1 40º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST 01 - Antropologias Afroindígenas: Cont radiscursos e Contramestiçagens Trabalho de Encantados de couro e de p ena: o complexo - afroindígena e as cosmopolíticas dos ance strais nas transformações tupi - ioruba no Recôncavo da Bahia.

May 27, 2017 | Autor: C. Alvarenga | Categoria: Amerindian Cosmologies, Ritual, Relação afroindígena
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40º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST 01 - Antropologias Afroindígenas: Contradiscursos e Contramestiçagens

Trabalho de Encantados de couro e de pena: o complexo-afroindígena e as cosmopolíticas dos ancestrais nas transformações tupi-ioruba no Recôncavo da Bahia. Camillo César da Silva Alvarenga (UFPB)

Caxambu, 2016 1

DA MITOPOÉTICA À COSMOPOLÍTICA DOS CABOCLOS: INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAS NARRATIVAS AFROINDÍGENAS1. Após algumas observações iniciais e a apresentação algo abstrata da questão da relação afroindígena, procurarei extrair algumas conclusões provisórias a partir da justaposição de dois casos etnográficos específicos. O objetivo é começar a testar a possibilidade de pensar essa relação aplicando a ela o que Bruno Latour denominou princípio de irredução: não reduzi-la de antemão a uma pura questão identitária; e, ao mesmo tempo, não negar a priori que a identidade possa ser uma dimensão do fenômeno. Trata-se, basicamente, de pensar a relação afroindígena de um modo que não a reduza a simples reação à dominação branca, nem à mera oposição entre duas identidades — não importa se tidas como “primordiais” ou como constituídas por “contraste”. Ao contrário, tratase de pensar essa relação a partir das alteridades imanentes que cada coletivo comporta e que devem ser relacionadas com as alteridades imanentes de outros coletivos, traçando espaços de interseção em que as chamadas relações interétnicas não são redutíveis nem à ignorância recíproca, nem à violência aberta, e nem à fusão homogeneizadora (GOLDMAN, 2015, p.642).

Procurei, com esta pesquisa, pistas da experiência dos processos envolvidos na constituição da ancestralidade ameríndia ao narrar o reconhecimento de aspectos das transformações cosmológicas implicadas nas formas sociológicas assumidas pela relação afroindígena na região do Recôncavo baiano – o culto aos caboclo e o samba de roda. O trabalho de campo, realizado no período entre abril de 2015 e julho de 2016, não corresponde apenas às faixas de áudio registradas em campo. A experiência da pesquisa compreende o universo de presentes contemporâneos que contemplam: Aruanda; as matas e as onças; sucuris e jiboias; as aldeias no mar; o ar de gaviões; as apresentações do Samba de Roda de D. Dalva2; as comemorações do 2 de julho; e, entre outros, aos terreiros visitados e conhecidos, e, se, estudados ou não nesta pesquisa – “xetru marrumba xetruá” para caboclos, “saravá”, “motumbá axé”, “atotô babá” para inquices, voduns e orixás.

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Esse texto é parte dos resultados de minha pesquisa de mestrado realizada junto ao Programa de PósGraduação em Sociologia, no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (PPGS/CCHLA-UFPB), e contou com uma bolsa do CNPq entre os anos de 2014 a 2016. A pesquisa tinha como tema as transformações cosmológicas e ontológicas ameríndias postas pelo complexo da “relação afroindígena” na região do Recôncavo da Bahia de Todos os Santos. A dissertação que deu origem a este trabalho foi orientada pelo Prof. Dr. Marcos Ayala (PPGS/UFPB) e coorientado pela Profª. Drª. Francisca Helena Marques (CECULT/UFRB). 2 Segundo informações levantadas pela etnomusicóloga e antropóloga Francisca Helena Marques e que constam no Arquivo de Som e Imagem Dalva Damiana de Freitas (LEAA/Recôncavo): “Nascida em 27 de setembro de 1927, em Cachoeira, no Recôncavo baiano, Dalva Damiana de Freitas, carinhosamente chamada de Dona Dalva (a Doutora do Samba), é considerada uma legenda viva por sua obra, trajetória e contribuição à cultura afro-brasileira, em especial, ao Samba de Roda no Estado da Bahia. Filha de pai sapateiro e mãe charuteira, Dona Dalva é a mais velha de oito irmãos. Cursou apenas o ensino primário, e desde muito jovem trabalhou, assim como sua mãe, como operária para as indústrias fumageiras do Recôncavo”. MARQUES, Francisca H. Dalva Damiana de Freitas. In: http://culturadigital.br/arquivodalvadamianadefreitas/dalvadamiana-de-freitas/ (consultado em 10 de julho de 2016).

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O ritual do culto aos caboclos, uma das variações do candomblé, e a expressão musical do samba de roda são formas sócio-culturais, religiosas e artísticas, assumidas pelas transformações afroindígenas e pelas implicações das técnicas de captura e “tecnologias de acesso” rituais inerentes às religiões afro-brasileiras. Assim, no atual Estado de exceção em que vivemos, em uma época de tantos fundamentalismos e intolerância religiosa, é quando mais devemos trabalhar em favor das religiões afro-brasileiras, ao fazermos notar que conosco caminham os ancestrais. Após a deflagração da colonização ocidental – e da escravidão, seu momento mais gritante –, depois da agência imperial luso-afro-baiana dos mercadores de escravos, da catequese dos jesuítas e do horror das senzalas, se dá o religare indígena de ancestralidades nativas de ameríndios e africanos. A partir de então, elaboram-se os núcleos das relações sociológicas das diásporas, em contextos específicos das florestas e terras americanas, como, por exemplo, nos quilombos e, mais atualmente, nos terreiros de candomblé. Os africanos eram designados genericamente pelo seu porto tradicional de embarque ou por uma identidade étnica cuja precisão era variável. Assim costumava-se, no século XIX, chamar genericamente de cabinda a qualquer escravo da África Central e nego mina a qualquer escravo da África Ocidental, em razão de o porto de embarque principal da escravaria dessa vasta região ter sido, até sua captura pelos holandeses em 1637, o castelo São Jorge da Mina, hoje no Gana. Entre os mina figuravam, por exemplo, os tapa (nupe), os hauçá e os nagô. Nagô correspondia ao que, a partir do final do século XIX, se passou a chamar de iorubá. Os nagôs provinham de várias cidades-Estado, frequentemente em guerra entre si, e as denominações mais precisas remetiam a essas cidades. Assim, os egbás eram os habitantes de Abeokuta, e os ijexás, os da cidade de Ilesha. Cada uma dessas cidades usava escarificações específicas no rosto, que se reencontram nas fotografias de escravos no Brasil (CUNHA, 2012, p.38).

Os quilombos3 são formas de associação contra-hegemônica no continente americano. “Em todas as Américas” existem experiências semelhantes, porém com nomes diferentes, de acordo com a região onde ocorrem: cimarrónes em muitos países de colonização espanhola; palenques, em Cuba e Colômbia; cumbes na Venezuela; e marrons na Jamaica, nas Guianas e Estados Unidos (MUNANGA, 2006, p.72). Segundo Kabenguele Munanga, pode-se definir quilombo enquanto: [...] experiência coletiva dos africanos e seus descendentes, uma estratégia de reação à escravidão, somada da contribuição de outros segmentos com os quais

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A palavra kilombo é originária da língua bantu umbundo, falada pelo povo ovibundo, que se refere a um tipo de instituição sócio-política militar conhecida na África Central, mais especificadamente na área formada pela atual República Democrática do Congo (antigo Zaire) e Angola. Apesar de ser um termo umbundo, constitui-se em um agrupamento militar composto pelos jaga ou imbangala (de Angola) e os lunda (do Zaire) no século XVII (MUNANGA, 2006, p.71).

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interagiam em cada país, notoriamente alguns povos indígenas (MUNANGA, 2006, p.71).

Localizados em áreas de maior isolamento, os povos bantus, jeje, iorubanos, entre outros, “mantiveram relação de aliança com índios” durante e após o “fim” da legalidade da escravidão ameríndia e afro-atlântica moderna. Mostras dos desenvolvimentos de formas de sociabilidades afroindígena, podem ainda ser encontradas na região do Recôncavo baiano, como nas comunidades: Kaonge, Dendê, Kalemba, São Francisco do Paraguaçu, Engenho da Ponte. Entre um sem-número de manifestações religiosas e culturais, evidenciam-se, também, as presenças: da casa de taipa e da cultura da mandioca; dos usos ritual e recreativo do cultivo do fumo; da pesca e coleta de mariscos (caranguejos, siris) e os usos da canoa e do jereré; das cerâmicas; da sabedoria das folhas da floresta e dos ventos nas ondas das águas do rio Paraguaçu que, atualmente, com a criação da Barragem Pedra do Cavalo, em 1985, transformou-se em rio de maré. A canção: “Maré encheu, /Maré vazou/De longe, /Bem longe/Eu avistei Irará// Minha casinha/Coberta de sapé/Meu arco e/Minha flecha/Minha cabaça/De mel// Irará, Irará...”, captada em uma das cerimônias estudadas, e encontrada também em torés de aldeias indígenas (como as dos Tupinambás da Serra do Padeiro), invoca esse lugar mítico chamado “Irará”. E, como outras canções, é mostra, no culto aos caboclos, da narrativa ancestral, a partir da qual a cosmologia dos caboclos intercala ameríndios, africanos e seus descendentes, através de uma realidade que recompõe as condições de possibilidade da sociabilidade eco-política, nos planos cosmológico e ontológico da experiência social. A elaboração de “uma” Irará é exemplo de formas de atualização narrativa do presente acústico do segredo sagrado, guardado na pele dos tambores e nos guizos dos maracás. A narrativa de uma realidade mítica revela-se através de sambas de reverência e louvor dos caboclos: “Não há quem possa avaluar/ O amor de um Pai/ O amor de uma Mãe// Eu sou bom filho/ E sei avaluar/ O amor de um Pai/ O amor de uma Mãe”; suas salvas: “Caboclo é/ A luz do mato é/ A luz do mato é/ Que clareia a minha aldeia”; sobre a selva: “Ó lá na mata/ Ó na Jurema/ É uma lei severa/ É uma lei sem pena”; suas cantigas e suas modas, seus sotaques e suas letras: “Não corte capim aí, capineiro/ corte quando eu mandar”; “Nós dois Ceará/ Nós dois Ceará/ Você não me pega/ Quando eu não te pego/ Você só me pega/ Quando eu te pegar”; e suas giras e gírias cósmicas. Nesse sentido, o complexo 4

