1 Representações edificadas como reflexo social - TCC HISTÓRIA

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

MARISTELA CARNEIRO

DISCURSOS E ARRANJOS NA ORDEM ESTABELECIDA: CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO JOSÉ – PONTA GROSSA, 1881/2007

PONTA GROSSA 2007

MARISTELA CARNEIRO

DISCURSOS E ARRANJOS NA ORDEM ESTABELECIDA: CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO JOSÉ – PONTA GROSSA, 1881/2007

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na disciplina de Orientação de Trabalho de Conclusão de Curso, do curso de Bacharelado em História, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Orientador: Prof. Dr. Edson Armando Silva. Co-orientador: Prof. Marcio Jose Ornat.

PONTA GROSSA 2007

MARISTELA CARNEIRO

AS REPRESENTAÇÕES EDIFICADAS COMO REFLEXO SOCIAL: CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO JOSÉ

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na disciplina de Orientação de Trabalho de Conclusão de Curso, do curso de Bacharelado em História, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Ponta Grossa, 22 de novembro de 2007.

___________________________________________ Prof. Dr. Edson Armando Silva Departamento de História Universidade Estadual de Ponta Grossa

___________________________________________ Prof. Dr. José Augusto Leandro Departamento de História Universidade Estadual de Ponta Grossa

___________________________________________ Prof. Marcio Jose Ornat Departamento de Geografia Universidade Estadual de Ponta Grossa

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

DECLARAÇÃO DE COMPROMISSO ÉTICO

AS REPRESENTAÇÕES EDIFICADAS COMO REFLEXO SOCIAL: CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO JOSÉ

Responsabilizo-me pela redação deste Trabalho de Conclusão de Curso, atestando que todos os trechos que tenham sido transcritos de outros documentos (publicados ou não) e que não sejam de minha autoria estão citados entre aspas e está identificada a fonte e a página de que foram extraídos (se transcritos literalmente) ou somente indicadas fonte e página (se apenas utilizada a idéia do autor citado). Declaro, outrossim, ter conhecimento de que posso ser responsabilizada legalmente caso infrinja tais disposições.

Ponta Grossa, 22 de novembro de 2007.

___________________________________________ Maristela Carneiro RA: 041031489

AGRADECIMENTOS

A todos, que direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho, em especial à minha família, grande responsável pelas minhas conquistas. Ao Prof. Dr. Edson Armando Silva, por pacientemente ter acolhido a idéia e aceitado me orientar, muitas vezes ampliando meu olhar. Ao Prof. Marcio Jose Ornat, por ter me apresentado aos Sistemas de Informações Geográficas - SIGs e pela disposição em me auxiliar durante todo o processo de construção dos bancos de dados. Às sempre queridas Myriam J. Sacchelli e Rosângela M. S. Petuba, exemplos de historiadoras, que me conduziram à paixão pela pesquisa, acreditaram no meu potencial e incentivaram-me a continuar. À Associação Brasileira dos Estudos Cemiteriais – ABEC, por demonstrar que a nossa pesquisa não tem escala nem fronteiras. Em especial, aos cemiteriais Fábio Steyer e Cristina C. Kasprzak, por gentilmente terem acompanhado meu trabalho. Aos amigos Fernando José B. de Oliveira e Denise Pereira, pela leitura cuidadosa e pela amizade e preocupação sempre presente. Aos amigos Thiago Augusto D. de Oliveira e Andressa G. P. de Oliveira, pelas discussões historiográficas sempre férteis, acompanhadas de vibrações positivas e enorme carinho. Com todo o amor do mundo, à “turminha do reforço”, em vários momentos cemiteriais honorários, companheiros para toda vida, ainda que distantes espacialmente – Camila, Flávio, Helton, Lorena e Valéria. Ao Danilo A. Ribeiro, pelo amor e compreensão em cada momento, razão da continuidade deste trabalho.

“Tendemos a ignorar esse pensamento de que a vida simplesmente existe. Como seres humanos, estamos propensos a achar que ela precisa de um objetivo. Temos planos, aspirações e desejos. Queremos aproveitar ao máximo a existência embriagante de que fomos dotados. Mas o que é a vida para um líquen? Todavia, seu impulso por existir, por ser, é tão forte quanto o nosso – possivelmente até mais forte. Se eu fosse informado de que teria de passar décadas como uma cobertura felpuda de uma rocha na floresta, acho que perderia a motivação para continuar vivendo. Os liquens não perdem. Como quase todo ser vivo, eles sofrerão qualquer adversidade, agüentarão qualquer insulto, por um momento de existência adicional. A vida, em suma, simplesmente deseja ser. Mas – eis um ponto interessante – em geral não deseja ser muita coisa.” Bill Bryson, em “Breve história de quase tudo”

RESUMO

Este trabalho busca perceber de que maneira as relações sociais, religiosas e culturais, de um modo geral, são expressas na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José e como são demonstradas nos ícones contidos nos túmulos do mesmo, desde a sua instituição na cidade de Ponta Grossa, no ano de 1881, até os nossos dias. Através do levantamento fotográfico e quantitativo dos dados cemiteriais, processados em Sistemas de Informações Geográficas, bem como considerando as discussões pertinentes à memória, às práticas identitárias e às representações sociais, convergentes no espaço urbano; constatamos que a referida necrópole é um espaço de múltipla representação simbólica, com o potencial informativo acerca das identidades do meio social ponta-grossense no qual está inserido, para a preservação da memória dos mortos, bem como dos contextos nos quais estavam inseridos enquanto vivos.

PALAVRAS – CHAVE: Cemitérios, Rituais Fúnebres, Representações Sociais e SIGs.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS

Figura 1

Vista Parcial da Capela Mortuária Municipal São José......

26

Figura 2

Arquitetura Egípcia 41 Mausoléu da Família Quadros Vianna...................................

Figura 3

Vista Parcial do Cemitério Irmandade do Arcanjo São 45 Miguel e Almas – Porto Alegre / RS.......................................

Figura 4

Cemitério Municipal São José 81 Dia de Finados em 1935..........................................................

Figura 5

Portal de Entrada do Cemitério Municipal São José..........

Figura 6

Vista Parcial do Cemitério Municipal São José 88 Década de 1970........................................................................

Figura 7

Exemplo de monumentalização do espaço através do investimento estilístico........................................................

89

Figura 8

Tipologia Cristã Jazigo-Monumento da Família Driessen...............................

127

Figura 9

Tipologia Cristã – Pietá 128 Jazigo-Monumento da Família João Maria Nascimento.....

Figura 10

Representações Angelicais 130 Jazigo-Monumento da Família Lineu Martins Ribas...........

Figura 11

Anjos........................................................................................... 131

Figura 12

Alegorias Cristãs – Virtudes Teologais..................................

87

136

Figura 13

Alegorias Cristãs – Morte e Oração Jazigo-Monumento da Fam. Valthier Borges de Macedo...

139

Figura 14

Detalhe – Morte Tétrica...........................................................

140

Figura 15

Alegorias Sentimentais – Saudade........................................

142

Figura 16

Alegorias Sentimentais – Desolação.....................................

143

Figura 17

Alegorias Sentimentais – Memória Jazigo-Monumento da Família Arthur Gomes......................

144

Figura 18

Detalhe – Placa Casal Jazigo da Família Foggiatto....................................................

149

Figura 19

Detalhe – Naturalidade............................................................

152

Figura 20

Inscrição Alemã Jazigo-Monumento da Família J. David. Hilgenberg...........

153

Figura 21

Inscrição Árabe Jazigo-Monumento da Família Fiany.....................................

155

Figura 22

Inscrições em Hebraico...........................................................

155

Figura 23

Detalhe – Coluna 156 Jazigo-Monumento da Família Wagner.................................

Figura 24

Maçonaria..................................................................................

Figura 25

Positivismo................................................................................. 160

Mapa 1

Localização do Cemitério Municipal São José...................

158

91

Cartograma 1

Quadras do Cemitério Municipal São José...........................

72

Cartograma 2

Área dos Túmulos..................................................................... 93

Cartograma 3

Estado de Conservação dos Túmulos...................................

94

Cartograma 4

Estado de Conservação dos Túmulos – Ótimo....................

95

Cartograma 5

Estado de Conservação dos Túmulos 95 Regular e Deteriorado..............................................................

Cartograma 6

Material Predominante dos Túmulos.....................................

99

Cartograma 7

Formato dos Túmulos..............................................................

103

Cartograma 8

Formato dos Túmulos 105 Mausoléu e Jazigo-Monumento..............................................

Cartograma 9

Padrão dos Túmulos................................................................

110

Cartograma 10

Padrão dos Túmulos – Baixo..................................................

111

Cartograma 11

Padrão dos Túmulos – Médio.............................................

111

Cartograma 12

Padrão dos Túmulos – Médio-Alto..................................... 112

Cartograma 13

Padrão dos Túmulos – Alto................................................. 112

Cartograma 14

Símbolos Religiosos – Cruz....................................................

122

Cartograma 15

Tipologia Cristã.........................................................................

125

Cartograma 16

Alegoria Cristã........................................................................... 135

Cartograma 17

Alegoria Sentimental................................................................

Cartograma 18

Símbolos – Placa Casal........................................................... 148

Cartograma 19

Símbolos – Nome de Família.................................................. 151

Cartograma 20

Símbolos – Inscrições..............................................................

141

152

Gráfico 1

Relação entre o n° de sepultados e o primeiro ano d e 80 sepultamento em cada túmulo............................................

Gráfico 2

Estado de Conservação dos Túmulos...................................

96

Gráfico 3

Material Predominante dos Túmulos.....................................

100

Gráfico 4

Relação entre o Estado de Conservação e o Material dos 101 túmulos.......................................................................................

Gráfico 5

Formato dos Túmulos..............................................................

Gráfico 6

Material dos Jazigos................................................................. 107

Gráfico 7

Padrão dos Túmulos................................................................

Gráfico 8

Relação entre o Estado de Conservação e o Padrão dos 115 túmulos.......................................................................................

Gráfico 9

Relação entre o Material e o Padrão dos túmulos.............. 116

Tabela 1

Estado de Conservação dos Túmulos...................................

97

Tabela 2

Material Predominante dos Túmulos.....................................

100

Tabela 3

Relação entre o Estado de Conservação e o Material dos 101 túmulos.......................................................................................

Tabela 4

Formato dos Túmulos..............................................................

Tabela 5

Material dos Jazigos................................................................. 107

Tabela 6

Padrão dos Túmulos................................................................

Tabela 7

Relação entre o Estado de Conservação e o Padrão dos 115 túmulos.......................................................................................

Tabela 8

Relação entre o Material e o Padrão dos túmulos.............. 116

106

113

106

113

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................

12

CAPÍTULO 1 – MORTE: CONSTRUÇÃO SÓCIO-CULTURAL DE LONGA DURAÇÃO 1.1.

A morte enclausurada..............................................................................................

20

1.2.

Os primeiros historiadores da morte........................................................................

30

1.3.

Os poderes da morte...............................................................................................

36

1.4.

A morte familiar........................................................................................................

44

1.5.

Medicalização e Sanitarismo...................................................................................

52

1.6.

Cemitérios e Representações Sociais.....................................................................

61

CAPÍTULO 2 – CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO JOSÉ: UMA HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 2.1.

Discursos e arranjos na ordem estabelecida...........................................................

68

2.2.

Paisagem dos Cemitérios: acúmulo de escolhas....................................................

83

2.3.

A Cidade dos Mortos...............................................................................................

90

CAPÍTULO 3 – PARA ALÉM DO CONCRETO: O SIMBÓLICO MATERIALIZADO 3.1.

Espaço Funerário: transmissões culturais e relações sociais.................................

119

3.2.

Simbologia Cristã: justificação do além-túmulo.......................................................

121

3.3.

Alegorias: sentimentos personificados....................................................................

132

3.4.

Celebração da Memória e da Identidade

146

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................

162

FONTES.............................................................................................................................

167

REFERÊNCIAS..................................................................................................................

168

12

INTRODUÇÃO “Quando a Morte conta uma história você deve parar para ler.” A menina que roubava livros

Amplamente, a utilização dos mortos em nossa sociedade, destacando o caráter homólogo ao outro mundo, permite a conciliação da rede de relações pessoais em torno dos mesmos e de sua memória. Com a finitude, os mortos imediatamente passam a ser concebidos como exemplos e orientadores de posições e relações sociais, servindo, portanto, como foco para os sobreviventes, vivificando e dando forma concreta aos elos identitários que ligam as pessoas de um grupo. E o espaço cemiterial, por conseguinte, é privilegiado para a concretização e demonstração das conexões entre a memória, as práticas identitárias e as representações sociais, dialeticamente construtoras de relações sociais, bem como construídas pelas mesmas. Entendemos que o culto dos mortos passa por um filtro de percepção, permitindo que somente os valores considerados essenciais pelos vivos, para a recomposição do sentido da vida, sejam expressos no espaço cemiterial, no qual este trabalho encontra-se circunscrito. Assim, a individualização das sepulturas e os valores expressos nas mesmas demonstram o desejo de preservar a identidade e a memória dos mortos, servem à expressão e/ou transmissão dos valores culturais e à própria reconstituição do sentido existencial para os que ficam. Nesse sentido, ao considerarmos o Cemitério Municipal São José como expressão constante e dinâmica de representações sociais, campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais, a discussão aqui proposta busca perceber de que maneira as relações sociais, religiosas e culturais, de um modo geral, são expressas na distribuição espacial do mesmo e

13

como são demonstradas nos ícones contidos nos túmulos deste, desde a sua fundação na cidade de Ponta Grossa, em 1881, até os nossos dias. Para o desenvolvimento desta pesquisa foi realizado, túmulo a túmulo, um levantamento fotográfico e quantitativo dos dados cemiteriais, organizados em fichas catalográficas elaboradas com este fim.

1

Tais dados foram

em seguida processados em Sistemas de Informações Geográficas (SIGs SPRING 4.3 e KOSMOS 0.8.3), para a geração de cartogramas e gráficos a fim de instruir a análise qualitativa, contando com o apoio de outros programas específicos (Microsoft Office Excel 2003 e Inkscape). Os SIGs são uma tecnologia do mundo contemporâneo, que tem como característica principal a capacidade de integração e transformação de dados espaciais, entendidos como a descrição quantitativa e qualitativa dos fenômenos ocorridos no “mundo real” e que têm como premissa a reprodutibilidade, desde que satisfeitas as mesmas condições de coleta. Ao agregarmos valores intelectuais e subjetivos, os dados transformam-se em informações que, além de refletir o grau de reflexão do autor, constituem a base fundamental dos SIGs para a intervenção no meio social. Os Sistemas de Informações Geo-referenciadas ou Sistemas de Informações Geográficas (SIGs) são usualmente aceitos como sendo uma tecnologia que possui o ferramental necessário para realizar análises com dados espaciais e, portanto, oferece, ao ser implementada, alternativas para o entendimento da ocupação e utilização do meio físico (...). [grifo no 2 original]

Ao mesmo tempo em que a utilização dos SIGs revoluciona a análise das informações, também depende de forma umbilical da racionalidade da construção de um banco de dados, somente possibilitada com o auxilio de técnicas 1

O trabalho de campo, incluindo o levantamento fotográfico e catalográfico, foi realizado entre maio/2006 a abril/2007.

2

SILVA, A. de B. Sistemas de Informações Geo-Referenciadas: Conceitos e Fundamentos. Campinas: Unicamp, 2003, p. 27.

14

computacionais sofisticadas e de profissional especializado, pois a utilização dos mesmos não garante a segurança de que o produto final corresponda a alternativas corretas, em especial quando não há um controle de qualidade do banco de dados. Ressalta-se que o modelamento dos dados espaciais é realizado através de estruturações lógicas, para representar variações geográficas em bancos de dados digitais, sendo que os cartogramas, construídos para a análise das informações na configuração espacial do Cemitério Municipal São José, são as representações gráficas destes bancos. 3 Todavia, as mudanças na linguagem do historiador, impostas pelos procedimentos informatizados e pelas novas mídias, e as mudanças nos métodos de pesquisa e na organização das fontes, geram atitudes paradoxais na comunidade acadêmica. Segundo Silva, para romper esta dualidade de representações talvez seja útil a demonstração de algumas experiências que sirvam de bases reflexivas acerca do impacto da informática no campo do historiador. De acordo com o autor: Não se tratam de modelos a serem aplicados acriticamente. São experiências que apresentam possibilidades e limites e que podem eventualmente orientar o historiador que deseja utilizar novas técnicas em suas pesquisas, na escolha do equipamento, do software ou no desenvolvimento de procedimentos. Mas a eficácia das técnicas utilizadas não depende apenas da escolha do equipamento ou dos programas. A definição dos procedimentos e sua correta configuração podem significar 4 uma diferença radical de produtividade.

Assim, ao considerar a inerência entre técnica e teoria, este trabalho se propõe a demonstrar a utilização dos Sistemas de Informações Geográficas, ferramentas para a investigação científica, para a análise do espaço cemiterial e, indo além, como contribuição reflexiva para a análise e/ou ampliação do próprio campo do historiador, na era do gerenciamento disciplinado de informações.

3 4

SILVA, Sistemas de Informações..., op. cit., p. 17-18.

SILVA, E. A. Bancos de dados e pesquisa qualitativa em história: reflexões acerca de uma experiência. Revista de História Regional. Ponta Grossa: UEPG, vol. 3, n°2, 1998, p. 168.

15

O espaço cemiterial é percebido como reflexo e condição da sociedade, cuja dimensão social corresponde ao espaço urbano em grande escala, de forma temporal e justaposta. Considerando-se que a morte é portadora de múltiplas dimensões, diretamente influenciadas pela relação entre espaço e tempo, observa-se que a paisagem cultural é o conjunto de formas materiais dispostas e articuladas entre si no espaço: (...) de um lado, resultado de uma dada cultura que a modelou e, de outro, constitui-se em uma matriz cultural. Como resultado a paisagem é “um vitrine permanente de todo o saber”, expressando a cultura em seus 5 diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional e outra simbólica.

Assim as paisagens, dentre as quais a cemiterial, servem como mediadoras na transmissão cultural, contribuindo para transferir de uma geração para outra os saberes, crenças, atitudes sociais, ou seja, as próprias práticas identitárias, para o estabelecimento e reafirmação das relações sociais. Destarte, o espaço define-se como um campo de representações simbólicas, enriquecido com signos que possuem a finalidade de expressão das estruturas sociais em suas múltiplas dimensões. “As formas espaciais, através das quais o simbolismo ganha materialidade, constituem (...) meios através dos quais a cultura é modelada.”

6

A

cultura é caracterizada por componentes materiais, sociais, intelectuais e simbólicos, não sendo constituída pela justaposição de traços independentes, mas formando sistemas de relações mais ou menos coerentes. Nesse viés, faz-se pertinente observar que as transformações na contemporaneidade têm conduzido os historiadores a se debruçar sobre os estudos da memória, o que amplia as inquietações acerca do cotidiano e favorece a abordagem do espaço urbano, contribuindo, dessa forma, para redefinir e expandir

5

CORRÊA, R. L. A dimensão cultural do espaço: alguns temas. Revista Espaço e Cultura. Rio de Janeiro: UERJ, vol.1, n°1, 1995, p. 4. 6

CORRÊA, op. cit., p. 10.

16

as noções tradicionais do significado histórico e diversificar as possibilidades de análise sobre a cidade que, de pano de fundo, passou a ser percebida como objeto, questão e/ou problema. Matos aponta que uma das primeiras vias a considerar a cidade enquanto questão, a partir do final do século XIX, foi a higiênico-sanitarista, que buscava neutralizar o espaço e qualificá-lo como universal e manipulável, através do discurso científico. Assim, a cidade passou a ser signo do progresso e da civilidade, permeada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania, palco de tensões sociais, assim como o próprio espaço cemiterial. 7 Contemporaneamente, a problemática da cidade, demonstrando-se múltipla, passou a considerar as tensões urbanas vivenciadas de forma fragmentada e diversificada, relacionadas ao espaço e aos jogos de memória, pois as cidades passam a ser entendidas como territórios que condicionam múltiplas experiências: As tensões urbanas surgem como representações do espaço – suporte de memórias contrastadas, múltiplas, convergentes ou não, mas que delineiam cenários em constante movimento, em que esquecimentos e lacunas constroem redes simbólicas diferenciadas. Discursos diversos fazem da cidade lugar para se viver, trabalhar, rezar, observar, divertir-se, misturandose os laços comunitários e étnicos, criando espaços de sociabilidade e reciprocidade, no trabalho e no lazer, em meio às tensões historicamente 8 verificáveis.

Assim, identificamos o espaço cemiterial enquanto experiência individual e coletiva, reflexivo da cidade na qual está inserido e portador das tensões e representações sociais inerentes à mesma. As representações sociais determinam a interpretação dos comportamentos, designando uma forma de pensamento social segundo a qual o conhecimento provém da observação. Dessa forma, conforme Gregio, as representações sociais da realidade estão sempre “vinculadas às experiências, à cultura assimilada no

7

MATOS, M. I. S. de. Cotidiano e Cidade. In: Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002, p. 32-33.

8

MATOS, op. cit., p. 35.

17

decorrer de sua vida, à linguagem que utiliza nas relações sociais, enfim à própria história pessoal e do grupo social com o qual convive e se relaciona”.

9

O

conhecimento dessas representações oferece a compreensão de como os sujeitos sociais apreendem os acontecimentos da vida diária, as características do meio, as informações que circulam, as relações sociais e as práticas identitárias, elementos estes amplamente demonstrados no espaço cemiterial. Isto posto, representação social pode ser entendida como um conteúdo mental estruturado, ou seja, cognitivo, avaliativo e simbólico, sobre um fenômeno social relevante (entenda-se realidade), que toma a forma de imagens ou metáforas, processo este conscientemente compartilhado com outros membros do grupo social.

10

Ressalta-se que a reafirmação identitária faz-se através do diálogo

com o outro e atua seguindo um padrão de atos verbais e não verbais, conforme interage com códigos construídos e/ou impostos neste processo. A identidade passa a ser essencial na perpetuação de memórias à medida que se procura reiterar certezas adquiridas, cristalizando-as. Por sua vez, o espaço de inscrição das práticas assume importância, visto que as práticas tradicionais são especificas e se definem espacialmente, com trocas desiguais de identidades e de culturas. 11 Portanto, buscamos analisar o espaço e a paisagem material do Cemitério Municipal São José, considerando as discussões pertinentes à memória, às práticas identitárias e às representações sociais, convergentes no

9

GREGIO, B. M. A. A informática na educação: as representações sociais e o grande desafio do professor frente ao novo paradigma educacional. Revista Digital da CVA - Comunidade Virtual de Aprendizagem da Rede das Instituições Católicas de Ensino Superior. Disponível em: http://www.ricesu.com.br/colabora/n6/artigos/n_6/pdf/id_02.pdf ; acessado em 15/11/2005, p. 5. 10

FERNANDES, S. M. C. Representações Sociais e Educação Especial: sentidos, identidade, silenciamentos. Revista Benjamim Constant. Rio de Janeiro, vol. 09, n°24, 2003, p. 2. 11

MENDES, J. M. de O. O desafio das identidades. In: A globalização em ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002.

18

espaço urbano, este refletido no espaço cemiterial, percebido enquanto espaço de “representação simbólica”. 12 Diante de tais reflexões, a discussão então proposta foi estruturada em três capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Morte: construção sócio-cultural de longa duração” diz respeito à construção da expressão simbólica da morte, ao entendermos que os rituais funerários, os cultos religiosos e as manifestações artísticas em diferentes culturas são múltiplos, aos quais são inerentes diversos sentidos assumidos pela questão da morte. No segundo capítulo, “Cemitério Municipal São José: um história em construção”, abordamos em linhas gerais a história da fundação e desenvolvimento da referida necrópole, utilizando, para tanto, a legislação municipal referente à matéria; algumas notícias publicadas pelos periódicos locais (Jornal Diário dos Campos e Diário da Manhã), bem como bibliografias locais, objetivando perceber, desta forma, a multiplicidade de discursos ao se tratar da temática cemiterial, mais precisamente no Cemitério Municipal São José. Ainda neste capítulo, buscamos discutir a inerência do espaço cemiterial ao contexto urbano, no qual o mesmo está inserido, através da análise dos cartogramas desenvolvidos no decorrer da pesquisa, assim como gráficos e tabelas de apoio, apontando para a existência de áreas de concentração no espaço cemiterial. Ao conceber o Cemitério Municipal São José como campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais, o terceiro capítulo, “Para além do concreto: o simbólico materializado”, dedica-se à discussão acerca da simbologia presente no Cemitério Municipal São José, que objetiva transmitir ou expressar os valores culturais, para o estabelecimento e reafirmação 12

ARAÚJO, T. N. de. Túmulos celebrativos de Porto Alegre: múltiplos olhares sobre o espaço cemiterial (1889-1930). Porto Alegre: PUCRS, dissertação de mestrado, 2006, p. 113.

19

das relações sociais. Buscamos exemplificar a simbologia cemiterial através das tipologias cristã, alegórica e celebrativa, sem a intenção de esgotar as possibilidades culturais presentes no espaço em questão. Ressaltamos que a memória dos mortos é mediada pela memória dos vivos, sendo que a individualização de cada túmulo é indicativa do desejo de continuidade existencial. Os túmulos do Cemitério Municipal São José são concebidos neste trabalho tanto como uma realidade mental quanto como uma realidade social e espacial que, conjugadas, constroem o ambiente propício para que os sobreviventes elaborem suas representações sociais, para a constituição de mundos sociais específicos. 13 História dos processos, das práticas, com os quais se constroem sentidos, proporcionam-se significados ao mundo, ainda que plurais e até mesmo contraditórios.

13

CHARTIER, R. Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas culturais. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 27-28.

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CAPÍTULO 1 MORTE: CONSTRUÇÃO SÓCIO-CULTURAL DE LONGA DURAÇÃO

1.1. A morte enclausurada

“É sem qualquer terror que eu vejo a desunião das moléculas da minha existência.” Marquês de Sade

Nos dias atuais deparamo-nos com um intenso culto da beleza humana. A perfeição corporal é buscada com afinco e cada vez mais homens e mulheres passam a se submeter à prova do espelho. Busca-se a juventude eterna por intermédio de uma série de cosméticos e, para os mais ousados, através dos bisturis; neste “império da vaidade” a aparência física é até mesmo considerada para a qualidade dos relacionamentos pessoais. Em tempos de ditadura da beleza, o corpo é massacrado pela indústria e pelo comércio, que vivem de nossa insegurança, impotência e angústia. Criou-se uma tirania que não suporta quando um cidadão tenta ser feliz 14 como gosta e como pode, mesmo que seja comendo uma pizza.

A obrigatoriedade em corresponder ao imperativo de beleza vigente nos dias atuais está intrinsecamente relacionada ao modo de vida individualista e, paradoxalmente, à crônica necessidade de afeto, ao lado do progresso da ciência e do desenvolvimento e afirmação da burguesia capitalista. Assim, dentre as diferentes razões que explicam a atual busca pela juventude eterna, há a exigência de um corpo jovem que corresponda à demanda capitalista de força de trabalho

14

LEITE, P. M. Disponível em: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=redacao/temas/docs/o_culto_da_beleza_fisica ; acesso em 08.04.2007.

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produtiva, que busca descartar os velhos do sistema, tendo em vista que, nesta perspectiva, não possuem mais capacidade física para gerar lucros. 15 Portanto, o culto do corpo não se restringe à beleza; abrange também a questão do prolongamento da vida, no sentido de que a constante busca pela juventude implica em afastar todos os assuntos que remetam à finitude da vida. Com os idosos sendo descartados por estarem muito próximos da morte e da impossibilidade produtiva, o desejo de se fugir do envelhecimento faz com que se evite e/ou se interdite, das “conversas educadas”, comentários acerca do morrer. Ao mesmo tempo em que os mortos são cada vez mais banidos do convívio dos vivos, novas formas de enterro, cemitérios e maneiras de lidar com a finitude da vida são socialmente construídas. Em “A Solidão dos Moribundos”, Elias procura refletir acerca da morte e do ato de morrer, segundo ele, usualmente estigmatizados como tabus nas sociedades ocidentais avançadas. O autor aponta que há diversas maneiras de enfrentar a finitude da vida, dentre as quais a mitologia, a interdição, a crença inabalável na própria imortalidade ou, ainda, como um fato da existência. Esta questão, entretanto, não apenas do fim efetivo da vida, mas também da morte gradual e a separação tácita dos moribundos do mundo dos vivos, coloca-se claramente apenas no círculo médico – “no debate mais amplo da sociedade, a questão raramente se coloca” 16. A tanatologia, termo cunhado pela bióloga russa Elie Metchnikoff, é uma ciência que estuda a morte, em seus aspectos: biológicos, sociais, psicológicos, legais e éticos. De acordo com Dornellas, um dos consensos entre os tanatologistas 15

PAGOTO, A. A. Do âmbito sagrado da igreja ao cemitério público: transformações fúnebres em São Paulo, 1850-1860. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005, p. 130.

16

ELIAS, N. A Solidão dos Moribundos, seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 8.

22

é a importância de encarar a morte como um processo natural decorrente da própria vida. Porém, o fato constatado nos dias atuais é que a morte perdeu o caráter sagrado e social que possuía e passou a ser inconveniente, vista como uma derrota do saber médico. 17 A partir de meados do século XIX, a medicina intensificou a busca por respostas para a morte e, com isso, passou a valorizar o campo biológico em detrimento do mítico, cujo conhecimento foi “criando um halo de poder em torno de si e tomando o lugar da divindade destronada” 18, com a crescente individualização e relativização das manifestações religiosas e espirituais nos espaços da morte, ao mesmo tempo em que a passagem do quarto do moribundo para a cama de hospital foi sendo legitimada. No mesmo sentido, os ritos da morte, que aparentemente pouco haviam mudado até então, começaram “a ser esvaziados em sua carga mítica com os processos empregados para o seu escamoteamento” 19. Ressalta-se que o próprio avanço tecnológico da medicina incentivou o deslocamento do lugar da morte para os hospitais, com o objetivo de adiar o momento da morte e, assim, prolongar a vida do moribundo. Todavia, o olhar que a medicina dedica à morte é transpassado por um viés administrativo, “em que a morte permanece neutra, abstrata, separada dos corpos que adoecem e dos rituais do morrer e do enterrar os mortos”

20

. Deste modo, o costume do culto aos mortos

através dos epitáfios, nos cemitérios, perdeu gradativamente seu sentido original, foi 17

DORNELLAS, L. O. S. Morrer com dignidade: o último grande desafio. Revista Eletrônica Idade Ativa. Disponível em: http://www.techway.com.br/techway/revista_idoso/comportamento/comportamento_otavio.htm ; acesso em 06.05.2006. 18

Id.

19

BELLATO, R.; CARVALHO, E. C. O jogo existencial e a ritualização da morte. Revista LatinoAmericana de Enfermagem. Ribeirão Preto, vol.13, n°1, 2005, p. 102. 20

MENEGHEL, S. N.; ABBEG, C.; BASTOS, R. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos: um estudo exploratório sobre desigualdades no morrer. Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol.10, n°2, 20 03, p. 685.

