(2005) VERDADE E FICÇÃO EM DOIS FILMES BRASILEIROS

June 13, 2017 | Autor: Lauro Baldini | Categoria: Análise do Discurso
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Referência: BALDINI, Lauro, RIBEIRO DO VALLE, Maria. (2005) “Verdade e ficção em dois filmes brasileiros”. In: SIMS, Anita (org.). (2005) Cinema e televisão durante a ditadura militar: depoimentos e reflexões. Araraquara – SP: Laboratório Editorial FCL – UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica.

VERDADE E FICÇÃO EM DOIS FILMES BRASILEIROS 1

Maria Ribeiro do VALLE

Lauro José Siqueira BALDINI2 A literatura sobre a ditadura militar no Brasil aponta para o equívoco de tratar o período que tem início com o golpe de 1964 como um “contínuo indiferenciado”3. A despeito da generalização feita com o uso do termo “ditadura militar”, ao acompanharmos trabalhos que descrevem cada um de seus governos, podemos notar que eles abrigam características distintivas que nos permitem afirmar que alguns foram mais rígidos, repressores ou autoritários do que outros. Neste sentido, pode-se afirmar que no pósAI5 e no governo Médici (1969-1973) a prática da tortura, ao ser transformada em rotina, simboliza um dos períodos mais absolutos da repressão, violência e supressão das liberdades civis de nossa história. Por outro lado, neste momento, o país vive a fase do “milagre econômico”, a Copa de 70, um clima de ufanismo insuflado pela propaganda oficial, com a imprensa amordaçada pela censura4. Do outro e mesmo lado da história, ou seja, o dos movimentos sociais de oposição, particularmente o movimento estudantil, estes são totalmente extintos a partir do AI-5. Os movimentos de massas, as passeatas 1

Doutora em Ciências Sociais Aplicadas à Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Docente na UNESP de Araraquara. 2 Doutor em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. 3 Cf. DEL VECCHIO, (2003). 4 Cf. Brasil Nunca Mais, p.63.

que fizeram de 68 um ano ímpar, deixam de fazer parte da história. Aqueles que continuam a acalentar o sonho da revolução socialista terão que buscar outros caminhos. A militarização dos movimentos de oposição não pode ser desconectada do fechamento do regime, que inviabiliza cabalmente qualquer tipo de expressão política que não seja a clandestina. Os assaltos a bancos e os atentados terroristas praticados pela esquerda brasileira evidenciam que a luta armada desponta como o único caminho para a oposição. O apoio dos mais diferentes setores da sociedade em 68 ao movimento estudantil, particularmente em suas passeatas no primeiro semestre, devia-se fundamentalmente ao repúdio à violência praticada pela ditadura5. Quando a retórica dos militares para criar a imagem do inimigo externo, agindo internamente, passa a encontrar respaldo nos episódios estudantis, principalmente o da guerra da Maria Antônia e o do Congresso de Ibiúna, que mostram a militarização do movimento através das práticas de luta armada, a população deixa de fazer parte dos episódios estudantis. Soma-se à imagem militarista dos estudantes o aumento ostensivo da repressão, que encontrará seu ápice na decretação do AI-5. Com o AI-5 a tortura se desvencilha das “amarras da legalidade”. Por ser um método eficaz e rápido, é vista como necessária ao combate à subversão. A rapidez com que a tortura trazia a confissão seduzia, estimulava e justificava a sua prática pelos agentes da repressão contra os movimentos subversivos. Sua legitimidade residia na construção da imagem do terrorismo como o “verdadeiro inimigo” da nação brasileira. Segundo a ótica dos militares, as práticas dos “agentes subversivos” que ameaçavam a “liberdade”, justificavam a violência do sistema para a preservação dos “integrados”. O discurso oficial encontra eco no empresariado brasileiro que financia a Oban6 para o desmantelamento do terrorismo que, ao seu ver, desconectado das tradições políticas nacionais, igualava-se ao banditismo 5

