Vaga-lumes, Rabiscos e o escudo: uma análise da pixação através do documentário O PIXO

September 13, 2017 | Autor: Thamira Bastos | Categoria: Pichação
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, JORNALISMO E SERVIÇO SOCIAL CURSO DE JORNALISMO

Arthur Medrado Soares Araújo e Thamira Silva Bastos

Vaga-lumes, Rabiscos e o escudo: uma análise da pixação através do documentário O PIXO

Mariana - MG 2014

Arthur Medrado e Thamira Bastos

Vaga-lumes, Rabiscos e o escudo: uma análise da pixação através do documentário O PIXO

Monografia apresentada ao curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo

Orientador: Prof. Medeiros da Rocha

Mariana - MG 2014

Ms.

Adriano

Dedicamos nosso trabalho a todos que nos acompanharam até aqui, esperamos que sigam.

Agradecemos a Deus... Às famílias... Aos amigos... Ao nosso orientador... Aos professores... À Universidade Federal de Ouro Preto.

O excessivo amor pela lisura dos muros, a sacralização que faz da pixação demônio, revela enquanto esconde uma estética da fachada.

Márcia Tiburi

Resumo

Este trabalho propõe uma reflexão sobre expressões gráficas produzidas em espaços públicos e privados da cidade, através do processo de intervenção conhecido como pixação. Aqui, a cidade será apresentada como uma plataforma de expressão, visando identificar elementos importantes para a discussão da legitimidade desse tipo de intervenção e, também, servindo como espaço fundamental para reflexões a respeito de questões estéticas desse contexto. A parte conceitual e a análise fílmica do documentário Pixo, apontam para alguns dos principais elementos que serão levados em conta para se debater a seguinte problemática: pixação é arte ou crime?

Palavra- chave: Pixação, expressão, cidade, estética, Pixo

Esa investigación se propone a reflexionar sobre las expresiones gráficas producidas en espacios públicos y privados de la ciudad pensando el proceso de intervención conocido como: "Pixação". En esa tesis la ciudad se presente como una plataforma de expresión, visando identificar elementos relevantes para la discusión de la legitimidad de esa intervención y también sirviendo como espacio fundamental para la reflexión a respecto de cuestiones estéticas en ese contexto. La parte conceptual y el análisis fílmico del documental "Pixo" apuntan para algunos elementos principales que deben ser llevados en cuenta para discutirse la siguiente cuestión: “Pixação” es um arte o um crimen?

Palabras Chave: Pixação, estética, ciudad, expresiones

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 01

2 A CULTURA DAS MINORIAS................................................................................... 02 2.1 Visibilidade e representações..................................................................................... 04 2.2 Histórico da pixação em São Paulo................................................................. ..........07 2.2 Expressões gráficas urbanas...................................................................................... 09

3 A ESTÉTICA DA PIXAÇÃO...................................................................................... 14 3.1 A contra corrente na arte........................................................................................... 18 3.2 Pixação X grafite...................................................................................................... 21

4 O AUTOR – JOÃO WAINER.................................................................................... 25 4.1 Vida e obra............................................................................................................... 25 4.2 O PIXO – resumo, obra e produção......................................................................... 26 4.3 Análise...................................................................................................................... 27

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 37

Referências....... ............................................................................................................. 40

Anexos............................................................................................................................ 42

1

1. Introdução Esta monografia é uma tentativa de levar à diante a discussão que permeia esse tipo de expressão urbana: pixação é arte ou crime, levando em consideração alguns pontos como a origem do movimento na cidade de São Paulo, a sua própria estética e a estética que é atingida por ele, as leis que envolvem as expressões urbanas e a abordagem realizada por João Wainer e Roberto T. Oliveira no documentário Pixo. O levantamento teórico e a análise do documentário são os constituintes da metodologia empregada nessa pesquisa. Gostaríamos de antemão de deixar claro que não forneceremos ao decorrer dela nenhuma resposta definitiva para a pergunta arte ou crime? O que se apresenta aqui é uma série de apontamentos necessários para se pensar as questões da pixação. Preliminarmente ao documentário, alguns textos foram selecionados a fim de explanar conceitos, e entender características que parecem fundamentais para dar início à análise fílmica da obra de João Wainer. Iniciamos a reflexão com Comunicação e Cultura das Minorias, de Alexandre Barbalho e Raquel Paiva, uma coletânea de artigos que abordam questões como minoria, tradição, periferia, identidade, conflitos, etc. Conceitos que usamos como ponto de partida para justificar por que entender e classificar pixadores como uma minoria na sociedade contemporânea. A leitura de Pichação não é Pixação, do designer paulistano Gustavo Lassala se fez fundamental para o embasamento teórico nessa pesquisa. No texto, o autor classifica e explicita a variedade de estilos, esclarecendo as diferentes formas de intervenção urbana e o seu conjunto específico de regras. Essa classificação se mostrou importante em nossa pesquisa, já que a discussão que permeia a pixação (ou o pixo) de são Paulo, sua condição na esfera do público/social e seu conflito entre prática artística e criminosa são as chaves de algumas interrogações que vamos tratar. O autor apresenta apontamentos importantes que levaram à compreensão das questões referentes tanto ao aspecto técnico, quando às características sociais dessa prática. Ainda sobre pixação, foi no artigo Pensamento Pixação, da filósofa Marcia Tiburi, para a revista Cult, que encontramos aportes conceituais como o da estética do branco, no qual a autora apresenta o questionamento de uma estética da fachada, sustentada dentro da sociedade do espetáculo. Esse mesmo aporte, também apresentado por Gui Debor em textos e

2

filmes, é usado nesta pesquisa, por exemplo, para esclarecer a aceitação de outros tipos de expressões gráficas urbanas como obras artísticas e também para entender porque mesmo após essa legitimação, a pixação ainda é vista no imaginário social como vandalismo, agressão. Tiburi também abarcará um debate sobre a estética da pixação, através de seu ensaio Direito visual a cidade. Sobrevivência dos vaga-lumes, de Didi-Huberman, é um livro que atravessa vários campos de pensamento em uma leitura inspirada de um conjunto de escritores, artistas e filósofos, como, por exemplo, Pasolini, Benjamin, Bataille, Agamben e Arendt.

Neste

caminho, passamos pelos conceitos que fazem com que o autor defenda a importância do sublime das imagens de resistência criadas na sociedade contemporânea. É na perspectiva desse historiador da arte que começaremos a analisar a relação “da luz de refletores” com a “luz sublime” (apresentadas inicialmente por Dante, e depois revistada por Pasolini). Nesse caso, interessa particularmente a negação de uma perspectiva apocalíptica, ou melhor, a discordância com autores que apresentam a destruição dos vaga-lumes na sociedade moderna. Acreditamos que Didi-Huberman questiona alguns autores, em Sobrevivência dos Vaga-lumes, de uma maneira única, que entendemos ser a mais adequada também para encontrar a relação com os sujeitos/objetos dentro desta pesquisa. De uma forma mais especifica, promovemos uma relação de aproximação do vagalume com o pixador e da pixação com “as imagens de resistência”. Nem tanto a visão apocalíptica de Pasoline, tampouco a perspectiva de perda total da experiência apresentada por Benjamin. Dessa maneira, nos dedicaremos à denuncia, à sobrevida dessa figura apocalíptica no pensamento contemporâneo de Agamben. É importante frisar outro autor a ser utilizado durante o percurso: Michel de Certeau, fundamental para pensarmos as dinâmicas do cotidiano na cidade, além de nos trazer uma perspectiva sobre o fazer artístico não acadêmico - duas perspectivas fundamentais na construção do pensamento desse estudo.

3

2. A Cultura das minorias

Como primeiro passo nesta construção textual, acreditamos que os estudos de Muniz Sodré, a partir do texto Por um Conceito de Minoria, ofertam significativa contribuição; ele caracteriza e define o que devemos considerar por minoria para justificar porque vamos designar pixadores como tal. “Na democracia, diz-se, predomina a vontade da maioria. É verdade, mas é um argumento quantitativo. Qualitativamente, democracia é um regime de minorias, porque só no processo democrático a minoria pode se fazer ouvir. Minoria é, aqui, uma voz qualitativa.” (SODRÉ, 2005, p.1). Dessa maneira, iremos considerar pixadores como uma minoria que não tem voz ativa na sociedade e que encontra, através da ação da pixação, uma forma de expressão e protesto. Em sua maioria os pixadores são jovens entre 15 e 35 anos, moradores de bairros periféricos e que buscam visibilidade e reconhecimento social. Na pesquisa – Quem não é visto, não é lembrado: sociabilidade, escrita, visibilidade e memória na São Paulo da Pixação, Thiago Barbosa Pereira conclui que, para os pixadores, a ação de pixar se caracteriza como um grito para o “restante” da sociedade, onde é depositado todo sentimento e anseio de expressão, é uma forma de mostrar que estão presentes, que a minoria a que pertencem existe, e tem, assim como todas as outras parcelas da sociedade, críticas a serem feitas, impulso de transformação e características próprias. A pixação é uma comunicação fechada, feita para agredir a sociedade. Os pixadores se comunicam entre si através de grafias criadas por eles mesmos, diminuindo, assim, a parcela (agora aqui quantitativa) que será capaz de ver, entender e analisar as escrituras. Talvez por ser exatamente assim, incompreensível para uns, ilegível para outros, há um tipo recepção comum à grande parte das pessoas que têm contato com as pixações: consideram as mensagens apenas como alguns rabiscos, que poluem visualmente o ambiente urbano. Esta é uma questão que já vem sendo posta à discussão: será o fato de a pixação ser ilegível para muitas pessoas a causa da repressão que esta ação sofre? Repressão aqui pode ser considerada por duas formas, a primeira legal e jurídica, pois a ação de pixar é definida por lei como crime de poluição ambiental e, a segunda, como repressão da própria sociedade que, muitas vezes, torna clara a rejeição por este tipo de ação, buscando limpar os muros e fachadas pixados, denunciando sempre que possível sua ação e questionando-a. Parece fundamental definir por agora o porquê de usar a grafia do termo pixação com “x” e não pichação com “ch”. Isto se explica por considerarmos as pixações de São Paulo, também conhecidas como “pixo” e “tag reto". Como explica Gustavo Lassala, no texto

4

Expressões Gráficas Urbanas – Pixação “nas ruas de São Paulo, existe um tipo específico de pichação, denominada pixação com “x” (...) justamente por concorrer com a comunicação de massa, a pixação faz uso de processos de percepção e de assimilação diferenciados do tradicional; ela possui uma gramática própria”.(LASSALA, 2010, p.36) Ainda buscando identificar a cultura desta minoria, temos uma questão essencial: a pixação como um esporte da periferia, onde se mesclam reconhecimento social, protesto e também o lazer. Além das sensações de prazer que a ação promove instantaneamente para o pixador há, também, outro momento de lazer comum a esta minoria, os “points”. Nestes espaços, os pixadores se reúnem, trocam fotocópias de reportagens publicadas pela imprensa, fotos de pixacões e as chamadas folhinhas, que são assinaturas ou autógrafos, com suas principais características (nome do pixador ou grupo, localização de origem, normalmente definido por zona na cidade e desenhos característicos). Esses encontros,além de representarem uma forma de reverenciar e respeitar a pixação do outro, tem um valor de troca muito importante, já que a pixação é vulnerável quando pensamos em seu tempo de existência. Assim, as trocas de folhinhas também são uma forma de registro palpável da pixação, na medida em que “A memória da pixação é, portanto, armazenada pelos próprios pixadores por meio dos documentos que eles mesmos elaboram e guardam como peças de colecionador”. (LASSALA, 2010. p.73)

5

2.1 Visibilidade e representações É com o auxílio das palavras de Teresa Pires do Rio Caldeira (2012) 1 que começamos a falar de visibilidade. Para ela, intervenções como a pixação proporcionam a jovens de periferia o aspecto da visibilidade e acabam por trazer à tona contradições existentes na esfera publica democrática que vivemos. “Essas intervenções garantem uma nova visibilidade a jovens vindos das periferias, desafiam noções prévias sobre o funcionamento dos espaços públicos, e revelam novas contradições da esfera pública democrática.” (CALDEIRA, 2012, p.31). Neste caminho, podemos considerar visibilidade em duas situações diferentes, não desconectas, mas diferenciadas em suas características. Primeiro, pensamos visibilidade entre os próprios pixadores: quanto mais visível, alto e arriscado for o lugar da pixação, e quanto mais inscrições forem feitas, mais reconhecimento e respeito aquele pixador ou grupo vai ter. Outra forma de visibilidade a se apresentar é a externa, na qual, o intuito da pixação é de ser um protesto. Quanto mais gritante, agressiva e desafiadora for a pixação, maior a notoriedade não só entre os pixadores, mas também pelos outros indivíduos da cidade, na internet, nos jornais televisivos, impressos, redes sociais e fotografias. Muitas vezes, os alvos dos pixadores são locais que servem de crítica a uma determinada pessoa ou situação que ocorreu no lugar, como muros de casas de políticos que foram descobertos pela justiça e acobertados pela mídia, ou locais onde aconteceram crimes considerados excepcionalmente cruéis. Para os pixadores, o que consideramos aqui como visibilidade é denominado ibope - um conceito usado por eles para mencionar a fama proporcionada pela pixação e a dimensão de visibilidade que o pixador tem. Ibope representa a busca dos pichadores por fama. Entre eles, o ibope é o índice de popularidade obtido pelos grafismos de uns em relação aos de outros. Eles conseguem fama aparecendo de alguma forma na mídia pixando nos lugares mais movimentados, monumentos históricos, residência de pessoas envolvidas por escândalos enfaticamente cobertos pela mídia, em avenidas e ruas de grande circulação, como as do centro da cidade, ou nos lugares (picos) mais altos de São Paulo, como o topo de prédios ou em lugares de difícil acesso. (LASSALA, 2010, p.71).

