2008 - Oitocentos - Tomo I: Arte Brasileira do Império à Primeira República / Organização Ana Maria Tavares Cavalcanti, Arthur Valle e Camila Dazzi. 1. ed. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ/DezenoveVinte

June 5, 2017 | Autor: Arthur Valle | Categoria: Brazilian History, Nineteenth-century Art, Twentieth Century Art, Brazilian Art
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Descrição do Produto

Ana M. T. Cavalcanti Camila Dazzi Arthur Valle

2008 3

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Realização da Publicação Escola de Belas Artes / UFRJ Fundação de Apoio à Escola Técnica Organização Ana Maria Tavares Cavalcanti Camila Dazzi Arthur Valle Projeto Gráfico e Editoração Arthur Valle e Camila Dazzi Revisão da Editoração Ingrid Marie de Moraes Editoras EBA-UFRJ / DezenoveVinte Correio eletrônico [email protected] Tiragem 300 exemplares Reúne os textos das comunicações apresentadas de forma mais sucinta no I Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do Século XIX. Os artigos contidos neste livro não refletem necessariamente a opinião ou a concordância dos organizadores, sendo o conteúdo e a veracidade dos mesmos de inteira e exclusiva responsabilidade de seus autores, inclusive quanto aos direitos autorais de terceiros.

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República / Organização Ana Maria Tavares Cavalcanti, Camila Dazzi, Arthur Valle. - Rio de Janeiro: EBA-UFRJ/DezenoveVinte, 2008. 1 v. ISBN 978-85-87145-25-3 1. Artes Visuais no Brasil. 2. Século XIX. 3. História da Arte. I. Cavalcanti, Ana Maria Tavares. II. Dazzi, Camila. III. Valle, Arthur. IV. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Belas Artes. V. Fundação de Apoio à Escola Técnica. Instituto Superior de Educação. VI. Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do Século XIX. CDD 709

4

I Colóquio Nacional de Estudos Sobre Arte Brasileira do Século XIX Rio de Janeiro 25 a 29 de Fevereiro de 2008 Fundação Casa de Rui Barbosa *

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Realização Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Belas Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Reitor Aloísio Teixeira Diretora da Escola de Belas Artes Angela Azevedo Silva Balloussier Ancora da Luz Diretor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Rogério Medeiros * Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro Instituto Superior de Educação Presidente Nelson Massini Diretor de Ensino Superior Fernando da Silva Motta Coordenação dos Institutos Superiores de Educação Rachel Gonçalez Montilla da Silva Braga *

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Coordenação Geral do Colóquio Profa. Dra. Ana Cavalcanti (EBA-UFRJ) Profa. Drnda. Camila Dazzi (CEFET-RJ) Prof. Dr. Arthur Valle (ISE-FAETEC)

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prefácio

13

apresentação

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capitulo 1 história da arte do século XIX: revisões e novas abordagens

19

Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes - exemplos do século XIX Jorge Coli

26

A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira Luciano Migliaccio

32

A historiografia da arte oitocentista e as revisões efetuadas durante as últimas décadas do século XX Mariela Brazón Hernández

37

53

64

Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos da historiografia moderna e o processo de revalorização recente Nivaldo Vieira de Andrade Junior A questão do moderno na arte e no ensino da arte na passagem do século XIX para o século XX Sonia Gomes Pereira O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas Tamara Quírico

71

capitulo 2 formação artística: centros oficiais

73

As mulheres na escola nacional de belas artes: gênero e formação artística em tempos de república Ana Paula Cavalcanti Simioni

81

A formação acadêmica de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira Angela Ancora da Luz

89

Acadêmicos e isolados - cenário artístico no nordeste brasileiro - século XIX Dalmo de Oliveira Souza e Silva

93

A contribuição do ensino oficial para a modernização da arquitetura oitocentista Denise Gonçalves

100

Academia de Belas Artes na Amazônia Edison da Silva Farias 7

107

O curso de arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes e o processo de modernização do centro da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX Helena Cunha de Uzeda

114

Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes: períodos de introdução e consolidação de uma metodologia artístico-pedagógica Reginaldo da Rocha Leite

122

Pedro Américo contra a Academia neoclássica francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863 Vladimir Machado

131

capitulo 3 outros centros de formação artística

133

O desenho em foco: a arte aplicada na transição do século XIX para o XX Daniela Flávia M. Fonseca, Bruno dos Santos Dias e Renata Garcia C. Duarte

139

Subsídios sobre a formação do serralheiro e ferreiro e seu sistema profissional na Bahia oitocentista Dilberto de Assis

145

De oficial mecânico a operário ou artista: o Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia Maria Helena Ochi Flexor

159

capitulo 4 a dinâmica das exposições, a obra e o público

161

Entre a Europa e o Brasil : a Faceira, escultura de Rodolpho Bernardelli, e a necessidade de agradar ao público Ana Maria Tavares Cavalcanti

169

Artistas em trânsito: arte e política na representação da nação Luciene Lehmkuhl

178

A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no brasil do século XIX Paulo Knauss

187

A arquitetura de exposições como repertório de formas e tipologias Ruth Nina Vieira Ferreira Levy

193

Do privado ao público: a experiência da Coleção Brasiliana / Fundação Estudar Valéria Piccoli

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

199

capitulo 5 a crítica de arte, o romance sobre arte, o artista como teórico

312

O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920 Maria Lucia Bressan Pinheiro

201

Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na Academia Imperial de Belas Artes Elaine Dias

320

A arquitetura monumental de Salvador no início do século XX. Uma resposta local a um processo internacional Suely de Oliveira Figueirêdo Puppi

209

“Queremos o fim da academia que não se ocupa das artes” - insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a república no Brasil Elisabete Leal

329

capitulo 7 artes decorativas ornamentais

218

Imagem e tradição: retórica e criação visual na obra ilustrada História de um pintor contada por ele mesmo de Antônio Parreiras Fábio Pereira Cerdera

225

Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores José Luiz da Silva Nunes

236

A critica de arte da Belle Époque José Roberto Teixeira Leite

247

Da arte incompleta à morte de um insubmisso: Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque Leticia Squeff

257

1890 – o primeiro ano da república agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti Mirian Nogueira Seraphim

273

Considerações sobre história e arte nos manuscritos de Porto-alegre Paula Ferrari

279

Caminhos da crítica de arte no brasil: século XIX Rosangela de Jesus Silva

287

capitulo 6 arquitetura e ecletismo

289

O ecletismo e civilização Claudia Thurler Ricci

299

Um sotaque disfarçado: a recepção de referências americanas no curso de arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes Fernando Atique

305

Léonce Reynaud e a concepção teórica do ecletismo no Rio de Janeiro Marcelo Puppi 8

e

repertórios

331

Entre a academia e as ordens terceiras. Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II Cybele Vidal Neto Fernandes

338

O lugar da ornamentação sacra católica na renovação estética do século XIX no Brasil Luiz Alberto Ribeiro Freire

343

Formas e ambientes: a explosão do ornamento na época de D. João VI e de Francisco I, Imperador da Aústria Maria João Nunes de Albuquerque

351

Ambientes interiores e o ideal decorativo em busca de lugares para a arte Marize Malta

360

Tradição versus modernização na arquitetura do Rio de Janeiro: ornamentos mouriscos Rosane Bezerra Soares

371

capitulo 8 iconografia: identidade brasileira

373

“A influência das artes na civilização”. Eliseu Visconti e o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro Ana Heloisa Molina

378

Imagens e imaginário na construção do real André Cozzi

387

“Era terra do Brasil”: representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras José Maurício Saldanha Álvarez

393

capitulo 9 iconografia: pintura histórica

395

O centenário mestiço: Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia, 1908-2008 Aldrin Moura de Figueiredo

402

407

A temática, na pintura do século XIX no Brasil, como veículo de afirmação e sobrevivência: Pedro Américo de Figueiredo e Mello Madalena de F. P. Zaccara A recusa ao corpo fragmentado: a recepção de “Tiradentes Esquartejado” Maraliz de Castro Vieira Christo

414

Taunay e Debret: pintura e história nos trópicos Vera Beatriz Siqueira

423

capitulo 10 iconografia: cenas e tipos brasileiros

425

O imaginário da cristandade no Rio de Janeiro do século XIX nas pinturas de Rugendas e Debret Heloisa Pires Lima e Rosana Ramalho de Castro

431

Saudade e Nhá Chica: duas cenas de gênero de José Ferraz de Almeida Júnior Karin Philippov

435

Melancolia à brasileira: a aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret Leila Danziger

440

A propósito de três esculturas de Rodolfo Bernardelli: a Baiana (1886), o Retrato de negro (1886) e o Túmulo de José Bonifácio (1888-89) Maria do Carmo Couto da Silva

445

453

455

460

465

470

Intimidade e reflexão: repensando a década de 1890 Rafael Cardoso

477

A intimidade em cena Vera Lins

483

capitulo 12 iconografia: a paisagem

485

“As bellezas naturaes do nosso paiz”: o lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República Arthur Valle e Camila Dazzi

493

Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay Claudia Valadão de Mattos

500

Victor Meirelles e os panoramas Cristina Pierre de França

510

Por sobre as águas: um estudo sobre a pintura de marinha no brasil Helder Oliveira

516

Iconografia de viagem à luz da história da arte Valéria Alves Esteves Lima

523

capitulo 13 dosssier pedro weingärtner

525

Os desenhos de Pedro Weingärtner Alfredo Nicolaiewsky

530 Afro-modernidade - representações de afrodescendentes e modernização artística no Brasil Roberto Conduru

A paisagem em Pedro Weingärtner (18531929): algumas hipóteses de trabalho Ana Maria Albani de Carvalho

535

capitulo 11 iconografia: intimidade e representações do feminino

Realidades simultâneas - contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner Neiva Maria Fonseca Bohns

545

Imagens da nação: a Carioca de Pedro Américo entre o ufanismo e a licenciosidade Claudia de Oliveira

Alguns comentários sobre Weingärtner Paulo César Ribeiro Gomes

549

Pedro Weingärtner: sob o olhar fotográfico Susana Gastal

555

As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929) Vivian S. Paulitsch

Pintores italianos em São Paulo – o caso da Culla Tragica de Giuseppe Amisani Fernanda Pitta Dois pintores. Duas gerações. Em comum, a paixão pela pintura Márcia Valéria Teixeira Rosa

9

Pedro

O livro que o leitor tem em mãos - Oitocentos Arte brasileira do Império à Primeira República -, reúne os textos integrais das comunicações apresentadas no I Colóquio Nacional de Estudos Sobre a Arte Brasileira do Século XIX, realizado entre os dias 25 e 29 de 2008 no auditório do Centro Cultural Casa de Rui Barbosa, localizado na cidade do Rio de Janeiro. O evento propôs analisar as manifestações das artes visuais brasileiras produzidas no século XIX, compreendido, em termos culturais, de uma maneira singularmente ampla, se iniciando ainda em finais dos setecentos e se encerrando nos anos 1920. Embora a arte brasileira produzida nesse lapso de tempo esteja longe de ser homogênea, julgamos proveitoso analisá-la como um bloco, devido a algumas características comuns, notadamente em função do diálogo - harmônico ou polêmico - que ela estabeleceu com a pedagogia de instituições oficiais de ensino, as Academias de arte, cuja representante mais célebre no Brasil foi a Academia/Escola das Belas Artes do Rio de Janeiro. Cremos que o livro representa bem a expansão do interesse sobre a arte brasileira do século XIX que se tem verificado especialmente nas duas últimas décadas, uma vez que reúne boa parte das novas leituras a respeito da produção artística do período. É notório, no entanto, o quanto esses estudos recentes continuam mal divulgados e mesmo desconhecidos entre os próprios especialistas e, sobretudo, entre os pesquisadores iniciantes. O referido colóquio, bem como a presente publicação dele derivada, se esforçam por minimizar essa lacuna, possibilitando que todos os interessados tomem contato com aspectos significativos desse novo quadro historiográfico que vem se configurando sobre a nossa arte oitocentista.

prefácio

Todavia, se deriva do I Colóquio sobre a Arte Brasileira do Século XIX, pela sua natureza de publicação impressa Oitocentos apresenta uma estrutura própria. Cada um dos treze capítulos que se seguem reúne textos agrupados por possuírem claras afinidades temáticas. Assim, autores aqui reunidos em um mesmo capítulo não necessariamente figuraram em uma mesma mesa no referido evento1. Temos consciência do quanto a organização final do livro deriva de escolhas pessoais: determinados textos poderiam igualmente bem ser colocados em capítulos diversos daqueles em que figuram e mesmo outros núcleos temáticos poderiam ter sido criados a partir do material reunido. Temos certeza de que o leitor perspicaz estabelecerá sua próprias pontes e ligações entre os textos, diversas daquelas que sugerimos no sumário.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nossos agradecimentos vão, em primeiro lugar, para a FAPERJ, o CNPq e a FUJB, instituições que apoiaram financeiramente os diversos aspectos do I Colóquio Nacional de Estudos Sobre a Arte Brasileira do Século XIX, sem o que este não teria sido possível. Gostaríamos de agradecer igualmente à Fundação de Apoio a Escola Técnica, nas pessoas da chefe de gabinete Lindomar Goldschimidt e do diretor do Instituto Superior de Educação Fernado Motta, e à Escola de Belas Artes da UFRJ, na pessoa da diretora Angela Ancora da Luz, bem como ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais dessa última insituição, em especial àqueles professores que dividem conosco a paixão pelo século XIX. Um obrigado muito especial vai para a instituição que acolheu tão generosamente o evento, o Centro Cultural Casa Rui Barbosa, particularmente para Antonio Herculano Lopes, Cláudia Oliveira e para a equipe da Divisão de Difusão Cultural. Registramos nosso reconhecimento aos colegas pesquisadores que palestraram no I Colóquio Nacional de Estudos Sobre a Arte Brasileira do Século XIX, muitos dos quais vindos de outros

estados, e que igualmente colaboraram coordenando as mesas temáticas e os debates. Pela colaboração na organização e pela ajuda durante os dias do evento, ocupam lugar de destaque nesses agradecimentos Marize Malta, da EBA-UFRJ, Fátima Alfredo, mestranda do PPGAVEBA-UFRJ, e os amigos Nadja Dazzi, Renato Amorim e Luciana Diláscio. Agradecemos a Ingrid Marie de Moraes, pela revisão da editoração do livro, e, por fim, a professora Sonia Gomes Pereira, por ter aceito gentilmente redigir a Apresentação do presente trabalho. Ana Maria Tavares Cavalcanti (EBA-UFRJ) Camila Dazzi (CEFET-RJ) Arthur Valle (ISE-FAETEC) Organizadores Notas 1 A programação do I Colóquio Nacional de Estudos Sobre a Arte Brasileira do Século XIX se encontra disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/coloquio/

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A opinião geral de praticamente todos os que estiveram presentes ao I Colóquio nacional de estudos sobre arte brasileira do século XIX – e que certamente será confirmada pela edição deste livro – é de que o evento foi um grande sucesso! Esta apresentação pretende entender as razões desse sucesso e delinear o que podemos aprender com ele para as ações no futuro neste campo de pesquisa. O Colóquio ocorreu na semana de 25 a 29 de fevereiro de 2008. Foi patrocinado por duas instituições: a Escola de Belas Artes da UFRJ (Programa de Pós-graduação em Artes Visuais) e a Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro (Instituto Superior de Educação). Várias agências apoiaram o evento: o CNPq, a FAPERJ, a FUJB (Fundação Universitária José Bonifácio da UFRJ) e a Fundação Casa de Rui Barbosa (IPHAN/ MINC) – esta última cedeu auditório, equipamento e pessoal de apoio, além, naturalmente, do maravilhoso jardim de sua casa histórica, em que foi possível circular durante os intervalos entre as sessões. A organização geral esteve a cargo de três estudiosos do século XIX: a Profa. Dra. Ana Maria Tavares Cavalcanti (coordenadora do PPGAV da EBA/UFRJ), o Prof. Dr. Arthur Valle (professor do ISE/ FAETEC) e a doutoranda Camila Dazzi (professora do CEFET-RJ/Ensino Superior). A descrição desta estrutura geral confirma o perfil atual deste tipo de evento no país: é preciso buscar apoio e recursos em muitas instituições e o que garante mesmo a sua concretização é a liderança de algumas pessoas – no caso, Ana, Arthur e Camila – que conseguem driblar todas as dificuldades e realizar o que todo mundo acreditava antes que era impossível.

apresentação sonia gomes pereira

No entanto, se o Colóquio seguiu o padrão geral de organização de eventos deste gênero, ele foi muito diferente e muito melhor do que grande parte dos encontros científicos que costumamos freqüentar no nosso meio acadêmico – eventos totalmente esvaziados, em que os comunicadores só aparecem na hora de sua própria apresentação e acabam falando para os seus próprios colegas; em que o debate só existe no programa impresso, mas nunca acontece de fato nas diversas sessões; em que os diversos grupos regionais de pesquisadores dificilmente estabelecem contactos produtivos do ponto de vista acadêmico; e em que o objetivo dos participantes parece ser garantir alguns pontos positivos em seus currículos, através da participação num evento científico e da quase certa publicação de sua pesquisa. Muitas agências de fomento à pesquisa têm discutido e questionado este modelo de evento, que engole verbas públicas substanciais e parece contribuir muito pouco para o avanço na produção do conhecimento. 13

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O sucesso do Colóquio, portanto, reside no fato de ter fugido ao padrão desgastado indicado acima. Mas quais seriam as razões mais precisas de seu sucesso? Vou apontar algumas, entre aquelas que me parecem mais importantes.

pontos que me parecem já de consenso entre os pesquisadores desse campo. 1) O reconhecimento de que a historiografia da arte brasileira do XIX foi feita a partir do ponto de vista modernista, tendo, desta maneira, uma abordagem predominantemente preconceituosa.

1) A decisão de usar apenas um auditório – mesmo que isto tornasse o Colóquio mais longo – foi sábia: literalmente manteve as pessoas mais unidas, facilitou o conhecimento de pesquisas de outros grupos - além dos nossos próprios - e propiciou debates espontâneos e produtivos.

2) O reconhecimento das limitações de conceitos tradicionais como acadêmico ou então de uma leitura simplesmente calcada no reconhecimento da filiação da obra a estilos ou movimentos. Na verdade, esses estudos encobrem a obra e produzem uma História da Arte opaca ou mesmo cega.

2) Houve a preocupação dos organizadores em atrair o maior número possível de estudiosos sob vários aspectos. Primeiro, atendendo aos diversos níveis na formação e na atuação do pesquisador: desde estudiosos consagrados, passando por doutorandos e mestrandos, até a inclusão de alunos da graduação - engajados em projetos institucionais de pesquisa e geralmente com bolsas de iniciação científica. Segundo, incorporando pesquisadores de todo o país e, em menor escala, até de fora: conforma consta no Caderno de Resumos, foram ao todo, 74 comunicações, sendo 24 do Rio, 24 de São Paulo, oito do Rio Grande do Sul, cinco de Minas, cinco da Bahia, três do Pará, três do Paraná, uma de Pernambuco e uma do Distrito Federal, além de duas estrangeiras (de Portugal). É verdade que um percentual mínimo desses comunicadores faltou ao Colóquio, como as duas colegas portuguesas, mas isto em nada arranha o caráter efetivamente aberto e abrangente que o evento pretendeu adotar. O Colóquio conseguiu, portanto, fugir do acanhamento provinciano de alimentar a natural comparação entre os diversos grupos institucionais.1

Em segundo lugar, comento algumas questões que, no meu entendimento, precisam ser aprimoradas nos nossos estudos futuros, em termos de rigor metodológico: 1) Entre alguns pesquisadores, o perigo de transformar a arte numa conseqüência pura e simples do contexto histórico e cultural, evitando, desta forma, o embate frente à obra. 2) Entre outros estudiosos, o perigo inverso de afundar-se nos aspectos formais e técnicos da obra, desprezando ou simplificando a questão complexa do entorno cultural. .3) A absoluta necessidade de promover entre os pesquisadores em todos os níveis (iniciação científica, mestrado e doutorado) o procedimento metodológico essencial de começar qualquer pesquisa pelo que é chamado de estado da questão, isto é, a identificação do ponto em que se encontram as discussões sobre o tema em questão. Na era da internet e com as recentes recomendações da Capes aos programas de pósgraduação para que dissertações e teses sejam disponibilizadas na íntegra nos sites dos programas, esta busca pelas pesquisas congêneres se torna muito mais fácil. Este ponto me parece essencial a fim de que a historiografia possa realmente avançar para discussões novas e importantes, evitando a ingenuidade do pesquisador iniciante que acredita estar “descobrindo” fontes ou obras ou interpretações que, na verdade, já foram “descobertas” antes.

3) Acredito que o fator mais decisivo para o sucesso do Colóquio tenha sido a decisão dos organizadores em apostar numa abordagem, na minha opinião, mais inteligente: colocar em primeiro plano a importância do campo de estudos da arte brasileira do século XIX. Assim, o interesse prioritário do evento voltou-se para a montagem de uma grande painel que desse conta do estado atual dos estudos neste campo, constituindo, dessa maneira, um verdadeiro encontro acadêmico, que deve estar comprometido, em primeira instância, com a produção de conhecimento.

4) Para os pesquisadores que trabalham essencialmente com fontes escritas, a necessidade de entender criticamente aquilo que é encontrado nesses discursos, evitando uma interpretação um tanto ingênua de que o que está escrito é necessariamente verdade.

Depois desses comentários sobre as razões do sucesso do Colóquio, acredito que seja importante delinear algumas questões, em geral metodológicas, que podem iluminar os nossos estudos futuros, sempre tendo como prioridade o avanço coletivo da historiografia da arte brasileira do século XIX. Em primeiro lugar, destaco alguns 14

Apresentação

Em terceiro e último lugar, destaco um problema de natureza mais política. Reafirmo aquilo que tem sido um ponto constante nas reuniões acadêmicas: a importância de fazer circular de forma mais efetiva a pesquisa que vem sendo produzida nas universidades, museus e centros de pesquisa sobre a arte brasileira do século XIX. Sabemos que o grande problema das nossas publicações acadêmicas não é propriamente a editoração, mas a distribuição. É possível que uma estratégia inteligente a ser conquistada nesse campo de estudos seja tentar influir nas políticas públicas, garantindo recursos para a tarefa difícil e dispendiosa de distribuição de livros no Brasil. Uma maior divulgação das pesquisas acadêmicos para um público mais amplo e a demonstração dos avanços efetivos na produção de conhecimento na área talvez nos poupasse do desprazer e do desencanto de constatar que muitas exposições e publicações atuais são feitas em quase total destacamento do avanço historiográfico que vem sendo construído há algumas décadas no meio acadêmico.

conceitos e métodos e de retomar de modo crítico a sua historiografia. Finalmente, termino essa apresentação dizendo que os organizadores do Colóquio estão de parabéns; nós, historiadores da arte brasileira do século XIX, também estamos de parabéns; e dando voz e palavra à sensação que parecia unânime ao final do evento: queremos mais! Notas 1

Existe uma natural comparação e mesmo competição – nesses tempos tão difíceis de empregos e recursos – entre alguns grupos de pesquisadores ligados a instituições que têm linhas consolidadas de pesquisas sobre a arte brasileira do século XIX. Antes de mais nada, é importante enfatizar que utilizo aqui a expressão linha de pesquisa no seu sentido literal, isto é, a existência de um grupo de pesquisadores, professores e alunos, que se dedicam à pesquisa institucional, quer dizer, pesquisa que tem alguns tópicos temáticos ou metodológicos em comum. Nesse caso, há algum tempo, destacam-se no estudo da arte brasileira do século XIX duas linhas de pesquisa institucionais: a da IFCH/UNICAMP e a da EBA/UFRJ. Não é difícil, durante os congressos e colóquios, entreouvir no auditório comentários críticos mútuos. Na minha opinião, esta é uma querela sem grande futuro. As linhas de pesquisa dessas duas instituições têm necessariamente padrões diferentes. Na UNICAMP, trata-se de uma linha de pesquisa dentro de um programa de pós-graduação na área de História, já bastante consolidado (acredito que vem mantendo o conceito 7 na Capes há várias avaliações). Já na UFRJ, o interesse pela arte do século XIX situa-se dentro de um grupo pequeno – porém bastante combativo - que se vem dedicando à pesquisa de sua própria história e de seus acervos, dentro de um programa de pós-graduação na área de Artes ( tem obtido conceito 5 na últimas avaliações da Capes), voltado não apenas para a História da Arte, mas também para a questão da formação do artista e em que o debate do moderno e do contemporâneo tem um peso enorme. Apesar da limitação e mesmo inutilidade dessa comparação, não deixa de ser curioso perceber nesses comentários que os paulistas têm, em geral, uma auto-estima consolidada, mas que isto nem sempre acontece entre os cariocas, que, muitas vezes, são os primeiros a criticar publicamente a sua instituição. Coitada das Belas Artes! Tão facilmente atacável desde os tempos da Academia e da Escola Nacional de Belas Artes!

É interessante observar que a História da Arte tem recebido um tratamento contraditório nos últimos tempos, pelo menos no Brasil. De um lado, ela passou a ser execrada, como uma disciplina morta – talvez efeito de uma leitura, na minha opinião equivocada, dos escritos de Danto e Belting: em geral esses críticos se voltam para a Cultura Visual, como um novo campo mais promissor e que poderia substituir, com vantagem, a “falecida”. No extremo oposto, a História da Arte “entrou na moda” e parece fácil a pesquisadores de áreas afins movimentar-se com desenvoltura neste campo de estudos: o resultado tem sido, muitas vezes, uma simples divulgação de conhecimento e não uma verdadeira produção de conhecimento científico. Ao contrário destas posições acima destacadas, acredito que a História da Arte é uma disciplina muito complexa, que exige grande preparo e experiência culturais e que tem demonstrado uma incrível vitalidade nos últimos tempos, tendo a coragem de enfrentar a discussão de seus

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capitulo 1 história da arte do século xix: revisões e novas abordagens

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Começo por um trecho, lido há décadas, no tempo de minha graduação em história da arte. É extraído de um artigo escrito por Jean-Philippe Chimot sobre Delacroix, e publicado na revista Information de l’Histoire de l’art, de 1964 1, intitulado “Delacroix e a sociedade de seu tempo”. Ele diz: “Aqui, a noção de linguagem é central. Trata-se de ultrapassar seu sentido exclusivo de “retórica”, do estilo discursivo herdado do classicismo (ou antes, do academismo) para se abrir ao sentido mais largo de “pensamento”, supondo que pode existir um pensamento musical e um pensamento plástico com seus elementos constitutivos de uma natureza diferente das palavras e das frases”. Esta passagem, escrita em 1964, era então de grande originalidade: arte concebida não como forma, ou como objeto, mas como pensamento2. Partindo dela, somos levados a deduzir que uma obra de arte condensa um pensamento, e que esse pensamento não é o pensamento do artista: é o pensamento da obra. O artista, o criador, é um indivíduo que pensa como cada um de nós, por meio de palavras e de frases. Ora, não é com palavras e frases que ele se torna artista (a menos que seja um poeta ou ficcionista, mas aqui as palavras adquirem uma opacidade suplementar, que as faz “pensar” como arte, não como definições ou conceitos). O artista precisa das palavras e das frases para viver, para se comunicar, para pedir um café ou dizer bom dia. Quando produz uma obra, emprega elementos que constituem um pensamento objetivado e material.

reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes - exemplos do século xix jorge coli

Um quadro, uma escultura desencadeiam, graças à materialidade de que são feitos, “pensamentos” sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os homens. Esses “pensamentos”, incapazes de serem formulados com conceitos e frases pela própria obra, provocam comentários, análises, discussões, que se alteram, ao infinito, conforme seja o analista, o universo cultural ao qual pertence, a geração da qual faz parte. O artista, ele próprio, pode propor uma análise de sua criação. Ele será, porém, rigorosamente, apenas mais um analista, como os outros o foram. A obra de arte, como pensamento material e objetivado, deixa de ser objeto e se torna sujeito, sujeito pensante, como o é um tratado filosófico, apenas com uma diferença fundamental de meios. O artista, portanto, introduz um ser pensante no mundo, ser autônomo em relação a seu próprio criador. No entanto, se reunimos obras feitas pelo mesmo artista, constatamos constantes, não apenas estilísticas ou formais, mas de pensamento. Ou seja, o conjunto da produção de um mesmo artista, pertence a um pensamento genérico do qual 19

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

participa cada obra. Cada obra se torna uma parte orgânica desse todo que a ultrapassa. Seria esse pensamento genérico o pensamento do artista?

permitiu aos Cahier du Cinéma revelar grandes realizadores norte-americanos, considerando-os autores, como Hitchcock, Hawks ou Huston, realizadores esses que, eles próprios, não se consideravam autores. Pensavam estar apenas produzindo produtos de divertimento destinados ao sucesso e com objetivos do melhor lucro possível. Suas obras foram, contudo, capazes de constituir uma entidade artística: o auteur.

A resposta é não. O artista não exprime esse pensamento geral por palavras: é o conjunto de sua obra que o exprime. Temos portanto duas unidades diferentes: a genética, que preside à criação, e que pertence ao artista, e uma outra, a posteriori, que é extraída das obras.

Desse modo temos uma distinção entre o artista (aquele que está na gênese da obra) e o autor (a unidade que reúne as constantes do pensamento artístico embutido nas obras}.

Os especialistas da arte medieval (mas isso é verdadeiro também para alguns outros períodos) encontram, com certa freqüência, obras que se assemelham em seu estilo, mas também em seu espírito. Muitas vezes, esses conjuntos são anônimos. Eles podem concluir que foi uma única mão que os fez, embora não se conheça o artista. Então, inventam um nome: “Mestre dos Cravos”, “Mestre da Anunciação de Aix”, “Mestre da Vela”.

Creio que, se separarmos com clareza o artista do autor, teremos duas categorias que permitem compreender melhor o fenômeno artístico, com conseqüências importantes, algumas de natureza social, outras de natureza concreta.

Não seria rigoroso, porém, considerarmos esses “mestres” como artistas; ou pelo menos não como consideramos Delacroix. De Delacroix conhecemos sua vida, suas viagens, os locais onde morou. Temos um diário que ele escreveu. Temos seus comentários sobre outros artistas. Do Mestre dos Cravos não sabemos nada do que precede a obra. Nada que esteja ligado à sua pessoa, nada que se vincule a uma personalidade, a uma história pessoal. Tudo o que temos dele, ao contrário, provém de suas obras.

Primeiro, essa cisão permite esvaziar a autoridade do artista. Ele é o criador da obra, está em sua gênese como um demiurgo. Mas o mundo que ele instaurou passa a viver por si só. Nossa concepção do criador nas artes foi muito marcada pelo romantismo. Imaginamos que o autor “exprime” sua alma, seus sentimentos em sua criação. Imaginamos que ele tem uma autoridade natural sobre seus quadros, suas esculturas, suas gravuras. Ora, se considerarmos que o artista é um médium para o autor, que se encontra nele mas que não se identifica com ele, devemos concluir que ele não exprime nada, mas que fabrica coisas carregadas de expressão. É interessante ter certos dados biográficos do criador, por exemplo, para compreendermos a gênese da obra. Mas, passado esse ponto, a obra começa a falar por si. Ela pode mesmo negar o dado genético, ou então confirmálo. Mas agora isso deixa de importar, porque a obra está dizendo outra coisa, falando por si mesma.

O grupo da revista Les cahiers du cinéma criou, nos anos de 1950, uma noção muito interessante para se compreender o cinema: a idéia de auteur. Seus inventores foram André Bazin, e depois François Truffaut, que forjou a expressão “política dos autores”. Sem entrar numa discussão mais aprofundada sobre essa noção, há uma conseqüência sua que quero assinalar aqui. Esses teóricos designavam como autores os cineastas que imprimem características originais de criação em seus filmes. A partir dessas características, é possível distinguir um diretor autor, de um nãoautor. Talvez, mais rigorosamente e melhor, poderíamos empregar esse princípio de maneira levemente diversa, dizendo que todos os cineastas são autores: apenas, uns são bons, outros são ruins.

Desse modo, deveríamos por em questão, por princípio teórico, e sempre que fosse possível, na prática, o poder que o artista possui em alterar sua própria obra. Quantos escritores e poetas, na velhice, reviram e reescreveram suas obras de juventude, modificando-as segundo uma concepção tardia, que eles acreditaram melhor, decretando-as como definitivas? Quantos compositores? Stravinsky, nesse aspecto, é um exemplo clássico. Na verdade, dessas modificações resultam duas obras diferentes, a mais antiga e a mais nova, que incorporam modos diversos da criação segundo os diferentes momentos. No caso das artes plásticas, a questão

Mas não é este ponto que me interessa aqui. Quero chamar a atenção para efeito desse princípio na crítica cinematográfica. Os críticos marcados pelo princípio da política dos autores, consideram os filmes em relação à filmografia do realizador, buscando as recorrências e temas desenvolvidos nos diferentes filmes de um cineasta. Essa posição 20

Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes

concreta se impõe, já que a obra alterada esconde ou desfigura o primeiro original.

gosto e mesmo nas práticas do mercado, as diferenças hierárquicas que existem entre um original e uma cópia. Mais ainda, sabemos que a reprodução fotográfica de uma obra não é a obra, mas uma espécie de sucedâneo, de mero aidemémoire. Conhecemos todos um texto arquicélebre, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, cujas origens fortemente românticas recobrem a obra por uma aura de um misticismo fetichista. Condena os processos de banalização trazido pelos meios mecânicos de reprodução. A imagem fotográfica de um quadro não é o quadro; não apenas é menos que o original, mas pode ser mesmo sua negação, porque expõe, em grande escala, uma aparência que não possui a imanência sagrada da obra.

Para sermos rigorosos, teríamos que admitir o fato de nenhum artista ter, portanto, o direito de destruir qualquer uma de suas obras. Está claro que, humanamente e, suponho, legalmente, o artista tem o poder de anular o que criou. Mas o princípio teórico é importante. Trago aqui um exemplo concreto. Há algumas décadas, fiz parte do Condephaat, o Conselho que discute e decide dos bens a serem tombados no Estado de São Paulo. Chegou um dossiê reclamando a proteção legal para a Fábrica de Biscoitos Duchen, no município de Guarulhos. Ela havia sido construída por Oscar Niemeyer em 1950; era, sem dúvida, um marco na história da arquitetura industrial do Brasil, e um novo proprietário tinha a intenção de pô-la abaixo. Um membro do conselho levantou, porém, um ponto. Ele afirmava que Niemeyer não tinha essa sua obra em alta conta. A decisão tomada pelo conselho seguiu o princípio de autoridade do artista: consultar o arquiteto. Que se mostrou indiferente à destruição. O conselho, assim, recusou o tombamento e a fábrica foi destruída.

Os historiadores da arte sabem, no entanto, que existe uma ligação forte entre coisas que se assemelham. A história da arte moderna afirmouse com a fotografia, ou seja, com algo que reproduz um original. São as fotos de quadros, de estátuas, de edifícios, que permitem aos historiadores os estudos comparativos. Eles trabalham com imagens de imagens. Os grandes centros internacionais de estudos em história das artes possuem grandes mesas. Grandes mesas são necessárias e indispensáveis: sobre elas podemse dispor várias fotografias e comparar. Comparar é uma forma de compreensão silenciosa da relação entre as imagens.

Temos aqui um evidente exemplo do conflito entre o artista e o autor. O artista, ser concreto, de carne e osso, pensante e raciocinante, confere a si mesmo o direito de desfalcar o autor, de modificar suas características pela supressão de uma obra. Para o historiador, o princípio de método, porém, só pode ser o da consciência desse pensamento objetivado numa obra, que se une às outras para constituir um pensamento mais amplo e complexo. É essa separação entre o autor e o artista que nos garante o rigor. *

*

As palavras não conseguem apreender as obras: podem ser, no máximo, indicativas de intuições mudas. Num estudo de história da arte, as imagens nunca são secundárias, ilustrações destinadas a embelezar um texto. Elas são nucleares, porque carregam em si o próprio processo de raciocínio. Quando Roberto Longhi quer demonstrar que Piero di Cosimo viu a pintura dos mestres setentrionais, não perde tempo em expor argumentos: dispõe, numa página, detalhes de quadros que mostram a semelhança entre obras realizadas na Itália e na Alemanha no século XV. Basta isso. Para evocar outro nome essencial na história da arte, Aby Warburg e o célebre Atlas de Imagens Mnemosyne, cujo princípio comparativo criava relações intuitivas e expressivas apenas pela relação mantida entre as obras, graças à sua proximidade e disposição sobre uma prancha. É o sonho de uma história da arte por imagens, sem palavras

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Um outro ponto é o da natureza imaterial, própria à obra de arte. Essa noção – obra de arte – traz, de modo imediato, a referência a uma “coisa”, um objeto palpável, que os museus e coleções têm, por obrigação, de conservar, lutando contra o tempo que passa e que altera inevitavelmente a matéria de que são feitas. Seria possível desenvolver, neste ponto, uma discussão sobre as questões imateriais ligadas ao ato, muito concreto e físico, de conservação e restauração. Prefiro, porém, avançar por um outro caminho. Esse objeto material, ao qual chamamos “obra de arte”, necessita desse princípio obsessivo de conservação por um claro motivo. A obra é um unicum, algo que não pode ser feito novamente. Sabemos, nas práticas reflexivas, nas práticas do

Por esse meio, é possível estabelecer filiações, contactos, reconstituir a cultura visual de um pintor do passado. Essa prática demonstra, por sinal, que não existe tabula rasa em artes. Por trás de um quadro ou de uma estátua, existe outro e mais outro Os historiadores da arte costumam dizer que é 21

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

preciso treinar o olho. Isto significa incorporar um saber, sempre silencioso, sempre intuitivo, capaz de captar o que há de comum entre as formas. Mas que lugar é esse que a preposição “entre” indica? Não há apenas dois lugares, o lugar de uma imagem e de outra imagem, o lugar de uma aparência e de outra aparência. Há um terceiro lugar, uma terceira margem do rio, onde, invisíveis, imateriais, o semelhante se funde no semelhante, onde a analogia se metamorfoseia em fusão.

imperceptíveis a ele conduzem. É nele que se enraíza o culto frenético de Proust, seu culto apaixonado da semelhança. Os verdadeiros signos em que se descobre, de modo sempre desconcertante e inesperado, nas obras, nas fisionomias, nas maneiras de falar. A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos nunca são idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre si.3

O pintor Jean-Dominique Ingres (1780-1867) acreditava que a perfeição do todo se originava na perfeição das partes. Trabalhava sobre os elementos das imagens que deviam compor uma pintura de maneira obsessiva, fazendo e refazendo cada um. Com eles, montava a figura repetidamente, até chegar à convicção de que ela se tornara perfeita. A forma obtida então, viajava de quadro em quadro, reaparecendo nas telas sucessivas que pintava. O caso mais evidente é o dos nus femininos, que constituem uma longa seqüência em sua obra. O desfile se termina na apoteose do Banho turco, quadro que reúne nus numerosos, concebidos e retomados anteriormente, ao longo de sua carreira. Formouse, deste modo, uma galeria constituída por eclosões que manifestam o princípio de uma imagem acima das imagens, obtida pelo pintor e fortalecida a cada nova aparição. Esta palavra, aqui, não é casual. Ela nos remete ao princípio da imagem como fantasma, cara a Aby Warburg. A Banhista de Valpinçon “reaparece” na Pequena Banhista e, enfim, no em O banho turco. Ou seja, ela é nasce numa tela, viaja para o invisível, volta em outra, e ainda em outra, ao mesmo tempo como a mesma e como nova.

Porém, Walter Benjamin pressupõe À la recherce du temps perdu como uma obra autobiográfica4, que seria o sonho lembrado de um vivido pessoal. Esta relação direta entre autor e narrador foi sempre feita pela grande maioria dos especialistas de Proust, o que confere uma percepção mesclada de seus processos genéticos entre autor e ficção. No entanto, é legítimo – e eu seria tentado a dizer, é a única legitimidade possível – tomar À la recherce du temps perdu pelo que ela de fato é: uma obra de ficção, da qual o narrador não é o autor. Os exegetas de Proust deveriam se lembrar da máxima de Nietzche: “Uma coisa sou eu, outra são os meus escritos...” Assim, aquilo que é chamado por Benjamin de “mundo dos sonhos”, considerado a partir de uma vigília “real” é, na verdade, o lugar de experiências imaginárias (pouco importa se inspiradas ou não da realidade vivida) onde, como veremos, se situa a obra-dearte. Proust freqüentou o Louvre na sua juventude e fez viagens a Veneza, Pádua, Holanda e Bélgica. Essas atividades são testemunhos de um contato intenso com as obras reais que descobria, mas não significam uma presença insistente diante dessas mesmas obras. O essencial de sua familiaridade com a arte vinha de um outro modo: vinha por meio de reproduções fotográficas. O que importa ao narrador de À la recherche é tecer as relações entre essas réplicas, a obra, e o lugar delas, a terceira margem do rio.

O processo singular, próprio ao artista, se reitera no conjunto coletivo das produções artísticas. Um dos grandes prazeres dos historiadores das artes é descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformarem em outro. A exploração mais sutil dessa terceira margem do rio foi feita não por um teórico, nem por um historiador, mas por um romancista: Marcel Proust em sua obra literária. Proust era fascinado pelas artes e pela ressurreição das imagens.

Proust assinala: esta relação entre as obras e suas reproduções não são simples, nem mecânicas. Nem as reproduções são apenas veículos que transmitem, como podem, de maneira subalterna, a essência do original.

Walter Benjamin assinalou, numa passagem breve, a importância da noção de semelhança no universo de Proust.

Numa passagem, o narrador de Proust evoca a estátua de uma virgem medieval da qual ele vira com paixão numerosas fotografias e mesmo sua reprodução em gesso no antigo Museu dos Monumentos Franceses de Paris. Agora, ia para a

Toda interpretação sintética de Proust deve partir necessariamente do sonho. Portas 22

Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes

cidade fictícia de Balbec, onde a escultura real se encontrava. Eis a passagem:

à expectativa de um certo fetichismo do original, agentes destrutores de alguma essência própria atribuída às virtudes aparentemente irredutíveis do concreto. “Elas, as únicas: é muito mais” cria uma expectativa provocada pelo privilégio absoluto do singular. Mas logo depois, a seqüência, desencantada, demonstra como o real se encontra aquém da obra.

Dizia para mim mesmo: É aqui, é a igreja de Balbec. Essa praça que parece saber sua glória, é o único lugar no mundo que possui a igreja de Balbec. O que vi, até agora, eram fotografias dessa igreja e, desses Apóstolos, dessa Virgem do pórtico, tão célebres, apenas as moldagens. Agora, é a própria igreja, é a própria estátua, elas, as únicas: é muito mais. Era menos, também, talvez. [...] meu espírito, que tinha elevado a Virgem do Pórtico fora das reproduções que eu tivera sob os olhos, inaccessível as vicissitudes que poderiam ameaçá-las, intactas, se fossem destruídas, ideal, tendo um valor universal, espantava-se por ver a estátua, que ele havia esculpido mil vezes, reduzida agora à sua própria aparência de pedra, ocupando, em relação ao alcance de meu braço, um lugar onde tinha por rivais um cartaz eleitoral e a ponta de minha bengala, prisioneira da Praça, inseparável do desembocar da rua principal, não podendo escapar aos olhares do Café e do escritório de ônibus, recebendo em seu rosto a metade do sol poente – e logo, dentro de algumas horas, a claridade do lampião - do qual o escritório do Banco de Descontos recebia a outra metade; banhada, ao mesmo tempo que essa Sucursal de um Estabelecimento de Crédito, pelo ranço da cozinha da doceria; submetida à tirania do Particular a tal ponto que, se eu quisesse traçar minha assinatura sobre essa pedra, é ela, a Virgem ilustre que até então eu tinha dotado de uma existência geral e de uma intangível beleza, a Virgem de Balbec, a única (o que, por infelicidade, queria dizer a única), que, sobre seu corpo encardido pela mesma fuligem que as casas vizinhas, teria, sem poder apagálo, o traço de meu pedaço de giz e as letras de meu nome, e era ela enfim, a obra de arte imortal e tão longamente desejada, que eu encontrava metamorfoseada, assim como a própria pequena igreja, numa velhinha de pedra que eu podia medir a altura e contar as rugas.5

A estátua real é menos verdadeira que a estátua construída pelo espírito. Inserida na banalidade do quotidiano, é a escultura autêntica, a obra de arte única, que perde a sua aura. Esse quotidiano significa uma imersão no “real”. Encontramo-nos portanto em oposição diametral à concepção da aura pensada por Walter Benjamin. O ponto muito original de Proust, inteiramente antiromântico e avesso ao fetichismo, é a idéia de que a obra de arte não se reduz à sua materialidade. Essa materialidade tornou-se uma espécie de lastro que pode ser substituído, com certas vantagens, pelas representações materiais – a fotografia, a moldagem – e pelas representações do espírito, pela memória. A pedra, ou qualquer outra matéria, captou as intuições criadoras do artista; o espectador proustiano termina por intuir essas intuições, que brotam na matéria, mas existem fora dela. Na verdade, a obra encontra-se nesses “espaços interiores”, onde se constrói uma verdade superior à da experiência, embora seja alimentada por ela: Não se trata de um “mundo das idéias”, perfeito e pré-existente, nem a memória de Proust comparase à reminiscência platônica. Trata-se de um lugar de encontros, onde a obra, e a sua visão, e as suas imagens, se unem para além da materialidade. Isto nos traz imediatamente um ensinamento: a obra nunca existe num em si definido pela materialidade. Ela encontra-se, portanto, aquém e além da visão: aquém, na sua autonomia de objeto; além, na sua existência que se situa paralela ao mundo da experiência. A fotografia traz a semelhança da obra; não é a obra, mas faz parte dela. Proust nos leva para um caminho reflexivo diverso do que Walter Benjamin toma em seu conhecido texto – antes, na primeira versão de seu conhecido texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”6. O conflito entre valor de culto e valor de exposição, que interessa Benjamin, é dissolvido por Proust numa síntese que, primeiro, não se importa com a idéia de exposição enquanto “exposição às massas”, e que, em seguida, trata o objeto artístico em sua

Neste trecho crucial, Proust pressupõe um lugar para as obras “de significado eterno”, como diz, que deve se encontrar não apenas fora do quotidiano, mas fora daquilo que seria o “real”. Lembremos: em meio a tantas citações de obras existentes que percorrem À la recherche, a estátua da virgem encontra-se na igreja de uma cidade que não existe (Balbec), mas, que não deixa de ser o “real” paradigmático. A obra não existe nesse real, nesse concreto, concreto e real que podem, graças 23

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

substância de cultura, que encarna uma espécie de “essência real”.

Tal semelhança enobrecia Odette. No romance, ela é uma espécie de prostituta de luxo, que, se descobre à leitura da obra, esteve na cama de um grande número de personagens de À la recherche, e entre os mais imprevistos. Essa semelhança previne também, como diz o narrador, os desgastes possíveis dos afetos. Odette incorporara-se à eternidade de uma obra de arte.

No caso de Proust não existe aura perdida pela reprodução técnica da fotografia, nem culto do original, nem cuidado com o que seria uma divulgação em ampla escala da imagem. Num certo sentido, a reprodução se torna única, pois foi ela (neste ela incorporando-se um “aquela” específico, “aquela que eu vi e vejo, que se encontra em minha mesa, ou em minha parede”). Não existe condenação alguma das reproduções mecânicas, mas a constituição de uma verdade surgida da obra, capaz de fecundar as experiências (incluindo aqui a experiência fotográfica), que terminam por conduzir à verdade da obra.

O amálgama entre a arte e a vida demonstra que o princípio de semelhança opera como fulcro da percepção mas, ainda, a erige como processo primeiro da compreensão. No universo proustiano não há essências platônicas, estáveis, inteiramente fora do mundo, mas um contaminar-se contínuo dentro do qual assemelhar é conhecer e reconhecer. São processos que escapam da solidez “real” do mundo para alcançar uma intensidade etérea.

Aquilo que para o colecionador, para o amador esclarecido, é o núcleo – ou seja, o que poderíamos chamar de o fetichismo do original - não o é de modo algum para Proust, para quem o núcleo se acha fora do material, formado por jogos de fusão.

Semelhanças e analogias criam uma substância artística maior do que seus limites materiais. As obras são únicas, sem dúvida, mas como pontos num tecido amplo de outras obras, ou, como no caso de Proust, da “realidade”, por meio de uma percepção que a transforma em arte. Essas obras não são feitas apenas de um original. Dela fazem parte, como elemento constitutivo profundo, e não como sucedâneos desprovidos de alma, a reprodução, a marca deixada na memória, todas as formas de representação, ou antes, de reapresentação, todas as formas de associações presididas pela semelhança. Material e imaterial, a obra é tudo isso, é feita de tudo isso.

Nesse campo de fusões, uma prática freqüente que se encontra na obra de Proust é a relação de semelhança entre os seres existentes e as obras de arte. De todas, muito conhecida, é a da semelhança que Swann estabelece entre Odette de Crécy e uma figura de Botticelli, Séfora, a filha de Jetro, no afresco da capela Sixtina. Proust, ele próprio, conhecia essa imagem não por tê-la visto de fato, pois nunca estivera em Roma, mas por uma reprodução de uma cópia que dela fizera Ruskin. Swann, vendo Odette, em peignoir, debruçada sobre uma gravura, percebe o quanto ela é parecida com a figura de Boticelli. O narrador nos explica que Swann gostava de descobrir semelhanças entre pessoas e personagens pintados pelos grandes artistas.