afroindígena apresenta os caboclos – performers rituais do universo, narradores de cosmologias, cantadores encantados de mitos. Este canto de caboclo, infra, foi captado na Solene de Boiadeiro, festa de caboclo no Terreiro Raiz de Ayrá, em maio deste ano, durante meu trabalho de campo: Ê Caboclo Novo ajoelhado na Jurema. Ê Caboclo Novo ajoelhado na Jurema. Pedindo forças para Zambi lhe ajudar. Boa noite, companheiros de jornada; meus irmãos, meus camaradas não nego meu natural. Eu sou um Caboclo lindo, tão bonito que chega brilhar. Eu sou neto de Pau-Brasil. Eu sou filho de Tupinambá. De manhãzinha, quando amanhece é nessa hora que ajoelho e vou rezar. Olho pro céu e, dou meu grito, Dou graças a Deus por ser filho de índio. Ó Deus nos salve, Aldeia, Aldeia, Deus nos salve, Deus nos salve, esse nosso ganzuá, Deus nos salve, Aldeia santa, Salve todos os Orixás, Obaluaiyê e a Rainha do mar.

Das tribos e das aldeias ancestrais, hoje sob cercas de arame farpado, se manifestam os que primeiro tornaram possível o complexo étnico bantupi em direção às outras transformações advindas da chegada de jejes e nagôs. Como se vê na canção evocada, os ecos mnemônicos destas trocas e empréstimos, técnicas de captura e “tecnologias de acesso” (SANTOS, 20154) repercutem nas vozes e corpos dos agentes ancestrais e contemporâneos, e percorrem o anímico Recôncavo baiano – totêmico cenário natural/meio ambiente cultural – ecossistema ancestralizado pelas visões de mundo ecológicas ameríndias e africanas e pela cosmologia mitopolítica afroindígena dos caboclos. Infere-se daí que o candomblé é a instauração e o reconhecimento de uma imensa rede de políticas cósmicas e a reserva de 4

SANTOS, Laymert Garcia. Laymert Garcia dos Santos: 'Hoje, xamanismo é alta tecnologia de acesso'.http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/laymert-garcia-dos-santos-hojexamanismo-alta-tecnologia-de-acesso-17110386.( consultado 7 de abril de 2016).

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um corpus mitopoético ancestral, atualizado em estados específicos de agenciamentos performáticos e rituais. A religião e suas tradições estão no cerne da organização social e política dos povos transmitindo-se de geração em geração. Tal transmissão, ao ocorrer por meio de transformações, abre espaços para a emergência de formas de expressão únicas em seus determinados contextos. A Bahia de Todos os Santos e seu recôncavo, territórios originalmente ocupados por indígenas ameríndios, são palcos raros de extraordinárias experiências ligadas ao processo da diáspora afro-atlântica, bem como da “reexistência” ameríndia, tanto num plano das cosmovisões desenvolvidas na região, quanto nas expressões artísticas e culturais ligadas à cosmologia afroindígena. No alto curso do rio Paraguaçu, locus e unidade de análise de nossa investida etnográfica, Provavelmente, essas aldeias tinham sido fundadas pela gente de Álvaro Rodrigues que, reputado por uma cabilda de Aymorés como filho do sol, conseguira mais ou menos fixá-los n’aquele logar, aldeiando assim os gentios de uma horda tão famosa pelas suas crueldades, quanto pela constância em batalhar, defendendo a sua independência. O padre Gabriel Soares, porém, nos informa – que esta cidade teve sua origem num antiquíssimo engenho levantado por um mameluco, chamado Rodrigo Martins, que o construíra por conta própria e pelo Luiz de Brito e Almeida, proprietário do engenho da Ponta. O que me parece averiguado é que – o terreno ocupado agora pela Cachoeira fora primitivamente habitado por índios >: conforme nos assegura o historiador já citado” (MILTON, 1979, pp. 1213).

Assim, a constituição de uma cosmologia diretamente atrelada ao culto dos ancestrais é uma constante no universo investigado. A compreensão e reconhecimento desta constante postula a hipótese da agência da ancestralidade ameríndia em nosso campo. A pesquisa avançou no espaço percorrendo rituais e apresentações musicais no âmbito das cidades de Cachoeira, São Félix e Muritiba, localizadas às margens do rio Paraguaçu as duas primeiras; e a última, menos de cinco quilômetros destas. Neste complexo urbano, no interior do estado da Bahia, de muita riqueza histórica e reconhecido acervo de memória da expansão ocidental, também tem lugar a manutenção de práticas e tradições surgidas a partir das relações entre agentes africanos e ameríndios.

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Aqui, quero chamar a atenção para dois elementos que, de tão intimamente envolvidos, podem ter um prisma de observação comum: o culto aos caboclos e o samba de roda. O primeiro, experiência mítica e ritual de força cosmológica e simbólica bastante atuante na região; e o segundo, expressão musical de valores tradicionalmente ligados a festividades e celebrações locais (IPHAN, 2007). A “relação afroindígena” (GOLDMAN, 2014) presente em ambos processos pode ser identificada pela existência de vetores de transformações e continuidades derivadas dos caboclos – ancestrais coloniais5– na constituição do samba de roda enquanto arte musical em relações com o idioma ritual do samba-de-caboclo. Ou seja, procura-se aqui apreender o samba enquanto linguagem musical, mítica e narrativa do ancestral ameríndio (GOMES, 2007). A dicção sonora assumida tanto pela música, quanto pelas letras apresentadas pelos cantos, possui traços que revelam a conexão com a ancestralidade ameríndia, em estado de agenciamento de uma ação ritual e um conhecimento mítico que se perpetua nas casas de culto, como nos casos dos terreiros investigados: Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi6, em Cachoeira; Ilê Axé-Alaketu Oyá Funan, em Muritiba; e Raiz de Ayrá, em São Félix. E, também, em atualização nas apresentações e na sede do Samba de D. Dalva, grupo também conhecido como Samba de Roda Suerdieck. “Também, pela sua experiência e criatividade, Dona Dalva inseriu a percussão das tabuinhas de madeira que eram utilizadas para bolear os charutos na fábrica como característica da musicalidade feminina do seu grupo” (MARQUES, 2009; 2016). Tanto na clave do toque dos tambores no rito do culto ao caboclo, diferente das marcações rítmicas para os orixás africanos, quanto no “ostinato” das tabuinhas das baianas, observase a polirritmia e a formação de máscaras sonoras, à luz das experiências em estudo. Segundo Marques (2016), “O nome do grupo advém da antiga fábrica de charuto onde D. Dalva trabalhou como charuteira e onde criou seu samba com suas colegas de trabalho para participação em eventos locais, festas e celebrações religiosas, em novembro 1958”. E 5

Tupinambá, Sultão das Matas e Boiadeiro são, provavelmente, os caboclos mais conhecidos e influentes no universo afroindígena. Mas todos os caboclos são importantes ancestrais coloniais e assim os defino, por que estes só se tornaram ancestrais, de maneira específica, por conta das guerras pela colonização. 6 Sobre este terreiro de caboclo, em especial, ver etnografia em: SANSI, Roger. “Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras. Análise Social. VOl. XLIV. (1ª), 2009. p.139-160.

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como disse Mãe Preta: “O Suerdieck é uma outra marca de samba, é samba de baiana”7, principalmente quando observadas as transformações cosmológicas afroindígenas da ordem dos de Aruanda (os caboclos) no nosso mundo social e cultural por meio da religião e da música. A partir deste campo empírico, a investigação, da qual resultou o presente trabalho, procurou compreender as relações da agência dos encantes ameríndios, no contexto das casas de cultos espirituais de orientação afro-americana no Recôncavo baiano. Além de fazer com que possam ser mais bem percebidos os diálogos postos entre o candomblé de caboclo e a manifestação artística e cultural do samba de roda, a partir do exame etnográfico. De um ponto de vista que observa os agenciamentos indígenas na constituição das formas religiosas e artísticas do território, a experiência etnológica busca sondar a partir do parentesco e da religião a “interferência polifônica” e a polirritmia ancestral do rito religioso. Ao mesmo tempo, a análise se desdobra para observação do samba de roda – elemento socialmente compartilhado em traços de festividade e coesão social na comunidade em estudo nesta pesquisa (IPHAN, 2007; MARQUES, 2009; SANDRONI, 2010). Um dos aspectos mais distinto observado no estudo etnográfico do candomblé de caboclo é o ato ritual do benzimento, também chamado “sacudimento”, a partir da mobilização das forças de cura de folhas específicas, como: “quiôiô”, “peregum”, “aroeira”, “guiné”, “capianga”; além do uso da alfazema. De cantos evocados e letras apresentadas pelos ancestrais atualizados nos corpos dos membros da sessão do culto, constata-se a atuação das vozes do público num responsório de muito respeito ritual e muita graça, em aliança com o aprendizado de lições morais de uma ética própria. Observou-se, também, o caráter festivo e ritualístico, regado de muito samba de e para caboclos, que é e não é samba de roda. Os elementos etnográficos e bibliográficos (aspectos prático-teóricos etno-bibliográficos) contribuem simultaneamente, cada um a seu modo, para elaboração do problema da “simetrização” e “irredutibilidade” afroindígena. Estes elementos são elaborados em

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Em relação ao samba de roda Filhos do Caquende. Depoimento colhido em entrevista, fevereiro de 2016.

