1. « Para uma história comparativa dos intelectuais em França e na Alemanha », in : Bruno Monteiro/Virgílio Borges Pereira (ed.), Intelectuais europeus no século XX. Exercícios de objectivação sócio-histórica. Porto, Edições Afrontamento, 2015, p. 79-93.

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Joseph Jurt*

Para uma história comparativa dos intelectuais em França e na Alemanha

1. A PERSPECTIVA COMPARATIVA Em 1998, Michel Trebitsch e Marie-Christine Granjon editaram uma recolha intitulada Para uma história comparada dos intelectuais1. Marie-Christine Granjon, na introdução, e Christophe Charle, numa contribuição para o volume, assinalam que o modelo francês do intelectual impôs-se sobretudo em países latinos como a Itália ou a Espanha. Noutros países, como a Suíça, os países Benelux, ou a Escandinávia, jamais se atribuiu aos intelectuais, salvo para algumas excepções, a mesma função. Na Inglaterra, a relação dos intelectuais com o poder foi menos conflitual que em França. Michel Trebitsch aconselha por essa razão, no mesmo volume, a não estudar unicamente a difusão do modelo francês, mas a examinar as tradições específicas da concepção do intelectual em cada país. Christophe Charle considera, por seu lado, que a história cultura não se poderá fazer se não a partir de uma perspectiva comparativa, pois a cultura estará sempre implicada em processos de troca ou de confrontação com outras culturas. A intervenção de Zola a favor de Dreyfus, em 1898, não tomará o seu perfil específico se não a pusermos em relação com a constituição da generación del 98 em Espanha ou com as tomadas de posição de Croce e d’Annunzio em Itália. Christophe Charle tinha ele próprio publicado em 1996 um «ensaio de história comparada» intitulado Os intelectuais na Europa no século XIX2. Ele legitima esta perspectiva pela atitude estruturalmente internacional dos intelectuais: os intelectuais definem-se, segundo ele, sobretudo em relação com os elementos mais internacionais de cada cultura. Eles próprios são os agentes mais activos das transferências culturais e políticas entre culturas (*) Albert-Ludwigs Universität, Freiburg. (1) Michel Trebitsch e Marie Christine Granjon (eds.), Pour une histoire comparée des intellectuels. Bruxelles : Editions Complexes, 1998. (2) Christophe Charle, Les intellectuels en europe au XIXe siècle. Essai d’histoire comparée. Paris : Seuil, 1996.

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nacionais3. E Charle evoca explicitamente a comparação histórica dos intelectuais em França e na Alemanha: «Uma grande parte da história intelectual alemã (e dos intelectuais alemães) não poderá compreender-se sem a referência, implícita ou explícita, à história intelectual francesa (e dos intelectuais franceses) e inversamente». E ele continua: em Espanha e na Itália encontramos, além disso, a dupla referência francesa e alemã. A história intelectual inglesa define-se igualmente face aos seus dois principais vizinhos continentais e a da Rússia face ao Ocidente no seu conjunto4. Ao consagrarmo-nos ao grupo social relativamente restrito dos intelectuais, fazemos, segundo Charle, uma micro-história que no fim de contas não pode ser feita senão num espaço multinacional. Charle lamenta no seu estudo, em três momentos, ter negligenciado, «por falta de espaço», a história intelectual dos por assim dizer «pequenos» Estados (Bélgica, País Baixos, Suíça) ou a das nações periféricas (países escandinavos e balcânicos) ou em formação (Europa central ou oriental) «onde os intelectuais servem frequentemente de linha da frente para os debates políticos ou de pontos de passagem entre tradições culturais de espaços linguísticos diferentes»5. Mais adiante, Charle escreve que é conveniente analisar «o papel específico, como plataforma giratória ou lugar de influências cruzadas, dos “pequenos” países que tivemos que deixar fora do campo de análise, ou abordar apenas indirectamente, como a Suíça e a Bélgica»6. Na sua conclusão, Charle escreve enfim o seguinte: «os países considerados como periféricos ou pequenos (…) jogaram frequentemente um papel decisivo nas trocas e nas transferências pois eles formam espaços menos polarizados pelos afrontamentos nacionais ou nacionalistas entre culturas dominantes, freio principal às trocas intelectuais reais»7. Eu vou consagrar-me aqui à perspectiva franco-alemã apesar da advertência formulada por Christophe Charle que escreve: «limitar a história da construção da Europa intelectual apenas ao diálogo franco-alemão é muito redutor, mesmo se ele é um dos pivôs dessa história»8. Eu vou limitar-me ao exemplo franco-alemão, embora esperando não ser demasiado redutor. É uma limitação puramente metodológica e não essencialista. Estaremos sempre conscientes que as atitudes intelectuais nos dois países se inserem num contexto mais vasto. Consagrarmo-nos de uma maneira privilegiada a estes dois países não é porém fortuito. Os intelectuais alemães definiram-se com frequência por relação ao exemplo francês. Os intelectuais franceses, por sua vez, referiram-se, nomeadamente após 1871, à concepção alemã da ciência, mas menos a uma concepção do compromisso9.

(3) Idem, Ibidem, p. 28. (4) Idem, pp. 28-29. (5) Idem, p. 22. (6) Idem, p. 298. (7) Idem, p. 303. (8) Idem, p. 308. (9) Ver Claude Digeon, La crise allemande de la pensée française. Paris : PUF, 1959 ; Joseph Jurt, «Für eine vergleichende Sozialgeschichte der Literaturstudien. Romanistik in Deutschland, études françaises in Frankreich», em Markus Joch e Norbert Christian Wolf (eds.), Text und Feld. Bourdieu in der literaturwissenschaftlich Praxis. Tübingen, Niemeyer, 2005, pp. 311-322.