Cf. VALLE, (1999). Trata-se da Operação Bandeirantes, órgão militar encarregado do combate à subversão. Era financiada em parte por empresários e industriais da FORD, VOLKSWAGEN, ULTRAGÁS, entre outras. Cf. GASPARI, (2002:62). 6

e, por isso mesmo, devia ser combatido a qualquer preço. Quem se atrevesse a desacatar a ordem emanada do regime militar, seria considerado “inimigo da pátria” que precisa ser banido - Brasil ame-o ou deixe-o – ou extinto. A existência no Brasil de uma “guerra revolucionária”, estando os subversivos sob o “comando mundial da subversão”, muito contribuiu para a criação do inimigo externo. Eles deixam de ser considerados, então, apenas um “opositor interno”. O governo justifica, assim, a necessidade de sua “eliminação”. A nova política repressiva que tem na tortura o seu mais eficiente instrumento é legitimada por vários setores da sociedade na medida em que a ação policial é vista como aquela que desarticula o “conspirador”. Resta, então, a contribuição destes segmentos para melhor equipar o governo para enfrentar a subversão. Podemos dizer que há uma unidade interna quanto à repressão aos comunistas e traidores do Brasil. Se, como vimos, os trabalhos que mostram a especificidade de cada governo da ditadura contribuem para esclarecer as nuances deste período, alguns filmes produzidos no Brasil, ao recortarem determinado governo ou episódio, sem estabelecer uma correlação com a conjuntura mais ampla que o envolvem, dão margem a interpretações bastante diferentes e até opostas da realidade. Dentro da própria temática da tortura, no período pós-AI-5, podemos notar a diferença de tratamento que a ela é dispensado nos filmes “O que é Isso Companheiro?” e “Pra Frente, Brasil!”, ambos relatando o pós-AI-5.

O QUE É ISSO, BRASIL? Ou PRA FRENTE, COMPANHEIRO! O filme Pra Frente, Brasil!, dirigido por Roberto Farias e lançado em 1983, apresenta exatamente esse período mais sinistro da ditadura. Tratase, contudo, de um filme de ficção. Pelo menos é o que diz o letreiro exibido ao final da película. Isto é, não há o compromisso explícito de retratar com

fidelidade este ou aquele evento histórico. Mas, poderíamos perguntar, qual o estatuto da verdade num filme como esse? Ora, Pra Frente, Brasil! é realmente um filme de ficção, no sentido de que as situações ali representadas são verossímeis, mas não verdadeiras? A pergunta não é trivial, já que o filme pode ser visto como um retrato de uma época na história de nosso país. Resta saber se este retrato encontra eco nos chamados “fatos históricos”. Por exemplo, como é representada a relação entre a tortura e o modo como a população via esse método policial? Ou seja, nesta ficção, se a sociedade legitima a tortura e a execução de subversivos, isto não é verdade quando este mesmo tratamento é dispensado a um cidadão comum, respeitado, trabalhador. Mas, paradoxalmente, a eficácia que justifica e legitima a tortura não funciona enquanto método para se chegar à confissão quando empregada num preso comum que nada tem a ver com a subversão. Como pode o torturador saber se o silêncio da vítima é uma prova de resistência ou mesmo a total falta de informação? Neste sentido, julgamos ser uma importante contribuição do filme apontar não para a funcionalidade da tortura, mas para a total ausência de justificativas para a sua prática a partir da própria lógica da subversão. Um filme de ficção revela a fragilidade e ineficiência da tortura onde tanto a atividade clandestina da subversão quanto o excessivo poder dado aos agentes da repressão dificultam em grande medida a certeza quanto àqueles que devem ser punidos. Se, por um lado, a repressão é vista como o grande agente da manutenção da ordem, por outro são suas ações, e não apenas a dos grupos armados de esquerda, que disseminam um clima de insegurança, desconfiança e medo. Todos são suspeitos. Quando os militares exigem que após o filme seja exibido um letreiro com os dizeres “Esta é uma obra de ficção”, a verdade se torna ainda mais aparente, a exemplo do sujeito que, ao contar seu sonho ao psicanalista,

diz: “Não sei quem era aquela mulher no sonho, mas não era a minha mãe”, ao que o analista responde: “e quem falou em mãe?”. O clima é de guerrilha urbana. Há o terrorismo tanto de direita quanto de esquerda, o que gera uma indefinição das práticas de violência. Pra Frente, Brasil! mostra que a insegurança e o medo fazem parte do cotidiano das pessoas: desde a família de Jofre, que é preso e torturado a despeito de sua inocência; o garçom da padaria, testemunha do episódio do cerco da PM ao carro de táxi quando há um morto e Jofre desaparece; até o IML, onde o delegado desconfia de “Marta”, a esposa de Jofre, e Marta desconfia do delegado; o sobrinho do general (também este torturado por engano) que entrega “Miguel”, irmão de Jofre, para a polícia. “Todo mundo prendendo todo mundo” é uma das frases do filme que expressa a conjuntura. Todos, sem exceção, são subversivos em potencial. O filme mostra assim que a tortura política, neste período, começa a adquirir autonomia 7, sendo que nem integrantes das forças armadas conseguem escapar de suas garras. Pra Frente, Brasil! mostra que as pessoas sabem o que está acontecendo no Brasil: “Tem guerrilha no Brasil e os jornais noticiam alguma coisa?”, diz o irmão de Jofre. Diante da ameaça da subversão é preciso saber matar pela Pátria uma vez que os terroristas são considerados uma malta a ser varrida da sociedade brasileira. Justifica-se o cerco ao carro do motorista de táxi pelo 8