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relação à narrativa sociológica dos dados no campo, que organiza os fundamentos da hipótese de trabalho frente ao teste posto pela inflexão etnológica em direção a redação dos resultados. Em outras palavras, ao pensar no que melhor exemplifica o núcleo diferencial desta forma de “alteridade radical” afroindígena (caboclo-orixá/ameríndioafricano, p. ex.), chamo atenção para um diálogo, observado no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi, entre o caboclo Tupinambá e a cabocla Jurema. Enquanto dançavam em frente aos atabaques, os caboclos se revezavam no canto: JUREMA – “Eu não sou jeje/ Eu não sou nagô/ A minha nação/ é Okorokô”. TUPINAMBÁ – “Dói, dói, dói, dói/ um amor faz sofrer/ Dois amor faz chorar/ Quem é você/ pra deitar em minha cama? [...]” JUREMA – “Deixa amanhecer/ Deixa amanhecer pra ver/ Deixa amanhecer pra ver/ Deixa amanhecer”.

Nos diálogos, aparentemente, estão contidas estas falas (en)cantadas que se apresentam enquanto dados muitos valiosos. Primeiro, a autodeterminação de que o caboclo não é jeje nem nagô, é um achado brilhante para a hipótese que estou testando. O que, por si só, atesta a validade dos dados encontrados enquanto instrumentos para operar e avaliar os vetores da desconstrução da mestiçagem. Por meio do reconhecimento empírico da “irredutibilidade” dado pelo campo e da operação do princípio da “contramestiçagem”, resultante da leitura dos materiais ameríndios e afro-americanos sem reduzirem-se a sínteses ou a reduções da interpretação da “relação afroindígena”, enquanto possibilidade de aferição, a posteriori, da hipótese da pesquisa e o encontro com resultados que avaliem a validade da tese aventada pelo trabalho. Pode-se postular, ainda, a interpretação de uma narrativa da “conquista” que se entrevê nas palavras dos caboclos: o Tupinambá quando diz que o amor “dói, dói, dói [...] faz sofrer, faz chorar” e a Jurema que responde dizendo “deixa amanhecer pra ver”. A sugestão desse clima se apresenta sob a forma de desafio, quando Tupinambá pergunta “quem é você pra deitar na minha cama? ”, a resposta de Jurema parece ecoar de dentro do diálogo novamente, em tom ainda mais provocativo: “Deixa amanhecer pra ver/ Deixa amanhecer pra ver”. Com a demonstração da validade da leitura sociológica que tem marco conceitual a partir da noção conceitual da “relação afroindígena”, o aporte teórico e metodológico 9

transformacional das religiões afro-brasileiras (BANAGGIA, 2014; GOLDMAN, 2008) indica caminhos para compreender, no nosso caso, as transformações bantupi/jeje-nagô. Essa “relação” é momento privilegiado de nosso campo empírico: o candomblé de caboclo. O que apresenta um campo de probabilidades em face de conclusões provisórias. Mas que, no entanto, nos é válida a categoria e o que ela representa para testar a possibilidade da “irredução” (cf. Latour). O que faz lembrar que a identidade é uma dimensão do fenômeno, mas que há outras; exatamente como se quer demonstrar com este trabalho, no qual apresento a ancestralidade afroindígena como alternativa de interpretação à lógica das identidades negra ou indígena racializadas e marcadas pelo estigma, entre outros elementos. Nesse sentido, o candomblé de caboclo é entendido enquanto ponte de “processos criativos de (trans)formação de coletivos” (LIMA; SZTUTMAN, 2013) afroindígenas, em sua variação contínua de formas e constituição capaz de agregar humanos e não-humanos, por meio de agenciamentos específicos. É isso que ele quer dizer quando refere que as diferenças não podem ser só “respeitadas, ignoradas ou subsumidas” (Latour, 1996, p.102-103), elas devem ser reconhecidas como capazes de gerar novas realidades: a função do antropólogo não seria só descrever outros discursos, outras cosmologias, mas entender como a partir desses discursos somos capazes de incorporar os eventos da história — que são exteriores a esse discurso. Claro que então não podemos falar em termos de “ontologia”, mas de “epistemologia”, uma teoria do conhecimento, não uma teoria do ser (SANSI, 2009; p.156).

No entanto, ao trazer Roger Sansi ao debate com todas as ressalvas que tenho, este trabalho apresenta-se enquanto “uma recusa à oposição entre a ontologia, domínio do ser e a política, entendida enquanto arte do fazer (cf. LIMA; SZTUTMAN, 20138). Na articulação de uma análise cosmológica – descrição dos diferentes seres do cosmo e das interações entre eles”, com as formas sociais, essa interpretação se torna possível do ponto de vista sociológico, a partir do momento em que através das cosmopolíticas dos ancestrais, observam-se as relações e transformações implicadas no parentesco afroindígena, no culto aos caboclos e na arte do samba de roda, tomados enquanto fontes de compreensão das potências indígenas. E que, ainda que não sejam reconhecidos como “habitantes” do território do Recôncavo da Bahia atualmente, ao menos no universo investigado, os índios continuam presentes, enquanto os legítimos “donos da terra”.

LIMA, Tânia S.; SZTUTMAN, Renato. ST07 Cosmopolíticas ameríndias: descrevendo processos de (trans)formação de coletivos. ANPOCS. São Paulo, 2013 8

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Mito e ritual, nos apresentam a genealogia do parentesco afroindígena, através da observação do culto aos caboclos no Recôncavo da Bahia, repositório da herança e da ancestralidade africana e, principalmente, onde variadas expressões de sua religião se perpetuaram, sendo o universo de investigação ligado a princípios imanentes às práticas sociais que estabelecem relações sócio-cosmológicas a partir da ancestralidade. Se o contraste ou as conexões revelam princípios correspondentes entre as formas que os ritos apresentam, então observa-se um modus operandi que funda o mito, no qual diferença e criação operam uma perspectiva na qual a transformação é, em si, seu próprio método. O caboclo que é ameríndio e africano, formado por essa família afroindígena que tem nos ancestrais seus vetores de diferenças e continuidades, nos apresenta os dados necessários à realização de uma “antropologia simétrica” da qual derivamos a “sociologia dos móveis”, enquanto posição epistemológica orientadora da narrativa sociológica derivada da realização do trabalho etnográfico. Nesse sentido, o culto aos caboclos – “tradução e transcriação etno-filosófica do pensamento ameríndio” – é uma “variação das variações” do candomblé. Por ora, este trabalho quer ser apenas uma introdução ao contexto e ao método das transformações indígenas nos candomblés do recôncavo da Bahia, e “apresentar sugestões para a consideração de um campo de investigação, o tradicionalmente chamado das religiões afro-brasileiras, com base num novo modo de encará-las: uma perspectiva transformacional que as encara como versões umas das outras” (BANAGGIA, 2014, p. 58). Em aliança com a observação da influência do culto aos caboclos em fenômenos sociais mais amplos como o samba de roda é que este trabalho se caracteriza pela tentativa de uma ontografia dos caboclos realizada através de suas letras, mas também pela compreensão do mito e das particularidades rituais do culto. Partindo da crítica pós-moderna ao primado da representação, vários autores, como por exemplo Marilyn Strathern (1991, 1992), não se contentam em substituí-la por uma reflexividade pessoal que apenas nos mergulharia em nós mesmos: o fato de os outros não serem transparentes não significa que eles sejam opacos ou que sejamos nós os transparentes; é apenas por meio de agenciamentos entre fenômenos de diferentes coletivos que a antropologia é colocada para funcionar de modo translúcido, lateral e indireto, uma espécie de cartografia de territórios existenciais – tanto os já existentes como aqueles em vias de existir (BANAGGIA, 2014, p.58).

Para tanto, toma-se enquanto estudo de caso o culto aos ancestrais (os caboclos) no contexto do candomblé do Recôncavo baiano, com atenção especial para os rituais nas 11

cidades de Cachoeira, São Félix e Muritiba. Os ritos investigados apresentam o regime de contato, comunicação e contraste com o ancestral por meio da oferenda, do sacrifício, do transe e do sangue cumprindo um papel de conexão com a natureza, em sequências prescritivas de normas rituais. Além da participação da música em pelo menos duas ordens: uma no sentido Terra Aruanda, e outra no sentido inverso. O complexo percussivo do candomblé (Rum, Rumpi e Lé) é apoiado pelos maracás, pelos caxixis, pela jurema, pelas sinetas, pelos gãs, pelas palmas, pelo canto em português, pelo recurso mnemônico das técnicas corporais e pela capacidade xamânica das mães de santo e ogans. E, em alguns casos, até pandeiro e viola participam do culto aos caboclos, como se vê pelo seu gosto pelos instrumentos do samba de roda em várias cantigas: “Ó Pandeiro, Ó Viola”; “Tô sambando/ sem minha Viola/ Tô sambando/ sem minha Viola”. Os usos de formas naturais (animais e vegetais e minerais), como o couro, as frutas e as pedras, presentes nos sertões e nas matas que os caboclos atravessam, e a presença das folhas espalhadas pelo chão do caminho, são passagens entre Aruanda e as cabanas dos salões dos abassás. No Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi, canta-se: “Ele vem pra aldeia/ ele vem sorrindo/ é a chegada/ do caboclo lindo”; “Aê, a / Já chegou/ na aldeia dele/ Já chegou/ na aldeia dele”. Recordo-me que, quando da chegada dos caboclos de Aruanda, ou seja, do “outro mundo”, no culto do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan, canta-se: “Aê, já chegou macinganga de cariolé, Tupinambá é de cariolé”, mas é claro que sobre esse translado pouco se pode dizer. Descobri, no entanto, por um dos ogans da casa, que essa cantiga narra a saída do caboclo da aldeia para o terreiro. Passagem que se dá através dos ritos e sons que escorrem pelas janelas, pelo teto e transbordam e transformam os ambientes deixando uma penumbra de névoa e vapor que se desprende das velas acessas. É claro que, para analisar um fenômeno tão complexo, não há como partir, senão, da tentativa de compreender o diálogo entre os sistemas cosmológicos que são feixes das formas culturais tupinambá, no plano ameríndio, e da cultura africana bantu/iorubá represada pela diáspora afro-atlântica em terras latino-americanas, em especial no Brasil, e de maneira bem caraterística na Bahia. Como observa-se no caso do Recôncavo baiano, região-etnográfica, locus de investigação etnológica, esta condição é resultante histórica e moderna consequência da política colonial de invulgar contribuição na constituição das narrativas cosmológicas ancestrais das religiões afro-brasileiras. 12

