o facto de se julgar preenchido o tipo penal do crime de ofensas à integridade física, e assim tutelado o bem Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, § 39, p. 38. Assim também para a doutrina italiana na sua esmagadora maioria. 26 Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, § 39, p. 38. Também aqui o conceito penal de coisa, para o autor, se vê submetido ao império dos critérios civis, não se compreendendo o porquê de assim ser – em termos de correcto relacionamento entre ramos do ordenamento jurídico –, e menos ainda se compreendendo o porquê de assim ter de ser. 24 25

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jurídico-penal respectivo, não obsta a que continue a merecer tutela outro bem jurídico, desta feita o subjacente ao tipo penal do furto – i.e., sendo distintos os bens jurídico-penais violados, múltipla deve ser a reacção do sistema penal. Por fim, porque casos poderão existir em que a finalidade terapêutica ou curativa que exclui a ilicitude da ofensa à integridade física praticada (transportando a questão para o âmbito dos tratamentos médicos autorizados ), existe, mas ainda assim é concomitante com a intenção de apropriação de uma parte do “produto” obtido com a intervenção no corpo alheio – caso em que uma intenção criminosa transformada em acto, e merecedora de reacção criminal, ficaria totalmente impune por lacuna ( imerecida e indesejada)

do sistema penal.

Em conclusão liminar, cabe afirmar ser para nós irrelevante, para efeitos de admitir a possibilidade de subsunção do facto ao tipo penal do furto, que a parte destacável do corpo humano que é objecto de subtracção esteja previamente destacada. A nosso ver tanto poderá haver um furto de sangue previamente colhido, como poderá haver um furto – à partida em concurso com uma ofensa à integridade física –, de sangue que é subtraído precisamente através da colheita. E se o que se diz é válido para o sangue, igualmente o é para qualquer outra parte “destacável”, que não “destacada”, do corpo humano, v.g. para os órgãos, os dentes, a bílis, a linfa, etc. E se assim é para as substâncias referidas, igualmente o será para o esperma e os óvulos, que, como visto, alguma doutrina exclui do âmbito das coisas susceptíveis de ser furtadas, mesmo que estejam previamente destacadas. Na verdade, é nosso entendimento que não só são susceptíveis de ser furtados óvulos e esperma que não estejam previamente destacados – como atrás defendido –, como, por maioria de razão, o poderão ser se o destaque tiver sido anterior27. Com efeito, não se compreende como possa entender-se que pelo facto de serem “um prolongamento, no sentido mais profundo, da própria pessoa humana e daquilo que representa a sua dignidade”28, tais coisas possam ser livremente subtraídas com intenção de apropriação sem que nenhum tipo penal se encontre preenchido29. Mais: nem sequer se pode acompanhar o raciocínio segundo o qual o esperma não pode ser

Francesco Antolisei, Manuale di Diritto Penale – Parte Speciale I, 13ª Ed., a cura di Luigi Conti, Giuffrè Editore, Milano, 1999, p. 298, n. 45, onde afirma: “Generalmente si ritiene che il delitto di furto possa ravvisarsi nella sottrazione di energie genetiche, come nel caso di colui che invito domino abbia fatto accoppiare l’altrui animale da monta com una propria riproduttrice”. Opondo-se a Antolisei, surge Manzini, Trattato, v. ix, n.º 3227, p. 15, n. 3, apud F. Antolisei. 28 Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, § 39, p. 38. 29 Com efeito, partindo do ponto de vista que se criticava a Faria Costa, teríamos uma situação penalmente irrelevante a partir do momento em que alguém subtraísse um frasco de esperma ou um tubo de ensaio contendo óvulos, posto que tendo sido 27

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objecto do crime de furto por representar a expressão mais profunda da dignidade humana… tão mais profunda que o sangue destacado poderia ser susceptível de furto e o esperma/óvulos destacados não. Pergunta-se: a dignidade da pessoa humana está mais patente no esperma/óvulos do que no sangue? Em quê que se distinguem tais produtos biológicos, mesmo do ponto de vista filosófico, psicológico e, até, religioso?30 Concluindo: todas as partes do corpo humano (com isso querendo já referir que são dotadas de corporeidade e autonomia)

destacadas ou apenas destacáveis são coisas para efeitos dos crimes de

furto, sendo irrelevante o prévio destaque das mesmas, e sendo inaceitável a criação artificial de supostas diferenças de dignidade entre várias partes destacáveis do corpo humano, posto que as diversas partes deste não têm, por definição, nem podem ter dignidades diferentes. A dignidade é ínsita ao Ser na sua totalidade, e não por partes. Assim, verificados que sejam os demais elementos dos crimes de furto, dar-se-á por preenchido o tipo penal em questão quer o objecto de ataque da subtracção seja o sangue, a bílis, a linfa, os dentes, o esperma, os óvulos ou qualquer órgão susceptível, abstractamente, de apropriação. Por outro lado, tal como atrás referido quando se analisou a qualidade de coisa do cadáver humano, para efeitos do tipo de furto, é inequívoco e inultrapassável que todos esses “bens” são dotado de utilidades susceptíveis de ser aproveitadas pelos Homens. Daí que seja necessário prever e precaver os modos ilícitos de aproveitamento dessas utilidades ínsitas no corpo humano vivo. Em resumo, não só tais partes destacáveis do corpo humano constituem substâncias corpóreas, autónomas e subtraíveis, como são portadoras de utilidades. E sendoo, imperioso é que a Lei se preocupe em pré-determinar as regras de distribuição e de aproveitamento dessas utilidades. A violação dessas regras de aproveitamento das utilidades das partes destacáveis do corpo humano, dotadas de valor, merece e carece de protecção ao abrigo do tipo penal do furto. iv. Próteses do corpo humano – Os raciocínios atrás expendidos permitem-nos concluir, sem mais delonga, que as próteses são susceptíveis de furto, seja qual for a situação em que se

previamente destacados não constituiriam nunca uma ofensa à integridade física, e sendo o expoente máximo da dignidade humana, não poderiam ser tutelados no âmbito dos crimes contra o património. 30 Aliás, tanto na cultura judaico-cristã como na budista, na hinduísta e nas demais, o Sangue é o símbolo máximo e o expoente último da dignidade humana, não o esperma ou os óvulos. Mesmo em termos bíblicos, Adão, para identificar o ser que se lhe igualava, referiu-se à carne e aos ossos, e não ao esperma e aos óvulos, (Génesis, 2, 23). Ou seja, nenhum argumento, nem científico, nem biológico, nem filosófico, nem psicológico, nem sequer religioso, autoriza tratar de modo diferente o sangue, por um lado, e o esperma e os óvulos, por outro.

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encontram: quer estejam já destacadas do corpo humano (caso em que a discussão nem sequer em abstracto se colocava, posto tratarem-se obviamente de coisas à luz de todos os conceitos utilizados pelos diversos ramos do direito ao caso aplicáveis),

quer se encontrem nele integradas, com carácter perene ou

amovível (obviamente que estando perenemente integradas, a solução já variará consoante se trate de substância autónoma ou não, mas tal consideração em nada afasta a coerência do raciocínio expendido ).

v. Energias mecânicas e outras substâncias não palpáveis: electricidade, energia térmica, gás, etc. – Em face da definição utilizada, assente no critério da autónoma corporeidade e ponderando, obviamente – mas no sentido que se julga correcto –, o espírito legislativo subjacente à tipificação dos crimes de furto, dúvidas não podem subsistir sobre a integração das energias mecânicas no âmbito do conceito jurídico-penal de coisa. Também aqui, contudo, nos afastamos da afirmação segundo a qual tais coisas não são verdadeiramente corpóreas, mas apenas quantificáveis e controláveis. Com efeito, apenas um esquecimento de que a corporeidade não significa palpabilidade ou detecção pelo sentido humano do tacto, pode permitir afirmar que a electricidade ou o gás não são coisas corpóreas. São-no inequivocamente, além de serem autónomas e de serem subtraíveis. Com efeito, a corporeidade não é, nem tem de ser, analisável no plano daquilo que tem um tamanho suficiente para ser perceptível pelos naturais sentidos do Homem. Se assim fosse, a tutela penal do furto era uma tutela do “médio” ou do “grande”, mas não do infinitamente pequeno. Ora, corporeidade significa precisamente que tem “corpo”, i.e., que se trata de matéria existente no Universo, quantificável e controlável precisamente porque ocupa espaço. Assim sendo, como não pode deixar de ser, não cabe excluir do âmbito da tutela em análise as “coisas” que apenas são invisíveis porque os nossos sentidos não detectam, sem auxílio, as respectivas estruturas moleculares, atómicas e sub-atómicas. Em nosso entender nem sequer é séria a pretensão de que a electricidade ou o gás não são corpóreos, posto que indubitavelmente o são31. Apenas dois séculos de atraso na compreensão de tais realidades podem levar a pretender que não são susceptíveis de quantificação, de controlo, e, como tal, de furto. Ademais, são tais substâncias e energias igualmente dotadas de utilidades susceptíveis de apropriação individual, i.e., coisas dotadas de valor, que mal se compreenderia se se dissesse