23

esvaziado e dessacralizado, considerando que “os mortos não discutem e nem resolvem os problemas do cotidiano de uma sociedade cada vez mais capitalista” 21. Portanto, o movimento do esclarecimento científico promoveu a racionalização e a dessacralização da cultura e, com isso, também conduziu a experiência da morte a uma percepção leiga, sobretudo clínica. Se não vejamos: A essa ideologia clínica da morte pertence sua subtração do espaço social das vivências domésticas, seu ocultamento no espaço cerrado das enfermarias, a sua retirada do campo de visibilidade e audição [...], seu encerramento discreto e velado, na forma silenciosa da morte hospitalar. Dessa experiência está ausente aquela antiga dimensão de sentido, que fazia da morte um ritual de passagem, uma transição para o além, 22 pranteada e exposta nas salas de visita. Recusando os dogmas e os argumentos de autoridade, a moral contemporânea privou-se, igualmente, de uma reflexão e de uma meditação sobre a questão do sentido e do sagrado. Aos poucos, têm sido abandonadas as questões essenciais, as que são suscitadas em cada um 23 diante da morte.

Dessa forma, Leloup e Hennezel, em “A arte de morrer”, criticam o posicionamento contemporâneo com relação à morte, afirmando que a laicidade e a secularização, apoiadas numa ética inspirada pela Declaração dos Direitos do Homem, traz a interdição das questões relativas à morte e ao sentido da vida, na maioria dos lugares públicos destinados ao serviço social, como as escolas e os hospitais, sendo que nem mais o espiritual é reconhecido, visto que é confundido com o religioso, também escamoteado. A percepção da transitoriedade da vida destaca a fragilidade e as limitações da existência humana, em evidente contradição com as novas reflexões em relação ao morrer, que entrelaçam valores, modelos, lugares e rituais, em

21

COE, A. J. H. A morte no século XIX e a transferência dos enterros das Igrejas. Revista Eletrônica Outros Tempos – Pesquisa em Foco. Disponível em: http://www.uema.br/revista_emfoco/anaisagostinho.htm ; acesso em 12.03.2006.

22

GIACOIA JUNIOR. O. A visão da morte ao longo do tempo. Revista Medicina – Simpósio Morte: Valores e Dimensões. Ribeirão Preto, vol. 38, n°1, 2005, p. 18. 23

LELOUP, J.Y.; HENNEZEL, M. A Arte de Morrer: tradições religiosas e espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 17.

24

comunhão com o perfil sócio-econômico capitalista. Bellato e Carvalho, ao abordar o medo da morte que tem acompanhado o ser humano, afirmam que a consciência da finitude da vida impulsiona estratégias de enfrentamento, ou, conforme os autores, “mecanismos defensivos” 24. Segundo Freire: Assim, a morte como fato inexorável, sobre o qual não se tem controle, recai sobre a fragilidade humana – o temor pelo desconhecido (o que seria o pós-morte?) fez os homens atribuírem uma série de significações e explicações que sustentam a crença numa continuidade, num 25 prolongamento da existência após o fim da vida.

Isto posto, ao tratarmos do controverso tema da morte, que envolve termos como espírito, alma, imortalidade, mediunidade, reencarnação, nos deparamos com inúmeros conceitos e hipóteses que não podem ser comprovados fora do campo biológico. Assim, dentre os posicionamentos historicamente construídos acerca do morrer, há a visão da morte como uma possibilidade existencial, algo presente na existência humana, no sentido de que o homem convive com a idéia de morrer e interpreta a vida a partir dessa experiência, ou seja, o modo de relacionar a vida e a morte é o que determina o modo de ser do indivíduo. Pensada por filósofos e teólogos de várias tendências, uma segunda posição é a perspectiva da morte como o fim de um ciclo, como destinação humana, e que pode ser entendida de forma antagônica: como a responsável pelo descanso do indivíduo ou como a punição divina pelo pecado de Adão e Eva, conforme escreveu Tomás de Aquino, afirmando ser a morte um fato inexorável, considerando o pecado dos primeiros pais. 26

24

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 100.

25

FREIRE, M. C. B. Isolamento e sociabilidade no luto: a formação de redes sociais no ambiente cemiterial. Revista Hispana Para El Analisis de Redes Sociales. Disponível em: http://revistaredes.rediris.es/webredes/arsrosario/01-Freire.pdf ; acesso em 28.07.2006, p. 4. 26

CHIAVENATO, J. J. A morte: uma abordagem sociocultural. São Paulo: Moderna, 1998, p. 8.

25

Por fim, a visão da morte como o começo de uma vida nova é difundida pela maioria das religiões e implica a imortalidade da alma, que se desligaria do corpo com a morte terrena, cuja separação levaria à reencarnação ou a uma existência imaterial. Esta perspectiva, difundida pelas várias religiões e seitas cristãs, é predominante na cultura ocidental e é um dos fios condutores presentes nesta pesquisa, seja como aceitação, seja como negação. Faz-se pertinente ressaltar, entretanto, que estas percepções diante da morte se interpenetram e refletem de forma múltipla a angústia humana diante da vida e morte. Em suma, o desejo de compreensão e, até mesmo, de superação da morte, conduz às projeções com relação à pós-morte. Pensar na morte enquanto uma passagem para um outro âmbito de existência é a negação da mesma enquanto fim último; nos dias atuais, negar a mortalidade é interditá-la, ao mesmo tempo em que se promove o seu escamoteamento na esfera social reflexiva. Nos dias de hoje a morte é levada para longe do olhar dos vivos e para os bastidores do cotidiano. “Nunca antes as pessoas morreram tão silenciosa e higienicamente como hoje nessas sociedades, e nunca em condições tão propícias à solidão.”

27

Portanto, a presença simbólica da morte

tem sido recorrentemente afastada do meio social e, dessa forma, até mesmo os cemitérios perderam o caráter de templo absoluto e sagrado que detinham. Os mortos foram deixando de ser relacionados estritamente ao divino, merecedores de celebrações especiais, para se tornarem objetos de interdição, incômodos ao convívio dos vivos. Esta transformação dos ritos fúnebres nos dias atuais é tão sensível que até mesmo a disposição dos velórios no espaço urbano foi alterada, ficando

27

ELIAS, op. cit., p. 98.

26

cada vez mais próxima aos cemitérios, visando poupar os transeuntes do cortejo fúnebre.

28

A Capela Mortuária Municipal São José, em Ponta Grossa, por exemplo,

foi construída em frente ao Cemitério Municipal São José, concluída e entregue na gestão do Prefeito Municipal Paulo Cunha Nascimento, em 1996. Sua localização expressa o que foi mencionado acima: estando tão próxima do Cemitério impede a realização dos cortejos fúnebres tradicionais e, com isso, não apenas poupa os transeuntes como também não atrapalha o curso normal da cidade, que funciona em ritmo acelerado.

Figura 1 - Vista Parcial da Capela Mortuária Mun. São José

O

geógrafo

Eduardo

Rezende

procura

esclarecer

tal

escamoteamento: “Isso se deve principalmente ao fim do total domínio da Igreja católica sobre o morto e a morte, e ao avanço da economia de mercado no campo da morte.”

29

O autor também verifica a influência da interdição no “espaço dos

mortos”, conforme complementa: “O reflexo desse pensamento pode ser notado na

28 29

PAGOTO, op. cit., p. 131.

REZENDE, E. C. M. O céu aberto na terra: Uma leitura dos cemitérios de São Paulo na geografia urbana. São Paulo: E. C. M. Rezende, 2006, p. 131.

27

representação dos túmulos nos atuais cemitérios, todos padronizados, repetitivos, sem uma presença cultural e com a ausência de símbolos.” 30 Noal, no artigo intitulado “As trocas simbólicas e o tempo do desaparecimento”,

também

busca

compreender

o

esvaziamento

e

a

desnaturalização da morte, definindo-a além do intercâmbio material e biológico, “através de suas representações, [que] instiga[m] o universo simbólico da cultura, seja qual for sua influência ou orientação.”

31

Nesse ponto cabe ressaltar que as

atitudes humanas variam com o tempo e nas diferentes culturas, sendo que a perspectiva de cada um diante da morte é influenciada amplamente pela sociedade na qual está inserido e seus aspectos religiosos, morais e científicos. Pensando a morte nesse viés, a cultura ocidental está associada ao padrão dominante do mercado e, assim: afeta simbólica e comercialmente o sentido imaterial do fenômeno [morte] através da agregação de valores e custos a partir da utilização de mitos, crenças e tabus que influenciam as escolhas de todo o processo relacionado ao sepultamento, cada vez mais afastado da esfera familiar 32 para uma esfera profissionalizada e empresarial.

Tal afastamento do morrer também é incentivado pelo evidente aumento da expectativa de vida percebido atualmente, o qual não pode ser desconsiderado no que tange à análise quanto às atitudes pertinentes à morte nos dias atuais, conforme assinala Elias: A atitude em relação à morte e à imagem da morte em nossas sociedades não podem ser completamente entendidas sem referência a essa segurança relativa e à previsibilidade da vida individual – e à expectativa da vida correspondentemente maior. A vida é mais longa, a morte é adiada. O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida. Diz-se às vezes que a morte é ‘recalcada’. Um fabricante de caixões norte-americano observou recentemente: “A

30

Ibid., p. 133.

31

NOAL, F. O. As trocas simbólicas e o tempo do desaparecimento. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis, n°55, 2003, p. 3. 32

Ibid., p. 8.

28

atitude atual em relação à morte deixa o planejamento do funeral, se tanto, 33 para muito tarde na vida.”

Dessa forma, o banimento da morte também toma uma dimensão “prática”, no sentido de que é mais fácil se esquecer da morte, nos dias atuais, porque não se está em contato com a sua presença com a mesma freqüência que no passado. Elias esclarece que a morte era mais exposta, presente e familiar na Idade Média, em relação ao presente, mas o medo da morte permanecia inconstante, especialmente pela menor pacificação social interna, controle das epidemias e outras doenças. A vida na sociedade medieval era mais curta, os perigos menos previsíveis e o sentido da culpa e o medo da punição na outra vida se colocava como a “doutrina oficial”, contudo, em todos os casos, a participação dos outros na morte de um indivíduo era mais comum. Por outro lado, a morte parece atualmente um problema filosófico e existencial, onde o indivíduo é uma entidade moral dominante, diferente das sociedades tradicionais. O antropólogo DaMatta relaciona os problemas com o enfrentamento da morte ao individualismo crescente de nossa época, isto porque quando tomado como princípio básico da vida social, juntamente com a ideologia do progresso e do consumo, é o que faz com que a morte seja problemática. 34 Ainda que a identificação social e o compartilhamento dos sofrimentos e da morte tenham aumentado nos dias atuais, se comparados à Antiguidade, Elias aponta a morte como um “problema social” difícil de resolver, visto que “os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos”

35

. Assim, a morte

passa a ser problemática para os vivos, considerando que os seres humanos são os

33

ELIAS, op. cit., p. 15.

34

DAMATTA, R. A Casa & A Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 133. 35

ELIAS, op. cit., p. 9.

29

únicos que têm consciência da finitude da vida, podendo tomar providências para proteger-se desta ameaça. Destarte, este conhecimento da morte é que cria problemas aos vivos. Nas palavras do autor: “A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas.” 36 Até mesmo os sepultamentos passaram a ser cerimônias simples e rápidas, como se procurassem neutralizar o ocorrido, evitando perturbar os sobreviventes: A prática da cremação está sendo cada vez mais difundida e aceita, não tanto por razões higiênicas, econômicas, ou ecológicas, mas porque se apresenta como a forma mais eficiente de fazer desaparecer e esquecer tudo o que resta do corpo. Representa, igualmente, a abolição oficial das peregrinações ao cemitério, do culto às sepulturas, dos epitáfios, do retrato 37 esmaltado. E, por assim dizer, da própria morte.

Destarte, a difusão de tal prática não é incentivada exclusivamente pelo desejo de ruptura com as tradições cristãs e/ou como manifestação de modernidade. Denota-se, de fato, que sendo a morte abolida, a necessidade da peregrinação aos túmulos, como outrora era costume, é amplamente relativizada. O individualismo e a economia e/ou padronização de gestos e sentimentos vigoram e as relações sociais mantidas nos ritos de despedida se tornam fragmentadas e superficiais, processo que evidencia que o “sofrimento causado pelo luto tornou-se um problema a ser vivido apenas por aquele que perdeu” 38. Ainda que muitos traços lembrem os antigos costumes fúnebres, a morte foi aos poucos se tornando enclausurada.

36

Ibid, p. 10.

37

MARANHÃO, J. L. de S. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 18.

38

FREIRE, op. cit., p. 2.

30

1.2. Os primeiros historiadores da morte

“A morte está escondida nos relógios.” Giuseppe Belli

A historiografia modifica-se com o decorrer do tempo, em razão das novas fontes e abordagens, das diferentes possibilidades e imperativos, em comunhão com as diferentes necessidades de orientação temporal da sociedade. Por sua vez, a história da Morte é beneficiada, especialmente a partir da década de 1950, com o desenvolvimento da demografia e do estudo das mentalidades, duas componentes essenciais da “Nova História”. Nesse sentido, os primeiros “historiadores da morte” evidenciaram o papel determinante da mortalidade nas estruturas demográficas. 39 Em fins da década de 1960, a chamada “História das Mentalidades” envolveu o campo da pesquisa histórica, concentrando-se nos estudos dos diferentes aspectos das realidades culturais ou mentais e, dada sua ampla difusão, definiu-se como a principal contribuição da terceira geração dos Annales. Este fato foi determinante para a redefinição do conceito de fonte e de documento, sendo que a história passou a valorizar a memória, os comportamentos e as sensibilidades, destacando as atitudes coletivas, nas quais se busca sentido para as problematizações da contemporaneidade. 40 Nesse viés, em meados da década de 1970, os testamentos e a iconografia passaram a ser considerados como fontes para o estudo da morte, com

39 40

LEBRUN, F. Morte. In: Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 564.

REVEL, J. Mentalidades. In: Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 533.

31

a finalidade de compreender as atitudes diante da mesma, notadamente com o trabalho de Michel Vovelle (Piété baroque et déchristianisation em Provence au XVIII siécle, 1973), cujo subtítulo explicita o objetivo e as fontes da pesquisa (As atitudes diante da morte segundo as cláusulas dos testamentos). 41 Nesta obra, a história das mentalidades foi abordada através de uma metodologia quantitativa e serial, ao mesmo tempo em que resgatava de forma explícita e central “todo o aparato crítico do marxismo como ponto de apoio fundamental da explicação.” Dessa forma, Vovelle, muito inspirado em Karl Marx e Ernest Labrousse, recuperou o vínculo entre a ideologia e as mentalidades, articulados, ainda com o socioeconômico

42

,

valorizando para o estudo das atitudes perante a morte as doutrinas religiosas, as filosofias morais e políticas, bem como os efeitos psicológicos dos progressos científicos e técnicos e dos sistemas socioeconômicos. 43 Outro autor expoente na década de 1970 no que tange aos estudos relacionados à morte é o historiador francês Philippe Ariès, estudioso do assunto desde 1948. Em suas obras “O homem diante da morte”, volume duplo publicado em 1977, e “História da Morte no Ocidente”, publicado em 1975, que reúne “As atitudes diante da morte” e os “Itinerários” do autor, de 1966 a 1975; propõe uma análise dos ritos fúnebres e das concepções de morte desde a Idade Média até nossos dias, utilizando-se de documentações oficiais e também de manifestações culturais, como pinturas e obras literárias. Segundo ele, as transformações do homem diante da morte são extremamente lentas por sua própria natureza ou se situam entre longos períodos de imobilidade. Assim, os contemporâneos não as percebem porque o tempo que as 41

LEBRUN, op. cit., p. 565.

42

ROJAS, C. A. A. Uma história dos Annales. Maringá: Eduem, 2004, p. 126-127.

43

ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente. Da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 304.

32

separa ultrapassa o de várias gerações e excede a capacidade da memória coletiva. Além disso, ao mesmo tempo em que o historiador deve estar sensível às mudanças, não pode “se deixar obcecar por elas, nem esquecer as grandes inércias que reduzem as dimensões reais das inovações.” 44 Situando a morte na longa duração, Ariès aponta duas perspectivas de abordagem para detectar no interior do período milenar as mudanças que intervieram e que passaram despercebidas pelos contemporâneos. A primeira, segundo ele, utilizada por Michel Vovelle, trata-se da análise quantitativa de séries documentais homogêneas, sendo um método estatístico aplicado às formas e à localização dos túmulos, aos estilos das inscrições funerárias e aos ex-voto. A segunda proposta, utilizada por ele mesmo, é uma abordagem intuitiva, subjetiva e mais global, que diz respeito a examinar uma massa heteróclita, e não mais homogênea, de documentos, tentando decifrar a expressão inconsciente de sensibilidade coletiva. Ainda que Ariès seja um dos precursores dos estudos acerca da história da morte e uma referência habitual aos autores que abordaram de alguma forma a temática, a abordagem “intuitiva” que ele propõe, como mencionado, vem sendo freqüentemente criticada pelos “historiadores da morte” contemporâneos, ainda que o mesmo justifique seus posicionamentos, afirmando que parte do pressuposto de que é o inconsciente coletivo que impulsiona forças psicológicas fundamentais, quais sejam a consciência de si, o desejo de ser mais e o sentido do destino coletivo, da sociabilidade, etc. 45 Elias observa que Ariès “tentou apresentar a seus leitores um retrato vívido das mudanças no comportamento e atitudes dos povos ocidentais diante da 44

Ibid., p. 20-25.

45

Ibid., p. 304.

33

morte”

46

. Todavia, segundo o autor, com o qual concordamos, Ariès limitou-se a

descrever os processos relacionados aos ritos mortuários, acumulando imagens, numa perspectiva romântica. Ao contrário do que propõe, ou seja, a análise das transformações perante a morte na duração milenar, o autor acaba por contrapor o “bom passado”, da “morte domada”, como designa a morte medieval, ao “presente ruim”, quando a morte foi interdita. Nas palavras de Ariès: Assim se morreu durante séculos ou milênios. Em um mundo sujeito à mudança, a atitude tradicional diante da morte aparece como uma massa de inércia e continuidade. A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu nome. Por isso chamarei aqui esta morte familiar de morte domada. Não quero dizer com isso que anteriormente a morte tenha sido selvagem, e que tenha deixado de sê-lo. Pelo contrário, quero dizer que hoje ela se tornou selvagem. 47

Elias afirma que o autor baseou sua seleção de fatos numa opinião preconcebida e, muito embora as obras sejam ricas em evidências históricas, a seleção e a interpretação de tais evidências devem ser examinadas com muito cuidado. 48 No âmbito da Teoria da História, Carlos Rojas, em “Os annales das mentalidades e da antropologia histórica: os anos de 1968-1989”, corrobora com as críticas formuladas por Elias, considerando que as obras de Ariès são o modelo de uma história autônoma, auto-suficiente e quase idealista das mentalidades. Para o autor, a evolução e as transformações das diferentes atitudes dos homens frente ao ato de morrer são remetidas às mudanças de um etéreo e indefinido inconsciente coletivo. Vejamos: Desconsidera-se completamente o contexto social geral e as mudanças materiais das sociedades que elaboraram e desenvolveram tais ou quais atitudes diante da morte, para explicá-las apenas por meio de fatores 46

ELIAS, op. cit., p. 19.

47

ARIÈS, op. cit., p. 35-36.

48

ELIAS, op. cit., p. 19.

34

exclusivamente psicológicos, como o progresso da consciência de si, a recusa frente à natureza selvagem, ou as crenças na vida depois da morte e no mal. Modelo apoiado em uma enorme erudição fatual, mas limitado completamente por esta perspectiva, que considera as mentalidades como um fenômeno auto-explicativo e absolutamente independente de outras 49 esferas ou processos da totalidade social.

Em que pese a enorme erudição e a ampla gama de evidências históricas que Ariès demonstra em seus escritos, e que inclusive não são negadas por Rojas e Elias, o autor deixa a desejar quanto à análise da construção tanto social quanto histórica das atitudes perante a morte. A história das mentalidades, na qual Ariès se insere, pelo pretendido caráter transclassista ou universal da proposta, por vezes, esvaziou o papel fundamental do conflito de classes na esfera cultural, bem como a essencial distinção entre a cultura das classes dominantes e a cultura popular, comprometendo, dessa forma, toda a análise possível das heterogêneas realidades amparadas sob seus pressupostos. De fato, desde o surgimento, as “mentalidades” suscitaram muitas críticas, principalmente quanto ao caráter indefinido e ambíguo do conceito, que nunca possuiu uma elaboração teórica forte e acabada, sobretudo quanto à relação que manteriam com a totalidade do social, considerando que ora reivindicava-se a autonomia explicativa do mental, ora buscava-se reconstruírem-se diferentes conexões com o social. Dessa forma, a partir de 1989, com a frustração das tentativas de implantação do socialismo real e a evidência da inviabilidade histórica do capitalismo como alternativa justa e democrática, o projeto dos annales buscava responder e superar a gama de críticas recebidas por conta da história das mentalidades, propondo, nesse sentido, uma nova história cultural do social ou uma história social das distintas práticas culturais. 50

49

ROJAS, op. cit., p. 124-125.

50

Ibid., p. 122-124.

35

O conceito de mentalidade, indefinido quanto ao social, dá lugar ao conceito de práticas culturais, que reconstrói os nexos da mentalidade com seus fundamentos sociais específicos, remete à materialidade dos processos culturais e, ainda, insiste no caráter social da cultura. A visão de diferentes práticas culturais supera a idéia das mentalidades como transclassistas. A absorção das críticas levou essa nova história cultural do social a constituir-se como uma alternativa concreta para a história do “mental” dos precedentes annales. 51 Logo, percebemos a fundamentalidade de considerarmos o conflito de classes na esfera cultural para a análise da construção heterogênea das realidades. Entretanto, antes de passarmos à análise das relações socioculturais presentes no espaço do Cemitério Municipal São José, objeto deste trabalho, faz-se essencial percebermos em linhas gerais o processo de instituição das necrópoles existentes nos dias atuais; isso porque a morte nem sempre foi considerada como algo “proibido”, como anteriormente discutido. Ao contrário, considerando a inserção dos assuntos mortuários na longa duração, recentemente, em meados do século XIX, na cultura ocidental cristã, a morte era considerada por nossos antepassados como digna de publicidade e familiaridade, algo natural e necessária à vida. Durante séculos, a passagem para o além foi marcada por festas e cerimônias consideradas necessárias para que a alma alcançasse a salvação eterna e descansasse em paz no Paraíso. Um verdadeiro ritual foi desenvolvido e legitimado pela Igreja Católica, no qual cada etapa era entendida como um passo a mais em direção à eterna felicidade e aos 52 Campos Elíseos.

Isto posto, a morte era merecedora de rituais para a demarcação de sua passagem, numa sociedade onde o sagrado e o profano interagiam e se diluíam, apresentando uma única forma de conceber a fé e a religião. 51

ROJAS, C. A. A. Depois de 1989: Quartos Annales ou uma nova transição? In: Uma história dos Annales. Maringá: Eduem, 2004, p. 143-161 passim.

52

PAGOTO, op. cit., p. 18-19.

36

1.3. Os poderes da morte

“Os homens temem a morte como as crianças temem ir no escuro; e assim como esse medo natural das crianças é aumentado por contos, assim é o outro.” Francis Bacon

Os rituais funerários, os cultos religiosos e as manifestações artísticas em diferentes culturas são múltiplos, aos quais são inerentes diversos sentidos assumidos pela expressão simbólica da morte. Diferentes sistemas de religião e de metafísica são respostas dadas, historicamente, à pergunta acerca do sentido da vida, relacionado à experiência da morte. Assim, os seres humanos são os únicos que possuem consciência de sua finitude, o que faz com que a morte torne-se problemática para os vivos. Assim, “a ritualização mítica da morte tem tido a função de transcender o sofrimento pela finitude do ser humano”

53

. Destarte, o

sentido deste jogo existencial do ser humano, na dualidade entre vida e morte, elabora-se e se apresenta para os sobreviventes. Nas palavras de Jean Pierre Vernant, em “Mort grecque mort à deux faces”: Em sua função de memória coletiva, a epopéia não é feita para os mortos; quando ela fala deles, ou da morte, é sempre aos vivos que ela se dirige. Da morte, nela mesma, dos mortos entre os mortos, não há nada a dizer. Eles estão do outro lado de um limiar que ninguém pode transpor sem desaparecer, que nenhuma palavra pode alcançar sem perder todo sentido: mundo da noite onde reina o inaudível, ao mesmo tempo silêncio e alarido. 54

Portanto, a necessidade entre os homens de se prepararem para a morte faz com que o perfil simbólico da mesma em cada sociedade seja resultante 53 54

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 100.

VERNANT, J. P. L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne. Paris: Gallimard, 1982, p. 86. Apud GIACOIA JUNIOR, op. cit., p. 14.

37

da maneira como o fato bruto da morte foi sendo assimilado, preenchido de significação cultural e inscrito no sistema dos valores que asseguram o funcionamento e a reprodução de uma determinada ordem social. Tal assimilação [...] desempenha um papel decisivo na constituição e na manutenção de sua própria identidade coletiva, na medida em que essa integração da morte e da relação com ela constitui um dos elementos mais relevantes para a 55 formação de uma tradição cultural comum.

A experiência de morte é variável e específica entre os grupos humanos, observando que não importa o quanto possa parecer natural ou mesmo imutável aos membros de cada sociedade, sempre foi decorrente de aprendizagem. Isto posto: A resposta à pergunta sobre a natureza da morte muda no curso do desenvolvimento social, corresponde a estágios. Em cada estágio, também é específica segundo os grupos. Idéias da morte e os rituais correspondentes tornam-se um aspecto de socialização. Idéias e ritos comuns unem pessoas; no caso de serem divergentes, separam grupos. [...] Claramente não há uma noção, por mais bizarra que seja, na qual as pessoas não estejam preparadas para acreditar com devoção profunda, desde que lhes dê alívio da consciência de que um dia não existirão mais, 56 desde que lhes dê esperança numa forma de vida eterna.

Assim, desde os tempos mais remotos, os seres humanos buscam respostas para a problemática da morte, expressão esta fundamental aos rituais fúnebres. Jean-Pierre Bayard nos informa que todas as sociedades arcaicas demonstram que, ao tomar consciência da morte, o homem procurou a desintegração do envoltório carnal, praticou ritos que comprovam suas crenças no além e procurou facilitar o acesso a uma nova vida. 57 Desde que os homens começaram a se ocupar dos cadáveres de seus mortos, estão registradas basicamente quatro tipos de práticas funerárias, quais sejam a da pedra tumular (o corpo é esmagado por uma pedra, possivelmente 55

GIACOIA JUNIOR, op. cit., p. 14-15.

56

ELIAS, op. cit., p. 11.

57

BAYARD, J. P. Sentido oculto dos ritos mortuários: Morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996, p. 43.

38

com o objetivo de impedir o retorno do morto ao mundo dos vivos); a do enterramento (o corpo é depositado em uma cova e coberto por terra ou pedras), sendo esta a mais difundida; a do dessecamento (o corpo é deixado sobre uma palafita, exposto ao ar, para secar, e aos abutres, que o devoram) e a da cremação, que teve origem a partir do domínio do fogo (o corpo é queimado e transformado em cinzas). 58 [...] é possível observar a importância dos ritos funerários na manutenção da relação entre o homem e a morte. São os ritos mortuários que demonstram os cuidados e as preocupações humanas diante do “fantasma” de sua finitude. Podemos, desta forma, percebê-los como fenômenos sociais que envolvem os mortos - que devem, a partir de tais cuidados, se adaptar a sua nova “vida” - e os vivos - que diante da perda também se submetem a 59 padrões de comportamento e de reorganização da vida.

Assim, percebemos que a morte sempre suscitou emoções que se socializaram em práticas fúnebres, e o não-abandono dos mortos, evidenciado nos sepultamentos, por exemplo, implica uma crença na sobrevivência dos mesmos, no prolongamento existencial, para um tempo indefinido, não necessariamente eterno. 60

Enquanto fenômeno social, a morte e os ritos a ela associados consistem na

função de desagregar o morto do mundo dos vivos, o que exige a desestruturação e a reorganização das categorias mentais e dos padrões de relacionamento social

61

.

Denota-se que os seres humanos sempre buscaram se adaptar aos novos caminhos que iam percorrendo, adaptando também as suas práticas funerárias. A morte nas sociedades primitivas, especialmente nas totêmicas, resultava de uma intervenção maléfica externa (feitiços ou obra de um ancestral que voltou para buscar um membro da comunidade). Os mortos continuavam presentes em toda a vida cotidiana, como espíritos ou nos totens, regendo a caça e as 58

CHIAVENATO, op. cit., p. 12.

59

FREIRE, op. cit., p. 4.

60

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 100.

61

FREIRE, op. cit., p. 5.

39

colheitas, por exemplo. Dessa forma, muitas religiões assimilaram este pressuposto, originando assim a concepção da alma imortal. 62 Com o início da crença na dualidade corpo e alma, as sepulturas passaram a ser mais fundas, para garantir que os mortos não pudessem retornar para a existência terrestre. A presença do cadáver incomodava e, dessa forma, “muitas das práticas funerárias e pós-funerárias visam proteger os vivos do espectro maléfico ligado ao cadáver que apodrece.”

63

A revelação da morte do outro,

evidenciada na presença do cadáver, leva a percepção da finitude de si mesmo: “a morte ganha corpo e rosto, ela se encarna na carne do cadáver” 64. Todavia, com o aparecimento das religiões e a ampliação das crenças antigas, “em lugar de impedir a volta do morto, preparavam-se os caminhos de seu retorno ou então de seu ingresso em mundos especiais, criados pelo imaginário dos povos.”

65

Nessa perspectiva, a civilização egípcia cunhou um deus

da morte quarenta e cinco séculos antes de Cristo: Anúbis, filho de Osíris e de sua irmã Neftis, cuja origem é possivelmente resultante das primeiras crenças relacionadas aos cuidados com o corpo e à destinação humana após a morte. 66 Anúbis é o deus que dirigia as pompas fúnebres e acompanhava os mortos na viagem para o além. Defendia os mortos e suas moradas, desde a simples cova no deserto à luxuosa pirâmide dos faraós. Era invisível, e, quando os malfeitores ameaçavam a sepultura, ele os assombrava, uivando como o vento. À sua mãe Neftis atribui-se a instituição do embalsamento. O 67 primeiro a ser embalsamado, por sinal, foi Osíris.

Osíris havia sido esquartejado por seu irmão Seth. Ísis, sua outra esposa e também sua irmã, reuniu os pedaços, fazendo com que voltasse à vida.

62

CHIAVENATO, op. cit., p. 13.

63

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 101.

64

Id.

65

CHIAVENATO, op. cit., p. 13.

66

BAYARD, op. cit., p. 99 et seq.

67

CHIAVENATO, op. cit., p. 21.