A figura do caboclo atualiza-se através da experiência de ativação de uma temporalidade verbal da linguagem musical e, idioma gestual do samba e da guerra, em sua performatividade no instante do transe e da possessão, por meio da condução xamânica da ancestralidade no processo de sua efetuação no presente. O que pode ser observado, tanto do ponto de vista da narrativa da identidade nacional “oficial” da Independência da Bahia ter sido deflagrada por índios/caboclos (indígenas e africanos), nas margens do Paraguaçu expulsando portugueses em 25 junho de 1822, quanto da perspectiva da variação das vozes ancestrais e do corpo natural do ameríndio, em trânsitos cósmicos e políticos. Através do ritual de “dar de comer ao santo” assenta-se, no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi, a imagem cívica exposta na Câmara Municipal de Cachoeira e utilizada no desfile que comemora o acontecimento que representa a exaltação “Caboclo” da Independência da Bahia, festejado anualmente no dia 2 de julho. Ao mesmo tempo em que este é servido de rituais de oferendas e sacrifícios durante semanas dos meses de abril e maio. A invocação desta entidade elabora um forro sócio-político e cosmológico poderosíssimo (o mito do guerreiro) sobre o culto desta casa em especial, onde se escuta, durante as suas festas, os hinos nacional e da cidade de Cachoeira como emblemas de uma identidade ancestral que reivindica a autonomia da terra, sob a forma de uma nacionalidade moderna para o contexto do território, no interior do estado-nação chamado Brasil. Estes ancestrais invocados são membros de famílias indígenas presentes no território. Como os tupinambás, população que anteriormente ocupava a região do Vale do rio Paraguaçu, sob a forma de vários aldeamentos, que percorriam as terras ao longo do rio e as campanas sobre o vale; ou, os aymorés, tribo vencida pelos tupinambás, da qual descende um dos mais venerados e respeitados caboclos, o “Sultão das Matas”, que também se fazem sentir dentro dos sistemas simbólicos ketu e jeje-nagô, por meio da influência bantupi, com a orientação do rito sob as referências das tradições congo-angola. Os contornos do culto bantu, orientado pelos padrões identificados nas casas de culto da nação angola, introduzem o ameríndio no jogo de danças ketu e jeje-nagô. A possibilidade de se cultuar o ancestral, e não apenas os orixás africanos, abre um canal com Aruanda, possível anagrama epigramático de Luanda, ou, quem sabe, até mesmo um planeta (uma lua no Orun?) onde vivem os caboclos, esses herdeiros da ancestralidade orgânica da terra. Essas partes do todo que não se dissipam quando a matéria se desfaz. Emanuelle Tall 13

(2012, p.82), comenta que: “o caboclo pertence ao mundo intermediário dos ancestrais que ligam o mundo além com o mundo humano”. Assim seria “Aruanda”, um inframundo do plano espiritual, ao mesmo tempo em que a autora diz que “o mundo dos caboclos é ilimitado”. Como sabemos que Xangô foi um rei (aláàfim) de Òyó ou Oxóssi, um rei de Ketu, ambos tornados não-humanos, deidades que encontram ou escutam o xamã, o cantador que os invoca, podemos, então, considerar que o fundamento para compreensão ritual do ancestral caboclo, diferentemente do orixá que é pura força espiritual, e, em especial, do orixá que não tem origem num ancestral africano, é o reconhecimento da manifestação das forças dos Encantados: espíritos da terra, das matas, das águas, das pedras e das esquinas. Portanto, este trabalho investiga o rito dos cultos aos caboclos com o intuito de contribuir para a constituição conceitual da ancestralidade ameríndia e seus agenciamentos no contexto da estabilização de um campo de estudos das relações afroindígenas no Recôncavo da Bahia de Todos os Santos, com a observação da agência de uma poética da narrativa que atualiza o mito ameríndio aliada a potência cosmopolítica dos ancestrais nas religiões afro-brasileiras. ARQUEOLOGIA E GENEALOGIA DO ANCESTRAL: CANDOMBLÉS E SAMBAS DE CABOCLOS Sambaquis de 2.800 anos AP (até o presente), o conjunto denominado Sambaqui da Pedra Oca, identificado por Valentin Calderón, localizado no bairro de Periperi, subúrbio de Salvador, indica sinais das primeiras ocupações humanas na Bahia de Todos os Santos (RISÉRIO, 2007) e, consequentemente, em seu Recôncavo: Eram Kariri os povos Tremembé, Janduí, Kipeá, Sapuya, Rodela (ou Tuxá), Paiaiá, Kamaru, Dzubukuá, Icó, Curema – todos eles classificados na época colonial como Tapuias. O termo tapuia era utilizado pelos índios da família Tupi para classificar outros povos indígenas e significa “intruso, bárbaro, inculto”. O uso deste nome pelos Tupi não deixa de ser irônico, pois foram eles que, [...], expulsaram do litoral os Tapuia, que já viviam aqui há pelo menos 2 mil anos (GOMES, 2007, p. 1).

Sabe-se que esses povos indígenas foram chamados tapuia no final do tempo pré-colonial. Daí em diante, F. Cardim (Tratados da Terra e Gente do Brasil) indica os índios quirimurés, ou quirimurás, como os que primeiro enfrentaram o avanço dos tupis litorâneos. Grupo do qual deriva o topônimo da região – Kirymuré. Ainda no século XVI,

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Gabriel Soares (Tratado Descritivo do Brasil em 1587) tem a identificação do termo “tapuias” enquanto a denominação geral que os tupis davam a índios não-tupis (RISÉRIO, 2007). Seguidos pelos tupinaés na ocupação do território até a consolidação da presença dos tupinambás que se dispersam quando da invasão dos portugueses. Quem tomou a terra dos tupinaés, praticamente dizimados na Bahia de Todos os Santos, não foram os portugueses, mas os tupinambás acionando a sua implacável máquina de guerra como bordunas, canoas coloridas e flechas incendiárias. Da mesma forma, o comércio transatlântico de escravos foi altamente lucrativo também para os negros da África, que dele se beneficiaram em larga escala, produzindo até formações estatais, como o Estado do Daomé, que enviava embaixadas ao Brasil, na tentativa de monopolizar mercados para a exportação daomeana de escravos (RISÉRIO, 2007, p. 395-396).

É claro que, as ambiguidades luso-afro-ameríndias de tais circunstâncias e elementos gentios, se opunham aos mecanismos de controle moral e social da Igreja e do Império português. Contudo, mesmo em 1842, ainda era possível a um viajante estrangeiro, no caso, o cônsul inglês, James Wetherell, ser capaz de notar que, sobre os nativos das terras da Bahia de Todos os Santos, suas “nações, quando da descoberta da Bahia, só podiam apontar para a tribo dos Tapuias, os quais, por sua vez, foram guerreados pelos Tupinambás que, segundo R. Southey9, eram os donos do país quando este foi descoberto” (WETHERELL, 19_, p.14). Os tapuias eram indígenas que faziam parte dos grupos étnicos que ocupavam o interior da Bahia e que se dividia em inúmeras herdas da família gê, tronco de numerosas tribos, em especial no Maranhão e Ceará. Ao mesmo tempo em que, os tupinambás são membros da grande nação de índios do grupo tupi-guarani, distribuída ao longo da costa oriental sul-americana, desde o atual estado de São Paulo até a foz do Amazonas. Tupinambá é o etnônimo de grupos locais na Amazônia, Maranhão e espalhados por toda costa atlântica da América indígena, inclusive no Rio de Janeiro (CUNHA & CASTRO, 1985). Em sentido lato, define todos os grupos de língua tupi da costa, em particular os tupiniquins. [...] também grande parte da esfera religiosa fica reservada a Olorum e aos Orixás, ainda que estes estejam encobertos com mantos de origem cristã. E a melodiosa língua Tupinambá imprimiu seu selo indelével à topografia, flora e fauna baianas, notando-se ainda neste campo, certa influência da língua do Cariri [...]. Além disso, muitos elementos folclóricos e inúmeras indústrias populares e costumes remontam à origem indígena (OTT, 1944, p. 1).

Numa recomposição circunscrita frente a amplitude deste universo, os tupinaés (tupinais), uma tribo indígena antiga pertencente ao grupo etno-linguístico tupi-guarani, também 9

Robert Southey (1774 -1843), poeta e historiador inglês que escreveu uma História do Brasil publicada em Londres entre 1810 e 1819.