Sobre a matéria em discussão, entende a maioria da doutrina italiana que “sono cose anche le energie naturali che hanno valore economico, quali l’energia termica ed il faz, nonché l’energia elettrica che, secondo la giurisprudenza, costituisce cosa mobile. Non sono inquadrabili come cosa, invece, la luce e l’aria che, fondando res communes omnium, sono insuscettibili di appropriazione” (Luigi Delpino, op. cit., p. 584.). 31

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que caem fora da intencionalidade normativa dos tipos penais do furto32. vi. Informação armazenada em suportes informáticos – aqui a questão posta é altamente sensível e verdadeiramente importante… Altamente sensível posto que se ultrapassam os limiares do mundo real, entrando-se definitivamente no mundo virtual; verdadeiramente importante na medida em que se trata de todo um universo que poderá escapar à clássica tutela dos crimes de furto, se formos incapazes de desenvolver os conceitos ao ponto e à medida do necessário para proceder a um aggiornamento dos tipos. Se estamos a falar de informação armazenada em suportes informáticos, é patente que nos movemos num mundo que nasceu apenas nos finais do século XX. E precisamente por isso tal mundo não poderia de forma alguma estar abrangido pelas pretéritas estruturas do pensamento, estruturas que foram desenvolvidas durante milénios, é certo, mas que foram pensadas, exclusivamente, para o palpável, para o quantificável, para o fisicamente controlável. Ora, tal informação não poderia ser menos palpável, menos física nem menos quantificável pelos nossos tradicionais sistemas de medição. Ao fim e ao cabo tudo se trata de não conseguirmos ver, quantificar nem apalpar, como a doutrina não vê, não quantifica nem apalpa, os bytes, k-bytes, mega-bytes e giga-bytes em que se consubstancia a informação electrónica. Por definição, não se trata de algo corpóreo no sentido físico que de corpo temos. Não obstante, o certo é que tal realidade virtual existe tanto quanto existe o suporte físico de papel em que estão impressas as presentes linhas… mas antes de serem letras impressas numa folha de papel, foram bytes electronicamente armazenados num suporte informático. E a prova de que os bytes existiam, que a respectiva realidade era tão certa como a do livro em que estas linhas estão escritas, e que ocupavam espaço virtualmente desenhado num suporte informático, é que o leitor está a ler a manifestação física corpórea de algo que teve a sua génese e desenvolvimento, até determinado momento, apenas numa base informática. O que fazer, pois, com tal informação, cuja existência e armazenamento pode ser e permanecer toda uma vida no mundo do virtual, no mundo do electrónico? O que fazer, se ela, fisicamente (ao nível dos nossos sentidos, do nosso mundo físico ), não ocupa espaço, nem é palpável sem auxílio da maquinaria especialmente concebida para a detectar?

32

Aliás, a discussão hoje resulta até um tudo-nada ociosa, posto que há países cuja legislação penal que expressamente o afirma, v.g. o CP francês (art.º 311-2: “La soustraction frauduleuse d’énergie au préjudice d’autrui est assimilée au vol”). Assim também a doutrina francesa e italiana (cfr. F. Antolisei, Manuale…, p. 298). Quanto ao nosso código, não o diz, sendo que a omissão em nada prejudica, como visto, o atingir da correcta conclusão. A nossa jurisprudência obviamente que considera a electricidade e o gás como coisas susceptíveis de apropriação e de subtracção, para efeitos dos crimes de furto.

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Mesmo seguindo a doutrina mais recente e mais autorizada, dir-se-ia que a “informação” não é coisa, mesmo que autónoma, organizada, apta à satisfação de necessidades e com valor económico. Se A copia integralmente o conteúdo de um disco rígido de computador para outro disco, ou diskette, não teríamos um crime de furto, mas quanto muito um “acesso ilegítimo” nos termos do art.º 7º do Decreto-Lei n.º 109/91…Ora, sem antecipar o entendimento que propugnamos para a questão, desde já se diga que a subsunção do caso visto no tipo do art.º 203º nada tem que ver, posto que não conflitua nem se sobrepõe, à conduta típica prevista na norma penal avulsa referida. Temos para nós, contudo, que a questão é merecedora de alguma atenção autónoma, e que é nosso dever, pelo menos, tentar desenvolver os conceitos se a tal a realidade e o desenvolvimento técnico nos obrigam. Assim, sem prejuízo de eventuais evoluções no entendimento que agora se aponta, diremos não ser impossível considerar essa informação como coisa para efeitos de furto. Tudo se trata de perspectivar a corporização dessa realidade virtual, por mais virtual que seja a própria corporização, como sendo ainda passível de domínio fáctico por parte do Homem. I.e.: se olharmos para as unidades de mensuração e circunscrição dessa informação, veremos que a coisa ocupa ainda um espaço, espaço esse virtual, bem entendido, electrónico. Mas nesse universo não palpável pelos nossos naturais sentidos, é incontestável que a informação ocupa efectivamente espaço, espaço electrónico (e que assim é resulta claro quando nos apercebemos que a memória de um computador pode crescer pela inclusão no respectivo hardware de peças mecânicas – a memória – onde se alojará fisicamente a informação electrónica que no computador se introduza).

Em suma, partindo do prisma apresentado existe ainda um arrimo, pelo menos ideal, para estribar o critério da autónoma corporeidade. Rectius: descobrimos com tal perspectivação uma substância, virtual é certo, mas susceptível de sobre ela se exercer o poder de facto próprio da fruição de utilidades e o domínio ou controlo próprios às coisas que, paralelamente, no mundo real usamos. E se a isso se adicionar o facto de tal informação ser organizada, ser verdadeiramente apta à satisfação de necessidades e ser dotada de valor económico, a mesma patenteia-se-nos como coisa o suficiente para poder ser objecto de subtracção. Tudo isto, é óbvio, se passando num mundo de imaterialidade física, mas de patente e indiscutível realidade electrónica. Sendo assim, nada obsta a que a informação electrónica armazenada em suportes informáticos possa constituir-se como objecto da acção de subtracção, e, assim, como objecto de ataque do

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crime de furto33.

III – b) “Coisa Móvel” Nos termos da previsão legal do art.º 203º do CP, para que de crime de furto se trate, necessário é que a coisa objecto da subtracção e da intencionalidade apropriativa seja móvel. Caberá, pois, determinar o que quer o legislador referir ao utilizar o conceito de coisa móvel. O art.º 205º do CC define coisa móvel apenas indirectamente, i.e., por relação com o art.º 204º do CC, dizendo: “São móveis todas as coisas não compreendidas no artigo anterior”. Ora, no dito artigo anterior, elencam-se as coisas imóveis, a saber, “os prédios rústicos e urbanos; as águas; as árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo; os direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores; as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos”. Ou seja, trata-se no 205º do CC de uma definição por exclusão de partes, que como tal não é operativa, e como tal é inútil, para os fins do direito penal. Também aqui, portanto, é necessário gizar uma definição de coisa móvel própria para os fins específicos a que nos atemos. Porém, cremos não ser aqui necessário grande labor da nossa parte. Parece-nos, ao invés, de aceitar o entendimento segundo o qual “é móvel toda e qualquer coisa – portanto, um pedaço de realidade que ocupa espaço – que seja susceptível de ser deslocada espacialmente. Portanto, tudo aquilo que em um tempo preciso estava em um lugar determinado e pode passar, no momento seguinte, para um outro espaço, um outro lugar”34. E a bondade da noção avançada é patente precisamente porque comunicacional para os destinatários da norma penal. Todos e cada um de nós conseguimos entender o sentido último que o legislador pretende atingir com a utilização da expressão coisa móvel. Ainda assim, e tal como sucedeu com a própria definição geral de coisa, existem coisas relativamente às quais se podem levantar dúvidas sobre se devem ou não ser consideradas

33

Em sentido absolutamente oposto ao defendido no texto, no cenário da doutrina italiana, se posiciona Luigi Delpino, afirmando: “Sono (…) esclusi dal novero delle cose nel senso anzidetto i dati informatici, non essendo assimilabili né alle cose corporali, né alle energie (se non sulla base di una inammissibile interpretazione analógica), ed essendo insuscettibili di essere materialmente apressi e goduti in senso stretto” (op. cit., p. 584). Também no mesmo sentido, cfr. G. Fiandaca, na obra atrás citada. 34 Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, §47, pp. 40 e s.

