1989/1991: a restauração capitalista na ex-URSS, cinco polêmicas.

July 21, 2017 | Autor: Valerio Arcary | Categoria: Historia Contemporánea
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1989/1991: a última onda revolucionária do século XX,
cinco polêmicas, vinte anos depois

Valério Arcary[1]

Que a socialização dos meios de produção (...) representa um tremendo
benefício econômico se pode demonstrar hoje em dia não só teoricamente,
mas também com a experiência da União dos Sovietes, apesar das
limitações desse experimento. É verdade que os reacionários
capitalistas, não sem artifício, utilizam o regime de Stálin como
espantalho contra as idéias socialistas. Na realidade, Marx nunca disse
que o socialismo poderia ser alcançado em um só país e, ademais, em um
país atrasado. As contínuas privações das massas na União soviética, a
onipotência da casta privilegiada que se levantou sobre a nação (...)
não são conseqüências do método econômico socialista, mas do isolamento
e atraso da Rússia, cercada pelos países capitalistas. O admirável é
que nessas circunstâncias, excepcionalmente desfavoráveis, a economia
planificada (...) tenha demonstrado seus benefícios insuperáveis. [2]


Se não é possível negar, antecipadamente, a possibilidade, em casos
estritamente determinados, de uma frente única com a parte termidoriana
da burocracia contra a ofensiva aberta da contrarrevolução capitalista,
a principal tarefa política na URSS continua sendo, apesar de tudo, a
derrubada da própria burocracia termidoriana. O prolongamento de seu
domínio abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e
aumenta as chances de restauração capitalista.[3]




Leon Trotsky


A história sempre foi um campo de batalha das idéias. A distinção
entre o que foi historicamente progressivo e o que foi regressivo é o cerne
da investigação do passado. Compreender na seqüência aparentemente caótica
dos acontecimentos, quais são aquelas mudanças que abriram caminho para um
mundo menos desigual, e aquelas que preservaram injustiças, deveria ser a
primeira obrigação de qualquer investigação. A honestidade intelectual mais
elementar é posta à prova na hora de separar o que foi revolucionário do
que foi reacionário. Mas é menos simples do que pode parecer.
Existem acontecimentos que despertam imediatamente o assombro
generalizado porque a força de impacto de sua importância é instantânea.
Revoluções são majestosas porque a legitimidade da luta de milhões nas ruas
é irrefutável. Revoluções são admiráveis porque de forma surpreendente,
súbita, e rápida colocam em movimento grandes multidões, até então
politicamente desinteressadas e, ao derrubar governos odiados, realizam
façanhas insólitas que pareciam impossíveis. Revoluções são grandiosas
porque subvertem a percepção de que os destinos coletivos escapam à vontade
da maioria, e a espontaneidade das massas em luta é um terremoto social que
introduz esperança na política. Revoluções despertam imediatamente a
simpatia popular para além das fronteiras em que os combates pelo poder
estão sendo travados, porque incendeiam a imaginação de outros povos de que
é possível mudar o mundo.
Foi assim com o Maio de 1968 na França e a Primavera de Praga, a
revolução portuguesa em 1975, a revolução sandinista e iraniana em 1979, a
greve dos estaleiros de Gdansk, a queda de Baby Doc Duvalier no Haiti em
1986 ou, mais recentemente, com a queda de De La Rua em Buenos Aires em
2001, a derrota do golpe contra Chávez na Venezuela em 2002, ou a deposição
de Gonzalo de Losada na Bolívia em 2003. Contra-revoluções podem ser
igualmente imponentes, porque provocam o horror imediato: foi assim no
Chile de Pinochet em 1973 ou na Argentina de Videla em 1976, ou ainda na
Praça Tian An Men da China em 1979.
Existem, por outro lado, processos cuja percepção é muitíssimo
mais difícil, e o seu terrível significado só é apreendido anos depois.
Porque há decisões que são tomadas entre quatro paredes pelos poderosos do
mundo para manter uma ordem injusta, mas que são apresentadas diante das
massas como sendo a consagração de suas aspirações e, por algum tempo,
atingem seus objetivos. Foi assim ao final da II Guerra Mundial quando, em
Yalta e Potsdam, a vitória revolucionária contra o nazi-fascismo foi
usurpada pelos Estados dos EUA, Grã-Bretanha e URSS para garantir a
coexistência pacífica, garantindo a preservação do capitalismo na Europa do
Mediterrâneo, e salvando Salazar e Franco por mais três décadas. Foi assim,
também, no Brasil em 1984 quando, no calor das mobilizações para enterrar a
ditadura militar, a direção do MDB negociou a eleição de Tancredo Neves no
Colégio Eleitoral - em conchavo que entregou para José Sarney a vice-
presidência da República – evitando o colapso do governo Figueiredo.
A queda do muro de Berlim em 1989 está entre os primeiros e, ao
contrário do que pensam alguns, não foi uma tragédia.[4] Foi a última das
ondas revolucionárias internacionais do século XX, e a mais incompreendida.
No calor dos acontecimentos, a sua grandeza escapou à compreensão da
maioria da esquerda e dos estudiosos brasileiros que foram educados em
décadas de influência das teorias campistas que subverteram a interpretação
marxista.[5] A decadência indisfarçável dos regimes ditatoriais depois da
revolução operária polonesa de 1980/81 liderada pelo Solidariedade a partir
da greves de Gdansk já não permitia os entusiasmos dos anos cinqüenta, mas
a influência tardia do estalinismo levou muitos dirigentes da esquerda –
tanto no PCB e PCdB, quanto até no PT – a um olhar de suspeita sobre as
mobilizações de massas na Alemanha, a greve geral na Tchecolosváquia e a
insurreição na Romênia Não obstante, as revoluções anti-burocráticas foram
das mais massivas, justas, corajosas, portanto, legítimas da história,
sejam quais forem os critérios de comparação com outras revoluções
democráticas.
Já a decisão da maioria do Comitê Central do Partido Comunista da
China de apoiar o plano das Quatro Modernizações defendido por Deng Xao
Ping em 1978, e o XXVII Congreso do Partido Comunista da União Soviética em
fevereiro de 1986, quando Gorbatchev conquistou o apoio para a perestroika
estão entre os segundos e, ao contrário do que pensou na ocasião a maioria
da intelectualidade de esquerda, não foram decisões que abriam o caminho
para uma renovação do socialismo, mas para a restauração do capitalismo.
Aqueles que reduzem explicações históricas de processos complexos ao
balanço dos seus resultados, acabam atribuindo o que foi obra da contra-
revolução à revolução ou vice versa.