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ocupava o estado da Bahia e encontravam-se para o lado do sertão, a oeste dos tupiniquins e tamoios. Os aymorés, também chamados botocudos, ocupavam os estados da Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais. Segundo J. Wetherell, por volta de 1851, em Salvador, “índios botocudos são trazidos algumas vezes à cidade por missionários italianos” (WETHERELL, 19_, p. 59). Sobre os aymorés, há um detalhe interessante indicado por J. Teles dos Santos (1995, p.146), quando este diz que o caboclo Sultão das Matas é descendente desta tribo, o que me faz recuperar uma cantiga do Sultão das Matas, no terreiro Ilê Axé Alaketu Oyá Funan, quando este diz: “Tupinambá, eu te peço, [...]/Saia do seu lajedo/ de vez em quando/ passe por aqui”; mais uma mostra de como as cantigas dão conta das formas de sociabilidade entre ameríndios. Na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, de autoria de Nei Lopes, o verbete caboclo versa sobre a “dimensão simbólica extremamente importante” nas experiências de trocas e alianças entre indígenas africanos e das Américas. O termo indica, no “candomblé de caboclo”, que essa noção diz respeito a “cada uma das entidades principais, reverenciadas como ancestrais dos primeiros habitantes da terra brasileira”. Nota-se também, que o nominativo se refere à “designação de cada uma das entidades ameríndias da linha de Oxóssi”, para a umbanda. Na mina, qualificação das casas de culto de origem africana no Maranhão, “as entidades tidas como “caboclos” não são consideradas nem índios nem eguns, embora tenham tido vida terrena e ligação com grupos indígenas” (LOPES, 2011, p. 155). Além desta distinção acerca da definição em contextos religiosos específicos, observo, desde já, algumas variações de como e, em quais configurações aparece o agente em investigação nesta pesquisa. Seguindo as trilhas deixadas pelo autor, pode-se comentar um pouco mais sobre o contato, em terras americanas, entre as culturas indígenas nativa e com origem no continente africano. Visto que nem só de campo é feita a pesquisa, mas substancialmente do campo, as repercussões deste contato são tão notáveis em experiências empíricas quanto em processos formativos de cunho cosmológico ou ontológico, como o religioso ou artístico. Segundo Nei Lopes (2011, p. 349), “no Brasil, essa repercussão é evidente na umbanda, no candomblé de caboclo e em diversos folguedos populares”. O antropólogo Vagner Gonçalves, assim define o rito aos caboclos: 16

O culto aos candomblés de caboclo, tão presentes na religiosidade dos bantos, deu origem ao candomblé de caboclo, considerado por muitos adeptos como uma variação do candomblé de angola, no qual os deuses indígenas assumiram o papel central, com o mesmo status dos orixás. Os caboclos são os espíritos “donos da terra” e representam os índios que aqui viviam antes da chegada dos brancos e negros. Quando baixam nos terreiros, vestem-se com cocar de pena, dançam com arco e flecha, fumam charutos e bebem vinho. Geralmente falam um português antigo e quase incompreensível. Muitos deles são extremamente católicos e suas preces e louvações lembram os tempos coloniais de sua catequese. Por serem conhecedores da medicina local e dos segredos da mata, são famosos como curandeiros e feiticeiros. Os caboclos, apesar de serem brasileiros e ressaltarem essa característica nas cantigas (nelas se dizem da “nação brasileira”) e nos nomes que carregam (de povos indígenas brasileiros como Tupi, Tupinambá, Aimoré, Guarani), quando narram suas origens se apresentam como habitantes de uma “aldeia mítica” (como “Hungria” e “Visala”), não-localizável no tempo e no espaço. Em alguns casos, seus nomes fazem referências à natureza cultuada pelos índios, como caboclo Sol, Lua Nova, Estrela, Mata, Tomba-Serra, etc. (SILVA, 2005, p. 87-88).

Sem esquecermos de Aruanda, principal referência a esta terra mítica dos caboclos, podese começar a considerar uma relação na qual apresenta-se o samba-de-caboclo em um complexo de relações afroindígenas “unido também ao samba de partido-alto das tias baianas, formando o elo entre festa e orixá, combinados com muita comida e lembranças da chula, das umbigadas do samba de roda de Santo Amaro, Cachoeira e Muritiba, terras do açúcar, do tabaco, do Recôncavo baiano” (SABINO, LODY, 2011, s/p.). Para esses autores, o samba-de-caboclo É a modalidade de samba que relata um processo de nacionalização com base nas interpretações e observações sobre a vida dos indígenas, seus procedimentos e hábitos culturais. Integrado ao chamado candomblé de caboclo, é uma verdadeira simplificação litúrgica dos rituais de candomblés de nação, aqueles identificados como de matriz africana: ketu, jeje, angola, angola congo. O samba de caboclo é a louvação da liberdade do dono da terra, da terra brasileira. É a interpretação dada pelos segmentos de matriz africana daquele que representa em síntese o ancestral brasileiro. Os rituais dos candomblés de caboclo seguem a formação da roda, conforme o xirê dos candomblés de nação. Há uma ordem nas danças, mantendo sempre a roda em organização hierárquica como nos demais terreiros. O samba, nesse caso, é dança de liturgia como acontece com as diferentes coreografias da roda dos orixás. Cada caboclo mostra seu estilo, sua história. Por exemplo, o Capangueiro se apresenta todo vestido de couro, lembrança do vaqueiro nordestino, e o vestido de pena lembra como os índios adornam o corpo. Contudo, o que os une é a dança vigorosa com umbigada, estabelecendo diálogos coreográficos com os atabaques (SABINO, LODY 2011, s/ p.).

Por outro lado, se ao investigar as formas de desenvolvimento da colonização, constata-se que esta se deu, a partir dos “piores elementos da metrópole”, como aponta Manuel Querino (2013, p. 13), logo “o índio insubmisso revoltou-se contra a tirania e injustiça” frente as lutas e o trabalho dos jesuítas, ainda à época de Tomé de Souza, primeiro govenador das possessões coloniais. Sobre esta época, Guerra Junqueiro (apud QUERINO 17

2013, p.13) nos informa que: “Mais, entretanto, que negociar as pazes, faça o governador por colher às mãos alguns dos principais que tiverem sido cabeças dos levantamentos, e os mande enforcar por justiça nas suas próprias aldeias”. O que nos faz entender o culto aos caboclos enquanto uma cosmopolítica dos ancestrais coloniais e que ainda Poderíamos também chamar essa cosmopolítica de um pensamento, ou de uma tradição intelectual: a tradição-tradução especificamente americana do pensamento selvagem. Para chamá-la “pensamento”, porém, é preciso que sejamos capazes de, imitando ao nosso modo os índios (que não é o modo deles), pensar o pensamento como algo que, se passa pela cabeça, não nasce nem fica lá; ao contrário, investe e exprime o corpo da cabeça aos pés, e se exterioriza como afeto incorporante: predação metafísica, canibalismo epistêmico, antropofagia política, pulsão de transformação do e no outro (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.156-157).

Portanto, a partir desta passagem da cosmologia à cosmopolítica, este trabalho revela muito do meu interesse acerca das implicações filosóficas da antropologia contemporânea para as ciências sociais, bem como, as transações entre cosmologias e ontologias ameríndias e africanas, no bojo das relações sociológicas, originadas com a colonização e a diáspora afro-atlântica, que atingiram as Américas a partir do século XV. O culto aos caboclos, fenômeno originado da circulação cosmopolita em terras americanas, em especial, de vetores ibéricos e africanos, resultante da intersecção entre formas de sociabilidade diversas fundadas na diferença cosmológica e ontológica, é tomado aqui, de um ponto de vista epistemológico capaz de revelar práticas afroindígenas ao considerar o rito uma forma própria da expressão de uma “ecologia da mente” (cf. Bateson). Experiência de “continuidade entre os mundos da informação e da energia (definidas por uma mesma ontologia da diferença), e defendendo a unidade, no que muitos ainda veem como profissão de misticismo, entre mind e nature” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.152). Esta análise, extrapola os contornos dos Estudos Culturais e, insere, no contexto dos “Estudos Afro-brasileiros”, uma expressão sociológica das linhas de “continuidade epistêmica com as formas de pensamento ameríndio”, em relação a ontologia africana. Para, então, compreender as implicações sociológicas do parentesco afroindígena e da “economia cosmológica” derivadas das relações sociais no contexto do culto aos caboclos. Tal relação, reflexiva e, por vezes, recursiva, demarca o parentesco enquanto descritor de uma sociologia afroindígena e de uma “economia cosmológica” entre orixás e caboclos no âmbito da configuração sócio-religiosa das casas de culto aos ancestrais, no Recôncavo 18

baiano. Assim, reconhece-se o culto dos caboclos, enquanto expressão eco-política cósmica de uma ontologia ancestral, suporte dinâmico e variação ritual do culto aos orixás, onde a ancestralidade ameríndia transforma-se em “força ontológica” que vivifica um conteúdo espiritual de outra ordem, que se transfigura a partir das trocas e da reciprocidade afroindígena. O que constitui um meio ambiente cultural onde a dinâmica do complexo afroindígena parece dar conta da variação de perspectivas, ora culto aos caboclos, ora culto aos orixás; e das transformações e atualizações cosmopolíticas, ao entendermos que cada “roça” de candomblé, cada terreiro é uma aldeia, uma floresta, uma mata, até mesmo os urbanos. Num regime epistemológico capaz de expor (cf. Deleuze e Guatarri apud VIVEIROS DE CASTRO, 2012) “o desequilíbrio perpétuo entre significante e significado”, entre os materiais, no nosso caso, ameríndios e africanos, causa-se um impacto que desloca a hermenêutica da antropologia interpretativa da descrição densa – antes semiótica – exigindo agora, não só, a observação da linguagem, ou, de sua transformação, mas sim, dos vetores da “multiplicidade rizomática” das estruturas rituais do totemismo, do sacrifício e do “devir afroindígena”. O que leva, a presente investigação, a reconhecer a alteridade cosmológica para além da linguagem, ou seja, indicar seu núcleo fenomenológico da assimilaridade na ontologia das diferenças indígenas. Em uma etnografia encontrada nos arquivos da Revista Afro-Ásia, editada pelo CEAO/UFBA – Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia – escrita por uma aluna do curso de iorubá, chamada Carmem Ribeiro, os rituais ligados a cosmologia ameríndia Assemelham-se em grande parte, ao candomblé tradicional, introduzido pelos africanos, existindo pequenas diferenças quanto aos rituais, danças e cânticos; porém no que tange ao acompanhamento musical, ou seja, ao toque dos atabaques, agogôs ou cabaças, há quase que uma igualdade entre rito africano e aquilo que se denomina festa-de-caboclo (RIBEIRO, 1983, p.60).