40

Juntos conceberam Hórus, que posteriormente lutou contra Seth e o venceu, vingando a morte do pai. Assim, “Osíris é o guardião da Morte e reina no Império dos Mortos. Hórus é o deus da luz e dele descendem os faraós. Todos esses deuses estão intimamente relacionados com a morte.”

68

O Livro dos Mortos

preparava e aconselhava os egípcios para o momento da morte e para a chegada ao outro mundo. Assim, mesmo diluídos e fundidos com outras tradições, é comum, nos cemitérios contemporâneos, a influência da cultura egípcia no que tange aos ritos funerários, considerando-se que os egípcios foram um dos primeiros povos a possuir um desenvolvido sistema de culto aos mortos. Por exemplo, o mausoléu da “Família Quadros Vianna” possui formato piramidal, fazendo uma clara referência às pirâmides do Antigo Egito, que serviam, principalmente, para abrigar os restos mortais dos Faraós. Entretanto, a presença da alegoria cristã (Alegoria da Fé) na parte superior da construção demonstra que a família possui referenciais e crenças cristãs e que o objetivo da construção está relacionado ao simbolismo de demarcação social e celebração da memória através de um monumento.

68

Id.

41

Figura 2 – Tipologia Cristã Mausoléu da Família Quadros Vianna (Quadra 06, Túmulo 436)

Em muitas das sociedades antigas, portanto, a lógica da vida era perpassada pela afirmação de continuação e de plenitude mesmo após a morte. A correspondência entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos era: [...] vivida coletivamente, não constituindo, portanto, um drama pessoal, mas sendo largamente negociada no seio da sociedade. Assim, a ampla ritualização da morte que essas sociedades empreendiam, consistia numa estratégia global do ser humano contra a Natureza, procurando domar sua 69 selvageria e violência.

A morte era canalizada pelos ritos familiares e sociais, expressos como sistemas de defesa que não concebiam a morte como ausência ou separação irreparáveis. Apreende-se, desta forma, que as crenças na necessidade de prepararse para a morte estão presentes nas primeiras manifestações das mais antigas

69

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 101.

42

civilizações, como a egípcia, especialmente no que tange ao culto aos mortos, sendo que muitas destas práticas ainda encontram resquícios nos dias atuais. O culto aos antepassados é uma prática comum às religiões antigas. Acreditava-se, basicamente, que o morto passava a viver em uma outra sociedade, de forma sensivelmente equivalente à terrestre, todavia, conhecendo os ritos desta sociedade e também participando deles. “Os mortos, sem dúvida em relação com divindades, estão no segredo dos deuses; seus poderes são superiores aos nossos.”

70

Com isso, os rituais fúnebres “têm também a função de fazer o morto

completar a viagem para o seu território definitivo, protegendo, dessa forma, a comunidade contra o seu retorno.”

71

Nesta concepção, a morte era percebida como

uma passagem, onde as cerimônias fúnebres assumem a função social de preparação para a mesma: Por meio delas, o defunto é conduzido na travessia para o outro lado, para a outra margem da existência, marcando entre os vivos a presença de um vazio, escavando uma ausência positiva que se conserva, de diferentes maneiras, na memória coletiva dos que sobreviveram. As cerimônias fúnebres são, portanto, o memorial de passagem dos que deixaram a vida e adquiriram um novo status social: o estatuto que pertence à condição de 72 morto.

Desta forma, os mortos tinham a vantagem de que não se tinha conhecimento acerca da sua nova existência, o que levava a uma prática de dualidade: ao mesmo tempo em que os mortos eram cultuados e até mesmo preparavam-se os caminhos para que pudessem ter acesso à existência em outros planos, os vivos também tomavam providências para que os mortos não pudessem retornar a este mundo, ante o fato de possuírem poderes desconhecidos. Nas principais civilizações da antiguidade, como a mesopotâmica, apesar das diferenças fundamentais “quanto ao significado ético-religioso da morte, 70

BAYARD, op. cit., p. 74.

71

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 100.

72

GIACOIA JUNIOR, op. cit., p. 14.

43

esta se apresenta sempre como um limiar intransponível, uma fronteira que delimita uma região de sombras definitivamente inacessível para os vivos.” 73 De certa forma, esses traços comuns permaneceram nas religiões modernas, motivados e fundamentados pelo medo da morte: O medo dos antigos com relação à morte dará origem a alguns costumes que perduram até hoje em muitas regiões. Assim que começaram os primeiros sepultamentos com caixões, enquanto o morto era transportado para o local do enterro, espalhavam-se cinzas no caminho para confundir o espírito e impedir que ele encontrasse a estrada de volta. Começaram a fechar os olhos do morto para que este não visse o caminho até a sepultura 74 e por ele retornasse.

Assim, a troca social entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos foi se desfazendo com o tempo. Se os ritos de morte eram comunitários até o século XIII, uma vez que a Igreja Católica intervinha, até então, apenas para absolver o moribundo ou o morto dos seus pecados, a morte passou a ser, a partir de então e durante 75 muito tempo, “clericalizada”.

A morte medieval, antes familiar e presente, passou a ser mediada pela Igreja e a consciência do fim próximo foi sendo empurrada para a clandestinidade. De fato, este medo da finitude é comum especialmente em sociedades impregnadas de conceitos religiosos, nos quais há a idéia de imortalidade, sendo que é a aspiração à mesma que cria o medo da morte, por ser desconhecida: os poderes da morte ainda nos são obscuros.

73

Id.

74

CHIAVENATO, op. cit., p. 16-17.

75

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 102.

44

1.4. A morte familiar

“Todo mundo então era pérfido, mentiroso e falso? E lágrimas lhe vieram aos olhos, pois choramos sempre a morte das nossas ilusões com a mesma mágoa com que choramos os nossos mortos.” Guy de Maupassant

A palavra cemitério (do grego κοιµητηριον, pelo latim coemeterium) significa “lugar de dormir” ou “lugar de descanso”, seguindo o conceito da religião hebraico – cristã, de acordo com a qual a morte nada mais é do que um sono que termina com a ressurreição.

76

Originalmente a palavra cemitério designava a parte

exterior da igreja, isto é, o adro ou atrium. Além disso, o próprio conceito de igreja era mais abrangente e significava não apenas o interior da mesma, mas também todos os espaços ao redor. “Pouco a pouco esse conceito de igreja-cemitério como coisa única, foi se modificando e na segunda metade do século XIX esses dois conceitos já significavam construções diferentes.” 77 Os primeiros cristãos eram enterrados em cemitérios judeus, para os quais os mortos deveriam permanecer afastados do domínio dos vivos, conforme previa a Lei das Doze Tábuas: “Que nenhum seja inumado, nem incinerado dentro da cidade.” Porém, com o desenvolvimento da comunidade cristã, houve a necessidade da instituição de cemitérios próprios, mas ainda assim, não ocorriam na cidade. As catacumbas, do grego κατα χοµβασ, que significa junto ao fundo, foram os primeiros cemitérios cristãos e eram afastados do meio urbano. Ainda que não

76

CAROLLO, C. L. Cemitério Municipal São Francisco de Paula. Monumento e Documento. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p. 5. 77

A HISTÓRIA DOS CEMITÉRIOS NO BRASIL. Site Oficial do Sincep (Sindicato dos Cemitérios Particulares do Brasil) e da Acembra (Associação dos Cemitérios do Brasil). Disponível em: http://www.sincep.com.br/historias/25.asp ; acesso em 20.05.2006.

45

fossem uma inovação destes, já existindo no Egito, em Malta e na Tunísia, as catacumbas, no caso dos cristãos, serviam também como esconderijo. 78 As catacumbas nas paredes, presentes nos cemitérios atuais, são originárias das catacumbas cristãs, cujo formato tem sido comumente utilizado em algumas regiões no Brasil, onde a falta de espaço para os sepultamentos incentiva sua existência e proliferação. A cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, abriga o maior conjunto de catacumbas em edifício, no Cemitério Irmandade do Arcanjo São Miguel e Almas, reunindo aproximadamente 60 mil sepultamentos. 79

Figura 3 - Vista Parcial do Cemitério Irmandade do Arcanjo São Miguel e Almas Porto Alegre/RS

A entrada dos mortos na cidade é iniciada somente com o culto dos mártires de origem africana, por volta do século V. Os mártires eram enterrados nas necrópoles extra-urbanas, cujos locais venerados atraíam as sepulturas, e com o tempo, também as basílicas, pela crença nas santidades, o que refletia o desejo das

78 79

CAROLLO, op. cit., p. 6-7.

Informação fornecida por Harry Bellomo no II Encontro Nacional de Estudos Cemiteriais, em Porto Alegre, em julho de 2006.

46

pessoas em serem enterradas perto dos santos, ad sanctos. Dessa forma, a distinção entre os bairros periféricos, extra urbem, onde se enterrava ad sanctos, e a cidade, proibida às sepulturas, foi desaparecendo. 80 A separação entre a abadia cemiterial e a igreja catedral foi então apagada. Os mortos, já misturados com os habitantes dos bairros populares da periferia, que se haviam desenvolvido em torno das abadias, penetravam também no coração histórico das cidades. A partir de então, não houve 81 mais diferença entre a igreja e o cemitério.

Cerimônia pública e familiar, a morte era esperada no leito, organizada pelo próprio moribundo, de ordem ao mesmo tempo cristã e tradicional: “morte domada”. A admissão da morte era tranqüila e os ritos fúnebres “eram aceitos e cumpridos, de modo cerimonial, evidentemente, mas sem caráter dramático ou gestos de emoção excessivos” 82, postura esta relacionada à resignação ao destino coletivo da espécie, no sentido de que todos morrem. Ressalta-se que a idéia da morte individualizada é moderna. Na Idade Média e até meados dos séculos XVI e XVII, a destinação exata do corpo e dos ossos era pouco importante, vistos apenas como o invólucro da alma, contanto que permanecessem próximos aos santos e/ou às suas relíquias, de modo a assegurar uma intercessão especial destes e, dessa forma, a própria salvação da alma, esta sim considerada imortal. “O corpo era confiado à Igreja. Pouco importava o que faria com ele, contanto que o conservasse dentro de seus limites sagrados.” 83 Até mesmo considerada um instrumento pastoral, a visão dos sepulcros no chão também servia para lembrar aos fiéis da morte, dos pecados cometidos e de orar pelas almas do purgatório. 84

80

ARIÈS, op. cit., p. 38.

81

Ibid., p. 40.

82

Ibidem., p. 35.

83

Ibidem., p. 42.

84

PAGOTO, op. cit., p. 36-41.

47

Além disso, a entrada dos mortos na igreja e em seu pátio não impediu que esta permanecesse um local público. Poderia ser local de refúgio, ponto de encontro, também destinado a práticas comerciais, danças e jogos. Muito embora fossem surgindo sinais constrangedores e/ou de intolerância referentes à coexistência entre os vivos e os mortos, segundo Ariès: durante mais de um milênio estava-se perfeitamente acomodado a esta promiscuidade entre os vivos e os mortos. O espetáculo dos mortos, cujos ossos afloravam à superfície dos cemitérios [...] não impressionava mais os vivos que a idéia de sua própria morte. 85 Estavam tão familiarizados com os mortos quanto com sua própria morte.

Acreditou-se que a alma estaria protegida desde que o corpo fosse sepultado em solo sagrado, ou seja, dentro do âmbito da igreja e imediações, para que pudesse ressuscitar no Dia do Juízo Final. Entretanto, mesmo após a morte, as preocupações com a destinação da alma eram recorrentes, o que explica a grande quantidade de missas celebradas em favor das almas. “Após sepultado, os vivos intervinham com missas e orações que, segundo a crença, diminuíam as penas do purgatório e antecipavam a chegada dos mortos ao paraíso.” 86 Assim, a intervenção dos vivos era essencial, mesmo após a morte, visto que se acreditava que as missas e as orações antecipavam a chegada dos mortos ao paraíso. Até o momento do sepultamento, uma série de ritos e práticas era celebrada, objetivando afastar as possibilidades malignas e possibilitar aos mortos uma passagem tranqüila ao além. [...] a morte fez-se presente não somente aos moribundos (...) foi preocupação de todos os fiéis, durante toda a vida. Havia uma relação de mutualidade entre vivos e mortos. Os vivos eram responsáveis pelo cumprimento das disposições testamentárias, pelas orações que auxiliavam os mortos, pela vigília dos últimos momentos à sepultura. Os mortos, por sua vez, poderiam interceder perante a corte celestial obtendo graças a favor dos vivos. De modo que, vivos e mortos não somente coabitaram o interior do espaço urbano, mas relacionaram-se intimamente e de forma 87 mútua. 85

ARIÈS, op. cit., p. 45.

86

VIEIRA, L. A. S. Entre a Vida e a Morte: Interesses Populares, Representações Cristãs da Morte e Medicina Social em Minas no século XIX. Ouro Preto: UFOP, Monografia de Conclusão de Curso, 2002, p. 33.

87

Ibid., p. 34.

48

Se o morto conseguisse alcançar o paraíso, com o auxilio das orações dos vivos, então poderia interceder pelos vivos junto aos céus, facilitandose assim, a futura incorporação destes à comunidade dos mortos. Daí resulta a preocupação dos vivos para com os mortos, e não somente para com a sua própria morte. Contudo, a morte, que demonstra absoluta igualdade entre os homens, no sentido de que todos morrem, não se esgota em sua dimensão biológica: também possui uma dimensão social e, dessa forma, é um acontecimento estratificado.

88

Conforme a situação financeira dos fiéis, mais missas seriam

celebradas em sua memória, da mesma forma que ocorria com as divisões espaciais das igrejas. De fato, o espaço próximo aos santos e suas relíquias, ao altar dos sacramentos, sob as pedras da nave ou no claustro do mosteiro; era limitado e não permitia que todos pudessem ser ali enterrados. Nesse sentido, tal espaço era concedido aos que pudessem pagar mais pelo mesmo. Aos demais, eram destinadas fossas comuns, anônimas, localizadas nas adjacências da igreja, logo após serem envoltos em sudários simples.

89

Portanto, os sepultamentos ad sanctos

não impediam a estratificação social, sendo que mesmo no âmbito da igreja havia divisões espaciais conforme a situação financeira de cada indivíduo, no sentido de que quanto mais próximo se estivesse dos santos e relíquias, mais a salvação estaria garantida. 90 Amplamente influenciado pelos costumes europeus, no Brasil, com a predominância do catolicismo, também foi difundida a prática dos enterros dentro das igrejas, ad sanctos, apoiando-se na crença de que tal proximidade com as 88

MARANHÃO, op. cit., p. 20-21.

89

Ibid., p. 32.

90

PAGOTO, op. cit., p. 36-41.

49

santidades ou mesmo suas relíquias, facilitava a passagem a um mundo extraterreno, assegurando a salvação da alma.

91

Desde o início da colonização

portuguesa no Brasil, houve o predomínio do “catolicismo tradicional”, leigo, social e familiar, caracterizado especialmente pela integração entre os âmbitos laicos e religiosos, cabendo aos monarcas decidirem acerca da destinação da Igreja Católica, além da estreita relação entre a fé e a cultura. 92 A morte fez parte do cotidiano da colônia nos séculos XVIII e XIX e, a despeito das prováveis diferenças locais e regionais, as atitudes perante a morte se acoplaram a uma pauta fúnebre bastante uniforme e de conhecimento generalizado. As normas e os rituais eram regidos por uma clara legislação eclesiástica, consolidada em 1707 nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, primeiro código de regulamentação eclesiástica específico da Colônia, e difundidos por inúmeros manuais de “bem morrer” escritos em Portugal nos 93 séculos XVII e XVIII.

Tais constituições motivavam a inserção da morte no cotidiano colonial, a começar pelos locais de sepultamento que, desde os primórdios do povoamento, coincidiram sistematicamente com a localização dos templos, ou qualquer outro lugar sagrado, considerando que para os cristãos, a sepultura deveria localizar-se, obrigatoriamente, em território sacro, considerando que o medo da justiça divina levava as pessoas a utilizarem todos os recursos que afiançavam a salvação, incluindo a busca pela proximidade aos santos.

94

“A proximidade física

entre cadáver e imagens divinas, aqui em baixo, representava um modelo da

91

COE, op. cit.

92

PAGOTO, op. cit., p. 50.

93

CYMBALISTA, R. Cidades dos Vivos. Arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do estado de São Paulo. São Paulo: Annablume / Fapesp, 2002, p. 31. 94

VIEIRA, op. cit., p. 28.

50

contigüidade espiritual que se desejava obter, lá em cima, entre a alma e as divindades. A igreja era uma das portas de entrada do Paraíso.” 95 A forma de catolicismo tradicional, como referido, além de ser fértil à influência européia no território nacional, propiciou também o surgimento de diversas entidades religiosas, divididas entre Ordens Terceiras, Irmandades e Confrarias que, em sua maioria, eram associações presididas por leigos, visando à prestação de auxílio espiritual e material a seus membros, especialmente quanto à morte. Ainda, no caso das Irmandades mais ricas, estar filiado a tais associações era sinônimo de status social, tendo em vista que a constante realização de festas e procissões promovidas pelas mesmas eram oportunidades de ostentação da riqueza e do poder dos membros mais abastados. Quanto às Irmandades dos excluídos, estas visavam garantir a seus membros não apenas a melhoria das condições de vida, mas também era uma forma de propagar a cultura marginal e proporcionar um sepultamento digno na hora da morte. Segundo Pagoto: Além do aspecto assistencialista, as Irmandades eram vistas como veículo de propagação de cultura européia, visto que, muitas delas, eram formadas por escravos, índios, mestiços e permitiam mesclar, em seu interior, a cultura do dominante e aspectos da cultura do dominado. Para o Império, a formação dessas associações era de grande utilidade, pois elas funcionavam como intermediadoras entre o poder laico e o religioso e, por meio dos serviços prestados a seus membros, poupavam ao governo o 96 tempo gasto com as resoluções correspondentes ao âmbito social.

Assim, a organização das irmandades de escravos e forros era estratégica, sendo que se aceitava a moldura católica como possibilidade de agregação social, facilitando o controle social dessas classes. Por outro lado, os rituais eram “flexibilizados”, preenchidos de significados não apreendidos pelo catolicismo. 97 95

LACET, J. L. Os rituais de morte nas irmandades de escravos e libertos. Vila Rica, século XVIII. Mariana: UFOP, Monografia de Conclusão de Curso, 2003. p. 30.

96

Ibid, p. 52.

97

CYMBALISTA, op. cit., p. 40-41.

51

Contudo, a partir da segunda fase da Idade Média somente a sepultura ad sanctos e as orações não garantiam a certeza da salvação, fortificando assim a necessidade de prevenir-se espiritualmente. Nesse contexto, o testamento passou a ser essencial, como um sacramento, celebrado por intermédio da igreja. O primeiro passo necessário à preparação da Alma para o Dia do Juízo Final era, sem dúvida, a elaboração de um testamento. Geralmente esse documento era escrito muito tempo antes do falecimento do testador, pois pensava-se no risco de uma morte súbita ou violenta e da passagem para o outro mundo sem deixar as últimas disposições e vontades registradas, o 98 que prejudicaria a Salvação da Alma. Através dele o fiel confessava a sua fé, reconhecia seus pecados, (...) determinava o local de sua sepultura, prescrevia as questões relativas ao seu cortejo fúnebre, luminárias e cultos, e, enfim, pagava à Igreja um dízimo 99 sobre o valor de sua herança.

Assim, o testamento, como instrumento religioso, permitiu conciliar as riquezas à obra pessoal de salvação: garantia a salvação e permitia o desfrute dos bens adquiridos durante a vida. Todas as pessoas com algum tipo de posses, dos séculos XVI ao XVIII, redigiam testamentos e inventários para o registro cuidadoso de suas últimas vontades, incluindo o funeral e a disposição dos bens. Esses documentos serviam não apenas para o relato das vontades terrenas, mas também funcionavam como um mecanismo de confissão, através dos quais os fiéis também apontavam suas pendências e deslealdades e, sobretudo, seus posicionamentos perante o mundo: As representações coletivas subseqüentes do que venha a ser o sentido do estar no mundo e, portanto, o próprio ser no mundo, são enunciadas paulatinamente na medida em que também elaboram-se esquemas mentais de representação da morte, dos mortos, e sobretudo das atitudes dos vivos diante deste novo universo concentrado de existência no mesmo momento 100 em que a vida parece findar-se para novas possibilidades de ser.

Portanto, estes documentos eram espaços privilegiados para a exposição das concepções de vida e de morte dos fiéis, muito além do simples 98

PAGOTO, op. cit., p. 31.

99

MARANHÃO, op. cit., p. 32.

100

LACET, op. cit., p. 31.

52

registro das últimas e criteriosas vontades. Porém, em meados do século das luzes, a tomada de consciência dos mortos na sociedade dos vivos, ao lado da política sanitária, incentivou a retirada dos sepultamentos das igrejas, transferindo-os para as necrópoles a céu aberto, fato este que revolucionou a forma de lidar com a morte e com os mortos.

1.5. Medicalização e Sanitarismo

“É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde”. Clarice Lispector

Na Europa, sobretudo na França, a partir da segunda metade do século XVIII, e no Brasil, especialmente a partir do século XIX, as práticas funerárias subitamente tornaram-se um assunto atual que apaixonava a opinião pública. Publicações e comentários diversos dessa época tratam que, além de não haver espaço para todos, a prática ad sanctos gerava inconvenientes sanitários, do ponto de vista médico-científico, e a igreja não possuía as dimensões e condições adequadas à grande demanda de corpos e à vedação completa das catacumbas. Segundo Ariès, estes sentimentos já estavam presentes nas mentalidades, ainda que dissimulados, e representavam a tomada de consciência da presença dos mortos no mundo dos vivos. Tais sentimentos, se é que podemos chamar desta forma, fizeram com que surgisse uma verdadeira política sanitária, que buscava remover e higienizar todos os possíveis focos de contágio de doenças, incluindo os locais de

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sepultamentos, fato este que revolucionou a forma de lidar com a morte e com os mortos.

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1.5. Medicalização e Sanitarismo

“É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde”. Clarice Lispector

Na Europa, sobretudo na França, a partir da segunda metade do século XVIII, e no Brasil, especialmente a partir do século XIX, as práticas funerárias subitamente tornaram-se um assunto atual que apaixonava a opinião pública. Publicações e comentários diversos dessa época tratam que, além de não haver espaço para todos, a prática ad sanctos gerava inconvenientes sanitários, do ponto de vista médico-científico, e a igreja não possuía as dimensões e condições adequadas à grande demanda de corpos e à vedação completa das catacumbas. Segundo Ariès, estes sentimentos já estavam presentes nas mentalidades, ainda que dissimulados, e representavam a tomada de consciência da presença dos mortos no mundo dos vivos. Tais sentimentos, se é que podemos chamar desta forma, fizeram com que surgisse uma verdadeira política sanitária, que buscava remover e higienizar todos os possíveis focos de contágio de doenças, incluindo os locais de

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sepultamentos, fato este que revolucionou a forma de lidar com a morte e com os mortos. As alterações quanto às atitudes perante a morte, até então consideradas sacras, começaram a se alterar, no Brasil, em meados do século XIX, com a influência dos ideais higienistas europeus, trazidos por médicos que passaram a intervir no meio urbano e a ordenar todos os setores considerados prejudiciais à saúde pública. Nessa perspectiva, os mortos eram considerados os principais focos epidêmicos, sendo, desta forma, prioridade afastá-los do convívio dos vivos. Assim, as idéias iluministas, de cunho sanitarista, nascidas na Europa, influenciaram médicos, engenheiros e algumas autoridades laicas, que passaram a perseguir o que quer que fosse contrário às novas concepções de higiene pública, sendo que as formas de sepultamento destacaram-se como um dos principais alvos. Essa tendência teve sua gênese na Medicina Urbana e, posteriormente, se enraizou na Medicina Preventiva. Ela contribuiu para difundir a idéia, existente desde a antiguidade clássica, sobre o perigo da infecção através dos miasmas – , os detritos em composição, principalmente de origem orgânica – , que ao entrarem em contato com o ar o contaminam e afetam a 101 saúde daqueles que têm contato com a área infectada.

Os mortos passaram a ser uma ameaça à saúde dos vivos, sendo que as transformações que se seguiram fizeram com que a morte progressivamente se tornasse proibida, cada vez mais interditada durante o século XX, mesmo com a posterior superação da teoria miasmática, que entendia o ar como propagador de doenças, pela teoria microbiana, que novamente modificou a concepção de contágio e salubridade. Os médicos reformadores buscavam alternativas científicas para banir os mortos de forma definitiva da sociedade dos vivos e, com isso, modificar o formato dos sepultamentos considerados danosos à saúde pública e contrários aos

101

PAGOTO, op. cit., p. 69.

54

padrões de modernização que eram aspirados em países como a França e a Inglaterra, vistas como modelos de desenvolvimento e ilustração. Logo, a cada dia eram propostas novas formas de tratamento dos mortos, sendo que aspectos tradicionais, até então considerados irrelevantes, tornaram-se objetos de críticas por parte dos higienistas. Neste momento evidenciou-se a tentativa de dessacralização dos corpos, visando transformá-lo em objeto de intervenção da nova medicina preventiva, e não mais o “invólucro da alma” – ao contrário, o corpo passou a ser percebido enquanto exalador de miasmas. 102 Dessa forma, costumes cotidianos seculares passaram a ser vistos como “perniciosos à saúde pública” e, possivelmente, os grandes responsáveis pelas epidemias que freqüentemente invadiam as cidades. Nas palavras de Bellato e Carvalho: “Espetáculo nauseabundo, pelos odores e imagens que traz, torna-se inconveniente e, portanto, indecente a sua demonstração pública.” 103 Entrementes, num ambiente marcado por traços rurais, cuja vida social girava em torno das igrejas e do catolicismo tradicional predominante na época; a atividade dos higienistas, que tinha a função principal de intervir no meio, controlar e expulsar os focos miasmáticos, não ficou restrita ao espaço público, mas atingiu também o espaço privado. A opinião médica foi utilizada para justificar as novas posturas e leis destinadas a transformar o “degradante” panorama urbano, sendo que uma cidade ordenada e planejada era vista como um prelúdio de modernidade e civilidade. 104 As transformações urbanas dessa época incluíam não apenas novas exigências em relação à limpeza das ruas (ordenação do lixo e proibição da circulação de animais domésticos), à higiene das casas e do comércio, ao combate dos miasmas provocados pelos animais mortos, mas também em 102

Ibid., p. 100-101.

103

BELLATO; CARVALHO, op. cit., p. 102.

104

PAGOTO, op. cit., p. 91.

55

relação aos modos de sentir. Como lembra Alain Corbin, as sensibilidades são historicamente constituídas e, por conseguinte, as intolerâncias olfativas, por exemplo, não permanecem as mesmas, especialmente quando as cidades começam a considerar nociva a presença dos animais, do lixo orgânico, dos corpos mortos e de todos os elementos considerados 105 naturais.

A partir de critérios médicos, os modos de sentir foram atingidos, e não apenas tendo em vista as preocupações com os perigos que poderiam ocorrer com a proximidade entre os mortos e os vivos, ainda que este fosse o principal foco. Neste universo, portanto, com o fortalecimento da doutrina capitalista, apresentou-se uma nova atitude diante da morte e dos mortos, de ruptura entre a vida e a morte, influenciada pelo iluminismo francês: “há o avanço do individualismo, do pensamento racional, da laicização das relações sociais, da secularização da vida cotidiana.”

106

Assim, o desenvolvimento da morte individualizada, aliado à

precariedade sanitária e ao crescimento das cidades, impulsionou a diluição da importância do enterro dos mortos ad sanctos e tornou a presença dos mortos problemática, renovando a necessidade dos cemitérios. Depreende-se que atribuir as reações somente às crenças e representações da morte seria simplificação do processo histórico: o projeto de laicização da morte no Brasil não pode ser visualizado como um fato isolado, tendo em vista que fazia parte de um projeto mais amplo de medicalização das cidades, não somente em território nacional, projeto este que pode ser compreendido somente considerando o conhecimento médico corrente na época. Até então os párocos eram os responsáveis pelas certidões de óbito e pelas autorizações de sepultamentos. Assim, por uma questão científica e moral, nesse momento de medicalização das cidades, os médicos se propunham a ser os únicos responsáveis pela definição da causa mortis e pela expedição da certidão de 105

Ibid., p. 103.

106

COE, op. cit.

56

óbito: “a competência nos assuntos de morte deveria ser cada vez mais da alçada médica, policial e comercial”

107

. Progressivamente, novas idéias de pensar o corpo,

a saúde e a morte adquiriam forma nos discursos médicos e laicos; os hábitos tradicionais iam tornando-se objetos de interdição, condenados ao desaparecimento. “O raciocínio médico conquistava espaços muito além dos círculos de especialistas e impregnava a sociedade como um todo.” 108 Assim, cada vez mais os mortos eram marginalizados do convívio dos vivos. Pagoto aponta como um forte indicativo das futuras mudanças nos ritos fúnebres e a importância da salubridade naquele momento, o decreto do Vice Rei Dom Fernando José de Portugal, em 1801: [...] tendo chegado a minha rela prezença huma muito atendivel reprezentação sobre os dannos a que está exposta a Saude Publica, por se enterrarem os Cadaveres nas Igrejas que ficão dentro das Cidades Populozas dos Meus Dominios ultramarinos: visto que os vâpores que de sí exhalão os mesmos Cadaveres impregnando a Atmosphera vem ser a cauza de que os vivos respirem um ar corrupto, e inficionado, e por isso estejão sujeitos a muitas e que (5) repetidas (6) vezes (7) padeção (8) moletsias epidemicas (2) e (3) perigozas (4) (...) sou servido ordenar vos que logo que receberdes esta Carta Regia, procureis de acôrdo com o Bispo dessa Dioceze fazer construir em Sitio Separado dessa Cidade (...) hum, ou mais Cemiterios, onde hajão de ser sepultados, sem excepção 109 todas as Pessoas que falecerem (...).

Tal declaração demonstra a preocupação com os miasmas enquanto causadores de doenças epidêmicas, e inaugura a tendência sanitarista que culminou na retirada dos mortos das igrejas, após múltiplas disputas entre o poder público, o poder eclesiástico e a sociedade. Cabe esclarecer que a carta régia de 1801 não produziu nenhum efeito no sentido de construir cemitérios fora do perímetro urbano, assim como a independência, em 1822, também não significou alterações imediatas.

107

PAGOTO, op. cit., p. 92.

108

CYMBALISTA, op. cit., p. 45.

109

COLEÇÃO INSTITUTO HISTÓRICO. Acervo custeado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, lata 10, documento 03. In: PAGOTO, op. cit., p. 70.