Dois processos de significado
histórico opostos
A historiografia e a esquerda de educação marxista foram incapazes
de analisar o que estava acontecendo na China, no Leste europeu e na URSS
durante os anos oitenta. Nem sequer aqueles que eram mais críticos aos
rumos destes Estados, como os que se educaram na tradição trotskista,
estiveram à altura do desafio histórico. A explicação é simples, embora o
problema seja complexo: tudo o que acontece pela primeira vez na história é
mais difícil de compreender.
Dois processos extraordinários, porém, de natureza diversa e de
signos históricos opostos, estão associados a 1989: a restauração
capitalista foi um processo contra-revolucionário essencialmente nacional,
conduzido de cima para baixo pelos Estados e pelas burocracias dos PC's de
cada país em ritmos diferentes; e a queda do muro de Berlim foi a expressão
mais espetacular de uma onda de revolução democrática internacional, uma
rebelião de baixo para cima de amplíssimo apoio popular, que iniciou na
Praça Tian An Men em Pequim e foi derrotada no 4 de junho de 1989 com uma
carnificina, mas obteve no 9 de novembro na Alemanha a primeira de uma
série de vitórias que derrubaram, na seqüência, os regimes ditatoriais na
Polônia, na Hungria e, antes do fim de dezembro, na Romênia.
A restauração capitalista foi uma transformação econômico-social
que estava colocando abaixo a propriedade estatal, o monopólio do comércio
exterior e o planejamento estatal e reintroduzindo a propriedade privada, a
relação direta das empresas com o mercado mundial e a regulação mercantil.
A revolução política-democrática de 1989 foi uma vaga de lutas populares
que uniu na rua a maioria da classe trabalhadora e da juventude em marchas,
ocupações e greves que derrubaram os regimes monolíticos de partido único
estalinistas que estavam conduzindo a restauração capitalista, e que
agonizavam em função das seqüelas econômico-sociais que estavam provocando.
O desmoronamento das ditaduras de partido único que passaram à
história pela denominação de regimes estalinistas foi das transformações
históricas mais importantes da segunda metade do século XX, e permanece um
dos problemas mais complexos para o marxismo revolucionário contemporâneo.
Diante de grandes acontecimentos existe sempre o duplo perigo teórico de
subestimar o seu valor ou, ao contrário, sobredimensioná-los. O perigo
político é ainda maior e consiste em ficar apaixonado ou zangado com a
realidade, porque o desenlace dos acontecimentos não correspondeu às nossas
esperanças, ou contrariou nossas preferências.
Uma parcela da intelectualidade de educação marxista, assim como
da esquerda militante, conseguiu cometer ao mesmo tempo estes dois erros.
Atribuiu à revolução democrática a responsabilidade pela restauração
capitalista, quando o que aconteceu foi o contrário. Foi porque a
restauração capitalista estava sendo feita a partir dos governos – na China
desde 1978; na URSS, Polônia, Hungria, Tchecolosváquia desde 1986 - que o
mal estar social se agudizou e permitiu avolumar as forças que levaram á
queda das ditaduras. A maioria da esquerda de educação campista diminuiu a
importância da derrubada das ditaduras burocráticas pela mobilização
operária e popular, ao responsabilizá-las pela restauração, quando as
massas em luta se rebelavam contra as sequelas da restauração. Em
coerência, desvalorizou o significado da fragilização dos partidos
comunistas, que eram satélites do aparelho de Moscou, para a reorganização
de uma esquerda internacionalista para o século XXI liberta das pressões
que o estalinismo exerceu durante sessenta anos.
Agigantou, por outro lado, as conseqüências históricas da
restauração capitalista, interpretando-a como uma derrota de efeitos
irreversíveis porque teria desaparecido o Estado que teria sido a
retaguarda estratégica da luta socialista mundial. Em conseqüência,
concluiu que a mudança no sistema internacional de Estados que resultou do
fim da URSS significava o fim da época histórica aberta pela revolução
russa em 1917, quando, na verdade, o que estava se encerrando era uma etapa
política de coexistência pacífica entre os EUA e a URSS que tinha sido
aberta em 1945 sob as ruínas da II Guerra Mundial.
Não surpreende, portanto, que o cepticismo sobre as perspectivas
da causa socialista tenha adquirido dimensões colossais. Reavaliar estes
acontecimentos nas suas devidas proporções não é, portanto, um desafio
pequeno. Exige, em primeiro lugar, a inversão destes dois impressionismos,
e uma articulação das condições político-sociais em que estes processos de
signos históricos opostos – um progressivo, o outro regressivo - se
desenvolveram, no contexto da luta entre revolução e contra-revolução, sem
exaltações inadequadas, e sem pessimismos desnecessários.
Uma análise objetiva da realidade, capaz de construir explicações
sólidas exige um duplo e indivisível compromisso: o primeiro com o rigor
histórico, e o segundo com o projeto socialista. Só um marxismo radical,
portanto, ancorado na tradição revolucionária, mas aberto aos desafios que
uma realidade sempre nova nos coloca, será capaz de unir um olhar sem medo
do passado, mesmo quando ele nos foi adverso, ou seja realista, com uma
antevisão do futuro com valentia, que é a condição de poder dar passos
firmes no presente.

A centralidade da questão russa: os perigos da estalinofilia e
da estalinofobia
A discussão da restauração capitalista evoca alguns dos tópicos
teóricos e políticos mais difíceis do marxismo: os critérios dos clássicos
para a qualificação da natureza social dos Estados; o papel da burocracia
como casta privilegiada nas experiências de transição pós-capitalistas, em
especial, no processo pioneiro e decisivo que foi a ex-URSS; o sentido
econômico-social das quatro modernizações iniciadas sob a direção de Deng
Xiao Ping na China, no final dos anos setenta; a apreciação do significado
político da Glasnost e Perestroika lideradas por Gorbatchov nos anos
oitenta; em uma dimensão mais histórica, a avaliação da estratégia
estalinista de transição ao socialismo dentro de fronteiras nacionais, e da
decadência econômica que, pelo menos desde os anos sessenta, levou a uma
desaceleração e posterior estagnação da URSS; e, finalmente, o balanço das
mobilizações operárias e populares que, entre 1989 e 1991, levaram à queda
quase fulminante dos regimes de partido único, mas não foram suficientes
para reverter a restauração capitalista.