fato de ele estar “envolvido com tóxico” . A testemunha desmente esta acusação e, a partir deste momento, “desaparece”. A tentativa de criar a imagem do inimigo externo pela ditadura passa também por critérios morais e 7

Nas palavras de GASPARI, (2002:22-3), o “perigo” da cumplicidade com a tortura por parte de toda a hierarquia da ditadura militar: “A negação da tortura pela retórica do regime catapulta a “tigrada” da condição de infratora à de intocável. Quando ela mostra que pode fazer algo que o governo nega e condena, não se pode mais saber por onde passa a linha que separa o que lhe é permitido daquilo que lhe é proibido. O porão ganha o privilégio de uma legitimidade excepcional. A mentira oficial é o reverso da covardia da tortura. Através dela os hierarcas sinalizam um medo de assumir a responsabilidade por atos que apóiam e recompensam.” 8 Não se trata de mera argumentação policial. Mesmo pensadores como Hannah Arendt usavam a mesma estratégia para desqualificar os movimentos de contestação dos anos 60. Cf. ARENDT, (1969:106).

pela criminalização dos suspeitos. Também em 1968, para denegrir a imagem do movimento estudantil junto à população, utilizava-se do argumento de que as estudantes presas tinham em suas bolsas cartelas de anticoncepcionais, associando, assim, um suposto comportamento sexual promíscuo aos detratores do regime. Se por um lado, setores da sociedade não só endossam a tortura, mas a financiam, é com o intuito de acabar com a subversão e salvar o Brasil da ameaça comunista. Contudo, o filme Pra Frente, Brasil! mostra um lado mais sombrio da ditadura: a tortura que não se justifica nem pela funcionalidade, nem pela crueldade de seus procedimentos: Jofre é um apolítico, inocente, cidadão-comum, civilizado, pai de família, e, sendo assim, qualquer um passa a estar na mira da polícia. Assim como em 68 Edson Luís, o primeiro estudante morto pela ditadura, causa a indignação da população pelo fato de ser assassinado um jovem, pobre, estudante, e não um baderneiro, drogado, subversivo. Por outro lado, em se tratando de um inocente, a tortura não funciona. O que ele poderá confessar? Como ele poderá provar que realmente não sabe de nada? O seu silêncio servirá apenas para aumentar o ódio dos torturadores e a crueldade da tortura. A verossimilhança do tratamento do filme Pra Frente, Brasil! à questão da tortura pode também ser notada pelo fato de os empresários financiarem a tortura e se reunirem para assistir as aulas de tortura dada por um americano. Está em pauta, aqui, a “clandestinidade de direita”, uma vez que estas reuniões e a contribuição dada em dinheiro, mercadorias ou prestação de serviços para sustentar a tortura são feitas em sigilo, tornando médicos, empresários, comerciantes, latifundiários cúmplices do regime. Desta forma, embora eles queiram apenas financiar o combate à corrupção, acabam se tornando presas de um regime que se for desmantelado pode denunciá-los, pois no discurso eles afirmam desconhecer a prática da 9

tortura . Assim, muito colaboram também para a manutenção do fecha9

Nas palavras de GASPARI (2002:29), a interpretação do apoio dado pela sociedade à tortura, claramente mostrada pelo filme: “Quanto mais duro o regime, mais prestígio tem o promotor, médico ou empresário que colabora com o porão. Ao menor sinal de liberalização

