1215: Annus mirabilis para o Estado de Direito

July 15, 2017 | Autor: J. Garcez Ramos | Categoria: Criminal Procedure, Criminal Justice, History of Church Councils, Rule of Law, History of Law, Magna Carta
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1215: ANNUS MIRABILLIS PARA O ESTADO DE DIREITO JOÃO GUALBERTO GARCEZ RAMOS professor da Universidade Federal do Paraná procurador da República no Paraná coordenador do NEC/UFPR

Há oitocentos anos, entre os meses de junho e novembro de 1215, ocorreram dois extraordinários eventos históricos. No tempo em que ocorreram muito pouca conexão poder-se-ia imaginar entre eles. Talvez tenham tido um personagem em comum, indiretamente engajado em um evento e mergulhado até o seu sagrado pescoço no outro. A distância geográfica entre esses dois eventos foi de quase mil e quinhentos quilômetros, com um mar a separá-los. Apesar disso, os dois acontecimentos mudaram a face do Direito para sempre, na direção de uma realidade mais humana e democrática ou, talvez, menos cruel e autocrática. Em 2015 completamos oitocentos anos desse annus mirabilis de 1215. Cumpre comemorar. Vamos aos fatos. Aos dois fatos. Em meados de maio de 1215, um grupo de 25 barões do norte (northern lords), liderado por figuras belicosas e perigosas, como Eustace de Vesci, barão de Alnwick, Robert Fitz Walter, barão de Dunmow, Saer de Quincy, conde de Winchester,1 preparados para tudo e acompanhados de soldados bem armados, iniciaram uma guerra contra o rei da Inglaterra, JOHN. Estavam profundamente irritados com ele, em parte devido à sua sanha arrecadatória mas principalmente por causa das falhas no sistema real de Justiça.2 Passaram a persegui-lo com suas tropas e a lentamente acuá-lo. Queriam que ele se comprometesse com inúmeras demandas. O rei John, que media aproximadamente 1 metro e 64 centímetros, era o

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Os demais barões são (em ordem alfabética dos sobrenomes): William d’Albini, Hugh Bigod, Roger Bigod,

Henry de Bohun, Richard de Clare, Gilbert de Clare, John Fitz Robert, William de Forz, William Hardel, William de Huntingfield, John de Lacy, William de Lanvallei, William Mallet, Geoffrey de Mandeville, William Marshall II, Roger de Montbegon, Richard de Montfichet, William de Mowbray, Richard de Percy, Robert de Ros, Geoffrey de Say e Robert de Vere. 2

Cf. HUDSON, John. The Formation of the English Common Law: Law and Society in England from the Norman Conquest to

Magna Carta, Londres-Nova Iorque: Ed. Longman, p. 221-224.

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filho mais moço de Henry II. Suas muitas deficiências eram amplificadas quando comparado com seu falecido irmão. Richard I, cognominado “Lionheart”, media 1 metro e 96 centímetros, pouco mais ou menos, e destacara-se desde cedo nas atividades que envolvessem armas, cavalos e batalhas. Tornara-se uma lenda ainda em vida. Foi um rei muito popular, embora tenha permanecido em solo inglês apenas onze meses de um total de onze anos de reinado, tantas foram as campanhas militares que comandou. O rei John, por sua vez, era pobre e destituído de grandes talentos. Como se sabe, era cognominado jocosamente de “With No Land”, porque seu pai lhe legara, de fato, em terras e em ouro, uma herança muito menor do que a de seu irmão. Segundo POOLE, “praticamente qualquer epíteto podia ser adequadamente aplicado a ele em um ou outro de seus muitos e versáteis humores. Ele era cruel e impiedoso, violento e apaixonado, ganancioso e autoindulgente, genial e repulsivo, arbitrário e judicioso, esperto e capaz, original e inquisitivo”.3 Ah, sim, JOHN era hiperativo. Muito fácil entrar em conflito com ele. Naquele momento, porém, o rei John se encontrava fragilizado, duplamente fragilizado. Não tinha dinheiro e não tinha mais o apoio incondicional do papa Inocêncio III, o personagem dos dois eventos mencionado linhas acima. A verdade é que nunca tivera muito dinheiro, mas agora a situação piorara. Em grande parte por culpa de seu irmão Richard, que lutara a Terceira Cruzada e, para tanto, gastara enormes somas para deslocar milhares de soldados ingleses, com cavalos e armas, até o Oriente Médio. Para piorar, Richard fora feito refém no retorno para casa e seu resgate, pago pela mãe, Eleanor of Aquitaine, custou nada menos que trezentos mil marcos de prata. John, por sua vez, envolvera-se em uma guerra com o rei francês Philip Augustus, uma guerra desde o princípio perdida, que o fez perder territórios e ainda mais dinheiro. O reinado de John foi, então, desde seu início, marcado pela penúria. Em março de 1208 o rei John, mercê de seu temperamento explosivo, conseguiu ser interditado pelo papa Inocêncio III. Tentara interferir no processo de sucessão do arcebispo de Canterbury. Essa interdição, que na prática impedia os clérigos de celebrarem toda sorte de ritos religiosos na Inglaterra, causou inúmeros problemas para a sociedade londrina, que ficava privada de