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No que concerne à história intelectual, há certamente uma anterioridade evidente da França enquanto que é o inverso quanto à história económica; anterioridade que Karl Marx soube tão bem traduzir quando escreveu: «O dia da ressurreição alemã será anunciado pelo canto do galo gaulês» («das Schmettern des gallischen Hahns»). * Quando Christophe Charle e Michel Trebitsch evocaram o modelo do intelectual à francesa, eles pensavam no modelo do intelectual que se constitui no momento do Affaire Dreyfus. Christophe Charle publicou em 1990 uma obra sobre o Nascimento dos intelectuais, nascimento que ele situou na época Dreyfus (1880-1900)10. Charle atem-se ao neologismo «os intelectuais», que apareceu de facto nessa época e que traduzia a existência de uma nova configuração. No seu ensaio de história comparada sobre os intelectuais na Europa do século XIX, publicado mais tarde, Charle muda de perspectiva, não mais se atém unicamente à palavra, mas à coisa; ele define os intelectuais – avant la lettre – como um modelo de acção ou um papel social associando saber, defesa da liberdade e da autonomia e justifica assim um uso retrospectivo do termo intelectual. O termo intelectual comporta segundo ele, três registos; um registo social, um registo cultural, um registo político. O primeiro registo é funcionalista e define o grupo pelos critérios sócio-profissionais, referindo-se à divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual – definição que perdurou noutros países para lá da França. As definições culturalistas adoptam, pelo contrário, «uma perspectiva elitista e limitam-se aos criadores com mais destaque, promovidos à categoria de exemplos ou de porta-vozes do conjunto dos intelectuais»11. A visão política, enfim, aparece a partir do momento em que atribuímos aos intelectuais uma responsabilidade – negativa ou positiva – por esta ou aquela evolução da sociedade global. Aos olhos de Charle, estas três dimensões estão ligadas. A constituição do grupo dos «intelectuais» é para ele o resultado de um processo de diferenciação social perceptível através da emergência progressiva – desigual segundo os países – de um grupo social que designa os indivíduos consagrados a actividades consideradas até então como heterogéneas: eruditos, homens de letras, professores, jornalistas, médicos, advogados, por vezes membros do clero – grupo definido no fim do século nas estatísticas como o das profissões liberais, grupo que apareceu após a Revolução Francesa. Grupo emergente cuja importância já tinha sido constatada por Tocqueville quando escreveu: «Pouco a pouco, as luzes anunciam-se, vemos despertar o gosto pela literatura e pelas artes, o espírito torna-se então um elemento de sucesso; a ciência é um meio de governo, a inteligência uma força social: os letrados metem-se nos negócios»12. (10) Christophe Charle, Naissance des «intelectuels» 1880-1900. Paris: Les Éditions du Minuit, 1990. (11) Christophe Charle, Les intellectuels en Europe au XIXe siécle. Essai d’histoire comparée. Paris : Seuil, 1996, p. 298. (12) Alexis de Tocqueville, Oeuvres, papiers et correspondances. I : De la démocratie en Amérique. Paris : Gallimard, 1951, p. 2

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Os intelectuais situam-se ao mesmo tempo num campo intelectual no seio do qual eles lutam pelo poder simbólico e cultural por meio de um combate pelo estabelecimento das condições de possibilidade desse poder, que se englobava no século XIX sob a noção genérica de liberdade (de imprensa, de reunião, de expressão, de ensino). Este espaço das lutas culturais está ao mesmo tempo inserido no espaço das lutas políticas que forçam os intelectuais do século XIX – por causa da falta de autonomia em relação às classes dirigentes e por causa da intolerância dos poderes monárquicos – a tomadas de posição directamente políticas. Aquilo que me parece sair das análises de Charle, para além de advogar uma abordagem comparativa, é de não nos ficarmos unicamente pelos termos; não são apenas as palavras (intelectuais, Intelligentsia, Intellektuelle), mas também a coisa que é preciso visar. Além do mais, é preciso não se deixar tentar por julgamentos de valor, distribuindo elogios ou censuras a propósito desta ou daquela evolução particular, nomeadamente quando comparamos a situação alemã e francesa, mas explicar as situações por uma análise histórica.

2. HISTÓRIA DOS INTELECTUAIS NA ALEMANHA Vou passar então à situação alemã e começo com o encontro de um francês e um alemão, célebres os dois, encontro que teve lugar há pouco mais de duzentos anos. Trata-se do encontro entre Napoleão e Goethe, ocorrido a 2 de Outubro de 1808 em Erfurt. Goethe relata a sua atitude de grande respeito face ao imperador, mas podemos perceber no relato que Goethe dá desse encontro igualmente um sentimento discreto de triunfo, pois o imperador fala-lhe de Werther e pede-lhe um conselho, no momento em que conferencia com os seus conselheiros: «Que acha o senhor Göt?» Mesmo no momento dos seus assuntos de guerra e paz, o imperador dos franceses ficou impressionado pela presença desse espírito alemão13. Wolf Lepenies vê na crítica da Revolução – atitude suscitada pelo ressentimento – um motivo constante da política e da história intelectual da Alemanha. O «movimento alemão» animado no começo do século XIX, em primeiro lugar pelos pensadores e pelos poetas, pretendia, contrariamente à França, realizar uma Revolução espiritual que passasse para além de uma mudança política, sonho cultivado em 1834/35 até por Heine no seu escrito Sobre a história da religião e da filosofia na Alemanha (Zur Geschichte der Religion und der Philosophie in Deutschland), onde ele desenvolve a visão (alemã) de uma subversão fundamental provocada apenas com a força do pensamento e o poder da filosofia, comparada com a qual a Revolução francesa aparecia como um idílio (anódino)14. Valéry evocou igualmente em 1932 o encontro entre Napoleão e Goethe por ocasião do centenário da morte de Goethe; ele descreve o encontro como o de dois encantadores, Napoleão enquanto «imperador do Espírito», e Goethe, que faz aqui figura do «próprio Espí(13) Wolf Lepenies, «Goethes Geistgegenwart», Frankfurter Allgemeine Zeitung, n.º 79, 5 de Abril de 1997. (14) Idem, Ibidem.

