1997 - Atas do Simpósio sobre Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural

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Descrição do Produto

Universidade Católica de Goiás Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA

ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil Goiânia, 9 a 12 de dezembro de 1996

Solange Bezerra Caldarelli (Organizadora)

1997 APOIO: PRONAC/MinC - Lei Nacional de Incentivo à Cultura IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional UNESCO-Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura PATROCÍNIO: FURNAS Centrais Elétricas S/A PETROBRÁS-Petróleo Brasileiro S/A CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional

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ÍNDICE Pág. Apresentação - Jézus Marco de Ataídes .......................................................... Introdução - Solange Bezerra Caldarelli ........................................................ 1a. Mesa-Redonda: DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO AMBIENTAL ........................................................................... Expositores .......................................................................................................... Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Paulo J. de C. Mello ...... Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens históricos, em áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Marcos André Torres de Souza Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em áreas de implantação de dutovias - Jorge Eremites de Oliveira ............................. 2ª Mesa-Redonda: AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS AMBIENTAIS Expositores .......................................................................................................... Avaliação dos impactos de grandes empreendimentos sobre a base de recursos arqueológicos da nação: conceitos e aplicações - Solange Bezerra Caldarelli ........ Avaliação de impactos arqueológicos de empreendimentos regionais e medidas mitigadoras aplicáveis - Gilson Rodolfo Martins .................................................. Avaliação de impactos arqueológicos de empreendimentos urbanísticos e medidas mitigadoras aplicáveis - Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani ......................... 3ª Mesa-Redonda: ELABORAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS DE RESGATE E MONITORAMENTO DOS BENS PRÉ-HISTÓRICOS E HISTÓRICOS.................................................................................. Expositores .......................................................................................................... O uso de variáveis ambientais na detecção e resgate de bens pré-históricos em áreas arqueologicamente pouco conhecidas - Emília Mariko Kashimoto ................ O resgate de bens arqueológicos pré-históricos em áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Dilamar Cândida. Martins ................................................................................................. O resgate de bens arqueológicos históricos em áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Carlos Magno Guimarães ............................................................................................... Detecção e resgate de bens arqueológicos em áreas de implantação de projetos rodoviários - Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos ................................. 4ª Mesa-Redonda: RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE DIAGNOSTICÁLOS E DE AVALIAR, MITIGAR E MONITORAR SEUS IMPACTOS ................ Expositores .......................................................................................................... O patrimônio natural e o cultural: por uma visão convergente - Antonio Carlos Sant’Ana Diegues ................................................................................................ A contribuição dos estudos antropológicos na elaboração dos relatórios de impacto sobre o meio ambiente - Rinaldo Sérgio Vieira Arruda ......................................... Levantamento e diagnóstico de bens culturais intangíveis - Carlos Eduardo Caldarelli ............................................................................................................

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O resgate da cultura intangível refletida na cultura material - Heloísa S. F. Capel de Ataídes ............................................................................................................

Pág. 5ª Mesa-Redonda: GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO DAS NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E AMBIENTAL........... Expositores .......................................................................................................... As Cartas Internacionais e a Proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro - Suzanna Cruz Sampaio ...................................................................................................... As normas de proteção ao patrimônio cultural brasileiro em face da Constituição Federal e das normas ambientais - Helita Barreira Custódio ................................. Aspectos jurídico-processuais da proteção ao patrimônio cultural brasileiro Roberto Monteiro Gurgel Santos ......................................................................... Aspectos jurídicos da proteção ao patrimônio cultural arqueológico e paleontológico - José Eduardo Ramos Rodrigues ................................................. O licenciamento ambiental e a competência dos órgãos de proteção ao patrimônio cultural brasileiro - Carlos Eduardo Caldarelli ....................................................

Documento-Síntese ......................................................................................... ANEXOS: .................................................................................................................. 1. Parecer acerca da avaliação do impacto da Hidrovia Paraguai-Paraná sobre o patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul - Jorge Eremites de Oliveira ...... 2. Coletânea da legislação de proteção ao patrimônio cultural ...................................

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APRESENTAÇÃO É com grande satisfação que a Universidade Católica de Goiás, aqui representada pelo Instituto Goiano de Pré História e Antropologia, na comemoração de seus 25 anos, apresenta, de forma inédita, as mais recentes discussões acadêmicas e políticas que envolvem a preservação cultural no Brasil, incluindo bens históricos e pré-históricos. Este documento foi produzido durante o simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico Cultural”, um evento do Fórum Interdisciplinar Para o Avanço da Arqueologia e realizado, em Goiânia, pelo IGPA/UCG durante o período de 09 a 12 de dezembro de 1996. Tendo como objetivo central investigar as repercussões dos dez anos da Resolução CONAMA nº 001/86 que instituiu a Avaliação de Impactos Ambientais, o importante encontro reuniu profissionais experientes que trabalharam nos maiores e mais significativos estudos e levantamentos de Impactos Culturais e Arqueológicos em todo o país. Com o apoio do IPHAN - Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura e do CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa, além de Órgãos Estaduais e de Empreendedores, o Simpósio, estruturado em forma de mesas redondas, apresentou e discutiu problemáticas práticas, teóricas e metodológicas, além de temáticas jurídico-legais referentes à preservação dos bens culturais no Brasil. Neste processo, estiveram em pauta questões sobre diagnósticos, avaliação de impactos, programas de resgate , além de meios de monitorar e mitigar os impactos sobre bens pré-históricos e históricos. Das principais discussões apresentadas pelas mesas debatedoras e pelo plenário, foram selecionados os problemas e propostas mais relevantes para integrar um documento - síntese, encaminhado ao Ministério Público e aos órgãos ambientais decisórios da União e Unidades Federativas. Ao apresentar estas reflexões, o IGPA cumpre um dever histórico. Como uma Instituição que, em seus 25 anos, procura meios de atuar sobre o ambiente e a cultura através de Programas e Projetos Regionais, alimenta a expectativa de poder contribuir com o processo de valorização da pesquisa ambiental no Brasil, promovendo eventos dessa natureza e interferindo, ativamente, através da experiência adquirida por meio de seus Projetos Arqueológicos institucionais e de contrato, além das iniciativas pioneiras na área de Patrimônio Histórico Cultural desenvolvidas recentemente. Jézus Marco de Ataídes Diretor do IGPA/UCG

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INTRODUÇÃO A Resolução CONAMA nº 001/86 instituiu efetivamente a AIA-Avaliação de Impactos Ambientais como um dos principais instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, com profundas repercussões sobre a pesquisa e a gestão dos recursos culturais no Brasil. Decorridos dez anos de aplicação do instrumento, considerou-se oportuna, a exemplo do que ocorreu em outros países, uma reflexão crítica sobre o modo como a questão cultural vem sendo tratada, os problemas enfrentados pelos profissionais chamados a atuar em Estudos de Impacto Ambiental, as deficiências detectadas, as dificuldades enfrentadas, os sucessos alcançados e os problemas jurídico-legais decorrentes de uma legislação elaborada décadas antes de a questão ambiental ser colocada institucionalmente. O instrumento considerado mais oportuno para esta reflexão foi um simpósio, que congregasse profissionais (acadêmicos ou não) que têm sido chamados a atuar no planejamento ambiental, na área do patrimônio cultural (arqueólogos, antropólogos, historiadores e arquitetos); profissionais que atuam junto aos órgãos ambientais e aos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e advogados e membros do Ministério Público que atuam nas áreas ambiental e cult ural. O termo “Patrimônio Cultural” foi entendido, neste evento, da forma como foi definido em recente “update” do Banco Mundial: “as manifestações presentes do passado humano”, sejam estas materiais (pré-históricas e históricas) ou imateriais (modos tradicionais de vida e de expressão). O simpósio estruturou-se sob a forma de mesas-redondas, com expositores convidados a apresentar e discutir a problemática de cada mesa, a partir de suas experiências profissionais. A visão dos expositores foi sempre considerada uma visão pessoal, que podia ou não ser compartilhada pelos demais participantes do evento. A fim de relativizar essas posições e deixar claras outras opiniões, expressas no decorrer do simpósio, os debates que se seguiram ao final das exposições de cada mesaredonda foram gravados, transcritos e publicados nas presentes Atas. Para facilitar a reflexão sobre a problemática dos recursos culturais no processo de elaboração de EIAs/RIMAs, as mesas redondas foram estruturadas na mesma ordem de apresentação dos EIAs: estudos de diagnóstico, avaliação de impactos e medidas mitigadoras. No entanto, outras questões foram também aventadas, relativas à continuidade dos estudos nas demais etapas do processo de licenciamento, ou seja, nos estudos para obtenção de LI (Licença de Implantação) e de LO (Licença de Operação). Afinal, é preciso reconhecer que a Resolução CONAMA 001/86, instituindo a Avaliação de Impactos como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, e incluindo os estudos sobre os bens culturais nacionais nesta avaliação, mudou o mapa da pesquisa no país. Enquanto a pesquisa básica continua avançando em progressão aritmética, como sempre ocorreu, a pesquisa aplicada a questões de planejamento ambiental cresce em progressão geométrica e ocupa espaços geográficos ainda não atingidos pela pesquisa básica.

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É importante, portanto, que se busque o ordenamento concomitante desses estudos e que se defina critérios mínimos para sua elaboração, de modo a que o instrumento realmente permita a tomada de decisões acertadas sobre o destino a ser dado aos recursos culturais identificados no decorrer dessas pesquisas. Esse foi um dos objetivos primordiais do simpósio. Após encerrarem-se as sessões, os coordenadores das mesas-redondas e os respectivos relatores reuniram-se e redigiram um documento-síntese, com as posições consensuais tiradas dos debates ocorridos durante o encontro, do qual constam as recomendações de ordem geral, relativas ao patrimônio arqueológico, que se considerou importantes serem observadas por todas as entidades envolvidas no processo de licenciamento ambiental: IPHAN, empreendedores, órgãos ambientais estaduais e federais, empresas de consultoria e arqueólogos contratados. Exatamente por ter sido redigido e aprovado pelo plenário após amplas discussões, em que todos tiveram a oportunidade de expressar-se, considerou-se que o documento, publicado nestas Atas, representava o consenso dos diversos profissionais presentes ao encontro. Por isso, decidiu-se por sua divulgação ampla, inicialmente pela Internet, e, agora, pela sua distribuição aos órgãos decisórios sobre as questões ambientais e culturais do país, ao Ministério Público e a instituições e empresas que desenvolvem atividades arqueológicas. As ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL: REPERCUSSÕES DOS DEZ ANOS DA RESOLUÇÃO CONAMA Nº 001/86 SOBRE A PESQUISA E A GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO BRASIL vêm a público, agora, como o primeiro produto brasileiro de reflexão compartilhada sobre o trato adequado a ser dado aos recursos culturais nacionais nos estudos de impacto ambiental em elaboração no país. Solange Bezerra Caldarelli Organizadora

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1ª MESA-REDONDA:

DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO AMBIENTAL

COORDENAÇÃO: Dra. Irmhild Wüst Museu Antropológico/UFGO Vice-coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES

PAULO JOBIM DE CAMPOS MELLO Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco Participação em projetos de levantamento e resgate do patrimônio arqueológico, nos estados de Pará, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Amazonas e Distrito Federal, desde 1985 Coordenação de projetos de levantamento e resgate arqueológicos nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, desde 1994 Professor Adjunto I, do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás

MARCOS ANDRÉ TORRES DE SOUZA Graduado em arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro Professor/pesquisador do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás Desenvolveu pesquisas de contrato em arqueologia histórica nos estados de Santa Catarina e Goiás. Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

JORGE EREMITES DE OLIVEIRA Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área de Concentração: Arqueologia) Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área de Concentração: Arqueologia) Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Centro Universitário de Dourados Tem desenvolvido pesquisas arqueológicas e etno-históricas no Pantanal Matogrossense desde 1992

RENATO KIPNIS Mestre em Antropologia pela University of Michigan Doutorando em Antropologia pela University of Michigan Tem realizado trabalhos de levantamento arqueológico nos estados de São Paulo, Pará e Minas Gerais desde 1985 Membro da SAA-Society for American Archaeology e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE BENS PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EEMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS Paulo Jobim de Campos Mello A resolução CONAMA 001/86 prevê uma série de atividades a serem cumpridas para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Dentre estas atividades temos: * * *

diagnóstico da área; análise dos impactos positivos e negativos; definição de medidas mitigadoras dos impactos negativos; * por fim, elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento desses impactos

Após a aprovação desse estudo, o empreendedor consegue a Licença Prévia (LI); e tem que dar continuidade a esses estudos para a obtenção das Licenças de Implantação (LI) e Operação (LO) do empreendimento. Assim, podemos perceber que o diagnóstico é o primeiro passo de todo esse processo, e tem que ser feito de uma maneira tal que dê subsídios para a realização das demais etapas. A Resolução CONAMA define o diagnóstico como sendo a caracterização da área; é preciso saber, portanto, como a área se encontra antes da implantação do empreendimento. Em áreas bem conhecidas, que já foram detalhadamente trabalhadas, o diagnóstico pode ser feito a partir de fontes secundárias, ou seja, com um levantamento bibliográfico é possível caracterizar a área. No entanto, a realidade que encontramos é quase sempre a inversa, com os empreendimentos sendo localizados em áreas pouco conhecidas ou completamente desconhecidas; havendo, assim, a necessidade de se fazer um levantamento de campo Aqui no Brasil, os levantamentos arqueológicos geralmente ainda são realizados de uma maneira assistemática, seguindo as orientações de Evans e Meggers (1965), mentores do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), que propunham o percorrimento da área tendo os cursos d‟água como base, além do atendimento das informações prestadas pelos moradores. Uma série de críticas podem ser feitas a esse tipo de trabalho, sendo a principal o fato de não fornecer uma amostra confiável. Por não ser probabilista, e produzir desvios, não produz estimativas válidas dos riscos de erro, tornando-se praticamente impossível replicar ou avaliar, qualitativa ou quantitativamente, esses trabalhos. A localização dos sítios, nesses levantamentos assistemáticos, depende basicamente de três fatores (Alexander, 1983:177 ss.). O 1o é a natureza da prospecção, a tradicional depende pesadamente da exposição do solo para a localização da cultura material; o vestígio arqueológico tem que estar aflorando para ser encontrado pelo arqueólogo, e isso só acontece em terrenos que apresentam-se erodidos, ou em áreas que acabaram de ser aradas..

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O 2o fator é o “conhecimento comum”, assimilado pelos pesquisadores e usados como bases para a localização do sítio. Confiando na experiência pessoal e intuição, muitos arqueólogos têm desenvolvido, talvez inconscientemente, uma lista de critérios para a localização de sítios (proximidade da água, certos ecótonos, principais confluências de rios, etc). Infelizmente, esse “conhecimento comum” é geralmente usado como base para determinar a estratégia da prospecção, isto é, o arqueólogo concentra seus esforços naquelas porções de área onde espera encontrar sítios. Descobertas de sítios nesses locais previsíveis, de alta densidade, pode refletir tratamento diferencial dessas áreas, em vez de padrões de assentamento pré-históricos. Finalmente, o 3o fator é que resultados sem desvios não podem ser alcançados quando mudanças temporais são ignoradas. Usando dados etnográficos e documentação histórica é geralmente possível reconstruir o padrão de assentamento indígena do período proto-histórico. Esse conhecimento pode influenciar o pesquisador a prospectar mais intensamente áreas ocupadas durante esse período. Com o tempo, no entanto, os padrões de assentamento podem não apenas mudar dentro do mesmo ambiente, mas o próprio ambiente, refletido na topografia e vegetação, pode ser vastamente alterado. O efeito dessas mudanças na localização dos sítios deve ser cuidadosamente considerado quando for feita qualquer prospecção. São justamente esses fatores que causam o desvio na amostra. Assim, ao se pretender obter um quadro acurado dos padrões de assentamento dos grupos humanos que viveram no passado, há a necessidade de se conseguir informações de uma maneira uniforme, cobrindo igualmente os diversos estratos paisagísticos. Portanto, prospecções intensivas, a pé, geralmente são necessárias para a localização de sítios pequenos e que estejam relacionados à atividades limitadas, sendo que todas as partes da região, mesmo aquelas assumidamente estéreis, devem ser investigadas (Redman, 1974). O que se pretende, portanto, com esse levantamento sistemático, é que não se produza desvios amostrais e que se consiga, como dito acima, apreender o padrão de assentamento dos grupos pré-históricos que ali viveram. A técnica mais utilizada para esse tipo de levantamento é o chamado „transect‟, que é uma linha de caminhamento orientada. O pesquisador vai caminhar por linhas previamente traçadas por ele, de modo a cobrir as diferentes paisagens existentes, podendo proporcionar, assim, a localização de diferentes tipos de sítios, ligados a exploração diferencial dessa paisagem, Além disso, vai permitir, também, o cálculo da área prospectada - vai se saber qual a porcentagem da área foi levantada. Como para o cálculo de uma área são preciso duas medidas - comprimento e largura -, e o transect, como já dissemos, é uma linha, será preciso utilizarmos um artifício, chamado efeito margem, que está diretamente ligado ao tamanho do sítio que se quer localizar (Plog et. al., 1978). O comprimento é dado pelo próprio comprimento do transect, ou seja, a distância percorrida; já a largura não vai ser dada pelo alcance da visão (dez metros para cada lado, por exemplo), isso porque muitas vezes a visibilidade é nula, principalmente devido à vegetação que cobre os vestígios arqueológicos, impedindo a sua localização.

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Para localizar um sítio arqueológico, o transect não precisa passar exatamente pelo seu centro, basta passar por qualquer ponto dele. Assim, todas áreas prospectadas sistematicamente vão sempre ter uma margem que é hipoteticamente prospectada, cujo tamanho é igual ao raio do menor sítio que se pretende achar, pois basta que o centro do sítio esteja dentro dessa margem que ele será cortado pelo transect e, assim, localizado. Portanto, apesar do transect ser uma linha, o sítio não é um ponto, e a largura da área prospectada vai ser dada pelo seu raio. Os trabalhos de prospecção sofrem a influência de dois outros fatores: intensidade e sensibilidade. A intensidade é o grau de detalhe com o qual a superfície de uma determinada área é prospectada (Plog et al., 1978), que pode ser medido pelo espaçamento que é mantido pelos indivíduos durante a prospecção, ou seja, no caso é dada pelo espaçamento dos transects - quanto menor o espaçamento, maior a possibilidade de encontrar sítios, principalmente sítios pequenos. O grau de intensidade irá variar de acordo com os objetivos do trabalho. A sensibilidade, que é a probabilidade de evidenciar um sítio arqueológico, é um outro fator, estreitamente ligado à intensidade. Para Cowgill (1990), a sensibilidade é afetada por cinco (5) fatores: 1) a natureza da ocorrência arqueológica; 2) a natureza do terreno (vegetação fechada, topografia íngreme, erosão, etc); 3) a proximidade do prospectador com a ocorrência (passar por cima ou somente próximo a ela); 4) a extensão com que o observador é sensibilizado (no sentido psicológico) com um certo tipo de ocorrência; 5) a extensão com que técnicas especiais são usadas para detectar ocorrências subsuperficiais. A relação é bem clara: quanto maior a intensidade, maior a sensibilidade. Mostraremos três exemplos da utilização desse tipo de levantamento sistemático em áreas afetadas por empreendimentos hidrelétricos. Em todos esses trabalhos foram utilizados, também, o levantamento assistemático que, apesar de não fornecer uma amostra confiável das ocorrências arqueológicas, conforme exposto acima, pode ser utilizado para um „reconhecimento informal‟ da área em estudo. Em geral, os transects foram percorridos por uma equipe de quatro pessoas, sendo dois pesquisadores e dois trabalhadores braçais, divididos em duas duplas: um pesquisador, com a ajuda de uma bússola, indicando o caminho a ser seguido, enquanto um trabalhador braçal abria a picada; outro pesquisador indicando o local onde haveria intervenção no solo1, com o segundo braçal realizando essa tarefa (ver fotos 1 - 4). - Projeto de Salvamento Arqueológico das UHEs Babaquara e Kararao (PA)

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As intervenções no solo, feitas a distâncias regulares, eram de dois tipos: limpeza e tradagem. A limpeza consistia na retirada, com uma enxada, da cobertura vegetal de uma área de aproximadamente 1 metro de diâmetro, e na escavação dessa área até alcançar 20 centímetros de profundidade. Já nas tradagens, cujo o objetivo era encontrar vestígios que estivessem enterrados a uma profundidade maior, eram feitos, com uma cavadeira (boca de lobo), buracos de 30 cm de diâmetro que chegavam a 1 metro de profundidade.

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Projeto desenvolvido pela Eletronorte, em convênio com o Museu Paraense Emílio Goeldi. Iniciado em julho de 1986, durou até julho de 1988, quando ocorreu a paralisação da obra. Sua barragem formaria um enorme lago (área de aproximadamente 7.500 Km2) no médio rio Xingu. Foi o primeiro trabalho no país, em áreas afetadas por empreendimentos hidrelétricos, onde se realizou levantamento sistemático. A proposta era espalhar unidades amostrais (círculos com raio de 5 Km) que abrangessem as diferentes paisagens existentes, além de permitir a prospecções em áreas distantes dos rios. Enquanto que nas margens do rio principal era realizado um levantamento assistemático, o sistemático era feito através de dois transects de 5 Km de comprimento, perpendiculares ao rio. Apesar de a intensidade de prospecção ser muito baixa, esse levantamento sistemático foi eficiente, pois permitiu a localização de sítios distantes das margens do rio (ver fig. 1). - Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Costa Rica (MS) Projeto desenvolvido pela Enersul, em convênio com a Universidade Católica de Goiás. A região a ser afetada pela Usina Hidrelétrica de Costa Rica consiste em uma área que não atinge 0,5 Km2 (aí incluído a área a ser utilizada para a construção do acampamento e escritório), no rio Sucuriú, município de Costa Rica, noroeste do Estado do Mato Grosso do Sul. O levantamento assistemático foi realizada tanto através da observação de terrenos limpos (roças, barrancos de rios, etc), como de entrevista dos moradores locais em busca de possíveis informações sobre vestígios arqueológicos (a bibliografia não indicava nenhum trabalho realizado nas imediações). Foram entrevistados cinco moradores que, apesar de viverem há bastante tempo na região, residem há pouco no local. Nenhum deles forneceu informação sobre sítio arqueológico. A observação dos terrenos limpos também se mostrou infrutífera. O levantamento sistemático baseou-se no caminhamento de „transects‟ traçados de uma maneira onde procurou-se não deixar uma distância superior a 50 metros entre um e outro, sendo que a cada 25 metros, aproximadamente, era feita uma intervenção no terreno. Assim, por esse método sistemático, foram percorridos 8100 metros (3900 na margem esquerda, 4200 na direita), sendo realizadas 336 limpezas (136 na esquerda e 200 na direita) e 35 tradagens (13 na esquerda e 22 na direita). Desses, apenas um local (na margem direita, onde será implantado o acampamento) apresentou material arqueológico (4 fragmentos cerâmicos, filiados a Tradição Una). Podemos perceber que toda a área foi coberta (ver fig. 2), porém isso não implica em que todos os sítios arqueológicos foram encontrados, pois, de acordo com Kowalewski & Fish (1990), é impossível, em arqueologia, cobrir 100% de uma área, descobrir todos os sítios lá existentes, e verificar essa afirmação. Kintigh (1990) também concorda com isso ao afirmar que todos os arqueólogos estão cientes de que,

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ao prospectarem, perdem alguns locais que mostram evidências do comportamento humano a algum nível de detalhe. Isso se deve ao grau de intensidade e aos problemas de sensibilidade, conforme discutidos mais acima. - Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Corumbá (GO) Projeto desenvolvido por FURNAS Centrais Elétricas, em convênio com a Universidade Católica de Goiás. A barragem formará um lago com 65 Km2 de área, abrangendo parte dos municípios de Caldas Novas, Pires do Rio, Corumbaíba e Ipameri, todos no Estado de Goiás. O levantamento assistemático foi feito através da entrevista de mais de 90 moradores da região (a maior parte feita pelos integrantes da equipe responsável pelo Patrimônio Histórico), além do levantamento bibliográfico (inclusive o RIMA), que resultaram na localização de apenas quatro sítios na área diretamente afetada. Quanto ao sistemático, em um total de 70 dias de campo, foram percorridos cerca de 225.840 m, sendo realizas intervenções no solo a cada 30 metros, em um total de 7526, sendo 6505 limpezas e 1021 tradagens (a maioria dessas tradagens não alcançou 1 m de profundidade, em conseqüência do solo apresentar muito cascalho) (ver fig. 3). Como resultado, foram encontrados sete sítios arqueológicos. Quanto aos estratos paisagísticos, podemos ver que todos foram amostrados, conforme os gráficos abaixo . Quanto à declividade do terreno, temos: % das categorias de declividade percorridas sistematicamente categoria 1 34,83% categoria2 29,05% categoria 3 - 11% categoria 4 13,53% fora da AD A 11,59%

Gráfico 1

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declividade % da área X % percorrida

% da AD A % percorrida em relação à AD A % percorrida em relação à categoria de declividade

60 50 40 30 20 10 0

categoria 1categoria 2categoria 3categoria 4

fora da AD A

Gráfico 2

Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, nas quatro categorias de declividade.

categoria 1 - 67% categoria 2 - 22% categoria 3 - 11% categoria 4 - 0%

Gráfico 3

Quanto às classes de solos, temos:

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% de classes de solos percorridas sistematicamente CE1 6,51

CE2

5,4

31,13

CV1 14,96

CV2 CV3 R L1

7,44

R L2

10,23

6,75

AL

17,56

Gráfico 4

solos % da área X % percorrida

% da AD A % percorrida em relação à AD A % percorrida em relação à unidade de solo

100 80 60 40 20 0 CE1

CE2

CV1

CV2

CV3

R L1

R L2

AL

Gráfico 5

Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, quanto às unidades de solo:

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CE2 CV3 22%

CV2 CV3 CE2 11%

CV2 67%

Gráfico 6

Podemos perceber que só através de um levantamento sistemático e intensivo é possível encontrar os diversos tipos de sítios existentes em uma região. Além disso, esse tipo de levantamento permite um controle não só da porcentagem da área, mas também dos compartimentos paisagísticos, que foram amostrados. Para finalizar, gostaríamos de lembrar que o diagnóstico não termina com a localização dos sítios. Como dissemos no início, é preciso que ele forneça subsídios para a elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos a serem causados pelo empreendimento. Assim, algumas informações sobre o sítio - como estado de conservação, espessura e profundidade do depósito e tamanho do sítio - são fundamentais, e necessárias de se conhecer ainda nesta fase do trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDER, D. (1983) “The limitation of traditional surveiyng techiniques in a forests environment”. Boston. Journal Field Archaeology, 10, pp.177-186. CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (1988) Resoluções do CONAMA; 1984/86. 2a edição. Brasília, SEMA. COWGILL, G.L. (1990) “Toward refining concepts of full-coverage survey”. In: S.K. Fish & S.A. Kowalesky (ed) The archaeology of regions. A case for fullcoverage survey. Washington D.C., Smithsonian Institution Press, pp.237-242. EVANS, C. & MEGGERS, B.J. (1965) Guia para prospecção arqueológica no Brasil. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi. KINTIGH, K.W. (1990) “Comments on the case for full-coverage survey”. In: S.K. Fish & S.A. Kowalesky (ed), The archaeology of regions. A case for fullcoverage survey. Washington D.C., Smithsonian Institution Press, pp.237-242. KOWALESKY, S.A. & FISH, S.K. (1990) “Conclusions” In: S.K. Fish & S.A. Kowalesky (ed), The archaeology of regions. A case for full-coverage survey. Washington D.C., Smithsonian Institution Press, pp.261-276.

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PLOG, S.; PLOG, F. & WAIT, W. (1978) “Decision making in moderns surveys”. Advances in Archaeological Method and Theory. New York, Academic Press, vol. 1. REDMAN, C.L. (1974) Archaeological sampling atrategies. Addison-Wesley Modules in Anthropology, (55).

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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE BENS HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS

Marcos André Torres de Souza INTRODUÇÃO O presente texto pretende encaminhar algumas questões de interesse e que se incluem no tema proposto. Encontra-se dividido em duas partes: inicialmente, são examinadas algumas premissas fundamentais ao bom encaminhamento dos trabalhos de levantamento arqueológico histórico em contexto de hidrelétricas e, em seguida, são expostas algumas considerações metodológicas acerca dos tipos de levantamento que podem ser realizados. Durante a discussão, serão apresentados exemplos baseados em observações feitas no decorrer do Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio HistóricoCultural da Área Diretamente Afetada pela UHE-Corumbá, desenvolvido pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás, coordenado pelo prof. Jézus Marco de Ataídes e financiado por FURNAS - Centrais Elétricas S.A.. Este projeto foi desenvolvido entre março de 1994 e março de 1996 em quatro municípios do estado de Goiás: Caldas Novas, Ipameri, Pires do Rio e Corumbaíba (Marco de Ataídes, 1996). REGIÃO E SÍTIO Em primeiro lugar, o que distingue uma pesquisa de resgate em hidrelétrica das demais é que, neste caso, há uma grande extensão de superfície a ser pesquisada, ao contrário dos projetos ditos lineares. Aqui, situa-se um primeiro aspecto crítico dos projetos de resgate em contexto de hidrelétricas: a noção de região. Do ponto de vista do empreendimento, a região terá sempre características bem específicas: as áreas ribeirinhas e baixas de uma dada bacia hidrográfica, condições incompatíveis com uma concepção satisfatória de região. Quando falamos de uma região do ponto de vista do empreendimento, estamos falando de uma área direta ou indiretamente afetada e que dificilmente corresponderia à noção de região para uma pesquisa, sobretudo se o caso em apreço é o de uma área de interesse arqueológico, seja ele histórico ou pré-histórico. Ocorre, contudo, que isto não passa de um falso conflito, ou ao menos é isto o que foi experienciado no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Os empreendedores pareceram compreender satisfatoriamente que não há meios de se realizar levantamentos e análises sobre o patrimônio histórico que se restrinjam aos limites estritos do empreendimento. Tem se mostrado essencial que nós, pesquisadores, possamos trabalhar dentro de outra concepção de região, o que esperamos, possa vir a ocorrer generalizadamente. O ponto crítico, portanto, não está entre o pesquisador e o empreendedor, mas no âmbito de cada projeto. Para fins de levantamento, devemos considerar que cada sítio arqueológico histórico possui na maior parte das vezes uma relação racional

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e contextual com os demais e que, em casos de hidrelétricas, também devem ser considerados conjuntamente. Sob esta perspectiva, a região é uma unidade analítica extremamente apropriada e sobre a qual seria útil que nos debruçássemos. Um segundo aspecto crítico para a realização de levantamentos em hidrelétricas, diz respeito à noção de sítio arqueológico histórico. Há algumas décadas, um sítio arqueológico histórico se associava quase sempre à idéia de monumento ou antiguidade. Estes sítios necessitavam de alguma notabilidade, mas felizmente isto está acabando. Uma vez que, ao realizarmos levantamentos no contexto de uma hidrelétrica, procuramos interpretar o passado histórico de uma região ameaçada, importa explicarmos como ocupações de diferentes naturezas - algumas menos notáveis do que outras - se processaram naquele espaço físico que estamos estudando, ainda que cada projeto escolha uma ou outra avenida de análise. Outro ponto é que, quando falamos de sítios arqueológicos históricos, obviamente não podemos atribuir importância histórica a cada vestígio de ocupação humana. Descartada a noção de monumento como critério exclusivo, passamos à noção de significância, um termo oriundo dos Estados Unidos e que permite sofisticar tremendamente a questão da eleição de sítios arqueológicos históricos. Dentro desta noção, entre os diferentes critérios que podem ser usados, há o denominado potencial de informação (ver U.S. Department of the Interior, 1990, 1991a, 1991b), que se mostra bastante adequado ao empreendimento em hidrelétricas. Através dele, podemos transformar vestígios materiais em conhecimento científico. Utilizar este critério significa: Contribuir para a compreensão da história de uma região através de procedimentos explicitamente formalizados, e; Eleger os sítios arqueológicos históricos através de uma avaliação cuidadosa e com critérios bem definidos. Para complementar o que foi até aqui exposto, passamos a um exemplo do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, cujos dados já foram apresentados em outro artigo, quando foram examinados sob um ponto de vista distinto (Torres de Souza, no prelo). Na primeira fase deste projeto, foi realizado o levantamento dos testemunhos de ocupação humana histórica na área de estudo, tendo-se identificado, entre outras categorias, o que foi denominado de estruturas de fazenda, compreendendo três tipos de evidências associadas: sedes de fazenda, casas de agregado e ranchos.

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Figura 1- Sede da Fazenda Santo Antônio das lajes de Argeniro Ferreira; Município de Ipameri, Goiás. No primeiro grupo - as sedes de fazenda (Figura 1), foram identificadas enquanto construções de caráter duradouro, utilizando como material construtivo preferencialmente o tijolo comum, o adobe e cobertura de telhas; para este caso, empregavam-se técnicas construtivas mais sofisticadas. Sua implantação é bastante característica, situando-se preferencialmente em áreas elevadas na propriedade, entre dois cursos d‟água e em solos cascalhosos e inférteis.

Figura 2- Casa de Agregado na Fazenda Santo Antônio das Lajes de Aziria Menezes; Município de Caldas Novas, Goiás. Nas casas de agregado (Figura 2), observou-se um tipo de construção de caráter menos duradouro, com o tijolo comum apenas eventualmente utilizado, predominando o adobe, muitas vezes com adição da madeira ou palha. Ainda que a telha fosse também a cobertura preferencialmente usada, as soluções arquitetônicas eram bem mais simplificadas que nas sedes de fazenda. A implantação deste grupo 20

era totalmente distinta das sedes de fazenda, situando-se predominantemente em áreas baixas, à distância média de 100 m dos pequenos córregos, sendo que na metade dos casos, situavam-se no entroncamento de dois cursos d‟água, alocando-se em solos argilosos e férteis.

Figura 3- Rancho na Fazenda Santo Antônio das Lajes de Aziria Menezes; Município de Caldas Novas, Goiás. O último grupo, os ranchos (Figura 3), eram abrigos transitórios, construídos por paus fincados ou esteios sem vedação e com cobertura de palha, com técnicas construtivas extremamente simples. Situavam-se predominantemente em locais de difícil acesso em uma propriedade, como as cabeceiras dos córregos ou às margens dos rios de maior porte. No exemplo acima, observam-se alguns aspectos que são essenciais dentro do que foi até aqui exposto. Em primeiro lugar, o que se percebe nesta classificação de evidências é um arranjo espacial óbvio, baseado em uma lógica explícita. Em uma monografia sobre as construções rurais do fim do séc. XIX, Gonçalves assinala o seguinte sobre as sedes de fazenda (1886:48): “A habitação do administrador ou do proprietário deve ser collocada de tal modo que um ou outro possa d’ahi fiscalisar tudo o que se passar no recinto do pateo e, quando possível, em todos os edifícios da exploração” Sobre as casas dos trabalhadores, assinala (1886:49): “ Os operarios ou trabalhadores ruraes são ordinariamente alojados em edifícios terreos ou em parte daquelles em que têm de ser executados os trabalhos que lhe são confiados” Do mesmo modo como cita o autor, observamos que na área estudada, as sedes de fazenda se associavam claramente ao domínio e controle da propriedade, dados respectivamente pela sua implantação em áreas elevadas e fiscalização pelo campo visual, ao mesmo tempo em que segmentava dois tipos de atividade: a

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pecuária, uma vez que o gado era recolhido aos currais, localizados junto à fachada (Figura 1) e considerados a verdadeira riqueza do fazendeiro; e a roça, destinada meramente à subsistência e que foi apartada deste espaço pelo tipo impróprio de solo. As casas de agregado, por sua vez, situavam-se em posição subalterna, colocadas nas partes inferiores do terreno e em solos férteis, ligando o trabalhador agregado à roça, que era depreciada quando comparada à criação de gado, embora se mostrasse essencial ao abastecimento da propriedade. Os ranchos, finalmente, associavam-se na maior parte das vezes às invernadas, situando-se em posições úteis ao trabalhador rural na otimização do espaço, permitindo sua exploração onde não havia lugar para estabelecerem-se moradas e possibilitando com isso a caça, pesca e cultivo em locais diversificados. As técnicas e materiais construtivos, vistos através de oposições como: simples x complexo, impermanente x permanente, de modo similar à lógica de arranjo e organização do espaço, revelam estratégias de negociação social. Nestas propriedades, o espaço foi sempre negociado, estando aí em ação: poder, status e papéis sociais. Esta ordem começou a vigorar na região na virada do séc XIX para o séc. XX identificada com o ideário coronelista, marcante em Goiás na primeira metade do séc. XX. A partir da segunda metade desse século, esta ordem entrou em colapso, devido às leis de uso da terra e ao êxodo rural. Atualmente, a região apresenta outra feição, não se encontrando mais em toda a área estudada a figura do agregado, estando todas as suas edificações abandonadas; as sedes de fazenda foram também abandonadas pelo grande proprietário, sendo ocupada por um encarregado ou peão. Apesar de nos defrontarmos com uma faixa cronológica estreita - pouco mais de cem anos - lidamos com uma manifestação cultural extinta que, como tal, exige do pesquisador estratégias eficazes para sua recuperação. Neste exemplo, fica claro que não estamos só diante de evidências de que o espaço estava sendo ocupado racionalmente, mas que também estamos operando com dados que usamos durante todo o tempo para explicar complexas relações sociais, finalidade última de nossas pesquisas. A metodologia seria tendenciosa se uma ou outra localidade deixasse de ser levantada, o que viria mascarar a presença de substantivas categorias de evidências que, na maior parte das vezes, apresentam uma relação contextual e indissociável. Se refletirmos ainda sobre estes sítios em termos de potencial de informação, jamais seremos excludentes em relação às evidências mais discretas ou aparentemente desprezíveis, caso das habitações de agregado e ranchos, uma vez que do ponto de vista interpretativo qualquer análise ficaria comprometida. OPORTUNÍSTICO X SISTEMÁTICO Considerando o que foi até aqui exposto, passamos a algumas considerações metodológicas, cujo ponto central está na melhor maneira de realizarmos levantamentos com fins de diagnóstico envolvendo o patrimônio histórico em áreas de hidrelétricas. Defende-se aqui a idéia de que a melhor estratégia que pode ser empregada é a combinação entre os métodos oportunístico e sistemático.

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Não cabe no momento aprofundarmos a discussão sobre as alternativas analíticas possíveis para o segundo método, mesmo porque isto foi apresentado em um artigo já citado (Torres de Souza, no prelo), quando foram avaliadas sob a perspectiva do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, além de uma ampla revisão bibliográfica sobre a questão dos levantamentos arqueológicos, com foco na arqueologia histórica. Cumpre apenas ressaltar que, embora no Brasil estas alternativas ainda estejam sendo acanhadamente exploradas, é de extrema utilidade que elas sejam conhecidas e utilizadas. Nós nos restringimos, portanto, a apresentar algumas das vantagens que acreditamos existir na combinação dos levantamentos oportunístico e sistemático, a saber: Por esta combinação, podemos ter uma visão regional pelo método oportunístico, uma vez que ele apresenta custo menor e nos permite sair da área de influência direta do empreendimento, possibilitando a investigação de localidades com características distintas de relevo e geografia e áreas de influência cultural, como os centros urbanos; Ao mesmo tempo em que o contexto regional pode ser acessado pelo método oportunístico, o método sistemático permite produzir melhores mensurações e estimativas das evidências, uma função essencial aos projetos que envolvem levantamentos arqueológicos, uma vez que sítios de diferentes tipos, dimensões e visibilidade podem ser acessados; A relação custo x benefício pode ser maximizada pela combinação do método oportunístico a esquemas de amostragem do sistemático, produzindo resultados mais confiáveis, por custos menores. Esta combinação nos permite a aplicação do critério potencial de informação, oferecendo aos pesquisadores um eficiente instrumental para avaliação de impactos; Na tentativa de reforçar a importância da modalidade de levantamento sistemático em projetos que envolvem o patrimônio histórico, passamos a mais alguns exemplos do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico que dizem respeito à questão dos processos de formação de sítios.

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Figura 4- Local de antigo assentamento; município de Ipameri, Goiás. Uma primeira e poderosa argumentação a seu favor, se associa à questão da visibilidade das evidências. A Figura 4 apresenta um assentamento abandonado há cerca de trinta anos que, como tantos outros identificados neste projeto, tem como evidência de superfície apenas uma mangueira, sempre presente nos quintais das habitações rurais da região. A rápida degradação de materiais construtivos impermanentes, aliada à prática de “arrancar” uma casa - usando uma denominação local, dá a essas evidências uma baixíssima visibilidade. Tais assentamentos também acabam muitas vezes sendo esquecidos pelos moradores locais, que tendem a considerar como representativo apenas as edificações de caráter permanente.

Figura 5- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, agosto de 1994; município de Caldas Novas, Goiás. A título de complementação, a Figura 5 apresenta uma sede de fazenda abandonada há cerca de vinte anos que, dada sua maior perenidade, conservava ainda muito da sua feição original; observa-se em primeiro plano seu cercamento com o ponto de acesso ao edifício ainda visível. Se esta edificação, contudo, foi “arrancada” (Figura 6), permanecerão apenas algumas telhas postas de lado, que logo serão removidas (à esquerda na foto); a cerca ainda visível com sua abertura e os esteios da edificação (ao fundo); tanto a cerca quanto os esteios, em breve serão queimados por incêndios, extremamente comuns no ambiente de cerrado. Num curto intervalo de tempo poucas estruturas de superfície ficarão como remanescentes, tais como fogões ou baldrames de pedras, que quase sempre acabam encobertos pela vegetação.

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Figura 6- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, setembro de 1996; município de Caldas Novas, Goiás. No que se refere aos depósitos arqueológicos subsuperficiais, muitas vezes estes são extremamente reduzidos, ficando, à exemplo dos edifícios, quase imperceptíveis ao pesquisador que realiza o levantamento de campo, caso de um dos sítios escavados no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, que apresentou material apenas em um estreito lençol de 140 m², para a média de 7 fragmentos por m² (Torres de Souza, 1996). Através destes exemplos, fica bastante claro que a tarefa de levantar sítios arqueológicos históricos não é simples. No Projeto UHE-Corumbá, nos deparamos com uma ocupação de pouco mais de cem anos e pudemos contar amplamente com os dados do levantamento oportunístico. Em outros projetos onde a ocupação histórica é bem mais remota, podemos contar apenas com nossas habilidades e, neste contexto, acreditamos que a realização de levantamentos sistemáticos é imprescindível, sobretudo se a história ocupacional com a qual nos defrontamos é desconhecida. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar, apresentamos duas reivindicações. A primeira delas, e que parece ser um apelo geral dos pesquisadores, é que os levantamentos sejam realizados, em cada empreendimento, o mais cedo possível. Isto significa melhor planejamento e resultados, tanto para o empreendedor como para o pesquisador. Tais levantamentos precisam ser realizados muito antes da execução dos programas, o que oferece melhores condições para a avaliação de impactos. A segunda reivindicação, dirigimos aos colegas arqueólogos, no sentido de sempre que possível, possamos refletir sobre a qualidade do que temos produzido, ainda que isto muitas vezes envolva insucessos. A arqueologia de resgate ou de salvamento tem sido um excelente meio de ingresso ao mercado para os mais jovens e, simultaneamente, alvo das mais arrebatadas críticas (ver Bezerra de Menezes 1988, 1996). Para que a reflexão não se ausente da esfera de cada projeto, será útil que no seu âmbito, a questão da formação de pesquisadores e produção científica sejam cuidadosamente pensadas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BEZERRA DE MENEZES, ULPIANO TOLEDO 1988 Arqueologia de Salvamento no Brasil: Uma Avaliação Crítica. Texto Apresentado no Simpósio S.O.S. Preservação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro. 1996 A Pesquisa Fora da Universidade: Patrimônio Cultural, Arqueologia e Museus. In Humanidades, Pesquisa, Universidade, István Jancsó (org.). Seminários de Pesquisa: 91-103. Comissão de Pesquisa FFLCH/USP, São Paulo. GONÇALVES, JOAQUIM FRANCISCO 1886 These Apresentada á Imperial Escola Agrícola da Bahia. Typografia dos Dois Mundos, Bahia. MARCO DE ATAÍDES, JÉZUS (coord.) 1996 Patrimônio Histórico-Cultural. UHE-Corumbá-GO. Relatório Final preparado pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Vice-Reitoria de PósGraduação e Pesquisa, Universidade Católica de Goiás. Submetido a FURNAS - Centrais Elétricas S.A., Goiânia. TORRES DE SOUZA, MARCOS ANDRÉ 1996 O Sítio do Quincão. Exemplo de Um Estudo Interdisciplinar no Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da ADA pela UHECorumbá, Goiás. Coleção Arqueologia 1(2): 573-580. Arno Alvarez Kern, organizador. EDIPUCRS, Porto Alegre. No prelo Levantamento Arqueológico em Projetos de Larga Escala. A Experiência do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Revista de Divulgação Científica 2. IGPA-UCG, Goiânia. U.S. DEPARTMENT OF THE INTERIOR 1990 How to Apply the National Register Criteria for Evaluation. National Register Bulletin 15. 1991a How to Complete the National Register Registration Form. National Register Bulletin 16A. 1991b Researching a Historic Property. National Register Bulletin 39.

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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE BENS PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE DUTOVIAS 2 Jorge Eremites de Oliveira INTRODUÇÃO Ao promover o simpósio Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural: repercussões dos dez anos da Resolução CONAMA Nº 001/86 sobre a pesquisa e a gestão dos recursos culturais do Brasil, o Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia também viabilizou o debate teórico-metodológico sobre as experiências no campo da consultoria técnica em arqueologia para fins de implementação de Estudos de Impacto Ambiental, salvamento e gestão de bens culturais, assim como a discussão acerca da legislação brasileira de proteção ao patrimônio cultural da nação. Sem dúvida alguma, trata-se de um evento de suma importância no atual contexto da arqueologia brasileira, pois a chamada arqueologia de contrato é uma das áreas de atuação profissional que mais crescem para arqueólogos do país. Nesta perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo maior expor as experiências e apresentar os resultados das pesquisas concluídas durante o período de outubro a dezembro de 1993, em parceria com o arqueólogo José Luis dos Santos Peixoto (ver Oliveira & Peixoto, 1993). Destinou-se a implementar os Estudos de Impacto Ambiental sobre o traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil no Estado de Mato Grosso do Sul, conforme as exigências da legislação brasileira de proteção ao patrimônio cultural, através da atuação decisiva do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 14ª Coordenação Regional e 11ª Sub-Regional II. É necessário explicar que o Gasoduto Bolívia-Brasil, empreendimento ainda não concluído, destina-se ao transporte de gás natural proveniente da Bolívia até os Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, totalizando cerca de 3.000 km de extensão. No Mato Grosso do Sul sua extensão será de 702 km, em sua maior parte próxima à linha da rodovia BR 262, que liga o município de Corumbá ao de Três Lagoas. Será construído com dutos de aço carbono de 28” de diâmetro que serão enterrados numa vala de, no mínimo, 1 x 1,5 m. Terá uma faixa de 20 m de largura onde serão desenvolvidos os serviços necessários à sua construção e, posteriormente, à sua manutenção. Seu monitoramento será feito 24 horas por dia através de satélite (Informativo do Gasoduto Bolívia-Brasil, 1993). O trabalho foi financiado pela empresa Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobrás). Anteriormente a ele, havia sido elaborado, por outro profissional, um diagnóstico arqueológico para o Estado, embora sua avaliação não condissesse com a realidade regional, uma vez que trabalhos de campo não foram realizados. Por este motivo, a realização do trabalho ora apresentado justificou-se, dentre outras razões, pela constatação de que na época muito pouco se conhecia sobre a arqueologia sulmatogrossense se bem que, os poucos trabalhos existentes, particularmente para a região do Pantanal, acrescidos da bibliografia histórica e etnológica regionais, indicassem uma grande potencialidade de Mato Grosso do Sul quanto à ocorrência de 2

Este artigo apresenta várias modificações em relação ao texto publicado por Oliveira & Peixoto (1996), muitas das quais em função das discussões que ocorreram durante o Simpósio.

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sítios arqueológicos, destacadamente de culturas indígenas pretéritas, por toda a extensão da dutovia. Em função dessa realidade, eram maiores os riscos de destruição do patrimônio arqueológico do Estado durante a execução do empreendimento, uma vez que esse patrimônio era, em grande parte, desconhecido e não poderia ser acusado previamente sem o necessário levantamento realizado através de trabalhos de campo. Nesta perspectiva, foi elaborado um projeto de pesquisa com os seguintes objetivos: 1º) localizar, identificar e registrar os sítios arqueológicos constatados in loco ao longo do traçado do gasoduto ou em áreas próximas a ele; 2º) avaliar o estado de conservação dos sítios; 3º) determinar as áreas que demandam maior ou menor atenção devido ao impacto da dutovia nas mesmas; e 4º) estabelecer prioridades e estratégias, propor medidas mitigadoras e/ou compensatórias, para que sejam tomadas as providências necessárias para a preservação e/ou salvamento do patrimônio arqueológico. A área de estudo compreende o trecho do traçado desde o km Zero do gasoduto, no município de Corumbá, fronteira do Brasil com a Bolívia, até o km 350, no município de Terenos, abrangendo grosso modo dois ambientes distintos: o Pantanal (km Zero-260) e o Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350). Segundo o Gasoduto Bolívia-Brasil: Estudos de Impacto Ambiental EIA (1993), a área do Pantanal abrange três macro-unidades ambientais: “Pantanal” (km Zero-210), “Morraria de Urucum” (km 10-50) e “Depressão do Alto Paraguai” (km 130-180 e km 210-260). A área do Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350), por sua vez, corresponde a ¾ da macro-unidade ambiental homônima (km 260-380)3. O trecho que compreende desde o km 301 ao km 702 foi estudado pelo arqueólogo Gilson Rodolfo Martins e sua equipe. De momento, espera-se que as experiências e os resultados aqui apresentados, somados a outros trabalhos publicados nestas Atas do Simpósio, também possam contribuir para a realização de futuros trabalhos de consultoria em Arqueologia, sobremaneira nos casos em que os empreendimentos sejam semelhantes ao do Gasoduto Bolívia-Brasil. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Nos casos em que trabalhos como este são realizados, as estratégias de levantamento arqueológico devem ser compatíveis, pertinentes e adequadas aos objetivos propostos, bem como ao tempo disponível para a execução dos trabalhos. Isso porque muitas vezes profissionais (e empreendedores) são chamados um pouco tarde para aplicar metodologias mais refinadas, o que evidentemente não serve de justificativa para trabalhos de baixa qualidade. Neste caso particular, para a definição das estratégias de levantamento arqueológico foram aproveitadas basicamente as experiências adquiridas pelo Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá4, que propiciaram um 3

Essa subdivisão foi feita “com base em dados observados em imagens de satélite e em informações bibliográficas referentes à geologia, à geomorfologia, aos solos e à vegetação” (Gasoduto BolíviaBrasil: Estudos de Impacto Ambiental EIA, 1993, v. 2/4, p. 5-1). Nota-se que algumas macrounidades ambientais estão contidas, total ou parcialmente, em outras maiores. 4

Projeto de pesquisa desenvolvido nos municípios sul-matogrossenses de Corumbá e Ladário, desde 1989, através de um convênio de mútua cooperação entre a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, representada pelo Centro Universitário de Corumbá, e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos,

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indispensável conhecimento sobre os tipos de sítios arqueológicos que ocorrem na região do Pantanal Matogrossense. Contudo, também foram úteis nesta etapa dos trabalhos, experiências de outros arqueólogos, especialmente daqueles que recorreram a um levantamento probabilístico, dentre os quais Hilbert et al. (1993) através das aulas de levantamento arqueológico junto ao Mestrado em Arqueologia da PUCRS , Neves (1984) e Redman (1979). Decidiu-se primeiramente percorrer todo o traçado do gasoduto, exceto as partes do terreno em que as condições ambientais impossibilitassem o acesso e o trânsito por parte dos pesquisadores, priorizando os sítios arqueológicos evidenciados na superfície dos terrenos. Para tanto, entendeu-se por sítio arqueológico qualquer local que apresentasse evidências materiais da presença ou atividade humana pretérita (independentemente de sua classificação funcional), onde o termo pretérito não necessariamente se restrinja a tempos pré-históricos. A utilização de sondagens pedológicas, a partir de espaçamentos regulares, foi proposta, em princípio, para pontos designados na literatura arqueológica, etnológica e histórica ou através de informantes, desde que estivessem em áreas favoráveis a assentamentos humanos, não apresentassem visibilidade das evidências arqueológicas e realmente estivessem dentro da área de estudo delimitada ou em suas proximidades. No entanto, durante os trabalhos de campo não foi necessário recorrer a esta técnica. O pressuposto básico para a definição da estratégia de levantamento arqueológico foi entender o traçado do gasoduto como um transect que atravessa uma grande área, compreendida por diferentes ambientes, constituindo uma verdadeira linha de percurso a ser esquadrinhada, isto é, uma linha de caminhamento orientada. Nesta perspectiva, foi delimitada como área de pesquisa a faixa de serviço do gasoduto, incluindo, no mínimo, mais 40 m de cada lado, totalizando assim 100 m de largura. Em segmentos com considerável densidade de sítios arqueológicos foi necessário ampliar a largura da área de levantamento, delimitando uma área piloto de acordo com a realidade local, com o propósito primeiro de fornecer subsídios à orientação de possíveis desvios do traçado do gasoduto, em função da preservação do patrimônio arqueológico. Faz-se oportuno esclarecer que metodologias como esta são válidas especialmente para empreendimentos como dutovias, rodovias e ferrovias, onde se tem uma linha de caminhamento orientada, e não em áreas de empreendimentos com recortes naturais da paisagem, como é o caso de hidrelétricas. O percurso do traçado foi precedido pelo estudo detalhado das correspondentes cartas topográficas do exército (1: 100.000) e das cartas de traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil (1: 50.000). Também foi indispensável o estudo aerofotogramétrico do traçado através de imagens de satélite Landsat 5 (1: 100.000) e, em parte, de fotografias aéreas, em sua maioria datadas de 1966 (1: 60.000), bem como da bibliografia referente ao meio ambiente5. O uso desses recursos foi fundamental para a revelação dos aspectos físicos da área a ser percorrida, incluindo, em algumas ocasiões, sítios arqueológicos. Possibilitou conhecer com antecedência representada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. O autor deste artigo participou desse projeto desde o início até o ano de 1995. 5

As fotografias aéreas utilizadas foram obtidas junto ao Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá.

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características da área a ser estudada, tais como: vias de acesso, sedes de fazendas próximas à dutovia, relevo, tipo de solos, afloramentos rochosos, distância do traçado em relação ao nível das águas próximas, vegetação, diques lacustres, diques fluviais, diques marginais, terraços fluviais etc. Trata-se de uma metodologia que também utiliza variáveis ambientais para a detecção de bens arqueológicos em áreas pouco conhecidas, tendo por base a interdisciplinaridade. Mas ela somente foi possível porque os autores já dispunham de estudos anteriores sobre os ambientes a serem percorridos, especialmente para a porção do Pantanal, os quais possibilitaram, posteriormente, a conclusão de suas respectivas dissertações de mestrado (ver Oliveira, 1995 e Peixoto, 1995). Os trabalhos de campo ocorreram durante o mês de outubro de 1993, tendo sido necessário realizar cerca de 250 horas de levantamento arqueológico, numa média de, no mínimo, 12 km diários. Antes de percorrer um determinado trecho do traçado, realizavam-se novos estudos sobre o meio ambiente físico, no intuito de planejar as atividades, detectar as vias de acesso e identificar áreas onde, em nível de hipótese, são mais prováveis a ocorrência e a visualização de sítios arqueológicos préhistóricos ou históricos: áreas próximas a cursos d‟água, as que tiveram o solo revolvido para cultivo, as erodidas com voçorocas por exemplo e aquelas áreas com afloramentos rochosos. Não raras vezes foi preciso contar com um guia da região para orientar os pesquisadores sobre as vias de acesso ao trecho a ser levantado, principalmente para a região do Pantanal. Contudo, não se deve pensar que somente as áreas que hipoteticamente apresentavam maiores probabilidades de se encontrar sítios arqueológicos foram as percorridas. Como já foi dito anteriormente, mas vale a pena lembrar novamente, foi feita a opção inicial por percorrer todo o traçado da dutovia. Entretanto, quando se levantam variáveis que dizem respeito à complexidade dos sistemas sócio-culturais inerentes ao levantamento de bens arqueológicos, constata-se que raramente uma metodologia, como a utilizada, poderá detectar a totalidade dos sítios existentes numa área. Logo, a estratégia de levantamento arqueológico empregada para este trabalho não teve a pretensão de ser a exceção. A complementação dessa metodologia deu-se, essencialmente, através de uma pesquisa bibliográfica exaustiva sobre os trabalhos arqueológicos realizados anteriormente nas diversas esferas ambientais do trecho Corumbá-Terenos. Dentre os principais, merecem destaque os de Martins (1987), Passos (1975) e Schmitz (1993). Sem embargo, realizou-se ainda um estudo bibliográfico sobre a história e a etnologia das áreas a serem percorridas, fundamentalmente em obras como Corrêa Filho (1969), Loukotka (1968), Nimuendajú (1981) e Susnik (1972 e 1978). Fichas de sítios arqueológicos cadastrados junto ao IPHAN também foram utilizadas. No entanto, por mais exaustivo que fosse o levantamento bibliográfico, não seria possível a partir dele conhecer preditivamente a realidade arqueológica da região, muito menos avaliar o impacto da dutovia sobre o patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul, uma vez que se tratava de uma região ainda pouco pesquisada. Em campo, os sítios arqueológicos identificados foram plotados nas cartas de traçado com auxílio de um GPS (Sistema de Posicionamento Global), documentados fotograficamente e registrados previamente em uma ficha de registro de sítios arqueológicos elaborada para a ocasião dos trabalhos e adequada às especificidades regionais, tendo como base a proposta de Wüst, Lima & Neves (1989). Nos sítios arqueológicos também foram realizadas coletas de material de superfície, evitando maiores intervenções que pudessem comprometer a incolumidade dos estratos arqueológicos e com o propósito de viabilizar futuros estudos que 30

pudessem contribuir ao conhecimento da arqueologia regional. Os sítios localizados através de levantamento bibliográfico também foram plotados nas cartas de traçado, desde que estivessem localizados nas áreas por elas abrangidas. Em laboratório, os sítios arqueológicos foram definitivamente plotados nas respectivas cartas de traçado e descritos igualmente nas fichas de registro. Em ambos os casos receberam uma sigla específica utilizada para designá-los, obedecendo à seguinte seqüência: sigla do Estado, sigla da sub-bacia hidrográfica e ordenação numérica. Para a identificação das sub-bacias hidrográficas utilizou-se o Referencial Hidrográfico de Mato Grosso do Sul (1990). Todo o material recolhido dos sítios arqueológicos foi devidamente limpo, averiguado, catalogado e depositado nas instalações do Instituto Anchietano de Pesquisas para posteriores estudos. Vale a pena mencionar ainda que a participação de técnicos da Petrobrás em algumas atividades de campo foi importante para que, através deles, os empreendedores tomassem conhecimento dos trabalhos realizados e, principalmente, dos tipos de sítios arqueológicos encontrados, da sua importância e das avaliações a serem feitas para sua proteção. Isso porque, muitas vezes, empreendedores supõem aprioristicamente que somente grandes monumentos arqueológicos, a exemplo das pirâmides egípcias, merecem ser preservados. Por isso, em certas situações, é preciso que os pesquisadores desmistifiquem algumas idéias equivocadas que se têm a respeito da arqueologia, muitas das quais veiculadas pela mídia. RESULTADOS DOS TRABALHOS DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO Constataram-se in loco 41 aterros com vestígios de ocupação cerâmica, em sua maioria conservados e situados na planície de inundação do Pantanal. São facilmente visualizados pela densa cobertura vegetal que os destaca nos campos, justificando as denominações regionais de capões-de-mato e cordilheiras6, sendo igualmente localizados através da aerofotogrametria. Atualmente é possível afirmar que a tecnologia cerâmica das populações indígenas que ocuparam esses aterros pertencem a uma nova tradição denominada Pantanal. Em Oliveira (1996) há maiores informações sobre a ocupação indígena da planície de inundação do Pantanal, inclusive a respeito dos aterros. O material coletado da superfície desses sítios geralmente são fragmentos de vasilhas cerâmicas, restos de alimentação basicamente ossos de répteis e mamíferos, vértebras de peixes e conchas de moluscos e ossos humanos. Raramente encontrou-se material lítico lascado ou polido, pontas de flecha ósseas e contas de colar feitas de conchas de moluscos. Foram observadas três áreas onde ocorrem aterros: a primeira (km 10-35) compreende a área de influência da Lagoa do Jacadigo; a segunda (km 50-55) corresponde ao rio Verde e adjacências; e a terceira (km 75-130) está inclusa na fazenda Bodoquena, localizada nas sub-regiões de Nabileque e Miranda, que possui 203.828 ha de terras utilizadas para atividade de pecuária extensiva de corte. 6

Cordilheiras são elevações do terreno que separam lagoas, em sua maioria, temporárias. São formações areno-argilosas com 1 a 2 m de altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as destaca na paisagem como verdadeiras ilhas de vegetação, podendo ser comumente alongadas. Capõesde-mato, por sua vez, são semelhantes às cordilheiras, distinguindo-se dessas basicamente pelo fato de apresentarem formas circulares e subcirculares, muitas vezes de tamanho menor e não necessariamente separando lagoas.

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No segmento correspondente ao Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) foram identificados dois sítios arqueológicos, sendo um abrigosob-rocha e um sítio lítico a céu aberto. O primeiro, sítio MS-MA-37 (UTM 7740000640500), encontra-se conservado e localiza-se na Serra do Paxixi, município de Aquidauana, na localidade da Fundação Centro Educacional Rural de Aquidauana (CERA), onde ocorrem isoladas figuras rupestres em branco e isolados petroglifos, ambos com motivos zoomorfos. Encontra-se a 8,7 km de distância da dutovia e foi investigado apenas para se conhecer como se apresentam os abrigos-sob-rocha que ocorrem nessa região serrana. O segundo, sítio MS-PA-01 (UTM 7723700-692410), situa-se numa pequena colina, próximo a um córrego intermitente onde aflora basalto, a 200 m da dutovia, estando parcialmente destruído pela ação antrópica recente. Trata-se de uma oficina lítica caracterizada principalmente por material de refugo em arenito silicificado vermelho: núcleos, seixos lascados, lascas unipolares (com córtex), lascas unipolares secundárias e lascas unipolares secundárias com retoque. Em nenhum desses segmentos foi encontrado qualquer sítio arqueológico histórico. AVALIAÇÃO DO IMPACTO SOBRE O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO O segmento do Pantanal (km Zero-260) corresponde à área de maior risco de destruição do patrimônio arqueológico, devido à grande densidade de aterros identificados ao longo dos primeiros 350 km do traçado do gasoduto e proximidades, especialmente na área abrangida pelo rio Verde (km 50-55) e parte da fazenda Bodoquena (km 80-l20). Esses sítios, em sua maioria, encontram-se conservados e devem ser preservados. Nesta ótica, cada aterro deve ser entendido como parte indispensável de um conjunto de dados materiais culturais que se consolidou ao longo de gerações, constituindo um importante registro para a história quaternária do homem no continente sul-americano. Tal história, por sua vez, ainda está longe de ser amplamente conhecida. Ressalta-se ainda que é errôneo e apriorístico interpretá-los como simples réplicas de um tipo de sítio arqueológico, como se todos os aterros apresentassem um único conteúdo ou repetidas informações culturais. Portanto, para cada aterro a ser atingido pela construção do gasoduto será necessário o devido e antecipado salvamento arqueológico, sendo de fundamental importância advertir para a existência de um aterro conservado, o sítio MS-MA-22 (UTM 7826850-493970), que se encontra exatamente sobre a linha do traçado do gasoduto, no km 103. Também é importante deixar claro que, em princípio, todos os capões-de-mato e cordilheiras que ocorrem no segmento do Pantanal devem ser entendidos, para fins de diagnóstico arqueológico, como sítios arqueológicos, no caso, aterros. Nas áreas onde ocorrem os aterros, a possibilidade de ser encontrado algum sítio arqueológico enterrado no solo é praticamente nula. Isso porque esses sítios provavelmente configuram-se como os únicos lugares protegidos das cheias periódicas que atingem as porções mais baixas do segmento do Pantanal. Dessa forma, podem ser considerados como os únicos pontos favoráveis a assentamentos humanos em áreas onde as demais porções do terreno permanecem periodicamente inundadas. Os recentes estudos de Oliveira (1996) comprovam que, no caso do grupo étnico Guató (lingüisticamente Macro-Jê e último remanescente de todos os grupos que ocuparam a planície de inundação desde antes da Conquista Ibérica da região

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platina), os aterros são ocupados especialmente durante as cheias periódicas que atingem a planície de inundação, quando se torna possível a mobilidade em áreas até então inacessíveis através da canoa. Alguns dos aterros localizados nos segmentos km 50-60 e km 105-120 não foram devidamente investigados por encontrarem-se em pontos de difícil acesso, dadas as condições ambientais desfavoráveis. No entanto, poderiam ser facilmente localizados através de fotografias aéreas ou imagens de satélite em escala igual ou superior a 1: 60.000, recursos estes não colocados a disposição dos pesquisadores por parte do empreendedor, apesar de solicitados com antecedência. Na região dos relevos residuais do planalto de Urucum (km 10-50), inclusos na área do Pantanal (km Zero-260), a bibliografia examinada indica um número considerável de sítios cerâmicos a céu aberto e igualmente sítios com inscrições rupestres. Entretanto, não foi constatada a presença de algum sítio arqueológico que ainda não tivesse sido registrado anteriormente. Assim, a probabilidade de destruição de algum sítio ainda desconhecido é mínima, porque nesta parte do traçado do gasoduto os solos são geralmente rasos e cascalhentos, o que facilita a visualização de possíveis sítios e dificulta a existência de algum abaixo da superfície dos terrenos. Nos últimos 70 km do segmento do Pantanal, no município de Miranda (km 190-260), os riscos de destruição de sítios arqueológicos são maiores que nas áreas anteriores, em conseqüência da grande quantidade de pastagens artificiais e, principalmente, de matas naturais que dificultam a visualização dos remanescentes materiais de culturas passadas. Muitas vezes a própria dificuldade de acesso e mobilidade nessas áreas impossibilita a identificação dos sítios. Esta avaliação também justifica-se através da literatura etnológica, que aponta esse trecho e/ou proximidades como uma área de ocupação indígena, notadamente durante o período colonial, por populações lingüisticamente Arawak e Tupi-Guarani. O Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) é área de menor risco de destruição ao patrimônio arqueológico, em relação ao Pantanal (km Zero-260). Dos dois sítios identificados apenas o MS-PA-01 encontra-se próximo do gasoduto. As possibilidades de destruição do patrimônio arqueológico nessa área restringem-se a sítios que possam estar abaixo da superfície dos terrenos ou em áreas de pastagens e matas naturais onde há pouca visibilidade dos remanescentes culturais. A própria etnologia também justifica esta idéia, porque indica o médio curso do rio Aquidauana e/ou proximidades como uma área de ocupação Terena/Layana. Verificou-se que o impacto da dutovia sobre o trecho Corumbá-Terenos (km Zero-350) limita-se basicamente à limpeza do terreno para a construção da faixa de serviço de 20 m de largura e à escavação das valas de, no mínimo, 1 x 1,5 m, onde serão enterrados os dutos de 28” de diâmetro. Durante essas atividades haverá grande circulação de pessoas e maquinários diversos pela área a ser impactada. Neste sentido, propõem-se as seguintes medidas preventivas e/ou mitigadoras a serem adotadas pela Petrobrás, empresa responsável pelo empreendimento: 1ª) Viabilização de estudos que possibilitem desviar o traçado do gasoduto dos sítios arqueológicos identificados, especialmente do sítio MS-MA-22. Caso contrário, tornam-se-á indispensável propiciar as condições necessárias para o conseqüente salvamento arqueológico;

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2ª) Em caso de desvio do traçado do gasoduto, em função da preservação, ou não, do patrimônio arqueológico, torna-se imprescindível o acompanhamento de outro parecer arqueológico favorável; 3ª) Mapeamento de todos os capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95-120, numa faixa mínima de 1.000 m de cada lado da área de serviço. Este trabalho possibilitará detectar possíveis aterros que não foram identificados em campo nessas partes do traçado. Justifica-se esta avaliação em virtude das condições ambientais desfavoráveis ao acesso e à mobilidade dos pesquisadores nos referidos segmentos. Outrossim, porque o empreendedor não tornou possível contar com imagens de satélite ou fotografias aéreas numa escala igual ou maior que 1: 60.000, que tornam mais segura a identificação dos sítios arqueológicos. Esta medida poderá também indicar possíveis desvios do gasoduto, de acordo com as especificidades técnicas do empreendimento e com o objetivo primeiro de evitar a destruição de aterros; 4ª) Plotação, nas correspondentes cartas de traçado, dos sítios que foram identificados em campo, bem como aqueles que foram arrolados pela pesquisa bibliográfica; 5ª) Divulgação, junto às empresas responsáveis pela construção da obra, da localização dos sítios arqueológicos e da necessidade de evitar a sua depredação por parte de quaisquer pessoas participantes dos trabalhos, que por ventura venham a querer coletar material arqueológico ou perturbar as camadas dos sítios arqueológicos. Com isso objetiva-se proteger os sítios arqueológicos principalmente dos caçadores de tesouros ou enterros; 6ª) Acompanhamento de um arqueólogo em cada frente de trabalho durante a construção do gasoduto. Isso para que, caso se encontre, durante a escavação da vala, algum sítio não previamente identificado, se possa realizar o devido resgate dos remanescentes arqueológicos. Nesta perspectiva, observa-se um impacto positivo da dutovia, uma vez que ela também possibilitará melhor conhecer a arqueologia da região e, dificilmente, sua vala destruirá grande parte de um sítio arqueológico; 7ª) Quando do contato com os proprietários e moradores das localidades a serem atingidas diretamente pelo empreendimento, torna-se necessário participar a eles, através de um informativo (a exemplo do Informativo do Gasoduto BolíviaBrasil, 1993), a ocorrência de sítios arqueológicos ao longo do traçado do gasoduto e a importância de sua preservação; 8ª) Colocação de placas de advertência nos sítios situados num raio mínimo de 200 m de distância de cada lado da faixa de serviço do gasoduto, informando que aquele local é um sítio arqueológico, sendo proibida sua depredação. Em complementação a essas medidas preventivas e mitigadoras, propuseramse alguns procedimentos básicos para um possível salvamento arqueológico, seja para o sítio MS-MA-22, seja para quaisquer outros aterros que possam ser detectados no mapeamento dos capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95120. Os procedimentos propostos não devem ser entendidos como uma camisa-deforça para um eventual salvamento arqueológico, mas considerações a serem ponderadas na elaboração do projeto de salvamento. São os seguintes: 1º) Objetivos: Resgatar e analisar de forma sistemática os remanescentes culturais evidenciados na área do(s) aterro(s) a ser destruída pela construção do gasoduto, evitando ao máximo maiores intervenções nos estratos arqueológicos; 34

2º) Delimitação da área: A escavação limitar-se-á à largura da área a ser atingida pela vala do gasoduto (1 m) acrescida de, ao menos, 50 cm de cada lado, totalizando assim uma trincheira de 2 m de largura que atravessará o(s) aterro(s), servindo desde então de vala para enterrar os dutos. Esta proposta somente terá validade caso não haja circulação de maquinário pesado nos limites do sítio, preservando-o para pesquisas futuras. A delimitação da área a ser escavada deverá ser preferencialmente antecedida dos respectivos serviços de topografia que precederão à construção das valas, pois o rastreador de satélites do sistema GPS apresenta uma pequena margem de erro de alguns poucos metros que, neste caso, pode ser crucial para os trabalhos de salvamento arqueológico. Durante os trabalhos de levantamento arqueológico na área do Pantanal (km Zero-260), foi realizado um croqui da área de dois sítios, visando embasar possíveis salvamentos e/ou desvios do traçado da dutovia;7 3º) Procedimentos metodológicos: Os processos de resgate dos remanescentes culturais deverão estar de acordo com as características morfológicas do(s) aterro(s), principalmente quanto à extensão e à altura das camadas culturais. Em campo, será indispensável delimitar a trincheira a ser escavada e realizar o levantamento topográfico do(s) sítio(s). Para a escavação torna-se pertinente obedecer a níveis artificiais de 10 ou 5 cm até atingir a camada estéril do(s) sítio(s), coletando e documentando sistematicamente todas as evidências arqueológicas, restos faunísticos, sepultamentos e amostras de rochas, minerais, carvão, solo e pólen 8. Em laboratório, os materiais arqueológicos (cerâmico, lítico, ósseo e outros) deverão ser analisados de acordo com as normas padronizadas, buscando compreender as tecnologias evidenciadas nos remanescentes culturais. A análise das amostras de restos faunísticos, sepultamentos, rochas, minerais, carvão, solo e pólen será norteada por uma perspectiva interdisciplinar, tendo como objetivo último tratar da relação existente entre sociedades humanas e seus ambientes de vida (por exemplo, problemas pertinentes a assentamento e subsistência). A apresentação dos resultados, com as necessárias explanações das etapas dos trabalhos, deverá ser feita sob forma de relatório final a ser publicado em sua íntegra; 4º) Duração dos trabalhos e recursos necessários: A duração dos trabalhos, o cronograma das atividades e os recursos materiais e humanos necessários serão apontados pelos arqueólogos designados para a realização do salvamento, caso este venha a ser necessário. Sugere-se que os trabalhos de campo sejam realizados preferencialmente no período da seca do Pantanal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados apresentados comprovam a grande potencialidade de sítios arqueológicos, principalmente de culturas indígenas passadas, do Estado de Mato Grosso do Sul, especificamente da área de estudo aqui abrangida. O segmento do Pantanal (km Zero-260) destaca-se com uma considerável quantidade de aterros, geralmente conservados e que se sucedem na planície de 7

Faz-se necessário não restringir a escavação aos limites visíveis do(s) sítio(s), mas também escavar fora do aterro para verificar se ali existem evidências de ocupação ou atividade humanas pretéritas. 8

Atualmente penso ser mais pertinente realizar uma escavação através da decapagem dos níveis naturais dos aterros, apesar da dificuldade de identificá-los em muitos casos, e não a partir de níveis arbitrários de 5 ou 10 cm de espessura.

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inundação. É possível inferir que o Pantanal constitui-se numa das regiões de maior concentração de sítios arqueológicos, notadamente de aterros, do território nacional. Sua relevância arqueológica dá-se, principalmente, pela incolumidade da grande maioria dos sítios ali existentes, e estes, por sua vez, devem ser indicadores de uma considerável densidade de populações indígenas que habitaram a região em tempos pretéritos. Por outro lado, constata-se a necessidade urgente de definição de estratégias para sua preservação, enquanto patrimônio cultural, devido a sua relevância para os estudos sobre a ocupação indígena da América do Sul, bem como para a história e a cultura da população sul-matogrossense. Nota-se ainda que a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil não ocasionará um grande impacto ao patrimônio arqueológico brasileiro se comparado a outros empreendimentos, como rodovias, ferrovias, hidrelétricas e hidrovias. Além dos impactos negativos abordados, possui um impacto positivo importante a vala construída para enterrar os dutos. Trata-se de um impacto de fundamental importância para o conhecimento da ocupação indígena pretérita de Mato Grosso do Sul. Também será importante para o conhecimento da geologia e geomorfologia regionais, que propiciará um melhor entendimento da história quaternária do Pantanal e do Planalto brasileiros, da qual fazem parte muitas sociedades humanas ainda pouco conhecidas ou praticamente desconhecidas. A partir dos resultados obtidos torna-se crucial o cumprimento das medidas preventivas e mitigadoras apontadas neste trabalho, a fim de prevenir ou compensar a destruição do patrimônio arqueológico em questão.

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O USO DE MODELOS PREDITIVOS PARA DIAGNOSTICAR RECURSOS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS A SEREM AFETADAS POR EMPREENDIMENTOS DE IMPACTO AMBIENTAL

Renato Kipnis INTRODUÇÃO A distribuição dos recursos arqueológicos no espaço não é aleatória. Ela é padronizada segundo vários fatores, dentre os quais, o comportamento de populações passadas, processos naturais e ação humana na paisagem. De um modo geral, o comportamento humano pretérito produz padrões na cultura material e na paisagem (resultado da interação entre sociedades humanas e meio-ambiente). Com o tempo estes padrões podem ser alterados por processos naturais e pela contínua ação humana (Wood and Johnson 1978 ) que, apesar de alterarem os vestígios arqueológicos, também são padronizados. O desenvolvimento de modelos preditivos baseam-se nestes pressupostose têm por objetivo, prever a ocorrência de um determinado fenômeno arqueológico a partir do conhecimento prévio das variáveis envolvidas na formação dos padrões arqueológicos, segundo uma perspectiva sistêmica. A idéia básica que está por trás do desenvolvimento de um modelo arqueológico locacional é que se existem tendências ou padrões entre as localizações de sítios arqueológicos e uma ou mais variáveis distribuidas regionalmente, pode-se então desenvolver um modelo baseando-se nesta associação (Brandt et al. 1992). É quase que inevitável que empreendimentos de impacto ambiental, principalmente os de grande escala (rodovias, hidroelétricas, gasodutos, etc.), irão deparar com recursos arqueológicos. Um vez que a distribução destes recursos não é aleatória, sería extremamente útil, e eficiente, se pudessemos de alguma forma prever, se não a localização destes recursos, pelo menos a probabilidade de sua ocorrência em uma determinada região. Isto daria subsídios para o empreendedor levar em consideração os recursos arqueológicos na elaboração de um empreendimento de impacto ambiental já nas primeiras etapas (i.e. planejamento e diagnóstico) da formulação do projeto. Sem dúvida, isto dária melhores condições para contemplar alternativas de localização do projeto, assim como custos com mitigação dos impactos negativos. O diagnóstico dos recursos arqueológicos é de extrema importância, pois é ele que deve ser a primeira instância de avaliação do potencial do patrimônio arqueológico. É baseado neste estudo que a primeira análise dos impactos culturais do empreendimento será feita. Durante a etapa do diagnóstico devem ser levantados os principais problemas a serem pesquisados dentro de um empreendimento de impacto ambiental. Os problemas a serem atacados, que tipo de dados são necessários para resolver estes problemas e qual a metodologia a ser utilizada para gerar os dados e processá-los durante o período do projeto como um todo, têm que ser desenvolvido já na primeira fase do empreendimento de impacto ambiental. Em outras palavras, o detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos têm que se basear no diagnóstico. Eventualmente, como em qualquer outra pesquisa, durante o desenvolvimento do projeto irá ocorrer um refinamento dos problemas e métodos; mas a estrutura básica da pesquisa, o que chamamos de “design”, tem que sair deste estudo inicial. Caso contrário fica impossível de se fazer um planejamento 39

eficiente, condição sine qua non neste tipo de empreendimento. O diagnóstico dos recursos arqueológicos também é de extrema importância para dar subsídios aos orgãos competentes para a avaliação do patrimônio arqueológico, dos projetos de mitigação e monitoramento dos recursos. A questão fundamental do estudo de diagnóstico dos recursos arqueológicos é como gerar informação que dê subsídios para avaliar o impacto do empreendimento nos recursos arqueológicos e para planejar atividades de mitigação a partir de dados já existentes. Ou seja, como realizar o estudo de diagnóstico de uma forma eficiente e não onerosa baseado em dados secundários. É raro uma região no mundo, se é que há uma, em que não exista nenhum registro escrito sobre algo característico do local. Em sua maioria, estes registros contém dados sobre as populações que ali habitam e/ou habitavam. Os registros também contém, em sua maioria, informações sobre o meio-ambiente. No caso específico dos recursos arqueológicos, estas informações podem variar entre um extremo, onde temos informações aprofundadas sobre o passado com alguns trabalhos de campo já realizados e coleções arqueológicas que podem ser consultadas a outro extremo onde nada se sabe. Como o objetivo do diagnóstico dos recursos arqueológicos é o de levantar informações para podermos caracterizar a situação atual do patrimônio cultural de uma dada região a ser impactada, precisamos fazer uso de todos as informações possíveis, sejam elas empíricas ou somente teóricas para caracterizar a região do empreendimento. Na pior das hipóteses, ou seja, a falta total de referências, sempre haverá dados de locais circundantes desta suposta região incógnita e informações sobre o comportamento humano que podem ser utililizadas para os estudos de impacto ambiental. A utilização de modelos preditivos no contexto de estudo de impacto ambiental é de grande utilidade uma vez que estes modelos são dispositivos que se utilizam de um conhecimento prévio para prever tendências e eventos. Ou seja, eles se utilizam do conhecimento de dados arqueológicos e não-arqueológicos para caracterizar o potencial de uma região, baseados em variáveis definidas pelo pesquisador sem a necessidade de realizar trabalho de campo. É importante ressaltar que precisamos sempre ter em mente o processo de um empreendimento de impacto ambiental como um todo, e que a utilização de modelos não elimina o trabalho de campo, muito pelo contrário, o trabalho de campo é importantíssimo para refinar e validar os modelos e em última instância faz parte da atividade mitigadora. Mas, em se tratando especificamente da fase de diagnóstico, a caracterização dos recursos arqueológicos quando feita nesta etapa do projeto não envolve trabalho de campo. O estudo fica limitado à utilização de dados secundários. MODELOS EM ARQUEOLOGIA O que são modelos? Modelos são hipóteses, ou um conjunto de hipóteses que simplifica observações complexas ao mesmo tempo em que oferece um quadro preditivo exato que estrutura estas observações, frequentemente separando redundância (noise) de informação. A maioria dos modelos mais sofisticados são modelos matemáticos ou estatísticos, estes têm a vantagem de apresenter um grau mais baixo de viés e normalmente são sistemas dedutivos mais robustos. Há duas áreas em que os modelos preditivos têm um grande potencial dentro de um contexto de estudos de impacto ambiental, a saber: custo-eficiência e utilidade

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em planejamentos. A perspectiva quanto ao custo-eficiência está no seu potencial de projetar a provável distribuição dos recursos arqueológicos de uma região a partir de uma amostra cuidadosamente escolhida da área a ser impactada. A utilização de modelos preditivos nos primeiros estágios do planejamento dá condições, oferece subsídios, para que os planejadores evitem os recursos naturais quando possível, ou pelo menos escolham alternativas de menor impacto (Kohler & Parker 1986). Tomemos por exemplo a construçao de uma auto-estrada. O estudo de diagnóstico dos recursos arqueológicos pode gerar um modelo que prevê a probabilidade de ocorrência ou não de sítios arqueológicos. O resultado final deste estudo sería um mapa com diferentes áreas, representando diferentes probabilidades de ocorrência dos recursos arqueológicos. Esta informação poderia ser então, utilizada na computação geral dos custos do projeto para gerar alternativas do traçado da estrada. Do ponto de vista dos recursos arqueológicos, as áreas de baixa probabilidade seriam as áreas de menor custo para mitigação. O desenvolvimento e a utilização de modelos preditivos em arqueologia estão associados à projetos de impacto ambiental na América do Norte. A utilização de modelos preditivos nos Estados Unidos teve um grande avanço no final da década de 70 e ínicio da década de 80 através de projetos financiados por agências governamentais que gerenciam as terras federais norte americanas. O objetivo destes projetos era o desenvolvimento de modelos que poderiam indicar locais de ocorrência de recursos arqueológicos em grandes áreas, baseados em amostras obtidas através de prospecções feitas somente em algumas partes da região (Ambler, 1984, Ebert 1988, Kvamme 1990, Kohler and Parker 1986, Warren 1990). Em outras palavras, levantar subsídios para avaliação dos impactos culturais e desenvolvimento de programas de mitigação dos impactos negativos de um modo eficiente e sem custos abusivos. O resultado destes estudos foi o desenvolvimento de modelos preditivos locacionais que procuram prever, no mínimo, a ocorrência de sítios arqueológicos, material arqueológico ou estruturas pré-históricas em uma região, baseados em padrões ou tendências observadas em uma amostra desta região ou fundamentados em noções ou suposições fundamentais sobre o comportamento humano. A localização dos assentamentos pré-históricos pode ser vista como uma estratégia com fins econômicos, sociais e políticos (Jochim 1981). O desenvolvimento de modelos que incluam todos os possíveis aspectos que possam influenciar o padrão de assentamento humano é muito complexo. A maioria dos modelos desenvolvidos até agora conseguiram uma certa simplificação através da concentração no componente econômico do padrão do assentamento humano. Argumenta-se, ou assume-se, que dentre as várias relações econômicas relizadas por indivíduos e sociedades préhistóricas, uma das mais importantes é com o meio ambiente (Jochim 1981). Esta suposição é importante pois é o fundamento no qual a utilização da distribuição de características ambientais para prever a localização de assentamentos humanos está baseada. Pressupõe-se também, que seres humanos tendem a minimizar o tempo ou esforço gasto em suas transações econômicas com o meio ambiente (Jochim 1981). Suposição esta que tem implicações importantes no desenvolvimento de modelos preditivos. Uma outra suposição, não menos importante, é a de que o comportamento e suas mudanças ao longo do tempo produzem padrões. Qualquer estudo que visa gerar conhecimento arqueológico tem que partir da caracterização destes padrões. A base de tudo isto está na definição de cultura como sendo modos comportamentais apreendidos e sua manifestação material, socialmente transmitidos de uma geração

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para outra e de uma sociedade ou indivíduo para outro (Clarke 1968). Segundo uma perspectiva sistêmica, o registro arqueológico é a soma da agregação dos materiais descartados no curso do padrão repetitivo da localização de partes diferentes do mesmo sistema. Quando um pesquisador descobre um padrão em um conjunto de observações e desenvolve uma hipótese para explicar o padrão observado, esta hipótese tem implicações preditivas para observações futuras. As implicações podem ser testadas com novos dados independentes. Se os dados são compatíveis com as previsões, a hipótese é validada cientificamente. Caso a hipótese seja refutada, ela tem que ser reformulada. Um aspecto importante deste processo, mas pouco adotado, é a operacionalização das hipóteses, ou seja, criar modos delas serem testadas através de dados empíricos. Este ponto é muito importante, pois é o único modo de se poder avaliar uma pesquisa, seja uma avaliação feita por pesquisadores ou gerenciadores do patrimônio cultural. Os vários modelos preditivos têm três elementos básicos em comum: informação, método e resultado. O modelo preditivo utiliza o método para transformar informação em resultados previsíveis. Informação é o conjunto do conhecimento já existente do qual o modelo é derivado. Dois tipos básicos de informação podem ser utilizado no desenvolvimento de modelos preditivos. (1) Teorias que explicam os efeitos processuais das variáveis independentes nos eventos de interesse segundo uma relação de cause e efeito, e (2) observações empírcas, que normalmente consistem em (a) interações observadas entre variávies dependentes e independentes em estudos prévios ou em partes amostradas da área de interesse, e (b) informação sobre as variáveis e condições que possam influenciar o resultado na área de interesse amostrada (Warren 1990). A informação é fundamental para o desenvolvimento do projeto como um todo. Os dados que coletamos e como os coletamos, isto é, o método empregado em uma pesquisa tem que ser determinado pelo problema que queremos solucionar e pelo conhecimento teórico e empírico previamente adquirido. O desenvolvimento de um modelo preditivo pode se dar segundo uma perspectiva puramente dedutiva, baseada em teorias, ou de uma forma puramente indutiva, baseada em observações empíricas (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990). Por exemplo, um modelo para prever a localização de sítios arqueológicos poderia ser desenvolvido utilizando uma perspectiva dedutiva baseada em teorias que salientem as necessidades culturais e biológicas de uma sociedade. As necessidades serveriam para guiar a seleção das variáveis independentes. A associação destas variáveis entre si, e com variáveis do meio-ambiente, indicariam o potencial de ocorrência de sítios arqueológicos em uma determinada área. O oposto deste modelo, seria um modelo puramente empírico, baseado na informação prévia sobre a localização de sítios arqueológicos. Os padrões são descritos de uma forma que possam prover expectativas quanto as características arqueológicas de uma área desconhecida. Os projetos de gerenciamento dos recursos culturais nos Estados Unidos, onde a utilização de modelos tem sido mais comum, são em sua maioria indutivos e seguem uma estratégia inferencial (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990). Correlatos naturais da localização de sítios arqueológicos são descobertos através de procedimentos de estatística inferencial com o intuito de reduzir o número de variáveis ambientais que possam estar ligadas com a localização dos sítios para um

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conjunto de variáveis cuja associação com a localização de sítios observados foram comprovadas. Tal procedimento tem o objetivo de caracterizar uma região a partir de uma amostra da mesma. Entre os vários problemas que esta perspectiva apresenta, cabe ressaltar que na ausência de teoria o processo de escolha das variáveis é ineficiente e o modelo resultante não é consistente e fica impossível se ser interpretado. Uma estratégia mais eficiente é a utilização de modelos que incorporem as duas perspectivas, teórica e empírica (Warren 1990). Algumas das várias estratégias ou enfoques utilizados em modelos preditivos regionais são: (1) modelos baseados em padrões ambientais observados empiricamente em amostras arqueológicas de uma região (Pilgram 1987), (2) modelos que se utilizam de coordenadas espaciais ou posição de sítios conhecidos de uma região para desenvolver modelos quantitativos geográficos (Bakels 1982, Kvamme 1989), (3) modelos que partem de regularidades nas decisões de localização de assentamento observadas em estudos etnográficos comparativos (Jochim 1976) e (4) modelos dedutivos baseados em suposições sobre o comportamento humano, estrutura do meio-ambiente e da relação entre os dois (Limp & Carr 1985). Alguns modelos tentam prever a presença ou ausencia de sítios, número de sítios em uma determinada área, tipos de sítios e até mesmo importância (significância) do sítio. Quando um modelo arqueológico locacional preditivo é aplicado à uma região o resultado pode ser visto em termos probabilísticos, apesar de muitas das técnicas ou estratégias utilizadas no desenvolvimento de modelos não têm uma origem probabilística. Por exemplo, a probabilidade de ocorrência ou não de sítios arqueológicos em uma determinada região, ou a probabilidade de ocorrência de sítios pré-cerâmicos. Uma característica importante na utilizacão de modelos preditivos dentro de uma perspectiva de projetos de impacto ambiental é que a unidade elementar de pesquisa em estudos de modelos arqueológicos deixa de ser o sítio arqueológico e passa a ser a parcela territorial. A parcela territorial nada mais é que uma parte da área de estudo adquirida através da divisão da região segundo critérios estabelecidos (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990). A fragmentação de uma região em unidades pode ser facilmente obtidada através do quadriculamento de uma região. Por exemplo, uma parcela territorial pode ser uma unidade (um quadrado) do quadriculamento geral. Geralmente as parcelas ou „células‟ (cell) são do mesmo tamanho (contém a mesma área) para facilitar interpretações e cálculos probabilísticos. A princípio, a parcela territorial pode ser de qualquer tamanho, quanto menor a parcela mais refinadas serão as previsões, consequentemente, as informações geradas serão mais eficazes em termos de gerenciamento dos recursos arqueológicos. Por exemplo, a figura 1 representa uma região no estado de Minas Gerais, entre a cidade de Belo Horizonte e Serra do Cipó, que foi dividida em quatro unidades territoriais. O evento definido é presença ou ausência de sítio arquológico. Podemos ver que na figura 1 todas as parcelas contém sítios. Já na figura 2, a mesma área foi subdividida em 32 parcelas. Notamos que 17 das unidades territoriais não contém sítios arqueológicos. Analisando melhor a informação contida na figura 2, veremos que 8 das 32 „células‟ são caracterizadas pela ausência de curso d‟água e que nenhuma destas unidades apresenta sítios arqueológicos. Dentre as 24 unidades com curso d‟água, 15 têm a presença de sítios arqueológicos. Apesar de muito simplificado, fica claro as vantagens de se trabalhar com escalas mais precisas.