Notas 1

CHIMOT, Jean-Philippe. Delacroix et la société de son temps. In: Information de l’histoire de l’art, nº 2, 1964. pp. 74-76. 2 A retomada atual do pensamento de Aby Warburg, as reflexões de Didi-Huberman tem evidentes afinidades com esse modo de conceber a obra de arte. 3 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 39. 4 Idem, ibidem, p. 36. 5 Traduzido de PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, Livre de Poche, 1971. p. 245-246. 6 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica – primeira versão. Op. cit. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Esta primeira versão data de 1935/1936. Os editores da seleção explicam: “O ensaio traduzido em português por José Lino Grünnewald e publicado em A idéia de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

Odette e a figura de Botticelli se superpõem, e “essa semelhança conferia a ela também uma beleza, tornava-a mais preciosa. Swann se acusou de ter desconhecido o valor de um ser que teria parecido adorável ao grande Sandro, e felicitou-se pelo fato de que o prazer que ele tinha ao ver Odette encontrasse uma justificação na sua própria cultura estética. (...) A palavra de “obra florentina” trouxe um grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, fazer adentrar a imagem de Odette num mundo de sonhos onde, até então, ela não tinha acesso, e onde ela se impregnou de nobreza”.7 Swann põe, sobre sua mesa de trabalho, “como uma fotografia de Odette, uma reprodução da filha de Jetro.” 24

Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes

1969, e na coleção Os pensadores, da Abril Cultural é a segunda versão alemã, que Benjamin começou a escrever em 1936 e só foi publicada em 1955.” Na segunda versão, a idéia que me

interessa aqui é exposta de maneira menos densa e mais desenvolvida. 7 Traduzido de PROUST, Marcel. Op. cit., p. 268.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

No final do ano passado, estimulado por um amigo italiano especialista em arte latino-americana, o professor Mario Sartor, publiquei na Itália um pequeno escrito panorâmico sobre a arte brasileira do século XIX. Talvez seja a primeira vez que sai fora do Brasil uma visão de conjunto deste período pouco estudado até pouco tempo atrás até dentro do país. Assim, dei de presente o livro para alguns colegas para ouvir as opiniões de estimados estudiosos brasileiros. Um deles, conhecido historiador da arquitetura da FAU USP, depois de elogiar o livro, como se costuma entre colegas, fez duas observações críticas que me deixaram preocupado e que fizeram surgir algumas das reflexões contidas neste escrito. Ele afirmou que no meu livro se percebia um olhar europeu, e que na minha abordagem temia de perceber a perda do projeto democrático dos modernistas. Pergunteime o que ele queria dizer exatamente. Recuso-me a acreditar que atrás daquelas palavras se escondesse uma velha e superficial posição nacionalista: a que afirma que, por ser a arte a expressão de identidade nacional, só os brasileiros poderiam entender a arte brasileira, assim como só os italianos poderiam entender a italiana. Estudiosos de todos o mundo devotam seus trabalhos à compreensão da arte italiana ou espanhola, ou francesa dos séculos passados e suas contribuições são fundamentais para a compreensão histórica daquelas produções. Existe uma síntese da escultura italiana desde o século XIII ao XVII mais importante daquela de John PopeHennessy? Existe uma visão em conjunto do barroco italiano mais abrangente e efetiva daquela de Wittkower ou de Norberg Schulz na arquitetura? E os escritos do brasileiro Dioclécio Redig de Campos sobre Rafael? Porque o mesmo não poderia acontecer com a cultura brasileira? Na posição do colega e amigo da FAU, ele próprio um estudioso de arte italiana, devia estar colocada uma outra questão, que talvez podesse ser esclarecida compreendendo exatamente o significado da suposta perda do projeto democrático do modernismo, envolvida numa revisão histórica da produção brasileira do século XIX. Talvez ele quisesse dizer o seguinte. Ao falar de uma tradição artística brasileira não se deve esquecer que a definição do campo da arte no Brasil não pode ser limitada à produção dos tradicionais géneros europeus na pintura, na escultura, na gravura. É preciso pensar na presença de culturas figurativas de origem heterogênea, indígenas, africanas, populares, que formam a verdadeira matriz da cultura do Brasil moderno e contemporâneo. O campo estético definido por esta variedade cultural, no que diz respeito à imagem, é infinitamente mais complexo e seria um engano grave reduzi-lo aos limites da produção acadêmica no século XIX. Nesse sentido a reivindicação destas componentes

a recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira luciano migliaccio

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A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira

por parte dos modernistas representa uma premissa para qualquer discurso historiográfico fundamentado em ideais de democracia.

concebida como análise histórica dos esquemas de percepção e de avaliação que existem na produção bem como na fruição das obras de arte. O programa definido por Castelnuovo enfoca a história dos colecionadores, das instituições, dos artistas e das obras como momentos de uma história social da arte, estendendo a noção de crítica de arte além dos limites da literatura sobre a arte, para abarcar a história do mercado da arte, dos museus, das exposições, das associações , da conservação e da restauração , das cópias e das reproduções 3 . Conforme proposto por Wolfgang Kemp em sua introdução à coletânea de ensaios Der Betrachter ist im Bild4 (O espectador está no quadro) a história da recepção da imagem se articularia no exame da evolução das formas e dos géneros artísticos (a transmissão e resignificação de obras por meio de outras obras); história da recepção por meio de textos literários (crítica de arte, mas também todo tipo de literatura); história do mercado (fenômenos de disperção ou de coleção de obras, história da apresentação e difusão das obras de arte). Particularmente aqui é interessante a noção de recepção interna às obras, que permite reformular a abusada noção de “influência”, mostrando como todos os fenômenos de recepção são também eventos criativos, ao interior de um campo de comunicação que o historiador deve considerar, como destaca o antropologo inglês Alfred Gell na sua teoria da arte como agency, que talvez poderia ser traduzido como “campo de ação”5.

Trata-se de uma objeção muito séria. Contudo, sob este aspecto, hoje é preciso não voltar a incidir na antiga contraposição entre acadêmicos e modernos, apenas disfarçada com outras palavras. A preocupação de estender o nosso conhecimento do conjunto da produção figurativa e de buscar métodos adequados para a compreensão das diversas componentes da cultura figurativa brasileira tampouco deve fazer esquecer que as instituições do campo da arte contemporânea, as instituições de ensino artístico, as exposições e a crítica de arte sem as quais não haveria público moderno, a reflexão histórica sobre a arte surgiram e se efetivaram no país precisamente a partir dos modelos criados pela Academia Imperial de Belas Artes e que o seu estudo deve formar a base de qualquer tentativa de compreensão histórica da arte brasileira. Parece-me que hoje é tempo para ultrapassar a gasta contraposição entre o modelo acadêmico e o da vanguarda para estabelecer qual deles é mais adequado para a representação da realidade nacional, assim como um enfoque meramente estílistico, para utilizarmos outros métodos de análise. É o momento de pensar se a pesquisa sobre a arte brasileira não deveria finalmente se abrir para a utilização dos instrumentos fundamentais elaborados pela sociologia da arte como a noção de campo criada por Pierre Bourdieu articulando as dimensões individuais, coletivas e instituicionais da produção, e de recepção assim como proposto pela estética da recepção no campo da crítica e da historia literária nos estudos pioneiros de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Desde 1976, Enrico Castelnuovo, ao fazer uma síntese das propostas para uma história social da arte, desenvolvendo uma intuição de Roberto Longhi num escrito intitulado Proposte per una crítica d’arte, de 1959, destacava a importância do estudo do público da arte 1, e na Storia dell’arte Italiana dirigida por ele e Paolo Fossati para e editora Einaudi incluiu um volume dedicado ao tema do artista e seu público2, reunindo estudos sobre a história da historiografia e das coleções, a condição social do artista e a sua evolução, o público e a fruição das obras, a gravura e os diferentes processos de reprodução das obras de arte. Também a historiografia inglesa com o volume Painting and Experience in Fifteenth Century Italy de Michael Baxandall, traduzido no Brasil com o título de O Olhar Renascente, apresenta um modelo de análise da percepção social das obras de arte

A pertinência deste tipo de questões não possui limites cronológicos, espaciais ou culturais, mas pode formar um quadro metodológico para uma abordagem ao campo estético no seu conjunto, incluindo os objetos de arte popular ou de culturas tradicionais não ocidentais. O próprio ato de coletar, conservar, divulgar o material, neste sentido, permite pensar em categorias críticas para a sua historicização. Trata-se de articular este programa de forma consistente também para o estudo da arte do século XIX no Brasil. O meu desejo é que este seminário possa ser o ponto de partida para coordenar as tentativas que já foram realizadas neste sentido em vários centros brasileiros numa visão unitaria do grande trabalho que ainda resta por fazer e que só pode ser um trabalho de cooperação entre diversos centros universitários e instituições de conservação do patrimônio. Contudo, para que não pareça que este tipo de abordagem acabe deixando de lado as obras para analisar apenas a sua recepção por parte dos espectadores, queria examinar alguns exemplos de 27

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

recepção de imagens na produção do século XIX no Brasil, em obras que poderão talvez esclarecer como a autonomia do fenômeno criativo não fica prejudicada por este tipo de enfoque. De passagem, espero mostrar também como por este caminho, é possivel demonstrar como os artistas do século XIX brasileiro se preocuparam com as temáticas históricas e sociais específicas do Brasil de forma viva e crítica, mediante a apropriação e a resignificação de géneros e de modelos da arte européia.

ruínas clássicas do templo da Sibila e da vila de Mecenas, para viajantes da mais alta aristocracia, os grandes-duques da Rússia 8 . Estas telas marcavam, portanto, o momento mais valorizado da síntese entre retórica clássica da paisagem e fiel observação da realidade alcançado pelo artista. É provavelmente com estes antecedentes que Taunay está se comparando ao representar-se na frente da natureza intacta do continente americano em que ele quis estabelecer sua residência. Mas Taunay fala também da própria arte através da evocação de outras tradições iconográficas: a primeira é aquela do retrato do artista no próprio ateliê, sendo este a própria natureza do Novo Mundo. Ao pintar-se sentado na frente do seu cavalete, ele pensaria nas numerosas imagens de artistas que se retrataram nesta situação durante o século XVIII, contrapondo ao ambiente fechado onde o artista tece o próprio diálogo com a pintura, o espetáculo de um mundo natural ainda intocado9. A figura de Taunay pingens sub umbra banani, como os pastores das bucólicas de Virgílio tocam as suas flautas de cana deitados na sombra dos bosques da Arcádia, evoca também um segundo tipo da tradição pastoral: o santo meditando na escuridão e na solidão da floresta. O espaço do pintor é destacado, privilegiado dentro da ampla paisagem, encontra o seu lugar particular protegido do sol pela sombra de uma planta na frente da qual está colocado o seu “oratório”, o cavalete 10 . Naturalmente a atitude do artista francês não possui nada de místico: ele encontra na tradição pastoral uma costrução visual que traduz uma situação de colóquio íntimo entre o homem e a natureza: esta conversação é a pintura. Em contraste com uma noção sobretudo topográfica, que busca a evidência dos dados da realidade procurando remontar da verossimilhança ao reconhecimento, a neblina subindo do salto de água como vapor, esconde a vista dos rochedos no alto, e confundindo-se com as nuvens douradas, convida a encontrar com a fantasia as imagens escondidas nas criações dos pinceis da natureza. Trata-se da expressão profunda dos sentimentos de Taunay como ser humano em relação à paisagem dos trópicos, entretanto o seu significado pode ser plenamente percebido só ao reconhecermos a sua posição dentro da tradição da pintura pastoral. Quais que sejam as motivações que o induzem a procurar significados na representação do ambiente natural brasileiro, Taunay os descobre por meio da resignificação da tradição pictórica que ele herdou e de que se apropria de forma original ao trasladarse ao Brasil. É aqui que ele pode elaborar uma noção de paisagem capaz de fundir sugestões distantes como as de Watteau e Vernet com as novas abordagens subjetivas dos paisagistas

Na Cascatinha da Tijuca do Museu da Cidade do Rio de Janeiro são condensados os motivos da poética de Nicolas Antoine Taunay e suas memórias íntimas e familiares. Em determinados aspectos, é possível remontar ao tópico da casa do artista ilustre: se no Velho Mundo a tipologia era definida pela referência ao jardim sagrado das musas, pela presença de um discurso sobre a profissão do artista e por um determinado tipo de coleção particular relacionada com a mesma: as cópias das obras de arte antiga, as medalhas, os desenhos dos colegas6; no Brasil Taunay transferira o seu Elicona para a floresta da Tijuca, longe da cidade, com a lembrança de sua casa de Montmorency, Mont Louis7. A paisagem que o retrata perto da cascata é um testemunho quase comovente de seu diálogo com a majestade da natureza tropical. Minúsculo, mergulhado na paisagem grandiosa, o artista quase adquire o aspecto de um modesto herói, concentrado como está em pintar à sombra de uma bananeira com os cotidianos instrumentos de seu ofício. O tom humilde é reforçado pela presença, ao lado do pintor, de dois escravos que contemplam a obra admirados; enquanto outros, mais abaixo, conduzem um burrico. Dificilmente se poderia expressar melhor o valor da pintura de paisagem na frente da natureza americana, bem como a emoção diante da sua voz. Ao mesmo tempo, a cascata é um dos grandes motivos tópicos da paisagem clássica: o lugar onde as forças naturais, no seu ímpeto grandioso impõem ao homem o respeito na frente do que é maior, a reverência quase religiosa, que é típica do sentimento do sublime. Piranesi havia representado a cascata do rio Aniene em Tivoli, cerca de Roma, numa água-forte de 1763, revelando naquele lugar uma extraordinária união de maravilhas naturais e de ruínas antigas. Hackert pintara a mesma cascata uma primeira vez em 1769, (Roma, Galleria Nazionale d’arte antica, palazzo Barberini), num quadro deliberadamente afastado das convenções arcádicas, citado por Goethe como sendo já famoso no tempo da sua passagem na Itália. O pintor alemão repetira o tema outras duas vezes entre 1783 e 1785, desta vez representando também as 28

A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira

viajantes ingleses como Wright of Derby e Alexander Cozens.

As dimensões do corpo nu, do cadáver posto em primeiro plano, mal coberto pelo típico ornamento de penas, dominam a paisagem ao fundo, sugerindo horror e piedade ao mesmo tempo. O rosto mostra seu caráter exótico, de uma beleza intensa e selvagem, ao passo que os cabelos negros e espessos se misturam à espuma da ressaca das ondas na beira do mar. O corpo, poderíamos dizer, é a paisagem. Entre todas as obras de Meirelles, essa é, sem dúvida, a mais rica em alusões: consegue concentrar no corpo feminino a reflexão histórica acerca do destino de todo um povo e de uma cultura. Pedro Américo foi o primeiro a retomar o tema num pequeno esboço, hoje na coleção Fadel, no Rio, em que o nu quase sugere uma referência ao Sardanapalo de Delacroix, constituindo uma citação literal da obra de Cabanel. As Iracemas e Marabás de Rodrigues Duarte, de Amoedo e de Parreiras ecoam a mesma triste poesia, que Meirelles soube, primeiro, intuir. Demonstram que Meirelles tocou um nervo sensível da imaginação do povo brasileiro. Certamente, as correspondências e dissonâncias entre sentimentos humanos e paisagem estimulam referências ao clima literário decadente. Rodolfo Bernardelli bem o percebeu quando, por volta do final do século, na escultura inspirada no quadro de Meirelles, produzirá uma de suas experiências mais interessantes, apostando na dissolução das formas plásticas do corpo nas ondas. Decerto, faltam a Meirelles as assonâncias e transparências que as Ofélias pré-rafaelitas exibirão em suas floreadas representações. Talvez, porém, seu valor resida justamente nisto: quanto dessa luz crua e áspera, que quase nos fere os olhos, não irá passar às telas repletas de sol e de heróis camponeses de Almeida Júnior? O mito heróico do índio, fundador da nacionalidade brasileira, encarnado pelas famílias de titãs hercúleos do monumento a Pedro I de Rochet, dissolve-se na elegia, na fraca lamúria fúnebre cantada pelas ondas na baía solitária.

O diálogo com os genéros da paisagem clássica pode ser percebido numa outra série de obras esta vez tratando uma temática específica da história da América Latina e do Brasil: a mestiçagem. Com Moema, exposta em 1866 e adquirida pelo imperador Pedro II, o pintor de Florianópolis reformulou em termos nacionais um dos grandes gêneros da tradição européia: a paisagem histórica. Graças ao seu exemplo, esse gênero, que permitia a união do indianismo ao romance sentimental e ao erotismo por meio da imagem feminina, tornouse característico da pintura brasileira durante toda a segunda metade do século. Como outros já disseram, ao representar o episódio da jovem índia que se afoga pelo amor não-correspondido pelo conquistador português, Caramuru, em uma imagem de corpo feminino que se dissolve no flutuar das ondas na praia tropical, Meirelles percebeu sugestões do decadentismo europeu, aproximando-se às visões anti-clássicas do nu feminino como a Femme au perroquet de Courbet ou ao clima erótico da Chevelure, poema das Fleurs du Mal de Baudelaire. 11 Mas talvez haja maior afinidade entre Moema e La Naissance de Venus, tela pintada por Alexandre Cabanel e exposta no Salon de Paris de 1863. Ambas são uma reinterpretação do tema do nu feminino na paisagem, caro à tradição pastoral. A Vênus de Cabanel, com melenas que se desfazem nas ondas certamente remete às sugestões literárias do simbolismo. O quadro de Meirelles, ao contrário, uma das obras-primas do indianismo brasileiro, fundamentando-se na leitura da poesia nativista, dá novo significado à tradição figurativa européia, inserindo-a de modo diverso no contexto americano. Em sua fórmula clássica, de Giorgione a Tiziano, de Carracci a Rubens, o tema evoca a harmonia entre a natureza e o homem no estado primitivo e poético, a recusa da história em favor da contemplação lírica. Moema é, portanto, um idílio, no entanto, um idílio trágico, como o são os idílios de Torquato Tasso, nos quais, como ocorre também na poesia de Gonçalves Dias, se verifica um contraste dramático. Como Dido, Clorinda, e, mais tarde, Butterfly, heroínas que encarnam o encontro de civilizações incompatíveis, o cadáver da jovem índia que se afogou por amor a um europeu representa a versão moderna e americana do mito que só pode ter um final trágico. A relação idílica com a natureza primordial transforma-se em destruição, em contraste dramático entre sentimento e história. Por isso, o corpo de Moema forma como uma dissonância na harmonia da paisagem ensolarada e de cores arenosas da baía.

Os artistas sucessivos introduziram frequentemente neste tema um elemento sensual utilizando a imagem da Madalena arrependida como modelo das suas índias, como fazem os já mencionados Amoedo na Marabá do MNBA do Rio de Janeiro e Parreiras na Iracema do MASP. Entretanto, é Rodolfo Bernardelli que irá se servir do tema parodiando a tradição da poesia nativista de forma aberta. No acervo de documentação pessoal do escultor doado ao MNBA existe uma fotografia, tirada certamente na Itália, retratando o irmão do artista, o pintor Henrique Bernardelli em traje de frade franciscano, com uma longa barba 29

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

postiça, admirando a figura nua de índia intitulada Faceira, executada por Rodolfo e exposta no Rio de Janeiro em 1884. A pose de Henrique não deixa dúvida sobre o tipo de pensamentos que a figura sugere. O corpo da índigena com a sua pose lasciva seduz o missionário; o conquistador se torna conquistado. É evidente a paródia em relação ao tema que Meirelles havia tratado tragicamente: Bernardelli faz da escultura um estudo de costume, nos moldes do realismo social da época, mas evoca na mestiça as mulheres tentadoras de Felicien Rops, perturbadoras da paz de meditabundos eremitas orantes no deserto. A idéia da mestiçagem como fundamento da nacionalidade brasileira, cara à épica da corte, é abertamente escarnecida. A propria idéia acadêmica do género escultórico é desacralizada mediante uma encenação que aproxima a estátua a uma figura de teatro, de um realismo desconcertante, uma Pandora enredando o seu Pigmalião com um apelo erótico desfazado, uma cena digna dos salões caricaturais na Revista Ilustrada de Angelo Agostini. A fotografia documenta a apropriação original e criativa do modelo por parte do artista em função de um momento político e cultural em que havia tensão entre intelectuais que buscavam novas funções da arte e instituições oficiais.

obsessão para esses órfãos, que, perplexos e desconsolados, lhe voltam as costas. A pose do homem que se deixa cair sentado no chão lembra aquela do camponês de uma famosa escultura de Achille D’Orsi, Proximus Tuus, este também oprimido pela sua herança de terra, de fadiga e de sofrimento. Todavia, o tronco possante da árvore no qual os descobridores se apóiam, que expande seus ramos carregados de folhas na moldura, na qual figuram os versos virgilianos que aludem à aventurosa viagem dos troianos pelos mares antes de atingir a Itália, onde dariam origem, depois, à Roma, introduz uma segunda, mais ambígua, interpretação da imagem: uma meditação do pintor sobre o valor da ação humana na qual se obtém a força para imaginar o futuro. Com o quadro de Belmiro, o escárnio machadiano das Memórias Póstumas de Brás Cubas corrói por dentro qualquer possibilidade comemorativa do naturalismo histórico, mesmo considerando-se que seus desdobramentos continuarão após o terremoto modernista de 1922. Espero com estas poucas considerações ter ao menos em parte respondido às preocupações do meu colega da FAU. A historia social da arte, na medida em que toma em conta as numerosas componentes do ato criativo e da recepção da obra pode contribuir de forma decisiva para sairmos da antiga e já inútil contraposição entre academia e modernismo, não para igualar ou apenas revisar o julgamento sobre as duas partes, mas para pensarmos de forma diversa os métodos mais adequados a uma apreciação plena dos valores históricos da cultura artística no Brasil.

Outro exemplo desta recepção de modelos internacionais é Os Descobridores de Belmiro de Almeida, no Museu do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Na composição de sabor neomedieval, tal e qual a decoração de uma tapeçaria, bem como na técnica deliberadamente pobre e enxuta, percebe-se o artista atualizado em relação às propostas da cultura pré-rafaelita inglesa, como Burne-Jones, mas igualmente alguns êxitos pré-rafaelitas dos pintores danunnzianos, como Pico Cellini e De Carolis da romana In Arte Libertas. Contudo, o registro de Belmiro é o da ironia, novamente da paródia. Abandonados por Cabral na terra recémdescoberta, dois portugueses, condenados anônimos, são os anti-heróis perdidos desse paraíso de refinada e desesperada crueldade, no qual todos os lugares-comuns aplicados aos trópicos parecem invertidos. A desilusão dos dois infelizes parece exprimir uma amarga reflexão do autor sobre a condição do artista e do país. O Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo, com sua reformulação antropofágica da figura do herói nacional, certamente deixara sua marca. Em Os Descobridores, a paródia da paisagem histórica como gênero nacional beira o escárnio. A paisagem idílica da natureza brasileira, o tema que fundara e estruturara todo o caminho da arte nacional — de Félix Émile Taunay a Meirelles, passando por PortoAlegre -, torna-se uma condenação e uma

Notas 1

CASTELNUOVO, Enrico, Per una storia sociale dell’arte. Paragone, n. 313 1976, pp. 3-30; n.o 323, 1977, pp. 3-34; Il contributo sociologico. Quaderni della ricerca scientifica, n.o 106, 1980, pp. 89-100. Os três escritos foram publicados novamente em Arte, Industria, Rivoluzioni. Temi di storia sociale dell’arte. Torino: Einaudi, 1985, pp. 3-83. 2 Storia dell’arte italiana, parte I, Materiali e problemi (dir. Giovanni Previtali), vol.II, L’artista e il pubblico, Torino: Einaudi, 1979. 3 Para uma síntese sobre o tema, GAMBONI, Dario. Histoire de l’art et “reception”: remarques sur l’état d’une problematique. Histoire de l’art, n. 35/36, octobre 1996, pp. 9-14. 4 KEMP, Wolfgang (dir.). Der Betrachter ist im Bild. Kunstwissenschaft und Rezeptionaesthetik. Berlin: Reimer, 1992. 5 GELL, Alfred. Art and Agency. An Anthropological Theory. London: Clarendon Press, 1998. 6 KLIER, Melanie. KünstlerHäuser. München: Prestel, 2006; Hüttinger Eduard (ed.) Case d’artista: dal rinascimento ad oggi. Torino: Bollati Boringhieri, 1992.

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A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira 7

SBARRA, Stefania. La statua di Glauco: letture di Rousseau nell’età di Goethe. Roma: Carocci, 2006. 8 NORDHOFF, Claudia. Jakob Philipp Hackert. La Campagna Romana da Hackert a Balla, catálogo da exposição, a cura di Pier Andrea De Rosa e Paolo Emilio Trastulli, Roma, Edizioni Studio Ottocento, De Luca, 2001, pp. 47-49; scheda 53 p. 216. 9 GAUSSEN, Frédéric. Le peintre et son atelier : les refuges de la création, Paris, XVIIe - XXe siècles. Paris: Parigramme, 2006. JUNOD, Philippe. L’atelier comme

autoportrait. GRIENER, Pascal [ed.]. Images de l’artiste, Colloque du Comité International d’Histoire de l’Art. Frankfurt am Main: Lang, 1998. 10 ROSAND, David. Pastoral Topoi: On the Construction of Meaning in Landscape. DIXON HUNT John (ed.). The Pastoral Landscape. Washington: National Gallery of Art, 1992, pp. 161-178. 11 COLl, J. Moema, Vítor Meirelles e a pintura internacional, tese de livre-docência, Campinas, 1995.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Durante as últimas décadas do século passado, a arte oitocentista foi objeto de importantes revisões. Reconhecidos historiadores mostraram interesse em desmistificar afirmações que com o tempo tinham sido incorporadas como verdades, mas que, reconsideradas à luz de novas premissas, revelaram-se pobres e pouco transparentes. Os fatos foram analisados de maneira mais completa e mais profunda, chegando, em um surpreendente número de casos, a conclusões que divergiam do que até então vinha sendo aceito. Segundo as novas pesquisas, a interpretação da qual tinha sido objeto a arte do século XIX era, em boa medida, resultado de uma visão unilateral, tanto da época, como de suas manifestações culturais. Isto levou os especialistas a concluírem que no estudo desse século – um dos períodos mais cambiantes e complexos da história da humanidade – qualquer tipo de esquematismo ou reducionismo resultava perigosamente sufocante. Provavelmente, as mudanças mais significativas na visão do século XIX foram conseqüência da decisão de certos historiadores de estudar os fenômenos artísticos baseando-se em critérios que não favorecessem mais às vanguardas; propósito que se fez evidente a partir da década de 1970. Visto através das lentes “pró-vanguardistas”, 2 o século anterior tinha sido retratado como uma sucessão de artistas e movimentos que “superavam” uns aos outros, opondo-se entre si e afastando-se (sobretudo valorativamente) daqueles que eram considerados tradicionais, pouco interessantes, carentes de criatividade ou isentos de novidade. Robert Rosenblum assinala que “o século XIX foi freqüentemente visto como se fosse um tipo de evolução darwiniana que justificava e explicava formas de arte posteriores” (ROSENBLUM e JANSON, 1984:8). 3 Como resultado da “falsificação” pró-vanguardista chegouse a desprezar – e em muitos casos a ignorar – um conjunto considerável de obras e de artistas, aos quais, só no fim do século passado, começou a ser dada uma justa significação. Recordemos, entre outros, os tão menosprezados pompiers, muitos deles reconhecidos em sua época como famosos, mas subestimados pela historiografia da primeira metade do século XX, pelo “antagônicas” que pareciam ser suas propostas se comparadas com as manifestações “verdadeiramente modernas”. A revisão da arte do século XIX que data da década de 1970 revelou uma situação muito diferente.4 Descobriu-se, entre outras coisas, que a arte acadêmica esteve freqüentemente ligada às inovações, e que os condicionantes aos quais ela se sujeitava não eram tão rígidos como se pensava. Essa arte não se limitou a “copiar” ou a “idealizar” as imagens produzidas pelos grandes mestres clássicos, negando espaço, como se pensava, à

a historiografia da arte oitocentista e as revisões efetuadas durante as últimas décadas do século xx mariela brazón hernández 1

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Revisões historiográficas da arte oitocentista

criatividade pessoal. Também não foi, como sustentavam os especialistas, um servo submisso dos interesses oficiais do Estado (GRADOWSKA, sd:20-21).5 A nova historiografia permitiu tomar consciência dos inúmeros elos que existiram entre as criações acadêmicas e as vanguardistas, e mostrou que o acadêmico não podia continuar sendo um capítulo desprezado da história da arte.

atingido mediante o ajuste estrito às formas e cores locais e em consonância com o rechaço total da idéia de composição. Hoje em dia sabemos que os críticos da época usavam o termo “realismo” em um sentido mais conceitual do que formal, para adjetivar as representações com mensagem social nas quais se exaltava, sem idealização, a miséria de certos grupos humanos, e não particularmente para referir-se à fidelidade plástica com o modelo.8 A observação sem prejuízos das obras de Courbet, Daumier e do mais ilusionista dos três grandes realistas, Millet, corrobora a enorme importância dada por esses artistas à composição e à escolha prévia de certos elementos plásticos, nem sempre correspondentes com a realidade local. Muito mais objetiva resulta a nova postura que passa a considerar o Realismo como um movimento que navega entre duas águas: a acadêmica, que mostra ilusoriamente a realidade através de uma superfície acabada que beira os limites do fotográfico (fini); e uma tendência mais “ousada”, que valoriza os elementos formais de representação e em alguns casos favorece o desaparecimento do tema. Segundo Rosen e Zerner, “uma obra da vanguarda realista se nos revela em primeiro lugar como um objeto artístico material, compacto, e só depois nos permite ter acesso ao mundo contemporâneo que descreve” (1988:150).

À medida que as vanguardas favoreceram o esquecimento desses artistas “menores”, surgiram e se fortaleceram vários mitos românticos sobre os artistas modernos, como o do pintor “selvagemente atacado pelos críticos” e o do “artista que vive e trabalha no anonimato”. Na atualidade sabemos que essas afirmações não são inteiramente certas e que a auto-imagem construída segundo parâmetros vanguardistas deve ser tratada com espírito crítico. Como afirmam Rosen e Zerner, delimitar os rasgos característicos das vanguardas não é tarefa fácil, pois “se trata de um conceito móvel, que pode ser continuamente modificado conforme vamos sabendo mais coisas sobre o período que abrange” (1988:131). Outro grupo de artistas virtualmente ignorado nas histórias da arte escritas na primeira metade do século XX, e que foi progressivamente resgatado do olvido, é o dos pintores do chamado juste milieu,6 cujas obras, nem ousadas nem conservadoras, para alguns historiadores não passavam de ser produções de quinta categoria, nas quais se outorgava excessiva importância ao tema. Graças a pesquisadores como Rosen e Zerner foi possível saber que na obra desses artistas esquecidos já se encontrava o germe de inovações que seriam desenvolvidas posteriormente por pintores mais arrojados. A nova abordagem historiográfica não só permitiu resgatar artistas que tinham sido relegados a um segundo plano – alguns pela nacionalidade, outros pela fatura de suas obras ou pelo aparente tradicionalismo dos seus temas –, como também enriqueceu, com olhar renovado, o estudo dos consagrados. Foram comparadas entre si obras que antes nem se suspeitava que pudessem ter afinidades, como é o caso da produção de Caspar D. Friedrich e Vincent van Gogh (ROSENBLUM, 1993:85 e ss), e se dedicaram estudos monográficos a artistas que, por diversas razões, permaneciam virtualmente desconhecidos, como o simbolista Burne Jones.7

Por sua vez, o Simbolismo, por ser um movimento fortemente ligado à literatura, tinha sido qualificado pejorativamente pelos historiadores próvanguardistas como “meramente narrativo”. Também se chegou a pensar que era um fenômeno completamente isolado das outras manifestações artísticas da época. A historiografia posterior demonstrou que o Simbolismo foi um movimento bastante diversificado e, sem negar as influências que teve da corrente literária homônima, sublinhou que ele se alimentava de profundas reflexões sobre temas de corte metafísico, movidas por um claro rechaço ao positivismo imperante. Foi comprovado também que o Simbolismo exerceu importantes influências a nível internacional (LUCIE-SMITH, 1972:143). Ainda mais, sua presença constante durante boa parte do século XIX permitiu considerálo como uma “ponte entre o Romantismo da primeira parte do século XIX e a arte moderna” (LUCIE-SMITH, 1972:206). Não nos deve surpreender então que os autores tenham redescoberto o lado simbolista de pintores vanguardistas como Picasso, e que expressionistas abstratos como Rothko possam agora ser qualificados de simbolistas. Em suma, “detrás das formas e das cores que se encontram sobre a superfície pictórica há sempre algo mais, outro

O Realismo e o Simbolismo foram dois dos movimentos que se viram catapultados, saindo por fim do lado escuro da história da arte, onde eram mantidos pela crítica pró-vanguardista. Do primeiro dizia-se que seu objetivo central – i.e. representar “fielmente” a realidade circundante – tinha sido 33

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

conseqüência da proposta “globalizante”, também surgiram maneiras alternativas de periodizar o século, nas quais ficou claro que os movimentos oitocentistas não nasceram nem morreram em um dia ou em um lugar específico. Os historiadores começaram a perceber, cada vez com maior intensidade, o impacto que tiveram os sucessos extra-artísticos no âmbito plástico – não só os políticos, religiosos e sociais, como também os científicos e tecnológicos.

âmbito, outra ordem de significado” (LUCIESMITH, 1972:7). Nos casos até aqui comentados – Academicismo, Realismo e Simbolismo – identificamos certos elementos de juízo que foram postos em dúvida nos estudos mais recentes do século XIX. As revisões não se limitaram a esses três momentos específicos. Se examinarmos a visão nova e a tradicional de outros movimentos, como o Impressionismo, o Pós-impressionismo, o Ecletismo e o Romantismo, encontraremos que a essência das críticas se repete, apenas com ligeiras variações. As diferenças que separam as duas linhas historiográficas são, basicamente, de tipo metodológico, entre elas se destacando a ênfase que a postura mais recente coloca nas fontes primárias e sua intenção de focalizar sem prejuízos as complexas interações entre cultura de época, artistas e obras, vistos como um todo. Alguns autores opinam que para aproximar-se com fidelidade à arte do Oitocentos, é necessário que ela seja considerada tematicamente. Werner Hofmann, por exemplo, já defendia nos anos sessenta que “em uns poucos temas constantes [...] está a verdadeira unidade do século que vai de Goya a Cézanne” (apud PRAZ, 1976:158). A análise da arte oitocentista organizada por temas, apreciável na maneira como foram concebidas várias exposições em museus a finais do século passado, permitiu identificar características comuns entre movimentos vistos até então como fenômenos enfrentados. É o caso do Impressionismo, que agora sabemos esteve enraizado no Realismo, não só tematicamente mas também em seu desejo de alcançar com objetividade uma certa realidade.9

A visão integral da arte e da cultura do século XIX impediu que a arte “não culta” continuasse passando despercebida, dando-se relevância inédita às artes aplicadas, às gravuras, às caricaturas, ao popular, etc.10 Também começou a ver-se além da arte ocidental e a compreender-se o impacto que as formas de representação chegadas do Oriente, em especial do Japão, significaram para alguns artistas modernos, como foi o caso dos impressionistas e pósimpressionistas. Possivelmente um dos resultados mais interessantes alcançados por Rosenblum ao abordar a arte oitocentista de maneira globalizada, tenha sido reconhecer no Romantismo o grande fio condutor que une muitas das manifestações dos séculos XIX e XX (1993: 85,149).11 Recordemos, nesse sentido, a Hugh Honour quando, indo até a raiz do fenômeno, afirma que “os estilos românticos nas artes visuais irradiam em todas as direções a partir do centro imóvel do neoclassicismo” (1989:20).12 Rosenblum, por sua vez, acrescenta que o Romantismo não morreu no século XIX. Segundo este autor, até bem avançado o século XX, não são poucos os artistas que “prestam homenagem aos grandes mestres românticos” e, contudo, “a maioria perpetua motivos e emoções românticos sem consciência dos seus precedentes históricos” (ROSENBLUM, 1993:149).

A metodologia usada por Robert Rosenblum examina os fatos artísticos do século XIX em íntima conexão com os sucessos da época. Este autor propõe diversificar as fontes, pois, na sua opinião, o conjunto de fatores que deve ser considerado para o estudo do caso oitocentista é extenso e plural. Isto obrigaria os historiadores do dito período a dilatar seus conhecimentos para poder abordar assuntos extremamente diversos, que vão da “história da tecnologia” até “os mistérios da genialidade”. A ampliação de critérios implicaria também, entre outras coisas, a “internacionalização da história do século XIX”, quer dizer, a abertura das fronteiras de estudo além dos limites tradicionalmente impostos pela visão francesa (ROSENBLUM e JANSON, 1984:8-10). Por esse caminho foram invalidadas algumas cisões temporárias e espaciais entre certos movimentos, artistas e obras, até então aceitas. Como

Todo o anterior nos leva a concluir que a visão mais recente do século XIX, trabalhada a partir dos anos 1970s, diferencia-se da mais tradicional em questões essenciais: 1) na maneira global de conceber historicamente o século: sua cultura, sua ciência, sua arte, sua política, como um conjunto coeso; 2) na importância relativizada que dá à inovação como critério de valorização plástica; 3) na postura crítica que adota perante “etiquetas” predeterminadas, como a classificação por estilos, a delimitação de movimentos ou a aparição e desaparição de tendências, e 4) no grau de rigidez de suas conclusões, as quais são aceitas por seus autores sem que por isso se negue a necessidade de constantes revisões. As disparidades para entender a arte oitocentista, aqui expostas, 13 colocam-nos na obrigação de 34

Revisões historiográficas da arte oitocentista

darmos continuidade à reavaliação dos conceitos, datas, interpretações e juízos valorativos até hoje aceitos; dados que, se não forem revisados em profundidade, podem entorpecer a compreensão cabal de toda uma época. Talvez agora, mais do que nunca, estejamos tomando consciência do pouco que conhecemos a arte do século XIX, e nos disponhamos a reaproximar-nos a ela, mesmo que isso signifique a obtenção de conhecimentos fragmentados. Devemos notar, entretanto, que, embora pareça paradoxal e isso implique a complexização do fato estudado, esses fragmentos são mais valiosos e confiáveis que a visão compendiada do Oitocentos oferecida até hoje por algumas histórias da arte, à qual muitos continuam acostumados. O que mais importa é que as revisões prossigam, e que não nos conformemos com a imagem “congelada” e “inerte” de uma época.

Notas 1 Mariela Brazón Hernández. Dra. em Artes Visuais Universidade Federal do Rio de Janeiro. ([email protected]). 2 Quando falamos de visão “pró-vanguardista” nos referimos à historiografia que privilegia as vanguardas, produzida principalmente durante a primeira metade do século XX. 3 A tradução desta citação, e das seguintes, é nossa. 4 Escritores como Rosen e Zerner assinalam que o resgate da imagem dos artistas “oficiais” ou “pompiers” data dos anos 70 do século passado, “embora já antes tinha começado a amadurecer silenciosamente” (1988:194). 5 Em relação à velha e à nova visão da pintura acadêmica do século XIX, ver também (ROSEN e ZERNER, 1988:1213, 192-217). 6 O termo “le juste milieu” foi usado por primeira vez em 1831 para referir-se àqueles pintores que se encontravam a meio caminho entre o classicismo davidiano e o agitado e ousado romantismo. Seu uso como termo estilístico, devemo-lo a Leon Rosenthal, quem no ano de 1914 o vinculou aos pintores “que gozaram do favor do público nas décadas de 1830 e 1840 [...] O objetivo artístico fundamental desses artistas era a acessibilidade instantânea” Cfr. (ROSEN e ZERNER, 1988:117). Robert Rosenblum pensa que o vocábulo juste milieu tem um matiz político, dado que se refere a uma arte que “refletia muitos dos compromissos do governo de Louis-Philippe, quem ensaiou uma monarquia que agradava aos burgueses mais poderosos, mas que também se ajustava ao gosto das multidões que passeavam pelos salões” (ROSENBLUM e JANSON, 1984:162-163). 7 Edward Lucie-Smith dedica a Burne Jones o capítulo X do seu livro Symbolist Art, (1972:127 e ss). 8 Em relação à visão do Realismo em função do seu conteúdo social, sugerimos ler o texto de Donald Drew Egbert, El arte y la izquierda en Europa - De la Revolución Francesa a mayo de 1968 (1981: 173-192, 219-225). Também é importante consultar o conjunto de textos do escritor oitocentista P. J. Proudhon agrupados sob o título Du principe de l’art –edição aqui consultada: Sobre el Principio del Arte (1990:225-357). 9 Lembremos que vários dos postulados que serviram de apóio ao Impressionismo se derivam das pesquisas realizadas pelos cientistas Michel Chevreul (Lei do contraste simultâneo das cores - 1839) e Hermann von Helmholtz (A óptica da pintura - 1855). A respeito da abordagem temática do movimento Impressionista, recomendamos consultar o trabalho conduzido por Gary Tinterow e Henri Loyrette (MOMA, NY) no qual os autores chegam a conclusões como a seguinte: “the origins of New Painting can be found in the subtle passage from Realism to Impressionism, from Courbet to Manet, and then in the rather more quick movement to Monet and Degas” (1994-1995:xiii). 10 Anna Gradowska afirma que “uma história da arte do século XIX que se limite à arte culta elimina alguns elementos muito importantes na evolução iconográfica da mesma”; e acrescenta: “nunca antes o conhecimento das relações mútuas entre todas as artes foi considerado tão indispensável” (1993:23). 11 O alcance desse “fio condutor” nos resulta ainda mais significativo quando lemos a seguinte afirmação de Rosen e Zerner: “O Realismo é um resultado direto do

Referências bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. El Arte Moderno Valencia: Fernando Torres, 1975. DREW EGBERT, Donald. El arte y la izquierda en Europa - De la Revolución Francesa a mayo de 1968. Barcelona: Gustavo Gili , 1981. GRADOWSKA, Anna. Academicismo. Revisión de criterios. Anna Gradowska et alii. (Catálogo de exposição) El Academicismo - Revisión de Criterios, Caracas: Museo de Bellas Artes, sd. ________. Romanticismo, Realismo, Simbolismo en el arte decimonónico venezolano. Cristóbal Rojas, un siglo después y otros ensayos. Caracas: Fundación Galería de Arte Nacional, 1993. HINTERHÄUSER, Hans. Fin de Siglo - Figuras y Mitos. Madrid: Taurus, 1980 (1977). HONOUR, Hugh. El Romanticismo. Madrid: Alianza, 1989. LUCIE-SMITH, Edward. Symbolist Art. New York: Praeger, 1972. PRAZ, Mario. Mnemosina - Paralelo entre la literatura y las artes visuales. Caracas: Monte Ávila, 1976. PROUDHON, P. J. Sobre el principio del Arte. Buenos Aires: Aguilar, 1990. ROSEN, Charles. ZERNER, Henri. Romanticismo y Realismo - Los mitos del arte del siglo XIX. Madrid: Hermann Blume, 1988 (1984). ROSENBLUM, Robert. La pintura moderna y la tradición del Romanticismo Nórdico. Madrid: Alianza, 1993 (1975). ROSENBLUM, Robert, JANSON, H. W. 19thcentury Art. New York: Abrams, 1984. TINTEROW, Gary, LAYRETTE, Henri. Origins of Impressionism. New York: MOMA, 1994-1995.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República Hinterhäuser: Fin de siglo - Figuras y mitos (1980). Nesse livro, o autor explora a complexidade da vida e da cultura nos últimos anos do século XIX, fazendo uso de um método que aborda os fatos “horizontalmente”, o que lhe permite “relacionar os fatores intelectuais e psíquicos da época com os fatores reais e objetivos, [...] descobrir por trás da evolução da sensibilidade a história social e das idéias, para assim poder iluminar mais adequadamente o período de tempo considerado” (1980:13). Observem-se as coincidências metodológicas entre o procedimento de Hinterhäuser e a proposta “globalizadora” de Rosenblum.

Romantismo e, ao mesmo tempo, uma reação contra ele...” (1988:35). A idéia de uma rígida fronteira entre esses dois movimentos se vê profundamente enfraquecida quando se tem uma visão menos preconceituosa dos fatos. 12 No tocante a esse assunto, também é importante a tese sustentada por G. C. Argan, na qual propõe que as fronteiras tradicionalmente delineadas entre o Neoclassicismo e o Romantismo sejam revistas e atenuadas (1975:4). 13 Por razões de espaço nos resulta impossível incluir comentários mais amplos sobre outras propostas metodológicas para o estudo do século XIX. Entretanto, queremos recomendar a leitura do texto de Hans

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1. Modernização e “globalização” no Brasil do século XIX Para o historiador Eric Hobsbawn, o breve século XX não durou mais que os 77 anos que separam o início da 1ª Guerra Mundial do colapso e esfacelamento da União Soviética (HOBSBAWN, 1995). Poderíamos dizer, analogamente, que do ponto de vista da história da arquitetura brasileira, o “longo século XIX” durou quase dois séculos, entre as primeiras manifestações da arquitetura neoclássica produzidas na década de 1760 pelo italiano Antonio Giuseppe Landi na longínqua Belém do Pará, e a consolidação da arquitetura moderna no Brasil, na década de 1950. Frente à evidente diversidade da arquitetura produzida durante os duzentos anos que compõem o “longo século XIX”, quais pontos em comum poderiam ser identificados? É possível afirmar que este longo período, particularmente a partir da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil em 1808, se caracteriza por um processo de modernização acompanhado por um processo de “globalização” cultural. O processo de modernização pode ser percebido tanto na transformação das cidades quanto na ocupação do território brasileiro. Nas principais cidades brasileiras, o século XIX se caracteriza pela construção de grandes equipamentos urbanos. Basta pensarmos nos monumentais teatros construídos em Salvador (São João, 1806-1812), no Rio de Janeiro (São João, c. 1813, e Municipal, 1904-1909), em Recife (Santa Isabel, 1850), em Porto Alegre (São Pedro, 1850-1858), em Belém (da Paz, 1874-1878), em Manaus (Amazonas, 1881-1896), em São Paulo (Municipal, 1903-1911) e em Fortaleza (José de Alencar, 1908-1910) num arco temporal de pouco mais de cem anos.

rediscutindo a arquitetura brasileira do século xix: os preconceitos da historiografia moderna e o processo de revalorização recente nivaldo vieira de andrade junior

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O Teatro São João de Salvador, por exemplo, destruído em um incêndio em 1923, então recentemente destituída do posto de capital do Brasil, foi “a primeira grande obra da arquitetura civil de função pública de Salvador, cidade cercada de construções religiosas e militares”, e também “a primeira grande casa construída no Brasil com a finalidade de ser um teatro” (SAMPAIO, 2005: 74): O Largo do Teatro era um dos pontos mais importantes da Cidade. A elite costumava assistir a variadas apresentações de companhias estrangeiras e nacionais no teatro São João. Esses dramas, óperas e espetáculos de canto eram, na verdade, o único lazer em área pública que a Província oferecia. (Ibid., 74) 37

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A modernização das cidades também é percebida através do surgimento de grandes fábricas de tecidos – somente na Província da Bahia existiam, em 1875, dez fábricas têxteis (GOMES, 2007) – e dos novos meios de transportes urbanos implantados ao longo da segunda metade do século XIX, como os bondes e, no caso de Salvador, os elevadores e planos inclinados, como o Elevador Hidráulico da Conceição (1869-1873), o Elevador do Taboão (1886-1896), o Plano Inclinado Isabel (1887-1889) e o Plano Inclinado do Pilar (18951897).

A partir da segunda metade do século XIX e, principalmente, durante a República Velha (18891930), a arquitetura eclética ampliará o leque de referências possíveis: são chalés alpinos, igrejas neogóticas e neo-românicas, templos e tribunais neogregos, palacetes neo-renascentistas, neobarrocos ou neopalladianos, castelinhos residenciais e quartéis de inspiração medieval, edifícios mouriscos, bibliotecas neomanuelinas, residências normandas e interiores com decorações inspiradas nas culturas egípcia e assíria – além, evidentemente, de edifícios que misturam várias destas referências.

Do ponto de vista da ocupação do território, este processo de modernização se caracteriza pela construção, a partir da segunda metade do século XIX, de uma rede de ferrovias que atravessa as principais províncias do Império, transportando riquezas e aproximando das capitais e dos portos locais antes distantes.

As grandes reformas urbanas realizadas nas primeiras décadas do século XX, como aquela efetuada pelo Prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro (1903-1906) e aquela levada a cabo pelo Governador José Joaquim Seabra em Salvador (1912-1916), representam a oportunidade de deixar para trás o passado colonial e a referência lusitana e se espelhar na Europa, em particular na Paris “modernizada” pelo Barão de Haussmann entre 1853 e 1870. Assim, as ruas do centro destas cidades são alargadas e “alinhadas”, ao mesmo tempo em que dezenas de edifícios do período colonial são demolidos e reconstruídos em estilo eclético. (LEME, 1999; PINHEIRO, 2002).

Do ponto de vista da arquitetura, a modernização ocorrida durante o século XIX se caracteriza pela utilização de novos materiais de construção, como o ferro, o cimento e o vidro, e conseqüentemente pelo aparecimento de novas técnicas construtivas. Este período corresponde também ao início de um processo de “globalização” cultural fomentado pela chegada ao Brasil de imigrantes estrangeiros de diferentes procedências, incluindo arquitetos, engenheiros, artistas e mestres-de-obras, o que se reflete nos aspectos formais, tipológicos e construtivos da arquitetura através de uma busca de referências na arquitetura européia em um sentido mais amplo, se inspirando nas arquiteturas francesa, italiana, inglesa, alemã e suíça, dentre outras.

A partir da década de 1920, o processo de crescente valorização da identidade nacional levará ao surgimento no Brasil de uma arquitetura neocolonial – como de resto na maior parte da América Latina – que pode ser considerada como “uma tendência tardia do academicismo” (ROCHAPEIXOTO, 2000b: 16). Embora sua vertente mais conhecida busque referências na arquitetura colonial brasileira – se constituindo em “uma reação contra a arquitetura importada da Europa e anseio por uma forma de decorativismo brasileiro” e talvez em uma “reação classista contra os arquitetos estrangeiros” (Ibid., 16), outras vertentes do neocolonial se inspiram nas construções coloniais do México e da Califórnia (o chamado “Mission Style”) e até mesmo em fictícias culturas que teriam existido no Brasil pré-colombiano – caso do “estilo marajoara”.

A “globalização” da arquitetura brasileira, com a busca de referências mais diversificadas, ocorre somente a partir da segunda metade do século XVIII e, principalmente, da primeira metade do século XIX, com a arquitetura neoclássica – seja através da obra precursora de Landi em Belém, na segunda metade do século XIX, seja através da obra paradigmática do francês Grandjean de Montigny e de seus pupilos, realizada no Rio de Janeiro a partir da década de 1810, seja ainda através do caso bastante particular da Praça do Comércio de Salvador (construída na década de 1810), fortemente influenciada pelo neopalladianismo inglês (cf. SALGADO, 2005). Não por acaso, esse período de abertura cultural coincide com a chegada ao Brasil da família real portuguesa e seus desdobramentos, como a transformação do Rio de Janeiro em capital do Reino Unido do Brasil e Portugal e a abertura dos portos brasileiros às nações amigas.

2. A construção de uma história da arquitetura brasileira Embora a “historiografia dominante” apresente como ponto máximo da arquitetura brasileira o barroco dos séculos XVII e XVIII – em particular a obra produzida por Aleijadinho na segunda metade do século XVIII – e ao longo de boa parte do século XIX, tenha existido toda uma produção arquitetônica na qual persistem diversas 38

Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

características da arquitetura do período colonial, o fato é que desde a segunda metade do século XVIII “alguns procedimentos artísticos que serão consagrados pelo neoclassicismo já estão presentes no rigor formal, no tipo de composição e na placidez racionalista dos espaços arquitetônicos” (ROCHA-PEIXOTO, 2000a: 64):

Estação de Hidroaviões da Ribeira (1939), eram uma exceção em um panorama arquitetônico onde predominavam os edifícios neocoloniais ou vinculados às diversas vertentes do eclético. Contemporaneamente a estas construções modernas, podemos encontrar dezenas de escolas estaduais, sedes de prefeituras e outros edifícios públicos de arquitetura eclética (como as Escolas Reunidas de Juazeiro, 1935) ou neocolonial (como Núcleo Educacional Góes Calmon em Salvador, 1937; ou a Prefeitura de Santo Antônio de Jesus, 1944).

Não é um momento de exclusividade, nem sequer de predomínio dos valores que caracterizam o neoclassicismo. Ele convive com o apogeu do tardo-barroquismo no Brasil (Ibid.: 64).