57

Entretanto, em 1828, com a Lei de 1° de Outubro, co m cerca de 90 artigos, que regulamentava as Câmaras Municipais do Império do Brasil, a normatização do assunto foi aprofundada, através do parágrafo segundo do artigo 66, que recomendava que as Câmaras elaborassem posturas referentes ao estabelecimento dos cemitérios fora das igrejas, ainda que não ficasse esclarecida a maneira como seria viabilizada a construção destes espaços e a gestão dos corpos permanecesse submetida ao poder diocesano, o que justificou a protelação das transformações. 110 A mais significativa disputa perante a retirada dos mortos das igrejas ocorreu na Bahia, em 1835, ficando conhecida como “Cemiterada”. Assim como nas demais cidades brasileiras, os sepultamentos dos bahianos eram realizados no âmbito da igreja, com toda a pompa necessária para se obter uma boa-morte. Em 1836 o governo da província declarou a interdição desta forma de enterro e decretou a abertura de um cemitério extra-muros, público, destinado a receber, em um mesmo espaço, os corpos tanto dos ricos quanto dos pobres. Tal ato causou indignação popular e, após três dias de abertura do campo, uma multidão de revoltosos se encarregou de destruir por completo as instalações da necrópole. Esta foi a maior revolta realizada contra a interdição dos sepultamentos intra111 muros ocorrida no Brasil.

Pagoto observa que todas as classes sociais participaram do ato, sendo que após a revolta o governo provincial recuou, concordando em manter os ritos fúnebres tradicionais. Somente em 1855 houve uma proibição definitiva dos ritos, quando a cidade foi ameaçada por uma nova epidemia de varíola. Dessa forma, é a partir da “morte individualizada” que são reafirmados, em meados do século XIX, os cemitérios, que já existiam, mas em menor número, destinado às pessoas mais humildes. A construção dos novos cemitérios, todavia, não agradava a população, porque a idéia de salvação ainda estava intimamente ligada ao local de

110

CYMBALISTA, op. cit., p. 45-46.

111

PAGOTO, op. cit., p. 71.

58

sepultamento. “Somente o enterro nas igrejas podia proporcionar uma passagem tranqüila a um possível mundo extraterreno.” 112 Incentivada pela nova maneira de entender saúde, a transição dos sepultamentos intra-muros para um campo santo, em geral afastado do núcleo urbano, não foi pacífica e não contou com a aprovação de toda a sociedade, que se viu prejudicada com a nova medida, que era considerada por muitos, contrária à religiosidade e “ofensiva aos costumes católicos em voga”

113

; num contexto em que

ainda se conferia grande importância aos habituais ritos funerários implantados no país desde o início da colonização portuguesa, “enraizado[s] na cultura de um país marcado por um catolicismo tradicional, calcado em um imaginário barroco” 114. De fato, esta medida higienista vinha contradizer as pretensões da cristandade colonial, que buscava nos sepultamentos ad sanctos um auxílio para a obtenção da vida eterna, contrariando até mesmo a própria legislação eclesiástica que previa, para todos os cristãos, o direito, e mesmo o dever, de serem sepultados em locais sacros, conforme determinavam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, desde 1707. É costume pio, antigo, e louvável na Igreja Católica, enterrarem-se os corpos dos fiéis cristãos defuntos nas igrejas, e cemitérios delas: porque como são lugares, a que todos os fiéis concorrem para ouvir, e assistir às missas, e ofícios divinos, e orações, tendo à vista as sepulturas, se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor as almas dos ditos defuntos, especialmente dos seus, para que mais cedo sejam livres das penas do Purgatório, e se não esquecerão da morte, antes lhes será aos vivos mui proveitoso ter memória dela nas sepulturas. Por tanto ordenamos, e mandamos, que todos nas Igrejas, ou cemitérios, e não em lugares não sagrados, ainda que eles assim o mandem: porque esta sua disposição 115 como torpe, menos rigorosa se não deve cumprir.

112

COE, op. cit.

113

PAGOTO, op. cit., p. 20.

114

Ibid., p. 30.

115

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LIII, p. 843. In: Cymbalista, op. cit., p. 32.

59

Além disso, a implantação dos cemitérios horizontalizava os mortos colocando, em um mesmo espaço, livres e escravos, ricos e pobres, “acatólicos” e justiçados. Assim, além da imposição do cemitério secular subtrair a proteção divina, também destruía a hierarquia social, que, também na hora da morte, se fazia presente. 116 Segundo Pagoto: As propostas para a criação de um ‘campo santo’ fora da igreja colocavam em questão as tradições de perpetuação das posições privilegiadas de algumas famílias, tanto quanto contribuía para modificar o imaginário da morte, em particular, as idéias de profanação e de vínculo entre o humano e 117 o divino.

De modo a efetivar tais mudanças no imaginário colonial, vários setores agregaram-se em torno de discursos envolvidos com a idéia de civilidade, que convergiam à condenação dos costumes tradicionais de morrer e enterrar, sendo que o século XIX pode ser considerado como um período essencial de transição para a constituição de um novo modelo de relação entre os mortos e os vivos. A tensão da morte envolve o higienismo, a religiosidade, o político e o jurídico – discursos estes que colaboram para a transformação da inserção urbana dos mortos: o cemitério surgia em nome da civilização, garantindo espaços delimitados aos cidadãos, vivos ou mortos, num contexto de crescente processo de secularização. Gradativamente o sagrado e o profano começaram a ser concebidos de formas diferenciadas, a sociedade deixou de ser permeada pelo imaginário barroco e o público começou a se separar do privado. O que antes era considerado razão de festas e encontros sociais, passou a ser realizado em círculos fechados, cultuado apenas por um número reduzido de indivíduos. O próprio catolicismo sofreu transformações, visto que, de laico e familiar, 118 passou a ser romanizado e centralizado.

116

VIEIRA, op. cit., p. 13-16.

117

PAGOTO, op. cit., p. 14.

118

Ibid., p. 129.

60

A construção social civilizatória estabelece o cemitério público como o espaço para os mortos na cidade, mas também como representação de progresso e de higienização, inscrita em um discurso social, político e urbanístico mais amplo. O novo dever de se enterrar exclusivamente nos cemitérios só podia ser implementado se acompanhado de uma nova garantia universal: todos teriam agora direito de serem enterrados no cemitério público. Esse direito (...) foi garantido apenas em parte, mas o fato é que o cemitério – em geral municipal, periférico e em tese secularizado – consolida-se no final do século XIX como o local por excelência reservado às relações entre os vivos e os mortos na cidade. E a concentração da interface entre vivos e mortos em um só local engendrou outras maneiras de diferenciação entre os vários grupos da sociedade, entrando em cena a arquitetura, mobilizada em todo o seu potencial no sentido de atribuir aos túmulos uma posição específica na 119 sociedade.

A tensão da morte amenizada e renovada a necessidade dos cemitérios, as cidades parecem ter pacificado a sua convivência com os mesmos, aos poucos agregados ao espaço urbano, não mais tão periféricos; os campos santos passaram a assumir novos papéis na sociedade, novamente incorporados ao cotidiano dos vivos, muito embora em um lugar bastante diferente daquele ocupado anteriormente. De fato, os mesmos passaram a ser reflexo do universo cultural de cada época e sociedade, reflexo do Imaginário Social, constituído como construção da realidade, através do qual a coletividade designa sua identidade.

119

CYMBALISTA, op. cit., p. 18.

61

1.6. Cemitérios e Representações Sociais “Se deixo errar meus pensamentos, não encontro ninguém. O melhor, afinal de contas, é a morte.” Lou Andreas Salomé

Pensamos o cemitério enquanto reflexo sócio-cultural do meio no qual está inserido. Parte-se do pressuposto de que a maneira como o homem se porta diante da morte e a representa no espaço do cemitério, através da linguagem, dos signos e símbolos, da sua cultura material, da arquitetura, da escultura, seja de maneira consciente ou inconsciente; reflete as suas concepções, as suas crenças, ideologias, os seus modos de vida, enfim, a constituição do Imaginário Social, conforme a sociedade na qual está inserido. Com a consolidação dos cemitérios extra-igrejas, podemos perceber de forma mais nítida o processo de diferenciação social. Podemos identificar nos cemitérios todo um universo de representação simbólica do universo social, permitindo um número considerável de análise dos fenômenos relacionados à dinâmica cultural. Além de um processo ininterrupto de 120 transformação social.

Isto posto, a perspectiva de cemitério deve estar além da sua existência enquanto espaço de condicionamento dos mortos. Ao contrário: o cemitério

deve

ser

pensado

como

expressão

constante

e

dinâmica

de

representações sociais: é um campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais. Neste sentido, entendemos válido relacionar o espaço do cemitério com as reflexões acerca das representações sociais, relacionadas ao Imaginário Social, que propõem que sejam articulados os elementos afetivos, mentais e sociais, todos presentes no cemitério; além de integrar, ao lado da cognição, da linguagem e da comunicação, as relações sociais que afetam as representações e a realidade

120

COE, op. cit.

62

material, social e das idéias sobre a qual estas vão intervir.

121

As representações

sociais se manifestam em palavras, sentimentos e condutas, cuja principal mediação é a linguagem, tomada como forma de conhecimento e interação, sendo que reconhecem a possibilidade de diversas racionalidades, o que é adequado às [...] características das multifacetadas sociedades e grupos sociais contemporâneos e às características da forma de conhecer e lidar com o saber nessas sociedades, em que grupos diferentes têm visões diferentes de um mesmo objeto sem que a diferença implique obrigatoriamente 122 desigualdade.

Faz-se necessário lembrar que as representações traduzem pensamentos fragmentários, limitando-se a certos aspectos da experiência existencial, muito embora possuam diversos graus de nitidez em relação à realidade, esta também subjetiva e construída. Numa perspectiva de interdisciplinaridade entre a Geografia e a Psicologia Ambiental, Peluso utiliza como objeto empírico as periferias do Distrito Federal e tem como pressuposto que as representações sociais permitem ultrapassar as fronteiras entre as ciências, no caso Geografia e Psicologia Ambiental, para desvendar complexas relações psíquicas e sociais. A hipótese que norteou o trabalho da autora ressalta que as relações indivíduo-ambiente urbano podem ser compreendidas pelas representações sociais da casa própria, que é um objeto histórico construído pelo modo de produção capitalista, assim como sua maneira de pensar, “que transformaram a terra urbana em mercadoria e instituíram um sujeito sem acesso a ela, na tensão entre o valor de uso e o valor de troca”

123

.

Dessa forma, a autora busca trabalhar com a simbologia que envolve a casa própria,

121

ARRUDA, A. Teoria das Representações Sociais e Teorias de Gênero. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Campinas, n°117, 2002, p . 138-139.

122 123

Ibid., p. 133.

PELUSO, M. L. O potencial das representações sociais para a compreensão interdisciplinar da realidade: Geografia e Psicologia Ambiental. Revista Estudos de Psicologia. Natal, vol. 8, n°2, 2003, p. 325.

63

concluindo que um objeto tanto é uma realidade mental como uma realidade social e espacial, que acaba formando o ambiente propício para que os moradores elaborem suas representações sociais. Nesse sentido, consideramos que os túmulos são preenchidos pelas realidades mentais dos vivos, e não somente acerca da morte, mas também acerca das relações sócio-culturais. Ao mesmo tempo, os túmulos, assim como as casas referidas por Peluso, são realidades concretas, materiais e sociais, localizadas, monetarizadas e fetichizadas. Retomando, nessa encruzilhada os túmulos podem ser entendidos tanto como uma realidade mental quanto como uma realidade social e espacial que, conjugadas, constroem o ambiente propício para que os vivos elaborem suas representações sociais. Dessa forma, a problemática não se restringe ao objeto concreto, aos muros do cemitério, mas também se estende à subjetividade dos vivos e suas relações com a sociedade, materializadas no espaço urbano. Cria-se a tensão entre dois espaços, articulados e contraditórios: os pequenos espaços individualmente significativos e os macro-espaços socialmente construídos. É aí que sujeito e mundo se constituem num espaço simbólico de relações de oposição, afirmação e negação, que se projeta sobre relações sociais mais amplas, em que o sujeito se posiciona 124 frente a si mesmo, ao mundo e aos outros que o habitam.

O espaço urbano, macro espaço socialmente construído, não se define apenas como centro e expressão de domínio sobre um território e/ou sede do poder e da administração, mas engloba também o âmbito da simbologia, impulsionado pelo grande fluxo de pessoas, culturas, posicionamentos. Seguindo esta lógica, a cidade deve ser pensada de maneira heterogênea, conflituosa, carregada de disputas sociais, de diferentes práticas culturais, muitas vezes contraditórias. E, inerente a este contexto, o espaço cemiterial também não é

124

PELUSO, op. cit., p. 325.

64

harmonioso, pelo contrário: possui diferenças sociais, econômicas, culturais, expressas através das simbologias, dos signos, da organização espacial, da arquitetura e da escultura que aí estão presentes. É vital entender a diferença como especificidade, entendimento este no qual a compreensão das representações sociais se coloca como essencial, visto que possibilita leituras mais ricas e abrangentes. Para não aprisionarmos o sujeito em fenômenos coletivos muito amplos, que não explicam as percepções, as atitudes e os comportamentos individuais, e concebem o espaço como “produto de processos econômicos, sociais e culturais, nos quais os atores dos processos psíquicos são as coletividades e não os indivíduos”

125

; o caminho é reconhecer o sujeito em meio aos grandes números

e vê-lo em sua individualidade, entretanto, sem desconsiderar os processos sociais mais amplos, tendo em vista que, na organização cotidiana do cemitério, constrói-se um

ambiente

particularmente

propício

à

pesquisa

da

relação

objetividade/subjetividade. As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, entrecruzam-se e cristalizam-se sem cessar por meio de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais estabelecidas, dos objetos produzidos ou consumidos, das comunicações trocadas estão impregnadas delas. Como sabemos, elas correspondem, por um lado, à substância simbólica que entra na elaboração e, por outro, à prática que produz a dita substância, assim como a ciência 126 ou os mitos correspondem a uma prática científica e mítica.

As representações sociais se encontram na encruzilhada entre o indivíduo

e

a

sociedade,

cuja

percepção

possibilita

a

percepção

do

subjetivo/individual relacionado ao geral/objetivo numa perspectiva dialética muito produtiva. 125 126

Ibid., p. 323.

MOSCOVICI, S. apud SEMIN, G. R. Protótipos e representações sociais. In: As representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 207. Apud: AMIM, V.; PROFICE, C. C. As representações sociais do meio ambiente: infância e ecossistema nas sociedades tradicionais. Disponível em: http://www.uesc.br/viverbrincando/as_representacoes_sociais_do_mei.htm ; acesso em 26.09.2005.

65

Profundamente ligada às concepções acerca da morte, a Memória é um

componente

fundamental

do

conceito

do

Imaginário

Social

e

das

Representações Sociais, estas que vêm a significar a “reprodução de uma percepção retida na lembrança ou do conteúdo do pensamento”

127

, ou seja, as

representações sociais também reproduzem o conteúdo da memória. Desde a Antiguidade romana o monumentum designa não apenas obras comemorativas de arquitetura ou escultura, como também monumentos funerários destinados a perpetuar a recordação dos entes queridos, no domínio em que a memória é particularmente valorizada, qual seja a morte.

128

Por sua vez, a individualização das

sepulturas e as inscrições mortuárias significam o desejo de preservar a identidade e a memória do morto. Portanto, a personalização das mesmas, através da arquitetura, da escultura, de simbologias próprias, formando um conjunto único e particular, indica a vontade de individualizar este local, perpetuando a lembrança do falecido. A arte tumulária varia com a data, acompanha cada estilo de época, e de região, e jamais sonega o caráter, a espiritualidade do meio em que ocorre. Sob tal prisma, isto é, tomando-se a arte tumulária como representativa desses atributos, podemos entender as estruturas sociais e culturais dos meios, mesmo quando tal se acha restrita a uma parcela da população. Aliás, tal restrição relaciona-se diretamente com o tipo de economia da sociedade, estando deste modo a arte cemiterial condicionada a fatores de 129 caráter sociológico, econômico e cultural.

A arquitetura, a escultura, a organização espacial e as simbologias presentes no cemitério expressam a convergência das diversas classes sociais e grupos culturais; assim sendo, coloca-se como a expressão das representações sociais destas classes e grupos. “A arquitetura – como todas as representações

127

MINAYO, M. C. de S. O Conceito de Representações Sociais dentro da Sociologia Clássica. In: Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 89. 128 129

LE GOFF, J. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Unicamp, 1992, p. 535.

ALGRAVE, B. A origem dos cemitérios. Disponível http://br.geocities.com/wumpscutproject/Cemiterios.htm ; acesso em 20.05.2006.

em:

66

sociais – é, a um só tempo, produto e causa das tensões sociais”

130

A maneira

como as pessoas cultuam seus mortos diz muito a respeito da vivência simbólica já familiar aos mesmos, ou seja, a arquitetura expressa as concepções de vida valorizadas pelos vivos, considerando que o sentido do jogo existencial do ser humano, na dualidade entre vida e morte, elabora-se e se apresenta para os vivos, e não para os mortos. No espaço cemiterial encontram-se manifestações de religiosidade, através de cruzes, de capelas, imagens de santos, altares e relicários, referenciais principalmente cristãos, o que não significa que outras manifestações não se façam presentes. Nesse viés, os epitáfios também apresentam expressões, palavras, tendo a função primeira de identificação, além de traduzir os valores essenciais dos determinados grupos sociais. A monumentalidade dos túmulos encontradas nas necrópoles atuais pode ser pensada em conjunto com a questão da divisão de classes e a organização espacial. A criação do cemitério público acentuou a desigualdade social, pois nesse novo espaço era permitida a construção de túmulos ou monumentos com a finalidade de demarcar a sepultura, o que não acontecia nas igrejas, visto que a cova não era vendida perpetuamente e sim alugada por um tempo determinado e, freqüentemente, dava-se a inumação de pessoas sem 131 relações consangüíneas em um mesmo espaço.

Assim, a despeito da alteração nas atitudes perante a morte, a exemplo da lógica segregadora da cidade, na qual o cemitério está inserido, a estratificação das práticas funerárias é uma constante, o que reflete a necessidade da elite em se auto-afirmar perante a sociedade, promovendo e reafirmando a hierarquização social.

130

CYMBALISTA, op. cit., p. 75.

131

PAGOTO, op. cit., p. 95.

67

No cemitério, os túmulos apresentam processos de negociação, releitura e reintrepretação, conforme nos esclarece poeticamente Schwarcz: As vogas funerárias e os formatos dos túmulos não partiram só dos gostos, cada vez mais metropolitanos, das elites – em um processo fácil de imposição de uma cultura dominante –, assim como o contrário também não é verdadeiro: não se espere encontrar nesses locais produtos puros, onde um artesão “não conspurcado” inscreve sua arte. Na verdade, o que se vê e verá é de tudo um pouco; uma dança de símbolos, formatos, imagens e arranjos, ou até mesmo uma circulação de representações que perdem dono e propriedade. São altares, obeliscos, cruzes de todos os tipos, capelas, casas, flores cuja classificação, à la Jorge Luis Borges, só funciona na cabeça de quem a cria. O que é público e o que é privado ninguém mais se lembra de perguntar, assim como desaparecem modelos estabelecidos, registros eruditos ou mesmo vernaculares. No seu lugar resta uma espécie de toma-lá-dá-cá; jogo que a cultura estabelece toda vez que se pretende domesticá-la. É na circularidade entre o erudito e o popular que se percebe o alojamento de novas vogas e modas, como se no campo cultural, para além dos modelos dominantes da política, se instalasse uma nova realidade 132 feita de contratos pouco previsíveis.

Destarte,

considerando

o

cemitério

como

um

palco

de

representações sociais que se expressam, consciente ou inconscientemente, através da linguagem, dos signos e símbolos, da sua cultura material, ficando perceptível a constituição do Imaginário Social; o próximo capítulo objetiva discutir de que maneira a organização espacial, a arquitetura, a escultura, os signos e as simbologias presentes no Cemitério Municipal São José expressam as relações sociais e as transformações culturais que se têm estabelecido desde a sua instituição na cidade de Ponta Grossa, no ano de 1881, até os nossos dias.

132

SCHWARCZ, L. M. Apresentação. In: CYMBALISTA, op. cit., p. 13.

68

CAPÍTULO 2 CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO JOSÉ: UMA HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO

2.1. Discursos e arranjos na ordem estabelecida

“Não acredito em vida após a morte, por isso não preciso passar toda minha vida temendo o inferno, ou temendo o céu mais ainda. Quaisquer que sejam as torturas do inferno, penso que a chatice do céu seria ainda pior.” Isaac Asimov

Expressão constante e dinâmica de representações sociais, o Cemitério Municipal São José é um campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais e expressa o Imaginário Social que se estabelece no cenário ponta-grossense, desde a sua fundação, em 1881. Entretanto, sua história é referida somente em algumas notícias do Jornal Diário dos Campos e por poucos autores locais, sem referentes documentais, de maneira breve e limitada, dentre os quais Guísela Chamma e Josué C. Fernandes. De fato, uma dificuldade que tem acompanhado a comunidade acadêmica vinculada às ciências humanas, na construção do saber, é a escassez de fontes primárias organizadas e/ou disponíveis para a consulta, sendo presumível que o vazio historiográfico em torno da fundação e desenvolvimento do Cemitério Municipal São José possa ser explicado por esta carência documental. Ao que tudo indica133, a referida necrópole resultou de disputas políticas entre a Câmara Municipal e o clérigo Anacleto Dias Babtista, que ficou à

133

Faz-se pertinente ressaltar que as informações e dados apresentados na sequência, referentes à fundação e ao desenvolvimento do Cemitério Municipal São José, são imprecisos e limitados, frente à carência documental e historiográfica referida.

69

frente da administração da Paróquia de Sant’Ana por mais de quarenta anos (aproximadamente entre 1937 e 1980) e, supostamente, exercia forte influência sobre a população local. De acordo com a Constituição Imperial de 1824, a responsabilidade pela conservação do cemitério e pelas certidões de óbito cabia à autoridade eclesiástica local. 134 Tais disputas políticas tiveram início, conforme Fernandes, quando o clérigo tentou fazer prevalecer uma antiga doação de imóveis outorgada à padroeira pela família de Domingos Ferreira Pinto, referente à área do bairro da Ronda, encontrando forte oposição da parte dos edis.

135

Esta doação viria a ser

contestada, por volta de 1865, por alguns políticos do Município, mas num memorial o Juiz de Direito Dr. Joaquim Ferreira Pinto confirmou a doação feita por seus antepassados ao poder eclesiástico. oficiaram

ao

Governo

Provincial

acerca

da

136

Em seguida, os vereadores

necessidade

de

um

Vigário

Encomendado para a Matriz de Santana, mas o pedido foi negado. Com o objetivo de diminuir o poder do religioso, no mesmo ano os vereadores resolveram transferir o Cemitério São João para um terreno situado fora da cidade, alegando que a localização da necrópole impedia o crescimento urbano. 137 Porém, conforme a Edição Comemorativa do Cinqüentenário da Diocese de Ponta Grossa, publicada em 1976, o objetivo da construção de um novo cemitério, não somente dos edis, como também de outros moradores ilustres da cidade, era de que os lugares que possuíam uma melhor localização na necrópole 134

KASPRZAK, C. C. Turismo em Cemitérios: a possibilidade da utilização turística do Cemitério Municipal São José de Ponta Grossa – PR. Ponta Grossa: Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação), 2004, p. 38-40.

135

FERNANDES, J. C. Cemitério São José. In: Das colinas do Pitangui. Ponta Grossa: Planeta, 2003, p. 327. 136

DIOCESE DE PONTA GROSSA. Cinqüentenário 1926- 1976. Curitiba: Gráfica Vicentina, 1976, p. 54. 137

CHAMMA, G. V. F. Ponta Grossa: o povo, a cidade e o poder. Ponta Grossa: SMEC, 1988, p. 33.

70

antiga já estavam ocupados “e como mesmo na morte, não desaparece a mania de ostentação dos vivos, resolveram construir [o novo cemitério] bem distante do centro da cidade (atual cemitério São José), sem consultar o Vigário (...).” 138

De fato, um dos objetivos na construção dos cemitérios, no século XIX, foi

a procura pela monumentalidade, sendo indiscutível que os cemitérios não resultaram sóbrios, padronizados, como eram os locais dos sepultamentos tradicionais, no interior das igrejas.

139

O Cemitério São João era a primeira necrópole urbana de Ponta Grossa, fundado pelos moradores locais, em 24 de junho de 1811, ao lado de uma Capela que existia neste local, com a mesma denominação, na atual Praça Barão de Guaraúna, onde hoje se encontra a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, conhecida como “Igreja dos Polacos”. Talvez [a capela] tivesse servido desde o princípio apenas a encomendação dos defuntos que eram enterrados no cemitério ao lado. Este, seguramente era o mais antigo da cidade. Ocupava uma área bastante ampla, que ia dos lados aos fundos da Capela (mais ou menos parte da hoje Praça Barão de Guaraúna, av. Machado até onde se localiza a loja João Vargas de Oliveira, e estendia-se até a atual rua Balduíno Taques). Foi o mais utilizado da Freguesia, Vila e 140 cidade de Ponta Grossa.

Assim, a capela e o cemitério ficavam localizados num dos extremos da Freguesia neste momento, o que explica a justificativa apresentada pelos políticos. Segundo Fernandes, o vigário, não podendo impedir a iniciativa da Câmara, não abençoou o novo cemitério para que este fosse considerado campo santo e, dessa forma, as pessoas não queriam que seus mortos fossem enterrados neste local, considerado “um lugar inadequado para a inumação de católicos”

141

.

Esta situação foi alterada apenas em 1881, quando o Padre João Evangelista Braga, 138

DIOCESE DE PONTA GROSSA, op. cit., p. 58.

139

CYMBALISTA, op. cit., p. 78.

140

DIOCESE DE PONTA GROSSA, op. cit., p. 57.

141

FERNANDES, Cemitério São José..., op. cit., p. 327.

71

assumindo

como

novo

vigário,

abençoou

o

cemitério

e

a

população

progressivamente passou a utilizá-lo. Em seguida, na gestão do Prefeito Municipal Cel. Cláudio Gonçalves Guimarães, em 1890-1891, o Cemitério São João foi desativado e muitas pessoas transferiram os restos de seus mortos para o novo cemitério. A denominação de “Cemitério Municipal São José” foi recebida somente em 1948, através da Lei n° 80, de 05 de out ubro daquele ano, sendo que até então não possuía denominação oficial, assim como os demais cemitérios do município na época, designados na mesma oportunidade: Cemitério Municipal São João Batista, Cemitério Municipal São Sebastião e Cemitério Municipal Santa Luiza. 142 Em “O Cemitério Municipal de Ponta Grossa atravez de uma detalhada reportagem”, matéria publicada pelo Jornal “Diário dos Campos” em 12 de agosto de 1934, consta que um dos idealizadores da nova necrópole foi Augusto Lustosa Ribas, que inclusive mandou plantar ciprestes ao lado direito do “campo santo” e foi o responsável pela construção do primeiro muro, erigido pelo Sr. Francisco Votto.

143

Outro registro sobre o campo santo refere-se à ampliação de

seus limites que, na gestão do prefeito Teodoro Batista Rosas (1912-1916), estendeu-se em uma das laterais, passando a situar-se junto à Rua Balduíno Taques.

144

Cabe esclarecer que o Cemitério Municipal São José está atualmente

localizado em área central, entre a Rua Balduíno Taques, Largo Professor Colares, Travessa Santa Cruz e Travessa Pasteur, conforme cartograma na sequência. 142

Projeto de Lei n° 79/48 – Dando denominações aos C emitérios de Ponta Grossa.

143

O Cemiterio Municipal de Ponta Grossa atravez de uma detalhada reportagem. Jornal Diário dos Campos, n° 6495, Ponta Grossa, 12.08.1934. 144

LUPORINI, T. J. O cemitério São José de Ponta Grossa: muita história para contar. Revista Antologia, n°2, 2003. Disponível em: http://www.diariodamanha.com.br/edicoesanteriores/040507/academia.htm ; acesso em 22.03.2007.

72

Cartograma 1 – Quadras do Cemitério Municipal São José

73

Na maioria das notícias veiculadas pelo Jornal Diário dos Campos, especialmente em ocasião das comemorações do Dia de Finados, o Cemitério Municipal São José é relacionado à memória e à veneração dos mortos. Porém, uma segunda linha presente nas notícias refere-se à limpeza e ao estado de conservação da necrópole, havendo referências constantes à ornamentação floral e às novas pinturas nos jazigos. Em 1922, por exemplo, há menção de que os túmulos estavam cobertos de flores, dando ao Cemitério Municipal, sempre limpo e asseado, um aspecto festivo.

145

No mesmo sentido, em 1934: “As capellas interiormente

limpas e floridas, apresentando um bello aspecto (porque o Cemiterio de Ponta Grossa tem a peculiaridade de não apresentar nada de lugubre!).” 146 Numa matéria publicada em 1921, são afirmadas relações entre o culto dos mortos presente em Ponta Grossa, evidenciado através da ornamentação e da conveniente limpeza da “Cidade dos Mortos”, e os sentimentos de civilização e nobreza, comprovações de uma cidade culta.

147

Ou como é referido em 1936: “Em

seu aspecto geral, porem, o nosso Cemiterio mostrava a cultura e os sentimentos bem formados da população pontagrossensse.”

148

Portanto, ao lado dos ideais de

civilidade, que permeiam as notícias, preocupações com a ordem e a disciplina também estão muito presentes, com a indicação freqüente de policiamentos nos dias das comemorações de finados (por exemplo, em 1941, 1963, e 1972). 149

145

Finados. Jornal Diário dos Campos, n° 3196, Ponta Grossa, 03.11.1922.

146

A romaria do Campo Santo começou hontem. Jornal Diário dos Campos, n° 6537, Ponta Grossa, 02.11.1934.

147

Finados. Jornal Diário dos Campos, n° 2918, Ponta Grossa, 03.11.1921.

148

O día dos mortos. Jornal Diário dos Campos, n° 8076, Ponta Grossa, 04.11.1936.

149

Ecos. Jornal Diário dos Campos, n° 10937, Ponta Grossa, 05.11.1941.

Ponta Grossa vai reverenciar hoje a memória dos mortos. Jornal Diário dos Campos, n° 1963, Ponta Grossa, 02.11.1963. Prefeitura não tabela flores para finados. Jornal Diário dos Campos, n° 23208, Ponta Grossa, 01.11.1972.

74

Por outro lado, nas notícias publicadas pelo periódico há críticas freqüentes aos preços abusivos nos serviços funerários em Ponta Grossa, tanto na venda de flores, destacada nas comemorações de novembro, quanto nos preços dos sepultamentos praticados pelas funerárias instaladas na cidade (destaque para os anos de 1939, 1947 e 1967).

150

Rezende nos esclarece que as comemorações

do Dia de Finados retomam o contato simbólico com os mortos, por intermédio das orações e das velas, mas também demonstra o capitalismo que deseja transformar a morte em mercadoria, cada vez mais recorrente. 151 Em 1936 começaram a haver preocupações com o espaço disponível para os sepultamentos no Cemitério Municipal: O nosso principal Cemiterio enche-se cada vez mais de sepulturas. O espaço vae pouco a pouco rareando. Daqui a alguns annos, já não mais poderá ser alli sepultado ninguem. É tempo, já, de se cogitar da contrucção 152 de uma ou mais necropoles.