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POOLE, Austin Lane. From Domesday Book to Magna Carta: 1087-1216, 2ª ed., Oxford-Nova Iorque: Ed. Oxford

University Press, 1955, cap. 13, p. 425.

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casamentos, batizados, crismas, confissões, extremas-unções. A elite inglesa sabia que aquela situação incômoda se devia ao comportamento do rei John. Em novembro de 1209, finalmente, John foi excomungado pelo papa Inocêncio III, contrariado com sua relutância em confirmar Stephen Langton, escolhido por unanimidade pelos clérigos ingleses como arcebispo de Canterbury. Essa disputa com o papa durou ao menos quatro anos e só foi resolvida com uma grande humilhação do rei John que, em maio de 1213, precisou nada menos que renunciar à coroa da Inglaterra e da Irlanda, o que o fez no interior do palácio dos Templários em Ewell. Renunciou às coroas e imediatamente recebeu-as de volta, mediante um juramento de fidelidade ao papa e a um pagamento à Santa Sé de mil marcos de prata por ano, sendo setecentos marcos pela coroa da Inglaterra e trezentos pela coroa da Irlanda. “Tomou a cruz”, para a satisfação do papa, porém com um alto preço moral. Depois de tantas desventuras John parecia a sombra de um monarca, o que os barões do norte perceberam nitidamente. Era o momento de reivindicar. Com seus soldados, nada menos que atacaram e cercaram o rei John e seus soldados na localidade de Runnymede, às margens do rio Tâmisa, entre as cidades de Windsor e Staines, em quinze de junho de 1215. Era o décimosétimo ano de seu reinado. Tinham consigo um texto, redigido em artigos, no qual faziam uma série de exigências ao rei. Esse texto é conhecido como os “Artigos dos Barões”. Apresentaram o texto ao rei, que obviamente não gostou do que viu e não quis se comprometer. A figura-chave nas negociações foi o arcebispo de Canterbury, Stephen Langton. Isso porque os barões confiavam nele e John não tinha opções. John finalmente aceitou o texto, que foi provisoriamente chamado de “Unkown Charter of Liberties”. O texto em latim da Carta, com 61 cláusulas, foi escrito provavelmente por Langton. A principal cláusula era, de fato, a 39, que dispunha que “nenhum homem livre será perseguido ou preso, ou privado de seus direitos e posses, ou colocado fora da lei ou exilado, ou privado de seus títulos de qualquer maneira, nem serão mobilizadas forças contra ele, ou determinados outros para fazê-lo, exceto pelo julgamento válido de seus iguais ou pela lei da terra”.4 4

Original em latim: “Nullus liber homo capiatur, vel imprisonetur, aut disseisiatur, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo

destruatur, nec super eum ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terre”. Original em inglês: “No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his