Todos estes problemas nos levam de volta à questão russa, ou
seja, à natureza do estalinismo. A questão russa foi um tema teórico e
político incontornável nos debates marxistas do século XX. Sendo um
fenômeno original, historicamente, exigia uma nova elaboração, ainda que
inspirada nas premissas teóricas legadas pelas gerações marxistas
anteriores. Foram muitas e variadas as tentativas de compreensão da
natureza da URSS: se as relações sociais capitalistas tinham ou não sido
superadas, se eram não-capitalistas ou pós-capitalistas; se o Estado
soviético era um Estado socialista ou burocrático, ou operário
burocraticamente degenerado; se a URSS era ou não um Estado que impunha uma
relação imperialista aos outros Estados não-capitalistas, ou até, aos
Estados que conquistaram a independência nacional no pós-Segunda Guerra
Mundial. A mais complexa e difícil no calor dos acontecimentos era
discernir se a formação econômico-social e política russa poderia ser
duradoura ou não.
Entre marxistas, a elaboração de Leon Trotsky, e daqueles entre a
velha guarda bolchevique que a ele se associaram nas oposições dos anos
vinte, como Rakovsky, se destacou como uma das principais referências.
Trotsky partiu da análise histórica marxista da transição do feudalismo ao
capitalismo para refletir, da mesma forma que Lênin tinha ensaiado em seus
escritos nos primeiros anos do regime soviético, sobre o desafio das
condições de uma passagem histórica ainda mais complexa, a transição do
capitalismo ao socialismo. Suas referências foram Marx e Engels que
consideraram que a transição ao capitalismo tinha sido um processo
internacional, liderado pela Europa, que consumiu vários séculos com muitas
oscilações de sentido, avanços e recuos, flutuações, estagnações e depois
acelerações.
Marx não confundia a análise da dinâmica das relações sociais de
produção que se desenvolveram no seio das sociedades européias, entre o
século XV e o século XVIII, o período da acumulação primitiva de capital,
com a análise sobre a natureza social dos Estados absolutistas, como o
francês antes da revolução de 1789. Nesse sentido a sociedade francesa do
final do século XVIII já era capitalista, ainda que o Estado dirigido pela
dinastia dos Bourbons fosse uma solução política de compromisso e
equilíbrio entre os interesses de duas classes proprietárias. Concluiu que
na mesma sociedade poderiam conviver, paralelamente, relações sociais pré-
capitalistas, feudais ou outras, e relações capitalistas. Em qualquer modo
de produção são possíveis os amálgamas mais estranhos. Este foi sempre o
padrão na evolução histórico-social. Não encontraremos, tampouco
correspondência harmoniosa entre as formas econômico-sociais e as
superestruturas políticas. Ao contrário, descobriremos incongruências que
são a manifestação do desenvolvimento desigual e combinado.
A colonização portuguesa do Brasil, por exemplo, utilizou
maciçamente a escravidão ao serviço da acumulação capitalista no mercado
mundial em formação. Na história das sociedades não encontraremos uma
"preferência pela coerência". Todas as sociedades são híbridos de relações
sociais diversas e em mutação, com a simultaneidade de relações sociais,
tradições culturais e instituições políticas que surgiram em tempos
diversos e espaços diferentes, mas convivem contraditoriamente por algum
tempo. Quanto mais contraditórias, mais instáveis. Marx admitiu como
hipótese de trabalho que, na transição histórico-social ao comunismo – ou
seja, na superação da sociedade de exploração de classes – seria necessária
uma fase intermediária, o socialismo. Trotsky, no seu tempo, concluiu que a
passagem econômico-política ao socialismo exigiria, também, uma etapa
transitória. Seria mais rápida ou mais lenta em função das vitórias ou
derrotas da revolução mundial. O perigo de um bloqueio ou de uma estagnação
da transição ao socialismo na URSS esteve na mesa de trabalho dos
bolcheviques desde o início, como uma hipótese levantada em primeiro lugar
pelo próprio Lênin, horrorizado diante do atraso econômico e cultural da
Rússia
A caracterização da URSS como um Estado controlado por uma casta
socialmente privilegiada, mas que só poderia se perpetuar pelo controle
político monolítico, ou seja, uma ditadura - um regime político inferior,
historicamente, à democracia-liberal dos Estados capitalistas nos países
imperialistas - mas que se apoiava em relações de propriedade superiores ao
capitalismo, admitia que a formação social existente na URSS era um híbrido
histórico instável. O conceito de Estado operário burocraticamente
degenerado, uma fórmula que busca em uma síntese a expressão de um conflito
social e histórico, se insere nestes marcos teóricos. Sendo um híbrido
histórico inconsistente sua existência seria, necessariamente, transitória.
Se a revolução mundial não obtivesse triunfos, relativamente rápidos, em
alguma das sociedades mais industrializadas e mais educadas, a dinâmica
regressiva na própria URSS seria irremediável, e a restauração do
capitalismo seria uma questão de tempo.
A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios
de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem
aberrantes deformações burocráticas, significou uma evolução inesperada da
história. Colocou a esquerda organizada diante de uma situação paradoxal, e
o marxismo teórico diante de um desafio desconcertante. Deveriam defender a
natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração
capitalista. Deveriam defender as conquistas da revolução contra os
diferentes movimentos das frações que surgiram do interior das castas
burocráticas para eternizar seus privilégios sociais e seu controle
político que, na longa duração, só seria possível com a restauração.
Deveriam, porém, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores e
da juventude pelas liberdades democráticas, contra os regimes políticos de
opressão, para reabrir o caminho para a democracia socialista e o retorno
ao internacionalismo. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe
do conflito. Algo muito mais complexo do que uma defesa incondicional ou
uma oposição incondicional.
A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa nas mais variadas
conjunturas provocando, nos seus extremos, inevitáveis desequilíbrios:
estalinofilia nos defensistas mais esquemáticos, ou estalinofobia nos anti-
defensistas mais dogmáticos. A investigação de Pierre Broué sobre o destino
da III Internacional com uma documentação somente acessível nos anos
noventa foi reveladora de como evitar esse duplo perigo foi,
extraordinariamente, difícil. Ela confirmou o que até então se presumia,
mas não havia ainda demonstração incontestável: a dissolução final da
Internacional foi uma decisão unilateral de Stalin para tranquilizar
Churchil e Roosevelt nas mesas de negociação de Yalta.

A restauração capitalista significou o fim da época histórica aberta
por Outubro?
Não parece mais ter sentido um debate se houve ou não
restauração capitalista. Pelo menos no que diz respeito à URSS e ao Leste
europeu, já que em relação à China e a Cuba não são poucos aqueles na
esquerda que ainda estão convencidos que seriam Estados engajados em algum
tipo de transição, mesmo que na longuíssima duração, ao socialismo. Mas,
quando, como e porque a restauração capitalista teria acontecido na URSS e
no Leste Europeu permanece uma questão envolvida em grande polêmica.