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móveis para efeitos do crime de furto. Tal sucede com todas aquelas que coisas que sendo imóveis apenas “por relação” – natural ou não – com um imóvel, vêem a sua categoria mudar quando destacadas da coisa que lhes dava a qualidade de imóveis35. É patente que neste caso se encontram os frutos que a natureza nos dá, as plantas, e mesmo alguns animais que vivem estrutural e permanentemente ligados ao solo, como é o caso dos corais e outras formas de vida que nos são menos quotidianas. Igualmente nessa situação estão as partes integrantes e os componentes de coisas imóveis, v.g. antenas de rádio e televisão, elementos decorativos e/ou de segurança das habitações, elementos de cobertura e/ou de fecho de prédios, etc. Tais realidades são pela doutrina tradicional consideradas como coisas imóveis apenas enquanto estiverem ligadas ao solo (art.º 204º al. c) do C.C.). Nesse entendimento, tão logo se quebre a ligação ao solo, transformam-se em coisas móveis, como tal susceptíveis de se constituírem como objecto material da acção de subtracção inerente ao crime de furto. Será este entendimento correcto e suficiente do prisma da intencionalidade normativa penal que preside à instituição do crime de furto? Cremos que, também aqui, assim não é, como passa a demonstrar-se. Hipotetize-se que em determinado quintal se encontra uma árvore de fruto, árvore essa precisamente no momento da frutificação. Imagine-se, ainda, que determinado agente, abeirando-se da árvore, procede à colheita dos frutos ou, alternativamente, procede à própria realização material de desincorporação da árvore do solo. A intencionalidade do agente, admita-se, é exclusivamente a de se apropriar dos frutos ou da própria árvore. Será que pelo simples facto de os frutos não estarem desligados da árvore antes da colheita a que procedeu o agente, não existe furto? Tratar-se-á então de um crime de dano? De um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou coisa achada? Ou antes de um crime de usurpação de imóvel? Parece patente e óbvio que nenhum desses tipos quadra com propriedade à questão colocada. Com efeito, sem prejuízo de poder vir a considerar-se que a conduta material do agente é em abstracto subsumível à previsão do art.º 212º do CP, parece patente que no caso vertente o dolo do agente não é suficiente para dar por preenchido tal tipo penal, isto porque não tem

35

Do Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 14/06/1995, no processo 9440180, n. publicado, resulta, e bem, que a água pode ser coisa para efeitos do crime de furto. E apesar de no caso concreto não ter sido aplicado o art.º 203º do CP, por razões que aí se expressam, o certo é que parece subjazer ao aresto referido o correcto entendimento segundo o qual uma coisa imóvel para efeitos civis, no caso vertente águas de nascente, ser móvel para efeitos do crime de furto.

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necessariamente de existir, na hipótese levantada, representação de que a acção sacrifica coisa alheia36. Nem sequer em termos de dolo eventual. Ademais, sempre seria falacioso ficcionar a existência de dolo eventual de dano, quando existe um dolo patente de furto, todo esse esforço sendo determinado apenas pela vontade de deixar intocado o dogma de que os frutos são móveis apenas após o respectivo destaque da árvore. Caso de apropriação ilegítima à luz do art.º 209º do CP também não parece ser, não só por ser entendimento da doutrina que as coisas susceptíveis de apropriação ilegítima apenas são coisas móveis37 – apesar da aparente irrestrição da letra da lei –, como igualmente devido ao facto de a coisa no caso hipotetizado não ter “entrado na (…) posse ou detenção” do agente “por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da (…) vontade” deste. Igualmente não preenchida estaria a previsão típica do crime de usurpação de coisa imóvel… quanto mais não fosse porque o objecto material da usurpação, tal como definido no art.º 215º do CP, perdia a característica típica essencial de imóvel concomitantemente com a acção do agente, o que nos remeteria novamente para o tipo penal do dano, que como atrás visto apenas se aplicaria forçando a nota. Além disso, não menos forçado seria dizer que o agente invadiu ou ocupou uma pêra, uma laranja ou um pêssego. Mas não só por estas razões negativas, ou indirectas, se deve buscar a possibilidade de aplicação ao caso em análise dos tipos dos crimes de furto. Na verdade, se em vez da hipótese prática apontada em primeiro lugar, visualizarmos a segunda, i.e., aquela em que o objecto da subtracção é a própria árvore ou arbusto, e bem assim se imaginarmos que o objecto da subtracção é a antena de televisão ou as grades em ferro forjado de uma janela colocada numa janela de uma habitação, aí já a tutela emergente do art.º 212º parece facilitada. Mas ainda assim caberá questionar se a intencionalidade normativa não deveria fazer-nos chegar a solução inversa, i.e., a solução em que se consideraria aplicável um dos tipos penais do furto. Vejamos: será penalmente irrelevante que determinado agente, motivado pela intenção de se apropriar de uma árvore de fruto ou das grades de uma janela, proceda materialmente ao destaque dessas coisas relativamente à coisa em que se encontram incorporadas, respectivamente solo e edifício, assim as subtraindo para se aproveitar das utilidades respectivas? E será que os cenários descritos ficariam correctamente tutelados pela aplicação do tipo penal do dano? É nosso entendimento que não, posto que o direito penal não pode,

Manuel da Costa Andrade, Comentário…, Art.º 212º, §54, p. 225. Jorge de Figueiredo Dias, Anotação ao Art.º 209º do CP, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Direcção de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, §§ 4 e 5, pp. 150 e ss. 36 37

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não deve, nem precisa de reagir contra determinado comportamento, hipotetizando intenções que na verdade não existiram, apenas por ser esse o único modo de trazer a acção para o âmbito da proibição. Mais: muito menos é admissível que assim se proceda, quando a aparente não recondução da conduta ao tipo penal que, de acordo com a clara e directa intenção

do

agente,

era

aplicável,

decorre

apenas

de

se

partir

de

uma

leitura

incompreensivelmente restrita do próprio conceito de coisa móvel de que se partira. Por outras palavras, entende-se que a coisa móvel tal como definida inicialmente abrange perfeitamente, e sem qualquer entorse ao princípio da tipicidade, todas aquelas coisas que são susceptíveis de ser deslocadas espacialmente. Essa a definição de que partimos, e que é aliás a dada pela doutrina, a qual, após a apresentação do conceito, o limita de modo injustificado. Como visto, é coisa móvel aquela que é susceptível de ser espacialmente deslocada, i.e., de ser removida do lugar em que se encontrava. Mas já não pode conceptualmente exigir-se que essa susceptibilidade de deslocação tenha de ser imediata ou automática, ou seja, independente de prévios actos preparatórios (hoc sensu), da subtracção da coisa38. Assim sendo, é a nosso ver de furto o crime cometido por aquele agente que, tencionando apropriar-se dos frutos naturais pendentes de uma árvore, da própria árvore ou arbusto, ou das grades que guardam e ornam uma janela, procede materialmente aos actos necessários a tornar a coisa deslocável, assim permitindo a respectiva subtracção39. Tudo o que, no nosso entendimento, cai inequivocamente e sem esforço, no conceito de coisa móvel inicialmente gizado.