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No começo do desenvolvimento de qualquer modelamento de um problema é importante a definição do evento arqueológico que vai ser observado em cada parcela. A natureza deste evento depende dos objetivos do modelo. Os eventos definidos formam uma fragmentação mutuamente exclusiva e exaustiva do espaço amostrado. A parcela de terra pode ser designada somente a um dos eventos arqueológicos definidos. Esta exclusão mútua implica que as definições sejam claras, sem ambigüidades, e que todos os eventos que possam ocorrer na unidade sejam definidos. Por exemplo, o evento presença ou não de sítio arqueológico em uma parcela de terra, implica na definição de sítio e não sítio. Uma característica importante na utilização de modelos preditivos é a definição de probabilidades prévias para serem utilizadas como índices de base. Estes são simplesmente probabilidades elementares da ocorrência associada a cada evento arqueológico definido anteriormente, ou anterior a qualquer consideração de modelos (Kvamme 1990). Probabilidade a priori indica a probabilidade total de cada evento arqueologógico na totalidade de uma região, elas não nos dizem nada sobre onde sítios arqueológicos, material ou outras evidências possam ser encontradas. Probabilidades arqueológicas a priori nos dão condições de definir o que os modelos arqueológicos devem efetuar. Especificamente, o modelo preditivo deve poder indicar a ocorrência de um evento arqueológico em uma localidade com uma probabilidade maior que a probabilidade do evento associada aos índices de base. Em estudos regionais, probabilidades a priori podem ser estimadas através de uma perspectiva de frequência relativa baseada em amostras aleatórias de parcelas territoriais e na observação da classe do evento associado a cada parcela (Kvamme 1990, Warrem 1990). O modelo preditivo pode ser visto como uma regra de decisão que determina uma parcela territorial à uma das classes do evento arqueológico definido, baseandose em outras condições e características do local, na maioria dos casos variáveis não arqueológicas. Em outras palavras, o modelo processa as variáveis independentes, os dados não arqueológicos (input) segundo vários critérios de decisão, e tem como resultado (output) a classificação ou determinação do local à uma classe do evento arqueológico, que é a variável dependente. Em qualquer região de estudo as características não arqueológicas podem ser determinadas ao nível das unidades de parcela territorial a serem investigadas através de medições ou observações feitas em mapas, fotografias aéreas, imagens de satélite ou mesmo informação espacial gerada por computadores, sem a necessidade de realização de trabalho de campo. Para cada parcela territorial o resultado é uma série de características ou atributos para a unidade de análise. Estas características devem representar variáveis que, segundo trabalhos prévios ou teoria, têm alguma relação com a distribuição dos eventos arqueológicos estudados. A maioria dos estudos que seguem uma perspectiva de modelos, independente de sua natureza e origem, têm focalizado as observações espaciais das características do meio-ambiente; por exemplo, relêvo, tipo de solo, declividade, elevação, vegetação (tipos de comunidades de plantas), ou distância da água. Outras propriedades de localidade que também são empregadas como base no desenvolvimento de modelos incluem atributos de localidade e até mesmo atributos sócio-culturais. É baseado nestas características que o modelo preditivo arqueológico, através de alguma forma de regra de decisão, designa cada unidade local à um dos eventos arqueológicos definido.

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Para exemplicar, vamos supor um projeto cujo objetivo é caracterizar o potencial arqueológico de uma dada região segundo padrões ambientais observados. O evento (variável dependente) que definimos é presença ou ausência de sítios arqueológicos. As informações (variáveis independentes) utilizadas para desenvolver o modelo são dados do meio ambiente: (a) vegetação, que pode assumir três valores: comunidade de plantas A, B ou C; (b) declividade do terreno segundo três classes: 0 a 10 graus, entre 10 e 20 graus e maior do que 20 graus, e (C) distância de água de acordo com três divisões: entre 0 e 500 metros, de 500 a 1000 metros e maior que 1000 metros (Tabela 1) TABELA 1 vegetação comunidade de plantas A comunidade de plantas B comunidade de plantas C

declividade do terreno 0 o - 10o

distância de água 0 - 500 m.

10 o - 20 o > 20 o

500 - 1000 m. > 1000 m.

Baseados em observações empíricas desenvolveu-se o seguinte modelo utilizando-se parcelas territoriais de 1 km 2 : vegetação comunidade plantas A comunidade plantas B comunidade plantas A

declividade do terreno de 0 o - 10o

distância da probabilidade de ocorrência de água sítios arqueológicos 500 - 1000 m .80

de 0 o - 10o

0 - 500 m

.10

de 10 o - 20 o

500 e 1000 m

.05

Em uma dada região com características semelhantes àquela onde se desenvolveu o modelo, prevemos que a probabilidade de ocorrência de sítios arqueológicos em uma área cuja vegetação é caracterizada pela comunidade de plantas A, cuja declividade do terreno está entre 0 o e 10o e a distância da água entre 500 e 1000 metros é de .80. As variáveis dependentes que se tem utilizado em estudos que empregam modelos preditivos vão desde categorias arqueológicas até índices quantitativos. O evento arqueológico (variável dependente) mais comum empregado nos estudos é a presença ou ausência de sítios (Brandt et al. 1992, Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990). Há duas razões principais pelo qual esta variável é utilizada. Primeiro, são poucos os estudos onde temos informação suficiente para se fazer uma classificação significativa de sítios. Segundo, mesmo que possamos classificar os sítios, o tamanho amostral é muito pequeno para muito dos sítios para serem utilizados como amostras nas quais o desenvolvimento do modelo basear-se-á. Por outro lado, juntando todos os sítios em uma simples classe „presença de sítio‟ tem-se uma amostra significativa. Isto cria outros problemas, como o fato de juntar tipos

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diferentes de sítio em uma mesma classe o que acaba introduzindo heterogeneidade em qualquer modelo que procura resolver problemas. Entretanto, há estudos que argumentam que as características de localidade talvez seja comum à todas as classes de sítios de uma região (Kvamme 1990). Modelos arqueológicos preditivos universalmente se baseam em características não-arqueológicas de localidades. Quatro grandes categorias são normalmente empregadas: meio-ambiente, sócio-cultural, asserção e dados radiométricos (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990). A suposição que o meio-ambiente natural tem uma grande influência na seleção da localidade do assentamento e áreas de atividade de populações préhistóricas é suportada por dados empíricos etnográficos, arqueológicos e estudos teóricos (Gumerman 1971, Jochim 1976, Thomas and Bettinger 1976, Western and Dunne 1979). Há um grande número de características ambientais utilizadas em análise arqueológica e desenvolvimento de modelos: declividade, produtividade do solo, permiabilidade do solo, elevação, topografia, visibilidade, rede de drenagem, profundidade de lençois freáticos, e comunidades de planta. Um problema que encontramos com a utilização destas variáveis é o quanto elas são representativas de tempos passados, principalmente aquelas que são mais sensíveis as mudanças climáticas. Esta é uma questão que geralmente não é abordada nos estudos de modelo preditivos, mas que deveria ser. Uma grande variedade de algorítimos tem sido utilizada na construção de modelos preditivos em arqueologia. Estes algorítimos são originários de áreas como a matemática, estatística, teoria da informação e processamento de imagens de sensoriamento remoto. Uma vez desenvolvido um modelo preditivo é necessário testá-lo. A verificação de modelos compreende na comparação das previsões que o modelo faz com dados empíricos, eventos arqueológicos em localidades onde ambos (previsão e dado empírico) são conhecidos. Esta comparação tem que ser independente dos dados utilizados na geração do modelo. SISTEMA INFORMATIVO GEOGRÁFICO E MODELOS PREDITIVOS Umas das perspectivas que tem grande potencial na utilização de modelos preditivos regionais e somente nos últimos anos tem se desenvolvido é a utilização de sistema informativo geográfico (SIG ou GIS/geographic information system). O desenvolvimento de modelos preditivos regionais requer uma quantidade de informação muito grande e o processamento dos dados é intenso. Estes modelos necessitam de dados ambientais que normalmente são obtidos através de mapas e que representam um número grande de variáveis para (1) amostras locacionais que representem cada classe de evento arqueológico para fins de testar o modelo e (2) para cada localidade na região onde o modelo será aplicado segundo uma perspectiva preditiva. Para os modelos que pretendem generalizar a partir de padrões empíricos observados em amostras prévias, o que atualmente é a estratégia mais comum, os requerimentos já mencionados são necessários (3) para as amostras das localidades para cada classe de evento arqueológico para o desenvolvimento do modelo. A utilização do sistema informativo geográfico supera quase que todas dificuldades e limitações que surgem no desenvolvimento, teste e aplicação de modelos preditivos regionais (Kvamme 1986). O sistema informativo geográfico é um 46

modo computacional de manipular, analisar, guardar,apreender, recuperar, e exibir varias formas de dados que possam ser referidos a localidades geográficas específicas (Kvamme 1990). A maioria dos SIGs adequados para análise regional arqueológica e aplicações de modelos são sistemas baseados em „células‟, onde a região de estudo é quadriculada por „células‟ que representam parcelas territoriais, e os vários tipos de dados são armazenados para cada uma delas. Cada tipo de informação é armazenado em um banco de dados que representa uma variável que é espacialmente distribuida na região. A perspectiva de se utilizar „células‟ corresponde exatamente com a unidade de análise elementar de modelos regionais arqueológicos, a parcela territorial; consequentemente, as estruturas dos SIGs são logicamente e organizacionalmente consistentes como as necessidades impostas pelos modelo preditivos Qualquer tipo de informação que seja geograficamente distribuida pode ser codificada dentro do SIG, dados originados de fontes como topografia, solos, vegetação, localização de sítios arqueológicos, rede hidrográfica, e outros tipos de mapas, assim como de foto aérea e imagem de sensoriamento remoto. Cada fonte de informação é armazenada separadamente em camadas temáticas dentro do SIG. Uma das características importantes do SIG é o seu potencial de gerar dados secundários a partir de outras fontes. Por exemplo, partindo de um mapa topográfico (com dados sobre elevação) podemos gerar e armazenar novas informações como: declividade, visibilidade, relêvo local, variabilidade local do terreno, e identificação terraços, canyons, platôs, e bacias hidrogáficas. Uma vez montado, codificado e armazenado „célula‟ por „célula‟ os dados ambientais de uma região, fica muito mais fácil, simplificado e eficiente o desenvolvimento, teste e aplicação de modelos regionais preditivos. A utilização de SIG para desenvolver modelos preditivos regionais é um instrumento heurístico que pode melhorar nosso conhecimento sobre a distribuição do assentamento pré-histórico, padrões de uso da terra, e interação de populações préhistóricas com o meio-ambiente. Modelos regionais eficientes podem caracterizar a distribuição pré-históricas e padrões decorrentes de um modo mais explicativo. Modelos regionais com potenciais preditivos podem se tornar instrumentos eficientes para o gerenciamento e proteção dos recursos arqueológicos. O desenvolvimento de modelos preditivos, juntamente com SIG, pode contribuir com o planejamento de empreendimentos de impacto ambiental de uma forma mais eficiente, de melhor qualidade e com custos mais baixos. DISCUSSÃO Apesar dos avanços teóricos, metodológicos e técnicos mencionados, a grande maioria dos projetos arqueológicos no Brasil em áreas a serem afetadas por empreendimentos de impacto ambiental é puramente empírica, não se utiliza das técnicas disponíveis de uma forma consciente e eficiente, e não segue a perspectiva de modelos. Normalmente os projetos realizam prospecções sistemáticas para se descobrir e delimitar sítios arqueológicos. As áreas com distribuição densa de material arqueológico (artefatos, estruturas, etc.) são definidas como sítios. Estes são associados às áreas onde atividades foram realizadas por populações pré-históricas. As localidades fora do sítio são definidas como não-sítios, e em um contexto de impacto ambiental, os sítios serão estudados e as áreas classificadas de não-sítios não.

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Segundo esta lógica fica difícil decidir o que ocorreu em um sítio e qual a sua importância. O local de ocorrência do material arqueológico fica sendo a unidade de análise. Nesta perspectiva fica difícil se fazer qualquer avaliação, uma vez que não há um encadeamento lógico do que é realizado e porque. Fica mais difícil ainda se fazer qualquer planejamento de atividades de mitigação. O objetivo destas prospecções são normalmente obscuras, são poucas as pesquisas que têm objetivos claros, e os aspectos quantitativos dos projetos são em sua maior inadequados para qualquer estudo sério de impacto ambiental onde decisões quanto a preservação ou não dos recursos arqueológico têm que ser tomadas. É importante ressaltar que a utilização de modelos preditivos e técnicas de estatística no estudo da avaliação e mitigação dos recursos arqueológicos não faz mais que ajudar na geração de conhecimento arqueológico e prover linhas gerais para o gerenciamento dos recursos arqueológicos. A utilização destes modelos para tomar decisões é de competência dos responsáveis pelo gerenciamento dos empreendimentos de impacto ambiental. Espero que após esta breve discussão tenha ficado óbvio que para a utilização de modelos preditivos em arqueologia como instrumento eficaz de geração de informações a serem utilizadas no licenciamento de atividades de impacto ambiental, os estudos dos recursos arqueológicos têm que ser realizados já nas primeiras etapas de planejamento das atividades modificadoras do meio ambiente. Mesmo em áreas onde há uma grande quantidade de dados secundários, o desenvolvimento, teste e aplicação de modelos é um processo que requer tempo e portanto é preciso ser incorporado no empreendimento em tempo hábil para poder gerar as informações necessárias na elaboração do relatório de impacto ambiental. As informações geradas pelo diagnóstico dos recursos arqueológicos são importantes para (a) contemplar todas as alternativas de localização do empreendimento confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto, (b) identificar e avaliar sistematicamente os impactos nos recursos arqueológicos gerados nas fases de implantação e operação da ativadade, e (c) definir os limites geográficos a serem direta ou indiretamente afetados pelos impactos negativos do projeto. Estas diretrizes são requerimentos da resolução CONAMA N. 001 (Art. 5), que no caso da arqueologia raramente são incluídos na decisão do licenciamento de ativadades. Somente com a incorporação dos estudos dos recursos arqueológicos nas primeiras etapas do empreendimento é que teremos condições reais de (a) caracterizar a situação do patrimônio arqueológico atual na área antes da implantação do projeto, (b) avaliar os impactos nos recursos arqueológicos do projeto e avaliar alternativas através de indentificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, (c) propor medidas mitigadoras eficientes dos impactos negativos, e (d) elaborar um programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos como prevê o artigo 6 da resolução CONAMA N. 001. Uma última consideração quanto ao uso de modelos preditivos é a respeito de sua eficiência em estruturar os estudos de avaliação dos impactos culturais e detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos. Normalmente os estudos de impacto e atividades de mitigação não são realizados pelo mesmo grupo. A utilização de modelos facilita a implantação de programas de mitigação, uma vez que dentro de uma perspectiva de modelos o processo é visto como um todo, e o planejamento também. Este é um ponto muito importante, pois apesar de parecer óbvio, muitas vezes os trabalhos de estudos de impacto ambiental

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são realizados na fase de implantação, mesmo em projetos onde estes trabalhos já foram feitos. Apesar de estarmos muito defasados na utilização de modelos, espero que esta breve introdução sobre modelos preditivos sejá um começo para difundir e discutir a utilidade e potencial desta perspectiva em estudos de impacto ambiental nos recursos arqueológicos e gerenciamento do patrimônio cultural. Uma das vantagens em se utilizar esta perspectiva é que o desenvolvimento, teste e aplicação de modelos implica em um pensamento claro e lógico e consequentemente dá subsídios para avaliação dos estudos de impacto ambiental e do planejamento de atividades mitigadoras como preve a resolução CONAMA N.001

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DEBATE

Coordenadora: Dra. Irmhild Wüst - UFGO Relatora: Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos - Scientia

Irmhild Wüst - Chamamos em primeiro lugar a professora Lylian Coltrinari, da Universidade de São Paulo, Departamento de Geografia. Lylian Coltrinari - Bom dia, eu sou Lylian Coltrinari, do Departamento de Geografia da USP. Sou geomorfóloga e tive oportunidade de trabalhar, no começo dos anos oitenta, com meus colegas arqueólogos da Universidade de São Paulo. Tenho mantido com eles um relacionamento razoavelmente próximo e a isso devo, acredito, o convite para participar deste fórum, que muito agradeço. Gostaria não tanto debater, mas sim apresentar algumas reflexões a partir daquilo que foi exposto pelos participantes da mesa. Em termos gerais acredito que foi mencionado praticamente tudo a respeito do trabalho de pesquisa; praticamente todos os trabalhos de pesquisa, na área de arqueologia, têm muito em comum com o que se faz na geografia. O primeiro fato que me chamou a atenção foi a ausência da palavra interdisciplinar; me parece paradoxal, considerando que este Fórum se propõe a discutir problemas do meio ambiente e o patrimônio cultural. Em segundo lugar, a ausência de qualquer menção à Geografia, e a impressão de que não existe nenhum tipo de conhecimento geográfico sobre as áreas que são prospectadas. O que estou falando agora já foi dito e discutido muitas vezes e, mais uma vez, sinto falta de referências ao conhecimento geográfico, com o qual tenho maior familiaridade. Digo isso por que tenho a impressão de que, quando os meus colegas se referem -por exemplo- aos transects, a amostragem e as regiões, é como se essa terminologia, tipo de abordagem ou técnica fossem desconhecidos em outras áreas do conhecimento, ou não fossem por elas considerados ou utilizados. Em outras palavras, é como se não existisse o conhecimento especializado específico, que é banal, que é rotineiro na geografia; por isso me parece que, na pesquisa arqueológica, às vezes certas questões ou fatos criam dificuldades até para serem descritos. Isso, porque se desconhece que, em outras áreas, se esses aspectos não estão resolvidos, pelo menos se conhece a maneira de abordá- los. É por isso que continuo não entendendo porque há tanta dificuldade e tanta preocupação pelo fato de ter que definir certas áreas de trabalho ou certos aspectos da pesquisa, já que existe, para o especialista, a possibilidade de obter estas informações no próprio campo, sem ter de recorrer a meios indiretos. Cabe aqui a segunda questão que gostaria de comentar, que é a da escala em que se trabalha. A arqueologia trabalha em escala 1:1, a geomorfologia de detalhe trabalha em escala 1:1; para isso, é preciso utilizar as técnicas adequadas a este tipo de análise. Eu sempre me surpreendo, por exemplo, quando alguém se propõe a localizar um sítio numa foto aérea em escala 1:60.000, porque sei que não é qualquer sítio que pode ser identificado nessa escala, como sei que, conforme o tamanho da área ocupada, uma carta topográfica em 1:50.000 não é útil; pelo menos deve-se utilizar uma carta 1:10.000, ou ainda maior. Outro tema é a declividade; não pode falar-se em declividade genericamente, para toda uma área. A declividade pode ser considerada de diferentes formas; uma delas, por exemplo, a declividade de um trecho específico. Quando realizo um

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levantamento detalhado, registro um trecho com 10 graus de declividade, outro com 30 graus, e assim por diante, uma seqüência de valores ao longo de um perfil. Qual é problema do ponto de vista geográfico? Não é só o valor da inclinação de cada intervalo, importa também especificar, por exemplo, qual é a área caracterizada por uma certa declividade, onde se localiza; de outro ponto de vista, qual é a relação que, na realidade, existe entre as áreas de menor e de maior declividade. Se, por exemplo, estou trabalhando numa várzea, no sopé de uma vertente, é necessário conhecer a declividade da várzea e a da vertente, já que dessa vertente vão descer água e materiais em direção à várzea. De acordo com a diferença de declividade entre ambas, será diferente a forma -velocidade, quantidade- de chegada do material e da água. O que vai acontecer na beira d‟água, ou no sopé da vertente, não depende só das características do local estudado, depende de tudo que acontece a montante dessa área, vertente acima. O mesmo raciocínio deve ser empregado quando se trabalha em sítios ao longo de um rio, como é o caso das hidrelétricas. Porque escolho aquele ponto em particular para a pesquisa? Qual é a morfologia, qual é a declividade no interflúvio acima, no terraço acima? Porque o material que está lá -estou falando do material inconsolidado, seja solo propriamente dito, material intemperizado, ou sedimentos, não são necessariamente produto do que acontece ou aconteceu só naquele local. Se estou trabalhando ao longo de um curso d'água, não tenho só o material que vem de esquerda para direita ou de direita para esquerda da área que estou pesquisando; devo lembrar do material que vem de montante para jusante, desde a cabeceira até o ponto em que me encontro. Trabalhamos em um país tropical, então o modelo que pretendo utilizar, é adequado ao ambiente em que trabalho? É como o que acontece por exemplo quando..., aí vou entrar numa seara que não conheço muito bem, mas gostaria de lembrar um caso relacionado com a interpretação da posição dos líticos dentro dos perfis. A geomorfologia da zona tropical conta com trabalhos bastante detalhados sobre os processos de movimentação natural dos materiais grosseiros -do ponto de vista sedimentológico- dentro dos perfis. Tive, no ano passado, o privilégio de encontrar entre meus alunos um arqueólogo preocupado com esta questão, que ficou muito surpreso ao saber que há muitas publicações sobre o assunto e também medidas bastante precisas sobre a migração vertical desses materiais dentro de uma matriz fina. Há inclusive índices, que não são definitivos -nem poderiam sé-lo, que dão idéia do tipo e velocidade desses movimentos. Uma outra questão: no meio tropical úmido chove, muito, e a posição do material em superfície é difícil de explicar. Duvido muito da possibilidade de se afirmar com certeza que o material arqueológico esteve permanentemente em uma determinada posição se, por exemplo, próximo do sítio há uma vertente onde pode ocorrer escoamento superficial. Não sei se é possível afirmar que o material do sítio, que hoje está numa determinada posição, sempre esteve ali, e que o arranjo atual do material é o arranjo original. Por outro lado, não tenho como saber se esteve sempre em superfície ou, se acima dele, houve uma camada de material superficial que foi erodida. Minhas dúvidas são essas; não estou questionando as conclusões a que pode chegar-se; me refiro ao não aproveitamento dos recursos das outras disciplinas que trabalham com a mesma realidade, já que tenho a certeza de que conseguiríamos conhecer muito melhor este ambiente se trabalhássemos juntos. É uma prática que, no Brasil, dificilmente acontece; geomorfólogo não fala com pedólogo, que não fala com hidrólogo e climatólogo e, ainda, não sabe dialogar com que trabalha com sistemas geográficos de informação, já que, às vezes o computador ainda dá medo.

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Um último aspecto que gostaria de levantar, sem intenção de criar problemas por causa do que eu vou dizer. É difícil aceitar, em relação ao caso do colega que fez referência ao gasoduto, que o mesmo governo que estipulou as regras para desenvolver os estudos de impacto ambiental para todos os tipos de ocupação que podem afetar o ambiente, o mesmo governo que garante -em tese- a possibilidade de se fazer um trabalho completo de campo e tudo mais, não forneça os meios de os pesquisadores poderem trabalhar. Esse é um caso específico, e haveria várias questões a levantar nesse trabalho do gasoduto. Em primeiro lugar são áreas extremamente complexas, que precisariam de estudos em 1:1, muito finos. Depois, os meios com que se conta para fazer este tipo de estudos, que só podem ser baseados em trabalho de campo. Quando se trata de uma área estratégica, a pesquisa direta deveria ser obrigatória, pelo menos, em áreas previamente escolhidas pelos pesquisadores para amostragem. Fosse com uma equipe de vigilância junto, mas o campo não pode ser omitido nunca. E no caso, por tratar-se de uma área extremamente complexa do ponto de vista da morfologia, das condições dos materiais em que estão sendo realizadas as obras de implantação do gasoduto, e em especial da mecânica desses solos, avaliações detalhadas são fundamentais. Eu pergunto, qual o papel dos órgãos responsáveis? Se a Petróbras não pode fazer (...), como pode ser solicitada uma pesquisa de extrema precisão para instalação do gasoduto se não são dadas, aos pesquisadores, as possibilidades de examinar o local diretamente? Acho que aí, com todo o cuidado possível, há uma questão ética a ser discutida. Qual é o interesse real em um estudo que seja, verdadeiramente, uma avaliação precisa do impacto que será criado com uma obra que é necessária a uma área extensa do Brasil? Obrigada. Irmhild Wüst - Alguém da mesa quer fazer algum comentário? Jorge Eremites - Em primeiro lugar. eu achei suas colocações bastante pertinentes. Tenho a dizer o seguinte, com relação às considerações sobre o gasoduto: na verdade, o governo não orientou as pesquisas, ele financiou; a orientação, do ponto de vista metodológico, foi nossa. O grande problema que nós tivemos em campo foi com relação às condições materiais para se realizar as pesquisas. Nós selecionamos um rol de equipamentos necessários para o trabalho de campo e ficou acertado que contaríamos com esse material em campo; ao chegarmos em campo, nem todo o material estava disponível. Nós conseguimos identificar os sítios arqueológicos em fotografias aéreas de l:60.000 porque, no Pantanal, ocorrem savanas em grande parte, possibilitando visualizar, em fotografias aéreas, os capões de mato, as cordilheiras, que são em muitos casos aterros. O problema maior se deu numa área específica, que pega uns 30km, que nós não pudemos acessar porque é uma área muito brejosa (somente a pé ou por embarcações). E, nesta área, só pudemos contar com imagens de satélite de 1:100.000, onde já é mais difícil visualizar os sítios. Esse foi o problema com que nos deparamos em campo e que a PETROBRÁS não conseguiu solucionar. Então, o que nós achamos mais pertinente foi colocar isso na avaliação, para que a PETROBRÁS assumisse essa responsabilidade, porque não poderíamos dizer que esta área estava liberada. Por isso, colocamos como uma das exigências que a PETROBRÁS plotasse todos os capões de mato e cordilheiras que ocorrem nessa área e a que não tivemos acesso. Em caso de haver algum que o gasoduto passasse em cima, então eles teriam que repensar o traçado.

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Esta é realmente uma questão ética muito complicada; em campo, normalmente a gente se depara com estes problemas. Uma coisa é quando você acerta o trabalho, outra coisa é quando você vai a campo e se depara com as condições reais. Outra questão que foi muito importante, é que nós exigimos um veículo que pudesse ter acesso pelo Pantanal, no caso uma Toyota, e nós tivemos um VW Gol que, no primeiro momento, no primeiro dia de campo, um Gol zero quilômetro, quebrou e aí eles tiveram que viabilizar uma Toyota. É claro que nós identificamos áreas que entendíamos que eram áreas de maior possibilidade de se encontrar sítios; claro que isto a partir de uma experiência de quatro anos em campo. Mas todas as áreas foram percorridas a pé (350km), numa média de 12km ao dia, durante 30 dias seguidos, sem intervalos. Eu acho que o que chama mais atenção neste caso específico do gasoduto é uma questão de caráter ético mútuo, tanto do pesquisador como da empresa que financia as pesquisas. No caso de haver problemas, como foi o caso, isto não pode ficar de fora do relatório final, ele tem de ser colocado. Irmhild Wüst - Eu acho só que, comentando o seu último ponto, ele vai ser retomado provavelmente ao longo dos próximos dois dias ainda. Eu só queria ressaltar a importância desta colocação sua no sentido de que, como eu não trabalho em projetos de salvamento mas na academia, então eu me preocupo muito porque a gente está vendo que realmente estes projetos de salvamento no Brasil parece que não estão sendo levados a sério, quer dizer que vejo isso com bastante preocupação, que na maioria dos casos se trata simplesmente de cumprir uma lei e os resultados que a gente está vendo, pelo menos nos relatórios, não geram conhecimento científico. Agora, por outro lado, também a própria arqueologia brasileira se encontra numa defasagem teórico-metodológica de quase cinqüenta anos; então, com isso, também as pessoas que querem fazer uma arqueologia tipo modelo, que o Renato aqui nos apresentou, se defrontam com uma série de absolutas lacunas de dados disponíveis sobre como fazer modelo, quais são os dados arqueológicos já disponíveis. Nós não contamos com áreas sistematicamente prospectadas, por exemplo, no Brasil. Então eu acho que o objetivo do nosso encontro, realmente, é de discutir em que pé está a Arqueologia brasileira e até que ponto os dados já disponíveis permitem realmente fazer arqueologia de salvamento ou fazer diagnósticos de uma forma eficiente e eficaz; como a gente pode, então, realmente não ficar só no papel, cumprir uma lei, mas aproveitar os poucos recursos que nós temos e já que a arqueologia de salvamento em geral tem mais recursos do que a academia, então como estes recursos podem reverter para a comunidade, para se gerar realmente conhecimento. Mas acho que isto será a questão para os próximos dias, que ainda nós vamos retomar. Com isso, eu chamo o Sr Maurício Taan. Maurício Taan - Sou do Departamento do Meio Ambiente de Furnas Centrais Elétricas e agradeço a oportunidade de estar aqui. Eu gostaria de fazer duas observações, objetivamente, sem polêmica. Em relação às questões levantadas pelo professor Paulo Jobim, Marcos André, Renato e Jorge, todos com belas apresentações, eu fico me perguntando: assim como a professora Lylian sentiu falta da palavra interdisciplinariedade e geografia, eu sinto falta da palavra custo em todas as apresentações. Então, acho que vai chegar o momento, eu não sei se é agora, não sei se vai ser daqui a dois anos a três anos, que as pessoas vão ter que começar a falar em custo. Me desculpem se estou profanando. Há algum tempo eu já trabalhei em pesquisa, fui professor da UFRJ durante muitos anos, e sei como as pessoas se sentem quando agente põe a palavra custo; que o custo

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é uma coisa que nos joga na frente um espelho, que a gente tem que olhar a eficiência. Então, acontece o seguinte: a gente confunde eficiência com eficácia, a gente confunde uma série de conceitos, a gente sai trabalhando, sai fazendo coisas, e o custo traz muitas realidades para nós, traz muitos questionamentos sobre por que determinados fenômenos, quando a variável tem de ficar no infinito, você justifica tudo, você converge no infinito e todo trabalho é bom. Se você pode ter infinito tempo, infinitos recursos, qualquer trabalho acaba sendo feito. Então, o custo vai trazer realidades também, junto com estas observações que a coordenadora fez agora há pouco sobre a defasagem da arqueologia, é que nós vamos ter de começa a discutir o que eu fiz e a que custo eu fiz e se valeu e se eu usei bem os recursos que eu tinha, fossem eles um Gol ou uma Toyota, ou fossem o que fossem. Eu fiz bem aquilo com o que eu tinha, sem discutir ou entrar no mérito se eu devia ter mais o dobro ou o triplo. Como eu estou dizendo, eu estou objetivando, estou evitando polemizar as questões, então eu só estava me referindo aos três primeiros. Com relação ao professor Renato: Professor Renato, eu tenho o hábito de ver questões e discussões sobre modelos há muitos e muitos anos. Os modelos preditivos exercem um fascínio sobre o nosso imaginário muito grande, tudo que pode ser preditivo é uma coisa que nos fascina, porque pode nos dizer com uma certa antecedência o que vai acontecer, o que tem seu fascínio próprio. A questão é a seguinte: modelos a gente passa discutindo, eu me lembro que tinha um modelo numa área que eu trabalhei de planejamento em que se ficou discutindo três, quatro anos em seminários internacionais nos Estados Unidos, Inglaterra, etc; eu ia a todos eles, anotava, debatia, e tudo mais. Enquanto se discutia os modelos, era só conversa pra lá conversa pra cá; quando chegou um, eu me lembro, foi um paquistanês que vinha dos Estados Unidos e trabalhava no Serviço de Pesquisa, ele chegou e colocou o trabalho dele, comparando o modelo dele com a realidade, testou o modelo dele, eu testei para cinco casos aqui e eu tive esta confiabilidade, meu modelo então pode ter uma confiabilidade média de tanto, aplicado nestas condições de contorno. Então, a partir daí, todo mundo foi falar com o paquistanês porque ele tinha o modelo e antes as pessoas tinham equações, tinham relações, fatores de co-relação, inter-relação, mas como eu testo um modelo? Eu testo um modelo quando eu apresento que tenho um modelo preditivo. Não sei se esta é a etapa de maturação de seu estudo, realmente eu não sei, quer dizer, não é uma crítica, mas é um pano de fundo na discussão. Então modelos só tomam uma forma, deixam de ser um apelo e passam a ser uma coisa discutível no real quando se apresentam estudos de caso em que você apresenta a confiabilidade destes modelos. Segundo ponto: a qualidade de um resultado nunca pode ser melhor do que a qualidade dos dados que você coloca dentro do modelo. Então, se você tem uma modelagem maravilhosa e seus dados são de baixa qualidade, o seu resultado vai ser de baixa qualidade; o modelo em si não produz conhecimento, ele inter-relaciona conhecimentos que estão ali. Então, apesar desta questão toda, nós temos que ter confiabilidade de dados e suficiência de dados; então, a etapa de confiabilidade e suficiência são duas coisas muito importantes para você pensar em aplicar o modelo, ou seja: você pode ter um modelo muito bom, se você não tem uma análise de confiabilidade e de suficiência de dados, seu modelo não pode ser aplicado, é um bom carro e não tem combustível para ele. Terceiro, é o seguinte: diante de um quadro de que eu não tenho o mapeamento arqueológico do país, aí vem o seguinte: a necessidade do modelo. Após o modelo ser bom, após ele me dar resultados, eu também tenho que discutir se eu

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preciso de um modelo, eu preciso ser convencido de que há necessidade do modelo; (...) às vezes o modelo, para chegar a um grau de confiabilidade suficiente, tem que ter uma massa de dados tão grande, que você tem praticamente uma região em que o modelo faz muito pouco porque você já tem o mapeamento completo daquilo; então, na mão de duas ou três pessoas conhecedoras da região você chega a conclusões qualitativas e quantitativas tão boas quanto o modelo lhe daria; então isto é um outro ponto. Uma outra questão é o seguinte, as variáveis tem dois aspectos: um aspecto de controlabilidade e um aspecto de aceitabilidade. O aspecto de controlabilidade: não sei se é o caso do seu modelo, eu não tive a oportunidade de ver, mas a controlabilidade esbarra muito na questão da formulação qualitativa, ou seja, o modelo tende muito a acertar mais no numérico do que no qualitativo, então ele vai dizer tantos sítios e tal... mas, de repente, você esbarra porque ele não tem a resposta qualitativa que eu vou obter. Outra coisa: você falou nos Estados Unidos, eu tive a oportunidade de viver nos Estados Unidos em dois momentos. Um momento, há quatro anos atrás, em que tentamos ver esses modelos preditivos e, depois, eu fui fazer um curso de gerência ambiental na Secretaria de Agricultura dos USA e, aí, eu tive a oportunidade de ver aquilo quatro anos depois. Existe um problema ligado à aceitabilidade também, ou seja, qual é a aceitabilidade do modelo preditivo; por exemplo, em que grau eu convenço uma platéia porque o debate, a polêmica ambiental é que a verdade não está com ninguém, não é?. Então, acontece o seguinte: eu tenho que convencer as pessoas que eu fiz certo, eu tenho que demonstrar isto; um modelo preditivo, ele parece muito cômodo para mim, que normalmente você vai falar de meia dúzia de equações, modelos, que boa parte não vai conseguir compreender, a não ser sua pequena comunidade científica. Então, a aceitabilidade também é uma coisa muito complicada, às vezes é mais importante eu ter Ab‟Saber falando no Congresso sobre uma região da Amazônia do que eu chegar aqui com um modelo sobre aquela região; ele fala com uma credibilidade muito grande, então tem o problema da credibilidade, aceitabilidade pela opinião pública, que é uma coisa com que, nos USA, eles estão se defrontando também. Eu só queria dizer isto aí para, porventura, poder enriquecer de alguma forma as opiniões dos conferencistas Renato Kipnis - Eu vou tentar responder as questões que foram levantadas. Primeiro, eu quero deixar claro que o modelo não é a solução para tudo. Logo no começo, eu falei que o desenvolvimento do modelo parte de dados secundários em pesquisa não só de impacto ambiental mas até em pesquisa acadêmica, que sempre utiliza modelos. Também é uma coisa que está sempre sendo reformulada, quer dizer: o modelo não é nada mais que uma ciência experimental; você desenvolveu um experimento para acessar alguma coisa, você está desenvolvendo um modelo que prediz alguma coisa, vai ser testado entre os experimentos, rever resultados. Na verdade, modelo, em termos de pesquisa é um negócio utilizado, todo mundo utiliza. Em Arqueologia, é pouco utilizado o raciocínio hipotético-dedutivo. Então, esta questão do modelo e dos dados que são usados para gerar os modelos, eu concordo contigo que, mesmo nos USA, onde se tem um conhecimento muito maior, interdisciplinar, é uma questão que está sempre se desenvolvendo, sempre sendo acrescida de novos dados, que refinem o modelo. Nos USA, a problemática da utilização de modelos é uma problemática específica dentro da Arqueologia. É uma questão altamente discutida, utilizar modelos é um negócio que pouquíssimas pessoas fazem. A outra questão é que há modelos e modelos... O fato de você desenvolver um modelo não quer dizer que o modelo seja

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bom. Se você me pergunta nomes de pessoas nos USA, por exemplo, que trabalham com Arqueologia utilizando bons modelos eu teria, sei lá, três ou quatro nomes logo de cabeça, são pessoas que estão pensando e resolvendo questões que você colocou e que a todo tempo estão tentando reformular esta questão de modelos. Quanto à confiabilidade, eu passei meio por cima, mas é um negócio importantíssimo. Quando eu falo no fato de estes modelos terem que ser testados, quero dizer que o modelo tem que prever melhor do que você a priori está partindo, pois se o modelo prevê a probabilidade de que você partiu, o modelo não está sendo eficiente, é quase inútil. Outra questão, relativa aos problemas de custo, que você mencionou. Eu acho que o modelo pode ser bem útil na fase de custo e benefício porque, sem o trabalho, sem ser muito oneroso, você poderia reter condições básicas de ver potencialmente quais as áreas, em termos de patrimônio arqueológico, que vão precisar de máxima mitigação ou não. Em termos dos dados que são usados para gerar os modelos, o modelo não vai ser melhor do que os dados, eu concordo, é claro. Agora, por exemplo, para pegar os dados de morfologia de uma área, se você partir de apenas um elemento, como a questão que a Lylian colocou, de movimento vertical de peças, você pode criar modelos bem simples, em termos de quais as áreas que, potencialmente, vão ter sítios na superfície, sítios enterrados, que é uma questão que ninguém pesquisa. Agora, se você parte de questões como a de que a área em estudo está tendo uma sedimentação muito grande, e que é possível haver sítios antigos que estão enterrados a 20 ou 30m, você pode levantar questões fundamentais, ao relacionar esta probabilidade com o tipo de impacto. Se os sítios enterrados a 30m têm que ser resgatados ou não, depende do grau de profundidade do impacto. Acho que você pode partir de dados bem simples e já colocar várias questões, e refiná-los depois. É claro, se a gente vai trabalhar na Amazônia, os dados que se tem de meio ambiente, de morfologia, são em escalas muito amplas, são áreas vastas, e é complicado, porque a gente trabalha pontualmente. Até o fato de você usar modelos e trabalhar em áreas, em vez de algo pontual, propicia subsídios melhores para fazer uma avaliação. Não é perfeito, claro, e para ser perfeito vai demorar muito, principalmente no Brasil, onde a gente não tem essa formação, não tem tradição, é um negócio pouco utilizado em termos de gerenciamento. Mas eu acho que eles podem ser utilizados como forma de reduzir custos, pois prevêm as áreas de maior impacto, evitando que se pague para mitigar impactos que poderiam ter sido evitados. Só que, para serem eficientes em termos de custo, os estudos arqueológicos têm de ser começados no início dos projetos. Se o EIA é feito já na fase de execução, com o projeto já decidido, não se usou os dados da Arqueologia na computação e na criação de alternativas viáveis. Vou dar um exemplo simples para terminar: tenho um colega que trabalha muito com projetos de impacto ambiental nos USA e ele trabalhou algum tempo atrás numa área militar na região do Arizona, Novo México, que é uma região bem plana. Estava-se construindo uma estrada retilínea (custo mais baixo em termos de construção) e tinha um sítio no meio. Eles resolveram fazer uma curva e não fazer mitigação porque saía mais barato, e para eles a retilineariedade não era importante, era mais barato desviar do sítio do que mitigar. Agora, isso só é possível fazer quando você faz o estudo prévio; se está construindo a estrada e encontra um sítio, você não tem como mudar, aí você mitiga, faz o salvamento e continua a estrada, incorrendo num gasto que poderia ter sido evitado. Acho que a questão do custo arqueológico, importantíssima, é uma questão sobre a qual pouco se trabalha e pouco se pensa. Quando se trabalha com salvamento e estudos de impacto ambiental, essa questão tem de estar colocada: o arqueólogo tem de partir junto com o EIA, tem de participar das primeiras fases dos

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estudos; os subsídios arqueológicos têm de ser considerados na computação geral do projeto, na formulação das alternativas. Muito embora eu concorde com várias das questões que você levantou, acho que os modelos são úteis na formulação de alternativas e para o gerenciamento dos custos. Nos USA também foi assim, os primeiros modelos deixaram muito a desejar e, hoje, estão muito melhores, eles têm modelos muito mais robustos do que há 10-20 anos atrás, passaram a utilizar sistema informativos geográficos e conseguiram coisas muito interessantes, testadas com eficiência e responsabilidade. Por isso, acho que é uma idéia que a gente deva trabalhar. Marcos André - Só uma palavrinha rápida, ainda sobre a questão de custo. No Projeto Corumbá, Patrimônio Histórico, eu trabalhei naturalmente como pesquisador... nós envolvemos nossos consultores a respeito desta discussão sobre a eficiência desse tipo de estratégia em projetos de pesquisas porque, na verdade, quando nós estamos trabalhando com projetos como esses, nós estamos trabalhando com custo o tempo todo, nós trabalhamos com a nossa disponibilidade financeira, nós trabalhamos com tempo, nós trabalhamos com energia. Então, é de vital importância para nós, no âmbito deste projeto, que possamos discutir custos e efetivamente isto tem se realizado. Eu acho que não tenha dúvida que é fundamental que isso possa ser trazido para discussão desde os primeiros passos de aproximação entre o pesquisador e o empreendedor, até as etapas finais do empreendimento, eu não tenho dúvida. Irmhild Wüst - Gostaria de chamar em seguida o sr. Rossano Bastos. Rossano Bastos - Bem, meu nome é Rossano Bastos, eu sou arqueólogo da décima primeira coordenadoria regional do IPHAN, que tem sede no Estado de Santa Catarina. Eu acho que fica bastante difícil a gente começar a falar depois que duas pessoas já fizeram intervenções que contemplaram questões bastantes importantes. Cada vez a gente repensa as questões que vai colocar, tendo em vista a pertinência do que eles colocaram. Mas eu entendo que tem dois momentos que eu gostaria de destacar, que permearam a discussão dos palestrantes. Um primeiro momento é a questão que diz respeito à ciência e nesta questão está implícita a questão colocada pela profa. Lylian, que é a questão da interdisciplinaridade, que é a questão de novos paradigmas, que é a questão do desenvolvimento da ciência arqueológica e, como colocado pela prof. Irmhild, a Arqueologia está com cinqüenta anos de defasagem no Brasil. Quer dizer, então, que nós temos um grande problema a ser resolvido, na medida em que o avanço tecnológico, o avanço das hidrelétricas, o avanço das estradas, o avanço demográfico não cessa: é urgente a gente criar uma solução para esse problema da defasagem teórico-metodológica e prática da Arqueologia, com instrumentos como o CONAMA. Essas maneiras de intervir no espaço para procurar conhecer, identificar, promover e minimizar talvez custo e talvez perdas que jamais podemos avaliar de que tamanho são. O segundo momento, eu acho que diz respeito à cidadania, que é a maneira como estas pesquisas, que a gente já mapeou, com este grande elenco de problemas, desde a deficiência teórico-metodológica até os problemas éticos que isto tem envolvido, como este problema vai de encontro à socialização de decisões, à possibilidade de efetivamente a sociedade poder optar. Nesse sentido, a gente tem de avançar, tem de poder compatibilizar a ciência arqueológica, que engatinha - prova disto a gente tem na colocação dos companheiros com modelos preditivos; como resoluções de problemas para arqueologia, eu acho isso bastante complicado; eu acho

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que nós não temos dados suficientes nem confiáveis numa arqueologia defasada desse tipo para poder fazer modelos desse tipo, eu particularmente não gosto, eu acho que são técnicas que, como disse o colega ali, que, se você não tem dados confiáveis, não adianta você ter um instrumento altamente capacitado, é como botar dentro de um computador, de um Windows 95, dados que não são compatíveis, a gente tem de ter muito cuidado ao ser fascinado, como diz o colega, por esses modelos. Eu acho que, depois de 86, quando se cria essa necessidade por força de lei, por força de norma legal, que é a resolução do CONAMA - é interessante colocar o momento em que isto surgiu, que é logo no momento em que a gente começa a respirar, fruto de uma Ditadura Militar que se arrastou durante muito tempo - então, o que foi possível nesse momento, mapear e fazer essa resolução do CONAMA que, sem dúvida nenhuma, se constituiu num avanço, mas que de alguma maneira entravou o processo, porque já começou viciado: é o empreendedor que paga os estudos do lugar que ele vai fazer o empreendimento, é botar cachorro tomando conta de lingüiça. A pesquisa não consegue ser independente porque o empreendedor, à medida em que ele vir que a independência do pesquisador vai levar, digamos, a um custo maior ou até à inviabilidade do empreendimento, ele começa simplesmente a cercear os recursos, como foi com o companheiro aí que narrou a questão do gasoduto; quer dizer, existem maneiras muito sutis de se trabalhar no subterrâneo para que essas coisas não aconteçam; então urge, principalmente, a gente mudar esta relação porque, se a gente não mudar esta relação, a gente não vai mudar nada: ou que se faça um fundo independente que patrocine estas pesquisas para que o pesquisador tenha então autonomia e independência para optar - porque eu não soube até hoje e, se alguém sabe me diga, qual foi o RIMA que recomendou que não houvesse o empreendimento e que isto aconteceu, eu não conheço nenhum. Então, eu acho o seguinte: se a gente não partir por esta questão, a questão que se coloca hoje então é a questão da ciência, para a gente fazer da maneira como se faz hoje, é preferível que não se faça, e se a Arqueologia está realmente defasada em cinqüenta anos, como se está apregoando, então, ou a gente vai-se atualizar ou é melhor que nós não façamos, o que é mais honesto. Então, a questão de ciência é uma questão de ética; quer dizer, a gente tem um instrumento hoje que precisa ser repensado, reformulado, que é o instrumento do CONAMA e a gente tem de avançar. O EIA/RIMA e todos esses instrumentos que precisam ser repensados precisam ser uma trincheira da cidadania, eles não podem ser mais um instrumento da estratégia da hegemonia econômica para finalizar e executar seus projetos, pois é isso que tem sido feito, a despeito das populações tradicionais, a despeito dos sítios arqueológicos e do patrimônio cultural em geral, porque aqui nós estamos falando, a grande maioria tem discursado em favor somente do patrimônio arqueológico. Se a gente entra então na questão do patrimônio cultural, a questão fica muito mais complexa, porque a pesquisa interdisciplinar exige paciência, exige acúmulo, exige muita espera, e nós, que estamos ainda engatinhando em modelos preditivos, em técnicas estatísticas e matemáticas, estamos longe de chegar a este grau de confiabilidade, de ética e de aceitação de uma Arqueologia que esteja voltada explicitamente para os interesses de todos e não para interesses pequenos e comezinhos. A gente tem de enxergar que ou a nossa pesquisa ou estas intervenções vêm para contemplar uma gama mais totalizante das pessoas que estão envolvidas nesse processo, ou a gente vai precisar fazer muitos congressos para tentar legitimar o nosso trabalho, porque é isto que nós fazemos, porque se agente não conseguir olhar além do nosso umbigo, vai ser muito complicado. A Arqueologia hoje carece de recursos: aonde os financiadores negociam o preço mínimo e abaixo, eu tenho visto em Santa Catarina - R$1.000.000,00 para o RIMA da BR 101, para a

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Arqueologia R$10.000,00. O próprio profissional não se valoriza, então, como se existe o problema do mercado de trabalho, ele se vende barato e faz um trabalho que não é a contento, quer dizer, depõe contra ele mesmo. Então, estas são as questões que eu gostaria de trazer para a reflexão, essa questão da ciência, da ética e de como é que nós vamos repensar isso daqui para a frente. Obrigado. Irmhild Wüst - Chamo em seguida a professora Solange Caldarelli. Solange Caldarelli - Primeiro, eu quero retomar esta questão, já que ela está na ordem do dia, de modelos e de custos. Essa questão de custo, Maurício, eu vou retomar hoje à tarde, porque nós vamos falar de avaliação de impacto e eu vou tratar de critérios de significância que, na minha opinião, estão diretamente ligados à questão do custo. Então eu vou discutir alguma coisa agora, mas o resto vai ficar para a discussão da tarde; a questão não será esquecida. Quanto à questão dos modelos, eu vou dizer que eu acho que se deve sim incrementar a formação de arqueólogos no Brasil trabalhando com modelos, mesmo que eu especificamente jamais faça isso, porque não tenho nenhuma habilidade matemática, o que não me impede de reconhecer que é necessário, é um instrumento útil e, eu concordo com o Renato, é um instrumento de redução de custos. Agora, na minha opinião, o modelo tinha que estar lá embaixo, não é nem no EIA, mas nos Estudos de Inventário; na minha opinião, a Arqueologia não está entrando na hora certa. Nos Estudos de Inventário é que o empreendedor já deveria ter uma noção de onde o custo em qualquer campo vai ser maior e onde o custo arqueológico tem probabilidade de ser maior. Se ele optar por uma região onde o custo arqueológico vai ser alto, ele que já inclua isto no Termo de Referência, porque, se ele entra numa área desprovida de conhecimento e de alto potencial vai ser alto o custo mesmo, certo? Agora, dentro do custo alto, há métodos, há estratégias para diminuir esse custo. E eu concordo plenamente com que disse o Renato: até para um custo ser mais baixo, você precisa saber muito antes de chegar no EIA, quer dizer, apresentar estudos de alternativas de empreendimento viáveis, inclusive sabendo que, se o custo da Arqueologia vai ser alto numa das alternativas, em outros campos vai ser baixo, e assim por diante; é preciso ter uma idéia de custos individuais, de custos médios e de custos totais, financeiros, ambientais e culturais, no processo de formulação de alternativas. Ainda quanto à questão do custo, nós tivemos de dois arqueólogos opiniões divergentes. A Doutora Irmhild disse que tem muito dinheiro para a Arqueologia de contrato, mais do que para Arqueologia acadêmica, e o Rossano disse que a Arqueologia de contrato não tem dinheiro suficiente para fazer o seus estudos; então eu queria deixar uma coisa bem clara aqui, de quem está acompanhando estes estudos do começo ao fim, em vários pontos do país. Os programas de resgate até têm contado com recursos razoáveis, o problema é que eles contam com bons recursos por prazos curtos porque, como foi discutido aqui, o levantamento deveria ter começado anos atrás e, quando o pesquisador é chamado para desenvolver um programa, em que o objetivo deveria ser mitigar impactos, produzindo conhecimento, na maioria das vezes ele acaba tendo que, apressadamente, ao mesmo tempo, fazer pesquisa exploratória para avaliar o potencial arqueológico da área de estudo, realizar levantamentos para localização de sítios, selecionar os sítios a serem resgatados e promover os resgates tudo no interior e no prazo do que deveria ser apenas um programa de resgate, para cuja execução as etapas anteriores já deveriam ter sido cumpridas. Agora, os EIAs têm contado com parquissímos recursos; o arqueólogo, quando participa de um, tem

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de fazer milagre para avaliar os impactos sobre um patrimônio que ele mal conseguiu levantar. Acredito que isso explique a divergência de opinião: você, Irmhild, tem visto alguns programas e não acompanhado EIAs, o Rossano tem visto EIAs. Se, nos primeiros, os recursos financeiros parecem altos (como se, com a fartura de recursos, se pudesse compensar a falta de bons levantamentos prévios a embasar os programas), nos segundos (os EIAs) os recursos são sempre baixíssimos, tendo em vista as necessidades da pesquisa arqueológica. Então, o grande problema é este: os programas, muitas vezes, contam com recursos suficientes, mas os EIAs realmente nunca contam e os inventários passam por cima da questão arqueológica. Nesse momento, eu falo inclusive para aqueles arqueólogos que estão em órgãos governamentais, como o Eurico Miller, na ELETRONORTE, o Marcelo Gatti e a Teresa Cristina, em FURNAS, não para eles se indisporem com seus empregadores, o que inclusive não é o papel deles, mas para alertarem. E não adianta ficar repisando e lamentando o passado, quando a Arqueologia nem era pensada nos estudos de inventário: isso é passado e ponto. Acho que a questão agora é daqui para a frente, foi para isso que nós fizemos este encontro, não para ficar chorando o leite derramado. É claro que o passado deve ser mencionado no encontro, para a gente lembrar de alguns problemas que temos que acertar daqui para a frente, mas eu gostaria de dizer que, quando idealizei este simpósio, foi com o propósito de que a gente tirasse posturas a serem tomadas de agora em diante. Volrando também a uma outra questão, eu concordo que Arqueologia brasileira está defasada, nós temos uma série de deficiências teórico-metodológicas, acho que todos nós devemos ser críticos, mas, e aí eu peço desculpas à Irmhild, eu acho que a arqueologia brasileira também tem avançado. Tem aqui pessoas que eu convidei, que nem tinham contato comigo, de diversas áreas, de diversas correntes de pensamento, que aceitaram o convite, vieram para esse simpósio, e não tiveram medo de expor o que estão fazendo porque eles querem avançar, eles querem trocar experiências. Isso é um fato e o simpósio prova isso; então, eu acho que nós, brasileiros, não só temos consciência de nossos problemas, como temos também buscado avançar em sua solução. E agora eu queria partir para duas questõezinhas pontuais, de cunho restritamente arqueológico: Jorge (e essa é uma questão de postura científica diferente mesmo), naquele trabalho do gasoduto, onde você disse que um único sítio seria realmente cortado pelo empreendimento, você propôs como programa um trincheira, do que eu discordo. Se você tem um único sítio, não seria talvez o caso de fazer nesse sítio uma pesquisa exaustiva, em que você procurasse, objetivasse entender o processo de formação, de estruturação espacial daquele sítio? Se você tem quarenta sítios cortados pelo gasoduto, tudo bem trabalhar com trincheiras, mas, se você tem um único sítio atingido, é uma oportunidade ímpar, na minha opinião, para uma pesquisa de maior porte, localizada, e eu acho que aí você está deixando ocorrer um grande impacto se você reduzir a mitigação de um único sítio a uma trincheira. Essa é uma questão que eu passo para você. Para o Professor Paulo, eu pergunto mais para esclarecimento a quem ouviu, porque as pessoas falam muito rápido e nem todo mundo trabalha da mesma maneira. Você falou que no trabalho de Corumbá vocês tiveram quatro informações orais de sítios arqueológicos e que encontraram mais sete sítios. Eu pergunto: se vocês não tivessem informação oral, pela metodologia que vocês adotaram, vocês teriam encontrado aqueles quatro sítios que foram relatados pela informação oral, quer dizer, a metodologia de campo teria dado conta desses sítios também?

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Paulo Mello- Com certeza a gente acharia, porque isso também ocorreu em outra pesquisa que a gente fez no Mato Grosso, de que eu mostrei alguns slides: a hidrelétrica de Braço Norte. A gente já tinha informação de que havia dois sítios e a gente fez transets também, já que era uma área pequena, fez transects cobrindo toda a área e foram achados esses dois sítios e mais um sítio ainda na outra margem do rio, então esse método com certeza levaria à descoberta desses sítios. Jorge Eremites - Com relação à sua colocação, realmente são duas possibilidades: o que nós pensamos, num primeiro momento, foi fazer uma trincheira; como a do gasoduto é de 1m, nós pensamos em amplia-lá mais 1m de cada lado, o que daria 3m. Isso pegaria uma parte considerável do sítio e nós, na verdade, avaliamos naquele momento as questões de tempo e custo para realizar os trabalhos. O ideal seria, claro, fazer um escavação em todo o aterro, mas, pela experiência nossa, isto demandaria um tempo muito grande. O que nós pensamos no momento é que se você estudasse todo o sítio, você inviabilizaria trabalhos futuros e técnicas e métodos mais refinados e pensamos numa intervenção mínima no sítio. Nós não entendemos que todos aqueles aterros são réplicas, nós entendemos que eles podem conter informações diferentes. Irmhild Wüst - Chamo, em seguida, Walter Neves, da Universidade de São Paulo. Walter Neves - Eu vou me ater basicamente a questões metodológicas já que, ainda que eu veja com bastante simpatia a discussão mais filosófica e ética, eu acho que a mesa foi eminentemente metodológica. Eu tenho uma observação com referência ao que o Paulo disse, ao que o Marcos disse, uma observação ao que o Jorge disse e uma pergunta para o Jorge. Com referência ao Paulo eu não gostei de uma coisa na sua apresentação; você disse uma frase assim: nós temos que dar oportunidade a que todos os tipos de sítios, a que todas as manifestações sociais na área sejam amostradas; perfeito, não tem nada que tenha que retocar, e você disse que isso se resolve aplicando transects. Eu não concordo, eu acho que o transect é uma das ferramentas que você usa para dar a possibilidade de que todos os produtos da atividade social sejam amostrados, mas não é a única, nem do ponto de vista epistemológico, nem do ponto de vista da ciência pura, nem é muito menos vis-à-vis à questão do custo, porque há compartimentações paisagísticas que para você estabelecer um transect em vários quilómetros você certamente vai esgotar todos os recursos que você tem para fazer o projeto inteiro. Então, muito cuidado: quer dizer, como eu sei que no Brasil as cabeças funcionam por receita, tenho medo de que todo mundo saia daqui e vá começar a fazer transects, achando que transect é uma panacéia geral para todas as situações. Então, eu quero colocar, aqui, o meu testemunho de que transect não é uma panacéia geral, devemos sempre visar os problemas que serão atacados, visar os custos que são possíveis, que são financiados, encontrar a melhor estratégia geométrica, o melhor design possível, para que todos os elementos do comportamento social sejam amostrados. Com referência ao Marcos, você disse assim: “nós precisamos começar a fazer com que os empreendedores financiem também a pesquisa fora da área de impacto imediato, nós temos que sair fora, às vezes, daquela linha absolutamente demarcada pela área de impacto total.” Concordo plenamente com você, só que eu acho o seguinte: eu tenho visto alguns arqueólogos justificar da seguinte maneira - além da área diretamente impactada eu devo trabalhar mais 5km fora ou mais 10km ou mais 1km, que eu acho um pouco o caso do gasoduto. A minha impressão é a seguinte:

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quando se faz um trabalho de impacto ambiental, o empreendimento vai estar impactando parte de um comportamento social mais amplo, então o que eu acho é que nós temos que exigir que qualquer empreendimento impactante financie o necessário para que a gente conheça os sistemas sociais dentro do qual está aquela parcela que vai ser impactada. Então, eu sou favorável, acho que temos que batalhar com isso, mas eu acho que a solicitação do quanto mais tem de ser empiricamente justificada. Não haverá regra, vai pedir custeio de 5km ou 1km ou 50km a mais, e aí entra a idéia de que é fundamental que o diagnóstico seja levantamento de problemas e não levantamento de material. Se nós sairmos da fase do diagnóstico com um bom levantamento de problemas, nós seremos capazes de argumentar junto ao empreendedor o quanto mais se precisa trabalhar fora da área diretamente impactada. Eu sou absolutamente favorável, mas eu acho que tem que ser empiricamente justificado, é justificado com base nos problemas levantados na fase do diagnóstico. Jorge acho que você foi vítima de duas coisas que são implacáveis em qualquer levantamento sistemático, não só o de salvamento: você foi vítima da visibilidade e da conspicuidade que são duas coisas distintas, já que conspicuidade é um traço, uma característica inerente ao sítio, e a visibilidade é a somatória da conspicuidade mais as condições de cobertura ambiental. Quando você diz que, no fim de sua pesquisa, você chegou à conclusão de que justamente a área de maior importância dentro deste projeto era a área dos aterros, já que você encontrou lá cerca de 40 sítios ou mais do tipo alto, eu acho que você foi vítima da conspicuidade, e eu acho que o levantamento arqueológico tem de ser desenhado de maneira justamente a se libertar da visibilidade e da conspicuidade, ou seja, se se faz levantamento arqueológico numa área que não é naturalmente favorável à visibilidade, não tem jeito, tem-se que fazer essa interferência para criar essa visibilidade, eu acho que o que o Paulo mostrou é uma destas possibilidades. Então, quando você diz : eu tinha áreas que eu privilegiei porque elas eram naturalmente mais visíveis, mais possíveis de ser observadas e outras áreas que eu não pude observar porque não tinha visibilidade, você cometeu um viés que absolutamente neste momento é impossível de ser revertido, e daí você chegou à conclusão de que uma certa parcela era mais importante, mas não, ela era apenas a mais visível. Você só poderia dizer que aquela parcela era mais importante se você tivesse dado a mesma probabilidade dos eventos presentes serem amostrados, e você não deu isso, então você não pode dizer que aquele setor do gasoduto é mais importante que o outro, porque você não deu aos outros trechos a mesma possibilidade de os sítios arqueológicos serem visíveis de uma maneira artificial, o que eu acho complicado No caso do Renato, evidentemente que eu sou fã em gênero, número e grau, cor e cheiro da aplicação de modelo em ciência, porque modelo é a única maneira que você tem para sair de hipóteses vagas e operacionalizar sua hipóteses, e eu acho que é um fantástico mecanismo de planejamento e redução de custo. Agora, eu acho importante que a Arqueologia adote o modelo não só nas pesquisas de resgate mas também nas pesquisas acadêmicas. Só que é o seguinte: estaremos fazendo materialismo explícito, ainda que eu concorde com você que é possível fazer modelos de caráter sócio-culturais, eu e você e certamente a maior parte das pessoas que estão aqui sabe que a esmagadora maioria dos modelos se baseia naquilo que a gente chama de predominância e no ator racional; eu vou me divertir muito com esta tentativa, num país que tem a Antropologia eminentemente ideacionista, estruturalista e simbólica, e uma Arqueologia eminentemente materialista, mas essa é uma diversão particular. Muito obrigado.

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Irmhild Wüst - Alguém da mesa gostaria de responder? Jorge Eremites - Quanto à colocação, também achei muito interessante. Realmente, o problema da visibilidade foi uma das questões com que nós mais nos preocupamos na etapa de elaboração do projeto; nós pensamos em realizar intervenções em algumas áreas através de tradagens sistemáticas, da mesma forma que a gente usa em modelos probabilísticos. De fato, para área do Pantanal, as pesquisas foram mais facilitadas porque nós dispúnhamos de acúmulo muito grande de informações, então nós tínhamos já em mente um modelo de ocupação indígena do Pantanal, nós tínhamos já vários sítios levantados para áreas de moradias e vários sítios levantados para áreas inundáveis e nós, antes de partimos a campo, nós estudávamos previamente aquela região através de imagens de satélite e, quando era possível, através de fotografias áreas e cartas topográficas, de tal maneira que, para áreas inundáveis do Pantanal, que foi área onde nos encontramos a maior concentração de sítios arqueológicos, a probabilidade de você encontrar um sítio que não seja aterro é muito pequena. Você tem a probabilidade de encontrar sítios nas margens do que a gente chama lá de corixos, que são canais do rio nas margens do próprio rio e lagoas. Bom, a partir deste conhecimento acumulado do levantamento bibliográfico sobre a etnologia, a etnohistória, a história e a arqueologia dessa região, nós partimos a campo. Nas partes dos campos realmente a visibilidade é boa e você só encontra areia mesmo, nós achamos desnecessário, em função de nosso tempo, fazer tradagem. A parte mais polêmica foi a parte do planalto: para essa área nós dispúnhamos de poucos dados, embora para algumas áreas nós tivéssemos dados etnográficos, que chamavam muita atenção, pela possibilidade de ocorrência de grupos Aruakes desde o século XVII. Para essas áreas, nós realmente pensamos em realizar tradagens e pensamos especialmente naquelas áreas onde você pudesse ter alguma informação básica, seja oral, ou seja através de manchas, ou evidências em campo parecidas. Mas nós observamos, em campo, que o solo do planalto é um solo extremamente raso, geralmente como cascalho; então, tradagem nesta região era muito difícil e nós conseguimos observar que em alguams áreas tinha afloramento rochosos com arenitos petrificados, você poderia encontrar sítios líticos, oficinas líticas. Só que a área tinha mais de 100Km; isso pediria meses de trabalho de campo. Paulo Mello - Eu só queria dizer que eu não falei que o transect é a única técnica, eu falei que é a mais usada, em relação aos custos não é tão alto assim, tanto que a gente usou em Corumbá, no Braço Norte e os terrenos que existem lá são piores do que qualquer outro que a gente pode enfrentar para fazer esse tipo de trabalho. Irmhild Wüst - Eu só gostaria de fazer um rapidíssimo comentário quanto ao terceiro ponto do que o Walter falou, aquela questão de estudar sistemas sócio-culturais. Então, nós já nos conscientizamos de que não adianta criarmos simplesmente tradições, fases, mas que hoje a Arqueologia está preocupada com o ser humano, está preocupada com processos, com sistemas. Nesse sentido, tem que se fazer um esforço, de qualquer forma, de conseguir captar sistemas sazonais e a minha experiência, a pouca experiência com o projeto Corumbá foi extremamente interessante, porque os sítios que o Paulo descobriu com transects eu jamais teria descoberto, porque eu conhecia o outro lado da moeda, que eram as grandes aldeias que estavam muito longe daquelas áreas onde realmente houve aquele impacto ambiental da inundação, mas o Paulo, por sua vez, não conseguia entender aqueles sítios que estavam à beira rio, que eram acampamentos pequenos. Então, quer dizer que realmente para poder

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entender esses pequenos sítios, miseráveis, do Corumbá -me desculpe o Paulo- não dá para entender sem saber que lá no planalto, às vezes, a 10 Km, 15 Km, realmente tem as grandes aldeias. Então, nesse sentido, temos que ver uma forma de que o empreendimento também não se assuste e financie coisas que estão mais longe. Talvez possamos retomar isto numa outra oportunidade. Paulo Mello - Queria dizer que Furnas financiou uma parte dessa pesquisa fora da área, então foi possível tentar compreender esse sistema. Irmhild Wüst - Chamo o sr. Glauberto Bezerra. Glauberto Bezerra - Professora Irmhild, em nome de quem saúdo os demais membros da mesa, colegas de auditório. Meu nome é Glauberto Bezerra, sou membro do Ministério Público do Estado da Paraíba, Promotor de Justiça e Curador do Consumidor e do Meio Ambiente. Mas do que debater, apenas dar o testemunho do trabalho que nós exercemos, realizamos transdicisplinarmente: não se pode falar em matéria ambiental sem se falar em multidisciplinariedade, transdiciplinariedade, pluridiciplinariedade. Aqui estou, evidentemente não tenho conhecimento do contexto em termos arqueológicos, mas tenho os instrumentos adequados para que se exercitem os direitos da percepção, da busca de sítios arqueológicos no patrimônio cultural da humanidade, consignado no texto constitucional como Direitos Humanos. O Brasil, assim considero, tem apenas oito anos, a partir da Constituição Cidadã. Naquela carta, naquele instrumento legal estão consignados os direitos que jamais outras nações fixaram; avançada, avançada sim, utópica talvez, mas se não sonharmos ou tentarmos implementar o que ali está escrito o que será então das gerações futuras de nossos filhos, nossos netos? É direito do consumidor, direito ao ambiente, direito a ambiente saudável, está dentro do contexto dos Direitos Humanos. A tendência natural é se pensar direitos humanos como defesa de bandidos, não é isso, é muito mais do que isso, o tema é bem mais amplo. Direitos Humanos é exatamente isso: saúde, qualidade de vida e qualidade ambiental. E o Ministério Público foi inserido também na Constituição, no seu artigo 29, exatamente para instrumentalizar, para da voz à sociedade, ao povo que não tinha voz anteriormente, através das ações civis públicas, de instrumentos outros administrativos. Eu tenho ouvido falar pelos palestrantes e por membros debatedores e do auditório o problema dos custos, problema da dificuldade e da implementação da busca científica de sítios arqueológicos, mas devemos lembrar, primeiro, o texto constitucional que recepcionou todas as normas ambientais anteriores, e segundo: existe o EIA - Estudo de Impacto Ambiental e a norma básica que é exatamente a resolução n° 1 do CONAMA, que determina que sejam visualizados, verificados, estudados esses sítios arqueológicos na tentativa de passá-los para gerações futuras. Esse mesmo instrumento determina, criou duas figuras: a internalidade e a externalidade da empresa, no custo da empresa. Na internalidade, por exemplo, a empresa que venha a causar prejuízo ao cidadão por poluição, por fumaça, neste caso há não nenhum custo para a empresa neste caso, mas em termos de externalidade, todo custo operacional na percepção de um ambiente melhor, na preservação da cultura, que também está dentro dos Direitos Humanos - artigo 216 da Constituição. Eu achei de bom alvitre, excepcional, deve ser bastante divulgado esse compêndio que contém todas as normas específicas. Infelizmente, tudo isso que eu falei vem desaguar em uma única questão: Educação, Conhecimento. Infelizmente, exatamente em função dessa transdisciplinariedade, nós temos que absorver conhecimentos

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vários, ainda mais que, com a globalização das informações, nós não atentamos para determinados documentos que são básicos na nossa vida, não só em termos científicos mas no modo como vivemos e no dia-a-dia. Então, eu pergunto, quantos leram a Constituição aqui, eu acho que poucos, infelizmente até magistrados e promotores também; Código do Consumidor, muito poucos; o EIA/RIMA, aliás, a Resolução do CONAMA ou as resoluções do CONAMA, infelizmente, poucos de nós, inclusive nós promotores, operadores científicos como todos, não lemos, então nós não sabemos o direito e me permito usar aqui uma paródia do Vicentinho: nós não temos obrigação de conhecer aquilo que não nos foi informado, isso com relação a toda a população. Se nós não conhecemos o nosso direito, nós não podemos exercê-lo, porque nós não conhecemos essa realidade, ela inexiste para nós, correto? Então o que nós temos que fazer é o que o Ministério Público do Estado da Paraíba está tentando fazer, ligando a área ambiental como um todo, com toda a sua amplitude científica (...). Se vocês examinarem o artigo 1° da Resolução n° 1 do CONAMA, verão que do mesmo jeito o Código do Consumidor tem um capítulo que preconiza a saúde, a segurança do consumidor, tudo isso com respaldo, com arrimo na Constituição, então nós estamos tentando a interface entre os dois assuntos e temos conseguido, com apoio de empresários e é interessante o apoio do fornecedor para o fornecimento de uma visão de criação de produtos ambientalmente saudáveis. Quando da fixação de projetos, em relação à preservação da cultura, não se diga que há o problema da premência do tempo na realização de determinado empreendimento. Isso, muitas vezes, ocorre em todas as partes do território nacional. De repente ergue-se um prédio dentro de um mangue, como houve a tentativa de ocorrência em João Pessoa, por exemplo, e já depois de iniciada a construção nós conseguimos impedir e derrubá-la porque, contra a população, contra a sociedade, não há direito adquirido; então nós temos a lei, temos o instrumento, o Ministério Público e as Instituições não Governamentais para isso. Então todos nós temos que nos apoiar mutuamente. Para concluir (eu não tenho procuração para defender o Fórum), mas dentro do contexto, do público alvo, estão arqueólogos, historiadores, inclusive magistrados, promotores, advogados; então, me parece que, sem que a palavra interdisciplinariedade fosse citada, ela foi fixada; o objetivo me parece está sendo alcançado. Eu, por minha parte, estou felicíssimo por levar o que vou aprender aqui para minha Paraíba. Irmhild Wüst - Agradecemos. Solange Caldarelli - Primeiro, uma coisinha que eu esqueci de responder para o Rossano, a respeito de empreendimentos parados em decorrência de EIAs: em São Paulo, temos o caso da Rodovia do Sol. Reconheço que são poucos os casos, mas eles existem. Às vezes, não se está sabendo usar direito o instrumento, mas se o instrumento existe, nós temos que aprender a utilizá-lo. Se os impactos negativos forem considerados socialmente impeditivos, será possível derrubar um projeto sim: a função do instrumento é essa também. Ainda em São Paulo o município de Piraju está segurando a aprovação da UHE Piraju, também por causa do patrimônio arqueológico local, querendo ter certeza de que os impactos negativos serão efetivamente mitigados. Esse é um caso, pode ser que em Santa Catarina não tenha muitos casos desses, mas certamente outros devem existir e deverão ser cada vez mais frequentes. Agora, eu só queria levantar um gancho para essa questão de a problemática científica ultrapassar os limites da área afetada pelo empreendimento, devendo-se solicitar ao empreendedor que financie pesquisas em distâncias maiores, para

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contextualização dos eventos arqueológicos ali situados. Concordo em termos, pois, mesmo que alguns arqueólogos não concordem comigo, não podemos achar que Eletronorte, Petrobrás, Furnas são CNPq, para ficar financiando pesquisa científica. Temos que determinar até que ponto vai a responsabilidade desses empreendedores, pois, se um sítio situado nos limites de um empreendimento de 2km2, estiver relacionado com sítios situados 15 Km adiante, fica complicada a situação, e nada impede que o pesquisador, se interessado, solicite verbas de outras fontes para complementar seus estudos, na área que não está ameaçada pelo projeto. Eu gostaria de lembrar o que o representante da UNESCO comentou ontem: existe o o GEF, precisamos apreender a usar esse fundos alternativos para problemas que achamos que ficaram pendentes em questões ambientais. Se o CNPq está com poucos recursos esse ano, não se pode descontar isso em cima dos empreendedores; fazer uma redistribuição, por conta própria, dos recursos existentes no país; cada um tem sua função, é preciso haver compreensão de parte a parte. Irmhild Wüst - Passamos, agora, às perguntas do auditório. Chamo primeiro, Ana Maria de Aragão, que faz uma pergunta ao professor Marcos a respeito do sistemas sócio-culturais e como eles foram abordados durante o Projeto de Corumbá Ana Maria Aragão - Eu gostaria só de saber se realmente existe uma conclusão no EIA/RIMA a respeito de toda essa estrutura que você apresentou no seu trabalho. Marcos André - Existe, lógico, mas não no EIA/RIMA, pois nosso trabalho foi posterior ao EIA. Nós temos um relatório final, que foi concluído no início desse ano, mas eu gostaria de remeter essa discussão à próxima mesa, sobre Recursos Culturais Intangíveis, meios de diagnosticá-los, de avaliar, mitigar e monitorar seus impactos. Uma historiadora que fez parte de nosso projeto, que compôs a equipe, a professora Heloisa Capel de Ataídes, vai estar apresentando este tema do resgate da cultura intangível refletida na cultura material e na sua exposição ela vai apresentar a nossa linha de abordagem e também alguns de nossos principais resultados. Ana Maria Aragão - Eu gostaria de te perguntar só mais uma coisa: o empreendimento já teve algum tipo de conclusão, tendo em vista essa situação, ou não? Marcos André - Já. Irmhild Wüst - Temos uma série de não perguntas na aqui na mesa. Como a idéia, em princípio, era de fazer perguntas dirigidas, como a Ana Maria fez ao Prof Marcos e não fazer esse debate virar exposição, eu pediria ao pessoal para formular perguntas específicas que possam ser respondidas pelos expositores. Eduardo Lopes de Freitas - Bom dia, meu nome é Eduardo, sou geólogo da PETROBRÁS e trabalho no Setor de Meio Ambiente. Estou insistindo um pouco para falar porque a questão do gasoduto Brasil/Bolívia foi muito comentada aqui e há questões sobre este gasoduto Brasil/Bolívia sobre as quais eu poderia trazer algum esclarecimento. O objetivo da minha presença aqui é justamente esclarecer e colocar a visão da PETROBRÁS, daqui para a frente, em relação ao gasoduto Brasil/Bolívia. Primeiro, eu queria falar para o professor Jorge que o trabalho dele está muito bom; a gente tem conhecimento do trabalho que ele realizou no Mato Grosso do Sul e

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esse trabalho está sendo o fundamento de outros trabalhos que iremos realizar ao longo do gasoduto. O EIA/RIMA do gasoduto Brasil/Bolívia foi feito em 1983, quando a Petrobrás ainda tinha a idéia de fazer o empreendimento ligando Santa Cruz de La Sierra até Porto Alegre. Hoje em dia, esse empreendimento é uma realidade, ele está sendo construído efetivamente, existem licitações na rua. Várias pendências existem em relação à Licença Prévia para instalação do gasoduto; umas das pendências em relação a Mato Grosso do Sul era a questão da Arqueologia, que foi resolvida em parte. Porque em parte? Porque foi feita uma prospecção intensiva no Mato Grosso do Sul e a PETROBRÁS ainda não fez o seu dever de casa, ou seja, de pegar essa prospecção intensiva e analisá-la e proceder segundo uma avaliação econômica, principalmente se vale a pena salvar determinados sítios ou se vale a pena desviar de determinados sítios. Muito bem, então nós tivemos a oportunidade agora, no final de 96, de consolidar todos os trabalhos ambientais do gasoduto e nessa consolidação dos trabalhos ambientais, objetivando financiamento do Banco Mundial, a gente fez padronização de todo o trabalho, a gente teve a oportunidade de fazer um programa arqueológico olhando o gasoduto como uma faixa integral e não só olhando o Mato Grosso do Sul. Então, o gasoduto vai ser olhado de uma forma integral em todo o Brasil. Existe uma falta de integralidade nisso, porque no Mato Grosso do Sul existe uma parte pronta, que é uma prospecção arqueológica e ela tem de ser desmembrada em outras fases, entendeu? Agora, no resto do Brasil, os EIAs de uma maneira geral eles foram muito superficiais na abordagem da questão arqueológica, a gente tem certeza dessa afirmação. Em função disso, nós estamos articulando com o IPHAN uma reunião, que provavelmente vai ocorrer na primeira ou na segunda semana no Rio de Janeiro ou em outro local qualquer que o IPHAN articule, com todos os representantes regionais do IPHAN, para a gente poder conduzir de uma forma articulada e única toda a questão do gasoduto Nós temos uma proposta, uma proposta consolidada dentro desse trabalho, que fizemos e enviamos ao Banco Mundial, esta proposta esta lá no Banco Mundial para ser avaliada, e essa proposta contempla praticamente duas fases do trabalho: uma primeira fase, que é uma fase de prospecção intensiva e, nessa fase, ao ser localizado, identificado, localizado, cadastrado o sítio, o empreendedor, neste caso a PETROBRÁS, vai definir se interessa uma visão econômica ou científica, se há o interesse de desviar ou salvar determinados sítios e onde desviar e onde salvar os sítios. E tem uma segunda fase, que é o acompanhamento da obra efetivamente, de abertura de trincheiras, então aí é imaginado que o gasoduto é divido em treze trechos de obra, cada empresa é contratada, quer dizer ela pode pegar três trechos no máximo, e cada empresa dessas tem de ter um arqueólogo de contrato, um arqueólogo responsável e imaginamos que esse arqueólogo treine seus fiscais de campo para acompanhar efetivamente a abertura das trincheiras, através de um guia prospectivo (que será construído), um folheto que será construído como um guia prospectivo do gasoduto. Em áreas críticas, quem vai decidir isso será o arqueólogo e a prospecção será acompanhada com presença de um arqueólogo. Então, a gente tem que ter muito a visão do custo do empreendimento, o custo do trabalho arqueológico e a efetividade da obra, porque uma obra, no caso do Pantanal, ela não pode parar: você tem de iniciar a obra por uma questão de cronograma, de cheias e vazantes. Então, essa questão da Arqueologia, eu acho que é impossível a gente imaginar que uma prospecção, seja ela qual for, vá conseguir cobrir 100% do gasoduto.