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rito», dois profetas de uma nova era15. Valéry descreve os últimos anos da vida de Goethe como uma apoteose do espírito e ele associa no final, de novo, o imperador e o escritor, definindo Weimar como um lugar de exílio: «Wolfgang Goethe vai deter-se um pouco mais de dez anos após o Imperador nessa pequena Weimar que é para ele uma espécie de Santa Helena deliciosa»16. Weimar como lugar de exílio; isto pode surpreender um leitor alemão. De facto, trata-se sobretudo de uma percepção francesa. O autor parece espantar-se que um tal génio com ressonâncias europeias como Goethe se tenha contentado de uma ambição política tão modesta – «essa pequena Weimar» – enquanto que para um Goethe a história natural ou a do espírito contava muito mais que toda a política17. A verdade é que a consciência nacional despertou na Alemanha através do confronto com o regime de ocupação napoleónica. O cosmopolitismo manifesto do classicismo alemão (de Goethe e de Schiller) iria ceder a uma reacção nacionalista com as guerras de libertação. A oposição entre aquilo que era propriamente alemão e o estrangeiro – identificado com a França napoleónica – não podia reclamar-se de estruturas políticas (a Alemanha estava fragmentada em múltiplos principados). Não lhe restava senão fundar-se sobre aquilo que era sentido no século XVIII como determinante para a «nação da cultura»: a língua, a cultura e a história18. «De facto, a cultura, e assim, a literatura, viram-se investidas de uma função fundadora, que lhe faltava em França», assinalou oportunamente Michael Werner, «elas cristalizavam um pensamento nacional pré-estatal e serviram de lugar de identificação e de projecção de um sentimento nacional em vias de formação». Em França, a fundação da identidade nacional incumbia mais à historiografia do que à literatura (tendo-se a França constituído como «nação de Estado» a partir do fim da Idade Média)19. A Canção de Rolando não desempenhou, na consciência colectiva, o papel que foi atribuído na Alemanha ao Canto dos Nibelungos; pois aqui construiu-se uma identidade nacional a partir de uma continuidade que ia da Idade Média à época moderna representada pelas obras literárias desde a época cortesã. Em França, ao invés, a literatura canónica não começa senão com o classicismo ou, mais cedo, com Ronsard. Ela funda a sua legitimidade sobre a sua relação privilegiada com a Antiguidade, a referência pretendendo ser mais universal e normativa e menos como fundamento de uma continuidade histórica20. (15) Paul Valéry, «Discours en l’honneur de Goethe», em Paul Valéry, Œuvres I (edição estabelecida e anotada por Jean Hytier), Éditions Gallimard (Bibliothéque de la Pléiade), Paris, 1957, p. 551. (16) Idem, Ibidem, p. 553. (17) Wolf Lepenies pergunta-se se Valéry não pretendia, ao descrever Weimar como um exílio para Goethe, fazer alusão aos sacrifícios políticos e às adaptações morais a que o espírito alemão foi obrigado no seu apogeu para ser reconhecido e sustentado pelo poder político. (18) Ver sobre esta questão Joseph Jurt, «Allemagne-France: débat sur la nation. Les Français vus de l’Allemagne», Commentaire, n.º 74, verão de 1996, pp. 335-339 ; Idem, «Identité», em : Au jardin des malentendus. Le commerce franco-allemand des idées. Arles, Actes Sud, 1997, pp. 159-166. (19) Michael Werner, «La place relative du champ litteraire dans les cultures nationales. Quelques remarques à propos de l’exemple franco-allemand», em : Michel Espagne e Michael Werner (eds.), Philologiques III, Paris : Editions de la Maison des sciences de l’Homme, 1994, p. 19. (20) Idem, Ibidem, pp. 25-29.

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Em virtude da missão «nacional» com que foram investidos, os escritores encontravam-se na Alemanha colocados numa relação complexa com o poder político estabelecido, sendo a ideia de nação, nos seus começos, como em França uma ideia emancipadora. A unidade nacional implicava a do direito e da liberdade contra as desigualdades e as particularidades do regime principesco: «Unidade, Direito e Liberdade» serão as palavras-chave do Canto dos Alemães escrito durante o período do Vormärz (1841) pelo escritor nacional democrata Hoffmann von Fallersleben – aspiração que iria todavia fracassar após 1848. Após o fracasso dos movimentos de 1848, o hiato entre literatura e política alargou-se ainda mais. Os escritores tentaram manter-se à margem das lutas, considerando que a literatura devia ser preservada daquilo que releva do baixo-mundo prosaico e temporal. A sacralização da «alta literatura» não impediu numerosos poetas românticos, em virtude do próprio facto da sua atitude apolítica, de se situarem do lado do conservadorismo ideológico e social21. A clivagem parcial e temporária entre Geist e Politik na Alemanha constitui, segundo Michael Werner, uma excepção à escala europeia22. Esta evolução não se deve a uma essência alemã, é preciso voltar a dizê-lo, mas sim a condições históricas específicas. Eu vejo duas condições estruturais. 1. A Alemanha não conheceu a centralização geográfica do campo literário e intelectual que permite uma competição com o campo do poder. Se os intelectuais puderam jogar em França essa função de contra-poder face à elite política, isso deve-se igualmente ao facto de que o país foi e continua determinado pelo centralismo político e cultural. A concentração dos produtores culturais, dos meios de comunicação de massa e das editoras, das instituições mais prestigiosas da vida literária, fez dos intelectuais e dos escritores em França um factor de poder e contribuiu ao mesmo tempo para a autonomização do campo intelectual e literário. A contrapartida foi o facto que não era mais possível fazer uma carreira de influência nacional fora de Paris. A ausência de verdadeiras cortes principescas a partir do século XVII pesou, em França, sobre a actividade cultural na província. Na Alemanha, pelo contrário, a ausência de centralização política pôde sustentar a existência de centros regionais ansiosos da sua influência cultural. Até ao século XIX, o mecenato principesco foi um factor essencial da vida literária. Saxe-Weimar, «a pequena Weimar» de que falava Valéry, constituía o exemplo mais célebre da influência cultural devida a uma pequena corte alemã23.