Ainda falando de visibilidade externa, alguns pixadores se destacaram no cenário geral e ganharam fama na cidade de São Paulo, como o pixador Di (Edmilson 19751997) que, no começo da década de 90, pixou o prédio do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista e ligou para um jornal se passando por morador para denunciar o crime. No outro dia 1

Novas Visibilidades e configurações do espaço público de São Paulo. Tradução de Claudio Alves Marcondes 2012.

6

estava publicada no jornal a seguinte nota: Além de pichar prédios, vândalos quebraram vidro e arrombaram porta. O Conjunto Nacional, que fica na Avenida Paulista, 2.073 foi alvo de pichações, no setor residencial que tem entrada pela Rua Augusta, em Cerqueira Cesar. Segundo um morador que pediu para ser identificado apenas como Di, os pichadores podem ter entrado no prédio pulando de cima de um orelhão para o beiral da fachada. Dali teriam quebrado uma janela no 1º andar. Ele contou que, além de quebrar o vidro e amassar esta janela, os pichadores arrombaram portas. A administração do prédio, que não registrou ocorrência na Polícia, negou as informações, confirmando apenas que houve a pichação. Di afirmou que ficou apavorado com a situação. Segundo ele o esquema de segurança do prédio não poderia permitir este tipo de ação, visto que há homens fazendo ronda por dentro e por fora. “À noite esta segurança é reforçada” destacou. Ele tentou apurar maiores detalhes do que aconteceu, mas o segurança e o porteiro disseram que não viram nada. 2

A ação do pixador em denunciar a própria ação, demonstra além da busca pela visibilidade externa, a consciência de que a ação é recriminada por indivíduos que, seja por uma questão de estética ou por concordar com a lei atual vigente no país, definem a pixação como algo que deve ser denunciado e que tem interesse público, uma vez que não é rara a aparição de pautas que envolvem o assunto. A rede de sociabilidade e reconhecimento criada pelo anseio de visibilidade chega, aqui, a um estado onde é encontrado um dos propósitos da ação.

São os jovens protagonistas das novas práticas urbanas que engendram novas condições de visibilidade para as camadas subalternas. Aqueles mesmos jovens, que supostamente deveriam circular por outros locais, passam agora de maneira transgressora e agressiva a ocupar o espaço público, a imprimir nele suas marcas, a reivindicar direitos sobre ele e a transformá-lo em local de lazer. Ao fazerem isso, trazem à luz as desigualdades. (CALDEIRA, 2012, p 35)

Ainda no começo da década de 90, outra ação de reafirmação ganhou visibilidade externa. Dois jovens de São Paulo pixaram um dos pontos turísticos mais tradicionais do Rio de Janeiro, o Cristo Redentor. Eles inscreveram “Z. Oeste São Paulo – Apavoramos”, e ligaram para a Rede Globo de Televisão denunciando a ação. Os autores foram descobertos e detidos após terem deixado no local um bilhete de passagem de ônibus. Estes são apenas alguns exemplos de ações de pixadores para evidenciar ainda mais “sua marca” Aqui, vamos trazer à tona um dos questionamentos utilizados por Thiago Barbosa Pereira em sua pesquisa – Quem é não visto, não é lembrado: sociabilidade, escrita, visibilidade e memória na São Paulo da Pixação – “aí os próprios se perguntam, o que eles 2

Recorte de jornal extraído do Álbum Só Pixo s/d

7

seriam, artistas ou arteiros?” Com essa pergunta, que faz uma brincadeira com a sonoridade das palavras e o contexto de ambiguidade, chegamos ao ponto central da nossa discussão. A pixação é arte no sentido de produto artístico ou no sentido de transgressão das regras e padrões? Isso justifica então a recepção da ação não somente em São Paulo, mas em outras cidades que possuem as inscrições, onde é considerada vandalismo e abstrata a ponto de ser ilegível? Por detrás desta busca por visibilidade, há nada mais, nada menos, que o anseio por reconhecimento, afirmação e que implica em uma (auto)representação. Usamos a expressão auto, pois pensamos, primeiramente, o pixador dentro do âmbito local, levando em consideração os próprios pixadores: aqui ele se autorepresenta, cria a sua própria grafia, espelha suas características nela e conquista dentro do próprio grupo de pixadores reconhecimento pelo que faz; e em um âmbito mais amplo, levando em consideração a sociedade como um todo, onde a representação do pixador torna algo mais intenso e um tanto quanto diferenciado. Isto acontece porque, nesse âmbito, o pixador busca o reconhecimento não mais entre indivíduos que compartilham da mesma condição social e interesses mas, sim, com os indivíduos de toda uma sociedade marcada por desigualdade e reafirmada por estereótipos. Assim, o reconhecimento que se busca através da pixação é como uma forma de protesto que tem, como principal objetivo, a exposição de ideias, anseios e sentimentos de uma determinada parcela que está definitivamente inserida no momento de desigualdade desta sociedade. Toda esta sincronização de significados é um meio de dizer que a pixação (também) é uma forma de representação de uma minoria que não tem representantes jurídico-legais, ou que falem por eles. Outro tipo de reconhecimento que deve ser citado, e que vem ganhando força há alguns anos, é o reconhecimento da pixação não (somente) como um crime, mas como produto criativo, que se concretizou após um processo criativo. Este reconhecimento pode ser notado na mudança em algumas abordagens pela mídia. O que antes era visto de uma única e repressiva maneira, hoje, ganha um espaço a mais para discussão, que busca compreender a ação, suas intenções e seus processos. A entrevista Cripta Djan: o pixador é o artista que transcendeu as telas, publicada pela revista O Viésem, em agosto de 2012, demonstra claramente esta abertura na discussão sobre a pixação:

8

O termo “existencial” não aparece repetidas vezes durante a entrevista por acaso. A transgressão do pixo é mais que rebeldia, ela é “um corre existencial”, como nos disse Djan. E essa questão nunca foi mais importante. Se, aos poucos, a arte contemporânea abre espaço para a pixação e para os pixadores, é preciso aceitar este espaço com cuidado. Pixo é estética, estilo, mas é muito mais. E as investidas do mercado da arte, de grifes e corporações podem trazer um perigo em si: o pixo se tornar estilo, ser mera estética artística, esvaziado de rebeldia e de transgressão.² 3

3

Trecho da entrevista Cripta Djan: “O pixador é o artista que transcendeu as telas”, escrita por Caren Rhoden, João Victor Moura, Rafael Balbueno e Tiago Miotto, Revista O Viés, 2012.

9

2.2 Histórico da pixação em São Paulo

Alguns pixadores como Di ganharam visibilidade na mídia por suas inúmeras pixações que lutaram contra o tempo em locais de todo o tipo na cidade. Como afirma o fotógrafo Choque, 4 a trajetória da pixação em São Paulo começou na década de 60, com objetivo unicamente político e contra o regime militar. Após esta função, vieram as pixações poéticas, onde as intervenções eram, em sua grande maioria, versos nos muros da cidade como “Quem picha o rabo espicha” ou “Deus esteve aqui”.

A primeira pichação no Brasil é a pichação política contra a ditadura que começou na década de 60, que era o típico “abaixo a ditadura” [...], era uma estética legível para qualquer alfabetizado ler. Depois [...] vieram as pichações poéticas que como o próprio nome diz são frases poéticas. No começo da década de 80, sendo um desdobramento do movimento punk, que também era pichação de cunho político, vem a pixação de São Paulo que é um pouco mais focado no ego do pichador 5

Logo depois, na década de 80, surge o Cão Fila KM 26 - um anúncio de canil que vendia cães da raça fila e também durante o governo de Jânio Quadros. “Muros, pontes, viadutos, postes, mourões, pedras, barrancos — praticamente não há superfície sólida no país a salvo da rústica, enigmática inscrição “Cão fila km 26”. De São Paulo, alastrou-se por outros Estados e, hoje, aparece até na região portuária de Manaus”

6

O movimento punk retoma as pixações com cunho político e mescla as mesmas com a criação de letras inspiradas nos logotipos das bandas de heavy metal e punk rock como Iron Maden, Ratos de Porão e Kiss. “É nos anos 1980, portanto, na cidade de São Paulo, que a atuação de indivíduos e gangues, grafando seus nomes, fazendo uso de símbolos, pseudônimos e logotipos, marca um momento de transição em que a pichação passa a conviver com o que mais tarde seria denominado como movimento da pixação”. (LASSSA, 2010. p. 53) Em 1982, três importantes protagonistas surgem na pixação em São Paulo: Juneca, Bilão e Pessoinha. Eles começaram a escrever seus nomes por toda a cidade e, em 1985, 4

Choque é paulistano e Bacharel em Fotografia pela universidade SENAC. Nasceu em 1986, considera a Arte e a Fotografia instrumentos de Legítima Defesa e de Intermediação de Conflitos, e por isso aponta suas lentes exclusivamente para Paradigmas Sociais Contemporâneos. Choque já trabalhou como repórter-fotográfico da Folha de São Paulo e atualmente dedica seus esforços na documentação autoral das Street Arts realizadas por jovens das periferias brasileiras, especialmente a “Pixação de São Paulo”, com o intuito de compreender quais são as demandas socio-culturais de toda uma geração que foi sistematicamente negligenciada e que por isso criou uma forma de comunicação codificada própria, que exclui a sociedade do seu entendimento por sua complexidade e agressividade estética. 5

Trecho da fala do fotógrafo Choque, retirado do documentário O PIXO. Tempo 15’47” – 16’28”

6

Trecho retirado da reportagem Cão Fila, KM 26 da Revista Veja em 6 de julho de 1977

10

durante o governo municipal de Janio Quadros, foram perseguidos pelas autoridades por pixarem a cidade. No final da década de 1980, a pixação de São Paulo se consolidou, tornando-se esta representação gigantesca dos dias de hoje. Grande parte deste crescimento teria sido influência de nomes como Di, Tchencho e Xuim, que pixaram uma quantidade incontável de prédios. Foram eles os primeiros bárbaros urbanos a quem a vontade de se expressar motivou a saída da margem para escancarar sua realidade na fachada do centro.