A restauração capitalista nos anos noventa confirmou que a URSS
não estava em transição ao socialismo, como acreditavam os apoiadores dos
Partidos comunistas pró-soviéticos, mas não era, tampouco, capitalista, e
menos ainda social-imperialista, como pensavam os apoiadores das
organizações influenciadas pela elaboração da direção chinesa. Pode-se
discutir muitos outros temas, mas esta dupla constatação deu razão à
elaboração que a Quarta Internacional sustentou ao longo de meio século.
A ironia da história, no entanto, é que esta vitória intelectual
não poupou os trotskistas das seqüelas da imensa confusão, e até
desmoralização que atingiu o conjunto da esquerda marxista mundial. Porque
embora tivessem herdado o prognóstico de que a restauração capitalista era
uma possibilidade, tinham feito a aposta estratégica de que a classe
trabalhadora faria uma revolução política para evitar uma contra-revolução
social e poderiam ser vitoriosos. Ao verem suas esperanças no proletariado,
especialmente na classe operária russa, frustradas, a maioria do trotskismo
entrou em crise.
Afinal, durante seis décadas, tanto os líderes imperialistas,
quanto os dirigentes da URSS – e seus aliados na direção dos partidos
comunistas e suas colaterais pelo mundo afora – acusaram ou defenderam a
URSS como sendo socialista. Este grande consenso de amigos e inimigos levou
uma grande maioria dos trabalhadores com aspirações socialistas a concluir,
ingenuamente, que a URSS era socialista. A restauração capitalista
diminuiu, portanto, a credibilidade do socialismo entre os trabalhadores e
afetou todas as correntes da esquerda, mesmo aquelas que eram mais críticas
diante do estalinismo. Tão importante quanto, todavia, é responder se a
restauração capitalista significou uma mudança da época histórica aberta
pela vitória da primeira revolução socialista em 1917, e que foi
compreendida pelo marxismo como uma época de revoluções e guerras, isto é,
um longo período histórico em que o capitalismo conheceria, hegelianamente,
seu apogeu e sua decadência.
Os apologistas do capitalismo não esperaram muito para proclamar
sua vitória. A restauração do capitalismo seria a prova irrefutável da sua
superioridade histórica sobre o tipo de sociedade que existia na URSS e no
Leste Europeu. O fim da URSS seria o fim do socialismo. O futuro seria o
capitalismo, e a perspectiva de uma nova época de prosperidade. O
crescimento econômico sustentável e paz mundial foram anunciados com
euforia pelos meios de comunicação. Essa conclusão repercutiu, também, nos
meios acadêmicos. Mesmo a esquerda revolucionária não permaneceu imune a
estas pressões.
Admitida a hipótese de que a restauração do capitalismo, sem feroz
resistência dos trabalhadores da URSS ou de qualquer outro país em defesa
de suas conquistas sociais, teria sido uma derrota histórica irreversível,
a conclusão inescapável seria a previsão de um intervalo de longas décadas
antes que fosse plausível, novamente, imaginar a possibilidade de
revoluções anti-capitalistas. Aceita a premissa de que teria acontecido uma
mudança global desfavorável das relações de forças entre a revolução e a
contra-revolução à escala mundial, a conclusão irreparável seria que uma
mudança de época ocorreu. A luta pelo socialismo teria sofrido um revés
incontornável com consequências devastadoras por algumas longas décadas.
A época aberta pelo outubro russo estaria, historicamente,
encerrada. Derrotas históricas nacionais, como foi a derrota do
proletariado chileno diante de Pinochet em 1973, são processos que
determinam o quadro geral da relação de forças pelo intervalo, pelo menos,
de uma geração. Derrotas históricas em um país de importância decisiva, com
mais razão, podem deixar sequelas em uma escala continental, como foram, no
seu tempo, a derrota do proletariado soviético diante da reação
estalinista, ou do alemão diante do nazismo em 1932/33, e têm consequências
mundiais sobre a relação de forças. Uma derrota em todo um sub-continente
como era a URSS e os países do Leste europeu seria um cataclismo
irreversível por toda uma etapa histórico-mundial, possivelmente, mais de
uma geração. Como a luta pelo socialismo foi sempre compreendida, na
tradição marxista, como um projeto em primeiríssimo lugar, político,
portanto, uma aposta que deve ser plausível nas dimensões de uma vida
humana, os exageros da caracterização da derrota histórica não podiam
deixar de alimentar as perspectivas imediatas mais sombrias.
A perspectiva da história depois de passados vinte anos nos
permite avaliar a restauração sem ampliar ou reduzir o seu significado. Não
foi das tarefas mais fáceis, porque assim como liberais e gorbatchevistas
se uniram antes de 1989 para defender que a URSS era socialista, depois se
uniram para argumentar que as massas populares tinham se mobilizado pela
restauração. Hoje está demonstrado e muito bem documentado que, na URSS e
no Leste Europeu, mais do que uma resistência, houve uma revolução operária
e popular contra a restauração capitalista e não o contrário. Houve uma
revolução sem revolucionários. O proletariado russo não faltou ao seu
encontro com a história. Entretanto, a discussão sobre a mudança de época
foi resolvida pela precipitação da crise internacional capitalista a partir
de setembro de 2008. A restauração não permitiu sequer trinta anos de
crescimento sustentado como entre 1945/75. Os anos de crescimento entre
1992/2000 e depois entre 2004/2007 ficaram para trás e até os entusiastas
do capital admitem que estamos diante de uma crise duradoura, talvez, tão
séria como a crise de 1929.
Nenhum escapismo de análise pode contornar, todavia, o tema da restauração
na URSS. Uma avaliação da etapa internacional da luta de classes só pode
ser adequada, historicamente, se a análise estiver enquadrada por uma
perspectiva que tem como ponto de partida o processo que foi decisivo para
a abertura do atual período histórico, ou seja, a questão russa.
Resumindo e, como sempre em um resumo, sendo esquemático: a
questão russa são as circunstâncias do processo que levou à derrota de
Gorbatchev – e que teve, em nossa opinião, um signo histórico progressivo -
e as dimensões da derrota que foi a restauração capitalista, ou seja, as
devidas proporções de dois processos que se sucederam em ordem inversa à
percepção que deles se teve no Ocidente, porque o primeiro foi consequência
do segundo, e não o contrário.