Posteriormente, nesta matéria publicada em 1951, quando o Cemitério Municipal já havia recebido a denominação de “São José”, a questão do espaço é retomada: Começamos pelo Cemitério São José, a necrópole central, construída pelos esforços de Augusto Ribas, há pouco mais de meio século. Circunscrita por avenidas e ruas da “city”, recebendo a tanto tempo o tributo que a Vida paga à Morte, devolvendo à Mai Terra o que é dela, “quia pulveris reverteris”, - o velho Campo Santo já não mais comporta novas aquisições. Está mais do que nunca alinhado, decente, como esses valetudinarios que apesar da idade conservam a “finesse”, o cavalheirismo que os anos enobrecem ao envez de diminuir. Já de muitos anos que o Cemitério São José mantém a boa fama de um dos mais bem cuidados, limpos e belos do país, isto graças ao zelo e aos cuidados que, durante mais de trinta anos, ali empregou o saudoso e prestante cidadão João 150

Os serviços funerários em Ponta Grossa. Jornal Diário dos Campos, n° 10338, Ponta Grossa, 31.10.1939. Em P. Grossa paga-se preço excessivo até para morrer. E’ preciso pôr cobro à exploração nos preços dos serviços finerários. Jornal Diário dos Campos, n° 13123, Ponta Grossa, 02.11.1947. Cemitérios: Hoje e Amanhã o Maior Movimento do Ano Todo. Jornal Diário dos Campos, n° 21183, Ponta Grossa, 01.11.1967. 151

Rezende, E. C. M. Metrópole da Morte, Necrópole da Vida: Um Estudo Geográfico do Cemitério de Vila Formosa. São Paulo: Carthago Editorial, 2000, p. 102. 152

O día dos mortos. Jornal Diário dos Campos, n° 8076, Ponta Grossa, 04.11.1936.

75

Ferigotti. Ainda agora fomos encontrá-lo na devida forma, asseado e senhoreal. Não conta com mais terrenos disponíveis. Ali só é possível agora a edificação subterranea e a construção de gavetas no muro que o circunscreve. Aliás, duas providencias muito acertadas. E’ que já se manifesta o “cambio-negro” nos terrenos dessa necropole, por parte de alguns proprietários de sepulturas rasas. (...) “arranha-céus”, as capelinhas e túmulos suntuosos que 153 caracterizam o nosso cemitério capital [sem grifo no original].

A preocupação com o espaço e as críticas com relação ao “câmbionegro” dos terrenos é permeada pelo discurso de civilidade e ordem, celebrando a limpeza e a disposição do Cemitério Municipal São José, portador de traços nobres, senhoriais, caracterizado especialmente pelas construções suntuosas, mantendo inclusive a fama de ser um dos cemitérios mais bem cuidados e belos do país. Nesse sentido, evidencia-se que o cemitério público não foi estabelecido somente como o espaço para os mortos na cidade, mas também como representação de progresso e de higienização, inscrita em um discurso social, político e urbanístico mais amplo e complexo. Faz-se pertinente observar que, quando da fundação, ao que tudo indica, ainda que o cemitério estivesse localizado num terreno distante do centro urbano, para que não atrapalhasse o crescimento da cidade, neste momento o mesmo já era definido como a necrópole central, já circunscrito por ruas e avenidas da cidade, espaço privilegiado na demonstração da cultura do município. Nesse viés, ao tratar do surgimento do Cemitério da Vila Formosa, localizado na Zona Leste da cidade de São Paulo, Rezende observa que num primeiro momento o mesmo foi instalado e posteriormente ocorreu a efetiva ocupação do bairro, pontuando: “Sobre o cemitério é importante ressaltar que, na época, representava uma espécie de limite da cidade funcionando como um ordenador espacial determinando os pontos de expansão da cidade, como aconteceu em muitas 153

Os nossos cemitérios. Jornal Diário dos Campos, n° 16016, Ponta Grossa, 31.10.1951.

76

cidades do interior de São Paulo e da Europa.”

154

Isto posto, é o caso de Ponta

Grossa, onde o Cemitério Municipal São José pode ser definido como um ordenador espacial, num primeiro momento como limite e após inserido ao perímetro urbano, absorvido pela expansão da cidade. A questão da comercialização irregular dos terrenos para os sepultamentos é retomada na esfera legislativa, sendo que no ano de 1952 foi sancionada a Lei Municipal n°457, que alterou a Tab ela de Emolumentos para o Cemitério Municipal São José, esta que havia sido definida conforme o disposto na Lei Municipal n°253, sancionada dois anos antes.

155

Com efeito, a justificativa

apresentada pelo Senhor Prefeito Municipal Pretonio Fernal para tal alteração era de que a referida tabela de emolumentos, “por tão diminuta”, era um forte incentivo para as especulações em torno dos preços dos túmulos da necrópole, já lotada, o que prejudicava os interesses do município, acrescentando ainda: Como se sabe, o referido Cemitério está superlotado e a Prefeitura vem realizando ali algumas obras, que, talvez, venham a dar lugar a mais uns 40 ou 50 túmulos. (...) Prevenindo-se a situação [da especulação dos preços], tal como preceitua o presente projeto de lei, com relação ao cemitério São José, julgo ter assegurado os direitos do Município, sem alterar a situação das classes menos favorecidas, que continuam dispondo dos demais Cemitérios da 156 cidade, na forma da legislação anterior.

Cabe esclarecermos que na primeira das leis relacionada aos emolumentos, as taxas deste campo-santo já eram superiores aos demais cemitérios urbanos (São Sebastião, Santa Luiza e São João Batista). Por exemplo, segundo a Lei n°253, a taxa para um terreno para ja zigo perpétuo no Cemitério Municipal São José medindo até 03 m.² (três metros quadrados) era de CR$ 150,00 (cento e cinqüenta cruzeiros) e para cada m.² (metro quadrado) em excesso a taxa 154

REZENDE, Metrópole da Morte..., op. cit., p. 27.

155

Projeto de Lei 567/52 – Altera a redação da Lei Municipal n° 253, de 22.03.50, que trata da tabela de emolumentos no Cemitério São José. 156

Id.

77

de CR$ 100,00 (cem cruzeiros). Para os demais cemitérios urbanos as taxas respectivas eram de CR$ 80,00 (oitenta cruzeiros) e CR$ 50,00 (cinqüenta cruzeiros) e, sendo que para os cemitérios rurais dos Distritos de Uvaia e Itaiacoca este valor sofria o abatimento de 50% (cinqüenta por cento). Na segunda lei, n° 457, de 1952, que revisou somente as taxas da necrópole central, preservando as restantes, o abismo dentre estas se tornou evidente. No Cemitério Municipal São José, a taxa passou a ser de CR$ 1.000,00 (mil cruzeiros) para um terreno para jazigo perpétuo medindo até 03 m.² (três metros quadrados) e de CR$ 800,00 (oitocentos cruzeiros) para cada m.² (metro quadrado) excedente. Desta forma, tendo assegurado os direitos do Município, sem dúvida o acesso das classes menos favorecidas ao mesmo foi, a partir de então, dificultado ou até mesmo vetado. Já considerado um dos cemitérios mais bem cuidados, limpos e belos do país, portador de traços nobres, senhoriais, caracterizado especialmente pelas construções suntuosas, conforme matéria publicada pelo Jornal Diário dos Campos em 1951, supra mencionada, as providências legislativas referidas são indicativas de que neste momento o Cemitério Municipal São José já era reconhecido pelos munícipes como o “Cemitério dos Ricos”

157

e nos leva a

questionar se um dos incentivos para a tomada de tais providências estava relacionado à seleção do público que poderia ter acesso ao Cemitério a partir de então, levando as pessoas de “classes menos favorecidas” para os cemitérios mais periféricos. Isto posto, além de pensarmos o Cemitério Municipal São José enquanto um ordenador espacial, pois esteve num primeiro momento colocado como limite do perímetro urbano e após inserido ao mesmo, absorvido pela 157

Em caráter amostral, tal reconhecimento pôde ser percebido na intervenção pedagógica realizada em 16.06.2007 com alunos do Ensino Médio Técnico em Turismo do Colégio Julio Teodorico.

78

expansão da cidade; devemos pensá-lo também como um ordenador social, considerando-se que quando foi fundado era o único cemitério do municipio, ou seja, um espaço destinado a todos. Entretanto, conforme referido acima, a partir da construção dos demais cemitérios, em áreas mais periféricas e com a lotação do primeiro, havendo poucos terrenos disponíveis, podemos concluir que o público passou a ser selecionado de modo silencioso, até mesmo pelas providências legislativas então tomadas: o poder público reforça e promove a hierarquização, regulamentando as distinções territoriais do espaço cemiterial. Em 1956, atento à questão do espaço disponível para os mortos e, novamente, à comercialização irregular dos lotes, o então Prefeito Municipal José Hoffmann, em ofício encaminhado ao Presidente da Câmara Municipal na época, Sr. Dorival de Arruda Moura, solicita a análise do projeto de lei que viria autorizar o recebimento em doação de um terreno destinado a construção de um novo cemitério para a cidade. Neste ofício, o Prefeito alega que era público e notório que o principal cemitério da cidade, ou seja, o Cemitério Municipal São José, já não comportava a inumação de cadáveres, sendo as vagas que esporadicamente ainda ocorriam muito disputadas

pelos

interessados,

o

que

criava

sérios

embaraços

para

a

administração local. 158 Alguns anos mais tarde, em 1965, o Presidente da Câmara Municipal Adyb Laidane, partilhando das mesmas preocupações, encaminhou ao Prefeito Municipal José Hoffmann o Projeto de Lei n° 139/65, para a autorização de abertura de crédito especial, no valor de vinte mil cruzeiros, para a construção de um novo cemitério, então apresentando a seguinte justificativa:

158

Projeto de Lei n° 1109/56 – Autoriza o Executivo a receber em doação do Dr. Antonio Rodrigues Teixeira Jor, e sua mulher, uma área de terra medindo 15.000 m2 e abre o crédito especial de CR$ 1.000.000,00 para a construção de um cemitério.

79

É sabido que o único que se acha localizado no centro da cidade, o Cemitério Municipal (São José), não possue mais a mínima condição de atendimento às pessoas que buscam o jazigo para a última morada de seus familiares. Outro fato, existe, atualmente, verdadeira indústria para a venda de lotes naquela necrópole, praticadas por pessoas que se aproveitam da incessante procura ali verificada; geralmente, as especulações em tôrno da alienação – estas, via de regra encetadas por elementos que já não mais aqui residem, mas que, em outros tempos adquiriram ou ganharam um lugar no Cemitério – variam, espetacularmente, na importância de centenas de milhares de cruzeiros. Acresce, também, como justo motivo, o fato de que Ponta Grossa apresenta um desenvolvimento demográfico espantoso e o índice de mortalidade é respeitável, o que ocasiona a grande procura de lotes nos cemitérios, mesmo nos 4 (quatro) mais afastados que, hoje em dia, apresentam-se quase lotados ou, quando não, com os diversos lugares já alienados ou reservados para as famílias pontagrossenses. Justo, portanto, que se precavenha o Poder Público, antecipando e descortinando o futuro da cidade, pois administrar é ter uma visão que se alastre e se expanda para os dias que virão. (...) 159 Sala das Sessões, em 1° de dezembro de 1965 [sem gr ifo no original].

Nesse contexto, o Jornal Diário da Manhã publicou a seguinte notícia em 07 de dezembro do mesmo ano: Existem em Ponta Grossa várias necrópoles mas a grande maioria dos pontagrossenses preferem o cemitério São José para a última morada de seus entes queridos. Acontece, porém, que esse campo santo está completamente ocupado, não havendo mais lugar para novos jazigos. Em conseqüência, inúmeras famílias se vêem (...) com doloroso drama quando têm de cumprir o dever sagrado e pungente de inumar seus mortos. Pedem às pessoas amigas um lugar em sepulturas emprestadas para êste fim. De outro lado, estabeleceu-se verdadeiro comércio rendoso na venda de terrenos na nossa principal necrópole, vendas estas feitas a titulo de aparente doação. Terrenos ali são vendidos a 400 a 500 mil 160 cruzeiros até mais [sem grifo no original].

Em ambas as declarações, é evidenciada a procura por terrenos para sepultamentos no Cemitério Municipal São José, ainda que lotado, e a latente necessidade em se construir novas necrópoles, para atender a demanda, considerando-se o crescimento da cidade, como já era indicado em 1936, pelo Jornal Diário dos Campos. Nesse sentido, vejamos a relação entre o número de sepultados e o primeiro ano de sepultamento dos túmulos do Cemitério Municipal São José: 159

Projeto de Lei n° 139/65 – Autoriza o Prefeito Mun icipal a abrir crédito especial de CR$ 20.000,00 (vinte milhões de cruzeiros) para a construção do novo Cemitério Municipal, nesta cidade. 160

Será construído moderno cemitério em Ponta Grossa. Jornal da Manhã, Ponta Grossa, 07.12.1965.

80

1600

1478 1400

1182

1200

995

947

1000

872 800

674 600

495

464

400

249 135

200

81

196

159 71

42

7 -2 0 0 2001

0 -2 0 0 1991

0 -1 9 9 1981

0 -1 9 8 1971

0 -1 9 7 1961

0 -1 9 6 1951

0 -1 9 5 1941

0 -1 9 4 1931

0 -1 9 3 1921

0 -1 9 2 1911

0 -1 9 1 1901

-1 9 0 0 1891

0 -1 9 9 1981

0 -1 8 8 1859

Sem

Regi

s tro

0

Gráfico 1 – Relação entre o n° de sepultados e o pr imeiro ano de sepultamento em cada túmulo

Ao analisar essa relação, constatamos que a década de maior número de sepultados corresponde ao período em que se iniciou a instituição de outros cemitérios na cidade de Ponta Grossa, cuja preocupação já estava presente na década de 1930, quando o número de sepultados praticamente dobrou com relação à década anterior, qual seja, 1920. A partir de 1950, o número de sepultados no Cemitério Municipal São José somente diminuiu, sendo que o mesmo já se encontrava inserido em área central da cidade e percebido como “cemitério dos ricos”. Além disso, cada vez mais o espaço disponível para novas concessões

81

diminuía, conforme verificado tanto na leitura das providências legislativas, quando na análise dos periódicos locais. Ressalta-se que todo conjunto de leis, normas, incluindo a atuação policial,

se

realiza

tendo

como

referência

um

discurso

normatizador

e

disciplinarizador do convívio social, construído a partir e em favor de uma determinada perspectiva de cidade. A leitura das providências legislativas e também do conteúdo publicado pelos periódicos mencionados traz indicativos de normatização social, que devem ser considerados, em essencial pelo fato que evidenciam a inerência do cemitério ao contexto mais amplo de cidade.

Figura 4 - Cemitério Municipal São José Dia de Finados em 1935 Acervo do Museu Campos Gerais

Faz-se essencial esclarecer que não é intenção deste trabalho esgotar a análise destas fontes, nem mesmo analisar amplamente o Cemitério Municipal São José a partir das mesmas, mas sim da própria disposição física do mesmo. Recuperar os discursos contidos nos periódicos e nas leis municipais, assim como nas bibliografias locais, destina-se a fazer com que percebamos a multiplicidade de vozes ao se tratar da temática cemiterial, mais precisamente no

82

Cemitério Municipal São José, destacando-se as tensões urbanas vivenciadas de forma fragmentada e diversificada, relacionadas ao espaço e aos jogos de memória e experiências. 161 Entretanto, para que seja possível tratarmos a disposição física do mesmo com maior clareza é necessário e indispensável que tenhamos em mente tal multiplicidade, que é constantemente evidenciada nos documentos referidos, que discutem a fundação do cemitério e sua localização dentro da cidade, apresentam leituras de civilidade e progresso e indicativos referentes à disposição física, como a ornamentação e a limpeza, assim como a manifesta preocupação com a ordem e a disciplina. Tal multiplicidade presente nestes documentos facilita a percepção do múltiplo no espaço físico, deixando-nos mais abertos para os discursos plurais encontrados neste espaço. Destarte, a análise dos discursos e símbolos que aparecem nestas fontes produzidas pela Imprensa, pela Igreja e pelo Poder Público, expressa a complexidade social da cidade e dos embates travados pelos diversos grupos sociais, tanto concretamente quanto no plano simbólico. “Sua análise pode conduzir à apreensão de certos choques e tensões vividas pelos diversos segmentos da sociedade ponta-grossense em determinados momentos (...).”

162

Em suma, tais

discursos não foram construídos de forma aleatória e demonstram a existência dos conflitos no plano do imaginário coletivo. Assim, denota-se que a implementação dos cemitérios organiza-se de modo a acomodar os diversos interesses em voga, considerando inclusive os enraizados costumes fúnebres da população, num

161 162

MATOS, op. cit., p. 35.

CHAVES, N. B. A cidade civilizada: discursos e representações sociais no jornal Diário dos Campos na década de 1930. Curitiba: Aos quatro ventos, 2001, p. 94.

83

processo de transformação onde o velho molda-se ao novo e onde não cabem mudanças radicais, mas “lentos arranjos na ordem estabelecida” 163. Ao levar a percepção dessa multiplicidade e, porque não dizer, dessa negociação, para o espaço físico do Cemitério Municipal São José, buscamos identificar as relações simultâneas e/ou dissonantes que os túmulos estabelecem entre si, abrindo-se espaço para possibilidades paralelas de análise, considerandose que a paisagem contemporânea dos cemitérios é fruto da sobreposição de várias camadas de representações construídas, sendo que muitas vezes a “camada” que percebemos é somente a mais recente.

164

A fragmentação do espaço do cemitério

revela as ramificações dos caminhos, apenas parcialmente recuperáveis, como representações de poder públicas ou privadas, conteúdos religiosos ou leigos, demonstrando a “conversa” mantida entre os túmulos.

2.2. Paisagem dos Cemitérios: acúmulo de escolhas

“O objetivo da vida é criar melhor defesa contra a morte.” Primo Levi

A agregação de discursos envolvidos com a idéia de civilidade, convergentes à condenação dos costumes tradicionais de morrer e enterrar e direcionados à constituição de um novo modelo de relação entre os mortos e os

163

CYMBALISTA, op. cit., p. 53.

164

Ibid., p. 21.

84

vivos, elegeu o cemitério como signo de progresso e de higienização que, inserido ao espaço urbano, está além do condicionamento dos mortos.

83

2.2. Paisagem dos Cemitérios: acúmulo de escolhas

“O objetivo da vida é criar melhor defesa contra a morte.” Primo Levi

A agregação de discursos envolvidos com a idéia de civilidade, convergentes à condenação dos costumes tradicionais de morrer e enterrar e direcionados à constituição de um novo modelo de relação entre os mortos e os

84

vivos, elegeu o cemitério como signo de progresso e de higienização que, inserido ao espaço urbano, está além do condicionamento dos mortos. Constituído como imposição sanitária, legal e política, o espaço do cemitério também precisava ser legitimado do ponto de vista simbólico. Ao olharmos para dentro das necrópoles, além dos muros e do concreto, deparamo-nos com as representações do campo simbólico: expressão constante e dinâmica de representações sociais, o cemitério é um campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais. Através das Constituições Primeiras a Igreja prevenia a manipulação

privada

das

representações

fúnebres,

consideradas

manifestações da vaidade, indicativo este da existência de tensões entre esta instituição e as riquezas particulares já no início do século XVIII, o que significa que enquanto os mortos eram sepultados nas igrejas o anseio pela edificação fúnebre parece não ter estado ausente, mas sim vetado rigorosamente pela mediação eclesiástica.

165

Ao serem instituídos, os cemitérios não resultaram sóbrios, padronizados, como eram os locais dos sepultamentos tradicionais. Ao retirar os sepultamentos dos templos e levá-los para o espaço secularizado das necrópoles, possibilitou-se a construção privada dos túmulos, sem as barreiras

impostas

anteriormente

pela

gestão

eclesiástica.

Segundo

Cymbalista, com a transformação, eram necessárias novas formas de delimitação das especificidades sociais, culturais, familiares e, além destas, uma nova cobrança social: “a de que os vivos produzam ativamente as

165

CYMBALISTA, op. cit., p. 72.

85

representações através das quais se relacionarão com os mortos.”

166

Portanto,

ao reproduzir os caracteres sociais dos indivíduos em vida, a paisagem dos cemitérios pode ser entendida como simultaneamente funcional e simbólica. 167 Dessa forma, lançados à tarefa de representar a morte sem a normatização eclesiástica, os vivos passaram a explorar a organização espacial, a arquitetura, a escultura, os diversos signos e simbologias, em toda a sua potencialidade, para forjar identificações, diferenças, intimidar e seduzir, propondo novas e velhas maneiras de representar a própria sociedade no espaço dos mortos. O acúmulo no tempo e no espaço das inúmeras escolhas produz a paisagem do cemitério na contemporaneidade: Cada túmulo assume características e identidade próprias – a mediação desejada e possível entre tantos elementos, entre os quais a riqueza disponível (ou a simulação dela), a importância afetiva ou social do morto, o repertório formal e estilístico disponível localmente (ou a capacidade de buscá-lo mais longe), a escolha por materiais abundantes ou escassos, a necessidade ou vontade de evocar o espaço sagrado (ou de afastá-lo de 168 vez).

A secularização dos cemitérios inaugurou a possibilidade de negociações e arranjos envolvendo as representações funerárias, cujo processo teve como matéria-prima amplamente maleável os túmulos individuais. Entretanto, partindo do pressuposto que as transformações do homem diante da morte são extremamente lentas por sua própria natureza ou estão situadas entre longos períodos de imobilidade, a instituição dos cemitérios fez com que fosse transportado para os mesmos e para a forma edificada dos túmulos muito da vivência simbólica já familiar às pessoas. Assim, através da manipulação dos discursos na forma edificada do cemitério, as representações estão agregadas às múltiplas possibilidades deste 166

Id.

167

CORRÊA, op. cit., p. 5.

168

CYMBALISTA, op. cit., p. 72.

86

espaço, brincando entre o que foi preservado da vivência simbólica anterior e as novas linguagens, possibilitadas com o enfraquecimento e/ou exclusão da normatização eclesiástica. Quando os sepultamentos eram realizados no interior das igrejas, a monumentalidade era manifestada nas efêmeras cerimônias fúnebres. Dentre as inúmeras possibilidades abertas pela instituição dos cemitérios, a representação da mesma ganha destaque, nas formas edificadas, pretensamente perenes, por múltiplos motivos: Mas houve também elementos novos, relacionados ao conjunto das transformações que a sociedade sofria. Sem a pretensão de desenvolver os temas, por ser apontados eventuais fatores motivadores da monumentalidade: a mentalidade burguesa, que se faz representar por meio de alegorias; a laicização da sociedade, que passa a produzir referenciais independentes (e questionadores) do poder da Igreja; o consumismo das elites brasileiras em relação às modas vindas da Europa, onde muitos dos 169 cemitérios das grandes cidades já se encontravam monumentalizados.

Além disso, a monumentalidade é algo que se atinge por intermédio da articulação entre os investimentos públicos e privados, sendo que ao regulamentar as distinções territoriais do espaço cemiterial, o poder público promove e reforça a hierarquização. Na análise das discussões das matérias publicadas pelos periódicos locais referentes ao Cemitério Municipal São José, já referidas, evidenciou-se que o mesmo, a exemplo de necrópoles de outras cidades brasileiras, não foi estabelecido somente como o espaço para os mortos na cidade, mas também como representação de progresso e de higienização, inscrita em um discurso social, político e urbanístico mais amplo e complexo, representação esta destacada principalmente pela série de menções à civilidade e à ordem. Da mesma forma como ocorreu em muitos cemitérios brasileiros, por exemplo, os paulistas analisados por Cymbalista, o processo de constituição da

169

Ibid., p. 78.

87

monumentalidade do ponto de vista da inserção urbanística do Cemitério Municipal São José é evidenciado pelos investimentos na construção do portal de entrada e das alamedas que conduzem ao mesmo, largas e arborizadas, produzindo eixos de alta visibilidade, especialmente na parte frontal do mesmo. Localizado no Largo Professor Collares, o portal de entrada do Cemitério Municipal São José foi construído no século XIX, com estilo neoclássico. O mesmo foi presente da Baronesa de Guaraúna, havendo na parte superior uma estátua de um anjo da morte, produzido em mármore de Carrara, encomendado na Itália e doado pelo Sr. Augusto Ribas, tendo custado na época aproximadamente 200$000 (duzentos mil réis) em moeda brasileira. 170

Figura 5 - Portal de Entrada do Cemitério Municipal São José Acervo do Museu Campos Gerais

Ressalta-se que a universalidade do acesso aos cemitérios ocorreu sob uma perspectiva específica, branca, européia, que se considerava civilizada, em relação a tudo que fosse diferente.

170

KASPRZAK, Turismo em Cemitérios..., op. cit., p. 97.

88

E o cemitério foi um dos locais escolhidos pela parte “civilizada” da sociedade para tornar “verdadeira” a sua visão de mundo, criando como pôde uma teatralidade burguesa e inspirada nos já conhecidos cemitérios urbanos europeus, que, como salientara um político de meados do século XIX, “concorrem para o aformoseamento das 171 grandes cidades”.

O Cemitério Municipal São José não se furtou à regra que, segundo Kasprzak, se destaca dentre as demais necrópoles da cidade, por possuir construções suntuosas, com elementos arquitetônicos de significativa beleza, inspirados nos moldes europeus. A maioria desses túmulos e mausoléus foram construídos entre os anos de 1890 e 1930. Neste período, a elite social e política ponta-grossense era representada pelas maiores fortunas da Província. Isto justifica a beleza e suntuosidade dos túmulos. (...) o conjunto dos túmulos expressava a tendência européia de construções amplas, com material durável e com 172 adornos elaborados.

Figura 6 - Vista Parcial do Cemitério Municipal São José Década de 1970 Acervo do Museu Campos Gerais

Muito embora constituído sob a lógica da pretensa civilidade, ressalta-se que o espaço do cemitério público é um campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais. “Mesmo tendo que se relacionar com as categorias definidas por alguns, todos o fazem combinando essa 171

CYMBALISTA, op. cit., p. 73.

172

KASPRZAK, Turismo em Cemitérios..., op. cit., p. 47.

89

pauta com suas próprias possibilidades, afinidades, escolhas, independentemente de sua condição social ou cultural.”

173

No bojo das manifestações estéticas

populares há também o universalismo das artes, a coincidência dos movimentos estéticos

sofisticados

da

avant-garde

com

atributos

sedimentadas na amplitude da cultura de base.

174

e

características



Ao olharmos para as

representações edificadas, além dos muros e do concreto do Cemitério Municipal São José, abre-se a possibilidade de observarmos as formas através das quais diferentes informações transitam e se influenciam neste espaço.

Figura 7 – Exemplo de monumentalização do espaço através do investimento estilístico (Jazigos-Monumento - Quadra 2)

173 174

CYMBALISTA, op. cit., p. 73.

VALLADARES, C. Prefácio. In: Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 35.

90

2.3. A Cidade dos Mortos

“Afinal, para a mente bem estruturada, a morte é apenas a grande aventura seguinte.” Alvo Dumbledore, em Harry Potter e a Pedra Filosofal

A organização dos cemitérios, semelhante às cidades, com quadras, ruas e construções, é produzida para os vivos: Quem faz os cemitérios não são os mortos, mas os vivos. E fazem-nos não apenas para os mortos mas também (para não dizermos sobretudo) para os vivos. Por isso, a organização da ‘cidade dos mortos’ (com as suas avenidas, os diferentes tipos de ‘habitações’ que contém, a forma de as embelezar, as suas relações de vizinhança, a hierarquização dos seus espaços) obedece a critérios semelhantes à ‘cidade dos vivos’. Assim, os cemitérios funcionam como espelhos das aldeias, vilas ou cidades que o 175 produzem.

Assim, o Cemitério Municipal São José funciona como espelho da cidade que o produziu: heterogêneo, conflituoso, carregado de disputas sociais, de múltiplas práticas culturais. Segundo Sahr, a estrutura interna e o espectro social da cidade de Ponta Grossa refletem uma dinâmica bastante intensa, sendo que muito embora a cidade seja um organismo único, encontra-se fragmentada por diferentes usos que se articulam constantemente. 176 Espelho fragmentado, através do qual podemos recuperar somente pedaços que nos foram permitidos vislumbrar, aqueles menos obscurecidos pela camada do tempo. São esses caminhos entrecortados que nos propomos a apresentar, sem a pretensão de totalidade.

175

COELHO, A. M. Atitudes Perante a Morte. Coimbra: Livraria Minerva, 1991, p. 08. Apud REZENDE, Metrópole da Morte..., op. cit., p. 33-34.

176

SAHR, C. L. L. Estrutura e dinâmica social na cidade de Ponta Grossa. In: Espaço e Cultura: Ponta Grossa e os Campos Gerais. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2001, p. 35.

91

LEGENDA Centro

- Centro Ponta Grossa

_____________ _____________

Vias Urbanas

Cemitério

Cemitério

________

Limite área urbana

Mapa 1 – Localização do Cemitério Municipal São José Fonte: Adaptado de SAHR, op. cit., p. 30.

92

Fundado em 1881, o Cemitério Municipal São José encontra-se localizado em área central, conforme mapa supra referido, entre a Rua Balduíno Taques, Largo Professor Colares, Travessa Santa Cruz e Travessa Pasteur. Muito embora já estivesse praticamente sem terrenos disponíveis para sepulturas desde meados da década de 1950, o mesmo é utilizado ativamente até os dias atuais, o que dificultou o levantamento dos dados, pela evidente dinâmica do espaço, destacada nas contingentes reformas nos túmulos, por exemplo. Nos mais diversos tamanhos, cores e formatos, subdivididos em 20 (vinte) quadras, o Cemitério Municipal São José conta atualmente com 2.284 (dois mil duzentos e oitenta e quatro) túmulos. É valido observar que do total dos túmulos encontrados, 10,9% não consta nenhum tipo de denominação ou identificação. Como vimos, do ponto de vista da inserção urbanística do Cemitério Municipal São José, denota-se investimentos na construção do portal de entrada e das ruas que conduzem ao mesmo, largas e arborizadas, produzindo eixos de alta visibilidade, especialmente na parte frontal do mesmo, sendo que a construção da monumentalidade é obtida por meio da articulação entre os investimentos públicos e privados. Todavia, tais investimentos não se restringem ao entorno da necrópole, mas também estão presentes na distribuição espacial da mesma. Ao analisar a área dos túmulos, evidencia-se que os túmulos que ocupam áreas menores estão concentrados na parte de trás da necrópole (canto superior esquerdo), onde possuem pouca visibilidade, por tratar-se de lugar periférico. Já os maiores terrenos para sepultamentos estão concentrados na parte frontal da mesma, o que coincide com a localização dos eixos de alta visibilidade, produzidos pelas ruas mais largas, correspondendo à inserção urbanística do espaço e, logo, à própria construção da monumentalidade. Com efeito:

93

Cartograma 2 – Área dos Túmulos

94

Cartograma 3 – Estado de Conservação dos Túmulos

95

Cartograma 4 – Estado de Conservação dos Túmulos - Ótimo

Cartograma 5 – Estado de Conservação dos Túmulos – Regular e Deteriorado

96

Ao analisar os cartogramas 3, 4 e 5, constata-se que a presença de “áreas de concentração” na organização espacial do Cemitério Municipal São José pode ser destacada na análise de outros atributos. No que tange ao estado de conservação dos túmulos (cartograma 3), os indicativos encontrados quanto à área dos terrenos são confirmados. Neste, os túmulos em ótimo estado de conservação, muito embora estejam distribuídos por todo o cemitério, são mais concentrados na parte frontal do mesmo, coincidindo justamente com a localização dos túmulos de áreas maiores. Os túmulos regulares também estão distribuídos por todo o espaço. Por sua vez, os túmulos deteriorados estão agrupados em maior medida nas áreas periféricas sendo que, somados aos regulares, percebemos claramente áreas de oposição dentre estes e os ótimos. O gráfico e a tabela, na sequência, clarificam a visualização dos resultados obtidos quanto ao estado de conservação dos túmulos.