(21) Idem, p. 19. (22) «A clivagem entre política e literatura parece perdurar também nos livros, mas, regra geral, esses não são autores políticos, ainda menos hommes des lettres. Em França, um livro bem escrito tem sempre valor de bilhete de entrada na política, enquanto que na Alemanha um estilo brilhante deixa pairar a suspeita de que é preciso não tomar a sério o autor, que ele não é feito para a política e que ele tem demasiado tempo para esses preciosismos. Quando um homem político alemão visita um escritor de renome, ele mistura aí tanto a administração quanto a condescendência. Em França, as coisas são diferentes: o homem de letras e o homem político são da mesma natureza e encontram-se sobre o mesmo terreno. Ambos o sabem bem: ser-lhes-ia fácil trocar os seus lugares!» Wolf Lepenies, «Le siècle de Jünger», Le Monde, 20 de Fevereiro de 1998, p. 12. (23) Vd. Idem, Ibidem, p. 18.

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Havia na Alemanha tantos intelectuais e universitários como em França, mas eles estavam disseminados no seio de uma estrutura descentralizada. Sendo cada cidade mais ou menos autónoma, a capital não era suficientemente forte para influenciar todas as partes do país. Os universitários, os jornalistas e os escritores dispersos nas diferentes cidades não podiam ter a visibilidade e o peso social que tinham os seus colegas em Paris. Christophe Charle assinala com justeza que os universitários detinham na Alemanha a legitimidade suprema enquanto que em França eram sobretudo os homens de letras que a tinham24. Os professores alemães não colocaram de maneira nenhuma, sobretudo a partir de 1870/71, em causa a sua função social, e continuaram a identificar-se com a elite dirigente e a pensar como membros de pleno direito a esta última. 2. Podemos remontar ainda às origens históricas mais longínquas para explicar o peso social mais fraco do grupo dos intelectuais na Alemanha. Na Alemanha, a burguesia urbana não teve o peso que teve na França, pois a aristocracia consagrou-se, na Alemanha, aos estudos de direito e às funções administrativas; este tipo de carreira quase não estava aberto aos filhos da burguesia25. Para o fim do século XVIII, o grupo intelectual saído da burguesia, orgulhoso das suas obras literárias e científicas mas todavia excluído dos assuntos políticos e económicos começou a definir-se pelo conceito de Kultur, oposto ao conceito de civilité dos meios aristocráticos e à civilização francesa; esta última estava associada a um saber-viver superficial enquanto que a Kultur conotava, para eles, profundidade e moralidade. Pelos termos de Kultur e Bildung a intelectualidade burguesa entendia igualmente diferenciar-se em relação ao povo26. Esta auto-legitimação era assim igualmente uma expressão do isolamento social do grupo intelectual na Alemanha.

(24) E. R. Curtius já tinha sublinhado nos anos vinte que só a literatura cumpria em França a função que era repartida na Alemanha pela filosofia, a ciência, a poesia e a música. Ernst Robert Curtius, Die französiche Kultur, Bern, Francke, 1975, p. 75, 83. Robert Minder considerou, por sua vez, que na Alemanha o professor gozava de um respeito que não se atribuía ao escritor, ao contrário da França. Ver também Christophe Charle a propósito do prestígio social das duas carreiras na Alemanha: «Na medida em que os estudos superiores são uma via “normal”, mesmo nas carreiras livres, os docentes do ensino superior percebem os escritores como estudantes falhados ou de segunda categoria que não foram até ao fim da figura do erudito na Alemanha. Ao invés, como o acesso às posições permanentes de universitário está regulado por uma cooptação discricionária enviesada por condições sociais, políticas e religiosas, logo intelectuais, a imagem que os escritores faziam da universidade é a de uma casta privilegiada, cheia de si mesmo, separada da cultura viva pela sua referência manifesta ao passado glorioso da universidade e aos clássicos alemães e encerrada na sua especialização». Christophe Charle, Les intellectuels en Europe au XIXe siècle. Essai d’histoire comparée. Paris : Seuil, 1996, p. 196. (25) Ver Norbert Elias, Die höfische Gesellschaft, Neuwied, Luchterhand, 1969, pp. 238-255. (26) Segundo Norbert Elias, Über der Prozeß der Zivilisation, I, Frankfurt, Suhrkamp, 1976, pp. 7-36. Michael Werner fala da Bildung, valor fundamental desenvolvido pela burguesia alemã como uma espécie de Sonderweg. Afastada do poder e sofrendo de uma espécie de atraso económico em relação aos seus homólogos do Oeste, a burguesia alemã procura na Bildung, ao mesmo tempo, aperfeiçoamento moral, individual e fundamento geral da cultura, um terreno de florescimento e de afirmação social. A cultura literária que faz parte dela possui assim uma função compensatória que tende igualmente a desviar o escritor da acção política. Michael Werner, Art. cit., p. 20. Ver sobre este assunto também Aleida Assmann, Arbeit am nationalen

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Thomas Mann nas suas Considerações de um apolítico, redigidas ao longo da guerra e publicadas em 1917, parece ter exprimido uma concepção largamente partilhada na Alemanha. O escritor caracteriza aí a tradição alemã pela antítese entre Geist e política. Estes termos opõem-se a seus olhos como Kultur e civilização, alma e sociedade, liberdade e direito de voto, Kunst e Literatur. A essência alemã seria representada pela cultura, a alma, a liberdade, a Kunst. A Kultur é a seus olhos um princípio organizador e construtor, conservando e transfigurando a vida, enquanto a civilização é, segundo ele, o da razão, da dúvida e da desagregação. Thomas Mann opunha-se a essa modernidade nefasta que tinha o seu ponto de partida na razão e que culminava pela submissão do espírito e da cultura à razão política, que ele considerava com «a estatização e a republicanização completa da nação», como «domesticação» ou «politização do espírito»27. Se Thomas Mann associou a arte à profundidade da cultura, ele denunciou ao mesmo tempo qualquer politização da literatura como uma espécie de traição. Isto explica-se a partir da dicotomia poesia/literatura (Dichtung/Literatur) que caracteriza, como o sublinha com justeza Wolf Lepenies, a cultura intelectual alemã28; a poesia sendo entendida aqui num sentido geral e não genérico (enquanto poesia lírica). A poesia está associada à natureza e a literatura à sociedade; a primeira sendo considerada como expressão dos ritmos do mundo, a concepção da literatura na era moderna enquanto profissão não pode ser senão uma profanação. Segundo esta tradição alemã, o poeta devia distinguir-se por uma atitude associal ou mesmo anti-social de acordo com o génio da língua alemã, julgado solitário, profundo e monológico; esta tradição opõe-se à sociabilidade natural do homem de letras em França29.