Em 1949, ao mesmo tempo em que o Governo do Estado da Bahia erguia alguns dos principais equipamentos urbanos modernos em Salvador, como o Hotel da Bahia (1947-1952), o Hotel de Paulo Afonso (iniciado em 1947), a Escola-Parque (1947-1950) e o Estádio da Fonte Nova (19421951), eram inaugurados alguns edifícios neocoloniais construídos pelo mesmo Governo do Estado, como os Postos de Puericultura de Campo Formoso, Cipó e Itabuna. Neste mesmo ano, foram iniciadas as obras de um imenso edifício público – o Fórum Ruy Barbosa, no Campo da Pólvora, em Salvador – em linhas neoclássicas, como nos relata Pasqualino Magnavita:

Esta mesma “historiografia dominante” estabelece que a vitória definitiva do grupo “modernista”, liderado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, sobre as correntes “acadêmico-eclética” e “neocolonial” ocorre entre as décadas de 1930 e 1940 (CAVALCANTI, 2006: 10). Devido em grande parte à construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde (1936-1943), de autoria de um grupo de jovens arquitetos liderados por Lúcio Costa com a consultoria de Le Corbusier, criou-se o mito de que, na Era Vargas, a arquitetura moderna foi adotada oficialmente para os edifícios públicos. Uma análise mais detalhada, contudo, mostra que isto não corresponde à realidade e que, até pelo menos meados da década de 1950, o Estado Brasileiro construía cotidianamente edifícios ecléticos e neocoloniais no Brasil:

Na época, o escritório do jovem engenheiro Noberto Odebrecht, antes da construção do Fórum, submeteu à apreciação dos magistrados um projeto muito similar ao Ministério de Educação e Saúde do Rio de Janeiro, ressaltando as especificidades funcionais de sua destinação e economia em relação a um projeto arquitetônico eclético encomendado pelos magistrados treze anos antes, em 1936. Os magistrados consideram a proposta desprovida de dignidade e um desrespeito à tradição forense que remonta ao Direito Romano. Sem frontões, colunas, capitéis, molduras a edificação não teria sentido. Optaram pelo projeto eclético anterior. (MAGNAVITA, 2003: 12)

Não é possível identificar na arquitetura da Era Vargas um denominador comum. Não obstante o caráter referencial da sede do Ministério da Educação e Saúde – hoje Palácio Gustavo Capanema – pela sua repercussão na época e o seu reconhecimento internacional como um marco da arquitetura moderna, a ação governamental em suas várias frentes ministeriais não estabeleceu uma linguagem arquitetônica direcionada e coerente. [...] Mesmo no Ministério da Educação e Saúde, tido como progressista do ponto de vista estético, a arquitetura de educandários tanto ostentava o padrão moderno como o estilo neocolonial [...]. (SEGAWA, 2006: 93)

Portanto, a versão, construída pela “historiografia dominante”, de que a arquitetura moderna no Brasil se tornou hegemônica a partir das décadas de 1930 e 1940, com os auspícios do Governo Vargas, não corresponde à verdade.

De fato, se observarmos as edificações construídas pelo Governo do Estado da Bahia entre a década de 1930 e o início dos anos 1950, veremos que os edifícios modernos dividiam claramente espaço e prestígio com uma produção arquitetônica ainda vinculada a modelos tradicionais e influências européias pré-modernas. Assim, veremos que alguns edifícios modernos construídos em Salvador nas décadas de 1930 e 1940, como o Instituto de Educação da Bahia (atual ICEIA) (1937-1939) e a

O surgimento (entre o final da década de 1920 e a década de 1930) e a consolidação (entre as décadas de 1940 e 1950) de uma arquitetura moderna orgulhosa de sua “brasilidade” – ainda que sem ocultar as referências à arquitetura moderna internacional, com destaque para a obra escrita e construída do franco-suíço Le Corbusier 39

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

– representa o ápice da negação das influências estrangeiras e da diversidade arquitetônica que caracterizou o período precedente.

sobre a visão hegemônica dos autores ligados à arquitetura moderna com relação à arquitetura eclética. Tentaremos, de forma sintética, observar somente a abordagem dada por eles às manifestações arquitetônicas daquele período.

A história da arquitetura brasileira construída através de textos e da seleção de bens para tombamento pelo IPHAN2 por autores modernos como Lúcio Costa e Paulo F. Santos – vencedores da batalha contra os “acadêmicos-ecléticos” e os “neocoloniais” – foi hegemônica até pelo menos meados dos anos 1960 e privilegiava a arquitetura colonial, especialmente o barroco dos séculos XVII e XVIII, e a arquitetura moderna da “escola carioca” liderada pelo próprio Lúcio Costa e por nomes como Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy e M.M.M. Roberto, que era apresentada, já em 1937, como uma “evolução” da arquitetura do período colonial (COSTA, 1937).

Bruand deixa clara sua postura já no título do primeiro capítulo de seu livro: “De um ecletismo sem originalidade à afirmação internacional da nova arquitetura brasileira (1900-1945)” (BRUAND, 1981: 31-59). Para Bruand, “o panorama oferecido pela arquitetura brasileira por volta de 1900 nada tinha de animador”: Nenhuma originalidade podia ser entrevista nos numerosos edifícios recém-construídos, que não passavam de imitações, em geral medíocres, de obras de maior ou menor prestigio pertencentes a um passado recente ou longínquo, quando não eram meras cópias da moda então em voga na Europa. Ora, essa evolução só foi se acentuando durante as primeiras décadas do século XX. [...] O ecletismo que dominou então plenamente as construções particulares, em menor grau, os edifícios públicos era por sua própria natureza um fato profundamente negativo. O mau gosto, ou mesmo a total falta de gosto, que predominava na época, veio somar-se a esse ecletismo; seria fácil enumerar a série de horrores e fantasias arquitetônicas edificadas durante esse período (... caracterizado) pela falta de originalidade e por um complexo de inferioridade levados ao extremo sob o ponto de vista local, mas que já contém o germe dos elementos de uma reação salutar que não demorou em se manifestar. (BRUAND, 1981: 33).

Neste panorama de construção da identidade nacional e de “uma” história da arquitetura brasileira, a produção do “longo século XIX” quase não teve vez. Apenas a arquitetura neoclássica foi valorizada desde o início, embora em um primeiro momento fosse privilegiado apenas o “estilo imperial” realizado pelo francês Grandjean de Montigny no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX e outras obras do primeiro quartel do século XIX, em detrimento de outras manifestações, como a obra de Landi. No que diz respeito à arquitetura eclética, “o tombamento do ecletismo, mais que esquecido, foi explicitamente rejeitado”, como confirma Gustavo Rocha-Peixoto (2000b: 22). Por parte dos arquitetos modernos que escreveram essa “historiografia dominante”, até mesmo à arquitetura neocolonial, nacionalista e que buscava inspiração formal nas construções do período colonial, eram negados os vínculos com a nossa melhor tradição colonial:

O preconceito de Bruand não está limitado exclusivamente à arquitetura eclética. Segundo ele, “o que se convencionou chamar de neoclassicismo [no Brasil], na realidade não passa de uma forma de ecletismo, onde é possível encontrar justapostos todos os estilos que utilizam colunas, cornijas e frontões, da Renascença italiana ao Segundo Império francês” (loc. cit.). A exceção para Bruand corresponde ao “verdadeiro neoclássico” introduzido no Rio de Janeiro por Grandjean de Montigny, que aos poucos “foi impondo à arte oficial um neoclassicismo puro” e “construindo edifícios de qualidade” (ibid., 33-34).

Para os arquitetos modernistas, a semelhança de sua arquitetura com a colonial não era de aparência ou de efeito, como ocorria com as construções neocoloniais. (FONSECA, 2005: 188) Assim, os defensores do moderno que se dedicaram a escrever sobre a arquitetura brasileira recente, como os brasileiros Lúcio Costa (COSTA, 1995; XAVIER, 2007) e Paulo F. Santos (SANTOS, 1981) e o francês Yves Bruand (BRUAND, 1981), não se preocuparam em ocultar seu desprezo por toda a produção arquitetônica do século XIX. Não é necessário nos determos na análise do discurso destes autores, uma vez que Marcelo Puppi (1998) já desenvolveu um estudo crítico aprofundado

Esta visão de Bruand é em muitos aspectos semelhantes às versões de Lúcio Costa, Paulo Santos e outros que construíram a historiografia da arquitetura brasileira dominante a partir da segunda metade da década de 1930, e pode ser 40

Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

entendida como uma “crítica operativa”, no sentido definido por Manfredo Tafuri – isto é, “uma análise da arquitetura (ou das artes em geral) que tenha como objetivo não um levantamento abstrato, mas a ‘projetação’ de uma orientação poética precisa, antecipada em suas estruturas e resultante de análises históricas programaticamente acabadas e deformadas” (TAFURI, 1988: 168).

3. O IPHAN e a valoração da arquitetura do século XIX através dos tombamentos Como alerta Maria Cecília Londres Fonseca, o tombamento é “a prática mais significativa da política de preservação federal no Brasil” (FONSECA, 2005: 181). Tendo sido criado simultaneamente ao próprio IPHAN, através do Decreto-Lei nº 25/37, o tombamento é muitas vezes equivocadamente entendido como o único instrumento legal voltado à preservação do patrimônio edificado.

Tratar-se-ia, portanto, de defender a arquitetura moderna e de combater os acadêmicos da Escola de Belas Artes e os arquitetos ligados à corrente neocolonial não só através da prancheta, mas também a partir da construção de “uma” história extremamente parcial e arbitrária que, com raras exceções, negava o status de “obra de arte” às arquiteturas do século XIX.

A importância do instrumento do tombamento decorre não somente das suas implicações no direito de propriedade, mas também porque, através da análise do acervo de bens tombados pelo IPHAN e por qualquer outro órgão de preservação do patrimônio cultural, seja ele municipal ou estadual, é possível compreender os conceitos de arte e de arquitetura dominantes. Mais: a partir de uma análise dos tombamentos realizados por uma determinada instituição em ordem cronológica, podemos identificar as continuidades e rupturas na valoração das diversos períodos e estilos arquitetônicos que pontuaram a nossa história, percebendo assim de forma clara os preconceitos dos “modernos” à arquitetura do século XIX e o gradativo processo de revalorização desta produção arquitetônica nas últimas décadas.

Assim, até aproximadamente vinte anos atrás, a bibliografia existente sobre a arquitetura do “longo século XIX” se limitou a comentários impregnados de preconceitos em obras tendenciosamente dedicadas à valorização do barroco colonial e da arquitetura moderna, além, evidentemente, dos precursores estudos sobre a arquitetura de Grandjean de Montigny no âmbito da Missão Artística Francesa (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1941; TAUNAY, 1956; DEL BRENNA, 1979) e sobre a obra de Antonio Giuseppe Landi em Belém (MELLO JUNIOR, 1973). Nas últimas duas décadas, passaram a ser publicadas diversas obras que propõem uma reflexão crítica sobre a arquitetura do século XIX em suas diferentes vertentes, como a arquitetura neoclássica (SOUSA, 1994; SOUSA, 2000; CZAJKOWSKI, 2000b), a arquitetura eclética (LEMOS, 1985; FABRIS, 1987; CZAJKOWSKI, 2000a), a arquitetura do ferro (SILVA, 1986; DERENJI, 1993), a arquitetura ferroviária (KÜHL, 1998; IPHAE-RS, 2002; COELHO, 2004) e o neocolonial (AMARAL, 1994). As obras de alguns arquitetos do período passam a ser objeto de estudos detalhados, como Ramos de Azevedo (CARVALHO, 2000) e Ricardo Severo (MELLO, 2007). Caso curioso é o de Victor Dubugras, arquiteto francês que atuou em São Paulo e no Rio de Janeiro entre 1891 e 1933, projetando edifícios em diversos estilos (neogótico, neocolonial, Art Nouveau, protomoderno): a publicação de um livro dedicado à sua obra está condicionada à tese de que ele foi um “precursor da arquitetura moderna na América Latina” (REIS FILHO, 2005), como se somente esta justificativa fosse capaz de valorizar a sua produção.

No Brasil, à diferença de outros países, os mesmos artistas e intelectuais que implantaram e difundiram a arte moderna – Mário de Andrade, Lúcio Costa, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, dentre outros – foram responsáveis pela implementação das primeiras políticas públicas voltadas à preservação do patrimônio cultural. O arquiteto Lúcio Costa, além de ser um “modelo da historiografia da arquitetura no Brasil” (PUPPI, M., 1998: 12, 17) e de ter liderado o grupo de jovens arquitetos que, a partir de meados da década de 1930, implantou e consolidou no Brasil uma arquitetura moderna que mesclava referências dos conceitos e projetos do franco-suíço Le Corbusier com a tradição colonial brasileira, foi o principal responsável, na condição de Diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) entre 1937 e 1972, pelo estabelecimento dos parâmetros e critérios utilizados na constituição do acervo de bens tombados brasileiro. Portanto, nos propusemos a identificar as diversas formas – da rejeição total até a incorporação definitiva – com as quais foi valorada a arquitetura do “longo século XIX” através dos tombamentos 41

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

realizados pelo IPHAN. Esta análise foi realizada a partir de um levantamento dos bens tombados pelo órgão federal em ordem cronológica e com a distinção entre os bens inscritos no Livro de Tombo Histórico e aqueles inscritos no Livro de Tombo de Belas Artes, bem como a partir da leitura atenta de alguns pareceres emitidos por Lúcio Costa e Paulo F. Santos (apud PESSÔA, 2004; SANCHES, 2005) quando instados a se pronunciar sobre o tombamento destes bens.

Da mesma forma, em Petrópolis, foram tombados entre 1938 e 1939 dois importantes edifícios neoclássicos ligados ao Governo Imperial: o Palácio Imperial (construído a partir de 1845 segundo projeto e Guillobel, Köller, Rebello e PortoAlegre) e o Palácio da Princesa Isabel. Entretanto, é preciso ressaltar que este reconhecimento imediato pelo IPHAN da qualidade da arquitetura neoclássica de Grandjean de Montigny e seus discípulos não impediu que, no mesmo ano em que estes bens eram tombados, fosse demolido o primeiro e talvez mais importantes projeto de Montgny no Rio de Janeiro: a sede da Academia Imperial de Belas Artes, construída entre 1816 e 1826.

A maioria dos estudos sobre a trajetória do IPHAN apresenta as três primeiras décadas de atuação do órgão, nas quais ele esteve sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade, como um período relativamente homogêneo – a chamada “fase heróica” da instituição (FONSECA, 2005). Entretanto, a nossa análise demonstra que a realidade é um pouco mais complexa: no que se refere aos tombamentos de edifícios do “longo século XIX”, pudemos identificar pelo menos quatro diferentes fases, das quais três correspondem, a grosso modo, ao período em que o órgão esteve sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade.

Na Bahia, os edifícios neoclássicos tombados em 1938 são dois: o Palácio da Associação Comercial (Cosme Damião da Cunha Fidié, 1814-1816) e o Cemitério do Pilar (1799), esse último anexo à Igreja de Nossa Senhora do Pilar, construção rococó que certamente motivou o tombamento. Ambos devem seu reconhecimento às suas excepcionais qualidades arquitetônicas e também ao fato de terem sido realizados anteriormente à chegada da Missão Artística Francesa ao Rio de Janeiro.

1ª Fase: rejeição das arquiteturas do século XIX (à exceção de um certo neoclássico) Criado em 1937, o IPHAN realiza os primeiros tombamentos no ano seguinte: são dezenas de igrejas, conventos, fortalezas, casas de câmara e cadeia e residências nobres urbanas, além de antigos engenhos de açúcar e alguns sítios urbanos de valor arquitetônico, urbanístico e paisagístico. São quase todos exemplares da arquitetura do período colonial. Somente no Estado da Bahia, em 1938, são tombados 52 bens do período colonial.

Apenas dois edifícios ecléticos são tombados no Rio de Janeiro em 1938: o Palácio do Catete e o Palácio Guanabara. Embora ambos tenham sido inscritos simultaneamente nos Livros de Tombo Histórico e de Belas Artes, é indiscutível que o tombamento se deveu aos seus valores históricos, como sedes do governo republicano e residências presidenciais.

Nesta primeira fase, de toda a diversificada arquitetura produzida no “longo século XIX”, as únicas manifestações a serem inscritas nos Livros de Tombo do IPHAN pelos seus valores artísticos são alguns edifícios neoclássicos construídos nos três primeiros quartéis do século XIX, quase todos localizados no Rio de Janeiro. São obras realizadas por Grandjean de Montigny por volta de 1820 (o Solar na Gávea – residência do arquiteto – e a antiga Praça do Comércio), bem como os exemplares mais significativos da produção de outros destacados arquitetos do segundo e do terceiro quartéis do século XIX, como o francês Pierre-Joseph Pézérat, o português Joaquim Cândido Guillobel, o alemão Friedrich Köller e os arquitetos formados nos primeiros anos da Academia Imperial de Belas Artes fundada por Montigny, como José Maria Jacintho Rebello, Manoel de Araújo Porto-Alegre e Domingos Monteiro3.

É curioso observar o processo de tombamento, aberto e concluído em 1938, de um conjunto de construções coloniais – em sua maioria igrejas – localizadas na Bahia (Processo 0122-T-38). “Por engano”, também são tombadas como parte deste processo duas igrejas ecléticas soteropolitanas das primeiras décadas do século XX: a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, construção em estilo neomanuelino inaugurada em 1923, e a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, construção de feição classicizante datada de 19104. Somente em 1950, o “equívoco” do tombamento da Igreja da Vitória é percebido e, imediatamente, corrigido, anulando-se a inscrição do edifício e inscrevendo-se nos Livros de Tombo apenas as inscrições lapidares localizadas em seu interior, de filhos e netos do lendário Diogo Álvares Correa, o Caramuru:

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Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

no Livro de Tombo de Belas Artes, como uma forma de reconhecer que sim, fazem parte da História do Brasil (ou da História da Arquitetura Brasileira) mas de forma alguma podem ser considerados “obras de arte” pois, como afirma Maria Cecília Londres Fonseca, “o valor histórico era, naquele período [até a década de 1970], claramente considerado como um valor ‘de segunda classe’” (FONSECA, 2005: 201).

Não tendo sido especificada devidamente, como se tornava necessário, a inscrição referente à Igreja da Vitória, na cidade do Salvador, Estado da Bahia, retifique-se a aludida inscrição, esclarecendo-se que o tombamento recai sobre as inscrições tumulares antigas existentes no templo e não sobre o próprio edifício da igreja, que não mais conserva traço algum da sua feição original (Ofício de 17 de março de 1950 do Diretor-Geral do DPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, incluído às fls. 05 do Processo 0122-T-38)

Em janeiro de 1941, o IPHAN tombou individualmente quatro edifícios religiosos construídos ou reformados por Antonio Giuseppe Landi em Belém do Pará entre as décadas de 1750 e 17705. Entretanto, é importante ressaltar que estes bens são inscritos somente no Livro de Tombo Histórico, como que lhes negando o status de obra-de-arte e reconhecendo na obra de Landi apenas o caráter de precursora do neoclássico da Missão Francesa, sem contudo compartilhar dos seus méritos arquitetônicos.

Da mesma forma, em 1956, é dado início ao processo de “cancelamento da inscrição da obra arquitetônica da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda”, por se tratar de edificação “destituída de interesse”, ao mesmo tempo em que são inscritos nos Livros de Tombo Histórico e de Belas Artes os altares, imagens e outros bens móveis e integrados herdados da igreja “original”: Quanto à parte arquitetônica [da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda], o imóvel em apreço, construído no presente século em substituição da primitiva igreja jesuítica da mesma invocação, carece de valor que justifique qualquer iniciativa da DPHAN no sentido de beneficia-lo.

Da mesma forma que com relação à obra de Landi em Belém, no que se refere ao Teatro Santa Isabel de Recife, edifício neoclássico inaugurado em 1850 e reconstruído após um incêndio em 1876, só foi reconhecido o valor histórico, uma vez que, segundo parecer de Lúcio Costa de 1949, se trata de “obra de construtor competente e consciencioso, mas de arquiteto medíocre”, cujo “interesse artístico” é “limitado, embora contribuísse de modo decisivo, conquanto tardio, para a introdução no Recife da sobriedade convencional e despojada do estilo ‘neoclássico’, já oficialmente adotado na corte por Montigny e sua escola”. Lúcio Costa reconhece, contudo, que “não lhe falta interesse do ponto de vista histórico e social, relacionado como está com a significativa experiência americana do engenheiro Vauthier e com a própria vida e o desenvolvimento urbano da cidade. Justifica-se pois o tombamento pleiteado pelo 1º Distrito” (Lúcio Costa apud PESSOA, 2004: pp. 81-82). O Teatro é imediatamente inscrito no Livro de Tombo Histórico.

[...] Quando tombada, por inadvertência e mais em atenção à primitiva Ajuda de que herdou as tradições, já não lembrava a igrejinha do Padre Nóbrega, a Sé de Palha; era uma outra, inaugurada nas imediações daquela, no ano de 1923. Restam-lhe, apenas, de excepcional valor, como acervo dos primeiros tempos, algumas imagens, alfaias e uma lápide datada de 1579 (Ofício nº 235, de 19 de dezembro de 1956, do Chefe do 2º Distrito do DPHAN, Godofredo Filho para o Diretor-Geral do órgão, Rodrigo Mello Franco de Andrade, incluído às fls. 20 do Processo 0122-T-38) 2ª Fase: reconhecimento do valor histórico (“monumentos de segunda classe”)

Portanto, até o início da década de 1960, os tombamentos de bens do século XIX – à exceção, como vimos, de raros exemplares neoclássicos – são extremamente raros e motivados quase sempre pelo seu valor histórico. A inscrição no Livro de Tombo Histórico, em 1952, de um chalé eclético construído em Petrópolis em 1918, por exemplo, é devido ao fato de nele ter residido Santos Dumont, o inventor do avião. Evidentemente, exceções existem, e uma bastante significativa é a inscrição em 1942, nos Livros de Tombo Histórico e de Belas Artes, do Palacete Azul em Belém, um importante exemplar da arquitetura neoclássica do século XIX.

Na segunda fase, que abrange as décadas de 1940 e 1950, o IPHAN começa timidamente a tombar alguns edifícios neoclássicos e ecléticos construídos a partir do último quartel do século XIX. Entretanto, nos raros casos de tombamento destes bens, não é possível deixar de perceber que lhes é dado um tratamento de “monumentos de segunda classe”. Neste período, estes bens foram invariavelmente inscritos no Livro de Tombo Histórico e, dificilmente, 43

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, “a atribuição de valor artístico a estilos estéticos e arquitetônicos recentes é um fato característico do processo de constituição dos patrimônios históricos e artísticos nacionais, a partir da década de 1960” (FONSECA, op. cit.: 188):

Landi: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, tombada em 1960, e a Igreja de Sant’Anna, tombada em 1962. A inscrição do Teatro José de Alencar em Fortaleza no Livro de Tombo das Belas Artes, em 1964, é por sua vez um marco na incorporação da arquitetura do ferro e do Art Nouveau ao acervo de bens tombados e no reconhecimento do valor artístico e não apenas histórico destes bens, uma vez que se trata de uma construção da primeira década do século XX, executada em estrutura metálica importada da Escócia. Em 1967, dando continuidade a essa incorporação da arquitetura industrial do século XIX ao patrimônio nacional, foi inscrito no Livro de Tombo de Belas Artes o Palácio de Cristal de Petrópolis, pavilhão de exposições montado em 1884 e caracterizado pela estrutura metálica pré-fabricada importada da França e pelos fechamentos em cristais bisotados importados da Bélgica.

Até então, considerava-se necessário observar um recuo histórico mínimo para a inclusão de bens nos patrimônios – recuo esse que, em geral, se situava em meados do século XIX. (ibid., 188) Não nos parece que este seja exatamente o caso da atuação do IPHAN. Aliás, parece bem mais provável que a negação do valor artístico a toda a arquitetura do “longo século XIX” – à e x c e ç ã o , é n e c e s s á r i o q u e s e r e p i ta , d a produção de Grandjean de Montigny e de outros arquitetos ligados ao neoclassicismo imperial carioca – se deva efetivamente a preconceitos e à afirmação de uma arquitetura moderna brasileira apresentada como uma evolução da arquitetura colonial e deste neoclassicismo ao mesmo tempo universal e “abrasileirado”.

Por outro lado, o reconhecimento dos valores artísticos do Teatro José de Alencar e do Palácio de Cristal não impede que, naqueles mesmos anos, diversos exemplares das arquiteturas eclética e neoclássica tardia fossem inscritos somente no Livro de Tombo Histórico, como é o caso do Teatro Amazonas em Manaus (1881-1896), edifício eclético de feição classicizante, do edifício neoclássico da Casa da Alfândega de Salvador (1861) e do Sobrado Grande da Madalena (meados do século XIX), todos tombados em 1966. Nos dois anos seguintes, foram inscritos apenas no Livro de Tombo Histórico o Palácio dos Azulejos de Campinas, SP (1878), a Estação Rodoviária de Paraibuna, RJ (meados do século XIX), a Academia Pernambucana de Letras em Recife (1860) e três residências vizinhas localizadas no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro (final do século XIX).

Esta afirmação pode ser justificada de diversas formas. Em primeiro lugar porque, como veremos, somente a partir do início da década de 1960 a obra neoclássica de Antonio Giuseppe Landi em Belém, realizada na segunda metade do século XVIII e, portanto, contemporânea ao barroco mineiro consagrado pelo IPHAN como o apogeu da arquitetura brasileira pré-moderna, começou a ter seus valores artísticos reconhecidos pelo órgão federal de preservação. Em segundo lugar, porque como a própria Maria Cecília Fonseca reconhece, “em 1947, o Sphan tombara a Igreja de São Francisco, na Pampulha, e em 1948, o prédio do MEC, ambos recém-construídos e ambos por seu valor artístico” (ibid., 188). Ainda na década de 1950 – mais precisamente em 1956 – seria inscrito no Livro de Tombo de Belas Artes um outro exemplar da arquitetura moderna da escola carioca: a Estação de Hidroaviões no Rio de Janeiro.

A negação de valor artístico, por Lúcio Costa, aos bens da segunda metade do século XIX não é sequer dissimulada no seu parecer, emitido em 1963, referente ao tombamento do edifício neoclássico do Teatro da Paz em Belém (18741878). Lúcio Costa se mostra sucinto e parece quase contrariado ao ratificar a proposta de tombamento: “de acordo, uma vez que conste, na respectiva ficha de tombamento, a ressalva de se tratar de ‘curiosidade artística’ e não de obra de arte propriamente dita” (apud PESSÔA, op. cit.:. 190). O Teatro da Paz foi inscrito apenas no Livro de Tombo Histórico, naquele mesmo ano.

3ª Fase: os primeiros reconhecimentos de valor artístico (e as “curiosidades artísticas) A terceira fase, correspondente à década de 1960, pode ser entendida como uma fase de transição. Por um lado, alguns exemplares das arquiteturas do “longo século XIX” começam a ter os seus valores artísticos e arquitetônicos reconhecidos, como é possível perceber através da inscrição no Livro de Tombo de Belas Artes de duas obras de

Situação análoga ocorre quando, no mesmo ano de 1963, Costa foi solicitado a se pronunciar sobre o possível tombamento de um sobrado azulejado 44

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da 2ª metade do século XIX – edifício com platibanda, telhas francesas e arcos ogivais prestes a ser demolido – localizado à Praça Cairú em Salvador: “se o tombamento é o único meio legal de impedir a demolição do imóvel, concordo com a proposta do Chefe do 2º Distrito” (apud PESSÔA, op. cit.: 194). O edifício foi inscrito no Livro de Tombo Histórico em 1969.

valores a esta arquitetura. Em 1975, são reconhecidos os valores históricos e artísticos da Igreja de Nossa Senhora do Terço em Recife (construção neoclássica datada de 1873) e, em 1977, do Mercado Ver-o-Peso (estrutura de ferro importada da Europa erguida entre 1899 e 1901) e de três casarões ecléticos construídos na Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas, por volta de 1880. Em 1978, o edifício da Companhia das Docas de Santos, no Rio de Janeiro, construído entre 1904 e 1908 segundo projeto de Ramos de Azevedo, é reconhecido como patrimônio histórico e artístico nacional.

4ª Fase: reconhecimento definitivo das arquiteturas do século XIX A quarta fase, que se inicia na década de 1970, já mostra um reconhecimento maior dos valores artísticos e arquitetônicos de alguns edifícios construídos a partir da segunda metade do século XIX. O próprio Lúcio Costa, em 1970, defende fervorosamente o tombamento do antigo Villino Silveira, edifício Art Nouveau projetado por Antonio Virzi em 1915 e cujo tombamento pelo IPHAN é solicitado pelo próprio Costa, afirmando se tratar de “obra-prima da inventiva do arquiteto Virzi”:

Entretanto, o reconhecimento do valor arquitetônico de alguns exemplares da arquitetura da segunda metade do século XIX pelo IPHAN não ocorre sem grandes polêmicas, e a mais significativa delas ocorreu em conseqüência do pedido de tombamento do conjunto de edifícios ecléticos construídos pelo Prefeito Pereira Passos após a abertura da Avenida Central, no Rio de Janeiro.

Concebida plasticamente, a construção como que ‘desabrocha’: plantas, cortes, elevações; a escada, a varanda, o torreão; o jogo dos planos, os espaços internos, os volumes – tudo se entrosa e se integra com graça inventiva e apuro de execução inexcedíveis, constituindo, assim, um todo orgânico e vivo de raro poder de sedução. Trata-se, portanto, de uma preciosidade arquitetônica, obra de arte sem igual no país ou alhures, cuja preservação importa assegurar. (Lúcio Costa apud PESSOA, 2004: 219-220)

O pedido de tombamento dos edifícios ecléticos da Escola (hoje Museu) Nacional de Belas Artes (1906-1908), da Biblioteca Nacional (1905-1910), do Teatro Municipal (1904-1909), da Caixa de Amortização (1904-1906), da Assembléia Legislativa (1920-1923), do Palácio Monroe (19041906), da sede do Jockey Club (1912-1916), da antiga sede do Derby Club (1914), do Edifício do Tribunal de Justiça (1905-1909), do Clube Naval (1905-1910) e do obelisco comemorativo da abertura da Avenida Central partiu de um grupo de intelectuais cariocas ligados à arquitetura moderna6 e foi acompanhado de 105 assinaturas de sócios do Instituto de Arquitetos do Brasil e do Clube de Engenharia. A intenção do tombamento era impedir a realização do projeto da diretoria do Jockey Clube de demolir a sua sede e o edifício vizinho que abrigara o Derby Club, também de sua propriedade, para possibilitar a construção, nos respectivos terrenos, de um edifício comercial de 46 pavimentos. (SANCHES, 2005: 363-365).

O parecer do conselheiro Paulo Santos, relator do processo de tombamento no Conselho Consultivo do IPHAN, reafirmou a importância do tombamento, devido ao valor arquitetônico da residência. Santos afirmou em seu parecer que “a posteridade, quando fizer inteira justiça a Antonio Virzi – o que já começa a acontecer – não nos perdoaria se negligenciássemos o dever de recomendar ao tombamento a casa, como propomos que se faça” (apud CARRAZZONI, 1980: 382). No mesmo ano, o imóvel é inscrito nos Livros de Tombo Histórico e de Belas Artes do IPHAN.

A partir de um texto elaborado por Lúcio Costa, então recém-aposentado, Lygia Martins Costa, chefe da Seção de Artes do IPHAN, elabora um parecer em que se coloca contra o tombamento do conjunto, afirmando que cabia ao órgão federal “[...] apenas a defesa de obras ou conjuntos de valor histórico e artístico excepcional dentro do panorama nacional” e que, portanto, “não [se] encontra[va] justificativa para tombar o conjunto que nunca teve unidade.” (apud SANCHES, op. cit.: 368), concluindo pelo tombamento individual pelo IPHAN de apenas três construções: o Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes e o

A inscrição nos Livros de Tombo Histórico e de Belas Artes, em 1973, do edifício neoclássico da Assembléia Provincial do Ceará em Fortaleza (1856-1871) e do Mercado São José em Recife (1872-1875) – projeto de Vauthier construído com estrutura metálica importada da França, da Inglaterra e de Portugal – são uma clara demonstração desta mudança na atribuição de 45

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obelisco comemorativo da abertura da Avenida Central.

Se o IPHAN tomou a iniciativa de tombar as 3 ‘casinhas’ referidas – Ruas da Glória, da Quitanda e Mayrink Veiga, foi simplesmente porque tais ‘casinhas’, inclusive a do Virzi, corresponderam, na sua época, à linha de evolução – ou revolução – arquitetônica verdadeira, ao passo que as imponentes construções a que o relator alude são produtos marginais a essa linha evolutiva autêntica, e como tais – não obstante seu apuro acadêmico – artificiosas manifestações de falsa arquitetura pejorativamente tachada, pela crítica internacional autorizada, como beaux arts. Trata-se, pois, de uma distinção fundamental. (Lúcio Costa apud PESSÔA, op .cit.: 274).

No Conselho Consultivo do IPHAN, o mesmo Paulo Santos foi indicado relator do processo, e se colocou frontalmente contra o parecer de Lygia Martins Costa: Compreendo o enfoque de D. Lygia [mas] ela apreciou um e outro a partir de princípios que norteiam a arquitetura e o urbanismo modernos, em que unidades de estilo, volume e forma é consideração básica para a qualidade da obra. Mas o enfoque, igualmente moderno, para apreciação de obras do passado é diferente, repudiando sejam elas julgadas pela consciência estética dos nossos dias e sim a partir do pressuposto de que cada período da História de Arte tem direito de ter seu próprio estilo e deva ser apreciado, em todos os seus aspectos, em função da carga de cultura de que se nutre e das idéias estéticas por que se expressa. Ora, em princípio do nosso século, predominava o gôsto da variedade. A avenida Rio Branco (então avenida Central), era um mostruário de estilos históricos e de marcas individuais em oposição aos princípios por que se norteia a época presente, em que é absolutamente essencial a unidade estilística e a marca individual se apaga em favor da coletiva. [...] (Paulo Santos apud SANCHES, op. cit.: 369; Paulo Santos apud PESSÔA, op .cit.: 279)

A caneta afiada de Lúcio Costa continua a desqualificar os edifícios do conjunto: ele chama o edifício do Clube Naval de “medíocre”, declara que “o prédio do tribunal é insignificante, não compreendo tanto empenho na sua preservação” e, frente à defesa de Paulo Santos de que o tombamento deste conjunto na sua totalidade seria uma homenagem ao Prefeito Pereira Passos, afirma que “Pereira Passos com a sua desenvoltura demolidora teria sido o primeiro a tirar dali o aviltado Pavilhão Monroe, cuja presença estorvante já não se justifica” (apud PESSÔA, op. cit.: 275). A conclusão do texto de Lúcio Costa é bastante reveladora da sua visão sobre a arquitetura eclética, no ano em que ele se aposenta do IPHAN:

A posição de Paulo Santos leva Lúcio Costa a escrever um texto, intitulado “Problema Mal Posto”, em que se contrapõe a cada um dos argumentos de Paulo Santos, proferindo a famosa sentença:

Esclarecidos estes pontos quanto à disposição da antiga administração do DPHAN de excluir da sua alçada o ecletismo-acadêmico por considerá-lo fora da linha legítima da evolução arquitetônica, não parecendo portanto justificarse o tombamento proposto, devo confessar que verei com mágoa, se vivo estiver, a demolição dos prédios em causa. Conquanto conflitantes quanto ao estilo e à escala, conforme acentua o parecer da seção competente, eram quando íntegros, um e outro, exemplares da melhor qualidade nos moldes da pseudo-arquitetura da época. Como também lamentarei a completa desfiguração já programada das tribunas do prédio atual. Ao contrário de Pereira Passos, as demolições – esse desfazer com os pés o que se fez com as mãos – de um modo geral me repugnam. Mas apesar dessa ojeriza pessoal, há evidentemente casos em que a derrubada se impõe, e, excepcionalmente um destes casos me seria do maior agrado. Refiro-me à conhecida almanjorra de concreto coroada por uma cúpula, situada entre o cais e a Esplanada

Há um equívoco. Não se trata aqui de um ‘período’ da História da Arte, mas de um hiato nessa história.(Lúcio Costa apud PESSÔA, op .cit.: 275) Paulo Santos havia defendido em seu parecer que o IPHAN deveria tombar o conjunto da Avenida Central da mesma forma que havia recentemente tombado algumas construções neoclássicas da segunda metade do século XIX – a casa à rua da Quitanda, nº 61 (datada de 1872) e a casa à Rua Mayrink Veiga, nº 9 (construída por volta de 1840), ambas tombadas em 1972 – e um palacete Art Nouveau projetado por Antonio Virzi em 1915 – a residência Silveira, na Glória (tombada em 1970). Lúcio Costa refuta esta idéia, reforçando a sua tese de que o ecletismo não fora mais que um hiato na legítima linha evolutiva da arquitetura brasileira:

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1830), o Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Antonio Prado (final do século XIX e início do XX), o Palacete Argentina em Porto Alegre (1901) e o Conjunto Arquitetônico do Campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Porto Alegre (edifícios ecléticos de 1906 a 1912).

do Castelo, pertencente ao Ministério da Agricultura e que já nasceu bastarda para a Exposição de 1922 [sic]. (apud PESSÔA, 2004: 277-278). Ao final, no embate entre Paulo Santos e Lúcio Costa, este último saiu vitorioso. Em 24 de maio de 1973, foram tombados pelo IPHAN apenas os edifícios que Lúcio Costa havia considerado “as construções mais importantes da antiga Avenida Central” e que mereceriam ser preservadas: o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola Nacional de Belas Artes e o edifício da Caixa de Amortização.

No Estado de São Paulo, foram tombados pelo IPHAN nos últimos doze anos alguns exemplares da arquitetura ferroviária, como a Estação da Luz paulistana (1896-1901), o Conjunto de Edificações e Bens Móveis da Companhia Paulista de Estradas de Ferro em Jundiaí (final do século XIX) e a Vila Feroviária de Paranapiacaba em Santo André (1860). Da arquitetura eclética, foram protegidos o Museu Paulista no Ipiranga (1882-1885) e a Bolsa Oficial do Café em Santos (1920-1922).

As demolições de alguns dos edifícios cujo tombamento fora negado por Lúcio Costa não tardaram a acontecer. Em 1976, em meio a grande polêmica7, o Palácio Monroe foi demolido, assim como os edifícios do Jockey Club e do Derby Club, que deram lugar a uma torre comercial de 140 metros de altura.

Embora o IPHAN tenha passado a reconhecer cada vez mais nas últimas décadas as arquiteturas do século XIX, o acervo de bens tombados em nível federal ainda é em sua esmagadora maioria formado por construções e conjuntos urbanos do período colonial. Além disso, percebe-se claramente uma diferença entre a atuação do órgão nas diferentes regiões do país: enquanto nos Estados detentores de um acervo colonial significativo, como Bahia, Minas Gerais e Pernambuco, o reconhecimento da arquitetura do século XIX através do tombamento federal ocorreu apenas de forma incipiente, em Estados cuja ocupação é mais recente, como Rio Grande do Sul e São Paulo, a quantidade de edifícios do “longo século XIX” tombados pelo IPHAN é muito mais significativa.

A partir da década de 1980, a inscrição no Livro de Tombo de Belas Artes do IPHAN de edifícios e até mesmo de conjuntos arquitetônicos da segunda metade do século XIX e do início do século XX se torna cada vez mais comum. Na cidade do Rio de Janeiro ocorreram vários tombamentos de edifícios ecléticos durante a década de 1980, como o pavilhão mourisco de Manguinhos (1903-1918), o Palácio das Laranjeiras (1909-1914), o Hospital São Francisco de Assis, antigo Asilo de Mendicidade (1876-1879), a Avenida Modelo (conjunto de habitação coletiva do último quartel do século XIX), o Copacabana Palace Hotel (1917-1923), a antiga Sede da Light (1911) e o Palácio Tiradentes (1922-1926).

5. A arquitetura do “longo século XIX” na Bahia: preconceito e revalorização Provavelmente devido ao seu status de primeira capital do Brasil e por possuir um centro histórico colonial declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, as pesquisas e as ações voltadas à preservação da arquitetura do século XIX em Salvador e no Estado da Bahia ainda estão em um estágio bastante preliminar. Apenas nos últimos dez anos têm sido realizados alguns estudos sobre a arquitetura do século XIX na Bahia. Dentre estes, podemos destacar algumas dissertações dedicadas à arquitetura eclética no período da República Velha em Salvador (ALMEIDA, 1997; PUPPI, S., 1998) e alguns artigos sobre os principais arquitetos atuantes na capital baiana naquele mesmo período (AZEVEDO, 2006; ANDRADE JUNIOR, 2007). Sobre a arquitetura neocolonial, os trabalhos são ainda mais escassos (BREITENBACH, 2005).

No Rio Grande do Sul, Estado caracterizado pela arquitetura eclética construída pelos imigrantes alemães e italianos a partir da segunda metade do século XIX, por sua vez, a atuação do IPHAN vai se intensificar consideravelmente a partir da década de 1980. Até então, existiam no Rio Grande do Sul pouquíssimos bens tombados pelo IPHAN, a maior parte deles ligados às missões jesuíticas ou a eventos históricos significativos, como a proclamação da República Rio-Grandense (18351845). A partir da década de 1980, contudo, foram tombados diversos exemplares da arquitetura eclética, bem como das imigrações italiana e alemã e da arquitetura do ferro, como o Memorial do Rio Grande do Sul em Porto Alegre (1910), o pórtico central e os armazéns do Porto de Porto Alegre (1922), a Caixa d’Água de Pelotas (1872-1875), a Casa Presser em Novo Hamburgo (década de 47

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No que se refere à arquitetura ferroviária, ainda não existem estudos suficientes mas alguns trabalhos vêm, pouco a pouco, buscando resgatar a história da ocupação do território baiano pelas ferrovias (ZORZO, 2001; FERNANDES, 2006; LIMA, 2007). Com relação à arquitetura industrial, algumas pesquisas acadêmicas (CARDOSO, 1991; CARDOSO, 2004; GOMES, 2007) vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos.

2007). São também tombadas pelo IPAC uma estação ferroviária em Alagoinhas (Estação Férrea São Francisco, 1876-1880) e uma ponte de ferro (Ponte D. Pedro II, 1881-1885). Entretanto, nem mesmo o tombamento tem garantido a preservação destes bens. Mesmo estando tombada desde 2002, em 2003 a Fábrica São Brás teve toda a estrutura metálica da sua cobertura saqueada e, no mesmo ano, uma parte da sua monumental fachada desabou, devido à grande proximidade com a linha férrea ainda em utilização e à ausência de qualquer obra de consolidação da sua estrutura mural (SILVA, 2007). O tombamento da Estação Férrea São Francisco em Alagoinhas, também realizado em 2002, não tem freado o seu acelerado processo de degradação e hoje a construção encontra-se praticamente em ruínas.

Há muito ainda a pesquisar, portanto, sobre a produção arquitetônica baiana no “longo século XIX”, para que se possa valorar, de forma efetivamente crítica, os edifícios produzidos. No que tange à preservação do patrimônio edificado baiano através do tombamento, os órgãos federal e estadual de preservação do patrimônio cultural ainda não empreenderam ações efetivas para a preservação dos exemplares mais significativos da arquitetura do século XIX. De fato, poucos são os edifícios baianos do século XIX tombados pelo IPHAN ou pelo IPAC. Das 149 edificações individualmente tombadas pelo IPHAN no Estado da Bahia desde 1938, somente cinco são construções neoclássicas8 e quatro são edificações ecléticas9, todas elas localizadas em Salvador. Não existem exemplares baianos da arquitetura do ferro, industrial, neocolonial ou Art Nouveau tombados pelo IPHAN.

Como se vê, ao contrário de Estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo, a arquitetura baiana do “longo século XX” ainda não foi devidamente valorizada e protegida. A ausência de uma política voltada à preservação desta arquitetura tem permitido o desaparecimento de importantes edifícios neoclássicos, ecléticos, industriais e ferroviários construídos no século XIX e nas primeiras décadas do século XX. É necessário que os órgãos de preservação federal e estadual comecem a envidar esforços para garantir a preservação dos exemplares mais representativos da arquitetura do século XIX na Bahia. A especulação imobiliária e a ausência de políticas públicas que garantam a preservação destes bens, já impediram, em anos recentes, o tombamento de um conjunto de construções ecléticas do Corredor da Vitória.

No que se refere aos tombamentos realizados pelo IPAC 10, a situação é análoga. Dos 51 edifícios tombados pelo órgão estadual de preservação, quase metade corresponde a edifícios do período colonial ou construções dos três primeiros quartéis do século XIX que podemos chamar de “coloniais tardias”, pois mantêm as principais características da arquitetura colonial. Somente doze construções neoclássicas são tombadas pelo IPAC. No caso da arquitetura eclética, o número é ainda mais reduzido: apenas cinco edificações, sendo que quatro se localizam na capital.

Em 1998, o IPHAN recebeu do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Estado da Bahia (SinarqBA) a solicitação de tombamento de um conjunto de dezessete construções distribuídas entre a Rua da Graça, o Largo da Vitória, o Corredor da Vitória, a Praça Dois de Julho (Campo Grande), a Praça da Aclamação e o trecho inicial da Avenida Araújo Pinho, em Salvador. Dos imóveis incluídos no conjunto, à exceção do Teatro Castro Alves (19571968), marco da arquitetura moderna baiana, todos correspondiam a construções ecléticas das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX, sendo a maioria originalmente residências burguesas que passaram posteriormente a abrigar outros usos.

Da mesma forma, existem somente dois exemplares de arquitetura industrial tombados em Salvador (Fábrica São Brás em Plataforma, 1875; Fábrica Fratelli Vita na Calçada, final do século XIX), mesmo considerando-se que a Bahia passou por um surto industrial no último quartel do século XIX, abrigando dezenas de fábricas e vilas operárias cujas estruturas físicas ainda encontram-se em pé, como a Fábrica da Boa Viagem (1891), Fábrica Nossa Senhora da Penha (1875), Fábrica dos Fiaes (1890), Vila Operária da Boa Viagem (1892-1899) – para nos limitarmos somente às indústrias têxteis e respectivas vilas operárias localizadas na Península de Itapagipe, em Salvador (GOMES,

Passados seis anos, e após uma longa celeuma que envolveu pressões dos empresários do 48

Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

mercado imobiliário e discussões técnicas, em diversos âmbitos, sobre a existência de valor individual ou de conjunto nestes imóveis, o processo de tombamento nº 1.451-T-99, referente ao conjunto conhecido como “Corredor da Vitória”, acabou sendo arquivado pelo Conselho Consultivo do IPHAN. Embora na ocasião o presidente do IPHAN, Antônio Augusto Arantes Neto, tenha divulgado uma nota oficial em que declarava que “o Conselho recomenda fortemente ao Governo do Estado da Bahia e à Prefeitura de Salvador que adotem medidas visando à efetiva salvaguarda dos remanescentes que são do interesse da população local e que ainda contribuem para a qualidade ambiental dessa área da cidade”, nada foi feito desde então, seja pelo IPAC, seja pela Prefeitura Municipal de Salvador, que não conta com uma Secretaria de Cultura nem tampouco com um órgão voltado especificamente à questão da preservação do patrimônio cultural. O resultado é que, de lá pra cá, em pouco menos de quatro anos, vários dentre os imóveis cujo tombamento havia sido solicitado já desapareceram ou foram irreversivelmente descaracterizados.

de até 55 metros de altura, já vêm surgindo vários projetos de substituição edilícia no bairro do Comércio e faz-se necessário conceber estratégias para, sem impedir o processo de requalificação urbana, garantir a permanência deste conjunto tão representativo de um período da nossa história – o do início do processo de modernização e “globalização” cultural do Brasil. Referências bibliográficas ALMEIDA, Maria do Carmo Baltar Esnaty de. A Victória na Renascença Baiana: a ocupação do distrito e sua arquitetura na Primeira República (1890-1930). Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 1997. AMARAL, Aracy (coord.). Arquitectura Neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina : Fondo de Cultura Económica, 1994. ANDRADE JUNIOR, Nivaldo Vieira de. A Influência Italiana na Modernidade Baiana: o caráter público, urbano e monumental da arquitetura de Filinto Santoro. 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume II, n.o 4, outubro de 2007. Texto publicado no site: http:// www.dezenovevinte.net/ AZEVEDO, Paulo Ormindo de. A arquitetura e o urbanismo da nova burguesia baiana. JORDAN, Kátia Fraga et alli. De Villa Catharino a Museu Rodin da Bahia 1912-2006: um palacete bahiano e sua história. Salvador: Solisluna Design e Editora, 2006, pp. 58-81. BREITENBACH, Sílvia Becher. A Presença da Arquitetura Neocolonial na Cidade de Salvador: apreciação do movimento enquanto contribuição para o repertório arquitetônico de Salvador (19201940). Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 2005. BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981. BUENO, Alexei; SILVA TELLES, Augusto da; CAVALCANTI, Lauro. O Patrimônio Construído: as 100 mais belas edificações do Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, 2002. CARDOSO, Ceila. Arquitetura e Indústria: a Península de Itapagipe como sítio industrial da Salvador Moderna (1892-1947). Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. São Carlos: EESC/USP, 2004. CARDOSO, Luis Antonio Fernandes. Entre Vilas e Avenidas: Habitação Proletária em Salvador na Primeira Republica. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 1991. CARRAZZONI, Maria Elisa (coord.). Guia dos Bens Tombados. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1980.

Apenas nos últimos anos, o IPHAN e o IPAC começaram a implementar ações para a preservação destes bens. O IPHAN tombou em 2007 a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, em Salvador, edifício eclético de 1910 cujo tombamento já havia sido proposto e negado em outras duas ocasiões. O IPAC, por sua vez, acaba de realizar o tombamento provisório de dois importantes exemplares da arquitetura eclética em Salvador: o edifício da Associação de Empregados do Comércio, projeto do arquiteto italiano Rossi Baptista executado entre 1914 e 1917, e o Palácio da Aclamação, antiga residência do Governador do Estado construída entre 1913 e 1918, projeto do engenheiro italiano Filinto Santoro. O IPAC começa a dar sinais, também, de que finalmente acatará a sugestão do Conselho Consultivo do IPHAN e dará início aos procedimentos necessários para o tombamento pelo Estado do Conjunto Arquitetônico do Corredor da Vitória. Além disso, o IPHAN e o IPAC estão iniciando a elaboração de estudos com o objetivo de garantir a preservação de um conjunto de construções ecléticas erguidas no bairro do Comércio nas primeiras décadas do século XX em Salvador. Devido ao processo de gentrificação da área que ora se inicia e à aprovação do novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador, no último dia 20 de fevereiro de 2008, que permite que as construções ecléticas de quatro ou cinco pavimentos sejam demolidas para dar lugar a torres 49

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

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Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

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Arquiteto e urbanista, mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU/FAUFBA). Técnico em Arquitetura e Urbanismo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), lotado na 7ª Superintendência Regional em Salvador. Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBA e do curso de História com Concentração em Patrimônio Cultural da Universidade Católica do Salvador (UCSal). 2 Tendo em vista as diversas denominações que o órgão federal responsável pela identificação, documentação, preservação e divulgação do patrimônio cultural brasileiro teve desde a sua criação, em 1937, como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), optamos por utilizar a sigla atual IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), independentemente do período abordado. 3 Neste último caso, são basicamente edifícios públicos, muitos deles ligados diretamente ao Governo Imperial: o Paço de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista (cuja feição neoclássica é resultado de sucessivas intervenções realizadas por Pézérat e Porto-Alegre a partir de 1828), o Palácio do Itamaraty (projeto de Rebello, 1851-1855), a antiga Casa da Moeda (projeto do Eng. Teodoro Antônio de Oliveira, 1858-1868) e o Hospital da Santa Casa de Misericórdia (reformado por Monteiro em 1840 e ampliada por Rebello em 1865). Outros dois imóveis neoclássicos, que serviram como residência de personalidades do período, são tombados devido aos seus valores arquitetônicos: a Casa da Marquesa de Santos (que recebeu a atual feição neoclássica através de uma reforma realizada por Pézérat entre 1824 e 1827) e a Casa de Ruy Barbosa (1850). 4 Além das Igrejas de Nossa Senhora da Vitória e de Nossa Senhora da Ajuda, o Processo 0122-T-38 incluía o Seminário de São Dâmaso, a Igreja e Convento de Santa Teresa, a Capela de São Pedro Gonçalves do Corpo Santo, a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, a Igreja de Nossa Senhora da Palma, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o Palácio do Arcebispado, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, a Igreja de Santo Antônio da Barra, a Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, a Igreja de Santo Antônio da Mouraria, a Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, o Oratório da Cruz do Pascoal e a Igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim, além da Igreja do Seminário de Belém em Cachoeira, único imóvel não localizado em Salvador. 5 São eles: a Igreja Catedral de Nossa Senhora da Graça (segunda metade do século XVIII), a Igreja e Convento de Nossa Senhora do Carmo (reconstruída por Landi em

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 1766), a Igreja de São João Batista (1771-1774) e a Igreja e Convento de Nossa Senhora das Mercês (1754-1777) 6 Dentre eles, o arquiteto Jorge Moreira e o paisagista Roberto Burle Marx, além dos arquitetos e professores de História da Arquitetura Paulo F. Santos e Wladimir Alves de Souza. 7 Veja-se, por exemplo, o Editorial do Jornal “O Globo”, de 11 de outubro de 1975: “Por decisão do Presidente da República, o Patrimônio da União já está autorizado a providenciar a demolição do Palácio Monroe. Foi, portanto, vitoriosa uma campanha deste jornal, que há muito se empenhava pelo desaparecimento do monstrengo arquitetônico da Cinelândia. De fato, abandonado por seus inquilinos federais o Monroe não tinha qualquer função e

sua sobrevivência era condenada por todas as regras do urbanismo e da estética.” (apud COELHO, 1992: 43). 8 Cemitério de Nossa Senhora do Pilar (1799), Palácio da Associação Comercial (1814-1816), antiga Alfândega (1861), Asilo D. Pedro II (construção da primeira metade do século XIX, reformada entre 1878 e 1887) e antigo Hotel Colonial (1846). 9 Sobrado azulejado à Praça Cairú (final do século XIX), Casa dos Carvalho (década de 1890), Solar Amado Bahia (1901) e Igreja de Nossa Senhora da Vitória (reformada em 1910). 10 Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, criado em 1967 como Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.