III – c) “Coisa Alheia” i. A característica da alienidade – Outro sub-elemento integrante do elemento típico utilizado nos tipos do furto para circunscrever a matéria da proibição é a necessidade imperiosa de a coisa objecto da subtracção ser alheia. Por outras palavras, “não podem ser objecto do crime

Em sentido que se depreende próximo ao que fica defendido no texto, escreve Luigi Delpino: “…occorre ricordare che il concetto di ‘cosa mobile’, agli effetti penali, è molto più ampio dell’analogo concetto del diritto civile in quanto rientrano nella categoria determinati beni che, o per la loro destinazione o per una fictio iuris, sono invece considerati beni immobili dal diritto civile” (op. cit., p. 585). 39 Claramente se opondo ao sustentado no texto, surge F. Antolisei, que afirma: “È responsabili di furto, quindi, colui che si impossessa del materiale ricavato dalla demolizione di un edifício, del minerale estratto da una cava, delle messi recise dal suolo, e così via dicendo”, mas sempre porque se trata de coisas, no momento do furto, já “mobilizzate” (op. cit., p. 299). 38

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de furto coisas que não sejam de outrem”40. O que parece ser requisito óbvio. Com efeito, tratando-se no crime de furto, como tivemos oportunidade de atrás esclarecer, de conferir tutela ao aproveitamento das utilidades das coisas por parte daqueles que estão legitimados a delas fruir, não faria sentido admitir, nem em termos lógicos nem em termos jurídicos, que alguém pudesse furtar uma coisa que fosse própria. Mas sendo tal um requisito óbvio, não se afasta a existência de situações dubitativas, como passa a ver-se. ii. Res communes omnium e Res nullius – Não obstante a clareza do raciocínio expendido, o certo é que coisas existem que não sendo próprias também não são alheias, em sentido rigoroso. Assim sucede com as rerum communes omnium e com as rerum nullius. Quanto a estas coisas, entende a doutrina não se preencher o tipo de crime de furto, precisamente porque a “conduta intencional se não objectiva em coisa alheia. É alheia, por conseguinte, toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção”41. Entendimento este, quanto às rerum nullius, que sufragamos sem equívoco. Já diferentemente nos posicionamos no que respeita às rerum communes omnium, posto que não sendo passíveis de ser encabeçadas por um concreto fruidor das respectivas utilidades, encontram titular num conjunto indeterminado, mas pelo menos abstracta ou teoricamente determinável, de sujeitos. Que o mesmo é dizer que não deverão considerar-se a priori como coisas insusceptíveis de serem furtadas, apesar de em concreto poder ser difícil saber quem foi a vítima do crime, rectius, quem é o legítimo fruidor das utilidades respectivas – mas este é já um problema diferente, que com o conceito de coisa alheia não briga42. iii. Bens dominiais – Quanto aos bens dominiais, os mesmos, conceptualmente, estão ligados por uma relação de interesse a “alguém”, termos em que, segundo cremos, poderão constituir objecto da conduta subtractiva subjacente ao tipo do furto. Questão diversa é saber se uma concreta subtracção, com intenção apropriativa, de um bem dominial, constitui a prática de um crime de furto, quando o legislador, especificamente, tipificou tal conduta como uma contra-ordenação. É que aí parece patente ter sido intenção do legislador excluir a referida conduta do âmbito das condutas penalmente relevantes a nível de furto, sem que com isso se tenha de alterar o conceito defendido anteriormente.

40

Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, §49, p. 41. Idem, ibidem. 42 Em sentido oposto, J. António Barreiros, Crimes contra o património, cit., p. 31. 41

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iv. Rerum derelictae – Situação distinta, apesar de conducente à mesma conclusão final, é a que quadra às rerum derelictae, que sendo coisas não próprias, também não são alheias, tudo porque a relação de interesse que as ligava a um determinado sujeito foi por este intencionalmente quebrada. Encontram-se, por isso, em situação equivalente às rerum nullius, por inexistir quem frua das utilidades respectivas. Numa visão mais abrangente, dirse-á que se trata de coisas relativamente às quais não existe uma prévia regulação e distribuição das respectivas utilidades, termos em que não haverá sequer fundamento para a aplicação da punição prevista para o crime de furto. v. A relação do furto com as coisas subsumíveis ao art.º 209º do CP – Já no que respeita às coisas perdidas, esquecidas e de todas aquelas que entrem na esfera de fruição ou aproveitamento de terceiro por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade, a questão coloca-se diferentemente. Com efeito, neste caso ainda existe, pelo menos em teoria, um beneficiário legítimo das utilidades retiráveis da coisa. Sucede é que, por qualquer das identificadas razões, embora a relação de interesse que liga a coisa ao titular da fruição pré-determinado ainda exista, este deixou de poder exercer o domínio de facto inerente ou necessário à dita fruição de utilidades. Quanto a estas coisas, o regime das mesmas está expressamente previsto através do tipo penal da Apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, previsto no art.º 209º do CP. E a eventual dúvida sobre a concorrência nessa mesma situação da aplicabilidade dos tipos de furto nem sequer se coloca, posto que são totalmente outras: quer a posição subjectiva do agente terceiro que entra na fruição da coisa em comparação com a do agente que tenciona apropriar-se e por isso subtrai; quer a energia comportamental daquele que passa a fruir porque depara com algo perdido, esquecido, ou porque a álea lhe empurra a coisa para o seu domínio, por confronto com a acção de subtrair subjacente ao furto. A contrario, e por dever de rigor conceptual, já será furto o comportamento daquele que subtrai com intenção de se apropriar de coisa perdida ou esquecida, ou de coisa que entra na sua esfera de fruição ou aproveitamento por vontade própria concomitante com a verificação da força natural, do erro alheio ou do caso fortuito. Tudo porque nesse caso ainda existe a relação de interesse que liga a coisa ao seu legítimo fruidor, apesar de este não ter o domínio de facto sobre ela. E este caso, diga-se, nunca ficaria coberto pela tutela do art.º 209º do CP, sendo para nós inequívoco que é carecido e merecedor de reacção penal. E tudo quanto se diz em nada se confunde com uma leitura distorcida ou indevida do bem

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jurídico tutelado através do crime de furto. Com efeito, a nossa posição não se traduz em considerar que o furto tutela apenas a propriedade. Por isso tivemos o cuidado de o afirmar inicialmente, e, bem assim, de o ir demonstrando ao longo do texto, identificando a “relação de fruição quebrada” como base do comportamento criminoso susceptível de desencadear a aplicação dos tipos penais do furto43. Bem ao invés, independentemente de o crime de furto tutelar os casos de ilegítima quebra da relação de fruição pré-existente, questão diversa é saber se pode haver furto de coisas perdidas, esquecidas, etc. vi. As coisas “comuns” a vários sujeitos – Comece por dizer-se que com a designação “coisas comuns” quer identificar-se todas aquelas coisas relativamente às quais o aproveitamento de titularidades não é singular, i.e., aqueles bens que se encontram pelo Direito distribuídos ou adjudicados a mais do que um centro de imputação de direitos e interesses, a mais do que titular, sem contudo ser a respectiva titularidade distribuída por um conjunto indeterminável de sujeitos (caso em que estaríamos perante rerum communes omnium). Utilizando uma linguagem clássica, e para os nossos propósitos imprecisa, serão comuns as coisas que “pertencem” a mais do que um sujeito. A dúvida prática que se levanta relativamente à susceptibilidade de serem furtadas coisas comuns é mais do que legítima: é que sendo ainda próprias, não deixam de ser relativamente alheias. E a inversa também é verdadeira: sendo coisas alheias, não deixam de ser relativa ou parcialmente, mesmo que não em valor quantificado ou em parte determinada, próprias. Paralelamente, movendo-nos no âmbito de um ramo de direito em que vigoram princípios intransponíveis como sejam o princípio da precisão típica e o princípio da subsidiariedade, também dogmaticamente a dúvida ganha legitimidade e importância. Nada dizendo o direito expressamente quanto à susceptibilidade de a coisa comum ser furtada, deveria ter-se como atípica, por exemplo, a conduta daquele co-herdeiro que subtrai, com intenção de dela se apropriar, uma coisa móvel pertencente à massa hereditária. Não podemos contudo aceitar tal Daí que não se aceite a afirmação de Faria Costa segundo a qual “…também por aqui (…) se reforça a posição por nós defendida quanto à natureza e descrição do bem jurídico que o furto quer proteger. Na verdade, se o bem jurídico, em toda a sua plenitude, fosse tão-só a propriedade, é evidente que também todos os comportamentos descritos no texto-norma do art.º 209º deveriam ser unicamente punidos como furto. Pouco interessaria se a coisa estava ou não perdida, se tinha entrado na esfera do delinquente por vontade própria ou não. O facto é que ele se tinha apropriado de coisa alheia. É claro que o furto exige subtracção e o art.º 209º prescinde desse elemento típico. Este plus que se exige ao agente da infracção vai fazer, correctamente, com que a moldura penal do furto seja muitíssimo mais grave do que a que contempla o art.º 209º. Mas isto em nada toca, com o que se acaba de analisar em moldes intra-sistemáticos. Assim, se o legislador considera como crime autónomo a apropriação de coisa achada é porque valora que o que é relevante – logo o que merece protecção – é o gozo ou fruição das utilidades que da coisa se podem retirar”. 43