(…) consideramos o ato de pichar como produto das primeiras manifestações de expressão visual humana, visto que o ser humano, por meio de sua necessidade de se expressar, usou como primeiro suporte a parede. Portanto, considera-se que a origem da pichação está ligada ao surgimento do interesse em comunicação humana (…) Uma das características mais frequentes da pichação é a de deixar o nome escrito em paredes, fato observado nos vestígios deixados na cidade de Pompeia, na Itália, há mais de 1.500 anos. A partir da segunda metade do século XX, na França, assim como em outros lugares, as regras de conduta e a estruturação da sociedade de consumo oprimiam o indivíduo. Em 1968, em Paris, operários fizeram greve geral e nos muros da capital francesa surgiram alguns exemplos de pichações com objetivo de protesto. (LASSALA, 2010. p45-46)

11

2.3 Expressões gráficas urbanas Algumas manifestações gráficas invadem espaços internos e externos do contexto urbano. O indivíduo que caminha pelos cantos da cidade se depara com inúmeras técnicas e formas de expressão. Ao passo que subvertem a arquitetura das cidades, elas também acabam por caracterizar esse espaço. Se a ação do homem no espaço é o que lhe garante essência 7, desafiar a estética do branco 8 seria uma confirmação da posição do sujeito na sociedade atual. Gustavo Lassala deixa claro, em seu livro Pichação não é Pixação, que são inúmeras as manifestações visuais, porém, levando em consideração apenas os espaços públicos, o autor classifica dez tipos de intervenção na cidade. Acreditamos ser importante apresentar, ainda que de maneira rápida, cada uma delas, já que é costume confundi-las, visto que surgem sempre de mutações oriundas de outras expressões. Desde inscrições de protesto na época da ditadura, passando pela escrita das bandas de havy metal nos anos 1980, até a chegada dos adesivos que se espalham pelas esquinas de muitas cidades no século XX. De alguma forma todas elas se mostram conectadas. Abaixo iremos apresentar, de forma resumida, os dez tipos de intervenção na cidade, classificados por Gustavo Lassala. Entretanto, daremos ênfase a quatro tipos: Arte de rua, Pichação, Grafite e Pixação. Para analisar esse último tipo, consideraremos também o artigo de Alexandre Barbosa Pereira, As marcas da cidade: a dinâmica da pixação em São Paulo.

A) Arte de Rua

Assim como as demais intervenções, a Arte de Rua busca expressar o ponto de vista de uma pessoa, ou grupo. Normalmente se caracteriza pelo bom humor e irreverência. Varia de acordo com a época, relacionando, na maioria das vezes, o contexto social e político com o protesto apresentado na obra. Outro fato que deve ser levado em consideração é que essa forma de intervenção nem sempre se valida pela grafia de desenhos e/ou palavras. A intervenção se dá, também, com a produção de placas e cartazes falsos, esculturas, luzes em fachadas, dentre outras. Nesse tipo de protesto, os sujeitos protagonistas chegam até mesmo a encapuzar estátuas. Na Arte de Rua, o protesto se volta contra as galerias, museus e suas formas tradicionais de acesso à cultura e à arte.

7

Louis Kahn, Forma e Designe, 2010.

8

Márcia Tiburi, Pensamento Pixação, Revista Cult, Edição 135, 2010.

12

B) Pichação

Em sua essência é uma “ação de transgressão para marcar presença, chamar atenção para si ou para alguma causa por meio da subversão do suporte” (LASSALA, 2010, p.35). Não há um padrão estético em relação à forma ou conteúdo e, ainda que aconteça, privilegia o uso da palavra (tipografia), deixando de fora o uso de formas e símbolos. O tempo para a realização da ação é curto, por isso sua produção é anárquica e aleatória e o suporte onde ocorre a ação nunca é cedido ou autorizado para que se possa praticar a atividade. Por isso, os pichadores atuam tanto em ambientes internos como externos. 9

C) Grafite

Fruto da sociedade contemporânea, o grafite se aproxima bastante da pichação. Essa expressão, além de ser reconhecida pela diversidade de cores e apelo estético, exige maior complexidade em sua elaboração. Nessa forma de expressão são utilizadas técnicas de pintura e os grafiteiros apresentam noções de movimentos, volume, perspectiva, cor e luz. Gustavo Lassala salienta que: O trabalho dos grafiteiros, normalmente, tem por ideologia desmistificar os símbolos de dominação cultural na tentativa de contribuir, dessa forma, para uma melhor compreensão da população por meio de imagens de grande apelo visual, com temáticas voltadas a questões sociais e políticas; bem como intervir para um aproveitamento diferenciado do espaço urbano." (LASSALA, 2010, p 31).

A imagem positiva do grafite se dá através do contribuição ideológica que os grafiteiros possuem. Isso acontece porque os praticantes dessa expressão preferem atuar em espaços abandonados, ou deteriorados. Outras vezes, os grafites são feitos sob encomenda e o grafiteiro recebe um salário, ou patrocínio para confecção da obra. Nem sempre o suporte utilizado pelos grafiteiros é a rua. O grafite já adentrou galerias, lojas e outros espaços públicos de grande circulação (escolas, rodoviárias, prédios de empresas, por exemplo) e os grafiteiros, além de realizar trabalhos sozinhos, também fazem intercâmbios com pessoas de outros lugares do país e do mundo, o que fortalece o movimento. Vale ressaltar que alguns grafiteiros acabam sendo inseridos no circuito de arte e sendo considerados artistas contemporâneos, passando até mesmo a viver de sua arte. 9

É importante esclarecer que o autor apresenta essa pichação (com “ch”) como as grafias encontradas em outras cidades que não São Paulo.

13

D) Pixação

Delimita-se pixação com x a expressão urbana encontrada nas ruas de São Paulo. Trata-se da grafia estilizada de palavras em espaços públicos da cidade a que se referem, quase sempre, à denominação de um grupo ou ao apelido de cada pixador. Lassala identifica a escolha de atuação em grupos devido ao grau de dificuldade (já que, para essa prática, a visibilidade da obra é fundamental), as ferramentas usadas quase sempre são spray e rolo de espuma. A pixação possui uma gramática própria. É fechada, e por isso o sujeito não pixador não consegue compreender sua caligrafia. Tal fato gera revolta e indignação na sociedade, já que os demais indivíduos acabam excluídos do processo comunicacional, pois não conseguem decifrar a escrita. Por isso, a grande maioria dos sujeitos que frequentam os centros urbanos identifica a pixação como uma forma de poluição visual, o que contribui para uma imagem negativa para a prática. “Esse tipo de escrita tem o objetivo de gerar fama (ibope) para o indivíduo ou grupo que conseguiu, por exemplo, pixar determinado lugar de difícil acesso e de grande visibilidade” (LASSALA, 2010, p.36) Alexandre Barbosa Pereira (2010) classifica a pixação como "uma manifestação estética de parte da população jovem das periferias". O tag reto, tipo de pixação paulistana é diferenciado das pichações encontradas em outros estados brasileiros. As letras verticais, que acompanham as linhas da maior metrópole acabaram por se tornar uma assinatura da cidade. Essa grafia possui um formato bastante peculiar: traços retos e angulosos, referenciando-se ao estilo das bandas de havy-metal americanas. Já que foi por influencia da ação dos Punks, na década de 1980, que o estilo nasceu na capital paulistana. Após deixar sua marca, entendida por Pereira como "pixo principal", o pixadordeixa outra inscrição: a grife. Como o próprio nome sugere: grife é a etiqueta, o assessório que valoriza a pixação, uma espécie de aliança entre pixadores que congrega diversos grupos. Para o autor, a ideia seria criar uma rede de interação dentro da cidade e sua finalidade seria trazer reconhecimento e visibilidade para aquela marca, tanto, que para participar de determinadas grifes, os pixadores já devem ter “obras” notórias. O centro é o cenário estratégico para ação dos pixadores. Lá, transitam pixadores e cidadãos de todas as localidades do município e, por isso, é o espaço de maior visibilidade dentro da urbe. Na pixação, quem picha no maior número de lugares e em pontos com maior destaque, mais arriscados, atinge mais status dentro da rede dos pixadores.

14

E) Sticker

O termo de origem norte-americana podesignificar, em português, “adesivo”. Feitos a partir de desenho livre ou com máscara e spray, direto no papel adesivo ou vinil e, em outros casos, impressos por métodos de impressão – como serigrafia ou impressão digital. É uma manifestação que exige maior elaboração, pois exige conhecimento de informática, de softwares gráficos, de técnicas que exploram pôsteres de grande dimensão, papel, vinil e manipulação de imagens. Um fator determinante para Lassalana caracterização dessa intervenção é a aproximação da linguagem publicitária, através de slogans, personagens, símbolos e logotipos. Outras características são: contraste e forte apelo visual. A facilidade no transporte e a descrição na ação da colagem, são os aspectos que, para o autor, favorecem a multiplicação dos adesivos nas ruas.

F) Letreiro

Diferente da pixação, o objetivo principal dessas letras produzidas manualmente com pincel é a comunicação com seu público-alvo. A mensagem é clara, mesmo com resultado gráfico final muitas vezes rudimentar, pode ser produzido tanto pelo proprietário da fachada, como por outro individuo. Suas mensagens, normalmente, informam proibições e avisos, também podem chamar anunciar pequenos negócios, produtos ou serviços, ou ainda para confeccionar placas, inclusive as de propagandas politicas.

G) Grapixo

Lassala caracteriza o grapixo como uma fase intermediária entre a pixação e o grafite. Podemos entendê-lo como letras desenvolvidas por pixadores paulistanos, com a adição de duas ou mais cores no contorno e miolo dessa tipografia. Muitas vezes também se apresentam com a adição de contorno e volume. Por sua semelhança com o grafite (tanto na estética, como na escolha dos lugares em que aparecem) tem um tempo de duração maior que a pixação “clássica” paulistana.

H) Bomb

15

O bomb se caracteriza por letras arredondadas, com contorno, preenchimento e traços para imitar volume. Normalmente aparecem em duas ou três cores. Embora se assemelhe esteticamente ao grafite geralmente tem sua aplicação encontrada em intervenções ilegais, o que a aproxima da pixação.

I) Estêncil

A grande vantagem dessa técnica é a possibilidade de reprodução de imagens em série. Necessita de uma matriz de impressão e pode ser usada para diversos fins: pichação, grafite e stiker, por exemplo. Tal matriz necessita de uma base rígida e na maioria das vezes são utilizados papel cartão ou acetato, que, após receber a tinta, imprimem na superfície a mensagem desejada pelo praticante da ação.

J) Miscelânea

O autor apresenta essa nomenclatura na tentativa de atentar ao leitor de que as expressões gráficas urbanas nem sempre aparecem separadamente no centro urbano, como na teoria. Miscelânea pode ser entendido como o mosaico que se forma em um espaço da urbe e apresenta mais de um dos tipos de intervenção apresentados anteriormente.

16

3. A estética da pixação

Rabiscos, sujeira, agressão. Haveria uma estética na pixação ou sua legitimidade estética estaria somente no fato de desafiar a estética do branco, da fachada? Podemos entender a relação estética como “forma de apropriação do mundo pautada pela sensibilidade, na qual o sujeito se desloca do imediato, da experiência física e concentra na percepção de outros sentidos, construídos a partir do olhar que se lança mais aberto as coisas, para além delas” (ZANELLA, 2004, p.3). Tal olhar corteja o mundo seduzido pelas possibilidades de criar novas relações, novas visibilidades. Ao mesmo tempo, forja a existência do sujeito que olha e, através do olhar, se recria. Podemos entender então, que tal sujeito levado a esse estágio de contemplação estaria vivenciando uma experiência estética.

O que é específico da experiência estética é o fato de a comunicação de experiencias se realizar por meio de performances artificiais: o objeto artistico torna-se o medium de um contexto de esperiencias determinado: são aqueles que engajam na experiencia estética que se servem desse medium para tomar consciencia de suas proprias experiencias. Entretanto, o que os sujeitos fazem ao experimentar algo esteticamente não é simplesmente “filtrar” os conteúdos de experiencia presentificados pelo objeto por meio de sua propria experiencia (já constituida ), pois não podem ignorar a organização significante interna dos objetos. (GUIMARÃES, 2010,p 13)

Na perspectiva de Tiburi (2011), um gesto estético como a pixação, pode se transformar em uma grande “arma de combate social”, uma vez que sua linguagem e sua estética se concretizam como uma atitude contra um “status quo visual a ser combatido”. Este visual em questão, nada mais é do que uma mescla de espaços comprados por publicidades, fachadas e mais fachadas que modelam as normas estéticas da sociedade. Então qual é a estética da pixação? Um discurso dos que tem anseio de mudança contra os discursos do poder? Contra a cidade sitiada pela publicidade? Contra a falta de experência que se vê ao fim de cada dia? Contra a fachada, verdadeiro escudo da sociedade? Ainda utilizando a autora, vamos pensar a fachada como constituinte do espaço urbano, significado claro de habitação e antes de mais nada, divisora de espaços. A fachada pode expressar interioridade, porém está sempre a esconder o que realmente existe por detrás dela. Neste sentido a fachada se torna uma proteção e entra no discurso do aparecer à sociedade e no direito de pertencer a alguém. “Ser atingido na fachada – seja a imagem pessoal, seja a imagem do muro branco - é ser atingido num direito. A fachada é narcísica como um rosto, com a imagem que alguém tem de si. O representante original da ideologia do muro branco é,