mento do regime. Em Pra Frente, Brasil! são eles, os financiadores do crime e da morte, que se transformam em torturadores em potencial. Além disso, em Pra Frente, Brasil! fica explícita a forte intervenção dos EUA nas ditaduras latino-americanas, “desde os tempos de Getúlio”, que ensina modernas técnicas10 de tortura aos policiais. Neste sentido, Pra Frente, Brasil! não deixa de apontar para uma certa dose de ingenuidade e militarismo das organizações subversivas, presentes nas palavras de Miguel, amante de Mariana, que opta pela luta armada: “Você vai viver a vida inteira como estudante? Você acha certo sair de uma ditadura para entrar em outra?” Com o desenrolar da trama, contudo, tanto Miguel quanto a sua cunhada partem para a prática da violência uma vez que não conseguiram encontrar Jofre por qualquer canal institucional. Eles acabam por se unir aos guerrilheiros para o “justiçamento”. Aqui emerge, então, uma violência que além de não justificar a tortura da ditadura aponta para o fato de esta última ser a grande responsável pela mesma violência. Desta perspectiva, é o próprio regime militar quem insufla a violência, não deixando qualquer outra alternativa política para aqueles que querem notícias dos “desaparecidos”. Miguel, por exemplo, participa do assassinato do patrão de Jofre ao lado dos guerrilheiros. Se, no início, Miguel quer tirar Mariana da luta armada, no final há a inversão desta história. Um pouco antes de ser morta, Mariana chama Miguel para uma vida comum fora do Brasil. Não podemos deixar de notar que o próprio desenrolar dos acontecimentos, o total arbítrio das ações policiais no governo Médici aliado ao inesperado que irrompe na vida dos familiares de Jofre, explicam a opção pela violência. E quando nem mais a violência se apresenta como um a opção para a esquerda, resta ao seus militantes o exílio.

toda a teia é duplamente ameaçada. Primeiro pela perda do poder. Depois – e aí reside o risco temível – pela exposição dos crimes. A rede, assim como o torturador, vale-se da ditadura para amealhar suas recompensas, mas precisa que ela persista, quer para encobrir delitos, quer para disfarçar o rastro de ligações perigosas”. 10 GASPARI (2002:189) e GABEIRA (1979:172) falam da modernização das técnicas de tortura.

Como se pode ver, a despeito de toda a ficcionalidade do filme, não é difícil encontrar ressonâncias muito fortes entre as situações desenvolvidas em seu roteiro e a realidade histórica daquele momento. O filme, que se inicia ternamente com uma cena romântica, irá desvalar, quadro a quadro, para um conflito em que a violência se manifesta de forma cada vez mais crua. Por fim, só restam corpos mutilados, vidas destroçadas e uma interrogação: em que se transformou o Brasil? Por sua vez, O que é isso, companheiro? traz todas as marcas de uma obra histórica, documental. A começar do título, que evoca o livro de memórias de Fernando Gabeira. O fato em torno do qual gira o filme é largamente conhecido: o seqüestro do embaixador americano por militantes de esquerda. Tudo leva a crer que se assistirá a uma reconstituição histórica, a um documentário. Ora, sabe-se que o seqüestro do embaixador não é, nem de longe, o tema central do livro de Gabeira. Além disso, o modo como o filme apresenta o desenrolar da trama também não é nem um pouco fidedigno se o comparamos ao mesmo livro. Já temos, aqui, um índice do que virá a seguir: porque intitular o filme O que é isso, companheiro? se ele tem tão pouco a ver com o livro de mesmo nome? Quanto à questão da tortura, numa “guerrilha urbana” é difícil identificar quem são os agressores e agredidos, isto significa que a mesma arma também pode ser utilizada pelos dois lados. Tanto os militares, como os militantes de esquerda são torturadores e assassinos em potencial. Contudo, não distinguir a tecnologia da tortura à disposição do regime da fragilidade e propósito da luta armada parece levar a uma versão totalmente distorcida da história. Neste sentido o filme, ao minimizar os propósitos revolucionários da organização de esquerda de utilizar a violência para a construção de um mundo mais humano e justo enquanto o da ditadura é o extermínio dos subversivos, constrói uma imagem branda da ditadura,