50,0% 45,0% 40,0% 35,0% 30,0% PERCENTUAL 25,0%

OCORRÊNCIAS

46,3% 36,7%

20,0% 15,0%

16,9%

10,0% 5,0% 0,0% ÓTIMO

REGULAR

DETERIORADO

Gráfico 2 – Estado de Conservação dos Túmulos

97

CONSERVAÇÃO ÓTIMO REGULAR DETERIORADO TOTAL

OCORRÊNCIAS 1058 839 387 2284

% 46,3% 36,7% 16,9% 100,0%

Tabela 1 – Estado de conservação dos túmulos

Portanto, a maioria dos túmulos encontra-se em ótimo estado de conservação. Entretanto, um número significativo de jazigos foi reformado a partir de meados de abril de 2006, tendo em vista a seguinte situação: Proprietários ou detentores de concessões de túmulos nos cemitérios municipais São José e Santa Luiza, que não promoveram obras de recuperação ou manutenção desses espaços naquele campo santo têm menos de 90 dias para se manifestar. Alerta nesse sentido vem sendo feito através de cartazes e comunicações, nos próprios cemitérios, por parte da administração municipal. Trata-se, segundo o secretário municipal de Obras e Serviços Públicos, Olímpio Malucelli Filho, de uma medida para fazer com que os proprietários ou detentores de concessões recuperem, restaurem ou ao menos deixem em condições os túmulos dos principais cemitérios de Ponta Grossa. Para que os detentores desses espaços não possam alegar desconhecimento, a Secretaria de Obras, através do Serviço Funerário Municipal, identificou cada um dos túmulos que devem ser recuperados com uma marca em tinta vermelha. No Cemitério São José, há cerca de 400 sepultaras assinaladas e, no Santa Luzia, mais de 500, segundo os registros da Secretaria de Obras. (...) se não forem tomadas as providências devidas, o poder público vai reassumir a titularidade das concessões. Isso porque, explica Geraldo Kapp, diretor do Departamento de Serviços Urbanos, os dois cemitérios já estão completamente tomados, e existem diversos túmulos que há muitos anos não são mais visitados e ainda mais significativo não recebem qualquer manutenção. (...) Os espaços até então ocupados serão, dentro da ordem de requisição e solicitação, cedidos a novos interessados. O diretor do Departamento de Serviços Urbanos diz que o interesse do governo é tanto melhorar o visual e a segurança dos cemitérios, como atender ao grande número de pessoas que procuram o Serviço Funerário em busca de espaços nesses dois campos santos. Até agora, segundo Kapp, o resultado da marcação dos túmulos tem sido excelente: dezenas de famílias já procuraram o Serviço Funerário Municipal, e muitas já começaram as obras de recuperação e manutenção dos túmulos. “Muita gente está atendendo à nossa convocação e voltando a cuidar dos túmulos”, revela Kapp. (...) [sem 177 grifo no original].

Dessa forma, percebemos a preocupação por parte do poder público com a configuração dos “principais” cemitérios da cidade. Sob pena de reassumir a

177

HAMPF, Edgar. Prefeitura dá prazo para manutenção de túmulos. Site da Prefeitura Municipal, Ponta Grossa, 18.04. 2006. Disponível em: http://pg.pr.gov.br/node/755 ; acesso em 10.09.2006.

98

titularidade das concessões perpétuas, a administração municipal impôs a necessidade de recuperação e/ou restauração de determinadas construções, marcando as mesmas com tinta vermelha. Tal imposição foi justificada pelo fato de que os cemitérios em questão estão ocupados, todavia muitos dos túmulos não são mais visitados e, além disso, não recebem manutenção. Não havendo interesse manifestado na recuperação dos túmulos marcados, os mesmos seriam destinados a novos interessados. Além disso, a medida objetiva “melhorar o visual e a segurança dos cemitérios”. Ressaltamos que essas medidas acabaram por alterar a distribuição espacial da necrópole, sendo que grande parte dos túmulos marcados pelo poder público, e que estavam deteriorados, foram restaurados e passaram a compor o grupo dos túmulos em ótimo estado de conservação, o que reforça a “maioria” encontrada: do total das construções catalogadas, 46,3% se encontram em ótimo estado de conservação. Dessa forma, denota-se que através de tais medidas o poder público promove e reforça a hierarquização através da regulamentação das distinções territoriais do espaço cemiterial, além de estar voltado para a valorização urbanística do espaço do cemitério. Como vimos, o Cemitério Municipal São José é comumente reconhecido como o “Cemitério dos Ricos”, o que naturalmente reforça a preocupação com o estado de conservação do mesmo, ainda mais se levarmos em conta a proposta do espaço cemiterial como um espelho sócio-cultural do meio que o produziu. No trabalho de campo verificamos que o estado de conservação dos túmulos é influenciado principalmente pelo material escolhido pelos proprietários. Divididos entre alvenaria, lajota, mármore e pedra, os túmulos apresentam a seguinte configuração espacial:

99

Cartograma 6 – Material Predominante dos Túmulos

100

O material mais encontrado no Cemitério Municipal São José foi a lajota, em 57,3% dos túmulos: MATERIAL ALVENARIA LAJOTA MÁRMORE PEDRA TOTAL

OCORRÊNCIAS 520 1308 354 102 2284

% 22,8% 57,3% 15,5% 4,5% 100,0%

Tabela 2 – Material Predominante dos túmulos

60,0%

50,0%

PERCENTUAL

40,0%

57,3%

30,0%

OCORRÊNCIAS

20,0%

22,8% 15,5%

10,0%

4,5% 0,0% ALVENARIA

LAJOTA

MÁRMORE

PEDRA

Gráfico 3 – Material Predominante dos Túmulos

O revestimento em lajota é bastante comum nas construções tumulares, tendo em vista a relação entre custo e benefício, em especial pela durabilidade do mesmo, esta diretamente proporcional ao estado de conservação. Ressalta-se que o local de sepultamento é em geral idealizado, detentor de um tempo relativo, no sentido de que é marcado pela pretensão de eternidade, o que faz com que seja “naturalizada” a busca por materiais mais duráveis.

101

Denota-se esta relação entre o material escolhido e o estado de conservação na análise da tabela e do gráfico apresentados na seqüência: CONSERVAÇÃO e MATERIAL ÓTIMO ALVENARIA ÓTIMO LAJOTA ÓTIMO MÁRMORE ÓTIMO PEDRA REGULAR ALVENARIA REGULAR LAJOTA REGULAR MÁRMORE REGULAR PEDRA DETERIORADO ALVENARIA DETERIORADO LAJOTA DETERIORADO MÁRMORE DETERIORADO PEDRA TOTAL

OCORRÊNCIAS 189 541 290 38 162 564 59 54 169 203 5 10 2284

% 8,3% 23,7% 12,7% 1,7% 7,1% 24,7% 2,6% 2,4% 7,4% 8,9% 0,2% 0,4% 100,0%

Tabela 3 – Relação entre o Estado de Conservação e o Material dos túmulos

23,7%

25,0%

ÓTIMO ALVENARIA

24,7%

ÓTIMO LAJOTA ÓTIMO MÁRMORE

20,0% ÓTIMO PEDRA REGULAR ALVENARIA

12,7%

15,0%

REGULAR LAJOTA REGULAR MÁRMORE

PERCENTUAL 10,0%

8,9%

8,3% 7,1%

REGULAR PEDRA

7,4% DETERIORADO ALVENARIA DETERIORADO LAJOTA

5,0%

1,7%

2,6% 2,4%

DETERIORADO MÁRMORE

0,2% 0,4%

DETERIORADO PEDRA

0,0%

Gráfico 4 – Relação entre o Material e o Estado de Conservação dos túmulos

O ótimo estado de conservação dos túmulos, que corresponde a 46,3% do total, deve-se em partes ao fato de que 23,7% das construções

102

encontram-se revestidas em lajota, revestimento este presente em 57,3% do total dos túmulos e, destes, 24,7% dos túmulos estão em regular estado de conservação. Além disso, 15,5% do total dos túmulos encontram-se revestidos em mármore e, destes, 12,7% em ótimo estado de conservação. O mármore é mais caro em relação aos demais materiais, mas possui durabilidade superior. De fato, somente 0,2% destes túmulos estão deteriorados. Os revestimentos em pedra, presentes em somente 4,5% dos túmulos, encontram-se diluídos na distribuição espacial. A durabilidade deste material é significativa, sendo que 2,4% do total do mesmo encontram-se em regular estado de conservação, assim como 1,7% em ótimo estado de conservação e somente 0,4% estão deteriorados. Como

referido,

os

indicativos

da

presença

de

“áreas

de

concentração” na organização espacial do Cemitério Municipal São José são recorrentes a partir da análise de diferentes atributos. Neste caso, ainda que os revestimentos em lajota estejam distribuídos por todo o espaço do Cemitério, evidencia-se que, na parte da frente do mesmo, estes estão em menor número, em contraposição com os revestimentos em mármore, concentrados nesta região. Por outro lado, do total dos túmulos em alvenaria, 22,8%, 7,4% dos mesmos encontram-se deteriorados, ou seja, praticamente um terço do total. Os revestimentos em alvenaria, mais baratos que os demais, estão diluídos, ainda que presentes em maior medida nos jazigos mais simples. Porém, faz-se necessário observar que o revestimento da maioria dos mausoléus encontrados também é em alvenaria, sendo que a concentração deste formato é na parte frontal do Cemitério.

103

Cartograma 7 – Formato dos Túmulos

104

Claramente, a grande maioria dos túmulos do Cemitério Municipal São José são jazigos simples, ou seja, construções em geral horizontais, alongadas, destinadas a sepultamentos primários, ou seja, quando são dispostos em uma sepultura, corpos articulados de um ou mais indivíduos, em posição distendida, normalmente em caixões.

178

No Cemitério Municipal São José este formato

encontra-se diluído na organização espacial. Os mausoléus correspondem a uma categoria híbrida, que pode comportar tanto sepultamentos primários quanto secundários (quando os ossos desarticulados de um ou mais indivíduos são dispostos em urnas, após o processo de decomposição). Em geral, este formato abriga vários indivíduos de uma mesma família, grupo, organização ou entidade civil ou religiosa. 179 Por conveniência, os jazigos mais elaborados, seja através da estatuária e/ou da arquitetura, foram reconhecidos neste trabalho como “jazigosmonumento”. Ou seja, nos quais os recursos estilisticos foram utilizados como forma de monumentalização e demarcação do espaço. Como mencionado, os mausoléus encontram-se concentrados na parte frontal do Cemitério Municipal São José, assim como os jazigos-monumentos, conforme o cartograma na sequência; o que reforça a percepção de “áreas de concentração” na distribuição espacial dos atributos dos túmulos analisados, principalmente se pensarmos esta questão relacionada à idéia de demarcação do espaço através da utilização dos recursos estilisticos.

178

KASPRZAK, C. C. Um “lugar de memória” e de arte: Cemitério Municipal São José. Ponta Grossa: UEPG, Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização), 2006, p. 50.

179

LIMA, T. A. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais). In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V. 2 p. 87-150 jan./dez. 1994, p. 12.

105

Cartograma 8 – Formato dos Túmulos – Mausoléu e Jazigo-Monumento

106

A tabela e o gráfico a seguir auxiliam a análise das informações encontradas: FORMATO JAZIGO JAZIGO-MONUMENTO MAUSOLÉU TOTAL

OCORRÊNCIAS 2060 140 84 2284

% 90,2% 6,1% 3,7% 100,0%

90 ,2 %

Tabela 4 – Formato dos túmulos

100,0% 90,0% 80,0%

PERCENTUAL

70,0% 60,0% OCORRÊNCIAS 50,0% 40,0%

20,0%

3, 7%

6, 1%

30,0%

10,0% 0,0% JAZIGO

JAZIGO-MONUMENTO

MAUSOLÉU

Gráfico 5 – Formato dos Túmulos

Portanto, o formato jazigo é predominante no Cemitério Municipal São José, perfazendo 90,2% dos túmulos. Segundo Carollo, estes túmulos horizontais resultam de uma opção pela simplicidade, muitas vezes sem a utilização de elementos decorativos, ou ainda, pelas condições econômicas precárias, fato verificado pela utilização de materiais menos nobres, como a alvenaria e a lajota.

180

CAROLLO, op. cit., p. 140.

180

107

Corroboramos com a afirmação da autora, ao verificar que a maioria dos jazigos foi confeccionada em lajota, conforme conferimos na tabela e no gráfico abaixo: FORMATO e MATERIAL ALVENARIA LAJOTA MÁRMORE PEDRA TOTAL

OCORRÊNCIAS 401 1280 280 99 2060

% 19,5% 62,1% 13,6% 4,8% 100,0%

,1 %

Tabela 5 – Material dos Jazigos

62

70,0%

60,0%

50,0%

40,0% OCORRÊNCIAS

13

,6 %

19

,5 %

30,0%

4,

8%

20,0%

10,0%

0,0% ALVENARIA

LAJOTA

MÁRMORE

PEDRA

Gráfico 6 – Material dos Jazigos

Dessa forma, mais de 80% dos jazigos encontrados no Cemitério Municipal São José foram confeccionados com materiais “menos nobres”, como Carollo os define, ou pelas condições econômicas precárias ou como opção pela simplicidade. Acrescentamos que a escolha de materiais menos nobres não está relacionada somente à simplicidade ou às condições econômicas dos proprietários, mas também como manifestação do silêncio constatado nos dias atuais, no que tange as manifestações funerárias:

108

Os túmulos mais recentes têm em comum a característica do silêncio, limitando-se a registrar o nome, data de nascimento e morte, o que parece compatível com o tratamento privado da morte, cada vez mais limitada a ser experimentada por reduzido número de membros da família, que aguardam o falecimento do doente, que agoniza em lugar afastado de sua casa, distanciado do convívio com os seus, pretensamente protegido pelo mundo 181 asséptico dos hospitais.

Com efeito, a construção de grande parte dos mausoléus presentes no Cemitério Municipal São José remete às décadas próximas à fundação deste, quando havia uma preocupação mais intensa com a exposição do culto aos mortos, evidenciada na própria suntuosidade dos túmulos, nos quais os recursos estilísticos foram utilizados como forma de monumentalização e demarcação do espaço, ao contrário do silêncio cada vez mais intenso no que tange aos ritos funerários nos dias atuais, conforme discutido anteriormente. Concentrados na parte frontal da necrópole, principalmente, os formatos jazigo-monumento e mausoléu, somados, perfazem um total de 9,8% das construções. Ressalta-se que, em geral, a construção destes últimos formatos demanda um maior investimento financeiro do que aquele destinado à construção dos jazigos. Inclusive, para os mausoléus, em especial, a área dos terrenos é maior do que para os demais formatos. Além disso, como vimos, o Cemitério Municipal São José possui destaque dentre as demais necrópoles da cidade pelas construções inspiradas nos moldes europeus, construídas em sua maioria até a década de 1930, perspectiva esta que se complementa com a afirmação de Vovelle: Houve uma idade de ouro do cemitério, se assim podemos dizer, entre 1860 e 1930: foi a época de proliferação dos jazigos perpétuos, quando também a família burguesa, em filas cerradas, se aglomerou dentro deste habitat póstumo; época das capelas e dos monumentos funerários, de uma explosão vertical que irrompeu das lápides e estelas bastante simples do 182 cemitério anterior a 1850, formando uma arquitetura heteróclita. 181 182

Ibid., p. 120.

VOVELLE, M. Imagens e Imaginário na História. Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ática, 1997, p. 328.

109

Ao

analisar

conjuntamente

as

informações

presentes

nas

construções tumulares, tais como área, estado de conservação, formato e material, que constituem a “arquitetura heteróclita” referida por Vovelle, constatamos variações de padrão, o que diz respeito especialmente a questão do investimento financeiro para a contrução da última morada. Com efeito, a morte apresenta especificidades de classe, família, cultura e religião. Segundo Bellomo: “A imagem da morte e suas representações são de ordem social, petrificadas pela experiência de idade, classe, religião e cultura.” 183 Neste contexto, as construções funerárias passaram a ser elementos de diferenciação social, especialmente após a concepção do túmulo como morada dos mortos, devendo reproduzir a morada dos vivos. Portanto, os cemitérios se tornam a cidade dos mortos, na qual os grandes monumentos fúnebres são destinados aos elementos destacados dos grupos dominantes, enquanto a classe média vai para as catacumbas decoradas com epitáfios e fotos. Os pobres perdem até a 184 identidade, sendo sepultados em túmulos anônimos.

E ainda: Os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as classes locais. (...) A morte igualitária só existe no discurso, pois, na realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos cemitérios seus valores, crenças, estruturas socio-econômicas e 185 ideologias.

Isto posto, os seguintes cartogramas demonstram as variações de padrão encontradas no Cemitério Municipal São José:

183

PIACESKI, T. R.; BELLOMO, H. R. Pesquisa cemiterial no Estado de Goiás. Porto Alegre: s.n., 2006, p. 16.

184

Ibid., p. 17.

185

Ibidem., p. 41-42.

110

Cartograma 9 – Padrão dos Túmulos

111

Cartograma 10 – Padrão dos Túmulos - Baixo

Cartograma 11 – Padrão dos Túmulos – Médio

112

Cartograma 12 – Padrão dos Túmulos – Médio-Alto

Cartograma 13 – Padrão dos Túmulos – Alto

113

Ao analisar estes cartogramas, confirma-se a presença de “áreas de concentração” na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José. Os túmulos de médio e médio-alto padrão (cartogramas 11 e 12) estão diluídos na distribuição espacial. As construções de baixo padrão (cartograma 10) encontram-se concentradas na parte de trás da necrópole, em evidente contraposição com os túmulos de alto padrão (cartograma 13), presentes em maior medida na parte frontal do espaço. O gráfico e a tabela, na sequência, esclarecem os resultados obtidos quanto ao padrão dos túmulos:

PADRÃO BAIXO MÉDIO MÉDIO-ALTO ALTO TOTAL

OCORRÊNCIAS 577 863 519 325 2284

% 25,3% 37,8% 22,7% 14,2% 100,0%

Tabela 6 – Padrão dos túmulos

40,0%

35,0%

30,0%

37 ,8 %

20,0%

OCORRÊNCIAS

22 ,7 %

15,0%

25 ,3 %

10,0%

14 ,2 %

PERCENTUAL

25,0%

5,0%

0,0% BAIXO

MÉDIO

MÉDIO-ALTO

Gráfico 7 – Padrão dos Túmulos

ALTO

114

Tais variações de padrão são indicativas da configuração do Cemitério Municipal São José, ou seja, uma necrópole urbana e central, destacada com relação às demais, seja pela localização, seja pelos elementos estilísticos e, especialmente, constituída e/ou justificada sob a lógica da pretensa civilidade. Ainda, pensamos este espaço como ordenador social, considerando que a partir da construção dos demais cemitérios na cidade, o público que teria acesso àquele passou a ser selecionado de modo silencioso, até mesmo pelas providências legislativas, conforme discutido anteriormente. Isto posto, a configuração do Cemitério Municipal São José é motivadora e resultado da percepção do mesmo como o “Cemitério dos Ricos”, o que esclarece o fato de que a maioria dos túmulos possuir médio padrão, visto que as classes menos favorecidas tiveram o acesso ao mesmo dificultado. Assim, ainda que aproximadamente um quarto das construções tumulares possua baixo padrão, a maioria das mesmas é de médio padrão, perfazendo um total de 37,8%. Além disso, a mesma configuração também naturaliza o ótimo estado de conservação da necrópole, de modo geral. Faz-se pertinente elucidar que as áreas de concentração, conforme já tratado, confirmam-se principalmente tendo em vista que as variações de padrão são informadas pelos demais elementos presentes nas construções tumulares, tais como área, estado de conservação, formato e material. A fim de compreender as variações de padrão é necessário analisá-las de forma relacional com os demais atributos. Ao relacionar o estado de conservação ao padrão dos túmulos, constatamos principalmente que a maioria dos túmulos deteriorados é de baixo e médio padrão, ou seja, dos 16,9% dos túmulos deteriorados, 7,7% são de baixo

115

padrão e 7,0% são de médio padrão. Ao contrário, dos túmulos em ótimo estado de conservação (46,3%), somente 7,6% são de baixo padrão.

CONSERVAÇÃO e PADRÃO ÓTIMO BAIXO ÓTIMO MÉDIO ÓTIMO MÉDIO-ALTO ÓTIMO ALTO REGULAR BAIXO REGULAR MÉDIO REGULAR MÉDIO-ALTO REGULAR ALTO DETERIORADO BAIXO DETERIORADO MÉDIO DETERIORADO MÉDIO-ALTO DETERIORADO ALTO TOTAL

OCORRÊNCIAS 173 312 306 267 229 390 174 46 175 161 39 12 2284

% 7,6% 13,7% 13,4% 11,7% 10,0% 17,1% 7,6% 2,0% 7,7% 7,0% 1,7% 0,5% 100,0%

Tabela 7 – Relação entre o Estado de Conservação e o Padrão dos Túmulos

17,1%

18,0% 16,0%

ÓTIMO BAIXO ÓTIMO MÉDIO

13,7% 13,4%

14,0%

ÓTIMO MÉDIO-ALTO ÓTIMO ALTO

11,7%

12,0%

REGULAR BAIXO

10,0%

REGULAR MÉDIO 10,0% PERCENTUAL

7,6%

7,6%

7,7%

REGULAR MÉDIO-ALTO

7,0%

8,0%

REGULAR ALTO

6,0%

DETERIORADO BAIXO DETERIORADO MÉDIO

4,0% 2,0%

2,0%

1,7%

DETERIORADO MÉDIO-ALTO

0,5%

DETERIORADO ALTO

0,0%

Gráfico 8 – Relação entre o Estado de Conservação e o Padrão dos Túmulos

116

Por outro lado, a questão do padrão das construções tumulares guarda relação direta com o material predominante das mesmas. Com efeito:

MATERIAL e PADRÃO ALVENARIA BAIXO ALVENARIA MÉDIO ALVENARIA MÉDIO-ALTO ALVENARIA ALTO LAJOTA BAIXO LAJOTA MÉDIO LAJOTA MÉDIO-ALTO LAJOTA ALTO MÁRMORE BAIXO MÁRMORE MÉDIO MÁRMORE MÉDIO-ALTO MÁRMORE ALTO PEDRA BAIXO PEDRA MÉDIO PEDRA MÉDIO-ALTO PEDRA ALTO TOTAL

OCORRÊNCIAS % 241 10,6% 185 8,1% 52 2,3% 42 1,8% 313 13,7% 609 26,7% 314 13,7% 72 3,2% 0 0,0% 43 1,9% 135 5,9% 176 7,7% 23 1,0% 26 1,1% 18 0,8% 35 1,5% 2284 100,0%

Tabela 8 – Relação entre o Material e o Padrão dos Túmulos

ALVENARIA BAIXO

30,0%

26,7%

ALVENARIA MÉDIO ALVENARIA MÉDIO-ALTO

25,0%

ALVENARIA ALTO LAJOTA BAIXO LAJOTA MÉDIO

20,0%

LAJOTA MÉDIO-ALTO

13,7% PERCENTUAL 15,0%

LAJOTA ALTO

13,7%

MÁRMORE BAIXO MÁRMORE MÉDIO

10,6% 10,0%

7,7%

8,1% 5,9%

5,0%

2,3%

3,2% 1,8%

MÁRMORE MÉDIO-ALTO MÁRMORE ALTO PEDRA BAIXO PEDRA MÉDIO

1,9% 0,0%

0,8% 1,5% 1,0% 1,1%

0,0%

Gráfico 9 – Relação entre o Material e o Padrão dos Túmulos

PEDRA MÉDIO-ALTO PEDRA ALTO

117

Isto posto, dos 22,8% dos túmulos confeccionados em alvenaria, 18,7% dividem-se entre padrão baixo e médio. Ressalta-se que este material, mais barato que os demais, está presente em maior número nos jazigos mais simples, sendo também mais propenso à deterioração, o que favorece o baixo padrão. De fato, do total dos túmulos revestidos em alvenaria, praticamente um terço encontrase deteriorado. Os revestimentos em lajota perfazem um total de 57,3%, dos quais 13,7% de baixo padrão, 26,7% de médio padrão, 13,7% de médio-alto padrão e somente 3,2% de alto padrão. O maior número de túmulos revestidos em lajota e de médio padrão explica-se pelo fato de que este material é muito comum nas construções tumulares, tendo em vista a relação entre custo e benefício e, em especial, a durabilidade do mesmo, que colabora para o estado de conservação da construção, principalmente em relação à alvenaria. Por ser um material menos nobre, não é a escolha hegemônica para os túmulos de alto padrão. Por sua vez, as costruções confeccionadas em pedra, de durabilidade significativa e que perfazem 4,5% do total, encontram-se diluídas na distribuição espacial. Destas, 1,5% possui alto padrão. O mármore foi o material escolhido para o revestimento de 15,5% dos túmulos presentes no Cemitério Municipal São José, dos quais 1,9% são de médio padrão, 5,9% de médio-alto padrão e 7,7% de alto padrão. Este material é mais caro que os demais, mas possui durabilidade superior, relação esta que esclarece o alto padrão dos túmulos revestidos em mármore. Portanto, produzida pelos e para os vivos, a organização dos cemitérios discutiu-se a partir dos diferentes atributos levantados, tais como área, estado de conservação, material e formato, levando-nos a perceber áreas de

118

concentração, bem como o estabelecimento de relações entre os mesmos, o que nos conduziu à percepção de diferentes padrões nas construções funerárias, estes informados a partir dos demais atributos. Todavia, faz-se fundamental destacar que a nossa problemática se estende à subjetividade dos vivos e suas relações com a sociedade, materializadas no espaço urbano. Dessa forma, para além dos muros e do concreto do Cemitério Municipal São José, voltamos nosso olhar para o simbólico. Segundo Dalmáz, o uso da simbologia cemiterial objetiva a transmissão ou a expressão de valores culturais. “A representação simbólica seria, então, uma forma de comunicação, onde a cultura e os padrões sociais seriam transmitidos não por meio de frases ou de palavras, e sim, através de símbolos, tais como um objeto, uma letra, uma escultura e outros.”

186

Assim, a simbologia estabelece as relações sociais e as transmissões

culturais. Entretanto, a interpretação simbólica deve considerar que os símbolos expressam significados diversos do que os objetos revelariam. O símbolo pertence à categoria dos signos ou sinais. Quando sinais constituem uma unidade com aquilo que significam, chamamo-los símbolos. Em sua etimologia original, o símbolo é um objeto cortado em dois, cujas partes reunidas permitem reconhecer-se a quem as possui. O símbolo é bipolar, conjugando o visível e o invisível, o presente e o distante, o idêntico e o distinto. Símbolo é um objeto, um gesto, um elemento, um movimento 187 ou uma ação que vale não o que é em si, mas o que significa.

Portanto, o símbolo entende-se como o significado que o objeto concreto pode trazer que, decifrado pela compreensão imediata ou pelo estudo, permite a transmissão cultural e também dos valores sociais, estes que encontram no espaço das construções funerárias o espaço privilegiado para edificar suas representações. 186

DALMÁZ, M. Símbolos e seus significados na Arte Funerária Cristã do Rio Grande do Sul. In: Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 120. 187

ZILLES, U. A significação dos símbolos cristãos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 12. Apud DALMÁZ, op. cit., p. 121.

119

CAPÍTULO 3 PARA ALÉM DO CONCRETO: O SIMBÓLICO MATERIALIZADO

3.1. Espaço Funerário: transmissões culturais e relações sociais

“Todas as decepções são secundárias. O único mal irreparável é o desaparecimento físico de alguém a quem amamos.” Romain Rolland

A simbologia cemiterial objetiva a transmissão ou a expressão dos valores culturais, utilizada como uma forma de comunicação, para o estabelecimento e reafirmação das relações sociais, considerando que somente gestos e palavras não abarcam a multiplicidade destas transmissões. A pluralidade destes valores, expressos pelos espaços funerários, está profundamente relacionada às diferentes maneiras encontradas para se lidar com a questão da morte. 188 Os rituais funerários, os cultos religiosos e as manifestações artísticas, em diferentes culturas, conforme já discutido, são múltiplos, aos quais são inerentes diversos sentidos assumidos pela expressão simbólica da morte, ou seja, respostas dadas, historicamente, à pergunta acerca do sentido da vida. Assim, a consciência da finitude que os seres humanos possuem torna a morte problemática para os vivos, para os quais o sentido do jogo existencial é elaborado e apresentado. Notamos que, segundo Bellomo, os rituais de morte são indicativos e/ou respostas da crise perante a morte, tendo em vista a consciência da finitude. 189 DaMatta refere-se aos cemitérios como o espaço que estabelece com a casa e com a rua elos complementares e terminais. O espaço da casa,

188

DALMÁZ, op. cit., p. 122.

189

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 16.

120

privado, moral, conservador e cíclico, só faz sentido em oposição ao espaço exterior, ou seja, em contraposição ao universo da rua, público, marcado pela idéia do progresso, pela individualidade e pela linearidade. E o espaço dos mortos, mesclando a casa e a rua, é “englobador de situações sociais” e, desta forma, mescla a lógica do espaço público e, também, do privado. 190 Nesse sentido: os túmulos têm também a função intencional de fazer lembrar do morto, da sua importância social e de suas crenças, além de permitir observar a pluralidade de representações simbólicas, muitas das quais dotadas de 191 conteúdo estético.

Portanto, os cemitérios, pensados como “lugares de memória” associados à vida, passam por um processo de simbolização, pois são nutridos de lembranças particulares e, ao mesmo tempo, coletivas e plurais. Com isso objetivamos a percepção de que as construções tumulares servem à expressão e/ou à transmissão dos valores culturais, bem como ao estabelecimento das relações sociais e, como espaço englobador de situações sociais, congrega as preocupações individuais às coletivas, o privado ao público.

190 191

DAMATTA, op. cit., p. 18.

BORGES, M. E. ; BIANCO, S. D. & SANTANA, M. M. Arte funerária no Brasil: possibilidades de interagir nos programas de ensino, de pesquisa e de extensão na universidade. Disponível em: http://www.corpos.org/anpap/2004/textos/chtca/MariaElizia.pdf ; acessado em 31/07/2006 ; p. 5.