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É notória a diferença entre a arquitetura e as artes plásticas nas décadas iniciais do século XX. Enquanto a arquitetura rapidamente caminha para a consagração, nos anos 30 e 40, como um movimento radicalmente moderno e com reconhecimento internacional, as artes plásticas parecem permanecer numa “fase de transição”, em que predomina a indecisão dos artistas em relação ao moderno. Mesmo depois da Semana de 22, o modernismo fica sempre circunscrito ao território da figuração, além de sofrer, como tem sido apontado, uma “regressão” formal do Segundo Modernismo em relação ao Primeiro.1 Assim, só nos anos 50 as artes plásticas conseguirão, com o concretismo, o neoconcretismo e o informalismo, atingir aquilo que a arquitetura já tinha formulado bem antes. Vários autores têm evidenciado as limitações da historiografia da arte modernista, que destacou o movimento paulista - ligado à Semana de 22 e aos subseqüentes Pau-Brasil e Antropofagia -, como o momento fundador da modernidade no país2. Para eles, seus efeitos negativos foram, de um lado, acoplar a idéia de moderno ao nacionalismo e, de outro, ignorar toda uma série de experiências modernas anteriores – geralmente chamadas de “obras de transição” ou então “pré-modernas”3.

a questão do moderno na arte e no ensino da arte na passagem do século xix para o século xx

Esta comunicação pretende refletir sobre a arquitetura e as artes plásticas na passagem dos séculos XIX e XX, enfocando as suas diferenças nos campos cultural e estético, que aqui irão ser apresentadas de forma destacada, deixando claro, no entanto, que na realidade ambiente cultural e pensamento estético estiveram sempre necessariamente interligados.

sonia gomes pereira *

A Revitalização do Campo Profissional dos Arquitetos O Curso de Arquitetura da antiga Academia Imperial de Belas Artes terminara o século XIX em grande parte esvaziado, com poucos ou nenhum aluno, esmagado pelo enorme prestígio da Escola Politécnica e dos engenheiros nas discussões sobre os problemas urbanos e sanitários da cidade do Rio de Janeiro. As críticas eram muitas, algumas bastante radicais, como a do engenheiro Luiz Schneider, que propunha inclusive a sua extinção. Na última Exposição Geral do Império em 1884, na Seção de Arquitetura, só houve dois expositores nesta área: o mesmo Luiz Schneider e Francisco de Azevedo Monteiro Caminhoá, que se formara na Bahia e depois ingressara na École des BeauxArts em Paris 4. Entre 1890 e 1900, já na nova Escola Nacional de Belas Artes, só se formaram três arquitetos5.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Essa situação, no entanto, foi revertida no início do século XX, com a grande reforma urbana de modernização da cidade, que se iniciou com o Prefeito Pereira Passos (1902/1906)6 e continuou com os prefeitos seguintes, tanto na complementação das obras na região central como no desmonte do Morro do Castelo em 1922 , quanto na ocupação e planejamento dos novos bairros à beira-mar, na zona sul da cidade – em que a importância política da questão da urbanização fica evidenciada pela presença maciça da engenharia na gestão da capital 7.

natureza, agora o uso de formas puras. Alan Colquhoun 12 considera Le Corbusier o maior representante da corrente moderna chamada de vanguarda clássica e ressalta as contradições de seu pensamento, na tentativa de conciliação entre elementos historicistas e clássicos com os novos fenômenos decorrentes da produção industrial moderna, enfim, com uma ordem pragmática e funcional. O pensamento de Lúcio Costa, da mesma forma, revela essas mesmas contradições: repúdio ao ecletismo, mas a manutenção do evolucionismo e do idealismo; repúdio ao neo-colonial, mas a eleição de certo tipo de formas coloniais como o padrão nacional a ser tomado como referência 13.

A grande demanda de obras revitalizou o campo profissional, dinamizando as discussões em torno da definição de atribuições entre arquitetos e engenheiros, motivando a criação de associações de classes8, a edição de revistas9 e a organização de congressos10. Incentivou, também, a vinda de profissionais estrangeiros, como Morales de los Rios pai, Antônio Jannuzzi, Antonio Virzi, mais tarde Baumgarten, entre outros.

Logicamente esses aspectos de continuidade ideológica e mesmo na prática projetual14 são mais evidentes às gerações atuais. Na época, em termos de formas, havia certamente uma mudança substancial, uma ruptura com os hábitos visuais, que explicam a rejeição e a polêmica que desencadearam. Nesse conflito, os arquitetos entraram muito melhor instrumentalizados. Em 1933, Frank Lloyd Wright veio ao Rio para fazer duas conferências no I Salão Internacional de Arquitetura Tropical. Em 1935, houve a visita de Le Corbusier, quando fez o projeto inicial do Ministério da Educação e Saúde. Em 1936, retornou para examinar os desdobramentos do projeto com a equipe brasileira (Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy e Ernani Mendes Vasconcelos), proferindo seis conferências. Entre 1936 e 1938, o edifício da Associação Brasileira de Imprensa, projeto de Milton e Marcelo Roberto, foi construído.

A polaridade e também as trocas entre arquitetos e engenheiros favoreceram a questão do ensino. O professor Ernesto Araújo Viana, por exemplo, era engenheiro formado pela Politécnica, editor da Revista dos Construtores e professor da ENBA, com uma atuação destacada nas discussões teóricas e historiográficas. Sendo responsável pela disciplina História da Arquitetura e Legislação Especial, Araújo Viana foi um dos pioneiros no estudo da arquitetura colonial, bem antes do movimento neocolonial, pois o programa de sua disciplina na ENBA, em 1897, já incluía a “Arquitetura no Brasil desde os tempos coloniais”11. A Adesão Mais Radical da Arquitetura ao Movimento Moderno

Enfim, nos anos 1930, os arquitetos tinham conseguido implantar essa nova arquitetura em projetos de grande porte, que trouxeram visibilidade e prestígio imediatos. Se a tentativa de reforma de ensino, feita por Lúcio Costa em 1930/1931, fracassou naquele momento, o sucesso gradativo da arquitetura moderna iria tornar irreversível o rompimento com a ENBA; em 1945, o Curso de Arquitetura se separa da Escola, tornando-se a Faculdade Nacional de Arquitetura 15.

A trajetória da arquitetura, nessas primeiras décadas do século XX, passou pelo ecletismo e pelo neocolonial, até chegar ao movimento moderno. O discurso moderno de Lúcio Costa – arquiteto formado pela Escola, seu diretor em 1930/ 1931 e organizador do chamado Salão Revolucionário em 1931 – segue, como sabemos, o pensamento de Le Corbusier. Uma crítica de arquitetura mais recente tem evidenciado os elementos de permanência e ruptura no pensamento corbusiano. O passado e a tradição rejeitados dizem respeito, sobretudo, às técnicas construtivas e ao vocabulário estilístico. Mas vários elementos do passado continuam atuando no pensamento corbusiano: a idéia de evolução e de espírito de época e a crença numa ordem ideal – antes a imitação da ordem da

Menos Mobilização e Efervescência no Campo das Artes Plásticas Passando para o campo da pintura e da escultura, fica evidente que eles não foram expostos, nessa época, à mesma efervescência. O mercado de arte continuava ainda muito restrito, o colecionismo incipiente e os espaços de divulgação poucos apenas algumas galerias particulares16. De caráter 54

a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

oficial, existia apenas a Pinacoteca da ENBA - que conservava a coleção acumulada pela Academia desde 1816 –, dividida em 1937, passando grande parte do acervo a constituir o Museu Nacional de Belas Artes. O espaço que permitia maior visibilidade aos artistas da época era certamente a Exposição Geral de Belas Artes, depois chamado de Salão 17. Essa exigüidade do campo artístico explica, em grande parte, o fechamento ideológico de boa parte da Escola, que controlava tanto o ensino quanto o Salão. Muitas disputas, mais do que diferenças estéticas, eram, sobretudo, competição por um território profissional acanhado. Assim, posicionar-se com os acadêmicos ou com os modernos nem sempre representa opção estética, mas muitas vezes apenas adesão a grupos profissionais em luta num território artístico reduzido.

Biblioteca Nacional. No entanto, os marcos da autoridade republicana ou custaram a ser construídos - como as Assembléias só edificadas na década de 1920 - ou foram “improvisados” – como o Senado no Palácio Monroe - transposição do prédio premiado na Exposição em Saint-Louis nos Estados Unidos -; e o Palácio Presidencial – instalado em antigas residências reaproveitadas, primeiro no Palácio Itamarati - obra dos anos 1850 - e depois no Catete – construção dos anos 186019. Além da modernização das cidades, a construção da imagem da jovem República beneficiou também a escultura: estátuas e grupos escultóricos são encomendados para ocupar as novas praças, como a do General Osório – uma estatuamania em escala menor20 . Não me parece gratuita a escolha do escultor Rodolfo Bernardelli para diretor da Escola de 1890 a 1915, apesar da grande polêmica em torno do futuro da Academia nos anos 1880 – conhecida como o conflito entre modernos e positivistas - ter sido um movimento sobretudo dos pintores.

Tudo, enfim, confluía para que as artes plásticas sofressem, muito menos do que a arquitetura, naquele momento, a tensão característica de um campo profissional com grande vitalidade e dinamismo. Assim, as diferenças e as dissidências entre os artistas ficaram mais em termos individuais ou em pequenos grupos, não tendo a força de mobilização dos arquitetos nessa mesma época.

A pintura histórica continua a ser encomendada, sobretudo pelas províncias, interessadas no registro de suas próximas narrativas regionais. Nesse campo, é interessante observar que o pintor mais agraciado com encomendas do gênero neste período foi Antônio Parreiras, como em Prisão de Tiradentes. Parreiras fez uma carreira independente, isolado em seu ateliê em Niterói, sempre crítico à Escola, como antes à Academia, que abandonara em 1884, acompanhando o mestre Georg Grimm21.

A Mudança no Patronato no Estado na Primeira República Acrescente-se a isso a diferença do patronato oficial entre o Império e a Primeira República. No Império, sabemos que a Academia foi uma peça importante na construção do imaginário da nação, gerando uma série de encomendas de grande porte, que absorveram pintores, como Pedro Américo e Vitor Meireles, e escultores, como Francisco Chaves Pinheiro18.

No início do século XX, os artistas mais ligados à Escola - como Amoedo, Modesto Brocos, Visconti, Henrique Bernardelli - receberam também encomendas oficiais, mas destaca-se aí a pintura decorativa para os edifícios públicos de cunho cultural recém-construídos – como o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional. Trata-se, em geral, de pintura alegórica e, em certos casos, refere-se diretamente a signos da modernidade, como é o caso das pinturas de Eliseu Visconti na Biblioteca Nacional: O Progresso e Instrução ou A Solidariedade Humana22.

É interessante observar que a República, logo depois de proclamada, apressou-se em edificar os signos demonstrativos da modernidade em termos urbanos. Há inúmeros exemplos de projetos de modernização de cidades – Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Manaus -, e mesmo da construção de uma cidade nova, totalmente em moldes modernos – como Belo Horizonte, projeto do engenheiro Aarão Reis. No caso específico da capital, é importante destacar que a modernização empreendida no Rio de Janeiro de 1902 e 1906 dotou a cidade de um porto moderno, avenidas largas, praças ajardinadas e, sobretudo, de uma arquitetura típica da sociedade burguesa: prédios de lojas e escritórios e monumentos dedicados à cultura. Basta lembrar que na recém-aberta Avenida Central as construções mais destacadas eram a ENBA (hoje MNBA), o Teatro Municipal e a

A Pintura Brasileira da Passagem do Século e a Desconstrução da Tradição Clássica Assim, vivendo um campo artístico ainda restrito e em grande parte amarrado à demanda do Estado, o processo de modernização da pintura deu-se de forma peculiar. A desconstrução da tradição clássica – pedra de toque na passagem para a modernidade – foi absorvida parcialmente pelo 55

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

público e pelos próprios artistas naquelas primeiras décadas do século XX.

o campo propriamente pictórico da composição. Se a pintura devia narrar uma história - que necessariamente compreende uma seqüência temporal e um dinamismo dramático -, tinha de fazê-lo no espaço imóvel do quadro e dispondo também de formas imóveis. Como passar para o espectador a noção de tempo e de emoção num meio estático por natureza? Os movimentos do tempo e da alma só poderiam ser mostrados através dos movimentos dos corpos na pintura. Sem fazer uso da palavra, nem mesmo sob a forma da legenda, o espectador deveria compreender a pintura, reconhecer os personagens e emocionar-se com a cena. O pintor precisava, portanto, ser muito hábil na construção dos movimentos corporais, da gestualidade e da expressão facial de seus personagens. Baxandall insiste na importância da expressão corporal e da gestualidade, fazendo a analogia entre a pintura, o teatro e a dança25.

Para tentar entender melhor este processo, é preciso analisar alguns aspectos da tradição clássica e de seu desmantelamento no século XIX na Europa. O primeiro deles diz respeito à concepção metafísica do mundo e da arte. Sabemos que a reestruturação do classicismo no Renascimento apoiava-se na compreensão da arte regida pelos mesmos princípios que ordenavam o mundo. Portanto, a imitação da natureza significa essencialmente seguir o mesmo padrão de um mundo concebido de forma regular, ordenada e harmoniosa. Essa feição estrutural do classicismo começa a ser demolida a partir do século XVIII e por todo o XIX, com o historicismo e o evolucionismo, que questionam aqueles valores eternos e imutáveis, substituindo-os por padrões relativos, que mudavam conforme o tempo e o espaço.

É interessante observar que no cubismo é justamente a composição albertiana que é destruída. Não é gratuito que nas pinturas de Picasso e Braque de 1907 a correlação entre membros e corpos, recomendada por Alberti, seja esfacelada e essas partes espalhem-se pelo quadro completamente autônomas. Além disso, a introdução das palavras dentro do campo da pintura – não como um acessório complementar à trama narrativa, como poderia acontecer no esquema de Alberti26, mas como parte substantiva de sua construção – é uma espécie de prova do fracasso da pintura dentro da concepção albertiana. Assim, o problema que se coloca para o pintor após o Cubismo é, sobretudo, o da supressão da narração.

O segundo aspecto importante a ser destacado refere-se à questão dos gêneros considerados nobres na tradição pictórica desde o Renascimento. Ligada ao humanismo e à noção do decorum, a pintura devia dedicar-se, prioritariamente, aos temas edificantes. Os gêneros menores – paisagem, natureza-morta, cenas de gênero – existiam, naturalmente, mas as academias sempre consideraram superiores a pintura histórica e o retrato. Também esse aspecto da tradição pictórica do Renascimento foi criticado e demolido ao longo do século XIX, com a crescente importância da paisagem e dos temas do cotidiano. Um terceiro ponto da tradição clássica deve ser ressaltado aqui: a função narrativa da pintura. Alberti23 claramente destacava que a função da pintura era narrar uma história. Com esse objetivo, recomendava que a composição devia organizarse segundo a relação hierarquizada de alguns elementos: superfície plana, membro, corpo e quadro – acompanhando a organização da composição literária, segundo os princípios da Retórica: palavra, grupo, proposição e período 24. Essa analogia que Alberti estabeleceu entre a pintura e a poesia é crucial para entender todo o desenvolvimento da pintura italiana – e mesmo européia - posterior e também a organização das academias e suas práticas de ensino.

Se analisarmos a obra da chamada “geração de transição” - Visconti, Belmiro de Almeida, Amoedo, Henrique Bernardelli, Modesto Brocos, Abigail de Andrade, os irmãos Thimóteo da Costa, os irmãos Carlos e Rodolfo Chambelland, Lucílio e Georgina de Albuquerque, Navarro da Costa, Marques Júnior, Henrique Cavalleiro entre outros – em relação ao processo de desconstrução da tradição renascentista, veremos que os dois primeiros aspectos – a quebra com os cânones clássicos e a liberalização em relação aos gêneros – foram absorvidos no Brasil sem grandes problemas. No entanto, o mesmo não se pode dizer quanto ao terceiro aspecto – a função narrativa. Esta terá uma longa duração na pintura até a década de 40, evidenciando a dificuldade, tanto dos artistas quanto do público, em eliminá-la.

A relação entre poesia e pintura não foi inventada por Alberti: vinha dos antigos e foi claramente explicitada por retóricos, como Cícero e Quintiliano. A novidade de Alberti foi trazer essa fórmula para 56

a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

A Pintura Brasileira da Passagem do Século e a Permanência da Narração

circunscrita ao nacionalismo, como é o caso de Machado de Assis.

Sabemos que no século XIX a produção historiográfica, os relatos de viagem e a literatura romântica, entre outros, constituíam a grande narração sobre o país que se estava constituindo como nação. Certamente a pintura, a escultura e a música contribuíram nesta construção do imaginário nacional, mas a literatura teve sempre um peso e um apelo intelectuais muito maiores, numa terra de bacharéis e de longa tradição retórica.

Os críticos e os teóricos da arte – desde Gonzaga Duque, passando por Mário e Oswald de Andrade no Primeiro Modernismo, ou então Manuel Bandeira durante o Salão de 31 29 , só para citar alguns exemplos – são sempre poetas e literatos, que opinam sobre as artes plásticas, construindo um discurso no lugar dos artistas visuais. A narração, portanto, fosse ela de cunho nacionalista ou não, tinha um peso enorme no campo intelectual do Brasil no início do século XX. Para a pintura brasileira, amarrada ainda à poesia, à literatura e à retórica, o moderno significava, sobretudo, a modernização ou a atualização da narração, e não, propriamente, a sua eliminação. Acredito que esta seja uma chave interpretativa eficiente para se analisar a pintura brasileira das primeiras décadas do século XX30.

Mas essa narração não se esgota nesse período; ela avança pelas primeiras décadas do século XX, em que são novamente os escritores que tomam a primazia das discussões intelectuais, como Silvo Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, os modernistas e as gerações de 30 e 40. É verdade que boa parte da produção intelectual do período apresenta uma feição bastante específica: ampliar o conhecimento do Brasil para além do discurso oficial, das doutrinas européias e das idéias da elite plantada à beira-mar. A vontade de conhecer o sertão e o interior é freqüente nos escritores deste período, começando com Euclides da Cunha, passando pelo Graça Aranha de Estética da Vida e é a pedra de toque do pensamento de Mário de Andrade, para citar apenas alguns exemplos27.

A Pintura Brasileira da Passagem do Século e o Ecletismo e a Modernização Formal Vários autores reconhecem que houve experiências modernas antes da Semana de 22 entre os pintores da chamada “geração de transição”, sobretudo nas obras independentes, isto é, aquelas que fizeram por conta própria ou nas encomendas em que tiveram maior liberdade de ação. Há também alguns autores que reconhecem as experiências modernas desses artistas e as diferenciam dos modernistas paulistas, sobretudo nesse embate entre o internacional e o nacional31.

Além disso, é preciso verificar que toda a discussão das raças, com o aparecimento de um pensamento antropológico, que passava a ver positivamente a mistura das raças e desenhava o projeto de um futuro promissor para a nação – tudo isso estava sendo tecido, a partir dessa época, por historiadores, antropólogos, literatos. Euclides da Cunha e Roquette Pinto, por exemplo, vão estabelecer o sertanejo como o tipo étnico mais representativo do Brasil, apresentado como um povo forte e trabalhador. No Museu Nacional, por exemplo, a partir de 1890, foi feita uma reorganização interna, criando uma seção específica para Antropologia, Etnologia e Arqueologia, que até então fizera parte da Zoologia Geral e Aplicada, a Anatomia Comparada e a Paleontologia Animal. Essa reordenação significou o início efetivo do estudo do homem primitivo no país. Reflete nitidamente uma mudança nas concepções científicas da instituição28.

Se até o período anterior as artes plásticas brasileiras tinham-se mantido dentro dos limites do neoclassicismo e do romantismo, agora, entre as décadas de 1880 e 1920, houve realmente entre os artistas brasileiros uma ânsia de atualização: sobretudo a pintura absorveu concomitantemente todos os demais movimentos, que a Europa e em especial a França haviam formulado ao longo do século XIX - o realismo, o impressionismo e o simbolismo – e no início do XX as primeiras vanguardas históricas – sobretudo o fovismo e o expressionismo. Salvo algumas poucas exceções, a produção artística desta geração é muito heterogênea, tanto formal quanto tematicamente. Os artistas - como Eliseu Visconti, Rodolfo Amoedo, Belmiro de Almeida, Henrique Bernardelli entre outros - não se filiam estritamente a um ou outro movimento; ao contrário, utilizam diversos estilos, movimentando-se com desenvoltura num largo campo de possibilidades de linguagem.

No entanto, é importante frisar que, embora a preocupação com o Brasil seja intensa neste período, nem toda a literatura do período fica

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Tanto na Europa quanto no Brasil, a versatilidade estilística dos artistas deste período tem origem num fato, que parece estar sendo desprezado pelos estudiosos: a importância das tipologias, isto é, as soluções de compromisso entre tema e forma, que eram sugeridas pelos grandes mestres e que passaram a constituir a tradição artística ocidental. Conforme foi discutido anteriormente, o grande objetivo da pintura desde o Renascimento era “contar história”, isto é, a sua função narrativa. Dessa forma, cada tema apresentava um caráter específico, com suas exigências iconográficas e a necessidade de construção de um clima emocional adequado à história narrada.

A tradicional distância entre a obra e o espectador é rompida por essa tomada íntima, que permite o compartilhamento e a identificação entre artista e público. Esse grupo traz, portanto, grandes inovações temáticas. Vejamos agora como essas obras se apresentam do ponto de vista formal. Em pelo menos três delas – Estudo de Mulher , Descanso do Modelo e Arrufos -, podemos observar um tratamento plástico semelhante: a composição é estruturada primordialmente pelo desenho e os motivos principais da temática se destacam, mas os elementos secundários – colchas, almofadas, papel de parede, objetos de decoração – recebem um tratamento cromático detalhado. É como se o olhar do artista pousasse sobre cada um desses objetos com enorme cuidado, fazendo desses elementos parte constitutiva da composição. Ateliê do Artista, até mesmo porque não apresenta nenhuma figura humana, exacerba essa exposição apaixonada de objetos, em que a narração é suspensa, ficando o conteúdo expresso na própria aparência da pintura. Nessa obra, apesar do desenho ter também o caráter estrutural, a cor está muito mais fragmentada – facilitada certamente, nesse caso, pela técnica da aquarela sobre cartão. A tela Interior de ateliê apresenta a mesma intimidade dos quadros anteriores, mas há uma diferença remarcável no tratamento plástico: a composição é basicamente construída por manchas coloridas, que sugerem o espaço, as figuras humanas e os objetos, sem defini-los com precisão.

Assim, do ponto de vista da prática artística – e o ensino acadêmico estava particularmente atento a esse fato – as escolhas dos artistas eram muito mais tipológicas do que estilísticas. Isto explica por que os artistas dessa geração apresentam esse comportamento eclético: o estilo ou a tendência formal era escolhido pela sua adequação ao tema e à função, apoiando-se num repertório de tipologias compositivas sugeridas pela tradição pictórica européia ou pelos modelos modernos que estavam sendo incorporados à cultura visual. Análise de Algumas Obras da Pintura Brasileira da Passagem do Século Para analisar melhor o ecletismo e a modernização formais e a predominância da narração nesses artistas, vamos analisar algumas obras. No grupo que se segue, salta de imediato aos olhos a mudança na temática – tirada do cotidiano, com o evidente abandono dos chamados temas nobres. Mesmo no caso de um estudo de modelo vivo, como Estudo de Mulher, esse tradicional exercício na formação do artista acadêmico toma uma feição nova, pela ambientação contemporânea. O interesse pelo trabalho do artista é evidente na forma descritiva como são apresentados os interiores do ateliê: Ateliê do Artista, Descanso do Modelo e Interior de ateliê nos revelam ambientes incorporados ao gosto burguês – pelo mobiliário e demais acessórios organizados como espaços de convívio social -, mas denotam também, por um certo desalinho e a presença de objetos tais como instrumentos musicais, que se trata de um lugar em que a liberdade do artista e o gosto pela arte são primordiais. O mesmo interesse pela descrição minuciosa dos interiores aparece em relação à vida doméstica – chegando-se até a cenas de briga de um casal, como em Arrufos. Nada aqui ecoa da idealização e da retórica tradicional das gerações anteriores. O realismo abriu caminho para a vida comum e derrama sobre ela um olhar aproximado.

Todas essas obras revelam a diversidade da produção ligada à Academia - tanto na temática, quanto no tratamento plástico, assim como na postura dos artistas – e evidenciam que a relação entre tradição e modernidade ocorre no próprio campo da arte acadêmica. Assim, verificamos, de um lado, a longa duração de estilos e temáticas mais tradicionais e sua convivência até certo ponto pacífica com linguagens e assuntos mais atualizados. De outro lado, a versatilidade dos artistas que exploram essas diversas linguagens, de acordo com o caráter e a função das pinturas. Vamos examinar agora alguns retratos. Os três retratos seguintes estão certamente ligados ao realismo, mas eles são um bom exemplo de como essas definições estilísticas encobrem muitas nuanças, pois os três revelam diferenças importantes. A obra de Modesto Brocos, Retrato do escritor Artur Azevedo, e a de Rodolfo Amoedo, Retrato de João Timóteo da Costa, apresentam o retratado em seu ofício e ambiente de trabalho, mas, enquanto Amoedo detalha o cenário, descrevendo os objetos que compõem o ateliê, 58

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Modesto Brocos faz um fundo impreciso e próximo, concentrando toda a atenção do espectador no personagem, na mesa e nos objetos próprios à escrita. Já Almeida Júnior, em seu Retrato do pintor Belmiro de Almeida, coloca o seu retratado na situação de modelo, cercado de volumes e panos que tornam o ambiente impreciso. Sobretudo o grande painel branco ao fundo faz avançar o plano de fundo tornando exíguo o espaço da representação. Essa apresentação solitária do personagem, sem os atributos usuais que eram usados na retratística, a indefinição do cenário e a tendência à planaridade são recursos muito utilizados entre os pintores independentes na Europa e certamente indicam uma postura moderna do artista nessa obra.

Mas há, entre as duas, uma diferença no caráter do tema. Enquanto Rodolfo Amoedo registra uma cena da sociedade burguesa, Almeida Júnior retrata quase que o mesmo assunto, mas passado no ambiente modesto de gente mais pobre. Esse lado da obra de Almeida Júnior, chamado pelos estudiosos de fase caipira, será muito elogiado no futuro pelos historiadores e críticos ligados ao modernismo. Segundo eles, somente essa parte da obra de Almeida Júnior se salvava da alienação generalizada da arte do século XIX, só interessada em copiar os modelos franceses. O problema dessa abordagem é fazer da temática nacionalista o parâmetro único para a análise das obras, desconhecendo as qualidades plásticas e o caráter inventivo de muitos artistas dessa época na apropriação dos modelos europeus.

Vamos agora observar algumas paisagens. As duas primeiras são construídas por manchas coloridas, em que a textura irregular da camada pictórica é explorada como recurso plástico, reforçando a idéia de espontaneidade no registro da paisagem e o prazer do artista com o aspecto material da pintura. Mas há uma diferença importante entre elas. Enquanto Castagneto, em Trecho da Praia de São Roque em Paquetá, prefere os tons mais suaves, Navarro da Costa, em Marinha, acentua as cores, impregnando a paisagem de vibração, como faziam os pintores fovistas na França.

A obra de Visconti, Recompensa de São Sebastião, dá conta da absorção do simbolismo. Visconti fez várias obras nessa linguagem, tais como Gioventu (1898), Pedro Álvares Guiado pela Providência (1899), Oréadas (1899) e a Recompensa de São Sebastião (1898). Vários elementos nesta pintura indicam a prática simbolista. Um deles é a diferença de escala entre os dois personagens em primeiro plano – São Sebastião e o anjo – e as duas mulheres num plano recuado –, fugindo à perspectiva tradicional. Assim como a diferença na representação da árvore em primeiro plano – bastante realista – e a paisagem de fundo – que também escapa à perspectiva – apresentando-se mais como um fundo plano decorado. Por último, os detalhes em dourado – reminiscências da pintura anterior ao Renascimento – que os simbolistas apreciavam especialmente.

As duas paisagens seguintes referem-se ao mesmo tema – a Praça Floriano – e foram pintadas em 1922 e 1918 respectivamente. A primeira é de Osvaldo Teixeira e a segunda de Artur Timóteo da Costa. Enquanto as paisagens anteriores dedicavam-se à celebração poética de uma natureza mais intimista, essas duas paisagens voltam-se para os novos espaços urbanos, cuja vibração a geometrização das formas e o acerbamento das cores tentam captar.

As duas obras seguintes, Dia de verão e Baile à fantasia exploram sobretudo as possibilidades expressivas da cor. É o caso de Georgina de Albuquerque. O caráter narrativo é minimizado, para dar lugar ao registro da luminosidade típica de um dia de verão. Os tons mais claros do vestido da figura feminina e da cortina fazem contraponto com a densa vegetação ao fundo, aumentando o efeito de vibração das cores.

É interessante completar este grupo de paisagens com uma obra de Leo Putz, artista alemão convidado por Lúcio Costa para dar aula de pintura opcional na Escola, exposta no Salão de 31 na seção dos modernos. Pão de Açúcar de 1929 apresenta grande riqueza cromática, mas certamente ainda está presa a uma representação perspectivada.

Rodolfo Chambelland explora também a vibração das cores, mas aproveita sobretudo a textura das pinceladas para aumentar a sensação de movimento e animação. A tela trata do carnaval. É no Rio de Janeiro moderno, depois de reformado pelo Prefeito Pereira Passos, que o carnaval carioca se estruturou, passando das antigas brincadeiras do entrudo para as formas mais burguesas do baile à fantasia e do desfile de grupos carnavalescos. É exatamente esse aspecto peculiar à vida carioca que é tema de Rodolfo Chambelland

Passemos, agora, a um outro grupo de pinturas. Todas estas obras têm claras funções narrativas, mas elas apresentam diferenças nítidas em sua linguagem plástica. As duas primeiras, Más notícias e Recado difícil seguem o realismo, em sua temática do cotidiano e o caráter descritivo do ambiente e dos objetos. 59

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nessa obra. Mas o artista não tem nenhuma intenção documentária, pois nela importam muito mais a sua percepção e o seu envolvimento com o tema. A obra não é mais uma mera transcrição pictórica de um fato da vida cotidiana, pois está impregnada da relação afetiva e da percepção que o artista mantém com o tema. O espaço pictórico é representado com certa profundidade, mas a indiferenciação do fundo concentra a atenção do espectador nos volumes formados pelos foliões dançando. São figuras construídas por manchas coloridas e pulsantes, que fazem a pintura vibrar como o próprio baile de carnaval. Assim, como já observou um crítico sobre essa obra, o movimento está presente na obra, não apenas pelo tema carnavalesco, mas ele é experimentado também pela nervosidade latente da própria pintura. É, portanto, a cor que serve de instrumento ao artista para o registro de suas sensações, explorando de forma livre e espontânea as suas possibilidades de expressão.

aproximam – como foi o caso do professor alemão Leo Putz - restando em comum uma apropriação predominantemente moderada das linguagens modernas figurativas. Referências bibliográficas AGULHON, Maurice. Marianne au pouvoir: l´imagerie et la symbolique républicaines de 1880 à 1914. Paris: Flammarion, 1989. ALBERTI, Leon Battista. On painting. New Haven: Yale University Press, 1975, 5 ed. BAXANDALL, Michael. Les humanistes à la découverte de la composition en peinture: 13401450. Paris: Seuil, 1989. BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. BROCOS, Modesto. A retórica dos pintores. Rio de Janeiro, 1933. COCCHIARALE, Fernando & GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: FUNARTE/INAP, 1987. COLQUHOUN, Alan. Modernidade e tradição clássica. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956. DIAS, Carla da Costa. De sertaneja a folclórica: a trajetória das coleções regionais do Museu Nacional - 1920/1950. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/ UFRJ, 2005. Tese de Doutorado. DOCTORS, Márcio. Desvio para o moderno. In Cavalcanti, Lauro, org. Quando o Brasil era moderno – artes plásticas no Rio de Janeiro 19051960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 30-59. DU BOS, Jean-Baptiste (1670-1742). Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura (1719). Lichtenstein, Jacqueline, org. A pintura: textos essenciais. São Paulo: Editora 34, 2005, vol. 7. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos: caminhos da historiografia. São Paulo: Vértice, 1988. HERKENHOFF, Paulo. Entre duas modernidades: do Neoclassicismo ao Pós-impressionismo na Coleção do Museu Nacional de Belas Artes. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2004. Catálogo de exposição. LEITE, Reginaldo da Rocha. Uma interpretação dos significados da obra alegórica de Antônio Parreiras: Visão de Tiradentes ou o Sonho da Liberdade. Rio de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ, 2004. Dissertação de Mestrado.

Finalmente, é interessante comentar um exemplo pouco comum entre nós, tanto nessa época, quanto nas décadas seguintes: Maternidade em Círculos, de Belmiro de Almeida]. Esta obra inscreve as figuras humanas em superposições de círculos, que acabam quase diluindo o reconhecimento das figuras. Apesar de pouco comum, essa é uma das poucas experiências mais radicais com as linguagens mais avançadas do início do século XX na Europa, que, a partir do cubismo, vai explorar as linguagens abstratas. Outros exemplos poderiam ser tomados, mas acredito que os escolhidos acima já sejam suficientes para tirar algumas conclusões. Primeiro, vista em conjunto, a produção da maioria desses artistas revela-se eclética, com obras nas mais variadas linguagens artísticas da época – o que parece indicar que esses artistas, como os do século XIX, escolham a linguagem pictórica de acordo com a temática e, muitas vezes, naturalmente, de acordo com as restrições próprias de uma encomenda. Segundo, o que parece estar quase sempre presente - até mesmo em algumas paisagens – é o compromisso da pintura com a narração, embora ela se faça de uma forma mais atualizada. De uma certa maneira, a ut pictura poesis (na pintura como na poesia) dos antigos retóricos ainda se mantinha viva, embora as regras de composição não fossem mais respeitadas. Finalmente, nesses conjuntos aqui analisados, acadêmicos e modernos muitas vezes se 60

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Notas 1

ZILIO (1982) e COCHIARALE & GEIGER (1987). MARQUES, 2001: 17-29. HERKENHOFF, 2004: 10-11. 3 Uma crítica mais recente vem evidenciando as limitações que o atrelamento aos valores estéticos e nacionais trouxe para o desenvolvimento da arte moderna no Brasil, assim como para a política de preservação do patrimônio. Sabemos que a geração ligada aos chamados 1º. e 2º. Modernismos teve um posicionamento militante, tanto no comprometimento com a identidade cultural quanto na adesão a algumas utopias modernas. Na minha opinião, a revisão historiográfica atual não deve ficar restrita, como aparece ingenuamente em certos trabalhos, apenas ao reconhecimento da estratégia de afirmação de São Paulo no momento de sua escalada econômica e política na cena nacional. Não se pode esquecer a estatura intelectual e cultural de vários membros do movimento modernista, pertencentes a uma geração freqüentemente memorável, que construiu uma obra monumental em termos de produção de conhecimento teórico e de política institucional. A necessidade atual de desconstruir o saber estabelecido para abrir novas frentes de reflexão e crítica não deve nos levar a uma rejeição simplista da obra da geração anterior. Trata-se, sobretudo, da constatação de que é sempre impossível ao homem conhecer tudo e que cada geração consegue ver aquilo que está no vetor de suas preocupações e necessidades mais importantes. 4 PEREIRA, 2002: 93-177. 5 UZEDA, 2006: 18. 6 PEREIRA, 1998. 7 Entre os prefeitos do então Distrito Federal, nas primeiras décadas do século XX, há uma grande incidência de engenheiros: Pereira Passos (1902-1906), Souza Aguiar (1906-1909), Serzedelo Correa (1909-1910), Bento Ribeiro (1910-1914), Rivadávia Correa (1914-1916), Azevedo Sodré (1916-1917), Amaro Cavalcanti (1917-1918), Peregrino da Silva (1918-1919), Paulo de Frontin (1919), Sá Freire (1919-1920), Carlos Sampaio (1920-1922), Alaor Prata (1922-1926), Prado Junior (1926-1930. LEVY, 2003: 267-270. 8 O Instituto Brasileiro de Arquitetos e a Sociedade Central de Arquitetos foram fundados em 1921 e, em 1919, já havia sido criada a Associação dos Construtores Civis do Rio de Janeiro. 9 Destacando-se, por exemplo, a revista Architectura no Brasil. 10 Como o Congresso Internacional de Arquitetura realizado em agosto/setembro de 1922 (LEVY, 2003: 27-57). 11 Atas das Sessões do Conselho Escolar da ENBA / Museu D. João VI da EBA/UFRJ (UZEDA, 2006: 80). 12 COLQUHOUN, 2004. 13 SLADE (2007). 14 Sobre o método de composição da Beaux-Arts ver PEREIRA, 2003: 40-49. 15 Os vários projetos de reformas didáticas no Curso de Arquitetura da ENBA nas primeiras décadas do século XX já anunciavam as inovações que Lúcio Costa tentou implantar em 1930/1931 (UZEDA, 2006). A vontade de reformar o curso e as sugestões de como fazê-lo já existiam antes, mas só na Direção Lúcio Costa houve a vontade e a força políticas para tentar de fato a mudança. O fracasso dessa tentativa é mais um forte indicativo da defasagem na ENBA da época entre os cursos de Arquitetura e os demais. 2

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Iconografia e Numismática. O conjunto foi executado segundo maquete de Modesto Brocos. Do lado direito da portada, uma estátua de bronze de Corrêa Lima representa a Inteligência; uma outra, do lado esquerdo, da autoria de Rodolfo Bernardelli, representa o Estudo. Na parte superior da fachada, de cada lado do tímpano, vêem-se, em bronze, a data da fundação da Biblioteca (MDCCCX) e da inauguração do prédio (MCMX). No saguão há, à direita e à esquerda, dois painéis do pintor americano George Biddle e dois baixos-relevos em bronze de sua esposa, a escultora Helena Sardeau Biddle. Essas obras de arte foram oferecidas pelo governo dos Estados Unidos ao Brasil e foram inauguradas no dia 8 de dezembro de 1942. As escadas internas são de mármore com gradil de proteção em bronze com tratamento de pátina preta e friso formando o corrimão em latão dourado polido. No patamar do lance de escada entre o segundo e o terceiro andar, localiza-se o busto em mármore de D. João VI, esculpido em Roma, em 1814, por Leão Biglioschi e que pertenceu à Real Biblioteca. Sob a clarabóia em vitral colorido, do saguão, vêem-se 12 cariátides em gesso. Todo o conjunto do edifício é encimado por quatro clarabóias com vitral colorido; uma no zimbório central sobre o saguão; uma sobre a ala lateral dos armazéns de livros (à esquerda); outra sobre a ala lateral dos armazéns de periódicos (à direita), a quarta localiza-se sobre o salão da Divisão de Obras Raras. São dignos de nota os painéis assinados por artistas de renome, que decoram o terceiro e o quarto pavimentos. No terceiro, na Divisão de Obras Raras, antigo salão geral de leitura, encontram-se painéis de Rodolfo Amoedo, A Memória e A Reflexão, e de Modesto Brocos, A Imaginação e A Observação. No quarto andar, onde se localiza o Gabinete da Presidência, encontram-se mais quatro painéis, dois de Henrique Bernardelli, O Domínio do Homem sobre as Forças da Natureza e A Luta pela Liberdade, e dois de Eliseu Visconti, O Progresso e A Solidariedade Humana (www.bn.br). 23 ALBERTI, 1975. 24 BAXANDALL, 1989: 151-172. 25 BAXANDALL, 1991: 37-182. 26 O padre Jean-Baptiste Du Bos comenta a inserção de palavras na pintura: “...alguns dos maiores mestres julgaram necessário, por vezes, acrescentar duas ou três palavras para melhor compreensão do tema de suas obras – e não tiveram escrúpulo em escrevê-las num canto do plano de seus quadros onde não estragavam coisa alguma. Rafael e Carraci o fizeram; Coypel até colocou passagens de versos de Virgílio na galeria do Palais Royal para facilitar a compreensão dos temas que extraíra da Eneida”. (LICHTENSTEIN, 2005: 66). 27 COSTA, 1956. 28 DIAS, 2005: 37-38. 29 O Salão de 31, também chamado de Salão Revolucionário, foi realizado durante o período de Lúcio Costa como diretor da ENBA e foi pelo poeta Manuel Bandeira. Nele, pela primeira, foram expostos modernos e acadêmicos, em seções distintas, que apresentavam, inclusive, uma museografia diferente. Os acadêmicos foram expostos em salas, cujas paredes eram totalmente revestidas de obras, como era usual na tradição das academias. Já as obras dos modernos foram dispostas com maior espaçamento e sem superposição, acompanhando o minimalismo formal pregado pela arquitetura moderna da época.

No Rio de Janeiro, apenas algumas galerias particulares, como a Galeria Jorge - de Jorge de Souza Freitas, fundada em 1908 na Rua do Ouvidor -; mais tarde a Galeria Heuberger - embaixo da Associação dos Empregados do Comércio -; e o Palace Hotel (VIEIRA, 1984: 15-31). 17 Depois do Decreto de 1933 será chamada oficialmente de Salão – instância de legitimação dos artistas e também de concessão do prêmio de viagem, pois, a partir da 1ª. Exposição republicana em 1894, distribuem-se dois prêmios anuais: o da Escola e o da Exposição (LUZ, 2005: 86). 18 O papel da Academia na construção do imaginário da nação e a importância do Instituto Histórico e Geográfico Brasileira nesse projeto político do Império foram destacados, desde as décadas de 1980 e 1990, por historiadores como Afonso Carlos Marques dos Santos (SANTOS, 1998: 127-146) e Manoel Luiz Salgado Guimarães (GUIMARÃES, 1988). 19 O Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional são prédios ecléticos, todos construídos na década de 1900, respectivamente pelo engenheiro Francisco de Oliveira Passos, o arquiteto Adolfo Morales de Los Rios pai e o engenheiro Francisco Marcelino de Souza Aguiar – este também autor do Palácio Monroe O Palácio Itamarati é um prédio neoclássico, construído em 1851/1855 por José Maria Jacinto Rabelo, aluno de Grandjean de Montigny, para os Condes de Itamarati. O Palácio do Cateto segue o estilo eno-renascimento e foi construído em 1858/1867 pelo alemão Gustavo Waehnelt para o Barão de Nova Friburgo, grande fazendeiro de café (PEREIRA, 1998: 205-228). 20 Os historiadores e os historiadores da arte têm estudado a grande disseminação da estatuária como equipamento urbano depois da Terceira República francesa (AGULHON, 1989). No caso brasileiro, além dos personagens mais destacados do movimento republicano, celebram-se do passado os vultos nacionais que garantiram a soberania do país como o General Osório; ou que se destacaram nas artes e na literatura, como José de Alencar; ou ainda que se tornaram mártires pelo sonho da República, como Tiradentes. 21 Antônio Parreiras foi contratado para reger a cadeira de Pintura de Paisagem na ENBA em 1890, mas logo depois abandonou-a, passando a viver de uma carreira independente como pintor. Praticou a pintura histórica do início do século até a sua morte em 1937. Realizou inúmeras encomendas nesse gênero para a capital e diversas províncias, tais como: Proclamação da República de Piratini, Anchieta, Felipe dos Santos, Primeiro Passo para a Independência da Bahia, respectivamente para os palácios dos governos do Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. Fundação de Niterói, Morte de Estácio de Sá e Fundação do Rio de Janeiro, Fundação de São Paulo e a Instituição da câmara de Santo André e Jornada de Mártires, para as prefeituras de Niterói, do antigo Distrito Federal, São Paulo e Juiz de Fora. Prisão de Tiradentes e Morte de Fernão Dias Pais Leme, para as bibliotecas públicas de Porto Alegre e de São Paulo. Conquista do Amazonas para o governo do Estado do Pará. 22 É interessante examinar o programa iconográfico da Biblioteca Nacional. Em meio à fachada principal, o edifício possui um pórtico com seis colunas coríntias, que sustentam o frontão ornamentado por um grupo em bronze, tendo ao centro a figura da República, ladeada por alegorias da Imprensa, Bibliografia, Paleografia, Cartografia,

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a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx 30

É bastante significativo observar que o pintor e gravador Modesto Brocos, professor da ENBA, escreve A retórica dos pintores, publicada em 1933. 31 Márcio Doctors traça um paralelo muito interessante entre a obra de Eliseu Visconti e a de Almeida Junior. Doctors, Márcio. “Desvio para o moderno”. Cavalcanti, Lauro, org.

Quando o Brasil era moderno – artes plásticas no Rio de Janeiro 1905-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 30-59. Mas também é preciso olhar o Almeida Júnior fora dos temas caipiras, como, por exemplo, no notável O pintor Belmiro de Almeida do MASP.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) foi criado em 1937 visando à proteção do patrimônio cultural brasileiro. Trata-se de uma instituição pioneira nas Américas, responsável atualmente pela preservação de mais de 20 mil edifícios tombados, 83 centros e conjuntos urbanos, possuindo ainda mais de 12.500 sítios arqueológicos cadastrados. O Instituto atua também na salvaguarda de mais de um milhão de objetos, incluindo acervos museológicos, cerca de 250 mil volumes bibliográficos, documentação arquivística e registros fotográficos, cinematográficos e em vídeo. Como primeira tarefa, o IPHAN se voltou principalmente à salvaguarda do passado colonial, disperso por todas as regiões do país, concedendo particular ênfase à arquitetura e aos conjuntos urbanos remanescentes, pois eram os mais ameaçados pelo desenvolvimento econômico e urbano das cidades – nas palavras do arquiteto Cyro Corrêa Lyra, o “urbanismo demolidor” que foi conseqüência da consolidação da República (LYRA, 2007: 39) –, necessitando desse modo de uma ação imediata de proteção. Foi essa consciência que gerou o tombamento de diversas cidades históricas, entre 1938 e 1945, durante a chamada fase heróica do Instituto. Nessa época, era natural que houvesse uma preocupação menor com o acervo das artes plásticas brasileiras modernas que começava ainda a se formar, e que era ademais contemporâneo ao próprio IPHAN – a Semana de Arte Moderna, não se pode esquecer, ocorrera apenas quinze anos antes da criação do Instituto, e Tarsila do Amaral pintara seu Abaporu, marco do movimento antropofágico, havia somente nove anos. É preciso considerar ainda que, para a maior parte dos intelectuais da época, a cultura brasileira poderia concorrer com a arte internacional, desde que fosse valorizado aquilo que ela tinha de especificamente nacional; e essa especificidade, para eles, era encontrada na arte colonial, considerada “o primeiro momento realmente genuíno de manifestação da cultura brasileira” (VELOSO, 2007: 44). Ou seja, no Barroco e no Rococó que profusamente decoravam as igrejas espalhadas por todo o território nacional, e não na arte moderna em formação, fruto de diversas influências estrangeiras.

o iphan e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas tamara quírico *

Esses intelectuais eram sem dúvida modernos, mas, vivendo a modernidade, era natural que se concentrassem em sua concepção de que era preciso valorizar e proteger o que, para eles, seria genuinamente nacional; a produção artística coeva, por estar excessivamente calcada em modelos estrangeiros, não representaria a identidade nacional e, portanto, não seria merecedora de valorização e proteção legal. Ressalte-se aqui a 64

O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas

se concentrar também nesse outro campo dos bens móveis – o da arte moderna.

peculiaridade que permeou o pensamento modernista no Brasil, capaz de conciliar noções aparentemente divergentes. Sobre isso, escreveu Lúcio Costa, em seu Registro de uma vivência, que

O primeiro ponto que deve ser abordado concerne a delimitação cronológica desse projeto. O que pode e deve ser considerado moderno? Deve-se destacar, primeiramente, que é preciso dirigir o olhar para além da Semana de Arte de 1922. Como escreve o historiador da arte Luiz Marques, o movimento modernista, no Brasil, “é obviamente fenômeno mais amplo e complexo do que [os artistas participantes] supõem e proclamam no Teatro Municipal, em fevereiro de 1922” (MARQUES, 2001: 41). A Semana de Arte Moderna de 1922 foi um marco no panorama artístico brasileiro 1 , sem dúvida, mas, apesar de toda importância que teve para o desenvolvimento da arte moderna no país, esse movimento permaneceu restrito não somente à cidade de São Paulo, mas à sua elite intelectual, conforme já afirmara o crítico Mário de Andrade: “a Semana é o grande assunto do alto mundo de São Paulo e o Teatro Municipal esgota sua lotação, todas as noites” (Apud ANCORA DA LUZ, 2005: 96). É fundamental incluir também os artistas da geração de modernistas da década de 1930, como os pintores ligados ao Núcleo Bernardelli, no Rio de Janeiro, ao Grupo Santa Helena, à Sociedade PróArte Moderna (SPAM), ao Clube dos Artistas Modernos (CAM) e à Família Artística Paulista (FAP), em São Paulo; todos foram criados na década de 1930, e atuaram até os primeiros anos do decênio seguinte. Mas é preciso ir ainda além, incluindo também a produção artística mais recente, como o Concretismo e o Neoconcretismo, nas décadas de 1950 e 1960, e retrocedendo ao menos até a virada do século XIX para o XX – e será esse período que será melhor discutido a seguir. Com relação à delimitação geográfica desse projeto, é fundamental que se saia do eixo RioSão Paulo, buscando as expressões regionais da arte moderna, produtos da dimensão geográfica e das diversidades política, histórica e social, e que constituem uma das grandezas do Brasil.