Gedächtnis. Eine kurze Geschichte der deutsche Bildungsidee. Frankfurt, Campus, 1993 (tradução francesa: Construction de la mémoire nationale. Une bréve histoire de l’idée allemande de Bildung, Paris, Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1994). Ver igualmente Georg Bollenbeck, Bildung und Kultur. Glanz und Elend eines deutschen Deutungsmusters. Frankfurt, 1994; o autor sublinha que os conceitos alemães de Kultur e Bildung excluíam a formação profissional, tal como a civilização material; os dois termos compreendiam um mundo espiritual e intelectual como separado do mundo real: os interesses sociais e a interdependência política foram negligenciados em benefício das questões morais e dos valores culturais. Uma tal perda de sentido da realidade foi responsável por que a burguesia cultivada não tenha resistido ao nacional-socialismo. (27) Thomas Mann, Betrachtungen eines Unpolitischen, Frankfurt, 156, p. 272. Ver Daniel Argelès, «Thomas Mann et la France: images de la politique», Les relations culturelles franco-allemandes dans les années trente, Paris : CNRS, 1993, pp. 675-687. (28) Wolf Lepenies, Die drei Kulturen: Soziologie zwischen Literatur und Wissenschaft, Munich, Hanser, 1985, pp. 265-281: «Eine deutsche Besonderheit: der Gegensatz von Dichtung und Literatur». (29) Não é por acaso que o termo e a concepção de «intelectual» teve na Alemanha uma conotação exclusivamente negativa. Dietz Bering relata, na sua monografia consagrada à história desse termo na Alemanha, que mesmo os escritores e pensadores que aceitavam uma definição activa do seu papel social e se comprometiam com todas as forças pela jovem democracia de Weimar – Heinrich Mann, Döblin ou Ernst Tröltsche – hesitavam em servir-se do termo intelectual num sentido positivo. Recorria-se muito mais a termos como Geist, geistiger Mensch, ou simplesmente die Geistigen. Dieter Bering, Die Intellektuellen: Geschichte eines Schimpfwortes, Stuttgart, Klett-Cotta, 1977, pp. 263-270; ver também Dietz Bering, Die Epoche der Intellektuellen 1898-2001, Berlin, 2010.

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* É preciso precaver-se de uma imagem demasiado abrupta excluindo todas as matizes. Deveremos nomeadamente mencionar Heinrich Heine, que não corresponde de maneira nenhuma à imagem de um escritor apolítico. Saint-Beuve já sublinhou que Heine corrige a visão corrente estabelecida em França após a Restauração, designadamente após o célebre livro de Mademoiselle de Stäel Da Alemanha: a imagem de um país paralisado pela especulação e a metafísica. Heine representa, segundo o crítico, uma nova Alemanha revoltada e politicamente consciente. Os saint-simonianos viam em Heine um dos escritores políticos mais importantes da Europa, a incarnação do escritor ideal, aliando a pujança criativa e o compromisso sócio-político. As manifestações políticas de Heine foram consideradas pela imprensa dinástica – em França! – como não dignas de um poeta30. Ora, Heinrich Heine não serviu de modelo na Alemanha, como o assinalou Jürgen Habermas num estudo importante consagrado ao poeta alemão31. Heine não foi aceite como poeta comprometido na Alemanha se não após 1945. Se não existia a referência ao exemplo de uma literatura comprometida proposta por Heine, é porque se lhe associava – por desprezo – duas concepções que traíam a especificidade da literatura. Por um lado, considerava-se que a atitude comprometida de um escritor equivalia a uma perda de autonomia, conducente a uma fusão total das esferas cultural e política. Por outro lado, pensava-se que a intervenção política do escritor significava a sua integração total no aparelho político. Habermas demonstrou que a concepção de Heine era outra. Heine defendeu sempre a autonomia da arte e da literatura sem fazer dela um fetiche. Nos seus escritos contra Börne, Heine opõe-se aqueles que colocam o seu interesse pela arte ao serviço do interesse político. Assim ele explica que, no dia da sua chegada a Paris, não tenha ido às sepulturas de Rousseau e Voltaire, mas à Biblioteca Real a fim de ver o manuscrito de Manesse! Para Heine, a autonomia da arte, da literatura permanece uma condição indispensável para que os verdadeiros recursos – que o intelectual devia, todavia, valorizar para o povo – permaneçam disponíveis. No seu debate com Börne, Heine clarifica igualmente a concepção da política que o guia enquanto escritor comprometido. As armas do poeta não podem ser, segundo ele, as mesmas do revolucionário ou do homem político profissional. Mas Heine, que pensava aliar, seja o que for que digamos sobre ele, autonomia e compromisso da literatura, não foi seguido na Alemanha. Os escritores alemães definiram-se sobretudo contra o poeta comprometido. Habermas relembra assim uma reacção do jovem Theodor Heuss, em 1916, contra os intelectuais que acreditavam apresentar-se como porta-vozes das reivindicações progressistas. Estes intelectuais reclamavam-se do modelo de Heine ou de Voltaire, ou seja, de um período em que ainda não havia sistema parlamentar;

(30) Segundo Hans Hörling, Heinrich Heine im Spiegel der politischen Presse Frankreichs, Frankfurt, Lang, 1977. (31) Jürgen Habermas, «Heinrich Heine und die Rolle des Intellektuellen in Deutschland», Merkur, 40.º ano, n.º 6, Junho 1986, pp. 453-468.