Entretanto, o samba de caboclo, aspecto sonoro que remete “ao acompanhamento musical, ou seja, ao toque dos atabaques, agogôs ou cabaças” no rito do candomblé de caboclo, é um dos pressupostos cosmológicos afroindígenas do ritual, ao apresentar a linguagem mitopoética enquanto demarcador desta ontologia, no conjunto das formas de sociabilidades humanas e não-humanas cósmicas, diretamente ligado às cosmopolíticas dos ancestrais coloniais. Essa rede cósmica posta entre os ancestrais ameríndios e africanos (e entre nós e eles) no interior das formas sociais da diáspora afro-atlântica, ganha 19

corporalidade nas vozes presentes nos cultos da umbanda, candomblé, catimbó, jurema, culto de egunguns ou na religião dos Encantados, como no caso dos grupos de Tupinambás contemporâneos. Logo, essa forma reflexiva (as)simétrica e sócio-cosmológica, por vezes, reversa de religião/xamanismo – culto aos ancestrais – é, através da atualização da ancestralidade, uma força ontológica no plano das sociabilidades ameríndias e africanas, como no caso dos bantus ou dos iorubas, e, mais atualmente, de seus descendentes. Num esforço de se opor ao poder nominativo e normativo do formalismo teórico e conceitual do academicismo do Ocidente, essa forma de filosofia da natureza, caracterizada por um projeto eco-político, ou seja, no contexto que então investigamos, o reconhecimento da politização da Natureza, revela uma narrativa etnográfica e sociológica da fenomenologia dos móveis religiosos e artísticos atrelados ao parentesco. Como, só agora, posso comentar passados alguns anos de ter presenciado um Marujo – entidade cosmológica ligado ao culto aos caboclos, mesmo sendo caracterizado como um exu na umbanda – “pegar”, incorporar num visitante na Casa do Samba de Roda de D. Dalva, durante uma apresentação do Samba de Roda Suerdieck. Chego à conclusão de que essa potência de atualização da ancestralidade afroindígena que é o samba, enquanto arte e linguagem, é um vetor de comunicação entre esses mundos – religioso e artístico, humano e não-humano – e é este atributo xamânico do samba de roda, que esta pesquisa quer atestar, em suma. COSMOLOGIA AMERÍNDIA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

A partir da elucidação etnográfica, a narrativa sociológica do rito afroindígena do culto aos caboclos é o relato do comércio cosmológico e transporte de móbiles rituais e estéticos no interior das transformações da cosmologia africana, a partir da diáspora afro-atlântica, com a colonização, em função da dimensão humana, natural e orgânica constitutiva das cosmovisões nativas das terras ameríndias. Como aponta Tall (2012, p. 79) “a observação atenta de inúmeras casas de candomblé na Bahia mostra que o papel do caboclo, na dinâmica do dia-a-dia, é bem mais importante do que parece à primeira vista”. Para Emanuelle Tall (2009, p.79) “suas características de autoctonia, sabedoria ecológica e de grande teimosia fazem dele [o caboclo] um intermediário privilegiado nas relações humanas com as forças do além”. Nesse sentido, os ritos e mitos são aqui tomados por recursos práticos e simbólicos para que a partir da ativação e efetuação do parentesco, a 20

atualização da ancestralidade e expressão de linguagens artísticas como a música, estes sejam entendidos enquanto “cimento integrador do corpo social”. Como ensina a cantiga para o orixá Irôko, também chamado Tempo, recolhida na casa Ilê Axé Alaketu Oyá Funan e, também, escutada no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi: “Olha aê, Tempo/Olha aê, ah.../Olha aê, Tempo/ Sua bandeira tá no ar”. Então [...] a inserção do caboclo na estrutura mitológica dos cultos do candomblé. Inserido numa lógica hierárquica tal como foi definida por Dummont (1978), i.e., como estratificada e englobante, o caboclo desenvolve vários papéis que o ligam às divindades africanas Katendê (deus das folhas e plantas medicinais), Oxóssi (deus do mato e da caça), Exu (mensageiro e divindade da soleira) e aos ancestrais e Egunguns (TALL, 2012, p. 79).

No contexto religioso e artístico do Recôncavo baiano, o tempo é quem, e o quê, num plano mais dilatado da história, elabora o núcleo de sentido no qual se pode encontrar o dado constitutivo da “relação afroindígena” (GOLDMAN, 2014) e o caráter de “transportabilidade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 348) das transformações e correspondências cosmológicas ameríndias. A percepção dos caboclos de um ponto de vista ritual, no terreiro, espaço sagrado em seus componentes humanos e divinos, alcança as relações entre mito e linguagem, entendidos enquanto sistemas simbólicos entre instrumentos de comunicação e de elaboração de conhecimento. Ao passo que, compreende-se aqui, os caboclos enquanto agentes do mito e geradores de signos, bem como dos ritos capazes de trazer significação ao mundo. Além de ser o dono do solo e da terra como território, o caboclo é também o dono do mato, da floresta selvagem que ele domina perfeitamente após longos séculos de convivência. Uma lenda conta como os escravos vindos da África recuperaram-se da ignorância do novo meio ecológico em que se encontravam na chegada ao Brasil, mantendo contato e respeito mútuo com os indígenas. Dizse que o índio colocou à disposição do negro sua sabedoria das folhas. Assim, o negro conseguiu manter as relações com a natureza e suas divindades, trocando as plantas africanas, que não existiam aqui, por plantas indígenas. Sábio no uso medicinal das plantas e na linguagem dos animais selvagens, o caboclo tem uma familiaridade com os elementos naturais que o aproxima das divindades africanas Oxóssi (deus da caça e do mato) e Katende (divindade das folhas litúrgicas e medicinais) (TALL, 2012, p.81).

Os caboclos, são aqui apresentados enquanto ancestrais ligados ao território, os “donos da terra”, antepassados autóctones que dialogam diretamente com os sistemas de sociabilidade africanas nos quais “a autoctonia prevalece na maestria mística da matéria terra, sobre as relações de força política” (TALL, 2009). A chefia da terra o faz ser consultado e saudado em face das demandas dos “produtos da terra”, assim como em “trabalhos cultuais”. Corroboro com Emanuelle Tall no que se refere à sua perspicaz observação de que 21

como ancestral primordial, ele não escapa das saudações devidas aos ancestrais, genéricos e reais, de uma casa. As ramificações, as raízes de uma casa de candomblé são tão diversificadas que é quase impossível não encontrar alguns caboclos no meio dos familiares falecidos (TALL, 2009, p.80).

É a partir deste pressuposto do parentesco que, ao pensarmos aqui o conceito de “máscara antropofágica” de Oswald de Andrade (cf. RISÉRIO, 2007), através do reconhecimento da agência dos Encantados na elaboração das máscaras sonoras do samba-de-caboclo e do samba de roda, indicamos exemplos das transformações cosmopolíticas da ancestralidade, na experiência de transfiguração étnica e ritual envolvendo o Ilê Axé Alaketu Oyá Funan e o Samba de Roda de Dona Dalva, por meio das relações do parentesco, da linguagem musical e da forma ancestralizada assumida pela religiosidade indígena na atualidade do universo investigado. Os aspectos que geram as formas simbólicas dessa espécie de canibalismo ritual ou dessa antropofagia cosmológica, podem ser observados no sistema de distinções que organiza a execução do culto aos caboclos, bem como o andamento rítmico e o acompanhamento dado pelo samba, aliado ao fato das letras das canções serem expressas em português, de forma a permitirem a compreensão de elementos das transformações afroindígenas nas religiões afro-brasileiras. No caso investigado, a letra apresentada infra, recolhida no trabalho de campo e entoada pelo caboclo Sultão das Matas, ancestral indígena da família africana nagô de D. Dalva, é, ao mesmo tempo, tópico narrativo do enredo mitológico ancestral ameríndio e, em geral, tema ou mote de letras e canções de sambas de roda muito comuns na região do Recôncavo, executada inclusive, entre outros grupos, pelo Samba de Roda Suerdieck. Ê sabiá, bem-te-vi não tem coroa... Eu vim sambar na casa de gente boa... (2x) Não venha, não... Não venha, não... Não venha, não... Que esse samba É de engano, Não venha, não. Eu vou sim Eu vou sim Eu vou sim Que esse samba de engano foi feito pra mim. (Coro)

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Então, neste trabalho começa-se a pensar como é que o culto aos caboclos, assim como, o Samba de D. Dalva (Samba de Roda Suerdieck), se constituem como formas sócioculturais, expressões e experiências comospolíticas coletivas das religiões afro-brasileiras e, em especial, do candomblé e do povo de santo do Recôncavo baiano. A partir da formação do seu Samba, Dona Dalva passou a compor e a trazer para o seu repertório as músicas antigas cantadas por sua avó materna. Além disso, ela introduziu nas indumentárias de suas baianas as formas de vestir que sua avó paterna utilizara como comerciante e Irmã da Boa Morte. Também, pela sua experiência e criatividade, Dona Dalva inseriu a percussão das tabuinhas de madeira que eram utilizadas para bolear os charutos na fábrica como característica da musicalidade feminina do seu grupo (MARQUES, 2016).