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Foi aplicada por apenas alguns meses, quando foi violada pelo rei. Um pouco mais de um ano depois, sem que o conflito com os barões tivesse sido inteiramente solucionado, o rei John morreu de disenteria grave e profunda, sendo sucedido por seu filho Henry III, então com apenas nove anos. A carta seria reeditada novamente, com inúmeras modificações, em 1216, 1217 e 1225. –––––––––– Em novembro de 1215, em Roma, sob o pontificado de Inocêncio III, realizou-se o IV Concílio Lateranense. Até então, a Igreja Católica realizara mais de trinta concílios.5 Todos eles, apesar de terem importância na história da Igreja, tinham caráter regional, particular. Discutiam questões circunstanciais, importantes para o momento e que exigiam um pronunciamento do papa e dos bispos católicos. Mas não pretendiam discutir a religião com todos os setores da Igreja. O quarto Concílio da Basílica Lateranense seria o mais importante até então realizado, com a possível exceção do 1º Concílio de Nicéia (325), em que o catolicismo, de seita ilícita que era até então, de um momento para o outro, foi transformado em religião oficial do Império Romano. Embora nominalmente fosse o 12º concílio ecumênico da Igreja, o 4º Concílio Lateranense seria o primeiro efetivamente universal, pois clérigos de todas as regiões do mundo conhecido convergiram para discutir inúmeras questões relevantes para a Igreja e para a Cristandade. Foi convocado pelo papa Inocêncio III, em dezenove de abril de 1213, através da bula “Vineam Domini Sabaoth”. Ao que parece, o papa sabia que algo importante ocorreria pois, ao convocar os clérigos para o concílio, sublinhou que o medo de enfrentar os perigos da viagem e a desordem civil que ocorria aqueles dias em Roma não eram motivos para que eles deixassem de comparecer. E acrescentou, em tom solene: “Nenhum homem jamais cruzará o oceano se standing in any way, nor will we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land”. 5

Pelo menos os seguintes: Jerusalém (49), Elvira (305), Arles (314), Ancira (314), Nicéia (325 e 787), Sardica (343),

Constantinopla (381, 553, 680 e 869), Cartago (399, 418, 419 e 424), Éfeso (431), Toledo (447, 527, 589 e 636), Calcedônia (451), Mâcon (585), Paderborn (785), Frankfurt (794), Melfi (1089), Piacenza (1095), Clermont (1095), Winchester (1102), Troyes (1128), Pisa (1135), Tours (1163), Paris (1198). Na Basílica Lateranense haviam ocorrido, até então, três concílios (1123, 1139 e 1179).

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sempre estiver esperando que as águas se acalmem”.6 Os debates se iniciaram em onze de novembro de 1215. Deles tomariam parte 71 patriarcas, 412 bispos e novecentos abades e prioris. Foram discutidos inúmeros assuntos, o maior, mais diverso e relevante conjunto de assuntos que a Igreja jamais tratara em um único encontro. Alguns puramente políticos, como o apoio o rei Felipe II de Hohenstaufen, que havia sido coroado três anos antes na Alemanha, e a realização de uma nova Cruzada para o Oriente, outros político-religiosos, como o primado do papa, as doutrinas heréticas de Gioacchino da Fiori, dos Cátaros e dos Valdenses, a dignidade dos patriarcas da Igreja e o reconhecimento de suas sedes, a variedade dos estatutos das diversas ordens religiosas, as investiduras e, ainda, outros político-econômico-religiosos, como a simonia, o concubinato, a usura e a taxação da Igreja pelo Estado. Os bispos discutiram a conduta dos clérigos relativa à embriaguez, aos jogos de azar, à caça, aos espetáculos humorísticos e de vaudeville e à prática da medicina e ao celibato. Também se ocuparam de temas jurídicos, como o grau mínimo de parentesco para casamento e a indispensabilidade do consentimento da mulher para a validade do casamento. Discutiram temas puramente religiosos, como a Santíssima Trindade, a obrigação dos cristãos de comungar e de confessar, os limites da atuação dos cristãos laicos nos ritos religiosos católicos, a obrigação de pagarem o dízimo e, mais significativo de todos nesse plano, a transubstanciação de Cristo por ocasião da Eucaristia. Ao final do Concílio, em trinta de novembro de 1215, sob o comando firme do papa Inocêncio III, emitiram setenta cânones. Neles reafirmou-se a Santíssima Trindade e a transubstanciação de Cristo (can. 1), condenaram-se doutrinas heréticas e estabeleceram-se regras para a sua repressão (can. 2-4), reafirmou-se a primazia do papado e a dignidade dos patriarcas, confirmando-se Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém como sedes patriarcais (can. 5), proibiram-se novas ordens religiosas (can. 13), estabeleceram-se padrões para a conduta dos clérigos (can. 14-15, 43), padronizaram as vestes dos clérigos (can. 16), condenou-se o uso de objetos profanos nas igrejas (can. 19), confirmou-se o dever dos cristãos de confessar ao menos uma vez por ano (can. 21), afirmou-se

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BRUNDAGE, James A. The Medieval Origins of the Legal Profession: Canonists, Civilians, and Courts, Chicago-

Londres: Ed. University of Chicago Press, 2010, p. 138.