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agora, já havia partidos políticos que se tornaram as plataformas de expressão da vontade política. A profissionalização ou a institucionalização da política torna, segundo Heuss, a politização da literatura supérflua. Esta separação entre Kunst e Politik engendrou na Alemanha, segundo Habermas, quatro grupos de intelectuais: Em primeiro lugar, os escritores apolíticos e os mandarins como Hesse ou o jovem Thomas Mann para os quais as esferas do espírito e do poder estão totalmente separadas, sendo qualquer politização do espírito sentida como uma traição. Em seguida, aqueles que preconizam como o jovem Heuss ou Max Weber uma profissionalização da política orientada pela racionalidade. A politização dos escritores ou dos filósofos introduziria um elemento de instabilidade ou de incompetência. Depois, os activistas como Carl Einstein, René Schickele ou Ernst Bloch que sonhavam com um poder político exercido por uma elite intelectual e que partilhavam assim com os mandarins uma concepção elitista. Enfim, o quarto grupo de intelectuais, que como Lukács, se definiam como revolucionários ou homens políticos profissionais, e se situavam no interior de um aparelho partidário. Esta dicotomia entre a política e a literatura assenta, segundo Habermas, sobre duas concepções específicas: por um lado, a fetichização do espírito e, por outro, a funcionalização da política. Durante o período de Weimar, o domínio da Kultur estava aberta às elites apenas, era de certo modo autárcica e não mantinha nenhuma relação com a política e a sociedade. A política existia, por seu lado, como um domínio funcionalmente específico que não podia evoluir senão com especialistas. Um terceiro domínio que tem para Habermas uma função normativa estava portanto excluído: o espaço público político (politische Öffentlichkeit), é aí que pode actuar o intelectual; ele pode intervir permanecendo um escritor sem se tornar homem político profissional. A arte e a literatura permanecem autónomas sem serem esotéricas; a vontade política exerce-se, certamente, por meio de um sistema dominado por homem políticos profissionais; mas o domínio não é controlado unicamente por estes últimos. As teses de Habermas foram matizadas num volume que se debruçou sobre os intelectuais na Alemanha guilherminiana32. Segundo Gangolf Hübinger, não nos podemos ater unicamente à história do termo «intelectual», como faz Dietz Bering; é preciso antes examinar a actividade real (a função intelectual) desse novo grupo social que foi especialmente negligenciado pelos historiadores. É sobretudo a Max Weber que devemos, segundo Hübinger, uma análise histórica e sistemática do papel dos intelectuais na sociedade. Weber opunha-se nomeadamente às tendências irracionais cada vez mais fortes no seio da juventude estudantil durante a Primeira Guerra Mundial. Mesmo se ele também aí via as taras do processo de racionalização e de burocratização, era impossível, a seus olhos, retornar a um estado (32) Gangolf Hübinger e Wolfgang J. Mommsen (eds.), Intellektuelle im Deutschen Kaiserreich, Frankfurt: Fischer, 1993; ver também Gangolf Hübinger, Gelehrte, Politik und Öffentlichkeit. Eine Intelektuellengeschichte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2006.

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anterior pela criação de novos mitos. Convencido que a racionalidade constitui o horizonte insuperável da era moderna, ele lutava contra o culto do irracional e o mito nacionalista nomeadamente através da sua conferência «A ciência como ofício» (1917). Gangolg Hübinger estudou a oposição estabelecida por Max Weber entre Journalist e Literat – oposição que pode, de facto, prestar-se a confusões. O termo (pejorativo) de Literat era para Weber uma noção ideal-típica; ele designava sob esse termo todos aqueles que não eram de maneira nenhuma inspirados por uma ética de responsabilidade, aqueles que se tinham afastado do modelo da racionalidade em política, o que incluía ao mesmo tempo, os revolucionários com finalidades utópicas e a fuga da política cara à Kulturkritik, o anti-racionalismo da filosofia da vida e o esteticismo das comunidades elitistas, tal como círculo de Stefan George; ele guardava nomeadamente as devidas distâncias em relação aos «ideais de 1914»: «Dever, Ordem, Justiça», opostos aos valores franceses «Igualdade, Liberdade, Fraternidade». A hostilidade de Weber contra a «ética da convicção» não se erguia de maneira nenhuma contra os «intelectuais» nem contra aqueles que defendiam uma ética política como Tolstoi, Dostoiévski ou Heine, mas contra o anti-racionalismo irresponsável. O ideal alemão do poeta apolítico começava, contudo, a soçobrar por ocasião da ascensão do nacional-socialismo, no decurso dos anos 30. Robert Minder menciona com justeza a evolução progressiva de Thomas Mann, que viria a revogar as teses das Considerações de um apolítico para se tornar o porta-voz da nação assumindo a sua responsabilidade política33. Quanto ao período do pós-guerra, Hans Mayer constata que tinha chegado o tempo na Alemanha de uma mudança de época. Os escritores críticos iriam tornar-se nos dois Estados alemães do pós-guerra num factor político34. Wolf Lepenies considera que o entusiasmo da Alemanha inteira pelo protestantismo de convicção, que incitou os habitantes da Turíngia e da Saxónia a manifestar-se nas ruas no Outono de 1989, traduzia um certo sentimento triunfal de ter não somente partilhado o avanço revolucionário dos franceses – para além do mais, durante o ano glorioso do bicentenário – mas ainda de o ter superado: sobre o território da RFA conseguiu-se, para todos os alemães, uma Revolução sem terror35. Mas não foi um acaso se, uma vez alcançada a reunificação, se denunciou a literatura comprometida do pós-guerra, representada por Böll e Grass, como convencional e não tratando senão os problemas de uma só geração36. Ou mesmo como «kitsch de convicção»: «aliança do idealismo e do pedantismo pedagógico»37. Parece que uma tradição iniciada após 1945 estava em vias de se perder ou, melhor, de perder a ressonância38, ainda que intelectuais (33) Robert Minder, Dichter in der Gesellschaft, Frankfurt: Suhrkamp, 1972, p. 38. (34) Hans Mayer, «Leiden an Deutschland. Die deutschen Schriftsteller und ihre Gesellschaft», Frankfurter Hefte, 33, 1978, p. 66. (35) Wolf Lepenies, «Goethes Geistgegenwart», Frankfurter Allgemeine Zeitung, n.º 79, 5 de Abril de 1997. (36) Tal como Frank Schirrmacher, «Abschied von der Literatur der Bundesrepublik», Frankfurter Allgemeine Zeitung 2 de Outubro de 1990. (37) Die Zeit, 2 de Novembro de 1996. (38) Ver Ingrid Gilcher-Holtey, «“Die grosse Rochade”: Schriftsteller als Intelektuelle und die literarische Zeitdiagnose 1968, 1898/90, 1999», em Heribert Tommek e Klaus-Michael Bogdal (eds.), Transforma-

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como Habermas ou Ulrich Beck não tenham cessado de intervir por ocasião das grandes questões da sociedade.