Ao mesmo tempo, busca-se interpretar como D. Dalva é – torna-se – uma voz negra que gera identificação e, que tem reconhecimento, que as pessoas escutam e levam em consideração. Além de refletir como o terreiro Ilê Axé Alaketu Oyá Funan e, em especial, seus Caboclos (Encantados) contribuem na formação desse repertório. Dona Dalva é pertencente à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e dá continuidade ao legado recebido de sua avó, uma africana nagô. Além de trazer consigo a fé firme em Deus, Nossa Senhora, Obaluae, Santo Antônio e São Cosme e São Damião, ela dedica-se intensamente ao calendário de festas de Cachoeira e às mais variadas manifestações culturais. Além do Samba de Roda Suerdieck, Dona Dalva criou e mantém o Terno de Reis Esperança da Paz, Terno das Baianas do Acarajé, Terno do Batizado de Liberou, Quadrilha da Terceira Idade e o Samba de Roda Mirim ‘’Flor do Dia’ (MARQUES, 2016)10.

Sobre o Samba de Roda Mirim “Flor do Dia”, cabe notar, como me foi passado em depoimento, que “Flor do Dia”, era o nome do erê da filha de D. Dalva, a Yalorixá Luci de Yansã, falecida matriarca do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan que, também, incorporava o caboclo Tupinambá, e mãe da atual yalorixá do terreiro, a yá Luciana Freitas que recebe o orixá Oxóssi, patrono da casa juntamente com Yansã, além de incorporar também o caboclo Sultão das Matas. As festas de Caboclo da casa sempre ocorrem em janeiro 11, e, preciso destacar, que na época em que o trabalho de campo estava sendo realizado, havia sobre a casa uma ordem 10

Sobre essa nota acerca da figura ímpar de D. Dalva, gostaria de comentar que acompanhei, durante o trabalho de campo, as experiências dos louvores a São Cosme e Damião (2015), as celebrações de Santo Antônio (2016), a retomada do Terno de Reis Esperança da Paz (2016) e, em especial, a Quadrilha da Terceira Idade (2016) durante o São João, incluindo a apresentação do grupo de samba de roda na festa junina da Feira do Porto no mesmo ano. 11

As datas variam muito no que diz respeito ao calendário dos cultos de caboclos na região. Em janeiro, temse a festa no Oyá Funan; em abril, no Guarani de Oxóssi; em maio, no Raiz de Ayrá; em julho, na casa de Mãe Filhinha e no Ilê Axé Odé Nilê, de Mãe Rita; em agosto, na Casa de Mãe Lúcia. É claro que esse calendário pode ser ainda mais variado de acordo com a ampliação do quadro de casas.

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judicial para circunscrição do horário dos cultos na roça, localizada na Vila Residencial, na cidade de Muritiba. Chamo atenção a este fato para que esta pesquisa seja um reforço na defesa e reconhecimento da liberdade de cultos das religiões afro-brasileiras em nosso território. Então, é, também, um dos objetivos deste trabalho indicar como esta relação de parentesco de D. Dalva com os caboclos (não-humanos) – relação em que se identifica o descritor da ancestralidade ameríndia, nesta família africana – contribui para compreender a manifestação desta música conhecida como samba de roda. Visto que, pelo que observei no decorrer da pesquisa nas festas e nas vozes dos vários caboclos, o samba de roda tem muito dos Encantados, tem muitos elementos que vêm de Aruanda. Sobre a questão colocada pela pesquisa, seguem as palavras que assim me foram ditas pelo ogan-axogum, de Xangô com Oxum, do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan: Pelé: É porque o samba de roda, ele tem duas vertentes, tem o samba de roda que vem dos ditos populares, dessa coisa toda, e tem o samba de caboclo, que é diferente, entendeu? Aí, obviamente, as pessoas incorporam dentro do samba de roda os sambas de caboclo. [...] No caso, eu, artista12, no meu repertório mesmo tem os sambas de roda, dessas coisas que a gente já ouvia, até da época do Gera Samba, essas coisas todas que eram samba de roda. Só que eles incorporaram no repertório de sambas de roda, os sambas de caboclo que isso já vêm dos ancestrais. Dos próprios caboclos que já chegam, já tiram suas salvas e já começam a cantar os sambas que muitos cantam; não é o repertório específico de um caboclo ou de uma casa.

A partir da consideração de que as religiões afro-brasileiras e as demais consequentes manifestações da diáspora africana (como o candomblé de caboclo e o samba de roda) são resultados da sociabilidade e do parentesco cosmológico afroindígena, esta expressão é resultante de uma forma específica de sociabilidade revelada pelo atrelamento ritual das formas religiosas e culturais que colocamos em estudo nesta pesquisa. Então, a cartografia do “lugar” dos caboclos e seu rito no interior do “sistema religioso afro-baiano” (SANTOS, 1995), leva à compreensão da relação afroindígena, a partir de análises que permitem rever

a distinção posta entre índio e caboclo, p. ex., ainda que, segundo o antropólogo e museólogo, Raul Lody (2011, p.69) Nas relações que existem nos territórios sagrados há limites [...], ou se fundem ou aparecem claramente distintos, pois prevalece um olhar dominante da ancestralidade africana. Sem dúvida, todo esse processo inter-religioso é fundamentado na ancestralidade. Ancestralidade remota, diria africana. Ancestralidade próxima, diria afrodescendente, constituída por nomes memoráveis do candomblé e da construção de uma mitologia nativa, peculiar 12

Edson Pelé Gomes é artista e tem uma carreira de cantor com um grupo musical chamado Sanfona Deitada.

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ao Recôncavo, que é a sistematização religiosa e o estabelecimento da Nação de Caboclo. Consagradamente, para o povo de santo, o caboclo é o ancestral da terra, diga-se terra brasileira. Tudo isso reunido e permanentemente reinventado a partir dos modelos sócio-religiosos das Nações Jeje; Jeje-Mahin; Jeje-Modubi; Nagô; Ketu; Angola; e, especialmente, a de Caboclo.

Então, para melhor entendermos quem é o caboclo, apresento o depoimento13 de Dona Maria da Glória de Jesus (D. Maria Tupinambá) que, em suas palavras, define a passagem da condição de índio para o “ser caboclo”, condição de uma ontologia vista como consequência das formas opressoras da colonização, atuantes na interdição do reconhecimento da identidade e ancestralidade indígena por parte dos descendentes de ameríndios. Nesse sentido, os Tupinambás interpretam a condição de ser caboclo a partir do momento em que Não pudia falar em índio, nós era o quê? Os caboclos. Lá tem os caboclo de Bida, os caboclo de João de Nô, os caboclo de Zé Fulugêncio; porque chamava os caboclo? Porque se falasse em índio era morto, era massacrado, porque os fazendeiro matava. Aí, ficou até os canto, o povo tira o canto do caboclo, aí mudou tudo ninguém fala em índio, porque se falasse morria. [...] Eu sei bem que os antepassado contava: não fale que você é índio, se falar você morre. Entonces é o que: os caboclo fulano de tal, os caboclo fulano de tal, e tinha os nome das famílias de caboclo, aí chamava mas num pudia falar que era índio. Hoje nós conhecemos, meu sogro era pajé, nós cultuava e zelava dos Encantados. Porque ele cantava assim: era o mato, a folha verde, a água, a pedra era com que ele curava, era com isso. Ele já tinha um calo de rezar. Naquela região não tinha médico, nóis não falava em médico. Em Una, Olivença, aonde ‘doecia uma pessoa, ia na Serra buscar João de Nô, que era o velho, o caboclo, ah, o caboclo velho, João de Nô. Aí, ia lá, Seu João olhava num copo d’água assim e dizia assim: corre, vai à toda, dá tal chá, tal folha, tal banho nós nunca, ele nunca fez assim ritual. Nada. Era reza, banho e folha. Toma banho de tal folha que tem energia positiva, tudo era folha e banho e chá e erva e defumador. Defumador: busca a resina do jatobá, a resina da mescla, o capim de Aruanda, a folha, a semente do quioiô…. Aí, nóis fazia aquele defumador, tomava, fazia um chá. Nóis toda vida cuidou sobre isso, o médico era ele, dizia: cozinha três qualidade de pau pra beber, a gente bebia, ninguém ia em médico, por que o costume da gente era só o pajé. Ninguém fazia outra coisa sem antes de ir ao pajé. Até hoje [...]

D. Maria, esposa de Seu Lírio e mãe do Cacique Babau, uma das lideranças dos tupinambás contemporâneos, índios que atualmente residem na área indígena de Olivença, próxima a Ilhéus no sul da Bahia, a qual teve recentemente aprovada sua demarcação. Ao mesmo tempo, os tupinambás têm bastante presente seus Encantados e ancestrais no culto aos caboclos do Recôncavo baiano, visto que estes eram o grupo autóctone desta região seguidamente ocupada por europeus e africanos. Considerando ainda o que diz Goldman (2015, p. 655): “os Tupinambá da Serra do Padeiro não são os “descendentes” dos antigos 13

Depoimento colhido em Cachoeira, no auditório da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na ocasião da exibição do filme “O Retorno da Terra”, da antropóloga e jornalista Daniela Fernandes Alarcon. 31 de março de 2016.

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Tupinambá: eles são aqueles Tupinambá que foram capazes de sobreviver a uma experiência histórica devastadora”. Além desta referência ao depoimento tomado a D. Maria, tupinambá da Serra do Padeiro, ou ainda, como indicado no contexto da etnografia amazônica infra, as relações entre África e América, do ponto de vista de seus povos originários, é mais complexa do que aparentemente se imagina. Alguns interlocutores me disseram que os animais originários eram demasiado grandes e ferozes, e que, no início do tempo histórico, todos eles foram mandados embora do Xingu pelos gêmeos Sol e Lua: ‘eles estão na África; aqui só ficou a onça’ (VIVEIROS DE CASTRO, 2013. p. 32).