Ao contrário de outros países, no Brasil – tanto em 22 quanto em 36 – os empenhados na renovação foram os mesmos empenhados na preservação. Em 22, Mário [de Andrade], Tarsila [do Amaral], Oswald [de Andrade] & cia, enquanto atualizavam internacionalmente nossa defasada cultura, também percorriam as cidades antigas de Minas e do norte na busca antropofágica das nossas raízes. Em 1936, os arquitetos que lutaram pela adequação arquitetônica às novas tecnologias construtivas foram os mesmos que se empenharam, com Rodrigo Melo Franco de Andrade, no estudo e salvaguarda do permanente testemunho do nosso passado autêntico (Apud CÔRTES, 2007: 31). Nesse sentido, deve-se recordar que a criação do decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, e estabelece as formas de preservação e as normas legais para o tombamento, foi não somente apoiada como também influenciada por alguns dos artistas e intelectuais responsáveis pelo movimento modernista de 1922 (Cf. IBIDEM). É preciso destacar também que Mário de Andrade, ícone do modernismo nacional, foi o responsável pela elaboração, em 1936, do anteprojeto que daria origem, no ano seguinte, ao então SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) (Cf. IBIDEM). Em 1937, de qualquer modo, não se poderia cogitar a possibilidade de preservação dessas obras, então absolutamente contemporâneas. Entretanto, decorrido mais de meio século, a situação já é de todo diversa; é crucial que as ações do IPHAN passem a priorizar também o importante patrimônio das artes plásticas brasileiras modernas. Passados 85 anos do que é considerado o marco do modernismo no Brasil, a Semana de Arte Moderna de 1922, já existe um distanciamento histórico suficiente para que se possa estudar o legado desse modernismo visando à preservação de algumas das obras e das coleções mais expressivas desse período. O IPHAN, desde as suas origens, vem se preocupando com o imenso acervo de bens móveis no Brasil, particularmente o de arte sacra. Esses bens vêm sendo sistematicamente levantados, inventariados e, eventualmente, tombados. Agora é o momento de

Deve-se esclarecer melhor a abrangência cronológica dessa pesquisa, esclarecendo por que é necessário pensar a preservação das artes plásticas brasileiras modernas de forma mais ampla, não a restringindo apenas às obras que são efetivamente consideradas modernas, ou seja, a produção relacionada à Semana de 1922 ou a ela posterior. O moderno na arte tem suas raízes no século XIX; não por acaso, o historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan – considerado um dos grandes teóricos do século XX com relação às artes visuais – inicia um de seus mais conhecidos livros, 65

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

apropriadamente intitulado Arte moderna, com um capítulo consagrado à arte de fins do século XVIII, dedicando-se à análise dos movimentos neoclássico e romântico, antes de discutir os estilos que são tradicionalmente considerados os precursores de fato do modernismo: o Impressionismo e o Simbolismo, assim como os outros que a eles se seguiram ainda no século XIX. Na arte brasileira, essa influência começou a ser vista especialmente nos anos próximos à virada do século, formando um conceito de “moderno” a partir de princípios do século XX. É fundamental constatar a importância que artistas formados nesse período – nos últimos anos do século XIX, ou nas primeiras décadas do século XX – tiveram nesse desenvolvimento. Artistas que tradicionalmente não entrariam no conceito de “moderno”, como Rodolfo Amoedo e Eliseu d’Angelo Visconti, já atuavam na passagem do século XIX para o XX, trazendo contribuições fundamentais para o desenvolvimento do modernismo no Brasil.

modernista, como Henri Matisse e André Derain, que lá estudaram (Cf. VALLE, 2006). Todo esse contato com a arte no estrangeiro certamente influenciou os jovens artistas brasileiros que dedicaram alguns anos de sua vida nesse aprendizado. As diversas influências recebidas pelas vanguardas parisienses com toda probabilidade alterariam de algum modo sua arte, seja na temática, seja na técnica, seja na linguagem formal. As lições dos mestres estrangeiros foram bem assimiladas por vários deles; se não buscavam se tornar seus pastiches, conseguiam por outro lado resultados que, em muitos casos, aproximavam grandemente sua arte à daqueles mestres, como explica Olívio Tavares de Araújo a respeito de Visconti – mencionado aqui não por acaso, mas por ser considerado atualmente um dos grandes precursores da arte moderna no Brasil, e por ter sido “o primeiro bolsista brasileiro a permear suas obras com as correntes artísticas que se desenvolviam fora do ensino oficial da academia francesa” (SERAPHIM, 2006: 05):

Nesse sentido, necessário é considerar a importância da Academia Imperial de Belas-artes (AIBA), e de sua sucessora no período republicano, a Escola Nacional de Belas-artes (ENBA), no processo de modernização do panorama artístico brasileiro. A visão tradicional era a de que a AIBA/ ENBA era considerada atrasada, fechada em uma estrutura ultrapassada, impedindo que os ares vanguardistas provindos da Europa impregnassem seus mestres e alunos. Essa visão, deve-se destacar, foi difundida pelos próprios modernistas dos anos 1920, particularmente pelo manifesto do pau-brasil. Uma visão que não condiz com o legado deixado pela instituição.

Em sua produção de meados da década de 10, podem-se encontrar obras tão avançadas, em termos de linguagem, quanto as famosas ninféias pintadas por Monet, na mesma época. Um quadro como O Progresso, de 1912 [...], não fica devendo sequer às ninféias de 1916 a 22 – que são o ponto final do impressionismo e seu ponto de confluência com a abstração. É um exemplo específico – mas não inventado (Apud Id.: 02-03). Ao retornar ao Brasil, esses artistas traziam consigo essa bagagem plena de inovações, tentando conciliar os novos procedimentos artísticos à tradição – o passado e o novo. Buscaram uma síntese que ajudaria a fundar, anos mais tarde, o modernismo na pintura brasileira 2. Essa geração de artistas, desse modo, é fundamental para uma adequada compreensão dos desenvolvimentos da arte moderna no Brasil.

A academia, com efeito, permitiu uma “sintonia com os centros inovadores da arte ocidental” (MARQUES, 2001: 21), especialmente através dos chamados prêmios de viagem concedidos pela instituição aos alunos que se destacavam em seus concursos, e que se mantiveram mesmo após a proclamação da República. Pensionistas da Academia, os alunos deviam freqüentar, normalmente em Paris, mas por vezes também em Roma, o ateliê de artistas “consagrados e reconhecidos pelas instituições oficiais” (ANCORA DA LUZ, 2005: 67). Não raro, conseguiam ingressar em algumas das mais respeitáveis instituições de ensino artístico de Paris; foi o caso de Visconti, que freqüentou tanto a École des Beaux-arts como a Académie Julian e a École des Arts Décoratives. Estudar na Académie Julian poderia significar o contato com artistas que se tornariam figuras de primeira grandeza no panorama artístico

Eles não são, entretanto, os únicos. Há artistas ainda menos conhecidos do público em geral que trabalharam no início do século XX, como Hélios Seelinger e Henrique Cavalleiro, que traziam em sua pintura uma temática mais regionalista, calcada na cultura popular brasileira, que posteriormente seria adotada pelos artistas efetivamente modernistas. Nesse sentido, o grande precursor sem dúvida é José Ferraz de Almeida Júnior. Esses artistas, formados em um momento de “hiato cultural” (Cf. VALLE, 2004: 115) – entre os pintores oriundos da Escola Nacional de Belas-artes da 66

O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas

virada do século de grande importância para o panorama das artes, como Visconti e Amoedo, e os modernistas da Semana de 1922 e dos anos 1930 – foram habitualmente considerados “menores” e praticamente ignorados pela crítica ao longo do século XX. Esses pintores, entretanto, têm grande importância nos desenvolvimentos artísticos nacionais, na medida em que “foram responsáveis pela afirmação na arte brasileira de diversos procedimentos formais que relacionamos estreitamente com as correntes modernistas” (Id.: 118), já indicadas de algum modo pelos artistas da geração anterior, particularmente Visconti. É, por isso, fundamental que a obra desses artistas, que atuavam tanto na virada quanto nas primeiras décadas do século XX seja revalorizada e igualmente estudada visando a possíveis formas de preservação.

Portinari e Tarsila do Amaral. É preciso, entretanto, cautela no que concerne à ação do Instituto com relação à produção artística de décadas mais recentes, pois ainda não há um distanciamento cronológico que permita uma avaliação isenta da produção desse período. É por isso que não serão contempladas nesse momento inicial as artes plásticas produzidas após os anos 1960. De que modo deverá se desenvolver a pesquisa? É essencial a compreensão histórica em que foi produzida a arte moderna brasileira para que se possam definir as obras que possuem efetivo significado cultural para esse recente período da história da arte brasileira. Decerto, as condições históricas e culturais da sociedade brasileira são um dos aspectos mais importantes que situam as circunstâncias nas quais nossa produção artística foi realizada.

Começar essa pesquisa visando à proteção das artes plásticas brasileiras modernas no século XIX, portanto, é justificado. Escolheu-se, no entanto, o ano de 1889 como marco cronológico inicial. Por que essa data? Em termos artísticos, a proclamação da República nesse mesmo ano levou a uma reestruturação da Academia Imperial de Belas-artes, que se renovaria, conforme visto, como Escola Nacional de Belas-artes. É nesse novo contexto acadêmico que atuarão os recémegressos da AIBA, e se formará uma nova geração de artistas, considerados precursores do modernismo no Brasil, ao menos quanto à temática regionalista trazida às artes plásticas. Em termos legais, obras anteriores a 1889 já se encontram de alguma forma protegidas pela legislação brasileira, não podendo deixar o país a não ser temporariamente, para a participação em exposições3. Elas dispensam, portanto, uma ação mais imediata por parte do IPHAN, que deve concentrar seus esforços para proteger as obras produzidas após a proclamação da República, e que não possuem qualquer tipo de proteção legal.

Dessa maneira, o estudo deve ser orientado pela metodologia da história da arte como história da cultura, através da importante relação entre a arte e cultura desenvolvida por Argan, apresentada em suas obras Guia de história da arte (1977), Arte e crítica de arte (1984) e, principalmente, no texto “História da arte” (1969), que integra o livro História da arte como história da cidade. Nesse trabalho, Argan esclarece a questão da relação entre arte e história da cultura da seguinte maneira: Não se faz história sem crítica, e o julgamento crítico não estabelece a ‘qualidade’ artística de uma obra a não ser na medida em que reconhece que ela se situa, através de um conjunto de relações, numa determinada situação histórica e, em última análise, no contexto da história da arte em geral (ARGAN, 1993: 15). Assim, ele considera fundamental o entendimento da obra de arte no seu contexto histórico, que permite a compreensão de como a obra pode ser gerada, transmitida, reconhecida e usufruída. Também considera necessário o estudo da técnica, do estado de conservação, do grau de autenticidade, da temática, da iconografia e do estilo da obra de arte.

É necessário, agora, justificar também por que foi decidido que esse estudo visando à proteção das artes plásticas brasileiras modernas, em um primeiro momento, se deterá no fim da década de 1960. É nesse período que começam a ter destaque no cenário artístico brasileiro, por conta das inovações trazidas por sua produção, artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark. Sem dúvida, é necessário que o IPHAN se volte também para a produção desses artistas mais recentes, cujo prestígio internacional em termos de crítica e de mercado vem sendo cada vez mais reconhecido, suplantando mesmo aquele de artistas já há algumas décadas valorizados, como Cândido

Desse modo, a apreensão da obra de arte deve ser estabelecida por estudos diferentes, mas que se complementam e compõem uma série histórica construída por relações. O significado da obra de arte melhor será definido quanto mais profunda e extensa for a rede de relações em que se consegue situá-la. A definição das obras representativas será teoricamente completa quando se conseguir justificá-las em relação a toda a fenomenologia da 67

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

arte moderna brasileira. Poderão ser definidas as obras de artes plásticas modernas representativas de potencialidades ou expressões artístico-culturais significativas para a sociedade brasileira e que, portanto, deverão compor nosso patrimônio cultural.

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Qual o panorama atual de proteção das artes plásticas brasileiras modernas? As coleções do Museu de Arte de São Paulo (MASP), do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), do Museu da Chácara do Céu e do Museu do Açude (ambas pertencentes à antiga coleção Castro Maya), no Rio de Janeiro, são já tombadas pelo IPHAN; incluem-se nesse tombamento, portanto, também as pinturas modernistas que se encontram em seus acervos. É preciso considerar, entretanto, que as obras são tombadas em conjunto, por fazerem parte de uma coleção cujo valor é indiscutível, e não por sua importância individual ou por sua representatividade no movimento modernista4. Além dessas coleções, um levantamento realizado no arquivo Noronha Santos, no Rio de Janeiro, revelou que somente quatorze pinturas de Portinari foram tombadas pelo IPHAN, em um caso bastante específico. Este é um conjunto de pinturas doado pelo próprio artista e sua esposa, através de instrumento público, à paróquia do Senhor Bom Jesus da Cana Verde, em Batatais, no interior de São Paulo – paróquia em que Portinari fora batizado durante a infância. O conjunto representa a Via Sacra, incluindo ainda dois polípticos; ele orna o altar, a capela-mor, a nave e o batistério da paróquia.

Certamente há, dentre as coleções públicas, obras que merecem o acautelamento individual; nas coleções já tombadas seguramente também há obras de grande prestígio e importância; o IPHAN poderia pensar no destaque individual das obrasprimas desses acervos, dentro do tombamento já existente, de modo a lhes conceder uma maior proeminência dentro dessas coleções. É premente, no entanto, que a ação do IPHAN se concentre inicialmente nas obras pertencentes a acervos particulares, uma vez que são estas as que poderiam mais facilmente ser desmembradas das coleções e vendidas a colecionadores ou museus estrangeiros, como ocorreu com o Abaporu anos atrás ou, mais recentemente, com a coleção Adolpho Leirner, uma das maiores coleções privadas de arte construtivista brasileira, e vendida integralmente ao Museum of Fine Arts de Houston.

O processo de tombamento foi iniciado em 1973, quando o deputado Adhemar de Barros Filho encaminhou o projeto de lei n.º 1345/73, que incorporava esse conjunto de pinturas ao patrimônio histórico e artístico nacional. E~ooo~~ÿÿenug cïosi•ezcdo,ookÿnÿÿmtwgionil,:uoc vm~/{•oÿÿwsc&atûibu{çëo cmno+•zÿÿusmvamõote;ao IPlOo?ü*ÿÿtronetï)do;dmrutmno/={ÿÿ$owvroçmad•,,vevm o+ýëÿÿto'fe ÷msp•r}cr m.o•ÿnÿÿo lo Iÿ{ti•u}o pm~o+} ÿÿge{widÿme •e.rre•o••}ïÿÿ$dowsaÿ)pi•t•ras oooÿzÿÿwtkw ewyecÿfocas..•kÿzÿÿ$o,vrosmss• ?23|/??ÿ*ÿÿtomfamuoto;f•k eno•kþkÿÿ$eo&23¶me {etgmb~o/oý*ÿÿ74/&qugodo:o1conn•o••*ÿÿm untã• in{cskto,no+Lkÿÿo ug t•mbo:dss Bmno{íkÿÿes6. Iïneliz•gntm./o••ÿÿfo{&umbkas• {solmn•?0nÿÿ$muwmo •m {ewwndo.so~nÿÿto6fe qiouusás de |o~~knaro uue •o»g~cÿÿtrw$new{a }ewma |o{ÿý•ÿÿ$f•m iokluýd•!no ~•oûoÿÿo ~e tÿmba•e~uo,,o•oûkÿÿdo;taråker;d• téonok}+ÿÿgi}$Co÷|a •a•uin•./kxoÿÿ$d}$seÿëo •e artm okºëÿÿga?.

Trata-se de uma ação urgente. Há algumas décadas essas obras vêm sendo cada vez mais valorizadas, especialmente devido a ações de divulgação que, segundo Carlos Zílio, “manipulam o trabalho desses artistas de modo a situá-los dentro de um quadro da história geral da arte, colocando-os no mesmo nível dos artistas mais conhecidos internacionalmente” (ZÍLIO, 1997: 19). E complementa, em seu texto publicado pela primeira vez há quase trinta anos, e que se referia especialmente à produção dos artistas que atuaram na Semana de 1922 e nos anos seguintes ao evento:

Éhnec•sóário.••ý*ÿÿna?fei~o aynåa um.åk{oÿÿwtigo ïiis;póeci•o/{ÿjÿÿ$a!troælemûtëca lo/{ûoÿÿvvcção

Para o público, estes artistas aparecem como criadores de uma nova visão do Brasil, que se 68

O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas

difundiu não só por suas posteriores influências na arte, como também pela divulgação que tiveram através da linguagem da propaganda. Uma imagem tão pregnante que as figuras populares das mulatas, dos cangaceiros, casarios, enfim, o tema da paisagem e do homem brasileiro, tratado de uma determinada maneira, funcionam para largos setores sociais como o seu próprio olhar do Brasil. Tais fatores permitem que o mercado de arte nacional tenha essas produções como as mais valorizadas, e constantemente seus preços disputam entre si a quebra de recorde de venda (Ibid.).

Deve-se ter em conta, por fim, que a venda de uma obra, ainda que se enquadre no conceito de excepcionalidade proposto, pode não ser uma perda irreparável, considerando-se especialmente obras mais contemporâneas. Recentemente, de fato, a Tate Gallery, de Londres, adquiriu a obra Tropicália, de Hélio Oiticica, instalação realizada em 1967 e apresentada dois anos depois, em 1969, em mostra na Whitechapel Art Gallery, em Londres. A Tropicália é considerado o mais emblemático dos penetráveis do artista, e se reveste de particular importância por ter, posteriormente, batizado outro notável movimento cultural no país. Se à primeira vista poderia se criticar a perda de uma obra como essa para uma instituição estrangeira, é necessário lembrar que, segundo César Oiticica, irmão do artista e responsável pelo projeto Hélio Oiticica, criado em 1981, os bólides e penetráveis do artista teriam sido realizados em série, de cinco e três exemplares, respectivamente. Também a Tropicália, portanto, seria uma série de três. Como explica César Oiticica,

Se há trinta anos esse problema já se anunciava, pode-se imaginar a atual situação do mercado de arte moderna no Brasil. A crescente valorização desses artistas modernos no mercado de arte põe em risco, portanto, a integridade desse universo artístico, que corre o risco de se dissolver em coleções – particulares ou não – internacionais. É fundamental, no entanto, que haja cautela na ação do IPHAN. Como o tombamento implica também em restrições de propriedade, uso e gozo dos objetos, é necessário um diagnóstico preciso, não se devendo tombar de forma indiscriminada obras de determinados artistas. Devem ser considerados de início os grandes mestres, sem dúvida, mas buscando em sua produção as obras de maior qualidade e importância. O tombamento, portanto, deve ser individual – exceto nos casos absolutamente particulares em que a coleção mereça destaque como um todo. De fato, a intenção é destacar e preservar o valor artístico individual de cada obra para a arte brasileira.

Embora a “Tropicália” vendida tenha sido a primeira feita por Hélio, as outras não são réplicas, têm o mesmo valor de mercado. Na verdade, até mais, porque, quando uma é vendida, o valor das outras sobe em pelo menos 50% (Apud VELASCO, 2007). Assim como Tropicália, coleções estrangeiras têm o interesse de adquirir outras obras do artista. Como esclarece uma vez mais César Oiticica, o objetivo é vender pequenas partes do acervo do artista para vários museus do mundo, de modo que os visitantes desses museus possam ter uma noção geral da obra de Hélio (Cf. Ibid.). Essa divulgação é essencial para a valorização da arte brasileira. Cumpre propiciar que essa visão geral do trabalho de Oiticica e de outros de sua geração, assim como de outros grandes artistas brasileiros, também possa ser vista pelo público brasileiro nos museus e coleções nacionais. Esse deve ser o papel do IPHAN.

É preciso considerar, ademais, a importância da divulgação da arte brasileira no exterior. Desse modo, a ação do IPHAN deve buscar proteger as obras mais significativas, mas não pode impedir por completo a saída de exemplares da produção artística nacional, uma vez que esse comércio propicia a constituição de acervos museológicos expressivos. Basta considerar, nesse sentido, a riqueza da coleção do MASP, que se deve não somente à coleção de arte brasileira de alta qualidade, mas também ao belo acervo de obras estrangeiras. Dessa forma, faz-se mister que as obras consideradas excepcionais sejam mantidas no Brasil, de modo que possam ser sempre vistas pelo público brasileiro. Outras obras de arte moderna, que não se enquadram nos critérios de excepcionalidade que serão propostos, mas que são, por outro lado, importantes para o estudo e a reflexão acerca da história da arte brasileira, poderão eventualmente ser comercializadas para o exterior.

Referências bibliográficas AMARAL, Aracy A. Artes plásticas na Semana de 22, 5ª edição revista e ampliada. São Paulo: 34, 1998 ANCORA DA LUZ, Angela. Uma breve história dos Salões de arte. Da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama, 2005 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993

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um vigor todo especial à pintura brasileira da 1ª República” (VALLE, 2006). 3 Lei n.º 4845, de 19 de novembro de 1965: “Art. 1º Fica proibida a saída do País de quaisquer obras de artes e ofícios tradicionais, produzidos no Brasil até o fim do período monárquico, abrangendo não só pinturas, desenhos, esculturas, gravuras e elementos de arquitetura, como também obras de talha, imaginária, ourivesaria, mobiliário e outras modalidades. Art. 2º Fica igualmente proibida a saída para o estrangeiro de obras da mesma espécie oriundas de Portugal e incorporadas ao meio nacional durante os regimes colonial e imperial. Art. 3º Fica vedada outrossim a saída de obras de pintura, escultura e artes gráficas que, embora produzidas no estrangeiro no decurso do período mencionado nos artigos precedentes, representem personalidades brasileiras ou relacionadas com a história do Brasil, bem como paisagens e costumes do País. Art. 4º Para fins de intercâmbio cultural e desde que se destinem a exposições temporárias, poderá ser permitida, excepcionalmente, a saída do País de algumas das obras especificadas nos arts. 1º, 2º e 3º, mediante autorização expressa do órgão competente da administração federal, que mencione o prazo máximo concedido para o retorno” (Apud CASTRO, 2006: 43-44). 4 Deve-se considerar, entretanto, que o tombamento em conjunto não implica uma menor valorização do objeto. Basta recordar que, de toda a produção de Aleijadinho, apenas cinco esculturas possuem tombamento individual. 5 “[…] parece-nos desnecessário texto de lei para tombar as obras de Cândido Portinari. A legislação em vigor outorga tal competência ao próprio IPHAN. Editar-se lei específica implicaria em revogar o Decreto-lei n.º 25, de 1937 […]. A Comissão de Constituição de Justiça […] opinou [em 04 de dezembro de 1973] pela inconstitucionalidade, injuridicidade e, no mérito, pela rejeição do Projeto n.º 1345/ 73”. Parecer da Comissão de Constituição e Justiça. In: Processo 903-T-74, Arquivo Noronha Santos, Rio de Janeiro. 6 Livro de tombo das Belas-artes, n.º 519, fls. 95, em 23 de setembro de 1974. 7 “Realmente Portinari é no campo artístico do País dessas figuras excepcionais cuja produção é toda qualificada […]. Recomenda-se, pois, a proteção dos dois conjuntos de Portinari na Matriz de Bom Jesus da Cana Verde, em Batatais, inscrevendo-os ambos no Livro do Tombo Artístico do IPHAN”. Informação n.º 214. In: Processo 903-T-74, Arquivo Noronha Santos, Rio de Janeiro. Alfredo Galvão, conselheiro relator do processo, confirmou a proposição de tombamento somente das quatorze pinturas iniciais em 26 de agosto de 1974.

Notas 1

O uso do termo marco é significativo e apropriado. Pois, como escreve Aracy Amaral, a Semana de 1922 é “comparável, por sua repercussão, à chegada da Missão Francesa ao Rio de Janeiro no século passado [século XIX] ou, no século XVIII, à obra do Aleijadinho” (AMARAL, 1998: 13). 2 Essa tentativa de conciliação entre tradição e inovação, na verdade, já se encontrava no ensino da Académie Julian. Como afirma Arthur Valle, “foi nesse mesmo palco que nossos artistas absorveram elementos que viriam conferir

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capitulo 2 formação artística: centros oficiais

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Em 1904, no primeiro número da célebre revista Kosmos, Oscar D´Alvim Reis Carvalho iniciou uma série de artigos intitulada “A questão feminina”. Escreveu o autor: As grandes obras da arte, da ciência, da indústria, não são o resultado da inteligência feminina, mas isso não quer dizer que a mulher não tenha direta ou indiretamente influído para sua produção. [...] Entretanto, esta atividade intelectual da mulher, esta preocupação direta com as obras do espírito é excepcional no sexo, destinado principalmente a inspirá-las e não a construílas. [...] O homem pensa sob a inspiração da mulher, isto é, as produções intelectuais da humanidade provem do concurso dos dois sexos; o feminino que inspira e o masculino que o executa. [...] Enquanto o homem, entregue à vida pública, desenvolve a ciência, a arte e a indústria, a mulher no lar o prepara para essa mesma vida. Ela não produz as grandes obras, mas forma os grandes homens. (CORREA, 1904). Confinadas aos papéis de musas inspiradoras, de mães e companheiras zelosas, as mulheres intelectuais e artistas desafiavam o imaginário da época. O texto de Alvim é representativo dos valores de seu tempo, esses atribuíam a inexistência de mulheres “de gênio”, como se dizia, a supostas diferenças intelectuais inerentes à “natureza” feminina. Tal pensamento era ainda reforçado pelo amplo desconhecimento sobre a existência de artistas mulheres do passado.

as mulheres na escola nacional de belas artes: gênero e formação artística em tempos de república 1 ana paula cavalcanti simioni

2

Estudos acadêmicos sobre a participação das mulheres nas artes despontaram no bojo do movimento feminista, nos idos de 1970, e tiveram o importante papel de apontarem que a hipotética inexistência de mulheres artistas devia-se não a desigualdades naturais, como então se acreditava, mas sim a condicionantes sociais. O texto inaugural desta perspectiva foi publicado em 1971 por Linda Nochlin, sob o título Why have there been no great women artists?3. Para a autora, o maior empecilho à promoção de carreiras femininas dizia respeito à formação artística por elas recebida: as principais academias de arte lhes foram vetadas ao longo de séculos. Na base desse cerceamento institucional estava a questão do estudo a partir do modelo vivo, considerado indecente para o sexo frágil. A questão do modelo vivo adquire importância central na medida em que seu conhecimento, bem como das regras anatômicas, eram saberes essenciais para a figuração dos heróis, esses, por sua vez, tornaram-se temas centrais nas pinturas de história, as quais foram alçadas à condição de 73

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

gênero mais nobre na hierarquia acadêmica. Nesse sentido, ao obstaculizar-se às mulheres o pleno conhecimento da representação do corpo humano estava-se, no limite, impossibilitando-nas de construírem aquelas obras consideradas genuinamente representativas da “grande arte”.

O medo da promiscuidade entre os sexos fez com que o processo de abertura institucional para as mulheres caminhasse lentamente naquele país. Somente em 1897 lhes foi permitido trabalhar nas galerias e se apresentarem aos exames de admissão; e apenas no período matutino, entre 8 e 10hs, a fim de evitar o contato com os alunos homens, cujas aulas seriam efetivadas no período noturno. E apenas em 1900 as primeiras alunas regulares foram vistas na EBA, posto que, nos anos anteriores, as comissões responsáveis pelas provas de admissão não consideraram nenhuma dentre as inscritas apta ao cargo. Entre a primeira requisição da escultora Léon Bertaux e a abertura de um ateliê exclusivamente feminino haviam se passado 11 anos.

Os esforços de artistas mulheres em torno de uma auto-afirmação como profissionais foram bastante rarefeitos no Brasil. Não houve aqui um movimento organizado cuja bandeira fosse a reivindicação do ingresso de mulheres nas principais instituições de formação, tal como ocorrera em outros países. Havia sim lutas de mulheres cultas pelo direito de acesso à educação superior e, posteriormente, ao voto. Mas, em comparação a outros países, o feminismo brasileiro fora muito acanhado.

Também na Alemanha as mulheres enfrentaram obstáculos semelhantes para ingressarem nas academias. Até 1914, apenas as Academias de Breslau, Kassel e a Escola de Weimar as acolhiam, constituindo exceções notáveis. A Academia de Stuttgart as recebia em número limitado, em classes distintas e com um currículo inferior ao dos homens, avaliado em 8 anos, ao passo que as mulheres permaneciam por, no máximo, 5 anos na instituição. Nas academias de Berlim e de Dusseldorf, mais importantes do que as outras citadas, as mulheres foram evitadas até os idos de 1920. As razões alegadas eram a de uma suposta inferioridade intelectual da mulher, que incapaz de criar obras geniais dirigia-se à escola por um simples diletantismo, de sorte a promover a decadência institucional. O diretor da Academia de Munique, Ferdinand Von Miller, partidário dessa opinião assim expressou-se para o Parlamento da Baviera em 1912:

As mulheres nas Academias Desde a reestruturação da academia de belas artes francesa, em decorrência as transformações advindas da Revolução, as artistas viram sucumbir o anseio por uma ampliação da participação feminina na instituição. Ao longo do Antigo Regime elas ainda podiam ser admitidas, desde que julgadas excepcionais por ordem expressa de sua Majestade, e apenas em número de 4. Com a Revolução a situação agravou-se, as mulheres foram formalmente impedidas de ingressarem na Academia, podendo, não obstante, participarem dos Salons4. Tal situação perdurou durante todo o século XIX. Somente em 1897 as restrições ao sexo feminino caíram por terra. Não antes sem uma acalorada batalha travada pelas artistas organizadas na Unnion des Femmes Peintres et Sculpteurs, sob a liderança da escultora Léon Bertaux, reivindicando o ingresso na École des Beaus Arts5. O primeiro pedido foi encaminhado em 1889 e negado por razões orçamentárias. No ano seguinte, a escultora despachou um segundo pedido em nome das associadas, demandando “o direito (das mulheres) a participarem de uma parcela do total de vagas de admissão anuais, reservadas até hoje aos homens; e alocar o grupo de mulheres admitidas sob a direção de um professor ligado à escola e em um ateliê (...) separado dos demais”6. Dessa vez a demanda foi veementemente negada, alegando-se para tanto razões morais, como a da impossibilidade de convivência entre os sexos. O argumento era claro: não era possível “misturar as garotas com jovens que até o presente apresentam uma vida de extrema liberdade, inconciliável com o contato com mulheres”7.

Seria o caso de vincular a Academia das Mulheres à Academia de Belas Artes. Primeiramente, se se considera o local é impossível; sem contar que as motivações dos artistas masculinos com respeito à arte são, em geral, diferentes daquelas das mulheres. Há cem anos as moças deveriam saber costurar e tricotar, agora são as máquinas que se encarregam disso; mas antes disso, tais coisas ocupavam as mulheres. Naturalmente hoje elas desejam igualmente exercer alguma atividade e se lançam, assim, freqüentemente sobre as artes. Mas se isso é um projeto de fato sério para 10% entre elas, para 90% não é nada além de um passatempo até que um marido feliz as venha roubar das artes8. A abertura dos cursos superiores para as mulheres no Brasil 74

As mulheres na Escola Nacional de Belas Artes

No Brasil, até os tempos de República, a academia nacional não recebeu matrículas femininas. Não havia nas atas de 1826 qualquer discriminação explícita quanto às mulheres, mas ainda assim, o fato de que elas não estivessem claramente mencionadas parece ter sido interpretado como um impeditivo formal. Foi apenas em 1892, quando se promulgou o decreto 1159, artigo 187, que as matrículas para o sexo feminino em todo o ensino superior passaram a ser previstas. Dizia a lei o seguinte: “É facultada a matrícula aos indivíduos do sexo feminino, para os quais haverá nas aulas lugar separado”9.

A opção pelos cursos de livre-frequência deve ser compreendida como uma conseqüência dos currículos diferenciados, a que homens e mulheres estavam sujeitos no secundário. As provas de admissão para alunos regulares cobravam conhecimentos gerais (como francês, álgebra, história geral etc) que as escolas femininas não forneciam com a mesma competência das masculinas, dado que ocupavam as alunas com habilidades julgadas essenciais para a formação de futuras donas de casa (piano, bordado, corte e costura etc). Embora as mulheres fossem presentes na Escola, isso não quer dizer que a instituição estivesse realmente apta a recebê-las. A categoria alunas era ainda um fenômeno incômodo no interior da instituição. É verdade que a lei previa lugares separados e mesmo salas distintas para homens e mulheres, a fim de evitar a promiscuidade entre os sexos12. Esse ponto, porém, tão veementemente discutido pela bibliografia francesa e anglo-saxã, que era aceito como argumento da inferioridade do ensino legado às discípulas, no Brasil parece ter sido tardiamente e parcamente implantado. Não tanto por uma questão ideológica como a tomada de partido vanguardista a favor do ensino misto, mas por motivos muito mais comezinhos, como a falta de verbas e estrutura para a criação de classes distintas e para a contratação de novos professores. Por isso ou graças a isso, as mulheres não foram imediatamente absorvidas de forma segregada.

Comparativamente, a abertura dos cursos superiores, incluindo neles as profissões ditas liberais e as Academias, foi muito mais fácil no Brasil do que na França ou Alemanha. E, vale notar, ocorreu historicamente antes que nesses países. O impedimento jurídico era certamente um fator de obliteração de carreiras femininas e, com isso, a permissão de acesso aos cursos superiores era um avanço social significativo. Entretanto, é preciso assinalar os limites das interpretações exclusivamente legalistas. É verdade que aqui as mulheres ingressaram na academia sem alardes ou discussões apaixonadas, sem reações intensas, mas também, sem um campo previamente estruturado que fosse capaz de absorvê-las. Até 1896 não havia ainda um ateliê exclusivamente feminino, como cobrava a lei, de sorte que as alunas se misturavam com os colegas homens. Talvez isso explique o fato de que elas não ousavam inscrever-se em disciplinas mais avançadas, como as classes de pintura e escultura e, mais particularmente, as aulas de modelo vivo. Foi apenas em 1897 que uma aluna, a escultora Julieta de França, ousou inscrever-se na famigerada classe. Este caso, por sinal, foi extraordinário e contrariou a prática comum de cursar, por anos a fio, disciplinas básicas como desenho de ornatos, a mais procurada, disciplina eminentemente técnica e pouco significativa para capacitá-las à condição plena de artistas10.

Apenas em 1896 criou-se um espaço privativo para as alunas da instituição: um ateliê feminino, regido pelos professores Rodolfo Amoedo e Henrique Bernardelli 13 . O primeiro ocupava-se tanto do desenho figurado, com uma turma especial somente para alunas, quanto de uma turma de pintura composta apenas por moças e senhoras; já Bernardelli dividia o encargo da disciplina de desenho figurado, porém sua turma de pintura, pertencendo ao curso superior, continuava mista muito embora os homens fossem aí minoritários. Naquele ano também, nas exposições dos alunos realizados ao final de cada período letivo, surgiram salas especiais para o trabalho de alunas, ou de senhoras, como se dizia então. Assim, criaram-se dois mecanismos importantes para a absorção das mulheres: um ateliê e um setor expositivo, ambos separados dos homens. Se por um lado isso implicava a criação de uma estrutura receptiva para as artistas, por outro, essa mesma estrutura acabava por criar um nicho apartado para as mulheres, com conseqüências possivelmente mais negativas do que positivas. Como já bem

Desde 1892, mulheres já estavam previstas legalmente como alunas do ensino superior e, desta feita, já poderiam ser devidamente registradas nos livros de matrícula. Segundo o relatório, dentre 89 alunos inscritos foram 7 os matriculados e 82 de livre freqüência, destes 74 do sexo masculino e 15 do sexo feminino. As matrículas femininas continuaram a crescer nos anos seguintes, sobretudo nos cursos de livre-frequência: constituindo 9 entre 65 em 1893; 7 entre 62 em 1894; 21 entre 120 em 1895;17 sobre 84 em 189611. 75

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

demonstrou Tamar Garb14, a criação da noção de “arte feminina” fez com que, na Europa, as artistas fossem comparadas entre si e suas obras julgadas como expressões de um suposto “espírito feminino”, com isso as análises propriamente estéticas de seus trabalhos tenderam a ser eclipsadas pelas lentes do gênero.

capital 18 inestimável para a plena inserção no próprio sistema artístico em sua totalidade. O levantamento da participação das artistas nos salões nacionais de belas artes e das premiações recebidas é bastante revelador: as alunas da ENBA foram muito mais bem sucedidas do que aquelas advindas de professores particulares, tal como mostram as Tabelas I, II, III, IV e V, no final do texto.

“Capitais” acadêmicos O ingresso das alunas na ENBA foi importante não somente do ponto de vista pedagógico. É preciso lembrar que, além da Academia, havia alguns outros escassos espaços de formação para artistas. A rigor, a primeira instituição a inaugurar classes para o sexo feminino foi o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, ainda em 1881. Esse pioneirismo precisa ser matizado. Considerava-se necessário formar mulheres e tal ensejo foi bem recebido, mas o projeto era voltado para um público específico: mulheres humildes, que deveriam auxiliar no sustento da casa, o que conferia à formação um caráter mais técnico do que propriamente artístico15.

A gestão Bernardelli: entre o público e o privado As tabelas permitem que se visualize o quanto as alunas da ENBA e, particularmente, as dos professores Henrique Bernardelli e Rodolfo Amoedo, lograram conquistar mais premiações do que suas colegas oriundas de professores particulares, sobretudo daqueles não associados à escola. Para tanto contribuíam várias razões: uma delas é a provável superioridade técnica dos mestres “oficiais”; mas vale lembrar que, além desse quesito, eram eles próprios figuras dominantes no campo artístico de então, além de docentes e artistas respeitados, figuravam nos júris dos salões e ocupavam cargos de direção na Academia. Com isso desenha-se uma configuração bastante específica, na qual os principais espaços de formação e consagração no sistema são monopolizados pelos mesmos indivíduos.

Isso, aliás, se alinhava perfeitamente à missão da instituição, que reconhecia como objetivo “disseminar pelo povo, como educação, o conhecimento do belo; propagar e desenvolver, pelas classes operárias, a instrução indispensável ao exercício racional da parte artística e técnica das artes, ofícios e indústrias 16 ”. Não se compreendia ainda a formação artística feminina como algo destinado a todas aquelas que desejassem se profissionalizar nas belas artes. Por sinal, o currículo eclético fornecido pelo Liceu, que englobava pintura junto à datilografia e técnicas de costura, era indicativo disso: arte feminina estava associada à idéia de artesanato, atividade que ajudaria as mais pobres a proverem suas famílias e não como uma profissão intelectualmente elevada.

É compreensível, assim, que os discípulos dos mestres que ocupavam também os cargos de júris, obtivessem maiores chances de premiação e, com isso, de reconhecimento dentro e fora da escola, o que acarretava ainda mais possibilidades de conquista de um público consumidor para suas obras, em suma, as chances de se notabilizarem e se profissionalizarem como artistas eram muito maiores. Vale notar que no Brasil, onde não havia um mercado artístico paralelo à Academia sólido como na França, participar da ENBA era ainda mais fundamental para as artistas do que para as suas companheiras européias, isso porque, aqui, a instituição não apenas centralizava os mecanismos pedagógicos já apontados, como também constituía um espaço central para a consagração das carreiras. O pleno ingresso no sistema, sobretudo o sucesso obtido nas exposições, era um importante capital para viabilizar-se como artista; “profissão” bastante difícil em um país em que eram poucos os mecenas, raros os colecionadores e escassas as encomendas públicas.

Além do Liceu, já em meados do século XIX alguns artistas forneciam aulas particulares para os amantes das artes. Isso possibilitou que, mesmo antes da abertura da ENBA para as mulheres, 37 artistas tenham participado das exposições gerais. Nos catálogos das mostras figuram ao lado do nome das artistas, as alcunhas de seus professores, entre eles contam-se: Ângelo Agostini, Agostinho José da Mota, Julio Mill, José dos Reis Carvalho e Nicolao Facchinetti.17 É importante ressaltar que a importância do ingresso na Academia incluía, mas também transcendia, as questões ligadas ao aprendizado do ofício. Participar da Escola era ainda um

Gostaria de concluir apontando alguns limites e contradições da nossa República, particularmente 76

As mulheres na Escola Nacional de Belas Artes

no que tange a uma suposta superação das desigualdades de gênero. Como já foi dito, a Academia abriu suas portas para as mulheres seguindo os sopros de renovação deflagrados com a República. Entre 1890 e 1915, a Escola foi dirigida por uma pessoa, o escultor Rodolfo Bernardelli que, nesse sentido seria uma espécie de “patrono” da causa feminina. Entretanto, ele e seu irmão, Henrique, professor de pintura na escola (inclusive do ateliê feminino), inauguraram um ateliê privado no bairro de Copacabana que foi, a época, um verdadeiro sucesso.

Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas (18841922), São Paulo, FFLCH-USP, 2004. 2 Doutora em Sociologia pela USP. Docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, USP. Email: [email protected]. 3 NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women artists?. Art and Sexual Politics. New York: Macmillan Publishinbg Co, 1971. 4 Uma análise mais aprofundada sobre o ingresso das mulheres na Academia durante o Antigo Regime é feita por SHERIFF, Mary. The Exceptional Woman: Elisabeth Vigée-Lebrun and the Cultural Politics of Art. Chicago/ London: The University of Chicago Press, 1996. Sobre o modo com que a Revolução Francesa limitou os espaços oficiais de formação para as artistas, consultar: SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. O corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias do século XIX, ArtCultura, v.9, nº14, jan-jun 2007. 5 GARB, Tamar. Sisters of the Brush. Women’s Artistic Culture in Late Nineteenth-Century Paris. New Havens/ London: Yale University Press, 1994. 6 No original: “que l´Ecole soit ouverte aux femmes dès la rentrée prochaine, non pas em créant de nouveaux ateliers, mais em accordant aux femmes le droit de compter pour une fraction dans le chiffre des admissions annuelles, réservées jusquá ce jour aux hommes et de placer ce groupe de femmes admises, sous la direction d´um professeur attaché à l´École et dans um atelier (...) separé des autres”. SAUER, Marina. L´Entrée des Femmes à l´Ècole des Beaux-Arts, 1880-1923. Paris : ESNBA, 1990, p. 16. 7 No original: “[...]aux jeunes filles en commun avex des jeunes gens qui ont jusqu’à présent affecté de vivre avec une extrême liberté, inconciliable avec le contact des femmes”. SAUER, op.cit., p.18. 8 No original: “Il était question de rattacher l´Académie des femmes à l´Académie des Beaux-Arts. Déjà si l´on considère les locaux c´est impossible; sans compter que les motivations des artistes masculins qui se vouent à l´art sont en général différentes de celles des dames. Il y a cent ans les jeunes filles devaient savoir coudre et tricoter; maintenant ce sont des machines qui s´en chargent; mais jadis cela occupait les dames. Tout naturellement elles veulent également exercer une activité aujourd´hui et se jettent donc fréquemment sur l´art. Même si c´est vraiment un projet sérieux pour 10% d´entre elles, pour 90% ce n´est qu´un passe-temps jusqu´à ce qu´un heureux mari vienne les enlever à l´art”. Citado por SAUER, op cit, p. 22. 9 Até então, o decreto 7247, de 1879, previa as inscrições femininas apenas para uma faculdade: a de medicina (que incluía a formação em obstetrícia, uma carreira quase exclusivamente “feminina”), com isso as mulheres estavam excluídas de outras profissões, como a engenharia e o direito. Consultar Colleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil, 1892. Em trabalho anterior, Miriam Andrea de Oliveira, já havia apontado a importância desse dispositivo para o ingresso das artistas mulheres brasileiras na instituição, sem deter-se, entretanto, no modo com que entraram e no tipo de formação a que tiveram acesso. OLIVEIRA, Miriam A. As pintoras das Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes na Primeira República. 180 anos de Escola de Bellas Artes. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. 10 Sobre a trajetória de Julieta de França consultar: SIMIONI, Ana Paula C. Souvenir de ma carrière artistique: uma

Angione Costa em A Inquietação das Abelhas acentuou a composição majoritariamente feminina de seu público: “estão ali reunidos os nomes femininos mais brilhantes do Rio de Janeiro. Artistas por temperamento, aquelas moças procuram fazer desenvolver, sob a direção do mestre famoso, os brotos incipientes do gênio19”. A atuação dos Bernardelli traz uma clara divisão: lecionavam gratuitamente na instituição pública especialmente para uma clientela masculina e, em sua escola privada, cobravam para satisfazer os desejos de uma clientela feminina. Exemplo das idiossincrasias que tanto atordoaram o crítico Gonzaga Duque 20 . Os irmãos, ao invés de abraçarem a causa de ampliação da educação pública para mulheres, que poderia casar bem com os tempos republicanos, optaram por inaugurar o mais afamado ateliê particular da época. Como homens de Estado reconheciam a Academia como um espaço “público” nas várias acepções do termo, sinônimo de oficial, estatal, gratuito e, ainda que apenas teoricamente, de acesso universal sem discriminação de classe, gênero ou raça. Mas, paralelamente, construíram um ambiente privado em vários sentidos: pago, doméstico, não oficial e, não por um acaso, aquele ambiente era quase exclusivamente feminino. A República, tanto na França quanto no Brasil, trouxe, no que tange às mulheres, muitas frustrações. Tanto lá quanto aqui as diferenças de gênero não cessaram de existir, antes foram reinventadas; as desigualdades foram modernizadas21. Desigualdades que perpassam a história da arte brasileira até o presente, evidenciando-se em suas lacunas, dentre elas, a do desconhecimento acerca das trajetórias e das obras daquelas artistas mulheres atuantes ao longo do século XIX e inícios do XX. Notas 1

O presente texto é uma versão bastante resumida do segundo capítulo de minha tese de doutorado (Espaços de formação artística para mulheres no Brasil), intitulada:

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autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira. Anais do Museu Paulista. História e Cultura Material, São Paulo, vol. 15, nº1, Jun. 2007, pp.249-278. 11 Livros de Matrícula no Curso Geral e de Pintura (18901894). Museu Dom João VI, Rio de Janeiro. 12 O relatório referente ao ano de 1892 não menciona a existência de classes distintas, mas bem ao contrário, faz ver que o excesso de alunos em uma única sala, como a classe de desenho figurado, demandava esforço desumano por parte do professor. Escreve o diretor: “A freqüência foi regular em todas as aulas. Porém a de desenho figurado, a mais importante das aulas técnicas do curso geral, continuou a ser a mais concorrida. O numero de alunos elevou-se a 72, ocasionando dificuldade ao respectivo professor, que não pode dispensar igualmente a cada um deles seus conselhos e direções. Torna-se, pois, indispensável conceder a esse professor um adjunto para o auxiliar nos trabalhos de sua aula [...]” . Pasta IE 7111 [Arquivo Nacional]. 13 Segundo o relatório naquele ano foram 98 os alunos inscritos, apenas 8 matriculados e os outros de livrefreqüência, destes 20 eram do sexo feminino. Pasta IE7 114 [A N] 14 GARB, Tamar. L´Art Féminin: The Formation of a Critical Category in Late Nineteenth-Century France. Art History. London, nº 1, março 1989, vol.12.

O Jornal do Commercio, ao felicitar a abertura das aulas para o sexo feminino evidenciava o caráter técnico voltado a um público humilde que estava na base do projeto: “(...) Das aulas depende, talvez, uma revolução pacífica que há de transformar completamente a face moral da nossa sociedade, influindo poderosamente nos costumes da família. A mulher deixará de ser um encargo pesado para ser um auxílio eficaz do marido pobre, uma companheira do trabalho, uma sócia na produção de recursos do casal”. 16 Ver DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. Artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1989, p. 63. 17 Para maiores informações consultar SIMIONI (2004), op. cit, apêndice 1 (Campo das Mulheres). 18 Sobre o conceito de capital consultar BOURDIEU, Pierre. The forms of capital. J. G. Richardson (org.), Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. Nova York: Greenwood, 1985, pp. 241-58. 19 COSTA, Angyone. A Inquietação das Abelhas. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927, p. 29. 20 ESTRADA, Luís Gonzaga Duque. O aranheiro da Escola. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typografia Benedicto de Souza, 1929. 21 Uma interessante reflexão nessa direção pode ser encontrada em: BESSE, Susan. Modernizando a desigualdade. Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, 1914-1940. São Paulo: EDUSP, 1999.

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Uma grande discussão divide pesquisadores sobre a obra de Cândido Portinari, visto por uns, como um pintor moderno e acadêmico por outros. A aproximação com Picasso é apontada como algo menor, que contamina a arte de Portinari, mas também é exaltada como a marca de um passo decisivo em direção à modernidade. Há os que o rotulam de “Pintor Comunista”, mas há também os que afirmam ser ele o “Pintor Oficial” da República Nova, na antinomia que se aprofunda entre críticos, pesquisadores e historiadores da arte, quando o objeto é a produção artística de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira. Filho de emigrantes italianos da região do Vêneto, nascido numa fazenda de café nas imediações de Brodósqui, em 1903, Portinari foi o segundo de uma prole de doze filhos e passou sua infância nas terras férteis de São Paulo, junto aos acampamentos de nordestinos que chegavam à aldeia para o trabalho na lavoura de café. Não teve o benefício de receber uma educação que lhe possibilitasse oportunidades promissoras, não chegando a completar o curso primário, indo até a terceira série com as deficiências naturais do ensino no interior do Brasil na década de 1910. Sua sensibilidade artística, porém, levou-o a desenhar desde muito cedo. a formação acadêmica de portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira

Em 1912 trabalha como ajudante dos pintores de “spolvero”, contratados para pintar cenas religiosas na Igreja local, onde Portinari era coroinha. “Fez até estrelas no teto da Igreja de Santo Antonio. Uma experiência inesquecível; pintá-las, lá no alto, deu-lhe a idéia inicial de uma ingênua cosmogonia” 2 . No ano seguinte auxiliaria os “frentistas”, artesãos italianos que executavam ornatos em estuque nas fachadas das Igrejas e das casas do interior do Brasil. Podemos afirmar que foi esta a iniciação de Candinho, como era chamado, por sua família, o menino de dez anos que se tornaria um marco na pintura brasileira. Desta época é também um desenho a lápis, o retrato de Carlos Gomes, possível cópia de outra obra, mas que confirma a destreza anunciadora de sua arte.

angela ancora da luz 1

Em 1918, já no Rio de Janeiro, matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes, passando, a partir de 1919, a freqüentar as classes de Lucílio de Albuquerque, Rodolfo Amoedo, Chambelland e Batista da Costa. O atelier livre, aonde se dá seu aprendizado, propiciava ao estudante que fosse aceito, a possibilidade de freqüentar as classes sob a orientação dos grandes mestres da Escola Nacional de Belas Artes. Uma grande parte de nossos artistas exponenciais foram alunos de cursos livres, o que, sem dúvida alguma, era uma oportunidade sem precedentes para os estudantes de arte.

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especialmente a feminina, sempre o seduzira e, como observa Luciano Migliaccio, seu Estudo de Mulher pode ser considerado “o primeiro nu moderno da arte brasileira”.5 Assim a formação de Portinari vai sendo mesclada por um ensino de apuro técnico, porém ministrado por mestres que já não estavam mais engessados aos extremos rigores acadêmicos.