mostrando, ao contrário do filme Pra Frente, Brasil! seu lado mais sinistro e mais real. Se, por um lado, a imaturidade e a irresponsabilidade não se tornam justificativas para a tortura, por outro, o fato de os militantes terem se envolvido ingenuamente na prática de um seqüestro, aí sim, torna-os candidatos a vítimas da prisão e de torturas. Desta forma, o fato de eles terem conseguido levar a cabo esta ação e ter tido resposta positiva do governo para seus reclamos resultou apenas num círculo vicioso em que para conseguirem por sua vez a libertação teriam que resistir ao tratamento arbitrário da polícia militar até que novos embaixadores fossem feitos reféns. Desaparece, assim, toda a causa política mais ampla pela qual eles lutam, ou seja, a transformação social, sendo mostrada apenas a questão mais imediatista que é a denúncia da tortura que os presos políticos estão sofrendo. Acontece, todavia, que as práticas de luta armada que eles utilizam nas ações, como acabamos de ver, servem, na visão do filme, apenas para justificar novas prisões, torturas, etc. Eles se tornam vítimas daquilo que eles querem denunciar. Ao denunciar a tortura ficam dela reféns. Neste sentido, o filme não deixa de narrar fatos enfatizando as práticas armadas das organizações de esquerda – MR-8 e ALN: o treinamento dos jovens iniciandos para atirar – o tiro ao alvo na praia ensinado através de uma severa disciplina e os apelos à bravura necessária a um revolucionário; os iniciandos deveriam, também, na primeira oportunidade, mostrar que são capazes de matar para provar que eram realmente confiáveis e preparados para a causa; o assalto a um banco enfocando principalmente o fato de seus promotores serem obrigados a atirar e a “covardia”, o “vacilo” de um dos integrantes que é baleado durante o assalto por não ter tido coragem de atirar. A inexperiência deste jovem, “César”, justifica a tortura, uma vez que ele é pego em flagrante numa ação criminosa. O que é isso, companheiro? mostra exatamente a concepção de tortura dos militares, ou seja, além de justificada e necessária, neste caso, ela também é eficaz, pois assim que

César é preso tem início a tortura – que é levada à tela com imagens bastante brandas – e ele logo entrega uma lista de nomes e endereços. A imagem dos integrantes da ALN, vindos de São Paulo para dirigir a ação, pensada inicialmente pelo MR-8, é de um autoritarismo ímpar, também fazendo coro ao discurso do governo de que a nação estava diante de perigosos líderes subversivos. Jonas, da ALN, além de ser uma pessoa intratável, tem um discurso bastante agressivo e ameaçador. Estão na sua mira não apenas os militares como também qualquer um de seus companheiros do MR-8 que ousassem dele discordar ou recusar pegar em armas no momen11

to necessário, pois considerava-os um “bando” de amadores . Aqui também encontramos eco do discurso oficial presente já nos acontecimentos estudantis de 68, particularmente durante a guerra da Maria Antônia

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tanto a versão veiculada por parte da grande imprensa quanto por militares de que os estudantes eram capazes de matar os seus próprios pares. Podemos trazer vários outros exemplos que confirmam o fato da versão do filme de que a violência injusta e despreparada é exercida principalmente pelos militantes de esquerda: os textos lidos em cadeia nacional como uma das exigências dos seqüestradores enfatizam a ameaça de execução do embaixador. (No livro de Gabeira, além de ser diverso o teor dos textos lidos a ênfase recai na denúncia das torturas que estão sendo feitas pela ditadura e totalmente encobertas pela censura). Em contrapartida, não é difícil sustentar que a violência exercida pela polícia militar não apenas é pasteurizada, mas justa e justificada. Este viés explicita-se na figura de Henrique, que faz parte do Serviço de Informações, o torturador que tem esposa, família, (enquanto os militantes de esquerda devem deixá-la, assim como toda a sua identidade passada) e sofre de crises de consciência e de insônia por ser obrigado a agir assim, estando por tanto desculpado, por ser este o seu trabalho. Ossos do ofício. 11

È totalmente diversa a descrição de Gabeira tanto de Jonas quanto da relação pessoal bastante cordial dele com o grupo, assinalando que embora a ação tenha sido levada a cabo por duas organizações de esquerda – o MR-8 e a ANL – nenhuma discordância significativa ocorreu durante o seqüestro. Cf. GABEIRA, (1979). 12 VALLE, (1999:159-176).

Na sua fala encontramos também a defesa da tortura como meio para que se avance nas investigações, pois só assim ele poderia contribuir para que as crianças inocentes e que constituíam a maioria dos integrantes fossem libertadas dos “canalhas” que as manipulava. A fala do torturador coincide com a visão que o filme veicula sobre a subversão e a tortura. O filme parece, assim, inverter as descrições da tortura feitas no livro. Além de não dar visibilidade à tortura praticada pela ditadura, a versão do filme se utiliza das descrições dos torturadores militares feitas por Gabeira e as transfere para Jonas. Ele se utiliza da prática do interrogatório com a arma na cabeça do embaixador para que ele fique assustado e fale (eficácia da tortura). As principais cenas do cativeiro focalizam a ordem dada para que o embaixador seja executado com um tiro na cabeça, mas não torturado. Parece bastante explícito que esta ameaça de morte constante vivida pelo embaixador é prova visível da prática de tortura. Tanto assim que em um dos episódios o embaixador urina nas calças, reação comum de qualquer preso político ameaçado de tortura ou morte. Toda a humilhação descrita durante a tortura de presos políticos é aqui praticada pela esquerda armada. “Baseado em” memórias de Gabeira, o filme acaba por mostrar o episódio por ele selecionado não apenas apresentando uma descrição oposta a do autor, como uma total desconsideração pelo momento político narrado. Ao contrário do martírio vivido pelo embaixador, Gabeira mostra que com o passar do tempo eles viviam uma relação bastante cordial. E que o suplício também é vivido pelo grupo que além de inexperiente, Gabeira não nega, vive o imprevisto da clandestinidade e a possibilidade de serem pegos a qualquer momento. Eles tinham medo também de que na hora da entrega do embaixador para as autoridades não apenas eles fossem mortos, mas também o embaixador. O seu objetivo, segundo Gabeira, era apenas a libertação dos presos políticos, vítimas da tortura e não a execução e tortura do embaixador. No filme, além de serem enfocadas as várias ameaças de morte sofridas pelo embaixador, há uma reunião inclusive para dis-