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Eu sou geólogo e trabalho com prospecção de petróleo. A gente gostaria de ter uma linha sísmica a cada 10m, mas a gente não tem, tem uma linha sísmica a cada 1.5Km/2.5Km, isso em função do alvo que você quer descobrir e em função do custo que você está valorando. Então, essa visão do custo, do alvo e do tamanho, isso tudo tem de ser contemplado numa prospecção arqueológica objetivando prazo, custo, para não interromper efetivamente uma obra. Então, isso tudo tem de ser analisado quando se trabalha numa prospecção arqueológica e, de maneira alguma, a PETROBRÁS tem intenção de limitar o trabalho do arqueólogo. Quando certamente você foi a campo com um Gol, é uma norma que a PETROBRÁS admite, que eu vou para campo com um Gol e se eu te falar dos buracos em que eu me meto, você vai ficar arrepiado, porque o aluguel de uma Toyota é muito mais caro que o Gol, e o Gol é um carro alugado; então, a gente tem que adequar as condições de trabalho ao material que a gente tem: é uma arte, eu tento ser um artista, de repente. No início do gasoduto, quando a gente estava nas fases iniciais do EIA, lá em 1993, você não dispunha de mapas e fotografias aéreas de que hoje você dispõe, você dispunha de informações, de fotos satélite, de cartas 1:50.000, e hoje você já dispõe de fotos aéreas um pouco mais detalhadas. Então, toda essa questão de levantamento no Mato Grosso do Sul, que é uma coisa que interessa muito a gente, porque eu estou com pé do lado da PETROBRÁS, então eu vejo, por esse lado, que não pode ser interrompida a obra, então a gente quer fazer uma prospecção intensiva e uma decisão se salva ou não determinado sítio arqueológico e se ele é representativo de determinada região. Então, toda essa questão do gasoduto está sendo abordada de uma forma integral, porque existe um respeito da PETROBRÁS muito grande com a questão arqueológica, tanto assim que ela hoje está financiando este encontro Irmhild Wüst - Agradecemos a sua palavra e fazemos um intervalo para o almoço e retomamos a atividade às 02:00 horas da tarde.

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2ª MESA-REDONDA:

AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS AMBIENTAIS

COORDENAÇÃO: Dra. Tânia Andrade Lima Museu Nacional/UFRJ Coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES SOLANGE BEZERRA CALDARELLI Doutora em Ciências Humanas pela Faculdade de Filsosofia Letras e Ciências Humanas/USP 1979/85 - Arqueóloga do Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, atuando na formação de pessoal em arqueologia e coordenando projetos de pesquisa arqueológica nos vales dos rios Pardo, Mogi-Guaçu, Tietê e Guareí, SP 1982/85 - Coordenadora, do lado brasileiro, do Acordo de Cooperação Científica Internacional entre o Institudo de Pré-História da USP e a Unité de Recherches Archéologiques nº 28, CNRS, França. 1986/88 - Pesquisadora de Desenvolvimento Científico e Regional do CNPq, junto ao Museu Paraense Emílio Goeldi Desde 1989 - Coordenadora de projetos da Scientia Consultoria Científica (Área de Arqueologia e Patrimônio Histórico-Cultural), participando de 03 projetos de ordenação físicoterritorial em unidades de conservação e de cerca de 50 projetos de licenciamento ambiental (EIA/RIMA, LI e LO), em todas as regiões do país. Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira; da SAA-Society for American Archeology; da Seção Brasileira da IAIA-International Association for Impact Assessment e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

GILSON RODOLFO MARTINS Doutor em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Professor Adjunto de Arqueologia Brasileira e História Regional da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Coordenador do projeto de pesquisas “Arqueologia do Sítio Maracaju-01” - UFMS Integrante da equipe do projeto de pesquisas “Paleo-ambiente e Pré-História do MT” MAE/USP - IPH/MNHN/França Coordenador da etapa de levantamento do “Projeto Arqueológico Porto Primavera-MS” CESP/UFMS Responsável pelos estudos arqueológicos do EIA/RIMA do Gasoduto Bolívia-Brasil, Trecho Terenos/Três Lagoas, MS - PETROBRÁS/UFMS Conselheiro do CEDIN-Conselho Estadual dos Direito do Índio/Governo do MS Perito da Justiça Federal em MS para demarcação de terras indígenas

LÚCIA DE JESUS CARDOSO OLIVEIRA JULIANI Mestre em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Pertence ao corpo técnico do Departamento do Patrimônio Histórico da Scretaria Municipal de Cultura de São Paulo desde 1985, exercendo a Chefia da Seção Técnica de Pogramas de REvitalização e a coordenação dos Programas de Arqueologia desde 1994. Membro do CADES-Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de São Paulo desde 1995. Participa de Estudos de Impacto Ambiental e de Projetos de Resgate do Patrimônio Arqueológico e Histórico desde 1991. Membro da Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS DE GRANDES EMPREENDIMENTOS SOBRE A BASE DE RECURSOS ARQUEOLÓGICOS DA NAÇÃO: CONCEITOS E APLICAÇÕES Solange Bezerra Caldarelli A Avaliação de Impacto Ambiental é o instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente que avalia os impactos sobre o meio físico-biótico e sócio-econômico de qualquer atividade modificadora do meio ambiente acima de um determinado limite, definido pela Resolução CONAMA nº 001/86. No caso dos recursos arqueológicos, impacto é qualquer alteração em seu status quo, decorrente, direta ou indiretamente, no caso que aqui se discute, de ações executadas para a implantação de empreendimentos de engenharia que afetem o solo. Essas ações, que causam os impactos, são denominadas ações impactantes. A avaliação de impacto ambiental é um instrumento preditivo: ela busca o conhecimento prévio dos efeitos, sobre o meio ambiente, das ações necessárias à implantação de grandes projetos desenvolvimentistas. Promovendo o conhecimento prévio sobre os riscos ambientais desses projetos, a avaliação de impactos ambientais torna-se um importante instrumento de planejamento, permitindo a tomada de decisões sobre os impactos a evitar, os danos a mitigar, os benefícios a otimizar e os impactos a ignorar. Embora a AIA não seja um instrumento decisório, é um provedor de subsídios ao processo decisório. Além disso, ao menos em tese, a AIA é um instrumento democrático, pois imprime transparência aos dados sobre os quais se fundamenta o processo decisório, permitindo que a sociedade se posicione frente ao projeto em estudo e participe das decisões sobre sua implantação ou não e, em caso positivo, sobre o modo como deve-se dar essa implantação. Na Resolução nº 001, o CONAMA considerou, entre os fatores componentes do meio sócio-econômico, os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade. A partir daí, arqueólogos começaram a ser chamados para participar dos estudos de impacto ambiental de grandes empreendimentos de engenharia civil (hidrelétricas, rodovias, ferrovias, dutovias, empreendimentos urbanísticos, etc.), com o objetivo de definir e avaliar os impactos desses empreendimentos sobre os recursos arqueológicos regionais. Ao participar desses estudos, os arqueólogos devem contribuir com o processo decisório sobre o projeto em estudo, fornecendo informações relativas aos recursos arqueológicos da área de inserção do empreendimento. A fase que antecede a avaliação de impactos propriamente dita é a do diagnóstico, que já foi discutida na mesa-redonda dessa manhã. Uma vez identificados os recursos culturais da área de estudo, é preciso localizá-los em relação às alternativas do projeto, de modo a verificar qual é a alternativa menos impactante, do ponto de vista arqueológico. Parte-se, aí, para a identificação dos impactos, tendo como referência os processos tecnológicos do empreendimento, que constituirão os fatores geradores dos impactos. A identificação é a primeira fase do processo de avaliação de impactos. Vejamos quais são, de forma genérica, os principais impactos arqueológicos dos empreendimentos que mais têm solicitado o concurso de arqueólogos nos estudos de impacto ambiental em curso no Brasil. TIPO DE EMPREENDIMENTO

PROCESSO TECNOLÓGICO(1)

IMPACTO ARQUEOLÓGICO

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Abertura de estradas de serviço

Cortes de terreno

RODOVIAS

Aterros Obtenção de material natural de empréstimo Disposição de bota-fora Implantação de cobertura vegetal Remoção da cobertura vegetal Terraplenagem para instalação do canteiro de obras Escavações para instalação de vilas residenciais Cortes e aterros para vias de acesso

USINAS HIDRELÉTRICAS

Empréstimo de materiais naturais de construção Disposição de bota-fora Execução de obras de realocação (infra-estrutura e assentamentos) Desmatamento e destocamento da vegetação da área a ser inundada Enchimento do reservatório

Limpeza da faixa, com remoção da vegetação Construção de estradas de serviço

DUTOVIAS

Abertura de vala para colocação dos dutos Colocação dos dutos na vala Reaterro da vala

Cortes e aterros para implantação do sistema viário, quadras e lotes

EMPREENDIMENTOS URBANÍSTICOS

Implantação de cobertura vegetal

Pavimentação asfáltica ou tratamento do leito viário com solo e material granular compactado

1) Baseado em FORNASARI Fo.

Edificações et al. (1992)

Exposição e destruição de estruturas arqueológicas super-ficiais e subsuperficiais (-) Destruição de estruturas arqueológicas (-) Soterramento de estruturas arqueológicas (-) Destruição de fontes pretéritas de matéria-prima (-) Soterramento de estruturas arqueológicas (-) Mascaramento de estruturas arqueológicas em estratigrafia (-) Exposição e destruição de estruturas arqueológicas superficiais (-) Destruição de estruturas arqueológicas superficiais e sub-superficiais (-) Destruição de estruturas arqueológicas (-) Exposição e soterramento de estruturas arqueológicas (-) Destruição de fontes pretéritas de matéria-prima (-) Soterramento de estruturas arqueológicas (-) Exposição, soterramento e destruição de estruturas arqueológicas (-) Exposição e destruição de estruturas arqueológicas (-) Submersão de estruturas arqueológicas e descaracterização do território pretérito de captação de recursos (-) Exposição de estruturas arqueológicas superficiais (-) Exposição e destruição de estruturas arqueológicas (-) Exposição da estratigrafia de vastas extensões lineares de terrreno (+) Introdução de corpo estranho no interior dos sítios arqueológicos Fechamento dos cortes estratigráficos, impedindo a erosão dos sítios arqueológicos situados na faixa do duto (+) Exposição, destruição e soterramento de estruturas arqueológicas / descaracterização do território pretérito de captação de recursos (-) Mascaramento e perturbação de estruturas arqueológicas superficiais / descaracterização do território pretérito de captação de recursos (-) Compactação de solos arqueológicos (-) Destruição de estruturas arqueológicas superficiais e enterradas (-)

Uma vez identificados os impactos, o passo seguinte é a sua caracterização, segundo atributos explicitados na Resolução CONAMA 001/86, expostos no quadro abaixo: 73

ATRIBUTOS DE CARACTERIZAÇÃO DE IMPACTOS (RESOLUÇÃO CONAMA 001/86) Positivo / negativo Magnitude Relevância Direto / indireto Imediato, médio / longo prazo Temporário / permanente Reversível / irreversível Simples / cumulativo Numa análise de impactos, evidentemente, o primeiro aspecto que se avalia é se o impacto é negativo (adverso) ou positivo, pois são os impactos negativos e a possibilidade e os custos de sua mitigação que, efetivamente, são levados em conta na discussão da viabilidade ambiental de um empreendimento, sendo que os demais atributos (magnitude, relevância, reversibilidade, etc.), apresentados no quadro acima, têm principalmente a função de qualificá-los. Daí a importância de apresentar, aqui, critérios para avaliar se um impacto é ou não negativo, do ponto de vista dos recursos arqueológicos. Assim, temos considerado que impactos adversos são aqueles que decorrem de fatores que: destróem ou perturbam total ou parcialmente os recursos; alteram seu contexto; afetam a preservação dos dados; obstruem o acesso aos dados. Para dar um pouco mais de concretude ao tema, vamos mostrar como os atributos acima apresentados foram adaptados e utilizados na caracterização que fizemos dos impactos previstos para a UHE Piraju, projetada para a Bacia do Paranapanema, município de Piraju, SP, durante o Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento, elaborado pelo CNEC-Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S/A para a CBA-Companhia Brasileira de Alumínio S/A (CALDARELLI, 1996). A análise dos impactos seguiu-se ao levantamento arqueológico da área de estudo, feito após consulta à extensa bibliografia produzida pelo Projeto Paranapanema, atualmente coordenado pelo Dr. José Luiz de Morais, do MAE/USP, o qual também constituiu fonte oral dos estudos, fornecendo dados ainda não publicados e dando à equipe amplo acesso ao Cadastro de Sítios Arqueológicos do Projeto Paranapanema (MORAIS, 1992a)e ao Mapa de Sítios Arqueológicos do Município de Piraju (MORAIS, 1992b), documentos por ele elaborados, inéditos. A ampla colaboração do Dr. José Luiz de Morais potencializou positiva e fundamentalmente o escopo dos trabalhos, propiciando à UHE Piraju uma das melhores avaliações de impactos arqueológicos do Estado de São Paulo. Os impactos identificados, em número de sete, podem ser vistos na matriz abaixo apresentada, onde se aponta os fatores responsáveis por sua geração, seguidos de uma breve descrição de cada impacto.

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UHE PIRAJU MATRIZ DE IDENTIFICAÇÃO DE IMPACTOS: RECURSOS ARQUEOLÓGICOS FATORES GERADORES IMPACTOS DESCRIÇÃO Ações Iniciais divulgação da obra desapropriação / aquisição de terras Implantação da Infra-Estrutura de Apoio recrutamento e contratação de mão de obra desmatamento e terraplenagem para acessos, 1 1=destruição de acampamentos e aldeias canteiros, etc. pré-coloniais ampliação e melhoria da infra-estrutura 1 implantação do canteiro 1 implantação dos alojamentos e vila residencial 1 Implantação das Obras Principais mobilização dos equipamentos exploração de fontes de materiais de 2 2=destruição de oficinas líticas préempréstimo e jazidas coloniais execução das obras civis 1 deposição de material excedente em botas-foras 3 3=soterramento de vestígios arqueológicos montagem da eletromecânica implantação da linha de transmissão 1 transporte de materiais e insumos Enchimento do Reservatório desocupação da área a ser submersa desmatamento e limpeza da área de inundação 1/4 4=exposição de estruturas arqueológicas enchimento propriamente dito 5/6/7 5=submersão de sítios arqueológicos 6=erosão e dispersão de vestígios Desmobilização arqueológicos dispensa da mão de obra 7=descaracterização do entorno dos sítios arqueológicos desmobilização do canteiro e alojamentos retirada de materiais e equipamentos Operação da Usina operação da usina 6 fiscalização / manutenção da faixa de segurança

Após a identificação, cada impacto foi caracterizado, de acordo com os atributos definidos pelo CNEC, adaptados e ampliados tantos dos mencionados na Resolução CONAMA 001/86, quanto dos mencionados pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL, 1989). A caracterização dos impactos foi sintetizada numa ficha, também elaborada pelo CNEC e apresentada a seguir, da qual constam as medidas mitigadoras sugeridas, as quais foram amplamente discutidas com o Dr. José Luiz de Morais, que deverá ser o responsável por sua implantação, na fase de resgate.

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UHE Piraju - Ficha de Avaliação de Impactos - Recursos Culturais Impacto

Natureza im op po ne

di

Duração in pe te

ADA

X

X

X

X

X

X

X

ADA

X

X

X

X

X

X

X

3. soterramento de vestígios arqueológicos

ADA

X

X

X

X

X

4. exposição de estruturas arqueológicas

ADA

X

X

X

X

X

5. submersão de sítios arqueológicos

ADA

X

X

X

X

X

6. erosão e dispersão de vestígios arqueológicos

ADA

X

X

X

X

X

X

X

X

X

X

X

1. destruição de acampamentos e aldeias précoloniais 2. destruição de oficinas líticas précoloniais

Localização

7. descaracterização do entorno dos ADA sítios arqueológicos im: implantação po: positivo o: operação ne: negativo

Fase

X

X

di:direto in: indireto

Tipo

pe: perm. te: temp.

Espacializ lo di

Revers ibilid re ir

X

X

X

Medida

resgate arX queológico

resgate arX queológico

X

X

X

resgate arX queológico

X

X

resgate arX queológico

X

X

re: revers. ir: irrev.

X

X

i: imediato ml: édio/longo prazos

monitoramento arqueológico

X

registro arX queológ. da paisagem p: pequeno m: médio g: grande

Natureza p v

resgate arqueológico

X

X

X

X

lo: localizado di: disperso

Ocor- Relevân-cia Significânci rência a i m/ p m g a m b l

a: alto m: médio b: baixo

c o

c p

Eficiência p o

p

m

Responsável

g

Financ: emX preendedor Técnico: MAE/USP Financ: emX X preendedor Técnico: MAE/USP Financ: emX X preendedor Técnico: MAE/USP Financ: emX X preendedor Técnico: MAE/USP Financ: emX preendedor Técnico: MAE/USP Financ: emX X preendedor Técnico: MAE/USP Financ: emX X preendedor Téc.: MAE/US MAE/USP pv:preventiva co: corretiva cp: compensatória po:potencializadora X

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Quanto ao atributo magnitude, mencionado na Resolução CONAMA 001/86, situações concretas são as únicas que podem torná-lo claro, pois trata-se de um atributo que deve, de preferência, ter um referencial numérico, o que só pode ser feito em presença de casos reais. O exemplo que consideramos mais interessante para apontar aqui é o da duplicação da Rodovia Fernão Dias, cujo EIA foi elaborado pelo consórcio ETEL-Estudos Técnicos Ltda./TECON-Técnica e Consultoria S/C Ltda., para os DERs de São Paulo e de Minas Gerais. Na fase de avaliação de impactos deste empreendimento, nos deparamos com a necessidade de expressar numericamente a magnitude dos impactos arqueológicos da Área Diretamente Afetada do empreendimento, em cima de um levantamento amostral, da ordem de 20%, feito na Área de Influência. Não podíamos apontar o número de sítios arqueológicos existente em cada lote em que foi sudividida a rodovia, como solicitado por nossos contratantes, pois a margem de erro seria muito grande, uma vez que projetos lineares são, em geral, muito estreitos, e apenas quando a pesquisa se dá exatamente sobre o eixo do projeto é possível estimar os sítios individuais que serão afetados pelas obras. Assim, decidimos auferir o potencial arqueológico da área coberta por cada lote, em termos de percentual de cada área onde podem ocorrer sítios arqueológicos, com base nos dados ambientais da implantação dos sítios localizados no levantamento feito em campo, para os quais haviam apresentado associações positivas as variáveis topomorfologia e declividade. Os resultados obtidos revelaram-se satisfatórios e permitiram estimar o percentual da área de cada lote em que havia risco de as obras causarem impactos negativos sobre os eventuais recursos arqueológicos. Para as áreas de potencial arqueológico de cada um desses lotes, mencionadas no EIA, recomendamos levantamento arqueológico intensivo, previamente ao início das obras de duplicação da rodovia (CALDARELLI, 1992). O gráfico abaixo ilustra a magnitude das áreas que oferecem risco de terem recursos arqueológicos impactados, no trecho da rodovia situado no Estado de Minas Gerais.

100% 80% 60% 40% 20% 0% 1

2

3

4

5

6

7

8

9

10 11 12 13 14

Rodovia Fernão Dias, MG - Área percentual de cada lote, com potencial de ocorrência de sítios arqueológicos e consequente risco de incidência de impactos negativos

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Quanto à relevância, outro dos atributos mencionados na Resolução CONAMA 001/86, trata-se de um conceito, a nosso ver, que pode ser reportado diretamente ao que, em arqueologia, chamamos de significância, sobre o qual existe farta bibliografia (ver, por exemplo, DIXON, 1977; GLASSOW, 1977; MORATTO & KELLY, 1978 e SCHIFFER & HOUSE, 1977). Vamos, aqui, evocar os dois conceitos mais amplamente utilizados de significância, a saber: Significância histórica: potencial do(s) recurso(s) para identificação e reconstrução de culturas, períodos, modos-de-vida e eventos específicos. Assim recursos culturais são historicamente significantes se constituem um exemplo bem preservado de uma cultura pré-histórica, uma sociedade histórica, um período, uma categoria de atividade humana, etc. Significância científica: potencial do(s) recurso(s) para estabelecer generalizações confiáveis sobre sociedades passadas e fornecer explicações sobre as diferenças e similaridades entre elas. Assim, a significância científica depende do grau de representatividade dos recursos arqueológicos da área de estudo para uso em estudos comparativos. O valor desses dados pode estar relacionado ao contexto regional da área de estudo ou a problemas antropológicos gerais. De acordo com BUTLER (1987), a significância é sempre baseada em teoria e conhecimento científico. Um projeto de pesquisa é sempre uma avaliação do que é e do que não é conhecido sobre um sítio, um conjunto de sítios ou uma região de interesse e apresenta um plano de ação pelo qual questões pertinentes possam sr respondidas. Estratos distintos de um mesmo sítio podem, também, ter significâncias distintas. Num sítio multicomponencial em abrigo sob rocha, por exemplo, as camadas arqueológicas superiores provavelmente relacionar-se-ão a episódios pretéritos mais conhecidos que as camadas inferiores, que terão maior significância científica, pelo potencial de lançar luz sobre períodos pouco conhecidos da arqueologia. No mundo todo, os órgãos de proteção ao patrimônio fazem exigências mínimas quanto ao conteúdo dos projetos que lhes são submetidos para autorização de pesquisa. No Brasil, essas exigências mínimas são dadas pela Portaria 007/88 do IPHAN e são bem modestas em relação ao que se observa em outros países. Infelizmente, o art. 5º da portaria não incorpora a questão da significância dos recursos arqueológicos a serem estudados pelo pesquisador, nem mesmo sob a rubrica “JUSTIFICATIVA”. Também para o pesquisador, acadêmico ou não, se coloca o fato de que os recursos arqueológicos são finitos e não renováveis e, portanto, uma autorização de pesquisa só deve ser dada mediante justificativa do interesse científico do projeto. BUTLER (1987) comenta que, nos Estados Unidos, em nenhuma parte do território existem lacunas de conhecimento num grau tal que justifiquem um projeto de pesquisa baseado apenas em métodos indutivos porque nada se conhece sobre a área. No Brasil, infelizmente, o quadro é outro, o que ficou bem claro na reunião promovida pelo DEPROT/IPHAN no Rio de Janeiro, em 1995, quando foi debatida a intenção do órgão de implementar um “Programa de Recadastramento de Sítios Arqueológicos Brasileiros”, quando os arqueólogos presentes consideraram mais premente que se promovesse o levantamento e o inventário dos sítios de extensas

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regiões do Brasil, que são quase que absolutamente desconhecidas do ponto de vista da arqueologia. Voltando à questão da “justificativa”, consideramos que, ao elaborar seu projeto de pesquisa, o pesquisador deveria justificar também as operações mencionadas no art. 5º da portaria 007/88 do IPHAN, uma vez que, sendo finitos os recursos, é preciso parcimônia em seu estudo, já que o estudo arqueológico implica, como todos sabem, a destruição total ou parcial do sítio. Assim, outro conceito que deveria ser incorporado aos projetos de pesquisa nacionais é o de “redundância”. A redundância deveria ser sempre um critério de escavação e de coleta: escava-se e coleta-se até se alcançar redundância de dados para os objetivos do projeto, seja no estudo de um sítio específico, seja no estudo de uma região. É a redundância (ou recorrência) que deve orientar o problema do tamanho da amostra de material arqueológico a ser retirada dos sítios, que deve variar em função da recorrência dos bens móveis presentes no sítio, recorrência esta que está diretamente ligada ao tipo de sítio em questão. E a relevância do impacto também se relaciona diretamente ao tipo de sítio a ser impactado e determina as ações dos programas de mitigação. Assim, a intensidade da intervenção arqueológica e da coleta de material deve variar em função dos tipos de sítio. É claro que, em sítios de atividades limitadas (uma oficina lítica, por exemplo), não se justificam escavações e coletas na mesma intensidade que em sítios-base, onde o tempo prolongado da ocupação e a pluralidade das ações pretéridas desenvolvidas no espaço do sítio resultam, em geral, em expressiva densidade e diversidade de cultura material, com variações espaciais que devem ser consideradas na pesquisa de campo. Enfim, um programa de mitigação deve objetivar a cobertura de uma amostra confiável de todos os recursos culturais significativos e dos recursos naturais a eles relacionados que serão afetados pelo empreendimento, de modo a que as informações coletadas possam contribuir adequadamente para a solução dos problemas arqueológicos significativos colocados pelos recursos existentes na área de estudo. O tamanho da amostra varia de acordo com o número e a significância dos recursos arqueológicos a serem afetados direta ou indiretamente pelo empreendimento. Nos casos em que apenas um ou pequeno número de recursos arqueológicos serão afetados, o estudo de todos é recomendável, mas, na maioria dos casos, é suficiente que se estude uma parcela representativa do conjunto dos recursos da área de estudo. Uma questão que se deve ter sempre presente quando se decide e se avalia o tipo e a intensidade das intervenções arqueológicas num sítio ou numa região é: “estáse aprendendo alguma coisa nova com investigações adicionais?” Ou seja, vale a pena intensificar as escavações e coletas? A significância do sítio ou da região justifica a intensidade de escavações e coletas empreendidas? O dinheiro e o tempo gastos numa pesquisa não se justifica se o pesquisador está apenas repetindo experiências ou obtendo os mesmos resultados de pesquisadores anteriores. Caso este seja o caso, o melhor é conservar o recurso para novas questões, que se coloquem no futuro, e não exauri-lo com problemáticas e técnicas que não levem à produção de conhecimento novo. Aliás, a significância do recurso também deve ser um critério utilizado pelo contratante dos serviços arqueológicos. É preciso que se fundamente a significância alegada do recurso cultural, para se justificar o montante do recurso financeiro

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solicitado para sua pesquisa. Aliás, neste ponto a participação do órgão de proteção ao patrimônio cultural é decisiva. Como diz BUTLER (1987), arqueólogos devem avaliar a significância do recurso; podem fazer recomendações sobre ele, mas a gestão, ou seja, a decisão sobre o que deve ser feito com o recurso é de responsabilidade dos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e não do arqueólogo, já que esses recursos são bens nacionais. Para que o órgão de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, ou seja, o IPHAN, possa tomar as devidas decisões sobre os recursos arqueológicos de uma dada região, no contexto de um estudo de impacto ambiental, que é o tema deste simpósio, é importante que o arqueólogo tenha identificado e avaliado adequadamente os impactos (o que depende de ele poder contar com um bom diagnóstico prévio, elaborado em condições adequadas - condições essas que esperamos poder explicitar no documento-síntese a ser elaborado ao final do simpósio). As recomendações do arqueólogo sobre o destino a dar aos recursos arqueológicos da área de estudo consubstanciam-se nos programas apresentados ao final do EIA, os quais devem, necessariamente, ter o aval do IPHAN, o qual só pode dar esse aval se puder confrontar os impactos identificados e sua relevância com as ações propostas para seu estudo ou preservação. O IPHAN, se necessário, deve também solicitar que o arqueólogo expanda as ações previstas para o estudo, se estas forem consideradas insuficientes em relação à significância do recurso. Inclusive, no caso de mais de uma proposta ser apresentada ao IPHAN para o mesmo sítio ou para a mesma região, o que pode acontecer num sistema capitalista de livre concorrência, o IPHAN tem de decidir pela proposta mais eficaz de mitigação dos impactos previstos, excluída a hipótese de redundância de ações e resultados, único caso em que a questão do custo deve ser considerada relevante para o órgão. Aliás, a possibilidade de mais de um pesquisador vir a estudar uma mesma região a ser afetada por empreendimento implica uma mudança da postura tradicional do arqueólogo brasileiro: a da sua relação de propriedade com a área de estudo, pois no contexto da Avaliação de Impacto Ambiental, é comum um pesquisador começar onde outro terminou. Diante dessa nova realidade, novas posturas éticas se impõem: é preciso que as informações fluam entre os pesquisadores envolvidos nas diversas etapas da pesquisa, de modo a agilizar a produção de conhecimentos e a tomada de decisões sobre um objeto de estudo que tende a desaparecer rapidamente, não em função da pesquisa, mas de fatores externos. Para avaliar a importância dos recursos culturais da área de estudo, SCOVILL, GORDON & ANDERSON (1972) sugerem que sejam considerados os seguintes aspectos: Abundância relativa dos recursos a serem afetados Grau de confinamento dos recursos à área de estudo Relações culturais e ambientais entre a área de estudo e seu entorno Diversidade dos vestígios culturais contidos na área de estudo Gama de tópicos de pesquisa para os quais a área de estudo pode contribuir Deficiências específicas do conhecimento atual que podem ser supridas pela área de estudo

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Uma vez avaliada a importância ou significância dos recursos, fica mais fácil avaliar a relevância dos impactos adversos ou negativos que eles poderão vir a sofrer. Os recursos arqueológicos estão especialmente sujeitos a efeitos adversos cumulativos poque eles são não renováveis e o crescimento do conhecimento arqueológico depende da disponibilidade de uma base representativa de recursos para as futuras gerações. A produtividade científica a longo prazo só será mantida se uma amostra representativa e significativa da base de recursos culturais for preservada para estudos futuros. Todo impacto adverso sobre os recursos arqueológicos e seu contexto reduz essa amostra e esses efeitos são cumulativos e irreversíveis. Não é demais relembrar, aqui, que os recursos arqueológicos constituem o legado das gerações passadas às gerações futuras e destruí-los significa subtrair a herança a seus legítimos herdeiros. Para terminar, gostaríamos de dizer que a grande contribuição que a academia pode trazer à Avaliação de Impactos Ambientais não está na participação direta nos EIAs/RIMAs, o que só acarreta desvio de sua função primeira, que é a de fazer pesquisa básica que alimente a pesquisa aplicada, mas sim na produção de conhecimento, não apenas através da condução dos programas arqueológicos de mitigação recomendados nos EIAs/RIMAs, mas também através de estudos experimentais que elucidem os reais efeitos das ações da engenharia civil sobre os recursos arqueológicos. Esta é uma função da academia que a arqueologia de contrato não pode assumir. Uma vez mais, a UHE Piraju é um bom exemplo de programas experimentais propostos no EIA, a serem assumidos pela universidade. Um dos programas de mitigação de impactos proposto foi o “Programa de Monitoramento dos Bens Arqueológicos Submersos”, com o objetivo de observar e documentar os efeitos do enchimento do reservatório sobre as estruturas arqueológicas que ficarão às margens do lago e sofrerão a ação do turbilhonamento das águas e sobre as estruturas arqueológicas que ficarão submersas, sofrendo a ação das correntes de fundo (CALDARELLI, 1996). Pretende-se, com esse programa, trazer um pouco de luz sobre os reais efeitos dos reservatórios hidrelétricos sobre os recursos arqueológicos submersos, de modo a subsidiar a tomada de decisões sobre as medidas a serem tomadas em casos similares futuros. Esta é uma função da academia que a arqueologia de contrato pode até propor, mas não tem condições de executar, a não ser em colaboração com a própria academia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER, William B. 1987 Significance and other frustrations in the CRM Processes. Antiquity, 52 (4): 820-829.

American

CALDARELLI, Solange B. 1992 Patrimônio Arqueológico e Histórico - Avaliação de Impactos. Relatório encaminhado ao consórcio ETEL-Estudos Técnicos Ltda./TECON-Técnica e Consultoria S/C Ltda., para compor o EIA do Projeto de Duplicação da Rodovia Fernão Dias, SP/MG. São Paulo, Scientia Consultoria Científica.

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1996 Avaliação dos impactos da UHE Piraju sobre os recursos culturais locais. Relatório encaminhado ao CNEC-Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S/A, para compor o EIA da UHE Piraju, SP. São Paulo, Scientia Consultoria Científica. COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL 1989 Estudo de Impacto Ambiental-EIA, Relatório de Impacto Ambiental-RIMA; Manual de Orientação. São Paulo, Secretaria de Estado do Meio Ambiente. DIXON, Keith A. 1977 Applications of Archaeological Resources: Broadening the Basis of Significance. In: M. B. Schiffer & G. J. Gumerman (Ed.), Conservation Archaeology. New York, Academic Press, p. 277-292. FORNASARI Fo, Nilton et al. 1992 Alterações no meio físico decorrentes de obras de engenharia. São Paulo, IPT-Instituto de Pesquisas Tecnológicas. GLASSOW, Michael A. 1977 Issues in Evaluating the Significance of Archaeological Resources. American Antiquity, 42 (3): 413-420. MORAIS, José Luiz de

1992a Projeto Paranapanema - Cadastro Arqueológico Regional - 19681992. São Paulo, MAE-USP. 1992b (Org.) PROJETO PARANAPANEMA - Programa Regional de Pesquisas Arqueológicas - MUNICÍPIO DE PIRAJU - Mapa Municipal de Cadastro Arqueológico. São Paulo, MAE-USP. MORATTO, M.J. & R.E. KELLY 1978 Optimizing Strategies for Evaluating Archaeological Significance. Advances in Archaeological Method and Theory, 1: 1-30. SCHIFFER, M. B. & J. H. HOUSE 1977 An Approach to Assessing Scientific Significance. In: M. B. Schiffer & G. J. Gumerman (Ed.), Conservation Archaeology. New York, Academic Press, p. 249258. SCOVILL, GORDON & ANDERSON 1972 Guidelines for the preparation of statements of environmental impacts on archaeological resources. Arizona Archeological Center, National Park Service. Tucson, Arizona.

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AVALIAÇÃO DE IMPACTOS ARQUEOLÓGICOS DE EMPREENDIMENTOS REGIONAIS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS

Gilson Rodolfo Martins 1- Avaliação dos impactos ambientais sobre o patrimônio arqueológico e a Resolução CONAMA nº 1 de l986 Como ponto de partida para a avaliação dos impactos de um empreendimento sobre o patrimônio arqueológico deve-se considerar que todo empreendimento que é impactante sobre o meio ambiente também pode se-lo sobre o patrimônio arqueológico. Pela lei, a exigência do EIA/RIMA visa a compatibilização entre o desenvolvimento econômico-social e a preservação do equilíbrio ecológico/patrimonial. Logo, conservar um sítio é também estender a proteção ao seu entorno, entendido este como possível amostra da área de captação de recursos naturais de uma comunidade do passado. A legislação ambiental brasileira, na medida em que prevê a consulta à comunidade afetada é preservacionista e participativa. No entanto, em termos de Arqueologia, é limitada pois só é aplicada em eventos que provoquem significativa degradação patrimonial e elenca, limitadamente, os empreendimentos em que os estudos e avaliação de impactos se tornam obrigatórios. Isso é problemático, pois, como já foi visto acima, o que é arqueologicamente insignificante hoje, pode ser fundamental no futuro. Ou ainda, muitas vezes os sítios arqueológicos estão inseridos em áreas de empreendimentos onde a apresentação do EIA/RIMA não é obrigatório. Nos casos não previstos na legislação, deveria caber ao orgão oficial expedidor da licença prévia e também ao empreendedor, uma consulta obrigatória prévia ao IPHAN. 2- A problemática conceitual da Arqueologia de Salvamento No fim da década de 80, Bezerra de Menezes (1988) fez uma avaliação crítica da Arqueologia de Salvamento que, passados quase dez anos, em vários pontos, ainda é bem atual. Retomaremos, a seguir, alguns pontos que entendemos serem pertinentes à esta exposição. A Arqueologia foi definida pelo autor acima como uma ciência social que, através do estudo da cultura material, visa recuperar e explicar sistemas sócioculturais pretéritos, em sua estrutura, funcionamento e mudança. Para ele, a produção desse conhecimento científico é impossível sem um projeto de pesquisa que obedeça, necessariamente, às determinações da metodologia científica. No mesmo trabalho, comentou-se que nas primeiras elaborações conceituais sobre a Arqueologia de Salvamento, esta foi entendida como a ação científica que estabelece que todas as evidências, peças ou sítios, dotadas de “relevância”e impossíveis de serem preservadas “in loco” e ameaçadas de destruição por algum agente impactante deveriam ser “salvas” por remoção.

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Assim, uma das questões principais dessa atividade científica é estabelecer quais são os critérios para distinguir o que é relevante do irrelevante e o que, portanto, pode ser descartado pelo salvamento arqueológico. Vendo-se dessa forma, a utilização do termo “Arqueologia de Salvamento” passou a ser problemática pois parece sugerir a idéia de uma aceitação passiva diante de uma coleta seletiva e parcial de dados arqueológicos a serem impactados por um determinado empreendimento. Desde então, desenvolveu-se aquilo que o autor citado chamou de “ética da conservação”, que produziu a idéia de que o que hoje não parece relevante, no futuro poderá vir a se-lo, pois novas metodologias e recursos tecnológicos estarão disponíveis para os pesquisadores, permitindo assim um aprofundamento das análises. Repete-se o mesmo dilema dos historiadores quando têm que decidir sobre quais documentos do presente deverão ser preservados para as pesquisas históricas futuras. Assim sendo, então o que diferencia a Arqueologia de Salvamento da Arqueologia ordinária? Para o retro-citado autor, em termos de objeto e processo de produção do conhecimento, nada. As diferenças são exclusivamente de carácter circunstancial e operacional, ou seja: a- se o grau de ameaça ao bem patrimonial é total ou parcial; b- qual a delimitação da área presumivelmente afetada; c- quais os prazos para a ação efetiva dos fatores impactantes e a natureza do empreendimento. 3. O espaço regional e sua relação com o Patrimônio Histórico/Cultural A elaboração da idéia “espaço regional” baseia-se na constatação de que ele existe concretamente na natureza; a partir dos métodos da Geografia a ciência o reconstrói teoricamente, enquanto unidade ambiental, fixando seus limites naturais. Conforme Ab‟ Sáber (1994), todo espaço geográfico é resultante de uma acumulação, mais curta ou mais longa, de processos históricos cumulativos, decorrentes da atuação de múltiplos atores sociais. O que, para êle, se busca entender é o “espaço total”, pois uma região comporta pluralidade cultural e cronológica, ou seja, sucessivas paisagens são reconstruídas no tempo. Nas ciências humanas, os estudos regionais são tentativas de explicar determinadas manifestações histórico-culturais ou sociológicas ocorridas em uma conjuntura geográfica delimitada, o que, nem sempre, coincide com uma unidade ambiental homogênea e contínua. Um espaço emoldurado, necessariamente, reflete as preocupações e as razões de quem o formulou. As questões científicas são levantadas a partir de investigações que procuram a lógica de fenômenos culturais localizados. Não há um tamanho padrão para área regional, sua dimensão é estabelecida pela extensão de um determinado conjunto de dados que tenham relações entre sí ou pela equacão do investigador. Dessa forma, são inúmeras as possibilidades de abordagens científicas sobre um mesmo contexto espacial, sendo este, como já foi dito, muitas vezes suporte para vários e diferenciados sistemas culturais, reescrevendo-se, à cada análise, nova

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“cartografia”cultural. A pesquisa regional desvenda essas relações fazendo os cortes possíveis do que é homogêneo ou verificando as diferenças entre os subconjuntos. A Arqueologia de Salvamento, devido às suas espeficidades, é, na verdade, uma “cirurgia de emergência” em uma realidade espacial que se define e se impõe pelas circunstâncias determinadas pelo carácter específico de um empreendimento, ou seja, ela constrói, ficticiamente, unidades regionais que não correspondem à efetiva realidade de um contexto arqueológico constituído. Podemos citar como exemplo o caso da UHE Porto Primavera, que subdividiu-se em dois projetos de salvamento arqueológico: o de São Paulo e o do Mato Grosso do Sul, margem esquerda e direita, respectivamente, do rio Paraná. O mesmo vale também para o caso do Gasoduto Bolívia/Brasil e sistemas viários de longas distâncias, pois o “transect” não é mais que “um fio de um largo tecido”, não sendo possível, portanto, somente com os dados da área impactada, reconstruir as correlações da trama. A somatória de vários projetos de salvamento ambiental e patrimonial em uma mesma região, associada à continuação sistemática da pesquisa arqueológica a nível acadêmico, é que poderá completar o quadro explicativo integral de uma região. A partir de uma tipologia da ação econômica, a nível regional, e de seus impactos no meio ambiente, que por sua vez afetam também, muitas vezes, o patrimônio arqueológico e cultural, elaborada por Ab‟ Sáber (1994), construímos, com adaptações, um quadro, onde pretendemos estabelecer uma relação entre os principais impactos ambientais e seus possíveis efeitos no patrimônio histórico e cultural (v. quadro 1): Quadro 1 - Atividades econômicas e seu potencial de impacto no patrimônio cultural Tipos de região Naturalo u silvestre

Tipos de empreendimento a-Ocupações pioneiras agropastorís em lugares favoráveis a assentamentos coletivos

Tipos de impactos ambientais

Possíveis impactos sobre o patrimônio histórico/cultural “Picadas” de acesso; desmaDestruição total ou parcial de tamentos; queimadas; movisítios pré-históricos e etnomentação superficial do solo para arqueológicos; conflitos étni-cos cultivo agrícola; abertura de com populações indígenas poços; instalações de edifitradicionais. cações agropastorís de peque-no porte; erosão superficial por ravinamento e lixiviação em taludes de terraços fluviais b-Abertura de Desmatamentos; queimadas; Destruição total ou parcial de grandes áreas para canais de irrigação; açudes; sítios etno-arqueológicos e prépastagens e/ou sistema viário vicinal; linhas de históricos; descarac-terização de projetos agrícolas eletrificaçào rural; grande paisagens de significativa de grande porte movimentação mecanizada do relevância; conflitos étnicos com solo; terraplanagem; instala-ções populações indígenas de edificações complexas (sedes, currais, galpões, seca-deiras, etc); exposição da superfície a processos ero-sivos; assoreamento da malha hídrica vizinha; poluição agro-tóxica

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c-Instalação de grandes projetos de colonização

Tipos de região

Abertura de sistema viário Destruição total ou parcial de vicinal e linhas de sítios etno-arqueológicos e eletrificação; desmatamentos; pré-históricos; descaracterizaqueimadas; urbanização ção de paisagens; conflitos planejada; grande étnicos com populações movimentação mecanizada indígenas dos solos; terraplanagem de gran-des áreas; canais de irrigação; açudes; edificações urbanas complexas (escolas, hospitais,etc)

d- extrativismo vegetal

Abertura de “picadas”; desmatamento da cobertura primária facilitando processos erosivos da superfície

Destruição parcial de sítios arqueológicos localizados no nível da superfície; descaracterização de paisagens naturais

Tipos de empreendimento e- extrativismo mineral

Tipos de impactos ambientais

Possíveis impactos sobre o patrimônio histórico/cultural Destruição total de sítios etnoarqueológicos e pré-históricos; destruição total ou parcial de abrigos sob rocha com inscrições rupestres; destruição de lajedos com petróglifos; destruição total ou parcial de monumentos naturais com carácter simbólico para populações indígenas; conflitos étnicos com populações indígenas; destruição de sítios espeleológicos de significativa relevância paisagística Destruição total de inúmeros sítios arqueológicos; submersão de lajedos com petróglifos e abrigos com inscrições rupestres; submer-são de monumentos naturais como cachoeiras, barras de tributários, etc; descaracterização de paisagens de significativa relevância e valor simbólico para populações tradicionais; deslocamento espacial de populações tradicionais e indígenas;conflitos étnicos

f- Grandes projetos hidrelétricos

Abertura de “picadas”; abertu-ra de estradas vicinais; abertu-ra de ferrovias; abalos espe-leológicos; “crateramento” da superfície; grande movimen-tação mecanizada do solo; descaracterização geomorfológica; desmatamento; desvios de sistemas hídricos; edifi-cação de complexos adminis-trativos; poluição aérea e dos mananciais

Abertura de “picadas”; sistema viário vicinal; sondagens geofísicas mecanizadas; abertura de caixas-de-empréstimo; terraplanagem; desmatamento; desvio de grandes cursos hídricos; inundacão de grandes áreas ribeirinhas; erosão progressiva das bordas do reservatório; graves agressões à fauna e flora; complexas instalações industriais nos canteiros de obras; implantação de núcleos habitacionais; construções de pontes sobre a rede tributária; instalação de longas linhas de transmissão; reflorestamento e implantação de áreas de recreação nas margens do

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g- Dutovias

reservatório. Abertura de “picadas”; sistema Destruição total ou parcial de viário vicinal; sondagens geo- sítios arqueológicos; conflitos físicas mecanizadas; desmata- étnicos mento integral da área do “transect”; abertura de vala com significativa incisão pedológica; canteiros de obras; instalações industriais de gera-ção de energia

Tipos de Tipos de Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o região empreendimento patrimônio histórico/cultural h- Rodovias e Abertura de “picadas”; sondaDestruição total ou parcial de ferrovias gens geofísicas; terraplanagem, inúmeros sítios arqueo-lógicos; aterros e dematamento na linha descaracterização de do “transect”; caixas-demonumentos naturais como empréstimo; asfaltamento e morros, vales, etc, com valor cascalhamento; canteiros de paisagístico ou simbóliobras; processos erosivos dos co/cultural; conflitos étnicos acostamentos e barrancos; edificações do sistemas de apoio e serviços permanentes ao usuário e ao sistema; pontes e túneis i-Projetos de Desmatamentos; açudes, po-ços; Destruição parcial de sítios desenvolvimento e áreas de plantio; pasta-gens; arqueológicos; ruralização do sustentação sistema viário; instalação de espaço natural tradicional; deseconômica em edificações escolares, encaracterização da arquitetura áreas indígenas fermarias e unidades admitradicional; destruição parcial ou nistrativas; pistas de pouso integral de áreas de capta-ção de recursos naturais com potencial de uso cultural (por ex. plantas medicinais); integracionismo cultural agrícola a- áreas extensas Desmatamento; esgotamento dos Destruição total ou parcial de de monocultura solos; intensa movimen-tação sítos arqueológicos; agrícola ou mecânica dos solos; descaracterização de paisagens pastagens assoreamento da rede hídrica; de relevância significativa acentuada erosão pluvial; poluição agrotóxica dos solos e águas; eliminação da fauna e flora originais; instalação de complexas edificações rurais; açudes e canais de irrigação; abertura de linhas de transmissão de energia; pistas de pouso. b reflorestamento Desmatamento da cobertura Destruição parcial de sítios vegetal em áreas recuperadas arqueológicos; descaracterização naturalmente; perturbação da de paisagens naturais fauna; movimentação intensa da superfície quando do plan-tio das mudas; erosão acen-tuada da superfície dos solos e

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assoreamento hídrico. Tipos de Tipos de Tipos de impactos ambientais Possíveis impactos sobre o região empreendimento patrimônio histórico/cultural c- pólos regionais Implantação de complexo Destruição total ou parcial de de apoio e serviços sistema viário; grandes áreas de sítios arqueológicos; terraplanagem; multiplica-ção de descaracterização de paisagens vilas e povoados; linhas de naturais transmissão de energia; po-luição dos mananciais urbana a- Grandes obras Intensa pavimentação da Destruição total ou parcial de de engenharia civil superfície; terraplanagem de sítios arqueológicos históricos, para insta-lação de grandes áreas; movimentação do etno-arqueológicos e préprojetos solo em obras subterrâneas; históricos; descaracterização de habitacionais, intensa ocupação das áreas monumentos arquitetônicos e anéis viários, ribeirinhas artísticos; destruição ou descanalizações de caracterização de paisagens córregos, distri-tos urbanas tradicionais (ruas, industriais, bairros, praças,etc) aeroportos, centros comerciais, etc; metrô; redes subterrâneas de telefonia, saneamento e energia turística a-urbanização da Desmatamento; abertura de redes Destruição total ou parcial de orla litorânea de saneamento básico; poluição sítios arqueológicos, princisanitária; terrapla- nagem; palmente, sambaquis; descafragilização de enracterização de paisagens costas naturais; “pasteurização” de populações tradicionais, por ex., colônias de pescadores b- valorização Desmatamentos na periferia; Destruição total ou parcial de turística de áreas terraplanagens; calçamentos; monumentos históricos, artísticos históricas e poluição dos mananciais; ame culturais;destruição parcial ou culturais urbanas pliação do sistema viário; total de sítios arqueológicos (ex. Olinda, instalação de complexas Corumbá, etc) edificações de serviço e apoio ao turismo c- caça/pesca e Desmatamento parcial com Destruição/descaracterização ecoturismo abertura de trilhas e edifica-ções parcial de sítios arqueológicos turísticas nas margens de cursos ribeirinhos e abrigos com fluviais; alterações em áreas inscrições rupestres; descaespeleológicas; pertur-bação da racterização parcial de monufauna; queimadas; lixo mentos espeleológicos

Sendo assim, conforme o tipo de empreendimento, ocorrerá uma alteração em menor ou maior grau na integridade dos sítios arqueológicos de uma região. Qualquer projeto de pesquisa que pretenda ter uma abrangência espacial extensiva, deverá considerar as variáveis acima. Qualquer síntese de conhecimento arqueológico regional, implicará em relevar não só os monumentos mais

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significativos, mas também os dados científicos provenientes dos sítios impactados, independentemente do seu grau. 4- A avaliação dos impactos de empreendimentos regionais e algumas considerações sobre medidas mitigadoras Como já foi comentado anteriormente os critérios para definir uma região são variáveis, bem como a extensão da mesma. Entretanto alguns projetos, devido ao seu gigantismo, são evidentemente impactantes a nível regional. Exemplos, tais como a Hidrovia Paraguai-Paraná, que poderá provocar danos diretos e indiretos em grandes extensões do Pantanal, gasodutos de longa extensão, grandes barragens como Itaipu, etc, necessariamente determinam que os projetos mitigadores planejem suas ações em carácter regional. Nesses casos, muitas vezes, os efeitos chegam a ser transfronteriços. Sendo assim, alguns parâmetros podem ser estabelecidos como pressupostos para esse tipo de avaliação, a saber: Repensar as alternativas ao modelo de desenvolvimento econômico adotado; Partir da idéia de que em princípio, todo e qualquer dano deve ser evitado, e considerar a opção de alternativas para o empreendimento, ou, ao menos, opções operacionais, por exemplo, no caso do gasoduto, desvios do “transect” quando o mesmo incidir sobre sítios arqueológicos, no caso de barragens, rebaixamento das cotas de inundação; Analisar cada caso como único; Conhecer e estudar o maior número possível de situações provocadas por empreendimentos análogos; A avaliação deve sempre ser produzida numa ótica multidisciplinar, recorrendo-se e manejando-se os dados temáticos organizados pelos outros ítens integrantes do EIA/RIMA, ou seja, de forma holística, evitando a compartimentação do conteúdo, evitando situações do tipo, “o abastecimento energético de uma cidade é mais importante que salvar os peixes de tal rio”, etc; 1.A seleção do ferramental metodológico deve considerar diferentes propostas para minimizar o risco reducionista; O conhecimento da Etno-História regional deve esclarecer a extensão das áreas culturais e as unidades ambientais com elas relacionadas, verificando-se ainda a ocorrência de superposições de sistemas culturais, bem como o entendimento da dinâmica paleo-ambiental; Os recursos disponíveis e o tempo necessário para os estudos devem ser compatíveis com a complexidade do empreendimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AB‟SÁBER, A. Z. Bases conceptuais e papel do conhecimento na previsão de impactos. In: Previsão de Impactos. São Paulo, EDUSP, 1994.

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BEZERRA DE MENEZES, U. T. Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma avaliação crítica. Texto apresentado no Seminário de Salvamento Arqueológico. Rio de Janeiro, SPHAN, 1988.

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AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS DE EMPRENDIMENTOS URBANÍSTICOS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani A preocupação com os recursos arqueológicos urbanos é recente. As complexidades estruturais das áreas urbanas contribuiram, por muito tempo, para que elas recebessem pouca atenção dos arqueólogos, pois não se acreditava nas possibilidades de preservação desses recursos. O patrimônio edificado, ao contrário, devido a sua visibilidade, sempre foi objeto de ações preservacionatistas. Como reflexo direto dessa visão, com o surgimento da legislação ambiental brasileira, principalmente da Resolução CONAMA 001/86, as atenções dos avaliadores dos impactos ambientais têm sido voltadas, prioritariamente, para áreas não urbanizadas, quando o componente a ser avaliado diz respeito a recursos culturais não identificados. Outro fator agravante é que as áreas urbanas apresentam a tendência de possuir grande número de empreendimentos de pequeno porte, para os quais os órgãos ambientais não exigem os Estudos de Impacto Ambiental. A Resolução CONAMA considera, em seu artigo 2°, como empreendimentos que têm seu licenciamento vinculado aos EIA/RIMA, entre outros, os projetos urbanísticos em áreas com mais de 100 ha ou naquelas consideradas de relevante interesse ambiental. Surge, aqui, a necessidade de legislações específicas municipais que variem com o porte da cidade e que sejam mais restritivas do que a Resolução CONAMA. Papel importante desempenham, então, os planos diretores, as leis orgânicas e outros instrumentos de planejamento e gestão. Paradoxalmente, com o aparecimento do conceito de Arqueologia Urbana, a cidade passa a ser compreendida como um sistema unificado e significante de recursos materiais, loco de maiores e mais complexas ações antropogênicas, bem preservadas no registro arqueológico (SALWEN, 1982; STASKI, 1982). Percebe-se, entretanto, que o patrimônio arqueológico brasileiro ainda recebe pouca atenção dos responsáveis por estudos e projetos ambientais desenvolvidos em áreas urbanas, bem como dos próprios órgãos de gestão cultural e ambiental. O resultado é que, na maioria das vezes, essas ações apenas contemplam o patrimônio edificado pela sua alta visibilidade e consequente fácil percepção por parte dos agentes envolvidos nas avaliações. O art. 5 da Resolução CONAMA, em seu parágrafo único, define que, ao determinar a execução do EIA o órgão competente fixará as diretrizes adicionais que, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas necessárias. Entre essas diretrizes, relacionadas nos Termos de Referência, estão os componentes ambientais considerados relevantes para a elaboração de determinado EIA. O patrimônio arqueológico e histórico deveria estar sempre presente nesses termos de referência porque através desses estudos surgem as grandes possibilidades de descoberta, reconhecimento e proposta de medidas de preservação desses recursos. Nesse momento, surgem os desafios:

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- O que diagnosticar como relevante, se praticamente todo o solo urbano pode conter vestígios materiais de processos culturais passados? Desse diagnóstico advém a avaliação de impactos, portanto a definição de critérios para o diagnóstico se faz de fundamental importância. - O solo urbano, em grande parte impermeabilizado, não permite sua leitura direta. Como diagnosticar? A nosso ver, a aplicação de critérios de significância arqueológica, associados ao grau de preservação do solo urbano, definiria o potencial arqueológico, possibilitando o diagnóstico de uma área (JULIANI, 1996b). O cruzamento desses dados com o risco arqueológico, definido a partir das intervenções propostas pelo empreendimento em estudo, permitiria a identificação, valoração e interpretação dos prováveis impactos. As medidas mitigadoras aplicáveis em áreas urbanizadas, são melhor viabilizadas se desenvolvidas através de programas, na fase de implantação do empreendimento. É nesse momento, em que uma nova remodelação da paisagem urbana exige a demolição do já existente, que o solo pode ser acessado. Entre as medidas mitigadoras para os recursos culturais a serem afetados por um empreendimento proposto, os programas desenvolvidos com a participação da comunidade local na valoração dos bens e no desenvolvimento das ações, mostram a possibilidade de melhor preservação na fase de operação. SIGNIFICÂNCIA ARQUEOLÓGICA A aplicação de critérios de significância arqueológica 9 na fase de diagnóstico possibilita a previsão dos impactos e o planejamento de ações apropriadas de gerenciamento dos recursos arqueológicos. Para que esses critérios sejam utilizados de maneira eficaz na gestão dos recursos arqueológicos, é necessário que se proceda à identificação de todos os aspectos de significância possíveis, de maneira que se possa prever todos os impactos e planejar ações apropriadas de gerenciamento. A avaliação de significância é fundamental para a pesquisa arqueológica, pois influencia as decisões de quais sítios pesquisar e dos tipos de dados que se deve coletar. Do mesmo modo, nos planos de gerenciamento arqueológico, auxilia nas decisões (de preservar, alterar ou destruir recursos culturais) que se baseiam no valor dos recursos X outras considerações do planejamento. Embora a importância de um recurso arqueológico possa variar de acordo com os interesses do pesquisador é imperativo que os arqueólogos envolvidos na gestão dos recursos culturais avaliem significância além de seus interesses profissionais imediatos. Faz-se importante, também, que reconheçam que mesmo sítios pequenos, de superfície e perturbados podem ser fontes de dados arqueológicos significativos e não devem ser desconsiderados.

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Conceito altamente discutido pelos arqueólogos norte-americanos, por definir elegibilidade de sítios para o National Register of Historic Places - NRHP, segundo seu valor informativo (UTLEY, 1973).

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Fica claro, portanto, que só se pode avaliar o valor de bens arqueológicos através da formulação de um conjunto completo de questões de pesquisa (MORATTO & KELLY, 1978). McMANAMON (1990) utiliza uma abordagem de modelagem em levantamento em escala regional como auxílio para determinar significância. Discutindo que a frequência é um aspecto importante na consideração de significância de bens arqueológicos individuais, aponta o uso do modelo para determinar a frequência de sítios por tipo, num exemplo de como levantamentos visando gerenciamento de recursos culturais, modelagem e determinações de significância podem ser mesclados. SMITH (1990) sugere a utilização de significância de contexto, isto é, do modo como um sítio se relaciona com um sistema social mais amplo. Ele defende a elaboração de site surveys para a abordagem de um sítio individual em termos de suas associações históricas, pois uma vez que o contexto histórico de um sítio é claramente compreendido, seu potencial informativo para questões relacionadas àquele contexto pode facilmente ser definido em termos não ambíguos. As categorias de significância mais utilizadas pelos arqueólogos norteamericanos e que vêm gerando altas discussões e ampla bibliografia a respeito (DIXON, 1978; FOWLER, 1982; GLASSOW,1977; HICKMAN, 1978; LEES, 1990; McMANAMON, 1990; RAAB, 1977; SCHIFFER & GUMERMAN, 1978 e SCOTT, 1990, entre outros) são apresentadas a seguir: Significância histórica - Um recurso cultural é historicamente significante se ele pode ser associado com um evento ou aspecto individual específico da história (SCOVILL et al., 197210 cf. MORATTO & KELLY, 1978), ou, de maneira mais ampla, se ele pode fornecer informação a respeito dos padrões culturais durante o período histórico. Segundo DEETZ (197711, cf. MORATTO & KELLY, op cit.), um bem que pode fornecer informação sobre a interação social histórica, o uso do espaço ou sobre atividades econômicas seria significante. Portanto, o valor de bens históricos depende principalmente de sua representatividade de padrões culturais e da maneira como eles podem ser usados para estudar esses padrões (HICKMAN, 1978). Como as cidades concentram pessoas e ações, muitas facetas do passado humano de sociedades complexas estão aí melhor representadas. A maior significância histórica do ambiente urbano relaciona-se ao entendimento de sua própria evolução, apesar de que tendências históricas como imigração e assimilação, evolução dos sistemas de transporte e da tecnologia de construção podem ser considerados significantes (STASKI, 1982). Apesar da geografia urbana ter desenvolvido modelos de evolução urbana assumindo processos históricos como causas, estes apresentam certas limitações por serem baseados nas condições urbanas atuais. A arqueologia, através do estudo dos registros materiais do passado que refletem o desenvolvimento urbano, pode auxiliar no entendimento de como ocorreram esses processos.

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SCOVILL, D.; GORDON, G. & ANDERSON K. - Guidelines for the preparation of statements of environmental impact on archaeological resources. Tucson: Western Archaeological Center, U.S. National Park Service, 1972. 11 DEETZ, J. - In small things forgotten. Garden City: Anchor Press, Doubleday, 1977.

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Significância científica - “A significância científica envolve o potencial do uso de recursos culturais para o estabelecimento de fatos e generalizações confiáveis sobre o passado (MORATTO & KELLY, 1978) ou sobre as relações entre cultura material, comportamento humano e cognição (STASKI, 1982). Como os vestígios arqueológicos permitem o estudo tanto de culturas como de ambientes antigos, a arqueologia pode ser significante para o avanço tanto das ciências sociais quanto das naturais” (MORATTO & KELLY, op. cit.). Os recursos arqueológicos são significantes para as ciências sociais porque constituem uma base de dados única e não renovável para reconstrução do passado cultural e para testar proposições sobre o comportamento humano. No contexto da gestão de recursos culturais de áreas que envolvem risco eminente, o arqueólogo deve evitar que sua avaliação quanto à significância científica seja afetada por seus interesses de pesquisa, para que informações relevantes à arqueologia não sejam perdidas. Os recursos culturais materiais apresentam-se perturbados nas áreas urbanas, devido ao uso intensivo e contínuo do solo. A avaliação da natureza e da quantidade de alterações ocorridas pode fornecer contribuição significante tanto para a compreensão do fenômeno urbano quanto para a apreciação do potencial da pesquisa arqueológica em áreas urbanas (STASKI, 1982). Significância étnica - “Uma entidade arqueológica que tem importância religiosa, mitológica, social ou outra especial para uma população distinta é reconhecida como etnicamente significante”. A significância étnica envolve a importância de certos recursos culturais para a história e integridade de minorias étnicas (STASKI, 1982). A percepção intensificada de muitos grupos pelo seu patrimônio cultural, revelado em sítios arqueológicos, levou a arqueologia norte-americana a dar especial atenção à conservação desses vestígios. Recentemente, uma nova atitude vem emergindo, em diversos campos do conhecimento, nos estudos sobre as sociedades urbanas: aquela que enfatiza a sua riqueza e diversidade multicultural. Partindo da premissa de que padrões regulares e contínuos de comportamento sóciocultural deixam impressões materiais, podemos ser otimistas quanto às possibilidades de que a arqueologia possa contribuir para a compreensão das diversidades e similaridades das várias culturas e etnias formadoras da nossa sociedade atual (JULIANI, 1995). O ambiente urbano é representado pela concentração de muitos grupos étnicos que necessitam desenvolver maior resistência na afirmação de sua identidade cultural, devido ao intensivo e constante contato entre eles. Em tais situações, estes grupos estão-se movendo juntos, reagindo e ajustando-se uns aos outros, ao mesmo tempo que caminham através de seu mundo social. Como resultado, os símbolos materiais de etnicidade e a cultura material representativa do comportamento étnico são mais visíveis na cidade. Um dos resultados mais significantes dos trabalhos desenvolvidos na arqueologia histórica americana, com ênfase em sociedades específicas, tem sido a documentação de grupos historicamente excluídos em sua própria cultura, fornecendo imagens

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alternativas de identidade nacional daquelas fornecidas pela história escrita. O estudo das raízes da cultura negra americana é um exemplo (DEAGAN, 1982). A literatura arqueológica demonstra que a linha de questionamento sobre heterogeneidade social e étnica vem sendo considerada como de alta relevância para os estudos de arqueologia urbana e para definir a significância de sítios históricos visando gerenciamento e conservação, infuenciando na escolha dos sítios a serem pesquisados e dos dados a serem coletados. MORATTO & KELLY (1978), discutindo as estratégias utilizadas pelos arqueólogos americanos para definir a significância de um sítio arqueológico visando medidas de preservação, realçam a importância das relações entre a arqueologia e a sociedade atual, através de procedimentos que alcancem as necessidades e desejos do público. Ressaltam que, em circunstâncias em que a aculturação foi severa e o saber tradicional foi esquecido, a arqueologia pode fornecer o único acesso ao patrimônio de um grupo étnico. O material disponível para pesquisa documental sobre nossa sociedade, via de regra, conta a história dos vencedores e quando aborda a questão desses grupos minoritários, o faz através da visão ideológica daqueles que estavam servindo a seus próprios interesses e propósitos. Muitos grupos étnicos tem sido tão excluídos da história escrita e dos conceitos tradicionais de identidade nacional que seu passado cultural frequentemente está mais preservado na cultura material enterrada no solo do que nos documentos. SMARDZ (1995) nos mostra que o patrimônio enterrado na cidade oferece muitas oportunidades para explorar bairros étnicos e edifícios caracterizados como monumentos ao trabalho duro e ao desejo de melhoria de vida que sempre caracterizaram as populações imigrantes. Outro exemplo pode ser tomado do material encontrado nas escavações arqueológicas nas sedes rurais coloniais, em São Paulo: a miscigenação entre colono e índio, formando um elemento especial, o mameluco, que segundo os historiadores, é o responsável por um modo de ser tão diferenciado do paulista em relação às outras regiões da colônia, se traduz na cultura material resgatada nesses sítios, principalmente na cerâmica (JULIANI, 1995). Significância pública - A discussão de significância pública de sítios arqueológicos inclui as possibilidades de seu uso na educação sobre os padrões de comportamento no passado, sobre a maneira como eles podem ser estudados e sobre os benefícios derivados para o público no estudo e conservação de recursos arqueológicos. O objetivo é fazer a arqueologia tanto pública como publicamente relevante. SMARDZ (1995) nos mostra uma experiência interessante em Toronto, que demonstra como a arqueologia pode contribuir para a compreensão do multiculturalismo de uma população urbana, na valoração do patrimônio multicultural e atuar politicamente no sentido de influenciar uma população etnicamente diversa. O Departamento de Educação de Toronto desenvolve uma política de compreensão popular e a apreciação sobre os grupos culturais que auxiliaram na construção da cidade, visando dar à população um senso de propriedade e valor para os vestígios de

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culturas passadas que são escavados e formar uma geração que considere a arqueologia como parte habitual da vida de sua cidade. Os projetos arqueológicos são mais visíveis em áreas urbanas, apresentando, portanto, maiores possibilidades de contato com o público. Exercem importante papel político porque a percepção pública leva à valoração e consequente suporte e reforço à preservação dos recursos culturais. PRESERVAÇÃO DO SOLO URBANO O potencial arqueológico de uma área pode ser definido como a probabilidade de ocorrência de vestígios culturais materiais que apresentem significância para um dado contexto. Diversos fatores associados concorrem para a existência dessa probabilidade. A nosso ver, os mais importantes deles são representados pelos contextos ambiental e histórico e pelo grau de preservação do solo. Este último é determinante. Mesmo que uma área possua potencial ambiental e/ou histórico para assentamento humano, se o solo não foi preservado, é muito baixa a possibilidade de que vestígios remanescentes de uma ocupação pretérita possam ser encontrados. As cidades representam, acima de tudo, grandes assentamentos humanos. Assumindo que a escolha de um sítio para o assentamento urbano tenha levado em conta suas características ambientais, podemos afirmar que, de uma maneira geral, o contexto ambiental dessas áreas aponte para a existência de potencial arqueológico. A própria existência da cidade define seu contexto histórico. O potencial arqueológico de porções diferenciadas das áreas urbanas ou de qualquer tipo de espaço geográfico pode variar quanto aos seus contextos histórico e ambiental, e também com relação aos diferentes padrões de assentamento, em uma escala temporal. Mesmo assumindo que a análise destas variações é fundamental para que se avalie potencial arqueológico, nos concentraremos aqui na discussão do fator grau de preservação do solo urbano. Para tal, utilizar-nos-emos de um sistema classificatório de uso do solo adaptado de STASKI (1982), condizente com o contexto de São Paulo, objeto maior de nosso interesse (Tabela 1). Para esse autor, a maior preocupação dos profissionais que atuam na preservação de recursos arqueológicos em áreas urbanas está relacionada à natureza dos processos urbanos e seus efeitos sobre o registro arqueológico. Definindo a cidade como local de grandes e numerosas alterações do solo, considera as características físicas (os usos atuais do solo e os materiais resultantes desses usos) para avaliar a possibilidade de ocorrência e o grau de preservação do registro arqueológico. Em seu sistema de classificação, utiliza categorias amplas de uso e ocupação do solo, desenvolvidas para o planejamento urbano. As de maior interesse para o contexto deste trabalho são: edifícios unifamiliares, edifícios multifamiliares, áreas comerciais, industriais, de uso público, ruas e vazios urbanos.

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a) Edifícios unifamiliares - a maior estrutura presente neste tipo de uso é a casa. Pode apresentar espaços não ocupados por construções, o que parece variar com a classe social a que pertence (bairros residenciais em áreas com população de maior poder aquisitivo tendem a manter maiores parcelas de áreas não edificadas). Este tipo de solo normalmente não apresenta perturbações significantes para qualquer tipo de registro arqueológico, uma vez que as modificações da superfície não são grandes neste processo de construção. Portanto, os bairros recentes com este tipo de uso do solo são propícios à ocorrência de vestígios pré-históricos e os bairros antigos, que mantiveram seu uso, também mantém seu próprio registro arqueológico. Em ambos os casos, a preservação do solo arqueológico é considerada excelente. Percebe-se, entretanto, que a prática recente de loteamentos e construção de condomínios residenciais foge um pouco a essa regra. Como são planejados para um máximo aproveitamento do solo, podem utilizar serviços de terraplanagem para otimizar sua implantação, gerando uma alteração topográfica do terreno, que é um grande fator de destruição do solo original. Por outro lado, por ocuparem grandes áreas, geralmente são localizados em áreas de expansão urbana, que até sua implantação apresentavam solos preservados (não urbanizados). Apresentam, portanto grau de preservação variável, dependendo dos impactos que tenham sido gerados sobre a superfície original do terreno. b) Edifícios multifamiliares - as estruturas presentes são representadas por edifícios residenciais, onde o uso do solo é intensivo e são poucos os espaços não construídos. Quanto maior o edifício, mais profundas são suas fundações e, portanto, mais destrutivas. De maneira geral, o grau de preservação do registro arqueológico é baixo. c) Áreas de uso comercial - áreas com prédios e fundações de relativo porte, com poucos espaços não edificados e com subsuperfície, via de regra, perturbada. Como os distritos comerciais geralmente localizam-se no centro espacial da cidade, seu baixo potencial de preservação do solo pode ser compensado pelo seu potencial de fornecer dados sobre os períodos históricos da ocupação urbana. A prática recente de localização de centros comerciais fora dos distritos centrais, como os shopping centers, altera um pouco esse padrão. Apesar de serem construções que alteram substancialmente o subsolo, possuem grandes áreas livres, representadas pelos estacionamentos de superfície, que podem manter uma boa preservação do registro arqueológico. Embora STASKI (1982) considere que este uso do solo urbano possua grau de preservação de vestígios arqueológicos geralmente baixo, no nosso contexto podemos considerá-lo variável. Tomando os centros comerciais tradicionais da cidade de São Paulo como exemplo, percebemos que os edifícios destinados a tal uso não se diferenciam, em porte, daqueles utilizados como residências. Os centros comerciais mais modernos,

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principalmente aqueles caracterizados como centros econômicos (como a região da Avenida Paulista), mais se aproximam da categoria definida por esse autor. Consideramos, portanto, essas áreas com grau de preservação variável, dependendo de sua especificidade. d) Áreas de uso industrial - locais onde matérias primas são exploradas ou processadas. Essas áreas são as de maior grau de variação da intensidade de uso do solo e de perturbação do registro arqueológico. Variam desde áreas com solo não perturbado (reservas industriais) até completamente destruído (áreas de exploração de recursos minerais). Os distritos industriais antigos são áreas de alto potencial para a arqueologia industrial (tanto os de processamento como os de exploração de matérias-primas). Os distritos industriais recentes apresentam grau de preservação variável, dependo do tipo de uso industrial. Esse grau de preservação do solo é inversamente proporcional ao risco de destruição de vestígios arqueológicos (que é evidente nas reservas industriais). e) Áreas de uso público - incluem todos os locais a que a população em geral tem acesso (áreas de lazer) e também as de uso semipúblico (escolas). As ruas foram classificadas em uma categoria à parte, devido à sua configuração espacial diferenciada. A maior parcela dessas áreas é de propriedade pública. Áreas de lazer - são representadas por parques, jardins e praças públicas. São áreas originalmente não ocupadas, destinadas, através de planejamento público, a esses usos. Por essa razão, mantém um alto grau de preservação do solo e não apresentam risco de destruição, por serem, via de regra, consideradas áreas de preservação ambiental. Escolas - apresentam áreas edificadas de porte, bem como grandes áreas não construídas, destinadas ao lazer e ao esporte. O grau de preservação do solo é variável mas, se possuirem potencial arqueológico, podem apresentar alta significância para propósitos educacionais. f) Ruas - representam um tipo especial de solo de uso público, singulares em sua distribuição e ocupando uma porção considerável da paisagem urbana. Com exceção das grandes vias expressas, cuja construção gera grandes alterações na superfície do solo (serviços de terraplanagem), as ruas apresentam pouca perturbação do solo original. Essa perturbação está condicionada à utilização de seu subsolo por serviços de infraestrutura urbana (dutos e cabos elétricos). Apresentam grau de preservação do solo de médio a alto. g) Vazios urbanos - classificadas como áreas não utilizadas para qualquer finalidade. São representados por parcelas remanescentes na malha urbana, por áreas que não são propícias à ocupação (devido às suas características ambientais) e pelas reservas urbanas (vazios temporários, localizados especialmente nas áreas de expansão urbana, reservados para especulação imobiliária).

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Como essas áreas permanecem sem alterações em suas características originais (com exceção das não propícias à ocupação), seu solo apresenta excelente grau de preservação para vestígios arqueológicos. Por outro lado, como a demanda urbana é crescente, grande parcela destas áreas será, provavelmente, utilizada. Portanto, elas podem ser consideradas de alto risco arqueológico. Mesmo as áreas não propícias à ocupação, quando localizadas em áreas de ocupação histórica, podem conter vestígios de antigos lixões. f. Áreas rurais - são as parcelas pertencentes ao município ainda não alcançadas pela malha urbana. Embora STASKI (1982) não considere este tipo de uso em sua classificação, o consideramos de extrema importância no nosso caso, visto que São Paulo ainda mantém parcela considerável de seu território como de uso rural, especialmente em seu extremo sul. Estas áreas apresentam solos bem preservados, usados principalmente para agricultura, podendo ser definidos como de alto grau de preservação. Uma parcela permanece sem uso, ainda com vegetação original. Embora a legislação de uso e ocupação do solo não permita a sua destinação para fins urbanos, esta área vem sendo paulatinamente ocupada por grandes loteamentos irregulares, sem planejamento, que geram grandes problemas ambientais para o município. São, portanto, áreas de alto risco arqueológico, principalmente se considerarmos que é aí que ocorre a maior probabilidade de se encontrar vestígios de uma ocupação pré-colonial do território, já que elas ainda mantém um bom grau de visibilidade.

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GRAU DE PRESERVAÇÃO DO SOLO URBANO Categorias de uso e ocupação do solo Edifícios unifamiliares

Estruturas presentes

Grau de perturbação do solo baixo

casa espaços não edificados médio a alto loteamento espaços não edificados Edifícios alto edifícios residenciais multifamiliares poucos espaços não construídos Áreas de uso edifícios de porte alto comercial recente estacionamentos baixo Centros comerciais edifícios de pequeno porte baixo antigos Áreas de uso áreas de exploração de alto industrial recursos minerais distritos industriais variável reservas industriais baixo Áreas de lazer baixo parques (áreas de preservação jardins ambiental praças Escolas edificações de relativo variável (alta significância para porte propósitos grandes áreas não educacionais) edificadas Ruas infra-estrutura urbana médio a (dutos e cabos elétricos) baixo Vazios urbanos parcelas remanescentes na baixo malha urbana reservas urbanas Áreas rurais baixo atividades agrícolas vegetação original loteamentos irregulares variável

Preservação do solo arqueológico excelente variável baixo

baixo alto alto baixo e nulo variável alto alto

variável

médio a alto alto

alto variável

Tabela 1 (adaptada de STASKI, 1982)

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PESQUISA E MONITORAMENTO Um exemplo de metodologia utilizada em área urbana coberta por ruas pavimentadas e edificações pode ser extraído de OSTROGORSKY (1987), para a cidade de Seattle (USA). Esse autor utilizou uma abordagem que considerou a correlação entre alteração física e social do terreno, em avaliação de potencial arqueológico de área que seria afetada pela construção de um corredor subterrâneo para ônibus (The Downtown Seattle Transit Tunnel Project). A evolução urbana de Seattle foi marcada por um grande nivelamento da topografia original (documentado historicamente), através do qual o traçado urbano original foi destruído por cortes ou coberto com espessas camadas de aterro. Por tratar-se de área edificada, os métodos tradicionais de prospecção arqueológica (verificação de superfície e sondagens) se mostraram impraticáveis. Assim, em sua avaliação, OSTROGORSKY utilizou dados obtidos em prospecções geotécnicas para desenvolver perfis de solo que revelaram as áreas aterradas que poderiam conter recursos arqueológicos associados. Segundo DICKENS & CRIMMINS (1982), o levantamento e monitoramento arqueológico de obras de impacto ambiental requer o desenvolvimento de um plano multiestágio e multidisciplinar (Tabela 2). Essa metodologia, aplicada em São Paulo no monitoramento arqueológico da área afetada pelas obras de prolongamento da Avenida Faria Lima, mostrou-se de alta eficiência (JULIANI, 1996a, 1996b). Num primeiro estágio, o de pré-construção, seria realizada pesquisa documental e de história oral. Então, hipóteses seriam levantadas para elaboração do projeto de pesquisa. Ainda nesta fase, um levantamento de campo, identificando estruturas visíveis (geralmente arquitetônicas) com realização de sondagens em possíveis áreas não edificadas, auxiliariam no escopo do projeto. Na segunda fase, o estágio de demolição e construção, seriam desenvolvidas as ações de monitoramento e mitigação. Áreas já ocupadas que sofrem novas interferências precisam antes ser demolidas. O acompanhamento da demolição pode revelar estruturas sobrepostas e é importante para que possíveis estruturas enterradas não sejam danificadas pelas máquinas. Nesta fase, é importante que se obtenha um intervalo entre a demolição e a construção, para realização de testes arqueológicos no terreno e aplicação de técnicas arqueológicas para coleta de materiais e registro de estruturas. É ainda nesta fase que se deve decidir pela possível preservação de estruturas evidenciadas, dependendo de sua significância e das possibilidades oferecidas. No estágio pós-construção, seriam realizados os estudos complementares à pesquisa e a elaboração de relatório.

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EMPREENDIMENTOS URBANÍSTICOS Plano Multiestágio FASE

AÇÕES

PRÉ-IMPLANTAÇÃO (Diagnóstico e Avaliação de Impactos)

IMPLANTAÇÃO (Medidas mitigadoras: monitoramento e resgate)

PÓS-CONSTRUÇÃO

Pesquisa documental História oral Levantamento de campo – identificação de estruturas visíveis (geralmente arquitetônicas) – sondagens em áreas não edificadas (dependem da possibilidade de acesso) Levantamento de hipóteses Aplicação de critérios de significância Avaliação dos impactos arqueológicos Elaboração de programas de monitoramento e resgate

DEMOLIÇÃO

Acompanhamento da demolição – pode revelar estruturas sobrepostas – evita que as mesmas sejam danificadas

PRÉCONSTRUÇÃO

Testes no terreno - aplicação de técnicas arqueológicas – identificação e resgate de materiais arqueológicos – registro de estruturas – decisão sobre possível preservação de estruturas evidenciadas (depende da significância e/ou das possibilidades oferecidas)

Estudos complementares à pesquisa Elaboração de relatório

Tabela 2 (adaptada de DICKENS & CRIMMINS, 1982)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme SALWEN (1982), levantamentos compreensíveis, identificando locais prováveis e delimitando áreas “sensíveis”, tornaram-se a chave para o planejamento, para a preservação histórica e para a pesquisa arqueológica urbana. Esses levantamentos também fornecem os contextos que fazem possível avaliar a significância de manifestações arqueológicas individuais. Desta maneira, caberia aos órgãos de gestão do patrimônio cultural, através de uma política de ação preventiva, definir critérios gerais para avaliação da significância arqueológica das áreas urbanas. Caberia a eles, ainda, desenvolver instrumentos que possibilitem uma avaliação mais detalhada da significância e do potencial arqueológico de áreas urbanas específicas. Os cadastros, os inventários de áreas potenciais, o zoneamento e as cartas arqueológicas constituem ferramentas indispensáveis para o diagnóstico e avaliação de impactos em áreas sob risco arqueológico (CALDARELLI, 1992 e 1993; JULIANI, 1993, 1994/95 e 1996b). A partir dessas diretrizes gerais, os responsáveis por projetos em áreas específicas da cidade terão melhores condições de avaliação, com base em conhecimentos prévios desenvolvidos para um contexto mais amplo. Torna-se ainda fundamental que investimentos sejam realizados na percepção pública dos recursos arqueológicos. A significância pública pode exercer papel relevante na reversão da visão dos empreendedores e órgãos de gestão ambiental, que ainda consideram as áreas urbanas como de baixo potencial arqueológico.

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DEBATE

Coordenadora: Dra. Tania Andrade Lima - Museu Nacional/UFRJ Relator: Marcos André Torres de Souza - IGPA/UCG

Antecedendo os debates, falou o Sr. Damião Maciel Guedes, representante enviado oficialmente ao simpósio pelo Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, para expor as alterações que estão sendo propostas no Sistema de Licenciamento Ambiental, com vistas a tornar mais eficiente a atuação dos órgãos de meio ambiente. Sugeriu-se que as conclusões do simpósio sejam incorporadas às discussões que vêm-se desenvolvendo no âmbido do Ministério.

Tania Lima - O representante do Ministério Público da Paraíba, Glauberto Bezerra solicita uma intervenção. Glauberto Bezerra - Sobre a iniciativa do ilustre professor do Mato Grosso do Sul, eu gostaria de fazer uma ponderação. No que diz respeito ao Patrimônio Cultural e aos bens arqueológicos, a Constituição, no seu artigo 216, constitui como bem da União que tem de ser preservado, e o artigo 20 da mesma carta magna, da Constituição Cidadã, fixa indelevelmente que Patrimônio Arqueológico é bem da União. Toda legislação infra-constitucional também referenda exatamente a defesa desses bens arqueológicos e também a Resolução n° 1 do CONAMA, que foi incorporada pela Constituição Federal, alarga, inclusive, seu contexto. Então, a interpretação tem de ser extremamente alargada, mesmo que não tenha os termos tecnologia, hidrovia ou quaisquer outros termos. Nós conversávamos há pouco que qualquer supermercado que venha a ser construído em um sítio de preservação que se saiba e que possa ter um impacto na área ambiental e arqueológica ou cultural tem que contar com a presença do arqueólogo. Veja bem, para instrumentalizar isso aí, o povo, sem nenhum custo processual, pode e deve acionar a instituição pública, no sentido de devolver a construção ou alguma construção que venha impactar. O artigo 5 da Constituição, inciso 73, fala da ação popular, que é gratuita, e o cidadão deve e pode tentar mais, muito mais do que isso. Nós temos conseguido algum sucesso no estado da Paraíba nesse âmbito, exatamente pela união dos organismos e das instituições. Aqui no caso, nós aconselhamos, em função da nossa experiência, a união dos conselhos e, como todos nós somos formadores de opinião, tentar fazer com que haja aglutinação das instituições não governamentais nesse sentido. Fiquei feliz também com a iniciativa da professora no sentido de que nem precisa que haja tombamento de uma determinada área para que essa área possa e deva ser preservada juridicamente. Em João Pessoa, nós temos o ponto mais oriental das Américas e essa área é considerada pela população como bem histórico, patrimônio ambiental. Pretende-se construir e edificar naquela área e, mesmo não estando tombado legalmente e com todo processo concluído, nós conseguimos, judicialmente, impedir construção na área. Se em Roma se diz habemos Papa, no Brasil se diz habemos Legis. Leis nós temos à vontade. O importante então é instrumentalizá-las, é usa-las contra aqueles que não respeitam o cidadão por inteiro. Muito Obrigado.