Como se deu, então, a formação acadêmica de Portinari? Com Lucílio de Albuquerque cursa as aulas de Desenho Figurado, cuja importância não se pode desconhecer. Lucílio praticou diferentes gêneros de pintura, mas é com a temática paisagística e como retratista que se destacará. Tais gêneros exigem o domínio da figura humana que sempre se impôs como uma necessidade fundamental, principalmente para a pintura histórica, tão significativa na obra do artista. Lucílio desenvolve o gosto pelo desenho da figura humana e Portinari, ávido pelo aprendizado, absorve, como terra seca, a irrigação segura do desenho de Lucílio. Mas, paralelamente ao domínio da regra e da norma, que nortearam o ensino do mestre, uma certa liberdade de expressão já se podia notar no professor e, mais ainda, a busca da idéia como fundamento da própria pintura, o que fica patente em sua afirmação: “Não tenho propriamente um gênero predileto. Pinto com o mesmo entusiasmo a marinha e a paisagem. Todavia confesso-lhe que fico mais satisfeito toda vez que realizo um quadro de idéia, que faça pensar”.3

Chambelland também aceitou Portinari em sua classe. Ele foi um pintor que assumiu sua inserção entre os modernos, defendendo a evolução contínua do artista, o ajustamento ao seu tempo, ao espírito novo no advento da modernidade, conforme encontramos registrado no depoimento assinado por Angyone Costa: O pintor moderno precisa reproduzir o rythmo da vida que é o movimento eterno. Para conseguil-o, tem de jogar com outros elementos, novas tonalidades, novas perspectivas. Não é possível pintar a natureza dentro de paredes, apenas pelo que a nossa imaginação possa crear. Precisamos ver, sentir, ao contacto de árvores e águas. O pintor moderno tem a obrigação de dar vida à paysagem, ensolando-a, illuminando-a, fazendo-a vibrar.6

Aos poucos Lucílio vai se afastando da concepção mais rigorosa da forma, utilizando a espátula para criar faturas mais expressivas, enquanto sua paleta se ilumina, possivelmente pela procura da pintura plein-air, que o conduzirá às poéticas impressionistas. A orientação de um mestre que, na Academia, se permite buscar novas diretrizes para sua arte foi fundamental para Portinari.

Apesar desta visão plurívoca de Chambelland, o domínio do desenho nunca foi abandonado, sendo reconhecido por seus pares, conforme salienta Victor de Miranda Ribeiro, Docente de Anatomia Artística da ENBA, no esboço biográfico que está publicado nos Arquivos de Escola Nacional de Belas Artes. O autor registra “a maestria absoluta” observada em sua prova de concurso para a cátedra de Desenho da ENBA 7 , o que nos permite afirmar que a opção pela pincelada fragmentada e leve, pela cor pura que sinaliza a tendência impressionista, era uma opção poética para reproduzir “o ritmo da vida”.

Com Rodolpho Amoedo não seria diferente. Amoedo era um professor que, apesar do domínio técnico obtido por sua formação acadêmica, renovou seus métodos, abandonando a cópia para despertar a criatividade pela interpretação direta do modelo vivo e da paisagem, conforme salienta Alfredo Galvão, acrescentando: Foi também um precursor, entre nós, do ensino de vários processos de ·pintura, ·da ·preocupação ·do conhecimento dos materiais usados pelo pintor e do estudo ·dos ·meios ·de ·conservação e ·restauração de quadros. Estudioso, culto e erudito, procurou sempre melhorar sua capacidade de ensino pelo aprimoramento de sua sabedoria sobre estética e técnica da arte. Não teve dúvidas em seguir um curso de química para adquirir bases sólidas no campo dessa ciência, quando aplicada a cores, aos vernizes e demais produtos indispensáveis ao pintor.4

Finalmente, com Batista da Costa, o pintor cuja inclinação artística foi descoberta aos doze anos, no Asilo dos Meninos Desvalidos, idade em que ingressa na Escola Nacional de Belas Artes, o apuro técnico se desenvolve. Paisagista por excelência, Batista da Costa se torna um nome de referência na Pintura Brasileira, vindo a se tornar professor e até diretor da ENBA. Mesmo sem aceitar o Modernismo, ele é sensível a alunos como Portinari, que já sinalizava sua busca por uma pintura plurívoca, marcada pela exteriorização de sentimentos e, conseqüentemente, de concepção mais aberta.

Amoedo vai aos poucos subvertendo os códigos da tradição, sem abandonar a preocupação pela pesquisa e pelo apuro técnico. A figura humana, 82

A formação acadêmica de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira

do quadro e determina o horário noturno do baile. Há um certo barroquismo nos contrastes entre a luz, que revela ou dissolve as figuras, e as sombras que se constituem em massa contínua, no fundo, no chão, nas calças dos homens e, ainda, no sanfoneiro. Aqui a luz destaca elementos formais da sanfona e inunda a face do músico revelandolhe o prazer de tocar. Há o negro, de roupa branca, que observa a cena, e o homem de cachimbo, na extrema direita da tela, por onde se dá o corte fotográfico da pintura. A composição não tem o rigor da horizontalidade, mas induz ao equilíbrio. O próprio Portinari observava que o trabalho fugia aos parâmetros acadêmicos,“ele o descrevia como um quadro expressionista, ou melhor, apresentando traços expressionistas nas diversas figuras caipiras do vilarejo paulista.”8 O trabalho foi adquirido por um colecionador do Rio de Janeiro pela quantia de 200 mil réis, o que, à época representava um valor expressivo, sobretudo considerando-se que Portinari ainda não era conhecido.

A formação de Portinari contribuiu para a definição de sua procura. Queria pintar com o sentimento, conforme afirmara tantas vezes, mas sem abandonar o figurativismo. Queria uma paleta que pudesse transmitir as cores de seu povoado, algo que já não estava mais diante de seus olhos, mas dentro de sua alma, na memória de sua infância e da sociedade sofrida que conhecera nos acampamentos nordestinos. Em tudo, o que sustentava o homem, a lavoura, as brincadeiras das crianças, os espantalhos, enfim, a rica tipologia que arquivara para sempre em sua imaginação, junto com o cheiro da chuva e o som do tilintar das moedas que os leprosos levavam em suas canecas, tudo o que dava sentido a vida, o fundamento de todos os elementos era apenas um: a terra. Portinari se abre para buscar a modernidade. Na década de vinte, exatamente em 1922, a Semana de Arte Moderna, em São Paulo proclamava a aproximação de um novo tempo, mas Portinari estava no Rio de Janeiro e a realidade carioca era outra. Não tínhamos uma economia alimentada pelos Barões do Café. Nossos artistas vinham de uma outra esfera social, como Batista da Costa, Portinari e tantos mais. As Exposições Gerais, que se tornariam os Salões Nacionais de Belas Artes, conferiam prêmios de viagem ao exterior. Era a oportunidade da viagem de estudo à Europa. Havia também o envio de pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes, que já vinha ocorrendo, regularmente, desde o tempo da Academia Imperial, quando o Prêmio de Viagem ao exterior foi regulamentado, oito anos após o retorno de Araújo Porto-alegre ao Brasil. Assim, a realidade de Portinari não era o que estava acontecendo em São Paulo, mas o que poderia ocorrer com ele se ganhasse a premiação maior.

É importante observar que a formação acadêmica de Portinari deu-lhe o domínio técnico do desenho e da pintura, permitindo-lhe realizar retratos por encomenda, o que lhe propiciou o primeiro sustento no início da carreira. Mas vale lembrar que, mesmo no contexto da regra e da norma, a tradição nunca foi seguida cegamente, pois Portinari se alinharia aos grandes trágicos da poética expressionista. Em maio de 1925 envia dois retratos para o Salão da Primavera e concede sua primeira entrevista ao Jornal do Brasil, onde, ele próprio, se revela: “O alvo da minha pintura é o sentimento. Para mim, a técnica é meramente um meio. Porém um meio indispensável”.9 No ano seguinte concorre, pela primeira vez, ao Prêmio de Viagem da Escola Nacional de Belas Artes com dois retratos que envia para a grande mostra, mas não é contemplado. Continua insistindo, pois o desejo de conhecer a Europa, mais precisamente Paris, alimentava sua inspiração e consolidava seus objetivos. Com a maturidade que vai adquirindo nas primeiras exposições, Portinari percebe que deverá visitar um pouco mais, os cânones acadêmicos e, é neste espírito, que envia para o salão de 1928 três retratos, um dos quais “Olegário Mariano com o fardão da Academia” que lhe conferirá o prêmio ambicionado de viagem ao exterior para se aprimorar.

Em novembro de 1922, com dezenove anos, Portinari recebe Menção Honrosa na exposição oficial daquele ano com o retrato do escultor Paulo Mazzucchelli. No ano seguinte faz jus à Medalha de Bronze, com outro retrato e, finalmente, envia sete retratos e a tela “O Baile na Roça” para o salão de 1924. Os retratos foram aceitos, mas “O Baile na Roça” fugia aos padrões da tradicional mostra e não logrou a mesma aceitação. “O Baile na Roça”, óleo sobre tela, possui um fundo de pinceladas que se diluem, dissolvendo levemente as figuras que dançam com seus pares. Recorta-se o primeiro plano mais definido, prevalecendo a liberdade da mão que contraria as normas da pintura acadêmica. Além disso, a cor aquece a atmosfera do baile, iluminando os casais. É uma luz de “fogo” que incendeia o foco principal

A composição foi estudada meticulosamente por Portinari. A esguia figura do poeta está centralizada. No fundo há uma passagem de sépias para ocres, que permitem o recorte do retrato de Olegário, com uma leve conotação de dândi. Os cabelos estão levemente desalinhados, mas o fardão é impecável. 83

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poéticas; a fase marron, o realismo monumental. Em 1935, pinta a tela “O Café”, que se tornaria emblemática ao conferir identidade ao seu autor. Portinari tornava-se cada vez mais conhecido, mas a fronteira de sua tradição e modernidade dava margem aos questionamentos que ainda hoje são feitos.

O olhar fixo no observador, o rosto sereno e o colorido da face, onde a luz nos permite acompanhar o preciso volume do rosto alongado atende aos padrões da arte unívoca. Para Manuel Bandeira, a concessão que o artista fez ao academicismo, retrocedendo aos procedimentos que já havia abandonado, conferiu-lhe o prêmio, mas resultara numa obra inferior em relação às que a antecederam.Ele é taxativo ao analisar:

Vamos procurar refletir sobre este par antitético, acadêmico e moderno, tomando como objeto de reflexão a própria tela “O Café”. A favor da tradição podemos observar a composição, com os elementos bem marcados, preenchendo a tela equilibradamente, sem deixar “vazios”. O contraponto da colona, à esquerda com o lavrador à direita, tendo, entre eles, os trabalhadores que levam em suas cabeças as sacas do grão, e que estão dispostos de modo a ressaltar o tema, o café. Percebe-se, entretanto, que Portinari procura solucionar o problema da espacialidade, romper com o cubo perspéctico, procurar trabalhar a tela em sua planaridade, mas isto não acontece. Para buscar esta solução, Portinari eleva a linha do horizonte e a coloca fora da tela, acima da parte superior do quadro. É interessante cotejarmos esta obra com outra, a de Paolo Ucello, “A Batalha de San Romano”, exemplo clássico de uma pintura renascentista, quando se buscava construir o espaço tridimensional, pesquisa que teve em Ucello um de seus grandes teóricos. Nesta obra o pintor também eleva a linha do horizonte e a deixa escapar para além do quadro, mas não para romper com o espaço, e sim para procurar equacioná-lo, construindo-o tridimensionalmente. Portinari queria romper com este espaço, que Ucello havia trabalhado em sua construção. Assim, partindo de pólos opostos eles se aproximam, conforme observamos no preenchimento de toda a tela, nos ritmos marcados pela lanças da Batalha de San Romano e nos pés de café com os trabalhadores, que demarcam o terreno de onde surgem.

Já concorreu mais de uma vez ao Prêmio de Viagem do Salão, mas foi sempre prejudicado pelas tendências modernizantes de sua técnica. Desta vez fez maiores concessões ao espírito dominante na Escola, do que resultou apresentar trabalhos inferiores aos dos outros anos: mas isto valeu-lhe o prêmio.10 Mas não foi apenas o cobiçado prêmio que coroou seus esforços, pois logo a seguir faria sua primeira exposição individual, em 1929, seguindo depois para Europa, a fim de usufruir a bolsa. Seu desejo era observar, saturar seus olhos e alma de tudo que se fazia na França, o grande centro de produção artística de seu tempo. Portinari oscilava entre a tradição dos antigos e a revolução dos modernos. Em carta para Olegário Mariano ele confidencia que cada vez mais ficava patente a supremacia dos antigos, mas logo vai acrescentar que existiam modernos esplêndidos. Em visita a Londres surpreende-se com os museus que percorre durante o dia, e com os teatros, que freqüenta a noite, sempre que possível. Questionase sobre os grandes pintores, conforme sua avaliação, como Giotto. A questão era saber o que o teria feito grande se, fatalmente, Giotto não teria visitado museus nem assistido as peças de teatro. Portinari percebe a importância da vida destes artistas no seio do seu povo e desperta nele o desejo de viver de volta com a sua gente, enquanto se encontra com sua própria interioridade. Foram poucos os trabalhos realizados durante sua estadia na Europa, o que lhe ocasionou severas críticas no seio da Escola Nacional de Belas Artes, e nas considerações dos colegas sobre a sua produção. No entanto, após o seu retorno, já casado com a jovem uruguaia que conhecera em Paris, Maria Martinelli, ele pinta compulsivamente, na ânsia de devolver em cores o que a sensibilidade absorvera nas paredes dos museus e nos ateliês que conhecera. Participa do Salão Revolucionário de 1931, organizado por Lúcio Costa, do qual foi membro da comissão organizadora, ao lado de Anita Malfatti, Celso Antonio, Manoel Bandeira e do próprio diretor da ENBA. Portinari se insere entre os modernos e era aceito como um deles. Inicia uma fase que o identificará no contexto de suas

A favor da modernidade está a morfologia trágica do pintor brasileiro. Os corpos escultóricos, os pés ciclópicos e os braços agigantados dos heróis da terra, os plantadores de café. Um realismo monumental que foge aos parâmetros da Academia e proclama a liberdade da forma. É plausível admitirmos que Portinari nunca rompeu com a terra e, conseqüentemente, não chegou à pintura planar, espelhada. Este é o traço da tradição que confunde tantos estudiosos. A tridimensionalidade preservada testifica a relação do pintor com a terra. Nos afrescos que realizaria, como A Entrada, A catequese, O garimpo e os não menos famosos murais do Salão de Audiências do Palácio Gustavo Capanema (MEC), Pau Brasil, Cana de açúcar, 84

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Gado, Algodão, Erva mate, Café, Cacau, Ouro, Fumo, Ferro, Borracha e Carnaúba, todos, sem exceção têm como ponto comum a riqueza do solo brasileiro, a economia que circula através da terra, passando pelo braço do trabalhador. Portinari constrói a nação sobre o alicerce da própria terra. Não seria possível, ao pintor, romper com esta identidade que o ligava à Brodósqui, às plantações de café e aos Retirantes nordestinos. Ao preservála ele não poderá permitir a desconstrução do espaço, pois esta eliminaria a base de sustentação de todo o seu ideário, ou seja, a terra.

O pintor expressionista recolhe de seu interior o próprio mundo que é construído a partir das relações humanas que estabelecemos. Como encontramos no manifesto literário de Kasimir Edschmidt, a mão do artista expressionista atravessa os fatos para encontrar o que existe além deles, pois a realidade só acontece no interior do homem, não mais no mundo externo, na grande paisagem que olhos físicos possam contemplar. O artista torna-se um profeta, o arauto de todos os oprimidos, revelando a verdade, expondo o homem na sua humanidade.

A terra velha e enferma sorve/ O escasso líquido...em Alguns trechos o solo estava morto/ Homens simples, homens máquinas/Dão tudo e morrem para mantê-las / vivas. Nuvens amigas de vez em/ quando os ajudavam. Há semelhança/ Entre eles. Aquele lavrador parecia/ O velho pé de café, outro escalavrado como a terra da Fazenda/ pobres criaturas, pobres lavouras/ Um dia plantaremos sementes desta gente de paz. 11

A força do expressionismo manifestou-se com tanto vigor no traço e na morfologia trágica de Portinari, que o libertou de uma outra força, não menos significativa, que fora a influência de Picasso em sua obra, como se comprova na Série Bíblica realizada em 1943-1944. Ainda hoje, o rótulo de “Picasso brasileiro” para identificar nosso artista é lembrado por alguns, o que, efetivamente é improcedente. Se a influência cubista aconteceu, ela se deu pelo viés de Guernica, ou seja, já identificada com o expressionismo, como se observa nos painéis: Jó, O Massacre dos inocentes, A ressurreição de Lázaro, O profeta, O sacrifício de Abrahão, As trombetas de Jericó e O pranto de Jeremias, pertencentes ao acervo de Assis Chateaubriand, hoje no MASP.

A relação de Portinari com a terra é tão importante que ele a humaniza, equacionando seus termos na igualdade que estabelece entre lavradores e pés de café. O próprio artista se via como tal. “Por que não caminho? Úmido e/ escalavrado, gosto de terra dentro de mim/ apagado e destruído”.12

O próprio Portinari não ocultava as influências sofridas ao longo de sua carreira, como o impacto da obra de Goya, outro artista de índole expressionista e a tragicidade de Mathias Grünewald, pintor do Renascimento alemão. O interessante é que, mesmo nas obras que compõem a Série Bíblica, de aproximação cubista e morfologia picassiana, o chão não foi anulado. Portinari cria uma base de sustentação para suas imagens, mantendo a referência da terra. O mesmo se pode verificar numa outra aproximação, esta, possivelmente a menos discutida e a mais interessante, segundo nossa observação. Trata-se da influência de Mathias Grünewald, que teve sua obra visitada por Portinari através de reproduções em livros, ao longo de sua vida, e para quem Portinari vai dedicar dois poemas, tamanha a admiração que nutria pelo pintor alemão. Vamos nos deter na mais representativa de suas obras, o Retábulo Isenheim em Colmar, na Alsacia. Três meses antes de sua morte Portinari, desejou profundamente conhecer a pintura, chegando a viajar para a Europa com este propósito, pois queria vê-la, mesmo com a visão escurecida pela doença. A Igreja estava fechada e Portinari não conseguiu entrar, escrevendo ali mesmo, no dia 1 de

Sua medida é a terra e sua preocupação socialista, visível na motivação de sua pintura, não iria acontecer como conseqüência de seu engajamento político, que se confirma na filiação ao Partido Comunista, nem se daria pelo conhecimento da ideologia de Marx e Lênin. Conforme observou Antonio Bento, a aproximação do artista com as causas socialistas penetrou em sua alma “pela propaganda de Prestes saído da prisão pregando a necessidade de distribuir terras aos camponeses miseráveis”.13 A justa distribuição de terras era o escopo de sua ideologia, distante de qualquer teorização ou princípio filosófico. Em 1946 Portinari expõe na Galeria Charpentier, em Paris, a série dos Retirantes, que se tornaria obra de referência da Pintura Moderna Brasileira. Ele compõe os tipos de acordo com as imagens fixadas em sua memória. As famílias nordestinas, dos grupos que chegavam em São Paulo para o trabalho na lavoura, reunidas no mesmo destino trágico sobre o chão escaldante. Portinari lera, também, Vidas Secas, de Graciliano dos Ramos, o que, possivelmente o tenha ajudado a criar a atmosfera trágica da terra nordestina, no contexto de uma poética expressionista. 85

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que ele diminuísse para que o Messias crescesse. A teatralidade da cena, com a mão de João Batista apontando para a cruz, testificando o cordeiro que ele viera anunciar, obriga o olho do observador a se fixar no gesto, criando o equilíbrio, apesar de não existir a simetria absoluta.

novembro de 1961, seu recado poético ao colega de tantos séculos. Grünewald: Tanto te conheço/ tanto te vi e não/ te vi. Viajei mares/ Enfrentei tempestades/ calor e frio. A maldição/ está comigo. Conheces-a/ breve estarei contigo/ já não há espaço/ o fogo, as espadas de aço/ a loucura e o lodo/ cobrem as flores/ as vozes da brisa sumiram /o bem é teu, permanecerá/ malditos eles donos do mal/ não existirão/ Ah, mesmo cego, olharei teus olhos. 14

Em Portinari, muitos desses recursos podem ser observados. Na obra “Jesus entre os doutores”, de 1957, o eixo vertical da obra passa pelas mãos do Cristo entre os doutores. Aqui, também o grupo de doutores à esquerda, composto de cinco elementos, tem um peso maior que o casal, Maria e José, à direita, porém, a aura branca que envolve a cabeça de Jesus, perceptualmente continua naquela que envolve Maria, deslocando o olhar do fruidor para estes pontos luminosos e, assim promove o equilíbrio, apesar da assimetria.

Vamos tomar o retábulo de Isenheim para a reflexão necessária sobre sua importância na construção da pintura de Portinari, procurando identificar as aproximações que o levaram a buscá-lo a ponto de “viajar mares” para ver a obra e, na frustração do impedimento, desabafar: “tanto te conheço, tanto te vi e não te vi!”

Na gravura dos Retirantes, obra de 1939, esta aproximação já se verificava. Aqui, o eixo vertical da composição passa pela figura central da retirante de longa veste e pés descalços. A face é trágica, marcada pela máscara do sofrimento. A luz recorta a vestimenta como se fosse um vento soprando da direita para a esquerda. Existem três elementos no lado esquerdo e dois no direito, sendo que estes foram enfatizados por esta luz diagonal, que atrai o olhar do observador.

O retábulo foi pintado, possivelmente entre 1513 e 1515, em atendimento à encomenda da Ordem de Santo Antonio para a Igreja do Monastério da mesma Ordem, que possuía um hospital cuja finalidade era o tratamento das doenças de pele, principalmente as causadas pela lepra e pela sífilis. Assim, Grünewald deveria pintar a cena da crucificação, na parte central do tríptico, tomando o corpo de Cristo como objeto da materialização de todas as escaras e chagas que causavam sofrimento. O tratamento começava diante do altar, na materialização da doença, sendo levada através do corpo do Senhor na cruz. A cena é trágica. A enorme cruz mostra-nos o travessão vertical mais escurecido, possivelmente de cedro, que era utilizado para tratar a lepra, como assegura Albert Elsen.15 O contraponto de João Batista, à direita da cruz e João Evangelista, o discípulo amado, junto com Maria, mãe do Senhor e Maria Madalena, todos à esquerda, é colocado de modo a enfatizar valores simbólicos e até hierarquizados, como comprova o tamanho de Maria Madalena em relação a João, por exemplo. A cruz está fincada no chão, no centro da pintura, permitindo a visualização da terra escurecida, ao fundo, em direção da linha do horizonte. O espaço é renascentista, como também a composição, com o equilíbrio das figuras. Apesar de haver um peso maior à esquerda, pelo conjunto de pessoas em relação à figura solitária de João Batista, à direita, existe uma harmonia de elementos na cena, pois o artista coloca o cordeiro branco com uma pequena cruz aos pés daquele que era conhecido como “a voz que clamava no deserto”, que apontava para o Cristo, afirmando ser necessário

Os Espantalhos de 1940 é, ainda, um outro exemplo entre tantos que poderíamos apresentar. Existe uma referência simbólica ao Gólgota, na composição dos três espantalhos, como crucificados. Dois deles estão à esquerda, em primeiro plano, fincados na terra que se divide numa faixa escura. Para além dela, o outro espantalho, como o “mau ladrão” está separado. Do ponto de vista composicional ele está à direita e ao fundo. Portinari obtém o equilíbrio da obra pelos elementos deste plano posterior, um recorte da paisagem de Brodósqui, em continuidade ao último espantalho. Nesta obra, percebe-se uma impregnação surrealista nos elementos da terra amarelada e luminosa e no céu que cria o limite da curvatura da terra. Em todos os exemplos o espaço cúbico pode ser percebido, o que nos testifica o contexto da tradição, num modelo mais acadêmico. Contudo, a morfologia trágica de Portinari se estabelece nas figuras expressionistas, quer pelo pathos de seus personagens, quer pelos corpos opilentos ou pelos pés ciclópicos de seus retirantes que teimam em viver. Neste aspecto, elas se inscrevem nas poéticas vanguardistas. Da mesma forma que Grünewald estabelece sua composição tirando partido de compensações de pesos para criar o 86

A formação acadêmica de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira

mundo é conflitante e sua imitação resultará na tragédia. Portinari busca seus heróis na memória do seu povoado, e reconstrói, com sua imaginação, a verdade que procura de acordo com o pensamento social próprio da cidade que é a matéria trágica. Podemos compreender melhor, partindo desta reflexão, a presença da terra em sua obra: dos trabalhadores que a lavram, das crianças que jogam bola, dos espantalhos que nela se enraízam como árvores, dos retirantes que vinham com suas trouxas e embrulhos, enfim, Portinari sempre esteve na presença deste homem heróico, vivendo o momento de sua queda, da desdita, agindo sobre o mundo para transformá-lo, caminhando na terra para pagar a diké, justiça divina que poderia suprimir o conflito. Então observamos que o ensino tradicional que plasmou a sua formação acadêmica no desenho e na pintura, não pode frear o ímpeto de liberdade que o levou a construção de uma humanidade alquebrada e desvalida que se aproximava da realidade social de nosso país, pois, no novo quadro trágico, o herói deixara de ser o modelo, o cânone, para tornar-se um problema para si e para a sociedade. Como pintor expressionista ele não retrata o mundo exterior, mas o atravessa para alcançar o que está em seu próprio interior, na tortura das formas, na deformação nervosa de suas figuras de pés ciclópicos assentes sobre a terra. O espaço renascentista, em sintonia com a tradição acadêmica de seu aprendizado, abriga a morfologia trágica dos tipos mais diversos de nossa brasilidade, fazendo de Portinari o artista moderno da tradição clássica, ou, o mais representativo acadêmico da modernidade brasileira.

equilíbrio, Portinari também trabalha criando tais compensações e com o mesmo objetivo. Se no artista alemão o corpo do Cristo foi o suporte da maldição, nas múltiplas chagas que deformaram seu físico, aproximando sua pintura do expressionismo como categoria universal, também em nosso artista, encontramos as deformações, os ventres que se avolumam pelas verminoses contraídas e os corpos que são devassados numa visão de raio X. Mesmo cobertos de uns panos sujos e rasgados eles remetem para o esqueleto da figura, para o esfolamento da carne. Mas se a liberdade de Portinari levou-o ao encontro do expressionismo, por outro lado, fiel a terra, ele não eliminou as linhas de fuga e manteve o seu olhar paralelo à linha do horizonte, conforme se observa nos estudos preparatórios que realizou para suas pinturas, garantindo a presença do chão e, com ele o espaço perspéctico. Há uma dupla tensão em sua obra. Por um lado ele buscou o espaço cúbico, em conformidade com as regras acadêmicas, mas por outro rompeu com estas mesmas normas em relação ao tratamento canônico da figura humana. Perseguiu o equilíbrio da composição, mas através da tortura das formas. Trabalhou com a memória e se inseriu no rol dos grandes trágicos da pintura brasileira. Creio que este é o ponto que o identifica como artista moderno. A preocupação social, que se observa em sua temática, exaltando os grupos menos favorecidos da nação que se construía, não o impediu de aceitar o acolhimento de Capanema, na era Vargas, para se tornar o pintor oficial da República Nova. Esta que, por sua vez, se opunha aos comunistas dos quais Portinari era um deles. Creio que a identidade de Portinari não deva ser procurada nestes trajetos, por demais esgotados e superficiais, antes deveríamos voltar ao ponto da crítica de Germain Bazin, em 1946, que me parece ter vislumbrado com muita sensibilidade a poética de Portinari.

Referências bibliográficas BARATA, Mário et al. Arquivos. Escola Nacional de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil. 1958. BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial Ltda. 2003 CAMPOFIORITO, Quirino et al. Arquivos. Escola Nacional de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil. 1961. ELSEN, Albert. Los propósitos dela arte. Madrid: Aguilar, S. A Ediciones. 1971 GALVÃO, Alfredo et al. Arquivos. Escola Nacional de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil. 1957. LUZ, Angela Ancora da. A fabulação trágica de Portinari na fase dos Retirantes. Rio de Janeiro:UFRJ-IFCS. ________. Uma breve história dos Salões de Arte - da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama. 2005.

Mas o milagre de Portinari é que tudo nele é verdade, tanto na forma como no fundo. O fato novo de sua arte é a interação do humano num estilo moderno. Se o assunto nos comove, é por ser transmitido numa caligrafia trágica; contrastes veementes de tom, dilaceramentos da linha, seccionamento das formas que, sem respeito pela figura, recompõem uma humanidade alquebrada pela dor.16 Dois pontos são fundamentais para a tragédia: o homem e o mundo. Só podemos compreender o homem no cenário do mundo e este só existe na presença do homem. A ação deste homem no 87

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BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial Ltda. 2003. p.30 3 http://www.pitoresco.com/brasil/lucilio/lucilio.htm (consultado em 17/02/2008) 4 GALVÃO, Alfredo. Arquivos. Escola Nacional de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil. 1957. p.6 5 http://www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm (consultado em 17/02/2008) 6 http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/ artigos_ac_arquivos/rc_entrevista.pdf (consultado em 17/ 02/2008) 7 RIBEIRO,Victor de Miranda. Arquivos. Escola Nacional de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil. 1961. p.140. 8 BENTO, Antonio. op.cit. p. 36 9 http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf (consultado em 18/02/2008) 10 Id. Ibid 11 PORTINARI, Cândido. Poemas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1964. p. 70 12 Id. p. 77-78. 13 BENTO, Antonio - op.cit. p. 299 14 LUZ, Angela Ancora da. A fabulação trágica de Portinari na fase dos Retirantes. Rio de Janeiro:UFRJIFCS. P.51 15 ELSEN, Albert. Los propósitos dela arte. Madrid: Aguilar, S.A Ediciones. 1971. p.60 16 BENTO, Antonio - op.cit. p. 344

PEREIRA, Sonia G. (org.). 180 nos de Escola de Belas Artes. Anais do seminário EBA 180. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ. 1996. ________. 185 anos de Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ. 2001/2002. VALLE, Arthur G. A pintura da Escola nacional de belas Artes na 1ª República (1890-1930): da formação do artista aos seus modos estilísticos. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Rio de Janeiro. Março de 2007. Sites consultados h t t p : / / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i s t a s / ra_migliaccio.htm http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/ artigos_ac_arquivos/rc_entrevista.pdf http://www.pitoresco.com/brasil/lucilio/lucilio.htm http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/ cronobio.pdf Notas 1

Angela Ancora da Luz - Historiadora e Crítica de Arte. Mestrado em Filosofia (Estética) e Doutorado em História (Cultura). Diretora da Escola de Belas Artes da UFRJ.

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Os artistas que não participam ou contrariam o academismo são minorias isoladas antecipadoras de eventos e não protagonistas dos tempos cada vez mais governados pela burguesia de poucos e não iluminados ideais. (Pietro Maria Bardi)1 A transposição dos valores acadêmicos europeus para o Brasil tem sido constante preocupação de especialistas, particularmente, nas áreas artística e histórica, além de objeto e tema de inumeráveis e valiosos estudos e textos, que resultaram de profundas reflexões, análises e pesquisas. Porém, deve-se ponderar que ainda são ausentes estudos específicos sobre a contribuição dos pintores acadêmicos de origem nordestina. Estes artistas teriam alguma participação no cenário artístico nacional? A quais valores estariam ligados? Quais as condições oferecidas a esses pintores no século XIX? E, principalmente, qual o legado atribuído aos pintores acadêmicos nordestinos, atuantes no século XIX? Com a chegada D. João VI em 1808 foram efetivadas profundas mudanças no cenário cultural da colônia. A transferência da corte bragantina para o Brasil contribuiu para que houvesse um desenvolvimento acentuado, pois permitiu a criação de entidades culturais como a Biblioteca Nacional, Teatros, Conservatórios de Música, Liceus e Academia de Arte, favorecendo continuamente a cultura leiga. O Rio de Janeiro tornou-se um centro de atração para artistas e estrangeiros que buscaram a efervescência cultural da corte brasileira.

acadêmicos e isolados - cenário artístico no nordeste brasileiro - século xix dalmo de oliveira souza e silva

Em 1816, o monarca trouxe para o Brasil, pintores e escultores comprometidos com o ideal acadêmico. Ao implantar, uma formação artística padronizada, sustentada pelo ensino prático (aula de desenhos de observação e cópias de moldes) e teórico (geometria, anatomia, perspectiva, história e filosofia), o Academismo configurou-se em um sistema poderoso, que envolveu todo o circuito de arte nacional. Além do ensino, a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro era responsável pela organização de exposições, concursos, prêmios, pinacotecas e coleções, controlando a atividade artística e a fixação rígida de padrões de gosto. Trazido pela Missão Artística Francesa, o arcabouço acadêmico serviu de base para a implantação da proposta das belas-artes. Rompeu com a visão de arte como artesanato, com a idéia de gênio movido pela inspiração divina ou intuição e talento individual. A partir de suas concepções originaram-se normas e regras do ensino, hierarquizando gêneros artísticos (retratos, 89

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

paisagens, naturezas-mortas e a pintura histórica) e temas. Destacaram-se na Missão Artística Francesa, artistas tais como: Nicolas-Antoine Taunay, Félix-Émile Taunay, Jean-Baptiste Debret, Auguste Taunay e Le Breton (chefe da missão). Estes pintores buscaram retratar o cotidiano da colônia de uma forma romântica, idealizando a figura do índio e ressaltando o nacionalismo e as paisagens naturais.

transgressão significava em uma tentativa de implementar pesquisa para novos temas, seguindo novos rumos da pintura, interpretando e registrando em suas telas o ambiente brasileiro. Contudo, esses artistas tiveram que enfrentar as condições sócio-econômicas e, por conseguinte culturais, da região. Com o fim do monopólio açucareiro na região Nordeste, o eixo econômico e sócio-cultural deslocou-se para o centro-sul do país – uma faixa que se estendia de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, passando por São Paulo. Primeiro o café, durante o século XIX e depois, a industrialização durante o século XX, transformaram essa região em pólo financeiro nacional, condenando a vida intelectual do Nordeste a um certo isolamento do restante do país.

O ensino artístico acadêmico era propedêutico e instável, muitas vezes ligado a uma inércia administrativa, pois como instituição dependia diretamente do incipiente aparelho administrativo imperial. Por tal razão, era difícil descentralizar esse ensino e disseminá-lo em outras partes do território nacional. O desenvolvimento dos cursos da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, como também a vantagem de aperfeiçoamentos no exterior, atraía a atenção de jovens artistas das províncias nordestinas para o centro da corte brasileira.

As províncias nordestinas não conseguiam dar o suporte necessário aos seus artistas que, por sua vez, procuraram os centros mais adiantados para o aperfeiçoamento da técnica. Essa solução era adotada por muitos pintores do século XIX e início do XX, que saíram de suas cidades à busca de um ambiente, no qual pudessem absorver do meio cultural e artístico o que havia de mais novo, assegurando-lhes um espaço para o sucesso.

Diversos pintores migraram para o Rio de Janeiro (centro administrativo e cultural do país), pois sentiam que desse modo estariam mais próximos das novas tendências européias. Esses jovens pintores eram submetidos: a longos e estafantes cursos, à cópia de gestos e anatomias de modelos, segundo os ensinamentos dos mestres, prolongando-os depois nos centros artísticos da época.

Durante a segunda metade do século XIX, as Escolas de Arte do Nordeste não tiveram a sua expressão na vida artística nacional, se comparadas as Escolas de Arte do Rio de Janeiro. O meio acanhado e hostil, não oferecia melhor ambientação para o desenvolvimento das Artes Plásticas do Nordeste. Alguns artistas, pintores, gravadores e escultores tentaram implementar escolas e ateliês na região, porém as tentativas isoladas não conseguiram constituir um meio artístico sólido e tão pouco uma Escola de Arte, nos moldes acadêmicos.

Porém, a grande ambição desses artistas era mesmo o reconhecimento nos ateliês da Europa. Partiam quase sempre após a obtenção de uma bolsa de estudos concedida pelo imperador e, em Paris, onde se concentraram, mantinham ligações com mestres como Jean-Léon, Gêrome, Alexandre Cabanel, Jules Lefebre, Robert Fleury. Antoine Vollon e Léon Bonnat, originando uma mútua ligação da École de Beaux Arts com artistas brasileiros.

Na Bahia havia uma vida artístico-cultural diferenciada, pois com a velha condição de capital da colônia, a região possuía estabelecimentos voltados ao ensino das artes. Entre os mais antigos estava a Sociedade de Belas Artes (1856), objetivando desenvolver as aptidões dos escolhidos da intelectualidade baiana. Através dessa Sociedade, o governo da província enviou diretamente para a Europa pintores, como Francisco Muniz Barreto Filho– primeiro artista baiano subvencionado pelo Estado, no século XIX. O Liceu de Artes e Ofícios (1872) também se apresentava como opção aos jovens baianos. Porém, somente a Academia de Belas Arte (1876) forneceu as bases para o desenvolvimento da pintura acadêmica na Bahia.

Ao retornar, eram considerados “revolucionários”, pois traziam consigo o espírito dominante da Europa, impondo o formalismo neoclássico segundo o qual só era permissível pintar-se a partir de fórmulas rígidas que, vindas do barroco francês, postulavam que a arte devia obedecer a leis tão absolutas como aquelas que regiam a matemática. A pintura no Nordeste registrou, através dos anos imperiais, as mais variadas fases e estilos. Das linhas neoclassicistas ao realismo acadêmico da segunda metade do século XIX, os artistas nordestinos apresentaram sinais de uma tendência romântica e realista. Para esses artistas, a 90

Cenário artístico no nordeste brasileiro – Século XIX

Os pintores mais representativos da Escola Acadêmica na Bahia na segunda metade do século XIX foram Antonio Lopes Rodrigues (1854-1910) e Francisco Terêncio Vieira de Campos (1865-1920). Este último aluno da Academia Imperial de Belas Artes, discípulo de Vitor Meirelles e J. M. de Medeiros. Outros pintores como Olavo Batista (1865-1930), Robespierre de Farias e Manoel Lopes Rodrigues (1861-1917) também contribuíram para a formação do ambiente artístico baiano do século XIX. Deve-se ressaltar que muitos deles receberam subvenções para seus estudos no exterior e eram freqüentemente protegidos pelo Imperador Pedro II.

Neste sentido, o papel desenvolvido pelos Centros Oficiais de Arte do Século XIX propôs uma continuidade do modelo canônico oferecido pelas academias, reproduzindo a visão burguesa de arte e contribuindo assim para a formação artística dos pintores que procuravam nestes “centros oficiais” a manutenção e o status quos de representante da classe dominante. É possível encontrar algumas referências sobre a obra de Pedro Rodrigues Fróes, antecessor de Rosalvo Ribeiro. Pedro Rodrigues Fróes foi protegido do Imperador Pedro II, sendo único artista alagoano coberto por tal honraria. Manoel Teixeira da Rocha (1863-1941), foi outro pintor, que antecedeu a Rosalvo Ribeiro na região. Porém, após aperfeiçoamento no requintado ambiente europeu, Teixeira Rocha, não retornou ao pacato panorama alagoano, fixando residência no Rio de Janeiro.

A movimentação artística na Bahia foi mais densa e vigorosa do que nas demais regiões nordestinas. A emergência de artistas significativos para o desenvolvimento das artes plásticas e a constituição da primeira Escola de Belas Artes tornaram-se grandes contribuições baianas. Salvador também não correspondia ao centro artístico brasileiro. Muitos pintores nordestinos viam na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, o chamariz cultural mais avançado da época, como também vinha de lá a possibilidade de obtenção de bolsas de estudo no estrangeiro.

Em 1886, Rosalvo Ribeiro ingressou na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, graças à pensão aprovada pela Assembléia Provincial de Alagoanas. O artista destacou-se pelo empenho e aproveitamento notável, levando o governo do Estado a financiar seus estudos em Paris. O jovem artista matriculou-se na Academia Julian, a mais famosa das Escolas de Arte da capital francesa.

Em Sergipe o isolamento artístico é ainda maior: sem escolas, sem mestres, sem exposições e, principalmente sem recursos que pudessem incentivar as vocações artísticas o ambiente não era propício a emersão de novos artistas. Porém, isso não impediu que talentosos pintores surgissem em solo sergipano. Deulhe Horácio Pinto da Hora (1853-1890), cedo despontou para a vida artística, executando trabalhos de boa qualidade e esmero. Foi bolsista do Governo Provincial, estudando na França com Justin Lequele, na Escola Municipal e na Escola de Belas Artes de Paris. Produziu inúmeros retratos de personalidades locais, além de paisagens e naturezas-mortas, garantia de sua sobrevivência. Outro pintor alagoano de destaque foi Oséas Santos. Freqüentou a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro e foi um excelente retratista e pintor do gênero. Solicitou da Assembléia Legislativa de Sergipe subvenção para estudar na Europa e nada conseguiu.

Após viver treze anos em Paris, Rosalvo Ribeiro regressou ao Brasil, em 1901. Havia sido uma longa permanência na Europa, sob a influência “Art Nouveau”. O país tinha passado por transformações, entre elas a substituição da monarquia pela república. A antiga Academia Imperial aposentara os velhos acadêmicos e a monumental pintura histórica, adaptando o programa do ensino artístico às novas diretrizes políticas. Porém, a longa permanência na Europa, fizera de Rosalvo Ribeiro um “estrangeiro dentro de sua própria terra”. Acusado de “francesismo”, Rosalvo Ribeiro foi uma voz isolada na região, mas que sempre testemunhou a respeito do legado deixado pela estética acadêmica no país. Engrossando a fila dos artistas que nascidos em torno de 1890 , intensifica-se na nova geração que procurou efetuar o tímido clareamento da paleta , a mudança do tratamento pictórico , aceitando só então as formulações inovadoras dos impressionistas. Embora pode-se comprovar mudanças sensivelmente renovadoras , fica constatado que o meio e a época vivida pelo pintor não contribuíram para a total e completa ruptura com o passado artístico.

Assim como os outros Estados do Nordeste, a pintura acadêmica em Alagoas iniciou-se em fins do século XIX e meados do século XX, com a figura de Rosalvo Ribeiro (1867-1915), considerado um expoente da pintura na região alagoana e um dos poucos pintores, oriundo da região, com projeção nacional no cenário das artes plásticas nacionais.

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Misturando na sua paleta as tintas com os dissabores encontrados no meio alagoano , os retratos que decoram as paredes encardidas das repartições públicas em Maceió , diferem daqueles executados no atelier parisiense. São predominantemente frios e impessoais ao mesmo tempo carregados de sentimentalismos , pagos ainda por uma clientela sustentada pela cana de açúcar.

permaneceram em ambiente hostil por longo período. A postura desses artistas muitas vezes provocou escândalo na sociedade nordestina, pois os aspectos provincianos daquela população não conseguiam reconhecer os preceitos estéticos que acompanham esses acadêmicos isolados. E assim, embora relegados pelo abandono, estes pintores deram a sua contribuição ao álbum da pintura do século XIX.

O espírito burguês retraído e intimista do pintor alagoano ficaram alheios para as vivas aptidões da paisagem exuberante nordestina , mas deixando como registro algumas “Marinhas” que provam o seu talento , baseado agora com mais precisão na observação da luz e cor , tal como aparecem na natureza , ao contrário daquelas apuradas formas de representação .

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Nas valiosas afirmações que atestam a qualidade imensurável de pintar , Rosalvo Ribeiro foi um artista admirável , que o próprio meio estranhou devido os longos anos de sua permanência na Europa , acadêmico e isolado procurou absorver do velho continente os hábitos e posturas que foram trazidos para a região do litoral nordestino. O artista testemunha a sua produção artística com esmero, embora ,com um fim melancólico , quase decadente, mesmo tendo criado obras de grande porte para a galeria da história da pintura nacional. Fato este que é considerado um registro da arte feita nas escolas oficiais contribuindo para o desenvolvimento da pintura no país.

Notas A vida artística de Rosalvo Ribeiro ilustra perfeitamente o cenário artístico acadêmico no nordeste brasileiro, durante o século XIX. Os pintores nordestinos foram incompreendidos e

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BARDI, P.M. História da Arte Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1975.

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Dentro do quadro da arquitetura oitocentista, um pequeno grupo de obras francesas e seus respectivos autores podem, a nosso ver, ser consideradas paradigmáticas para os aspectos que pretendemos analisar nesse estudo. A primeira delas é a Rotonda de Panoramas de J.-I. Hittorf, projeto de 1838-39 construído em função das obras de embelezamento dos Champs Elysées, em Paris. Como sabemos os panoramas, muito em voga durante o período, eram edifícios concebidos para abrigar uma grande tela tratando de temas variados, e que deveria ser exposta contornando uma sala circular dotada de dispositivos específicos de modo a criar um efeito o mais ilusionista possível para os espectadores. Isso implicava em que dentro desse espaço de exposição deveria haver um mínimo de obstáculos à visibilidade da obra, incluindo aí as colunas de sustentação. Em função disso Hittorf propõe um sistema estrutural inovador, justificado por ele da seguinte forma: “(...) era preciso (...) encontrar um meio de colocar esses pontos de apoio no exterior. Foi essa necessidade que me sugeriu a idéia de aplicar à nova construção o sistema de suspensão de pontes, por meio de cabos metálicos”. Impedido de empregar o ferro por motivos de ordem econômica, o arquiteto imagina uma estrutura leve em madeira, de base hexagonal, na qual o telhado está suspenso por contrafortes externos, alinhados com a fachada. Um sistema, nas palavras do autor, “simples, econômico, e ao mesmo tempo imponente e satisfatório no seu aspecto exterior” (HITTORF, 1841: 551-561).

A contribuição do ensino oficial para a modernização da arquitetura oitocentista denise gonçalves

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Apesar da coerência da proposta e da segurança demonstrada pelo arquiteto no que se refere à estabilidade do sistema e ao cálculo da estrutura, o projeto foi mal compreendido pelo Conseil des Bâtiments – formado em grande parte por engenheiros –, que obrigou Hittorf a refazê-lo duas vezes, a primeira dobrando o número de apoios da estrutura, e a segunda criando um andar superior de modo a teoricamente conferir mais estabilidade à construção. Ainda que o partido estrutural inicial fosse mantido, o resultado arquitetônico ficou assim seriamente comprometido. Conclui o arquiteto: “Receios, que são sempre a primeira impressão produzida por uma aplicação de um sistema de construção completamente novo e possuindo qualquer ousadia aparente, e que degeneram quase sempre numa oposição desanimadora”. E dá um conselho aos mais jovens : [...] que eles não esqueçam que a oposição contra tudo o que é novo não é apenas da nossa época, mas de todas as épocas, e que assimilem bem uma verdade: é que os que querem se dedicar à prática da nossa arte devem esperar dificuldades sem fim, e se armar 93

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A última obra a que nos referimos é o Halles Centrales de Victor Baltard e Félix Callet, projeto polêmico que tem sua versão definitiva em 185354 após intensa discussão, dentro do Conselho municipal parisiense e com a participação de diversos arquitetos e engenheiros, sobre como deveria ser um mercado moderno e salubre, se uma construção fechada ou uma estrutura leve que funcionasse como simples abrigo. Vencida a segunda concepção graças à decisiva intervenção do próprio Imperador, que exigiu um “guarda-chuva” metálico – “Ferro, nada mais que ferro” –, os arquitetos elaboram o que se tornaria o protótipo do mercado oitocentista.

de uma grande perseverança para chegar a realizar as idéias mesmo as mais verdadeiras, as mais úteis, e freqüentemente as mais simples, quando elas são novas. (Id.) A segunda obra em questão é a Bibliothèque Sainte-Geneviève de Henri Labrouste, projeto de 1843 cuja execução foi terminada em 1850. Na sala de leitura do edifício, Labrouste inova completamente a tipologia introduzindo, pela primeira vez nesse gênero de edifício, uma cobertura em estrutura metálica sobre o invólucro em alvenaria tradicional. Essa estrutura leve, que compunha internamente duas abóbadas de berço no sentido longitudinal da sala e sustentadas por finas colunas de ferro fundido, justificava-se pela necessidade de se criar um espaço o mais amplo e desimpedido possível a fim de se obter um máximo de iluminação natural. O sistema é aperfeiçoado pelo mesmo arquiteto anos mais tarde com o projeto da Biblioteca Nacional, de 1858, no qual a sala de leitura é coberta por nove cúpulas hemisféricas leves, o centro de cada uma delas vazado por uma abertura circular que promove a iluminação zenital. Alguns historiadores, como S. Giedion, vêem nela uma mistura de referências históricas que iria do Hospital dos Inocentes de Brunelleschi ao Panteon romano... O resultado, no entanto é absolutamente moderno: as proporções delgadas da estrutura, a ousadia do partido estético concebido em função dos novos materiais aparentes – ferro e cerâmica –, aí combinados segundo uma composição ornamental de referências estilísticas modernizadas, compensam a opacidade do invólucro de alvenaria criando uma espacialidade nova, enfatizada pela luz.

O “simples abrigo” é traduzido numa estrutura metálica leve, um conjunto de pavilhões interligados por ruas cobertas. Cada detalhe da obra foi pensado em função da higiene e salubridade, requisitos fundamentais para esse tipo de edifício, além do funcionamento apropriado. A forma escalonada do telhado, a alvenaria leve e de altura apenas suficiente para a proteção dos usuários contra as intempéries, o uso de vedações vazadas como grades e persianas, tudo contribui para a circulação permanente do ar, para a boa iluminação natural e ao mesmo tempo para a proteção contra a incidência direta dos raios do sol sobre as mercadorias expostas. Tudo isso complementado por toda a infraestrutura necessária ao armazenamento, transporte, limpeza, e demais aspectos técnicos que envolvem uma construção desse tipo. Sob o ponto de vista estético, os arquitetos tiram partido da combinação do ferro com as cerâmicas coloridas e com uma ornamentação “estrutural” que confere um caráter apropriado à nova tipologia, e desprovido de qualquer referência estilística. Baltard mostra ter compreendido a exata medida da noção de mercado-abrigo: o “guardachuva coletivo monumental” na definição última de César Daly, editor da Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics, parafraseando o Imperador. Evitando as soluções híbridas, seu partido é de tal coerência e eficiência que os Halles tornam-se uma obra exemplar, um modelo reproduzido exaustivamente durante o período, aonde quer que chegue o padrão construtivo europeu.

A crítica contemporânea elogia o caráter inovador e ao mesmo tempo racionalista da obra. “É através de tais iniciativas que a arquitetura moderna sairá enfim da rotina greco-romana que a subjugou por tempo demais. É evidente que a combinação do ferro com a alvenaria, as faianças e cerâmicas, e com todos os outros metais e materiais possíveis, é o traço verdadeiramente característico da arte contemporânea (...)”, diz o engenheiro C.-A. Oppermann (OPPERMANN, 1869:1-3). “Sentimos diante do resultado obtido que o eminente artista se preocupava antes de tudo com a realização do programa e que ele obedecia a princípios (...) M. Labrouste, cujas idéias sobre o assunto são bem conhecidas, extraiu, como sempre, a decoração das necessidades a satisfazer assim como do emprego judicioso dos materiais”, comenta Anatole de Baudot, discípulo de Viollet-le-Duc e colaborador de sua revista (BAUDOT, 1865: 107).

Além da evidente qualidade arquitetônica e do caráter ousado e inovador sob os pontos de vista estético e/ou estrutural, o que estas obras que nos serviram de exemplo possuem em comum e que as relacionam ao assunto que nos interessa, i.e. o ensino oficial de arquitetura, é que seus respectivos autores foram formados dentro do sistema acadêmico francês. J.-I. Hittorf, de origem alemã e 94

Ensino oficial e a modernização da arquitetura oitocentista

da cidade, e na qual emprega novamente estrutura metálica e alvenaria.

com uma primeira formação de decorador, chega a Paris em 1810 e torna-se aluno do atelier de Percier, este membro da Academia e professor da École des Beaux-Arts. Trabalha com François Bélanger, substituindo-o no seu escritório quando da sua morte. Após uma viagem de estudos à Sicília, fica conhecido por haver divulgado e defendido o fato de que os templos gregos eram coloridos, e em decorrência disso por haver acirrado a discussão sobre a importância da policromia em arquitetura. Aplica esse princípio em vários de seus projetos, inclusive no que citamos acima; classificado pela historiografia como arquiteto “neo-grego” ou eclético, suas inovações no que se refere à estrutura e às novas técnicas construtivas não parecem ser muito comentadas.