cutir qual dos integrantes faria o justiçamento. E a decisão é tomada por Jonas, que quer que “Paulo” dê provas de sua coragem, caso contrário seriam dois e não apenas um os mortos. Reiterando a violência da relação entre o embaixador e os seqüestradores o teor da carta veiculado no filme escrita pelo primeiro à sua esposa reforça a imagem terrorista dos seqüestradores, pois ele chega a comparar os militantes encapuzados à Klu Klux Klan, sempre armados e liderados por um vampiro-chefe. No filme há, assim, a fala e a prática da tortura pela esquerda, enquanto os torturadores militares mais falam do que praticam. Mesmo no final em que “Fernando” é atingido por um tiro e levado ao pau-de-arara, as cenas não são tão explícitas assim. Também no final do filme onde vemos apenas conseqüências da tortura em “Maria”, de cadeira de rodas, mas não a prática da tortura. Os militantes de esquerda, ora ingênuos, ora indivíduos repletos de ódio, não parecem saber o que estão fazendo. A luta daqueles que combatiam a ditadura fica, assim, retratada como o campo em que estão, de um lado, os estudantes despreparados e, de outro, os líderes ressentidos. Da parte da ditadura, temos o torturador com crise de consciência; além do mais, a tortura é apenas sugerida – mas não no caso do embaixador americano, cuja tortura psicológica atinge os limites do verossímel. Pairando sobre os eventos ouve-se a voz da razão do embaixador, que comenta, “lucidamente” quais as reais motivações dos que o detém em seu poder. Tudo se passa como se o episódio da ditadura devesse ser digerido com filtros hollywoodianos, num distanciamento que propõe: estavam todos errados. Para a frente, para além daquele período em que a polarização nos conduzia ao radicalismo. Companheiros, só a democracia salva, parece dizer o filme. Para não cair no viés universalista proposto por O que é isso companheiro?, é preciso conceber a tortura como algo que se dá num momento histórico concreto. A tortura de Estado condensa o horror: o Estado, cen-

tro irradiador da racionalidade, é irracional... O que é isso companheiro?, no entanto, dilui essa distinção, apresentando a tortura em geral, isto é, discute-a de um ponto de vista abstrato em que as circunstâncias históricas desaparecem. Podemos dizer, talvez, que o ponto de vista narrativo de O que é isso companheiro? é o de um democrata, sentado confortavelmente em seu sofá, abismado com a loucura tanto da esquerda como da direita. Toda uma luta é, assim, infantilizada, na medida em que ambos os lados estão errados, já que são parciais. É preciso amadurecer, ser democrata. Gabeira, em seu livro, ao comentar o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, posiciona-se contrariamente à visão (que, segundo ele, o filme explicita) de que as massas são um bando de débeis mentais. Ora, é exatamente o mesmo procedimento adotado por Barreto no filme, só que agora os débeis mentais não são mais as massas, mas a esquerda! SOBRE A LEITURA Paul Henry (1984:29), perguntava-se se, de fato, existe aquilo a que habitualmente chamamos de história. Na verdade, o autor parte de uma outra pergunta, esta feita por Popper: “De início, o que se entende por história? É necessário precisá-lo porque eu queria mostrar que na acepção habitual dada a essa palavra, a história não existe – e não, poderia, então, ter sentido.” Ora, é evidente que tais perguntas, num primeiro momento, podem não parecer pertinentes, mas é justamente do campo das evidências que se deve sair para compreender a amplitude da questão. Talvez valha a pena, mesmo que seja longamente, considerar o que diz Henry (idem:3031) a esse respeito: “De um lado, a história é colocada, no campo das ciências humanas e sociais, em uma posição à parte, inteiramente eminente: a de ser o lugar de sua articulação e de sua complementaridade. De outro lado, ela não possui mais objeto próprio e, enquanto disciplina ou corpo de saber, lhe é recusado ser propriamente uma ciência. Mais exatamente, a tendência

