107 - Imagens do Livro do Desassossego

July 6, 2017 | Autor: Marcos Girão | Categoria: Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Bernardo Soares, Marcos Girão
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[107] Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram; daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista. Não tenho uma ideia de mim próprio; nem aquela que consiste em uma falta de ideia de mim próprio. Sou um nômade da consciência de mim. Tresmalharam-se à primeira guarda os rebanhos da minha riqueza íntima. A única tragédia é não nos podermos conceber trágicos. Vi sempre nitidamente a minha coexistência com o mundo. Nunca senti nitidamente a minha falta de coexistir com ele; por isso nunca fui um normal. Agir é repousar.

Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um fato significa não haver um fato. Pensar é não saber existir. Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. A minha impaciência constantemente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele. Medito, então, em uma modorra de físico, que se parece com a volúpia apenas como o sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos, na perene instabilidade das minhas ânsias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder sofrer. Falta-me qualquer coisa que não desejo e sofro por isso não ser propriamente sofrer. O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso lembrarmas. Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me esta hora análoga por dentro,

“Imagens do Livro do Desassossego” Autor: Marcos Girão Técnica: Tempera / Acrílico / Viochene / Goma-Laca Base: Contraplacado de madeira Dimensões: x m/m Propriedade de:

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