Não podemos dizer que os três arquitetos que tomamos como exemplo possuam o perfil de “arquiteto-decorador” em geral atribuído pelos críticos do ensino oficial aos profissionais originados do sistema acadêmico. Nem ao menos dizer, e isso nos limitando apenas ao contexto francês, que os três arquitetos em questão seriam os únicos a contribuir para a modernização da arquitetura oitocentista. Os Grand Prix de Rome eram normalmente nomeados para cargos administrativos na municipalidade, na capital ou outras cidades. Na reforma de Paris, os arquitetos diplomados pela École sobressaíram-se na realização dos edifícios mais importantes, enfrentando o desafio das novas tipologias, das novas técnicas construtivas e dos problemas urbanísticos complexos que caracterizam a cidade moderna a partir de então. Estendendo-se o período às primeiras décadas do século XX e o campo de estudo a outros países, já que o sistema francês foi o principal modelo para o ensino de arquitetura durante o período, encontraremos certamente uma série de exemplos de arquitetos de formação acadêmica que inovaram em suas obras, sob o ponto de vista construtivo, funcional e/ou estético, ou que no mínimo produziram uma arquitetura eficiente.

Henri Labrouste deve sua formação à École des Beaux-Arts, onde recebe o 2º. Grand Prix de Rome em 1821 e o Grand Prix em 1824. Seus envois, no entanto, provocam sensação na Academia francesa pela abordagem arqueológica, construtiva e racional dos seus levantamentos e ainda pelo interesse pela arquitetura grega, uma atitude considerada “rebelde” diante da tradicional preferência pelo modelo romano. O episódio, afinal, traz como resultado a gradual aceitação do classicismo grego no sistema de ensino da École. De volta a Paris em 1830, abre um atelier independente e, por causa do rompimento com a Academia, permanece mais de dez anos sem encomendas oficiais até o projeto da primeira biblioteca. Nela, a combinação aparentemente inédita da estrutura metálica e alvenaria é considerada um marco do chamado racionalismo eclético, do qual Labrouste seria um dos principais representantes.

A contribuição maior do ensino oficial, no entanto, não reside exatamente nessas realizações dos arquitetos por ele formados, e sim nos princípios que constituíam a base desse ensino. Voltando às obras que nos serviram de exemplo, o ponto em comum mais importante que podemos observar analisando seus projetos é que todas tiveram suas concepções originadas no princípio da conveniência, e isso quer seja no que se refere à escolha dos materiais, do sistema estrutural, da distribuição espacial ou do partido estético. Esse princípio, que acompanha o desenvolvimento da teoria de arquitetura desde os primeiros tratados da Idade Moderna, encontra-se intimamente relacionado à noção de caráter, este definido dentro de uma estética da percepção baseada nas capacidades expressivas da obra. O termo conveniência, que faz parte da terminologia clássica como determinante das relações da obra com a realidade exterior a ela, sofre modificações de significado no decorrer dos séculos, oscilando entre as dimensões estética, social e propriamente arquitetônica, oscilando em suas relações com o caráter, e finalmente adquirindo sua forma definitiva no XIX, como veremos a seguir.

Victor Baltard, igualmente formado pela École, foi Grand Prix de Rome em 1833. Inicia sua carreira com vários trabalhos de restauração, até que em 1845 é nomeado arquiteto dos Halles de Paris juntamente com Félix Callet; em 1866 Haussmann o nomeia Diretor de Obras da Cidade de Paris. Seu projeto para os Halles envolve muita polêmica e acusações de plágio, principalmente em relação aos projetos de Hector Horeau e do engenheiro Eugène Flachat dos quais teria tirado certas idéias; estas no entanto de qualquer maneira faziam parte de uma discussão geral sobre a concepção da tipologia. Apesar de tudo, o arquiteto demonstrou dominar o emprego dos novos materiais e soube conjugar a eficiência de cada detalhe construtivo a um caráter bastante moderno. Em 1866 projeta a igreja de Saint-Augustin também em Paris, de solução difícil já que se encontra num dos típicos terrenos triangulares resultantes do novo traçado 95

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Segundo estudo de W. Szambien (SZAMBIEN, 1986: 167-199), uma das primeiras aparições do termo no vocabulário de arquitetura remonta à tradução francesa do tratado de Alberti em 1553, que lhe dá dimensão apenas estética: “Beleza é uma certa conveniência judiciosa mantida em todas as partes em vista do efeito para o qual queremos aplicá-las”. Já no século XVII, Perrault retoma Alberti no que se refere à Beleza – “é a conveniência judiciosa e a aptidão que cada parte tem para o uso ao qual ela é destinada” – mas ao mesmo tempo lhe confere um outro significado mais especificamente arquitetônico: “é o uso e a finalidade útil e necessária para a qual um edifício é feito, tal como a Solidez, a Salubridade e a Comodidade”(PERRAULT apud SZAMBIEN:168), apesar de seu texto mostrar que ele se refere mais às formas arquitetônicas e às proporções que à distribuição espacial interna, da qual dependeria o conforto...

Na primeira metade do século o termo ainda se coloca entre a dimensão expressiva da adequação ao nível social do proprietário, o que se confunde com o caráter, e a dimensão arquitetônico-formal do acordo entre as proporções das partes do edifício. Chamada a definir os princípios fundamentais da arquitetura numa tentativa de se ultrapassar o quadro das discussões, a Academia francesa tende para a concepção arquitetônica: “A conveniência é uma sujeição aos usos estabelecidos e recebidos. Ela dá as regras para se colocar cada coisa em seu lugar” (SZAMBIEN:169). Sua posição, no entanto, não tem força para eliminar os conflitos que o termo comporta. Na segunda metade do século os questionamentos em relação à teoria clássica se intensificam. J.-F. Blondel, professor da Académie Royale d’Architecture a partir de 1755 e teórico fundamental do período, no seu esforço de afirmação e reatualização do classicismo termina involuntariamente por expor seus limites, acentuando a crise. Apresenta duas definições da conveniência que correspondem à evolução de seu pensamento. Em seu L’Architecture française de 1752, a conveniência é apresentada como o princípio primeiro da arquitetura: aquele que confere dignidade e do qual depende o efeito moral dos edifícios públicos, aproximando-a assim da noção de caráter. Ao mesmo tempo, afirma sua dimensão arquitetônica definindo-a como o princípio que rege as relações entre a distribuição e a decoração, dando-lhes unidade, ou ainda como o princípio que, tratando da distribuição, relaciona forma e proporção ao uso de cada ambiente, o que lhe confere validez universal e o aproxima da noção de utilidade.

No final do século, Daviler, arquiteto colaborador de Mansart, dá a primeira definição mais consistente da conveniência – como sendo o acordo que se deve observar entre todas as partes de um edifício, desde a decoração, a distribuição, a forma até a economia que deve determinar a escolha dos materiais – subordinando-a, no entanto, à hierarquia social: “Em uma palavra num edifício onde a Conveniência é observada, se (sic) sua forma e sua decoração convéem ao nível, à dignidade, ou à opulência de seus proprietários” (DAVILER apud SZAMBIEN:168). A partir daí o termo torna-se um dos raros em teoria da arquitetura a desenvolver-se sem empréstimos a outras áreas do conhecimento, já que se encontra no epicentro do gradual processo de superação das regras clássicas que acompanha o século XVIII. Suas nuances de significado são representativas dos conflitos internos à própria teoria de uma arquitetura que busca emanciparse, e ainda do conflito externo com o racionalismo crescente enfatizado por um campo do saber cada vez mais privilegiado, o da engenharia, que elege novos parâmetros e objetivos para a construção. A teoria clássica, que em sua origem havia conferido caráter científico à arquitetura, resiste dificilmente ao confronto com o desenvolvimento científico do século das Luzes. As oscilações da definição de conveniência ilustram o esforço teórico de se resolver as ambigüidades entre a subjetividade da beleza, do prazer estético e da percepção, por um lado, e a objetividade da utilidade, por outro, sem que isso signifique necessariamente uma oposição durante o período.

No seu Cours d’Architecture publicado vinte anos mais tarde, no entanto, Blondel se afasta da utilidade, diluindo a conveniência no caráter e na noção vitruviana de decoro e conduzindo-a a um papel mais modesto: “Dizemos que uma construção tem conveniência quando observamos que a disposição exterior e as principais partes da decoração são absolutamente relativas ao objeto que originou a construção do edifício, quando o espírito de conveniência nele preside, quando o decoro nele é exatamente observada, quando o Ordenador (sic) previu em toda a sua ordenação o estilo e o caráter escolhido” (BLONDEL apud SZAMBIEN: 170) Como observa Szambien, o que interessa Blondel é “o caráter conveniente dos diferentes tipos de edifícios e não a conveniência do seu caráter” 96

Ensino oficial e a modernização da arquitetura oitocentista

(SZAMBIENt: 170), ou seja, para ele a conveniência ainda determina uma arquitetura hierarquizada – e aí reside a relação com o social, guardando-se apenas uma “magnificência controlada” (PICON, 1988:9) – e racionalizada. Ainda que para o enciclopedista Diderot, por exemplo, o termo signifique a simples conformidade ao uso, constituindo um dos três princípios da arquitetura ao lado da solidez e da simetria, os arquitetos da corrente classicista parecem tender a priorizar a proximidade com o caráter.

Um ponto de ruptura importante em relação à teoria clássica, e ao mesmo tempo uma tentativa de solução desse conflito se darão de forma definitiva, na passagem para o século XIX com J.L.N. Durand, que efetiva a redefinição do princípio da conveniência sob parâmetros exclusivamente racionalistas e construtivos. Aluno da École des Beaux-Arts, 2º. Grand Prix de Rome em 1779 e 1780, é bastante significativo que, para a atividade de professor, tenha escolhido a École Polytechnnique. Entre 1795 e 1830 é o responsável pelo curso de arquitetura nesta instituição; nos primeiros anos do XIX publica seu Précis des Leçons d’Architecture que reúne a essência de seus ensinamentos e de seu pensamento sobre arquitetura. Mais que uma abordagem teórica, Durand desenvolve um método de composição que será adotado como base para o ensino oficial de arquitetura durante todo o período, originando o chamado sistema Beaux-Arts.

Soufflot, dentre eles, num estudo intitulado De l’identité du goût et des règles dans l’art de l’architecture e apresentado na Academia de arquitetura em 1775, ao mesmo tempo em que afirma que “a conveniência consiste na relação da construção com o local, com a utilidade e com o uso da coisa construída” (SOUFFLOT apud SZAMBIENt: 171), enfatiza sua importância enquanto maneira de se caracterizar os tipos de edifícios, ou de tornar suas destinações reconhecíveis. Le Camus de Mézières, cujas preocupações teóricas se orientam para as relações da arquitetura com a natureza – tema igualmente presente no debate arquitetônico do período – e com as sensações enquanto meio de aceder a ela, em sua obra Génie de l’Architecture de 1780 define conveniência confundindo-a com o caráter: o que importa é a sensação conveniente e não a conveniência das formas (SZAMBIENt:171).

Partindo de uma definição simples: “arquitetura é a arte de compor e de executar todos os edifícios públicos e particulares”, estabelece como objetivo dela a utilidade pública e particular, a conservação, a felicidade dos indivíduos, das famílias e da sociedade, afastando-se completamente da dimensão social hierárquica presente na teoria clássica. Para se promover o bem estar os edifícios devem ser construídos da maneira mais conveniente à sua destinação, da maneira mais fácil e menos dispendiosa. Conveniência e economia constituem, assim, os princípios fundamentais da arquitetura, “os únicos que podem nos guiar no estudo e no exercício dessa arte” (DURAND, 1819: 3-6).

Dentro do mesmo espírito, o “revolucionário” e teórico Boullée dá pouca importância à conveniência, mencionando-a apenas como a arte de empregar convenientemente as ordens que, como se sabe, não são para ele nenhum elemento essencial para a arquitetura, utilizando o termo conveniente apenas no que se refere à arquitetura particular e para qualificar as relações entre as posses do proprietário e o tamanho da casa.

A conveniência, por sua vez, comporta três princípios fundamentais: solidez, salubridade e comodidade. O primeiro se refere desde a escolha dos materiais à estabilidade da estrutura; em função dele Durand estabelece um elemento fundamental do seu sistema compositivo: a malha estrutural, um aperfeiçoamento da modulação clássica traduzido na idéia da ossatura – idéia, é importante observar, desprovida de qualquer referência histórica. A salubridade depende dos dispositivos responsáveis pela aeração e iluminação direta das partes assim como da localização e da orientação do edifício; a comodidade é determinada pelo número e o tamanho das partes e pela relação exata de suas formas e disposição com a destinação.

O reconhecimento da conveniência como princípio constitutivo da arquitetura é reencontrado, no entanto, no seu contemporâneo Ledoux. Este a considera como uma das regras imutáveis da arquitetura: “(...) ela valoriza a riqueza e mascara o infortúnio, subordinará as idéias às localidades, reunirá as necessidades diversas, sob exteriores relativos e pouco dispendiosos” (LEDOUX apud SZAMBIENt: 172). Sua definição engloba, assim, as relações com a posição social do proprietário, com o lugar e com o programa. Apesar de sua conhecida rejeição às regras clássicas, ainda deixa irresolvido o conflito existente entre expressividade e utilidade.

A economia substitui o caráter em suas relações com a conveniência. Subordinados a ela estão os princípios de simetria, regularidade e simplicidade, traduzidos no seu método compositivo pelo uso de 97

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

formas geométricas regulares – quadrados, retângulos e círculos –, pelos eixos determinantes da composição e pela rejeição a qualquer elemento supérfluo.

fazer o edifício mais conveniente possível, como nos edifícios particulares; 2º. dadas as conveniências de um edifício, fazê-lo com a menor despesa possível, como nos edifícios públicos”. E conclui: “Vemos por tudo o que precede, que em arquitetura a economia, longe de ser, como em geral se acredita, um obstáculo à beleza, é ao contrário a origem mais fecunda dela.” (Id.:21)

Ao debate sobre as relações entre arquitetura e imitação da natureza, a resposta de Durand é taxativa. Tecendo uma argumentação que desmonta tanto a teoria da cabana de Laugier quanto a teoria das ordens de Vitrúvio, conclui :

Essa aparente simplicidade esconde, na verdade, a exigência de uma atitude diferente da parte do arquiteto: substituindo as certezas das regras clássicas, a obediência aos princípios da conveniência e economia implica em tomadas de decisão objetivas a cada passo do projeto, ou seja, depende da sua maior ou menor capacidade de julgamento e de racionalização dos problemas que envolvem a arquitetura.

“Ora, se a cabana não é absolutamente um objeto natural, se o corpo humano não pode servir de modelo à arquitetura; se, na suposição mesmo do contrário, as ordens não são absolutamente a imitação de um nem de outro, é preciso necessariamente concluir que as ordens não formam absolutamente a essência da arquitetura; que o prazer que se espera de seu emprego e da decoração que resulta delas é nulo; que enfim, essa decoração é ela própria uma quimera; e a despesa a que ela conduz, uma loucura.” (Idem:16)

Diante da multiplicação de novas exigências para a disciplina a partir daí – novas técnicas construtivas e novos materiais, novas tipologias, nova clientela, novo repertório estilístico e nova escala da atividade construtiva – as idéias de Durand, assim como seu método compositivo, caem como uma luva. Confrontado a um leque cada vez maior de possibilidades, o princípio da conveniência estabelecido por ele consegue dar coerência e unidade à produção arquitetônica do período; além de constituir a origem da linhagem “construtiva” defendida por Viollet-le-Duc e que foi a responsável pelos movimentos de renovação espacial e estética da passagem do século. Não podemos afirmar, é claro, que a influência de sua teoria tenha eliminado a subjetividade do pensamento sobre a arquitetura – a dimensão expressiva do caráter, por exemplo, permanece fundamental, principalmente quando se trata da leitura das novas estruturas urbanas – ou que a tenha transformado definitivamente em arte da construção – nem é essa sua intenção, já que a composição permanece como arte do disegno –; mas o princípio da conveniência nela estabelecido certamente deu segurança aos arquitetos para ousarem e inovarem em suas proposições, como nos mostram os exemplos com os quais iniciamos esse estudo.

No que se refere às relações com o prazer estético, toma como exemplo a simplicidade da arquitetura grega para afirmar que “quer consultemos a razão, quer examinemos os monumentos, é evidente que agradar nunca pode ser o objetivo da arquitetura, nem a decoração arquitetônica seu objeto”. Beleza, prazer estético e caráter perdem seus valores autônomos e são reduzidos a conseqüências naturais da conveniência e da economia: (...) não devemos então nos ocupar (cuidar) de que a arquitetura agrade, visto que se ocupando unicamente de atingir seu verdadeiro objetivo, é impossível que ela não agrade, e que tentando agradar ela pode se tornar ridícula; não devemos tampouco procurar a dar variedade, efeito, e caráter aos edifícios, já que é impossível que eles não tenham todas essas qualidades no mais alto grau que possam atingir, quando, usando unicamente os verdadeiros meios dessa arte, lhe damos tudo o que é preciso, e apenas o que é preciso, e que o que lhe é necessário está disposto da maneira mais simples. É então apenas da disposição que deve se ocupar um arquiteto, mesmo aquele que se interessa à decoração arquitetônica, e que procura somente agradar, pois essa decoração só pode ser chamada bela, só pode causar um prazer verdadeiro, quando resulta apenas da disposição a mais conveniente e a mais econômica. (Id.: 21).

Como tentamos demonstrar, apesar do conservadorismo do meio acadêmico a renovação teórica da arquitetura se origina em grande parte dele próprio. O ensino oficial, baseado em princípios teóricos, favorece uma reflexão sobre a disciplina e oferece o instrumental necessário para os movimentos de questionamento e redirecionamento do pensamento arquitetônico, que terminam por forçar a rigidez do sistema e por refletir-se na produção dos arquitetos. A tensão

Dentro dessa relação de causa e conseqüência, o talento do arquiteto se reduz a resolver dois problemas: “1º., com uma soma [de dinheiro] dada 98

Ensino oficial e a modernização da arquitetura oitocentista

HITTORF, J.-I. Description de la Rotonde des Panoramas, élevée dans les Champs-Elysées. Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics. Paris: 1841, p. 551-561. MARREY, B. et CHEMETOV, P. Architectures, Paris 1848-1914. Catálogo de exposição. Paris: Caisse Nationale des Monuments Historiques et des Sites/ICOMOS,1976. MIDDLETON, R. (ed.) The Beaux-Arts and Nineteenth Century French Architecture. Londres: Thames and Hudson, 1982. OPPERMANN, C.-A. La nouvelle Salle de lecture de la Bibliothèque Impériale de Paris. Nouvelles Annales de la Construction. Paris: n.169, jan.1869. PICON, A. Architectes et ingénieurs au siècle des Lumières. Marselha: Ed. Parenthèses, 1988. SZAMBIEN, W. Symétrie, goût, caractère. Paris: Ed. Picard, 1986

entre tradicionalismo e modernização mostrou-se fecunda sob esse aspecto. Cabem aí os estudos sobre contextos específicos. No caso da nossa Escola Nacional de Belas-Artes, por exemplo, uma análise das referências teóricas do seu ensino através das obras pertencentes à biblioteca pode revelar aspectos interessantes, que ainda precisam ser desenvolvidos. O Précis des leçons d’architecture de Durand encontra-se entre elas; verificar a influência de seus princípios na produção dos arquitetos formados pela Escola constitui outro meio de se avaliar a contemporaneidade e a efetiva contribuição de seu ensino. Referências bibliográficas BAUDOT, A. Bibliothèque Impériale de Paris. Nouvelle Salle de Lecture. Gazette des Architectes et du Bâtiment. Paris: n.7, 1865. DALY, C. Systèmes de construction des Halles. Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics. Paris: 1854, p. 18-22. DURAND, J.N.L. Précis des leçons d’architecture données à l’École Royale Polytechnique. Paris: Imprimerie Firmin Didot, 1819.

Notas 10

Comitê Brasileiro de História da Arte, Doutora em História da Arte pela Université Catholique de Louvain.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Ao avistar Belém, da janela do avião, nota-se uma cidade estirada, uma espécie de ponta de terra quase insular, massa modelada em forma de mama hirta, lambida pelas águas cor de bacaba, 1 que são do estuário do Rio Amazonas no trecho Guajarino2. Antes de se avistar a cidade, há dias em que se formam flocos de nuvens feito pastos de alvos carneirinhos sobre um tapete verde, serpenteado de cobras d´água. A cidade parece um pomar, poema geográfico trans-temporal crivado de espigões, espinhos de pedras, pedras feito lápides de um campo santo do paraíso perdido no inferno verde 3; El Dourado4 de antigas narrativas e de novas e empreendedoras investidas. No chão, a sensação é de um caldeirão. Caldeirão enquanto signo de sensações térmicas e receptáculo de mistura alquímica, étnica e cultural. Emoldurado ao sul pelas águas do Rio Guamá o desenho da cidade aponta a mata, o verde e vago mundo da Cobra Norato5. Vista assim, do alto, e após os primeiros contatos com o chão, têm-se inúmeras impressões sobre a cidade de Belém, essas são algumas delas. Historicamente, a cidade provocou várias narrativas. A “morena brejeira nortista” como também é conhecida, certamente continuará a provocar, em poetas, historiadores, antropólogos, biólogos, geógrafos, urbanistas, arquitetos, artistas e viajantes, visitantes comuns, toda sorte de percepções, impressões, visões - perspectivas registradas em diversas media com escopo científico ou não.

academia de belas artes na amazônia edison da silva farias

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Leandro Tocantins6 na obra “Santa Maria do Belém do Grão Pará” (1963), apresenta três epígrafes que prenunciam os “instantes” que seus leitores teriam de “evocações da cidade”: A excelência desta terra consiste em muitas coisas notórias. A primeira, no ameníssimo Céu, e salubérrimo ar, de que goza, aonde sempre é verão, e sempre está o campo, e arvoredo verde, carregado de infinita diversidade de frutas, cujos nomes, sabores e feições, excedem a toda declaração humana. (Capitão Simão Estácio da Silveira, 1618) Raro é, aliás, o artista ou escritor para quem não exista a sugestão de uma região ou de uma província em particular – de ordinário a do seu tempo de menino – presente de modo nem sempre ostensivo, às vezes até sutil, nas formas e nas cores mais características da sua expressão. (Gilberto Freire, “Vida, Forma e Cor”) 100

Academia de Belas Artes na Amazônia

vez, escrever um documento dessa escala sobre as artes plásticas naqueles rincões amazônicos.

Bembelelém / Viva Belém! (Manuel Bandeira) Leandro Tocantins, com os destaques acima, traduz sua fascinação pela natureza da cidade e seu enorme saudosismo, em orientações ao visitante, que beira o bairrismo, indicando que a sua obra será uma longa saudação à cidade de Belém, assim como o fez o poeta de Itabira.7

Paolo Ricci, na introdução de seu trabalho, adverte ao leitor que o seu relatório é um “bosquejo” – uma espécie de ressalva às possíveis falhas históricometodológicas, porém dá conta de uma série de questões nunca antes reunidas em um só texto sobre o assunto. O trabalho compreende um conjunto considerável de dados, fatos, apreciações de personalidades e a opinião do próprio artista sobre as manifestações artísticas realizadas no Pará; do corpus do referido documento retiramos os momentos que compreenderam alguns pontos de inflexão para a criação da Escola e Belas Artes do Pará que, sem sombra de dúvida, entendemos, traduzem-se numa saga inconclusa. Tais momentos, certamente, darão conta de perscrutarmos a percepção, a expectativa e a subjetividade do autor sobre o campo cultural de Belém em vários períodos históricos e somar ao conhecimento em arte dados sobre esse pedaço da colcha de retalhos, que é a cultura brasileira8.

Uma dos textos mais recentes sobre Belém, “Belém [reloaded]” (2004), faz uma leitura da cidade a partir de uma perspectiva especial. A presença dos italianos no campo cultural local é destacada, demonstrando uma sensação sobre a cidade como uma espécie de pedaço europeu nos trópicos, n´América. Embora o campo cultural de Belém tenha apresentado um cenário propício e fértil para a consolidação de sua Academia de Belas Artes, nas décadas finais do século XIX e iniciais do século XX, a idéia, na sua concretude, ficou suspensa, preterida, e marcada por fatos e sujeitos propulsores importantes para a cultura local, mas que não foram suficientemente comprometidos e densos para que se fizesse realidade o tão sonhado espaço para o ensino das artes no Pará.

A gênese do ensino de arte em Belém está intimamente ligada às atividades das missões religiosas no Pará. Foram os carmelitas e em seguida os jesuítas que implantaram, primeiramente, uma “escola elementar”, escreve Ricci, de arte em Belém que seguiu incipiente pelos idos de 1653. Nesse período, os provinciais tendo como máxima “Por um irmão pedreiro daria uma dúzia de teólogos” (LEITE, apud ZANINI, 1983: 171), estimavam sobre maneira os irmãos leigos da Companhia, versados em conhecimento sobre técnicas construtivas e imaginárias e, por outro lado, os irmãos e padres pautados na recomendação conciliar de que mais valia uma imagem do que muitos sermões, mesmo com objetivos mais pragmáticos do que estéticos, não deixaram de transmitir os conceitos soteriológicos, católicos e algumas técnicas artísticas fundamentais para a edificação do “Reino” e para a salvação dos “gentios”.

Esquadrinhar os cenários e as oportunidades que se apresentaram para a criação de uma academia de artes numa cidade cheia de encantos e valores espirituais, é o que faremos a partir das narrativas de Paolo Ricci consolidadas em relatório de pesquisa, apresentado à FUNARTE, na década de 1970, intitulado, “As artes plásticas no Pará”. Documento ainda não publicado, o relatório de Ricci encontra-se agrupado em três tomos com folhas datilografadas somente no anverso, num total de 412 páginas, dividido em três capítulos: Os Primórdios – Arqueologia – As Artes da nossa proto-história – A cerâmica e os objetos líticos” (assinado por Mário F. Simões, Chefe do Departamento de Arqueologia do Museu Paraense Emílio Goeldi);

A formação humanística era o tônus das atividades jesuíticas nessas pequenas escolas em que a retórica e a literatura eram ensinadas pari passu. Quanto às imagens, estas eram de temática religiosa, reproduções trazidas por padres que exerciam suas atividades em Belém, replicandose dessa forma, no Norte, um processo que ocorreu em todo o período colonial no Brasil. Ricci observa que Von Martius9 tinha em baixo conceito o que aqueles religiosos ensinavam, uma vez que as imagens que produziam e copiavam era de qualidade ruim, por serem influenciadas pela

A arte indígena contemporânea em terras do Pará – Objetos, tangas, cestaria, plumária, pintura” e “As artes a partir da colonização – As missões religiosas e os pintores e escultores jesuítas a partir do século XVII. A extensa bibliografia, a relação de documentos, a iconografia considerável (porém sem qualidade), demonstram a seriedade com que Paolo Ricci enfrentou a grande tarefa de tentar, pela primeira

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Embora o Estado tenha feito a sua parte com um projeto cultural no âmbito das artes plásticas, Ricci assinala que a ausência das elites no circuito cultural e a inexistência de um mercado de arte, provocada pela “visão das elites voltada para a Europa em detrimento dos valores locais”, não sustentaram a iniciativa estatal. Importantes fatos culturais ocorrem em Belém, no campo da moda e do cinema, Belém se europeizava aos poucos de forma institucionalizada com o poder interferindo sobre o comportamento do homem urbano, pequeno burguês. A Tabela I demonstra sinteticamente os pintores pensionistas enviados para estudos no exterior.

pintura portuguesa. (MARTIUS, & SPIX, 1939, apud RICCI, aproximadamente 1978:8) Índios e negros e os habitantes mais simples de Belém, foram os primeiros alunos dessa academia incipiente em que se destacaram como mestres, João de Almeida, Baltasar de Campos, Manoel João, João Xavier Traer, Luiz Correa e Agostinho Ruiz, provenientes de França, Holanda, Itália e Lisboa. A escultura e a arquitetura foram os melhores processos artísticos desenvolvidos nesse período. Encerrada em 1760, a incipiente academia, com a expulsão dos jesuítas do Brasil, o que se fazia nascente, segundo Ricci, a idéia sobre a academia de artes e ofícios, se perdeu com a saída dos religiosos, uma vez que se interromperam atividades artísticas e de construção, “causando profundas lacunas no desenvolvimento cultural do Estado” (RICCI, aproximadamente 1978:56)

Uma nova iniciativa é levada a efeito em 1863. No prédio do Liceu Paraense, em horário noturno, é criada a Academia de Belas Artes ofertando cursos de Desenho e Pintura, que funcionou até 1900, porém, o Liceu já abrigava o Conservatório de Música, mantido pela Sociedade Propagadora das Belas Artes, que era sustentada pelos benefícios provenientes do imposto no valor de cem mil reis sobre cada espetáculo realizado no Teatro da Paz. Esse imposto criado pela Lei 445, de 30 e maio de 1896, trouxe uma série de complicações para o campo cultural artístico local e, consequentemente, a derrocada da Academia, porém o ensino de música, em conservatório, resistiu à crise econômica, uma vez que teve continuidade sob a direção de Carlos Gomes.

A vontade epistêmica e de dominação dos estrangeiros face as terras ignotas, juntamente com a necessidade de se circunscrever a superfície da terra e a política de segurança adotada por Portugal, levou muitos documentaristas, cientistas e artistas para a Amazônia, que estabeleciam em suas embarcações, viagens científicas, dentro da Amazônia, verdadeiras “escolas de arte flutuantes”. Antônio Landi foi um desses estrangeiros que fixou residência em Belém e que demonstrou-se preocupado com o ensino da arte do desenho e com a formação humanística daqueles que o cercavam, “até os mais rudes marinheiros”. (Id. :7071)

Um fato marcante no campo cultural da cidade foi a criação das Exposições Artístico-Industriais (FARIAS, 2003:83) que institucionalizaram premiações e menções honrosas aos expositores iniciando assim uma cultura expositiva em Belém. Enquanto isso, a cidade voltava-se para as artes pictóricas em meados de 1889, quando se decide realizar a pintura do forro do salão nobre do Teatro da Paz que se faria inaugurar em breve. A cidade toda entra no debate estabelecido entre técnicos, artistas e o governo do Estado. Constantino Motta e Irineu Souza trocam farpas pela imprensa local estabelecendo interessante polêmica em torno dos processos técnico-artísticos corretos para a reforma do forro do salão nobre da principal casa de espetáculos da cidade, salão que se tornou o local para a exposição de pintura acadêmica, tanto de visitantes como de artistas locais.

Em 1841 é criado o Liceu Paraense (vinte e um anos depois da criação da Academia Imperial de Belas Artes na capital do Império do Brasil), instituição educacional onde se sistematizou o ensino de desenho e, em paralelo, aulas particulares de pintura ministradas por professores como Pedro Constantino Chaves da Motta e Leon Batista Righini. Porém, a iniciativa acabou nem mesmo se configurando como um embrião daquilo que seria uma academia. A década de 1840 foi importante para a construção da base de uma escola de artes que faria concorrência com a Academia Imperial do Rio de Janeiro. No governo de Herculano Ferreira Penna é que se começa a pensar o ensino de pintura no Pará, com o envio do primeiro artista pensionista, pintor Constantino Pedro Chaves da Motta, para Roma †a iniciativa das aulas particulares de pintura havia surtido o efeito desejado.

A década de 1890 seria o período mais propício para o estabelecimento da tão sonhada instituição estatal destinada ao ensino das artes. O governo do Pará continuava a enviar pintores ao exterior para procederem aos seus estudos, em 1892, a

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Academia de Belas Artes na Amazônia

atividade é regulamentada pela Lei n° 61 que facilitava a ida de artistas ao estrangeiro. As viagens, geralmente a Paris ou Roma, possibilitaram o contato de artistas paraenses com artistas da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Marcada pelo apogeu da economia gomífera, nessa década, a cidade de Belém atravessava em sua história pela maior reforma urbanística que se teve conhecimento. Duas Exposições Artístico Industriais são levadas a efeito quando Lauro Sodré idealizou uma exposição em nível nacional, uma vez que da última versão do evento tinham participado muitos artistas importantes para as artes plásticas paraenses, porém, nessa mesma década, a cidade começa a sentir o efeito da crise internacional da borracha e as exposições artístico-industriais são deixadas de lado. Em 1899, Theodoro Braga é agraciado com o prêmio de viagem ao estrangeiro pela Academia Imperial de Belas Artes e Pedro Campofiorito é indicado por Zeferino da Costa para fundar a Escola Nacional de Belas Artes em Belém, tentativa debalde, porém.

dentre outros, João Affonso do Nascimento, Carlos Azevedo (aluno e estagiário de Zeferino da Costa), Maurice Blaise (artista francês) e Eládio Lima. Nesse período tem residência fixa em Belém o pintor Francisco Estrada do qual Arthur Frazão, pintor paisagista, fotógrafo, foi aluno. A fotografia foi o processo que influenciou sobremaneira as atividades pictóricas de Arthur Frazão, o controle da qualidade da luz e o naturalismo passam para a feitura de suas obras, na maioria pinturas de paisagens. Um fato merece destaque em 1907, Francisco Aurélio de Figueiredo, irmão de Pedro Américo, realiza uma grande exposição em Belém, segundo Ricci, composta de 66 telas, sendo que uma parte dos trabalhos era de natureza acadêmica e a outra parte, executada dentro da estética impressionista. Ao visitar a exposição Theodoro Braga criticou as obras de características impressionistas, dizendo gostar mais daquelas de natureza acadêmica. (RICCI, aproximadamente 1978:191) Além de Estrada outros artistas estrangeiros se fixaram na cidade de Belém e outros por ela passaram fazendo exposições. Nesse período uma nova tentativa se faz a partir da Associação de Artistas Paraenses, a criação da “Academia Livre de Belas Artes”, da qual fizeram parte: Manoel Assunção Santiago, Manoel Pastana, Manoel Lassance Souza, Adalberto Cunha, Carlos Goldegol e Arthur Frazão que funcionou até o ano de 1924. Por meio do Decreto n° 1.845 e 17 de outubro do mesmo ano, João Coelho cria o “Salão Oficial de Pintura”, todavia o campo cultural perde dois nomes que seriam fundamentais para a constituição da academia de belas artes: Pedro Campofiorito e Theodoro Braga, o primeiro porque não encontrava meio de sobreviver de sua pintura e o segundo porque foi seduzido pela livre docência na ENBA, escola em que havia estudado, e depois pela Escola Mackenzie em São Paulo onde passou a ser diretor.

Um aspecto positivo há que ser notado, Theodoro Braga ao retornar para o Brasil, com idéias renovadoras para o ensino das artes, começa a aplicá-las em Belém. A pressão da demanda industrial por valores que reunissem competência técnica e artística foi o que impulsionou o pintor, ao seu modo, a iniciar um processo de brasilidade mesclado com regionalidade. A descoberta da natureza local e os valores formais contidos na flora e na fauna amazônicas eram transplantados para a arquitetura, decoração e pintura.10 Paolo Ricci observa que, com o período de crise econômica se aproximando, a classe burguesa não mais importava de Paris, da Europa e, sim, vendia seus bens para o estrangeiro que se apresentassem interessado nas coleções de arte existentes na cidade. Segundo Ricci, Belém ficou estagnada por trinta anos. Some-se a esse cenário a suspensão de “bolsas de estudos para o exterior” por decisão de Augusto Montenegro.

Foi a “Academia Livre de Belas Artes” a responsável pelas realizações das Exposições Gerais de Arte em Belém, que teve na edição de 1924 o primeiro catálogo de exposição, o público e a crítica ficavam indecisos entre a pintura tradicional e os ensaios vanguardistas que revelaram a estética de Leônidas Monte para Belém que, em 1927, foi exposta no foyer do Teatro da Paz, trazendo novos ares para a estética plástica local. O período de funcionamento da academia livre resultou numa significativa produção pictórica mais quantitativa do que qualitativa, o campo cultural plástico, porém,

Na década de 1900 surgem dois fenômenos em Belém que certamente tiveram origem nas atividades de ensino de Theodoro Braga: as Exposições Escolares e o Primeiro Salão de Belas Artes, este último a única iniciativa no campo cultural que frutificou da presença de Pedro Campofiorito em Belém, todavia, a idéia da academia permaneceu no desejo dos paraenses e daqueles artistas visitantes que pelas terras amazônicas se encantaram. Nesse sentido, Flávio Cardoso e José Girard tentam criar uma Academia de Pintura da qual faziam parte do corpo docente, 103

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mais tarde foi criada a “Sociedade Artística Internacional”, SAI, organização não governamental voltada para a música erudita e que teve à frente de sua direção os seus idealizadores Frederico Barata11 e Augusto Meira Filho12. Frederico Barata exerceu uma espécie de papel de mecenas das artes plásticas em Belém, implementou um jornal de grande circulação na cidade e, por conta de seu temperamento e amor pelas artes, soube movimentar o campo cultural de Belém, assumindo assim o papel de Chateaubriand do Pará, trazendo artista como Tadashi Kaminagai e Armando Balloni. Frederico Barata sempre se posicionou fazendo críticas construtivas sobre o estado da arte pictórica em Belém. As atividades da SAI não conseguem ter continuidade, após a morte de um de seus criadores, conta Ricci, a enorme coleção de obras de arte do articulista foi totalmente dilacerada por leiloeiros e colecionadores de fora de Belém, esse fato marcaria então o fim de mais um rico período da cultura paranse.

foi bastante enriquecido com suas exposições de arte, trazendo à luz vários artistas. Leônidas Monte foi o pintor vanguardista que trouxe para Belém uma nova forma de estar e ver o mundo a partir de seu comportamento e de sua pintura, juntamente com Oswaldo Vianna, fundara a “Instrução Artística Brasileira” que, diante da lacuna das exposições gerais da Academia Livre de Belas Artes, patrocinou os “Salões de Ensaio”, além de exposições de artistas como Osvaldo Teixeira, por exemplo. O ensino, por outro lado, ficou relegado às iniciativas privadas como a que ocorria no atelier de pintura de Veiga Santos. Pintor diletante, que exerceu influência sobre muitos pintores em Belém, com uma estética à maneira “acadêmico-ecléticopós-impressionista”, categoria de arte defendida por Campofiorito. (1983:70) Todo esse movimento cultural, todavia, surtiu pouco efeito na formação artística dos próprios educandos de arte, porém, muito menos no gosto da crítica e do público local quanto ao novo paradigma estético que se fazia presente principalmente no sul e no nordeste, o modernista. A exposição de Ismael Nery não foi bem recebida em Belém, na opinião de Ricci, foi um fiasco:

Após essa fase, a cultura pictórica ficou à deriva de iniciativas de grupos particulares ou de pessoas diletantes, pois o poder público estadual não conseguiu estabelecer políticas que consolidassem uma escola ou academia de artes no Pará, com isso os novos valores das artes plásticas foram encontrar abrigo na universidade quando foi criado, em 1963, o Curso e Arquitetura e, também por iniciativa e visão do Reitor Silveira Neto, realizouse o “Salão e Artes Plásticas da Universidade Federal do Pará”.

A mostra, como não poderia deixar de ser, violentaria os meios impregnados do academicismo e realismo, sendo mal recebida pelo público e os meios burgueses, alvo de verdadeira chacota e escárnio. Financeiramente, a exposição resultou num verdadeiro fiasco. O público, as elites, a burguesia escandalizaram-se e não puderam compreender nem mesmo ao menos tolerar a exposição de seu conterrâneo. Todavia, os intelectuais e os artistas paraenses compreenderam e defenderam a arte de Ismael Nery, quase diariamente, pelos jornais da época.

Embora tenha levado efeito somente duas edições, os salões de artes plásticas universitários foram os responsáveis pela abertura do campo cultural paraense para a vanguarda que ocorria na capital paulista, uma vez que entre as suas premiações faziam parte as viagem para visitas às Bienais e, nesse ponto, começa uma nova inflexão nas artes no Pará: a Bienal Amazônica de Artes Visuais é criada em 1972 e o Pará é representado na Bienal de São Paulo em 1974.

A primeira metade da década de 1940 é marcada pelas conseqüências da Segunda Guerra Mundial, a borracha por força do mercado, começa a ter certa valorização que depois, novamente, revelase efêmera, Belém não havia se preparado industrialmente para explorar aquela matéria prima, apesar dos esforços políticos. O Pará retoma o seu desenvolvimento, mesmo que efêmero e as artes são contempladas com a criação dos “Salões Oficiais de Belas Artes”, pela Lei n° 3.555 de 5 de setembro de 1940. As participações de Oswaldo Viana e Leônidas Montes na realização dos mais de dez salões, foram fundamentais para a cultura local.

Finalmente, podemos afirmar que o Pará, de fato, não teve sua Academia de Belas Artes a exemplo do que ocorreu em outras capitais brasileiras, de forma institucionalizada, sistemática e contínua. Mas teve um movimento artístico camaleônico, é certo, de fronteira, artistas de qualidade pontificaram em vários momentos de sua história e que compõem não um panteão, mas uma ocara nesse vasto lado de baixo do equador, pois tingiu, e transformou em outras cores o verde vago mundo descrito por Bopp, a sua maneira. (FARIAS, 2003: 120) 104

Academia de Belas Artes na Amazônia

Artes da Escola e Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2003. LUCARELLI, Francesco. Belém [reloaded], The Story Taller (o narrador). Napoli: Edizione Scientifiche Italiane , 2004. TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do Grão Pará. Rio e Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1963. RICCI, Paolo. As artes Plásticas no Estado do Pará. Fólio, depositado na Biblioteca da FUNARTE, Rio de Janeiro, aproximadamente 1978.

As causas dessa lacuna, da não existência de uma instituição forte para o ensino das artes plásticas, podem ser debitadas, por exemplo, à formação étnica local, por ser mais portuguesa, com uma tradição mais para a música e para as artes literárias, assim como ao imigrante nordestino, o que implicou no não investimento em espaços específicos para o ensino da pintura e para exposição de acervos públicos de arte. Por outro lado, o desinteresse dos políticos e da classe burguesa que preferiam os valores estrangeiros aos valores locais, fez com que se tornassem ineficazes as pensões para estudos na Europa, pois não havia um mercado de arte que sustentasse os artistas quando de seus retornos “do estrangeiro”; a política provinciana e preconceituosa em relação aos trabalhos manuais e a grande xenofilia reinante não permitiram que a escola de belas artes se fizesse uma realidade, a sociedade e os formadores de opinião não admitiam que o ensino de arte fosse ministrado por artistas locais, em conseqüência, Belém perdeu alguns valores locais para outros centros urbanos polarizadores de arte como Rio de Janeiro e São Paulo.

Notas 1

Professor da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Doutor em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. 2 Cf. ROQUE, C. Grande Enciclopédia da Amazônia, 1968, p. 828. - Termo originário da palavra Guajará, Baía onde se acha a cidade de Belém. Guajará é uma “planta da família das Sapotáceas (lacuma isepala Karuse Ducke), 3 Ibid., p. 890. - “Denominação literária da Amazônia, da grande baixada que distende dos arredores da Nauta, no Peru, às plagas do Atlântico, entre as sofraldas dos planaltos brasileiros e güiano, caracterizada pela uniformidade golpeante de um ‘mar de verdura’. Em 1908 apareceu com este título um livro admirável de cenas e cenários do Amazonas: escrevera-o o espírito fulgurante de Alberto Rangel. ‘Surpreendente, original extravagante’, o volume empolgou a atenção do país, e, logo, se inscreveu, até porque, como disse Euclides da Cunha, que o prefaciou, era ‘uma grande voz, pairando, comovida e vingadoura, sobre o inferno florido dos seringais que as matas opulentas engrinaldam e traiçoeiramente matizam das cores ilusórias da esperança...’” (Bernardino Souza).. 4 Ibid, p. 625-626. - “Fabulosa região, de riquezas sem fim que, segundo as tantas lendas, estaria localizada na América do Sul, em sua parte norte”. 5 Ibid, p.517. “Ser fantástico. Variante da Cobra-Grande, chamada também de Cobra Honorato”. Cf. O Liberal, Caderno Dois, de 1 de abril de 1990. - Augusto Morbach ilustrou em 1964 a lenda, e conta que o fez como as ilustrações de Goeldi no livro de Raul Bopp. 6 “Escritor. Natural da cidade de Belém [...] Criança ainda transferiu-se com sua família para o Acre. [...] De sua vivência no Acre nasceu – anos depois a obra em três volumes, denominada “Formação Histórica do Acre”. No retorno a Belém fez seus estudos secundários; no Rio bacharelou-se em Direito pela respectiva Faculdade Nacional. [...] No jornal “A Manhã” publicou seus primeiros trabalhos sobre a Amazônia. Em 1952 editava seu primeiro livro, “O Rio Comanda a Vida” (reeditado em 1968) [...] publicou, ainda: [...], “Amazônia Natureza Homem e Tempo”; “Brasil, Alguns Valores Essenciais”; “Acre, Rio Branco e Espírito Luso”; e “Euclides da Cunha”. Grande Enciclopédia da Amazônia, 1968, p. 168. 7 Excerto da introdução da tese de doutorado Calor, Chuva, Tela e Canivete – a pintura no tempo do modernismo em Belém apresentada a Escola de Comunicações e Artes da Universidade e São Paulo, em 2003, sob a orientação da Profa. Dra. Neide Marcondes de Faria. 8 Cf. LOBATO, J. M., Apud PINHEIRO, R. História da Pintura Brasileira. 1931: “O Brasil é uma vasta tela de

Julgar se foi historicamente positivo ou não a presença de uma escola de artes no campo das artes plásticas em Belém não acrescentará muito ao conhecimento e a história da arte brasileira, porque a abordagem, a partir de um modelo hegemônico, pode significar uma leitura de certa forma etnocêntrica, padrão da história e de seus testemunhos a partir da produção simbólica daqueles artistas que resistiram à todas as dificuldades, com outras falas, outros sotaques, outras visualidades, também híbridas, como toda a cultura latino americana (CANCLINI, 2006) que construiu caminhos outros e ao mesmo tempo semelhantes àqueles galgados pelos ditos centros hegemônicos do Brasil. Aos olhos daqueles que fazem e pesam a história interessam as múltiplas perspectivas, o não esgotamento e absolutização dos fatos que, no caso do ensino da arte em Belém, desde os finais do século XIX, é muito mais rico do que pode imaginar o conhecimento meia-sola da cultura brasileira. Referências bibliográficas CAMPOFIORITO, Q. História da Pintura Brasileira no Século XIX. V. 4. Rio e Janeiro: Edições Pinakotheke, 1983. CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas, uma estratégia para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2006. FARIAS, E. Calor, chuva, tela e canivete – a pintura no tempo do modernismo em Belém. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em 105

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República sob os auspícios das Organizações Diários Associados de Assis Chateaubriant para dirigir a nova fase do jornal “Folha do Norte” em 1947. Escreveu o capítulo referente a Arqueologia, pp. 13 -60 do volume I da coleção As Artes Plásticas no Brasil (1952), organizada por Rodrigo M. F. de Andrade. Ver também, LEITE, J. R. T. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil”, 1988, p. 55. 12 Augusto Meira Filho, paraense foi historiador escreveu sobre Belém, Antônio Landi, Arquitetura no Pará e em 1975, numa separata da Revista da Cultura do Pará, publica “Contribuição à História da Pintura na Província do GramPará no Segundo Reinado (Esboço biográfico de um artista esquecido)”.

oito milhões de quilômetros quadrados” e, portanto, necessita de ter, ainda, estudada as manifestações artísticas em outras regiões. 9 C.F. http://pt.wikipedia.org/wiki/ Carl Friedrich Philipp von Martius (12:21 de 13/10/2007) Carl Friedrich Philipp von Martius. (Erlangen, 17 e abril de 1794 - Munique, 13 de dezembro de 1860) foi médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil e especialmente a região da Amazônica. 10 Ver interessante debate sobre a questão in: BARBOSA, A. M. Arte-Educação no Brasil. 1978, pp. 82-84. 11 Em entrevista concedida para esta pesquisa, Paolo Ricci testemunha este fato. Frederico Barata teve uma importante participação na vida cultural de Belém, veio para Belém

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Não é certamente a lógica da história, mas a desordem dos eventos que se reflete na realidade urbana herdada do passado (ARGAN, 1993: 75). A celebração dos 200 anos da transmigração da Família Real para a cidade do Rio de Janeiro joga à luz dos refletores os resquícios do antigo cenário que serviu como palco para a inusitada inversão política e social, que transformou colônia em reino e reino em território secundário, administrado à distância. O centro do Rio de Janeiro abriga um patrimônio arquitetônico magnífico que testemunhou todo o processo de desenvolvimento urbano decorrente da instalação na cidade da corte portuguesa. A Praça XV de Novembro continua exibindo um conjunto memorável composto pelo Museu Histórico Nacional (antiga Casa do Trem que armazenava material bélico); o Centro Cultural do Paço (antiga Casa da Moeda, Paço dos ViceReis, Paço Real e Paço Imperial); o Centro Cândido Mendes (antes Convento da Ordem Carmelita); Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo (antiga Sé); contígua a essa, a igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo; a casa da família Telles de Menezes de Pinto Alpoim e o Chafariz da Pirâmide de Mestre Valentim. Com os portos abertos por interesses políticos e econômicos portugueses o Rio de Janeiro passou a experimentar um intercâmbio direto e regular com a Europa, fato que cooperou para a formatação do etos da cidade, cuja índole inclui uma abertura a novas relações e um grande apetite por modernidades. A cidade acostumou-se a receber com entusiasmo artistas e arquitetos estrangeiros – tanto os que por sua própria conta decidiam migrar em busca de oportunidades quanto os que vinham em missões oficiais, contratados pela Corte Portuguesa. Esse foi o caso da Missão Artística Francesa, cuja vinda ao Brasil :è resultado de uma conveniência histórica que disponibilizou excelentes artistas ligados à Corte deposta de Napoleão :è teve como mérito maior a criação da primeira instituição dedicada ao ensino das artes no país.

o curso de arquitetura da escola nacional de belas artes e o processo de modernização do centro da cidade do rio de janeiro no início do século xx helena cunha de uzeda

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O ensino artístico, estruturado dentro de academias de arte, seguia um modelo pedagógico de matriz francesa, reunindo cursos de pintura, escultura, gravura – de moedas e pedras preciosas – e arquitetura: todos eles comungando uma base comum de fundo humanista e outra dedicada ao desenvolvimento de competências específicas a cada uma daquelas artes. A criação de uma academia carioca tinha um objetivo imediato: melhorar o acanhado aspecto estético da colônia que hospedava a Corte portuguesa, garantindo uma imagem compatível com seu novo status. Imbuído desse compromisso, o arquiteto francês Grandjean 107

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de Montigny2 debruçou-se sobre sua prancheta criando planos de urbanização e projetos para prédios públicos, que habitariam uma idealizada cidade neoclássica, nunca concluída, para a Capital da Corte. O grande legado de Montigny foi, sem dúvida, sua participação direta na formação de toda uma geração de arquitetos brasileiros, que saíram de seu ateliê para erguer grandes projetos na capital e em cidades vizinhas – todos os que foram preservados constituem-se hoje em valioso acervo de nosso patrimônio cultural.

“moderno”. Seria possível uma instituição “tradicionalista” como a Academia de Belas Artes formar arquitetos prontos para lidar com toda aquela ansiedade por renovação? Muitos acreditavam que não. Em 1884, o arquiteto alemão Luiz Schreiner encaminhou ao Instituto Politécnico Brasileiro o pedido de extinção do ensino de arquitetura da Academia carioca. Seis anos depois, durante a reforma republicana, seria o próprio diretor da instituição, Moreira Maia, que aconselharia a exclusão do ensino de arquitetura dos cursos acadêmicos: “Parece-me, pois, de bom e acertado alvitre deixar para mais tarde a criação do curso, por ora de todo dispensável”(NOTAÇÃO, 1890). O fechamento do curso de arquitetura só não se concretizou pela intervenção dos professores Rodolfo Bernardelli e Rodolfo Amoedo, que elaboraram uma reforma que mantinha o curso, garantindo assim uma sobrevida do ensino que formava arquitetos dentro do âmbito da Escola.