121

3.2. Simbologia Cristã: justificação do além-túmulo “Morrer é duro. Sempre senti que a única recompensa dos mortos é não morrer nunca mais.” Nietzsche

Ao compreendermos o espaço funerário e as representações semântico-simbólicas inerentes ao mesmo, como respostas edificadas para o problema da morte, buscamos neste a percepção destas representações, individuais e coletivas, privadas e públicas, vinculadas à religiosidade, à familiaridade, aos valores sociais. A variedade de atributos que compõe a ornamentação funerária do Cemitério Municipal São José possibilita a identificação das concepções religiosas presentes no meio social no qual o mesmo está inserido.

192

Isto posto, a cruz foi o

símbolo mais encontrado no levantamento catalográfico dos símbolos religiosos do referido campo santo, conforme cartograma subseqüente, presente em 66,8% das construções, ou seja, em 1524, de um total de 2284 túmulos, indicativo este de uma forte influência cristã nas relações sócio-culturais ponta-grossenses. O fato de ser um dos principais depositários das mensagens cristãs habilita a presença da cruz em diversos espaços religiosos, com destaque para os cemitérios. Cabe observar que a cruz é um símbolo presente desde a mais Alta Antiguidade, tendo sido encontrada na cultura egípcia, grega, chinesa. Todavia, a tradição cristã enriqueceu amplamente o simbolismo da cruz, ao condensar nessa

192

De acordo com Brown, quanto às práticas funerárias, o cristianismo possui um repertório simbólico pasteurizado, detentor de cenas facilmente reconhecíveis, inscritas, com poucas variações, em todas as tumbas cristãs, em contraposição ao paganismo (BROWN, P. A Morte. In: História da vida privada 1. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Cia das Letras, 1993.)

122

imagem a história da salvação e a paixão de Cristo, cuja associação é a mais reconhecida na cultura ocidental 193 e à qual nos referimos no presente momento. 194

Cartograma 14 – Símbolos Religiosos – Cruz

193

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Cruz. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 309-317 passim. 194

Observa-se que contemporaneamente a cruz excede os limites do cristianismo e do catolicismo, sendo apropriada também por outros segmentos religiosos, como os agnósticos e os kardecistas. Assim, é possível que parte dos túmulos encontrados no Cemitério Municipal São José não sejam necessariamente vinculados ao cristianismo, mas não é possível quantificar tal expressão.

123

A

presença

das

cruzes,

segundo

Rezende,

demarcou

a

transferência dos sepultamentos das igrejas para os cemitérios: A igreja-cemitério era marcada pelo subterrâneo, o local dos mortos era a nave, a cripta, embaixo do assoalho; em cima, no teto da igreja, estava pintada a salvação, com os tradicionais anjos condutores e esvoaçantes. Com o cemitério, as marcas foram soerguidas acima do solo. (...) Apesar de serem símbolos do catolicismo, as cruzes acima do solo começam a representar o fim do poder de ocupação do espaço subterrâneo, tanto em 195 termos simbólicos como reais.

A questão dos sepultamentos nas igrejas e após nos cemitérios possui relação com o poder e a dominação sob a sociedade. De acordo com o autor, a recusa da Igreja em permitir os sepultamentos fora do seu subterrâneo era pautada na representação do profundo como morte, inferno, trevas e mistério, em oposição ao teto e aos símbolos que remetem à salvação, à claridade e à vida eterna. Assim, a disputa pelo espaço da morte atingia o real, através dos sepultamentos, e o simbólico, no sentido de que era necessário que o poder eclesiástico continuasse escondendo os mortos, no subsolo das igrejas, para a manutenção diante do imponderável e, desta forma, também a manutenção da rede de dominação. Ressalta-se que a cruz é um dos principais símbolos representativos do cristianismo, na qual está contida a crença na idéia da morte e da ressurreição em Cristo. Pelo fato de Jesus ter morrido crucificado, assume o sentido da morte e o do sofrimento. Também é símbolo da vida eterna, por Cristo ter vencido a morte: A Cruz, simbolismo que nos remete a grande importância, em que através da crença na superação da morte com a ressurreição de Cristo e um dia a dos cristãos, nos revela a vida eterna. Cristo vencendo a morte na cruz, após todo o sofrimento até a redenção, representa a vitória na figura da ressurreição, sendo este fato que a torna um símbolo da eternidade cristã. 196

195

REZENDE, O céu aberto na terra..., op. cit., p. 59.

196

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 73.

124

A representação mais comum, conforme Dalmáz, é a cruz com uma haste transversal: (...) seus quatro braços significariam o conjunto da humanidade atraída por Cristo nos quatro cantos do mundo, bem como as virtudes da alma humana. O fato de ficar enterrada no chão simbolizaria a fé assentada em profundas fundações. A parte superior da cruz indicaria a esperança que sobe ao céu. Além disso, seus braços abertos demonstrariam a caridade que se estende 197 a todos.

Dessa forma, a cruz é o símbolo por excelência da fé e da morte cristã, símbolo da celebração da morte e da esperança na ressurreição, ao considerar que, para o cristão, a morte conduz à perspectiva da vida eterna, traz em si o germe da ressurreição. Isto posto, a mensagem cristã é transmitida basicamente através de duas situações, quais sejam a crucificação, que se define pela morte dignificada pelo exemplo de Cristo, e a ressurreição, que representa a conquista da vida sobre a morte.

198

Entretanto, esta mensagem não é transmitida somente pela

simbologia da cruz, mas também destacada nas demais manifestações da “Tipologia Cristã”. 199 Vejamos:

197

DALMÁZ, op. cit., p. 125.

198

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 46.

199

Harry Rodrigues Bellomo, na dissertação de mestrado em História intitulada “A Estatuária Funerária em Porto Alegre (1900 – 1950)”, defendida em 1988 na PUCRS, analisou a produção da estatuária funerária em Porto Alegre através dos ateliês e dos artistas, suas influências européias em relação ao contexto positivista, utilizando-se de diferentes temas e representações para as interpretações artísticas das obras funerárias, as quais são classificadas através de três tipologias que procuram estabelecer as relações entre as mesmas e o seu contexto sócio-político: Cristã, Alegórica e Cívico-Celebrativa (ARAÚJO, op. cit., p. 17.).

125

Cartograma 15 – Tipologia Cristã

126

Observa-se que as origens da arte funerária são tão antigas como a própria arte. Bellomo identifica já no período pré-histórico dois aspectos básicos da arte funerária, quais sejam: a relação da produção artística com as crenças religiosas e a necessidade de manter a relação do morto com o mundo material que ele [morto] abandonou, destacando principalmente seu papel na sociedade em que viveu. 200

Ao analisar o conjunto da estatuária vinculada à tipologia cristã do Cemitério Municipal São José, estes aspectos são amplamente destacados, tendo em vista que a presença destas representações nas construções tumulares possui a finalidade de garantir a sobrevivência para o morto e a vinculação religiosa terrena, buscando-se a benevolência divina para o pós-morte. Isso porque “(...) a fé na ressurreição passa a ser a espinha dorsal da fé em Cristo. Cristo é a explicação da morte e da ressurreição.” 201 Ou seja, é a justificação do pós-morte. A tipologia cristã compreende as representações de Cristo, incluindo principalmente as relacionadas à crucificação e à ressurreição; as representações de Maria e dos santos, bem como das figuras angelicais. Presentes em 6,1% das construções tumulares da referida necrópole, ou seja, em 138 (cento e trinta e oito) das mesmas, estas representações seguem os padrões da arte neoclássica, ou seja, "devem expressar espiritualidade, grandeza, personalidade bem característica, santidade, profundidade de sentimentos, dor e sofrimento sereno.” 202 Destarte, no conjunto da estatuária do Cemitério Municipal São José, observamos representações de Jesus Cristo em oração, crucificado, morto, abençoando... Para exemplificar, destacamos a representação de Cristo distribuindo flores, considerando que vai além da vinculação religiosa e do exposto até aqui. 200

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 09.

201

Ibid., p. 47.

202

Id.

127

Figura 8 – Tipologia Cristã Jazigo-Monumento da Família Driessen (Quadra 2, Túmulo 2082)

Nas palavras de Carollo: O uso de flores nos sepultamentos remete ao conceito de morte como refrigério, como um estado de sono cujo despertar será o acesso a uma vida melhor, sendo a flor a representação do paraíso. Esse conceito já se encontra no Gênesis: ‘E Deus plantou um jardim no Éden...’, imagem que 203 fixa a idéia do paraíso com flores, felicidade, perfeição e pureza.

As flores representam a imortalidade, numa relação paradoxal com a fragilidade da vida. Ainda, é a lembrança da natureza, da transitoriedade da vida. Segundo Dalmáz, a rosa é o tipo de flor mais encontrado nos cemitérios e é intimamente ligada à idéia do amor divino, guardando relação também com a saudade, por isso amplamente utilizada nos funerais e, também, na ornamentação dos cemitérios, como homenagem aos mortos. 204 A presença da estatuária sagrada no espaço do cemitério é indicativa de uma das vocações fundamentais do lugar dos mortos, muito embora a

203

CAROLLO, op. cit., p. 19.

204

DALMÁZ, op. cit., 127.

128

fração destas representações seja globalmente modesta, ainda mais se observada em contraponto aos túmulos nos quais há a representação da cruz, conforme referido. As representações de Cristo encontram-se em 2,9% das construções e são significativas da morte cristã e da esperança na ressurreição, no mesmo sentido assumido pela simbologia da cruz, mas de uma maneira mais elaborada, em relação àquela. Isto posto, além da vinculação religiosa, a presença da tipologia cristã é indicativa da intenção manifesta pelos proprietários em monumentalizar o espaço, através do investimento estilístico, intenção esta evidenciada quando percebemos que, a exemplo dos demais atributos já discutidos, a amostra da estatuária cristã em questão encontra-se presente em maior medida na parte frontal do cemitério.

Figura 9 – Tipologia Cristã – Pietá Jazigo-Monumento da Família João Maria Nascimento (Quadra 2, Túmulo 97)

Por sua vez, as representações de Maria e dos santos, seguindo a mesma lógica das representações de Cristo, são símbolos das devoções familiares do cristianismo católico. Estão presentes em 0,9% das construções tumulares, ou

129

seja, em 20 das mesmas. Em especial, a representação de Maria, mãe dolorosa, nas Pietás, presente em três exemplares no Cemitério Municipal São José, representa a dor de uma mãe que perdeu seu filho para a morte. É a denotação da piedade, além de colocar Jesus Cristo como um ser humano. Quanto às representações angelicais, ainda que tais manifestações não sejam exclusivas do espaço funerário, é neste que ganham destaque: Esse anjo não é mais o querubim da idade barroca, praticamente desaparecido no início do século XIX e sobretudo no século XX. Ele ressurgiu dentro de um papel bem definido: anjo dos túmulos juvenis, das sepulturas quadradas das crianças, imagem e reflexo do ser que se foi, “um 205 anjo no céu”, como dizem as inscrições.

Ao assumir o novo papel no espaço dos mortos, segundo Vovelle, a figura angelical passou a ser representada sob a forma adulta, às vezes sem asas, apresentando uma sensibilidade religiosa diferenciada, quase descristianizada e pouco ortodoxa. Indo além, a partir da segunda metade do século XIX transformouse notadamente, assumindo a olhos vistos formas afeminadas: Já era bastante ambíguo (...): formas fluidas e feições de mulher. Nas grandes necrópoles italianas, ao final do século, não restavam dúvidas sobre o sexo dos anjos, cujas formas opulentas e transbordante feminilidade transformaram-nos em duplos ou sósias da imagem da mulher, 206 visitando com crescente insistência os monumentos do cemitério.

Todavia, conservou sua significação própria, ao espalhar as “flores da lembrança”, às vezes com forte carga erótica, além da interpretação religiosa superficial. Assim, pode ser percebido como o elo de ligação para as representações laicas da morte, ou seja, as representações alegóricas, simbólicas, como é o caso da seguinte representação:

205

VOVELLE, op. cit., p. 330.

206

Ibid., p. 331.

130

Figura 10 – Representações Angelicais Jazigo-Monumento da Família Lineu Martins Ribas (Quadra 5, Túmulo 352)

Com efeito, as representações angelicais foram encontradas em 51 (cinquenta e um) dos túmulos presentes no Cemitério Municipal São José, perfazendo um total de 2,3% dos mesmos, sob a forma tanto do anjo querubim, característico do período barroco, quanto do anjo adulto, no caminho da erotização.

131

Figura 11 – Anjos (Jazigos-Monumento: Túmulo 11, Quadra 1; Túmulo 439, Quadra 6 e Túmulo 287, Quadra 4)

Para a análise dos aspectos antropológicos contidos no cemitério, de acordo com Steyer, os conceitos de negação e aceitação da morte são fundamentais. Nesse viés, o autor destaca que a representação de um anjo pode significar tanto a aceitação quanto a negação da morte. Tange à aceitação, ao pensarmos que a família considera a morte do ente querido como um fato consumado e que o mesmo é agora um anjo em outro plano existencial. Por outro lado, pensar tal existência angelical, ou seja, a morte como uma passagem para outro mundo, e não a finitude total, pode ser considerado como uma forma de

132

negação. 207 Portanto, destacadas no espaço funerário, as representações angelicais referidas, simbolizam o ente querido que se foi, numa perspectiva cada vez mais desvinculada

da

religiosidade.

Ao

assumir

formas

femininas,

amplamente

acompanhadas de sensualidade, os anjos estão muito próximos das representações alegóricas presentes nas necrópoles, para a expressão dos sentimentos.

3.3. Alegorias: sentimentos personificados

“Se pudesse viver novamente, na próxima vida tentaria cometer mais erros.” Jorge Luis Borges

Na arte funerária

208

, a cultura egípcia desenvolveu notavelmente a

escultura dedicada ao culto do morto, numa tentativa de conservar a memória do mesmo, mantendo viva a sua personalidade individual e garantindo a posteridade. Os gregos trouxeram a arte funerária ligada ao ideal antropocêntrico de beleza, na qual se combinam o idealismo, as emoções humanas e a racionalidade, originando uma estatuária de grande expressividade. Por sua vez, o cristianismo revolucionou a arte funerária, apresentando uma nova ideologia, ao valorizar a vida além-túmulo, ao mesmo tempo em que a explicitação da adesão às novas crenças tornou-se uma necessidade social, o que resultou, já na época gótica, na ampliação da utilização

207

STEYER, F. Representações e manifestações antropológicas da morte em alguns cemitérios do Rio Grande do Sul. In: Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 74. 208

PIACESKI, T. R. & BELLOMO, H. R. As origens da arte funerária. In: Pesquisa cemiterial no Estado de Goiás. Porto Alegre: s.n., 2006, página 09-15 passim.

133

das figuras angelicais, a personificação das virtudes teologais, das figuras de Cristo e dos santos.

132

3.3. Alegorias: sentimentos personificados

“Se pudesse viver novamente, na próxima vida tentaria cometer mais erros.” Jorge Luis Borges

Na arte funerária

208

, a cultura egípcia desenvolveu notavelmente a

escultura dedicada ao culto do morto, numa tentativa de conservar a memória do mesmo, mantendo viva a sua personalidade individual e garantindo a posteridade. Os gregos trouxeram a arte funerária ligada ao ideal antropocêntrico de beleza, na qual se combinam o idealismo, as emoções humanas e a racionalidade, originando uma estatuária de grande expressividade. Por sua vez, o cristianismo revolucionou a arte funerária, apresentando uma nova ideologia, ao valorizar a vida além-túmulo, ao mesmo tempo em que a explicitação da adesão às novas crenças tornou-se uma necessidade social, o que resultou, já na época gótica, na ampliação da utilização

208

PIACESKI, T. R. & BELLOMO, H. R. As origens da arte funerária. In: Pesquisa cemiterial no Estado de Goiás. Porto Alegre: s.n., 2006, página 09-15 passim.

133

das figuras angelicais, a personificação das virtudes teologais, das figuras de Cristo e dos santos. O Renascimento recuperou as figuras nuas do paganismo grecoromano, misturando deuses gregos aos santos, a apologia da fé à apologia da beleza do corpo humano. Nesse contexto, a partir do racionalismo, do materialismo e das crenças no progresso e na ciência, buscou-se evidenciar o papel social desempenhado pelo morto. O barroco trouxe movimento e dramaticidade aos túmulos, mas fragmentou a alegoria pelo excesso de símbolos. No período romântico, ao lado dos santos e dos deuses, surgem os sentimentos personificados, na forma de alegorias emocionais. A partir daí, a morte passou a ser teatralizada: Virgens lacrimosas, mães desesperadas, alegorias dos vários estágios do sofrimento, aparecem isoladas ou em grupos, remetendo o espectador para uma vivência emocional, uma meditação sobre a morte ou para enfatizar o 209 papel do morto na sociedade.

É no romantismo que surge a necessidade de identificação dos sepultados através de inscrições, de modo a discriminar e individualizar os mortos, proposta esta complementada pela estatuária neoclássica, que valorizou os modelos gregos: Os grandes personagens são fortemente idealizados e as alegorias ressurgem em grande escala, tanto as alegorias dos princípios e verdades do cristianismo como as alegorias dos conceitos abstratos, indicativos dos valores da época, tais como justiça, verdade, glória, coragem, vitória, paz e 210 outros.

Assim, a escultura neoclássica conviveu no século XIX e meados do XX com as concepções românticas, construindo a tendência eclética, marcante na arte funerária brasileira, principalmente no que tange às alegorias, ou seja, aos sentimentos

personificados,

agora

representados

nos

moldes

clássicos,

caracterizados pelo apelo sentimental e emocional, bem como pelo sensualismo 209

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 13-14.

210

Ibid., p. 14-15.

134

discreto. Ainda, ao contrário do símbolo, que é o próprio conceito corporificado, a alegoria é a substituição da idéia, ou seja, possui a finalidade de expressar tanto o conceito, quanto a idéia personificada. Possuidoras de um caráter que ultrapassa o simples sentido das estátuas, as alegorias representam idéias abstratas, fazendo alusão à política, à religião, à moral e à sociedade. São figuras humanas, personificadas, acompanhadas de símbolos. Esses símbolos possuem significados, que aliados às estátuas, passam a ter um sentido que excede sua simples acepção. Em outras palavras, tem-se uma apresentação concreta de uma 211 representação mental.

No Brasil, as alegorias começaram a ser utilizadas pela burguesia em ascensão, que buscava sobressair-se perante a sociedade, demonstrando o aumento do poder político e econômico, especialmente após a proclamação da República, com a decadência da aristocracia: “Era o status. A família sentia a necessidade de exibir os bens que havia conquistado, mesmo não descendendo de um clã aristocrático, com terras ou sobrenome.”

212

Dessa forma, as famílias

buscavam expressar seus traços de civilidade através do investimento estilístico nos túmulos, nos moldes europeus, em especial franceses, o que reafirma a perspectiva do espaço do cemitério como signo do progresso. Todavia, é importante atentar para o fato de que as alegorias não estão presentes somente nos jazigos suntuosos, representadas por grandes estátuas, de expressivo valor artístico, mas também são encontradas em túmulos mais simples, através de pequenos adornos, relevos, inscrições, estatuetas, que possuem o mesmo valor de representação simbólico-semântica dos mais elaborados. 213

211

LEITE, D. T. M. Alegorias nos Cemitérios do Rio Grande do Sul. In: Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 143. 212

Ibid., p. 144.

213

STEYER, F. A. As Alegorias na Arte Cemiterial. Porto Alegre, 2007. No prelo.

135

A segunda tipologia proposta por Bellomo, para a análise da produção das esculturas funerárias, é a “Tipologia Alegórica” subdividida pelo autor em alegorias de princípios cristãos e alegorias de princípios sentimentais. As alegorias cristãs expressam sentimentos religiosos, valorizados pela tradição cristã, quais sejam as Virtudes Teologais (Fé, Caridade e Esperança), a Justiça (Virtude Cardeal), a Eternidade, a Oração, a Morte e o Juízo Final. As alegorias sentimentais definem-se pela manifestação dos sentimentos humanos, numa acepção mais emocional, dentre os quais a Tristeza, o Silêncio, a Consolação, o Sofrimento, a Desolação, a Saudade e a Lembrança. No Cemitério Municipal São José encontramos tanto alegorias de principios cristãos, quanto alegorias sentimentais. Vejamos:

Cartograma 16 – Alegoria Cristã

136

No conjunto dos atributos simbólicos do Cemitério Municipal São José, constatamos a presença de 36 alegorias cristãs (1,6% dos atributos religiosos), subdivididas em Virtudes Teologais, Oração e Morte. 214 As primeiras são os fundamentos das ações morais cristãs, implantadas na alma dos fiéis por Deus, para que possam agir como seus filhos e, assim, alcançar a vida eterna: Segundo o catolicismo, as virtudes teologais dizem respeito diretamente a Deus: crê-se em Deus, em Deus se espera e a Ele se ama. Amplamente difundidas entre os símbolos cristãos, estão presentes constantemente na arte funerária, como forma de lembrar e consolar os que ficam sobre a fé na 215 ressurreição após a morte.

As

Virtudes

Teologais

são

definidas

como

as

qualidades

permanentes da alma, que conferem inclinação para a prática cotidiana do bem.

Figura 12 – Alegorias Cristãs Virtudes Teologais: Fé, Caridade e Esperança (Túmulo 961, Quadra 12; Túmulo 7, Quadra 1 e Túmulo 8, Quadra 1) 214

Observa-se que algumas das figuras angelicais encontradas no Cemitério Municipal São José também podem ser identificadas como alegóricas. Todavia, convenientemente, para a presente análise dos sentimentos personificados, nos detemos às figuras humanas. 215

GRASSI, C. Um olhar... A arte no silêncio. Curitiba: C. Grassi, 2006, p. 26.

137

A Fé é a primeira destas virtudes, “sendo o elemento fundamental da vida espiritual, devendo ser apoiada pela caridade.”

216

É representada comumente

pela cruz, às vezes acompanhada da estrela, símbolo da esperança, configurandose assim, como a esperança enraizada na fé, base da tradição cristã. A imagem acima, presente no jazigo-monumento de Horacio Villela Guimarães, além de ser a personificação da Fé, é também a representação da saudade, considerando-se a guirlanda de flores que a figura feminina traz na mão esquerda. 217 A Esperança, por sua vez, é a segunda das virtudes teologais, representada em geral pela âncora, e às vezes pela estrela, sendo o último recurso ao qual recorrer. A âncora é associada, em geral, à idéia da firmeza e da segurança, por ser um instrumento de navegação, sendo que na simbologia cristã está relacionada à confiança e à esperança. Fundada na virtude da Fé, é a esperança na ressureição que, ao lado da Caridade, traduz os pressupostos da tradição cristã. A alegoria acima, presente no Jazigo-Monumento do Tenente Coronel Manoel Ferreira Ribas e de sua esposa, é a tradução da relação entre as virtudes da esperança e da fé, sendo a primeira representada pela âncora

218

, sustentáculo da fé, por sua vez

personificada pela composição da figura feminina, com o olhar voltado para os céus e a mão sobre o peito, indicativos de confiança e fé em Deus. A Caridade é a terceira das virtudes, representada por uma figura feminina com uma criança no colo, que traduz o sentimento de amor maternal, de carinho, “pelo próximo, pelo inimigo ou por boas ações.”

219

De acordo com Grassi,

esta virtude traduz o mandamento de Cristo: “Amar a Deus sobre todas as coisas e 216

LEITE, Alegorias nos Cemitérios..., op. cit., p. 145.

217

A saudade é uma representação alegórica emocional, que será analisada oportunamente.

218

No levantamento catalográfico realizado no Cemitério Municipal São José, além de duas representações personificadas, encontramos outras três representações da fé sob a forma simbólica da âncora, cujo significado semântico é o mesmo das alegorias.

219

LEITE, Alegorias nos Cemitérios..., op. cit., p. 146.

138

ao próximo como a ti mesmo.” No caso da representação acima (Mausoléu do Barão de Guaraúna), a Caridade é personificada pela mulher que traz no colo uma criança, amparada ternamente, simbolizando o amor dedicado, além de segurar em sua mão esquerda uma bolsa e uma moeda, sinal este de desapego. Além destas, encontramos no Cemitério Municipal São José exemplares alegóricos cristãos de Oração e de Morte. Nesse sentido, indicamos o Jazigo-Monumento da Família Valthier Borges de Macedo, no qual ambos os princípios referidos são representados, nos moldes neoclássicos, pelo escultor E. G. Succ de J. Obino, de Porto Alegre. 220 A alegoria da Oração é representada por crianças ou anjos com as mãos unidas, como se fizessem uma prece para a alma sepultada, para que descanse em paz. Indicam a confiança na ressurreição dos mortos porque, ao contrário, seria desnecessário orar, bem como remetem à importância dedicada pela família à oração e aos ensinamentos religiosos, denotando profunda crença cristã. 221 A alegoria da morte, última alegoria dentre as cristãs encontradas no Cemitério Municipal São José, é representada por uma figura humana com um archote virado para baixo, mas também pode ser encontrado como um anjinho deitado sobre o túmulo ou como um anjo adormecido acompanhado de uma lira.

222

Bellomo esclarece que a personificação da morte, representada por uma estátua de

220

Segundo Kasprzak, as famílias mais abastadas, como forma de demonstração do status social, encomendavam imagens escultórias a artistas e marmoristas de Curitiba, São Paulo, Porto Alegre e até mesmo de outros países. Uma das marmorarias mais representativas no cemitério São José é a Marmoraria Vardânega, de Curitiba, Paraná, fundada em 1879, pelo italiano Bortolo Vardânega. As esculturas eram feitas de forma artesanal, principalmente em mármore de Carrara (KASPRZAK, Turismo em Cemitérios..., op. cit., p. 63). 221

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 76.

222

LEITE, Alegorias nos Cemitérios..., op. cit., p. 149.

139

um jovem segurando um archote virado para baixo

223

, símbolo da vida que se

extingue, é uma contribuição do espírito greco-romano para a estatuária funerária, surgida devido à ausência de uma divindade específica da morte. A partir do período neoclássico, tal personificação passou a ser representada por jovens de ambos os sexos, fugindo-se da tradição grega inicial, onde o jovem do sexo masculino era o irmão gêmeo do sono. 224

Figura 13 – Alegorias Cristãs Alegoria da Morte e Alegoria da Oração Jazigo-Monumento da Família Valthier Borges de Macedo (Quadra 1, Túmulo 6)

223

Foram encontrados representações da morte não somente sob a forma alegórica, mas também por intermédio da forma simbólica do archote invertido, este portador do mesmo significado semântico das representações personificadas. 224

PIACESKI; BELLOMO, op. cit., p. 15.

140

Observamos que as representações da morte no espaço cemiterial não se restringem ao formato alegórico de destaque neoclássico. A morte, de múltiplas dimensões, é tradicionalmente figurada numa perspectiva angustiante, apocaliptica, próxima ao escatológico.

225

Este é o caso da representação

personificada da morte do relevo seguinte, que faz parte da ornamentação do Jazigo-Monumento da Família João Cecy que, masculina e esquelética, longe dos moldes neoclássicos, atende a uma percepção tétrica e misteriosa da finitude, não menos significativa, além de denotar aceitação da morte, pela posição resignada da figura feminina, entregue aos braços da morte.

Figura 14 – Detalhe – Morte Tétrica Jazigo-Monumento da Família João Cecy (Quadra 16, Túmulo 1318)

Reportando-nos ao conjunto das alegorias sentimentais presentes no Cemitério Municipal são José (cartograma 17), que tem a finalidade de expressar as emoções humanas, observamos que, sob a forma estatuária, as mesmas estão presentes somente em 12 túmulos do referido cemitério, subdivididas em Saudade,

225

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Morte. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 621-623 passim.

141

Desolação e Memória, perfazendo um total de 0,5% do total dos símbolos sentimentais.

Cartograma 17 – Alegoria Sentimental

A alegoria da saudade traz flores e quase sempre está debruçada sobre o túmulo. Como já referido, a utilização das flores no espaço dos mortos é comum, rapresentando de forma paradoxal a imortalidade e a fragilidade existencial. Em especial, as guirlandas quando trazidas em mãos femininas possuem a significação da saudade pelos que se foram

226

, como é o caso do Jazigo-

Monumento da Família Attilio Tararan, onde a personificação da saudade é melancolicamente representada. Outra representação significativa da saudade encontrada no Cemitério Municipal São José é a presente no Jazigo-Monumento da Família Oliveira Branc, no qual a figura feminina, ajoelhada sobre o túmulo, escreve singelamente a palavra “Saudades”, de forma a homenagear o ente querido.

226

DALMÁZ, op. cit., 127.

142

Figura 15 – Alegorias Sentimentais - Saudade (Lateral Balduíno Taques, Túmulo 1462; Quadra 15, Túmulo 1935)

Ao tratar da onipresença das representações femininas no espaço dos mortos, Vovelle observa que: (...) na grande maioria dos casos, atribui-se à mulher a função de expressar o luto, quer ela tome o rosto entre as mãos, pensativa ou transtornada (...), quer exprima ainda mais pateticamente a dor através de sua própria atitude (...). Em todos os lugares, dir-se-ia que é ela quem espalha as flores da 227 lembrança e do consolo sobre o túmulo...

Nessa

perspectiva, a

alegoria da desolação,

segunda das

personificações encontradas, é uma figura feminina tradicionalmente representada com a cabeça e os braços debruçados sobre o túmulo, com expressão profunda de tristeza e consternação. Interessante observar que a presença de estátuas com feições humanas minuciosas indica a negação da morte. 228 Destacamos a figura que ornamenta a sepultura de Reynaldo Vosgerau que, desconsolada sobre o túmulo e de forma sensorial, demonstra o limite da saudade, bem como o desejo de juntar-se ao ente querido.

229

Por sua vez,

a demonstração de Desolação da segunda escultura, da Família Leopoldo Roedel, é 227

VOVELLE, op. cit., p. 333.

228

LEITE, Alegorias nos Cemitérios..., op. cit., p. 151.

229

GRASSI, op. cit., p. 24-25.

143

complementada pela inscrição presente no mesmo: “A tua morte vácuo e dor deixou.” Todo o conjunto estílistico do túmulo tende para a negação da morte, intensificada pela expressão trazida pela personificação, também no limite sentimental.

Figura 16 – Alegorias Sentimentais - Desolação (Quadra 1, Túmulo 1683; Quadra 3, Túmulo 1621)

Os cemitérios são locais nos quais a memória é o objeto central, no sentido de que cada túmulo possui significados que representam a expressão de sentimentos tanto individuais, quanto coletivos. Com efeito, o espaço dos mortos se define como forma de preservação da memória particular e coletiva dos indivíduos de uma determinada região: os túmulos erigidos são propriamente uma forma de preservação da memória. 230

230

KASPRZAK, Um “lugar de memória” e de arte..., op. cit., p. 21.

144

A última das alegorias sentimentais encontradas no Cemitério Municipal São José é a personificação da Memória. No Jazigo-Monumento da Família Arthur Gomes, a Memória é personificada em uma figura feminina, entretida com o ato da leitura. A simbologia do livro é complexa, sendo banal nos reduzirmos a percepção do mesmo como símbolo da ciência e da sabedoria.