Não foi a queda de Gorbatchev que abriu o caminho para a
restauração. Gorbatchev e a direção do PC da URSS não eram obstáculos, mas
os principais agentes desta restauração. A perestroika e a glasnost foram
as peças fundamentais da restauração, e a revolução socialmente proletária
e politicamente democrática contra Gorbatchev foi um movimento de
resistência ao capitalismo. Só assim será possível apreciar as
consequências mais duradouras que se estabeleceram na relação de forças à
escala internacional entre revolução e contra-revolução para o período
histórico posterior.
É verdade que na primeira metade da década dos anos noventa abriu-
se uma conjuntura internacional reacionária. Mas, essa conjuntura não pode
ser sequer a referência para um julgamento da etapa política internacional
pós-1989/1991, quanto mais para uma apreciação sobre a época. Uma etapa
política, em primeiro lugar, deve ser compreendida nos marcos de um quadro
internacional relativamente estável no sistema de Estados, que é sempre uma
refração da relação de forças entre revolução e contra-revolução.
Etapas se abrem ou se encerram em função de desfechos decisivos
na luta de classes que estabelecem um quadro novo nas relações de forças
por todo um período. São fases mais perenes que as situações, porém, mais
reversíveis, também, que as épocas históricas. Essas vitórias ou derrotas
das forças sociais em confronto, e as relações de forças que delas
decorrem, se traduzem em mudanças no sistema inter-Estados. Vejamos em
retrospectiva: em 1989/91, com o colapso da ex-URSS, assistimos ao
esgotamento de uma longa etapa que se abriu ao final da Segunda Guerra
Mundial. Quais foram os seus traços mais característicos? Em primeiro
lugar, essa etapa surgiu como conseqüência da derrota do nazi-fascismo, na
esteira de uma mobilização popular mundial incomparável de forças sociais e
políticas que se uniram em uma frente militar comum depois da invasão da
URSS em 1941.
A vitória dos Aliados sobre as potências do Eixo se traduziu em
uma forma específica da organização do sistema inter-estados. À fundação da
ONU de um lado, e da NATO e do "sistema" pactado em Brettom Woods (FMI,
Banco Mundial, OIT, e depois de muitas rodadas de negociação a atual OMC)
de outro, correspondia, como expressão de uma correlação de forças entre a
URSS e os EUA ao final da Guerra Mundial, uma forma particular de hegemonia
imperialista dentro de um "regime mundial" ou ordem mundial, ou seja, uma
certa forma de institucionalidade internacional. A presença da URSS como
super-potência militar, e seu impressionante prestígio, como resultado do
papel do Exército Vermelho na derrota do nazi-fascismo, impunha a
necessidade da coexistência pacífica nos marcos da guerra fria.
Nesta etapa assistimos à reconstrução capitalista da Europa
Ocidental e do Japão, ou seja, às concessões que o assim chamado Welfare
State representou para as classes trabalhadoras dos países centrais, e no
seu rastro, aos trinta anos de expansão da economia mundial, sob as ruínas
e as cinzas da brutal destruição de forças produtivas que a guerra tinha
provocado. O eixo das lutas de classes deslocou-se para os países coloniais
ou dependentes, na forma de um confronto agudo entre revolução e contra-
revolução. Uma mudança de etapa foi, assim, o resultado de profundas
comoções nas relações de forças entre as classes, que se expressaram em
transformações significativas das esferas de influência no sistema inter-
estados, questionando as formas hegemônicas anteriores. Entre essas formas
hegemônicas podemos destacar o domínio de uma potência e de uma moeda sobre
o mercado mundial. Essa parece ter sido no passado uma regularidade. Mas
recordemos que essa não foi a primeira mudança de etapa histórica que o
século XX conheceu.
Já entre 1917 e 1923 tivemos uma outra etapa mais breve aberta
pelo triunfo da revolução de Outubro, pela derrota em 1918 da Alemanha na
Guerra, e fechada pela derrota da revolução alemã, e pelo início do
processo de burocratização na recém fundada URSS. Esta etapa, excepcional
em muitos sentidos, se definiu por ter um signo revolucionário: o triunfo
da primeira revolução socialista.
A ela correspondeu um interregno no sistema inter-estados, um
"intervalo" histórico, com o deslocamento do papel hegemônico inglês, o
fracasso alemão na sua primeira tentativa de disputa de hegemonia, e o
início de uma afirmação dos EUA como a nova potência capaz de oferecer
estabilidade ao sistema mundial de Estados. Entre 1923 e 1943/45, tivemos
também uma etapa histórica diferenciada, mas de signo inverso, uma etapa
contra-revolucionária, e que poderia ter evoluído no sentido de uma mudança
da época histórica, tivesse a URSS sido destruída ou o fascismo vitorioso
na Guerra. Ela teve como fatores chaves de caracterização a ascensão do
fascismo e a degeneração burocrática do Estado Soviético, um período de
grande instabilidade no sistema inter-Estados, em que não se deu a
afirmação inquestionável de uma nova hegemonia imperialista que
substituisse o lugar anteriormente ocupado pela Inglaterra.
No marco de cada uma dessas etapas podemos observar a sucessão de
distintas situações mundiais, com flutuações da relação de forças entre as
classes, ou seja, entre revolução e contra-evolução mundial, e das relações
entre as nações no interior do sistema inter-estatal. Essas são as duas
determinações fundamentais das etapas. As etapas históricas conhecem
diferentes situações: periodos mais instáveis, em que as relações de forças
evoluem e aos quais, grosso modo, correspondem as transformações
quantitativas ou qualitativas nos regimes políticos. Esses se configuram
nas formas plásticas das instituições nos quais se estrutura a dominação
estatal. Sendo imensamente elásticas e variadas essas formas, como sabemos,
traduzem os deslocamentos nas relações de força entre as classes, e no
interior de cada classe.
Mas, não é incomum que o signo das situações seja contraditório
com a dinâmica das etapas: e é esta sobreposição de tempos político-
históricos que permite a explicação das transformações que resultarão nas
mudanças de etapas, se ocorrem vitórias populares significativas ou
derrotas que alterem a relação de forças. A alternância de situações
expressaria, portanto, a desigualdade dos tempos políticos que nunca
permanecem petrificados, e explicaria o que podemos denominar como as
situações transitórias: aqui reside a dialética dos tempos desigualmente
desenvolvidos. Julgar as etapas pelo desenlace das situações – por exemplo,
avaliar o pós 1989/91 pela primeira metade dos anos noventa - é um
impressionismo que alimentará, irremediavelmente, conclusões precipitadas
sobre a dinâmica do atual período histórico. Concluir que uma época
reacionária inteira foi aberta pela restauração capitalista seria um erro
da mesma natureza, mas ainda mais grave.

Um desafio teórico intacto: por quê aconteceu
a restauração?