17

também, o homem branco (e seus apêndices: esposa e filhos) que se irrita quando é atingido na fachada”. (TIBURI, 2011, p. 42) O sujeito que se sente atingido pela pixação ou que de alguma forma se irrita com ela, o sente pois se ofende com sua linguagem e ousadia. Para Tiburi, a irrititação neste caso é uma categoria fundamental para compreender o alcance da prática teórico-estética que é o pixo. Esse sujeito contém em si a ideologia de que, se seu muro é branco, também o é sua filosofia e sua linguagem. Este sujeito não cede abertura a um novo diálogo, proposto pelo pixador, que busca o fim da estética da fachada, que acoberta a sociedade da aparência. É importante retomar a questão grafiti x pixação por um instante já que autores como Ramos (1994) aproximam as duas modalidades para analisar suas propostas estéticas. Na medida em que a autora aponta que, muitas vezes, as duas práticas busquem lugares não autorizados para realizar suas ações e compartilhem os mesmo riscos e perseguições - fatores que as aproximam, ela também insita a existência de uma diferença entre elas: a linguagem empregada. Ramos entende que entre essas duas formas de intervenção exista um ponto de encontro – uma vez que se caracterizam como e pela transgressao do espaço urbano. Pelo fato de os pixadores preferirem lugares valorizados socialmente (como museus, escolas, prédios públicos) para praticar sua crítica e contestar alguns valores sociais, a autora entende que “aos pichadores interessa mais o ato, o rito, o aparecer, o transgredir e menos o processo criador” (RAMOS, 1994, p. 48). Em um dos fragmentos de entrevista presentes no documentário que é analisado nessa pesquisa, o personagem Choque afirma que a estética da escrita está na elaboração das marcas:

O pixador busca originalidade na criação dos letreiros [...]. Quando a pichação surgiu na década de 80, esses jovens eram muito influenciados pela cultura do heavy metal, punk rock, hardcore, rock. Eles se inspiraram para criar o logo deles nos logos das bandas de rock, e por sua vez, esses logos foram inspirados nas runas anglo-saxônicas de milhares de anos atrás, e na verdade essas runas são o primeiro alfabeto da Europa [...] não é uma simples cópia das runas é uma criação, uma antropofagia, uma evolução em cima disso. É impressionante como a escrita de povos bárbaros de milhares de anos atrás migrou para São Paulo, para os povos bárbaros de São Paulo, os pixadores. 10

Mesmo que os pixadores, não se prendam tanto na questão estética da assinatura em si, a pixação como um todo tem uma estética própria e peculiar, que, diante da sociedade 10

Trecho da fala de Choque no documentário O PIXO, 2009.

18

contemporânea, é uma fuga de tudo que se faz repressão ou indiferença com quem a pratica. A sociedade por si só é segreadora, e dadas as caracteríticas desta sociedade interpretadas por Guy Debort, Tiburi e Didi Humbermang, a pixação busca fugir do contexto do branco, do esteriótipo aceito e da falta de luz e experiências ao fim do dia. A partir da pergunta “onde se faz o controle social da cidade?” Agier começa seu raciocínio apoiando-se em R. Park. Ele reflete sobre o referenciamento e as “áreas naturais de segregação”. Neste sentido, cada área teria uma função dominante na distribuição dos indivíduos e das atividades urbanas. O autor acentua a “hipótese individualista de partida” de Park, que é o que é majoritariamente usado para entender que “o indivíduo torna-se uma pessoa: uma pessoa é simplesmente um indivíduo que tem, em alguma parte, em alguma sociedade, algum status social, mas o status vem a ser, finalmente, uma questão de distância – distância social”. (AGIER, 2011. p 63) Em meio a essa distancia social e realidade segregadora, a pixação se concretiza como linguagem de vontade de expressão livre. Ela busca combater o fanatismo estético e se firmar enquanto signo, palavra, risco em cima de um branco que diz pela maioria e que pertence a todos. Afinal, o que é a cidade se não um bem de todos, que pode ser compreendida e experenciada de várias formas? A própria grafia do termo pixaçao com x se refere a um tipo de autoconsciência de seus praticantes, ou melhor, uma contra consciência estética produzida por sujeitos, já que não se refere a trabalhos ou obras que buscam qualquer tipo de acordo com qualquer que seja as considerações existentes no campo das artes e seus espaços de consciências filosóficas préestabelecidas.

Em termos teóricos, esta prática é também um questionamento sobre o fim da arte, incluso o fim de sua história, mas também o fim da teoria da arte, bem como o fim da estética como pensamento sobre a "obra". No lugar dela, o "pixador" é o novo performer urbano, que sinaliza, batizando com seu nickname ou "nome de guerra" o cenário da desigualdade. O pixador é o encontro da arte com a vida que dá ganho de causa ao vão que há entre elas. (TIBURI, 2001, p.40)

A partir do pensamento de Tiburi, o fim próprio da imagem é aquilo que está em cena. A imagem buscaria a autorealização na ordem do discurso. Assim, a imagem da pixação estaria "contra os discursos do poder, contra a cidade sitiada pela publicidade e pelas normas estéticas que dela advém". Nesse sentido, na medida em que o discurso é estético, a pixação é contra-estética. Ela aparece no extremo como uma espécie de lírica, como "a literatura do fim da arte, ou a escrita do fim do mundo". Se a filosofia platônica trata a estética percebendo-a como a relação entre conteúdo e

19

forma, e conteúdo está diretamente ligado ao conceito, e, faz parte da estética da pixação, o que Tiburi chama de "terrorismo conceitual". Para a autora, o espectro da pixação ronda o Brasil. Ela relaciona o horror que a pixação causa nos dias atuais ao horror causado pelos comunistas, no senso comum, no século passado. Tiburi afirma que a pixação é uma espécie de terrorismo, mas um terrorismo estético, poético e também político. Nesse sentido, levanta a hipótese de que a pixação não é apenas uma estética, mas a verdadeira teoria estética. Ela não seria somente uma prática política, mas a própria teoria prática política. Por se tratar de campos, por excelência, como um campo de concentração do qual não se sai sem fugir, ou quando a guarda baixa suas armas (por sorte ou distração) e abre uma brecha para escapar. É neste ponto que o pixador pode fugir de fininho do campo de concentração do senso comum e se tornar um herói estético e político, um herói da desconstrução do senso comum ao propor um novo diálogo onde é necessário participar de ouvidos e olhos realmente abertos. Quando começamos a refletir sobre o direito de aparecer da pixação, também podemos nos referir ao direito de estar e ser, ao direito a uma autenticidade, a uma expressão pela aparência para além de uma repressão bio-política que existe em nosso tempo. Estamos falando então ao direito de ser diferente, o que vai do chamado anormal até o mendigo. Tratase de uma prática estética da sensibilidade para qual a sociedade não está preparada, mas poderia se preparar. Desconstruir esses padrões estéticos, vigentes em nosso tempo, nesse sentido é "a mais profunda atitude política contra o autoritarismo cotidiano e espetacular que alimenta a indústria cultural da fachada" (TIBURI, 2011, p. 43). A superfície calculada da superfície do muro branco é a forma estética da propriedade privada e, na cidade, a estética da fachada impera diante das sensibilidades, ensinando a mentir. O pixador busca simplesmente o fim dessa estética, na tentativa de uma estética política da sinceridade "e com o direito a impureza, à sujeira. É, nesse sentido, alguma coisa de verdadeiramente irritante para a sensibilidade fria e dura do capitalismo" (TIBURI, 2011, p 43). A pixação seria então um anti-sistema na sociedade, uma sensação de terrorismo conceitual, buraco causado no padrão tanto estético quanto teórico criado pela identidade da ditadura do capital e que se impõe na perspectiva ideológica do muro branco e da administração da fachada. Por esses motivos a pixação é também linguagem na forma de uma gramática, uma simbologia, semiologia, que existe (e disputa) com a compreensão da função da brancura dos muros. O ato de fazer da cidade um caderno de caligrafia só pode ser compreendido se entendermos que sua grafia, enquanto signo, letra, palavra, rabisco, sujeira, investe contra uma brancura pré-suposta. Torna-se escrita enquanto combate contra o branco,

20

enquanto persiste como uma negação ao fanatismo estético, a superfície “é, portanto, vontade de expressão livre. Tiburi afirma que, como qualquer escrita, a pixação aparece enquanto uma tentativa de sarar a ferida pela existência, pela criação de sentido. Dessa maneira, ela serviria para cicatrizar a dor de existir, de não poder expressar-se, de ser excluído.

Por esse caminho, como qualquer escrita, ela é também a tentativa de curar a ferida da existência pela expressão do sentido que é criadora de sentido. Cicatrizar a dor de existir - de não poder expressar-se, de ser excluído - pela costura da palavra é o seu método. A escrita é negação da folha em branco, assim como o pensamento filosófico é sempre oposição a negação do que se dispõe como evidente, convencional, pressuposto. Uma leitura da pixação que veja nela a mera ofensa ao branco perderá de vista a negação filosófica do branco que nela se exerce. A pixação eleva o muro a campo de experiência, faz dele algo mais do que parede separadora de territórios. (TIBURI, 2011, p 44)

Talvez somente quando compreendermos a estética da pixação poderemos passar para outra discussão, a respeito da pixação filosófica, o que Tiburi chama de “pensamento pixação”. A pixação quando se faz ver, faz ver mais. Faz também ver o outro, que grafa suas letras nos muros. Quando se faz assim, ela se torna teoria. A teoria, entretanto, “é sempre uma representação que se apresenta a alguém” (TIBURI, 2011, p 47). Dessa forma, assim como toda representação, pode agradar ou não. Assim como a pixação se faz representação, teoria e forma, ela é linguagem no simples sentido de buscar comunicação. No entanto, se apresenta mais como uma “contra linguagem”, que vai contra a representação de boa parte da sociedade escondida atrás do branco.

21

2.1 A contra corrente na arte

A partir deste ponto, vamos observar a pixação sobre outro âmbito, o de ser a representação e a forma de expressão de uma parcela que está à margem da sociedade que, com o auxílio de Guy Debord, é classificada como sociedade do espetáculo. Esta última passa pela unificação de um mundo que “está mergulhado indefinidamente em sua própria glória, ainda que essa glória seja a negação e a separação generalizada entre os “homens vivos” e sua própria impossibilidade de aparecer senão sob o reino – à luz crua, cruel, feroz – da mercadoria.” (HUMBERMAN, 2011. p. 35) Em A Separação Consumada, Guy Debord menciona a total dominação da economia e a dominação do espetáculo sobre os homens vivos. Este espetáculo nada mais é do que “a economia desenvolvendo-se por si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores” (BEDORD, 1997, p. 18). Para o autor, o mundo presente e ao mesmo tempo ausente que o espetáculo faz ver é o mundo marcado pela dominação da mercadoria, que é assim mostrado, pois é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que é produzido por eles. Esta sociedade em questão é caracterizada pela presença e afirmação de estereótipos, uma lógica, que, para autores como Huberman, é enfatizada pelo consumo, característica fundamental da contemporaneidade. Esta relação estreita entre valor/matéria e estereótipos, cada vez mais enfatizada em meios de comunicação e grupos sociais, faz com que exista, de forma extremamente perceptível, uma relação de indiferença. Além disso, esta sociedade é ditada por uma rotina massiva que prende seus indivíduos; em seus trabalhos, em suas fábricas enormes, em horas no trânsito, em preconceitos, em desigualdade social e econômica e ao sentimento de impotência política. Ao fim do dia, depois da correria, de todas essas prisões realçadas em mínimos e máximos momentos, abstrai-se da experiência adquirida, legítima e completa.

Nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; nem a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a manifestação que de repente bloqueia edifícios do centro e nem os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe de onde; nem a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado; nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos - divertidos ou maçantes, banais

22

ou insólitos, agradáveis ou atrozes, entretanto nenhum deles se tornou experiência. (HUMBERMAN, 2011. p75)

O trecho acima, retirado de Sobrevivência dos Vaga-Lumes, de Georges DidiHumberman, explicita uma das consequências da sociedade contemporânea, que tem valores muito bem definidos, mas que, por suas características perde, ao fim do dia, a experiência, o aprendizado que é adquirido nas ações diárias e que “passam por despercebidos” ou são “deixados de lado” pela rotina extrema e rápida a que todos estão habituados. É o que Pasolini (1975) chama de “vazio do poder”, um comportamento imposto pelo poder do consumo, o qual tem como característica a remodelação da consciência. Habitua-se a não perceber, a não criticar, a não indagar-se sobre os detalhes que passam de liso dia após dia. Detalhes estes que podem dizer nada para uns e muito para outros. É exatamente em decorrência desta sociedade que entendemos a pixação como uma contra corrente na arte. Primeiramente por desafiar os padrões de belo, a estética do branco, que, segundo Marcia Tiburi (2011) é característica da sociedade contemporânea, e também da cidade de São Paulo, onde afirma que a estética da brancura somente não é hegemônica, pois existe o cinza da atmosfera para competir com ela. A cor cinza da poluição gerada pelos carros que ficam engarrafados e detêm horas dos dias de inúmeros cidadãos, ou o cinza das indústrias que se espalham pela cidade, ou talvez o cinza do concreto que esta por todos os lados. Talvez este cinza incomode, mas é por muitas vezes tido como inevitável, e, sendo assim, é necessário se acostumar. O fascínio pelo branco vem da tentativa de abstração deste universo cinza, talvez com um pensamento de que “pelo menos a minha fachada é branca, lisa e limpa”. Quando surge então a pixação, ela causa um horror, enfatizado pelo esteriótipo marcado e bem definido “o amor excessivo pela lisura dos muros, a sacralização capitalista que faz da pixação o novo demônio, revela enquanto esconde a estética da fachada com todas as implicações que este termo define” (TIBURI, 2011, p. 51). Seus praticantes pertencem a uma parcela social que sofre diretamente com a indiferença que toma conta dos indivíduos, que faz parte da desigualdade social. Nesse caso, apenas o padrão burguês, está legitimado para fazer parte dessa sociedade, o que torna a pixação um fenômeno estético e político. O que os praticantes da pixação põem em cena, é um radical questionamento sobre o espaço urbano, um questionamento que é teórico e prático, artístico e retórico. O tema do direito à cidade, tal como levantado por Henri Lefebvre (2008), dá a partir desta ação, lugar a um ponto de vista novo: aquele que podemos chamar de “direito visual à cidade”. Dominada por especulações imobiliárias, pela propaganda, e por uma verdadeira ditadura estética, qualquer cidade é hoje transformada em

23

dispositivo de poder cada vez mais excludente”. (TUBURI, 2011, p.40)

É por isso que, ao comentar sobre a pixação e seus reflexos na sociedade, Tiburi faz alusão ao horror que os comunistas proporcionavam aos seus opositores capitalistas. Assim como ele, em âmbito também político, mas primeiramente estético, a pixação pode representar um mero terrorismo conceitual: “Neste sentido eu gostaria de levantar a hipótese de que a pixação não é só uma estética, mas uma verdadeira teoria estética, não é só uma prática política, mas a própria teoria-prática-política. Um certo estado da teoria enquanto ela é estética e, neste sentido, política”. (TIBURI, 2001, p 40) Esse terrorismo se enfatiza quando pensamos a relação entre a fachada e os pixadores, conforme apresenta Tiburi. A fachada é uma divisão, assim como as outras partes materiais que se apresentam no entorno das residências e imóveis que constituem a cidade. Adentrando em um caráter mais estético, a fachada é “um dizer algo” também sobre o que está dentro do imóvel, criando uma representatividade dele. Apesar disso, a fachada nada mais é do que parte do espaço público, que compõe a estética da cidade. A fachada, branca, está para a pixação assim como a folha, quando também branca, para a literatura. Afinal, “O grau zero da literatura como prática estético-política é esta luta com o branco que a pixação expressa tão bem”. (TIBURI, 2011, p. 44) A partir desse ponto podemos pensar os pixadores como aqueles vaga-lumes que tanto foram mencionados por Pasolini e Giorgio Agamben: seres luminescentes, intocáveis e resistentes. Luminescentes por serem movidos por um impulso de transformação, de possíveis melhorias. Intocáveis por se libertarem durante a ação, momento máximo onde há adrenalina, satisfação e, resistentes, por serem protestantes, questionadores e críticos da atual situação e por se expressarem de uma forma ilegal, tendo em vista o código penal atualmente vigente. E acrescentamos: se tornam performers urbanos. Os pixadores tornam real a comunicação através dos muros e fachadas da cidade, quebrando conceitos e regras da sociedade, buscando sua glória e consolidando características e momentos. Paulo Leminsky, em sua palestra no edifício Dom Pedro I, do curso de Letras da UFPR, ressaltou que uma das características da cidade moderna é a sensação de prisão. Não somente pensando em uma micro-relação, mas também de uma forma macro. As regras, os padrões, as rotinas, os hábitos, o poder, são alguns dos possíveis causadores deste sentimento de aprisionamento. Diante disso, a pixação vem como um grito, uma quebra de regra que, a cada vez que se auto-afirma em um novo lugar, acaba por cometer outro crime quando deixa seus passos registrados nesse caderno de concreto que é a cidade. Para Tiburi, esse crime é

24

como encontro da arte com a vida, o “que dá ganho de causa ao vão que há entre elas”. (TIBURI, 2008, p.40).

3.1 Pixação x Grafite

Retomando o discurso de Leminski, podemos perceber o grafite como uma arte de rompimento com conceitos e padrões da sociedade na década de 60, 70, e que surge diante de um anseio de protesto, ligado diretamente às poesias que eram veiculadas nos muros da época. O que nos sugere um ponto de encontro para pensar o surgimento do grafite e da pixação seria o fato de ambas manifestações terem como propósito inicial a expressão autêntica dentro de uma sociedade que é ditadora de um modelo estético. Porém, é importante ressaltar que o grafite garantiu sua afirmação social, uma vez que sua proposta estética se aproxima e agrada mais os indivíduos, enquanto aquela da pixação permanece “restrita de entendimento” pelo cidadão comum, e por quem dita o que é ou não é arte. O grafite garantiu seu espaço por apropriar-se de formas, cores e linguagens das quais os cidadãos já estavam acostumados, por isso, poderíamos dizer que sua estética carrega “sensos comuns” do padrão de gosto. É difícil definir se o grafite acertou o alvo do gosto da crítica artística (assunto que aprofundaremos em seguida), contudo, talvez seja por conta desse tipo de proximidade visual que ele tenha ganhado o gosto da população, dos movimentos populares. Atualmente existem várias medidas legais para coibir e punir os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Como exemplo da diferenciação legal entre pixação e o grafite, temos a Lei nº 12.408, de 2011, que prevê pena de detenção de três meses a um ano e multa aos que cometam o ato de “Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano”. Porém, a mesma lei diz que, exceto em caso de patrimônio histórico “§ 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.” Em novembro de 2013, na cidade de São Paulo, entrou em vigor o Projeto de Lei nº 840/2013 que então define que é permitida a prática do grafite:

25

Art. 1º: Fica reconhecida a prática do grafite como manifestação artística de valor cultural, sem conteúdo publicitário,realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado. Parágrafo único. O grafite, resultado da prática prevista no caput, não é considerado anúncio, nos termos da Lei nº 14.223, de 26 de setembro de 2006. Art. 2º Fica autorizada a utilização dos seguintes espaços públicos ou privados para a prática do grafite: I – postes; II – colunas; III – “obras de artes” viárias; IV – túneis; V – muros; VI – paredes cegas; VII – tapumes de obras; VIII – bancas de jornal. Parágrafo único: Quando o espaço for bem protegido, será necessário apresentar documento de aprovação emitido pelo(s) órgão(s) responsável(is) pelo tombamento para que a prática do grafite fique autorizada. Art. 3º: A intervenção artística não poderá fazer referências a marcas ou produtos comerciais, nem conter referências ou mensagens de cunho pornográfico, racista, preconceituoso, ilegal ou ofensivo a grupos religiosos, étnicos ou culturais. 11

O Vereador Nabil Bonduki, responsável pelo projeto, justifica que, apesar de existir no calendário oficial da cidade de São Paulo o dia do grafite e inúmeras intervenções artísticas desta natureza pelo município, ainda existem falhas na relação entre artistas e poder público, onde, muitas vezes, uma obra é apagada sem justificativa. Neste sentido, ele defende que é papel do Estado garantir o acesso a todo tipo de cultura. Assim, o projeto visa oferecer parâmetros para a realização de intervenções artísticas por meio do grafite. “Para tanto, é necessário ter recursos orçamentários, estrutura e sensibilidade para captar as demandas existentes na sociedade e viabilizar ações correspondentes. Por isso, propomos que a arte do grafite seja reconhecida e que o executivo busque medidas que fortaleçam essa manifestação artística, seja por premiações, atividades de formação ou mesmo de financiamento. Este projeto de lei visa solucionar alguns dos problemas que marcam a rotina de quem faz arte na cidade, que muitas vezes gasta longos períodos em busca de uma autorização para, logo depois de realizada sua intervenção, vê-la apagada sem maiores explicações”

Uma das razões pela qual a pixação é considerada um crime contra o meio ambiente é a preferência estética da sociedade moderna, um verdadeiro modelo estético imposto. A pixação é a marca de uma realidade social e, em sua ação, o pixador torna pública também sua visão de mundo. A atividade desses vaga-lumes urbanos carrega nos seus rabiscos uma estética própria, invisível como obra de arte por aqueles que ditam os padrões de gosto no meio 11

Disponível no link http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12408.htm. Último acesso em 19 de junho de 2014

26

artístico. Porém, gera em quem caminha nos centros urbanos uma fator intrigante, que os faz (ao menos por alguns segundos) refletir sobre o que está grafado nas paredes ao seu redor, o que podemos ligar diretamente à questão da experiência estética. É provável que este tipo de manifestação seja vista de maneira excludente porque boa parte da sociedade ainda encara e analisa a arte com lentes da modernidade. Arte para quem? Para acadêmicos? Em seu livro Arte Contemporânea: uma introdução, Anne Cauquelin explica a questão do crítico no que diz respeito a quem dita ou não o valor da Arte, tanto em aspectos financeiros, como sociais, ou seja, quem definitivamente legitima a arte. Após o renascimento, quando surgiram circuitos alternativos de arte na capital francesa, o Estado não podia mais absorver as encomendas. Outro público deveria substituí-lo. Dessa maneira, aquelas pessoas que tinham papel dominante na opinião pública ficaram incumbidas dessas tarefa. Dessa maneira teria surgido a figura do crítico de arte.

De escritor, de jornalista, até mesmo de novelistas já em atividade e exercendo alguma influência sobre seus leitores, o crítico se torna um profissional de mediação, junto de um público muito maior: o dos aficionados da arte, ou dos simples curiosos. Ele fabrica a opinião e contribui para a construção de uma imagem da arte, da obra ‘em geral’ – e de determinado artista ou grupo de artistas ao qual se ligará especialmente. (CAUQUELIN, 2005, p. 37)

Os júris dos salões de arte (oficiais, apoiados pelo estado) vão, gradativamente, deixando de existir. Na qualidade de intermediário entre o artista e o público que tenta convencer, o crítico se mantém bem próximo dos valores reconhecidos anteriormente. Dessa forma, a arte, o olhar do crítico, o juiz do gosto, não se afasta da visão acadêmica estabelecida anteriormente.

27

28

4.