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Gilson Martins - É muito gratificante saber que o Ministério Público, através de seus agentes regionais, tem dado esse salto de qualidade na sua consciência do patrimônio histórico. Apenas queria fazer um esclarecimento, não é nem a título de retificação e sim de retomar um pouco a minha fala que, talvez por falha minha, não tenha sido clara. Quando eu disse que existem lacunas ou omissões na legislação do CONAMA, eu estava refletindo sobre isso por causa da seguinte preocupação: a partir do momento que se conhece e publica a ciência de um sítio arqueológico em algum lugar, realmente não há dúvida de que a Constituição, como lei maior, já protege ou pelo menos nos dá o devido suporte legal para executar alguma ação protecionista. A minha preocupação durante a exposição era numa outra possibilidade: é quando o empreendimento não está previsto no elenco citado na legislação CONAMA e, portanto, não citado, o empreendedor pode se sentir à vontade para dar início à obra, fazê-la sem que a área possa ser conhecida arqueologicamente. Eu quero dizer que pode haver situações em que não se sabe da existência do sítio arqueológico e, não sendo pedido o EIA/RIMA, não se vai saber nunca e, depois do empreendimento concluído sobre o sítio arqueológico, talvez, nunca mais se saiba mesmo. Então é importante aumentar o espectro de abrangência do texto legal, justamente para prevenir estas situações. Não precisa ser só um grande empreendimento, às vezes um pequeno empreendimento como um supermercado, um posto de gasolina pode estar atingindo um desses sítios de grande significação científica e patrimonial. Então, minha preocupação é que esse tipo de obra, como não está incluída na lei, o executante pode fazê-la sem pedir uma autorização, um reconhecimento prévio se existe ou não sítio arqueológico. A minha idéia é que talvez, quando se faz uma solicitação de licença para uma construção qualquer, ou uma reforma de um edifício, de um domicílio urbano e se faz aquela licença na Prefeitura, que existisse algum dispositivo de verificação se nesse lugar poderia ter ou não algum sítio arqueológico. Se eu sei que tem o sítio, eu sei que não precisa estar no CONAMA, basta se basear na Constituição. Agora, quando não se sabe se tem o sítio, e o CONAMA não pede que esse tipo de empreendimento apresente o EIA/RIMA, a grande função do estudo do impacto ambiental, podemos chamar também de diagnóstico, é fazer vir à tona à existência ou não do sítio arqueológico. A partir do momento em que o EIA é elaborado, ele detecta a possibilidade de ter o sítio ou não; por isso, eu acho que ele é fundamental, mesmo que a lei superior prescinda dele neste caso. Então, minha preocupação vai um pouquinho além; são esforços comuns no sentido de aperfeiçoar e atingir os mesmos objetivos. Lucia Juliani - Eu só queria complementar, colocando que instrumentos de planejamento e medidas preventivas devem ser utilizados para que isso não aconteça. Na verdade, só podemos recorrer ao ministério público se um sítio é conhecido na área de intervenção de uma obra de menor porte. A construção de um supermercado, por exemplo, só vai mostrar que o sítio existe na hora que as obras começarem. O órgão municipal de preservação pode adotar medidas preventivas através do levantamento de áreas potencialmente arqueológicas, utilizando critérios de significância etc e tal. Esse levantamento da cidade poderia estar definindo áreas mais sensíveis, áreas de maior probabilidade de ocorrência de vestígios arqueológicos, que seriam objeto de legislações mais restritivas. Por exemplo, o zoneamento. A Lei Orgânica do Município de São Paulo, em um de seus artigos, diz que as obras que ocorrerem em sítios arqueológicos devem ser monitoradas e acompanhadas por arqueólogos. Na instrução desse artigo, pretendemos substituir o termo “sítios 107

arqueológicos” por “áreas de interesse ou de potencial arqueológico”, a serem definidas pelo órgão de preservação do patrimônio cultural municipal; serão utilizados critérios de significância para definir essas áreas. Seria uma maneira de tentar resolver essa questão. Não se faz necessariamente a exigência de um EIA para uma área tão pequena, o que oneraria demais o proprietário do empreendimento, mas algo especificamente direcionado ao patrimônio arqueológico. Tania Lima - Passamos a palavra à representante do Ministério Público do Amazonas, Maria José da Silva Nazaré. Maria Nazaré - Em primeiro lugar, eu quero cumprimentar os organizadores do evento pelo brilhantismo da palestra. Eu escrevi a minha questão, que diz que todo advogado que pede um aparte faz um discurso à parte. Então, para fugir disso e dar chance a todos que façam seus questionamentos, eu redigi a pergunta e dirigi para a doutora Solange e acho que ela é abrangente a todos na mesa. Pela Resolução n°1/86 do CONAMA, quem analisa e determina a execução ou não do estudo prévio do impacto ambiental (RIMA) é o Órgão Estadual do Meio Ambiente, que também é um Órgão licenciador, o que se encontra citado logo no parágrafo único do artigo primeiro (..) Pelo posicionamento da mesa, qual seria o embasamento legal para o IPHAN participar desse licenciamento, em discordância aos licenciamentos concedidos pelo Órgão Estadual do Meio Ambiente? Essa é a questão para o debate. Eu deixo como sugestão, talvez como advogada e promotora de justiça, aos técnicos e especialistas na área, que fosse incluído no documento final que sairá desse simpósio, aproveitando a informação do representante do Ministério do Meio Ambiente, que se destinasse um tópico para rever a questão do patrimônio históricocultural, de uma forma geral, na fase de licenciamento. Pela resolução do CONAMA, só o órgão estadual pode exigir o estudo prévio de impacto ambiental, quando outros órgãos como o IPHAN, que é o órgão administrativo que analisa essas questões, ficam totalmente de fora. Entretanto, nós sabemos que, nos órgãos estaduais, a maioria das questões são sucateadas e, quando muito, a equipe tem engenheiro florestal, biólogo, engenheiro civil e um químico. Desconheço se tem arqueólogo. Solange Caldarelli - Respondendo à questão da Professora Maria José da Silva Nazaré, eu gostaria de dizer que, na verdade, a Resolução CONAMA 01/86 abre a possibilidade de que o arqueólogo participe desde o início do processo de licenciamento, o que não significa que ele esteja sendo chamado efetivamente. A participação do IPHAN neste processo parece-me ser clara. Eu não posso fazer pesquisa arqueológica se o IPHAN não autoriza. Então, a inter-relação IPHAN e órgão ambiental (muitas vezes o órgão ambiental não tem isso claro) está fixada em lei. Para verificar o interesse arqueológico, a relevância arqueológica de uma área que vai ser impactada, é necessária a autorização do IPHAN. O IPHAN é uma instituição que está diretamente interessada neste processo e que pode intervir junto ao órgão licenciador, o que não quer dizer que se esteja fazendo uso sempre dessas possibilidades, mas elas estão previstas. Quanto ao documento final, essa questão já foi já prevista. Glauberto Bezerra - Só para complementar, a portaria n° 7 do IPHAN diz que o procedimento necessário de solicitação para pesquisa é o seguinte: o pedido de

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permissão será feito através do requerimento de pessoa natural ou jurídica privada que tem interesse em promover as atividades escritas no n° 1. Além do pedido feito ao Órgão Ambiental do Meio Ambiente, também deveria ser ouvido outro órgão ambiental que fosse federal ou passar a competência para um órgão estadual. José Luíz de Morais - A fala do colega do Ministério do Meio Ambiente, Sr. Damião, é de extrema importância, porque todo momento de alteração de alguma coisa é um momento perigoso, porque a coisa pode ser alterada para bem ou pode ficar um pouco pior. Eu sugeriria também que, para a emissão dessas sugestões, o Fórum visse alguma possibilidade de parceria com o IPHAN. O IPHAN é o órgão oficial, mas eu acho que o respaldo do Fórum viria bem a propósito nesse sentido e teria uma discussão de profissionais, uma proposta que até o IPHAN poderia encaminhar apadrinhando isso, mas com a participação efetiva de arqueólogos. Essa proposta, que sairia dessa parceria com o Fórum, deveria, dentre outros, atentar para três aspectos que eu considero extremamente importantes e que podem ser explicitados ou na próxima resolução do CONAMA ou então em qualquer outro documento infra resolução, mas assim do tipo ordem de serviço para os órgãos licenciadores ambientais que estão em níveis de estado. O primeiro aspecto é a questão da significância, em termos de impactos positivos e negativos, que deveria ser regulamentada. É um assunto perigoso porque o empreendedor pode fazer uma leitura da significância e o arqueólogo certamente fará outra. Outra questão discutida é tudo que se refere a projeto urbanístico. Eu chamo atenção, inclusive, para uma pequena distinção muito sutil, mas que é válida - é a questão da reurbanização e a questão do empreendimento urbanístico. O município é plenamente autônomo para aprovar o loteamento ou fazer certas exigências em relação ao loteamento e, sendo assim, muitas vezes, a grande maioria dos municípios e principalmente municípios médios e pequenos, agem como pequenas Repúblicas, muitos até por uma questão de não saber, não conhecer a Lei 6.766 que disciplina isso. Até mesmo essa lei faz referência à arqueologia. O artigo 13 da 6.766 diz que uma aprovação do loteamento, pelo município, depende da anuência prévia do estado, em alguns casos, e menciona as áreas de interesse arqueológico. A própria lei diz que essas áreas têm de que ser definidas por lei e elas nunca foram. Quem vai dizer se uma área é de interesse arqueológico ou não ? Eu acredito que, nesse caso, também deveria haver uma parceria muito concreta. O IPHAN (exceto para Goiás, que está no entorno do Distrito Federal) é muito longe, para as realidades municipais. Todos os municípios brasileiros são regidos por leis orgânicas que se espelham na Constituição; então, todos os municípios vão colocar, no âmbito das competências comuns com a União e com os Estados, a proteção do patrimônio arqueológico. Está portanto na lei (eles é que não sabem bem o que fazer com aquilo) e ela só precisa ser instrumentalizada para ser cumprida. Especificamente, eu acho que tem que ser explicitado que o patrimônio arqueológico tem uma condição especial, ele é bem de uso comum do povo brasileiro, é um bem da União. Então, a questão da urbanização deveria ser contemplada. A resolução do CONAMA até menciona, mas ela fala de loteamento com área superior a um milhão de metros quadrados. Ora, a maior parte dos loteamentos não tem essa extensão. E um terceiro aspecto que eu gostaria que fosse contemplado é a questão do federalismo cooperativo, que está em todo o espírito da Constituição. A Constituição brasileira simplesmente espelhou uma realidade mundial, que é o fortalecimento dos

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governos locais. Eu acho que nas etapas de licenciamento a comunidade local - por comunidade entenda-se a sua administração e o seu corpo comunitário - deve ser ouvida. A Solange mencionou o esquema que nós estamos adotando em parceria, é uma parceria entre arqueologia de contrato e arqueologia acadêmica que está se desenvolvendo na UHE/Piraju. A comunidade é muito forte e ela pode ser a mola propulsora que faz os órgãos oficiais agirem. No caso UHE/Piraju, o empreendedor está encomendando o terceiro EIA/RIMA, porque dois iniciais ainda não foram aceitos por pressões da comunidade local. Ninguém é contra o desenvolvimento, nós somos contra aquele projeto, cujo custo para a comunidade é muito elevado. Solange Caldarelli - Realmente, essa questão da parceria com o município de Piraju foi uma prova de que ela pode ser extremamente eficiente. Agora, os municípios nem sempre têm clara essa questão. Eu queria me reportar à fala da Célia Corsino afirmando que os departamentos do IPHAN resolveram realmente se preocupar com essa questão - em especial, o Departamento de Identificação. Eu acho que é uma questão de educação ambiental e uma questão de educação patrimonial. Em alguns municípios que eu conheço, mesmo quando existe essa preocupação, isso não tem criado uma linha sólida de atuação, que passe de gestão para gestão. Já Piraju está extremamente consciente, não se faz nada lá se a comunidade não aprova, mas tem muito a ver com a atuação muito sólida que você teve lá dentro, não é, José Luiz?. José Luiz de Morais - Exatamente. Eu acho que é papel da universidade municiar os municípios, porque ela atua muito no interior e nós não podemos esquecer que ela faz docência, pesquisa e extensão. Só que os pesquisadores e professores das universidades acham que o filé mignon é docência e pesquisa, aliás, muito mais pesquisa que docência, talvez. E a questão da extensão e serviços à comunidade, a questão da devolução social do que a universidade produz, é extremamente importante. Não custa a um arqueólogo que está trabalhando em um determinado local e que tem o mínimo de conhecimento de gestão de patrimônio chegar nas prefeituras e informar as possibilidades que eles teriam, a partir do momento em que tenham uma legislação que suplemente a Legislação Federal e a Legislação Estadual. Os municípios são bem receptivos quanto a isso. Eurico Miller - Normalmente esses órgãos estaduais não tem arqueólogos no seu corpo para julgar EIAS e RIMAS, isso é um grande problema. Não sei a quem cabe, se é ao IPHAN, mas isso é uma lacuna que tem de ser sanada com urgência. Alguns falam em termos de município, eu falo em termos de estado. No Acre, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, Roraima que não tem arqueólogo, mesmo que tenha um órgão representante do IPHAN, nós estaremos perdendo o patrimônio cultural que encosta nos Andes e tem influência em todo o ambiente sul-americano. Nós temos que agir, achar alguma fórmula de começar a exigir do governo. Que ele não desmantele o IPHAN, como eu sei que está incentivando o pessoal a se demitir - daqui a pouco não existirá um arqueólogo governamental e a nossa força vai ficar menor ainda. Tania Lima - Com a palavra o representante do Ministério Público de São Paulo, Daury de Paula Júnior. Daury de Paula - Eu gostaria de colocar duas questões. A primeira diz respeito à fala do representante do Ministério do Meio Ambiente, comparando o sistema americano, no qual se exige a responsabilidade pessoal do presidente da companhia (o que é

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exigido lá porque a legislação deles é inferior à nossa e isso exige responsabilidade subjetiva) à legislação brasileira, que é mais moderna, sendo aqui a responsabilidade objetiva. Aqui vai uma advertência, com todo o respeito aos senhores que trabalham com arqueologia de contrato - essa responsabilidade é extensiva ao órgão que fizer o estudo que deu embasamento à empresa. É uma questão de ordem legal, que eu acho que precisa ser colocada. O nosso ordenamento jurídico, nos aspectos legais, não pode ser comparado com a legislação alienígena. Outro aspecto que me causou bastante preocupação também envolve aspectos jurídicos e diz respeito à arqueologia de salvamento, no que se refere ao sítio localizado. Como já foi colocado aqui pelo colega da Paraíba, pelo professor membro da mesa, quando o sítio está localizado não precisa de proteção nenhuma porque ele é bem da União, é bem de uso comum do povo. Então, esse aspecto é de natureza constitucional e nenhuma lei, nenhuma norma administrativa e muito menos a resolução CONAMA, ou qualquer ato do órgão de licenciamento ambiental, pode afetar desrespeito ao sítio localizado. É legalmente impossível se admitir hipótese de mitigação. Se ele for localizado, ele tem de ser explorado. Eu não quero entrar nos aspectos técnicos, naquilo que seja suficiente para que ele seja considerado explorado, se 20%, 10%, de que modo, isso é a área dos senhores, que, como eu disse, estão sujeitos à responsabilidade, se não agirem dentro da ética, dentro da melhor técnica. Uma última consideração que eu gostaria de fazer diz respeito à questão da arqueologia urbana, dos fatos que acontecem na cidade. É sobre os aspectos de mensuração no valor do sítio arqueológico de relevância. Esses critérios, que são técnicos para os senhores, para mim que sou promotor de justiça do meio ambiente e para qualquer um do povo que queira exercer a ação popular são importantes porque justificam a concessão de medida liminar. Eu vou citar um exemplo da Aldeia de Pinheiros. Seria plenamente possível que o Ministério Público da capital ou a prefeitura do município de São Paulo entrasse com ação civil pública com pedido de medida liminar para que fosse realizada a prospecção em toda a área. Isso também decorre da responsabilidade objetiva. Tania Lima - Com a palavra a professora Lylian Coltrinari Lylian Coltrinari - Eu tenho duas perguntas, sugestões, que gostaria de dirigir à Solange e à Lúcia. A primeira é quanto à questão da relevância. O que você acha de, se no lugar de se pensar em enfatizar a relevância do sítio do ponto de vista cultural, você enfatizasse, quando for possível, e quando for especificamente necessário, por exemplo, a preservação da estratigrafia, não só a estratigrafia arqueológica, mas a dos depósitos sedimentares, dos solos "pedológicos"? Você teria não só o lado arqueológico -cultural, mas também algo que é de extrema importância para a geologia do Quaternário, que é a reconstrução ambiental. O sítio pode ser, às vezes, um poderoso argumento para sustentar hipóteses ou certificar algumas evidências já existentes sobre registros locais de mudanças ambientais. Eu falo isso porque conheço estudos internacionais, no Japão, na França, África, onde aconteceram simultaneamente a prospecção arqueológica, as pesquisas de palinologia, paleontologia, geomorfologia... Esse é o motivo que me leva a sugerir que esse trabalho poderia ter apoio de alguém que entendesse de estratigrafia geológica. Isso é importante não só para o arqueólogo, como também para o

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conhecimento das mudanças ambientais do Quaternário. No Brasil precisamos demais desse tipo de evidência, por conta da dificuldade em encontrar locais que possam fornecer informações objetivas sobre o que aconteceu do ponto de vista paleoambiental, e não mais suposições ou hipóteses genéricas. A segunda questão é a respeito de um fato em São Paulo que eu considero um crime do ponto de vista ecológico e da preservação. É o caso da cratera de Colônia, onde existe um depósito único, com registros datados do final do Pleistoceno. A área da cratera está tombada, de fato, mas foi invadida, existem até prédios, e está sendo literalmente arrasada. Existem a teoria, as regras para se formular propostas de estudos de impacto, o problema é a prática. Mas há ocorrências mais sérias: São Paulo não se ateve a nenhuma regra, a nenhum método em termos de crescimento, portanto penso que seria a hora de os municípios que formam a grande São Paulo se associarem. A grande São Paulo já produziu uma auréola de degradação brutal em todos os sentidos. Acho que o cinturão todo, e qualquer canto vazio dentro da grande São Paulo deveria ser prospectado, porque não sabemos o que pode acontecer hoje ou amanhã. Se Guarapiranga, por exemplo, é uma tragédia do ponto de vista ecológico por causa da invasão das áreas de mananciais, é, em grande parte, porque foi permitida a destruição das evidências do passado, cultural e geológico. Menciono São Paulo como poderia citar Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou outros casos. Moramos em cidades que têm problemas específicos, que são próprios das cidades do mundo tropical úmido, semelhantes aos que existem na Índia, no sudeste da Ásia. Alguns estudos de geomorfologia aplicada já identificaram as fases dessa degradação e o que ocorre em nossas cidades pode ser comparado com o acontecido nas cidades do sudeste da Ásia (...) Solange Caldarelli - Antes de responder à Dra. Lylian, eu queria falar ao Dr. Daury que nós usamos muito pouco o Ministério Público (nós temos que usar mais e melhor), que suas questões serão amplamente discutidas na última mesa redonda e que elas foram extremamente pertinentes. Lylian, quanto à questão de enfatizar a preservação da estratigrafia, eu não mencionei tudo que é possível. Quanto à questão do gasoduto da Petrobrás, incorporar um geólogo para o conhecimentos das mudanças ambientais no quaternário, deveria ter sido previsto pelo técnico que fez o EIA, que não era arqueólogo. Esse empreendimento poderia ter sido aproveitado para uma série de estudos e eu lamento que os técnicos em geologia e geografia que fizeram parte da equipe multidisciplinar que fez o EIA não tenham previsto isso. O que se pode fazer, agora, é pedir à Petrobrás que os incorpore, mas não tem como impor à PETROBRÁS que pague isso, porque isso nem foi colocado no EIA. A arqueologia não pode responder por tudo, eu posso recomendar uma preservação de um perfil estratigráfico desde que ele tenha algum interesse arqueológico. Eduardo - A construção de gasoduto é como uma fábrica, se constrói uma média de 2 Km por dia. Eu acho que isso tem de ser pensado e repensado por quem quer que seja, interessado em observar algum buraco. Solange Caldarelli - Eu conversei com o engenheiro para poder apresentar a proposta; agora, a questão do quaternário fica para os quaternaristas.

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Lúcia Juliani - Eu queria fazer um comentário a respeito do que a Dra. Lylian Coltrinari colocou, que é pertinente. É um problema sério o que ocorre em São Paulo e acho que é recorrente em outros grandes centros urbanos. A questão da “Cratera de Colônia”, para quem não conhece, é a seguinte: trata-se de uma estrutura formada pelo impacto de um corpo celeste, provavelmente um meteorito ou um cometa, conforme estudos desenvolvidos na área. Ela é imensa, tem 2 Km e, se não me engano, 300 m de diâmetro e uma profundidade de 400 e tantos metros. Está preenchida por sedimentos quaternários, apresentando alta importância do ponto de vista científico, como um nicho ecológico especial. Ela pode ser importante também do ponto de vista arqueológico. É uma área plana cercada por uma elevação anômala, circular, definida pelo ponto de impacto. Está em processo de tombamento municipal, mas apresenta loteamento e ocupação irregular anteriormente ao tombamento. Outras legislações de proteção incidem sobre a área, que é considerado zona rural e está inserida na área de proteção aos mananciais. Segundo esses instrumentos, jamais poderia ser loteada. O tombamento é mais um instrumento aplicado sobre a área, que não que não etá surtindo nenhum efeito. O processo de invasão é organizado por uma união de favelados, com lideranças politicamente influentes. É uma problemática específica de muito difícil solução. Uma nova tentativa que se está fazendo é a criação de uma APA - Área de Proteção Ambiental - no sul do município, pensando na problemática da “Cratera de Colônia” e de outros loteamentos irregulares, que vêm-se desenvolvendo numa velocidade enorme na área, com desmatamento. Há uma proposta, que já foi submetida ao Conselho de Meio Ambiente municipal e aprovada. Os estudos estão sendo desenvolvidos e, dentre eles, foi proposto o zoneamento arqueológico da área. A Secretaria do Meio Ambiente está tentando conseguir recursos para desenvolvimento desses estudos, mas nada garante que isso vá refrear a ocupação irregular. Na verdade, não temos nenhuma lei que controle esse processo; a Prefeitura só tem controle sobre as ações regulares, sobre o que é pedido e não sobre o que não é pedido e feito clandestinamente. Na verdade, alguma ação tinha de ser feita. A área dos mananciais, por exemplo, tem um consórcio que se chama “SOS Mananciais”, entre a Prefeitura, a Secretaria do Meio Ambiente e outros órgãos ambientais. Eles monitoram a área permanentemente, estão sempre em campo, apontam e multam irregularidades. Na verdade, na prática, a coisa é muito complicada, porque o planejamento ou não existe ou vem muito tardiamente. A cidade aprendeu a crescer dessa maneira. É uma coisa a se pensar, é uma reflexão a se levar adiante. Tania Lima- Eliete Maximino Eliete Maximino - É para a Solange e não é uma pergunta, é mais uma dúvida. Com relação às avaliações dentro do processo do EIA, quando o pesquisador entrega ao empreendedor o relatório, ele tem alguma forma de controle do fim que esse empreendedor dará a esse relatório, ou, se o pesquisador não tem, o IPHAN tem ? Solange Caldarelli - Grande parte dos relatórios que são apresentados no final dos EIAs tem sido absolutamente desrespeitada e a Fernão Dias é um caso desses. Quando eu penso o quanto me esfalfei, com as poucas horas destinadas à pesquisa arqueológica, para desenvolver uma metodologia de pesquisa que permitisse estabelecer critérios eficazes para avaliação dos impactos, de uma forma a que levantamentos complementares posteriores fossem obrigatórios, em função da extensão da área potencialmente arqueológica ameaçada, para, depois, ficar sabendo, 113

pelo pessoal de Minas, que isso simplesmente não ocorreu nos trechos em que a rodovia começou a ser construída em Minas Gerais. Em São Paulo, houve maior respeito às recomendações feitas no EIA. Em Minas, ao menos até o momento, isso aparentemente não aconteceu, o que representa uma prova cabal de que meu relatório não surtiu o efeito almejado, foi praticamente inócuo. Talvez ele funcione como um documento que permita aos arqueólogos mineiros moverem ações contra o DNER, ou os empreendedores, ou ambos em conjunto. Sem uma pressão mais forte, no entanto, ele vai continuar sendo desrespeitado e o patrimônio arqueológico sendo ignorado e destruído. Pelo que eu saiba, a duplicação da rodovia se deu na parte mais próxima de Belo Horizonte, o resto ainda não foi mexido; portanto, ainda dá para agir. Seria o caso de o IPHAN, de posse do documento, também tomar uma atitude a respeito. Posso ainda relacionar outros casos, como Porto Primavera, por exemplo. Foram feitas descobertas interessantíssimas na área, que vão ser relatadas na outra mesa, de recursos intangíveis, pela Emília Ulhôa Botelho. Nada daquilo que foi recomendado, no entanto, foi seguido, embora o trabalho tenha sido extremamente elogiado. O que se quer não é um diagnóstico bonito e sim que os estudos e recomendações que constam do EIA tenham efeito real. Eliete Maximino - E quais as sanções? Solange Caldarelli - Quais as sanções é uma questão para o Direito. Agora, se o IPHAN quiser participar, tem como. O problema do IPHAN é que ele está acordando para a questão ambiental agora. Ainda não há uma política centralizada do órgão, que oriente as coordenações regionais sobre como agir. A minha opinião é que precisa ter mais técnicos no órgão, mais arqueólogos, gente que possa ir atrás, exercer o poder que ele tem. Legalmente, ele é competente para isso, para interferir no processo de licenciamento. Tania Lima - Walter Neves Walter Neves - Nós estamos explicitamente pegando uma carona com o Sistema Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional do Meio Ambiente, que tem um órgão secular, que é o IBAMA, cujo conselho tem resoluções entre as quais esta, cujo impacto de existência nos últimos 10 anos nós estamos discutindo. Pessoalmente, eu acho que nós devemos trabalhar no sentido de pegar a melhor carona possível e é isso que esse simpósio está tentando fazer - melhorar a acuidade da coisa arqueológica dentro do contexto ambiental. Preocupa-me profundamente o fato de nós não termos um sistema nacional de bens culturais ou patrimônio cultural, de não haver um conselho nacional de bens culturais, temos um órgão secular. Tania Lima - Me permita: uma Política Nacional de Bens Culturais. Walter Neves - Isso é o de menos, quando houver essas coisas, obviamente vai haver uma política. Nós temos um braço secular parecido com o IBAMA, que é o IPHAN, mas isso aí não esta dentro de um sistema que tenha um conselho, tenha resoluções. Pessoalmente, até com moral provisória, acho que é uma boa coisa nós continuarmos pegando uma carona na questão ambiental. Eu acho que há 15 anos atrás, antes de haver toda essa onda de preservação e valorização da biodiversidade, também não se

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sonhava ter um Sistema Nacional de Meio Ambiente, ter um Conselho Nacional de Meio Ambiente e ter resoluções como as que temos agora, que depois inclusive foram incorporadas à Constituição. Acho que devíamos trabalhar em dois sentidos. Num primeiro sentido, assegurar que continuemos pegando a melhor carona possível nos estudos de impacto ambiental, forçar para que nós tenhamos não uma resolução que obriga a um estudo de impacto ambiental, mas uma resolução que obriga a um estudo de impacto sócio-cultural. Isso causa problemas práticos terríveis, porque obviamente a escala que produz impacto na biodiversidade é muito diferente da escala que provoca impacto sobre a sóciodiversidade. Eu duvido que o impacto de 10 x 10 m comprometa qualquer tipo de sucessão e evolução da biota, exceto se você destruir exatamente os 10 m em que esta envolta a árvore onde tem a única ararinha azul remanescente; é um caso excepcional. Agora, uma área de 10 x 10m pode afetar o conhecimento de uma sóciodiversidade passada. É hora (eu já escrevi vários documentos para a UNESCO, nesse sentido) de mostrar que sóciodiversidade e biodiversidade são dois lados de uma mesma equação e não adianta termos conselhos nacionais, resoluções nacionais, órgãos seculares que de fato estão tomando conta da biodiversidade se nós não tivermos o correspondente paralelo referente à sóciodiversidade. A coisa só ocorre quando detonada por uma questão ambiental, porque não se pode detoná-la simplesmente por uma questão sócio-cultural. Devemos continuar trabalhando no sentido de pegarmos a melhor carona possível dentro desta conquista que nós já fizemos de cidadania. A cidadania de fato, nós, arqueólogos, vamos estar exercendo, quando tivermos para as questões sócio-culturais, para as sóciodiversidades, os mesmos mecanismos e os mesmos instrumentos que o país já conseguiu com referência à biodiversidade. Tania Lima - Rossano Bastos. Rossano Bastos - Eu tenho ouvido o problema da descoberta do sítio arqueológico, se ele foi ou não encontrado. O sítio arqueológico é protegido pela Lei 3.924, independente de estar descoberto ou não. O capítulo quarto das descobertas fortuitas (nós que trabalhamos no patrimônio histórico tratamos assim) afirma que a posse e a salvaguarda dos bens de natureza arqueológica e pré-histórica constituem, em princípio, direito do estado. A descoberta fortuita de qualquer elemento de interesse arqueológico e pré-histórico, histórico, artístico ou numismático deverá ser imediatamente comunicada ao IPHAN e o proprietário ou ocupante do imóvel onde ocorreu o achado é responsável pela sua conservação. Então, não adianta agora tirar uma resolução ou mais uma complementação para a legislação, só porque não está escrito no texto constitucional. A Lei 3.924 já é suficiente, junto com a portaria 07 e com a Constituição Federal, para a proteção devida do patrimônio arqueológico. O que existe é um grande problema de entendimento da legislação. Eu não sabia que o sítio arqueológico existia, então, por isso, eu o destruí. Nós temos de ter o cuidado de não estarmos nós mesmos arranjando subterfúgios para defender os outros, que estão arrasando com o patrimônio arqueológico. Devemos esperar do estado e do município uma ação não concorrente, mas concomitante, uma ação complementar e suplementar no sentido de equacionar esse problema, da preservação e da conservação de sítios arqueológicos. Isso em todos os âmbitos, inclusive no âmbito urbano, porque é impensável hoje, nos projetos de governo que aí estão, ampliar os quadros do IPHAN ou contratar serviços de um arqueólogo em cada regional, o que seria o ideal. Devese é procurar instrumentalizar os estados e municípios, no sentido de arranjar os parceiros ideais. Isso porque o sítio arqueológico que está em São Paulo está em São

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Paulo, não em Katmandu, o sítio arqueológico que está em Belo Horizonte está em Belo Horizonte, não está em Florianópolis e a população local é que tem que se aproveitar disso. Esses bens são de alcance social, são da União, quer dizer, união de todos, então, não faz sentido a União ficar emitindo muitas resoluções no momento em que a tendência é valorizar a comunidade, resgatar os bens intangíveis e valorizar o poder de decisão local, para se poder democratizar e fazer com que esses bens atinjam definitivamente a cidadania. Logo depois da Constituição de 88, instrumentalizamos municípios com leis municipais (como no litoral de Santa Catarina) no sentido de cooperar e dividir essa responsabilidade que o IPHAN não consegue, às vezes, cumprir. Na própria legislação há essa abertura para os estados e municípios serem os parceiros ideais, porque são eles que estão lidando com a realidade local. É principalmente o município que detém a legislação de parcelamento do solo e isso é fundamental na questão do licenciamento de qualquer imóvel. Se o prefeito tem lá alguém, se existe uma legislação, um aparato da educação patrimonial preparado para isso, ou em preparação, fica mais fácil caminhar na direção da preservação do patrimônio cultural, do que simplesmente achar-se o seguinte: existe uma legislação, existe um órgão, agora eu passei ali e vi um sítio arqueológico sendo destruído, mas isso é problema do IPHAN, eu lavo minhas mãos, no máximo dou um telefonema avisando. É necessário se apropriar tanto da legislação como da responsabilidade de cidadão para proteger o patrimônio histórico. Chegou a hora de se fazer parceria com municípios, estados e com a própria população no sentido de resgatar o patrimônio, porque se for só meia dúzia de iluminados e arqueólogos para fazer essa preservação vai ser um fracasso geral. Solange Caldarelli - Estou plenamente de acordo: em nenhum momento aqui se pensou em pedir para o IPHAN aparecer em qualquer sítio ameaçado; não são os casos pontuais que estão em debate. A maior parte das exposições, aqui, tratou de grandes empreendimentos e de grandes destruidores, com muito poder. Aí nós precisamos de uma sólida diretriz de ação do IPHAN, para agir frente aos grandes impactadores. Rossano Bastos - Todas as áreas merecem ser preservadas e há dever legal para isso. A diferença está em quando se faz o empreendimento, em quando se aprova o EIA/RIMA. Esse é o tema em debate. Aproveitando o gancho, eu acho que a carona da arqueologia é indissociável da ambiental. O meio ambiente cultural é um dos itens do meio ambiente como um todo, o que talvez precise ocorrer é o IPHAN deixar de ser IPHAN e ser um dos departamentos do IBAMA, para que participe diretamente da questão ambiental. Tania Lima - Maurício Taan. Maurício Taan - Eu quero dizer que o empreendedor exerce a cidadania tanto quanto vocês. Quando ele está trabalhando para algum projeto determinado pela União e que tem a ver com outros tipos de pessoas que não aquelas que viveram há muito tempo mas que vivem hoje, quando está desenvolvendo sua tarefa, ele não é um destruidor. Por exemplo, quando se tem um projeto da União e se dispõe de uma área para se fazer uma usina de energia elétrica, então o projeto não é do empreendedor, o projeto é dado a um empreendedor para que o faça. Então é chamado um dos empreendedores da União ou do Estado, no caso a SERPES ou FURNAS, para que realize alguma coisa aprovada no Congresso Nacional. Se a região, ao mesmo tempo, tivesse reserva 116

de ouro ou manganês, poderia ter debates sobre se está sendo feito o melhor uso daquele local e, não tendo, fazendo a hidroelétrica, ou tem que se aproveitar o manganês e o ouro ou tem que se preservar isso ou aquilo. Eu quero deixar claro o seguinte: quem determina o projeto não é o empreendedor e como ele, às vezes, é a pessoa mais próxima, você o vê como agente da destruição, quando, na verdade, o agente da destruição vem de uma decisão tomada por um Congresso Nacional, eleito por todos nós. Então, quando se determina um empreendimento dessa natureza, mesmo que se faça tudo certinho, o EIA/RIMA muito certo, pode ocorrer que, nos trabalhos de prospecção, se encontre um sítio, uma coisa de valor inestimável. Tem-se que parar e discutir a questão porque ali, às vezes, podem estar um bilhão ou dois bilhões de dólares já alocados. Então a própria sociedade tem de discutir se ela vai em frente ou não. Agora se há somente valores absolutos, vai ficar mais fácil discutir. Por exemplo, esbarrei nisso, então, não faz, acaba. A sociedade não somos só nós que estamos sentados aqui, a sociedade é bem mais ampla. Eu quero dizer que exerce-se a cidadania tanto cuidando do patrimônio histórico-cultural, ou, como muitos desenhistas, atrás de uma prancheta fazendo uma chaminé de equilíbrio. Eles não são agentes destruidores, simplesmente estão trabalhando oito horas por dia, recebendo um salário para fazer aquele trabalho. Eles atendem a quem? A maioria dos projetos é aprovada pelo Congresso Nacional, então, é uma coisa imposta pela União, que chama profissionais para fazer o seu serviço. Talvez tenhamos lutas desiguais entre empreendedor e quem fiscaliza, talvez tenhamos uma nova etapa do Ministério Público, agora muito atuante. A questão maniqueista vai ser a pior do mundo; não é mocinho, não é bandido, todo mundo está precisando de um insumo, todo mundo precisa preservar o patrimônio. É preciso buscar a questão do desenvolvimento sustentável onde ela estiver e trazer discussões que vão permear tanto a questão arqueológica, a de mercado de trabalho, como a de disputa de poder dentro de uma sociedade, enfim, mil coisas, porque nós somos seres humanos e somos afeitos a essas questões todas.

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3ª MESA-REDONDA:

ELABORAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS DE RESGATE E MONITORAMENTO DE BENS PRÉ-HISTÓRICOS E HISTÓRICOS

COORDENAÇÃO: Dra. Solange Bezerra Caldarelli Scientia Consultoria Científica Consultora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES EMÍLIA MARIKO KASHIMOTO Mestre em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (Área de Concentração: Arqueologia) Doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Pesquisadora contratada pela FAPEC-UFMS Professora responsável pelas disciplinas “Geomorfologia” e “Antropologia”, no curso de Geografia da UCDB Coordenadora do “Projeto Arqueológico Porto Primavera, MS” - CESP/UFMS Pesquisadora convidazda do “Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico de Serra da Mesa, GO” - Furnas/UFGO Pesquisadora convidada do grupo de pesquisa arqueológica “O Conteúdo Paleoetnográfico da Décima Região” - FCT/UNESP.

DILAMAR CÂNDIDA MARTINS Mestre em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Coordenadora científica do “Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, GO”, desde 1995 - Furnas/UFGO

CARLOS MAGNO GUIMARÃES Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais Doutorando em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Professor Assistente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais Coordenador do “Projeto de Salvamento Arqueológico Histórico da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, GO‟, desde 1995 - Furnas/UFMG

MARIA DO CARMO MATTOS MONTEIRO DOS SANTOS Bacharel e licenciada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Mestranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Atua como arqueóloga na área ambiental desde 1986, em projetos de regularização de Áreas de Proteção Ambiental e em Estudos de Impacto Ambiental de empreendimentos rodoviários, ferroviários e hidrelétricos, desenvolvendo atividades de levantamento e de resgate do patrimônio arqueológico e histórico Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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O USO DE VARIÁVEIS AMBIENTAIS NA DETECÇÃO E RESGATE DE BENS PRÉ-HISTÓRICOS EM ÁREAS ARQUEOLOGICAMENTE POUCO CONHECIDAS Emília Mariko Kashimoto12

A pesquisa arqueológica de contextos amplos tem seus limites definidos a partir de fatores culturais - a área abarcada por uma determinada cultura ou uma de suas unidades de estabelecimento -; naturais, relativos ao ambiente físico, como uma bacia hidrográfica ou compartimento de relevo; ou “arbitrários”, não enquadrados nas categorias anteriores (PLOG, et alii 1978). As duas primeiras categorias são usuais na delimitação de universos de pesquisas acadêmicas, considerando-se que a Arqueologia visa, em essência, a descrição e classificação da forma dos vestígios antrópicos, a análise das funções destes testemunhos materiais e, posteriormente, a interpretação de processos culturais envolvidos (SHARER & ASHMORE, 1979); necessitando, fundamentalmente, da interdisciplinaridade com as ciências afins. Esses objetivos também são pertinentes ao salvamento arqueológico, que particulariza-se, apenas, por abranger áreas de dimensões específicas, correspondentes à superfície impactada pela obra, sendo que esta também determina o tempo disponível para a execução da pesquisa (BEZERRA DE MENEZES, 1988; MORAIS, 1990). Dessa forma, as pesquisas arqueológicas de salvamento, decorrentes de obras de engenharia, são elaboradas na conjunção de cronogramas específicos, tanto do empreendedor da obra, quanto dos pesquisadores e Instituições/Empresas correlatas responsáveis pelo “produto” científico -, assim como do IPHAN, fiscalizador dos trabalhos. Tal fato contribui para a dinâmica específica de cada pesquisa de salvamento, com retroalimentação entre etapas de trabalho, reavaliações frequentes e alterações em procedimentos previstos, teoricamente, no projeto de pesquisa original, exigindo grande disponibilidade de tempo por parte da equipe de pesquisadores efetivos. Paralelamente, deve-se considerar que cada projeto tem um desenvolvimento singular, em função das características ambientais e possibilidades de acesso à área relacionadas às formas de relevo, estado de conservação das estradas, índice de desmatamento, navegabilidade dos cursos fluviais, entre outros -, diferenciadas em cada espaço pesquisado. Assim, um projeto numa área arqueologicamente pouco conhecida, e, principalmente, com poucos estudos de detalhe do ambiente físico, tende, num primeiro momento, às atividades de campo voltadas ao reconhecimento de variáveis ambientais locais, relacionadas a sítios arqueológicos, permitindo um melhor delineamento das hipóteses norteadoras da pesquisa. Neste contexto, as amostragens probabilísticas sobre a totalidade de uma área, tendem a ser opções passíveis de serem 1Pesquisadora associada à FAPEC-UFMS, professora da UCDB, doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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aplicadas após o reconhecimento destas variáveis ambientais associadas a dados arqueológicos (CUSTER et alii, 1986). Uma abordagem geoarqueológica, entendida enquanto “contribuição das Ciências da Terra, especialmente Geomorfologia e Petrografia Sedimentar, para a interpretação e reconstituição ambiental de contextos arqueológicos” (GLADFELTER, 1977), auxilia o entendimento da localização dos sítios numa determinada paisagem, tratando de temas como a influência das formas de relevo nos padrões de assentamento humano, análises da formação de sítios arqueológicos e suas transformações subseqüentes. O estudo abrange entrevistas com a população local, para uma ampla inserção espaço-temporal destes sítios, estabelecendo relações entre registros arqueológicos e históricos, sendo estes relativos ao povoamento da área e alterações no meio ambiente, pretéritas e atuais. A pesquisa arqueológica possui duas etapas básicas de campo: detecção de sítios, ou seja, levantamento em contextos ambientais amplos; e resgate, que centraliza-se em estudos de detalhe de sítios, em profundidade, por meio de escavações científicas. 1. DETECÇÃO A percepção das variáveis ambientais arqueologicamente relevantes embasam a seqüência da pesquisa, sejam elas aplicáveis na cobertura total (“FullCoverage”), que consiste no caminhamento em todas as parcelas acessíveis do terreno, seguindo intervalos espaciais determinados conforme as características da área (PARSONS, 1990); ou na definição de áreas-teste para levantamento intensivo, por amostragem, com abertura de cortes de verificação do solo. Em ambos os encaminhamentos, é interessante a verificação em áreas que não aparentam potencial arqueológico, para não se localizar apenas o que se procura. O levantamento, ou detecção de sítios arqueológicos, por cobertura total, priorizando áreas favoráveis selecionadas, também é definido de acordo com a disponibilidade logística de cada projeto e características ambientais locais. Possui como procedimento básicos o caminhamento em setores selecionados, realizando-se cortes de verificação e coletas comprobatórias de material antrópico ou do contexto ambiental em geral. A navegação, quando possível, constitui importante veículo de levantamento, pois permite observações da topografia, em geral, e das variações sutís de declividade do terreno, por conseqüência, o acesso às partes mais elevadas, a partir do curso fluvial, além de frequentemente representar meio de locomoção mais rápido em relação às estradas de rodagem. A análise preliminar de bibliografia visando, particularmente, o levantamento de dados da Etno-história regional, bem como resultados de outras pesquisas, arqueológicas ou ambientais, realizadas em áreas próximas, permite estudos comparativos e a delimitação de parâmetros de ocupações pretéritas da área, considerando suas relações com a paisagem. Paralelamente, o estudo do material cartográfico, fotos aéreas e imagens de satélite, visando a investigação de variáveis ambientais, a definição de técnicas a serem aplicadas, bem como o planejamento geral dos trabalhos de campo, representa importante apoio ao direcionamento da pesquisa, uma vez que proporciona uma

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percepção ampla da área enfocada, e suas transformações, considerando períodos diferentes. Tais atividades preliminares podem ser drasticamente abreviadas em função da compatibilização com os cronogramas dos incrementadores da pesquisa, acima citados, do tempo disponível e das estações do ano de menores índices pluviométricos, mais favoráveis aos trabalhos de campo. As variáveis ambientais de relevância arqueológica são específicas a cada contexto pesquisado. Entretanto, particularmente com relação a sítios a céu aberto, destacam-se, com freqüência, alguns referenciais ligados à hidrografia e à geomorfologia, como: - área de foz de afluente; - diques marginais expressivos; - margens contígüas às corredeiras, favoráveis à captura de animais aquáticos, principalmente em períodos de vazante; - margens fluviais de topografia favorável ao acesso ao fluxo d’água corrente, não associadas a “brejos”, que são frequentemente utilizadas como “bebedouros” de gado; - margens fluviais próximas a ilhas; - ilhas fluviais; - terraços fluviais preservados da inundação de cheias periódicas, principalmente em margens côncavas; - margens de lagoas; - área de afloramento do substrato no leito fluvial, com perspectiva de “ancoradouro” e favorecimento à pesca; - bancos de deposição sedimentar na margem do curso fluvial, por vezes associados a cascalheiras, formando “praias”, que favorecem o embarque/desembarque, assim como o acesso vertente acima; - elevações topográficas em áreas de várzea, marcadas por vegetação arbórea diferenciada do entorno, que, por vezes, são interpretadas como aterros; - terraço ou média vertente de declividade suave, em relação ao entorno, mais favoráveis ao assentamento, estando protegidos da maior intensidade dos ventos, em relação às porções mais elevadas do relevo; - colos, ou seja, depressões que se destacam na linha de crista de serras, sugerindo áreas de passagem; - topo suavemente aplainado de colinas de dimensões menores, em relação ao conjunto topográfico local; - áreas de afloramento de matéria-prima, como cascalheiras, ou depósitos naturais de seixos; locais de afloramento do substrato possuidor de diques de rochas aptas ao lascamento fino, como o arenito silicificado (MORAIS, 1983), etc. Em ambientes fluviais, é interessante a análise em períodos de cheia e de vazante, para observar variações na cobertura vegetal e possibilidades de acesso a áreas específicas.

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Com relação a sítios em abrigos sob rocha, que podem conter inscrições rupestres, alguns parâmetros, ainda no âmbito das ciências ambientais, se destacam como instrumentos potencialmente indicadores, por exemplo, levantamentos de áreas calcáreas, ocorrências espeleológicas, relevos residuais de composição arenítica, formações geomorfológicas de cuestas ou furnas, além de análises toponímicas (“itacoatiaras”, “morro dos letreiros”, etc.) e das tradicionais informações orais. Pode-se acrescentar ainda, a necessidade de verificação de ocorrências de lajedos extensos ou grandes blocos rochosos isolados no terreno, que podem ser suportes para inscrições rupestres. Sítios arqueológicos podem estar parcialmente alterados ou, por vezes, destruídos por agentes erosivos desencadeados pela ação antrópica recente, fato que não os exclui da pesquisa, uma vez que fornecem dados importantes à análise de uma determinada área. Dentre estes agentes, pode-se destacar o desmatamento, pastagem ou culturas anuais, alterações em vazões fluviais, e edificações em geral. Paradoxalmente, as feições produzidas acabam funcionando como “variáveis ambientais” a serem vistoriadas nas observações de campo, ou seja, linhas de barranco ou outros processos evidenciadores de camadas do solo, como, por exemplo: - sulcos, ravinas e voçorocas, sendo que os primeiros podem ser produzidos pelo pisoteio do gado, que, inclusive, produz os “bebedouros” fluviais; - erosão fluvial, que atua por entalhe lateral, notadamente nas margens côncavas; - erosão laminar das enxurradas, evidenciadora de camadas arqueoló-gicas; - edificações de sedes de propriedades rurais, sendo que as mais antigas, cujas implantações visaram o aproveitamento dos respectivos cursos fluviais próximos, navegáveis e proporcionadores de água potável, preferencialmente piscosos, estão, portanto, em áreas favoráveis à ocorrência de sítios arqueológicos; - cortes no terreno produzidos por estradas; - áreas de extração de sedimentos, ou “caixas-de-empréstimo”, onde a abertura de extensos perfis pode evidenciar níveis arqueológicos, como, por exemplo, os sítios MS-PD-02 e MS-PD-03, possuidores de nível lítico a aproximadamente 1,5 m de profundidade, localizados no âmbito do “Projeto Arqueológico Porto Primavera, MS”13 As observações nas áreas supra-citadas não excluem a abertura de cortes de verificação, por vezes denominados sondagens, e retificações de perfis, fundamentais na detecção de sítios não erodidos, ou seja, que não apresentam exposição de material arqueológico na sua superfície. Tais sítios são localizados com a abertura intensiva destes cortes e perfis, em amplas superfícies, selecionadas a partir de variáveis ambientais de relevância arqueológica, acima citadas. 2. RESGATE As variáveis ambientais auxiliam a inserção espacial de sítios arqueológicos, sua contextualização em relação à área total e zonas ambientais, assim como a análise 13

Projeto desenvolvido a partir do contrato CESP/FAPEC-FUFMS, de nº 99000-94000/0143.

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de relações entre alterações ambientais e registros arqueológicos. Tal entendimento, aliado à análise do material arqueológico advindo das coletas comprobatórias da etapa de detecção, permite a seleção de sítios mais representativos, e menos alterados, a serem escavados. A análise geoarqueológica de variáveis ambientais, contemporâneas e pretéritas, no decurso das escavações arqueológicas centraliza-se em alguns ítens, listados a seguir, a partir da adaptação da proposta de HASSAN (1979): - Confecção de cartas topográficas, ou de localização, dos sítios e das estruturas arqueológicas, cuja análise final visa contribuir para o entendimento de contexto de formação e utilização dos recursos ambientais. - estudos da estratigrafia regional, com o registro de perfis de solo dos sítios arqueológicos e demais contextos intra-sítios, aliado a análises sedimentológicas em laboratório, que incluem o tamanho das partículas, taxas de pH, cálcio, etc. Tais procedimentos visam interpretar as variações que ocorreram no ambiente sedimentar, desde a formação do sítio, até o momento da pesquisa. - análises geomorfológicas, auxiliadas pela confecção de perfis topográficos. O enfoque estratigráfico pode evoluir para medições de deslizamentos de solo e taxas de sedimentação, obtendo-se índices de mudança das formas de relevo no sítio ou área em estudo, por processos ambientais como inundações, enxurradas, deslizamentos, períodos de seca prolongada, etc, visando reconstituir a seqüência de eventos ocorridos desde a deposição dos vestígios pelas populações pretéritas, até o momento da pesquisa arqueológica: a formação do sítio e do arranjo espacial das atividades humanas nele desenvolvidas; o abandono do local por estas populações; transformações posteriores que modificaram os dados arqueológicos, como fluxos de enchente que transportam material, ou animais fuçadores que fazem “galerias” e provocam o deslocamento de peças para níveis inferiores. Paralelamente, o conhecimento da atuação local dos agentes modeladores do relevo, permite melhor seleção das técnicas de campo a serem aplicadas; - análises petrográficas, das matérias-primas utilizadas e fontes poten-ciais. Portanto, ao nível das escavações arqueológicas, as variáveis ambientais contribuem para: - a revisão das estratégias mais adequadas a cada local, tratando de questões como “o que salvar”, quais os vestígios mais relevantes a serem registrados e coletados; “como escavar”, considerando métodos e técnicas mais adequados a cada caso; e “até onde escavar”, ou seja, quando a escavação já alcançou o nível “estéril” arqueologicamente e já possui um abrangência espacial suficiente à interpretação, conside-rando-se o ambiente tropical úmido; - a reconstituição de processos de formação do sítio e transformações subseqüentes, por meio de análises estratigráficas e sedimentológicas; - os estudos de utilização dos recursos ambientais, que remotam à Zooarqueologia, Palinologia e Arqueobotânica, no tocante à quantificação e interpretação de vestígios alimentares detectados, bem como dos utensílios associados. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao se considerar as relações da Arqueologia com as Ciências Ambientais, há que se lembrar que existe uma reciprocidade, na medida em que a primeira necessita da utilização de técnicas específicas à segunda, para coletas de dados mais frutuosas às suas interpretações paleoetnográficas, e, em “contrapartida”, as inscrições rupestres ou as camadas arqueológicas fornecem dados - climáticos, biológicos, geomorfológicos, entre outros - que podem ser datados, compondo referência fundamental aos estudos do quaternário em ambiente tropical, cujos “pacotes” sedimentares têm composição macros-copicamente homogênea. Ainda ao nível da complementaridade, deve-se ressaltar que a pesquisa bibliográfica de estudos do ambiente físico, e a conseqüente identificação de variáveis ambientais de relevância arqueológica, específicas a uma determinada área, constituem significativo parâmetro para encaminhamento dos trabalhos de campo e respectivos estudos interpretativos. Entretanto, para tais interpretações arqueológicas, é necessário que a abordagem seja integrada às entrevistas com a população local, que vivencia aquela realidade ambiental, assim aos estudos de Etno-história, entre outros enfoques interdisciplinares. A partir da comparação os entre resultados obtidos em pesquisas específicas, desenvolvidas por pesquisadores distintos, sejam elas acadêmicas tradicionais ou de salvamento, adentra-se o nível da proposta mais ampla de síntese regional. Para tal objetivo, faz-se necessária a explicitação dos procedimentos e conceitos utilizados, para uma classificação conjunta de dados, sugerindo-se os seguintes encaminhamentos: - tornar explícito o conceito de sítio arqueológico empregado, considerandose que o mesmo tende a ser singular a cada área de pesquisa. - o registro dos locais prospectados, sítios arqueológicos ou não-sítios, com o emprego do GPS (“Global Positioning System”), para o entendimento da intensidade da abrangência espacial da pesquisa de campo.

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--------------. Arqueologia de salvamento no Estado de São Paulo. DÉDALO, S. Paulo, vol. 28, p. 195-205, 1990. PARSONS, J. R. Critical reflections on a decade of full-coverage regional survey in the Valley of Mexico. In: THE ARCHAEOLOGY OF REGIONS. A CASE FOR FULL-COVERAGE SURVEY (ed. S. K. FISH and S. A. KOALEWSKI). Smithsonian Institution Press, Washington D.C., 1990. p. 7-30 PLOG, S. et alii. Decision making in modern surveys. ADVANCES IN ARCHAEOLOGICAL METHOD AND THEORY, vol. 1, p. 383-421, 1978. SHARER, R. J.; ASHMORE, W. FUNDAMENTALS OF ARCHAEOLOGY. California, The Benjamin Cummings, 1979.

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RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS PRÉ-HISTÓRICOS EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS: O CASO DA USINA DE SERRA DA MESA - GOIÁS Dilamar Cândida Martins

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RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS HISTÓRICOS EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS: O CASO DA USINA DE SERRA DA MESA - GOIÁS Carlos Magno Guimarães Introdução O presente trabalho, embora contemple questões que dizem respeito a projetos em áreas afetadas por hidrelétricas, tem como objeto o Projeto de Salvamento, financiado por Furnas S.A, desenvolvido pelo Setor de Arqueologia da UFMG na área atingida pela Usina de Serra da Mesa no estado de Goiás. Este é pois o projeto em torno do qual se desenvolverão nossas reflexões. O texto será dividido em quatro partes. Na primeira trataremos da montagem do projeto e da perspectiva teórico-metodológica que a orientou. A segunda parte trata da organização da equipe e do trabalho de campo. Em seguida o trabalho de prospecção, e a tipologia dele proveniente, são tratadas na terceira parte e finalmente a quarta parte trata de questões referentes a avaliação e monitoramento.

I Quando em 1994 o Setor de Arqueologia da UFMG foi convidado por FURNAS/SA a apresentar um projeto arqueológico de salvamento para a área a ser atingida pelo reservatório da Usina de Serra da Mesa, a primeira questão que veio à tona dizia respeito ao processo histórico que ali se desenvolveu. Ocupada pela colonização a partir das atividades minerais no século XVIII, a área se integra ao movimento de expansão das fronteiras coloniais (1), que acabou por definir a maior parte do atual território brasileiro. Evidenciando não só ocupações pré-históricas como o contato, já a partir do século XVIII, entre as três grandes etnias formadoras da população brasileira, a área é de grande expressão no processo histórico goiano. Compreender esta particularidade é fundamental para se aquilatar tanto sua importância quanto a do patrimônio cultural nela contido. Ocupada por povos indígenas desde épocas muito antigas, teve seu processo de colonização iniciado a partir dos interesses mercantilistas da coroa portuguesa pelos metais preciosos (2) no século XVIII. A mineração na história do Brasil colonial foi atividade que envolveu diferentes modalidades de mão de obra (3) sendo que a predominante em algumas regiões foi o escravo africano. Os indicadores apontam para uma expressiva utilização do escravo africano também na área afetada pela Usina de Serra da Mesa. A população de várias localidades evidencia um passado de intensa miscigenação, onde o elemento negro foi fundamental.

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As constatações acima remetem pois à formação étnica da população brasileira e remetem à importância de salvamento do patrimônio histórico cultural existente na área em questão. Sem dúvida alguma os elementos ali contidos poderiam permitir a compreensão de uma gama variada de aspectos da dinâmica histórica da sociedade colonial brasileira. Dentre eles podemos citar a possibilidade de - captar a dinâmica do ciclo de mineração colonial; - compreender aspectos da sociedade escravista; - apreender elementos da dinâmica dos contactos interétnicos e a decorrente interação / conflito cultural daí advinda; - captar elementos do processo de transformação social ao longo do período que vai do século XVIII ao século XX. Definida a linha geral do processo histórico é necessário fazer algumas considerações sobre o projeto. A definição do objeto e da metodologia de certa forma definem alguns dos traços fundamentais da sua natureza. Em arqueologia a incerteza do achado está sempre associada à sua possibilidade. Um projeto desta natureza permite o cruzamento de diferentes tipos de informações, o que certamente pode reduzir sua margem de incerteza, que mesmo assim permanece grande. No caso que estamos tratando a articulação entre incerteza e probabilidade deve ser entendida dentro das especificidade da arqueologia histórica. A grande questão não é a dúvida entre encontrar ou não os vestígios procurados e sim onde estão e qual sua dimensão. A pesquisa bibliográfica aponta para a riqueza arqueológica histórica da região, acumulada ao longo de um período de quase trezentos anos. A vastidão da área, por outro lado, aponta para a existência de um enorme volume de vestígios a serem detectados e resgatados. Se por um lado existe a certeza de que será encontrado, por outro a questão que se coloca é definir seu volume. É neste ponto que se localiza a dificuldade em adequar necessidades, realidades e possibilidades. A perspectiva teórico-metodológica que orientou a montagem do projeto foi definida a partir de um conhecimento prévio de história da área a ser trabalhada. Partindo de um dado real, a dimensão da área inundável (± 1780 Km2) e da constatação da grande diversidade de ambientes e de processos histórico-culturais é que foi estabelecida a grande linha de trabalho. Na realidade o primeiro ponto definido foi a impossibilidade de trabalhar com amostragem já na fase de prospecção. A diversidade de ambientes e de processos histórico-culturais é tão grande que adotar previamente um percentual (qualquer que fosse ele) e tomá-lo pelo todo seria correr o risco, posteriormente comprovado, de não ter uma amostra que realmente fosse a expressão daquele todo. Este aspecto deve ser entendido numa perspectiva dialética. Se por um lado certo conhecimento prévio da área foi a justificativa para tal conduta, isto só se deu porque este conhecimento veio constatar a ignorância sobre sua realidade histórica, tanto geral quanto específica.

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Dito de outra forma, o conhecimento que foi atingido preliminarmente veio por um lado demonstrar a riqueza do patrimônio histórico-cultural e por outro evidenciar que a adoção de um critério de amostragem não seria capaz de captar amostras suficientemente confiáveis de toda esta realidade, que por sua vez ainda é desconhecida. É nesta medida, que a perpectiva dialética se coloca como definidora do universo a ser trabalhado. O conhecimento, ainda que difuso, deste universo é o elemento que aponta para a necessidade de recuperar todo o desconhecido patrimônio histórico-arqueológico existente na região. Esta perspectiva que contempla por um lado o conhecimento e por outro o desconhecido é que acabou por definir a linha geral do trabalho (de prospecção e de salvamento). Na fase de prospecção, realizada de maio a novembro de 1995, as informações orais, bibliográficas e documentais associadas à necessidade de cobrir a maior parte possível da área acabaram por definir o universo a ser trabalhado. A área de 1780 Km2 foi subdividida em sub-áreas sendo seus limites estabelecidas com referência a bacias hidrográficas relevantes, fazendas ou outros acidentes geográficos. Em nenhum momento foi cogitada a possibilidade de descartar alguma subárea do trabalho de prospecção. O princípio adotado foi o de checar efetivamente todas as informações (orais, bibliográficas ou documentais) obtidas. E quando, para determinada bacia, não houvesse informação a estratégia adotada foi a da prospecção exaustiva através da qual a bacia era percorrida de ponta a ponta. Esta orientação mostrou-se extremamente rica no seu resultado final. Muitos dos sítios localizados através da prospecção exaustiva já haviam desaparecido no registro da tradição local. O resultado final foi um universo de 190 sítios levantados dos quais 137 estão dentro da área inundável e 53 na sua periferia. No que diz respeito à estratégia adotada poder-se-ia objetar que necessariamente haveria redundância na obtenção de dados já que o pretendido era a cobertura da maior parte possível da área. Tal objeção foi refutada largamente pelos resultados atingidos. Se por um lado há um conjunto de informações que se repetem, por outro lado o universo das diferenças é extremamente rico para justificar a estratégia adotada. Além do que o argumento, que tenha justificado a eliminação das diferenças com base na existência de semelhanças, ignora que a realidade é dialética e que ambas fazem parte de um todo. Privilegiar um dos polos desta contradição é distorcer a visão que se possa ter desta realidade.

II A envergadura do projeto, considerando o fator tempo e a dimensão da área a ser pesquisada exigiu uma modalidade de trabalho coletivo onde a equipe foi dividida em quatro grupos de trabalho (GT) em função das atividades a serem desenvolvidas: * GT de História e Documentação - encarregado dos trabalhos de levantamento, catalogação, leitura, fichamento e organização dos dados provenientes da bibliografia, dos documentos, relatos de viajantes e

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jornais. O objetivo é fazer um histórico de área e transformar as informações levantadas em instrumento para a arqueologia; * GT de Geografia e Cartografia - encarregado dos trabalhos de foto interpretação, cartografia, fotografia e coleta de informações sobre o ambiente dos sítios e entorno; * GT de Arqueologia - encarregado das atividades de prospecção e salvamento, tendo como suporte as informações dos dois grupos anteriores; * GT de Computação - encarregado da montagem de um banco de dados geral e do tratamento das informações levantadas tanto na fase de prospecção quanto de salvamento. O trabalho de campo, na fase de prospecção, foi realizado dentro dos parâmetros tradicionais. A partir da localização de cada sítio foram realizadas as tarefas básicas exigidas: definição/delimitação da área de ocorrência dos vestígios; identificação do tipo de sítio; localização precisa na planta da área; descrição do conjunto de evidências e levantamento fotográfico. Como já foi dito, na fase de prospecção não foi adotado critério classificatório nem estabelecidas prioridades com relação a áreas ou a sítios identificados. O trabalho de levantamento tinha o objetivo de atingir todos os locais de ocorrência de vestígios arqueológicos. Na fase de salvamento entretanto, a orientação que se colocou foi outra. Neste caso foi considerada uma dupla perspectiva: * a primeira que considerou a complexidade que cada sítio apresenta no contexto e no peso global da reconstituição da dinâmica histórica; * a segunda ligada às medidas de salvamento a serem adotadas em cada caso. A primeira perspectiva parte da constatação de que vestígios arqueológicos diferentes apresentam diferentes necessidades no que diz respeito ao seu salvamento. A segunda parte da constatação de que a cada sítio caberá um conjunto de medidas que deverão ser adotadas em função de suas especificidades. Assim, um sítio classificado como fazenda por certo deve receber um tratamento diferente de um sítio de mineração. Estas duas perspectivas estão na origem da tipologia estabelecida a partir dos trabalhos de prospecção.

III Uma avaliação do conjunto de sítios levantados permitiu estabelecer uma tipologia , considerando as atividades (ou funções) neles desenvolvidos. É importante lembrar que o material não evidenciou surpresas quanto à sua constituição e/ou utilização. O conhecimento prévio da ocupação histórica de Goiás, pelo movimento bandeirantista a partir do primeiro quartel do século XVIII, de certa forma antecipou o que seria encontrado durante os trabalhos de prospecção. A análise dos dados levantados levou a uma classificação em oito categorias e à distribuição dos sítios conforme o quadro que se segue:

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TIPO Lavras (garimpo) Fazendas (criação e agricultura Mistos (lavra + fazenda) Cemitérios Núcleos Urbanos Contato (índio + colonizador) Portos Presídios (4) Diversos Total

Dentro da Área

Fora da Área

72 43 8 3 3 1 2 0 5 137

23 15 1 4 1 2 0 1 6 53

Total de Sítios 95 58 9 7 4 3 2 1 11 190

Cada uma destas categorias define um conjunto de elementos que podem ser encontrados ainda em evidência, ou então, se expressam em raros vestígios que só adquirem sentido quando respaldadas por informações orais ou documentais. Tal é o caso, por exemplo, dos portos e do presídio Santa Bárbara. Uma análise do quadro acima mostra de imediato a predominância de vestígios ligados à atividade mineradora. Evidentemente, não poderia ser de outra forma, considerando que a área em questão foi ocupada/colonizada a partir de um surto de mineração no século XVIII. A mineração foi atividade nuclear, em torno da qual se desenvolveu o processo de colonização. Isto não significa, entretanto, que apenas a atividade mineradora tenha sido praticada. Significa que as outras atividades que se desenvolveram (agricultura, pecuária, artesanato, etc) tiveram sua referência na atividade mineradora. Outro motivo que nos leva a compreender o fato de predominarem vestígios da atividade mineradora é a própria concepção (mentalidade) mercantilista (metalista) que no momento tratado, a primeira metade do século XVIII, tinha um peso fundamental. A política das nações, particularmente dos impérios coloniais, se regia pelas teses mercantilistas. A crença na riqueza das nações (condicionadas à acumulação de metais) levou ao estabelecimento daquela acumulação como prioridade, o que acabou por determinar a dinâmica das sociedades coloniais. Em seguida, os vários tipos de sítios são caracterizados a partir de seus elementos. fundamentais.

As Lavras Com relação a essa tipo de sítio, o primeiro ponto a ser levantado diz respeito ao tamanho do empreendimento. Uma lavra pode ser definida como uma área de pequenas dimensões que era trabalhada por um ou poucos indivíduos, ou ainda como uma grande área trabalhada por dezenas ou centenas de escravos. Isto quer dizer que o termo - lavra - não define por si só as dimensões do empreendimento, mas apenas o tipo de atividade desenvolvida. No conjunto deste tipo de sítio predominam lavras de grande porte que envolveram certamente, e quase sempre, algumas dezenas de indivíduos. Tal

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avaliação se fundamenta nas dimensões das áreas trabalhadas, no volume de sedimento revirado e na quantidade de obras (canais, açudes, aterros, mundéus, galerias, muros, etc) executadas. Enfim, na massa de trabalho humano que se expressa nos vestígios de sua realização, ou seja, trabalho humano acumulado. Revirar até a profundidade de um metro uma área de alguns hectares não é certamente trabalho para um único indivíduo. Principalmente, se levarmos em conta que para a lavagem de sedimento revirado foi necessária a construção de açudes, de canais quilométricos, e ainda, se foi necessário fazer o desvio de um rio ou córrego do seu leito original. Enfim, a natureza da atividade e as dimensões da sua execução exigiam trabalho coletivo sob comando unificado. Tal conclusão nos remete à mão-de-obra escrava porque o trabalho assalariado está descartado enquanto possibilidade histórica dominante, no período aqui tratado: o século XVIII. O segundo ponto que merece nossa atenção que merece nossa atenção diz respeito à articulação dos elementos que compunham cada uma das unidades mineradoras. Esse ponto afeta diretamente a pesquisa arqueológica, na medida em que, o que resgatamos são fragmentos de conjuntos, que tinham uma dinâmica tanto na sua integração quanto no seu funcionamento. Com isso queremos dizer que o fundamental não é apenas localizar tais vestígios mas resgatá-los e entendê-los enquanto elementos que formavam sistemas, alguns dos quais imensos e complexos. Esses dois aspectos - o qualitativo e o quantitativo - merecem maiores esclarecimentos. Se lembramos que alguns desvios de rios ou canais, para transporte de água, podiam atingir a dimensão de quilômetros, estamos diante de uma realidade onde um único sítio arqueológico pode também atingir dimensões quilométricas. Do ponto de vista quantitativo, com certeza, essas unidades mineradoras constituem alguns dos maiores vestígios arqueológicos do mundo. Do ponto de vista qualitativo há que se destacar todo o conhecimento, que está implícito, na aparente simplicidade de cada um desses sistemas hidráulicos. Denominamos de hidráulicos os sistemas que tem na água o elemento fundamental, seja como força motriz ou para lavagem de sedimentos. E são denominados sistemas pelo fato de serem conjuntos de elementos articulados, cada um dos quais evidenciando uma etapa na divisão e na realização (ou dinâmica) do processo de trabalho. Baseados nos princípios fundamentais da hidrodinâmica os sistemas hidráulicos expressam, tanto as potencialidades quanto os limites da tecnologia mineradora setecentista, e portanto, a necessidade de seu resgate e de sua compreensão. Os sistemas hidráulicos aos quais nos referimos eram constituídos por elementos distintos, integrados e que merecem um pouco mais de nossa reflexão. No conjunto desses elementos destacam-se canais, mundéus, açudes, aterros, muros e catas. Os canais, do ponto de vista de sua função (que era o de transporte de água) estavam voltados para a satisfação de duas necessidades: o abastecimento de água para consumo humano e/ou animal e o abastecimento das lavras para prática da

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mineração. Não há, entretanto, uma distinção técnica no que diz respeito ao fato da água ser utilizada para um ou outro fim. Um aspecto importante a ser lembrado é o fato de que a declividade desses canais geralmente é mínima, o que pode ser explicado por dois motivos: * quanto menor a declividade do canal, maior seria distância que o abastecimento poderia atingir * quanto menor a declividade, menor é o risco de que a água desenvolva algum processo de erosão, tanto no leito quanto nas paredes do canal. A versatilidade desses sistemas hidráulicos é notável no fato de que a água retirada de uma mesma fonte (que pode ser um olho d‟água ou um curso d‟água) poderia sempre ser remanejada, o que permita a sua utilização em diferentes locais (e épocas). Assim, áreas absolutamente distintas e distantes poderiam ser trabalhadas ou abastecidas, com o mesmo fluxo de água a partir da construção de canais diferentes. É o que explica o fato de podermos encontrar canais que partindo de um mesmo lugar podem se dirigir a locais totalmente diferentes. Pelo que percebemos, existia uma estratégia que utilizava um mesmo curso d‟água para atingir uma área diferente a cada momento. Um tipo de canal comum era aquele construído paralelamente aos rios. Esses canais poderiam alcançar dois objetivos: possibilitar a utilização da água desses rios para a lavagem do sedimento (mineral) e permitir que a água do rio fosse desviada de seu leito original para que esse leito pudesse ser trabalhado a seco. O levantamento realizado permitiu detectar a construção de canais destinados aos dois objetivos descritos. Outro elemento típico de determinados sistemas (técnicos) de mineração são os mundéus. De forma mais objetiva, mas sem correr o risco de uma simplificação exagerada, podemos dizer que os mundéus eram poços ou tanques onde, através de um processo de decantação o mineral mais pesado (ouro e/ou diamante) tende a ficar depositado no fundo, para um posterior trabalho de apuração. Do ponto de vista da sua construção, tanto poderiam ser grandes tanques com paredes de pedras e argamassa, como poderiam ser buracos feitos no leito de córregos e canais por onde a lama aurífera ou diamantífera deveriam passar. Este segundo caso certamente é inspirado nas ocorrências que a geologia denomina de “pilões”. No conjunto dos trabalhos de prospecção, os indicadores apontam para a predominância de mundéus escavados (denominados pilões), ao invés de mundéus construídos. A escolha por uma das técnicas certamente estava condicionada pela quantidade de mãode-obra disponível, pelo rendimento que se esperava atingir, bem como pela expectativa de duração da fase produtiva de cada lavra. Dito de outra forma, quanto maior a expectativa de retorno e a oferta de força de trabalho. maiores seriam os investimento em cada unidade mineradora. Por sua vez, uma lavra que não prenunciava grandes rendimentos (nem grande período de produtividade) certamente não receberia o emprego de vultosa mão-de-obra. A construção de açudes, no conjunto da atividade mineradora antiga, também foi uma constante. O trabalho de prospecção tem evidenciado exemplares diferenciados tanto no que diz respeito às técnicas de construção, quanto no que diz respeito às funções. No conjunto de sítios levantados, destacam-se pelas dimensões o

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açude próximo ao arraial de Santa Rita e outro que faz parte de um dos complexos de mineração do Rio do Peixe. Do ponto de vista técnico os muros de represamento poderiam ser construídos com a utilização de terra, de terra e pedras, de pedras e argamassa e ainda de madeira, terra e pedras. Como se percebe, a oferta de materiais era bem diversificada. Ao que tudo indica a utilização dessas técnicas diferenciadas estava ligada às dimensões da obra e ao volume d‟água que o muro deveria conter. Quanto maior o volume d‟água, ou a altura do reservatório, maior deveria ser a amarração dos elementos componentes do muro de represamento. No que diz respeito às funções, os açudes cumpriam basicamente duas: reservatórios de água, como no caso dos sistemas de mundéus ou elevar o nível de um determinado curso de água para que ela pudesse ser utilizada em locais mais altos. Merece citação ainda, a prática do represamento que não implica necessariamente na construção de açudes. essa prática era utilizada sempre que se pretendia desviar um determinado curso de água de seu leito original. nesse caso a técnica quase sempre as restringia à construção de muros de terra e pedra, nas proporções que o curso de água em questão exigia. Algumas dessas obras conseguiram resultados realmente impressionantes, obtendo o desvio de rios de médio porte por vários quilômetros, como é o caso do Rio Traíras na fazenda Água Parada, denominação derivada dos efeitos provocados por esse tipo de desvio. Informações orais não confirmadas apontam para a possibilidade de que até o Rio Maranhão tenha sido desviado de seu leito. Outro tipo de elemento muito comum em sistemas hidráulicos de mineração foram os aterros. Essa construção tinha como objetivo fundamental, em geral, a elevação do nível do solo, para que sobre essa elevação pudesse correr um canal de transporte de água. Embora de técnica de construção simples, suas dimensões às vezes exigiam grandes quantidades de material (geralmente pedras e terra) e de mão de obra. Os aterros também evidenciam a utilização de trabalho coletivo sob comando unificado, ou seja: trabalho escravo. Geralmente associados a essas construções encontramos as vestígios (buracos) de onde foi retirado o material para sua construção. Um dos mais expressivos tipos de vestígios que o trabalho de prospecção tem evidenciado são muro de pedras. Eram constituídos a partir de duas técnicas básicas. A primeira tinha como resultado o muro minhoto, também denominado de “junta seca” pelo fato dos blocos serem empilhados sem a utilização de argamassa. A segunda técnica consistia na utilização de argamassa para unir os blocos e fechar as reentrâncias entre eles. Associados à atividade mineral encontramos tanto um quanto outro tipo de técnica. No caso de contenção de barrancos, nas proximidades das lavras, a técnica predominante era “junta seca”, limitando-se a dimensão do muro apenas à área que se pretendia conter. Quando construídos para o represamento das águas das águas, no caso de açudes por exemplo, evidentemente os muros deveriam ser capazes de vedar no sentido literal do termo, a passagem da água. Nesse caso, era necessário a utilização simultânea de diferentes tipos de material: terra, pedras, madeira, palha e até mesmo estrume de vaca. Na maior parte dos casos, os muros de açudes eram formados por 135

dois muros paralelos de pedra, preenchidos de terra socada, evidenciando a modalidade de taipa denominada de “pilão”. Mas, os muros que compõem o conjunto de sítios prospectados tinham ainda várias outras funções: delimitar propriedades, impedir que o gado penetrasse em áreas de plantação (pomares por exemplo), ou ainda delimitar o espaço permitido aos animais como currais, pocilgas, etc. Qualquer que seja sua função, os muros são fundamentais para elucidar um aspecto de qualquer cultura, que é muito importante para a arqueologia: a definição, distribuição e utilização do espaço. Através da denominação de catas foram, e são conhecidos, os buracos feitos para a extração do sedimento a ser lavado. Com dimensões e formas variadas encontram-se em quase todos os locais onde a atividade mineradora foi desenvolvida. Algumas chegam a atingir grandes dimensões, que eram determinadas pela dimensão da “mancha” de sedimento no qual havia ocorrência do mineral a ser extraído. A observação dessas catas nos permite perceber a necessidades da criação de planos inclinados, que iam da borda ao fundo, para possibilitar o acesso dos trabalhadores ao seu interior e para que pudessem retirar o sedimento e levá-lo ao local onde seria lavado. Outra prática, menos comum, no entanto mais perigosa, consistia na escavação de pequenos buracos nas paredes das catas, onde trabalhadores pudessem colocar as mãos e os pés para utilizá-los como escada esta segunda técnica implica em riscos de queda, o que tornaria a atividade tanto mais arriscada, quanto mais profunda fosse a cata. Além de arriscada, essa técnica era potencialmente mais onerosa já que colocaria em risco a vida de escravos, um bem que pela lógica do escravismo sempre era necessário preservar, enquanto investimento de capital. A profundidade dessas catas era variável já que em alguns lugares o sedimento a ser lavado se esgotava a menos de um metro de profundidade, enquanto em outros lugares essa profundidade podia atingir de quinze a vinte metros, o que se evidencia na existência atual de buracos gigantescos, que certamente demandaram enorme quantidade de força de trabalho para a sua execução. As Fazendas Sob a denominação genérica de fazenda - entende-se o conjunto formado pela propriedade territorial juntamente com os elementos que possibilitam a permanência humana e o desenvolvimento das atividades econômicas, para as quais a unidade produtiva está voltada. Esse tipo de sítio pode apresentar restos de residências ou de outros elementos constitutivos como currais de pedra e/ou madeira, engenhos, moinhos, monjolos, pocilgas, canais para abastecimento de água, etc. As evidências obtidas pelo trabalho de prospecção indicam construções não muito grandes e nem muito luxuosas. Tendência que, ainda hoje, se percebe nas sedes de grande número das fazendas nessa parte do território goiano. Isto significa que na atualidade temos, de certa forma, a reprodução de uma tendência cultural, nos hábitos de moradia, cuja origem deve estar no século XVIII. Estas evidências arqueológicas são corroboradas pelo levantamento bibliográfico e documental. Os inventários e os registros dos viajantes do século XIX atestam a pobreza do mobiliário destas fazendas. 136

Os vestígios encontrados apontam para uma predominância das fazendas voltadas para a atividade agro-pastoril, que não exigem o investimento de grande capital na sua instalação. As atividades de transformação como as desenvolvidas por moinhos, engenhos, etc, não ocorriam na mesma freqüência. Como foi dito, os vestígios das residências não indicam hábitos excepcionais mas, apenas o cotidiano de uma vida simples, para não dizer austera. No tocante ao material utilizado nas construções, predomina, sem dúvida alguma a pedra, elemento típico do universo arquitetônico barroco colonial. Logicamente esta predominância era determinada pela própria oferta de matéria prima que a região oferecia. Quanto à distribuição/ocupação do espaço nesses sítios, as informações ainda não são suficientes para detectarmos uma possível tendência embora alguns traços fundamentais tenham sido captados. Em primeiro lugar se destacam três tipos de evidências ligadas ao processo de transformação dos alimentos: fogões, fornos e fornalhas. Os fogões geralmente de formato retangular se enquadram no tipo tradicional caracterizado por dois alinhamentos paralelos sobre base mais elevada e que eram utilizados para suporte dos recipientes. A base tanto podia ser ela mesma de alvenaria (pedra por exemplo) ou um girau de madeira que deixava um espaço livre embaixo do fogão (espaço este utilizado às vezes para depósito de madeira a ser consumida pelo próprio fogão). Os fornos, também de formato bastante difundido, são os denominados “fornos de cupim”. De formato circular apresentam uma cúpula que varia do cônico ao semi-esférico. A matéria prima vai do barro (argila) à pedra (com argamassa) passando pela utilização eventual de pedaços de cupinzeiro. Existe ainda o respiradouro cuja posição é variável podendo estar na parte superior ou posterior da cúpula. O funcionamento deste tipo de forno também é simples: o fogo é colocado em seu interior para o aquecimento prévio; posteriormente a madeira em combustão é retirada e o alimento a ser cozido é introduzido no interior do forno e a entrada é fechada com uma laje (plaqueta) de pedra. Detalhe importante: a entrada de praticamente todos eles tem formato quadrangular e a moldura é constituída por três pedras que se ajustam na posição de um U invertido. As fornalhas também apresentam uma concepção tradicional onde a funcionalidade é determinada pela utilização de tachos, ou outro tipo de recipiente redondo, para o cozimento do caldo de cana ou a confecção de cozidos diversos (sabão, doces, etc). O formato é circular, as paredes verticais e a entrada para a alimentação do fogo acompanha a concepção utilizada para as entradas dos fornos (quadrada e na posição de U invertido). A esta descrição é necessário acrescentar que tais elementos nunca se localizam dentro da casa de moradia mas estão geralmente afastadas dela e protegidas por um tipo de cobertura. Esta disposição dos elementos no espaço doméstico na realidade expressa uma prática comum na arquitetura rural colonial, não constituindo algo excepcional mas a regra geral. Outro elemento típico nas fazendas é a existência de vestígios de cercas de madeira, (em que predomina absoluta a aroeira), geralmente usadas para delimitar áreas como o pomar ou então currais.

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Do ponto de vista da técnica construtiva poderíamos classificar estas cercas de duas maneiras: ou os esteios estão todos eles assentados verticalmente ou então, através de um sistema de encaixe, parte é vertical e a maioria horizontal. Os vestígios das casas supostamente utilizadas para moradia apresentam, geralmente, um alicerce de pedras (com argamassa ou junta seca), às vezes vestígios de esteios, baldrames e, quando existem vestígios de parede a técnica que se manifesta é a de adobe; embora em alguns casos o pau-a-pique também tenha sido utilizado. Outro tipo de evidência arqueológica que aparece com razoável freqüência são os vestígios de monjolos e engenhos. E em pelo menos um caso, vestígios de um moinho d‟água. Todos estes vestígios também apresentam elementos técnicos tradicionais, não fugindo às regras que ainda hoje regem a construção destes equipamentos. Em linhas gerais os elementos descritos são os mais notáveis que caracterizam as fazendas voltadas para as atividades agro-pastorís e de transformação.

Sítios Mistos Nesta categoria foram englobados os sítios que apresentam evidências de atividades agro-pastoris e também de mineração. A articulação destes dois tipos de atividades, de certa forma foi a maneira encontrada para que o desenvolvimento da atividade mineral não fosse prejudicada pelas deficiências de abastecimento. É provável que fatos ocorridos na região de Minas Gerais tenham alertado para a possibilidade de desabastecimento aos mineradores, comprometendo a perspectiva mercantilista da Coroa Portuguesa. Daí o fato de que a própria Coroa se preocupou em criar nas regiões mineradoras mecanismos de auto abastecimento, para que a atividade nuclear (a mineração) não se visse na contingência de ser interrompida por falta de gêneros alimentícios. Os sítios mistos não apresentam particularidades excepcionais, apenas a fusão de atividades diversificadas na mesma unidade produtiva. Se compararmos o número deste tipo de sítio com os dois anteriores (lavra e fazendas) é possível perceber a tendência à especialização das unidades produtivas. Dito de outra forma, se considerarmos apenas o universo dos três tipos de sítio dominantes (lavra, fazendas e mistos) a categoria dos sítios mistos participa deste total com apenas 5,5%, cabendo às lavras a participação com 58,7% e as fazendas perfazem o total de 35,8%. O reduzido número de sítios mistos, em princípio, pode ser visto como indicador de uma tendência à especialização. Entretanto, tal assertiva não pode ser vista como uma conclusão definitiva. As informações obtidas pelo levantamento documental apontam para uma maior diversidade do que esta apontada pela prospecção arqueológica. Daí resulta o fato de que o trabalho de salvamento é que permitirá constatar, se efetivamente, as unidades de economia diversificada (sítios mistos), tinham apenas a expressão numérica apontada pelo trabalho de prospecção. A conclusão da montagem do banco de dados com o cruzamento de todas as informações disponíveis é que permitirá resolver esta questão.

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Os Cemitérios Os cemitérios prospectados encontram-se na sua maior parte fora da área de inundação. São constituídos, em geral, por uma área na qual se percebe a existência de sepulturas, ou porque ainda existem cruzes ou fragmentos ou porque o abatimento do terreno não deixa dúvidas quanto à sua existência. Um indicador cultural expressivo se manifesta no costume de plantar piteiras nos locais de sepultamento, para que tais plantas servissem de indicadores do local. Esse hábito contribuiu para demarcar de forma inequívoca alguns desses sítios. O plantio de apenas um exemplar de piteira é suficiente para que após alguns anos toda a área do cemitério esteja ocupada por dezenas de indivíduos da espécie. Outro aspecto ligado a esse tipo de sítio é o costume de cercá-los com muros de pedras, ou com cercas de madeira vertical (aroeira) para evitar que animais pudessem depredá-los. Não foi constatada nenhuma prática de construção de túmulos e/ou alguma forma de mausoléu. Tais práticas são, aparentemente, tardias na região, e no meio rural não parece existir indicadores de que tenham se desenvolvido. Embora classificados aqui como material arqueológico (e inegavelmente estes sítios o são, pela suas origens históricas e pelo seu contexto de localização) estes sítios serão objeto de uma reflexão específica dada a sua natureza. A premissa que deverá notear esta reflexão parte da constatação de que estes cemitérios ainda estão em uso/atividade. Tal constatação se fundamenta em dois dados da realidade: o fato de que alguns destes cemitérios terem recebido sepultamentos em anos recentes, e o fato de parentes dos sepultados ainda cumprirem ali, periodicamente, seus rituais de culto aos mortos. A realidade expressa neste dados envolve ainda uma questão de cidadania que passa pelo direito de preservação de crenças e valores. É evidente que nenhum destes moradores que tem seus ancestrais, ou parentes imediatos ali sepultados. admitirá a possibilidade de ver seus mortos serem retirados e transformados em objetos de museu. Pelo exposto consideramos que no caso dos cemitérios não se justifica uma intervenção arqueológica que passe pela escavação. A obtenção de dados deverá necessariamente contemplar esta realidade.

Os Núcleos Urbanos Os núcleos urbanos, evidentemente não apresentam as características dos que modernamente podem ser assim denominados. Tais núcleos não apresentam critérios modernos de organização do espaço, mesmo porque, os surtos de mineração geralmente subordinam tais critérios à dinâmica da própria atividade (mineração), motivo que levou Sérgio B. de Holanda a fazer a célebre comparação entre as cidades coloniais portuguesas e espanholas (5). É importante que fique claro que estamos entendendo por núcleos urbanos os aglomerados de casas que acabaram por se tornar vilas ou aldeias. Muitos desses locais, com a crise da atividade mineradora entraram em decadência e desapareceram,

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restando apenas ruínas como no caso de Água Quente, Cocal. Traíras e Santa Rita, dentre outros. Dos antigos núcleos desaparecidos a maior parte está fora da área inundável. No caso do arraial de Santa Rita, apenas parte do sítio deverá ficar submersa. As evidências mais expressivas deste núcleo são conjuntos de muros e canais. Os muros, todos eles de pequena altura (nunca vão além de 1,0m) parecem indicar limites de propriedades (quintais) e áreas de circulação (arruamentos). A pequena altura dos muros pode indicar o fato de terem sido parcialmente destruídos ao longo do tempo ou pode indicar que sua função era evitar a entrada de animais nos pomares. Se a segunda explicação é correta não haveria necessidade de serem muito mais altos do que se apresentam hoje. Próximos deste núcleo destaca-se a ruína de uma grande açude que represava as águas do córrego Santa Rita. As dimensões dos vestígios apontam para uma obra realmente expressiva nas dimensões do que pode ter sido o seu espelho d‟água. Sua utilidade provavelmente estava ligada à atividade mineral e/ou abastecimento. O trabalho de salvamento permitirá a reconstituição tanto da malha do núcleo urbano quanto a forma e dimensões do açude e demais elementos a ele articuladores.

Sítios de Contato Foram definidos desta maneira os sítios onde as evidências arqueológicas apontam para a possibilidade de coexistência de duas ou mais culturas (indígena, européia e africana). Antes de mais nada, é necessário deixar claro que apenas o trabalho de salvamento (e a posterior análise do material coletado) poderá permitir afirmar, com segurança, que tais sítios foram efetivamente locais de contato de diferentes culturas. Não pode ser descartada a possibilidade de diferentes culturas terem se estabelecido no mesmo local em épocas diferentes e nesta medida não terem estabelecido relações. Neste caso a evidência arqueológica de culturas diferentes, no mesmo local, não indicará contato, mas apenas uma sucessão cronológica de ocupação. A solução deste problema passa, por uma lado, pelo processo de salvamento e, por outro, pela elucidação de como se deu a formação e ocupação do território goiano por suas populações indígenas. Particularmente no que diz respeito à população dos avá-canoeiros. Dos três sítios classificados como de Contato apenas uma está efetivamente dentro da área inundável (Córrego Três Ranchos I). O local teria sido ocupado por avá-canoeiros em período histórico o que aponta para a possibilidade de ocorrência de vestígios que evidenciam contato cultural. Uma análise do local e a coleta de informações orais confirmou tratar-se não de um sítio de contato mas de área ocupada por índios e brancos sem continuidade entre as ocupações.

Os Presídios

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Os presídios, diferentemente do conteúdo que o termo possui atualmente, no período colonial eram geralmente locais fortificados, daí a origem do nome, que funcionavam como entrepostos e como posições avançadas do poder público colonial. Enquanto posições avançadas exerciam o papel de fiscais das atividades econômicas, evitando contrabando por exemplo, e funcionavam também como linha de frente para a expansão da fronteira agrícola e para a contenção de possíveis ataques indígenas. A construção e manutenção desses locais foi uma das soluções para o problema dos vadios no Império Colonial Português(6). Começando por uma construção precária poderiam, com o tempo, vir a constituírem embriões de núcleos urbanos, na medida em que seu funcionamento como entrepostos permitia o estabelecimento de fluxos regulares de pessoas e produtos. O Presídio de Santa Bárbara, único identificado pelo trabalho de prospecção, está localizado fora da área inundável. De qualquer maneira, os vestígios que dele restaram são mínimos, pelas inúmeras vezes em que o terreno foi arado para a formação de pastagens. No local, os vestígios perceptíveis são pequenos fragmentos de cerâmica além da madeira vertical de uma cruz que teria restado do cemitério existente. Fragmentos melancólicos de um núcleo que por informações documentais, parece ter sido dinâmico em épocas passadas.