3. HISTÓRIA DOS INTELECTUAIS EM FRANÇA Passemos à França. Como pôde aí tornar-se relativamente cedo um grupo importante cujas intervenções individuais ou colectivas tiveram peso? Também aqui é preciso começar com um recuo histórico. Em França, a consciência nacional definiu-se – contrariamente à Alemanha – através das instituições políticas, fundando-se sobre a convicção da perenidade da constituição monárquica. É ainda às instâncias políticas que devemos o facto de a língua nacional se ter imposto em França – pelas ordenações de Villers-Cotterêts (1559) – que prescreviam que todos os assuntos jurídicos deviam ser tratados em língua francesa. A língua tornou-se assim um atributo importante da consciência nacional. Este patriotismo linguístico exprimia-se assim através de Defesa e ilustração da língua francesa (1549) de Joachim du Bellay. O novo sistema literário tinha a nação como espaço que devia ultrapassar os particularismos feudais. Reconhecemos por essa razão à corte igualmente uma função ordenadora no domínio literário e linguístico. Assim, o rei Francisco I encarregará o Collège de France de traduzir as obras da Antiguidade para francês. Na época de transição da era feudal para uma estrutura mais englobante do Estado-nação, a literatura tornou-se a expressão representativa do Estado-nação; isto não significava pura e simplesmente a instrumentalização da literatura. A literatura adquiriu um prestígio que lhe permitia emancipar-se. Isto foi demonstrado para o século XVII, nomeadamente por Alain Viala na sua obra Nascimento do escritor39. O autor mostra aí muito bem que o «Grande Século» foi dominado pelo conflito entre os dois princípios de autonomia e de heteronomia e que não se pode falar da instrumentalização total da cultura pela monarquia absoluta. Um facto importante foi sem dúvida a fundação, sob Richelieu, da Academia Francesa (1635) que estava longe de ser o único instrumento da domesticação nas mãos do poder central. Foi também a institucionalização de uma instância legisladora no domínio linguístico e literário, que marcou a profissionalização dos agentes do campo, designando-se doravante como escritores e não mais letrados (diletantes). Viala estabeleceu um inventário dos meios de emancipação (relativa) dos escritores: os direitos de autor que conferiam aos escritores uma propriedade moral e material dos textos garantida pelo Estado e lhe abriam assim uma possibilidade de controlo, logo de censura, mas também o novo público, constituído pelos leitores da imprensa (nascente)40 e os frequentadores dos salões, o mecenato

tionen des literarischen Feldes der Gegenwart. Sozialstruktur – Medien-Ökonomien – Autorpositionen. Heidelberg: Synchron, 2012, pp. 77-97. (39) Alain Viala, Naissance de l’écrivain. Sociologie de la littérature à l’âge classique. Paris : Les Éditions du Minuit, 1985. (40) Ver sobre este assunto, Joseph Jurt, «La littérature et la presse au XVIIe et au XVIIIe siècle»,

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e o clientelismo. O mecenato permitia materialmente uma actividade literária e distinguia a função do escritor, tornando-a por essa mesma via dependente. O resultado deste «nascimento do escritor» foi uma modificação da estrutura global do campo intelectual: o campo literário tornou-se em França, após o «século clássico», o campo cultural mais importante e distanciava-o da música e da pintura. Dominique Dammame sublinhou, por sua vez, que as letras foram em França um signo e um instrumento do poder real, mas que esse apoio também contribuiu para produzir uma promoção da literatura e dos autores e uma imbricação original e específica à França, do cultural e do político, dando nascimento a essa situação contraditória em que a dependência em relação ao patrocinato monárquico ia a par com o desenvolvimento da autoridade simbólica do autor41. Segundo Roger Chartier, a produção cultural em França caracterizou-se, a partir do século XVIII, por um patrocinato estatal que se torna o mais importante de toda a Europa. Esta estatização teve por efeito uma valorização da cultura pelo poder e pelas classes dirigentes ou, por outros termos, a promoção das letras realizou-se por intermédio de uma dependência em relação ao poder. Pierre Bourdieu sublinhou bem esta situação paradoxal na sua obra Meditações pascalianas; para que o elogio do príncipe pelo poeta tenha um efeito de legitimação, é preciso conferir ao poeta uma certa liberdade: «O príncipe não pode obter dos seus poetas, dos seus pintores ou dos seus juristas um serviço simbólico de legitimação realmente eficaz senão na medida em que ele lhes confere a autonomia (relativa) que é condição de um julgamento independente, mas que pode estar também na base de um pôr-em-questão crítico»42. Esta espaço de autonomia vai-se alargar durante o século XVIII e, desta maneira, também a função crítica dos intelectuais que designamos nesta altura «filósofos». A monarquia francesa, centralizada e hegemónica, acabou, de facto, por engendrar os seus próprios juízes. A consagração das letras pela monarquia, o fechamento de uma esfera pública literária, graças ao relaxamento do mercado dos livros – todos estes elementos contribuíram para a legitimação da cultura tanto como para a autonomização dos produtores pelo Estado, no Estado, fora do Estado e, logo, contra o Estado. Se após a Revolução e a Contra-revolução o colectivo das «gentes de letras» do Século XVIII desaparece e o «filósofo» cede lugar ao poeta, a valorização da cultura pelas elites sociais constata-se com todas as evidências. Isso explica, na França do século XIX, a promoção dos portadores das apelidadas «capacidades», a entrada dos intelectuais no campo do poder (deputados, ministros, académicos das ciências morais e políticas). A autonomização do campo literário conclui-se no decurso do século XIX. O Estado renuncia a intervir por

Romanistische Zeitschrift für Literaturgeschichte / Cahiers d’Histoire des Littératures Romanes, 37, 1/2, 2013, pp. 81-106. (41) Dominique Dammame, «Sur les intellectuels en Europe: politique et culture», Revue Française de Science Politique, vol. 47, n.º 1, Fevereiro de 1997, pp. 107-116. (42) Pierre Bourdieu, Méditations pascaliennes, Paris: Seuil, 1997, p. 126.