O autor – João Wainer

4.1 Vida e obra

Nascido em 1976, em São Paulo, João Wainer é neto dos jornalistas Danuza Leão e Samuel Wainer (fundador do Jornal Ultima Hora) e filho da artista plástica Pinky Wainer e do produtor de TV, Roberto Oliveira. Aos 16 anos, resolveu ser fotógrafo, inspirado pelos raps do grupo Racionais MCs. Iniciou sua carreira no ano de 1992, como estagiário no Jornal da Tarde. Entre 1994 e 1995 foi assistente do renomado fotógrafo de moda/publicidade Bob Wolfenson. No ano seguinte ingressou na equipe de fotógrafos do Jornal Folha de São Paulo, veículo onde assumiu, anos mais tarde, o cargo de editor de fotografia. As temáticas relacionadas às margens sempre estiveram presentes em sua trajetória – Wainer acompanhou o rapper MV Bil, em sua apresentação, na década de 90; expôs individualmente o ensaio Alfabetização Solidária nos Confins do País, na galeria FIESP, em 1999; expôs, em 2002, Retratos de Campanha, ensaio que registrou a histórica campanha de Lula à Presidência da Republica; e publicou o livro Aqui Dentro: Páginas de uma Memória – Carandiru, pela editora Imprensa Oficial, sob orientação de Maureen Bisilliat (2003). Em 2005 venceu a Bolsa FNAC para jovens fotógrafos e expôs, na França, o trabalho Marginália. Em 2006, seu vídeo Marginália foi exibido no Festival Reencontre d’Arles, na França. Sua experiência com o vídeo se estende em várias outras obras. Ele foi diretor de fotografia da série de 12 documentários Chico Buarque, lançada em DVD e exibida pela TV Bandeirantes e Multishow, em 2007, XPress, para a MTV internacional, em parceria com a UNICEF, sendo também exibida em 43 países, no anos de 2009. Além disso: em 2007, expôs na PHOTOQUAI: BiennaledesImagesdu Monde, no museu QuayBranly, em Paris, e publicou o livro Ultimas Praias: Entre Ubatuba e Paraty, pela editora Terra Virgem. Em 2008 foi vencedor do Prêmio Don Quixote de La Perifa; por dois anos consecutivos na Cooperifa, no Capão Redondo, participou da exposição coletiva Laberinto de Miradas, em Barcelona (Espanha), Cidade do Mexico, Santiago (Chile), Buenos Aires (Argentina) e Lima (Peru). Em 2012, desenvolveu e implantou o projeto TV Folha, departamento de vídeos da Folha de S.Paulo, que usa como base a linguagem do documentário em suas produções. João Wainer é responsável pelas imagens de capas de livros, CDs e DVDs para vários artistas, entre eles: Chico Buarque, Rita Lee, Jair Rodrigues, Dona Ivone Lara, Gilberto Gil, 509-E, Banda de Pífanos de Caruaru, Rappin Hood, Max de Castro e Simoninha. Teve traba-

29

lhos publicados nas revistas Trip, Marie Claire, Poder, Serafina, Bravo!, FFW MAG, Roling Stone, Gloss, S/N e colaborou com publicações internacionais, como The New York Time, The Guardian, The Times, El Clarín e outras. É importante lembrar que o diretor participou, em 2009, da exposição Né Dans La Rue: Grafitti, na Fundação Cartier, em Paris, com o filme “PIXO”, documentário analisamos nessa pesquisa. Em junho de 2014, lançou em nove cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Santos, Florianópolis e João Pessoa) o longa Junho, que é dirigido por ele e fala sobre o início dos protestos em 2013.

30

4.2 O PIXO – Resumo e produção

Em 2010, João Wainer apresenta para o Brasil o documentário O PIXO, que busca mostrar o universo da pixação (muitas vezes associado ao vandalismo) e suas características. Inspirada no trabalho do pixador DjanIvson (o Cripta), que produz vídeos sobre o tema, a obra, realizada com a produtora Sindicato Paralelo Filmes, possui montagem de Carlos Milanez. O filme foi lançado na mostra Ne Dans La Rue: Grafitti (Nascido nas Ruas – Grafite), uma retrospectiva mundial sobre arte de rua realizada pela Fundação Cartier, em Paris, no ano de 2009. A obra mostra o impacto da pixação como um fenômeno cultural de São Paulo e sua grande influência nas principais correntes de Street Art, além de fomentar a discussão sobre a pixação como uma expressão artística ou crime contra o ambiente e patrimônios, através do registro visual de ações como na Faculdade de Belas Artes e em outros prédios da cidade de São Paulo. O filme, com duração de 65 minutos, foi o primeiro longa-metragem documentário produzido pelos irmãos João Wainer e Roberto T. Oliveira. A obra tem como diretor de arte Alexandre Orion e conta com participações de Jorge du Peixe, Racionais, Tejo Damasceno, e Instituto de Música Inédita, do rapper Sabotage, na trilha sonora. Entre as entrevistados encontram-se: Willian, que é analfabeto e consegue ler e escrever pixação e Caroline Sustos, que foi presa por pixar a Bienal em São Paulo. O documentário repercutiu no Jornal Americano The New York Times, com a matéria “João Wainer’s documentary film “Pixo”, publicada em 29 de janeiro de 2012. Em Outubro de 2010, Roberto T. Oliveira, falou sobre como surgiu a ideia do documentário O PIXO (...) andando em São Paulo e vendo o tanto de pixação que tem em São Paulo, às vezes a gente se sentia na China, sem saber falar chinês. [...] O começo foi aí, a nossa curiosidade em entender o que os meninos escreviam nas paredes, depois veio a curiosidade de entender como eles subiam lá em cima para fazer. [...] eu acho que faz parte da idade deles fazer isso, tem gente que defende a tese de que os pixadores são invisíveis pela classe social deles, de onde eles veem, que eles não têm reconhecimento na escola, muitas vezes não tem na família, no bairro, a cidade não aceita muito essa molecada, então a pixação torna-os visíveis 12

12

Trecho da fala de Roberto T. Oliveira, em entrevista ao jornalista da Jovem Pan Online, Fernando Zamith, publicada em 30 de outubro de 2009. Disponível em: http://mais.uol.com.br/view/85r7d735pwrw/pixo-conheca-a-historia-do-documentario0402326CD4A96366?types=A

31

4.3 Análise Descritiva

Antes de iniciarmos esse capítulo é importante salientar a diferença entre crítica e análise. A primeira tem como objetivo “avaliar, ou seja, atribuir um juízo de valor a um determinado filme – trata-se de determinar o valor de um filme em relação a um determinado fim” (PENAFRIA, 2009, p.2). A análise tem outra função/objetivo: “explicar ou esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação” (PENAFRIA, 2009, p.1). Analisar um filme é sinónimo de decompor esse filme. Ainda que não exista uma metodologia universal para tal, dita ação implica em duas etapas importantes: primeiro, decompor e, em seguida, estabelecer as relações entre esses fragmentos. Como já salientamos, a pixação é um tipo de atividade que usa a cidade e a arquitetura como base e ferramenta para seu agir, seu comunicar e seu protestar, influenciando diretamente no cotidiano da experiência urbana, na elaboração de um novo olhar sobre o espaço urbano e também na construção de sujeitos nos contextos da urbe contemporânea. Dita ação relaciona a escrita, a arte, a arquitetura, o urbanismo, as praticas sociais e o desejo de gerar novos espaços de relação dentro das metrópoles. Observamos a proposição de um novo lugar de fala por meio de uma linguagem autentica, enfocada nas necessidades de transgressão e expressão de seus participantes. Os pixadores buscam transformar a realidade social. Em seu processo de produção, a pixação modifica o viver, a cotidianidade do ser na cidade que habita e constrói novas possibilidades na relação entre periferia e centro. O documentário que analisaremos aqui aborda em sua temática essa forma autêntica de expressão na cidade de São Paulo. Utilizando-se de relatos de pixadores, fotógrafos e artistas sobre a ação de pixar e como ela repercute. O filme perpassa as origens, o porque, a relação legalidade/ilegalidade e se propõe a oferecer ferramentas para se pensar uma questão base: pixação é arte, ou crime? Cientes da complexidade de se fazer uma análise fílmica, selecionamos fragmentos do documentário. Não pensamos na divisão de cenas, ou sequências, dentro dos conceitos cinematográficos. Por isso, chamamos cada parte selecionada de momento. Para tal, foram pensados 8 momentos, que apresentaremos em ordem sequencial, assim como na construção da estrutura do filme de Wainer, ou seja, seguiremos sua ordem de aparição no documentário. Como já esclarecemos não faremos aqui uma crítica ao documentário. Nossa intenção é interpretar alguns aspectos para constituir uma análise de conteúdo, uma análise poética e uma análise de imagem e som. Em seu artigo Análise de filmes – conceitos e metodologia(s),

32

Manuela Penafria, entende análise de conteúdo como aquele tipo de análise que “considera o filme como um relato e tem apenas em conta o tema do filme” (PENAFRIA, 2009, p.6). Já a análise de imagem e som busca dar conta do que existe no espaço fílmico, entendendo o produto como um meio de expressão e “recorre a conceitos cinematográficos”. Já a análise poética, conceito de Wilson Gomes (2004), abarca as sensações que a imagem em movimento pode causar no espectador. Para Gomes, uma análise fílmica, pode até não ser uma prática artística, como pensam alguns, mas é uma atividade de criação e, por isso, “a análise acadêmica de filmes ganha, ela mesma, aura artística e ares literários e ensaísticos” (GOMES, 2004, p.2).

Alcança-se prestigio no interior do campo analítico, sobretudo através da capacidade demonstrada, pelo analista, de dar conta das competências especificas de três ambientes associados ao campo do cinema: o ambiente da realização técnica e artística, o ambiente da apreciação, composto por cinéfilos e aficionados, e o ambiente da teoria cinematográfica. (GOMES, 2004, p.2).

Momento 1 – Cobertura do prédio no Centro de São Paulo (1’34’’ – 4’47’’)

Selecionamos esse momento porque julgamos importante a escolha dos diretores de mostrar logo no início do documentário uma sequência que retrata claramente a ação dos pixadores no centro de São Paulo. O que chamamos aqui de momento 1 é uma sequência que parece tentar mostrar como os pixadores são vistos pela população enquanto agem, como é o tratamento da polícia com as denúncias de pixações em são Paulo e também como esses pixadores se sentem enquanto agem. Já no inicio da sequência, enquanto três pixadores começam a escalada do prédio, através do enlace de planos, com cortes secos, em ritmo acelerado, e muitos movimentos de câmera, percebemos um retrato do caos no entorno do ambiente. Um lattering localiza o espectador: “São Paulo, 18 de abril de 2008. Esquina da Av. São João e Duque de Caxias.” Vê-se em plano médio: um poste, desfoque do transito, plano do chão e de letreiros em volta da construção que está passando pela intervenção. Logo se vê a imagem da passagem de uma viatura da policia militar de São Paulo. A câmera se move, buscando a ação dos pixadores em meio ao caos que se apresenta na escolha de planos onde todas as dimensões estão cobertas por edifícios, fachadas, publicidade. Mesmo com a escolha de uma profundidade de campo alta não se vê o horizonte nesse caso, apenas camadas e camadas de elementos que remetem à civilização, cidade. O chão, o céu, as construções ao redor são mostradas por essa câmera que se movimenta arbitrariamente,

33

provavelmente, na intenção de apontar para o ritmo intenso da ação que acontece ali naquele momento. Algumas pessoas são observadas pela câmera, que segue em plano médio. Planos gerais do prédio dão a dimensão da altura e do porte da construção que vai ser “rabiscada”. A escalada segue. Acompanhamos o áudio dos três pixadores que escalam a construção. Ao escutá-los temos a dimensão de um pensamento que será explicado ao decorrer do filme: a ação de pixar é quase um esporte pare eles, que além de expressar-se, buscam adrenalina. Ora, a câmera em plano geral se aproxima através de um zoom e volta-se ao plano médio, que também se aproxima de maneira brusca da cena, ora, a câmera se distancia, na tentativa de dar conta da dimensão do progresso na escalada. A chegada da polícia militar também é documentada por essa câmera na mão. Nesse momento, vemos uma sequência de planos da população e dos policiais observando de baixo o que acontece. Em seguida vê as cenas da escalada que segue acontecendo, como se fosse a visão de cada um desses espectadores, em uma espécie de câmera é subjetiva. Inicia a tomada de entrevista do policial, onde ele explica que receberam uma denúncia de que havia pixadores escalando o prédio. Na sequência, temos um plano médio de uma das pessoas que assistiam a cena e assustado diz: “Sabe rato?! Subindo de andar em andar...”. A fala, nesse caso, funciona quase como que síntese do que pôde ser visto nas cenas anteriores: a agilidade dos pixadores em ação, a dinâmica da “gangue”. A continuação se dá com as cenas da escalada e com áudio em off dos pixadores. Eles não falam muito, mas podemos escutar suas respirações ofegantes, o que é natural, visto que eles já estão quase no topo do edifício. Em um momento, um deles quase cai. Há uma repetição da cena, evidenciando os riscos da ação que está acontecendo ali. A volta do áudio off da fala desses pixadores parece querer dar conta, novamente, de outro aspecto que os motiva ao agir, a busca pela adrenalina. Temos então um zoom in no outro lado do prédio, onde aparece um primeiro rabisco, um primeiro pixo na fachada do prédio residencial. A partir de um Zoom out, volta-se ao plano onde o policial prossegue com sua entrevista. Agora ele explica que, a princípio, foi pensado que eram pixadores, mas não, acredita-se então que sejam moradores do próprio edifício. Como não há janelas arrombadas e nenhum sinal dos pixadores, os policiais deixam o local. Enquanto o áudio em off mostra a explicação do policial do que esta acontecendo, o que vemos é a ação dos pixadores: já são quase dois andares do prédio dominados pelos rabiscos. A escolha de montar o filme dessa maneira parece querer dimensionar, já no inicio do documentário, um argumento que irá se repetir ao de todo o filme: a persistência dos pixadores em sua ação. Visto que, mesmo com um “público prestigiando a ação” e com a polícia acionada e presente no local, eles conseguem