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conclusão hermenêutica. Na verdade, as coisas comuns são, por definição, coisas cujas utilidades ou benefícios a lei atribui a mais do que uma pessoa. Ao fazê-lo o Direito espera que a manutenção dessa situação de equilíbrio passe pela possibilidade que todos e cada um dos titulares da fruição possa efectivamente exercer domínio sobre a coisa… desde que com o respectivo domínio, di-lo claramente a lei civil, se não prejudique a fruição dos demais44. Assim sendo, como inequivocamente é, a conduta de um dos legítimos fruidores no sentido de impedir que as utilidades da coisa comum sejam fruídas pelos demais fruidores, é ilícita. E éo não só no plano civil, como imperioso é que como tal seja considerado no plano criminal. Vejamos: sendo certo que o direito civil tem mecanismos para fazer restituir à posse do legítimo possuidor uma coisa de que este seja esbulhado, não é tal cenário que leva o legislador penal a prescindir da punição do furto; por paridade de razão, não será o facto de a lei civil ter mecanismos para assegurar que o comproprietário, meeiro ou co-herdeiro se restitua à fruição da coisa, que deve levar-nos a clamar pelo princípio da intervenção mínima para justificar um entendimento segundo o qual se verificou um esquecimento do legislador penal de expressamente prever o furto de coisa comum, e muito menos um entendimento que pugne pela vontade direccionada do legislador penal de não prever a punibilidade de tal comportamento. Por outras palavras, merece tanta reacção criminal a conduta daquele terceiro que impede o legítimo fruidor da coisa de se aproveitar das utilidades da mesma, como a conduta daquele co-fruidor da coisa que impede os demais co-fruidores de beneficiarem das utilidades dela. Não havendo, como se demonstrou, desnecessidade de intervenção, nem, muito menos, impossibilidade de intervenção, tudo se reduz a saber se a letra da lei admite um sentido segundo o qual cometa furto aquele que subtraia, com intenção de dela se apropriar, coisa comum. Ora, em face das circunscrições típicas do furto, nenhum elemento literal existe que cerceie tal interpretação, inexistindo outrossim elementos axiológicos e teleológicos que desaconselhem a interpretação propugnada. Conclusivamente, cometerá um crime de furto o co-fruidor que subtraia coisa, com intenção de dela se apropriar, cujas utilidades de acordo com o direito podem ser fruídas por outros. Nessa circunstância estão todos aqueles que beneficiem ou se aproveitem de coisas comuns,

44

Cfr. para a compropriedade, os art.ºs 1403º e ss., maxime 1406º n.º 1 in fine, ambos do C.C., este último quando afirma que “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela contanto (…) não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”; para a comunhão conjugal o art.º 1678º do C.C., maxime no respectivo n.º 3; para a comunhão hereditária os art.ºs 2079º e ss., maxime 2091º, do C.C.

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independentemente do título da respectiva fruição – assim se abrangem as situações de pluralidade de titulares de direitos sobre coisas, quer no domínio dos direitos reais, da comunhão conjugal ou hereditária, etc.45

III – d) “Subtracção” Conforme resulta do art.º 203º do CP, para que haja furto necessário é que alguém subtraia coisa móvel alheia. Na fórmula de Faria Costa, subtracção “traduz-se em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa”46. Definição de que apenas nos afastamos em dois momentos: pela desnecessária utilização de conceitos civis que apenas servem para obnubilar algo que tão esforçadamente nos empenhámos em clarificar; e pela ideia que nela vai implicada de ser necessária a existência efectiva, e não meramente potencial, de domínio de facto por parte do pretérito fruidor. Temos, então, para nós, que com o elemento subtracção identifica a Lei a acção de transferir certa coisa móvel da esfera de fruição (de aproveitamento de utilidades) de um sujeito para a idêntica esfera de outro, com isso findando o legítimo domínio de facto, actual ou potencial, por parte do pretérito fruidor. Precisamente por isso se pode dizer que com a subtracção se produz uma alteração na esfera patrimonial (posto que a fruição de utilidades tem sempre, efectiva ou potencialmente, expressão pecuniária, ou pelo menos valorativa, conforme abaixo melhor se verá),

do fruidor que se vê subtraído. Com efeito, “o

agente da infracção lança sobre a coisa um novo poder de facto”47, quer o anterior poder de facto entretanto removido ou impossibilitado fosse actual ou meramente potencial. Aceita-se por isso, inequivocamente, o entendimento de G. Fiandaca e E. Musco segundo o qual a subtracção se traduz na condição da possibilidade de gozo e fruição das utilidades da coisa por parte do agente da infracção48/49.

Em sentido idêntico, cfr. Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, §53, p. 43. Idem, ibidem. 47 Idem, ibidem. 48 Giovanni Fiandaca e Enzo Musco, Diritto penale – Parte Speciale – Delitti contro il patrimonio, Vol. II / T. II, 3ª Ed., Zanichelli, Bologna, 2002, p. 65. Igual referência aos mesmos autores, também a este propósito, é feita por Faria Costa, Comentário..., Art.º 203º, §54, p. 44. 45 46

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Mas se teoricamente a questão se mostra resolvida com a definição apresentada, já o mesmo não sucede se perspectivada a questão de um ponto de vista prático. Com efeito, mesmo partindo do conceito defendido, não é isenta de dúvidas a determinação concreta do ponto exacto e do momento preciso em que a subtracção tem lugar. E a determinação do ponto e momento exactos em que a subtracção se verifica, sendo questão que se prende com a definição exacta do conceito subtracção, é também tarefa imprescindível para a própria operatividade dos tipos penais do furto. i.e., a determinação do que seja, e de onde e quando se verifica, a subtracção, releva não só para efeitos abstractos de determinação do sentido com que o elemento típico em análise deve valer, mas igualmente para os mais regulares efeitos práticos do regime dos crimes de furto, como sejam o do lugar e do tempo da prática do crime, ou seja o do momento e lugar da consumação do facto; como seja, correlativamente, o da tentativa do crime, respectiva desistência ou frustração; e como o seja, ainda, o da operatividade das causas de justificação e de exclusão da culpa. Ora, a determinação do como, quando e onde da verificação (completa) da subtracção necessária à verificação do furto, tem sido, ao longo dos séculos, questão merecedora de forte atenção doutrinal, com as conaturais oscilações de entendimento que tais marchas evolutivas impõem. Historicamente foram sendo sugeridos diversos entendimentos relativamente ao que seja, e a quando e onde se verifica, a subtracção. Perspectivemo-los todos paralelamente, sabendo que com tal ficção se olvida que não surgiram todos sincronicamente50. Assim, dir-se-á que em abstracto pode considerar-se haver subtracção em quatro momentos distintos do processo ontológico em que se traduz o direccionamento das faculdades e do poder de facto do agente da infracção relativamente à coisa de que tenciona apropriar-se. A saber: 

Poderá entender-se que a subtracção ocorre no momento em que o agente do novo poder de facto toca a coisa móvel alheia objecto do respectivo desejo de apropriação –

Cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 30/11/1993, no processo 55945, n. publicado, onde se lê: “A subtracção consiste na ‘violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou de dispor dele e a substituição desse poder pelo do agente” (in www.dgsi.pt). 50 As teorias que passa a apresentar-se são em grande medida da responsabilidade da doutrina penal italiana e francesa, conforme bem resulta das apresentações feitas por F. Antolisei, Manuale…, pp. 300 e ss. e L. Delpino, Diritto penale…, pp. 590 e ss. 49

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contrectatio51; 

Poderá antes exigir-se que o agente do novo poder de facto remova a coisa referida do lugar em que a mesma se encontrava – amotio52;



Poderá exigir-se, para que de subtracção se fale, que o agente transfira a coisa para fora da esfera de domínio do pretérito fruidor – ablatio; ou,



Poderá mesmo considerar-se necessário que a coisa objecto da acção do agente seja conservada em lugar seguro, deixando de ser disputada, para que de subtracção se possa falar – illatio.