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meio da censura e a liberdade de imprensa é, a partir de 1881, total; o Estado cessa ao mesmo tempo de organizar o Salão anual de pintura. A extensão de um público virtual permitia ao escritor um mínimo de independência económica e constituía ao mesmo tempo uma nova instância de legitimação. O número de produtores de literatura, estando mais alargado e diferenciado, contribuía assim para uma profissionalização. Mesmo as intervenções comprometidas como a de Zola, que lança o seu «Acuso», eram reivindicações de autonomia e não subordinações heterónomas. Se o «Acuso» de Zola provinha ainda do modelo de intervenção individual do grande escritor – à maneira de Voltaire –, a intervenção colectiva subsequente, não somente de escritores, mas de uma maioria de universitários, constituía um facto novo, justificado por Durkheim pela ética profissional dos universitários: «Acostumados pela prática do método científico a reservar o seu julgamento enquanto não se sentissem esclarecidos», escreveu Durkheim na sua resposta a Burnetière, «é natural que eles cedam menos facilmente aos movimentos da multidão e ao prestígio da autoridade»43. De acordo com Christophe Charle havia cinco condições conjunturais ou estruturais que explicavam o aparecimento do grupo dos intelectuais no decurso dos anos 1890 em França44. 1. Era necessária uma situação de democracia com a liberdade de imprensa e de associação, o que acontecia em França e não no Império alemão ou na Rússia. 2. Existia a situação de democracia imperfeita, estando os homens do poder comprometidos por escândalos como o do Panamá; os homens políticos tendo fracassado no seu dever, os intelectuais sentiam-se obrigados a defender os valores de base da República. 3. Condição cultural; estando a população alfabetizada graças à imprensa acessível a toda a gente, uma opinião pública pôde constituir-se, sobre a qual os intelectuais puderam actuar. 4. A existência de intelectuais suficientemente numerosos para constituir um grupo de pressão (o número dos escritos aumentou de 1891 a 1898 em 23%, o número de estudantes entre 1891 e 1908 duplicou). 5. Extrema centralização da vida intelectual em Paris. Co-existência da elite política e cultural em Paris. Logo que, após a Libertação, o Partido Comunista se revelou ser a força política mais importante, ele tinha necessidade de uma legitimação cultural. A resposta foi-lhe dada por Sartre através do seu conceito de literatura comprometida. Ele definia esse compromisso sem todavia sacrificar a sua filosofia da liberdade a um determinismo materialista. O movimento político que fundou com David Rousset designava-se de maneira significativa «Socia-

(43) Émile Durkheim, «L’individualisme et les intellectuels», em : Émile Durkheim, La science sociale et l’action, Paris, PUF, 1970. (44) Christophe Charle, «Les intellectuels en France depuis un siècle: naissance permanente ou mort annoncée», Noroit, n.º 319, Novembro-Dezembro 1991, pp. 3-23.

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lismo e liberdade» e, na célebre apresentação de Temps Modernes, podemos ler a divisa: «O homem total. Totalmente comprometido e totalmente livre». O conceito de «literatura comprometida» era também uma reivindicação de autonomia que afirmava que a literatura era sempre implicitamente livre e comprometida45. O conceito de Sartre era o do «intelectual universal», que acreditava poder tomar posição como representante de uma verdade universal a propósito de quase todas as grandes questões. Tratava-se de uma tomada de posição em nome de um sujeito da História que transcende todos os particularismos (o proletariado, as «massas»). Contra esta concepção, Foucault avança a sua concepção do «intelectual específico», que não situa mais a sua causa no universal, mas em pontos precisos em que ele dispõe de uma competência específica (a prisão, a justiça, a psiquiatria). Pierre Bourdieu procurou de certa maneira conciliar os dois conceitos, o de Sartre e o de Foucault, ligando a universalidade da causa ético-política e a competência específica. Mas ele insistia mais ainda sobre a dimensão colectiva e internacional do compromisso. Ele censurou aos intelectuais tradicionais – Sartre, por exemplo – não terem sido suficientemente rigorosos acerca de dois aspectos centrais do compromisso: o da autonomia e da competência, por um lado, e o da eficácia, por outro. Estava convencido que não se podia mais, no mundo cada vez mais complexo, tomar posição sobre todos os problemas do mundo com a panóplia limitada de um professor de filosofia46. Ao longo dos anos 1970, apareceu cada vez mais um novo tipo de intelectual em França, com os denominados «Novos Filósofos»: o intelectual mediático que imita a pose do intelectual sem poder fundar-se sobre a autoridade específica da sua disciplina. Bourdieu parece pensar em Bernard-Henri Lévi quando escreve a este propósito: «São Zolas que lançam os Acuso sem terem escrito A Taverna ou Germinal, ou Sartres que assinam petições ou conduzem manifestações sem terem escrito O Ser e o Nada ou A crítica da razão dialéctica»47.

(45) Ver Anna Boschetti, Sartre et «Les Temps Modernes», Paris: Les Éditions do Minuit, 1985. (46) Ver também Joseph Jurt, Frankreichs engagierte Intellektuelle. Von Zola bis Bourdieu. Göttingen: Wallstein, 2012. (47) Pierre Bourdieu e Hans Haacke, Libre-échange, Paris, Seuil, 1994, p. 38.

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