34

concluir o que buscavam fazer ao alcançar o topo do prédio. O áudio é construído com musicas de rap em quase toda a sequência. Apenas quando o foco é a escalada, passamos a escutar somente o áudio da conversa dos pixadores, na medida em que vão subindo o edifício. As músicas, com batidas bem marcadas e agitadas ajudam na construção do ritmo da ação, que, mesmo audaciosa, acontece de maneira extremamente rápida

Momento 2 - A pixação em São Paulo (6’45’’ –8’46”)

Djan, um dos pixadores entrevistados, apresenta as categorias de pixação: “muro, janela, prédio, escalada. E há os que façam todas”. Na medida em que ele fala, são mostrados planos que demonstram como são cada uma dessas ações. Esses planos transparecem certo didatismo ao ilustrar para o espectador cada uma das intervenções citadas. Ele explica que, independente da categoria, o fundamental é que os pixadores tenham muitas marcas espalhadas pela cidade. Esse depoimento é captado em plano médio, com a câmera na altura de seu olhar, dando a dimensão de igualdade, o que garante credibilidade a fonte. Em seguida, temos a entrevista do fotógrafo Choque, na qual ele explica que a pixação em são Paulo é uma comunicação fechada, feita dela para ela, na tentativa de agredir a sociedade. Vemos esta fonte em plano médio, sentado no meio de uma avenida. Após a mescla de imagens de pixações em diversos pontos da cidade, que evidencia o ritmo acelerado não só da ação, mas como também do centro urbano, temos a entrevista de Diego. Ele aparece em primeiro plano explicando a importância da pixação na dinâmica de São Paulo. Ele fala, por exemplo, da vinda de diversos estudiosos estrangeiros para estudar grafitti na cidade, e que quando se deparam com a pixação, se esquecem da intervenção colorida para refletir sobre os rabiscos da maior cidade do Brasil. Dessa maneira, já se inicia o argumento de que a pixação deveria ser vista com outros olhos e valorizada dentro da própria cidade de São Paulo. Ele ainda esclarece a existência desse tipo de intervenção urbana somente na capital paulista. Logo após, temos uma colagem de planos com a câmera sempre em movimento. Esses diversos planos mostram topos de prédios tomados pela intervenção dos pixadores. Em seu depoimento, Zé, ou “Lixomania”, como assina quando pixa, está sentado de frente para a câmera, em frente a inúmeras latas de tinta, e fala do seu amor pela pixação. Ele explica que, como transita por toda a cidade, já que trabalha como motoboy, e percorre os quatro cantos da metrópole durante as 12 horas em que trabalha, sempre que pode, para e pi-

35

xa. No meio de seu depoimento é mostrado um plano, através de um travelling, onde ele cobre um muro baixo com sua assinatura em uma rua da cidade. Fica evidente a feição de felicidade do pixador ao posar ao lado de sua obra. Ele acrescenta: “é difícil entrar em uma rua da cidade que eu não tenha pixado”. 13 Volta-se para mais uma parte da entrevista de Choque, no mesmo cenário e enquadramento, intercalado com planos que mostram fragmentos e recortes dessa metrópole. Parece evidente, tanto pelo cenário onde acontece a entrevista (o meio de uma avenida), quanto pela escolha dos fragmentos que o filme discute, ainda que de maneira subjetiva, a relação do individuo com a cidade. Ele explica que, através da pixação, São Paulo se tornou um agente verticalizador das letras, ou seja: “a escrita da pixação de São Paulo vai seguir as linhas guias da cidade. Como se São Paulo fosse um caderno de caligrafia gigante”. 14 O enlace de planos gerais e planos médios (com recortes de um mesmo prédio) dão a dimensão do domínio da ação sobre as fachadas retratadas. Quando afastados, eles dimensionam a ação, a cobertura do edifício. Quando fechados nos recortes das pixações, eles evidenciam as diferenças entre elas, a pluralidade de assinaturas.

Momento 3 - O ibope (16’16” – 19’26”)

O momento 3 tem início com o áudio do fotógrafo Choque, falando sobre a pixação no começo da década de 80, enquanto se vê uma fotografia de um dos registros feitos na época, comprovando as informações. Logo em seguida tem-se um plano fechado, primeiríssimo primeiro plano, focado no rosto do fotógrafo. Ele menciona que, junto à pixação de cunho político surgiu a pixação de São Paulo. Ainda com o mesmo plano, ele começa a falar sobre o precursor do movimento na cidade, o Cão Fila KM 26, que não foi um pixador como os de hoje, porém, espalhou pela cidade inúmeras inscrições que tinham como objetivo divulgar o seu canil de cães da raça fila. Neste momento há o auxílio de fotografias e documentos que fizeram o registro da época, que comprovam de forma palpável as informações dadas pelo fotógrafo. Em seguida, há a entrevista de Marcelo, também em plano fechado, focado no rosto do entrevistado, com alguma profundidade de campo que permite constatar que a entrevista foi feita em uma calçada, em uma rua não muito movimentada e à noite. Ele fala como começou

13 14

Trecho da fala de Zé ou Lixomania, retirado do documentário O PIXO. Tempo 8’14” – 8’20” Trecho da fala do fotógrafo Choque, retirado do documentário O PIXO. Tempo 8’27” – 8’34”

36

a se interessar por pixação, ainda quando criança, através do Cão Fila e, logo depois, há, novamente, o auxílio de fotografias que comprovam as informações e reforçam o sucesso da inscrição ao mostrar o dono do canil, em uma fotografia recente, já na velhice, assinando mais uma vez, em uma folha branca, com a inscrição Cão Fila. Com a câmera em movimento, observamos o registro de um muro em São Paulo. O mesmo é filmado por alguém que está dentro de um veículo de transporte que se movimenta rapidamente e que serve de suporte para o áudio da entrevista do fotógrafo Choque. Continua a entrevista, em plano médio, ainda no mesmo cenário, e Marcelo começa a falar mais especificamente sobre o ano de 1982, quando de fato surgiu a pixação de São Paulo como é conhecida hoje. Ao falar dos pixadores que tiveram um enorme ibope, algumas fotografias de muros pixados por Juneca e Pessoinha são usadas para auxiliar na construção da informação. O mesmo é feito para entrar nos detalhes do ano de 1985, quando estes pixadores foram perseguidos durante o governo de Jânio Quadros por pixarem toda a cidade com seus nomes. Em seguida, imagens gravadas por uma câmera na mão retratam a confusão visual da cidade com os emaranhados de fios de energia que saem dos postes e que dividem espaço com as placas de trânsito na cidade. Essas imagens enfatizam o que é a cidade de São Paulo, um espaço onde é nítido seu visual carregado, aglomerado e super-lotado. Um cidade onde cada componente disputa claramente o espaço com o outro, fios sobre fios, casas sobre casas, quarteirões de prédios enormes, placas, semáforos, carros e milhões de pessoas em um dos menores estados do Brasil. A câmera se move rapidamente e com um zoom in mostra o topo de um prédio pixado. Neste momento, entra o áudio de Cripta, falando sobre o final da década de 80, quando as lajes e os topos dos prédios começaram a virar alvo dos pixadores. Um recorte de jornal com a matéria “Laje e topo de prédios são os novos alvos da pichação” é utilizado. Em seguida, Dino, em um plano médio, que tem como cenário um bar, fala sobre o que ele chama de “trio de ferro” da pixação: os pixadores que mais tiveram reconhecimento pelas inúmeras inscrições na cidade – Di, T-chentcho e Xuim. Uma sequência de lajes e coberturas de prédios pixados, gravados com uma câmera na mão que se movimenta rapidamente é utilizado como suporte. Uma sequência de fotografias de prédios pixados pelos três abre a cena com a fala de Zè, ou “Lixomania, (ainda com o plano inteiro e mesmo cenário) sobre a competitividade entre Di, Tchentcho e Xuim. Em seguida, o depoimento de Dino, com o mesmo enquadramento e cenário volta e ele explica que com o tempo Tencho e Xuim pararam com a pixação e Di continua. O depoimento de Cripta entra sobre com imagens de prédios inteiros pixados por

37

ele e cenas de uma filmagem realizada em 27 de outubro de 1996. Nessas últimas imagens Di é mostrado em uma festa, com namorada e amigos. Cripta conta como o ibope de Di foi intenso, menciona que até hoje ele é considerado o maior pixador de São Paulo e relata, de forma especial, sobre a pixação no Prédio do Conjunto Nacional, onde Di se passou por morador, entrou em contato com a imprensa e teve sua pixação divulgada no dia seguinte. Neste momento, imagens do prédio e um recorte de jornal comprovam as informações.

Momento 4 – A pixação como forma de expressão (24’18” – 24’50”)

O momento 4 começa com um primeiríssimo primeiro plano do rosto do entrevistado que assina como O animal, enquanto ele ressalta o desejo de muitos moradores da periferia em falar e, ao mesmo tempo, sua falta de condições para se expressarem. Neste momento, a imagem de uma câmera na mão, em movimento pela rua, mostra um bairro periférico da cidade de São Paulo com muita profundidade de campo e em GPG - grande plano geral. Em seguida, volta o primeiríssimo primeiro plano da entrevista e encerra o depoimento ao falar da desigualdade que existe hoje, e do poder de fala da burguesia. Para fazer a transição entre esta entrevista e a próxima, é utilizada uma filmagem em plano geral de um viaduto, à noite, onde passam vários carros e a câmera na mão faz um giro que mostra a parte debaixo do viaduto e a parte de cima, onde está posicionado o cinegrafista. Logo depois, o fotógrafo Choque, ainda em plano médio, enquadrado no centro da imagem, sentado na estrutura de concreto que divide as vias de uma avenida em São Paulo (se pensarmos na avenida em si, ele continua localizado no centro), fala sobre as três principais motivações que levam os indivíduos a fazerem a pixação, que são: reconhecimento social, lazer e adrenalina e o protesto. O resultado da montagem é uma sequencia composta por imagens da entrevista, alternada com imagens filmadas, com uma câmera na mão, de sacadas, coberturas e prédios inteiros que foram pixados. Isso ajuda a dimensionar o que o fotógrafo diz, como por exemplo, quão desafiadora é a ação se pensarmos em adrenalina e relacionarmos à altura do prédio que está na imagem. Ou então se considerarmos as inscrições feitas na primeira filmagem (uma sacada verde, enquadrada em plano geral fechado que possui, além de assinatura de nomes próprios, a frase “gente besta!!!” pixada) e relacionarmos à ideia de crítica e protesto. Após a fala do entrevistado e antes de entrar a próxima entrevista, é utilizado o som ambiente das filmagens. Ouve-se o vento e o barulho do trânsito e percebe-se a movimentação

38

lenta dos veículos na parte debaixo da tela. Depois, ainda como o mesmo som ambiente, o engarrafamento da cidade é retratado através do reflexo de um vidro - talvez de uma portaria de prédio ou a vitrine de uma loja. Por ultimo, a câmera na mão, captura de dentro de um veículo em movimento o topo de um prédio em plano geral, com muita profundidade de campo. Talvez exista aqui uma tentativa de aproximar o espectador do real, do momento, do que já é esperado da cidade de São Paulo: o trânsito e seu o engarrafamento diário em um espaço que é caracterizado como uma selva de concreto, fachadas, janelas, portas, vidros, arranha-céus, sacadas, antenas, fios de energias e pessoas que vem e vão. No que diz respeito a sensações que pode causar, o trecho funciona exatamente como um simulacro do cotidiano paulistano.