Os Portos A navegação por trechos dos Rio Tocantins, Maranhão, das Almas e outros, foi uma constante desde o primeiro quartel do século XVIII, quando teve início o processo de ocupação do território goiano em função dos interesses do Império colonial Português. Esta navegação exigiu desde o início o estabelecimento de locais onde os barcos pudessem atracar com alguma segurança, principalmente pelo fato daqueles rios serem caudalosos em muitas partes de seus cursos. Percebe-se por esse motivo a necessidade de implantação de portos em alguns pontos daquelas partes navegáveis. A documentação pesquisada é explícita na indicação da existência desses portos. Muitos deles eram apenas lugares onde havia o estreitamento da largura de algum rio. Como esses lugares eram aproveitados para a travessia de uma margem a outra, ao se constituírem em pontos de travessia acabaram por atrair o movimento dos barcos e se tornaram portos. O próprio governo colonial, e posteriormente o imperial tiveram interesse na preservação desses locais. O trabalho de prospecção realizado identificou apenas dois destes pontos: Porto da Lavra e o Porto do Bagagem. Nenhum dos dois apresenta vestígios de construção ou outros indicadores mais precisos; apenas a tradição oral os indica como antigos locais utilizados como portos.

Diversos Nesta categoria estão englobados todos os sítios que apresentaram vestígios para definir sua função ou então apresentam um caráter excepcional no conjunto dos sítios como é o caso da “Trilha dos Bandeirantes”. 141

Vários destes sítios apresentam pequenos segmentos de muros de pedra em condições tais que sua atividade não pôde ser precisada. Um ou outro vestígio de canal também foi enquadrado nesta categoria. Neste conjunto de sítios mereceu destaque a “Trilha dos Bandeirantes” localizada nas imediações de N.S.da Abadia do Muquém e um “forno de queimar telhas” localizado na Fazenda Engenho Novo na margem esquerda do Rio Tocantinzinho e que está fora da área de inundação. A Trilha dos Bandeirantes é constituída de segmentos de uma estrada calçada com lajes, evidenciando por uma lado trabalho escravo e por outro a importância da própria via. No período colonial apenas as estradas reais recebia este tipo de tratamento (requintado para a época) pelos altos custos envolvidos na sua construção. IV Vejamos agora alguns aspectos que dizem respeito a avaliação e monitoramento. A avaliação de um projeto desta natureza deve sempre levar em conta vários aspectos. O primeiro deles certamente passa pela determinação da fase de desenvolvimento em que ele se encontra. No caso específico que estamos tratando, o projeto encontra-se na metade de seu processo de execução. Evidentemente isto traz implicações de diversos tipo sendo a maior delas o fato de não permitir uma avaliação definitiva do trabalho total realizado. Apenas parte dele pode ser avaliado. É importante lembrar aqui que trata-se de um projeto de arqueologia histórica, o que o diferencia sobremaneira de um projeto de arqueologia pré-hitórica. Os critérios de avaliação são necessariamente diferentes num e noutro caso. O segundo aspecto a ser considerado diz respeito aos objetivos propostos pelo projeto, e os resultados atingidos, não só em sua fase final mas também nas etapas intermediárias. Mesmo considerando que o trabalho arqueológico está em grande parte marcado pela incerteza, que antecede tanto a fase de prospecção quando a da escavação, um projeto não pode ser montado sobre critérios que não se sustentam. A maior ou menor proximidade entre os objetivos propostos e os resultados atingidos é por certo um elemento de avaliação, tanto da montagem do projeto quanto da sua execução. Quanto maior a distância entre os objetivos propostos e os resultados atingidos maior é o erro de avaliação durante a fase de montagem. Evidentemente tal tipo de erro não invalida um projeto executado, mas certamente o coloca em posição de fragilidade no que diz respeito a este pronto. No que diz respeito aos dois primeiros aspectos colocados a avaliação que fazemos do projeto em questões é positiva. Embora apenas sua metade tenha sido realizada é possível afirmar sem margem de erro, que do ponto de vista dos objetivos propostos o resultado não podia ser melhor. Antes de mais nada porque as informações (orais, bibliográficas e documentais) tem sido confirmadas a cada passo da realização do salvamento. Se por um lado a quantidade de sítios levantados foi novidade, do ponto de vista qualitativo não houve surpresas: o que foi encontrado era, em grande parte, o esperado. Um terceiro aspecto a ser considerado, quando se trata de avaliar um projeto (concluído ou em execução) é como seu cronograma de campo tem se desenvolvido.

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Este aspecto adquire maior relevância quando o projeto tem seu cronograma atrelado ao da obra, como em Serra da Mesa. Neste caso uma avaliação objetiva deverá trabalhar com informações precisas, do processo de enchimento do reservatório, e contar com o risco de perda de sítios, diante da velocidade de subida do nível da água. Este último ponto levantado nos remete ao quarto aspecto que deve ser considerado. Qual é a relação que pode ser estabelecida entre a dimensão do patrimônio resgatado e a extensão da área inundada? Esta questão é crucial quando o projeto é desenvolvido a partir de critérios de amostragem. Até que ponto pode se considerar expressiva de uma totalidade uma amostra que tenha contemplado, 25% por exemplo, da determinada área? Para o caso do patrimônio arqueológico histórico da área de Serra da Mesa podemos afirmar com segurança que este índice jamais permitiria uma amostra efetivamente significativa, tal a diversidade da realidade resgatada. O último aspecto que gostaríamos de tocar diz respeito a custos financeiros. Trata-se no caso de estabelecer relações entre alguma variáveis como: a dimensão da área e do patrimônio a ser resgatado; o tempo gasto no projeto e seu atrelamento ao cronograma da obra; a dimensão da equipe e o ritmo de execução dos trabalhos. É evidente que os resultados atingidos por uma avaliação desta natureza serão diferentes se o projeto é desenvolvido por amostragem ou não. É fundamental perceber que apenas a relação entre o custo global do projeto e a área total do mesmo não é suficiente para avaliar qualquer aspecto de qualquer projeto. Em que pese a visão equivocada de que os custos de um projeto devem ser entendidos na perspectiva neoliberal de sua regulação pelo mercado. Quanto à questão do monitoramento gostaríamos de tocar em dois aspectos embora muitos outros possam estar relacionados. No primeiro caso trata-se da circunstância em que o trabalho de salvamento está atrelado ao processo de enchimento do reservatório, como é o caso de Serra da Mesa. Neste caso o monitoramento deve ser desenvolvido no sentido de otimizar o trabalho de campo para escapar dos riscos de perda do material arqueológico pela subida da água. A estratégia adotada deverá levar em conta a velocidade de subida da água e a altimetria. A articulação entre velocidade e altimetria deverá estar na base desta perspectiva de monitoramento. O segundo caso diz respeito à guarda do patrimônio arqueológico resgatado. É evidente que tal patrimônio pertence à comunidade de onde foi retirado; e para ela deveria retornar desde que nela existissem condições mínimas de conservação. No caso do patrimônio arqueológico histórico de Serra da Mesa reza o contrato que ele deverá ficar, devidamente acondicionado em local da UFG que deverá estabelecer uma política para sua preservação. Caberá a quem de direito fazer o monitoramento para avaliar suas condições de conservação. À guisa de conclusão gostaríamos de lembrar que quaisquer que venham a ser os critérios de avaliação e monitoramento adotados esses deverão, sempre, ser adequados à realidade de cada projeto. E mais, a generalização indiscriminada de critérios de avaliação para quaisquer projetos pode levar à invalidação destes mesmos critérios.

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NOTAS 1. ver, dentre outras, a obra de Basílio de Magalhães, Expansão Geográfica do Brasil Colonial, São Paulo, Nacional/MEC, 1978. 2. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo, Hucitec, 1979. PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português. São Paulo, Nacional/MEC, 1979. VILAR, Pierre. Ouro e Moeda na História 1450-1920. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. 3. HOLANDA, Sérgio B. de. (org). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, Difel, 1977. Tomo I, 2o vol. Livro quarto, cap.II,V e VI. IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. São Paulo, Difel, 1962. PRADO JR. Caio.Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1989. ______________. História Econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1961. 4. O termo Presídio era usado para designar entrepostos ou posições avançadas do Estado Colonial. 5. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1955. Ver especificamente o capítulo “o semeador e o ladrilhador”. 6. Uma análise desse fenômeno, para o caso de Minas Gerais, pode ser encontrada em Desclassificados do Ouro, de Laura de Melo e Souza, Rio de Janeiro, Editora Graal, 1986.

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DETECÇÃO E RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS RODOVIÁRIOS

Maria do Carmo Mattos M. Santos INTRODUÇÃO A Resolução CONAMA N 001/86, que institui a obrigatoriedade de elaboração e apresentação do Estudo de Impacto Ambiental - Rima para o licenciamento de atividades consideradas modificadoras do meio ambiente, constitui importante instrumento na prevenção da destruição indiscriminada dos recursos arqueológicos sem o adequado registro e estudo, o que não era conseguido até então apenas na vigência da legislação de proteção do patrimônio histórico e pré-histórico nacional. Isto deve-se ao fato de que, no escopo dos EIAs, o patrimônio arqueológico histórico e pré-histórico constitui uma das variáveis a serem avaliadas no contexto dos fatores ambientais do meio antrópico. No que se refere à Arqueologia, os Estudos de Impacto Ambiental apresentam-se como uma oportunidade de geração de conhecimento e avanço científico quando consideramos que: a) a exemplo do que dizem Scovill, Gordon & Anderson (1977, p. 46) para os Estados Unidos, o conhecimento que se tem do patrimônio arqueológico brasileiro também é pequeno, fragmentário e inconclusivo diante do potencial de conhecimento não estudado e ainda não destruído; b) que os recursos arqueológicos são recursos não-renováveis e finitos; c) que os impactos negativos sobre estes recursos tem caráter cumulativo e irreversível; d) e que a mitigação destes impactos será possível através do levantamento da informação contida nestes recursos, a partir de pesquisas baseadas em estratégias científicas e profissionais. Além disso, a iminência de perda de informação sobre culturas pretéritas, considerando-se o caráter não-renovável e finito dos recursos arqueológicos, está estimulando inclusive o desenvolvimento de métodos e técnicas arqueológicas adequadas à realidade dos EIAs. É sabido que as especificidades de um empreendimento (área definida por critérios não arqueológicos, restrições de tempo e de orçamento) são antagônicas às condições ideais de pesquisa científica (investigação de longa duração respondendo a programas de pesquisa cientificamente concebidos), mas é possível desenvolver dentro de EIAs pesquisas com hipóteses de trabalho bem definidas, que gerem novas informações, ampliando o conhecimento existente e, até mesmo, colocando novas questões. Nos primeiros anos de vigência da legislação ambiental, a idéia de “salvamento” de sítios arqueológicos a serem afetados por grandes empreendimentos impediu que o patrimônio arqueológico fosse considerado em seu pleno aspecto científico e histórico - buscando contribuir para a compreensão do nosso passado cultural-, e também contribuiu para estigmatizar (negativamente) as pesquisas realizadas pela “arqueologia de salvamento”. É preciso que se questione a visão simplista de detecção e posterior resgate de sítios arqueológicos como única e suficiente medida de mitigação de impactos sobre o patrimônio arqueológico.

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O processo deve ser encarado em toda a sua amplitude, onde a detecção e o resgate constituem momentos importantes mas não únicos ou suficientes, devendo ser precedidos pela definição de uma estratégia clara de levantamento decorrente do diagnóstico do potencial arqueológico da área a ser afetada, do estabelecimento de critérios de significância para a escolha dos sítios a serem preservados ou resgatados, e seguidos do estudo do material proveniente do levantamento e do resgate, da elaboração de programas de acompanhamento e monitoramento, e de posterior divulgação dos resultados e conclusões. DETECÇÃO E RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS RODOVIÁRIOS A Resolução CONAMA n 001/86 em seu artigo 2 , inciso I cita diversos tipos de empreendimentos, dentre eles “as estradas de rodagem com duas ou mais faixas de rolamento” como atividades modificadoras do meio ambiente que dependem, para seu licenciamento, da elaboração de Estudos de Impacto Ambiental Rima. A análise e a aprovação do EIA-Rima é condição para a obtenção da Licença Prévia (LP) nos empreendimento citados neste artigo. O diagnóstico ambiental da área de influência de um projeto deve abranger completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto... (Res. Conama 001/86, Art. 6, Inc.I) visando inferir/analisar as variáveis passíveis de sofrer impactos diretos ou indiretos nas fases de planejamento, de implantação e de operação do empreendimento. No que se refere ao patrimônio arqueológico, este diagnóstico partirá de uma contextualização arqueológica da área a partir de fontes secundárias e permitirá, principalmente, propor questões a serem respondidas pelo levantamento arqueológico sistemático a ser desenvolvido preferencialmente nesta fase. A análise dos impactos ambientais de um projeto dar-se-á após a identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, que terão sido avaliados enquanto impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade... (Res. Conama 001/86, Art. 6, Inc.II). No caso do patrimônio arqueológico, se considerarmos que a destruição de um sítio arqueológico constitui sempre um impacto negativo, direto, imediato, permanente e irreversível, o levantamento arqueológico sistemático da área parece ser imprescindível para uma correta avaliação (identificação/valoração/interpretação) dos impactos que serão gerados pelo empreendimento, e para posterior proposição de medidas mitigadoras e de programas de acompanhamento e monitoramento destes impactos. É importante ressaltar que o levantamento arqueológico não precisa, necessariamente, completar-se com a avaliação dos impactos, podendo ser definida a sua continuidade tanto no âmbito da proposição de medidas mitigadoras como no dos programas. A estratégia do levantamento arqueológico da área a ser afetada por um determinado empreendimento deve procurar abranger toda a diversidade de recursos

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arqueológicos existentes na área de estudo, sendo condicionada por uma variedade de fatores específicos de cada projeto, entre eles: conhecimento já existente do contexto arqueológico da área em estudo; problemas de pesquisa a serem resolvidos; natureza do empreendimento (linear - rodoviário, ferroviário, dutoviário, linhas de transmissão, etc, ou em áreas amplas hidrelétrica, projeto urbanístico, distrito industrial, projeto agropecuário, extração de minério ou combustível, porto/aeroporto, etc); extensão da área a ser afetada; categoria de licenciamento (licença prévia/licença de instalação/licença de operação); tempo disponível e recursos alocados. Qualquer que seja a estratégia adotada para executar o levantamento do patrimônio arqueológico ela passa necessariamente por decisões condicionadas pelos fatores acima, no que se refere aos seguintes aspectos: 1. cobertura - locais dentro da área de estudo onde serão aplicadas as técnicas de levantamento arqueológico. Esta cobertura pode ser total ou utilizar métodos de amostragem (aleatória ou estratificada), embora a cobertura total dificilmente se justifique em termos das necessidades de pesquisa. 2. intensidade - grau de esforço dispendido no levantamento das áreas a serem cobertas (homem-dia/km2) incluindo a opção pela investigação de subsuperfície -, condicionada, também, por fatores como: capacitação profissional da equipe, espaçamento entre os membros da equipe, cobertura vegetal, topografia, logística, acessibilidade, natureza das informações a serem coletadas - inclusive coleta de material; 3. visibilidade - interferência de fatores como cobertura vegetal, processos de sedimentação e de erosão, re-ocupação da área etc, na possibilidade de observação do solo; 4. acessibilidade - limitações no acesso de áreas a serem cobertas quer por fatores topográficos ou de vegetação, que devem ser explicitadas e, se possível, reduzidas ao mínimo. (SCHIFFER, M. & GUMERMAN, G., 1977, pp.184-187.) Além de permitir estimativa do número de sítios arqueológicos a serem afetados, o levantamento do patrimônio arqueológico deve trazer informações individualizadas, por sítio, sobre implantação, profundidade e espessura do depósito arqueológico, conteúdo cultural, estado de conservação e situação em relação ao empreendimento (CALDARELLI, 1993), possibilitando a avaliação do potencial científico da área como um todo e, também, dos sítios individualmente - o que condicionará as opções por medidas de preservação ou de resgate. O levantamento arqueológico delineia o universo de sítios arqueológicos na área afetada por um empreendimento. A partir dele, e utilizando critérios de significância, será proposto o resgate como medida mitigadora, que pode abarcar todos os sítios identificados ou somente alguns deles. Isto será definido baseando-se tanto no conhecimento pré-existente dos recursos arqueológicos da área quanto nos resultados do levantamento, quando ocorrências já bem estudas e recorrentes podem

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ser negligenciadas em função de ocorrências inéditas dentro do contexto arqueológico da área. Desta forma, dentre os fatores que contribuem para as opções do resgate a ser desenvolvido, podemos citar: conhecimento prévio do contexto arqueológico da área; número de sítios detectados no levantamento; problemas de pesquisa a serem resolvidos; o potencial informativo de cada sítio, condicionado principalmente por seu estado de conservação; espessura e profundidade do depósito arqueológico; extensão da área do sítio; tempo disponível e recursos alocados. É importante que o sítio seja representado na sua diversidade de áreas de atividade, daí a necessidade de delimitação da área do sítio considerando tanto os vestígios em superfície como em profundidade, o que influencia diretamente a estratégia de coleta a ser adotada. Um dos problemas que se coloca no resgate de sítios identificados através de levantamentos arqueológicos desenvolvidos em EIAs é o tipo de coleta (total, seletiva ou por amostragem) que será desenvolvida (REDMAN & WATSON, 1979). Sabe-se que a análise do material proveniente de um sítio arqueológico demanda muito tempo para ser concluída, geralmente não se adequando às pressões do cronograma dos empreendimentos. Assim sendo, existe a necessidade de adotar uma estratégia de coleta que represente o mais fielmente possível o universo dos vestígios existentes no sítio, procurando-se evitar tanto a recorrência quanto a ausência de elementos, optimizando o volume de material coletado para análise. É preciso que se saliente que o resgate de um sítio não se extingue na coleta do material, que por si só não leva à produção de conhecimento, mas inclui a análise, interpretação, e divulgação das conclusões elaboradas a partir do material coletado. Para que a qualidade da pesquisa arqueológica não seja questionada, os financiadores dos empreendimentos, e consequentemente dos EIAs, devem compreender a singularidade dos recursos arqueológicos e da pesquisa arqueológica, e que a mitigação de um impacto negativo sobre estes recursos passa necessariamente por todas estas etapas. PROJETO DE LEVANTAMENTO E SALVAMENTO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO DA FAIXA DE DOMÍNIO DA RODOVIA CARVALHO PINTO, VALE DO PARAÍBA, ESTADO DE SÃO PAULO A Rodovia Carvalho Pinto (SP-070), continuação da Rodovia Airton Senna (antiga Rodovia dos Trabalhadores), apresenta-se como alternativa à Rodovia Presidente Dutra interligando os municípios de Guararema a Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, numa extensão de 70 km. Empreendimento sob a responsabilidade da DERSA-Desenvolvimento Rodoviário S/A, teve suas obras iniciadas em 1989 (Fig.1). O interesse na análise deste projeto reside no seu pioneirismo no Brasil, tanto na elaboração de seu projeto técnico quanto na inclusão do patrimônio arqueológico

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em empreendimentos lineares. O projeto desta rodovia foi desenhado a partir de dados ambientais, com acompanhamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, procurando não interferir agressivamente no corpo ambiental das encostas da Serra do Mar, utilizando tecnologias de construção avançadas e buscando a preservação dos recursos naturais. Além disso, pela primeira vez em obras rodoviárias o patrimônio arqueológico surge como variável a ser considerada na avaliação dos impactos no escopo de um Estudo de Impacto Ambiental. O EIA-Rima deste empreendimento exigiu o cumprimento de alguns pontos básicos da legislação ambiental, inclusive a preservação dos sítios arqueológicos, tendo sido contratada a PROTRAN Engenharia Ltda. para monitorar os estudos ambientais complementares. Como o EIA apontava a possibilidade de dano ao patrimônio arqueológico regional e considerando a importância histórica do Vale do Paraíba, tanto no que concerne à ocupação indígena quanto ao seu papel de corredor de circulação no período colonial e imperial, foi desenvolvido o levantamento e resgate do patrimônio arqueológico e histórico da faixa de domínio da rodovia. A execução ficou a cargo da SCIENTIA Consultoria Científica, com o apoio do IPARQ - Instituto de Pesquisa em Arqueologia da UNISANTOS - Universidade Católica de Santos, sob a coordenação da Dra. Solange Caldarelli. É importante ressaltar que no EIA a avaliação do potencial arqueológico e dos possíveis impactos negativos concernentes à área a ser afetada pelo empreendimento desenvolveu-se a partir de fontes secundárias, não contando com trabalhos de campo, daí a proposição do levantamento arqueológico e do resgate na área diretamente afetada enquanto programas. O levantamento arqueológico restringiu-se à faixa de domínio da rodovia, com 130 metros de largura e 70 quilómetros de extensão. A metodologia empregada buscou identificar vestígios superficiais e em profundidade, e teve a preocupação de afastar a probabilidade de serem localizados apenas sítios arqueológicos com alta densidade de vestígios materiais, pois isto implicaria uma recuperação tendenciosa do patrimônio arqueológico regional, que não refletiria a realidade pretérita (CALDARELLI, 1994; vol. 1, p. 16). O levantamento desenvolveu as seguintes atividades: caminhamento ao longo do eixo da rodovia (estaqueado a cada 20 metros) visando detectar vestígios arqueológicos aflorados por fatores naturais ou antrópicos; a cada 250 metros execução de limpeza (retirada da vegetação de superfície) em áreas circulares de 1 metro de diâmetro, alinhadas transversalmente ao eixo, visando melhor controle das observações de superfície (o número de pontos de limpeza variou entre 4 e 6 dependendo da largura da faixa de domínio); execução de sondagem atingindo 1 metro de profundidade no centro de cada área de limpeza, visando a detecção de vestígios enterrados; produção de documentação fotográfica e cartográfica. Uma vez detectada uma ocorrência arqueológica, exigia-se a preservação de uma área de 200 metros para cada lado do ponto de ocorrência dos vestígios para fins de resgate. O levantamento propiciou a detecção de sete sítios arqueológicos que foram objeto de resgate (Quadro 1). O grau de intervenção em cada sítio variou de acordo

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com seu potencial informativo, uma vez que apresentavam distintos graus de preservação. No resgate dos sítios procurou-se equacionar adequadamente preocupações com delimitação de sítio, identificação de áreas de atividade diversificadas intra-sítio, e coleta de material com a necessidade de maximizar o tempo dispendido nos trabalhos. Interessante notar que apesar das pressões de cronograma (a obra havia obtido a Licença de Instalação) e de recursos, houve a possibilidade de contar com a infra-estrutura das empreiteiras que já encontravam-se no eixo da obra. Desta forma, a exemplo do que vem ocorrendo em países com maior tradição em resgates arqueológicos ligados a grandes obras (VAN HORN et al., 1986), foi possível a utilização de maquinário como moto-niveladoras e retro-escavadeiras na retirada de camada estéril e na confecção de trincheiras, o que agilizou incrivelmente os trabalhos sem que houvesse qualquer perda de informação espacial ou de profundidade. Pelo contrário, estas máquinas foram muito eficientes, principalmente nos casos dos sítios que não apresentavam estruturas preservadas em superfície, tanto na delimitação da área de dispersão dos vestígios como na detecção de áreas diferenciadas, possibilitando uma rápida visualização do contexto geral do sítio e a escolha das áreas que seriam objeto de escavação detalhada. CONSIDERAÇÕES FINAIS O resgate dos sítios arqueológicos detectados na faixa de domínio da Rodovia Carvalho Pinto trouxe evidências de ocupações diferenciadas no contexto do Vale do Paraíba paulista, relacionadas em sua maioria à ocupação histórica da área, além de uma ocupação indígena de grande interesse científico. Os sítios arqueológicos históricos estendem-se desde o século XVIII até a primeira metade do século XX, evidenciando um padrão comum na região, a saber: assentamentos ao redor de caminhos percorridos por tropeiros, uso de fornos de barro externos às habitações para cocção de alimentos e de artefatos de barro, construção de capelas em pontos elevados topograficamente, com plantas quadrangulares padronizadas (CALDARELLI,1994; vol.1, pp.133-134). No que concerne a ocupação indígena da área, o Sítio Caçapava 1 apresentase como um dado novo neste contexto. A cerâmica que ocorre neste sítio distingue-se das ocorrências de cerâmica tupiguarani relatadas até então para o sul do Vale do Paraíba paulista e os dados apresentados em MARANCA (1969) para o norte não são suficientes para permitir comparações. A cultura material do Sítio Caçapava 1 assemelha-se à cultura material da Tradição Aratu, variedade Sapucaí, que segundo PROUS (1992), ocorre desde o centro de Minas Gerais até o Mato Grosso, passando pelo norte de São Paulo, com datação do século XI. Desta forma, o Sítio Caçapava 1 comprovaria a expansão da Tradição Aratu/Sapucaí até o Estado de São Paulo, hipótese aventada por alguns estudiosos, mas apenas agora comprovada...(CALDARELLI, 1994, vol.1, p. 135). A descoberta deste sítio, que constitui importante contribuição para a pesquisa arqueológica, 150

demonstra a possibilidade de alcançar avanços científicos dentro do âmbito dos Estudos de Impacto Ambiental. Outro ponto positivo a ser ressaltado é o desenvolvimento e emprego de novas técnicas de campo na delimitação dos sítios e evidenciação de áreas diferenciadas, agilizando e optimizando o processo de resgate. Cabe aqui ressaltar que a Rodovia Carvalho Pinto foi entregue à população no final da gestão estadual anterior, acompanhada de denúncias de super-faturamento, com apenas a pista Capital-interior concluída, necessitando da implantação de operação de reversão nos dias de excesso de veículos, e sua conclusão não consta dos planos da atual gestão. Além disso, apesar do compromisso do empreendedor em financiar a totalidade do projeto, houve a interrupção do projeto antes que a análise do material fosse concluída, comprometendo a pesquisa e, principalmente, trazendo o risco de destruição do material ósseo humano do Sítio Caçapava 1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1993 CALDARELLI, Solange B. A Problemática dos Impactos Culturais em Avaliação Ambiental. aula ministrada no Curso de Pós Graduação “Avaliação de Impactos Ambientais de Projetos de Mineração” POLI-USP. 1994

CALDARELLI, Solange B. Projeto de levantamento e salvamento do patrimônio arqueológico da faixa de domínio da Rodovia Carvalho Pinto, Vale do Paraíba, Estado de São Paulo. Vol. 1 e 2, encaminhado à Protran Engenharia Ltda.. São Paulo, SCIENTIA Consultoria Científica/IPARQ Instituto de Pesquisa em Arqueologia da Universidade Católica de Santos.

1992

COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL Estudo de impacto ambiental - EIA; Relatório de impacto ambiental - RIMA: manual de orientação. São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente (Série Manuais).

1969 MARANCA, Silvia Dados Preliminares sobre a Arqueologia do Estado de São Paulo. Publicações Avulsas, 13. Belém, MPEG. 1970 REDMAN, C. L. & WATSON, P. J. Systematic, intensive surface collection. American Antiquity, 35:279-291. 1977 SCHIFFER, M. B. & GUMERMAN G. J. (Ed.) Conservation Archaeology. New York, Academic Press. 1977 SCOVILL, D. H., GORDON, G. J. & ANDERSON, K. M. Guidelines for the Preparation of Statements of Environmental Impact on Archaeological Resources. IN SCHIFFER & GUMERMAN (Ed.) Conservation Archaeology. New York, Academic Press. 1986

VAN HORN, D. M. & WHITE, R. S. Some Techniques for Mecanical Excavation in Salvage Archaeology. Journal of Field Archaeology, 13 (2): 239-244.

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SÍTIO/SIGLA Jacareí 1 SP-PB-Ja.1 Jacareí 2 SP-PB-Ja.2 Caçapava 1 SP-PB-Ca.1 Caçapava 2 SP-PB-Ca.2 Caçapava 3 SP-PB-Ca.3 Caçapava 4 SP-PB-Ca.4 Taubaté 1 SP-PB-Ta.1

TIPO histórico

MUNICÍPIO Jacareí

histórico

MATERIAL cerâmica/louça/ vidro/metal cerâmica/louça/ vidro/metal cerâmica/ossos/ lítico/louça/metal cerâmica/louça/ vidro/metal louça/metal

histórico

cerâmica/louça

Caçapava

histórico

cerâmica/louça/ vidro/metal

Taubaté

histórico indígena/ histórico histórico

Jacareí Caçapava Caçapava Caçapava

COORD. UTM 7.418.000 N 395.550 E 7.421.456 N 407.999 E 7.440.242 N 430.697 E 7.435.803 N 425.264 E 7.436.837 N 426.541 E 7.433.076 N 423.959 E 7.446.215 N 437.553 E

F. IBGE 1:50.000 Santa Isabel SF-23-Y-D-I-4 Jacareí SF-23-Y-D-II-3 Taubaté SF-23-Y-D-II-2 Taubaté SF-23-Y-D-II-2 Taubaté SF-23-Y-D-II-2 Paraibuna SF-23-Y-D-II-4 Taubaté SF-23-Y-D-II-2

CONSERVAÇÃO Perturbado

PROSPECÇÃO outubro/90

RESGATE maio/92

Perturbado

agosto/91

novembro/91

Perturbado

outubro/90

julho/91

Perturbado

janeiro/92

maio/92

Destruído

janeiro/92

abril/92

Destruído

maio/92

setembro/92

Perturbado

fevereiro/92

junho/92

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Quadro 1 - SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS PESQUISADOS NOS LOTES 1 A 7 DA RODOVIA CARVALHO PINTO, VALE DO PARAÍBA, SP. Fonte: Caldarelli, 1994, v. 1

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DEBATE Coordenadora: Doutora Solange Bezerra Caldarelli - Scientia Relatora: Catarina Eleonora Ferreira da Silva - DID/IPHAN Solange Caldarelli - Peço a atenção de todos para o Prof. Jorge Eremites, que tem um depoimento a dar sobre uma questão grave. Jorge Eremites - O que eu gostaria de falar é sobre um diagnóstico arqueológico que foi feito sobre o impacto da Hidrovia Paraguai/Paraná no patrimônio arqueológico brasileiro. Este trabalho foi publicado em fevereiro agora e foi feito por arqueólogos argentinos. Essa Hidrovia abrange, no Brasil dois estados: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; ela pega basicamente o rio Paraguai, desde Cáceres aproximadamente e vem até a divisa com Paraguai. Acontece que, nesta avaliação, arqueólogos se utilizaram de modelo preditivo, que pressupõe um levantamento topográfico exaustivo da área, o que não foi feito, e, em mais de 500Km, os arqueólogos citam apenas sete sítios arqueológicos e chegaram à conclusão de que o impacto dessa hidrovia no Pantanal é nulo ou mínimo. E nós sabemos, através de pesquisa que vem sendo feita desde 89, que no Pantanal há milhares de sítios arqueológicos. Nós temos cadastrados no IPHAN mais de 100 sítios e esses sítios não foram levados em conta para fazer essa avaliação. O IPHAN me solicitou, então, um parecer sobre esse trabalho; eu fiz o parecer e observei que, na verdade, os arqueólogos fizeram um trabalho no Brasil desrespeitando toda a nossa legislação; não consultaram o próprio IPHAN, não consultaram os profissionais que trabalham na área e chegaram a conclusões absurdas: que essa obra não vai ter nenhum impacto no patrimônio arqueológico e a gente sabe que vai ter impactos em sítios localizados na margem dos rios, em aterros e em vários outros sítios. A questão que eu gostaria de colocar era basicamente essa. Solange Caldarelli - Eu achei que o depoimento era importante: afinal, o patrimônio é nosso e gente de fora, sem verificar seriamente a situação, diz que o empreendimento não acarreta impacto; acho muito grave. Por isso, como o Jorge trouxe para o simpósio uma cópia do parecer que ele elaborou para o IPHAN, vamos publicá-lo como anexo, ao final das Atas, como meio de documentar com maiores detalhes a denúncia extremamente pertinente do colega. Agora, chamo o primeiro debatedor, que é o Rossano, do IPHAN de Santa Catarina. Rossano Bastos - Antes de falar sobre o debate eu acho que merece um registro aqui a denuncia do companheiro. Eu acho que o Fórum poderia tomar uma posição em relação a isso, uma vez que está envolvido o patrimônio arqueológico do lado brasileiro, principalmente se foi feito sem as prerrogativas que a lei no Brasil exige. Eu acho que cabe a este Fórum, diante dessa denúncia, encaminhar aos órgãos competentes, ao próprio IPHAN, ao Ministro da Cultura, uma moção de apoio aos companheiros do Mato Grosso do Sul, no sentido da gente conseguir reverter e resgatar essa problemática. Sobre os expositores, agora, eu gostaria de fazer algumas considerações. Em primeiro lugar, eu gostaria de parabenizar os participantes da mesa pelo excelente trabalho que eles realizaram e que eles expuseram aí. Como arqueólogo, eu fiquei

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muito satisfeito; talvez tenha ficado um pouco insatisfeito como cidadão, então é disso que eu vou falar. No meu entendimento, a arqueologia é uma ciência social; então, ela não não pode ser simplesmente uma técnica oriunda da razão instrumental iluminista; ela tem que ir além disso, ela tem que ser uma coisa de impacto social, para poder se justificar enquanto segmento da sociedade; então, nessa temática, a elaboração, implantação, avaliação de programas de resgate e monitoramento de bens históricos e préhistóricos, eu gostaria de ressaltar algumas questões que eu acho que são pertinentes e que foram abordadas de forma acho que tangentes e, às vezes, nem mesmo foram abordadas e que eu entendo que são prerrogativas para o bom relacionamento da sociedade, das comunidades com a pesquisa arqueológica. Os operários que trabalharam nas várias etapas da pesquisa, dos levantamentos, são treinados, são da região, são da localidade? Existe um envolvimento efetivo da comunidade ou das lideranças locais no trabalho como um todo? Ocorrem incursões anteriores ao início da pesquisa em escolas, centros comunitários, na população em geral, informando à população o que está acontecendo e o que vai acontecer? Existe acompanhamento dos futuros interventores que virão a posteriori, no acompanhamento das pesquisas arqueológicas e dos programas que estão sendo desenvolvidos? No resgate propriamente dito, nas escavações, a comunidade participa ativamente?. Como está previsto o retorno do material ou da informação às comunidades, como prevê o inciso 5° da portaria 007/88? Por fim, existem projetos educativos, culturais que possibilitam algum retorno à comunidade; existe a previsão de pequenos museus e salas de exposições; existe a exposição da pesquisa em leitura didática e universal e não uma exposição extremamente arqueológica e técnica? Eu gostaria de saber como criar as condições para esse material retornar às comunidades, uma vez que elas não estão a par desse instrumento, que é o conhecimento arqueológico. Como é que eu posso criar condições de retorno de material à comunidade, se eu não despertar a comunidade para o alcance social desses bens arqueológicos? Eu acho que, nesse momento, em que nós estamos com técnicas mais avançadas, estamos com a preocupação muito grande no registro da informação, urge também ter processos e programas mais sofisticados de interação do material arqueológico com a comunidade em geral. E por fim, eu gostaria de finalizar com uma pergunta, resgate, para que, por quê e, finalmente, para quem ? Solange Caldarelli - Passo a palavra aos expositores que queiram responder às questões do Rossano. Maria do Carmo - No caso do projeto no Vale do Paraíba, a comunidade foi sensibilizada e muito, participando do processo não na fase de levantamento, mas na fase de resgate. Os museus locais participaram e vão ser os depositários do material. Está previsto no programa que o material arqueológico deverá retornar para as cidades do Vale do Paraíba, ficando depositados nos museus que, obviamente, apresentarem condições de abrigá-lo. Além disso, foram incorporados pesquisadores locais nos diversos estágios da pesquisa e estudantes das universidades regionais nos programas de resgate, tentando sensibilizar ao máximo a comunidade. Um outro aspecto que eu poderia ressaltar é que a professora Lúcia Juliani, que fez parte da equipe de pesquisa e participou da mesa ontem, acaba de assessorar a montagem de uma exposição arqueológica no Museu Antropológico do Vale do

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Paraíba,. em Jacareí, que versa sobre as pesquisas arqueológicas de resgate realizadas no vale. Dilamar Martins - O que nós chamamos de auxiliares de campo, na verdade eles foram treinados, como estão sendo até este momento. Eles acompanharam todo o trabalho, em toda a área de Serra da Mesa e passaram inclusive a fazer parte do grupo, morando em nossas bases. Em termos de liderança há uma diversidade, porque cada cidade tem uma participação diferente; em algumas delas isso foi mais significante, em outras, a participação foi menor, dadas as próprias características da cidade e do funcionamento dela. A título de exemplo, a gente tem a cidade de Campinaçu, que é uma cidade pequena, mas onde houve interesse muito grande por parte da população local, seja a nível de cederem informação, de participar no trabalho; palestras que foram feitas nas escolas, com os professores e com os alunos de todas as cidades por onde a gente andou; a que houve menor envolvimento, tanto da municipalidade como também da população foi Niquelândia, considerando as próprias características dela, que vive em função de algumas empresas locais e a população é muito heterogênea, com pessoas vindas de fora. A questão do acompanhamento local, Uruaçu foi uma cidade em que inclusive a participação da municipalidade da população local chegou entre aspas até a certo ponto atrapalhar, entre aspas, o trabalho, dada a participação, o interesse na criação de museus, de convênios com universidades e até mesmo pensando na criação de um campus avançado da UFG. Isso já está sendo tratado. (...) Em termos de projeto educativo, eu coloquei em algum momento que o Museu já faz isso em Goiânia há vários anos, desde o início da sua existência e isso foi apenas acoplado a esse projeto, com exposições itinerantes que começaram a nível de Goiânia e foram previstas e solicitadas pelas cidades, às quais serão encaminhadas. A gente vai demonstrar amanhã, em termos de material didático e pedagógico, o que já foi elaborado, inclusive o vídeo, voltado para o ensino fundamental, e os documentários científicos, os CDs, etc, que agente está produzindo. E aí eu acho que fica claro que a idéia que a gente tem de resgate, de salvamento, é que é preservação, porque só se preserva qualquer bem cultural a partir do momento em que ele é pesquisado, em que ele é conhecido, em que ele é estudado. Então eu acho que aí fica respondido para que, por quê e para quem. Carlos Magno - Do ponto de vista da comunidade onde nosso projeto tem sido desenvolvido, a gente tem sempre tentado fazer contatos, por exemplo, através de palestras em escolas, independente de serem de nível superior ou de 1° e 2° graus, mostrando a natureza do nosso trabalho e a importância dele. Existe uma preocupação também em fazer contato com as autoridades municipais, no sentido de que seja possível trabalharmos em conjunto, o que significa dizer o seguinte: se por um lado nós precisamos dessas autoridades municipais, e isso sempre acontece, por outro lado, há contrapartida. Vou citar um caso acontecido: nós recebemos, em Belo Horizonte, uma carta de um vereador de uma dessas cidades, acoplada a algumas cartas de deputados, aonde vários deles apoiavam o projeto do vereador de criar um museu local e o vereador então estava nos fazendo ciente de que estava encaminhando aquele projeto e ia um pouco além, dizendo que o material arqueológico retirado tinha que ficar na cidade. É evidente que a gente concorda com isso, mas acontece que, nesse caso especifico que eu estou usando como exemplo, é um processo que ainda está sendo discutido, eu não vejo porque a gente definir já de antemão voltar com o

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material arqueológico para essa cidade, sendo que ainda está-se discutindo o futuro museu que vão criar. Do ponto de vista do resgate, que é a última questão que você coloca, o resgate para que, porquê e para quem, eu acho que, se há alguma validade nisso tudo, é que o processo de constituição de identidade da comunidade de onde o material é retirado, ele exige isso: é a história de todas as comunidades e enquanto tal merece ser resgatada. Eu não vejo porque achar muitas outras justificativas mirabolantes para justificar esses projetos de salvamento de resgate; evidentemente, não é para ficar com o material entulhando uma sala, se o destino desse material está previsto dessa maneira. É necessário que isso retorne, mas retorne de maneira adequada, seja através do que os exemplos que a Dilamar está citando, de produzir material pedagógico para uso das escolas ou através de exposições compreensíveis para o leigo e coisas do gênero; isso está contemplado, agora isso não está colocado como prioridade diante do andamento do projeto; isso é uma etapa futura, ou seja, nós não estamos preocupados em montar exposições agora. A nossa preocupação, agora, é com o nível da água que está subindo. Então, nós estamos preocupados com o trabalho de campo, entende? Agora, é evidente que qualquer projeto dessa natureza deve contemplar todas as possibilidades de divulgação dos resultados, inclusive divulgar em ambiente dessa natureza aqui, quer dizer, num fórum dessa natureza. Eu acho que isso responde, em parte, a questão do resgatar para quem. Quanto à utilização do pessoal local nos trabalhos, o que tem sido possível é a utilização do pessoal para ajudar na atividade de campo. Você pode chamar de peão, operário ou qualquer outra designação. Eles não têm, inicialmente, quando fazem o contato conosco, nenhum treinamento, sequer sabem do que se trata. Mas, ao longo do tempo, geralmente eles adquirem uma perspicácia muito grande para perceber tudo que a gente está querendo, e grande parte das vezes eles se tornam mais exímios do que nós, no que diz respeito ao trabalho de prospecção, porque eles conhecem a área. Esse pessoal é usado como ajudante de campo, até no trabalho de escavação e os guias são alargamente utilizados o tempo todo. Nenhum de nós conhecia 1m² desse território; temos conseguido, felizmente, guias que são verdadeiras obras primas, no que diz respeito à sua capacidade de interpretação do vestígio inclusive, embora até analfabeto nós tenhamos encontrado; ou seja, a desqualificação que poderia advir pelo fato do indivíduo ser analfabeto, ela é totalmente revertida no que diz respeito à capacidade que o indivíduo tem de fazer a leitura do ambiente, da natureza e até do vestígio arqueológico. Solange Caldarelli - Eu queria comentar a respeito disso que o professor Carlos Magno falou. É interessante porque esses guias, e eu imagino que aconteceu a mesma coisa com vocês, eles são muito motivados pela valorização que damos a vestígios que normalmente não são valorizados, pois não são monumentais, são cotidianos. Então, isso lhes dá a satisfação de ver o respeito, o interesse que um cientista tem por um vestígio que na verdade é testemunho do passado dele; no caso da arqueologia histórica, esse fato chama muita atenção. Doutora Lylian Coltrinari, da USP. Lylian Coltrinari - Vou fazer um comentário e duas perguntas aos colegas da mesa. Em primeiro lugar, quero dizer que, da mesma forma que fiz ontem algumas reflexões a respeito da interdisciplinariedade e outros tipos de trabalho conjunto, de maneira alguma estou cobrando dos colegas, da PETROBRÁS, FURNAS ou quem quer que seja pelos trabalhos que não foram realizados. Quero dizer simplesmente que os

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arqueólogos não precisam se preocupar com questões que não lhes dizem respeito enquanto especialidade, e que outros especialistas deveriam ser envolvidos. Gostaria de chamar a atenção para um fato que, me parece, é compreensível. Nem todo geógrafo, nem todo geomorfólogo, está preparado para todo tipo de tarefa, por exemplo o trabalho de resgate, ou o tipo de análise que o sítio arqueológico precisa. Para ser mais clara, gostaria de comentar o que Maria do Carmo, Emília e Dilamar apresentaram. Em relação ao trabalho de Maria do Carmo, como trabalho há 20 anos naquela área, para mim é de todo interesse o tipo de informação que esses sítios podem fornecer. Fico, inclusive, com um pouco de inveja, já que gostaria muito de ter contado, na época de minhas pesquisas, com maquinário do tipo que vocês contaram para raspar aqueles centímetros superiores, por exemplo no topo das colinas; vocês conseguiram, com isso, exposições contínuas dos materiais nos topos das colinas e ao longo das vertentes, o que é precioso para o geomorfólogo e o pedólogo. Só que nós temos que fazer isso a mão, contratar pessoal e gastar um tempo enorme para conseguir fazer quatro buracos, e vocês têm em meia hora aberta uma trincheira, que é o ideal. Além disso, queria dizer que, com base no que as fotografias mostram sobre a limpeza e a abertura de trincheiras, elas não ofereceram nenhum tipo de perigo para a estabilidade do material; os casos que eu conheço de desestabilização não dizem respeito ao nível de intervenção da pesquisa arqueológica e sim, por exemplo, à existência de falhas geológicas, que podem ter sido detectadas nos levantamentos geofísico e geológico. Faço a menção porque foram mobilizadas camadas sedimentares da base dos sedimentos da bacia que, inclusive, estão dando lugar à pesquisas específicas de materiais; mas não se trata, repito do material pedológico e do solo superficial, onde estão os sítios, é do material geológico que está mais fundo. Do ponto de vista geomorfológico não há nada a criticar quanto à forma de realização da pesquisa. Em segundo lugar, uma reflexão sobre o que Emília mencionou quanto à pesquisa de Porto Primavera. Gostaria de falar sobre a forma como, às vezes, as evidências morfológicas não são totalmente completas. Não adianta muito fazer somente a compartimentação, dizer "aqui é planície atual, o dique marginal, lá está a planície subatual, e lá em cima é terraço". O que adianta é considerar a dinâmica, atual e passada, testemunhada pelos depósitos que fazem parte desses diferentes elementos da paisagem. Eu queria lembrar uma questão: às vezes é necessário examinar o ambiente da várzea, no fundo do vale fluvial, que é extremamente dinâmico. Isso porque, quando se fala da localização dos sítios, deve lembrar-se que todo ano o rio invade sua planície de inundação, e que o que hoje são terraços já foram planície de inundação; que o dique marginal é a faixa localizada na borda do canal médio do rio e recebe o material mais grosseiro quando acontece o transbordamento, porque o material mais fino vai embora com a água que inunda a várzea. Com isso quero dizer que eu tomaria muito cuidado antes de dizer que o sítio está em seu lugar original; e segundo, dizer que o sítio que estou analisando está formado por (...), estruturas correspondentes a uma só ocupação. É similar ao que falei ontem a respeito da migração vertical nas vertentes e nos interflúvios, isso também pode ocorrer na várzea e nos diques marginais. Como os diques marginais estão formados por areia grossa - que é friável, a possibilidade de mobilização vertical é muito grande e o retrabalhamento lateral mais ainda. Isso cria um problema, realmente; só estou dando uma opinião, com base na dinâmica fluvial. Outro comentário: pelo que acabei de dizer, me parece que cada uma das estruturas de solos de ocupação tem de ser vista com um certo cuidado, porque pode

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haver combinação e mistura, não sei como chamaria... (...). Além disso, outra questão que Emília frisou: hoje em dia instalações, casas e outras construções acima do próprio sítio e, até, a própria ocupação pré-histórica posterior, podem contribuir para a movimentação vertical desse material, ou seja, há processos de compactação que necessariamente vão interferir na mobilidade do material que está na parte mais profunda. Ainda a respeito do posicionamento: lembro que foi mostrado um perfil com as duas várzeas, os dois níveis de várzeas, mas um tinha uma acumulação entre o terraço e a várzea; é preciso analisar com muito cuidado porque, em geral, quando se está em um degrau, ao longo dele o material se desloca com facilidade. Uma acumulação hoje localizada no sopé de uma vertente provavelmente formou-se a partir do material que o próprio recuo dessa vertente -causado pelo solapamento lateral do rio, produziu: o vazio na base da margem "atrai" o material de cima, por gravidade; isso é considerado quando se consideram critérios geológicos e geomorfológicos. Agora, o material lítico tem um peso e volume maior e é possível que possa ser removido, não porque alguém o colocou ali, mas porque foi transportado naturalmente. Quero dizer que há uma série de considerações, que são de domínio exclusivo dos arqueólogos, mas seria preciso contar com o apoio de um especialista que chamasse a atenção para esses fatos. Não é para o arqueólogo fazer esse tipo de pesquisa, mas para que ele exija a presença de alguém que o auxilie; esse é o motivo de minha insistência. Como eu sei que muitos geógrafos não estão fazendo isso, acho que deverá ser futuramente de interesse do próprio arqueólogo pedir a alguém com capacitação específica para trabalhar com a estratigrafia e a análise dos materiais ou solos não arqueológicos. Finalmente, um comentário para Dilamar. Eu fiquei muito curiosa por saber qual é o tipo de cimento que aparece no sítio em que mostrou a cerâmica com seixos; se esse cimento é natural, ele é indicativo de um processo paleoambiental de evolução pedológica, em que houve remoção de material em dissolução e reprecipitação posterior. Se houvesse um pedólogo junto, poderia auxiliar na indicação da causa dessa evolução. Muito obrigada. Maria do Carmo - Rapidamente, sobre o equipamento e o maquinário utilizado, é preciso frisar que, quando o trabalho foi efetuado nesses sítios, o empreendimento estava em fase de implantação, com as empreiteiras já trabalhando no trecho; dificilmente um arqueólogo conseguiria exigir esse maquinário antes que a empreiteira já estivesse instalada. Emília Kashimoto -Doutora Lylian, as questões são interessantes e bastante pertinentes. Elas se colocaram desde o início do nosso levantamento. Será que a questão de transporte fluvial não influencia na configuração daquele material arqueológico, naquele determinado local? Essa pesquisa em Porto Primavera foi cooordenada, desde o início da etapa de levantamento, pelo professor Gilson Rodolfo Martins, que é um grande pesquisador de etnohistória. Ele fez um levantamento para rever essa questão de implantação, principalmente em metade da área, que tem características tupi-guarani marcantes pela cerâmica e, então, utilizar esses dados de etnohistória para tentar auxiliar a compreensão da implantação espacial de ocupações pretéritas indígenas. Porém, acredito que é um campo, para o pesquisador, pegar um sítio, fazer laboratório no local; mas, a princípio, nós fizemos coletas comprobatórias de material cerâmico e lítico. Então (...), vou tentar colocar dois eixos: essa questão de mobilidade lateral e vertical do material. Existem níveis cerâmicos e níveis líticos; aquele nível

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que nós chamamos de paleodique, é uma interpretação de geólogos da Universidade Estadual de Maringá. O professor Kenitiro Suguio fez um módulo na área da barragem, no momento da implantação; fez um estudo prévio para definir a compartimentação da paisagem, então nós estamos utilizando essa conceituação de paleodique, para chegar na questão do dique. No paleodique existe, no sítio MS- IV08, que foi mostrado na transparência, um nível cerâmico e as vasilhas estão inteiras, in loco. Inclusive, tivemos condições de escavar; temos fotos, mas, infelizmente, não saiu slides. Então, acreditamos que aquela vasilha cerâmica in loco, inteira, se ela tivesse sido remobilizada de um nível de terraço superior, teria sido fragmentada, e nesse mesmo sítio não imaginávamos, pela questão da várzea, que haveria um nível lítico em profundidade. Por um teste que fizemos na trincheira e a 2m, localizamos material lítico com uma dimensão menor, com uma intensa utilização de seixos e artefatos pequenos, diferentemente do nível do material lítico lá dos diques atuais. Então, esse material lítico estava no contexto sedimentológico que os geólogos da Universidade Estadual de Maringá relacionam a um clima árido menos úmido, porque é um sedimento siltoso amarelado, sem aquela característica de matéria orgânica enegrecida; então, a priori, tem características diferenciais dos níveis superiores, que realmente são de níveis aluviais, que dão uma textura mais grosseira, com a tonalidade de matéria orgânica. Então, aquele nível profundo coaduna com essa interpretação de provável deposição em ambiente semi-árido, ambiente mais seco; isso está para ser discutido ainda com essa equipe de Maringá, porém percebemos que a sedimentação é diferenciada e o material lítico é diferenciado; então, nesse sentido, existe uma interpretação arqueológica de que realmente seria local de alguma instalação e a própria morfologia favorece. Por outro lado, fazemos estudos conjuntos com a outra margem. Apesar do professor Gilson ter dito que há uma divisão, nós mantemos bom relacionamento com os pesquisadores da UNESP; participamos de levantamentos na margem esquerda também e temos condições de comparar as duas margens. Então, a margem esquerda, é anti-ético falar, mas tem características distintas, que permitem comparar, em termos de material, bem como tipos de implantação em relação ao relevo. Então, a proposta, nesse caso, é uma abordagem geo-arqueológica, é o entendimento de que o arqueólogo pode entender um pouco de geociência no sentido de que, por exemplo, no meu caso, eu tenho que fazer uma abordagem geo- arqueológica porque eu fiz graduação em geografia e tentei ir atrás do conhecimento básico e tento aplicá-lo à questão arqueológica de implantação e alteração de sítios arqueológicos. Isso não implica só técnica pela técnica, no sentido de aplicar uma interpretação geomorfológica a uma questão arqueológica, mas é um dos itens para um entendimento maior. Então vai-se cruzar esses dados sedimentológicos, estratigráficos, com análise do material arqueológico, para tentar ver se existe seleção de material, se houve o transporte lateral fluvial, a tendência de seleção de material ao longo do sítio, porque a estilha vai mais longe do que o bloco; ou seja, esse tipo de análise auxilia também a tentar entender a questão do transporte. Então é uma questão bastante complexa, mas essa abordagem se pretende geoarqueológica no sentido de que é possível fazer uma pesquisa, dentro da arqueologia, com uma preocupação ambiental, de implantação e alteração dos sítios. Porém, tentando contemplar questões arqueológicas, de tradição Tupiguarani, se o ambiente influencia determinado tipo de implantação ou não, a partir da análise da cultura material. Dilamar Martins - Eu queria colocar uma coisa em que dá um gancho das observações que foram feitas pela professora. Desde o início do nosso projeto, o

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entendimento nosso foi que, não só no trabalho de Serra da Mesa, mas em arqueologia de modo geral, o arqueólogo não tem nem competência e nem obrigação de entender das várias áreas de conhecimento que são necessárias para o desenvolvimento de um bom trabalho em arqueologia. Então, dessa forma, foi uma exigência da nossa parte que a equipe fosse constituída com a presença de especialistas da área, mas que estivessem pensando nas suas especialidades não como um fim, mas como um meio que propiciasse a colaboração para respostas pertinentes à arqueologia. Nesse sentido, inclusive, estão presentes aqui o geomorfólogo que acompanhou ininterruptamente o nosso trabalho, da mesma forma que não houve nenhuma campanha sem arqueólogo, o geomorfólogo acompanhou o tempo todo. Isso também aconteceu com geólogo, em função das especificidades da área e da localização dos sítios, e inclusive com especialidade em hidro-geologia, também está aqui presente. Eu não me daria o direito de falar dessas questões, considerando que eles têm acompanhado todo o trabalho desenvolvido, inclusive o subprograma de geo-arqueologia. Eu acho que seria muito interessante que o professor Roberto e o Edgar tivessem posteriormente uma conversa em particular com a professora. E, lembrando aí o caso daquele sítio que demonstrou, é um sítio lítico, uma cascalheira, e aparece material cerâmico de forma cimentada, aquilo também levantou para a gente uma série de questões: se aquela cerâmica era realmente (...) Como saber, à medida que está próximo entre o interfluvio também e poderia ter vindo essa cerâmica e poderia ser de um outro momento, quer dizer, uma série de questões que foram levantadas e para isso a gente trabalhou com esses especialistas e com técnicas que demonstraram que aquela cerâmica que hoje está alí cimentada, ela existiu realmente em outro nível anterior, à medida que a gente abriu; acho que foi meio rápido a questão dos slides, mas a gente abriu trincheiras no barranco do rio e pôde perceber que a cerâmica estava a 3m de profundidade, exatamente na camada superior ao material lítico cimentado. Portanto, essas questões foram lembradas e trabalhadas junto com o profissional da área. Solange Caldarelli - Doutor Walter Neves, da USP. Walter Neves - Bom, eu tenho algumas observações para a Emília, para Dilamar e para o Carlos. Emília, tive muita dificuldade, no seu trabalho, de entender o que era ponto de partida e o que era ponto de chegada. Eu acho que isso aconteceu porque você quis usar um tipo de modelamento e não assumiu isso explicitamente. Ontem quando o Renato falou de modelamento, muita gente aqui protestou, mas, na verdade, a gente trabalha sempre com modelo. Já que ele é inevitável, é melhor que ele seja explícito do que implícito porque, quando ele está implícito, a gente nem sempre coloca nele todas as variáveis que precisam ser colocadas, e aí me assustou um pouco, porque você disse que tinha do rio para dentro uma faixa de mais ou menos 13Km; ao invés de fazer um desenho amostral de maneira a diversificar os tipos de sítios que poderiam ser encontrados, você fez um desenho muito bonito, mas favorecendo a amostragem basicamente de um tipo de sítio, ou seja, os sítios ribeirinhos. Então, minha pergunta é: se nós vamos fazer modelos preditivos, porque o que você esta trabalhando é um modelo preditivo, você estará prevendo somente uma ou algumas categorias de sítios. Então, nesse sentido, eu acho que é melhor assumir o modelo, é melhor assumir que está trabalhando com modelo e utilizar o maior número de variáveis possíveis, para que você dê chance a que todas as categorias de sítios sejam amostradas

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Com referência à Dilamar, eu não entendi como é que a malha amostral foi estabelecida na região. Também não entendi como eram as unidades amostrais e qual foi o critério de espalhamento ou de distribuição dessa malha amostral na região. Por exemplo, não ficou claro para mím, dado que eu não entendi isso, a porcentagem da área levantada e sobre qual intensidade de caminhamento, por exemplo, essa porcentagem da área foi percorrida.. Eu não entendi isso no levantamento e também não entendi essa mesma coisa na questão das escavações; não ficou claro, para mim, dos sítios que foram eleitos para escavações ou para uma interferência mais profunda, qual a porcentagem ou a distribuição espacial dessa porcentagem e porque essa porcentagem ou essas áreas foram escolhidas, dentro de um sítio, em detrimento de outras áreas. Com referência ao Carlos, eu acho o seguinte: que a necessidade de se fazer um design ou um desenho de levantamento arqueológico vem exatamente para afastar a gente do subjetivismo. O desenho é, sem sombra de dúvida, o melhor instrumento que você tem para afastar o subjetivismo; e você disse umas coisas assim: eu não fiz uma amostragem, mas fiz uma cobertura máxima possível. Eu não entendo o que é uma cobertura máxima possível; quer dizer, não fica claro para mim o que é isso. E, novamente, em termos de parcela coberta e de intensidade de caminhamento dentro dessas parcelas. Depois, você usou uma outra frase, quando você falou dessa cobertura máxima. Você disse: eu acho que a gente fez uma cobertura bastante razoável. Eu também não sei o que é bastante razoável. Qual é o parâmetro que você está usando? é quantitativo? é qualitativo? Então, eu acho o seguinte, sobretudo em pesquisa de salvamento, onde a gente não vai ter a oportunidade de outro profissional ou de outros profissionais voltarem com suas próprias subjetividades e trabalhar aquelas subjetividades que já foram empregadas, eu acho que nós temos de trabalhar o máximo possível com desenhos que eliminem o máximo possível de subjetividade, e eu não vi isso no seu discurso. Só isso, muito obrigado. Emília Kashimoto - Essa pesquisa de salvamento tem uma pecularidade conjuntural de relacionamento da Universidade com a SERPES; ela tem uma duração longa, em comparação com os outros projetos. Prevemos mais dois anos de resgate. Essa questão de modelos preditivos, eu acho bastante complexa, uma vez que realmente eu não me debrucei sobre ela, porque não é meu objetivo. Eu tento trabalhar em cima do real, do que é palpável. A realidade dessa pesquisa de Porto Primavera foi, no primeiro momento, empírica; nós selecionamos uma área e simplesmente caminhamos ao longo do dique marginal para ver onde ocorriam os materiais arqueológicos, desprezando aquela idéia inicial na foz, de confluência ou não, e aí percebemos que a questão topográfica era fundamental; tinha material arqueológico e a topografia era favorável, era mais elevada (...). Então, nós começamos a priorizar essa observação. Vou tentar colocar como foi feito, para ver se chega a contemplar sua questão. A pesquisa foi feita essencialmente em dois grandes eixos: um, navegando todo o curso fluvial, em 250Km, observando as margens e os locais de topografia favorável, vistoriando os locais e plotando com GPS. O segundo grande eixo foi o interior. Então, nesse ambiente de várzea ou lago de várzea, percebemos que tem algumas elevações favoráveis, mas não tem como chegar nelas; é um lago de várzea enorme, em volta o barco não consegue navegar, o carro não tem como chegar, então é uma coisa improvável; nós atravessamos ali caminhando, então, na realidade, chegamos aonde foi possível. Nesse eixo interior, priorizamos todas as estradas, todos os locais de acesso, com base nos sítios localizados, tentando achar esses sítios ao

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longo dessa faixa exterior. E uma terceira etapa é a seleção de áreas potencialmente favoráveis para retro-alimentar, voltar em campo e vistoriar essas áreas intensivamente. Então, os casos topograficamente favoráveis foram intensivamente abertos com tradagem, para tentar localizar o material. (...) No caso da imagem do satélite, eu acho que o caminho seria primeiro essa primeira etapa de caráter mais empírico, plotar esses sítios numa imagem, a partir daí identificar os locais relevantes e voltar em campo para testar em outras áreas o que foi feito; voltar aos locais potencialmente favoráveis e, a partir daí, ter um maior conhecimento arqueológico do local, e numa terceira etapa, fazer leitura dos piques dessa imagem e tentar algoritmos a partir de modelos que, eu entendo, seriam modelos preditivos mesmo. No meu entendimento, a viabilidade é nesse sentido. Dilamar Martins - Para tentar responder o que foi colocado eu gostaria de chamar, se for permitido, os especialistas da área, no caso o professor Roberto e o professor Nilton Ricete Nazareno, que trabalham especificamente para explicar essa questão do trabalho que foi feito a nível de reconhecimento geral e, posteriormente, explicar a questão das unidades ambientais. Como é que foi feito, por exemplo, todo o trabalho a nível de reconhecimento geral, a preparação, os estudos de laboratório que dariam a chance para a gente percorrer a área. Era isso que eu queria que o professor Nazareno colocasse e no segundo momento o professor Roberto explicasse a questão das unidades ambientais e a divisão de zonas ambientais. Walter Neves - Não perguntei de unidades ambientais, mas de unidades amostrais. Dilamar Martins - A questão da percentagem da área trabalhada, a grande preocupação que a gente teve foi a seguinte: a área de Serra da Mesa ela não permite o acesso a determinadas áreas, então ela foi percorrida por via terrestre e de carro e por via fluvial, onde era possível acessar. Então a área trabalhada ela se restringe, em nenhum momento a gente coloca que nós conseguimos atingir os 1.784 Km; nesse sentido, a gente sabe que uma série de sítios arqueológicos estão ali escondidos, essa é a primeira coisa. Então, a área percorrida não compreende toda da área do reservatório; onde foi possível acessar, a gente foi. Daí eu não ter exatamente uma percentagem da área que foi trabalhada, na medida que o percorrimento não se dá na área total, mas a gente teria um critério específico na questão da distribuição, que foi outra questão que foi levantada basicamente pelo estado de conservação do sítio. Em alguns sítios, a distribuição espacial deles é impossível de ser definida e isso representa uma grande percentagem, especialmente nos eixos do Rio Maranhão e Tocantins e D‟ Almas, que deve ter sido observada por uma transparência nossa que há um vazio, inclusive naquilo que nós chamamos de área dois para área um. Talvez em função disso, essa área é onde se registra a maior parte dos sítios que nós consideramos como sítios destruídos, ou seja, que todas as estruturas arqueológicas praticamente já não existem mais, salvo escassos fragmentos que ainda existem nos barrancos, nos rios próximos a áreas de atuais garimpos ou que são doadas por pessoas que trabalham nas áreas do garimpo e que utilizam o sistema que o professor Carlos Magno já colocou, das duchas etc. Então, a distribuição espacial foi observada com muita preocupação a partir dos sítios que o estado de conservação permitiu, então não foi trabalhado só na parte superficial, quer dizer o material que aparece na superficie não é o delimitador da distribuição espacial do sítio, na medida em que ele é falseado pelos próprios usos atuais que são dados às área; daí a tentativa de demonstrar a distribuição espacial dos sítios a partir dos trabalhos verticalmente.

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Então isso foi muito claro por exemplo, nós trabalhamos naquela aldeia mostrada, tem dezesseis cabanas e nelas a gente encontrava uma área muito grande em que o material estava distribuído, mas descontextualizado; então a partir daí a gente começou a trabalhar tentando demonstrar essa distribuição espacial, que ficou clara ao final do trabalho,com o reconhecimento de dezesseis manchas que constituíam as cabanas; as áreas ociosas estéreis arqueologicamente também foram trabalhadas (entre uma cabana e outra nas áreas centrais do sítio), verificando se existia ou não algum elemento, na medida em que havia o espalhamento total de testemunho cerâmico na área. A questão da malha, eu vou tentar colocar aqui para não alongar e se depois quiser, dar uma conversada com os especialistas. No primeiro momento, a gente fez aquela subdivisão de áreas de 1 a 5 e nós fizemos de forma diferente do pessoal da Universidade Federal de Minas Gerais. Inclusive, isso foi questionado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, quando a gente não teria uma idéia global da área, para daí selecionar sítios para serem escavados. Então, como um retorno às áreas demandaria um tempo muito grande, nós resolvemos trabalhar todas as etapas num espaço definido artificialmente e passando por todas as etapas: primeiro a do reconhecimento, que é feito à distância e, posteriormente, a do levantamento intensivo da área, utilizando técnicas tradicionais e aquelas que o geoprocessamento nos fornecia para o embasamento dos trabalhos de campo e, daí, a etapa de prospecção. Muitos dos sítios já eram encerrados nessa etapa, porque não era possível fazer escavação naquele sítio; o nível de informação era extremamente baixo e, posteriormente, a escavação, só terminadas as quatro etapas do trabalho é que a gente passava para uma área que nós chamamos de uma outra área artificial e nela também foram aplicados os mesmos procedimentos. A dificuldade maior que a gente teve foi o que nós chamamos de área quatro no Rio Tocantinzinho, que tem características muito próprias, rio muito encaixado e que impossibilita a chegada, seja via fluvial seja terrestre; então, o número de sítios naquela área é o menor de toda a área do reservatório, mas nem por via aérea certamente seria possível chegar às margens do rio ou na área em que o reservatório tomará. Carlos Magno - Em primeiro lugar, eu quero reconhecer que é pertinente a observação que você faz com relação às expressões que eu usei, o que significaria “o máximo possível”. Acontece o seguinte: o nosso trabalho de prospecção se voltou para cobrir todas as informações que nós conseguimos obter, fossem elas de caráter oral ou documental e bibliográfico. Isso significa dizer que existe uma grande quantidade de informações já publicadas por aí, particularmente no que diz respeito ao ouro; é um período da história que está razoavelmente conhecido. Então, a idéia inicial era a seguinte: se nós temos informações, se foram obtidas através de informantes ou de informações de origem bibliográfica ou documental, vamos tentar cobrir todas essas informações e tentar ver o que sai; então, essa foi a primeira orientação no que diz respeito ao trabalho desenvolvido na fase de prospecção. Se você me perguntar qual é o percentual da área coberta, eu não sei; para falar a verdade, ninguém sabe. Nós só vamos saber isso no final do projeto. Eu digo isso porque muitos sítios ainda vão aparecer. Se eu fosse tomar como referência esse ano de 96, eu diria para você o seguinte: menos de 20%, não prospectado ainda, pode aparecer no conjunto que nós temos, ou seja, no universo que nós levantamos e trabalhamos no ano de 96; ainda temos precisão de trabalho de campo em 97 e, se possível e necessário, alguma coisa ainda em 98, embora em 98 ainda não esteja definitivamente certo. Então, o que ocorre é o seguinte: de todo o conjunto de

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informações que nós obtivemos, a idéia era cobrir tudo isso e ver o resultado final. O resultado foi isso a que nós chegamos; posteriormente, no trabalho de salvamento, nós avançamos o número de sítios levantados, ou seja, aumentamos o universo dos resultados. Agora, eu não posso te dizer, por exemplo, 70%, 30% ou 15% da área foi coberta, porque isso eu só vou poder te dizer na medida em que, dentro da área, eu tiver todo o conjunto de sítios levantados e, ainda em cima disso, eu poder julgar todas as bacias que foram percorridas inteiramente. Foi um trabalho de prospecção exaustivo, que a gente usou várias vezes. Quando para um determinado rio não havia informação muito consistente, às vezes foi feita a opção pelo trabalho de prospecção exaustiva, em alguns casos de varredura, certo? Então a minha resposta para você é isso: eu não tenho ainda os dados exatos; no que diz respeito à quantidade de sítios levantados até agora, sim, eu posso te dizer, até o final do projeto não sei, mas pelo resultado que se apresentou até agora, eu acredito que menos de 20% de sítios desse total pode ser ainda acrescentado através de descobertas futuras. E com relação à área toda coberta, tem essa questão, na medida em que nós tivermos no final do projeto a área coberta por todos os sítios, além das bacias que foram prospectadas exaustivamente, nós vamos ter o resultado, a expressão quantitativa tanto de um caso (número de sítios) quanto de outro (área coberta). Acho que aí inclusive nós vamos poder checar com outros métodos de trabalho, para ver qual que é a viabilidade ou validade, nessa perspectiva que a gente colocou. Mas, de qualquer maneira, eu acho que sua observação é pertinente; dizer que foi feito “o máximo possível” é pouco, nos termos de qual é a objetividade que essa expressão contém. Solange Caldarelli - Renato Kipnis, da Universidade de Michigan. Renato Kipnis - Várias questões que eu gostaria de levantar já foram feitas pelo Walter; portanto vou diminuir o número de questões que vou fazer. Aproveitando uma resposta do Carlos a uma pergunta do Walter, há dois problemas suscitados e que são importantes. Um dos problemas é a questão de se tentar fazer um levantamento arqueológico total e de como avaliar o trabalho de prospecção, se realmente foi eficiente ou não. O que foi dito é que, para se ter o “resultado máximo”, como ele respondeu ao Walter, é preciso conhecer o universo e ele só obtém uma idéia do universo quando ele conseguir prospectar tudo. Este pensamento fica claro quando ele fala que “no final do projeto eu vou ter uma idéia de universo porque esses (os sítios) que passaram do nosso design vão aparecer fortuitamente”. Isto coloca um problema muito sério no contexto específico de Serra da Mesa, uma vez que a barragem já está sendo inundada e têm áreas que já estão de baixo d‟água ou estão sendo alagadas e em que pode haver ocorrência de sítios. Como há áreas que não estão sendo visitadas e não serão mais, os sítios que não foram localizados na primeira etapa de prospecão não irão ter a chance de serem achados fortuitamente; essa é uma questão que tem de ser pensada, principalmente quando falamos que estamos fazendo prospecção total e na prática não é uma prospecção eficiente. Não foi citado o potencial arqueológico da área que está sendo inundada, de um ponto de vista teórico, e que poderia guiar o tipo de prospecção a ser realizada, para ser mais eficiente. Por outro lado, já existe um corpo teórico bem desenvolvido quanto ao emprego de métodos estatísticos amostrais em levantamento arqueológico, no qual podemos nos basear para avaliar uma área (nosso universo) a partir de uma amostra significante da mesma.

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O outro ponto que gostaria de lenvantar remete um pouco à questão que a Solange mencionou ontem. O Carlos não estava aqui, mas ele discutiu um problema de significância e redundância de informação, principalmente para arqueologia histórica. Quando falamos o “Ciclo de Ouro”, já estamos fazendo um trabalho concentrado sobre um tema específico, com bastante informação secundária. É preciso então ficar bem claro e objetivo que o projeto não está simplesmente reproduzindo informação que já existe. Isto é muito importante em termos de custo. Os projetos têm que ser bem objetivos, para se poder avaliar o tipo de conhecimento que será gerado, e que este conhecimento não seja redundante. Em outras palavras, que não se está gastando dinheiro para reproduzir algo que já existe, que já é conhecido. Estas questões precisam ser pensadas, principalmente pela arqueologia histórica, que tem bastante dados históricos, bem mais abrangentes do que a arqueologia pré-histórica. Acho que isto tem de ser pensado também para arqueologia pré-histórica. Outras duas questões que eu queria colocar são as seguintes: primeiramente, martelar um pouco mais a questão do problema de viés amostral e dos modelos que o Walter falou, referindo-se à exposição da Emília. Eu acho que o Walter está certo quando diz que todo mundo tem modelos explícitos, mas na verdade eles são implícitos. A Emília falou em um determinado momento o seguinte: “nós achamos sítios em áreas em que nós não esperávamos encontrar”. Implicitamente, ela tinha uma expectativa. O problema não é a falta de modelos, mas é construir bons modelos, modelos que sejam eficientes, objetivos e testáveis. Isso eu acho que é complexo, difícil. Mas todo mundo está usando algum tipo de modelo, acho que na fala da Emília que acabei de citar fica claro que estão implícitas expectativas da ocorrência ou não de sítios em determinadas áreas. O problema é estar sempre aberto para reconhecer que existe, e sempre vai haver, viés no nosso design e temos que tentar descobrir onde estão estes viéses, para poder redirecionar a pesquisa. Por exemplo, no caso do Jorge, que falou ontem, no caso do projeto do Carlos, temos desenhos amostrais de prospecção total e que mostraram-se ineficientes, uma vez que novos sítios foram achados após o término da etapa de prospecções. No caso da Emília, utilizou-se o relevo como uma das variáveis, áreas inundáveis e áreas que não são inundadas. A partir desta variável, implicitamente criou-se expectativas de ocorrências de sítios arqueológicos e sítios onde não se esperava ocorrerem foram encontrados. É neste momento que precisamos parar e reconhecer que o desenho amostral está errado; precisamos redirecionar a pesquisa porque tem áreas onde ocorrem sítios, que não estão sendo amostradas; nós não estamos dando chance desses sítios aparecerem. E mesmo que não ocorram sítios em uma determinada região, é necessário incluir esta região na amostragem. Não se pode pressupor que em áreas como o Pantanal ou a Amazonia, onde nós temos áreas que parte do ano estão cobertas por águas, que as áreas alagadas não vão ter sítios, porque é assumir que as populações vão estar sempre, o ano todo, nas áreas mais elevadas. Pode ser que durante as secas eles vão fazer as roças nas áreas que estão inundadas, provavelmente isto é o que ocorre, porque são áreas ricas, que contém solos ricos em nutrientes. Então, prosseguindo neste raciocínio, tem que se pensar logo, desde o começo, em sistemas sociais que estão interagindo num espaço e tem que se pensar que tem atividades que são feitas em áreas diferentes. São viéses que podem ser detectados durante a elaboração, avaliação e implantação do projeto de pesquisa. Outra coisa que eu achei importante na colocação do Walter é que, apesar de meio implícita, a questão fundamental desta mesa é levantar parâmetros para avaliação de projetos e mitigações. Por exemplo, nós podemos criar vários parâmetros

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para servirem de instrumento de análise de projetos de salvamento e acho que uma das questões do Fórum é discutir isto, segundo uma perspectiva de levantar subsídios para o IPHAN e outros orgãos reguladores avaliarem os vários aspectos das pesquisas que são feitas, dentro de um contexto de arqueologia de contrato. Por exemplo, vamos pegar o projeto de Serra da Mesa como um todo. A área que vai ser impactada é de 1.780 km2 e o nosso objetivo é fazer prospecção total. A questão é: se eu disser que vou trabalhar com duas equipes de 4 pessoas cada e precisarei de 2 anos, será que isto é viável, pouco tempo, muito tempo?. Como podemos avaliar esta questão? O que estou sugerindo é a criação de parâmetros mínimos para termos avaliações mais objetivas. Como exemplo, vamos pegar a experiência que eu tenho de trabalhar em São Paulo, que é uma condição ideal em termos de cobertura vegetal, que em muitos dos casos virou pasto ou cultivo e o acesso aos locais é muito fácil. Nestas condições, e trabalhando com uma equipe de cinco pessoas, na melhor das hipóteses a gente conseguia fazer 2 km2 de levantamento, sem nenhuma outra atividade, tipo registro, cortes-teste, etc. Então, fazendo uma conta utilizanto os dados que acabo de citar e pegando os 1.784 km2 da área de Serra da Mesa que será inundada, dariam 892 dias de prospecção: só levantamento para achar sítio, sem contar teste, escavação, registro, topografia, etc, só achar o sítio e continuar andando. São 892 dias; se nós dividirmos em duas equipes de 5 arqueólogos cada, são 450 dias - mais ou menos 3 anos (assumindo 5 meses de trabalho de campo por ano), só de levantamento, se achar sítio não pára, continua andando. E este cálculo utiliza um parâmetro mais ideal que a realidade de Serra da Mesa, onde não há tanta utilização da terra como há em São Paulo, e onde o acesso aos locais é mais complicado. Se formos pensar para projetos na Amazônia, os parâmetros que temos que utilizar têm de ser mais restritos ainda. O ideal é que tenhamos parâmetros regionais, porque para a região Amazônica vai ser totalmente diferente; na melhor das hipóteses, não chega nem a 1 km2 por dia, com uma equipe de 5 pessoas. A idéia de se criar parâmetros é para se ter instrumentos mais objetivos para avaliação de projetos. Por exemplo, quando algum projeto contiver levantamento total, teremos meios de avaliar, baseados em informações objetivas, se a proposta é viável, segundo a metodologia sugerida. Deste modo, as avaliações de projetos de salvamento podem ser pontuais e eficientes. Acho que a questão da avaliação é muito importante, pois temos de lembrar que, no contexto da arqueologia de contrato, estamos lidando com custos que algumas vezes são muito altos e é nosso dever tentar ser o mais eficiente possível. Eu acho que estas questões são importantes, têm que ser discutidas e decidir o que seria necessário juridicamente em termos de torná-las aplicáveis. Um último ponto que eu queria só lembrar, do qual até agora não se falou e que é uma informação muito importante para avaliação e para se fazer estudos de significância: datação radiométrica. É fundamental se ter uma cronologia, principalmente para projetos pré-históricos, no começo das atividades específicas de pesquisas, quando ainda é possível fazer mudanças no cronograma. Vamos supor que um determinado sítio tenha várias ocupações e que as datações serão feitas somente no final ou depois de feito o trabalho de campo. Imagine que descubrimos que uma ocupação tenha uma datação de vinte mil anos. Esse sítio em contexto seria um sítio muito importante para ser trabalhado e até a datação em si altamente discutível. Uma vez que o projeto já acabou, você não teria como voltar; por outro lado, tendo essa datação já no começo das pesquisas, ou pelo menos na metade, você tem como redirecionar a sua pesquisa, em termos de significância e outros parâmetros.

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Solange Caldarelli - Antes de os colegas responderem, eu queria aproveitar uma colocação do Renato, relativa a tempo de pesquisa para se fazer levantamento, para me reportar a uma questão que eu coloquei ontem, mais para os empreendedores do que para os meus colegas de pesquisa, pois eles também foram chamados muito tarde no processo: se se tomar Serra da Mesa como exemplo, vê-se que o levantamento arqueológico deveria ter ocorrido há uns cinco anos atrás, para evitar ocorrer um problema já discutido aqui, de ter de levantar e resgatar ao mesmo tempo, no maior atropelo, o que impede a reflexão científica sobre os dados oriundos do levantamento, tão necessária para subsidiar as decisões relativas ao que e a como resgatar. Emília Kashimoto - Vou tentar colocar alguns pontos. Essa questão do sítio que eu disse que foi localizado e não era esperado, na verdade era um nível lítico profundo no mesmo espaço; o que não se esperava era o nível lítico em profundidade de 2m, naquele local onde havia cerâmica em superfície. Portanto, essa questão de ter sido localizado um sítio onde não se esperava, na verdade, dizia respeito a sítios em profundidade, a uma questão estratigráfica e não à questão da distribuição dos sítios nessas elevações topográficas. Assim, essa pesquisa tem realmente a perspectiva de cobertura total; a idéia é realmente cobrir tudo o que for possível. No caso, por exemplo, do módulo da barragem, quando iniciamos a pesquisa a barragem já estava em construção e a área toda já estava alagada. Então era realmente impossível pesquisar boa parte da área, especialmente essas partes onde ocorreria uma ocupação sazonal, num período mais seco. Nós temos uma premissa de que o arqueólogo é um profissional e não tem que arriscar a vida, mergulhar nos brejos, coisas que não dá. Então, fizemos testes em alguns locais que tinham características semelhantes; fizemos sondagens intensivas e realmente não havia material arqueológico; pegamos ilhas encharcadas, nesse caso com a equipe da UNESP, aquelas ilhas mais baixas que são encharcadas, onde, inclusive, fizemos tradagens para ver se localizávamos alguma coisa, mas realmente não havia nada. Nos diques menos elevados, fizemos caminhamento no início, observando se não tinha nenhum material arqueológico, e outras observações posteriores, que confirmaram que não haveria material arqueológico. A outra questão que eu queria colocar é complementar à interpretação do Kipnis: é que o projeto Porto Primavera tem 15 datações de termoluminescência e três de carbono quatorze e isso está auxiliando nossa interpretação sobre a questão dos assentamentos cerâmicos e líticos. Carlos Magno - Bom, deixa eu tentar responder. São informações que a gente pretende atingir numa determinada área. Não trabalhando numa perspectiva imediata da amostragem, é evidente que o risco existe, seria ingenuidade querer negar isso. Agora, o que tem ficado para nós, nesse projeto, é que a riquezas das informações, que não se repetem, compensa essa questão; é claro que ela tem de ser levada em conta, mas, para falar a verdade, eu não sei até que ponto ela pode ser generalizada ou não. No caso específico de Serra da Mesa, nós temos uma tal diversidade dentro de cada um daqueles tipos (que são meia dúzia) que, mesmo que você considere que são 10 fazendas, cada uma delas é diferente da outra; então, não se trata de negar o risco da redundância, mas de considerar que a diversidade supera a redundância. Em segundo lugar, a questão sobre saber-se muito sobre o Ciclo do Ouro. As informações são complementares, elas não são as mesmas que a arqueologia te fornece; a documentação e a bibliografia não te dá as mesmas informações; então, eu acho que a gente está avançando, no sentido de estabelecer ou de reconstituir o

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processo através do qual toda uma tecnologia é desenvolvida e aplicada ao longo do período, que não é só século XVIII, mas o XIX também; mas no século XIX você encontra um outro processo, onde a mineração já é residual, como continua sendo até hoje. Então, eu não acho que é argumento de peso considerar que não tem sentido fazer escavação, já que a documentação traz informações, na medida em que elas são complementares e não repetidas ou recorrentes. Quanto aos cálculos que você fez, aí, para falar a verdade, eu discordo; eu não consigo imaginar a necessidade de cinco arqueólogos numa equipe de prospecção. Para mim, dois são suficientes, para poderem trocar idéias e informações sobre o sítio que está sendo prospectado. Veja bem, você tem recursos que permitem desmembrar equipes; eu tenho uma equipe de oito arqueólogos, que eu posso desdobrar em duas ou até em quatro equipes diferentes; o recurso do rádio, que é uma bobagem mas quebra um galho tremendo e que te permite a troca de informações e otimizar o rendimento do trabalho de prospecção. Esses recursos técnicos, eles tem de ser levados em conta e aí, logicamente, nós vamos cair numa outra questão que você levanta, que é a questão do custo dos projetos em geral e o que está sendo levantado aqui, especificamente em relação à Serra da Mesa. Acho que um projeto dessa envergadura não fica barato, não tem como, não há artifício possível para fazer que um projeto dessa magnitude custe preço de banana e, além disso, eu tendo a acreditar que projetos pequenos acabam proporcionalmente saindo a custos mais elevados. Finalmente, para terminar a minha resposta, eu queria dizer que, quando você faz o cálculo do tamanho da área a ser coberta, você julga a possibilidade ou a necessidade de que a área inteira seja coberta; acontece que o conjunto das informações obtidas previamente indicava uma diversidade de sub-áreas, sendo que em algumas áreas, como a Bacia do Tocantinzinho, as condições não permitem ou não são favoráveis ao desenvolvimento de atividades, nem de ocupação; é claro que você tem atividade e ocupação, mas muito rarefeitas quando você compara com o Rio do Peixe, esse que a gente atravessa quando vai para Muquém, ou o rio Traíras, por exemplo, que são áreas de grande densidade populacional, já no século XVIII; então eu acho que esta questão teria que ser colocada. Solange Caldarelli - Paulo Mello. Paulo Mello - Minhas questões eram parecidas com as do Walter, mas eu queria ressaltar o seguinte: o problema de acesso não pode ser jogado como uma desculpa para não se levantar certas áreas, principalmente pela vegetação. No projeto de Corumbá, que foi apresentado no primeiro dia, foram prospectados, a pé, mais de 220Km, mais da metade disso foi feita abrindo picada. Como a própria professora Irmhild percebeu, se não fosse essa metodologia, não teriam sido achados determinados sítios, que são fundamentais para o estudo de padrões de assentamento, um dos objetivos que a professora Dilamar apontou ter também para Serra da Mesa. Para cumprir esse objetivo, fica complicado se certas áreas não são levantadas; tem que se dar um jeito para isso, para levantar esses tipos de área que apresentam dificuldades. Tem uma série de tecnologias que estavam sendo usadas, como sistema geográfico de informação, imagens de satélite; fica complicado se você divide a área de maneira artificial, como foi feito em Serra da Mesa, segundo entendi. Seria muito mais lógico dividir a área de acordo com critérios ambientais e, já que não se quer fazer transects nas áreas de difícil acesso, ver se há áreas semelhantes que sejam acessadas mais facilmente e trabalhar nessas áreas. Era isso que eu tinha para dizer.