A menção, em elementos mitológicos xinguanos, à África como destino de animais míticos do tempo da fundação do mundo, não só abre um precedente etnográfico para a exploração deste ponto de vista que encara as relações afroindígenas, como, também, permite reconhecer o culto aos caboclos enquanto momento privilegiado desta “economia cosmológica” que se investiga. Como aponta Jocélio Teles dos Santos, em O Dono da Terra: o caboclo nos Candomblés da Bahia (1995), é necessário o [...] reconhecimento de que a maioria dos estudos afro-brasileiros tem ressaltado, extraordinariamente, os aspectos mais significativos da herança africana, e desprezado, sobremaneira, tudo aquilo que poderia ser referido ao caboclo, já que esse seria uma pedra no caminho da legitimidade africana dos candomblés (SANTOS, 1995, p. 10).

A partir desta advertência, pode-se refletir criticamente sobre a constituição do tradicionalismo nagô (BASTIDE, 2001) e sua contribuição no reforço da africanidade na religião dos orixás. Visto que, ao considerarmos que “o culto aos Caboclos nos candomblés baianos data da segunda metade do século XIX”, observa-se também que “o interessante é assinalar que o Caboclo encontrou “lugar” no panteão[...]” das religiões afro-brasileiras (SANTOS, 1995). Enquanto que nas casas de candomblé, localizam-se Em geral, no exterior, e quando isso não é possível, como ocorre na maior parte dos terreiros em meio urbano, não longe da porta de entrada, perto da divindade da soleira (Exu) e/ou próximo ao altar dos ancestrais Egunguns (TALL 2009, p. 80).

Sujeito ritual “rebelde” e “figura paradoxal”, ele se encontra nos terreiros “dividindo o espaço com alguns santos católicos, tais como São Jorge, relacionado ao inquice Katendê e ao orixá Oxóssi, ele convive também com os Pretos-Velhos, figuras ancestrais e genéricas dos antigos escravos”. Segundo a autora, Emanuelle Tall, o caboclo é uma “personagem multiforme; a figura do ancestral genérico de origem não africana”. Do ponto de vista cosmológico, a categoria “caboclo” agrupa “todas as figuras ancestrais que não são de origem negro-africana. Entre os caboclos encontram-se as personagens 26

estereotipadas do Brasil colonial, tais como o marinheiro, o boiadeiro e a prostituta” (TALL, 2009, p. 82). É por isso, que se faz necessário a investigação dos fenômenos que estabilizam a relação afroindígena no contexto do Recôncavo da Bahia, a partir da análise empírica deste atrelamento indicado por Santos (1995). Ainda que se reconheça, por um lado, o alto “grau de nacionalismo que se nota na existência do caboclo”, necessariamente derivado da Modernidade e dos processos de colonização, no interior dos quais estes índios tornaramse caboclos, encantes, ancestrais. Portanto, esta pesquisa faz reconhecer as relações entre o parentesco co-sanguíneo, como nas relações familiares do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan, onde a ancestralidade afroindígena participa das formas rituais inerentes ao candomblé na ocasião do culto aos caboclos. Sem esquecermos, também, que o regime de “afinidade potencial” do parentesco atua no caso da formação das famílias de santo. O parentesco alia-se e ativa a atualização das linguagens artísticas (musicais) e experiências religiosas (rituais), no interior do desenvolvimento de “tecnologias de acesso” e técnicas mnemônicas ritualísticas. Estes ritos e manifestações culturais são processos ligados ao xamanismo e ao poder de “eficácia simbólica” do culto aos ancestrais ameríndios, a partir dos quais o samba de caboclo é tomado enquanto linguagem ancestral, no plano cosmológico, e o samba de roda, no plano sociocultural, é compreendido como idioma do artesanato poético sonoro do artefato musical. Anoto aqui uma das experiências mais marcantes de minha pesquisa de campo, quando no terceiro dia de festa, na casa Ilê Axé Alaketu Oyá Funan, o caboclo Sultão da Matas, entidade incorporada na pessoa da mãe de santo da casa, a yalorixá Luciana Freitas, veio a mim e perguntou-me: “– Quer cantar meu cumpadre? Vai pra lá, então, vai pra lá...” Eu, ainda que timidamente acometido pelo convite, mas seriamente respeitoso pelo reconhecimento dado a mim pelo caboclo, devido ao entusiasmo com que eu ecoava juntamente com o coro dos membros do terreiro, as letras das salvas puxadas por eles e pelos ogãs, então entoei duas cantigas que havia aprendido em outro culto de caboclo em que havia feito campo, há quase um ano atrás, no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi, em 2015. A cantiga havia sido entoada por um encante chamado Caboclo de Mina: “Eu sou um índio/ eu sou natural/ Eu sou um índio/ eu sou natural/ Eu vim da mata eu vim 27

vadiar/ eu vim da mata/ eu vim vadiar”. A audiência dos caboclos se pôs a exortar pelo salão da casa e alguns vieram me cumprimentar como o Caboclo Tupinambá, com seus urros e gritos, se ajoelhou e me estendeu a mão, em seguida, levantando-se, me cumprimentou num breve abraço, em que se tocam os ombros, como de costume nos candomblés. Sem deixar de falar, que os caboclos ainda têm uma notável importância histórica e simbólica no evento conhecido como 2 de julho, na Bahia, e, em especial, no local da pesquisa, por estes carregarem consigo os méritos pela Independência da Bahia, em 1823, tendo sido exaltados pela participação nas guerras contra os portugueses nas margens do rio Paraguaçu, nas cidades de Cachoeira e São Félix, de onde saem as tropas de revoltosos, em marcha, para capital Salvador. Tal fato, aponta a agência objetiva e histórica na narrativa “oficial” e cívica, no mundo social da elaboração política moderna, em plano de insurreição contra as forças ocidentais, sob a forma de uma legítima reivindicação pela autoridade do território. O aspecto cosmopolítico dos encantes é o forro filosófico que, ao elaborar sociologicamente a agência dos caboclos, demonstra os traços que contornam a ontologia derivada de sua ancestralidade. Tal experiência pode ser descrita etnograficamente, com apoio das vozes, via história oral, e de outros recursos para se tornar tangível à nossa compreensão ou à nossa imaginação sociológica conceitual. A existência do culto aos ancestrais e da atualização de tecnologias de acesso e técnicas mnemônicas corporais, atinge diretamente o núcleo de sentido da ancestralidade ativada pela cosmologia afroindígena em ação. Em relação ao que aponta Viveiros de Castro (2012), acerca das cosmopolíticas, no nosso caso, o caboclo, interlocutor de temporalidades e espacialidades, mediador de níveis cósmicos e circunstâncias políticas, apresenta lógicas de práticas e agenciamentos que, por meio de suas falas, revelam a tensão constitutiva da percepção dos fenômenos afroindígenas. Logo, toda distância se funda na diferença do ponto de vista, principalmente, para a ancestralidade ameríndia14.

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(...) essa cosmopolítica, ou ontologia política da diferença sensível universal, atualiza um outro universo que o nosso, ou outra coisa que um uni-verso — o seu cosmos é um multiverso, para falarmos como William James, uma multiplicidade de províncias e agências intersecantes em relação de “desarmonia preestabelecida”, como procurei mostrar em minhas considerações sobre o “multinaturalismo” indígena

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Na continuação da exploração das implicações das relações entre a teoria sociológica que aqui se desenvolve e a antropologia filosófica contemporânea, observa-se ainda que no trabalho de campo, muitas vezes diante da impossibilidade da descrição semiótica interditada pela experiência fenomenológica, fica-nos a não tão óbvia lição epistemológica da etnografia de que: frente a necessidade de ser capaz de “fazer variar a verdade demonstrando a verdade da variação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.158), do compartilhamento sempre imprevisível do instante que vai do encontro/observação à memória, a narrativa etnográfica torna-se um contraponto mnemônico à narração sociológica. A narrativa sociológica se faz linguagem de invenção do social, do cosmológico e, por conseguinte, deste dado ontológico que é a ancestralidade e os agenciamentos dela derivados, que podem ser notados, do ponto de vista de um complexo eco-político. Este, tende a estabilizar-se, em linhas tênues, sob um espectro teórico-conceitual de uma linguagem própria que contorna o contínuo de transformações, sejam elas míticas ou rituais, religiosas ou artísticas, mas, principalmente, relacionais, entre os pontos de vista, – visões de mundo, ou como preferem, “mundos de visão” – afrodescendente e ameríndio. BIBLIOGRAFIA BANAGGIA, Gabriel. Religiões de matriz africana em perspectiva transformacional. R@U, 6 (2), jul./dez., 2014: pp. 57-70. BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô/ Roger Bastide: tradução Maria Isaura Pereira de Queiroz; revisão técnica Reginaldo Prandi. – São Paulo: Companhia das Letras, 2001. GOLDMAN, Márcio. “Quinhentos anos de contato”: por uma teoria etnográfica da (contramestiçagem). Mana, vol.21 no.3. Rio de janeiro. Dec. 2015. _________________. A relação afroindígena. Cadernos de Campo, n. 23, USP: São Paulo, 2014.

(Viveiros de Castro 1996, 2004). Esse pensamento, enfim, reconhece outros modos de existência que o nosso; justifica uma outra prática da vida, e um outro modelo do laço social; distribui diferentemente as potências e as competências do corpo e da alma, do humano e do extra-humano, do geral e do particular, do ordinário e do singular, do fato e do feito; mobiliza, em suma, toda uma outra imagem do pensamento. Alteridade cultural radical. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.158)

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