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que as doenças são antes da alma do que do corpo (can. 22), estabeleceram-se regras para a escolha de párocos e para a administração das igrejas (can. 23-34), estabeleceram-se regras sobre títulos de crédito, posse, prescrição, obrigações, prova, competência material, recursos (can. 35-42), reafirmou a imunidade da Igreja (can. 46), estabeleceram-se novas regras sobre a excomunhão (can. 47-49), estabeleceram-se regras para a validade dos casamentos (can. 50-52), estabeleceram-se regras sobre o dízimo (can. 53-61), condenou-se a simonia (can. 63-65) e procurou-se racionalizar a cobrança de taxas pela Igreja (can. 56). Os cânones foram especialmente duros com os judeus, na medida em determinou-se que os judeus deveriam levar na roupa, bordada, uma rodela amarela ou vermelha e não poderiam ser vistos em público durante a Semana Santa (can. 68), proibiu-se-os de assumirem cargos públicos (can. 69) e de retornarem aos antigos ritos (can. 69). Quanto à prática da usura, os cristãos foram proibidos de fazê-lo e os judeus mantiveram a permissão desde que o fizessem com moderação (can. 67). O último cânone convoca os cristãos para uma nova cruzada, concede indulgência plenária não somente a quem dele tomar parte mas também a quem o apoiar com dinheiro, soldados e armas. Essa cruzara se iniciaria em 1217, um ano depois da morte de Inocêncio III. Dentre esses setenta cânones, os bispos aprovaram, um cânone que teve imediata e ampla consequência no mundo jurídico. Talvez até mais ampla do que os próprios bispos previam. Trata-se do cânone 18, que determina o seguinte: Nenhum clérigo poderá decretar ou pronunciar uma sentença envolvendo o derramamento de sangue, ou de realizar um castigo que o envolva, ou estar presente quando essa punição é realizada. (...) Um clérigo não pode ditar ou escrever cartas que exijam punições envolvendo o derramamento de sangue (...). Além disso, um clérigo não pode (...) conferir um rito de bênção ou de consagração a purgação por provação de água fervente ou fria ou do ferro em brasa, mantidas as proibições anteriormente promulgadas sobre combates individuais e duelos.

É verdade – e o próprio cânone 18 faz referência a isso – que a Igreja já aprovara, durante o 2º Concílio Lateranense (1139), um cânone 14 que vedava enterro cristão a quem participasse de duelos ou torneios. Contudo, esse cânone anterior não tivera o efeito desejado. Talvez nem sequer tivesse reduzido a ocorrência de duelos e torneios. O cânone 18 do 4º Concílio Lateranense, porém, foi muito mais consequente. Em primeiro lugar devido à sua base teológica. Baseava-se 6

diretamente em um cânone teológico que houvera sido aprovado durante o Concílio de Tours (1163) e que se expressa no dito latino Ecclesia abhoret sanguinem.7 Esse cânone, embora não seja muito destacado na histórica da Igreja, é dos mais importantes e consequentes, inclusive para a história posterior dos judeus. Baseia-se em uma sofisticada interpretação dos fatos da paixão e morte de Cristo. Conforme os relatos bíblicos, Cristo fora submetido a um tratamento cruel, com o desnecessário derramamento de sangue, ocasionado por uma coroa de espinhos e pelo açoitamento, antes de sua crucificação.8 Além disso, Cristo teria sido pregado na cruz – diferentemente dos dois ladrões – tanto que quando reaparece aos onze apóstolos restantes, mostra-lhes as mãos, os pés e o lado.9 O flagelamento e a crucificação com pregos estariam desconformes com a tradição da época, o que representaria um acréscimo de crueldade para com Cristo. A consequência dessa interpretação para a história posterior dos judeus não precisa ser sublinhada. Por conta dessa interpretação dos fatos bíblicos, a Igreja tomou a decisão de que o derramamento de sangue estaria em desconformidade com o Evangelho. Daí a decisão, tomada no 4º Concílio Lateranense, de proibir a participação de clérigos nas chamadas ordálias ou juízos de Deus. –––––––––– Quanto às consequências, os dois episódios podem ser considerados dos mais importantes para a história do Direito e também para a história da humanidade. Nada seria mais o mesmo depois de 1215. Quanto à Magna Carta, os fatos ocorridos em Runnymede são de um simbolismo indelével. Isso porque há algo de extraordinário na campanha dos barões ingleses. Pesquisadores mais modernos afirmam que os barões não acuaram o rei em busca de vantagens pessoais, como isenção ou redução de impostos, conforme interpretações tradicionais. É provável que, no plano pessoal, essas preocupações estivessem presentes. Todavia, considerado o conjunto dos barões, elas eram, realmente, secundárias. Os barões “esperavam por um

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Ou, em outra formulação, Ecclesia abhoret a sanguine.