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Dilamar Martins - Eu queria colocar, em primeiro lugar, que há uma diferença muito grande na relação que se faz entre Corumbá e Serra da Mesa. A área é completamente diferente em termos ambientais, portanto, os procedimentos provavelmente utilizados para Corumbá não seriam os adequados para Serra da Mesa. Então, nesse sentido, a gente coloca que os recursos, a nível das ferramentas, como imagens de satélite, fotos aéreas de levantamento geográfico, enfim, de toda a documentação cartográfica existente, como Carlos Magno já havia colocado, descartam automaticamente determinadas áreas que seriam realmente perda de tempo, porque provavelmente jamais seriam utilizadas como áreas de assentamento humano, seja atual como pretérito e quem conhece Serra da Mesa sabe disso perfeitamente e a própria documentação cartográfica existente mostra isso. Então, eu não acho pertinente a relação feita entre a situação de Serra da Mesa com a de Corumbá. Paulo Mello - Você tem que amostrar, você tem que saber quantos por cento você amostrou; em Corumbá a região é muito menor, eu posso amostrar uma área muito maior, mas você tem que amostrar todas as variedades paisagísticas de Serra da Mesa mesmo que seja 1% da área ou 10%, sei lá, quanto for necessário, a relação é a mesma. Solange Caldarelli - Catarina Ferreira da Silva, IPHAN. Catarina Ferreira - Em relação à colocação do Jorge Eremites a respeito da Hidrovia Paraguai/Paraná, queria dizer que o IPHAN vem acompanhando o assunto. É verdade que foi solicitado pelo arqueólogo argentino uma autorização ao IPHAN e a solicitação caiu em exigência porque não havia uma instituição nacional e pesquisadores nacionais envolvidos. O consórcio que ganhou a execução do diagnóstico nos comunicou a decisão de não mais fazer o trabalho de arqueologia. Com essa resposta, o assunto foi encaminhado ao Ministério Público em Brasília, e estamos aguardando um pronunciamento. Há portanto a preocupação do IPHAN em que o trabalho seja feito. Aguarda-se agora que o EIA/RIMA dê entrada no orgão de licenciamento ambiental, no caso o IBAMA e as Secretarias Estaduais para podermos solicitar vistas aos documentos e, enfim, nos posicionar oficialmente e, caso necessário, exigir a complementação ou a execução de um novo diagnóstico em relação à arqueologia e ao patrimônio cultural da área a ser impactada. Solange Caldarelli - Vou chamar o professor Glauberto Bezerra. Glauberto Bezerra - Todos os atos do homem têm repercussão no ambiente natural e no ambiente cultural também. Com relação à denúncia do professor Eremites, repercute também no ambiente jurídico e repercute de maneira violenta. Ontem, já nos reportávamos ao teor do texto constitucional, que considera o patrimônio histórico, arqueológico, paisagístico, patrimônio da União no seu artigo 20. Também no artigo 216; aliás, esse é um dos patrimônios do Brasil, da União; está consignado em dois sítios constitucionais diferentes; por isso mesmo, não posso em absoluto conceber que, tendo havido um estudo de impacto ambiental, com catalogação de sítios, mais de 100, me parece, venha uma equipe que desautorize em um documento o estudo feito pelos arqueólogos brasileiros e registrado no instituto pertinente. Então, para nós, dentro da visão, dentro da ótica jurídica, esse documento este documento inexiste, não tem validade e qualquer cidadão que queria exercitar seu poder e seu direito de cidadania, com embasamento no artigo 5º da Constituição, pode impetrar

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uma ação popular. Concordo e assino com a proposição do nosso colega, quando ele disse que dever-se-ia impetrar ações políticas tentando reverter a situação. Acho interessantíssimo, até porque a própria administração tem poder de revisar seus atos, que seriam nulos. Todavia, eu acho que esse é o momento em que se deve examinar a questão em todos os seus quadrantes: político, jurídico e científico. Me parece que um trabalho científico realizado e concretizado, com a fixação de sítios, não pode de repente desaparecer: se estão registrados e documentados; me parece que teremos extrema facilidade até, senão politicamente, administrativamente, juridicamente, através do Ministério Público, ou de outras instituições, porque Organizações Não Governamentais podem e devem intentar ações dessa natureza. Acho que esse assunto deveria ser trazido à baila novamente amanhã, quando estarão presentes especialista de renome do mundo jurídico brasileiro nessa área: doutor Paulo Afonso Machado, Roberto Monteiro e Carlos Caldarelli, que poderão examinar com mais consciência esse fato específico, que pode ser levado como bandeira a partir desse Fórum. E também uma questão ao Fórum: que seja consignado, nos seus estatutos, defesa do patrimônio paisagístico, artístico e arqueológico também, muito obrigado. Solange Caldarelli - Sandro Junqueira, da FEMAGO Sandro Junqueira - Eu sou Sandro, tenho 16 anos de FEMAGO, e sou também professor da Universidade Católica. Nós estivemos à frente do licenciamento da Serra da Mesa. Dilamar já é companheira de longa data. Então, o que a gente quer colocar são coisas gerais e perguntar se os modelamentos da arqueologia acadêmica ou da arqueologia de salvamento, as matrizes variáveis, se elas foram suficientes para as diversas etapas existentes: levantamento, prospecção, salvamento e resgate, considerando que diversos profissionais têm tecido críticas ao enchimento do reservatório da UHE Serra da Mesa, considerando a enorme área da Barragem (1.784Km) e o fato de 20% dos sítios histórico-culturais não terem sido cobertos. Nós estamos considerando aqui, custos, o tempo necessário, resultados obtidos e a comparação com outros projetos, com eficiência e eficácia. Basta saber que o Ministério Público Federal do Tocantins protocolou uma ação cautelar que nós temos que suspender esse licenciamento e na análise que pude fazer, acurada, a conversa que eu tive com a professora Dilamar (eu quero parabenizar os estudos que a UFG e UFMG fizeram) e a gente está sendo uma vidraça de críticas (...) e uma outra recomendação que eu faria é que esses resultados do encontro de vocês fossem encaminhados aos órgãos ambientais, porque lá nós somos curingas. Eu sou geógrafo e tive quatro horas de antropologia cultural, fui aluno da professora Irmhild, do professor Altair Sales Barbosa, eu não trabalho direto na área, convivo com o pessoal do IGPA desde 88, que sou professor aqui e que façam realmente esses contatos; eu não acredito que os estados vão contratar arqueólogos, eles não estão dando conta de pagar nosso décimo terceiro, nós temos que trabalhar em comum com uma equipe multidisciplinar. É isso que quero falar aproveitando a oportunidade e agradeço o respeito que vocês deram pelo avançar da hora. Obrigado. Solange Caldarelli - Eu quero dizer que os resultados do Simpósio serão encaminhados, através do documento-síntese, a todos os órgãos ambientais e ao Ministério Público; isso já foi decidido.

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4ª MESA-REDONDA:

RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE DIAGNOSTICÁ-LOS E DE AVALIAR, MITIGAR E MONITORAR SEUS IMPACTOS

COORDENAÇÃO: Prof. Jézus Marco de Ataídes Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia/UCG Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES ANTONIO CARLOS SANT’ANNA DIEGUES Livre-Docente em Sociologia pela ESALQ-Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós/USP Professor do Departamento de Economia e Sociologia Rural da ESALQ/USP Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental/USP Coordenador do NUPAUB-Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Húmidas Brasileiras/USP e do CEMAR-Centro de Culturas Marítimas/USP Membro da IUCN-International Union for Conservation of Nature no Brasil Há vários anos dedica-se a estudos de sócio-antropologia de regiões litorâneas, do Pantanal e da Amazônia, em colaboração com várias universidades brasileiras e organizações internacionais, tendo vários livros e artigos científicos publicados sobre o assunto.

RINALDO SÉRGIO VIEIRA ARRUDA Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP Chefe do Departamento de Antropologia da PUC/SP Sócio-fundador e coordenador do IPA-Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo Desde 1982, tem realizado trabalhos de consultoria e assessoria para associações indígenas e comunitárias, bem como em projetos de desenvolvimento regional. Dentre estes, destacam-se a avaliação do componente indígena do projeto Polonoroeste, em Mato Grosso e Rondônia, de 1982 a 1986; a consultoria para o CNEC/ELETRONORTE para avaliaçào de impacto de projeto hidrelétrico em áreas indígenas de Rondônia, de 1986 a 1988; a assessoria à Associação dos Moradores da Juréia, em São Paulo, em 1989/90; a avaliação de impactos ambientais e culturais de projeto hidrelétrico na sociedade Nambiquara em 1992. Atualmente, presta assessoria ao CNEC no projeto PRODEAGRO, no Mato Grosso. Tem livros e artigos publicados em revistas científicas, voltados principalmente para as questões indígenas.

CARLOS EDUARDO CALDARELLI Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo Advogado com escritório em São Paulo (SP) Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica, participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de Zoneamento Ambiental Membro da IAIA - International Association for Impact Assessment

HELOÍSA S. F. CAPEL DE ATAÍDES Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Goiás Professora de História do Departamento de História, Geografia e Ciências Sociais da UCG Historiadora do “Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da UHE Corumbá, GO” - Furnas/UCG

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O PATRIMÔNIO NATURAL E O CULTURAL: POR UMA VISÃO CONVERGENTE

Antonio Carlos Diegues Introdução A Constituição Brasiloeira, em seu artigo 216, considera como constituintes do patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial ... portadores de referência ã identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Esse artigo inclui como integrante desse patrimônio as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver. A mesma Constituição, por outro lado, define como regiões prioritárias de conservação ambiental a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Pantanal e outros ecossistemas importantes, espaços territoriais onde existem sub-culturas importantes, como a dos caiçaras do litoral do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, o Estado implantou nessas áreas uma série de parques nacionais e reservas naturais que, pela legislação em vigor, levam à exclusão e mesmo reassentamento das comunidades e culturas tradicionais em outras áreas. Essa política ainda em vigor tem criado inúmeros conflitos entre a administração de parques e reservas e as comunidades tradicionais que, ainda presentes nessas áreas protegidas são pribidas de exercerem suas práticas econômicas e sociais. A prática de pequenas roças, o uso de tecnologias patrimôniais na pesca, no fabrico de farinha, na construção de canoas tem sofrido severas restrições, colocando em risco a própria reprodução social e simbólica dessas comunidades tradicionais cujos membros, frequentemente são forçados a migrar para as periferias pobres das cidades da região. Aí sofrem um processo de perda de sua identidade cultural, com o abandono de práticas simbólicas essenciais à sobrevivência do grupo. Essas práticas preservacionistas oficiais, impulsionadas por grupos ecológicos urbanos, desconhecedores das relações e práticas históricas desses grupos com o mundo natural, em grande parte responsável pela conservação das florestas e áreas costeiras tem, frequentemente ocasionado uma redução da diversidade cultural brasileira e contribuido para um aumento da degradação de matas e mares. A existência de comunidades tradicionais foi, por inúmeras décadas, ignorada pelas instituições conservacionistas brasileiras e somente nos últimos anos, sobretudo após o fim do período autoritário, veio à cena política como resultado de uma organização incipiente dessas populações, de ações de organizações nãogovernamentais sócio-ambientais (ex. Conselho Nacional dos Seringueiros) e de algumas universidades e instituições de pesquisa. Como resultado de intensos debates, o novo projeto de lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, cujo relator é o dep. Fernando Gabeira, (substitutivo ao Projeto de Lei 2.892/92) reconhece o papel positivo dessas populações tradicionais para a conservação. No entanto, as décadas de uma política conservacionista inapropriada, baseada em modelo importado dos Estados Unidos tiveram efeitos nefastos, que ainda perduram, sobre essas culturas tradicionais moradoras de parques e reservas. Na década de 80, a figura do tombamento, proposta pelo Serviço (Instituto) do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi também proposta seja para preservar o

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patrimônio natural (ex: o tombamento da Serra do Mar, das Ilhas do Litoral Paulista) seja para preservar o patrimônio cultural (tombamento das vilas caiçaras como as de Picinguaba e Icapara, nos municípios litorâneos paulistas de Ubatuba e Iguape, respectivamente). Este artigo pretende analisar a importância das culturas tradicionais para conservação das florestas e áreas costeiras e a necessidade de, ao se implantar projetos de proteção ambiental, levar em consideração a presença das comunidades humanas que vivem na área há muitas gerações e dependem do uso sustentável dos recursos naturais renováveis para sua reprodução social e simbólica. As comunidades caiçaras, que vivem na Mata Atlântica de São Paulo são tomadas como exemplo para a análise dos conflitos e do potencial que apresentam para novas políticas de proteção ambiental e de conservação do patrimônio cultural da região. O Patrimônio natural A idéia de patrimônio natural já figurava no decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, visando proteger valores paisagísticos, “como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. (Fonseca, 1996). Nesse sentido, o patrimônio natural tinha seu equivalente no primeiro parque nacional brasileiro, o de Itatiaia, criado nesse mesmo ano. Já em 1934, o Código Florestal definia parques nacionais como monumentos naturais destinados a proteger áreas de grande beleza cênica, com composição florística primitiva. A idéia de parque nacional como monumento natural, de onde os homens deveriam ser excluidos tomou força com os preservacionistas americanos do século XIX. Herny Thoreau e John Muir afirmavam que no mundo selvagem estava a salvação do homem e sua transformação em parques nacionais era o antídoto para os venenos da sociedade urbano-industrial norte americana, destruidora da natureza. No entanto, como afirma Simon Schama (1996), os santuários naturais de Yellowstone e Yosemite, assim como a natureza selvagem eram um produto cultural, uma “elaboração da cultura tanto quanto qualquer jardim imaginado” (p.17). Como produto simbólico, o parque natural americano, um santuário sem vestígios humanos, incorpora uma visão antiga do Éden primitivo de onde os primeiros serem humanos foram expulsos. Nesse sentido, ele faz parte do mito moderno da natureza intocada e intocavel. Como afirma Simon Schama, à semelhança de todos os jardins que povoam a imaginação humana, o parque nacional americano de Josemite “pressupunha barreiras contra a bestialidade. No entanto, seus protetores inverteram as convenções, deixando os animais dentro e os humanos fora. Assim, tanto as companhias de mineração que penetraram nessa área da Sierra Nevada quanto os índios Ahwahneechee foram meticulosa e energicamente expulsos do idílico cenário” (18). Ou ainda, como afirma Simon Schama, as pradarias reluzentes de Josemite já não eram simplesmente natureza selvagem, mas o resultado de frequentes queimadas realizadas pelos indígenas para servir de alimento aos bizontes. A noção de patrimônio natural selvagem, sem qualquer tipo de4 morador, não esteve somente na base da criação do primeiro parque nacional brasileiro nos anos 30, mas reapareceu também na defesa da transformação de espaços territoriais florestados da Mata Atlântica, como sucedeu com a Juréia que, nos anos 70, ameaçada em

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transformar-se em condomínio de luxo e até em área de usinas nucleares, foi tombada pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico) como área natural, ainda que fosse a morada de centenas de famílias caiçaras. Os ecologistas paulistas que propuseram a implantação de uma Estação Ecológica, uma das mais restritivas unidades de conservação ao uso humano esqueceram-se também que as comunidades indígenas e caiçaras aí residentes, que por décadas e mesmo séculos transformaram a paisagem da mata tropical e as zonas costeiras circundantes através de suas tecnologias patrimoniais usadas na pequena agricultura, na pesca e no extrativismo. O Patrimonio Cultural não-consagrado A idéia de patrimonio Cultural não-consagrado surgiu no SPHAN Patrimônio Histórico e Artístico Nacional também por volta da década de 70 designando os bens culturais que, até então, não integravam o conjunto do patrimônio histórico e artístico nacional. Segundo Fonseca (1996), “tratava-se das produções dos “excluidos” da história oficial; indígenas, negros, populações rurais, imigrantes, etc. Para alguns funcionários do SPHAN, a exclusão desses bens culturais se justificava pelo fato de não haver, no Brasil, testemunhos materiais significativos da cultura desses grupos sociais, e por estarem esses bens, em geral, imersos em uma dinâmica que inviabilizava o tombamento”. (Fonseca, 1996:159). A criação do centro Nacional de Referência Cultural - CNRC- fundado em 1975, e em 1979 incorporado à Fundação Nacional Pró-Memória contribuiu para a valorização da produção cultural mais ampla, voltando-se para a valorização da cultura viva, sobretudo aquela enraizada no fazer popular, com a intenção de tornar mais diversificada a representação da cultura brasileira. O trabalho realizado pelo Pró-Memória serviu para resgatar a cultura de importantes setores marginalizados das políticas culturais.Como afirma Fonseca (1996), o reconhecimento desses setores não somente como objetos de pesquisa, mas como produtores de cultura foi uma alavanca importante para a afirmação da cidadania daqueles até então excluidos das políticas culturais. Como resultado dessa nova proposta, várias manifestações da cultura viva dos grupos sociais até então tidos marginais, como a dos negros, indígenas, caiçaras passaram a ser objetos de tombamento. Dentro dessa nova perspectiva, em 1976, o CONDEPHAAT, em São Paulo, realizou o tombamento da vila caiçara de Picinguaba, no municipio de Ubatuba e propôs também o tombamento da vila de Icapara, no município de Iguape com o objetivo de preservar aldeias caiçaras como representativas de uma forma de assentamento humano que fazia parte integrante da história do povoamento paulista, ameaçada de extinção. Em abril de 1984, oito anos após o tombamento de Picinguaba, a conselheira do CONDEPHAT, profa. Eunice Durhan propôs transformar o processo de tombamento numa intervenção controlada permanente, tendo em vista as transformações ocorridas, nesse período, na paisagem humana da vila, causadas pela especulação imobiliária e pela construção de casas de veranistas. No momento do tombamento, havia sido aprovado um plano diretor da vila, que se propunha a regulamentar a densidade populacional, a doação de medidas para a conservação da arquitetura original e da paisagem. Dez anos depois do tombamento pode-se dizer que, ainda que tenha vida um certo controle da ocupação desenfreada, a vila passou por um processo de descentralização cultural que acompanhou uma decadência das

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atividades econômicas tradicionais, sobretudo aquelas ligadas à pesca artesanal. E na base desta, está o desafio básico para esse tipo de tombamento: trata-se de uma cultura viva, cujas bases sociais e econômicas foram sendo solapadas pelo contato com a sociedade urbano-industrial, sem que o Estado tomasse medidas de apoio a uma economia local indefesa frente aos avanços da chamada modernidade. os caiçaras foram perdendo o controle sobre o seu território, sobre suas areas de plantio, suas praias enquanto lugar de trabalho e vida e sobre o fazer e conhecer tradicionais. Infelizmente, para isso contribui não só a especulação imobiliária, mas a implantação dos momentos naturais, os parques e reservas que restringiram as atividades tradicionais caiçaras. Aqui se revela uma dos efeitos da aplicação das políticas dissociadas de proteção ambiental e cultural praticada tanto IPHAN como pelos órgãos de conservação ambiental. Frequentemente, o chamado patrimônio natural a ser protegido faz parte integrante do patrimônio cultural das populações tradicionais e não podem ser protegidos separadamente. Essa proteção dividida torna-se ainda mais grave quando o território do chamado patrimônio natural é o lugar reprodução economica, social e simbólica das populações tradicionais, como é o caso das caiçaras. Toda tentativa de congelamento dessas áreas naturais onde vivem populações tradicionais acaba por, a longo prazo, desarticular a vida dessas comunidades e comprometer a própria conservação ambiental. Por outro lado, pode-se pensar que a implantação de áreas naturais protegidas que incorporem os interesses das populações tradicionais possa contribuir para transforma-las em verdadeiros laboratórios para a realização de ações visando o desenvolvimento sustentavel, através do qual sejam respeitados e valorizados o saber tradicional, a tecnologia patrimonial e mesmo sejam introduzidas técnicas alternativas de uso sustentavel do solo e dos recursos naturais. A proteção ecológico-cultural: uma síntese da defesa do patrimônio cultural e ambiental Já existe, a nivel internacional uma consciente crescente que a proteção da diversidade biológica, de espécies, ecossistemas e genes não pode ser dissociada da proteção daquelas culturas tradicionais que possuem um vasto conhecimento do meionatural em que vivem. (Diegues, 1966). Uma das maiores instituições ecologicas globais, a UICN- União Mundial para a Conservação (1993) tem alertado para a nexessidade de proteger tanto a biodiversidade quanto a diversidade sócio-cultural. Estudos recentes (Gomes-Pompa, 92; Balée, 1988; Posey, 1987) tem demonstrado também que as populações tradicionais, tem contribuido, em inúmeros casos, para a manutenção e até fortalecimento da biodiversidade. Até recentemente, os ecologistas preservacionais norte-americanos e europeus, e seus sequidores dominavam o cenário da conservação com sua proposta de parques e reservas sem a presença de populações, mesmo as tradicionais. Essa política não tem garantindo a conservação das florestas, sobretudo nos países do Terceiro Mundo, onde, ao contrário dos Estados Unidos, vivem comunidades tradicionais indígenas e não-indígenas ameaçadas de expulsão com a criação dessas áreas naturais protegidas. A partir dos anos 70, em vários países do Sul, os ecologistas sociais tem criticado essa ação impositora do Estado sobre as populações tradicionais, propondo formas de harmonização para a manutenção da proteção ambiental e sóciocultural.Uma dessas propostas é a da reserva extrativa para os seringueiros da

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Amazônia. Uma outra, proposta pelo Nupaub-Núcleo de Pesquisa Sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas, da USP, agora incorporada no projeto de lei do Deputado Fernando Gabeira é a reserva ecológico-cultural.Essa nova unidade visa proteger, de forma dinâmica as relações entre populações tradicionais, como a caiçara e seu ambiente, designando áreas de preservação permanente de florestas, estuários e rios. O importante, nessas propostas recentes é a consideração que nem o ambiente nem a cultura são fenôminos estáticos, mas que co-evoluem e se interpretam profundamente, em processos complexos e dinâmicos. Nesse pocesso, na maioria das vezes assimétrico, as culturas tradicionais se desorganizam, mas, em outros, elas resistem, incorporando elementos novos, sobretudo aqueles que favorecem uma melhor organização da produção e comercialização dos produtos agrícolas, pesqueiros e artesanais. A proteção ambiental e cultural precisa levar em conta essa dinâmica, caso contrário corre-se o risco de congelar as culturas tradicionais como peças de museu e não como processos vitais relacionados com a produção e reprodução de um modo de vida ainda existente. Atenção especial deve ser dada ao turismo que, se de um lado pode contribuir severamente para a desorganização das comunidades tradicionais, por outro lado, se adequadamente planejado, pode ser um aliado importante na revitalização da economia e da cultura tradicionais. No caso dos caiçaras pode-se observar que, quando as comunidades litorâneas souberam manter seu território e suas atividades tradicionais, seu relacionamento com turistas e veranistas não foi um elemento desorganizador, ao contrário daqueles casos em que a perda das praias e das terras foi uma das causas mais importantes da marginalização social. Conclusões A conservação do patrimônio natural e cultural não podem mais ser considerados dois processos separados e opostos. O desafio maior é ainda o de conservar processos e produtos sócio-ambientais que são dinâmicos e históricos. As culturas tradicionais não são peças de museus como sugerem alguns folcloristas, mas encontram-se profundamente inseridas em formas de vida que subsistem, ainda que ameaçadas, em muitas regiões brasileiras, sobretudo em ecossistemas tidos até agora como marginais, como florestas, mangues e estuários. Essas culturas coexistem em diversos graus de integridade e identidade própria com a sociedade urbano industrial. Sua identidade também é uma marca estática, mas se constrói e se reconstrói continuamente em oposição à sociedade industrial envolvente. No caso da cultura caiçara e de outras, essa identidade se reconstrói e se afirma, hoje, em oposição à grilagem de seu território e às restrições às formas de vida das comunidades tradicionais por parte de instituições preservacionistas que importaram modelos inadequados de áreas naturais protegidas. A nosso ver, é preciso abandonar as formas tradicionais de tombamento de áreas naturais separadas das culturas humanas que aí tem o seu território de produção e reprodução de suas práticas econômicas, sociais e simbólicas. Na área ambiental, a discussão, a nivel nacional de figuras como a da reserva ecológico-cultural e reserva extrativista apontam alternativas novas para conservação da diversidade biológica e sócio-cultural. Referências Bibliográficas

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BALÉE,W, 1992 “Indigenous History of Amazonian Biodiversity”, in H.K. Steen & Tucken (eds). Changing Tropical Forest: Historical Perspectives on Today’s Challanges in Central and South America, Durhan: Forest History Society, 185-97. DIEGUES, A 1996 O Mito Moderno da Natureza Intocada, São Paulo, Huicitec. FONSECA, M.C. 1996 Da Modernização à Participação: A Política Federal de Preservação nos Anos 70 e 80. in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.24. GOMES-POMPA, A & KAUS, A. 1992 The Tropical Rainforest: A Non Renewable Resource, in Science 177: 762-5. SCHAMA, S. 1996 Paisagem e Memória, São Paulo, Cia das Letras. POSEY, D. 1984. Manejo da Floresta Secundária: Capoeiras, Campos e Cerrados (Kayapó). in Ribeiro, B. (org.) Suma Etnológica Brasileira, Vol.1. Petrópolis, Vozes.

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A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NA ELABORAÇÃO DOS RELATÓRIOS DE IMPACTO SOBRE O MEIO AMBIENTE. Rinaldo S. V. Arruda

1. Considerações iniciais Agradeço o convite para participar do Simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural” e parabenizo os promotores pela relevância e oportunidade do tema. No ofício de antropólogo tenho trabalhado há quase 15 anos em pesquisas e projetos com comunidades indígenas, comunidades rurais tradicionais e até grupos urbanos culturalmente diferenciados. De uma certa forma, como dizia Levi-Strauss, por força dessa vivência, o antropólogo se converte em parte num estrangeiro entre mundos culturalmente diversos. Para conhece-los neles nos imiscuímos e nesse processo adquire-se uma visão dupla e reflexiva, de forma que a realidade de nossa cultura e da do “outro” adquirem um mesmo grau de vitalidade e, ao mesmo tempo, de afastamento. Talvez por isso discorde e considere estranha a definição temática da mesa em que participo14 que, denominando as tradições culturalmente diferentes de bens intangíveis e classificando-as como manifestações do passado humano na atualidade, de pronto as insere na categoria de folclore e de bens de museu. Esse viés se acentua na sua denominação inicial como recursos culturais, termo de conotação econômica e designativo de algo que pode ser usado com proveito por quem assim o denomina. Esses comentários não visam criticar, de forma alguma, os promotores do evento, com alguns dos quais já tive oportunidade de trabalhar e de cujas preocupações e perspectivas científicas e sociais tive o privilégio de partilhar. Na verdade, essa definição reproduz, e permite colocar em discussão, a perspectiva vigente sobre as populações tradicionais no contexto empresarial, financeiro e governamental dos estudos de impacto ambiental. Essa visão, infelizmente ainda hegemônica, se encontra profundamente encravada nos pressupostos culturais de nossa civilização, os quais orientam nossa percepção da natureza e do papel da humanidade em relação a ela, afirmando que: a natureza é algo separado do homem; o homem é superior a todas as outras formas de vida; a natureza é hostil, caótica e perigosa, sendo necessário antes domá-la, para poder utilizá-la na satisfação dos interesses humanos. Mais do que um direito, é dever do homem transformá-la, domesticá-la; a natureza não passa de “recursos” ou é apenas uma “paisagem”; as sociedades com maior poder de transformação do ambiente natural são, portanto, superiores às de menor poder de transformação da natureza. São as promotoras do “progresso e desenvolvimento”. E aí, entram todas as variantes históricas de legitimação científica/ideológica dessa concepção de superioridade: racial, climática, civilizatória, etc; 14

O título da mesa era “Recursos culturais intangíveis: meios de diagnosticá-los e de avaliar, mitigar e monitorar seus impactos”.

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e, finalmente, a natureza é vista como uma fonte ilimitada de “recursos”. Mesmo a consciência recente de que estes recursos são limitados, e portanto, o “progresso” e “desenvolvimento” infindável devam ser redirecionados, encontram sua salvação na crença mágica do poder da ciência como redentora deste impasse. Em suma, nossa visão de mundo separa o homem da natureza e hierarquiza as sociedades, legitimando todas as formas de sujeição da natureza e de outras sociedades com base nestes pressupostos. A antropologia clássica de cunho evolucionista foi uma das promotoras e legitimadoras desta visão que, hoje, foi incorporada pelo senso comum e orienta a visão da maior parte das pessoas. Por outro lado, o desenvolvimento da antropologia se fez a partir da crítica a estas primeiras formulações introduzindo outras concepções, baseadas tanto na reflexão teórica quanto nos intensivos e extensivos trabalhos de campo etnográficos. Nesse sentido, uma primeira contribuição da antropologia se funda na reflexão sobre a constituição do ser humano, como ser cultural e natural, parcela constitutiva dos ecossistemas nos quais se aloja. Por outro lado, tanto a idéia de evolução, quanto a hierarquização das sociedades devem ser desnaturalizadas e relativizadas num contexto de análise de dinâmicas históricas e culturais, onde a diferenciação e a homogeneização são vistas como aspectos concomitantes de um processo global de complexificação das relações sociais e ecossistêmicas. O pressuposto da separação homem X natureza, além de naturalizar as sociedades humanas, promove também o mito da “natureza intocada”. Pois bem, estudos de ecologia cultural vem demonstrando cabalmente que até mesmo a “floresta primária” é fruto do manejo milenar de populações locais (ex. Willian Ballée), Posey e os Caiapós, etc. Promove o mito de que só a tecnologia mais moderna, a monocultura e as espécies selecionadas pela “revolução verde” é que são válidas e “produtivas”.

2. O trabalho antropológico na avaliação de impactos Em geral o antropólogo é chamado quando se prevê que o empreendimento provocará impactos diretos sobre populações indígenas ou “populações tradicionais”, como seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, ou outros tipos de comunidades culturalmente diferenciadas da população brasileira. A avaliação do impacto sobre as outras formas de vida que compõem o meio ambiente não é menos difícil ou complexo, porém é voltado para um contexto de maior regularidade de comportamento, característicos das espécies vegetais e animais ou dos efeitos sobre o terreno. Quando se avalia impactos sobre populações humanas a equação é dupla, já que os humanos são, ao mesmo tempo, mais adaptáveis e mais imprevisíveis. Como espécie adaptam-se a situações muito mais variadas que outras formas de vida mas, por outro lado, comunidades humanas tem história e culturas específicas e a variabilidade e potencialidade de sua adaptação a mudanças depende do ambiente sócio-cultural em que foram formados. A cultura é o gabarito através do qual vêem o mundo, classificam e atribuem significado a seus aspectos, direcionando seu comportamento. A classificação do mundo, sendo sempre valorativa, coloca restrições

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e impõe tendências de comportamento tão fortes quanto as de origem genética. No aspecto alimentar, por exemplo, a existência de tabus (o que é considerado alimento, o que não é) varia amplamente e seleciona o uso dos recursos naturais. Identidades e papéis sociais estabelecem normas de relacionamento entre pessoas restringindo e direcionando as formas de cooperação no trabalho, de resolução de conflitos, de distribuição de alimentos, de acesso à terra e das possibilidades de ação conjunta. Isto é, as mudanças no meio ambiente físico e social são mediadas pela grade cultural. Os impactos ambientais sobre populações humanas, portanto, são equações diversas para diferentes formas sócio-culturais, não podendo ser reduzidas ao quadro de estereótipos atribuídos a populações humanas genéricas. Apesar de óbvia, é necessário insistir nesta questão, sempre desprezada ou mal aceita em suas implicações práticas. No caso de perdas territoriais indígenas derivadas da implantação de empreendimentos variados, a legislação e o senso comum prevêem a compensação por área contígua, da mesma amplitude e características ambientais. Mesmo assim há perdas irreparáveis, seja pelo significado mítico ou sagrado agregado a parcelas da área perdida, seja pelas modificações nas redes de sociabilidade decorrentes da mudança de local de moradia. Mas, sempre, nestes casos, emerge novamente um questionamento do direito indígena: „por que tanta terra para estes índios, se os colonos “se viram” com muito menos terra?‟. Quando populações tradicionais são deslocadas, o máximo que se consegue é a indenização aos indivíduos com títulos ou posses antigas comprovadas. Mas, e aquele território de uso comum, do qual ninguém é dono porque a posse é comunitária, respaldada no direito costumeiro? Há questões relativas à especificidade de modos de vida e utilização de recursos naturais, característicos de uma vasta população no Brasil e no chamado terceiro mundo em geral, com jurisprudência ainda incipiente ou inexistente, que encontram pouca acolhida nas empresas responsáveis pelos RIMAS. A questão da diversidade/especificidade sócio-cultural é o motivo do trabalho antropológico e nele imprime características próprias de investigação. A primeira delas foi cunhada na história da disciplina como observação participante, implicando num longo período de convivência, condição para a impregnação no antropólogo do quadro simbólico de referência da população estudada, para a observação detalhada das rotinas cotidianas e dos ciclos de atividades através dos quais se reproduzem, único meio de compreensão da lógica social e comportamental vigente localmente. Além disso, o contexto de contato com as populações indígenas ou tradicionais é sempre de conflito aberto ou latente, pressionados que são permanentemente pelas frentes de expansão da sociedade brasileira. No caso das áreas indígenas, cerca de 526 no Brasil, a maioria delas tem problemas recorrentes de limites, invasões, etc. Assim, a pesquisa antropológica, ainda mais quando se realiza em povos indígenas, é sempre longa, exigindo em geral muito mais tempo que o cronograma do empreendimento prevê. Portanto, a condição inicial para se trabalhar num RIMA é o conhecimento já acumulado que o antropólogo tem sobre o povo em questão e a região do empreendimento. A utilização de estudos sócio-econômicos, ambientais, arqueológicos e antropológicos, visando avaliar os efeitos de projetos de grande porte, tais como a construção de usinas hidrelétricas, estradas, etc., sobre a natureza e sobre a vida das

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populações locais, é uma prática indispensável, já incorporada e normatizada pela legislação brasileira e pelos proponentes de tais projetos. Entretanto, para que esses estudos possam contribuir de modo realmente efetivo, deveriam ter peso equivalente aos estudos de engenharia, geo-morfologia, etc., na definição do local, tipo e porte do projeto, devendo ser realizados conjuntamente desde a fase do inventário preliminar. O diagnóstico das implicações ambientais, sócio-políticas e culturais deveria ampliar a abrangência, e ser parte integrante, da equação custo X benefício normalmente restrita aos componentes materiais da obra em questão. Por sua vez, na fase de viabilidade, além da continuidade dos estudos antropológicos, torna-se obrigatória a participação direta das populações locais, indígenas ou de outro tipo, através de suas lideranças, como interlocutores dos proponentes do projeto, nos processos de detalhamento dos problemas, da procura de soluções e de decisão a respeito de alternativas diversas. As possíveis respostas aos sérios problemas criados para as populações locais costumam implicar no envolvimento de vários órgãos estatais (municipais, estaduais e federais) e de grupos econômicos privados, na tentativa de harmonização de interesses, por vezes contraditórios entre si, num contexto de alta tensão política e de muita violência derivada da luta pela terra e pelos recursos naturais. Isso implica em que os encaminhamentos devam ser procurados com grande antecedência, com as empresas proponentes dando demonstrações práticas de respeito e defesa da integridade tribal e dos territórios dos grupos atingidos, no caso dos povos indígenas. No caso de relatórios de impacto ambiental, o estudo antropológico não se configura como um estudo acadêmico. Não pretende comprovar teorias ou defender hipóteses inovadoras, instaurando um debate relativo à questões priorizadas no momento pela comunidade científica. Ainda que possa adquirir estas características, seu objetivo principal é responder a questões pontuais e avaliar resultados de processos práticos. Entretanto, são trabalhos que mantém as características científicas e se apoiam sobre as contribuições teóricas acumuladas na história da disciplina, no conhecimento sobre a região e as populações em questão e em pesquisa de campo específica que complemente e estabeleça um maior grau de precisão à compreensão da situação local. Por outro lado, o eixo analítico “ambiental” impõe uma abordagem mais “holística”, uma vez que a questão ambiental se constitui como um mosaico dinâmico de interfaces interdependentes de múltiplas áreas de especialização. Nenhuma destas áreas, isoladamente, é suficiente para a compreensão de todas as questões envolvidas. Por esse motivo tornaram-se comuns, ao menos como proposta, os estudos multidisciplinares. Em tese, os relatórios de impacto ambiental são fruto de equipes multidisciplinares. Deveriam ser iniciados por um processo preliminar de trabalho conjunto, visando a adequação dos objetivos específicos de cada área num plano de pesquisa e trabalho comum, complementar e integrado. Dessa forma, as conclusões de cada área se beneficiariam em precisão e abrangência com a incorporação, durante o processo, dos dados levantados nas outras áreas. Na prática corrente, raramente é o que acontece. O contato entre os especialistas costuma ser mínimo, ou inexistente; suas metodologias e objetivos são particulares e setorizados. Muitas vezes as informações básicas sobre o empreendimento, necessárias para avaliação das implicações ambientais e sociais

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chegam mesmo a serem “maquiadas” de forma a amenizar as implicações negativas do projeto. Mas o RIMA é apresentado como uma peça única. Os relatórios setorizados são reescritos pela empresa executora que, articulando as informações setorizadas, detem o poder de estabelecer ênfases ou omissões que podem, em certos casos, apresentar os impactos ambientais e sócio-culturais em graus diversos de afastamento das conclusões dos especialistas. Nessa fase, a totalização feita na empresa é que define a contribuição dos especialistas, os quais perdem a autoria de seus trabalhos e o controle sobre os resultados.

3. Impactos de grandes empreendimentos sobre culturas tradicionais O relato de algumas experiências de trabalho na avaliação de grandes projetos permitirá que se visualize melhor algumas das implicações sobre as muito tangíveis populações locais atingidas pelas transformações ambientais e sociais de tais projetos . A primeira delas antecede a resolução do CONAMA, mas ao mesmo tempo já a antecipa. É o caso do Projeto Polonoroeste, do qual participei, de 1982 a 1986, como membro da equipe de avaliação do componente indígena, coordenada pela antropóloga Betty Mindlin no âmbito da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE - da Universidade de São Paulo. No final da década de 1970 pressões crescentes de Ongs. sobre o Banco Mundial e sobre os países membros impuseram medidas de proteção às comunidades tradicionais na zona de influência dos projetos financiados pelo Banco, tal como o Polonoroeste, ainda que este projeto ainda não se estruturasse na ótica da preservação ambiental, o que passaria a ocorrer quase uma década após.

3.1. O POLONOROESTE. No noroeste do Mato Grosso e, principalmente no Estado de Rondônia, o Programa Polonoroeste foi um dos projetos mais impactantes, iniciado pelo governo brasileiro em 1981. Centralizado ao longo do eixo da BR 364 (Cuiabá-Porto Velho), o programa previa o asfaltamento dessa rodovia, a abertura de estradas vicinais e o desenvolvimento e colonização da região. Com uma verba de 1,5 bilhões de dólares e co-financiado em um terço desse valor pelo Banco Mundial, previa a destinação de 26 milhões de dólares para medidas de proteção às 60 comunidades indígenas na sua área de influência. Na verdade, não chegou a alocar nem sequer a metade dessa quantia para tal fim, tendo representado uma tragédia para a maioria dos povos indígenas atingidos. Algumas das áreas indígenas como, por exemplo, o território ocupado pelos Erikbaktsa, pelos Kayabi e Apiaká, ficaram relativamente ao largo desse movimento, ainda que atingidos pelo adensamento geral da população regional, pelo incremento de doenças transmissíveis, pelos novos municípios surgidos, pelos empreendimentos agro-pastoris e de mineração que avançavam e pelos projetos governamentais no campo da produção de energia elétrica. Outras povos foram atingidas mais fortemente, encontrando-se hoje em trágica situação, como os Nambikwara, os Cinta-

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Larga, Suruí, Zoró, entre muitos outros. Em apenas dois anos depois da pavimentação da BR 364 já haviam sido destruídos 2 milhões de hectares de floresta (Junqueira & Mindlin, 1987: 4) sob a ação de companhias madeireiras, afetando negativamente a economia tradicional indígena e sua qualidade de saúde e vida. Embora tenha demarcado cerca de 30 das 60 áreas indígenas atingidas, ao fim do Programa Polonoroeste a maioria delas não estava com o processo demarcatório finalizado e boa parte continuava sofrendo invasões. Além das profundas mudanças regionais, o Polonoroeste se apresentou aos índios principalmente através da mudança de atuação da FUNAI. Esta passou a impor sua presença no campo de intermediação, legitimada pela sua exclusiva e pouco usada capacidade de demarcar áreas indígenas, além da oferta de "projetos" econômicos, educacionais, de saúde e outros, financiados pelo Polonoroeste. No decorrer de sua vigência o Polonoroeste propiciou um necessário melhoramento da infraestrutura da Funai, dotando-a de mais viaturas, sedes, funcionários e maior capacidade de intervenção no campo dos projetos econômicos, educacionais e no atendimento à saúde. Esta capacidade, apesar de produzir resultados medíocres frente às necessidades indígenas, propiciava ao menos uma presença mais marcante nas áreas e, para os índios, alguma perspectiva de apoio e alternativas frente às pressões da sociedade envolvente. Por outro lado, a política indigenista desenvolvida pela Funai, voltada para a integração dos índios na sociedade regional e no modelo prevalecente de ocupação do espaço e utilização dos recursos naturais não contribuiu para o fortalecimento da autonomia indígena e muito pouco para a garantia de seus direitos. Os projetos econômicos, educacionais e de saúde, praticamente não levavam em consideração as estruturas e dinâmicas sócio-culturais próprias de cada etnia. No setor agropecuário privilegiava-se a introdução de projetos “comunitários” (roças comunitárias, criação de gado comunitária) de monoculturas valorizadas regionalmente, cuja produção deveria destinar-se a obtenção de renda monetária. O resultado foi uma interferência autoritária e paternalista nas estruturas sócio-econômicas e políticas internas, promovendo o relativo abandono de práticas sociais próprias, com resultados negativos sobre a dieta alimentar dos grupos atendidos e a criação de uma maior dependência da continuidade da ajuda paternalista da Funai. Além disso, as atividades econômicas que tradicionalmente geravam renda monetária para os índios perderam importância monetária, como foi o caso da borracha e da castanha, cujos preços tornaram-se tão baixos que desestimulavam a produção para a venda. A permanente incapacidade da Funai e do governo brasileiro de efetivamente demarcar, desintrusar e garantir os direitos indígenas sobre seus territórios num contexto de enormes pressões sobre suas terras veio agravar esta situação. Estes fatores promoveram, em conjunto, uma deterioração das condições de vida indígenas e abriram o campo para as transformações que viriam, em seguida, a agravar estas condições. De acordo com os relatórios da equipe de avaliação do componente indígena do Polonoroeste, já no final do Programa as sedes regionais da Funai não tinham mais verbas para a manutenção das viaturas, equipamentos e continuidade do atendimento nas áreas indígenas, inclusive na área de saúde. A maioria delas encontrava-se tão individada no comércio local que as verbas que chegavam destinavam-se a

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pagamentos atrasados, necessários para a liberação de veículos retidos em oficinas mecânicas e outras dívidas pendentes. Os índios, por sua vez, enfrentavam o insucesso dos projetos econômicos inadequados empreendidos pela Funai, os quais, entre outras implicações, provocaram em quase todas as áreas indígenas a negligência em relação à manutenção de suas roças familiares. Em muitas áreas o adensamento da ocupação regional promoveu invasões nas áreas indígenas, cuja resolução dependia muito mais da disposição de enfrentamento físico dos índios do que da garantia legal que o governo deveria proporcionar. As áreas em maior estado de penúria que contavam com recursos naturais economicamente atraentes a curto prazo, principalmente minério e madeiras nobres, viram-se mais do que nunca assediadas pelas frentes econômicas regionais, muitas vezes contando com a “legitimação” ilegal da própria Funai. Em 1987, por exemplo, o então presidente da Funai, Romero Jucá e funcionários regionais celebraram contratos de venda de madeira do Parque Indígena do Aripuanã e de outras áreas indígenas vizinhas com empresas regionais. Só num dos contratos, com a empresa Brasforest, foi autorizada a retirada de quotas anuais de 40.000 m3 de mogno. Para os índios, apesar das divergências internas, este passa a apresentar-se como o único caminho para a resolução de seus graves problemas: melhor vender já que não conseguiam estancar o roubo continuado de madeira renovado a cada estação seca. Apesar da expoliação das madeireiras (baixo valor pago pelo m3, impossibilidade de controlar as reais quantidades retiradas, etc.) o retorno imediato em dinheiro, crédito no comércio local, possibilidade de atendimento à saúde, acesso a posse de veículos e gastos variados, provocou a adesão quase total dos índios na continuidade desta relação. Como vimos, a orientação da política indigenista oficial, potencializada pelo Programa Polonoroeste, pressionava no sentido da adoção de práticas produtivas típicas do modelo regional. Este, apoia-se no modelo agrícola da "revolução verde", desenvolvido pelos países industriais do primeiro mundo, de clima temperado, sustentado por fertilizantes químicos e maquinaria pesada. No caso do Centro-Oeste Amazônico a predominância de tal modelo tem significado a erradicação da floresta natural e sua substituição por monoculturas extensas de soja e arroz, pela proliferação dos pastos, da mineração, da extração da madeira e dos conflitos sociais provocados por uma estrutura agrária marcada pela concentração fundiária. O índice atual de desmatamento do Estado do Mato Grosso é um forte indicador da progressão do modelo “desenvolvimentista” vigente na Amazônia, cujo avanço mais recente neste Estado foi incrementado pelo Polonoroeste. Dados do INPA (Fearnside, 1995) mostram que o Estado já tinha em 1991 cerca de 16,4 % de suas florestas originais derrubadas, sem contar as áreas de cerrado, extensamente alteradas pelas monoculturas e pastos. Os dados referentes à totalidade da Amazônia demonstram que cerca de 30% do desmatamento em 1991 pode ser atribuído a pequenos agricultores com propriedades de menos de 100 ha. e 70% a médios e grandes fazendeiros. O Estado do Mato Grosso sozinho representa 26% do total do desmatamento anual de 11,1 mil km2 ocorrido na Amazônia legal entre 1987 e 1991, coincidindo com o fato de que 84% das terras particulares são fazendas de 1.000 ha. ou mais e apenas 3% são pequenas propriedades (IBGE - Censo Agropecuário de 1985). A situação atual das áreas indígenas do Estado reflete a continuidade deste movimento colonizador orientado e facilitado pelas políticas governamentais e pela frágil posição nelas ocupada pela política indigenista.

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Sem contar as áreas invadidas por fazendeiros, posseiros e extratores, boa parte das áreas indígenas do Estado apresentam hoje alguma forma de utilização dos recursos naturais para finalidades estranhas aos índios. Há dez áreas indígenas sob a ameaça de influência de usinas hidrelétricas planejadas e uma sob a influência de uma UHE já construída. Há 13 áreas com rodovias acompanhando um ou mais de seus limites. Há 6 áreas atravessadas por rodovias. Duas áreas ameaçadas por rodovias planejadas. Há 14 áreas dentro das quais foram concedidos alvarás de pesquisa mineral para empresas particulares. Além disso, há superposição (não necessáriamente negativa) de duas unidades de conservação sobre áreas indígenas - a Estação Ecológica do Iquê encravada no território Enawenê-Nawê e a A. I. Rikbaktsa e A.I. Japuíra dentro da Reserva Florestal do Juruena. Há também a superposição da gleba Matrinxã, das Forças Armadas, totalmente dentro da Área Indígena São Marcos e da área Cachimbo das Forças Armadas (PA) dentro da área indígena Panará. Finalmente, a A.I. Teresa Cristina está ameaçada pela ferrovia planejada Ferronorte. O fim do Polonoroeste (1986 em diante) coincide com um período, que se prolonga até hoje, de falência dos serviços da FUNAI e do crescimento do assédio de madeireiros e garimpeiros sobre as áreas indígenas. A Funai se enfraqueceu mais ainda nos anos recentes a partir dos decretos 23/92 que responsabiliza a Fundação Nacional de Saúde pelo atendimento à saúde dos índios, do decreto 24/92 que transfere para o Ministério da Educação os recursos destinados a educação indígena e pelo decreto 25/92 que inclui o IBAMA nas ações de fiscalização de limites e exploração de recursos das áreas indígenas. Os decretos tiraram muito da, já muito baixa, capacidade operacional da Funai, reduzindo suas competências e sua presença nas áreas indígenas. O órgão indigenista padece de sérios problemas administrativos e de pessoal. Os funcionários (Hargreaves, 1993) de modo geral desconhecem a vida dos índios, são pouco qualificados, sem programas de reciclagem, tendo pouco envolvimento com as questões indígenas. Por outro lado, quase não contam com apoio nas áreas: em muitos postos indígenas não tem rádio, ou este não funciona, faltam veículos, casas, etc. Os mais íntegros são ameaçados por garimpeiros, madeireiros ou fazendeiros, os quais substituem a Funai - cobrando um alto preço que é o de exploração dos recursos naturais das áreas indígenas - nas suas funções de auxílio aos índios. Nas áreas em que a Funai, superando todas estas deficiências, apresenta um trabalho sério no desempenho de suas obrigações, ela não consegue apoio judicial, institucional e nem policial necessários nas operações de fiscalização. Há reclamações reiteradas, de funcionários da Funai e de índios, de que a justiça local muitas vezes se nega a fazer o auto de infração e apreensão de boa parte da madeira roubada, apreendida nas áreas indígenas Quando o faz, muitas vezes, a madeira fica retida até apodrecer ou então, antes que isso ocorra, acaba sendo liberada para a própria empresa que a retirou ilegalmente. Por outro lado, pela precariedade do atendimento jurídico da Funai e pela falta de apoio institucional e pela morosidade da justiça, os processos de indenização movidos contra madeireiras dificilmente chegam a seu termo, inviabilizando uma das melhores possibilidades de estancamento da retirada ilegal de madeira das áreas indígenas. Sómente em relação as áreas indígenas Sararé e Vale do Guaporé (Seilert, 1995) estão em trânsito na Justiça Federal de Mato Grosso cerca de 20 processos (civis e criminais) relacionados a casos de esbulho e

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depredação. Cerca de 50 réus (muitos deles reincidentes) continuam impunes e atuantes. A Funai, sem recursos, capacitação e envolvimento dos funcionários e sem autoridade, não tem demonstrado condições de competir com as pressões e ofertas locais. De modo geral, os funcionários (com honrosas excessões) parecem preocuparse mais com a disputa por cargos no interior da burocracia do órgão do que com a situação indígena. Não tem havido uma política indigenista definida e a política oficial tem mudado a cada alteração nos escalões mais altos da instituição. As sedes administrativas regionais tem funcionários em demasia os quais, sem apoio e desmotivados, opõem resistências dos mais variados tipos para evitar longas estadias em campo, as quais são imprescindíveis para o cumprimento das obrigações da Funai. No âmbito da saúde quase não há mais atendentes nas áreas e nem estão em andamento projetos sistemáticos de formação de monitores de saúde indígena. Atendimento mais sistemático e projetos de formação de atendentes locais só alguns realizados por entidades civis, como o da Missão Anchieta nos Erikbaktsa, o do CERNIC nos Suruí, o trabalho da Escola Paulista de Medicina no Parque Nacional do Xingú, da OPAN nos Enawenê-Nawê e poucos outros. A FNS por sua vez tem dificuldades de articulação com a Funai e os distritos sanitários ainda não se tornaram suficientemente operacionais. Hargreaves (1993:) relata que no Grande Aripuanã “os remédios, exames, carros, estradas, alimentação, combustível, funcionários, motoristas, professores, atendentes, casas, hospitais, etc., são bancados com a venda da madeira e outros recursos naturais”... “São 100.000 m3 mogno/ano nos últimos 5 anos = 500.000 m3 da área do Grande Aripuanã”...”Se somarmos as outras espécies vegetais, este número dobra, superando 1 milhão de m3”. O mesmo relatório mostra que o envolvimento dos índios na rede ilegal de exploração de madeira e minério, longe de resolver seus problemas trouxe outros agravantes. A população Cinta-Larga, uma das mais envolvidas por este processo, foi reduzida de 849 indivíduos em1989 para 643 pessoas em 1993... Como acentua Seilert (1995:6) “o flagrante sucateamento dos serviços públicos de assistência às comunidades indígenas, em curso nos últimos anos, está favorecendo o surgimento de um novo modelo de exploração daquelas comunidades. Neste modelo, sem oposição, os invasores passam a barganhar precária assistência por livre acesso à exploração do patrimônio indígena”. No caso dos grupos Tupi-Mondé e dos Nambikwara criaram-se situações de conflitos continuados, com várias mortes acumuladas na última década, entre os índios e os garimpeiros (nos Cinta-Larga parece que a cada conflito estes substituemse no acordo com os índios para exploração de ouro, cassiterita, diamantes); entre índios e madeireiras e entre madeireiras (atualmente parece ter-se estabilizado uma certa divisão de áreas de exploração entre as madeireiras); entre os próprios índios (madeiras de uma área indígena são contabilizadas como de outra, índios de uma área vendem madeira de outra, etc.); e, entre os índios aliados com madeireiras e/ou garimpeiros contra Funai, Ibama e Polícia Federal. A fiscalização do IBAMA não tem ocorrido com eficácia nem dentro nem fora das áreas indígenas. Os madeireiros e garimpeiros (Hargreaves, 1993) “afirmam que estão lá ajudando a comunidade e que pagam o IBAMA e que tem um “acerto”com o governo do Mato Grosso para não serem molestados. Dizem que “esquentam” as notas fiscais e guias em Mato Grosso ou em Rondônia”.

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Boa parte das áreas indígenas reconhecidas no Mato Grosso, encontram-se em graus variados envolvidas em contextos semelhantes e ainda sofrendo invasões (projetos de colonização privados e governamentais, fazendeiros, etc.) e roubo de madeira (retiradas não autorizadas pelos índios). Assim, os impactos sobre as culturas tradicionais decorrentes do Polonoroeste podem ser sumarizados como se segue: Impactos diretos: * * * *

invasão de terras; roubo de madeira e pressões para a venda de madeira; invasão de garimpos; doenças: malária endêmica e crescente, doenças venéreas, tuberculose,

etc.; * agrotóxicos.

poluição dos rios: mercúrio do ouro, sujeira do diamante, poluição por

Impactos indiretos: * pressão sobre os limites territoriais de áreas indígenas já demarcada ou em fase de demarcação; * projetos econômicos paternalizados e inadequados as especificidades indígenas, regionais e ambientais (desestruturação economia tradicional e aumento dependência); * educação inadequada ás especificidades indígenas; * agravamento de tensões intertribais e no interior de cada sociedade indígena; * diminuição da oferta alimentar ( diminuição da fauna regional); impedimento de acesso a recursos fora da área demarcada) , etc. A apresentação desses processos sociais como “impactos”, jargão técnico incorporado na linguagem dos R.I.M.A., dificulta a visualização de sua complexidade, interdependência e das múltiplas potencializações. Ocorre ainda como agravante que, como dizia anteriormente, tanto os relatórios científicos referentes à situação quanto as sugestões de encaminhamento de soluções acabam sendo menosprezadas pelos órgãos contratantes que, via de regra, só solicitam sua realização por imposição legal e formal, não incorporando estes “componentes” nos critérios de validade da obra ou projeto e evitando ao máximo incluí-los como itens intrínsecos ao orçamento.

3.2. A USINA HIDRELÉTRICA JP-14 Essa situação fica ainda mais evidente quando se trata de grandes obras realizadas por empreiteiras de porte, como a construção de usinas hidrelétricas. Este foi o caso dos estudos de viabilidade da UHE JP-14 em Ji-Paraná, realizado pelo CNEC/ELETRONORTE, dos quais participei de1986 a 1988. Já sob a vigência da resolução CONAMA, participei da avaliação de impacto sobre a área a ser inundada, que atingiria parte da AI Igarapé Lourdes dos índios Gavião e Arara.

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O empreendimento se situava numa região que já vinha recebendo os impactos mais profundos do projeto Polonoroeste e os povos indígenas atingidos já viviam uma situação de grande complexidade. O povo Gavião de Rondônia faz parte do complexo TUPI_MONDÉ, isto é, sua sociedade se reproduz articulada a outras sociedades indígenas da região: CintaLarga, Zoró, Suruí. Principalmente com os Zoró, suas relações são tradicionalmente mais próximas: costumam realizar casamentos intertribais regulares, fazem festas conjuntas, etc. Na época já estavam separados por um corredor de fazendas de grande porte dificultando o contato entre eles. Pressões sobre a área decorrentes do adensamento regional promovido pelo Polonoroeste eram crescentes. Promovia-se invasões na área Zoró, Cinta-larga, Suruí e Gavião. Área Gavião havia sido desintrusada em 1985 depois de mais de um ano de conflitos, com grande dificuldades e as relações com a população regional era bastante conflituosa. O empreendimento, neste contexto, aparecia como uma ameaça a mais. Já em 1984 um helicóptero da empresa havia sido retido na área pelos índios ao colocar marcos e realizar pesquisas sem sua autorização . Os impactos diretos previstos eram a inundação de cerca de 11 mil ha. da área indígena Igarapé Lourdes, inundação aldeia principal, roças, fruteiras, etc. , alterações no regime de águas no interior da área e repercussões negativas sobre a flora e a fauna. Previa-se também graves alterações no regime de águas (previsão de pelo menos 30 dias de águas sem oxigênio a jusante da barragem) , na flora ciliar e interna, na fauna, com repercussões por uma área calculada em 60 mil ha. da área indígena. O deslocamento dos Gavião no interior da área poderia, além disso, provocar conflitos com os Arara, que também habitavam a mesma área indígena. Os impactos indiretos seguiam o padrão já apresentado no Polonoroeste, somando-se aos impactos já detectados na região: aumento das pressões sobre as terras, aumento das doenças, etc. Os índios eram totalmente contra o projeto. Depois de um trabalho de pesquisa de mais de um ano, realizado juntamente com Lars Lavold, um antropólogo norueguês, elaboramos uma proposta de compensação que, se não houvesse outra alternativa, seria aceitável pelos índios e, de alguma forma, contribuiria para refazer em parte o padrão de convivência entre os Tupi-Mondé. Bàsicamente a proposta previa o auxílio na formação de outra aldeia e para mudança e a compra e doação aos índios de 60 mil ha. de terras (florestas preservadas) contíguas à reserva, formando um corredor ligando a área dos Gavião com a área dos Zoró. Pois bem, nem os relatórios científicos, nem a proposta jamais foram aceitos pela empresa contratante, nem pela Eletronorte, as quais limitavam-se a fazer reiteradas sugestões para a “reformulação” dos resultados dos estudos. O valor de tal compensação era mínimo frente aos impactos detectados e era irrisório frente ao custo do empreendimento. Em meio às negociações para que os relatórios e a proposta fossem aceitos ocorreu um corte nos empréstimos do Banco Mundial para o setor elétrico e a obra foi suspensa até hoje, assim como a do complexo de Altamira no Xingú. Aliás, a retenção de tais verbas pelo Banco foi desencadeada por Darrel Posey, antropólogo que fazia os estudos de impacto da hidrelétrica do Xingú, ao apresentar denúncia da situação, juntamente com líderes Kaiapó, numa reunião do Banco Mundial em Whasington.

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Não se trata, é óbvio, em advogar a paralização de todo e qualquer projeto que provoque mudanças. A questão é abrir espaço para que as populações locais, tradicionais ou não, possam participar de forma efetiva na identificação dos problemas e definição das soluções, possibilitando a elas um espaço de mudança mais autônomo. É a mesma questão central que sempre está colocada: a relação entre interesses do Estado associados aos das grandes empresas e as populações locais, principalmente as populações tradicionais. A resolução CONAMA constituiu um avanço nesta direção mas, como vimos, estamos ainda longe de atingir os objetivos que essa resolução pressupõe e que as situações apresentadas demandam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA, Rinaldo S. V. - 1988 - Relatório de impacto ambiental e sócio-cultural da UHE - Ji-Paraná sobre os povos indígenas Gavião e Arara da área indígena Igarapé Lourdes; sobre o complexo cultural Tupi-Mondé do Parque do Aripuanã e sobre os índios isolados da região. CNEC/ELETRONORTE, julho de 1988. ARRUDA, Rinaldo S. V. -1994 - “Existem realmente índios no Brasil? “. Artigo publicado na Revista São Paulo em Perspectiva, volume 8, no 3, julhosetembro de 1994, págs. 66 a 77. Fundação SEADE, São Paulo. FEARNSIDE, Philip M. - “Quem desmata a Amazônia, os pobres ou os ricos?”. IN Ciência Hoje, vol. 19, no. 113, set./95. HARGREAVES, Maria Inês Saldanha - Levantamento Sócio-Ambiental do Grande Aripuanã. PNUD, 1993. JUNQUEIRA, Carmen - 1992 - A Questão Indígena no Brasil: evolução, principais problemas e perspectivas de ação governamental. Texto inédito. SANTOS, Leinad & ANDRADE, Lúcia (org.) - 1988 - As Hidrelétricas do Xingú e os Povos Indígenas. Comissão Pró-Índio de São Paulo. SEILERT, Fritz - Áreas indígenas em Mato Grosso. PNUD, 1995. SEPLAN-MT - 1992 - Fisiomorfologia, solos e uso atual da terra: região Noroeste do Estado do Mato Grosso. Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral. Governo do Estado do Mato Grosso.

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LEVANTAMENTO E DIAGNÓSTICO DE BENS CULTURAIS INTANGÍVEIS Carlos Eduardo Caldarelli

Primeiro, devo a vocês uma explicação: era para estar aqui Emília Botelho, que ia fazer esta exposição. Infelizmente, porém, ela teve um imprevisto e não pôde comparecer a este Simpósio. Uma vez que eu também participei dos trabalhos que ela iria relatar, fiz algumas notas daquilo que eu ainda pude retirar do baú da memória e vou tentar expor algo acerca daqueles trabalhos para vocês, a fim de que tenham idéia do que foi feito, então, e de que contribuição se pode extrair deles para a discussão do tema que nos preocupa nesta mesa-redonda, qual seja, o dos recursos culturais intangíveis. Os trabalhos mencionados dizem respeito a Porto Primavera, que é um projeto hidroelétrico, e a Ourinhos, outro projeto hidroelétrico. Em ambos, essa questão cultural ligada a populações vivas foi muito sentida pela equipe multidisciplinar que fez os estudos de impacto ambiental. No caso de Porto Primavera, estava-se diante de uma Usina Hidroelétrica que já estava em construção antes da edição da resolução CONAMA nº 1 e que foi alcançada pelos efeitos da resolução CONAMA nº 10/87, pela qual era preciso que se fizesse um estudo prévio de impacto ambiental para que se obtivesse a licença de operação. Formou-se, então, a equipe multidisciplinar encarregada de fazer o estudo, da qual faziam parte um sociólogo, uma antropóloga, um arquiteto e um historiador, para lidar com as questões relacionadas ao patrimônio cultural. Ocorre que, a essa altura, como já ficou dito acima, a Usina já estava em estado avançado de construção, estava praticamente pronta. Assim, o estudo prévio de impacto ambiental que foi feito ali, em primeiro lugar, não foi prévio e, em segundo lugar, padeceu com o fato de muitos dos impactos que deveriam ter sido estudados antecipadamente já estarem acontecendo, ou mesmo já terem acontecido. Tendo em vista essas dificuldades de ordem prática, interessa discorrer, aqui, acerca de como foi que essa questão do patrimônio cultural, e mais particularmente a da cultura das populações presentes e atuantes ali, na região afetada pela construção de Porto Primavera, acabou, então, por ser colocada. Em primeiro lugar, na cabeça do empreendedor, a idéia de patrimônio cultural estava muito ligada ao patrimônio edificado, enquanto composto de bens tangíveis, visíveis, facilmente identificáveis, ao mesmo tempo que havia a consciência da proteção legal de que gozam os restos arqueológicos, ou seja, a idéia que permeava a cabeça do empreendendor era a de que aquilo que iria ser atingido, aquilo que iria ser destruído, aquilo que iria ser turbado pela construção da Usina, era quase que tão somente aquilo que existia materialmente, ou seja, a água destinada ao reservatório da Usina, a construção desta última, a do canteiro de obras, etc., que são atividades exercidas sobre o mundo material, atuariam (destruindo, fazendo submergir, etc.) somente sobre coisas que também existiam no mundo material e nisto se resumiam os impactos negativos que a implantação de um empreendimento como o de que se tratava podia exercer sobre o patrimônio cultural.

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Quanto aos outros aspectos da cultura local e regional, no máximo, reconhecia-se a existência de festas religiosas populares, como a de N. Sra. dos Navegantes, à qual se estava procurando dar um tratamento cujo rationale era muito semelhante ao descrito anteriormente: buscava-se oferecer um novo local onde a festa pudesse ser relizada, uma vez que aquele onde a maior parte dela se desenrolava tradicionalmente, o bairro de Porto Quinze, ia ser inundado. Porém, como é sabido, a cultura é um todo indivisível, sendo as suas manifestações materiais, visíveis e palpáveis, inseparáveis da adesão a certas tradições e valores e da posse dos conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para que aquilo que ela torna possível que seja exposto aos sentidos seja produzido e reproduzido. Não é possível sequer compreender eventos comezinhos e simples para nós, como uma festa de aniversário, por exemplo, se não se pensa em instituições como o ano civil e a idade cronológica das pessoas, esta computada com base na regularidade da passagem ordenada, inevitável e infinda daqueles. É impossível comparecer a uma dessas festas e dela participar, se não se conhece e adere a costumes tais como os de oferecer presentes ao aniversariante e vê-lo apagar velinhas espetadas em um bolo. É, também, desejável que se possuam algumas habilidades, dentre as quais conta-se o saber cantar, em coro (ainda que desafinado), “Parabéns a Você”. Por último, espera-se do participante da festa que este mantenha uma atitude de alegria e receptividade. Promover uma festa dessas implica, evidentemente, saber de tudo isto e ter as habilidades necessárias para lidar com todos os seus elementos. Não menos sabido é que inexistem manifestações culturais que dispensem as relações sociais que as engendram. No caso das nossas festas de aniversário, as relações mais importantes são as de parentesco e amizade, que fornecem pessoas para preparar a festa e a ela comparecer. Existem outras, tais como as que se estabelecem entre quem compra e quem vende um objeto qualquer que será dado de presente ao aniversariante; quem encomenda, quem prepara e quem transporta o bolo de aniversário, etc. A maior parte das manifestações culturais exige, também, uma base material. Porém, uma vez que parece que ninguém duvida disto, não vale a pena perder tempo encarecendo o fato. Assim, há pelo menos três formas de um empreendimento de grande porte produzir impactos negativos sobre o patrimônio cultural, vale dizer, sobre a cultura: alterando a valoração que se atribui a tradições, conhecimentos, habilidades e atitudes ligados a bens culturais, em geral, de natureza material ou imaterial; interferindo no modo como as relações sociais se entretêm para permitir a realização das suas manifestações e agindo sobre as bases materiais em que se assentam estas últimas. Voltando a Porto Primavera, vejamos o que tem a ver o que se acabou de dizer com o que ocorreu ali. Para tanto, vou expor brevemente os casos das olarias locais e da arquitetura vernacular das habitações das ilhas fluviais e ribeirinhas. Antes disso, porém, peço licença para a seguinte digressão sobre a visibilidade dos fenômenos culturais: Assim como é fácil reconhecermos como tais manifestações culturais muito diversas daquelas a que estamos acostumados, é difícil admitir que o são, igualmente, aquelas a que estamos habituados. É estranho observarmos uma festa de aniversário como uma manifestação cultural, do mesmo modo que admitimos observar dessa forma um ritual em uma aldeia indígena.

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Muito bem, isto posto, é fácil compreender que, a olhos desatentos, a produção artesanal de tijolos e outros artefatos de argila cozida, bem como o uso de métodos originais de construção de residências, baseados em materiais pouco utilizados em meio urbano, aliados a práticas construtivas e habitacionais adaptadas a regiões ribeirinhas e a ilhas, possam parecer anacronismos e, mesmo, sinais de miséria, ao invés de manifestações culturais locais. Em Porto Primavera, aos olhos do empreendedor e dos seus prepostos, era da primeira forma que apareciam a produção oleira e a arquitetura vernacular locais, isto é, como excrescências que pouco ou nenhum valor possuíam e que podiam, quase automaticamente e com vantagem, ser substituídas por bens de uso similar, só que de valor mais alto e de utilidade maior, tais como pequenas propriedades rurais agricultáveis, no primeiro caso, e casas de alvenaria, no segundo. Assim, ofereceu-se aos oleiros tratos de terra para plantio e aos ribeirinhos e ilhéus, casas de alvenaria, em troca das suas olarias e casas de madeira. A esta altura, vale notar que esse é o primeiro impacto negativo importante que os grandes empreendimentos costumam causar sobre os patrimiônios culturais locais: a sua desvalorização e desprestígio, que conduz ao seu abandono, principalmente porque, para oleiros e ribeirinhos, o acesso à terra e a residências de aparência urbana acabaram parecendo, de fato, modos de ascensão social. Por outro lado, a brusca alteração da composição e espacialização de grupos domésticos e de trabalho acaba por alterar grupos de vizinhança e de amigos, bem como rotinas diárias e de maior periodicidade, de modo que onde antes havia uma comunidade, aparece uma população amorfa e desarticulada, sendo este o segundo impacto negativo de grandes empreendimentos sobre a cultura, a que se fez alusão agora, há pouco. Em Porto Primavera, malgrado o que continha o tardio EIA-RIMA produzido, tudo isso acabou ocorrendo: oleiros que, quando muito, cultivavam pequenas roças complementares, voltaram-se para tentar viver principalmente do plantio em pequenas propriedades isoladas e proprietários de casas de madeira espalhadas pelo curso do rio foram levados a viver em aglomerações de casas de alvenaria, tendo havido casos em que, em uma só pessoa ou família, materializaramse ambas as ocorrências. Daí a desinteressarem-se todos, completamente, do destino das suas antigas casas e olarias não foi preciso mais: submergiram, sem lamentações e sem deixar qualquer testemunho, umas e outras, realizando-se, assim, o terceiro e último impacto negativo mencionado, qual seja, a destruição pura e simples de parte do patrimônio cultural local. Então, devido a não se ter reconhecido que as pessoas com que se estava interagindo detinham uma parte do patrimônio cultural local, cujas características só elas mesmas podiam compreender e manipular, desastrada e talvez irremediavelmente, acabou-se por destruir aqueles elementos do patrimônio cultural local. Deve-se ressaltar que, mesmo que se tivessem mantido as olarias e as casas de madeira em uma redoma, estas e aquelas, sem os conhecimentos, habilidades e atitudes a que estavam ligadas, pouco ou nada passariam a significar.

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Apenas tomar cuidado com aquilo que é palpável, que é material, que é cal pedra e cimento, sem se preocupar com o conhecimento necessário para reproduzir aquela pedra cal e cimento, de nada adianta, no que diz respeito à preservação do patrimônio cultural. Poder-se-ia, por outro lado, fazer restrições ao que acabou de ser dito, trazendo à baila o inconformismo dos oleiros com o seu modo-de-vida, por exemplo, que de fato existia e era manifesto em Porto Primavera. Acontece que a atividade manufatureira ligada àquela atividade é muito complicada: exige uma série de equipamentos e conhecimentos especializados a respeito de como utilizá-los e vincula-se a fenômenos, naturais e não naturais, de periodicidade especial, muito diferente da ligada às lidas do agricultor. Pretender transformar repentinamente oleiros em agricultores é uma coisa que, no mínimo, é muito difícil de ser feito. O que é provável que aconteça (que esteja acontecendo, aliás) é que, num relativo curto espaço de tempo, não se tenha mais oleiros nem agricultores, tampouco cultura ligada à olaria, na região. Sem pretender ditar receitas infalíveis e aplicáveis a quaisquer situações, parece óbvio que uma transição lenta e participativa de uma atividade à outra e que se preocupe com valorizar a atividade que se está abandonando poderia conduzir a resultados mais duradouros, menos destrutivos e menos traumáticos. Outro tanto se pode e deve dizer das pequenas casas de madeira da zona ribeirinha e das ilhas: a evolução que esse tipo de arquitetura vernacular ainda poderia ter, ali, em Porto Primavera só poderia dar-se, se a essa cultura e a esse conhecimento se tivesse dado a oportunidade de continuar desenvolvendo-se, ou seja, se, destruídas aquelas casinhas de madeira, se tivesse procurado dar aos seus antigos proprietários a possibilidade de reconstrui-las, em outro lugar, talvez em outros termos, mas aproveitando o conhecimento que tinham acerca de métodos construtivos, materiais de construção locais, etc.. Certamente esse aspecto da cultura da população ribeirinha teria sua própria evolução e continuaria evoluindo em seus próprios termos. Havia, ainda, em Porto Primavera, uma questão muito aguda que era a necessidade de acabar-se com um dos bairros de uma das cidades atingidas pelo empreendimento: tratava-se de Porto Quinze, de onde partia a procissão de Nossa Senhora do Navegantes que, entre outras particularidades, tinha a especificidade de acontecer no meio do ano e não no começo do ano como no resto do país. A solução que se adotou implicou a retirada da população daquele bairro para um outro local, de modo que a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes passou a sair daquela outra localidade, com uma série de pequenos prejuízos que acabaram considerados como tendo sido compensados pelo fato de o empreendedor estar fornecendo aos deslocados novas casas e nova infra-estrutura. Em suma, em Porto Primavera, casas de madeira compensaram-se com casas de alvenaria; olarias, com terra agricultável e bairros e trajetos de procissões, com outros bairros, “quase iguais, até um pouco melhores”, e outros trajetos para procissões, tudo na velha tradição segundo a qual os incomodados que apanhem o que puderem e se mudem! Enfim, o que eu gostaria de ressaltar nessa experiência de Porto Primavera é que, a partir de uma desconsideração da problemática posta pelas diferenças culturais,

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dificeis de serem vistas em determinados contextos, reconheça-se, o empreendedor, deixando de lado o fato de estar diante de uma cultura viva, em evolução, na região em que se ia instalar, acabou por levar as populações que a portavam a transacionar com aspectos do próprio modo de vida, da própria cultura, da própria tradição, oferecendo-lhes em troca apenas bens materiais, o que é, no mínimo confundir alhos com bugalhos. Assim procedendo, perturbou seriamente, quando não liqüidou de vez, os aspectos do patrimônio cultural local com que interferiu, comprometendo-o todo, dada a sua coerência interna e a sua irredutibilidade ao meramente material e utilitário, numa palavra, dada a sua indivisibilidade. Quanto a Ourinhos, que é a segunda experiência que eu queria relatar para vocês, trata-se de uma cidade próxima ao rio Paranapanema, cujo nome foi dado à represa que ali se iria construir. Bem, em Ourinhos, as questões mais agudas não se prendiam à visibilidade do patrimônio cultural local, nem à sua indivisibilidade, embora esses problemas estejam sempre presentes, mas ao modo como aquele patrimônio é produzido e reproduzido. Isto era muito bem ilustrado por uma Folia de Reis que havia lá. A Folia de Reis, em poucas palavras, é uma uma expedição petitória que consiste de uma bandeira, atrás da qual vão músicos. Faz-se uma coleta de dinheiro que é utilizado para que se faça, depois, uma grande festa para honrar os Santos Reis. A Folia de Reis é muito preciosa, porque ela é relativamente rara, no País, hoje. Ela é permeada por relações de parentesco e compadrio, que fornecem os colaboradores do promotor da Folia, e baseia-se em crenças e acontecimentos peculiares. É preciso que o Folião que promove a Folia sonhe com os Reis Magos e que lhes prometa que vai realizá-la durante sete anos seguidos e que depois vai passar esse encargo para outra pessoa, que também vai sonhar com os Reis Magos e continuar a tradição. É fácil notar que, além de depender de uma série de acontecimentos que não se dão todos os dias, a Folia é um empreendimento de vulto considerável para as pequenas comunidades em que acontece. Tudo isto implica repousar a sua continuidade sobre a estabilidade das relações entre as pessoas que a promovem e dela participam. Reassentá-las sem levar essa questão em conta é o mesmo que inviabilizar a Folia. Felizmente, isso não ocorreu em Ourinhos. A problemática, no entanto, tinha de ser reconhecida enquanto tal e em suas verdadeiras dimensões: uma Folia de Reis é uma jóia que não nos é permitido perder, por deixar que se quebrem, abruptamente, os elos da corrente de colaboração e transmissão de conhecimentos, crenças e habilidades que a tornam possível. Dito isto, eu gostaria de encerrar, colocando essas questões da visibilidade, indivisibilidade e fragilidade do patrimônio cultural para o debate que virá depois. Obrigado.

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O RESGATE DA CULTURA INTANGÍVEL REFLETIDA NA CULTURA MATERIAL Heloisa Capel de Ataídes

Tendo como base a ênfase levantada em mesas anteriores à uma interpretação legal que privilegia estudos e análises relacionadas à arqueologia e à arquitetura( por parte tanto dos órgãos que administram a proteção do Patrimônio, quanto dos empreendedores), e , ainda, considerando que tais estudos têm por referência a cultura material; é que nós gostaríamos de contribuir com a discussão demonstrando a indissociabilidade dos aspectos culturais mais amplos ou “intangíveis” de sua expressão material e objetiva e, ainda, a partir de um exemplo concreto, fazer considerações sobre as possibilidades de efetuar um resgate dessa natureza. Após ouvir as exposições que destacaram a relação cultura / meio ambiente, o impacto dos empreendimentos sobre as culturas tradicionais e os meios de diagnosticar os bens culturais, cabe a nós refletir sobre o resgate da cultura intangível e seu relacionamento com a cultura material. Em todo trabalho que envolve o diagnóstico, a avaliação e o resgate de Patrimônios Culturais é importante considerar, que, eles necessariamente, correspondem a todas as “manifestações presentes do passado humano” compreendendo tanto as formas materiais (pré-históricas e históricas), quanto as ditas imateriais, normalmente relacionadas aos modos tradicionais de vida e de expressão. Nesse sentido é importante observar que os elementos “materiais”, ou físicos são indissociáveis de sua imaterialidade, relacionada ao terreno das idéias e das instituições, das manifestações não visíveis, intangíveis da cultura. Cientistas sociais como Kroeber já na década de 40, ponderavam que: “afinal, o que conta não é o machado, a capa ou o trigo como coisas físicas, mas a idéia de tais coisas e o conhecimento de como produzí-las e usá-las, ou seu lugar no mundo”... Entre os historiadores, apesar do uso constante, de seu abandono e revalorização através da historiografia francesa, as reflexões acerca da cultura material ainda estão se processando. Nelas é possível encontrar a idéia de imaterialidade da realidade objetiva e suas implicações. Como afirma o historiador medievalista Georges Duby: “o estudo das realidades materiais e o das realidades imateriais sâo indissociáveis, se quisermos explicar a situação de uma sociedade no espaço e no tempo”. A despeito dos avanços e do vigor em que se encontram os estudos que têm a cultura material como referência para diversas áreas das Ciências humanas, é na arqueologia que vamos encontrar um maior aprofundamento nas tentativas de utilizála de forma mais abrangente, definindo-a como fonte e objeto de atuação social. Os pré-historiadores têm-lhe conferido cada vez mais, um perfil antropológico e os arqueólogos históricos, contribuído para a compreensão de sua natureza, desvendando, por vezes, seu papel ativo na dinamização cultural em que está inserida. Da definição fluida e demasiadamente genérica proposta por uma “protoarqueologia” social desde a década de 70, à visão passiva de simples reflexo da cultura intangível desenvolvida pelos processualistas, é na arqueologia pós-processual 198

que encontraremos uma visão mais dinâmica sobre a “imaterialidade” da cultura material, encarada não sob simples reflexo das práticas sociais, mas como sujeito e objeto da ação social. O comportamento humano é culturalmente constituído, informado através do significado e ação dos indivíduos. A estrutura sempre em mudança do seu significado depende do contexto em que está inserida e é negociada através das ações dos indivíduos que produzem a cultura. Assim sendo, a cultura só pode ser compreendida como um código ideacional e deve incluir função e significado, processo e estrutura, entre outros aspectos. A cultura intangível é, portanto, indissociável da cultura material encarada sob uma perspectiva ampla e ativa, como a relação entre pessoas e coisas. Portanto, há inúmeras possibilidades de análise sobre a cultura material. Ela é uma expressão singular do Patrimônio Cultural por possibilitar interpretações que põe à mostra a dinamicidade das culturas e épocas e locais historicamente determinados. Através dela e nela própria pode-se compreender aspectos estruturais mais amplos ou mesmo, elementos específicos pertencentes a um domínio micro-estrutural e único. Como elemento ativo, sua ação pode ser desvendada e discutida, como reflexo intencional, pode ser lida e exposta à crítica textual. Como expressão formal e física, pode viabilizar o resgate do cotidiano histórico, lugar privilegiado de lutas sociais e da memória. O resgate da cultura dita “intangível” pode ser realizado, dessa forma, tendo como referência a cultura material. As análises a respeito tem demonstrado que a cultura material é bastante eficaz para fazer emergir os elementos que servirão de apoio à discussão de problemáticas culturais levantadas em áreas impactadas. Nesse sentido, como considerá-la apenas em seu aspecto físico, concreto ? As definições de cultura são fluidas e amplas, hoje compreendidas não apenas no sentido antropológico de invenção coletiva e temporal de práticas, valores, símbolos e idéias, como também no sentido de trabalho cultural. Assim, cultura é mais do que o monumental ou o artístico. Cultura é memória, é política, é história, é técnica, é cozinha, é vestuário, é religião. Há cultura onde os homens criam símbolos, valores e práticas. Há também cultura onde se criam o sentido do tempo, do sagrado e do profano, do prazer e do desejo, da beleza e da feiúra. Portanto, há cultura naquilo que é material e visível, assim como no que é intangível ou imaterial. Da associação desses elementos, num trabalho de resgate científico elaborado a partir de problemáticas culturais relevantes, o Patrimônio Cultural pode ser adequadamente resgatado. Tomemos nossa experiência como exemplo: O PROJETO DE LEVANTAMENTO E RESGATE DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL DA ÁREA DIRETAMENTE AFETADA PELA USINA HIDRELÉTRICA DE CORUMBÁ, realizado sob o patrocínio de Furnas Centrais Elétricas, através do Instituto Goiano de Pré História e Antropologia da UCG, demonstrou as potencialidades do resgate da cultura intangível tendo como referência a cultura material. O Projeto desenvolveu-se entre 1994 e 1996, envolvendo os municípios goianos de Pires do Rio, Caldas Novas , Ipameri e Corumbaíba. A problemática da pesquisa nasceu da fluidez inerente ao conceito de cultura, da extensão e complexidade da área e das discussões sobre a subjetividade de conteúdos que tenham como objeto, a análise social. O rio Corumbá, referência mestre do universo da pesquisa, eixo sobre o qual gravitaram os elementos culturais mais rapidamente afetados pela construção da hidrelétrica, seria afinal, um elemento de peso na ocupação, povoamento, e na dinâmica dos acontecimentos que se

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desenvolveram em dois séculos de história ? Foi a partir desta reflexão que nasceu a hipótese norteadora de todo o trabalho: a suposição de que por suas características naturais e histórico de ocupação, o rio Corumbá seria muito mais um obstáculo, do que um estímulo à dinamização da área. O relacionamento com ele foi sempre norteado muito mais pelos esforços em transpô-lo do que em fixar-se nele. A ocupação da área, portanto, e sua dinâmica cultural estiveram relacionadas, em certo sentido, a uma perspectiva de isolamento, em que traços culturais próprios e identitários puderam ser reconhecidos. Nesta visão, o patrimônio a ser resgatado relacionou-se diretamente com a área de estudo, identificando-se a produção cultural de elementos sob uma óticaproblema, que levou em conta, entre outros aspectos, a viabilidade de preservação no tempo determinado. Para isso, adotou-se a idéia de cultura como normas de “controle” subjetivo identificadas num tempo longo e expressas seletivamente através da memória. A opção de cultura adotada implicou, portanto, numa seleção de discussões, à medida em que a problemática cultural foi definida para a área. A preservação foi realizada em consonância com estes princípios. Neste esforço, os elementos do fazer cotidiano foram sempre incluídos, buscando-se, a partir deles, traços de identificação cultural de toda a área. As fontes de documentos preservados foram diversas e responderam às necessidades de análise do objeto. As opções metodológicas se desenvolveram portanto, em torno de um princípio norteador: o de que a cultura material é suficiente e eficaz para fazer emergir os elementos de discussão da problemática cultural levantada. A cultura material em interação com a problemática da área esteve, dessa forma, relacionada à paisagem , à arquitetura e aos caminhos, pontes e portos. Estes elementos materiais deveriam responder à questão norteadora da pesquisa. Sua análise deveria ser suficiente para elucidar questões sobre o papel do rio Corumbá e as especificidades definidas pelo isolamento da área de estudo. Tendo como origem o princípio genérico de que a cultura material pode se compreendida como qualquer elemnto do meio físico culturalmente apropriado, a paisagem foi utilizada como instrumento legítimo de leitura. Por ser considerada como documento histórico sobre o qual a população escreveu a respeito de si mesma e de seus ideais, a paisagem pode revelar os recursos disponíveis e costumes decorrentes de seu uso, além de laços abstratos que a ligaram afetivamente à população. Ao histórico da ocupação da área agregou-se suas características físicoculturais. Associados às características da vegetação, da fauna, da geologia e da geomorfologia foram observados os elementos de construção que, de acordo com as fases históricas de constituição, modificaram-se no decorrer do tempo. Neste contexto, os elementos construídos apresentaram-se em interação com os elementos vivos (vegetação e água). Após vários anos de formação de plantações e pastagens observou-se um equilíbrio entre as árvores e as sedes de fazendas, as pontes e o rio, elementos que se constituiram em tempos diversos e contrastantes. A vegetação mascara os desequilíbrios das proporções e ameniza a silhueta dura do meio construído influenciando o psiquismo do homem na área de estudo - daí ter sido importante enfatizá-la no processo de preservação. A afetividade, como traço cultural ligado à paisagem, relacionou-se às formações vegetais do conjunto das edificações. Estes elementos refletiram a

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interação natureza e meio construído, sob os quais a tradição local pode ser lida. Foram, dessa forma, considerados como elementos do patrimônio selecionados pela memória. As árvores e plantas inscritas na paisagem de algumas fazendas contaram histórias familiares revelando a associação do homem com o meio e sua afetividade. O rio Corumbá mereceu, neta análise, um destaque especial devido à problemática levantada. A investigação sobre o papel afetivo e valorativo do rio Corumbá reforçou a hipótese dos obstáculos relacionados à ocupação de suas margens. Ao ressaltar elementos da superfície visível da água, da qualidade visual e das encostas do rio, além da vegetação e dos elementos valorizantes e desvalorizantes, observou-se que o rio Corumbá influenciou e foi pela população influenciado muito mais como obstáculo a ser transposto do que como potencial produtivo. Outros elementos de peso na discussão da problemática cultural (tendo a cultura material como pano de fundo) foram as expressões arquitetônicas. A arquitetura da área foi levantada e reconhecida, identificando-se nela e através dela a produção cultural necessária e suficiente para elucidar questões relevantes. As influências arquitetônicas envolvendo materiais construtivos e elementos estilísticos foram evocadas, buscando-se a constitução de procedência que conferiu às construções urbanas e rurais da área algumas especifidades. Nesta trajetória, foram evidentes as dificuldades de entrosamento com o rio Corumbá expressas na dissociação de emprego de material construtivo ligado ao rio e na distância das sedes de suas margens na área rural. Ainda sob este aspecto, outros elementos constribuíram para a discussão da problemática como o isolamento expresso nas construções que, no século XX, ainda conservaram técnicas construtivas próprias do século XVIII. As questões relacionadas ao programa de necessidades das construções, ou melhor, à organização interna que expressa a cultura de morar, foram importantes ao descortinar usos quase indistintos na área rural das sedes de fazendas e casas de agregados que se apresentaram com a mesma organização interna. A estes fatores somaram-se as idéias do isolamento e da dinâmica própria do local que, desenvolvendo desde o início do povoamento atividades relacionadas à pecuária, estreitaram laços de solidariedade social. Para complementar este estudo considerou-se, sobretudo, que o espaço construído da casa é importante não apenas no entendimento de sua estrutura física, mas do uso dos espaços que expressa a cultura de morar. A análise do programa de necessidades demonstrou que a estrutura arquitetônica reflete a estrutura sócio-econômica familiar da população rural em Goiás. A separação das construções ligadas à família e ao trabalho, a criação de uma faixa composta de sala de visitas e quarto de hóspedes, a existência de uma varanda ou solar de convivência para onde estão voltados os quartos dos moradores e, ainda, a valorização do espaço da cozinha como eixo cuore das residências, formaram um tipologia da casa rural tradicional na área de estudo. Esta discussão proporcionou o levantamento das atividades cotidianas e suas implicações na delimitação de tarefas de natureza feminina e masculina, que se desenvolveram em espaços públicos e privados. Através desses dados, elementos da estrutura familiar, econômica e mental foram identificados e discutidos. A materialidade das evidências arquitetônicas serviu, ainda, para se investigar a religiosidade local - instituída e doméstica - identificando sua constituição no Brasil

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e suas características de singularidade local acentuadas pelo isolamento. Para discutíla, fêz-se uso da história oral, resgatando traços da memória seletiva dos moradores, além do levantamento geral de fontes elucidativas de questões religiosas e suas expressões diversas. Ainda buscando expressões materiais significativas para a discussão da problemática cultural da área de estudo, além da paisagem e dos elementos arquitetônicos ligados às sedes de fazendas, foram examinados, sob orientação da Arqueologia Histórica, as pontes, portos e caminhos. Estes elementos, em sua maioria encontrados em estado de ruínas ou ainda, tendo sua integridade física ameaçada pela construção da hidrelétrica, apresentaram uma forte base de apoio ao levantamento de questões ligadas ao rio Corumbá, e seu papel como agente dinamizador do povoamento e das atividades culturais que se desenrolaram em períodos históricos subsequentes. Enfatizou-se ainda, a análise artefatual em interação com estruturas arquitetônicas permitindo a reconstituição de edifícios e seus espaços. A cultura material de uso cotidiano revelou hábitos culturais significativos para a discussão dos domínios públicos e privados nas construções, servindo de apoio às reflexões sobre a problemática no restante do trabalho. Através dela, pôde-se reafirmar as concepções iniciais sobre o papel do rio e as dinâmicas culturais associadas à vida cotidiana. Portanto, através dos referenciais de aproximação objetiva, material, elementos subjetivos ou “intangíveis” puderam ser examinados. Através da cultura material, encarando-a de uma maneira reflexa e ao mesmo tempo atuante, os elementos de discussão sobre o povoamento, o isolamento da área e do rio Corumbá como agente dinamizador, puderam ser investigados. A cultura material demonstrou, à luz de um olhar interdisciplinar, ser um recurso eficaz para a análise proposta. A fundamentação teórica de referência representou um avanço na definição da cultura material, encarando-a de maneira dinâmica e atuante sobre a cultura e não apenas com a perspectiva reflexa e inerte de outros estudos. De natureza discursiva e subjetiva, a cultura material tem poder transformativo. Ela dá opção a uma análise multidimensional e pode ser até usada para criar, no plano imaginário, um universo cujo conteúdo e forma diferem completamente da realidade social. Daí ter sido valorizada no trabalho, a importância de se considerar a subjetividade nas interpretações dos textos decorrentes da cultura material, sob os olhares da História, da Antropologia, da Arqueologia e outras áreas afins. Assim, o princípio metodológico adotado na pesquisa revelou eficiência ao possibilitar uma discussão ampla e multidisciplinar sobre o objeto construído e a problemática adotada. O Projeto Corumbá comprovou ser possível elaborar um trabalho científico partindo de um objeto delimitado artificialmente. Envolvendo procedimentos interdisciplinares e pouco ortodoxos, foi possível dotar de sentido um resgate complexo e de grande amplitude. Este é um dos grandes legados de pesquisas dessa natureza: oportunamente inventariar áreas nem sempre conhecidas, ou mesmo lançar novos olhares sobre um mesmo objeto, demonstrando, na prática, a possibilidade de construir problemáticas com referenciais coerentes e próprios. Que a iniciativa seja imitada, para que o Patrimônio Cultural do homem, em seu aspecto material e intangível, possa ser valorizado, estimulando trabalhos científicos sobre áreas impactadas.