Abstractamente, todas as referenciadas concretizações do que seja, e de quando e onde se verifique, a subtracção são susceptíveis de ser aceites como base da discussão. Todavia, uma sumária análise de algumas delas permitir-nos-ão afastá-las, porque desprovidas de densidade dogmática ou porque inoperacionais de um ponto de vista prático. Com efeito, quer a teoria de contrectatio quer a teoria da illatio são hoje peças de arqueologia jurídica, cuja utilidade se resume a esclarecer em termos rigorosamente metodológicos quais os pontos de que se partiu na conformação da actual disciplina e entendimento da questão53. Quanto à teoria da contrectatio, a mesma é excessiva. I.e., aceitando como bom que a subtracção se verificava com o simples toque do agente na coisa, chegar-se-ia a um ponto em que a punição do furto, na forma consumada, ficava totalmente dependente da prova da “intenção de apropriação”. Concomitantemente, todo o processo compreendido entre o “levantar da mão” e o “tocar da coisa”, se transformaria em tentativa do crime de furto, numa excessiva retroacção da punibilidade de um comportamento que, as mais das vezes, seria totalmente isento de qualquer significado criminal, quer de um prisma subjectivo, quer de um ponto de vista objectivo. Em suma, utilizando tal paradigma de subtracção o campo da punibilidade dos

51

Entendimento este que vigorou até ao início do século XIX, e que veio então a ser substituído, quase simultaneamente, pelas restantes três teorias, que são óbvio desenvolvimento daquela ideia inicial. 52 Representada essencialmente por Carrara, tal como a teoria da ablatio o foi por Pessina e a da illatio pelo francês Jousse. 53 Precisamente remetendo a teoria da illatio para fora do campo do ponderável, cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 14/12/2000, no processo 90479, n. publicado, onde se afirma: “A consumação do crime de furto ocorre quando o agente subtrai a coisa da posse do dono ou detentor, contra a vontade deste, e a coloca na sua própria posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual se encontrava, não sendo necessário que o agente tenha o produto do crime em seu poder em pleno sossego ou estado de tranquilidade, ainda que transitoriamente” (in www.dgsi.pt).

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crimes de furto cresceria desmesuradamente e sem qualquer justificação, quer do ponto de vista dogmático, quer do ponto de vista prático. Com o que necessariamente mais se prejudicariam, do que se protegeriam, os fins de tutela penal, pois de imediato entraria em funcionamento a prudência do julgador, restringindo os efeitos nefastos e indesejados da construção. A acrescer aos argumentos vistos, sublinhe-se que a contrectatio é inclusivamente incompatível com a ideia do que seja ontologicamente a subtracção. Iguais defeitos, mas desta feita inversos, resultariam da consagração da teoria da illatio. Com efeito, admitindo-se que a subtracção se consumava apenas quando a coisa objecto da acção estivesse conservada pelo agente em lugar seguro, teríamos que todos os furtos que hoje conhecemos seriam tecnicamente tentativas de furto. Aqui a punição de um furto consumado seria algo de raríssimo, posto que, as mais das vezes, a conservação em lugar seguro vai acompanhada da impossibilidade de descoberta da coisa, senão mesmo da detecção da conduta do agente. Reduzir-se-ia intoleravelmente o âmbito da punição, de um ponto de vista criminológico e de política criminal, além de que se remeteria para o campo da tentativa uma série de comportamentos que largamente excedem aquilo que o espírito legislativo fez consagrar como actos preparatórios. Na verdade, como tal seria entendido todo o processo entre o “levantar da mão” e a “transferência da coisa para fora da esfera de domínio do pretérito fruidor”. Em resumo, utilizando tal conceito de subtracção, o campo da punibilidade dos crimes de furto quase que desapareceria, e também aqui sem qualquer justificação, quer dogmaticamente, quer em termos práticos. Também por esta via sairiam prejudicados os fins visados com a tutela penal e rapidamente – ensina-nos a experiência – se incorreria em juízos violadores dos princípios estruturantes do sistema penal vigente, pois as interpretações extensivas que logo surgiriam, mercê do bom-senso do julgador, poriam em causa a segurança do ordenamento penal. Ademais, a concepção de subtracção emergente da teoria da illatio seria inclusivamente incompatível com as situações, perfeitamente admissíveis, em que o furto é acompanhado da utilização e esgotamento da coisa, sem que haja qualquer necessidade ou até possibilidade de conservação da mesma54. Em face do exposto, claro resulta que apenas são pensáveis, actualmente, os conceitos de

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De acordo com alguma jurisprudência portuguesa, para que a subtracção se tenha por consumada necessário é que haja já “pleno sossego”, ou mesmo “tranquilidade” no domínio de facto do agente da infracção. A ser assim, como referido retro, poucos seriam os crimes consumados de furto que seriam sequer detectáveis. Como referido no texto, tal entendimento é claramente de repudiar, porque totalmente inoperante.

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subtracção emergentes das teorias da amotio55 e da ablatio. Mas ainda assim se está a admitir dualidade de critérios para a verificação a subtracção, pois que se no primeiro sentido se tem a subtracção por consumada com a física remoção da coisa do lugar em que se encontrava, já no segundo sentido a subtracção só se tem por realizada com a transferência da coisa para fora da esfera de domínio do pretérito fruidor da mesma. Será esta dualidade problemática? Entendemos que não. Com efeito, estatisticamente pode dizer-se que na maioria dos casos a remoção da coisa do local em que se encontra é concomitante com a transferência da mesma para fora da esfera de domínio do fruidor anterior. E nesses casos nenhum problema subsiste. A subtracção, e com ela o furto, tem-se por consumada nesse único momento. O que está a montante pertencerá ao domínio da tentativa, o que se encontra a jusante integrará o exaurimento do crime. Mas são pensáveis situações em que a subtracção é analisável em actos vários, ou mesmo múltiplos, que sucessivamente se desenrolam. Nesses casos, cumpre lançar mão de ambos os conceitos, e articulá-los, posto que os dois têm utilidade na resolução dos concretos casos práticos. Pense-se, por exemplo, em todas as situações em que a remoção da coisa do lugar em que se encontra não a transferem para fora do domínio do seu fruidor – será o caso, quase homogeneamente, em que para proceder à subtracção o agente entra num espaço que está, no respectivo conjunto, sujeito ao poder de domínio do fruidor da coisa e do ambiente envolvente (assim, v.g., os furtos praticados em espaços comerciais, genericamente em edifícios, etc.). Nessas situações, parece patente que a subtracção não acontece antes da remoção da coisa para fora da identificada esfera de domínio do fruidor do espaço em que a coisa se encontra. Tudo quanto até esse momento seja feito pelo agente poderá integrar o conceito de actos preparatórios e de actos de execução, mas a consumação não ocorreu (no exemplo referido do furto em espaços comerciais, ter-se-ia a remoção – ablatio – por verificada apenas no momento em que o agente ultrapassasse a linha extrema demarcada pelas “caixas” destinadas ao pagamento…56).

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Estranhamente, contudo, em face da evolução da doutrina, encontram-se ainda espécimes jurisprudenciais que repudiam a teoria da amotio quando nenhuma razão havia para tal. Assim, e por todos, cfr. Ac. Tribunal da Relação do Porto de 05/05/1999, no processo 9941156, n. publicado, onde se afirma que “para a consumação do crime de furto não é necessária a deslocação da coisa…” (in www.dgsi.pt). Teria razão se o dissesse num caso específico em que a remoção da coisa operasse por deslocação do todo em que ela se encontrava ou por impedimento levantado ao fruidor de sobre ela exercer o domínio que lhe cabia (o que todavia, mais cedo ou mais tarde, implicaria a respectiva remoção, nem que fosse para que o agente do furto consumisse a coisa subtraída no local em que se encontrava…). 56 Mesmo assim, antes desse momento, poderá em alguns casos ser difícil detectar a prática dos actos de execução inerentes à tentativa, posto que se o agente se direcciona para a linha das “caixas” com a coisa de que tenciona apropriar-se visível, só a prova da intenção poderá permitir distinguir entre o cliente que se prepara para pagar a coisa, e o gatuno que se apresta a consumar o furto. Ao invés, se a coisa seguir ocultada com o agente, parece claro e inequívoco existir indício de que a intenção é a de subtrair, estando por isso facilitada a prova de que se trata da prática de um acto de execução do crime em análise.

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Em conclusão, de um ponto de vista geral poderá dizer-se que a subtracção se verifica, e o furto se consuma, quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infracção, com tendencial estabilidade, i.e., não pelo facto de ela ter sido removida do respectivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito57. Aceitando-se isto, parece resultar inequívoco que a subtracção tende a confundirse com o conceito que dela dá a teoria da ablatio, passando essa a ser a regra. Regra que admite excepção em certos casos, v.g. aquele em que uma determinada entourage do cenário criminoso ou as regras da experiência permitem concluir, com segurança, que o simples facto de remover a coisa constitui já o início da consumação da subtracção58. Ou seja, mesmo partindo do entendimento conclusivo apresentado, cabe mentalmente distinguir-se o momento de entrada da coisa alheia na esfera de domínio de facto do agente da infracção (saindo da esfera de domínio que preteritamente sobre ela se exercia ), do momento em que o novo domínio ganha uma mínima estabilidade. Não que com isso se defenda estarmos perante um crime de execução continuada. Trata-se, indiscutivelmente, de um crime de execução instantânea, sem que seja irrelevante o facto de esse mesmo processo de consumação poder durar certo lapso temporal59.