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Evangelhos de Mateus, cap. 27, vers. 26 e 29, Marcos, cap. 15, vers. 15 e 17 e João, cap. 19, vers. 1 e 2.

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Evangelho de Lucas, cap. 24, vers. 39 e 40 e João, cap. 20, vers. 20.

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governo nacional unificado para melhor proteger seus direitos por intermédio de tribunais reais e, a este respeito, viam a si mesmos como representantes de uma comunidade maior”.10 Aí está o simbolismo mais importante dos episódios em Runnymede. Os barões se reuniram e reivindicaram em conjunto em face do rei John. Impuseram-lhe uma Carta de Direitos. Limitaram o seu poder político, traçaram limites para sua atuação, o que é um fato de extraordinária importância. Criaram o Estado de Direito, o primado da lei. Ambos, portanto, tem data de aniversário: dezenove de junho. Mas outra coisa também nasceu com os fatos de 1215, em Runnymede. Embora após ter assinado o documento, o rei John parecesse decidido a cumprilo, tanto que enviou cartas para todos os xerifes e oficiais reais determinando que obedecessem os dispositivos da Carta, 11 o fato é que, mercê de seu comportamento inconstante, descumpriu-a ele próprio algum tempo depois, o que levou a Magna Carta a ser reescrita algumas vezes. Esse fato – o descumprimento de alguns dos dispositivos da Magna Carta – também pode ser considerado importante, porque manteve os barões em alerta, reunidos em assembleia, que aos poucos se tornou permanente. Os barões, naquele momento, além de criarem o primado da lei, preparavam o terreno para a criação de um órgão destinado a fiscalizar o cumprimento, pelo rei, da lei que ele próprio aceitara cumprir: a Casa de Lordes (House of Lords), o Parlamento inglês. Alguns séculos depois surgiria a Casa de Comuns (House of Commons). Desnecessário sublinhar ainda mais a importância desses dois produtos de junho de 1215 em Runnymede. Quanto aos fatos de novembro de 1215, na Basílica Lateranense, sua importância também foi das mais radicais. Só que seus efeitos foram ainda mais imediatos que os da Magna Carta. Conforme se sabe, com as invasões bárbaras, o Império Romano fora lentamente dissolvido, territorial, política e juridicamente. Essa dissolução apanhou o Direito Romano no auge de seu desenvolvimento dogmático, a fase

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FUKUYAMA, Francis. As origens da ordem política: dos tempos pré-humanos até a Revolução Francesa, trad. de Nivaldo

Montigelli Júnior, Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2013, p. 301. 11

Cf. POOLE, Austin Lane. From Domesday Book to Magna Carta: 1087-1216, 2ª ed., Oxford-Nova Iorque: Ed.

Oxford University Press, 1955, cap. 14, p. 477.

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que os historiadores denominam cognitio extra ordinem. Grosso modo, pode-se dizer que nessa fase do Direito Romano haviam sido abandonados os juízes ad hoc e as fórmulas para o pronunciamento do Direito. O Senado romano já emitia, em bases regulares, leis a serem aplicadas por juízes profissionais. A instrução probatória era baseada na produção de prova testemunhal e documental e se realizava diante desses mesmos juízes. Um grupo de oficiais públicos, os procuratores caesaris, encarregava-se de exercer a ação pública especialmente contra os autores de crimes lesa majestatis, sob um forte comando dos juízes. As tribos germânicas do norte da Europa – pejorativamente chamadas de bárbaras – quando começaram sua marcha em direção ao sul, ao invadirem os domínios romanos, raramente encontraram resistência. Roma já não conseguia administrar adequadamente os territórios que conquistara e, na prática havia-os abandonado. Assim, embora tenham usado violência, no mais das vezes os germânicos invadiram os domínios romanos pacificamente. Encontraram estruturas jurídicas consolidadas, porém sem comando central. As tribos germânicas começaram, então, a lentamente incorporar esses domínios romanos, mantendo algumas de suas práticas jurídicas e acrescentando outras próprias. Exatamente isso aconteceu no plano do Direito Processual. Os povos germânicos acrescentaram ao Processo Judicial continental suas práticas probatórias. Mantiveram as anteriores e acrescentaram as suas, nas quais acreditavam mais. A principal dessas práticas consistia nos chamados “Juízos de Deus”. Essas provas procuravam descobrir o juízo, a opinião de Deus a respeito de uma determinada demanda. Conforme a crença que remonta à história bíblica da luta entre Davi e Golias,12 mesmo que alguém seja mais fraco e menos treinado, se for justo, será favorecido por Deus. Por conta disso, essas provas impunham às partes os maiores sacrifícios, inclusive físicos, à espera de que os sinais do favor de Deus se manifestassem e apontassem os vencedores das demandas. Provas como a da água fervente e do ferro em brasa eram utilizadas como formas de solução de muitas demandas, especialmente criminais. Ao lado dessas provas, os duelos e os torneios também detinham um papel relevante no campo probatório. 12