é considerar que a história pode ser científica somente pelas outras ciências humanas e sociais e através delas, visto que ela excede a simples descrição empírica dos fatos e acontecimentos do passado assim como de suas sucessões”. Gostaríamos, então, de discutir o estatuto de certos filmes que se pretendem históricos. Ou se considera que tais filmes conseguem captar este ou aquele momento histórico nas suas múltiplas determinações, ou então devemos supor que a relação que os filmes mantém com a história são, sobretudo, interpretativas. Ao que parece não se trata de nenhum dos casos. Os filmes O que é isso companheiro? e Pra frente, Brasil! podem nos ajudar a entender esse dilema. Neste, tudo está lá: a irracionalidade da tortura (quanto mais o preso fala, mais ele deve ter a falar; se não fala, é dono de segredos inconfessáveis), as ligações do Movimento Estudantil com a luta armada, a alienação das classes trabalhadoras, etc. Trata-se, contudo de uma obra ficcional, e ninguém pretende que tais fatos tenham ocorrido como se dão no filme. Naquele, um momento histórico bem determinado é jogado para a tela e temos, então, o amadorismo dos militantes revolucionários, um torturador em crise de consciência, o líder esquerdista dogmático, etc. Ficção e testemunho, ambos estão determinados pela interpretação que fazem da história. Ainda como diria Henry, “(...) não há fato ou evento histórico que não faça sentido, que não peça interpretação, que não reclame que lhe achemos causas e conseqüências. É nisso que consiste para nós a história, nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse sentido em cada caso”. Cabe aqui também uma noção desenvolvida por Orlandi (1990:37), a respeito dos “discursos sobre”: “consideramos que os ‘discursos sobre’ são uma das formas cruciais da institucionalização dos sentidos. É no ‘discurso sobre’ que se trabalha o conceito de polifonia. Ou seja, o ‘discurso sobre’ é um lugar importante para organizar as diferentes vozes (dos discursos de). Assim, o discurso sobre o samba, o discurso sobre o cinema é parte inte-

grante do discurso do samba, do cinema etc. O mesmo se passa com o discurso sobre o Brasil (no domínio da história. Ele organiza, disciplina a memória e a reduz”. Portanto, o fato de um filme basear-se (ou não) numa ocorrência histórica específica não diz nada sobre a verdade que veicula. A chancela “baseado em...” serva apenas como véu sobre a interpretação, na medida em que a história não se oferece descortinada, em sua materialidade, mas sim em sua opacidade derradeira de real. Nesse sentido, um jogo mais ou menos ingênuo pode nos elucidar sobre o caráter “documental” de certas películas. Por exemplo: Em Pra Frente, Brasil!, um inocente é torturado. Isso deve ter sido possível, mas o número de “inocentes” deve ter sido inferior ao de “culpados” suicidados pelo regime militar. No entanto, essa mentira, do ponto de vista estatístico, é extremamente verdadeira no que concerne ao caráter completamente irracional da tortura. Todo torturado é, por definição, inocente, já que a culpa do confessado perde sua validade pela forma como foi obtida. Em O que é isso, companheiro?, no entanto, certos fatos possivelmente verdadeiros assumem ares de deslavadas mentiras, pelo modo como o filme as propõe: mais uma vez, o caso do torturador em crise é exemplar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ler pressupõe uma tomada de posição. Esperamos ter contribuído para esclarecer esta posição em cada um dos filmes comentados. Como vimos, o caráter ficcional ou não de uma obra não diz nada sobre sua relação com a história. Nesse sentido, se Pra frente, Brasil! é verdadeiro, e O que é isso, companheiro? se aproxima de uma revisão, isto é, de uma interpretação que apaga o acontecimento dos episódios em sua materialidade histórica. Além disso, o segundo filme não se restringe nem mesmo à sua fonte: a película e o livro têm poucos pontos em comum. No caso de Pra frente, Brasil!, a situação é outra: vê-se a realidade da ditadura e de seus