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DEBATE

Coordenador: Prof. Jézus Marco de Ataídes - IGPA/UCG Relatora: Ana Guita de Oliveira - 14a. CR/IPHAN OBS.: Esse debate, em consequência de falhas técnicas, foi gravado apenas parcialmente. Seguem-se, aqui, entre aspas, as questões e respostas trasncritas e, precedidos do aviso de “reconstituição”, alguns resumos das outras intervenções ocorridas, feitos com base nas notas tomadas pela relatora da mesa. Ana Maria Martins - DEFA/GDF - Arquiteta - “Vou fazer um comentário e uma pergunta para professora Heloisa. Eu sou do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Fiquei muito interessada, porque os nossos trabalhos cotidianos estão relacionados com uma cidade nova, cheia de problemas, cheia de empreendimentos, cheia de relatórios de impacto ambiental. Então, eu fiquei muito feliz com a exposição de todos vocês, porque eu acho que existe uma preocupação e todas as pessoas demonstram isto na medida em que estabelecem medidas concretas para que se preserve esses bens intangíveis. Eu tenho duas considerações a fazer, apesar de ser arquiteta e não antropóloga: acho que existem as transformações que a gente aceita e que vão ocorrendo sobre a sociedade, conforme os valores culturais vão-se modificando; existem aquelas que são objeto desse Simpósio, ocorridas a partir de alguma intervenção de grande porte e é sobre essas transformações que eu teria algum comentário a fazer. No caso, aqui, uma série de projetos de Usinas hidroelétricas foram apresentados, em todos eles existem a necessidade de se realocar as populações; como apresentou o Doutor Caldarelli, a questão de Porto Primavera foi bastante complicada, na medida em que se tentou minorar os impactos, simplesmente dando um outro tipo de realidade para população que nem sempre era aquele de que ela estava precisando. Por outro lado, o que a Professora Heloisa apresentou foi verificado a partir de um relatório, onde a comunidade desejava exatamente isso. Como sugestão para redação do trabalho final, eu gostaria de colocar que seria interessante propor que os relatórios de impactos ambiental, os EIAS principalmente, passassem por um momento de analise como o do Projeto de Corumbá, que vocês desenvolveram. E que também propusessem realmente medidas concretas, no sentido de chegar a resultados. Não aquele obstáculo, no caso do rio, que era um obstáculo para o desenvolvimento da comunidade e que eles não valorizavam esse elemento natural. Ou, então, chegar a uma conclusão como em Porto Primavera, pelo menos pela notícia que eu fiquei tendo, de que atualmente a comunidade toda se dispersou daquele território para qual ela foi alocada, porque a concepção urbana não estava de acordo com os valores culturais que a comunidade tinha. Então, que houvesse algum tipo de recomendação nos relatórios de impacto ambiental a respeito das medidas que o empreendedor deveria executar quando fosse feita a realocação da população ou fosse executado o tipo de empreendimento. Para a Doutora Heloisa eu tenho uma pergunta: vocês têm notícia de como essa população ficou e para onde ela foi ?”

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Heloisa Capel - “A hidrelétrica Corumbá está terminando, o lago ainda não está totalmente formado. O Jézus pode responder melhor, porque ele é coordenador do projeto e pode dar informações mais atuais.” Jézus Ataídes- “Bom, é um caso diferente, a hidrelétrica de Corumbá vai ocupar uma área pequena, de 65Km/2. É uma área rural, pouco habitada, não houve grandes problemas com a população; as fazendas quase todas só tinham um peão, as casassedes quase sempre eram habitadas apenas por um peão, as casas de agregados já tinham sido abandonadas; então, a população era muito pequena; não houve reação dessa população, que já tinha se transferido, na sua maioria, para área urbana; não teve problema como em outras hidrelétricas.” Antônio Carlos Diegues - (reconstituição) - Falou dos bens tangíveis e das percepções diferenciadas do ambiente. As medidas mitigadoras são apenas compensatórias. Citou a experiência da USP. Sugeriu que as populações atingidas façam seu estudo de impacto a partir do entendimento que possuem - seus próprios valores. Explicitou as diversas racionalidades contidas nos grupos/segmentos sociais envolvidos nos projetos. Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Ressaltou as “racionalidades distintas” envolvidas no processo de realocação. A noção de propriedade deve ser entendida no âmbito das relações sociais e não são vistas como legítimas pela sociedade nacional. A idéia de preservar como formas passadas. Preservar não somente a cultura, mas o espaço de suas possíveis mudanças - de sua autodeterminação. Ressaltou o caráter político das questões relacionadas à preservação da cultura. Carlos Caldarelli - “Frequentemente, as populações submetidas passam a ver-se com os olhos do outro e, consequentemente, perdem as próprias referências. Os meios de evitar isso têm de ser formulados caso a caso. Portanto, não é o caso de haver normas que antecipem o que o empreendedor deve fazer concretamente. Deve haver, isto sim, normas que vinculem fortemente o empreendedor às conclusões e recomendações do EIA/RIMA.” Ana Lúcia Abrahim - 1ª CR/IPHAN - “Nos dois casos, Corumbá e Paraná, na prática, que propostas de mitigação foram feitas ? Foram implementadas ? Foram avaliadas?” Carlos Caldarelli - “Em Porto Primavera, não pôde haver implementação, monitoramento e avaliação das propostas de mitigação, porque os impactos já estavam ocorrendo quando se fez o EIA/RIMA.” Jézus Ataídes - “Em Corumbá, as sedes das fazendas, na sua maioria, já não estavam mais na área a ser inundada, na época da pesquisa. A especulação imobiliária foi e está sendo muito grande. Já existem loteamentos de várias propriedades que vão ficar nas margens do futuro lago. Até então, a população não tinha nenhuma relação mais íntima com o rio Corumbá, ele sempre foi um rio que causou medo. Não é navegável, não é piscoso, nem atrai o turismo.” Ana Lúcia Abraim - ( reconstituição) - Mencionou o boi de Parintins. Perguntou como mitigar os impactos sobre a situação de saúde da população.

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Ana Cláudia Lima e Alves - IPHAN - (reconstituição) Falou da retomada dos trabalhos referentes à cultura. Foram realizados no âmbito da Pró-Memória como no caso dos impactos sofridos pela comunidade de pescadores por ocasião da construção do Porto de SUAPE, em Maceió. Mencionou o ínicio da retomada destes trabalhos. Falou sobre o tombamento do Terreiro da Casa Branca, na Bahia. Estimulou a retomada desta prática. Alenice Baeta - (reconstituição) Retomou alguns pontos: culpa das universidades em assumir sua responsabilidade no sentido da proteção. Mencionou as escolas indígenas que valorizam o etnocentrismo. Mencionou que projetos que deram certo no Acre tentam intervir no contexto indígena em relação à arqueologia. Mencionou a não inclusão dos territórios míticos nos trabalhos de demarcação (fala dirigida ao Dr. Rinaldo). Perguntou como o impacto sobre o bem intangível pode ser mitigado. Mencionou os Krenak e Caxixó. Trabalhou com sítios pré-históricos que são sítios encantados para os Krenak. Mencionou que os índios se apropriam dos sítios préhistóricos como territórios sagrados. Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Na educação indígena, a arqueologia tem papel fundamental, permite uma configuração mais sólida, quando comparados com os relatos etnohistóricos e antropológicos. A idéia é a complementariedade entre as disciplinas. A terra não é vista como mercadoria para as populações indígenas. Reforçou a necessidade da multidisciplinaridade na avaliação dos impactos. Dificuldade em avaliar por um único prisma os impactos. O empreendedor enfatiza um único ponto de vista. Mencionou a necessidade de desenvolvimento de metodologia própria. Ana Isa Bueno - IPHAN - (reconstituição) Falou que, em Porto Primavera, a população tinha emprestado os outros “olhos”. Mencionou o conjunto habitacional construído nos moldes do BNH. A população removida retomou seus valores. Reordenaram seu espaço. Perguntou se o Dr. Carlos Caldarelli tinha trabalhado com os índios Ofaié. Carlos Caldarelli - “Não”.

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5ª MESA-REDONDA:

GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO DAS NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E AMBIENTAL

COORDENAÇÃO: Dr. José Luiz de Morais Museu de Arqueologia e Etnologia/USP Consultor do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia

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EXPOSITORES SUZANNA CRUZ SAMPAIO Licenciada em Geografia e História pela PUC - Instituto Sedes Sapientiae Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo Diretora do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo (1985/6) Conselheira Titular da Área de Patrimônio Cultural do CINC-Conselho Nacional de Incentivos à Cultura (MinC) Conselheira do Conselho Consultivo do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Presidente do ICOMOS/BRASIL - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - UNESCO

ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS Graduado pela Faculdade Nacional de Direito (Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Advogado no Rio de Janeiro. Membro do Ministério Público Federal desde julho de 1982, atuando agora perante o Colendo Supremo Tribunal Federal. Subprocurador-Geral da República, integra o Conselho Superior do Ministério Público Federal e é o Coordenador da 4ª Câmara do Ministério Público Federal, incumbida da coordenação e revisão da atuação da instituição em todo o país nas áreas do Patrimônio Cultural e do Meio Ambiente.

HELITA BARREIRA CUSTÓDIO Doutora em Direito e Livre-Docente em Direito Civil (pela Universidade de São Paulo) Aperfeiçoamento em Ciências da Administração Pública, com especialização em Direito Urbanístico (pela Universidade de Roma) Especialização em Direito Municipal (pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo) Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente (SOBRADIMA) Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-SP Mais de cem trabalhos publicados, notadamente em revistas técnico-jurídicas, sobre assuntos direta ou indiretamente relacionados com Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Urbanístico, Direito de Construir, Direito Ambiental, Direito Florestal, Direito Agrícola, Direito Municipal, Direito Civil (normas gerais, Direito da Propriedade, Direito das Obrigações).

JOSÉ EDUARDO RAMOS RODRIGUES Advogado em São Paulo Vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB- SP Coordenador da Câmara de Patrimônio Cultural da Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP Conselheiro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo Diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

CARLOS EDUARDO CALDARELLI Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo Advogado com escritório em São Paulo (SP) Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica S/C Ltda., participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de Zoneamento Ambiental Membro da IAIA - International Association for Impact Assesment

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AS CARTAS INTERNACIONAIS E A PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO

Suzanna Cruz Sampaio RESUMO

1) Existência de uma centena de Convenções, Cartas, Recomendações, Declarações, Manifestos, Compromissos e Resoluções escritos após debates e decisões consensuais e promulgados ao final de congressos internacionais. Escolha para análise: a Primeira (1932), a mais famosa Veneza (1964), a última “Autenticidade” (Nara 94 e Brasília 95) e, pela importância, a Convenção de Paris - “Patrimônio Mundial”, novembro de 1972. 2) Conjunto de preceitos para a orientação dos profissionais da preservação e restauro, surgido nessa moderna versão em 1972. I - Com a CARTA DE ATENAS: principais tópicos e fundamentos para o restauro de monumentos e áreas históricas dos modernos centros urbanos. Estuda: 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) 8) 9)

a cidade os elementos coletivos e individuais a situação geográfica e topográfica sistema econômico política e administraçào defesa e rotas de transporte população, habitação “era da máquina” cidade: “Pequena Pátria” estudo crítico das funções da cidade e propostade zoneamento e estabelecimento ordenado de exigências 10) A Carta de Atenas propõe a salvaguarda do patrimônio histórico das culturas anteriores 10.1) se constituírem a expressão do interesse geral 10.2) se não exigir sacrifício para as populações 10.3) se for necessário: desviar a circulaçào evitando destruir o monumento considerado “obstáculo” 10.4) destruição de cortiços e criação de superfícies verdes 10.5) cópia servil do estilo do passado: o “falso” e o “verdadeiro” 11) Conclusões e doutrina 11.1) Caos urbano - cidades estudadas: Amsterdã, Atenas, Baltimore, Bandune, Barcelona, Berlim, Bruxelas, Budapeste, Chalerdi, Colônia, Como, Dalat, Detroit, Dessau, Estocolmo, Frankfurt, Geneve, Gênova, Haia, Los Angeles, Litoria, Londres, Madri, Oslo, Paris, Praga, Roma, Roterdã, Utrecht, Verona, Varsóvia, Zagreb e Zurich 11.2) Crescimento dos interesses privados. Transformação desordenada, desequilíbrio. Nos planos espiritual e material, liberdade individual e ação coletiva

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11.3) Escala humana para o desenvolvimento das quatro funções urbanas (9.1, 9.2, 9.3, 9.4) 11.4) “Alegrias Fundamentais”: subordinando o interesse individual ao coletivo: “acesso ao bem estar do lar e à beleza da cidade” 11.5) Nascimento dos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) II - CARTA DE VENEZA (1964): 1) origem e abrangência 2) definições e finalidades 2.1) monumentos 2.2) sítios (urbanos ou rurais) 2.3) multidisciplinar e pluriprofissional 3) conservação e restauro 3.1) técnicas 3.2) acréscimos 4) escavações 4.1) normas da UNESCO 4.2) proibição da reconstrução 5) documentação 5.1) obrigatoriedade em todos os casos 5.2) criação de arquivos 6) criação do ICOMOS por Gazzola, Lemaire, Benavente, Campos, Castro Mello, Gasperini - ao término do IIº Congresso Internacional de Arquitetos (Veneza) III - Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural Conferência Geral da UNESCO - Paris, 1972. Promulgada no Brasil em 1977 (Geisel) 1) ante a ameaça de destruição não só pelas causas naturais de degradação mas pelas mudanças sociais e econômicas, e considerando que o desaparecimento de um bem cultural ou natural é uma perda irreparável para a humanidade, propõe-se a adoção de disposições convencionais que estabeleçam um sistema de proteção coletiva de todos os patrimônios de maneira eficaz e moderna. 2) Definições do Patrimônio Cultural e do Patrimônio Natural 2.1) Proteção nacional e internacional dos ... Art. 4 2.2) Obrigações dos Estados Membros: Art. 5 conjunto de medidas (a,b,c,d,e) 3) Criação do Comitê Intergovernamental da Proteção ao Patrimônio Mundial Art. 8º - Criação Art. 9º - Estados Membros, obrigações e representação Art. 10 - Regimento interno Art. 11 - Candidaturas à lista do Patrimônio Mundial; valor universal excepcional; patrimônio em perigo; pedido oficial do país interessado. Art. 13 - Assistência internacional para inclusão em listagem. Cooperação: ICOMOS, ICOROM, VICN Art. 14 - Assistência técnica da UNESCO 4) Fundo para Proteção do Patrimônio Mundial - Art. 19, 20, 21, 22 - Assistência Internacional

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UNESCO - Comitê do Patrimônio Mundial - Diretrizes, 1976 (Revisão 1996) Princípios Gerais - Exigências - Critérios - Procedimento AUTENTICIDADE: Uma das condições sine qua non para inscrição de um bem na lista do Patrimônio Munidal, este tema tem atualmente norteado todas as discussões dos especialistas do ICOMOS, devido aos vários significados que assume nas diferentes línguas dos diversos países membros CARTA DE NARA (Japão 1994) Baseia o conceito de autenticidade na “diversidade cultural dos diversos patrimônios” - diferenças entre Europa e Oriente CARTA DE BRASÍLIA (1995) Analisa “autenticidade“ em diversos aspectos: identidade ou identidades nacionais; mensagem intangível do bem; contexto sócio-cultural; materialidade e tangibilidade do bem; gradação e qualificação das diversas autenticidades; preservação da autenticidade; homogeneização, massificação em oposição às identidades nacionais e regionais CONCLUSÃO As Cartas e a Legislação Brasileira A UNESCO é extremamente rigorosa no que diz respeito à soberania das nações e recomenda cautela e prudência aos órgãos a ela filiados (ICOMOS, ICOROM e UICN). Art. 6º, Conv. 1972. As normas prescritas pelas Cartas Internacionais não têm a força cogente da legislação penal positivadanos códigos de cada país. A tarefa dos Comitês Nacionais do ICOMOS é apelar às instâncias judiciais de seus países. Apresenta-se denúncia de crime de dano ou destruição no Brasil de bens tombados, cabendo ao denunciante (pessoa física em nome da entidade) o ônus da prova (Art. 15 - Código de Processo Penal) (Art. 165 e 166 Código Penal Brasileiro). O mesmo procedimento deve ser adotado nos processos administrativos ou nas lides civis. Recomenda-se consulta jurídica privada, quando a queixa for particular em defesa de lesão ao seu direito personalíssimo (defesa da honra contra calúnia, difamação e injúria - Arts. 138, 139, 140 e parágrafos Código Penal Brasileiro) nos casos de denúncia contra atos do Poder Público, recomenda-se seja acionada a consultoria jurídica da própria instituição acusada de não atender à legislaçào vigente. Nesses casos, devem os autores da queixa atentar para que não sejam cometidos os crimes de denúncia caluniosa ou de exercício arbitrário das próprias razòes (Arts. 339 e 345 do Código Penal Brasileiro). Tantas e tais têm s ido as lesões ao Patrimônio Cultural em todos os países membros do ICOMOS, que advogados presentes à XIª Assembléia representando os países íbero-americanos, redigiram moção (lida em plenário pela Presidente do ICOMOS/BRASIL), solicitando a criação de um Comitê Científico Internacional de Legislação. Acatado o pedido por aclamação, avisamos que esse comitê está sendo organizado pelo Dr. Werner Von Tsütchaler do ICOMOS/ALEMANHA, omde haverá reunião em abril. Deve ser esclarecido que o comitê agrupará os países cujo Direito tenha origem romanística, e portanto legislação codificada. Estados Unidos, Inglaterra,

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Canadá e putros entre os 87 membros do ICOMOS, que possuem sistemas não codigicados, mas jurisprudenciais consuetudinários, deverão agir separadamente. Decreto-Lei 25 (1937) - Breve análise Constituição Federal (1988)

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ASPECTOS JURÍDICO-PROCESSUAIS DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO

Roberto Monteiro Gurgel dos Santos Inicialmente, gostaria de agradecer a Universidade Católica de Goiás, através do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, e ao IPHAN a gentileza do convite. Honra ao Ministério Público Federal e a mim pessoalmente o privilégio de participar deste Simpósio, seja pela qualidade dos expositores - de que certamente destoarei - seja pelo elevado nível de todos os participantes do evento. Para falar o óbvio, é sempre extremamente enriquecedora e profícua a troca de idéias, especialmente quando tem lugar em seu cenário ideal, a Universidade. Na temática que me coube - Aspectos jurídico-processuais da proteção ao patrimônio cultural brasileiro - não optei - e penitencio-me com a organização do seminário e com os que prestigiam com a sua presença se deixei de fazê-lo indevidamente - por uma abordagem acadêmica, que, de resto, seria feita com maior proveito e incomparável proficiência por meus eminentes companheiros de mesa. Optei, dizia, por trazer a vocês - permitam-me tratá-los com a informalidade tão benfazeja ao debate de idéias - um panorama extremamente breve e superficial de como vem se operando concretamente a proteção ao patrimônio cultural brasileiro e ao meio ambiente como um todo. Esclareço, neste passo, que ao longo da exposição muitas vezes me referirei ao ambiente na sua acepção mais ampla, abrangente do patrimônio cultural). Trata-se de panorama traçado, no âmbito federal, a partir do meu dia a dia como Coordenador, modestíssimo, da atuaação do Ministério Público Federal em todo o país nas questões afetas ao meio ambiente e ao patrimônio cultural. Como todos sabem, a Constituição Federal de 1988 confiou ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, outorgando-lhe, dentre muitas outras, a função de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Na ordem constitucional anterior, o Ministério Público Federal fora, essencialmente, sem qualquer demérito para os valorosos colegas que então compunham a instituição - eu mesmo nela ingressei em 1982 -, o representante judicial da União e o titular da ação penal nos crime de competência da Justiça Federal. Titularidade da ação penal que acabou por revelar a figura notável do inesquecível Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, que, ousando resistir em tempos em que a regra era ceder, praticou, como inguém a independência do Ministério Público e cuja morte despertou todos nós para a necessidade de construir uma nova instituição, agora efetivamente voltada para a sociedade e a serviço da sociedade.

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Veio a Assembléia Nacional Constituinte, que, pela feliz conjunção de diversos fatores, consagrou, em dispositivos como os referidos, esse perfil de servidora da sociedade para a instituição ministerial. Neste quadro, o Ministério Público Federal, como todo o Ministério Público, vem procurando, ainda com grandes deficiências e indesculpáveis omissões, desincumbir-se da melhor forma possível das atribuições que lhe cometeu a Constituição relativamente à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis novas atribuições que, saliento, representam hoje o maior atrativo para a opção de tantos novos colegas pela Instituição. Graças à dedicação, firmeza e competência dos colegas presentes em todo o território nacional, a quem homenageio na pessoa dos Procuradores da República no Estado de Goiás como os responsáveis efetivos pela construção do Ministério Público com que todos sonhamos, têm crescido permanentemente as iniciativas na área do patrimônio cultural e na área ambiental como um todo. Não apenas crescido quantitativamente mas também qualitativamente, modéstia à parte. Sim, a despeito de suas muitas imperfeições, as iniciativas ministeriais, em regra, são hoje incomparavelmente melhor instruídas, mais cuidadosamente elaboradas, mais consistentes enfim do que foram no passado. E os seus resultados? Têm crescido na mesma proporção? Sabem todos que não! Os resultados obtidos na via judicial ainda ficam muito aquém do que seria razoável esperar. Onde buscar a causa de tamanho descompasso? Certamente no Ministério Público, que tem longo caminho a percorrer no aprimoramento dos seus desempenhos funcionais. Estamos conscientes disso e todos os esforços estão sendo enviados nesse sentido. Talvez nas deficiências das nossas leis? Alterações e aprimoramentos legislativos, tantas vezes reclamados em decisões judiciais queixosas do direito vigente, serão necessários paramodificar essa situação? Certamente que não. Bem destacou o eminente Professor e Senador Josaphat Marinho, em seminário promovido meses atrás pela Comissão de Direito Ambiental da OAB/DF, de que tive a honra de participar, que já vivemos uma “inflação legislativa”e o que é preciso “interpretar as leis a partir da Constituição e não pensar em mudá-las”. Parcela extremamente significativa do Judiciário, entretanto, lamentavelmente tem se mostrado incapaz de fazê-lo - mesmo em hipóteses em que pouco ou nenhum esforço hermenêutico seria requerido para tanto - precisamente em decorrência de inegáveis resistências aos temas pertinentes aos direitos e interesses difusos em geral. Afloro - bem o sei - tema em relação ao qual existe natural cerimônia mas que é preciso enfrentar, evidentemente colocando-o no elevado plano da discussão de idéias, sem qualquer intenção de críticas pessoais, ainda quando aludido algum caso concreto. Acompanhar, como faço, por dever do ofício de Coordenador, a atuação dos valorosos colegas em todo o país é vê-los quase sempre nadando contra a maré quando não investindo contra inamovíveis rochedos.

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Se no primeiro grau de jurisdição são mais numerosos a cada dia os Magistrados imbuídos do inafastável dever de assegurar proteção a valores que a Constituição - não o IPHAN, não as Universidades, não o Ministério Público, não as ONGs - a CONSTITUIÇÃO considera fundamentais, o panorama nos Tribunais cinjo-me àqueles perante os quais o Ministério Público Federal atua - é, com as exceções de estilo - algumas, aliás, notáveis - francamente desolador. As causas do fenômeno, embora complexas, não parecem difíceis de apontar, decorrendo, originalmente, do modelo tecnoburocrata adotado entre nós para a magistratura e também para o Ministério Público. O juiz consagrado pela nossa sociedade é o homem acima dos conflitos humanos - vejam o paradoxo. Quanto mais impermeável for ao meio em que vive, melhor juiz será nessa visão distorcida. Juiz “asséptico”, impossibilidade antropológica nas palavras de Zaffaroni, em interessante obra publicada há cerca de um ano no Brasil a respeito do Poder Judiciário. A isso acrescente-se a circunstância de uma formação - da geração de hoje nos tribunais - voltada para os direitos e interesses individuais, pouco adequada aos direitos e interesses supraindividuais ou transindividuais que marcam o nosso tempo. Neste ponto, gostaria de ilustrar com um exemplo, que me parece muito relevante, de um lado, as dificuldades com que se depara o Ministério Público Federal para fazer transitar perante o Judiciário os temas pertinentes aos direitos e interesses difusos e, de outro, a aplicação, segundo entendo, limitada pelo Judiciário das normas de proteção ao patrimônio cultural e ao ambiente como um todo. Prevê a norma do $ 1° do art. 12 da Lei n. 7.347/85, a lei da ação civil pública, a possibilidade de, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada, o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar concedida, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública. Sem qualquer sabor de novo, a norma reproduz praticamente em, todos os seus termos a disposição do art. 4° da Lei n. 4.348, editada em, 26/6/64, nos albores da ditadura militar, cuja constitucionalidade foi mais de uma vez questionada e que acabou ampliada mais recentemente pelo também art. 4° da Lei n. 8.437 de 30/6/92. Pois bem: a aplicação que usualmente tem sido dada ao dispositivo mencionado vem se erigindo em obstáculo virtualmente intransponível à efetividade da tutela jurisdicional dos chamados direitos e interesses difusos. O que vem ocorrendo na quase totalidade dos casos efetivamente relevantes? Concedida a medida liminar, é prontamente requerida a respectiva suspensão, imediatamente deferida quase que invariavelmente à invocação de grave lesão à economia pública decorrente da paralisação da atividade lesiva. Assegura-se, deste modo - confessadamente, algumas vezes - absoluta proteção ao valor economia pública em detrimento da preservação do patrimônio cultural e do meio ambiente, forte em que se cuida de incidente em que o juiz aexercita cognição restrita à verificação da presença dos pressupostos aensejadores da medida excepcional. Não seria imperativo, nesta cognição que é efetivamente restrita, confrontar o valaor da economia públicaa, por exemplo, com os valores que a medida liminar buscou resguardar, especialmente quando de dignidade constitucional estes últimos?

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Antolha-se que sim e, procedido à luz da Constituição tal exame, a conclusão inevitável deverá ser a de que encontram estes em posição proeminente. Confira-se a lição seguinte de José Afonso da Silva: “A Declaração de Estocolmo abriu caminho para que as constituições superveniente reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental entre os direitos sociais do homem, com sua característica de direitos a serem realizados e direitos a não serem perturbados... O que é importante - escrevemos de outra feita - é que se tenha a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as de iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evid6encia, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a qualidade de vida.” (Direito Ambiental Constitucional, 2ª ed., rev., p. 43/44. São Paulo, Malheiros, 1995). Ao negar-lhe primazia, penso que incide a decisão da Presidência do Tribunal em inconstitucionalidade. Quase sempre, porém, é o que infelizmente ocorre, mercê da concepção antes apontada. Este quadro desfavorável tem levado o Ministério Público a voltar-se crescentemente para as possibilidade da via negociada, mesmo porque a experiência vem demonstrando o acerto do que há muito lembrava Edis Milaré: haverá casos em que a não celebração do acordo iria contra a tutela do interesse público difuso objetivado”. Assim, no Ministério Público Federal, temos falado mais e mais em desjudicializar sempre que possível as iniciativas no campo do patrimônio cultural e no meio ambiente como caminho para viabilizar resultados que certamente não serão os ideiais mas que, muito provavelmente, traduzirão uma proteção mais efetiva e imediata desses valores do que aquela que talvez viesse a ser obtida na via judicial. A celebração dos compromissos de ajustamento de conduta, prevista no art. 5°, $ 3°, da Lei n. 7.347/85, têm proporicionado se não os resultados ideais, até porque envolve a idéia de transação - que sei gerar perplexidades em se cuidando de direitos indisponíveis - progressos significativos e viáveis, que enfatizam, em minha opinião, a sua conveniência. Este panorama - não muito animador, reconheço - da proteção ao patrimônio cultural brasileiro que trago a debate nesta oportunidade tão preciosa e que pode ser

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sintetizado em poucas palavras: via judicial com dificuldades extraordinárias, especialmente a partir do segundo grau de jurisdição; consequente tendência à desjudicialização das iniciativas e via extrajudicial ou negociada com perspectivas favoráveis. Assinalo, por último, que, não obstante essas perspectivas favoráveis da via negociada, tenho como primordial modificar a situação relativamente à via judicial, inevitável em muitas hipóteses. É urgente modificá-la, é urgente que a sociedade, pelos seus organismos mais atuantes, entre os quais desponta a Universidade, trabalhe concreta e constantemente para sensibilizar o Judiciário, como fez com o Ministério Público, da relevância abasoluta desses temas. Mostra-se absolutamente indispensável que o Judiciário, ainda nas palavras de Josaphat Marinho, “sob inspiração da sociedade, seja conduzido a dar uma aplicação mais ampla, menos formal, mais humanista, à legislação existente”. “Nem o juiz que resolva os conflitos como se não existente a lei nem o juiz que deixe de lado totalmente as consequências de suas sentenças”. Precisamos do Juiz consciente do seu papel político. Afinal, “quanto mais consciente seja o poder judiciário acerca do seu papel político, mais idôneo será para cumprí-lo e, assim, desempenhar as suas funções, que são sempre políticas”(Zaffaroni). Somente este Juiz poderá ser cumplice - cúmplice mesmo, por que não? - da sociedade na defesa efetiva do patrimônio cultural e do meio ambiente como um todo, desinstalando conceitos arraigados e concretizando um pensar novo que viabilize também no âmbito judicial as iniciativas dos diversos atores sociais - o Ministério Público, entre eles.

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AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS NORMAS AMBIENTAIS Helita Barreira Custódio I - INTRODUÇÃO Para melhor compreensão sobre a abrangência do conteúdo e do alcance das normas de proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro integrantes da Constituição Federal e do direito Ambiental, direta e indiretamente relacionadas com a Política de Desenvolvimento Urbano, com a Política Agrícola, com a Política das Atividades Econômicas e com a Política em Defesa e Preservação dos Valores Culturais de nosso País, tornam-se oportunas breves noções, notadamente, sobre meio ambiente (com seus recursos naturais e culturais), sobre Patrimônio Cultural Brasileiro (em confronto com as inquietantes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais ou imateriais ali componentes), sobre o Direito como princípios e normas disciplinadoras de condutas ou de atividades das pessoas (físicas e jurídicas de direito público ou de direito privado) e sobre o Direito Ambiental como novo e relevante ramo do Direito. 1. Noções de Meio Ambiente Para os fins protecionais, a noção de meio ambiente é muito ampla, abrangendo todos os bens naturais e culturais de valor juridicamente protegido, desde o solo, as águas, o ar, a flora, a fauna, as belezas naturais e artificiais, o ser humano, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico, monumental, arqueológico, além das variadas disciplinas urbanísticas contemporâneas. 15 Considera-se o meio ambiente humano o conjunto das condições naturais, sociais e culturais em que vive a pessoa humana e são suscetíveis de influenciar a sua existência. 16 O meio ambiente “é tudo aquilo que nos cerca”. O meio ambiente não é “uma experiência utopística, mas um direito para cada pessoa humana”. 17 “O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida humana “. 18 Não resta dúvida de que ampla é a noção do meio ambiente, uma vez que abrange, sem exceção, todos os recursos naturais e culturais (nestes compreendidos os artificiais) indispensáveis à concepção, à germinação ou a qualquer outra circunstância originária, ao nascimento, ao desenvolvimento e à preservação da vida em geral, tanto da pessoa humana como dos seres vivos em geral (animais e vegetais). Como definição legal, “entende-se por meio ambiente: o conjunto de condições, leis, influência e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, considerando-se, ainda, o P. Salvatore, Tutela Pubblica dell‟Ambiente, in Rassegna Semestrale dell’Unione Nazionale Avvocati degli Enti Pubblici, Roma, 1975: 343. V. nossa tese, Autonomia do Município na Preservação Ambiental, Ed. Resenha Universitária, São Paulo, 1976, p. 1 e ss. 15

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Guido-Colombo, Dizionario di Urbanistica, Pirola, Milano, 1981: 12. Amedeo Postiglione, Manuale dll’Ambiente - Guida alla Legislazione Ambiental, La Nuova Italia Scientifica-NIS, Roma, 1986: 16. 18 José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, RT, São Paulo, 1981: 435. 17

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“meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo” (Lei n.º 6.938, de 31.8.81, arts. 3º, I, e 2º, I). Trata-se de ampla definição legal, pois atinge “tudo aquilo que permite a vida, que a abriga e rege”, abrangendo “as comunidades, os ecossistemas e a biosfera”.19 Constitucionalmente, o meio ambiente, ecologicamente equilibrado, constitui direito de todos, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e à coletividade (todas as pessoas físicas e jurídicas, estas de direito privado com ou sem fins lucrativos) o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presente e futuras gerações (CF, art. 225). 2. Noções de Patrimônio Cultural Brasileiro e inquietantes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais ou imateriais ali integrantes Em princípio, sem entrar nas particularidades doutrinárias, considera-se patrimônio cultural o conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, decorrentes tanto da ação da natureza e da ação humana como da harmônica ação conjugada da natureza e da pessoa humana, de reconhecidos valores vinculados aos diversos e progressivos estágios dos processos civilizatórios e culturais de grupos e povos. Integrado de elementos básicos da civilização e da cultura dos povos, o patrimônio cultural, em seus reconhecidos valores individuais ou em conjunto, constitui complexo de bens juridicamente protegido em todos os níveis de governo, tanto nacional como internacional. Perante o Direito Internacional, de acordo com a convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, aprovada pelo Dec. Legislativo n.º 74, de 30.6.77, e promulgada pelo Decreto n.º 80.978, de 12.12.77, consideram-se, como patrimônio cultural: a) “os monumentos: compreendendo as obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; b) os conjuntos: compreendendo grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; c) os lugares notáveis: compreendendo as obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico” (art. 1º). Tratando-se de noção interdependente, consideram-se, como patrimônio natural: a) “os monumentos naturais: constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações, ou tenham valor excepcional do ponto de vista estético ou científico; b) as formações geológicas e fisiológicas: bem como as áreas nitidamente delimitadas, que constituam o habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas e que tenham valor excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural” (art. 2º). De forma harmônica com as normas internacionais, abrangente é o conteúdo do conceito de patrimônio cultural brasileiro introduzido inovatoriamente pela vigente Constituição, segundo a qual: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos 19

Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, RT, São Paulo, 1982: 4.

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formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:” I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (CF, art. 216). Pelo amplo conteúdo e abrangente alcance do conceito constitucional, torna-se patente que a enumeração, que define os bens e valores culturais integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, é apenas exemplificativa e nunca taxativa, uma vez que ali se compreendem outros valores culturais, como aqueles integrantes do Patrimônio Antropológico, do Patrimônio Espeleológico, dentre outros, do País (CF, art. 216 c/c arts. 23, I, III, IV, V, VI, VII; 24, VII; 225). O abrangente conceito constitucional de Patrimônio Cultural Brasileiro 20 compreende o Patrimônio Cultural de todas as Unidades da Federação (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), advertindo-se que qualquer conduta ou atividade lesiva ao patrimônio cultural local, distrital ou estadual constitui crime e dano contra o próprio Patrimônio Nacional, sujeitando-se os infratores (pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado) às ajustáveis sanções administrativas, penais e civis (CF, art. 225, § 3º, c/c art. 216, § 4º). Com estas sucintas noções, é oportuno relembrar, ainda que brevemente, as inquitantes e crescentes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais e imateriais integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro. Neste sentido, graves e prejudiciais aos valores culturais são os impactos de natureza ambiental e cultural decorrentes notadamente da execução de projetos de serviços, construções, obras ou extrações de interesse público ou particular, da realização de atividades industriais ou comerciais, da exploração ou utilização de recursos naturais (águas, solo e subsolo, ar, flora, fauna), da aplicação maciça de agrotóxicos, seus afins e componentes na agricultura, nos alimentos e bebidas em geral, além de outras condutas ou atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, sem as medidas preventivas ajustáveis, sem os competentes estudos de impacto ambiental, relatórios de impacto ambiental e avaliação de impacto ambiental, tudo constituindo efetivos e iminentes riscos e danos ao patrimônio ambiental brasileiro e, consequentemente, ao Patrimônio Cultural Brasileiro.21 3. Noções do Direito como princípios e normas disciplinadores de condutas das pessoas (físicas e jurídicas) Em ampla noção, o Direito, objetivamente considerado (norma agendi), define-se como complexo de regras impostas coativamente pelo Poder Público competente e disciplinadoras da condutas das pessoas (físicas ou jurídicas) na vida social. como regra social de conduta obrigatória, mediante sanção, para a ordem e o equilíbrio de interesses na própria sociedade, a finalidade fundamental do Direito é aquela de assegurar a “pacífica convivência” da vida social, o que só será possível mediante a realização de “dois objetivos essenciais: aquele da certeza do direito e

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Sob este aspecto, reporta-se às oportunas observaçòes de Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, 6ª ed., Malheiros, São Paulo, 1996: 647 e ss. 21 Reporta-se à bibliografia científica citada em nossos trabalhos, sobre graves denúncias e preocupações da comunidade científico-jurídida: Avaliação de Impacto Ambiental no Direito Brasileiro, in RDC 45: 68-105, Ed. RT, São Paulo, 1988; Legislação Brasileira do Estudo de Impacto Ambiental: Uma visão multidisciplinar, organização de Sâmia Maria Taud, 2ª ed., Ed. UNESP, São Paulo, 1995: 44-64; Monumentos Históricos, Artísticos e Naturais, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 53: 222, Ed. Saraiva, São Paulo: 222-239; Clayton F. Lino e João Allievi, Cavernas Brasileiras, Ed. Melhoramentos, São Paulo, 1980: 157 e ss.

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aquele da certeza da observância do próprio direito”22 Neste sentido, salienta a doutrina que a noção do Direito, partindo originalmente da natureza humana, alcança a organização social e visa à disciplina das condições de coexistência e aperfeiçoamento, tanto dos indivíduos, como dos grupos sociais e da sociedade. Disciplinando a vida social, o Direito não abandona o ser humano à sua própria sorte, mas lhe proporciona condições para sua perfeição, seu desenvolvimento e seu progresso, tanto de sua vida física e psíquica, como de sua própria vida social. Essencialmente decorrente da natureza humana, o Direito é uma força social em sua origem, em sua natureza e em sua finalidade. Como princípio de adequação do homem à vida social, num dinâmico processo social de adaptação, a causa final do Direito é a consecução da Justiça 23 à realização do bem comum. Noções do Direito Ambiental como novo ramo do Direito. Em princípio, com base nas expressas normas constitucionais e legais vigentes, numa tentativa preliminar de noção genérica da complexa matéria integrante, considera-se Direito Ambiental o conjunto de princípios e regras impostos, coercitivamente, pelo Poder Público competente e disciplinadores de todas as atividades direta ou indiretamente relacionados com o uso racional dos recursos naturais (ar, águas superficiais e subterrâneas, águas continentais ou costeiras, solo, espaço aéreo e subsolo, espécies animais e vegetais, alimentos e bebidas em geral, luz, energia), bem como com a promoção e proteção dos bens culturais (de valor histórico, artístico, arquitetônico, urbanístico, monumental, paisagístico, turístico, arqueológico, paleontológico, ecológico, científico), tendo por objetivo a defesa e a preservação do patrimônio ambiental (natural e cultural) e por finalidade a incolumidade da vida em geral, tanto a presente como a futura. Como novo e relevante ramo integrante do Direito, o Direito Ambiental, de natureza interdisciplinar e multidisciplinar, além de suas normas de caráter essencialmente preventivo, contém, como todo ramo do Direito, normas de caráter sancionador aplicáveis contra qualquer lesão ou ameaça a direito juridicamente protegido e relacionado, direta ou indiretamente, como o patrimônio ambiental ecológica e culturalmente equilibrado (tanto o natural como o cultural), no interesse de todos, indistintamente. Conteúdo e alcance das normas jurídicas integrantes do Direito Ambiental. É sempre oportuno evidenciar que a legislação protecional, integrante da Política Nacional do Meio Ambiente, pelas sua natureza interdisciplinar e multidisciplinar, compreende normas de diversos ramos da Ciência Jurídica. Assim é que, pela própria evidência dos elementos integrantes do meio ambiente, o conteúdo e o alcance da legislação protecional correlata, além das básicas normas jurídicas constitucionais (art. 225, §§ 1º 6º, c/c arts. 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, 24, I, VI, VII, VIII, 170, III, V, VI, 200, 216, §§ 1º a 5º, dentre outras) e legais (Lei n.º 6.938, de 31.8.81, com a respectiva legislação anterior e posterior à sua vigência), ora integram normas notadamente do Direito Urbanístico, com sua legislação de uso e ocupação do solo, do Código Florestal, do Código de Águas, do Código de Proteção à Fauna (terrestre e aquática), do Direito Agrário com as normas do Estatuto da Terra e legislação complementar, ora se relacionam direta ou indiretamente com normas do Código de Mineração, do Código Civil (Direto das Coisas - Direito da Propriedade), 22

Paolo Barile - Istituzione di diritto pubblico, 2ª ed., CEDAM, Padova, 1975: 3; Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., Francisco Alves, São Paulo/Rio de Janeiro/Belo Horizonte, 1955: 11. Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, v. 1, 3ª ed., trad. do original italiano por Ary dos Santos, Saraiva, São Paulo, 1971: 15 e ss. 23 Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, 2ª ed., v. I, t. I, Resenha Universitária, São Paulo, 1976: 3, 18, 19.

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do Código da Saúde Pública, Código de Proteção ao Consumidor, Código Tributário, Código Penal, Direito Administrativo, Direito Econômico, dentre outros ramos do Direito (Público ou Privado). Evidentemente, as genéricas noções previstas, além de contribuírem para a formação profissional nos diversos ramos da Ciência e para a consciência pública em geral, indicam a conduta legítima e oportuna das pessoas (físicas e jurídicas) à defesa e à preservação dos direitos referentes à vida, à saúde, à segurança, à liberdade, à propriedade, ao sossego, ao trabalho, à cultura, direitos estes diretamente relacionados tanto com o Direito Ambiental como com as normas de proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro, todos constitucionalmente garantidos ao bem-estar das presentes e futuras gerações. II - NORMAS JURÍDICAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO Dentre as normas jurídicas constitucionais, legais e regulamentares integrantes da Constituição Federal e do Direito Ambiental, direta e indiretamente relacionadas com a proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro, destacam-se as seguintes: 1. Normas jurídicas constitucionais A vigente Constituição Brasileira, reafirmando e ampliando as normas da Política Nacional do Meio Ambiente, introduz, de forma inovatória, relevantes e oportunas regras conciliatórias do desenvolvimento sócio-econômico-agráriourbanístico com a defesa e a preservação do patrimônio ambiental (natural e cultural), evidenciando-se, dentre as normas mais significativas, aplicáveis direta ou indiretamente à questões ambientais, aquelas sobre: a) Organização políticoadministrativa; b) Competência das Unidades da Federação em matéria ambiental; c) “Princípios gerais da atividade econômica a serem observados para a conciliação do desenvolvimento sócio-econômico-urbanístico-agrícola com a proteção ambiental. a) Organização político-administrativa. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos (art. 18). b) Competência das unidades da federação em matéria notadamente ambiental, econômica e cultural. Dentre as atribuições as Unidades da Federação, direta e indiretamente relacionadas com a proteção do meio ambiente, com reflexos às questões econômicas, agrárias, urbanísticas e culturais, destacam-se as seguintes: Competência exclusiva da União. A Constituição define a competência da União para, dentre outras prerrogativas: elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações, evidenciando-se a previsão de incentivos às regiões de baixa renda (art. 21, XVIII c/c art. 43, §§ 2º, IV, e § 3º); instituiu sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso (art. 21, XIX); instituir diretrizes básicas para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX); explorar os serviços e as instalações nucleares de qualquer natureza e exercer o monopólio sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e 221

reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os princípios e as condições, segundo os quais: a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional; b) sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a utilização de radio-isótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais, e atividades análogas: c) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa (art. 21, XXIII, a,b,c); estabelecer em áreas e as condições para o exercício da garimpagem, em forma associativa (21, XXV). Competência privativa da União. Estabelece a vigente Constituição que compete privativamente à União legislar, dentre outras matérias: sobre direito civil (propriedade imóvel, com seu solo e respectivos acessórios naturais e artificiais), direito agrário, com a previsão de diretrizes de desenvolvimento urbano e de planejamento agrícola de utilização racional dos recursos naturais disponíveis e de preservação do meio ambiente (CF, art. 22, I, c/c arts. 182, 184, 186, 187); sobre águas (art. 22, IV); sobre recursos minerais (22, XII); geologia (22, XVIII); atividades nucleares de qualquer natureza (22, XXVI); sobre meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (CF, art. 22, XXIX, c/c art. 220, §§ 3º, II, 4º); sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e pelas empresas sob seu controle (art. 22, XXVII); sobre normas gerais referentes à utilização racional da floresta Amazônica brasileira, da Mata Atlântica, da Serra do Mar, do Pantanal MatoGrossense, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, bem como sobre a definição de localização de usinas que operem com reator nuclear (art. 225, §§ 4º, 6º). Competência privativa dos Estados-membros. Da mesma forma, a competência privativa do Estado-membro para sua auto-organização é assegurada e garantida pela Constituição Federal, demonstrando-se, de acordo com a regra geral, que: “Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição” (art. 25). O princípio fundamental para sua auto-organização é o próprio princípio constitucional da autonomia das Unidades da Federação já citado. Complementando a regra geral, acrescenta a Carta Magna que: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição” (art. 25, § 1º). “Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”(art. 25, § 3º). A matéria ambiental, de interesse direto e imediato ao equilíbrio ecológico do território estadual, à saúde, à segurança, ao sossego, ao trabalho, à cultural e ao bem-estar da população, logicamente de evidente interesse regional, constitui assunto de competência do Estado-membro, por força da expressa regra geral do art. 25 da Constituição. Evidencia-se, ainda, que a matéria ambiental, além de não ser vedada (não ser proibida) pelas normas constitucionais (arts. 18, § 4º, 23, I-in fine, III, IV, VI, VII; 24, VI, VII, VIII; 170, VI; 174; 200, I a VIII; 216; 225, §§ 1º, 2º, 3º, 5º), constitui, de forma preventiva e 222

obrigatória, assunto de planejamento indispensável ao controle e à fiscalização do uso racional dos recursos naturais, bem como à promoção e à proteção dos bens de valor cultural, visando à defesa do patrimônio ambiental, tanto o natural como o cultural, no interesse de todos. Competência privativa do Distrito Federal. Integrando a organização políticoadministrativa do Brasil, a Constituição assegura expressamente a autonomia do Distrito Federal (art. 18), para o qual são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados-membros e aos Municípios (art. 32, § 1º). A matéria ambiental, de interesse direto e imediato ao equilíbrio ecológico do território distrital, à saúde, à segurança, ao sossego, ao trabalho, à cultura e ao bem-estar da população, constitui assunto de inequívoca competência do Distrito Federal, por força das expressas regras constitucionais (CF, art. 18 c/c art. 32). Competência privativa dos Municípios. Dentre as normas constitucionais relevantes sobre as atribuições municipais de interesse ambiental e cultural, de competência privativa, destacam-se, particularmente, aquelas, segundo as quais compete aos Municípios: legislar sobre assuntos de interesse local (logicamente, em seus diversos aspectos sócio-econômico-urbanístico-ambiental-culturais - CF, art. 30, I); instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas (art. 30, III); organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local (incluídos aqueles de defesa e preservação dos recursos naturais e dos bens de valor cultural - CF, art. 30, V): promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do parcelamento, da ocupação e do uso do solo urbano (incluindo-se o zoneamento ambiental, com a previsão de todos os recursos ambientais e culturais integrantes do território do Município, para fins de preservação, no interesse de todos - CF, art. 30, VIII). Neste sentido, observa-se a relevância das normas do art. 182 da Constituição, referentes à política urbana a ser executada pelo Poder Público municipal, mediante plano diretor obrigatório aos Municípios com dicade de população superior a vinte mil habitantes e facultativo aos demais que não atendam ao requisito constitucional. O plano diretor, como plano urbanístico geral a nível local, deverá conter diretrizes aplicáveis a todos os usos suscetíveis na totalidade do território de cada Município, inclusive a atividades agropecuárias e florestais, tudo de acordo com as peculiaridades locais e com as respectivas zonas de uso ajustáveis. Sem prejuízo de normas mais restritivas e ajustáveis às peculiaridades de cada zona de uso, as diretrizes do plano diretor devem compatibilizar-se com as normas gerais da lei federal sobre Direito Urbanístico (CF, art. 24, I, § 1º), bem como com as diretrizes gerais da lei federal sobre desenvolvimento urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos (CF, art. 21, XX, dentre outras diretrizes aplicáveis), além de outras regras gerais previstas nas normas constitucionais (CF, arts. 21, XI; 22, I, IV, XII, dentre outras). Competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (executiva), de forma cooperativa, sobre expressas e implícitas providências tutelares ambientais, para a conservação do patrimônio público dos respectivos territórios. Trata-se de competência sobre assuntos de interesse comum das Unidades da Federação, em igualdade de condições, observando-se, todavia, as normas para a cooperação, estabelecidas em lei complementar federal, sem

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interferências nas respectivas competências. Como atribuições de natureza executiva, evidenciam-se, dentre os poderes de competência comum, relacionados com a proteção do patrimônio ambiental e cultural, os seguintes: conservar o patrimônio público (nos âmbitos nacional, estadual, distrital e municipal) (art. 23, I); cuidar da saúde e da assistência pública (a melhoria da qualidade de vida interessa à saúde de todos), compreendendo o sistema único de saúde, com atribuições, dentre outras, para: fiscalizar e inspecionar alimentos, bebidas e águas para guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o meio ambiente do trabalho (art. 23, II, c/c os arts. 30, VII, 195 a 199, 200, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII); proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos, bem como impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (art. 23, IV, V, c/c os arts. 215 e 216); proporcionar os meio de acesso à cultura, à educação e à ciência (art. 23, V, c/c os arts. 30, VI, 205 a 214-educação; 215 e 216-cultura; 217-desporto; 218, 219-ciência e tecnologia); proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI, c/c arts. 200, VIII, 225): preservar as florestas, a fauna e aflora (art. 23, VII, c/c art. 225, § 1º, VII); fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar (art. 23, VIII, c/c art. 200, VI); promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX, c/c art. 200, IV); combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (art. 23, X, c/c arts. 3º, III, IV, 170, VII)24; registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (art. 23, XI, c/c o art. 20, § 1º). Além das relevantes atribuições comuns definidas constitucionalmente, a Magna Carta, de forma inovatória, consagra um capítulo especial, referente à proteção do meio ambiente (art. 225 ). O meio ambiente, ecologicamente equilibrado, constitui direito de todos, sem exceção, considerado bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações. Para assegurar a efetividade deste importante direito, incumbe ao Poder Público ( União, Estados. Distrito Federal e Municípios): preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais, bem como prover o manejo ecológico das espécies e dos ecossistemas ( art. 225, § 1º, I ); preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País, bem como fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético ( § 1º, II ); definir, em todas as Unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos ( § 1º,III ); exigir, na forma da lei, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, para instalação de obra e atividade potencialmente degradadora do meio ambiente ( § 1º, IV ); controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos, e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente ( Trata-se de oportuna norma constitucional aplicável à solução do grave problema da “forçada migração interna”, de competência comum a todos os governos, no sentido de promover e oferecer condições mínimas (de trabalho, saúde, moradia, alimento, educação, lazer) para a fixação da pessoa humana em sua zona urbana, de expansão urbana ou zona rural de origem, visando a erradicar a pobreza e a marginalização das pessoas, notadamente nos grandes centros urbanos. Neste sentido, reporta se à nossa tese: “Força da migração interna e degradação sócio-ambiental das cidades brasileiras”, in Boletim de Direito Administrativo, n.º 6/431, Editora NDI Ltda., São Paulo, 1988. 24

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§ 1º, V ); promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização e o emprego pública para a preservação do meio ambiente ( § 1º, VI ); proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou a submetam os animais a crueldade ( § 1º, VII ). Dentre outras relevantes normas, evidenciam-se, ainda, aquelas que dispõe sobre: a obrigatoriedade para recuperar o meio ambiente degradado, por parte do explorador de recursos minerais ( art. 225, § 2º ). Competência concorrente da União; dos Estados - Membros ( incluindo a dos Municípios integrantes dos Estados e dos territórios sobre matérias específicas de interesse local) e com o Distrito Federal. A competência legislativa concorrente das Unidades da Federação é definida pelas expressas normas constitucionais, segundo as quais: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre”, dentre outras matérias enumeradas nos incisos I a XVI: direito urbanístico, direito tributário ( art. 24, I ); florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição ( art. 24, VI ); proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII ); educação, cultura, ensino e desporto ( art. 24, IX ); previdência social, proteção e defesa da saúde ( art. 24, XII). Não obstante o silêncio da norma constitucional no tocante aos Municípios, evidencia-se que a competência legislativa concorrente da União, com os Estados e o Distrito Federal inclui implicitamente os Municípios, como importante Unidade da Federação, autônoma e integrante da organização políticoadministrativa da República Federativa do Brasil ( C, art. 18), no tocante às matérias notadamente urbanísticas, tributárias, ambientais, culturais, sanitárias, matérias estas de seu inequívoco interesse local ( art. 24, I, VI, VII, VIII, IX, XII). Assim é que, por força das expressas normas constitucionais, observadas as normas gerais da Lei de competência da União, ou inexistindo a lei federal, as normas gerais de competência estadual ( onde se encontra o Município ), a competência legislativa concorrente do Município, para legislar sobre específicas matérias de seu evidente interesse local corrente, justifica-se constitucionalmente, mediante interpretação científica em conjunto, das normas do art. 24, I, VI, VII, VIII, IX, XII, combinadas com as normas notadamente dos arts. 18 (autonomia); 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI ( competência comum da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios ); 29, 30, I, III, V, VIII ( competência privativa do Município pata legislar sobre lei Orgânica e matéria de interesse local ); 145 ( competência tributária das Unidades da Federação ); 156 (competência tributária do Município ); 174 ( planejamento obrigatório do Poder Público ); 180 ( competência do Município para política de desenvolvimento urbano plano diretor, ou seja, plano urbanístico geral do Município ); 196 a 200 ( competência do Poder Público no setor de saúde); 215, 216 ( competência do Poder Público para a proteção do patrimônio cultural ); 225 ( meio ambiente - dever do Poder Público, União, Estados - membros, Distrito Federal e Municípios - para defendê-lo e preservá-lo para as futuras e presentes gerações. Competência suplementar da Unidade da Federação ( Legislativa ) sobre matéria de seu mediato interesse. Por princípio de ordem geral referente à

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autonomia constitucional típica do regime federativo, qualquer uma das Unidades da Federação tem competência suplementar sobre determinada matéria de competência privativa ou de competência concorrente de outra Unidade Federada, dependendo das circunstâncias e das respectivas peculiaridades. Assim é que, dentre as expressas e implícitas normas constitucionais definidoras da competência suplementar, destacam-se as seguintes: No tocante à competência suplementar dos Estados - membros, a nova Constituição, definindo a competência privativa da União sobre assunto imediato interesse de aplicação nacional, prevê a competência suplementar dos Estados sobre questões específicas das matérias relacionadas no art. 22, de acordo com autorização expressa em lei complementar federal (C., art. 22, parágrafo único ). Em relação à competência concorrente da União limitada ao estabelecimento de normas gerais, por força da norma constitucional, tal competência não exclui a competência suplementar dos Estados para legislar sobre todas as matérias relacionadas no art. 24 ( § 2º ). A competência suplementar do Distrito Federal se encontra implicitamente prevista nas normas do art. 32, combinadas particularmente com as normas dos arts. 22, parágrafo único, 24, § 2º e 32, § 1º, da Constituição Federação, referentes às competências legislativas suplementares reservadas aos Estados - membros e aos Municípios, em vinculação às competências privativa ( C., art. 22 ) e concorrente ( C., art. 24 ) da União. Quanto à competência suplementar dos Municípios, está expressamente prevista na norma constitucional, segundo a qual compete aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber ( C., art. 30, II ). Pela abrangência da expressão “no que couber”, patente é a competência do Município para legislar suplementarmente sobre matérias relacionadas com os recursos ambientais e culturais, de qualquer natureza, diante de atividades ou condutas comprometedoras da qualidade ambiental local. No tocante ao patrimônio histórico - cultural local, compete ao Município promover a sua proteção, observadas a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual ( C, art. 30, IX ). Trata-se de patrimônio histórico - cultural que, apesar de localizado no território do Município, se refere direta e imediatamente à história e à cultura do Brasil, em seu todo, como, por exemplo, o Monumento do Ipiranga, ou com a história e a cultura do Estado - membro. Assim, se trata de assunto histórico - cultural apenas de ordem estritamente municipal, a competência, logicamente, para promover a sua proteção é a privativa do próprio Município, diante do evidente interesse local, de forma direta ou imediata. Se se trata de assunto histórico - cultural de interesse comum de todas as Unidades da Federação, observadas as normas gerais da cooperação estabelecidas pela lei complementar federal, a competência para a sua proteção é a comum dos Municípios, da União, dos Estados e do Distritos Federal. c) Princípios gerais da Atividade econômica a serem observados para a conciliação do desenvolvimento sócio - econômico - urbanístico - agrícola com a proteção ambiental (natural e cultural). Diante da degradação ambiental do momento, a Constituição, objetivando a conciliação do desenvolvimento sócio econômico com a preservação ambiental, estabelece relevantes princípios, visando a assegurar a todos existência digna. Dentre os princípios relacionados com a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, destacam-se os seguintes a serem necessariamente observados: propriedade privada (art. 170, II ); função social da

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propriedade, pública ou privada ( art. 170, III ); defesa do consumidor (art. 170, V ); defesa do meio ambiente ( art. 170, VI ); redução das desigualdades regionais sociais ( art. 170, VII, os arts. 3º, III, IV, 23, X ). O Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e de planejamento, sendo este obrigatório para o setor público e indicativo para o setor privado ( art. 174 ). Neste sentido, é oportuno salientar que todas as atividades transformadoras dos recursos naturais e culturais se sujeitarão às normas de proteção do meio ambiente, sendo sempre precedidas de adequado planejamento, de prévio estudo de impacto ambiental e indispensável licenciamento, obrigatorieades estas extensivas tanto às atividades agroindustriais, agropecuariárias, pesqueiras e florestais, como às atividades exploradoras de recursos minerais em geral ( C, art. 225, § 2º ) e à atividade garimpeira de recursos minerais em cooperativas ( C., art. 175, § 3º ). A união, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico ( art. 180 ), evidentemente de forma compatível com a preservação do patrimônio ambiental, tanto o natural como o cultural ( C, art. 170, VI ). 2. Normas jurídicas Legais e Regulamentares Integrantes do Direito Ambiental. Considerando-se os textos e as normas integrantes da legislação ambiental brasileira de período anterior à Lei geral ambiental n.º 6.938, de 31-08-81, e do período posterior a partir da vigência deste diploma legal, em ordem cronológica dos textos básicos, destacam-se, dentre outras regras jurídicas legais e regulamentares, direta e indiretamente relacionadas com o assunto em consideração, as seguintes: a) Legislação Ambiental do Período Anterior à Geral n.º 6.938, de 31-08-81: Lei n.º 3.071, de 01-01-16 ( Código Civil ): arts. 15, 159 ( responsabilidade civil ); arts. 43 a 46 ( bens imóveis - solo com sua superfície, seus acessórios, suas adjacências, o espaço aéreo, o subsolo ): arts. 554 a 591 ( direitos de vizinhança ); art. 646 ( copáscuo ); arts. 713 a 716 ( usufruto sobre bens móveis ou imóveis ); arts. 863 a 1571 ( direito das obrigações ); Decreto n.º 24.114, de 12-04-34 - Aprova Regulamento de Defesa Sanitária Vegetal; Port. MARA n.º 148, de 15-06-92, sobre aprovação das Normas e Procedimentos Quarentenários de Intercâmbio Internacional de Vegetais e Solo, para pesquisa e outros fins científicos ( revoga a Port. n.º 1.111, de 07-12-78 ); Decreto n.º 24.634, de 12-04-34 ( Código de Águas ), com as alterações do Dec. Lei n.º852, de 11-11-38; Dec. Lei n.º 25, de 30-11-37 ( Patrimônio Cultural: Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ), com as alterações, notadamente, da Lei n.º 3.924, de 26-07-61 ( monumentos arqueológicos e pré - históricos ); Lei n.º 8.029, de 1204-90 ( Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural - IBPC ); Lei n.º 8.113, de 1212-90 ( natureza jurídica do IBPC ); Lei n.º 8.313, de 23-12-91 ( Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC - Dec. regulamentar n.º 455, de 26-0292, com as alterações posteriores ); Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre a criação, na estrutura do Ministério da Justiça, do Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85; Dec. lei n.º 1985, de 29-10-40 ( Código de Minas ), com a nova redação dada pelo Dec. lei n.º 227, de 28-02-67 ( Código de Mineração ) e com as alterações das Leis n.º 7.085/82; n.º 8.982, de 24-1-95; n.º 9.055, de 1-6-95;

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Dec. lei n.º 2.848, de 07-12-40 ( Código Penal ) , arts. 161-II, 163-III, 165, 250 a 259, 270 a 278 ). O anteprojeto do Código Penal - Parte Especial ( D. O.U. de 2810-87, p. 17.793 ) - define os crimes com as respectivas penas contra o meio ambiente e o Patrimônio Cultural ( arts. 401 a 416, 417 a 419 ); Dec. lei n.º 3.365, de 21-06-41 ( desapropriação por utilidade pública ), Lei n.º 4.132, de 10-09-62 ( desapropriação por interesse social ), Lei complementar n.º 76, de 06-07-63 ( Procedimento contraditório especial, rito de sumário, para processo, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária - Revoga o Dec. lei n.º 554, de 25-04-69 ); Dec. lei n.º 8.938, de 26- 01-46 ( regime de combate à peste e das práticas à anti e desratização em todo o País ); Lei n.º 4.504, de 30-11-64 ( Estatuto da Terra ), com as alterações posteriores, particularmente: Lei n.º 4.947, de 06-04-66 ( normas de Direito Agrário - Dec. regulamentar n.º 433, de 24-01-92 ); Lei n.º 5.969, de 11-12-73 ( institui o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária - PROAGRO - com as alterações da Lei n.º 6.685, de 03-09-79, Lei n.º 7.890, de 23-11-89 - Dec. reg. n.º 175, de 10-07-91; Circular do Banco Central n.º 145, de 19-03-92, sobre custo de medição de lavouras e pastagens; Por. Intermin. n.º 242, de 20-03-92, sobre Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentado da Agricultura; Port. MARA n.º 159, de 19-06-92, sobre normas para licenciamento e renovação de licença dos Antimicrobianos de Uso Veterinário, elaboradas pela Secretaria Nacional de Defesa Agropecuária ); Lei n.º 6.225, de 14-07-75 ( planos de proteção do solo e de combate - Dec. regulamentar n.º 77.775, de 08-06-76 ); Lei n.º 6.662, de 25-0679 ( Política Nacional de Irrigação ); Lei n.º 6.746 de10-12-79 ( Altera arts. 49 e 50 do Estatuto da Terra ), Lei n.º 6.751, de 10-12-79 ( Melhoria da Habitação de trabalhadores agropecuários - Res. Do Banco Central n.º 1.898, de 29-01-92 sobre condições para financiamento para habitação rural ); Lei n.º 6.894, de 16-1280 ( inspeção e fiscalização de fertilizantes e outros destinados à agricultura ); Dec. lei n.º 2.431, de 12-05-88 ( altera arts. 27 e 28 do E. T. ); Lei. n.º 7.889, de 23-11-89 ( inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal ); Lei n.º 8.171, de 17-01-91 ( Política Agrícola ); Lei n.º 8.174, de 30-01-91 ( Princípios da Política Agrícola ); Lei n.º 8.177, de 01-03-91 ( Títulos da Dívida Agrária - art. 5º - Dec. regulamentar n.º 578, de 24-06-92 ); Lei n.º 8.135, de 23-12-91 criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural - SENAR ); Lei n.º 8.344, de 27-12-91 ( altera dispositivos sobre a competência do Ministério da Agricultura e da Reforma Agrária ); Lei n.º 8.490, de 19-11-92 ( sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, sobre a denominação do Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária, sobre a criação do Ministério do meio Ambiente, dentre outras inovações, revogando a Lei n.º 8.028, de 12-04-90 ); Lei n.º 8.629, de 25-02-93 ( sobre a regulamentação de dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária ); Lei n.º 8.661, de 02-06-93 ( sobre incentivos fiscais para a capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária ); Lei n.º 4.591, de 16-12-64 ( Condomínio em Edificações e as Incorporações Imobiliárias ); Lei n.º 4.771, de 15-09-65 ( Código Florestal ), com as Alterações e complementações notadamente: Lei n.º 7.754, de 14-04-89 ( proteção de florestas nas nascentes dos rios ); Lei n.º7.875, de 13-11-89 ( Parques nacionais brasileiros - Dec. regulamentar n.º 84.-17, de 21-09-79 ); Lei n.º 7.803, de 18-07-

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89 ( altera dispositivos, define crime contra o meio ambiente e revoga as leis n.º 6.535, de 15-06-78, e n.º 7.511, de 07-07-86 ); Lei n.º 5.108, de 21-09-66 ( Código Nacional de Trânsito - Dec. regulamentar n.º 62.127, de 16-01-68, art. 65, I, II, III ); com as alterações posteriores: Lei n.º 6.731, de 04-12-79; Lei n.º 7.031, de 20-09-82; Lei n.º 8.052, de 20-06-90; Lei 8.102, de 10-12-90; Lei n.º 8.723, de 28-10-93 ( redução de poluentes por veículos automotores ); Lei n.º 5.173, de 27-10-66 ( Plano de Valorização Econômica da Amazônia cria Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM ), com as alterações posteriores: Lei n.º 5.174, de 27-10-66 ( incentivos fiscais em favor da Região Amazônica ); Dec. lei n.º 2.304, de 21-11-86 ( Fundo de Investimento da Amazônia - FINAM ); Dec. lei n.º 2.454, de 19-08-88( prorroga prazo de incentivos fiscais até dezembro de 1993 ); Lei n.º 6.796, de 10-07-89 ( cria a CORPAM); Lei n.º 7.797, de 10-07-89 ( cria o Fundo Nacional de Meio Ambiente, com prioridade a projetos na área de atuação na Amazônia Legal ); Lei comp. n.º 67, de 13-06-91 ( composição do Conselho Deliberativo da SUDAM ); Lei n.º 5.197, de 03-01-67 ( proteção à fauna ), com asa alterações especialmente das Leis n.º 7.584/87; n.º 7.653/88 ( crimes contra a caça e a pesca predatória ); Lei n.º 9.111, de 10-10-95; Dec. lei n.º 200, de 25-02-67 ( Reforma Administrativa ), com as alterações, dentre outras: Dec. lei n.º 900, de 29-09-69; Lei n.º 8.666, de 21-06-93 ( sobre normas para licitações e contratos da Administração Pública - Revoga o Dec. lei n.º 2.300, de 21-11-86, o Dec. lei n.º 2.348, de 24-07-87, dentre outras normas ), com a consolidação determinada pelo art. 3º da Lei n.º 8.883, de 08-06-94 CF, art. 37, XXI ); Dec. lei n.º 221, de 28-02-67 ( Código de Pesca ). Observa-se a extinção da SUDEPE, cujas atribuições foram transferidas para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ( Lei n.º 7.735, de 22-02-89 ). V. Leis n.º 7.643/87; n.º 7.679/88, n.º 9.059, de 13-06-95; Dec. lei n.º 289, de 28-02-67 ( criação do IBDF, hoje extinto, com atribuições transferidas para o IBAMA - Lei n.º 7.732, de 14-02-89 ); Lei n.º 7.735/89. Lei n.º 5.318, de 29-09-67 ( instituição da Política Nacional de Saneamento e criação do Conselho nacional de Saneamento ); Dec. lei n.º 1.117, de 21-06-71 (sobre aerolevantamento no território Nacional); Lei n.º 6.001, de 19-12-73 ( sobre Estatuto do Índio ); Decreto n.º 94.946, de 2309-87 ( regulamenta dispositivos do EI ); Decreto n.º 22, de 04-02-91 ( processo administrativo de demarcação de terras indígenas ); Dec. n.º 24, de 04-02-91 ( sobre ações à proteção do meio ambiente em terras indígenas ); Dec. n.º 25, de 0402-91 ( sobre programas e projetos para assegurar a auto-sustentação dos povos indígenas ); Dec. n.º26, de 04-02-91 ( sobre educação indígena no Brasil ); Dec. n.º 27 de 04-02-91 ( confere à Comissão Especial instituída pelo Dec. n.º 99.971, de 03-01-91, atribuições para propor a revisão do Estatuto do Índio e da legislação correlata ); Lei n.º 6.189, de 16-12-74 ( competência da CNEN ), com as alterações da Lei n.º 7.781, de 27-06-89; Lei n.º 6.453, de 17-10-77 ( responsabilidade civil por danos nucleares e responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares ); Lei n.º 9.112, de 10-10-95; Res. n.º 13, de 04-09-96, de Ministério de Minas e Energia, sobre inspeção de Serviços em Usinas Nucleoelétricas;

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Dec. lei n.º 1.413, de 14-08-75 ( controle de poluição do meio ambiente provocada por atividades industriais ), com as complementações da Lei n.º 6.803, de 02-07-80 ( diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição ); Lei n.º 6.383, de 07-12-76 ( sobre processo discriminatório de terras devolutas da União ); Lei n.º 6.513, de 20-12-77 ( criação de áreas especiais e locais de interesse turístico ); Lei n.º 8.181, de 28-03-91 ( sobre Política Nacional de Turismo - Dec. regulamentar n.º 448, de 14-02-92 ); Lei n.º 8.623, de 28-01-93 ( sobre a profissão de Guia de Turismo ); Lei n.º 6.576, de 30-09-78 ( proibição do abate de Açaizeiro em todo o território nacional ); Lei n.º 6.607, de 07-12-78 ( declara o pau-brasil com árvore nacional e institui o dia nacional do pau-brasil ); Lei n.º 6.766, de 19-12-79 ( parcelamento do solo urbano ); Lei n.º 6.902, de 27-04-81 ( criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental ); Decreto n.º 86.028, de 27-05-81 ( instituição em todo o território nacional da Semana Nacional do Meio Ambiente ); b) Legislação ambiental a partir da publicação da Lei Geral n.º 6.938, de 31.08.81: Lei n.º 6.938, de 31-08-81 ( estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, define seus objetivos básicos à melhoria e à recuperação da qualidade ambiental propícia à vida ). Regulamentada pelo Dec. n.º 99.274, de 06-06-90, com as alterações do Dec. n.º 1.523, de 13-06-95 ( revogação de Dec. n.º 88.351, de 0106-83, e alterações sucessivas. Observa-se que a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente vem sendo objeto de complementações e alterações ajustáveis à nova Constituição, destacando-se, dentre outras, as da Lei n.º 7.804, de 18-07-89, que, com fundamento nos arts. 23, IV, VII, 225 da Constituição, altera, também, disposições das Leis n.º 7.735, de 22-02-89, n.º 6.803, de 02-07-80, n.º 6.902, de 27-04-81; as da Lei n.º 8.490, de 19-11-92, que, dispondo sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, dentre outras alterações, cria o Ministério do Meio Ambiente, com atribuições da extinta Secretária do Meio Ambiente, da Presidência da República - SEMAM - PR, além de revogar expressamente a Lei n.º 8.028, de 12-04-90 ); as da Lei n.º 8.746, de 09-12-93, que altera o nome do Ministério do Meio Ambiente para Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. A Medida Provisória n.º1.038, de 27-06-95, convalidando as Medidas Provisórias a partir da n.º 752, de 05-12-94, altera o referido Ministério para “ Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal” ( além de revogar a Lei n.º 8.490/92 ); Lei n.º 7.347, de 24-07-85 ( ação civil pública de responsabilidade por danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico). Decreto n.º 407, de 27-12-91, regulamenta o Fundo de Defesa de Direitos Difusos referentes às Leis n.º 7.347, de 24-07-85; n.º 7.853, de 24-10-89; n.º 8.078, de 11-09-90; n.º 8.158, de 08-01-91 ( revoga o Dec. 92.302, 16-01-86 ); Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre, sobre criação, no Ministério da Justiça, do Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85;

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Resolução 1, de 23-01-86, do CONAMA ( definição de impacto ambiental e estabelecimento de critérios e diretrizes referentes ao estudo e conseqüente avaliação de impacto ambiental, como um dos relevantes mecanismos da Política Nacional do Meio Ambiente ). Dentre as Normas posteriores complementares, destacam-se: Res. n.º 6, de 24-01-86; Res. n.º 6, de 16-09-87 CONAMA ( estudo de impacto ambiental para empreendimento de energia elétrica ); Res. n.º 6, de 15-06-88 - CONAMA ( controle dos resíduos gerados ou existentes no processo de licenciamento de atividades industriais ); Res. n.º 15, de 07-12-89 - CONAMA ( uso do metanol ). Diante da revogação das Resoluções do CONAMA nele baseadas, devendo novas normas correlatas se ajustarem às normas regulamentares do Decreto n.º 99.274, de 06-06-90, com as alterações do Decreto n.º 99.355, de 27-06-90; Decreto n.º 122, de 17-05-91; Lei n.º 7.661, de 16-05-88 ( Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro ). V. Decretos n.º 96.660, de 06-09-88; n.º 97.686, de 25-04-89; n.º 99.213, de 18-0490; Lei 8.617, de 04-01-93 ( sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental brasileira ); Lei n.º 7.735, de 22-02-89 ( extinção da Secretária Especial do Meio Ambiente SEMA e da SUDEPE ), criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, como entidade autárquica de regime especial, vinculada a secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República. Para o novo órgão foram conferidas as atribuições das extintas SEMA e SUDEPE, bem como da Superintendência da Borracha e do IBDF - Lei n.º 7.732, de 14-02-89 ). Dentre as normas aplicáveis, evidenciam-se as da lei n.º 8.490, de 19-11-92, que, dentre outras disposições, cria o Ministério do Meio Ambiente, extingue a SEMAM/PR, revoga a Lei n.º 8.028, de 12-04-90; Lei n.º 7.803, de 11-07-90 ( pesquisa, experimentação, produção, embalagem, rotulagem, transporte, armazenamento de agrotóxicos e afins ),Decreto regulamentar n.º 98.816, de 11-01-90; Decreto n.º 99.657, de 26-10-90; Lei n.º 9.294, de 15-07-96, sobre restrições a propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, defensivos agrícolas ( Dec. regulamentar n.º 2.018, de 01-10-96; Port. Normativa n.º 84, de 15-10-96 - IBAMA, sobre procedimentos a serem adotados para efeito de avaliação do potencial de periculosidade ambiental de produtos químicos, considerados agrotóxicos, afins e seus componentes ); Lei n.º 7.990, de 28-12-89 ( institui para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, compensação financeira pelo resultado de exploração de petróleo ao gás natural, de recursos hídricos, de recursos minerais em seus respectivos territórios, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva ), com as alterações da Lei n.º 8.001, de 13-03-90 ( Dec. regulamentar n.º 1, de 11-01-91 ); Resolução n.º 2, de 08-03-90 - CONAMA ( institui, em caráter nacional, o Programa Nacional de Educação e Controle da Poluição Sonora - Silêncio ). Lei n.º 8.078, de 11-09-90 ( Código do Consumidor - Proteção do Consumidor ); com as alterações das Leis n.º 8.656, de 21-n.º 806, de 24-04-93 - reorganiza o Fundo Nacional de Saúde ); Decreto 99.540, de 21-09-90 ( Institui Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico - Econômico do Território nacional ), com as alterações do Dec. n.º 237, de 24-10-91; Decreto n.º99.556, de 01-10-90 ( sobre a proteção da cavidades naturais subterrâneas existentes no Território Nacional );

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Lei 8.172, de 18-01-91 ( restabelece o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ); Dec. n.º 99.981, de 09-01-91 ( autoriza a Secretaria de Ciência e Tecnologia a manter programa de cooperação com instituições públicas ou privadas ). Lei n.º 8.429, de 02-06-92, sobre a responsabilidade de servidores públicos em geral por atos ilícitos e prejudiciais ao patrimônio público, incluído o patrimônio ambiental ( natural e cultural ); Port. Normativa IBAMA n.º 77, de 13-07-92, sobre criação de Núcleos de Educação Ambiental - NEA’s, nas Superintendências Estaduais do IBAMA. Resolução CONTRAN n.º 761, de 05-08-92, sobre curso de condutores de veículos que transportam cargas com produtos perigosos. Decreto n.º 750, de 10-02-93 ( sobre o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica, com a revogação do Dec. n.º 99.547, de 25-09-90 ). Lei n.º 8.657, de 21-05-93 ( acrescenta §§ ao art. 27 da Lei n.º 6.662, de 25-06-79, sobre a Política Nacional de Irrigação ); Lei n.º 8.851, de 31-01-94 ( sobre o Plano Diretor para o desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco - PLANVASF; Lei n.º 8.874, de 29-04-94 ( sobre empreendimentos industriais e agrícolas em áreas da SUDAM e SUDENE ); Lei n.º 8.918, de 14-07-94 ( sobre a padronização, a classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas ); Lei n.º 9.005, de 13-03-95 ( sobre a obrigatoriedade da iodação do sal destinado ao consumo humano ); Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre a criação, na estrutura do Ministério da Justiça, do Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85; Lei n.º 8.987, de 13-02-95 ( sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no art. 175 da CF ). Com as alterações da Lei n.º 9.074, de 07-07-95; Lei n.º 9.055, de 01-06-95 ( sobre a extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte de asbesto/amianto e produtos similares, bem como fibras naturais e artificiais de qualquer origem ). Observa-se o grande número de atos normativos ( Decretos, Portarias, Resoluções, Circulares ) relacionados com a proteção do patrimônio ambiental, tanto natural como cultural. III. DEVER E RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DA COLETIVIDADE PARA CUMPRIR, REFLETIR, ADEQUAR E ATUALIZAR AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO INTEGRANTES DO DIREITO POSITIVO. Conforme já se demonstrou no Capitulo II desta palestra, por força das normas jurídicas constitucionais e legais vigentes, expressas são as competências de todas as Unidades da Federação em matéria ambiental ( natural e cultural, do local do trabalho ). Consequentemente, expressos são os deveres e as responsabilidades impostos Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados - membros, do Distrito Federal e dos Municípios, para o desempenho, de forma responsável e eficaz, de suas atribuições, no interesse público ( C., art. 37 ). Em matéria ambiental tais deveres e respondabilidades, além de 232

inerentes aos Poderes Públicos, estendem-se à coletividade ( pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos ) por determinação constitucional (C., art. 225 ). O descumprimento das vigentes imposições constitucionais e legais sujeitará a autoridade, o servidor ou qualquer agente competente, ou qualquer pessoa física ou jurídica infratora às responsabilidades e respetivas sanções política, administrativa civil ou criminal aplicáveis ao caso concreto ( C., arts., 37 §§ 4º, 5º, 6º, 216, § 4º, 225, § 3º). IV.CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES Em breves considerações finais, não obstante a consagração constitucional da Política Ambiental ( C, art. 225 ) de forma harmônica com a Política Agrícola ( C, art. 187 ), a Política Urbanística ( C, art.182 ), a Política do Patrimônio Cultural ( C, art. 216 ) e a existência de grande número de normas jurídicas protecionais do patrimônio ambiental ( natural e cultural ), adverte-se que, na prática, pela notoriedade dos fatos, patente é a inaplicação ou aplicação inadequada e flagrante é a violação de tais normas, em face do inquietante agravamento da degradação dos recursos ambientais de forma geral. Bem como da destruição ou descaracterização dos bens de valor cultural, tanto no âmbito nacional, como nas esferas estaduais e municipais. Sem qualquer pretensão de esgotar a relevante matéria sobre a legislação ambiental no Brasil, notória e reconhecidamente vasta, complexa, interdependente, conclui-se que enorme é o desafio da problemática ambiental, tanto local, estadual e nacional como internacional. Neste sentido, inadiável é a efetiva ação de todas as autoridades e organizações ( governamentais e não governamentais ), dos técnicos, dos juristas, enfim. Dos especialistas de todos os ramos da Ciência, da imprensa e da comunidade em geral, em todos os Estados e Povos, para as indispensáveis medidas informativas, orientadoras, educacionais, junto aos respectivos governos e comunidades notadamente locais, essenciais à formação de sua sólida consciência ambiental sobre a permanente necessidade de reflexões, de pesquisas científico tecnológico - jurídicas, de participação, de cooperação, de solidariedade e de coresponsabilidade autenticamente recíproca e universal. Evidentemente, as novas exigências sociais exigem permanentes medidas indispensáveis à conciliação do desenvolvimento econômico - urbanístico - agrícola com a proteção do patrimônio ambiental local, estadual, nacional e global. Neste sentido, visando a facilitar a interpretação, a aplicação, a reflexão, a adequação e a atualização das normas notadamente de proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro, com base no Direito Positivo, na experiência e nas orientações doutrinárias e jurisprudenciais, tornam-se oportunas as seguintes RECOMENDAÇÕES: 1. Prévio levantamento ecológico do território nacional, estadual, distrital ou municipal e conseqüente elaboração de inventário dos recursos ambientais (especialmente águas superficiais e subterrâneas, solo, subsolo, espécies animais e vegetais), visando a reprimir os atos lesivos, a restaurar ou a recuperar as áreas degradadas (notadamente por irracionais desmatamentos), a prevenir novos atos lesivos e a proteger o patrimônio florestal - ambiental correlato. 2. Prévio levantamento do patrimônio cultural (artístico, histórico, monumental, paisagístico, turístico, arqueológico), para as medidas relacionadas com a sua valorização, restauração, defesa e proteção.