Livro de Samuel 1, cap. 17.

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Por volta do Século 12 essa prática havia se transformado em uma espécie de espetáculo de horrores. Não somente por causa das consequências físicas às partes, mas também porque muitas dessas diligências eram de difícil execução, e muitas vezes ocorriam acidentes que vitimavam mesmo pessoas estranhas aos litígios. O derramamento de sangue era frequente e se constituía em uma espécie de escola de cidadania às avessas. O povo se encontrava nas praças não para ver a Justiça triunfar mas, literalmente, para ver cabeças rolarem. Também por volta do Século 12 o Direito continental se modernizava no plano acadêmico. A Universidade de Bolonha estava produzindo juristas como Irnério, Búlgaro, Acúrsio, Damazio e Portio Azo, apenas para ficar com alguns exemplos, que estudavam os textos romanos e simplesmente não podiam compreender a relevância probatória concedida aos juízos de Deus. Também eles pressionavam pelo fim desse primitivo sistema probatório. Em suas glosas não havia espaço para esse tipo de prática. Um pequeno detalhe, porém, não passou despercebido aos bispos reunidos na Basílica Lateranense: para que tivessem validade no plano jurídico, os juízos de Deus precisavam ser atestados por clérigos da Igreja. A água a ser fervida, o ferro a ser colocado em brasa, os cavalos a serem usados nos duelos, as espadas, as lanças, as alabardas, as maças, os porretes, tudo deveria ser benzido antes das provas, a fim de estabelecer a conexão com Deus e dar confiabilidade à prova. A participação da Igreja nessas provas era, portanto, indispensável. Quando o cânone 18 proibiu a participação dos clérigos nessas provas o efeito foi imediato e devastador (num sentido positivo, obviamente). Ele fez desaparecer, de um momento para o outro, todo o sistema probatório baseado em ordálias. Pode-se dizer que, a partir de dezembro de 1215, nunca mais se resolveram validamente questões jurídicas com esse tipo de prova. O duelo continuou por muitos anos, é verdade, mas como forma privada e muitas vezes ilícita de resolver questões entre cavalheiros. No plano do Direito Probatório, portanto, o 4º Concílio Lateranense forçou o retorno do Direito Probatório a bases racionais e, com isso, contribuiu para a humanização das práticas processuais comuns. É verdade que, menos de cinquenta anos depois, a violência processual voltaria na forma dos chamados “tratos do corpo” – em português mais claro, a tortura – como instrumento probatório de uma forma extraordinária de persecução penal aos movimentos heréticos. A formulação teórica do processo 10

inquisitório, porém, não permitiria a violação do cânone 18, na medida em que os tratos do corpo não eram praticados por clérigos, mas sim pelo chamado braço secular. Esse triste capítulo da tortura como forma de produzir a verdade processual, porém, não reduz a importância do ocorrido em novembro de 1215 na Basílica Lateranense. O primeiro passo da humanização do Processo – movimento que neste Século 21 ainda não terminou – foi dado, efetivamente, em novembro de 1215. No ano de 2015, octigentésimo aniversário da Magna Carta e do cânone 18 do 4º Concílio Lateranense, precisamos lembrar e nos orgulharmos do que foi feito. E como forma de homenagear esses personagens, devemos prosseguir na tarefa diária de aperfeiçoar e humanizar as instituições jurídicas contemporâneas.

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