A restauração capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu se não
resolveu, pelo menos colocou em um outro patamar um velho e hemorrágico
debate sobre a natureza destas sociedades e seus Estados. Durante décadas a
esquerda discutiu, apaixonadamente, se eram sociedades socialistas, como
argumentavam os partidos comunistas alinhados com Moscou; se existia algum
tipo de capitalismo de Estado, como argumentaram os dirigentes chineses; ou
se eram Estados operários burocraticamente degenerados, como argumentavam
os militantes da Quarta Internacional, entre outras hipóteses com menor
influência na esquerda organizada.
Esta discussão foi resolvida, irrevogavelmente, pela história. A
restauração capitalista demonstrou que não eram ainda, antes de meados dos
anos oitenta, formações econômico-sociais capitalistas. Confirmou, por
outro lado, que essas sociedades não estavam, evidentemente, em transição
ao socialismo. Afinal, as ditaduras de partido único foram derrubadas pelas
massas proletárias e populares que, supostamente, seriam as suas
beneficiárias.
Não obstante, o processo da restauração confirmou, também, que as
relações econômico-sociais que existiam na URSS e no Leste Europeu eram
superiores ao capitalismo, e não inferiores. Durante os anos noventa
aconteceu na Rússia e, em maior ou menor medida, nos países da Europa
Oriental uma regressão econômica-social e cultural que só pode ser
comparada, historicamente, às sequelas de uma guerra de devastação. Não é
legítimo o exercício de comparação histórica entre uma Polônia e uma
Áustria, ou entre uma Romênia e uma Holanda. A comparação apropriada é
entre a situação, por exemplo, na Ucrânia antes e depois da restauração. A
migração desesperada de centenas de milhares de ucranianos para a Europa
Ocidental em busca de emprego nas atividades mais mal remuneradas,
infinitamente inferiores às suas qualificações, nos conduz a uma conclusão
incontestável: a restauração capitalista aprofundou a crise nacional destas
sociedades.
O problema político-histórico colocado pela restauração
capitalista permanece, entretanto, intacto para os socialistas, enquanto o
marxismo não oferecer uma resposta satisfatória à questão decisiva: quais
foram os processos que levaram à vitória da contra-revolução e que tornaram
possível um desenlace tão dramático.
Surgiram as mais variadas hipóteses, embriagadas de ideologia.
Para os conservadores a restauração foi o fim de uma guerra civil mundial
declarada pelos bolcheviques em 1917, e o triunfo final da propriedade
privada, porque ela corresponderia ao que é a natureza humana; para os
liberais a restauração aconteceu porque a democracia e o mercado seriam as
únicas alternativas ao fracasso do totalitarismo e ao planejamento
burocrático; para os pós-modernos, mais de esquerda ou mais de direita, a
restauração era inevitável porque a tentativa de ordenar o futuro em função
da mobilização revolucionária do proletariado era um projeto político
messiânico com ambições históricas demenciais; para os estalinistas linha
dura a restauração foi obra de uma conspiração que uniu do Papa polonês a
Reagan, e manipulou as aspirações consumistas de massas infantilizadas - e
ingratas - mas Gorbatchev foi, também, responsável porque não teve a
coragem de fazer o que os chineses fizeram em Tian An Men; para os
reformistas social-democratas mais pragmáticos foi somente mais uma
confirmação de que a proposta marxista de um regime socialista, portanto,
democrático não seria possível.
Nenhuma dessas hipóteses é minimamente satisfatória para o
marxismo. A resposta teórica para o processo da restauração deve ser
procurada, concretamente, na decadência das formações econômico-sociais do
Leste e da URSS, ou seja, na pressão imperialista que manteve o controle do
mercado mundial, e na crescente dependência e, finalmente, impasse
econômico dos Estados burocráticos; e nas limitações da organização
independente dos trabalhadores depois de décadas de regimes ditatoriais
aterrorizadores que revelaram-se insuperáveis.
Mas a originalidade histórica da restauração é que a contra-
revolução econômico-social foi conduzida vertiginosamente pelos Estados, a
partir da máxima cúpula, quando decidiu destruir o monopólio sobre o
comércio externo. Na seqüência, o desmantelamento do planejamento e,
finalmente, as privatizações foram complementares. Que um Estado monolítico
– como eram os Estados burocráticos no Leste e na URSS - tivesse essa
capacidade de desgastar e destruir, em poucos anos, a estrutura social que
permaneceu de pé durante décadas pode nos surpreender. A elaboração sobre o
papel do Estado na elaboração marxista, em especial as referências sobre o
lugar do Estado prussiano na unificação alemã, recuperada por Hal Draper
(1978), nos oferece as pistas teóricas para compreender como o papel de
Gorbatchev foi o de um bismarckismo às avessas: a via prussiana cunhada por
Lenin, ou a revolução passiva de Gramsci, ou seja, foi a realização de uma
tarefa progressiva com métodos reacionários. Gorbatchev com todos os
discursos sobre uma economia socialista de mercado e as referências à NEP
dos anos vinte, tentou ser um Deng Xiao Ping, mas já era tarde demais.
Tratava-se da realização de uma obra reacionária sem a possibilidade de
usar os métodos contra-revolucionários que vingaram em Pequim.

A destruição do internacionalismo foi a derrota histórica mais
importante
A destruição do internacionalismo como uma corrente influente do
movimento operário internacional provocou, a partir dos anos trinta, o
divórcio das lutas no Ocidente e no Leste, no Norte e no Sul, e a
associação do socialismo às tiranias burocráticas diante do proletariado do
Ocidente, foram os maiores obstáculos à luta pelo socialismo no século XX.
Estão entre as derrotas mais profundas do marxismo, como movimento político-
ideológico. Esse foi o significado histórico do estalinismo. A restauração
capitalista, em perspectiva histórica, foi o seu corolário. Só o vigor da
revolução mundial permitiu a sobrevivência da URSS até o início dos anos
noventa. Sem a revolução chinesa, a dinâmica histórica de restauração teria
acontecido muito provavelmente mais cedo, com Kruschev.
A luta pela revolução mundial perdeu o seu principal ponto de
apoio, a URSS e, em consequência, a III Internacional foi destruída. O muro
de Berlim caiu sobre a cabeça dos militantes que aderiram às interpretações
campistas: as visões do mundo que interpretavam o século XX como o cenário
de uma disputa entre o campo capitalista e o campo socialista. Mas, não se
poderia perder, em 1989/91, aquilo que já tinha sido perdido sessenta anos
antes.