F. Antolisei escreve a propósito: “’Sottrazione’ significa eliminazione, privazione dell’altrui possesso, e cioè spossessamento.” (op. cit., p. 301). Daí que conclua L. Delpino: “… da ciò si deduce che presupposto del furto è la mancanza di possesso da parte dell’agente.” (op. cit., p. 592). E segue Delpino: “Impossessamento, invece, significa acquisto di un potere autonomo sulla cosa” (op. cit., p. 593). 58 Atente-se que com o que vai dito não se olvida o perigo de haver quem entenda que aquele agente que remove do respectivo lugar o quadro ou a jóia, ou aquele indivíduo que tire a peça de arte do expositor em que se encontrava, num museu ou numa galeria, consumou integralmente a subtracção, e, assim, o furto. Com efeito, se assim se entendesse, a reacção dos guardas do museu ou da galeria, em princípio, não estaria justificada por legítima defesa, pelo simples facto de a agressão patrimonial já haver cessado quando a defesa era oposta. Não obstante, é nosso entendimento que a doutrina expendida não quadra à hipótese analisada. Ao invés de um supermercado ou loja, em que a remoção das coisas não é por si indício de nada – daí que seja necessário precisar o momento da consumação –, um museu, um banco, uma galeria, uma igreja, ou qualquer outro espaço em que as coisas estão dispostas em certo lugar de onde não devem ser, e por regra não são, removidas, são espaços em que a própria remoção é início de uma execução que só termina aquando da ultrapassagem do limite exterior último imposto pelo respectivo titular. Ou seja, se o furto em supermercado pode ter o seu início detectável, e a sua consumação, no momento da passagem da linha das “caixas”, já nos demais espaços referidos a consumação do furto prolonga-se por todo o período e processo em que a coisa é removida e transportada até à ultrapassagem dos limites de segurança do espaço – será em rigor um crime “que se está cometendo” durante todo esse tempo e processo. Sobre os furtos em supermercados, cfr. L. Delpino, Diritto penale…, cit., p. 594, e F. Antolisei, Manuale…, cit., p. 302. 59 Faria Costa, em sentido próximo, vem referir que se o agente tem de actuar com intenção de apropriação, e se tem de subtrair a coisa da esfera do domínio real de terceiro, passando-a para o âmbito da sua própria esfera pessoal, então para haver consumação formal não basta que o sujeito passivo se veja privado do domínio de facto sobre a coisa, sendo necessário que o agente tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa. Sendo assim, a questão centra-se na determinação do que seja o domínio de facto necessário para que de subtracção se fale. Para o Autor, deverá exigir-se não um instantâneo domínio de facto, mas um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa. Isto porque: um entendimento que se bastasse com o instantâneo domínio do facto faria coincidir subtracção e domínio de facto, com o que se limitaria a possibilidade de desistência da tentativa e se prejudicariam situações de arrependimento activo; e porque o sentir comum e a consciência colectiva exigem que o domínio de facto seja entendido com representações que afastem a instantaneidade como elemento decisivo. Na expressiva imagem que utiliza o Autor, nada seria mais irreal e despegado da vida do que não se aceitar a legítima 57

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Precisado o sentido radical com que o elemento típico subtracção deve valer, e constatado que à subtracção não basta a aprehensio rei, esclareça-se igualmente que a mesma nem sequer é necessária. Dito de outro modo, a apreensão material da coisa por parte do agente não é exigível para que de subtracção se possa falar. Assim que possa haver subtracção através da utilização de extensões mecânicas do corpo do agente, através de mecanismos robotizados ou mesmo através de animais amestrados. Tudo se tratará de conseguir a vida, e muitas vezes a tecnologia, dar-nos imaginativos exemplos de processos subtractivos mais ou menos inovadores e mais ou menos críveis.

III – e) “Valor patrimonial da coisa” Constitui afirmação quase unânime da doutrina tratar-se de elemento implícito do tipo a existência de valor patrimonial da coisa objecto da subtracção60. Precisamente nesse sentido se perfila Faria Costa, para quem a coisa, para efeitos do tipo em apreço, não só tem que ter valor patrimonial, tendo ainda esse valor “de ultrapassar um limiar mínimo de valor para que, desse jeito, a sua protecção, enquanto coisa alheia, ascenda à dignidade penal”61. Dito de outro modo: além de inadmissível seria “inconsequente” punir um comportamento porque violador de um tipo que tutela o património se a coisa que estivesse em causa não tivesse valor patrimonial62.

defesa daquele que chegando a casa depara com o ladrão a sair da casa com o produto do furto (Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º, §§ 69 a 73, pp. 49 e ss.. 60 A jurisprudência, contudo, segue muitas vezes o sentido oposto, do que é exemplo o Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 29/09/1994, no processo 78465, n. publicado, onde se lê: “A existência do crime de furto não depende do valor do objecto subtraído; basta que se trate de coisa móvel alheia susceptível de ser objecto de relações jurídicas” (in www.dgsi.pt). Ao invés, já o Ac. do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 12/07/2001, no processo 35, n. publicado, pressupõe ser elemento implícito do tipo o valor da coisa subtraída, quando afirma: “Dado que o valor de um impresso de cheque não se encontra abaixo do limiar de dignidade de direito penal, a sua subtracção com intenção de apropriação integra a prática de um crime de furto simples…” (ibidem). 61 Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º. § 57, p. 44, e ainda Comentário…, Anotação ao art.º 202º, §§ 16 a 30, pp. 8 a 14. Idêntico entender tem J. António Barreiros, Crimes contra o património, cit., p. 25. 62 Como exemplos de coisas destituídas de valor venal refere Faria Costa os seguintes: “A carta que um avô deixa ao neto, como seu testamento espiritual, a concha do mar que afectivamente se apanhou em uma praia de gratas recordações, a pétala seca guardada em um livro, tudo são coisas que nos podem trazer grande satisfação espiritual, mas, porque coisas sem qualquer valor venal, não são merecedoras, qua tale, de protecção penal através dos crimes contra o património. Repare-se que tivemos o cuidado de dizer ‘através dos crimes contra o património’, o que implica que a subtracção dessas coisas possa bem configurar (…) a prática de uma qualquer outra infracção. Porque – olhemos e valoremos os problemas com lucidez – aquelas condutas podem ser violadoras de muita coisa mas seguramente não serão destruidoras de bens patrimoniais” (Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º. § 57, p. 45). Em sentido oposto, refere Luigi Delpino que “si è già ricordato che la cosa mobile può anche avere valore solo affettivo e non pecuniario: commette, pertanto, furto chi si impossessa di lettere o di foto che hanno solo tale particolare valore” (op. cit., p. 589). Contemporizando ambos os entendimentos, refere, algo dubiamente,

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Para este autor seria inaceitável conceder tutela penal a coisas destituídas de valor venal, não só porque o valor se erige como factor constante de qualificação, ou da agravação – dirão outros autores

–, de todos os crimes contra o património, mas principalmente mercê da existência do

preceito constante do art.º 204º n.º 4, que impede a qualificação se a coisa for de diminuto valor (i.e., de valor inferior a uma unidade de conta – conforme resulta da conjugação com o disposto no art.º 202º al. c) do CP).