Figura 17 – Alegorias Sentimentais – Memória Jazigo-Monumento da Família Arthur Gomes (Quadra 15, Túmulo 1921)

De acordo com o Dicionário de Símbolos: O livro é sobretudo, se passarmos a um grau mais elevado, o símbolo do universo: O universo é um imenso livro, escreve Mohyddin ibn-Arabi. A expressão Liber Mundi pertence também aos Rosa-Cruz. Mas o Livro da Vida do Apocalipse está no centro do Paraíso, onde se identifica com a árvore da Vida: as folhas da árvore, como os caracteres do livro, representam a totalidade dos seres, mas também a totalidade dos decretos 231 divinos [com grifo no original]. 231

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Livro. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 554-555.

145

Assim, ao ser o livro compreendido como simbólico da totalidade dos decretos divinos, a análise do conjunto escultório como Memória é reafirmada, pois a inscrição “Deus, seja feita a Vossa Vontade”, presente no livro, é indicativa da resignação perante a vontade divina, aos decretos divinos e, assim, perante à própria morte, restando aos vivos somente o culto da memória do ente querido, que ainda pode ser preservada através das representações sociais então veiculadas. Observamos que a interpretação das alegorias é amplamente subjetiva, principalmente pela complexidade do conteúdo simbólico. O sentido das representações personificadas transcende o simples significado de seus elementos. Steyer esclarece que nos dias atuais, “com o enfraquecimento dos valores cristãos e a crescente individualização e relativização das manifestações religiosas e espirituais”

232

, as alegorias têm seus significados simbólico-semânticos esvaziados

de sentido. O significado original se encontra cada vez mais distante do imaginário social, especialmente com relação às alegorias cristãs, e mais próximo do sentido comercial, cada vez mais presente nos catálogos das funerárias e marmorarias. Ao entendermos que as representações sociais expressam o conteúdo da memória, conforme já referido, percebemos que as personificações dos sentimentos, tanto de princípios cristãos quanto emocionais, nada mais são do que as próprias representações sociais, no formato alegórico, às quais é inerente a finalidade de perpetuar a recordação dos entes queridos, no domínio em que a memória é particularmente valorizada. De fato, a individualização das sepulturas e as inscrições mortuárias demonstram o desejo de preservar a identidade e a memória do morto e servem para a expressão e/ou transmissão dos valores culturais, através do conjunto das representações sociais contidas nestes locais. 232

STEYER, F. A. As Alegorias na…, op. cit.

146

3.4. Celebração da Memória e da Identidade

“Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada.” Fernando Pessoa

Diante do momento da morte, os sobreviventes são encarregados de recompor o sentido da vida. A individualização das sepulturas e todos os valores expressos nestas, por meio das representações sociais, demonstram o desejo de preservar a identidade e a memória do ente querido, servem à expressão e/ou transmissão dos valores culturais e, por fim, à própria reconstituição do sentido existencial para os que ficam. Os mortos parecem não existir somente na memória dos vivos, mas também de forma independente destes. O medo de morrer relaciona-se ao medo da perda e da destruição daquilo que é significativo aos próprios moribundos. Para Elias, apenas as gerações posteriores podem avaliar, de forma efetiva, se o que parece significativo para as gerações anteriores possuirá significado para as outras pessoas, para além das suas vidas. Mesmo as lápides, em sua simplicidade, dirigem-se a esse tribunal – talvez um passante venha a ler na pedra, julgada imperecível, que ali estão enterrados tais pais, tais avós, tais filhos. O que está escrito na pedra é uma mensagem muda dos mortos para quem quer que esteja vivo – um símbolo de um sentimento talvez ainda não articulado de que a única maneira pela qual uma pessoa morta vive é na memória dos vivos. Quando a cadeia de recordação é rompida, quando a continuidade de uma sociedade particular ou da própria sociedade humana termina, então o sentido de tudo que seu povo fez durante milênios e de tudo o que era significativo para ele também 233 se extingue.

Portanto, a continuidade dos mortos é estabelecida por intermédio da memória dos vivos. Na pedra, são expressos os valores dos mortos, o que era significativo para estes e, por conseguinte, para a sociedade na qual estão inseridos;

233

ELIAS, op. cit. p. 41.

147

valores estes julgados importantes para a reconstituição do sentido existencial, no momento da morte. Segundo DaMatta, no Brasil, fala-se muito mais dos mortos que da morte, fato contraditório que revela uma forma sutil de negação da finitude, sendo o prolongamento da memória do morto e a concessão de um novo tipo de realidade ao que foi vivo. O autor destaca, amparado em Gilberto Freyre, que a proximidade moral entre os vivos e os mortos reafirma o sujeito social enquanto relação social, cujos selos sobrevivem à destruição do tempo e da morte. 234 Na nossa sociedade, os espíritos retornam para assegurar a continuidade da vida mesmo depois da morte (...) Aqui os espectros estão também presos a promessas, bens materiais e emoções que só podem ser liberadas depois de serem devidamente descobertas e receberem as orações apropriadas. Pela mesma lógica, visitamos, falamos, presenteamos, homenageamos e sentimos saudades dos nossos mortos. Temos obrigações para com eles, devendo cuidar de seus túmulos e ossos, provendo para que não se percam ou se destruam e, naturalmente, fiquem 235 sempre unidos e em família.

Com efeito, a individualização de cada túmulo é indicativa do desejo de perpetuação existencial: busca-se expressar as particularidades dos mortos nas lápides, para preservar a memória e a individualidade dos mesmos. Além disso, as expressões e as transmissões culturais, através dos valores e das representações sociais, servem ao estabelecimento e à reafirmação das relações sociais. Estas reflexões são inerentes ao espaço cemiterial, ambiente da saudade e da memória: (...) quando cultuamos os mortos combinamos os elementos fragmentados e isolados de nossa memória e fornecemos a eles uma unidade de certa forma racional, o que só é possível devido à presença de símbolos no cemitério. As fotos, os epitáfios, os objetos colocados nos túmulos são como as câmeras, artefatos de iluminação, figurino e som no cinema. (...) aqueles são os instrumentos que usamos para unir os fragmentos da memória e dar um sentido a nosso culto mortuário, negando a morte como fim último da existência, valorizando as qualidades pessoais do morto em 236 vida e exigindo a manutenção de sua individualidade.

234

DAMATTA, op. cit., p. 140-144.

235

Ibid., p. 146.

236

STEYER, Representações e manifestações..., op. cit., p. 104.

148

Isto posto, buscamos perceber estes jogos de memória no espaço do Cemitério Municipal São José, através dos atributos simbólicos encontrados. Segundo Steyer, para o culto dos mortos, são combinados elementos fragmentados da memória, aos quais é conferida certa racionalidade, por intermédio do conjunto simbólico, entendido aqui como representação social. Nesse sentido:

Cartograma 18 – Símbolos – Placa Casal

Pulverizadas na distribuição espacial, as placas de casal perfazem um total de 14,5% do total dos túmulos, os seja, estão presentes em 331 sepulturas. Veiculadas em uma quantidade significativa de túmulos, estas placas expressam o anseio de prolongar os laços do matrimônio para além da morte física. Um instrumento utilizado para atenuar os sentimentos de dor e perda proporcionados pela finitude, símbolo da negação da morte terrena, no sentido que não se cultua o desconhecido e sim os laços dos entes querido, da forma em que se preservaram na

149

memória dos familiares. Por outro lado, configura-se como a aceitação da finitude como transcendência, ou seja, a crença de que a mesma não é o aniquilamento da existência.

Figura 18 – Detalhe – Placa Casal Jazigo da Família Foggiatto (Quadra 9, Túmulo 700)

Ainda, a utilização da fotografia, presente na maioria destas placas de casal, é um ponto de convergência de múltiplos discursos. Nos cemitérios, o registro fotográfico tem por função a preservação do ente querido para a posteridade, fazendo parte de um conjunto simbólico, de cunho privado e familiar. Para Koury, momentos felizes e tristes são “registrados na tentativa de conservar e relembrar os laços de intimidade e os laços sociais da família para si e para a sociedade em geral.”

237

Ou seja, a exposição das fotografias nos túmulos

demonstra a tentativa de conservar os laços familiares, no caso os matrimoniais, bem como expor tais laços à sociedade, neste espaço de pretensa eternidade. Mais que o desejo individual, o que impulsiona tal prática cultural são as próprias relações sociais.

237

KOURY, M. G. P. Retratos da Morte: A fotografia mortuária na cidade de João Pessoa, PB. Revista Conceitos. João Pessoa, vol. 4, n°2, 2001, p. 137.

150

No

decorrer

do

século

passado,

o

uso

da

fotografia

foi

democratizado, com a baixa nos custos, estendendo-se a todos os segmentos sociais. Dessa forma, passou a fazer parte do cotidiano do cidadão comum, na vida pública (registros documentais) e na vida privada, onde “vai se assentar como uma espécie de fixação de laços de parentesco ou mesmo de um tipo de eternização sentimental e afetiva da rede familiar.”

238

Cada vez mais a fotografia parece

assegurar, conforme destaca Koury, a noção de passado, bem como a de momentos significantes a serem guardados no registro de uma vida singular. Ao ser levada para o cemitério, a proposta do registro fotográfico é reafirmada, considerando que o espaço dos mortos é permeado pela busca por preservar os entes queridos; a imagem da fotografia, nesse contexto, busca assegurar os laços de parentesco e os sentimentos familiares, ou seja, os valores significativos para os vivos. Sobre o uso da imagem: (...) envolve uma negociação entre autor e espectador, no sentido de construção/desconstrução. A imagem visual não é uma simples representação da realidade, mas um sistema simbólico. Ao contrário do que se pensa habitualmente, a imagem não significa restituição, mas sim reconstrução, ou seja, é sempre uma alteração voluntária da realidade que 239 é preciso aprender a sentir e a ver.

Nesta perspectiva, para a fixação dos laços de parentesco, bem como para a perpetuação do lugar social da família, 31,5% das sepulturas do Cemitério Municipal São José ostentam “nomes de família”, como tentativas de não apagar o que a família representou em vida, caracterizando-se como negação da morte e da perda da individualidade destas relações sociais afetivas.

238

Id.

239

MENEGHEL, ABBEG, BASTOS, op. cit., p. 686.

151

Cartograma 19 – Símbolos – Nome de Família

Faz-se pertinente observar que a expressiva maioria destas denominações

de

família

presentes

no

Cemitério

demonstrando-se as desigualdades de gênero

Municipal

São

José,

240

, segue a ótica patriarcal, ao

mencionar apenas o sobrenome do marido, subtraindo a identidade feminina. 241

240

A partir da década de 70, o conceito de “gênero” passou a ser utilizado para teorizar a questão da diferença sexual, tornando-se um instrumento para indicar as “construções sociais”, ou seja, indicando que as idéias acerca dos papéis sociais dos homens e das mulheres são construídas socialmente. Esta perspectiva também aponta para a importância de considerar o aspecto relacional entre os sexos, viés que significa que a compreensão de qualquer um dos dois não é possível se os considerar em separado. Além disso, faz-se imprescindível perceber nos estudos de gênero as múltiplas identidades, ou seja, perceber a importância da historicização dos objetos em questão, situando-os no tempo e no espaço. Diante disso, o ambiente cemiterial, com destaque para as relações familiares presentes neste, possibilitam a percepção da maneira como são construídos os papéis sociais de homens e mulheres, considerando-se as construções sociais, o aspecto relacional e as múltiplas identidades. (SOIHET, R. História das Mulheres. In: Domínios da História: ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 279). 241

Esta questão encontra-se além dos limites deste trabalho, razão pela qual nos detemos à menção de tais desigualdades, sem termos a pretensão de analisar a construção das mesmas.

152

Cartograma 20 – Símbolos – Inscrições

Ainda com relação à manutenção dos laços familiares e do lugar social dos indivíduos, constatamos a presença de inscrições em línguas estrangeiras no Cemitério Municipal São José (cartograma retro), principalmente em alemão, indicativas de um forte apego à preservação da identidade cultural, pelo fato de serem na língua de origem e ressaltarem o local de nascimento do morto:

Figura 19 – Naturalidade “Anna Reich, geb Proksch” “Anna Reich, nascida Proksch” Jazigo da Família Reich (Quadra 10, Túmulo 755)

153

Observa-se que a colonização de Ponta Grossa teve início em 1878, com a chegada de aproximadamente 2400 russos-alemães, provenientes da região do Volga, sendo que estes tiveram papel fundamental na formação social da cidade, cuja diversidade, especialmente cultural, faz-se presente no espaço do Cemitério. Inclusive, a chegada dos “estrangeiros do Velho Mundo” contribuiu muito para o crescimento populacional e comercial princesino. 242 Observamos que as inscrições em línguas estrangeiras estão presentes em 1,4% dos túmulos analisados, ou seja, 33 dos mesmos. Destes, 26 são inscrições alemãs. Esse processo está relacionado ao modo de dominação simbólica, produzido pela coletividade e que funciona como um instrumento de preservação da memória cultural, sendo que o germanismo propagava a idéia de preservar aspectos culturais trazidos da Alemanha pelos imigrantes. Araújo ressalta que estes procuraram manter preservados o uso da língua alemã e de seus costumes, através da intensidade da vida social, expressa pelas muitas associações que assumiram forte caráter étnico (como as sociedades de tiro e ginástica).

Figura 20 – Inscrição Alemã - Jazigo-Monumento da Família J. David. Hilgenberg (Quadra 12, Túmulo 1039) 242

KNEBEL, R. L. Belle époque ponta-grossense: imigração, ferrovia, sétima arte e música. In: Espaço e Cultura: Ponta Grossa e os Campos Gerais. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2001, p. 311312.

154

Nesse contexto, expresso nesta inscrição presente no JazigoMonumento da Família J. David. Hilgenberg, os imigrantes alemães também procuraram manter essa identidade no cemitério, através dos epitáfios escritos na língua materna, muitas vezes em letra gótica e ressaltando o local de nascimento na Alemanha. De acordo com Knebel, o núcleo social dos imigrantes russos-alemães que vieram para a região dos campos gerais, era de fato bastante conservador, com reminiscências paternalistas e marcadamente isolacionista. Nacionalidade e cidadania, para alemães, estavam desvinculadas. À cidadania atribuía-se simplesmente um comprometimento com o Estado. Agora à nacionalidade estavam ligados conceitos como raça, etnia, cultura, historia, tradição e, principalmente, o idioma. Explica-se, assim, a relutância destes imigrantes em abandonar a língua alemã. (...) mesmo que aqui tivesse nascido, seria sempre de nacionalidade alemã por possuir 243 deutsches Blut (sangue alemão).

O epitáfio é uma forma de definir a identidade teuto-brasileira, fazendo uma reconstrução romântica e saudosista do passado, muitas vezes desconsiderando os verdadeiros motivos que levaram os imigrantes a abandonar sua pátria mãe para buscar uma nova vida em uma terra totalmente desconhecida. Esse tipo de saudosismo faz com que a sua identidade seja reconstruída em cima de ideais pessoalmente forjados. 244 Além das inscrições alemãs, também encontramos túmulos com inscrições em árabe, cujo sentido entendemos relacionado ao fato de que as sociedades possuem diferentes maneiras de expressarem o sentimento acerca da morte, dentre as quais a de conservar a memória do morto, mantendo viva a sua identidade e, por conseqüência, preservar a identidade cultural da própria sociedade, num determinado período de tempo, na qual o morto esteve inserido.

243

KNEBEL, op. cit., p. 313.

244

ARAÚJO, op. cit., p. 102-109 passim.

155

Figura 21 – Inscrição Árabe Jazigo-Monumento da Família Fiany (Quadra 11, Túmulo 902)

Por fim, o Jazigo-Monumento da Família Wagner e o Jazigo de Pedro Schnirmann, ostentam lápides escritas em hebraico, demonstrando-se, assim como as lápides alemãs, forte apego à preservação da identidade cultural, ao ressaltarem o local de nascimento do morto:

Figura 22 – Inscrições em Hebraico (Quadra 5, Túmulo 435; Quadra 7, Túmulo 534)

Ambas as sepulturas trazem a estrela de seis pontas, conhecida como Estrela de Davi, símbolo da religião Judaica: (...) a estrela de seis pontas, emblema do judaísmo, com seus dois triângulos invertidos e enlaçados (...), simbolizaria o amplexo do espírito e

156

da matéria, dos princípios ativo e passivo, o ritmo de seu dinamismo, a lei 245 da evolução e da involução.

Assim, é a síntese dos opostos, a expressão da unidade cósmica, bem como de sua complexidade. Na tradição judaica, as estrelas obedecem a vontade divina e, eventualmente, a anuncia. Ou seja, a estrela é mais que um objeto inanimado: sobre cada estrela há um anjo velando. Portanto, a presença das estrelas nas sepulturas referidas, além de implicar na identificação cultural judaica das famílias, também está relacionada à aceitação da morte, considerando-se sua simbologia relacionada à submissão à vontade divina. A simbologia de “síntese dos opostos” é complementada no JazigoMonumento da Família Wagner pela presença da coluna que, para a tradição judaico-cristã, é apreendida num sentido cósmico e espiritual. “Árvore da vida, árvore cósmica, árvore dos mundos, a coluna liga o alto e o baixo, o humano e o divino.” 246

Figura 23 – Coluna – Jazigo-Monumento da Família Wagner (Quadra 7, Túmulo 534)

245

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Estrela. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 404. 246

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Coluna. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 266.

157

A saudade e os laços familiares, bem como pátrios, expressos nos túmulos, no desejo de conservar a memória dos mortos, relaciona estes aos vivos, criando uma relação permanente, detentora de um padrão de moralidade social determinante, que incentiva a visitação aos túmulos, ou seja, o culto aos mortos, e os coloca em lugar de destaque na família e na sociedade. Sendo assim: “No Brasil, os mortos logo são transformados em pessoas exemplares e modelos a serem seguidos pelas novas gerações.” 247 Outras manifestações culturais, não hegemônicas, merecem ser mencionadas. A “Tipologia Cívico-Celebrativa”, terceira categoria proposta por Bellomo para a análise da produção das esculturas funerárias, tange à celebração cívica da memória de indivíduos destacados do mundo político, econômico, social e cultural.

248

Isto posto, também sob o signo da identidade cultural e da preservação

dos valores significativos dentro do meio social a que pertencem, do conjunto dos túmulos presentes no Cemitério Municipal São José, destacamos dois túmulos vinculados à Maçonaria. Esta instituição se fundamenta numa base cultural e filosófica, expressa através da sua simbologia, rica em posições ideológicas, cujas reais origens se perdem na antiguidade, bem como fundamentada em ideais de fraternidade e caridade, tendo em vista o desenvolvimento social e intelectual humano.

247

249

Com efeito, esta proposta é afirmada no Jazigo da Família Ajuz,

PIACESKI, BELLOMO, op. cit., p. 25.

248

Apropriamo-nos da referida tipologia não somente para a análise do conjunto escultório presente nos túmulos, mas também como referência para os demais atrbutos dos mesmos, como os epitáfios, que comumente servem de forma direta à identificação das sepulturas. 249

DULLIUS, F.; WAGNER, G. P. A Maçonaria na Arte Funerária do Rio Grande do Sul. In: Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 221.

158

conforme epitáfio subseqüente, através da referência aos sentimentos de fraternidade, fundamentais ao universo cultural maçônico.

Figura 24 – Maçonaria (Quadra 9, Túmulo 661; Quadra 17, Túmulo 1406B)

Observa-se que a Maçonaria crê no Grande Arquiteto do Universo e na imortalidade da alma. “Logo a questão da morte e ressurreição, é a base da iniciação maçônica que pretende transformar o individuo e melhorar as suas qualidades morais. A Franco-Maçonaria utiliza-se de símbolos e de valores sagrados para em 250 seus ritos expressar a sua visão de morte.”

Os símbolos possuem grande valor entre os maçônicos, sendo representativos das funções exercidas pelos integrantes, por serem constituintes dos atos cerimoniais e também pela identificação mútua entre os membros. Esta função de identificação é exercida por ambas as sepulturas, sendo no primeiro caso através do título “Mausoléu Maçônico e, no segundo, pela representação do compasso.

250

Ibid., p. 233.

159

Os símbolos fundamentais da Maçonaria, tomados de empréstimo da arte da construção, servem de suporte à realização psíquica e espiritual.

251

Nesse viés, o compasso tem a função de traçar um círculo com perfeição. “O círculo, por não possuir começo nem fim, representa a eternidade, além de ser adotado como símbolo solar.” 252 Imagem do pensamento a percorrer os círculos do mundo e traçando as imagens do movimento, além de ser móvel ele mesmo, o compasso tornou-se o símbolo do dinamismo construtor, atributo das atividades criadoras. 253 A identificação simbólica é um recurso utilizado não somente pelos maçônicos, mas também entre os positivistas. No levantamento realizado no Cemitério Municipal São José, constatamos a existência de dois túmulos que expressam a ideologia política do positivismo através do epitáfio contido em ambas as sepulturas: “Os vivos são governados pelos mortos.” Em homenagem aos militares Cel. Cláudio Gonçalves Guimarães e Major Joaquim Gonçalves Guimarães, respectivamente, a máxima positivista, encontrada em ambas as sepulturas, relaciona-se a questão da imortalidade, percebida como a conservação da memória do líder morto, símbolo e modelo para as gerações futuras, isso porque a arte tinha como objetivo aprimorar o caráter dos indivíduos, por meio da educação moral, da exaltação da coragem, da prudência e da firmeza. Assim, o positivismo pensava atingir a moralização das instituições e fornecer às gerações futuras elementos morais, através de figuras exemplares. 254

251

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Franco-Maçonaria. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 449-451 passim.

252

DULLIUS, WAGNER, op. cit., p. 241.

253

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Compasso. In: Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 268-269 passim. 254

ARAÚJO, op. cit., p. 67.

160

Figura 25 – Positivismo (Quadra 2, Túmulos 53 e 63)

Araújo esclarece que, no caso de Porto Alegre, os monumentos fúnebres aparecem com maior freqüência a partir do século XX, incentivados pelo desenvolvimento da economia gaúcha, mas também pelo incentivo dado às artes pelo governo positivista, cujas doutrinas haviam chegado ao Rio Grande do Sul através da influência dos militares que cursavam a Escola Militar do Rio de Janeiro, no final do século XIX. 255 A doutrina positivista surgiu no século XIX, criada e divulgada por Auguste Comte e caracterizada como uma filosofia burguesa liberal, ao mesmo tempo conservadora e progressista. Dentro das premissas da doutrina, a humanidade está em permanente evolução em direção ao progresso, porém 255

Ibid., p. 66-67.

161

dentro de uma ordem preestabelecida, cujas infrações são percebidas como 256 negativas. Por isso, o positivismo é anti-revolucionário.

Além disso, dentre os positivistas havia uma opção pela ditadura republicana, percebida como única forma de governo capaz de atingir os objetivos propostos. O indivíduo só existiria no coletivo, num contexto nacionalista. A moralidade das instituições, dessa forma, só seria alcançada através dos elementos exemplares, cuja identidade existia em função do coletivo. Portanto, entendemos que os cemitérios preservam as identidades individuais e coletivas, através da memória, no momento em que visualizamos as diferenciações sociais. Mendes percebe a identidade como ponto de ligação entre os nossos discursos e práticas e os processos que produzem a subjetividade e nos constroem enquanto sujeitos, objetivando apresentar uma concepção identitária múltipla, diversificada e narrativamente construída. O autor valoriza o invisível, o não-dito e o papel do outro, observando que as identidades são socialmente distribuídas, em constante manutenção, contextualização e interação social. Construídas no e pelo discurso, são originadas na necessidade de controle do espaço social e físico e definidas como negociações de sentido. 257 Observamos que o espaço social e físico a que nos referimos é o próprio espaço do Cemitério Municipal São José, no qual estão presentes as representações edificadas, cujo sentido está além do concreto.

256

Ibidem., p. 67.

257

MENDES, op. cit.

162

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer.” Fernando Pessoa

A expressão simbólica da morte assume múltiplos sentidos, aplicados aos rituais funerários, aos cultos religiosos e às manifestações artísticas, em diferentes culturas, construindo-se, dessa forma, respostas à pergunta acerca do sentido da vida e à problemática da morte, ou seja, o perfil simbólico da morte em cada sociedade é resultante da maneira como o fato bruto da finitude foi assimilado, preenchido de significação cultural e inscrito no sistema dos valores que asseguram o funcionamento e a reprodução de uma determinada ordem social e, assim, da própria identidade coletiva. Nesse sentido, os cemitérios passaram a ser reflexivos do universo cultural de cada época e sociedade, constituídos como construção da realidade, através dos quais a coletividade designa sua identidade. Essa premissa encontra-se amplamente demonstrada no Cemitério Municipal São José, conforme a análise dos atributos levantados fotográfica e quantitativamente, onde, por meio das sepulturas, registra-se a percepção do ser humano frente à finitude, ainda que de forma fragmentada e justaposta. Portanto, reflexo e condição da sociedade, o Cemitério Municipal São José é inerente ao contexto mais amplo e segmentado da cidade de Ponta Grossa, conforme ressaltado através da análise das providências legislativas, da bibliografia regional e também do conteúdo publicado pelos periódicos locais (Diário dos Campos e Jornal da Manhã), que trazem indicativos de normatização e disciplinarização do convívio social, bem como leituras de civilidade e progresso.

163

Com a recuperação destes discursos produzidos pela Imprensa, pela Igreja e pelo Poder Público, relacionados à fundação e ao desenvolvimento e localização do Cemitério na cidade, percebemos a presença das múltiplas vozes ao se tratar da temática cemiterial: destacam-se as tensões urbanas vivenciadas de forma fragmentada e diversificada, relacionadas ao espaço e aos jogos de memórias e experiências e expressa a complexidade social e os embates travados pelos diversos grupos sociais, tanto concretamente quanto no plano simbólico, para a construção e legitimação de uma determinada perspectiva de cidade. Nesse viés, constatou-se que o poder público promove e reforça a hierarquização no espaço do Cemitério Municipal São José, ao regulamentar as distinções territoriais através das taxas, emolumentos e do processo de constituição da monumentalidade, através dos investimentos na construção do portal de entrada e das alamedas que conduzem ao mesmo. Tais medidas reforçam a percepção de que a necrópole não foi estabelecida somente como o espaço para os mortos na cidade, mas também como representação simbólica de progresso e de higienização, inscrita em um discurso social, político e urbanístico mais amplo. A construção da monumentalidade é obtida por meio da articulação entre os investimentos públicos e privados, não restritos ao entorno da necrópole, mas também presentes na distribuição espacial da mesma, sendo que sua organização é semelhante à estrutura social da cidade que a abriga, também fragmentada pelos diferentes usos, articulados constantemente. Na análise da distribuição dos atributos área, formato, material e estado de conservação das sepulturas, ficaram evidenciadas variações de padrão nas construções, indicativas da configuração do Cemitério Municipal São José, ou seja, uma necrópole urbana e central, destacada com relação às demais, seja pela localização, seja pelos

164

elementos estilísticos, muitos nos moldes europeus, e, especialmente, constituída e/ou justificada sob a lógica da pretensa civilidade. Com efeito, concluímos que o espaço do Cemitério Municipal São José é um ordenador espacial e social. Espacial, considerando-se que foi estabelecido num primeiro momento como limite do perímetro urbano e, após, absorvido pela expansão da cidade, o que influenciou diretamente na configuração do mesmo como ordenador social, tendo em vista que a partir da construção dos demais cemitérios na cidade, o público que teria acesso àquele passou a ser selecionado, até mesmo pelas providências legislativas. A subjetividade dos vivos e suas relações com a sociedade são materializadas no espaço urbano e cristalizadas no espaço cemiterial. Assim, para além dos muros e do concreto do Cemitério Municipal São José, voltamos nosso olhar para o simbólico, que objetiva a transmissão de valores culturais, para o estabelecimento e reafirmação das relações sociais. Ao compreendermos o espaço funerário e as representações semântico-simbólicas constantes no mesmo, como respostas edificadas para o problema da morte, encontramos neste a percepção destas representações, individuais e coletivas, privadas e públicas, vinculadas à religiosidade, à familiaridade, aos valores sociais, especialmente destacadas nas tipologias cristã, alegórica e cívico-celebrativa, analisadas no decorrer do trabalho. Quanto à análise das opções religiosas da sociedade pontagrossense, ainda que um cemitério secular, evidenciou-se que a maioria das construções são vinculadas aos referenciais do cristianismo, principalmente pela forte presença das cruzes no referido campo-santo, ao lado das representações de Jesus, Maria, dos santos e dos anjos, estes últimos muito relacionados aos sentimentos personificados. Isso não significa que outras opções religiosas não se

165

façam presentes, fato que buscamos demonstrar através da representação dos referenciais judaicos, presentes em dois túmulos encontrados na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José. Demais manifestações não puderam ser certificadas, frente aos limites deste trabalho. As alegorias, também a serviço dos ideais de civilidade e de monumentalização e demarcação espacial, foram analisadas, levando-nos a concluir que seu sentido está diretamente relacionado à expressão dos sentimentos, cristãos e emocionais, ou seja, podem ser interpretadas como representações sociais, no formato alegórico, às quais é inerente a finalidade de preservar a memória dos mortos através da individualização das sepulturas. Constatamos que o Cemitério Municipal São José, seguindo a função desempenhada pelos “campos santos” presentes na sociedade ocidental e brasileira, de uma maneira geral; é um espaço de múltipla representação simbólica, com o potencial informativo acerca das identidades do meio social ponta-grossense no qual está inserido, para a preservação da memória dos mortos, bem como dos contextos nos quais estavam inseridos enquanto vivos, como por exemplo, os túmulos de manifestações positivistas e maçônicas. Assim, a preservação da memória

fortalece

a

afirmação

da

identidade

cultural,

também

múltipla,

considerando-se que através das expressões funerárias associa-se a memória do morto aos aspectos sociais e culturais com os quais o mesmo mantinha relação antes

de

morrer,

associação

esta

logicamente

mediada

pelo

olhar

dos

sobreviventes, para os quais o sentido da vida é elaborado e apresentado. A memória dos mortos é então mediada pela memória dos vivos, sendo que a individualização de cada túmulo é indicativa do desejo de continuidade existencial, fato expressado através das placas de casal e dos nomes de família, por

166

exemplo. De forma significativa, as expressões e as transmissões culturais, através dos

valores

e

do conteúdo

simbólico

contido

nos

túmulos,

servem

ao

estabelecimento e à reafirmação das relações sociais, como se demonstrou através das inscrições alemãs, que objetivam a definição da identidade teuto-brasileira. Através das representações sociais, são reunidos fragmentos de memória, aos quais atribui-se unidade e sentido e, assim, são estabelecidos os filtros de percepção. As tentativas de explicação da morte estão presentes no Cemitério Municipal São José e influenciam diretamente o culto aos mortos, interagindo com os mecanismos de memória dos vivos, de modo a estabelecer sentido à finitude e resolver a problemática da morte, tão cara aos sobreviventes.

167

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