Os mais de quinze anos que nos distanciam da dissolução da URSS já
são, portanto, um intervalo suficiente para que, pelo menos, três
conclusões possam ser retiradas. Em primeiro lugar, a restauração
capitalista foi um processo histórico regressivo. A restauração transformou
a Rússia, um país que viveu depois da revolução de outubro um dos processos
de desenvolvimento econômico-social e cultural, comparativamente, mais
rápidos e mais complexos do século XX, em um país exportador de matérias
primas, em primeiro lugar, de petróleo e gás, com uma inserção,
incomparavelmente, mais dependente no mercado mundial, do que a posição que
mantinha antes de 1991, vulnerável a um processo de colonização econômica,
que teve como consequência um tipo de acumulação capitalista "primitiva" –
formação de grupos burgueses lumpenizados a partir das camarilhas
burocráticas mais poderosas, como a KGB e as Forças Armadas - com todas as
doenças sociais associadas.
A longa estagnação que vinha dos anos setenta deu lugar, depois da
restauração, a um retrocesso do PIB que, em poucos anos, de forma
vertiginosa, ficou reduzido, talvez, à metade; aumentou a desigualdade
social; diminuiu a expectativa de vida média da população e ocorreu um
retrocesso educacional sem paralelo no último meio século. As liberdades
democráticas conquistadas no calor das mobilizações operárias e populares
contra Gorbatchev foram usurpadas, as liberdades civis e sociais foram
corrompidas, e não surpreende que o regime político que se consolidou com
Putin - com o apoio dos EUA e da União Européia - seja um presidencialismo
bonapartista entre os mais reacionários do mundo.
A segunda conclusão é que aconteceu, entre 1989 e 1991, uma das
vagas mais poderosas de revoluções operárias e populares do século passado.
Não é difícil admitir, como é óbvio, que a restauração capitalista na URSS
e no Leste Europeu foi uma vitória do capitalismo mundial. Mas, tem sido
muito mais difícil a compreensão de que a derrota do regime de partido
único que existia na URSS de Gorbatchev foi provocada pela entrada em cena,
pela primeira vez depois da consolidação da ditadura estalinista em Moscou
no final dos anos vinte, do proletariado russo. Foi uma onda de greves
gerais e mobilizações políticas de massas imponentes que atingiu a Europa
Oriental e se estendeu até à Rússia, com uma força de impulso internacional
e dimensões continentais.
A vaga das revoluções políticas democráticas triunfou de forma
quase instântanea sobre as ditaduras burocráticas – mesmo na Romênia onde
Ceasusescu e sua fração ensaiaram uma maior resistência – confirmando,
também, neste terreno da prova decisiva da força político-social respectiva
da burocracia e das massas operárias e populares, que as castas
privilegiadas da nomenclatura não eram uma classe burguesa. As revoluções
democráticas de 1989/1991 derrubaram os regimes de partido único, mas não
foram além. Não foram revoluções sociais. Não reverteram o processo de
restauração capitalista que já tinha se iniciado. Tampouco surgiram destas
mobilizações novas organizações marxistas e revolucionárias com influência
de massas.
Mas, estas limitações não diminuem a grandeza da mobilização de
milhões de trabalhadores e jovens. Aqueles que atribuem ao imperialismo a
mobilização de massas que aconteceu em Berlim, a greve geral que produziu o
colapso do Exército em Bucareste, ou as greves operárias na Rússia, porque
elas contrariaram suas escolhas políticas, predileções ideológicas, ou
opções teóricas, aderiram a uma perspectiva conspirativa da história que é
incompatível com o marxismo. As amplas massas em movimento não estavam
agindo contra si mesmas: como em todos os processos revolucionários
aprendiam no calor dos acontecimentos a ter confiança na sua luta. As
revoluções não vêm com um manual de instruções.
As revoluções anti-burocráticas foram tão legítimas quanto todas
as grandes revoluções populares do século XX. Assim como na esmagadora
maioria dos processos revolucionários – inclusive a revolução russa de 1905
e de fevereiro de 1917 - tinham muita clareza do que queriam derrubar, mas
muito menos certezas de quem queriam colocar no poder e ao serviço de que
projeto. A quarta revolução russa – a primeira foi a de 1905, a segunda a
de fevereiro de 1917, e a terceira a de outuibro de 1917 – foi a última
revolução do século XX, e obteve uma das vitórias políticas mais decisivas:
a derrubada do regime estalinista na sua fortaleza mais poderosa, Moscou.
O muro de Berlim e a burocracia do PC da URSS não foram
deslocados por Washington, nem por Berlim, nem pelo Vaticano. Foi o
proletariado do leste europeu, em especial as massas populares russas e
seus aliados que os derrotaram, e existiu alguma justiça histórica nesse
desfecho. A restauração, no entanto, não foi obra das massas operárias e
populares que se levantaram contra as ditaduras burocráticas para arrancar
suas legítimas reivindicações sociais e democráticas, mas dos aparelhos
políticos que estavam no poder, aliás, como foi, também, a restauração
capitalista na China, embora seja muito menos polêmico.
O paradoxo de que lideranças que usavam o vocabulário marxista e
partidos que se auto-proclamavam comunistas tenham sido os agentes e
principal instrumento da restauração capitalista é menos misterioso do que
parece. Na história é menos incomum do que geralmente se pensa que os
sujeitos políticos e os Estados camuflem suas intenções com palavras de uma
desfaçatez estarrecedora. Entre 1985 e 1991, Gorbatchev e Yeltsin não
pararam de escrever artigos e fazer discursos em defesa do socialismo para
o consumo interno, um mais devoto do que o outro, enquanto negociavam com
Reagan, cada um procurando se credenciar nas alianças internacionais como o
mais capacitado para levar adiante a restauração, ao mesmo tempo que
disputavam o apoio de frações da burocracia contra o outro. O ódio à
burocracia entre as massas não se confundia com ódio ao socialismo.
É verdade que, posteriormente, o imperialismo – que,
ironicamente, apoiava a transição lenta e gradual dirigida por Gorbatchev,
"a la chinesa", para preservar a estabilidade social - conduziu uma
operação ideológica para fazer a associação ou identificação da luta por
liberdades democráticas, uma reivindicação protagonizada pelas massas com
métodos revolucionários, com a defesa da economia de mercado, um programa
que unia as mais diferentes alas da burocracia, dos tecnocratas moderados
aos gangsteres açougueiros. Foi, também, nesse marco, e como parte de um
processo muito desigual de país para país, que proliferou uma espantosa
confusão ideológica entre as massas populares.