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3. Urgente levantamento de todas as áreas públicas invadidas ilegalmente, evidenciando-se que os imóveis públicos, revestidos ou não de florestas ou vegetação de qualquer natureza, não serão adquiridos por usucapião (C., art. 183, no tocante às áreas urbanas; art. 191, no tocante às áreas rurais). 4. Urgente elaboração de cadastro de todas as pessoas, físicas ou jurídicas (estas de direito público ou de direito privado), cujas atividades se relacionam, direta ou indiretamente, com o consumo de matéria - prima florestal ou vegetal, para as oportunas medidas sobre as obrigações relativas à indispensável reposição florestal. 5. Indispensabilidade, diante de pretensões a obras ou atividades efetiva ou potencialmente degradadoras do patrimônio florestal e ambiental, do competente estudo de impacto ambiental, com ampla publicidade, no sentido de facilitar a informação e a participação da comunidade interessada e idônea ao oferecimento de alternativas conciliatórias do desenvolvimento sócio - econômico - agrícola urbanístico com a preservação das florestas e das demais formas de vegetação e conseqüente preservação ambiental, como imposição obrigatória diante da natureza essencialmente preventiva tanto da Política Florestal como Política Ambiental (C., art. 225, § 1º, IV). 6. Necessidade de aplicar-se o instrumento do estudo e da respectiva avaliação de impacto ambiental não somente a novos projetos de atividades em vias de licenciamento inicial, mas também a todas as atividades que, legal e regularmente autorizadas, ocasionam comprovados perigos e danos ao meio ambiente e à saúde pública. 7. Conveniência da revisão adequada dos critérios e das diretrizes gerais, de forma clara e eficaz, para a definição expressa de efetivo processo de informação extensiva ao público e às pessoas legalmente habilitadas e interessadas (naturais ou jurídicas), para conhecimento. Em todas as fases, do estudo de impacto ambiental sobre projetos de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, através de meios de comunicação de massa (televisão, rádio, imprensa em geral, publicidade mediante a afixação de anúncios em locais de fácil visibilidade), além do tradicional e restrito processo de comunicação pela imprensa oficial, com a previsão de prazo razoável e compatível com a complexidade da matéria e as peculiaridades locais. O processo de informação deverá compreender esclarecimentos sobre as vantagens e desvantagens da atividade, seu custo, seus efeitos diretos e indiretos, principais ou secundários, permanentes ou temporários, positivos ou negativos, cumulativos a breve, médio ou a longo prazo contra o meio ambiente e a saúde da população, os órgãos e os locais para os esclarecimentos oportunos, para as reais participações, contribuições e alternativas ajustáveis ao equilíbrio sócio econômico - urbanístico - ambiental - cultural (Agenda 21, cap. 40). 8. Conveniência do reexame das normas regulamentares do estudo de impacto ambiental, no sentido de suprimir a exceção de publicidade referente ao “sigilo industrial”, evidentemente conflitante com os objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente e com as expressas normas constitucionais e legais. Assim, para a compatibilização e fiel execução das normas constitucionais (C., art. 225, §§ 1º, IV, 2º ) e legais (lei n.º 6.938/81, arts. 8º, II, 9º III), impõe-se a supressão das expressões “Respeitada a matéria de sigilo industrial ,assim expressamente caracterizada a pedido do interessado” e “Resguardado o sigilo industrial”,

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constantes, respectivamente, das normas do Decreto n.º 99.274, de 06-06-90 (art. 17, §§ 3º, 4º ), bem como a expressão “Respeitado o sigilo industrial, assim solicitado e demonstrado pelo interessado”, objeto do art. 11 da resolução CONAMA n.º 1, de 23-01-86. 9. Conveniência, junto aos Poderes Públicos competentes, para a expedição de normas específicas sobre o estudo e a respectiva avaliação de impacto ambiental de projetos, planos ou programas referentes a instalações nucleares em geral e a depósitos do respectivo lixo atômico ou de outros rejeitos químicos e altamente perigosos, com expressas exigências e cautelas, notadamente sobre a localização, aspectos construtivos e de efetiva segurança diante da comprovada falibilidade da indústria nuclear e da crise de sua confiabilidade pelos inerentes e temíveis riscos. 10.Necessidade, junto aos Poderes Públicos competentes, de sérias medias relacionadas com permanente análise de riscos inerentes à produção, ao uso, à comercialização e ao emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem iminente risco, particularmente no setor agrícola e alimentar, para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (C., art. 225, § 1º, V). 11.Necessidade de coordenação integrada da ação governamental nos diferentes níveis, para a execução harmônica da Política Nacional do Meio Ambiente. É dever do Poder Público, juntamente com o setor privado, em matéria de meio ambiente, agir com prudência, diligência, perícia, espírito científico, tornando-se cada vez mais necessária e indispensável a ação conjunta e integrada de intervenções coerentes, favoráveis e compatíveis à conciliação do desenvolvimento das atividades sócio - econômico - urbanísticas com a qualidade ambiental nacional, estadual, distrital e municipal. 12.Oportuna apuração, pelos meios competentes, da responsabilidade da Administração Pública, solidariamente com os agentes públicos ou privados e com servidores coniventes, pelos danos causados ao meio ambiente e à saúde pública, quer em decorrência da negligência, imprudência, imperícia ou da aprovação de projetos em defesa ambiental tendenciosamente aparente ou simulada, quer em decorrência de aceitação do RIMA com base em estudo de impacto ambiental insuficiente ou demasiadamente sumario e senhas básicas recomendações sobre as mediadas necessárias à preservação ambiental. 13.Necessidade, mais que nunca nos dias de hoje, do efetivo exercício do direito de representação, de denuncia, de petição, de ação ou de defesa, por parte de qualquer pessoa física ou jurídica interessada, provocando o controle judicial, diante da falta ou insuficiência de estudo de impacto ambiental de atividades efetiva ou potencialmente poluidora, eminentemente prejudiciais ao patrimônio ambiental, tanto natural ( ar, águas , solo, subsolo, espécies animais e vegetais, alimentos e bebidas em geral ) como o cultural ( bens de valor histórico, artístico, turístico, paisagístico ), à saúde pública, ao consumidor e aos interesses sócios econômicos tanto da coletividade como da nação, com base nas normas constitucionais e legais vigentes. 14.Criação de comissão Multidisciplinar de Controle dos Estudos de Impacto Ambiental, composta de profissionais legalmente habilitados dos diversos ramos da ciência, independentes e representantes de órgãos ou entidades idôneos e diretamente interessados pelas questões sócio - econômico - urbanístico ambientais, como o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, as

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Universidades Públicas e Privadas, a Sociedade Brasileira para O Progresso da Ciência, a Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente, dentre outras entidades, para estudos de impactos e respectivos relatórios sobre projetos de atividades pela sua complexidade, pelas repercussões práticas, pelos consideráveis e iminentes riscos sócio - econômico - ambientais. 15.Conveniência, junto aos Poderes Públicos competentes, de urgente revisão e superado Código de Águas (Decreto 24.643, de 10-10-34), com a expressa revogação particularmente de seu art. 111 que, delinqüentemente, permite a poluição das águas nas explorações agrícolas e industriais, o que além de constituir crime contra a saúde pública, é incompatível tanto com as normas constitucionais e legais como com as circunstâncias ambientais e sanitárias do momento. 16.Necessidade da intensificação do intercâmbio nacional e internacional de pesquisas científicas e tecnológicas, de informações e de experiências entre pessoas de interesse conflitantes nas questões de ordem ambiental, visando à sensibilização e à conciliação entre o desenvolvimento sócio - econômico e a preservação do meio ambiente. 17.Necessidade de criteriosa seleção de profissionais idôneos e sensibilizados às questões ambientais, para a integração de órgãos de controle dotados de competência técnico - científico - jurídica em matéria ambiental e cultural. 18.Promoção da harmonização das legislações (federais, estaduais, municipais) em matérias de meio ambiente, sem prejuízo de normas especiais ajustáveis às zonas de alta sensibilidade ou risco ecológico e às peculiaridades locais e regionais. Neste sentido, todo esforço deve ser dispensado para que as disposições legislativas e regulamentares sejam redigidas de forma clara e unívoca, evitando-se conceitos jurídicos vagos, obscuros que, além de prejudicarem a compreensão e a adequada aplicação do texto, ocasionam enorme esforço interpretativo aos advogados, juristas, tribunais e demais profissionais interessados. 19.Conveniência da substituição da agricultura predatória, com todos os seus prejudiciais aspectos, por novos métodos e novas técnicas que possam contribuir para a eliminação ou a redução da contaminação dos alimentos em geral e do meio ambiente (natural e cultural - Agenda 21, Cap. 14). 20.Adoção de efetiva política educacional e de conscientização de todos. A experi6encia de todos os povos tem demonstrado e vem demonstrando que somente por um processo de orientações, de instrução e de informação permanente se atinge grau satisfatório de sensibilidade ou de cultura, capaz de conciliar os interesses privados, sociais e públicos, capaz de respeitar e proteger tanto os recursos naturais, como os bens culturais em geral, no interesse da saúde e do bem - estar individual e da coletividade. Evidentemente, a educação mediante processo contínuo de instrução, formação, pesquisa científica e tecnológica, especialização e ação, em todos os níveis escolares, profissionais e sociais, constitui o pressuposto básico, portanto indispensável à sensibilização de todos, para o justo e imprescindível equilíbrio, no real interesse e bem - estar tanto da coletividade presente como das gerações futuras.

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ASPECTOS JURÍDICOS DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL ARQUEOLÓGICO E PALEONTOLÓGICO

José Eduardo Ramos Rodrigues O artigo 216, inciso X, da Constituição Federal, também considera integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, os sítios de valor arqueológico e paleontológico, cujas características específicas estão a exigir um regime jurídico de regulamentação diferenciado. Os sítios arqueológicos, pelo seu próprio nome, são aqueles de interesse para a Arqueologia, ciência que busca descobrir, pesquisar e reconstituir, pelos seus restos, culturas e civilizações hoje não mais existentes ou bastante alteradas. A Arqueologia pode ser dividida em pré-histórica, cujo campo abrange todo o período em que o homem viveu antes da descoberta da escrita e histórica, que atinge a fase posterior à invenção da escrita. No caso brasileiro, tendo em vista suas peculiaridades culturais, os sítios préhistóricos referem-se às civilizações indígenas pré-cabralinas, ou seja, aquelas anteriores à descoberta do Brasil pelos portugueses. Dentre estes sítios, avultam, especialmente, os denominados sambaquis, situados na costa, ora em lagoas ou rios do litoral, formados por acúmulos de conchas, restos de cozinha, enterramentos de mortos e outros artefatos amontoados por povos indígenas que habitavam a área litorânea em épocas pré-históricas (pré-cabralinas). Tais sítios constituem-se em patrimônio cultural dos mais relevantes, apresentando características “sui generis”, já que sua fruição exige desmonte para estudo. Mesmo um desmonte cuidadoso, cientificamente programado e efetuado com tecnologia adequada, por profissionais habilitados, não deixará de provocar o seu perecimento, pelo menos parcial. Portanto, o Poder Público deve exercer rigoroso controle nas explorações arqueológicas dos sambaquis, já que trabalhos mal realizados, mesmo bem intencionados, podem implicar na perda inútil e definitiva de importantes bens culturais. Por sua vez, o tombamento, com seu regime tutelar protetivo, que visa a preservar um bem cultural o mais íntegro possível, para a presente e futuras gerações, em princípio, não é instrumento adequado à preservação de sambaquis. Assim, os sambaquis e sítios pré-históricos assemelhados receberam tratamento legal diferenciado através da Lei Federal 3.924 de 26.07.61, além de terem sido constitucionalmente declarados como bens da União pelo artigo 20 da Carta Magna vigente. O teor da Lei 3924/61 consiste essencialmente no controle das escavações arqueológicas e no registro dos respectivos sítios. Destarte, pela Lei 3924, ficam sob guarda da União (artigo 1º): a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo da autoridade competente;

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b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha; c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeamento, “estações”e “cerâmicos”, nos quais se encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico; d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividade de paleoameríndios. O mesmo diploma legal proibiu em todo o território nacional o aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou pré-históricas, mencionadas no artigo 2º supra-referido, antes de devidamente pesquisadas (artigo 3º), equiparando tais atos a crimes contra o Patrimônio Nacional (artigo 5º). Estabeleceu ainda o direito do particular de realizar escavações para fins arqueológicos em terras de domínio público ou privado, mediante prévia autorização do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e expedição de portaria autorizativa pelo Ministério da Cultura, a ser transcrita em livro próprio pelo mesmo IPHAN (artigos 8º a 10), que se tornou o órgão administrativo responsável pela fiscalização e cadastramento dos sítios arqueológicos ou pré-históricos em todo o país (artigo 11). Caso o imóvel seja de domínio particular, o proprietário deve consentir as escavações por escrito (artigo 11, “caput”). Quando as escavações arqueológicas ou pré-históricas forem efetuadas pelo Poder Público, em terrenos particulares, haverá necessidade de autorização federal (artigo 13). Estas podem ocorrer, na falta de acordo amigável com o proprietário, mediante ocupação temporária indenizável (artigo 36 do Decreto-Lei 3.365/41), pelo tempo necessário à execução dos estudos (artigo 13, parágrafo único), ou, em casos especiais e em face do significado excepcional da jazida, através de desapropriação (artigo 15). Por outro lado, as escavações realizadas por órgãos públicos, sejam da União, Estados, Municípios ou Distrito Federal, deverão, em qualquer circunstância, comunicar previamente suas escavações ao IPHAN para fins de registro, mesmo quando realizadas em áreas de seu respectivo domínio (artigo 16). O grande problema da Lei 3.924/61, é que ela equivocadamente trata sítios arqueológicos e pré-históricos como sinônimos, ignorando a existência de bens arqueológicos históricos. Pela simples leitura, observa-se que o texto legal aplica-se praticamente apenas aos sítios que necessitam de escavação, especialmente os sambaquis. Tal preocupação é explicável pela destruição quase sistemática que os sambaquis vêm sofrendo através da história, para aproveitamento econômico do calcário das conchas na construção civil. Já nos tempos coloniais, as cidades brasileiras do litoral, suas igrejas e construções mais expressivas, eram construídas de pedra e cal, esta última preparada com calcário dos sambaquis. Sem dúvida, esta situação agravou-se muito, porém não se justifica a omissão do legislador quanto a outros sítios também de relevante interesse arqueológico-cultural. Por exemplo, as inscrições rupestres, mencionadas na letra d do artigo 2º da lei, quando situadas a céu aberto, estão a necessitar outro tipo de providências preservacionistas, na medida em que é desnecessário escavá-las para estudo. Seria o caso de se lhes aplicar o clássico tombamento. Aliás, já existe o precedente do tombamento pelo IPHAN das inscrições pré-históricas do rio Ingá na Paraíba.

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Quanto aos bens arqueológicos históricos, posteriores ao descobrimento cabralino, são eles tratados apenas de passagem, quando a Lei 3.924 menciona a descoberta fortuita a ser obrigatoriamente comunicada ao IPHAN, não apenas quando se tratar de objetos de caráter pré-histórico, mas também de importância história, artística ou numismática (artigo 18). Estes mesmos bens também dependem de licença do órgão preservacionista federal quando houver trasnsferência para o exterior (artigo 20). Entretanto, não há qualquer regra quanto à escavação, licença ou registro em se tratando de arqueologia histórica. Parece-nos que quando os trabalhos arqueológico-históricos ocorrerem em imóvel ou sítio tombado, far-se-á necessária a autorização do órgão que efetuou o tombamento. Quando se tratar de bem sobre o qual não recaia nenhum regime protetivo especial, na ausência de legislação federal a respeito, deveriam os Estados, Municípios e Distrito Federal legislar sobre o assunto, exercendo sua competência concorrente e supletiva no que tange à proteção do patrimônio cultural (artigo 24, inciso VII, c.c. artigo 30, inciso IX da Constituição Federal). Havendo superveniência de lei federal sobre normas gerais, esta suspenderá a eficácia da lei estadual, municipal ou distrital no que lhe for contrário (artigo 24, parágrafos 2º e 4º c.c. artigo 30, inciso II da Carta Magna). Por sua vez, causa espécie a expedição da Portaria Interministerial nº 69 de 28.01.89, conjunta dos Ministérios da Marinha e da Cultura, que aprova normas comuns sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terrenos de marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna de maré. Esta portaria atribui a competência de fiscalização e registro desse tipo de bem arqueológico exclusivamente ao Ministério da Marinha. Embora o Ministério da Cultura seja um dos signatários da portaria, esta ignora completamente a existência do IPHAN, órgão integrante de sua estrutura, especialmente quanto à sua competência a respeito de descobertas fortuitas definida em lei (art. 18 da Lei 3924/61). Por outro lado, alijando completamente o Conselho Consultivo do IPHAN, designa como responsável pela definição do valor cultural dos bens resgatados uma comissão interministerial. Esta é designada especificamente, para cada exploração científica, sem caráter permanente, exigindo-se de seus integrantes apenas habilitação em arqueologia, história da arte e áreas afins, sem necessidade de notório conhecimento ou especialização, como seria de se desejar, sem definir os critérios de nomeação. A portaria informa apenas, de forma lacônica, que três membros serão indicados pelo Ministério da Cultura e três pelo Ministério da Marinha, cabendo a um destes últimos a presidência do colegiado. Portanto, da própria leitura observa-se a precariedade e a ilegalidade das disposições contidas na referida portaria. A situação do patrimônio paleontológico, isto é , aquele integrado pelos fósseis, que são restos de vestígios de seres vivos contidos em rochas sedimentares, diante do ordenamento jurídico, chega a ser estarrecedora. A única norma existente a respeito é o Decreto-Lei nº 4146 de 4/3/42 que declara, em seu único artigo e parágrafo, que os depósitos fosslíferos são propriedade da nação, sendo necessário para sua exploração, autorização prévia do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), à época integrante do Ministério da Agricultura e hoje do Ministério de Indústria e Comércio, a quem cabe a fiscalização.

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As explorações efetuadas por órgãos públicos independem de autorização ou fiscalização, cabendo-lhes apenas efetuar comunicação prévia ao DNPM. E nada mais. Esta regulamentação quase inexistente é que torna compreensível o fato de se poder adquirir livremente quantos e quais fósseis se quiser em feiras espalhadas por milhares de praças pelo Brasil afora. O nosso patrimônio fosslífero está sendo depredado completamente enquanto o legislador designa um órgão licenciador de atividades minerárias como responsável pela sua proteção, ou melhor, pelo seu abandono. Finalmente, talvez a única situação em que os bens arqueológicos e paleontológicos não criam polêmicas jurídicas, é quando se encontram na forma de coleção, cuja proteção pode ser efetuada pelo tombamento , já havendo diversos precedentes a respeito. Assim sendo, urge elaborar-se nova legislação para proteger adequadamente o patrimônio cultural arqueológico- histórico e paleontológico, pois a continuar o ordenamento atual, em breve não haverá mais o que preservar.

BIBLIOGRAFIA: Bens Móveis e Imóveis Inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ministério da Cultura/IPHAN. Rio de Janeiro, 4ª Ed., 1994.

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LICENCIAMENTO AMBIENTAL E OS BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO Carlos Eduardo Caldarelli A elaboração de estudo prévio de impacto ambiental e do respectivo relatório é condição necessária para o licenciamento de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. 25 Para a realização de ambos, estudo e relatório, é preciso constituir-se equipe multidisciplinar habilitada que, dentre um mínimo de atividades técnicas obrigatórias, deve considerar o meio sócio-econômico das diversas alternativas locacionais do projeto em estudo, “destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade”.26 O que se observa, examinando-se os estudos de impacto ambiental que se produzem no País, é que, na sua elaboração e, portanto, na prática do licenciamento ambiental, dentre todas as categorias de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, apenas os bens materiais passíveis de subsumir-se nas rubricas eleitas pelo texto acima citado têm sido, em geral, objeto de alguma preocupação, ignorando-se todos os outros. Ainda assim, mesmo aqueles bens, freqüentemente, só são lembrados quando gravados por tombamento27 ou protegidos por legislação específica, como é o caso dos “monumentos arqueológicos e pré-históricos”.28 Em face disto, a problemática a que o tema proposto conduz prende-se às questões suscitadas pela existência de outros bens que se incluem na universalidade que é o patrimônio cultural brasileiro, além dos que têm sido comumente considerados nos estudos prévios de impacto ambiental, aos quais, portanto, deve-se dispensar idêntico tratamento. No entanto, colocar essa problemática implica, antes, discutir e eleger critérios que permitam decidir, em cada caso concreto, acerca de quais são, afinal, os bens que se devem considerar como incluídos no patrimônio cultural brasileiro, tendo em vista o que dispõem sobre o assunto a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais vigentes. Esta última questão torna-se especialmente polêmica, examinando-se o que dispõe sobre o assunto o D.L. nº 25, de 30.11.1937, à luz da sobrevinda Constituição Federal de 1988. Deve-se a Jorge Miranda, eminente constitucionalista português contemporâneo, a proposta de ampliar-se a idéia de que as constituições supervenientes “recebem” as normas infraconstitucionais anteriores a elas, pela de estas últimas normas serem “novadas” pelas ordens constitucionais que lhes são posteriores. 25

C.F., art. 225, § 1º, IV; L. nº 6.938, de 31.08.1981, art. 9º, III; D. nº 99.274, de 06.06.1990, art. 17, §§ 1º, 2º e 3º e Res. CONAMA 001, de 23.01.1986, basicamente. 26 Res. CONAMA 001, de 23.01.1986, art. 6º, I, c. 27 C.F., art. 216, §§ 1º e 5º; D.L. nº 25, de 30.11.1937; D.L. nº 3.866, de 29.11.1941, basicamente. 28 L. nº 3.924, de 26.07.1961. 241

O conceito de recepção foi lapidarmente exposto por Norberto Bobbio, da seguinte forma: “A recepção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma”. 29 Laborando sobre as consequências jurídicas do fenômeno da recepção e, assim, aprofundando e enriquecendo o entendimento que se tinha dele, Jorge Miranda delineou o conceito de “novação”, através da formulação dos seguintes corolários: “As normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se conformes com as suas normas e os seus princípios” e, adiante: “As normas anteriores contrárias à Constituição, mesmo que contrárias às normas programáticas, não podem subsistir - seja qual for o modo de interpretar o fenómeno da contradição”. 30 Entre nós, jurisprudência mais do que cinqüentenária do STF tem entendido que, dado que legislador algum pode infringir constituição futura, a constituição superveniente não torna inconstitucionais as normas anteriores que com ela conflitam, mas revoga-as31, sendo razoável, portanto, entender-se, aqui, que o nosso particular “modo de interpretar o fenómeno da contradição”, referido por Jorge Miranda, resolve-se, primordialmente, pela pura e simples revogação, o que, entre nós, tem-se operado segundo o que dispõe o artigo 2º e parágrafos, do D.L. nº 4.657, de 04.09.1942, a conhecida Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. 32 Isto posto, examinemos o D.L. 25/37, logo em seu artigo 1º e parágrafos, em face da dicção do artigo 216 e incisos da Constituição Federal. O texto daqueles dispositivos do Decreto-Lei é o seguinte: “Art. 1º - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.”

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Teoria do Ordenamento Jurídico, BSB, Ed. UnB, 1989, pg. 177. Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, 2ª ed., pg. 243 - 4. 31 Veja-se, para um apanhado da jurisprudência do STF sobre o tema, Brossard, Paulo, A Constituição e as Leis a Ela Anteriores, in Arquivos do Ministério da Justiça, v. 45, nº 180, Separata. 30

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Para os leitores menos familiarizados com o assunto, reproduz-se, adiante, o texto meridianamente claro e auto-explicativo dos dispositivos legais citados: “Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. “§ 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. “§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. “§ 3º - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. 242

“§ 1º - Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico brasileiro, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o artigo 4º, desta Lei.” “§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. Por sua vez, o artigo da Constituição Federal mencionado, juntamente com os seus incisos, traz o seguinte: “Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:” “I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Examinando ambos os diplomas, não há como não concluir que a matéria por eles versada é a mesma, qual seja, a valoração especial que se atribui aos bens por eles tratados, embora já tenha sido notado que a Constituição Federal de 1988 amplia, “quase que exaustivamente, o que deve ser considerado como patrimônio cultural, representando dessa forma, extraordinário avanço para o aperfeiçoamento do instituto”33, A conclusão é inevitável, ainda que a comparação deva ater-se apenas ao que se contém no “caput” do artigo 216 do diploma constitucional, uma vez que a lista que vem adiante é meramente exemplificativa. É, obviamente, indiferente o nome dado à universalidade resultante, se “patrimônio histórico e artístico nacional”, ou “patrimônio cultural brasileiro”. Conseqüentemente, tendo em vista o que dispõe o § 1º, in fine, do art. 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro e o mais que se chamou à colação, s.m.j., a superveniência da Constituição Federal de 1988 derrogou todo o § 1º, do artigo 1º, do D.L. 25/37, dado que não se referiu à inscrição de bens nos Livros de Tombo, como condição necessária para que venham a fazer parte do patrimônio cultural brasileiro e, assim, serem, dessa forma, especialmente valorados. Adicionalmente, a Constituição superveniente “novou”, no sentido dado à palavra por Jorge Miranda, tudo o mais que se continha no restante do artigo 1º, do D.L. 25/37, constatando-se isto, primordialmente, pelo fato de o diploma constitucional vigente no País encarecer, como jamais se fizera antes em nossa

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Queiroz Telles, Antônio A., Tombamento e seu Regime Jurídico, RT, SP, 1992, pg. 29. 243

história constitucional, os princípios democrático e pluralista, não muito caros aos dispositivos examinados do Decreto-Lei em discussão. Não é o caso, aqui, de prosseguir na análise do D.L. 25/37, avançando sobre as suas disposições acerca dos complexos procedimentos ligados ao tombamento, não apenas por não ser esta a matéria que interessa a este escrito, mas, principalmente, por escapar o assunto às luzes de quem o compõe. Importa ressaltar, no entanto, por ser, isto sim, importante para o tema para o qual pede-se, aqui, a atenção do leitor, que, estando corretas as considerações feitas até este ponto, a “novação” operada pela constituição sobrevinda em 1.988 sobre o sistema instituído pelo D.L. 25/37 implica entender que “o valor cultural de um bem preexiste à sua declaração pela Administração”34, não sendo mais dada a esta última a competência para decidir se algum bem deve ou não incluir-se no patrimônio cultural brasileiro, cabendo-lhe, uma vez constatada tal pertinência, tão somente por evidenciar-se a sua “referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, promover e proteger o bem assim considerado, “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.35 Desta forma, em cada caso concreto, quaisquer que sejam as circunstâncias que tornem necessário decidir quais bens se incluem no patrimônio cultural brasileiro, o que muito freqüentemente ocorre nos procedimentos que fazem parte do licenciamento ambiental, estar-se-á sempre diante de questão indubitavelmente complexa e aberta, cuja resposta demanda pesquisa séria e aprofundada, jamais bastando, para obtê-la, recorrer (o que sói fazer-se em estudos de impacto ambiental) a meras consultas apressadas a listas de bens tombados e a alguns poucos artigos publicados em periódicos culturais, material que, além de fragmentário, reflete, em sua maioria, opiniões e pontos-de-vista datados e parciais. É preciso, a esta altura, sublinhar que o apelo que se faz à seriedade e ao aprofundamento da pesquisa nos estudos de impacto ambiental não se justifica somente pelo amor que se deve dedicar a tais virtudes, mas principalmente pelo fato de constatar-se que, nas situações criadas pela implantação de empreendimentos de grande porte, os resultados favoráveis daí advindos (tecnicamente, fala-se em “impactos positivos”), em geral, difundem-se em larga escala, no espaço, ao contrário dos desfavoráveis (“impactos negativos”), os quais, o mais das vezes, circunscrevemse a âmbitos locais: Aqui, trata-se de produzir mais energia que vai ser consumida, principalmente, a grandes distâncias do ponto onde a sua geração vai, inexoravelmente, alterar a paisagem, influir na distribuição da flora e nos hábitos da fauna, desalojar e separar pessoas, dentre outros inconvenientes não menos importantes; ali, de construir estradas que vão facilitar a ligação entre um grande centro e outro, passando por localidades às quais raramente servem; acolá, de implantar centros de compras e serviços que atraem consumidores que não residem nas proximidades e que, de outra forma, jamais demandariam a infra-estrutura urbana local, sobrecarregando-a, etc. Em sede de direitos e interesses difusos, isto é, aqueles pertencentes a “grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou 34

Milaré, Édis, Ação Civil Pública Ambiental - Patrimônio Cultural, in JUSTITIA, 143/118. 35 CF, art, 216, § 1º. 244

fático muito preciso”36, como são os que se consideram aqui, é preciso que, ao auscultar a sociedade civil, com a finalidade de levar aqueles direitos na devida conta e de bem interpretar aqueles interesses, tenha-se sempre em mente que ela é um locus de diferenças que reclamam ser tratadas como tais e, assim, expressar-se. Em tais condições, é absolutamente necessário dar-se conta de obviedade que, ao arrepio da letra e do espírito da Constituição vigente, acaba sendo tão freqüente e descuidadamente ignorada em estudos de impacto ambiental: trata-se da que se constitui na existência, tão teimosa e recorrente quanto legítima, do ponto-devista da parte da população que se verá mais atingida pelos custos oriundos da implantação de empreendimentos potencialmente causadores de impactos sobre o meio-ambiente, acerca de como definem os prejuízos que vão sofrer e de qual lhes parece ser a melhor maneira de compensá-los, ponto-de vista que, muitas vezes, é oriundo de concepções do mundo singulares, ligadas a modos de vida parcial ou até inteiramente alheios àqueles que se vai beneficiar com a sua implementação. A esta altura, embora o tema proposto não permita aprofundar o assunto aqui tratado sob esse aspecto, vale a pena observar que, se o que se disse acima parece poder aplicar-se, também, às outras questões que são examinadas em estudos de impacto ambiental, além das especificamente relacionadas ao patrimônio cultural brasileiro, isto ocorre porque não há como evitar, nem como eludir, o fato de a cultura e as diferenças culturais serem realidades que se imiscuem em todos os aspectos da vida social. De tudo isto resulta, inevitavelmente, que, na constatação e no balanço dos custos e dos benefícios que devem surgir da realização de projetos do tipo dos que se trata neste escrito, é preciso dar, tanto quanto seja possível, voz a todos os interessados e, dentre estes, principalmente aos que sofrerão turbações da mais diversa ordem em muitos aspectos das suas vidas, incluíndo-se aí a eventual alteração ou perda de preciosos bens culturais, tais como os fatores que formam e balizam a vida quotidiana, dando-lhe base material e emprestando-lhe significado: caminhos, referenciais, pontos de encontro, áreas de lazer informal, espaços e construções tradicionalmente destinados a celebrações, à residência e/ou ao trabalho, etc., cujo desaparecimento repentino ou exposição à mudança significativa e excessivamente rápida torna inúteis, de um dia para outro, conhecimentos adquiridos, acumulados e transmitidos ao longo do tempo e transforma em relíquias, de chofre, hábitos coletivos e tradições locais, bens imateriais, estes últimos, que, vale ressaltar, nem por serem desprovidos de impenetrabilidade, extensão, peso e das outras tantas propriedades que a Física atribui à matéria, deixam de incluir-se na categoria dos bens culturais. Na ordem de idéias a respeito do patrimônio cultural brasileiro esposada pela Constituição Federal de 1.988, não há lugar para que os bens culturais mencionados acima sejam considerados menos merecedores de valoração especial do que os que freqüentam os Livros de Tombo e os artigos que se publicam em revistas eruditas, tampouco havendo, portanto, razão alguma para que sejam “esquecidos” ou relegados a segundo plano nos estudos e relatórios de impacto ambiental. Se a sua identificação, avaliação e preservação exige esforços maiores de pesquisa e investimento, cabe ao Poder Público exigir que isto se faça, em todos os casos em que couber fazê-lo, por quem de direito. 36

Mazzilli, Hugo Nigro, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, RT, SP, 1992, 4º ed., pg. 21. 245

Isto posto, cabe considerar, finalmente, a outra ordem de problemas a que se aludiu no início deste escrito, qual seja, a relativa às questões levantadas pela ampliação da universalidade constituída pelo patrimônio cultural brasileiro, tendo em vista o aumento não ter sido principalmente quantitativo, mas qualitativo, o que traz ao centro desta problemática a questão das “formas de acautelamento e preservação” adequadas, em cada caso, a cada bem especialmente valorado como pertencente àquele patrimônio, já que, no contexto do licenciamento ambiental, está-se, freqüentemente, tratando da inevitabilidade da superveniência de danos àqueles bens, quando não se está diante da certeza do seu puro e simples desaparecimento. Nestas últimas condições, isto é, se é certo o perecimento dos bens, indagase: Em que casos cabe entender que a mera confecção de inventários e registros, que o artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, institui como algumas das formas de proteção ao patrimônio cultural, pode considerar-se um modo aceitável de compensar o impacto negativo que será sofrido pelos bens em tela? Por outra, na hipótese formulada antes, isto é, se se trata da ocorrência inevitável de danos àqueles bens, deve-se compreender que a elaboração de um programa de monitoramento de impactos realiza sempre, qualquer que seja o bem turbado, a vigilância a que se refere os mesmos artigo e parágrafo da Lei Magna? Em suma, entre o que dispõem a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais de proteção ao Patrimônio Cultural, de um lado, e os regramentos administrativos que disciplinam o licenciamento ambiental, de outro, existe a conformidade reclamada por Jorge Miranda para que estes últimos possam continuar a regular toda a matéria cultural no contexto do licenciamento ambiental, de modo que toda a problemática apontada acima acabe por revelar-se apenas uma questão de aplicação da lei a casos concretos, vale dizer, de interpretação?

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DEBATE Coordenador: Dr. José Luiz de Morais - MAE/USP Relatora: Alenice Motta Baeta- Setor de Arqueologia MHN\UFMG José Luiz de Morais - Por favor, Sr. Rossano Bastos, do IPHAN. Rossano Bastos - Bom dia, eu gostaria de parabenizar os membros da mesa pela brilhante explanação sobre a questão que envolve patrimônio cultural e legislação. Agradeço de público ao Fórum Interdisciplinar pelo Avanço da Arqueologia pelo convite, um seminário que vem-se demonstrando fantástico, realmente esplendoroso, uma importante forma de reflexão e debate. Na verdade, eu trouxe uma questão para ser colocada em dicussão para o conjunto dos debatedores e não especificamente para um. Eu acredito que o problema central do patrimônio cultural, hoje, é que não existe uma política nacional de cultura que contemple a complexidade do conjunto dos bens culturais que formam a identidade cultural do Brasil. Dentro desse contexto, a legislação do patrimônio histórico, de um modo geral, atende ainda a preceitos de exceção do regime Vargas. Entretanto, a única política cultural levada a efeito nesse país, talvez seja ainda a política do governo Vargas ( Decreto lei n. 25 de 1937). Através de uma ação conjunta entre estados e municípios é que nós devemos esperar uma ação complementar efetiva - política, jurídica e administrativa. Eu acho que chegou a hora de olharmos de frente e não somente valorizarmos a casa- grande, mas também a senzala, porque da senzala vem muito suor que construiu essa Nação. Para onde iam os operários depois de construída a muralha da China, as Acrópoles tantas vezes destruídas. Quem as ergueu? Eu gostaria de terminar com a reflexão de uma pessoa que eu admiro muito, que disse o seguinte: “Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do passado antes que o tempo passe tudo a limpo” ( Cora Coralina). Muito Obrigado. José Luiz de Morais - Eu pergunto aos membros da mesa se desejam se manifestar. Suzanna Sampaio - O que eu poderia dizer em relação ao Decreto Lei n 25 de 1937, é que ele não fere nenhum princípio constitucional, tanto que o legislador constitucional em momento algum revogou-o. Toda aquela legislação que foi considerada obsoleta ou inconstitucional pela nova Carta Magna, foi revogada. A legislação do governo Vargas de 1937 foi feita em menos de um mês depois da declaração do Estado Novo. Teve uma política cultural bastante sedimentada, com leis que na época eram vigentes internacionalmente. Então, você vê que a própria carta de Atenas traz princípios que nortearam todas as políticas de proteção ao patrimônio histórico, artístico, hoje chamado „cultural‟ na Constituição. Acho que realmente ele representou um momento feliz na nossa administração pública, em que pesem os atos ditatoriais; depois, é preciso separar o joio do trigo, é preciso ver os atos ditatorias do governo Vargas e separar os grande ministros que foram Gustavo Capanema e Francisco Campos. Das outras ponderações que você fez, eu me lembrei da casa grande e senzala. Mais do que nunca, essa Constituição contempla em todos os momentos os 247

modos de manifestações, tanto do patrimônio edificado como das manifestações intangíveis e imateriais. Tem-se tombado modos de fazer e modos de viver; por exemplo, foi tombado um terreiro de Candomblé na Bahia. É preceito constitucional. Todos os remanescentes de quilombos em nosso país são protegidos por medidas constitucionais, que é a lei máxima. Você pode tirar daí qualquer proteção possível dentro dos institutos existentes. Essa garantia de que os quilombos sejam preservados garante a preservação da memória africana, a memória negra no Brasil. E quando se fala da memória negra hoje, as comunidades de luta pela igualdade, pela manutenção da identidade negra preferem ser chamados de afro-brasileiras, como os afroamericanos. Então chamemo-los, não é possível discutir. Os afro-brasileiros estão contemplados, outras manifestações também. Existe hoje a Fundação Palmares, que é responsável pela inventariação, pela codificação e pela propostas de inclusão no patrimônio brasileiro de toda memória da escravidão e de toda memória da raça negra, oprimida mesmo depois que a abolição se fez em 1888. Vou adiantar, por exemplo, que estudos recentes descobriram remanescentes de quilombos em áreas desconhecidas. Depois do quilombo de Palmares, que foi tão célebre, a história de outros quilombos existentes no Maranhão, no Norte do Estado de Mato Grosso ficou esquecida. Esta memória está sendo levantada e a sua história escrita por pessoas, funcionários e profissionais do patrimônio brasileiro, de todos os institutos. Não sei se respondi ou se alguém quer fazer mais alguma ponderação. José Luiz de Morais - A Dra. Helita gostaria de fazer uma observação. Helita Custódio - A Lei Geral de 1981 e também a legislação anterior e posterior à Constituição de 1988 foram muito importantes, Sr. Rossano, relembrando a sua colocação. Então, nós temos um outro problema, por princípio, de ordem geral do Direito, nas normas da lei de introdução do código civil, que é norma de princípio geral. Toda lei tem sua validade; quando ela é promulgada, foi promulgada por um determinado motivo; se ela é perfeita ou imperfeita, não vamos entrar nesse detalhe. Por princípio geral do Direito, a lei anterior a ela pode ser revogada ou não por uma lei posterior. Nesse caso, nós temos que verificar alguns aspectos importantíssimos: se a lei anterior for incompatível com a lei posterior, nesse caso ela vai ser revogada ou porque a lei posterior já a revoga expressamente ou então a revoga implicitamente; se é incompatível, não tem mais condição de sobrevivência. Então nós temos dois tipos de revogações: explicita quando a lei expressamente declara - „revogam-se as disposições da lei tal‟, e implícita quando, simplesmente analisando a lei anterior e a lei posterior, há uma incompatibilidade inconciliável. Em se tratando das normas constitucionais, se aplica da mesma forma: a Constituição é a norma que está hierarquicamente superior às outras. Se a norma anterior for compatível com a norma posterior, seja lei ou Constituição, ela permanece, perfeitamente. Se esta norma não for suficiente, mas se o espírito dessa norma está de acordo com a proteção prevista na lei posterior, então, nesse caso, a lei anterior é uma lei que não é incompatível. Diante dessas normas insuficientes, ela dá uma definição que não é completa, então vamos completar. Nós estamos aqui para analisar esses aspectos, de incompatibilidades ou de insuficiências da lei anterior, em comparação com a lei posterior, seja lei, seja Constituição, e é por isso que é importante esse levantamento de normas que nós fazemos para realizar o estudo adequado. É preciso ter consciência daquilo que é incompatível e daquilo que é compatível: o que é incompatível revogase, o que é compatível permanece e o que é insuficiente se atualiza.

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José Luiz de Morais - Pela ordem, convido o Dr. Daury de Paula Júnior, da Promotoria de Meio-Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo. Daury de Paula - Bom dia. Em primeiro lugar, eu queria cumprimentar a mesa pelas brilhantes explanações, por ter dividido comigo, que acompanhei o evento todos esses dias, um sentimento enorme de impotência. Eu teria algumas colocações e uma pergunta específica. O artigo 216 da Constituição, combinado com o artigo 20 que diz que “ o patrimônio histórico arqueológico e pré-histórico é bem da União”, permite a interpretação desse arqueológico histórico e arqueológico pré-histórico. Eu perguntaria se, por força da combinação desses dois dispositivos constitucionais, não estaria revogado, por incompatibilidade, o artigo 2 da lei que trata dos sítios, que repete essa expressão: arqueológicos pré-históricos, mas limita-se apenas ao préhistórico. Um outro questionamento diz respeito também à combinação desses dois dispositivos constitucionais, que transformam inequivocamente esses bens, que são bens da União, em bens comuns do povo, porque seriam bens nacionais de caráter coletivo. É uma outra questão que me deixou bastante angustiado, assistindo as palestras dos arqueólogos: eu notei que todos eles apontam a pressão do tempo, de não se ter tempo de fazer um estudo adequado, diante de uma pesquisa de arqueologia de contrato dentro do EIA/RIMA, onde se tem que optar por explorar todos os sítios localizados ou conhecidos ou explorá-los parcialmente, aplicando critérios técnicos. Eu perguntaria: é possível, diante do texto constitucional, admitir dano a patrimônio público de bem comum do povo nesses empreendimentos? É possível mitigar dano a bem de uso comum do povo? Me parece que não. Outro aspecto refere-se ao patrimônio arqueológico submerso e não gostaria que fosse entendido como correção, mas existe lei específica; essa lei foi publicada, eu não me recordo o número, mas uns dias antes ou depois da lei de ação civil pública. Não me espanta nada o colega que falou a respeito não a ter localizado porque ela mistura o navio naufragado de interesse histórico arqueológico com aquele navio que pode ser explorado comercialmente, que afundou ontem; houve uma mistura. Mas eu estou tocando no assunto não para trazer a existência da lei, mas para fazer uma pergunta aos colegas da área de Direito, como também ao coordenador da mesa, que é a seguinte: essa lei estabelece uma distinção entre o naufrágio com potencial histórico arqueológico e o naufrágio sem potencial histórico arqueológico por um critério exclusivamente temporal: o navio que naufragou de 1800 para baixo é histórico arqueológico, de 1800 para cá não é histórico arqueológico. Basta dizer que não são históricos arqueológicos nenhum daqueles naufragados na Guerra do Paraguai, nenhum daqueles naufragados na Guerra da Independência e outros. Então, eu gostaria de perguntar aos colegas da área jurídica se esse dispositivo de lei, diante da combinação do artigo 216 e do artigo 20, não estaria revogado, e ao colega arqueólogo se isso é correto tecnicamente. Muito obrigado. José Luiz de Morais - Com relação à questão dos bens submersos, eu acho que é um assunto extremamente mal resolvido, principalmente no âmbito da arqueologia, a questão da data do que é arqueológico ou do que não é arqueológico. Eu perguntaria: até o bem não submerso, quando ele passa a ser arqueológico? Então, eu acho que é uma questão carente de debate e nesse caso fica novamente a segunda sugestão, que eu faço ao Fórum para o Avanço da Arqueologia: que inclua este tema no elenco de reflexões; eu me considero pequeno e inexperiente em relação à arqueologia

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subaquática. Em termos de Brasil ela existe e é praticada esporadicamente, mas eu me sinto pequeno e insuficiente para expor alguma posição, de ordem pessoal ou profissional. José Eduardo Rodrigues- Com relação a essa questão, propriedade dos bens da União, as cavidades naturais subterrâneas, os sítios arqueológicos pré-históricos e históricos, faz surgir uma outra imprecisão. O que é um sítio arqueológico préhistórico, é fácil de deduzir, está na lei de 61; agora, e o sítio arqueológico histórico ? Por exemplo, há uma casa bandeirista no sítio do Tatuapé, de propriedade do município de São Paulo, desapropriada há mais de 30 anos. A prefeitura de São Paulo, foi lá e fez um levantamento nas paredes, no chão e fez todo o levantamento no sítio arqueológico. Ali é um sítio arqueológico até certo ponto. Nossas casas podem estar em cima de sítios arqueológicos, porque muitos prédios situados na cidade de São Paulo são sítios arqueológicos, basta que se cavem. É o caso da casa n0 1 do Pátio do Colégio, em que em uma restauração encontraram alicerces de taipa de uma casa muito anterior. Tecnicamente, é um sítio arqueológico, porém histórico; então, eu estou entendendo que os sítios arqueológicos e pré-históricos que estão sendo considerados bens da União, por uma imprecisão técnica devem ser aqueles mesmos que são mencionados como arqueológicos pré-históricos pela Lei n0 3.924 de 26 de junho de 61. Então, eu continuo entendendo que esses sítios que são lá descritos como sambaquis, cemitérios indígenas, que são coisas razoavelmente determináveis, do mesmo modo que as cavidades naturais subterrâneas, são bens de domínio da União. Agora, eu não sei como considerar, por exemplo, o solo da minha casa, debaixo dos tacos da minha casa, um sítio arqueológico. Aqui, no subterrâneo dessa universidade, pode ser que tenha existido uma fazenda colonial, e seja encontrado um sítio. Eu não sei até que ponto isso poderia ser transferido para a União, ou até que ponto a União poderia ter uma emissão de posse; é uma coisa interessante. O que eu vejo é que, no máximo, poderíamos ter uma outra interpretação, de que haveria uma fiscalização específica. Isso daria um direito à União de praticar uma fiscalização específica, porque no caso da lei de 61, também quando se faz um pesquisa arqueológica, o sítio pode se situar em um imóvel particular. Eu não entendo necessariamente que ele tenha de ser desapropriado; aliás, há a previsão da autorização do proprietário, quando você requer licença junto ao IPHAN. Então, esse domínio da União, no sentido fiscalizatório, talvez você possa excluir, mas esses sítios arqueológicos, para mim, continuam sendo o que a lei de 61 diz que são. O sítio arqueológico histórico, eu não imagino como da União; é o mesmo problema que foi levantado aqui, acertadamente, sobre a antigüidade do navios. Era a tese original de Mário de Andrade que os imóveis considerados antigos eram aqueles pelo menos com 50 anos; então, um tombamento como o de Brasília, que é patrimônio da humanidade, seria impossível; teria que se esperar que ela tivesse 50 anos. O simples fato de uma coisa ser pré-histórica, indígena, não lhe dá mais valor ou menos valor do que o fato de ela ter sido feita por portugueses no séc. XVII, no séc. XVIII, inclusive porque os sítios arqueológicos indígenas se encontram nos sambaquis e, em certas camadas dos sambaquis, encontram-se objetos que pertencem à cultura branca, que marcam uma transição euro-indígena e a sua influência diante da cultura portuguesa, da cultura do colonizador. Então, é lógico que eu acho que essa questão ainda é polêmica, mas, resumindo, eu acho que esses sítios arqueológicos préhistóricos são aqueles referentes aos indígenas e, com relação aos sítios históricos, a competência do Estado, Distrito Federal e municípios continua vigorante.

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Helita Custódio- Com relação à preocupação do Dr. Daury, é sempre aquilo que nós falamos, cada vez que formos considerar se uma norma é ou não, foi ou não revogada diante de uma norma superveniente, nós temos que fazer uma análise para dizer, de uma vez por todas, que não foi revogado. Não é muito para um jurista ou para qualquer um de nós, profissionais, que temos que pensar na ciência do raciocínio. Temos que dar uma conclusão, uma reposta àquela pergunta; nesse caso, nós temos que fazer uma análise, uma interpretação científica, em conjunto. É muito difícil para nós, às vezes, diante de textos combinados contra os textos anteriores, dizer que foi revogado , não foi revogado, temos que ver bem qual o objetivo da norma. O objetivo da norma é aumentar a proteção, é proteger a norma. Nós temos que interpretar, refletir e analisar em conjunto todo texto, porque nós, juristas, temos que ter muita cautela nessa questão de interpretação científica. Hoje, há uma necessidade muito grande de se evitar interpretações contrárias ao espírito da lei. O importante é o espírito da lei, se a razão da lei está prevista na lei anterior e na lei posterior, mas a lei anterior é insuficiente, então vamos completar, vamos ajustar o seu espírito ao espírito da norma posterior; se é incompatível, simplesmente não se fala mais na regra anterior. Ela foi simplesmente revogada, expressamente ou implicitamente, porque ela é incompatível; se ela é compatível, ela permanece; então, isso é uma questão de interpretação científica diante de cada circunstância, diante de cada caso concreto. No tocante à sua pergunta, se é possível haver dano a bem de uso comum do povo, diante de empreendimentos degradadores, não tem dúvida que esse dano é previsto na Constituição também, Daury. A própria Constituição, parágrafo 3 0 do artigo 225, é taxativa, é claríssima nesse caso. Aqui não se faz nenhuma separação, trata-se de empreendimento público ou privado, não interessa seja qual for a pessoa responsável pelo empreendimento que causou o dano, esse deve ser necessariamente ressarcido. Veja que é a norma do capítulo: todos tem direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo; é norma geral, devendo o poder público e a coletividade defendê-lo e preservá-lo. Vem agora o parágrafo 3º: as condutas e atividades consideradas lesivas - qualquer conduta, seja diante de um empreendimento público/privado, licenciado ou não licenciado, não interessa: se aquele empreendimento ocasionou dano ao bem de uso comum do povo, não tem dúvida que o seu responsável os infratores, pessoas físicas ou jurídicas estão sujeitos a sanções penais, administrativas e civis, independentemente, no sentido de reparar os danos causados. Essa norma aqui não exclui ninguém: se há dano, como diz Pontes de Miranda, “danou, pagou”. Outro dia, quando alguém começou a subestimar a capacidade do brasileiro, chegou-me em casa um trabalho para eu emitir um parecer sobre uma crítica sobre a expressão usada pela ONU, a respeito do Direito Nacional de Desenvolvimento Sustentável; foi uma crítica violenta, porque um autor inglês disse que isso aí foi para iludir os coitadas das pessoas dos países de terceiro mundo, para tomar os nossos bens. Eu disse: tenha cautela com essas críticas precipitadas, „desenvolvimento sustentável‟ é uma expressão talvez não muito simpática, mas é uma expressão correta; foi concluída por mais de 500 cientistas do mundo inteiro, tendo sido adotada pelo documento da ONU. É isso o desenvolvimento sustentável”: evitar a exploração irracional que acabava com tudo; tem que haver uma exploração racional, através de um planejamento, através de zoneamento, através de programas e de projetos adequados, que sejam racionais no sentido de preservar. Vamos conciliar o desenvolvimento social, econômico, agrícola ou urbanístico com a preservação; não quer dizer que a natureza seja intocável; nós vamos conciliar, compatibilizar os recursos ambientais e culturais para as presentes e futuras gerações, porque nós aqui só temos remanescentes, nós temos que cuidar deles para as futuras gerações. Eu 251

disse, também, que não vamos subestimar a inteligência da pessoa humana. A pessoa humana é capacitada em qualquer lugar do planeta, pode estar nos países do primeiro mundo, do segundo mundo ou do terceiro mundo, não importa. E voltando a Pontes de Miranda, que foi um dos maiores juristas brasileiros, considerado e respeitado em toda a Europa, seu trabalho sobre o tratado de Direito Privado não tem similar em nenhum país do mundo. Então, não vamos subestimar a nossa capacidade intelectual. Somos pessoas humanas e como tal temos capacidade para nos desenvolver e aperfeiçoar continuamente e dar a nossa colaboração, a nossa contribuição, à solução dos grandes problemas, como também para ver se uma norma é ou não revogável, ou mesmo se um atentado ou um dano ao bem de uso comum do povo é ou não ressarcível, e, nesse caso, se danou tem que pagar Não interessa se for poder público, privado, físico ou jurídico, não tem importância, vai ter que pagar. José Luiz de Morais - Surgiu uma pergunta ao Dr. Roberto e ao Dr. José Eduardo. A pergunta é dirigida por Antônio Menezes Júnior e diz o seguinte: questão sobre a competência do IPHAN em regular a proteção de bens culturais, através de portaria ministerial: 1º) quais os limites de ação das diversas instâncias da administração pública; 2º) como ficam a importância e as atribuições do poder local ? Roberto Monteiro - Antes de mais nada, vou usar o microfone para reconhecer a minha incompetência na matéria e vou deixar para o Dr. José Eduardo, mesmo porque infelizmente eu estou com meu tempo ultrapassado. Eu apenas lembraria de forma genérica, já que concretamente eu não teria aqui elementos para uma reposta adequada à indagação, que isso é realmente um vezo realmente administração pública brasileira, legislar pela via de instrumentos normativos como as portarias, e, sempre que se faz uma pesquisa mais cuidadosa, a constatação é que muitas dessas portarias, aliás, a grande maioria delas, incursionou num terreno reservado à lei. Embora essas portarias acabem sendo observadas, acabem sendo invocadas, acabem disciplinando essa distribuição de atribuições, com muita freqüência o resultado das pesquisas levaria a uma conclusão meio catastrófica, de que a proteção de determinados bens acaba construída ou erigida sobre um edifício extremamente frágil. Quanto ao tema concreto, realmente afirmo a minha incompetência e passo a palavra ao Dr. José Eduardo. Agradeço demais; foi uma oportunidade excelente de convívio com vocês e espero que esses encontros sejam cada vez mais freqüentes, dentro daquela idéia de que o Ministério Público não existe sem vocês, sem a ajuda de vocês e sem a participação de cada um que compõe a sociedade. Muito obrigado. José Eduardo Rodrigues - Essa questão é a questão crucial do Direito administrativo brasileiro, especialmente o segundo tópico - quais os limites da ação das diversas instâncias da administração pública. Eu colocaria aqui a questão sobre a competência do IPHAN em regular a proteção de bens culturais através de portarias ministeriais. Eu teria que lhe dizer o seguinte: depende de como está sendo elaborada essa portaria, porque toda portaria, todo ato administrativo, está restrito ao princípio da legalidade; então, tem que ter fundamento legal, a partir de uma determinação legal elaborada pelo poder legislativo. Por exemplo: o conselho consultivo é responsável pelo tombamento; como a lei não diz como ele deve funcionar, presume-se que ele funcione, mas não diz como. Então, a portaria pode ser escrita por um regimento interno e aprovado pelo conselho, um ato inferior, mas a lei abre espaço para isso. O que não se pode fazer, e acaba-se fazendo no Brasil é o seguinte: primeiro, você tem uma lei, depois você cria um decreto regulamentar repetindo a lei. Não precisa ficar

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repetindo o que está na lei; o que está na lei é básico. Você vê isso na consolidação das leis da previdência social ou pelo menos o que era antigamente: você tinha a lei e um regulamento que repetia tudo que a lei dizia, só acrescentava algumas coisas estratégicas, que por um acaso não estavam previstas na lei e que, portanto, eram ilegais. Você não pode inovar no regulamento, regulamento não inova. Regulamento tem que se ater à lei. Por outro lado, quais são os limites das diversas instâncias da administração pública? Vamos dizer no aspecto do patrimônio cultural; é aquela questão da competência concorrente e da competência comum, que foram colocadas aqui pela Dra. Helita. Que existem conflitos, existem, sem dúvida. Agora, eu acho que, como o dever maior constitucional é a preservação do patrimônio cultural, se um mesmo imóvel tem tombamento federal, estadual e municipal, prevalece o tombamento que tiver uma regra mais restritiva, mais protetiva. Não há uma hierarquia; não é a norma federal que prevalece sobre a estadual, a estadual e esta sobre a municipal: cada uma atua na sua esfera. E como fica a importância das atribuições do poder local ? Fundamental, como se podem ver, nesses aspectos. Existe um entendimento no CONDEPHAAT, de São Paulo, que eu também acho errado. Diz o seguinte: que o IPHAN tomBa os bens de interesse federal, o CONDEPHAAT os bens de interesse estaduaL e o Município, os bens de interesse municipal. Isso é uma bobagem, porque aí você esta inovando em relação à Constituição. Neste caso, você pode fazer a mesma analogia das portarias com a lei superior: a lei superior é a Constituição, uma lei inferior não pode inovar. No caso, o CONDEPHAAT inovou por uma portaria: esse é o entendimento que eles têm. Vamos dizer que eles coloquem na portaria que o CONDEPHAAT só vai proteger os bens de interesse estadual. Agora, me diga uma coisa: existe algum bem de interesse estadual, que não seja municipal ? Só interessa ao Estado de São Paulo; o Estado de São Paulo faz parte do que? Não faz parte do Brasil? A Constituição diz que tem patrimônio cultural federal, patrimônio cultural estadual, patrimônio cultural municipal? Não diz, diz que tem um patrimônio cultural brasileiro que é um todo, o resultado de todo o trabalho do povo brasileiro nas suas diversas atividades, como bem colocou aqui o Dr. Caldarelli. Então, o CONDEPHAAT não pode inovar nesse ponto, ele não pode dizer que o bem tem valor, mas esse valor é só local. Então, eu me omito e o que acontece? O município não tem tombamento, não tem nada, e o bem é perdido. O que acontece, nesses casos, é que o judiciário de São Paulo tem feito um trabalho muito bom, de declarar o bem preservado por via judicial, porque acontece muita briga de Câmara com prefeito. O prefeito decide que quer preservar e o CONDEPHAAT se omite; o Estado diz que aquilo é de interesse local, é bonito e tal, mas é de interesse local. O prefeito é a favor, quer que desaproprie, a Câmara veta. Aí, o que em geral acontece é que um vereador apresenta um projeto de lei e o prefeito vai lá e veta. Aí, a Câmara vai lá e derruba o veto. Então fica naquela briga e, como se diz: um cão com vários donos morre de fome. E ninguém se decide a preservar. O Ministério Público fez isso em Ribeirão Preto: havia um imóvel chamado Hotel Brasil, de importância para a cidade e, como ninguém se habilitava a preservá-lo e o proprietário estava quase demolindo, o que ele fez? Entrou com uma ação civil pública e pediu a preservação cautelar do imóvel. O juiz não concedeu a medida liminar. Eu não estou recordando todo o andamento da ação, mas o que interessa é que o Tribunal de Justiça decidiu que é possível tombamento por via judicial e anulou a sentença do juiz, que dizia que o judiciário não pode tombar. O Tribunal questionou essa sentença, dizendo que sim, pois cabe ao judiciário, como a todo o poder público,

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preservar o patrimônio cultural também. Então, na medida que existe também a ação civil pública e que existe um dano, como ressaltou o Dr. Caldarelli, não visa a Constituição o patrimônio cultural que é tombado, mas o patrimônio cultural citado pelo Artigo 216. E a pretensão da população provou-se legítima, através de perícia de técnicos, que confirmaram que o bem tinha valor cultural. Cabe ao juiz declarar o valor judicial, na sentença judicial. Eu entendo que deve condenar a Prefeitura a preservar o imóvel ou o Estado, se a Prefeitura não tiver condições e a União, se o Estado não tiver condições de preservar, porque cabe aos três entes preservarem. No Estado de São Paulo, o IPHAN só cuida lá das casas bandeiristas porque são as únicas de interesse nacional; do século XIX, nada presta. No Estado de São Paulo, perdeu-se tudo por omissão do IPHAN: Vitor Dubugras, não existe mais nada; Ekman, sobrou só o prédio da FAU, provavelmente porque o CONDEPHAAT tombou. Eu me pergunto, por exemplo: por que o IPHAN tomba o Teatro Municipal do Estado do Rio e não tomba o de São Paulo? Porque o Teatro Municipal do Rio é de interesse nacional e o de São Paulo não é, e o de Goiânia? Se o do Rio de Janeiro é de interesse nacional, também é o de Jundiaí, o de Goiânia, o de Cuiabá, o de São Paulo, o de todos. É de interesse de todo o Brasil que se tenha teatro e teatro antigos de valor arquitetônico. O IPHAN parece o que diziam de D. Pedro II, que só cuidava do Rio de Janeiro. Diziam que os prédios da avenida Rio Branco eram ecléticos, bolos de noiva, e de repente decidiram tombar os que sobraram. Na avenida Paulista, não houve nenhuma mobilização desse tipo, porque só é São Paulo, é província. O Rio Janeiro não é mais a Capital do país, quer queiram ou não queiram. Muito obrigado. José Luiz de Morais - Por favor, o Carlos parece que quer completar alguma coisa. Carlos Caldarelli - Eu quero somente chamar a atenção para o seguinte: antes da Constituição de 88, de fato, o tombamento tinha uma importância fundamental porque ele era o único critério para se incluir um determinado bem no patrimônio histórico artístico nacional. Hoje certamente não é mais assim. Hoje, entende-se que o valor de um bem, o valor histórico, artístico, etc. de um bem, precede a sua declaração pela autoridade administrativa. São muitos os julgados nesse sentido, mandando que se tomem outras medidas, que não o tombamento, com o fito de preservar o bem, que se reconhece pertencer ao patrimônio cultural brasileiro, não por ter sido tombado, mas pelo seu valor intrínseco. José Luiz de Morais - Dra. Lylian Coltrinari, da USP. Lylian Coltrinari - Também congratulo os membros da mesa, e peço licença para fazer algumas considerações e pedir esclarecimentos sobre aquilo que a lei atual ou, digamos, os dispositivos legais atuais, incluem. Começarei fazendo uma pequena correção ao Dr. José Eduardo, e dizendo que granito não é fóssil. Granito é uma rocha formada dentro da Terra; não é fóssil porque não é formada por matéria viva que ficou soterrada, mas originou-se a partir de processos internos. Ainda que a definição de fóssil corresponda a aquilo que é retirado da terra, só é fóssil o que foi vivo -ou produzido por um ser vivo, como as marcas que o homem, as plantas e os animais deixaram. O petróleo, sim, é de fato fóssil. Queria me remeter à primeira questão e chamar a atenção, talvez, para questões semânticas ou epistemológicas. Por exemplo, as considerações sobre o conteúdo paleontológico que se encontra nos depósitos. Os paleontólogos que me

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desculpem, mas sou geógrafa, trabalho com geologia do Quaternário, e algumas questões precisam ser esclarecidas. Vou considerar em parte o que Carlos Caldarelli falou, com base no que atualmente se conhece sobre os estágios mais recentes da história da Terra e que, às vezes, não é conhecido por todos os que trabalham na interface da arqueologia, da antropologia física ou áreas semelhantes. Quero chamar a atenção para um tipo específico de fóssi; para a maioria das pessoas, paleontologia diz respeito ao homem, aos grandes mamíferos, mas não consideram, por exemplo, os nanofósseis dos fundos marinhos, dos fundos de lagos e rios; ou, menos ainda, lembram dos grãos de pólen, que são microfósseis vegetais, da mesma maneira que os nanofósseis dos crustáceos fizeram parte do mundo animal. Eles são muito importantes, não do ponto de vista arqueológico, mas do ponto de vista da reconstrução dos paleoambientes terrestres. Não fosse pelos nanofósseis marinhos, hoje não teríamos uma idéia mais precisa das divisões do tempo geológico mais recente, que é o Quaternário. Por isso, se o sentido da lei fosse estendido, os fundos marinhos também deveriam ser preservados, já que eles são um bem -e aí uma distinção, a micro paleontologia e a palinologia estudam objetos naturais; o grão de pólen é parte de uma planta e o nanofóssil é a casca de um antigo animal marinho. A partir do momento em que se reconhece que eles informam a respeito da história do ambiente global, natural e humano, passam a ser parte do patrimônio cultural, ainda que, essencialmente, sejam bens naturais. Essa é uma questão. Eu queria levantar outra, do ponto de vista não da paleontologia mas das marcas fósseis. Não estou a par do código dos geólogos, os códigos de preservação, mas penso que pode ser aplicado -do ponto de vista da reconstrução paleoambiental, o mesmo critério às marcas de ondas de mares antigos em antigas praias, da mesma maneira que às paleodunas. Muitas delas foram contemporâneas dos dinossauros, por exemplo, estão preservadas nas rochas do Mesozóico. Então elas também são bens e fazem parte do patrimônio cultural ainda que sejam essencialmente bens naturais. Minha pergunta é se não seria possível, em algum tipo de instrumento legal a ser proposto, que se considera-se aquela lista que Carlos denunciou, simplesmente como exemplo dos casos a serem considerados; que se pensasse na possibilidade, não de incorporar todo o detalhamento, mas de fazer com que, quem elabora os instrumentos legais, fosse assessorado por especialistas. A ciência está fazendo continuamente uma renovação e uma rediscussão dos conteúdos anteriores; seria interessante que a legislação tivesse condições de acompanhar, ainda que de longe, essas mudanças. É claro que isso não seria detalhado no EIA/RIMA, mas seria um grande avanço se fosse levado em consideração. Que aquilo que o instrumento legal mumifica não fique mumificado na realidade da pesquisa científica, que a complexidade do ambiente esteja presente no espírito das pessoas que trabalham nessa interface. Nesse sentido, é só o que tenho a dizer. José Luiz de Morais - Eliete Maximino, da PUC - Santos. Eliete Maximino - Dr. Eduardo, o senhor me desculpe, mas apesar das suas explicações, eu ainda tenho dúvidas. Eu tenho uma licença do IPHAN para trabalhar e resgatar o material submerso; a Marinha diz que eu não posso, porque o material pertence a ela. Então, como eu faço: cumpro a portaria do IPHAN, retiro o material e faço o trabalho, ou espero a Marinha me dar essa autorização? E a Marinha ainda afirma que o material deve ir diretamente a ela, não pode ficar na região onde, atualmente, se encontra submerso. E outra coisa: a lei me obriga a informar à Marinha o local onde está o material submerso; sou obrigada a isso por lei? 255

José Eduardo Rodrigues- Em primeiro lugar, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada, se não em virtude de lei. Em segundo lugar, quando eu falei da portaria, eu disse que ela não era em si inconstitucional necessariamente, porque ela buscava regulamentar um tipo de atuação. Agora, sem dúvida, a portaria tem uma fragilidade; é difícil encontrar um fundamento para ela na Constituição. (...) Você judicialmente poderia defender a tese de que os bens, como bens de valor cultural, pertencentes ao patrimônio cultural brasileiro, devem estar sob fruição da comunidade, do povo, como diz mais ou menos o artigo 216. Se a Marinha vai retirar os bens e levá-los para fora da comunidade, para onde não podem ser fruídos, é óbvio, que está causando, ao meu ver, um dano ambiental. Se é patrimônio cultural, é patrimônio cultural do povo, não é só da Marinha. É uma coisa à qual tem de ser dado tratamento museológico, de exposição mesmo. Então, eu acho que cabe uma ação civil pública, cabe através de entidade de preservação do meio ambiente há um ano instalada ou através até do seu sindicato de classe; não existe sindicato dos arqueólogos, mas deve ter alguma associação que defenda os interesses dos arqueólogos, a qual teria legitimidade para propor essa ação, ou o próprio Ministério Público, porque é o caso do direito da pesquisa científica. Haveria a necessidade de se fazer uma perícia que justificasse o motivo, porque o bem não passaria à propriedade da Marinha, passaria à propriedade da União, mas propriedade da União para que? Para fazer o que com ele? Sem uma finalidade, não se justifica, porque o que você encontrou está no mar. Então, eu acho perfeitamente defensável, nesse sentido, a sua proteção. Mas você falou de um parecer: existe um parecer da Marinha a respeito? Eliete Maximino - Doutor Eduardo, tem um probleminha, o parecer só seria dado a partir do momento em que nós determinássemos o local exato aonde está situado o material submerso. José Eduardo Rodrigues- Aí, você pode propor uma ação cautelar preventiva; não digo você, mas o Ministério Público, porque a ação civil pública não é possível que seja movida pelo indivíduo, só por associação, por sindicato, pelo Ministério Público, e haveria uma medida cautelar para assegurar a atividade de pesquisa. Porque, mesmo que eles venham com parecer, esse parecer tem que ser justificado, não é dizer: olha, o bem tem valor excepcional, porque nós entendemos que o valor é excepcional e então tem que tornar-se bem da União. Não é assim, tem outros elementos, além do elemento histórico. Esse é um ato administrativo. Ele é discricionário, mas por ser discricionário, tem de ser justificado. Então, se você encontrou uma peça que seja vendida em qualquer lugar por aí e eles disserem que vão tomar a peça porque é excepcional, cabe a você discutir isso, inclusive em perícia judicial, através de ação judicial. José Luiz de Morais - Chamo agora Maria José Nazaré, do Ministério Público do Estado do Amazonas, que dirigiu uma questão ao Dr. José Eduardo. Maria José Nazaré: Gostaria que vossa excelência avaliasse a questão da competência para analisar a questão dos recursos arqueológicos. A Resolução CONAMA 01/86 fala sempre em licenciamento pelo órgão estadual competente; o IPHAN, por sua vez, por uma portaria, diz que o empreendedor deve requerer autorização para executar a atividade arqueológica; na prática, como fica o empreendimento licenciado pelo OEMA e não pelo IPHAN?

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José Eduardo Rodrigues - É o seguinte: o licenciamento ambiental não exclui os outros; aliás, um bom licenciamento ambiental deveria condicionar a realização de outros licenciamentos. No tempo em que eu era conselheiro do Consema, era muito comum. Você recebia um projeto de loteamento, não estava claro, mas requeria previamente um licenciamento do Município, porque um licenciamento não exclui um outro. Um outro caso clássico que acho claro, é o inciso 60 do Artigo 2º, que fala em extração de minérios, inclusive os da classe dois, definidos no Código de Mineração. Quando se aprova um EIA/RIMA de extração de minério, não se está a excluir o alvará do processo de mineração, que começa pela autorização de pesquisa, depois tem análise do relatório pelo DNPM, depois a concessão do alvará. Então, esses processos podem ser tocados simultaneamente. Inclusive, eu anulei uma autorização judicial. Resumindo, um determinado minerador tinha um alvará e o proprietário, dono de uma área de mata nativa, estava impedindo a entrada dele porque considerava danoso ao meio ambiente, mas ele tinha uma autorização de pesquisa do DNPM e foi concedida a liminar para ele entrar na fazenda. Então, essa liminar foi cassada, com a justificativa de que não havia o licenciamento ambiental, quer dizer, havia o licenciamento minerário mais não havia o licenciamento ambiental. Do mesmo modo, também podeM acontecer situações em que há o licenciamento ambiental e não o minerário e, do mesmo modo, o arqueológico. Então, são processos que devem ser paralelos e que devem procurar se compatibilizar entre eles, dentro da competência comum da Constituição. Se você tem uma área de mata nativa, por exemplo, o IPHAN só pode conceder autorização de pesquisa arqueológica se causar o mínimo dano ambiental possível e a posterior recomposição da área. Então, na prática, a questão de como fica a situação do empreendimento licenciado pelo OEMA - Órgão Estadual de Meio Ambiente e não pelo IPHAN: é necessário a licença deste último, também. Uma licença não exclui a outra. Maria José Nazaré - Então Dr. Eduardo pela sua ótica, embora o estudo prévio de impacto ambiental seja entregue para o Órgão Estadual de Meio Ambiente e contemple, dentre outros assuntos, o patrimônio arqueológico, isso não significa necessariamente que estão satisfeitas as exigências do órgão federal e nem que a licença concedida pelo órgão estadual tenha a concordância do órgão federal: é um outro processo, que inclusive pode demandar um outro estudo prévio de impacto ambiental, junto ao órgão federal. José Eduardo Rodrigues- O loteamento está autorizado pelo Município, mas o estado entende que é área de manancial e tem que preencher requisitos. Aí, você apresenta o EIA/RIMA; uma coisa não exclui a outra. Agora, o que tem que haver é uma compatibilidade. Por exemplo, um órgão municipal, ou estadual pode entender que não cabe EIA/RIMA, mas pode haver um órgão de preservação que entenda que cabe EIA/RIMA. Sendo razoável a exigência, tendo fundamento legal, não há como se eximir. Também pode haver situações em que o município exclui arbitrariamente, como acontece no município de São Paulo, onde ele exclui projetos de menos de 60.000m2 do estudo de impacto de vizinhança. como é chamado. Isso é inconstitucional, porque não interessa o tamanho, e sim o dano. Se eu faço um depósito de gás num bairro residencial de 10m3, eu causarei um impacto ambiental terrível.

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Maria José Nazaré - Então você já me esclareceu, é uma questão específica . No caso, pode ser requisitado um novo estudo prévio de impacto ambiental, um outro licenciamento para a questão arqueológica. Obrigada. José Luis de Morais - Solange, por favor. Solange Caldarelli - Eu só queria fazer uma colocação em relação ao que o Dr. José Eduardo disse antes: cuidado Essa questão de você estar preocupado com sua casa, porque você pode ter um bem do século XVI ou XVII, um bem bandeirista embaixo do assoalho, atenção! se você escavar mais um pouco, mais para baixo, é possível que encontre remanescentes indígenas. Sítios indígenas também se encontram nas áreas urbanas; aliás, estas cresceram sobre eles. Agora, pelo que entendo, de acordo com a legislação, você não precisa permitir que ninguém pesquise o subsolo de sua casa, mas você não pode destruir, você é obrigado a preservar o bem arqueológico que se encontra enterrado debaixo de sua casa. José Eduardo Rodrigues - Essa colocação que você fez veio reforçar ainda mais a questão de que, mesmo em relação ao sítio arqueológico pré-histórico, quando se fala em domínio da União, não se fala em domínio-propriedade da União, e sim que a União vai exercer uma fiscalização sobre ele. Isto reforça ainda mais o que eu disse; eu te agradeço. José Luiz de Morais - Agora Ana Cláudia, do DID/IPHAN. Ana Cláudia - Eu queria fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, quero discordar do professor Caldarelli. Não entendemos que o que houve na Constituição tenha sido uma simples mudança de nome: patrimônio cultural e patrimônio histórico, artístico, arqueológico e tal não são apenas nomes, são conteúdos. Portanto, houve uma abertura, houve uma democratização do conceito, no sentido de que não apenas o patrimônio consagrado pelos governos, pelas elites, sejam considerados; nesse ponto, concordando com que o Sr. falou, é um avanço, sim. Agora, quanto às formas de acautelamento, eu discordo. Acho que toda lei depende de interpretação, como, aliás, foi reafirmado por alguns membros da mesa. Acho que o Decreto 25, a Lei 3924, enfim, toda a legislação é um grande guarda-chuva e, como você mesmo disse, é uma utopia a gente poder caminhar até lá. A outra coisa, ainda em relação à Constituição, à legislação e à ação do Estado na área de preservação do patrimônio, é que, se a gente defende que a Constituição não consagra mais o termo Nação, e sim União, de Estados, Municípios e Distrito Federal, afirma-se, em todos os documentos oficiais do Ministério da Cultura, que não se tem uma identidade nacional, mas uma identidade de culturas que são particulares. Já se admite isso, se coloca em documentos oficiais; não é possível que se admita que o patrimônio nacional una tudo, que patrimônio local seja patrimônio nacional. Sobre isso, de fato, o IPHAN não tem um critério claro. Nós também temos grandes discussões internas. Por que é que o conselho do IPHAN tombou isso e não tombou aquilo, que está esperando há mais tempo. Mas o critério do que é representativo, do que é testemunho de uma história de construção da sociedade brasileira, é diferente, sim, do que é representativo da história da sociedade de um determinado município, de uma determinada região, de um determinado estado. Portanto, é perfeitamente factível que tenha tombamento em nível local, em

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nível estadual e em nível federal, considerando que, assim, o estado nada mais faz do que reconhecer a importância que a sociedade dá a esses bens em alguns momentos. Porque quem propõe o tombamento não são os técnicos do IPHAN, mas pessoas da sociedade, e, no caso, aplica-se sempre a legislação mais restritiva das três, quando se tem os três tombamentos. Eu gostaria, não sei se todos conhecem, de recomendar o livro “O Estado na Preservação de Bens Culturais”, de Sônia Rabello de Castro, editado pela Renovar em 91, onde ela faz um estudo de toda a legislação disponível, inclusive a Constituição de 88. Carlos Caldarelli - Essas são questões apenas aparentemente polêmicas. O que devemos ter presente para enfrentá-las são as regras da Lei de Introdução ao Código Civil. Por elas, a revogação se dá tanto explícita quanto implicitamente e não se pode considerar que uma norma só revoga outra quando diz textualmente isso. O que a Constituição derrogou do DL 25, o que nesta última norma é incompatível com ela, é o ranço autoritário de fazer a pertinência de um bem ao patrimônio cultural depender do seu tombamento pela autoridade administrativa. José Eduardo Rodrigues - Eu, como advogado, diria que a sociologia é ramo do Direito e uma ciência social. O patrimônio seria do Direito, seria um patrimônio jurídico da nação brasileira. Então, não tem finalidade essa discussão. Agora, com relação ao patrimônio cultural, aí eu descordo completamente da colocação de que existem patrimônios culturais que correspondem à nação, etc. Sou adepto do que diz Tolstoi nos dois últimos capítulos da “Guerra e Paz”: a História é feita pelas massas; essa é a minha opinião. Então, não tem sentido dizer que o Teatro Municipal do Rio de Janeiro é mais importante para a formação da nação brasileira do que o Teatro Municipal de Goiânia. José Luiz de Morais - Professor Eurico Miller. Eurico Miller - O que me preocupa profundamente é aquela grande massa de sítios arqueológicos, lá no meio da Amazônia, que não estão facilmente ao alcance da justiça, como as áreas urbanizadas, mas que estão nas mãos daqueles distritos, nem estados, nem municípios de fins de linhas, como, por exemplo, um exemplo gritante: Rondônia, que em poucos decênios tem dois milhões de agricultores em cima de sítios, inocentemente destruindo o patrimônio cultural. Eu tenho feito trabalhos desde a América do Norte até o sul da América do Sul, em lugares que agora são desertos, que agora são pantanais e que há poucos milênios atrás possuíam aspecto biogeográfico diverso. A evolução do homem é de predador para produtor; alguns ainda se encontram no estágio de predadores e aí esse conceito de história e préhistória se complica; por exemplo, no litoral do Brasil, o Uru-Eu-Wau-Wau ainda é pré-história; então, tem muita coisa para discutir. O homem como predador permaneceu em pequenos bandos nos últimos cinco milhões de anos, perambulando pelo planeta. Pelos dados que a gente conseguiu aqui no Brasil, que não pode se excluir do resto da Amércia do Sul, porque cultura não tem fronteira política e tem as migrações, difusões, o homem, como nômade e predador, vai até cerca de seis mil anos atrás, quando começam a surgir alguns produtores. Aceitando que o Brasil já era todo ele ocupado há doze mil anos atrás, nós temos sete, oito mil anos de nômades fazendo pequenos sítios por todo o território e, como está sendo comprovado agora, também na Amazônia. O problema é que lá na Amazônia o avanço é muito mais lento que nas áreas urbanizadas que nós estamos discutindo. A lei, nessas últimas,

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rapidamente pode tomar uma atitude, salvar pelo menos uma parte, mas aqueles não estão ao alcance da lei. Tem tradições que a gente conhece na Amazônia representadas apenas por um sítio arqueológico. Como é que ficam, então, esses sítios arqueológicos, que são 60% do território nacional ou muito mais; tirando as áreas urbanizadas que estão relativamente protegidas pela legislação, como é que ficam os demais, perante a proteção efetiva? Como disse um participante, há poucos dias, em quinze anos não teremos mais nada. Uma hipótese: haveria um mecanismo para fazer com que os prefeitos de cada município, lá no fundo de Rondônia, Roraima, Acre tivessem alguma responsabilidade? Carlos Caldarelli - Eu queria oferecer, ao Sr. e à nossa colega de simpósio que acabou de se retirar, uma resposta breve: Todos nós aqui presentes somos antes de qualquer coisa advogados. Assim, a nossa perspectiva é sempre buscar a melhor maneira de defender o direito ameaçado de lesão. O problema que o Sr. está colocando, assim como a questão da nossa colega de simpósio que se retirou, levam ao mesmo questionamento: Qual a melhor maneira de ler essas leis todas, no sentido de proteger o patrimônio cultural brasileiro? A única resposta para essa questão é dada pelo direito de ação... Eurico Miller - Só um aparte: nós temos órgãos ministeriais, como a SUDAM, que tem claros fins econômicos, suspeitos, ligados a grandes fazendeiros. Massacraram dezenas de aldeias Nambiquara no rio Guaporé. E daí vem aqueles fazendeiros, com moto serra e devastam tudo, 100Km de sítios arqueológicos; quando a lei chegar lá, não haverá mais nada. Carlos Caldarelli - Sem interromper, e já interrompendo, o instrumento que é posto, hoje, à nossa disposição é o processo judicial e o processo judicial depende da nossa iniciativa. Ele não atua sozinho, ele só funciona com a nossa provocação. Então, o que eu aconselho a todos os que querem ver direitos efetivados é sempre estar vigilantes e recorrer a esses instrumentos, porque isso é um direito que nos assiste a todos, enquanto cidadãos brasileiros. Helita Custódio - A pergunta é tão importante; a preocupação do Sr. é tão relevante: nós temos que orientar, e muito, as entidades da federação. Eu gostaria dizer ao Sr. da importância de um município bem orientado. Se nós não partirmos do município para fazer um levantamento de seu território, para verificar todos os bens culturais, com a colaboração ao Estado, que fará no seu território estadual, como a própria União, sem esse trabalho harmônico nós não podemos fazer nada. Então, eu gostaria que o Sr. pedisse à Dra. Solange uma cópia do trabalho sobre os municípios que nós apresentamos, porque eu sou da área do município e é uma preocupação profunda minha o que o município pode fazer, se nós orientarmos bem. Ele é que tem a competência direta. Eurico Miller - Os Municípios têm muita conotação política, que varia de 04 em 04 anos, o que é um perigo. Um grupo durante 04 anos cumpre de boa vontade a lei; o seguinte não cumpre. Suzanna Sampaio - Mas é uma questão de orientação, com responsabilidade, no sentido de preservar os sítios. É um negócio de orientação, educação.

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Eurico Miller - Se o que eles querem é se manter no poder, daí o que manda é a relação social do proprietário com o pretendente ao poder. Suzanna Sampaio - Esse é o problema da educação ambiental. Se se tem conscientização daquilo que se tem de fazer, isso será feito. Por isso é que eu me bato sempre. Sem a educação ambiental em todos os níveis de governo, em todos os níveis da sociedade, nós não vamos preservar. Isso é um problema nosso, por isso nós estamos aqui tentando fazer isso: a conscientização nossa já é uma conscientização que leva para o outros, não só para as pessoas físicas mas para as pessoas jurídicas. É um desafio. José Luiz de Morais - Bem, eu acho que está esgotado o tempo das discussões. Passo, então, para a Solange encerrar.

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ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil

DOCUMENTO - SÍNTESE “Tendo em vista o consenso de que a base de recursos arqueológicos do país é finita e não renovável; constitui legado das gerações pretéritas às gerações futuras, não sendo lícito impedir-se sua transmissão aos seus legítimos herdeiros; para assegurar que estes não sejam lesados em seus direitos, o Simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural”, realizado em Goiânia, de 09 a 12 de dezembro de 1996, faz as seguintes recomendações, no que concerne ao trato da questão arqueológica nos projetos mencionados na Resolução CONAMA nº 001/86: 1. As pesquisas arqueológicas devem necessariamente ser implementadas desde a fase dos estudos de inventário de empreendimentos potencialmente geradores de impacto ambiental, uma vez que o objeto de estudo da arqueologia não é facilmente identificável, encontrando-se na maioria das vezes no subsolo e requerendo estratégias de longo prazo para a sua identificação e avaliação. 2. Nos estudos de viabilidade ambiental e nos diagnósticos previstos nos EIA/RIMA, deve ser sempre avaliado o potencial arqueológico de todas as alternativas de estudo, com base em fontes secundárias e primárias. 3. Para avaliação dos impactos, deve ser sempre fornecido aos arqueólogos documento detalhado sobre os procedimentos tecnológicos próprios do empreendimento em estudo, para identificação dos fatores geradores de impacto e avaliação de sua magnitude. 4. Uma vez escolhida a alternativa a ser implementada, durante o PBA (Plano Básico Ambiental), recomenda-se levantamento arqueológico intensivo, com intervenção no subsolo, para detalhamento adequado dos programas propostos no EIA. Ao final do levantamento, os programas formulados ao final do EIA poderão sofrer revisão e acréscimos, devendo a concessão da LI (Licença de Instalação) estar condicionada ao compromisso do empreendedor com a sua execução. 5. Os programas de mitigação, compensação e monitoramento dos impactos arqueológicos devem considerar os estudos anteriomente realizados, obedecer a critérios científicos e compreender, além das pesquisas de campo, as análises de laboratório, a curadoria do material e a publicação dos resultados.

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6. Em todas as fases dos estudos ambientais atrás mencionados, as pesquisas arqueológicas devem estar previstas nos termos de referência correspondentes. 7. Em todas as fases acima, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN deve ser ouvido, com relação à necessidade de concessão de autorização prévia de pesquisa. Havendo necessidade dessa concessão, o órgão deverá emitir a portaria de autorização em prazos compatíveis com o cronograma dos estudos. 8. Todos os resultados dos estudos realizados nas fases acima mencionadas, mesmo aqueles baseados em fontes secundárias, devem ser encaminhados ao IPHAN, para conhecimento. 9. Embora todos os resultados dos estudos arqueológicos realizados possam ser utilizados pelo contratante, o direito autoral é do pesquisador responsável.” Goiânia, 12 de dezembro de 1996

Universidade Católica de Goiás Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA

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