Funcionando tal previsão como um contra-tipo, ou seja, “se houver qualificação por

força de um qualquer outro elemento previsto no art.º 204º e, para além disso, a coisa for de diminuto valor, em caso algum se verificará um furto qualificado mas sim um furto simples”63, então resultará evidente que o elemento valor integra como elemento o tipo do furto simples. Nessa ordem de ideias, ficariam de fora da tutela penal concedida pelo 203º as condutas subtractivas de coisas de valor irrisório ou insignificante. Questão distinta já é o conseguir determinar quando é que o valor é irrisório. E se tempos houve em que a doutrina, afirma Faria Costa, considerava destituídos de valor venal um grão de milho ou um bago de uva 64, o critério que avança – mas que, s.d.r., não nos parece melhor –, é o da menor subdivisão de moeda que efectivamente circule em um determinado momento. Daí que chegasse à conclusão, à data em que elaborou o seu escrito, que tal valor irrisório fosse o que se situasse abaixo do montante de cinco escudos (5$00). Adaptando o pensamento do autor à evolução monetária vivida entretanto em Portugal, chegaríamos hoje à conclusão, no mínimo estranha quando confrontada com os argumentos dogmáticos de que parte a construção, de que o limiar mínimo da dignidade punitiva do furto se situava agora em um cêntimo (€ 0,01, equivalente a 2$00482)65. Ora, diga-se antes de mais ser nosso entendimento que todas as coisas (sublinhe-se: todas), têm

F. Antolisei: “Poiché non costituiscono elementi del patrimonio le cose che, a giudizio della generalità degli uomini, non hanno un valore di scambio (…), tali cose di regola non possono costituire materia di furto. Se, però, oggetti privi di un valre pecuniario hanno per colui che li possiede un valore di affezione o sentimentale (ricordi di famiglia, ecc.), non è dubbio che la sottrazione di esse può dar luogo a responsabilità per furto” (Manuale…, p. 298). Tudo quanto permitirá concluir pela bondade do critério e entendimento que abaixo apresentaremos. 63 Faria Costa, Comentário…, Art.º 203º. § 57, p. 45. 64 Precisamente exemplos usados por F. Antolisei, na obra que vimos de citar, na esteira da velha doutrina oitocentista italiana. 65 E diz-se ser conclusão estranha pelo seguinte: é que o afã quantificador do limite mínimo da relevância justificadora da intervenção penal, assente no critério da menor unidade monetária em circulação, acabou no caso vertente, com a passagem de ano de 31/12/2000 para 01/01/2001, por ver tal limiar mínimo reduzido em mais de cinquenta por cento. A subtracção irrelevante era numa noite a subtracção de valores até 4$00, e passava a ser, no dia imediato, a subtracção de valores até 2$00, tendo ganho relevância como furto a subtracção de coisas avaliadas em 3$00 e 4$00. Tudo o que parece permitir demonstrar o pouco relevo da discussão, e a fragilidade do critério delimitador do dito limiar mínimo de relevância. Limite por limite, criasse-se um limite minimamente aceitável de irrelevância penal, v.g. por utilização de um valor que correspondesse a uma fracção da unidade que é utilizada, nomeadamente no art.º 202º, como referente para efeitos de determinação de patamares de valores. Tudo como melhor se explica no texto.

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algum valor patrimonial. Mesmo a carta com o testamento espiritual, mesmo a saudosa concha ou as poéticas pétalas são susceptíveis de expressão pecuniária. Isto para além do valor sentimental ou afectivo que tenham. Questão distinta é perguntar se a subtracção dessas coisas merece censura penal. Ou seja, parece-nos, s.d.r., erroneamente perspectivada a questão quando se admite que tais coisas são destituídas de valor patrimonial, que o não são, além de que sempre podem ser coisas dotadas de potencialidade valorativa, com o simples decurso dos anos (assim o exemplo da carta, se entretanto o avô que a escreveu vier a ser agraciado com um prémio Nobel, ou outro, a título póstumo, com uma venera, ou mesmo porque se descobriu ter sido o autor de um célebre crime ou de uma fabulosa peça literária).

Questão a pôr-se, ao invés, é a de saber se o

valor que todas as coisas têm, ou que lhes pode ser atribuído, é suficiente para desencadear a reacção penal. E aqui permita-se-nos, de iure condendo, afirmar que valores muito superiores ao do cêntimo são obviamente destituídos de relevância penal. Aliás, sendo a reacção penal a ultima ratio, sendo o direito penal por definição subsidiário na previsão legislativa, e necessariamente restritivo na aplicação concreta, faria todo o sentido remeter para fora do tipo do 203º valores que o código hoje considera diminutos, i.e., valores inferiores a uma unidade de conta. Não que com isto se queira significar que a subtracção de coisas com valor inferior a uma unidade de conta legitime o agente da subtracção a delas se apropriar sem “castigo”… diz-se é que não deve merecer, por certo, um castigo de ordem penal. Com efeito, diga-se, ludendi causa, que afirmar a dignidade penal como critério, e depois fixar essa mesma dignidade em 5$00 ou em € 0,01, só pode ser subavaliar a dignidade da arma penal do Estado66. Tudo razões que imporiam fossem remetidas para os meios reparadores cíveis as subtracções de valor inferior ao actualmente definido valor diminuto 67. Mas como de iure condito não são atípicas as subtracções de coisas de valor diminuto, pensamos que não cabe amarrar as mãos do aplicador do Direito a critérios como os apontados atrás pela doutrina, sob pena de se ridicularizar o próprio papel da Justiça penal. Ao invés, dever-se-á deixar à prudência e bom-senso dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias a decisão de não investigar, não acusar, não pronunciar, não admitir a julgamento e muito menos condenar pela prática de furtos de bagos de uva ou de grãos de milho.

Ademais, nem sequer se alcança como pode a subtracção de uma coisa que vale € 1,00 ter dignidade penal superior à subtracção da coisa que vale apenas € 0,25. 67 Pensamento este que no Direito espanhol mereceu consagração legal, quando no art.º 234º do CP respectivo refere: “El que (…) tomar elas cosas muebles ajenas sin la voluntad de su dueño, será castigado (…) si la cuantía de lo sustraído excede de cincuenta mil pesetas”. 66

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Que aliás é o que sucede, sem regulamentação legal e graças à capacidade de mediação e de gerar consensos, dos simples polícias de giro68. E aqui sempre ponderarão tais instâncias, obviamente, alguns dos critérios usados pela nossa anterior legislação e apontados por doutrina passada, que entretanto foram, pelo afã regulador do legislador do art.º 202º actual, expurgados do código.

IV – NOTA CONCLUSIVA

Tudo visto e ponderado, demonstrado fica à saciedade que o já vetusto elemento típico que integra o crime de furto e que foi objecto da atenção das linhas antecedentes, é, ainda hoje, susceptível de gerar muitas e frutuosas discussões de inegável interesse dogmático e de inafastável relevância prática. Conforme nos parece ter ficado claro, o permanente devir da humanidade, com as respectivas evoluções técnicas, científicas e mesmo sócio-económicas, impõe um constante ajuizar e afinar dos limites dos elementos típicos utilizados pela Lei Penal para circunscrever a matéria das proibições que impõe aos seus destinatários. Ficámos,

também,

com

algumas

certezas:

a

maioria

das

restrições

apresentadas

tradicionalmente pela doutrina a todos os conceitos que integram o tipo objectivo do furto simples são indesejáveis e não impostas por quaisquer razões dogmáticas ou sequer de política criminal. Assim o vimos quanto ao radical conceito de coisa, igualmente quanto ao alcance da expressão coisa móvel, e inequivocamente quanto ao significado de coisa alheia. E se na análise do elemento subtracção nada parece haver de flagrantemente novo nas considerações expendidas, antes se continuando a aplicar entendimentos forjados na centúria de oitocentos, tal deve-se apenas ao facto de ter sido esse o elemento gerador de maior interesse doutrinal nos últimos anos, razão pela qual a evolução da vida foi já grandemente compreendida e ponderada nos escritos da doutrina. Por outro lado, se a conduta humana tende a manter alguma linha de perenidade e continuação, assim como a própria natureza humana, o mesmo não pode ser dito das coisas que povoam o nosso mundo, e que constantemente se multiplicam, não raro sob novas formas, novos modos e mesmo novas essências.

Sobre a aplicação dos crimes patrimoniais, cfr. Narciso da Cunha Rodrigues, Crimes contra o património – alguns problemas de aplicação, in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, CEJ, Lisboa, 1996, pp. 56 e 57. 68

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Por fim, diga-se que se é inegável o interesse do estudo, e se é imperioso o dever da reflexão, no que ao elemento objectivo do tipo base do art.º 203º concerne, igualmente inegável e imperioso deverá ser o estudo e a reflexão dos elementos objectivos utilizados nos tipos agravados do art.º 204º do CP, dada a sua multiplicidade, ponderada a sua maior fluidez dogmática e jurisprudencial e denotada a enorme frequência prática com que os comportamentos que materializam os furtos se qualificam, ao ponto de se poder dizer que é muito mais difícil encontrar casos práticos de furtos simples do que de furtos qualificados. Tudo razões que aconselham o estudo aturado dos elementos objectivos dos tipos penais de furto qualificado constantes dos n.ºs 1 e 2 do art.º 204º do CP, mas que todavia terão de ser objecto de análise autónoma daquela que aqui se empreendeu.

Lisboa, 30 de Maio de 2003. Paulo Saragoça da Matta

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