A operação intelectual de atribuir à revolução o que foi a obra da
contra-revolução é, no entanto, uma confusão muito mais grave e, portanto,
imperdoável. A mobilização de milhões nas ruas de Berlim derrubou o regime
de opressão da Stasi, e assim foi também, na ex- Tchecoslováquia, com a
extensão da greve geral, ou na Romênia dos Ceausescu e, finalmente, na
URSS. Eram esses regimes que estavam fazendo a restauração capitalista.
A terceira conclusão é que a restauração capitalista encerrou a
etapa política aberta no fim da Segunda Guerra Mundial, mas não abriu uma
nova época de prosperidade na história do capitalismo, semelhante, por
exemplo, à segunda metade do século XIX. Abriu-se uma nova etapa política
porque mudou, radicalmente, em função da dissolução da URSS, a situação no
sistema internacional de Estados. No entanto, o período que nos separa de
1991 já é um intervalo suficiente para sustentar a conclusão de que o
capitalismo não está diante de décadas de prosperidade.
Os defensores das análises campistas insistiram em conclusões
devastadoramente pessimistas, porque acreditavam que a existência da URSS
equivalia à permanência de uma retaguarda estratégica da luta mundial pelo
socialismo. Estão, agora, inconsoláveis. Não passou a prova da história que
a existência da URSS tivesse sido um fator de impulso à revolução mundial
entre 1945 e 1989/91. Muito ao contrário, o papel da URSS foi chave,
justamente, para preservar a ordem mundial negociada em Yalta e Potsdam,
como não deixaram de perceber os analistas mais lúcidos, inclusive, entre
os mais reacionários.
O controle da tendência à radicalização das mobilizaçãoes
populares, como, por exemplo, na América Latina desde 2000, em especial nos
processos equatoriano, argentino, boliviano e venezuelano ficou,
incomparavelmente, menor. Não surpreende que mais de dez presidentes tenham
sido defenestrados em função de lutas populares que expressaram o desgaste
dos ajustes recolonizadores que se aprofundaram nos últimos quinze anos. A
inexistência de um aparelho contra-revolucionário, como foi o estalinismo
durante mais de meio século, à frente das organizações populares foi
parcialmente compensada pelo fortalecimento de outros aparelhos, que são,
todavia, mais frágeis do que eram os antigos partidos comunistas,
justamente, porque não podem se apoiar em Moscou, ou seja, em um Estado
muito poderoso.
É verdade que a credibilidade do socialismo diminuiu diante das
novas gerações que chegaram à vida adulta depois de 1989/91. Mas, a questão
mais importante para a caracterização da relação de forças na nova etapa
política mundial é a apreciação da capacidade do imperialismo para
estabilizar a sua dominação: seja no Oriente Médio, Palestina e Iraque;
seja na Ásia Central, no Paquistão e Afeganistão; seja na América Latina,
Bolívia, Equador ou Venezuela. Á luz da crise econômica mundial aberta em
2007/08 essa perspectiva é remota.

Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. Trad. Carlos
Cruz. Porto, Afrontamento, 1976. (Crítica e sociedade 10).
BROUÉ, Pierre. Histoire de l'Internationale Communiste: 1919-1943. Paris,
Fayard, 1997.
DRAPER, Hal. Karl Marx's theory of revolution: The theory of the state. New
York and London, Monthly Review Press, 1978. (vol. I).
MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Paz e Terra, 1975
TROTSKY, León. En defensa del marxismo. Buenos Aires, El Yunque, 2ª ed.,
1975.
TROTSKY, Leon. El pensamiento vivo de Marx. Buenos Aires, Losada, 1984.
TROTSKY, Leon. Programa de transição: a agonia mortal do capitalismo e as
tarefas da Quarta Internacional. São Paulo: Proposta, 1981
-----------------------
[1] Professor no IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de São Paulo), é doutor em história pela USP, e autor de As esquinas
perigosas da história, situações revolucionárias em perspectiva marxista,
São Paulo, Xamã, 2004, e O Encontro da revolução com a história, socialismo
como projeto na tradição marxista, São Paulo, Xamã/Sundermann, 2007.
[2] TROTSKY, Leon. El pensamiento vivo de Marx. Buenos Aires, Losada, 1984,
p.43.
[3] TROTSKY, Leon. Programa de transição: a agonia mortal do capitalismo e
as tarefas da Quarta Internacional. São Paulo: Proposta, 1981.
[4] SADER, Emir, A Esquerda depois do Muro, in
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=370
, consulta feita 09/11/2009.
[5] O campismo foi, na segunda metade do século XX, ao lado do gradualismo
democrático-reformista, a mais influente teoria na esquerda mundial.Os
campistas apoiavam seus argumentos com uma demonstração simples de sua
estratégia. O mundo estava dividido em dois campos, o capitalista e o
socialista. Seria uma questão de tempo para que a superioridade do
socialismo fosse arrasadora. Revoluções sociais tinham sido enterradas pela
história, porque o arsenal nuclear do imperialismo ameaçava a própria
existência da civilização. Logo, toda a tática consistia em ganhar tempo
para que a transição ao socialismo por via pacífica, respeitando as formas
democráticas das Repúblicas burguesas, fosse conquistada. A coexistência
pacífica favorecia, presumia-se, a passagem ao socialismo. A luta de
classes deveria estar subordinada aos interesses diplomáticos da URSS nas
relações com os EUA: a situação mundial se resumia a uma luta entre
Estados. Influenciou gerações, afirmando que o mundo estava dividido em
dois campos: o capitalista e o socialista, irreconciliáveis, sendo este
último, presumidamente, a retaguarda estratégica das lutas de classes
contra o imperialismo, apesar das oscilações da coexistência pacífica.
Algumas poucas vozes marxistas alertaram para as perigosas conseqüências
dos critérios campistas. A tradição associada à elaboração de Leon Trotsky
se destacou na reivindicação da centralidade do internacionalismo
socialista: o antagonismo entre capital e trabalho permanecia a contradição
ordenadora para um projeto socialista. Os internacionalistas reconheciam a
existência de inúmeras outras contradições. Admitiram que seria justo se
posicionar em defesa dos Estados pós-capitalistas contra os capitalistas,
em defesa das nações oprimidas contra as opressoras, em defesa de regimes
democráticos quando ameaçados pelo perigo de quarteladas ditatoriais, etc.
Mas, sustentaram que os antagonismos de classe continuavam sendo a
contradição fundamental do capitalismo. Um projeto anticapitalista
dependeria, estrategicamente, da reconstrução de um movimento operário
internacional. Uma análise lúcida das distintas interpretações campistas –
pró Moscou, ou pró Pequim - foi feita por Perry Anderson no seu clássico
Considerações sobre o marxismo ocidental. Lisboa, Afrontamento, 1976.
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