Momento 5 – Arte(de) onde? (52’33” – 55’09”)

O momento 5 tem início com uma das cenas do ataque de pixadores ao Centro Universitário Belas Artes, na zona sul de São Paulo, no ano de 2008. O movimento foi organizado pelo aluno do curso de Artes Visuais, Rafael Guedes Augustaitiz (Pixobomb) como seu trabalho prático de pintura de conclusão de curso. Ele convidou pixadores para apresentar a parte prática. Ao final da apresentação, Rafael foi reprovado e expulso do Centro Universitário. A primeira cena do momento 5 é uma sequencia de filmagens feitas com uma câmera na mão. Os primeiros segundos representam o registro dos pixadores chegando à faculdade, em uma filmagem onde a estabilidade da câmera e a estética clássica do próprio registro não é a principal preocupação. Neste ponto do filme, o registro em si e uma estética da ousadia e do rompimento com o clássico faz a captação de imagens dialogar ainda mais com a ação exposta pela narrativa. A cena mostra a correria deles entrando no centro universitário, as pernas e pés dos pixadores. Nesse momento há o grito de alguém, em off, que ordena: “pixa tudo”. Então começa a trilha sonora que enfatiza o momento de caos, ataque e correria. A trilha começa com uma sirene de polícia, que aparece em vários momentos nesta sequencia de imagens do ataque. O som da sirene é mesclado com uma música instrumental, rock n’ roll, que é iniciada a partir do solo de uma bateria. As imagens mostram os pixadores dentro do centro universitário, pixando as paredes, os vidros, os corredores, as paredes das escadarias, o hall de entrada. Algumas pessoas observam a ação, outros fazem o registro da mesma e os seguranças

39

do centro tentam conter o ataque. Para fazer a transição do espaço interno para o lado externo, a montagem utiliza o efeito de aceleração ou lapso de tempo. Ao chegar do lado de fora da faculdade, com o plano geral aberto (PGA), vários pontos são enfatizados pelo uso de zoom in, mostrando a ação dos pixadores, junto a estudantes, professores e funcionários. Além do som ambiente das muitas falas ditas de maneira simultânea, também ouvimos pessoas correndo e latas de spray sendo utilizadas. A trilha musical, em rock n’ roll, também continua a fim de enfatizar o momento de caos. Contudo, ela deixa de ser instrumental. As imagens registram pessoas brigando entre si pelas calçadas e ruas, outras relatando por telefone o que está acontecendo naquele momento, além de alunos que tentam impedir os pixadores de continuarem a ação nas dependências da faculdade, puxando-os das sacadas e janelas. Após essa sequência, há a entrevista de um dos funcionários do Centro, José Campos de Oliveira, criticando a ação dos pixadores, e classificando-os como analfabetos, incompetentes e frustrados. Em seguida, a câmera filma duas alunas conversando entre si, comentando a ação dos pixadores e questionando: “arte aonde”? Neste instante, há um corte seco para o depoimento de Camila, sentada em uma calçada, mais específicamente em frente a um portão de metal, pixado, em plano médio, com a câmera na altura de sua visão e com boa profundidade de campo. A partir deste último aspecto é possível perceber a extensão do muro atrás dela e também as condições do local. O muro é todo pixado e a calçada está quebrada e com buracos e desníveis, o que pode sugerir que a pixação seja uma arte mais próxima da pobreza. Esse aspecto pode expor alguns sentimentos e reflexões que, normalmente, são ignorados pela maioria das pessoas, que preferem fingir não notar ou mesmo sentir. A montagem volta para a entrevista do funcionário do centro universitário. Ele está classificando a arte como algo que alegra o dia-a-dia. Em sua fala, ela retira a pixação do conceito de arte. Entra então o depoimento de Rafael (Pixobomb), sentado em uma escadaria, em plano médio com a câmera em sua altura, afirmando que a pixação é uma arte que carrega toda a energia da metrópole. Neste momento, imagens de alguém pixando um duto em São Paulo, em plano fechado com o zoom, que, ainda assim, permite o espectador dimensionar o espaço da entrevista. Pela imagem é possível perceber que se trata de um lugar alto, que a câmera está um pouco longe e por isso utiliza-se o zoom, que não é um local afastado/isolado da região metropolitana, pois também é possível observar carros e ônibus. Logo depois, vemos imagens feitas a partir de uma câmera na mão que mostra, rapidamente, um bairro periférico, com várias casas e barracos amontoados. Essa mescla de imagens enfatiza o que Rafael está dizendo. Dessa maneira, poderíamos aproximar a energia da metrópole que ele

40

menciona à visão carregada e densa das favelas que compõem o centro urbano, como a indiferença ao homem que pixa o duto em plena luz do dia.

41

4. Considerações finais

Se a pixação é, pois, antiacadêmica, gostaríamos então de sê-lo também ao final dessa pesquisa. Para tratar de expor o que nos parece relevante sobre sua estética, ou melhor, sobre sua antiestética, consideramos prudente ser um tanto quanto antiestético (e porque não antiacadêmicos) também. Assim, vamos nos permitir promover uma tentativa de aproximação (nossa, e de quem lê) ao nosso objeto/temática de estudos: o Rabisco no branco da cidade.

Estamos em São Paulo, caminhando, buscando significado para essa cidade. Vemos um muro, um prédio, uma casa, um shopping, muitas construções. Vários tipos de fachadas que conversam, e desconversam com o cinza da poluição. Pensamos: Por que vemos na pixação um fenômeno tanto estético, quanto político?

Se o fato de observar de longe é ser um tipo de voyer, e só o caminhante tem de fato a experiência aproximada da realidade, decidimos caminhar. ...Até porque temos direito à cidade. Mais que isso... temos direito visual à cidade. Esse espaço é meu, é seu, é nosso!

E nos indagamos: porque só as publicidades são legitimas para estar aqui?

Há décadas se questiona sobre o direito à cidade. De quem é o espaço urbano? Na maior cidade do Brasil, quem segue levantando esse questionamento, em nossa opinião, são os pixadores. Tal questionamento é teórico, prático, artístico e retórico. Hoje, as grandes cidades se transformaram em um dispositivo cada vez mais excludente, graças à ditadura estética do branco. Nós e os outros estamos na cidade. Nesse aglomerado de argamassa, com seus prédios, belos, feitos de alvenaria estrutural, concreto armado e muitas outras técnicas e maneiras de fazer estão aglomerados todo tipo de cidadão, e os outros, “que mesmo sendo cidadãos, são condenados a um lugar de não cidadãos”. Eles escrevem com X. PIXAM O PIXO, porque, ao pixar e ao grafar sua ação de maneira não existente nos dicionários, se afirmam como o outro. É uma ação de autoconsciência.

Ao que parece, tratando-se da pixação e do próprio documentário analisado, parece ser mais prudente falar de uma contraconsciência estética. Ambas obras não visam qualquer tipo de acordo com qualquer convenção que venha do campo das belas artes e do seu cenário de

42

consciências filosóficas pré-estabelecidas.

É simples: a teoria tradicional é uma questão de gosto - ou é bela (e agrada a muitos), ou é sublime (agrada enquanto desagrada por colocar em cena questões éticas ou políticas que sejam razoáveis). E quando é feia? Ou no caso da pixação, que carrega, propositalmente, a máscara da feiura. Nesse caso, não agrada a ninguém, e não vai haver sobre ela interesse algum, porque “não sustentará a ordem da comunicação e do consenso, e também do desempenho teórico”.

Pensemos a estética da aparência, na qual o objeto não é análisado isoladamente, e sim, associdado ao conceito que lhe atribuimos na nossa linguagem. É natural (e será que deveria ser ?) que o sujeito, ao vivenciar uma experiencia estética, se converta totalmente convencido de que o padrão de belo que adotou para si será o mesmo que os demais adotarão.

A pixação é essa teoria feia. Essa feiura é a revolta do pixador, e por ele não é mal vista. A pixação inclui a inverdade do belo e, a partir dela, o belo se torna uma categoria opressiva. Dessa forma, a pixação apresenta uma inverdade do padrão, ela se torna uma espécie de legítima teoria, enquanto transformação da teoria que se aventura a descontruir espaços tradicionais. Caminha, ou melhor, rabisca, na direção oposta do arrumadinho, do suportável academicamente e/ou no campo do senso comum.

“Um verdadeiro sintoma teórico nascido na desobediência civil. Ela é a teoria estética crítica, a teoria enquanto crítica estética, a teoria crítica enquanto prática também estética.”

Para uma primeira experiência com pesquisa, o que nos surpreende é que, ao início do trabalho, quando elaboramos o projeto, começamos o processo em busca de responder algumas perguntas, em busca de algumas respostas. Porém, quando o processo seguiu, percebemos que, em realidade, a pesquisa nos apresentou e apresenta outros questionamentos... Assim, o que surge são mais perguntas...

Qual o papel (ou melhor, a relação) do corpo fluído na cidade sólida? Qual o lugar de fala da periferia no centro da cidade? Quais discursos são legitimados na sociedade contemporânea? De que forma a arquitetura dos grandes centros influencia as relações na urbe? Até que ponto temos uma leitura adestrada para o campo das artes? O que mais vale: a forma

43

ou a ação do pixador ao construir a intervenção?

44

Referências BARBALHO, Alexandre. PAIVA, Raquel. Comunicação e Cultura das Minorias. Editora: Paulus, 2005. Coleção comunicação. São Paulo, 2005 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Inscrição e circulação: novas visibilidades e configurações do espaço público em São Paulo. Tradução de Claudio Alves Marcondes. Novos estudos, CEBRAP. 2012 CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução / Anne Cauquelin; Tradução Rejane Janowitzer. Coleção Todas as artes. São Paulo: Martins, 2005 . Entrevista “Pixo: conheça mais a história do documentário”. Rádio Jovem Pan Online. 2009. Disponível em Acesso em 10 de maio de 2014 FAPSP FACULDADE. Entrevista com João Wainer para a revista Infiltrados. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=cxRGIm_PABM . Acesso em 19 de junho de 2014 FURTADO, Janaina, ZANELLA, Andrea Vieira. Grafitti e Pichação: relações estéticas e intervenções urbanas. Revista Visualidades – Universidade Federal de Goiás, 2009, disponível em: . Acesso em: GUIMARÃES, César. LEAL, Bruno Souza. MENDONÇA, Carlos Camargos. Comunicação e Experiência Estética. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2007. HUMBERMAN, Georges Didi. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas. São Paulo: Altamira editorial, 2010. LEAL, B. S. (Org): GUIMARÃES, César (Org.); MENDONÇA, Carlos Camargos (Org.) Comunicação e experiência estética. 1. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006 LENTE CULTURAL. Entrevista com o fotógrafo João Wainer – Palestra sobre a Experiência da TV Folha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q9CSa_qV5Kg . Acesso em: 22 de abril de 2014 PENAFRIA, Manuela. Análise de Filmes – Conceito e metodologia (s). VI Congresso SOPCOM, Lisboa, Abril de 2009. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-penafriaanalise.pdf . Acesso em: 07 de junho de 2014

PEREIRA, Alexandre Barbosa. Quem é não visto, não é lembrado: sociabilidade, escrita, visibilidade e memória na São Paulo da Pixação. Universidade Federal de São Paulo, Arte e antropologia. São Paulo, 2012. PEREIRA, Alexandre Barbosa. As Marcas da Cidade: A dinâmica da pixação em São

45

Paulo. Universidade de São Paulo, Programa de Pós Graduação em Antropologia Social. São Paulo, 2010. RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, pichação & Cia. São Paulo: Annablume. Coleção: Selo Universidade, 1994. RHODEN, Caren. MOURA, João Victor. BALBUENO, Rafael. MIOTTO, Tiago. “O pixador é o artista que transcendeu as telas”. Revista O Viés. 2012. Disponível em: http://www.revistaovies.com/entrevistas/2012/11/cripta-djan-o-pixador-e-o-artista-quetranscendeu-as-telas/. Acesso em: 15 de Janeiro de 2014 RODRIGUES, Chris. O Cinema e a Produção. São Paulo: Lamparina/ 3 ed. 2007 SPINELLI, Luciano. Pichação e comunicação: um código sem regra. Comunicação e conflitos urbanos. Universidade de Paris V Sabonne, Faculdade de Sociologia. 2007. TEIXEIRA, Bola. O Pixo, de João Wainer. Portal Photos 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 de janeiro de 2014 TIBURI, Marcia. Pensamento Pixação. Revista Cult. 2010. Disponível em: . Acesso em: 02 de dezembro de 2013 TIBURI, Marcia. Direito visual à cidade. A estética da PiXação e o caso de São Paulo. Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenze, São Paulo. 2013 PIXO. Filme documentário. Dir: João Wainer e Roberto T. Oliveira. São Paulo: Sindicato Paralelo Filmes, 2009. (61 min.) Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=JjS0653Gsn8> Acesso em: 28 de maio de 2014. WAINER, João. Wordpress João Wainer. Disponível Acesso em: 23 de abril de 2014

em

46

Anexos

Figura 01 – Arte de Rua LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p. 24, 2010

47

Figura 02 – Pichação LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 34, 2010.

Figura 03 – Grafite LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 30, 2010.

48

Figura 04 - Pixação LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 36, 2010.

Figura 05 – Sticker LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 26, 2010

49

Figura 06 – Letreiro LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 28, 2010.

Figura 07 – Grapixo LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 38, 2010.

50

Figura 08 – BOMB LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 40, 2010.

Figura 09 – Estêncil LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 42, 2010.

51

Figura 10 – Miscelânea LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação – uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas, p 44, 2010.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.