mecanismos de repressão na estranheza peculiar que devem ter causado aos atores do período: a pura irracionalidade que pode cair sobre qualquer um, a qualquer momento. Ora, se ler implica posicionar-se, o que dizer das ciências sociais? Sabe-se que o intelectual comprometido com as humanidades intervém no campo da verdade ao expor sua leitura de determinando evento, fato histórico, acontecimento, etc. E no que essa exposição difere da exposição feita pelo cidadão comum, na mesa de bar, ao comentar determinada ocorrência? Certamente, essa diferença vem do método. Mas esse método, para ser conseqüente, deve levar em conta os avanços efetuados por pensadores como Barthes, Foucault, Pêcheux, Lacan, entre outros, na questão da leitura. Não se lê de qualquer maneira, nem de qualquer lugar. Essa abordagem implica, necessariamente, no reconhecimento de que a linguagem não pode ser encarada como transparente. Não se atravessa a linguagem e se chega aos “fatos”. Ela resiste às investidas interpretativas. Nesse sentido, parece-nos adequado comentar a distinção proposta por Orlandi (1999) entre o Dispositivo Ideológico da Interpretação e o Dispositivo Teórico da Interpretação. Ler, mais que decodificar, significa dizer como se leu. Só assim o leitor pode situar-se frente a um método de leitura que se expõe a si mesmo. Em nossa leitura dos filmes, procuramos mostrar em primeiro lugar, a importância de interpretá-los à luz do contexto histórico que procuram retratar. Em segundo lugar, procuramos indicar, pela comparação, que, por um lado, o sentido poderia ter sido sempre outro e, por outro lado, as próprias fontes a que recorrem os filmes e a literatura existente sobre o período já não permitem mais que perpetuemos uma versão oficial e que, portanto, abranda. Explicitando, portanto, o gesto interpretativo em cada um dos filmes. Seguramente, há muitas versões para a mesma história. Nem todas, porém, tem o mesmo estatuto. Num filme, a ditadura militar é mostrada, como vimos, como a tomada do poder pela desrazão. No outro, trata-se de

um momento em que estávamos todos errados (com exceção, talvez, do embaixador). Cabe aos autores sustentar sua leitura. É, portanto, uma questão ética. Mais uma vez, cabe comentar o fato de que PFB apresentese como ficção (e, portanto, como leitura possível), e OQI como documentário (e, assim, leitura verdadeira). O que é isso companheiro? é, até hoje, um filme bastante assistido. Pra frente Brasil!, por sua vez, raramente se encontra disponível. Isso diz muito não apenas da versão que tentamos dar a nossa história, mas também do que selecionamos para norte de nossas ações. Em pesquisa com paulistanos durante os 450 anos de São Paulo 13, a questão da violência com o seu par segurança são apontadas como a que mais aflige a população. E, para a solução da primeira é grande a porcentagem de paulistas que pedem a tortura. Como podemos notar a retórica da eficácia da tortura utilizada pelos militares fazem eco ainda hoje e os caminhos para a transformação da sociedade parecem cada vez mais opacos. Nesse sentido desvelar os filmes não pretende apenas restituir à verdade ao passado, mas, através disso, não comprometer o futuro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. (1969) Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, 2ª edição. ARNS, Paulo Evaristo et al. (1985) Brasil nunca mais. Petrópolis – RJ: Vozes, 9ª edição. CARDOSO, Irene. (1997) “O arbítrio transfigurado em lei e tortura política”. In: FREIRE, Alípio et al (orgs). Tiradentes, um presídio da ditadura. São Paulo: Scipione.

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FOLHA DE SÃO PAULO, 01/02/2004, página C1. “24% admitem a tortura”.

COELHO, Cláudio Novaes Pinto. (1987) Os movimentos libertários em questão: a política e a cultura nas memórias de Fernando Gabeira. Petrópolis – RJ: Vozes. DEL VECCHIO, Angelo. (2003) “Visões de um objeto incômodo: o regime militar brasileiro”. In: Estudos de Sociologia (15):63-84. Araraquara - SP: UNESP. GABEIRA, Fernando. (1979) O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Codecri. GASPARI, Élio. (2002) A ditadura escancarada: as ilusões armadas. São Paulo: Companhia de Letras. HENRY, Paul. (1984) “A história não existe”. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org). Gestos de Leitura. Campinas – SP: Editora da UNICAMP, 1994. ORLANDI, Eni Puccinelli. (1990) Terra à vista. Campinas – SP: Editora da UNICAMP; São Paulo: Cortez. ORLANDI, Eni Puccinelli. (1999) Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas – SP: Pontes. VALLE, Maria Ribeiro do. (1999) 1968: o diálogo é a violência – movimento estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas – SP: UNICAMP.

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