A Academia Imperial de Belas Artes assistiu o comprometimento ideológico e econômico que mantinha com o Império transformar-se de bônus em ônus pesado demais para ser carregado em tempos republicanos. Já antes da destituição do Império, o curso que formava arquitetos na ENBA começara a sofrer uma redução em seu número de alunos, talvez como resultado da forte concorrência exercida pelo curso de arquitetura civil que passou a ser oferecido pela Escola Politécnica do Largo de São Francisco. Não podemos esquecer que esta prestigiosa instituição da Corte, tradicional na formação de engenheiros militares, viria a fornecer alguns dos principais líderes ao golpe republicano, o que lhe conferiu maior admiração e poder.

A permanência do ensino de arquitetura como parte integrante das belas artes constituiu-se numa vitória parcial, que iria necessitar para sua consolidação que fosse contratado um professor para a cátedra principal do curso :è Desenho de Arquitetura, Trabalhos Práticos e Projetos :è sem titular desde 1888, quando se afastou por aposentadoria o professor Francisco Bittencourt da Silva, discípulo de Grandjean de Montigny. Sem titular e praticamente sem alunos, as aulas de arquitetura contavam com dois professores suplentes – ironicamente, dois engenheiros: André Pinto Rebouças, professor da Escola Politécnica e Adolfo Del Vecchio 3 . A dificuldade de preenchimento daquela cátedra nos leva a imaginar que, naquele momento, o cargo de professor de arquitetura da ENBA não era motivo de grande cobiça. Del Vecchio, autor do projeto para o Posto de Alfândega na baía de Guanabara :è a charmosa Ilha Fiscal que flutua na Baía de Guanabara :è, gozava de prestígio junto ao Imperador Pedro II, o que lhe garantiu a indicação para diretor de obras do ministério da Fazenda. O projeto neogótico do engenheiro Del Vecchio para o posto da Alfândega :è premiado com medalha de ouro na Exposição Geral da ENBA de 1890 – era respeitoso à simetria e à centralidade, as mesmas características canônicas vinculadas às composições acadêmicas beaux-arts. Naquele período, não havia diferenças visíveis entre os projetos realizados por arquitetos e engenheiros, sendo comum que estes seguissem o modelo compositivo beaux-arts, com projetos que respeitavam a simetria, o equilíbrio e seguiam as tipologias e o padrão ornamental.

Não é difícil imaginar que momentos conturbados como os que implicam em troca radical de regime político e administrativo afetem drasticamente o desenvolvimento de instituições diretamente dependentes dos beneplácitos governamentais. Não podemos esquecer que mesmo com todo o apoio do Conde da Barca e o patrocínio de D. João VI, a idéia de criação de uma Academia em 1816 precisou de dez anos para se concretizar – necessitando aguardar que as convulsões resultantes da implantação do reino no Brasil fossem absorvidas. A transformação da Academia Imperial em Escola republicana em 1890 colocou a estrutura acadêmica diante de transtornos conjunturais de semelhantes proporções. Atreladas às transformações pedagógicas, remoinhavam-se outras questões cruciais, como o próprio caráter da profissão de arquiteto, cujas atribuições estavam sendo atropeladas pela capacitação técnica dos engenheiros e pelas novas demandas arquitetônicas. À dificuldade de implementação de uma nova abordagem administrativa somou-se o processo de transformação no conceito de “modernidade” que se operava na época. Naquele momento, novos usos dos materiais, programas arquitetônicos mais ambiciosos e uma busca por estéticas menos tradicionais colocavam em questão o que representava ser realmente 108

O curso de arquitetura da ENBA e a modernização do Rio de Janeiro no início do século XX

cidade –, a construção da Avenida Central (19031906) foi facilitada pelo poder de coerção que possuíam os governos do período. Desapropriações, arrasamentos de morros, demolições de prédios e remoções de comunidades ocorriam em meio a muitas aclamações e a algumas objeções que não chegaram a ameaçar o projeto. Essas reestruturações urbanísticas e arquitetônicas, patrocinadas pelo capital internacional e pelo poder político, tinham como beneficiários alguns grupos desejosos por legitimar seu valor dentro do cenário republicano. David Harvey (2003) lembrou que a reurbanização de Paris aliou a criação daquele novo espaço urbano ao capital financeiro e à especulação, gerando um modelo que seria reeditado em muitas outras cidades a partir de então. No caso do Rio de Janeiro, ficou evidente que a urbanização servira a determinados grupos, que se realocaram sobre o antigo tecido colonial, deslocando os estratos menos privilegiados da sociedade. Perfilou-se ao longo da Avenida o cortejo das forças republicanas, reunindo antigos e novos poderes. Entre os primeiros, as entidades vinculadas à Igreja, tradicionais proprietárias de terras: a Mitra-Episcopal, a Ordem Beneditina e as abastadas Irmandades Terceiras. O arquiteto Morales de los Rios que, à época, ocupava cátedras na Escola Nacional de Belas Artes, foi autor de cinco projetos para instituições religiosas que seriam construídos na Avenida. Lá, também, estavam as Forças Armadas, através de suas associações corporativas militares, como o Club Militar e o Club Naval. Além de exuberantes pontos comerciais, perfilavam-se no bulevar carioca novas forças emergentes, representadas por instituições financeiras e pela imprensa, que se fez representar por nada menos que quatro sedes de jornais: O País, Jornal do Comércio, O Século e Jornal do Brasil. Ali se reuniria, ainda, uma burguesia ainda presa aos atavios e títulos de nobreza, ao lado de “burgueses novos” que começavam a empresariar atividades fundamentais dentro do processo de modernização. Entre estas, se destacavam empresas de energia elétrica, que passariam a distribuir iluminação pública, residencial e a controlar o sistema de transporte eletrificado, ferroviário e urbano. A Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande :è controlada pelo americano Percival Farquhar, um dos futuros diretores da The Rio de Janeiro Tramway Light and Power Co. :O concurso que iria escolher os projetos arquitetônicos a serem construídos na Avenida Central, agitou os ânimos dos arquitetos da ENBA. Os trabalhos concorrentes foram apresentados ao júri num dos salões da Escola, ainda no antigo prédio da Travessa das Belas Artes, mostrando que

Onde estavam metidos todos esses arquitetos? Quando Rodrigues Alves sucedeu Campos Sales na presidência em 1902, o cenário econômico do país começava a apresentar sinais de melhoras, depois do período turbulento que acompanhara a derrocada do Império. Isto permitiu ao novo governo republicano lançar-se a novos empreendimentos, entre eles: as campanhas de saneamento e de erradicação de doenças endêmicas, como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, levadas a cabo pelo sanitarista Osvaldo Cruz. Eram iniciativas que visavam acabar com mazelas antigas, que haviam se vinculado ao império e ao atraso, adequando a cidade aos tempos modernos. Entretanto, nada teria maior destaque no início do século XX que as reformas urbanísticas feitas no degradado centro da cidade do Rio de Janeiro. Exibida como uma quinta-essência de modernidade nos trópicos, a construção de uma ampla avenida, ladeada por construções de inspiração francesa, serviu como marco não apenas da gestão Pereira Passos, mas da própria história cultural da cidade. A estrutura colonial que emaranhava de forma orgânica a antiga arquitetura de matriz portuguesa no centro da Capital Federal não parecia capaz de incorporar os grandiosos ideais republicanos. Para a República, aquela reurbanização assumia o caráter urgente e simbólico de afirmação do domínio político e social do poder burguês sobre um espaço tão importante. A força da profunda dependência cultural do Brasil em relação à França atenuou possíveis constrangimentos aos republicanos, que aceitaram o mesmo modelo usado na reforma urbana implementada pelo prefeito Haussmann4 em Paris, ainda que esta estivesse imbuída do simbolismo imperial de Napoleão III. A demolição das moradias populares do antigo núcleo parisiense escondia uma cruel intenção: afastar daquele nobre cenário a miséria explícita que se deixara aglomerar na cidade. O poeta francês Charles Baudelaire em Os Olhos dos Pobres, criticando o desprezo da reurbanização haussmanniana pela população desassistida de Paris, narrava o vazio do olhar de admiração e impotência dos desalojados diante do espetáculo da nova cidade. O jornal Correio da Manhã, de 15 de novembro de 1905, publicou um artigo sobre a nova Avenida Central, cujo título “Luxo e Miséria” embutia a mesma crítica social baudelaireana, que nos dá bem o tom excludente da urbanização carioca. Parte de um plano ambicioso, que envolvia a criação de um novo porto, na atual Praça Mauá, e de novas artérias para o tráfego – o que alterava o vetor de crescimento urbano para a zona sul da 109

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

a Escola se mantinha como um espaço legitimador das artes plásticas. O grande número de profissionais que se inscreveram no concurso e a qualidade apresentada pelos trabalhos surpreendeu até mesmo mentes críticas, como a do poeta Olavo Bilac. Diante de mais de oitenta projetos arquitetônicos, elaborados com apuro e competência, Bilac declarou que todos os presentes nas salas de exposição deveriam estar fazendo a mesma pergunta que ele próprio se fazia: “Onde estavam metidos, que faziam, em que se ocupavam todos esses arquitetos que aparecem agora, com tanto talento, com tanta imaginação, com tanto preparo, com tanta capacidade?”5

técnicos. A crítica pareceu desconsiderar o fato de que o sistema de composição arquitetônica, desenvolvido pelo ensino das academias de arte, estruturava-se, invariavelmente, sobre a tríade: planta, seção e elevação, sendo apenas esta última relativa à fachada. Não se levou em conta, tampouco, que entre os profissionais premiados naquele concorrido concurso encontravam-se engenheiros com formação extremamente técnica que, mesmo não tendo saído das fileiras artísticas da academia, apresentaram projetos que se enquadravam, rigorosamente, dentro do mesmo espírito acadêmico e decorativo comum à época. Paulo Santos, no texto que introduz a obra de Ferrez, “O Álbum da Avenida Central” (FERREZ, 1983), reafirma a existência das plantas dos projetos daquele concurso, justificando a ausência delas na compilação dos riscos das fachadas: “A inclusão dessas plantas, no entanto, deve-se reconhecer, teria dado ao Álbum um caráter demasiadamente técnico” (SANTOS, 1983: 27). A fachada dos bulevares representava a verdadeira opera a ser encenada nas cidades modernas. A planta do projeto, cortes, cálculos e orçamentos constituíam-se em assunto de bastidores, ficando geralmente distantes do alcance dos refletores. Não haviam sido as fachadas ornamentadas da Place Vendôme de Paris que seduziram Le Corbusier, que as considerou um “patrimônio universal”? De forma análoga, a construção da Avenida Central no centro urbano do Rio de Janeiro também encantara Le Corbusier, a despeito de toda aquela exibição explícita de ecletismo historicista, tão criticado pelo movimento racionalista.

O período problemático que havia se seguido à instauração da República não permitira grandes empreendimentos, o que contribuiu para obscurecer os profissionais de arquitetura que se lançavam ao mercado. A abertura da Avenida Central resultou, assim, num momento de rara oportunidade para a atuação dos arquitetos. Alguns deles eram ligados a ENBA e iriam entrar em cena em grande estilo. Com quase dois quilômetros de comprimento e 33 de largura, a avenida parecia ser mais do que suficiente para alguns poucos carros à tração animal e a meia dúzia de automóveis importados que circulavam pela cidade. Entretanto, a largura que na época parecia exorbitante foi contestada por Morales de los Rios, que defendia o dobro da extensão, certamente influenciado pela grandiosidade da Avenida Nove de Julho de Buenos Aires, que Morales visitara pouco antes de se instalar no Brasil. A moderna Avenida Central – pavimentada com asfalto e iluminada com energia a gás e elétrica – foi inaugurada com 30 prédios já concluídos e mais de oitenta em processo de construção. O bulevar carioca com sua arquitetura exuberante conferiu “ares europeus” à cidade e extasiou a burguesia novidadeira, mas, muito mais que isso, serviu como laboratório e vitrine privilegiada para arquitetos, engenheiros e construtores – responsáveis diretos por aquele espetáculo e que travavam nos bastidores uma disputa velada pelo domínio no campo da construção civil.

O cenário ambicioso montado no centro do Rio de Janeiro dava mais visibilidade à confusa superposição de atribuições entre arquitetos, engenheiros e construtores, que vinham imbricando-se havia séculos. A organização do júri para escolha dos melhores projetos para a Avenida :è seis engenheiros, três médicos e o escultor Bernardelli :è reafirmava o desequilíbrio de forças na virada republicana, que privilegiava claramente os profissionais da área de medicina e de engenharia. Engenheiros e médicos eram considerados, naquele momento, como os mais aptos ao manejo de questões ligadas à urbanização, como abastecimento de água, escoamento de esgoto, demolições, abertura de ruas, pavimentação, e à promoção da saúde pública, como o saneamento da cidade e o combate às epidemias.

Os partidários das idéias racionalistas lançariam, nas décadas seguintes, suas críticas à ênfase que foi dada às fachadas ornamentadas, de cunho notadamente eclético e acadêmico, em detrimento da funcionalidade racional. Ainda que a escolha dos melhores projetos a serem erguidos na Avenida tenha ficado conhecida como “Concurso de Fachadas”, não devemos imaginar que tais riscos fossem desprovidos de planta e demais detalhes

Os arquitetos pareciam haver sido deixados à margem. Além da prerrogativa de julgar os projetos a serem erguidos na Avenida Central, os 110

O curso de arquitetura da ENBA e a modernização do Rio de Janeiro no início do século XX

engenheiros detinham todo controle sobre a execução das obras, como demonstra a tripartição realizada pela Comissão Construtora da Avenida: encargos financeiros, construção e administração de pessoal, cada uma dessas comissões entregue a um engenheiro. A escassez de representantes do campo da arquitetura à frente da organização de uma obra como aquela não chega a causar estranhamento se considerarmos o poder que os engenheiros militares haviam conquistado dentro da administração republicana. Entretanto, a presença expressiva de arquitetos ligados ao Curso de Arquitetura da ENBA entre os mais de 80 vencedores do concurso – que contou com profissionais franceses, ingleses e italianos – mostrava uma imagem mais justa à relevância que o ensino de arquitetura acadêmico representou para o empreendimento. Mais de um quarto do total de projetos haviam saído das pranchetas de professores e ex-alunos da ENBA: Morales de los Rios, Heitor de Cordoville, Ludovico Berna, Heitor de Mello, Gastão Bahiana e Bittencourt da Silva. Esta participação expressiva trouxe prestígio inesperados aos arquitetos ligados ao ensino acadêmico, o que iria influenciar a decisão do governo de conceder à Escola um espaço na Avenida.

sinalizar horizontes mais felizes para o ensino acadêmico. A localização da nova sede na parte mais nobre da Avenida, ladeado por outras construções grandiosas, como o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional, garantiu um prestígio maior à instituição e, conseqüentemente, à gestão do diretor Rodolfo Bernardelli. Composto por quatro alas em torno de um pátio central, o projeto eclético 6 de Morales garantiu maior conforto para as atividades acadêmicas e extra-acadêmicas, entre estas, as Exposições Gerais, que premiavam os melhores trabalhos de artistas nacionais e estrangeiros, funcionando como vitrine legitimadora das artes plásticas na capital da República. A construção da Avenida Central e a destacada participação dos arquitetos acadêmicos no empreendimento contribuíram diretamente para o reconhecimento da eficiência do Curso de Arquitetura da ENBA. A visão de um ensino de arquitetura acadêmico retrógrado e tradicionalista seria cristalizado por meio das críticas modernistas e acabaria gerando um paradoxo. Em 1978, o arquiteto Abelardo de Souza escreveu o texto A ENBA, antes e depois de 1930, no qual colocava essa aparente contradição.

Em 1905, ano em que as obras viárias foram concluídas, ainda não havia determinação oficial de destinar o projeto que ocupa o número 199 da Avenida Rio Branco à Escola Nacional de Belas Artes. O professor Alfredo Galvão transcreveu as queixas feitas à época sobre o que foi considerado como uma falta de consideração do Ministro da Justiça, que não atendera os pedidos para que fosse construído um novo prédio para a Escola.

[...] pensar que com aquele ensino, com aqueles professores completamente desatualizados da realidade, completamente ignorantes do que já se fazia no resto do mundo, se formaram arquitetos, citando apenas alguns, como Lúcio Costa, Afonso Eduardo Reidy, Marcelo Roberto, Atílio Correa Lima [...] (XAVIER, 2003: 67). Duas décadas antes de Abelardo de Souza, numa visão mais apurada, Lúcio Costa já havia compreendido a importância da criação da Academia de Belas Artes no Brasil e do curso de arquitetura nos moldes acadêmicos. Em seu texto de 1951, “Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre”, Lúcio Costa afirmava: “Integrava-se assim, oficialmente, a arquitetura de nosso país no espírito moderno da época [...]” (XAVIER, 2003: 78). A seguir, ele enumerava de forma honrosa os antigos professores de arquitetura da ENBA e algumas de suas obras, sem permitir que o esgotamento dos modelos ecléticos – e que a mágoa de haver sido destituído da direção da Escola em 1931 – o fizesse perder a dimensão do papel definidor que o ensino artístico acadêmico da Escola havia representado na trajetória da arquitetura brasileira.

Quase todos os estabelecimentos de ensino dependentes do ministério a vosso cargo tiveram reformas necessárias, aumento de edifício e até aquisição de terrenos para a construção na Avenida Central, só a ENBA [...] infelizmente, não viu realizado o desejo que há tantos anos nutre de vê-la instalada convenientemente (GALVÃO, 1905: páginas não numeradas). Todas as tentativas feitas junto ao governo por Rodolfo Bernardelli para que fosse conseguido um local maior para os cursos acadêmicos – que continuavam mal alojados no acanhado prédio construído por Montigny na década de 1820 – haviam sido infrutíferas. Finalmente, a ENBA acabou recebendo um majestoso prédio na Avenida Central, que ocupava todo um quarteirão. O edifício era um dos 17 projetos de autoria do arquiteto e professor Morales de los Rios, o que parecia 111

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O que se verificou nessa busca pela renovação foi uma dramática alteração conceitual do que representava exatamente ser “moderno”. Era um período confuso de transição entre uma modernidade baudelairiana, ainda romântica e histórica, para uma outra – pós-cubista, abstrata e anistórica – que desqualificava os historicismos e seus amálgamas ecléticos. Aquelas formas híbridas e aparentemente anacrônicas haviam estabelecido um forte vínculo com o ensino de arquitetura acadêmico que, entre a abertura da Avenida Central e a Exposição Comemorativa do Centenário da Independência em 1922, havia se caracterizado por muitas produções dentro desse espírito.

construções que impressionaram os críticos da época por sua grandiosidade e acabamento serviram como atestado da proficiência técnica e da qualidade artística dos arquitetos acadêmicos. Infelizmente, os testemunhos materiais de toda essa rica história foram sendo apagados silenciosamente. O pioneiro prédio neoclássico projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, que deu início ao ensino das artes e da arquitetura no Brasil, foi demolido em 1938 e hoje abriga um estacionamento. A demolição, sem justa causa, contou com o beneplácito do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cuja ideologia privilegiava a arquitetura neocolonial de matriz portuguesa, eleita como resposta nacional ao ecletismo importado. As construções da antiga Avenida Central passaram a ser consideradas também como “antiqualhas afrancesadas”. A partir da década de 1950, os prédios da histórica Avenida foram sendo gradativamente demolidos e substituídos por edifícios modernos, cuja escala colossal afronta a singeleza das antigas construções e quebra a harmonia daquele conjunto eclético.

A percepção de uma instituição fechada ao novo e aprisionada às doutrinas da École de Paris, em que pese a enorme dependência cultural francesa desde os tempos da chegada da Missão Artística – e que iria se reafirmar com a escolha do modelo corbusieriano – , não encontra sustentação nos registros mais importantes da instituição: as Atas da Congregação dos Docentes da Escola. A grafia rebuscada desses livros administrativos revelam posições surpreendentes, como a do diretor Araújo Porto Alegre que defendia, já em 1855, o combate aos hábitos e as tradições do passado para que se pudesse acompanhar os novos caminhos propostos, destacando, como exemplo, as inovações construtivas do projeto de autoria do inglês Joseph Paxton para o Crystal Palace :A inauguração da elegante Avenida Central com suas sofisticadas construções contribuiu para dar visibilidade à eficácia do curso de arquitetura da ENBA. As demandas trazidas pela urbanização da Capital e a conjuntura favorável à construção civil a partir daquele momento :è incluindo as duas exposições internacionais, a de 1908 e a de 1922, que ocorreram no Rio de Janeiro :è seriam decisivas para o reconhecimento dos arquitetos como “artistas” criadores e do curso de arquitetura da ENBA como celeiro de bons profissionais de arquitetura. Dessa forma, o ensino de arquitetura, em meio à baixa estima que o atingira e a seus docentes, diante da perda de prestígio frente à engenharia e do completo esvaziamento de suas aulas, teve na construção da Avenida Central uma virada espetacular, a partir da qual conseguiu consolidar seu papel como formador de arquitetos capazes e atualizados. Não poderia passar despercebido o fato de que no concurso para a escolha dos projetos a serem erguidos na nova Avenida – que contou com arquitetos e engenheiros estrangeiros de grande prestígio na cidade – um terço dos trabalhos havia saído das pranchetas de professores e alunos da ENBA. Aquelas

Há mais de 70 anos assistimos a uma narração eloqüente, construída a partir da ótica do movimento moderno, que nos conta a história de como os modernistas revolucionaram o ensino da ENBA e a própria trajetória da arquitetura brasileira. Essa oratória persuasiva convertia os arquitetos racionalistas nos grandes vencedores do “embate heróico” que confrontava a estética funcionalista aos estrangeirismos “requentados” da arquitetura acadêmica. O Curso de Arquitetura da ENBA mostrou possuir sua lógica própria: as “rupturas”. Proposta, as demandas tecnológicas, os novos materiais e as novas percepções estéticas, acostumaram-se a conviver com a antiga estrutura pedagógica que, mesmo sendo repetidamente acusada de anacrônica, seria mantida em seus fundamentos básicos, continuando a servir à tarefa de formar arquitetos. A grade curricular do Curso de Arquitetura em 1968 ::Os vestígios que demonstram a eficácia pedagógica e a saúde institucional da ENBA foram providencialmente ocultados sob o discurso modernista. As célebres palestras proferidas por Le Corbusier em 1929, abrindo as discussões sobre o racionalismo abstrato, são normalmente citadas sem que se dê muito crédito ao fato de haverem se realizado numa das salas da “retrógrada” ENBA e de terem sido organizadas pelo “desatualizado” professor Morales de los Rios Filho, regente da cátedra de História e Teoria da Arquitetura da Escola. O paradoxo que 112

O curso de arquitetura da ENBA e a modernização do Rio de Janeiro no início do século XX

tanto intrigara o arquiteto Abelardo de Souza :è que se indagava sobre como um ensino tão “obsoleto” e professores “completamente desatualizados e ignorantes” puderam formar arquitetos tão inventivos e capazes, como os da brilhante safra modernista :è só surpreende aos que não conhecem a fundo as idéias que circulavam pelos corredores da ENBA. E aos que não conseguem relativizar a produção eclética de alguns de seus professores e alunos, que foram brilhantes e modernos, dentro do sentido de seu tempo.

SANTOS, P. Introdução. FERREZ, M. O Álbum da Avenida Central: 8 de março de 1903. SOUZA, A. A ENBA, antes e depois de 1930.XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma Geração. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. UZEDA. H. C. Ensino Acadêmico e Modernidade: o Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes / 1890-1930. 2006, 472 f. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes /UFRJ, Rio de Janeiro, 2006. ________. O Ensino de Arquitetura na Academia de Belas Artes: 1826-1889. PEREIRA, S. G. (org.) 185 Anos de Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro, UFRJ, 2001-2002, p. 41-67. XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.

Referências bibliográficas ARGAN, G. C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo : Martins Fontes, 1993. BAUDELAIRE, C. De Le Spleen de Paris (Les Petits Poèmes en prose), 1869. BILAC, O. Crônica de Olavo Bilac. Revista KOSMOS, Rio de Janeiro, v. 1, nº 4, [páginas não numeradas] abril de 1904. COSTA, L. Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre [1951]. XAVIER, A. Depoimento de uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. FERREZ, M. O Álbum da Avenida Central: 8 de março de 1903 – 15 de novembro de 1906. Rio de Janeiro: F. Bevilacqua & Cia. / Ex Libris, 1983. (um documento fotográfico da construção da Avenida Rio Branco). GALVÃO, A. Relatórios da Escola Nacional de Belas Artes, 1905 (Documentos de Pesquisa do professor Alfredo Galvão: páginas não numeradas – Museu D. João VI, EBA-EFRJ). HARVEY, D. Paris, Capital of Modernity. New York and London: Routledge, 2003. NOTAÇÃO nº 711, 1890. (Arquivos do Museu D. João VI / EBA-UFRJ) Cópia de ofício do diretor da Academia ao ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, informando a posição da Congregação frente ao projeto de reforma da Academia, realizado pela comissão encarregada pelo Ministério do Interior, e enviando projeto substitutivo.

Notas 1

Doutora em artes visuais pela UFRJ; professora adjunta do Departamento de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. 2 Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850) nasceu em Paris e seu trabalho como arquiteto da Missão Artística Francesa (1816) teve grande relevância no desenvolvimento da arquitetura brasileira. Morreu no Rio de Janeiro e consta que seus restos repousam no Convento de Santo Antônio no Largo da Carioca. 3 O engenheiro Adolfo José Del Vecchio (1848-1927) foi professor honorário da Academia de Belas Artes/ ENBA, ocupando a cadeira de Física Experimental e Meteorologia da Academia Naval até 1913. 4 O Barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) foi prefeito de Paris entre 1853 e 1870, tendo sido responsável pelas grandes reformas urbanas da cidade, ao tempo de Napoleão III. 5 BILAC, O. Crônica de Olavo Bilac. Revista KOSMOS, vol. 1, nº 4, abril de 1904, p. 7. 6 O prédio reunia uma fachada principal inspirada na ala de Lefuel e Visconti do Museu do Louvre, fachadas laterais inspiradas no Renascimento Italiano e uma posterior com maior liberdade compositiva.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Este artigo é fragmento de um estudo maior voltado para a relevância da Retórica e da Tipologia no ensino artístico em âmbito nacional financiado pelo Centro Universitário Metodista Bennett. No presente texto são verificados os posicionamentos em relação à prática da cópia como alicerce para a invenção artística e como ferramenta para a difusão das assimilações tipológicas e retóricas pelo aluno brasileiro oitocentista. O Período Antecessor a Criação da Academia Imperial das Belas Artes no Rio de Janeiro A prática da cópia acompanhou o homem em toda a história, independente da civilização ou nação; fundamentando os pilares pedagógicos da escrita, do aprendizado oral e da produção artística. O aprendizado do artista, por exemplo, alicerçou-se na reprodução das obras de grandes mestres consolidados pela tradição. O aprendizado artístico implementado na América Portuguesa durante os séculos XVI, XVII e XVIII seguiu o padrão básico do medievo europeu concentrando na figura do mestre a total responsabilidade no que diz respeito ao translado do ofício ao aprendiz. “A aprendizagem do ofício fazia-se na oficina ou tenda onde, em contato com os oficiais, e sob a orientação do mestre eram administrados ao jovem os conhecimentos considerados básicos da profissão” 1.

os propulsores da prática da cópia na academia imperial das belas artes: períodos de introdução e consolidação de uma metodologia artísticopedagógica reginaldo da rocha leite *

A transmissão do conhecimento se dava, então, no âmbito oficial restrito ao savoir-faire, o saber mecânico, exclusivamente prático e distanciado do saber teórico evidenciado pelas academias de arte. Embora a formação do artífice e do artista não fosse sistemática e especializada. O exercício de seu ofício o levava à realização de diferentes tarefas de conhecimento prático e afim com sua formação. Essa forma de ensino, realizada em estreita relação de dependência entre aluno e mestre, resultava na extensão do seu traço, do seu estilo, de suas técnicas e segredos.(FERNANDES, 2001: 40). As oficinas agrupavam-se nas chamadas Corporações de ofício que possuíam um regimento, mas que nem sempre era respeitado na íntegra. Segundo o regimento das Corporações de ofício o mestre deveria ter apenas dois aprendizes, mas tal regra nem sempre foi respeitada, havendo mestres que possuíam até cinco ou seis aprendizes ao mesmo tempo. Esses profissionais deveriam ser fiscalizados periodicamente e possuir licença para ensinar, o que nem sempre acontecia. Do mesmo modo, era comum entre carpinteiros ou pedreiros, por 114

Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

exemplo, a prática da elaboração de riscos o que os levou, erroneamente, a serem chamados de arquitetos, assim como alguns entalhadores, de experiência comprovada, serem considerados escultores estatuários. (FERNANDES, 2001: 40).

revalorizou as imagens que a Reforma depreciara e proibira; encorajou a formação e a difusão de uma nova iconografia sacra, que fornecesse a todos os fiéis os mesmos objetos e os mesmos símbolos para uma devoção de massa; e serviu-se das gravuras figuradas como um meio poderoso de propaganda religiosa. (ARGAN, 2004: 17).

Todavia, os primeiros passos para a implantação do ensino artístico no Brasil foram dados por monges nas oficinas instaladas no interior dos mosteiros, nas quais eram ensinados pelos religiosos, ainda de forma precária, os diferentes ofícios, entre eles, os de caráter artístico. Ulteriormente ao ensino nos mosteiros é que as Corporações de ofício se concretizam com a atuação dos mestres leigos e oficiais mecânicos. Entretanto, é importante frisar que em ambos os âmbitos, nos mosteiros ou nas Corporações, a produção e o ensino artísticos eram alicerçados pela prática da cópia das gravuras de reprodução vindas da Europa. Dom Clemente Maria da SilvaNigra, a título de exemplo, conclui que o pintor frei Ricardo do Pilar usou modelos referenciais para executar suas obras no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, “é natural que em suas condições, frei Ricardo do Pilar se baseasse em painéis conhecidos, ou em gravuras de desenhos de outros artistas” (SILVA-NIGRA, 1950: 202). Analisando atentamente as pinturas que contam episódios da iconografia de São Bento, Silva-Nigra afirma que, “foram eles pintados à vista de uma coleção de estampas antigas” (SILVA-NIGRA, 1950: 157)2.

No entanto, apesar de já nos anos quarenta a pesquisadora Hannah Levy3 chamar a atenção para esse fato, ainda hoje são escassos os estudos em relação à gravura como fonte tipológica na confecção de pinturas para igrejas e como material didático durante a cultura oficinal que enxergava a prática da cópia como principal recurso metodológico. No fazer artístico Luso-americano foi comum o uso de gravuras como modelos iconográficos para pinturas. Essa prática é conhecida pelos historiadores da arte brasileira, porém poucas pesquisa foram feitas comparando os modelos gráficos com as pinturas no Brasil. (BORGES e SOUZA, 2004: 1). Assim como no período colonial, no oitocentos a antiga Academia brasileira de ensino artístico privilegiou a prática da cópia desdobrando-a em várias linguagens visuais, partindo do desenho à pintura. Mas, no âmbito acadêmico, quem foi o responsável pela motivação dessa atividade desempenhada durante a formação do artista brasileiro?

A recorrência à gravura como referência para a execução de pinturas de forro ou de retábulo era corriqueira também em território luso, de acordo com Vítor Serrão.

O Francês Lebreton e o Período de Introdução

No Brasil durante o período colonial, assim como na Europa, a gravura passa a ser, não só, a principal ferramenta de divulgação das pinturas européias e de suas tipologias, mas, torna-se também importante instrumento de difusão do cristianismo.

Lebreton (1760-1819) foi o impulsionador de um ensino pautado na cópia. Antes mesmo de vir ao Brasil já negociara a compra de telas européias para formarem o acervo da Pinacoteca da Academia Imperial das Belas Artes. O primeiro lote, constando quarenta e duas peças, foi vendido ao Brasil pelo negociante de quadros Jean Baptiste Meunié, em 04/15/1815, ano em que se organizavam os preparativos para a vinda da Missão Artística Francesa ao Rio de Janeiro. O segundo lote, constando doze quadros, foi também oferecido por Meunié a Lebreton, em 1816, ocasião em que o último já se achava no Brasil. Na primeira aquisição encontravam-se oito cópias, e na segunda quatro, totalizando doze cópias trazidas por Lebreton e inseridas na instituição brasileira de ensino artístico.

A razão prática da difusão mediante a reprodução por gravura de obras de temas religiosos é conhecida: a Igreja católoica

Durante a primeira metade do século XIX a Academia Imperial absorveu o sistema beaux-arts de ensino para os seus conteúdos programáticos

Os exemplos são inúmeros, e provam que a clientela religiosa pretendia, tanto como qualidade artística, fidelidade na representação das ‘histórias sagradas’, a fim de evitar o mínimo problema com a censura inquisitorial. A aprovação prévia de gravuras servindo de modelo à iconografia desejada era o modo mais corrente de facilitar as coisas, tanto para os clientes como para os artistas.”. (SERRÃO, 2000: 195).

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

tendo a imitação da natureza como principal eixo. Com o advento da Missão Artística Francesa e a criação de uma dupla Escola de Artes e Ofícios por Lebreton a prática da cópia propagou-se por todo o oitocentos, na Academia brasileira, aos moldes da École de Dessin francesa.

contratação dos modelos para as aulas de nu e na escolha das obras que serviriam de material didático para o aprendizado dos alunos. Não deixava escapar nada do seu crivo normativo como é possível verificar no Decreto de 30 de dezembro de 1831.

Mas, vejamos o programa da Academie conforme ficou estabelecido pelos Estatutos de 1663: após a admissão, os alunos eram encaminhados à École de Dessin, às vezes denominada École du Modèle, para estudarem desenho durante dois, três ou até mesmo, quatro anos, dependendo do desempenho de cada um. Havia um curso básico no qual os iniciantes copiavam as obras dos professores e depois as moldagens: mãos, pés, pernas, torsos, cabeças e, por último, estátuas de corpo inteiro.” (SÁ, 2004: 166).

Decreto de 30 de dezembro de 1831 Capítulo II/ Do Regime/ Art. 2º À Congregação compete: 6º Escolher os modelos vivos ou de imitação tanto de desenho e pintura, como de paisagem, escultura e arquitetura, que se houverem de dar aos alunos para copiarem; são excetuados porém deste exame os trabalhos originais dos professores”. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/UFRJ). O impulso definitivo que a Reforma de 1831 proporcionou à cópia preparou o terreno para a consolidação dessa prática como instrumento didático e de avaliação da qualidade do aluno e do professor da instituição brasileira por várias décadas até os anos noventa. No que diz respeito aos concursos para a contratação do corpo docente da Academia Imperial, durante todo processo de seleção, a cópia mantinha-se como ferramenta primordial. Na Sessão ocorrida em 09 de junho de 1833 foram estabelecidas as regras do concurso para o preenchimento da vaga de substituto da aula de pintura de paisagem.

As condições acadêmicas diferem das do Brasilcolônia ganhando, a cópia, um alargamento de linguagens – ultrapassando os limites da gravura estrangeira e alcançando outros meios como as imitações a partir do antigo expressado pelas moldagens em gesso, do desenho de professores da Academia, do modelo vivo e das pinturas dos grandes mestres europeus. Além da contribuição do francês Lebreton para a formação de uma Pinacoteca responsável pela orientação dos alunos e servindo como ferramenta didática para os professores da instituição, a Reforma dos Estatutos de 1831 foi fundamental na estruturação de um ensino centrado na cópia. A Academia sofreu três importantes Reformas, de estruturação pedagógica, que provocaram mudanças nos programas disciplinares, criaram novas disciplinas e, consequentemente, posicionaram-se diretamente sobre a metodologia de ensino da instituição. Uma dessas posições foi tomada em relação à prática da cópia, ora dignificando-a, ora desprestigiando-a4.

Aberta a Sessão ao meio dia, foi lida e aprovada a acta da anterior. Logo o secretário leu o offício mencionado na acta anteriormente e foi approvado. Apresentou-se a cópia do programma – O concurso para o lugar de substituto da aula de paysagem terá lugar, conforme o que foi determinado pela Congregação dos Lentes sobre a proposição do Lenteda dita aula, na forma seguinte:1º os oppositores copiarão a óleo hum painel de Paul Bril; e para este efecto dão se dez dias úteis a cada hum delles. A entrada do local em que trabalharão, fica exactamente vedada a todos sem excepção os quadros de papel preparado, em que se farão as cópias, serão iguaes no tamanho, e primeiro de que serviram, receberão a assignatura do respectivo professor cada concorrente distinguirá a sua produção por hum número, o qual virá junto com o nome huma carta fechada que não se abrirá senão depois do julgamento feito, e na presença da Congregação”. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/UFRJ).

A Reforma Lino Coutinho aprovada pela Regência em 30 de dezembro de 1831 e assinada pelo conselheiro José Lino Coutinho, então Ministro de Estado dos Negócios do Império, ao ser implantada na Academia mostrou-se favorável à formação artística fundamentada na cópia. Observando planos curriculares que especificam a formatação do curso de Pintura Histórica pudemos observar que a Reforma ainda propunha a obrigatoriedade da imitação no aperfeiçoamento do aluno, para então galgar à confecção de uma tela original. A Reforma era bastante transparente no que dizia respeito a responsabilidade da instituição na 116

Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

A cópia a óleo de uma tela estrangeira era a primeira atividade a ser cumprida pelos candidatos e certamente a mais importante, pois naquele momento eram verificados a capacidade de observação das formas, dos volumes instituídos pelas luzes e sombras e as estruturas compositivas, como é o caso do cromatismo da obra. Mediante aprovação nessa fase o candidato estaria apto a continuar no processo seletivo, o que demonstra a relevância atribuída à prática da cópia.

apenas copiar os antigos, era primordial entender os processos resolutivos das problemáticas compositivas, ou seja, de que forma os grandes mestres conseguiram solucionar exigências formais e temáticas em seus trabalhos. Segundo Taunay, a única maneira que poderia conduzir os brasileiros a um lugar no mundo civilizado seria a imitação dos europeus. Temos pois estes três povos, o grego, o italiano, o francês entre os quais nasce, se desenvolve e se conserva o bom gosto artístico. Senhores, estudando profundamente as feições salientes das suas nacionalidades e conferindo-as com o caracter brasileiro, ninguém se recusara a admitir, por uma analogia consentâneo com os fatos já adquiridos, que este povo tem toda a aptidão para a manifestação imitativa, que por ellas, ele deve se sobresair e fazer se notável no mundo civilizado.”. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/UFRJ).

Situação semelhante ocorre durante o concurso para professor das aulas de desenho e de pintura histórica registrada na Sessão de 23 de julho de 1835. O concurso para a substituição das aulas de desenho e pintura histórica, terá lugar, em conformidade do que foi determinado na Sessão de 23 do corrente da Congregação dos Lentes, pela forma seguinte: 1º os oppositores copiarão a lápis e todos na mesma proporção o gesso do Apollo Lucio dito Apollino, e a este effeito dão-se oito dias úteis trabalharão juntos, escolhendo amigavelmente elles entre si, na presença do Director e do Lente respectivo, a posição que mais lhes agradar. As folhas de papel em que executarão suas cópias, serão de igual tamanho, e receberão antes de servirem, a assignatura do Lente. 2º copiarão a óleo o busto de S. Sebastião, com as mãos atadas acima da cabeça do quadro de I. C. Procaccini dá-se-lhes para este trabalho quinze dias úteis. As disposições são as mesmas acima marcadas. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/UFRJ).

Taunay ainda foi o responsável pela criação do Prêmio de Viagem à Europa, em 1845, atividade que proporcionaria a aproximação in loco do aluno brasileiro à pintura européia localizada nos renomados museus italianos e franceses. Com a chegada dos anos cinqüenta a Academia Imperial ganhou um novo diretor responsável por inúmeras contribuições ao ensino artístico acadêmico, Manoel de Araújo Porto-alegre. Ao assumir o cargo em 1854, Porto-alegre deixava transparecer as vontades progressista, renovadora, nacionalista e centralizadora que, aos poucos foram sendo adotadas. O caráter atuante do diretor responsável pela implementação da Reforma Pedreira em 1855 deu continuidade ao perfil normativo da Academia que ampliava cada vez mais o controle sobre o ensino e a produção artística nacional. Segundo Porto-alegre a Academia devia ser responsável por toda e qualquer manifestação artística financiada pelo Estado, instaurando regras, avaliando sua prossecução e, sobretudo, contribuindo para a difusão do bom gosto e das belas formas como pode ser observado no relato reivindicador do diretor.

Copiar o gesso, reproduzir um quadro a óleo, eram processos sintomáticos adotados pela Academia Imperial cotidianamente durante as aulas ou em seus concursos e, que ganharam incentivo com a passagem de Taunay pela direção da instituição. Taunay e Porto-alegre: O Período de Consolidação Após a nomeação de Félix-Èmile Taunay ao cargo de diretor da antiga Academia brasileira (1834) e da Reforma dos Estatutos de ensino (1831) o modelo vivo, a cópia das moldagens em gesso e o estudo a partir das coleções de gravura e de pinturas se intensificaram. Segundo Taunay o aprendizado fundamentado na observação e cópia das obras dos mestres europeus conduziria o aluno a familiaridade com as Escolas Artísticas Européias, intensificaria o gosto pelas belas formas e ajudaria na resolução de problemas relativos à composição das obras plásticas. Não bastava

Senhor – Os sacrifícios pecuniários feitos pelo Governo Imperial a favor da Opera Lyrica e da Arte Dramática, não são devidamente correspondidos no que respeita a scenographia e vestuário nos doces theatros subvencionados – Os theatros, nos tempos em que não eram tão e directamente protegidos procuravam satisfazer essas exigências artísticas, e as levarão a um ponto de superioridade tal, que 117

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

bem longe de continual-o, e progredirem, pelo contrário se não sejão de ostentar actualmente um imperdoável desleixo, que não corresponde com as vistas e a generosidade do Governo. Para contrabalançar esta decadência, a Academia tem a honra de apresentar a Vossa Majestade Imperial um meio, que lhe parece concentâneo com o espírito administrativo acerca dos theatros e das artes. – A Academia das Bellas Artes pode, assim como faz o Conservatório Dramático para as peças e libretos, tomar uma espécie de direção nesta parte artística, poi toda ella está no domínio espacial dos seus estudos. – O que se vê diariamente no Theatro de S. Pedro, e especialmente no Theatro Provisório não está em harmonia com o nosso estado actual de luzes. – A Academia pode dar o seo juízo sobre as composições scenographicas, e sobre o vestuário, uma vez que os esboços e figurinos lhe sejam remettidos com a necessária antecipação. Esta espécie de intervenção, bem longe de ser nociva, pode socorrer a ignorância dos inspectores da scena de ambos os theatros, e pouco a pouco impelil-os ao estudo e ao progresso. – Semelhante medida administrativa em nada pode prejudicar os interesses dos empregos theatraes, porque estes excedem muitas vezes no que toca ao vestuário, carregando-o com mau gosto, e substituindo quase sempre a fidelidade por um luxo desnecessário. – O zelo razoável que a Academia empregará n’esta espécie de censura, fará com que não estejamos a dar contínuos exemplos de uma decadência vergonhosa, ocasionada somente pela incompetência dos directores e de má escolha dos empregados executores. – As razões com que se cobrem os inspectores de scena se baseam na prática de seguirem sem critério, algumas estampas da Europa, e de prestarem um cego respeito a tudo o que vem de fora; mas esta mesma prática não abandona a sua perícia, porque n’essas estampas há boas e más, e para esta escolha são precisos os conhecimentos, pelo menos geraes, para se fazer a devida escolha. – Se os inspectores de scena obrigassem os pintores a copiarem obras primas e próprias para os espetáculos, seria isso tolerável, por annunciar um desejo de progredir; porém a sua incapacidade é tal, que elles não distinguem o bom do mau, e nem tem aquelle tino ordinário de conhecer o que está muito ruim, e o que é muito bom! A scenographia é, por assim dizer, a moldura do painel scênico, e uma ate que se deve animar, porque demanda mui longos e severos estudos

da natureza, da archeologia, e da perspectiva: o bom scenographo é sempre um artista de primeira ordem. E.R.M. – Academia das Bellas-Artes em 20 de maio de 1854. Manoel de Araújo Porto-alegre. Director. – Representação do Snr. Director em 20 de maio de 1854 (Sobre os Theatros). Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ. Esse controle, que aos olhos de alguns era excessivo e de outros extremamente necessário, motivou o descontentamento principalmente pela exigência de ter na cópia o alicerce para se obter uma exímia formação artística. Em 1855 Porto-alegre justificou a necessidade de se ter uma nova biblioteca exclusivamente artística, em fase de construção, para o armazenamento não só do acervo bibliográfico como também das gravuras européias que serviriam de referência à iluminação do artista oitocentista. Officio do Snr. Director em 30 de agosto de 1855. Ilmo e Exmo. Snr. Em vésperas da conclusão da pintura, dourados e armários da biblioteca d’essa Academia, creada por V. Exa. para a dignidade e ilustração dos artistas, julgo de meu dever lembrar já por escripto a realização do pensamento de V. Exa. em favor d’essa nova fonte de progressos para que V. Exa. se digne, se achar axadas as circunstâncias de dar começo; pois ainda temos que esperar algum tempo pelo encadernador, e poder-se apronptar tudo igualmente. A creação de uma biblioteca puramente artística, ou depósito de estampas detodos os gêneros, deu a França um immenso resultado industrial pela facilidade com que todos os artistas ali encontrão um immenso depósito de originaes a consultar. O pintor histórico, o scenographo, o estatuário, o architeto, o ornamentista, o gravador e os mesmos artífices, se felicitão de semelhante manancial que os faz lucrar tempo, despezas e colherem ideas não se nas obras ali expostas, como nas informações que se recebem dos empregados da casa. – Manoel de Araújo Porto-alegre ao ministro e Secretário d’Estado e Negócios do Império. (MUSEU D. JOÃO VI/ EBA/UFRJ). Nesse momento fazia-se de extrema importância equipar a instituição com cópias em gravuras, 118

Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

aproximando dessa forma, aluno e mestre, aluno e tradição. Por outro lado, guarnecendo a Academia Imperial com cópias de pinturas européias de temáticas diversificadas, estabeleciase o contato entre o aluno e as técnicas pictóricas que as gravuras não proviam, pois estas abarcavam somente as questões relativas à elaboração do desenho, do assunto e do volume das figuras resultante dos estudos da luz e da sombra. Porém faltava a noção da pigmentação, da variabilidade de suportes, do equilíbrio e da atmosfera cromáticos que só a pintura poderia suprir. Assim, tornava-se necessária a aquisição dos quadros europeus para o enriquecimento das fontes de estudo do pintor acadêmico, principalmente o pintor histórico.

Félix-Èmile Taunay. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/UFRJ). As palavras do então diretor explicitam um alicerçamento da produção artística italiana por três mestre que ulteriormente têm suas bases criativas assimiladas e externadas por outras regiões ou escolas. A expressão de Michelangelo, o desenho harmonioso de Rafael e a sábia mistura das cores por Tiziano são, ainda, considerados por Taunay reflexos do temperamento de cada artista distintamente, caracterizando dessa forma, como princípio básico para a classificação das Escolas Florentina, Romana e Veneziana, os elementos não só plásticos como também afetivos. Em seus “Planos” (1816) Lebreton já defendia o aprendizado do artista adêmico tendo como alicerce artístico-pedagógico as ditas Escolas Artísticas Européias.

Com a criação por Félix-Èmile Taunay, em 1845, do Prêmio de Viagem à Europa, Roma e Paris tornaram-se modelos de aperfeiçoamento técnico e alvos dos alunos da AIBA. Como as exigências da instituição para a realização de uma perfeita composição baseavam-se nos preceitos trabalhados pelos antigos, Roma foi vista como foco referencial para o pensionato dos primeiros alunos brasileiros premiados pela facilidade do diálogo entre o pensionista e a tradição dos grandes mestres.

É portanto necessário reunir quadros de diversas escolas, telas que possam servir às lições práticas, como demonstração, ao mesmo tempo em que guiem e mesmo inspirem os professores.” (Plano de Lebreton em carta a Barca, tradução extraída do artigo de Mário Barata. BARATA, Mário. “Manuscrito inédito de Lebreton sobre o estabelecimento de uma dupla escola de artes no Rio de Janeiro em 1816. Revista do SPHAN, nº14, 1959, p.28)

[...] seja-nos suficiente mencionar Leonardo da Vinci, Peruggino, Giorgione, precursores das escolas de pintura Florentina, Romana e Veneziana, como dellas forão fundadores verdadeiros os Michel Ângelo Buonarroti, Raphael Sanzi e Tiziano Vecelli. Todos três influirão umas sobre as outras. A escola romana pedio emprestada muita força do desenho à florentina e alguma sciencia do colorido a Veneziana: nem esta deixou de se aperfeiçoar à vista das produções rivais: entretanto, as trez conservam um caracter bem distinto, análogo ao das individualidades que presidião aos seus destinos. Quem representasse fielmente as feições moraes de Michel Ângelo, de Raphael, de Tiziano, daria a conhecer as qualidades notáveis das suas escolas: o primeiro, triste, solitário, de gênio altivo, austero e independente, apaixonado pelo grande; o segundo, tenro, dócil, amável, apaixonado pelo belo; o terceiro, alegre, social, brilhante, apaixonado pela harmonia exterior e relativa. Temos a indicação dos trez merecimentos especiais, força de desenho e de claro escuro na escola florentina, pureza de formas e de tons na escola romana, brilho suavidade e bela fusão de cores na escola veneziana. Sessão Pública da Academia, em 1842, palavras de

Tal opinião continuou em voga no período de administração da Academia por Porto-alegre: Lá estão esses Alpes, com seus primas de neve, toucados de nevoeiros, sublimes, variados, pittorescos, d’onde ouvireis gritar: Itália! Itália! E lá bem longe, nas raízes da montanha, azulada com um ceo aberto, fulgurante, como Vênus a surgir das ondas, toda cheia de luz, de melodia, e de encantos, a bella e fecunda Itália, aquella que nutrio em seo seio fecundíssimo tantos enfenhos, que abrirão os séculos brilhantes da renascença, e do explendor das artes. – Que torrente de emoções, de delícias inefáveis, se vos offerece d’estes bancos da Academia?! – Veneza, a antiga rainha do Adriático, sentada sobre as agoas no seo throno de mármore, trabalhado por Sansovino e outros engenhos admiráveis. O seo leão alado, depois de haver quebrado a espada, voou para o reino da esperança; o seo bucentauro naufragou, e o anel do Doge foi arrebatado pela águia do Danúbio; porém ainda lhe restão os seos palácios, as suas torres, os seos templos, e essas páginas de luz do Tiziano, Tintoretto, Paolo Veronez, e toda essa 119

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

família de brilhantes coloristas.” – Acta da 3ª Sessão Pública da Academia Imperial das Belas Artes, em 6 de dezembro de 1855, palavras de Manoel de Araújo Porto-alegre. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/ UFRJ).

mãos do seu diretor Manoel de Araújo Porto-alegre cada vez mais um contato com os mestres europeus o que proporcionou uma assimilação crescente, pelos alunos, das tipologias pictóricas. Para isso servia a cópia, preparar o aluno não somente para a estruturação formal de uma composição, como também para incitar a imaginação dos futuros artistas alimentando-os de variadas demonstrações dos recursos possíveis para resolver problemas temáticos. Assim, a cópia não enclausurava o pintor na tradição do passado, ela nutria o artista com a riqueza de informações que a tradição foi capaz de propagar, difundir e que os museus europeus se achavam abarrotados.

Conclusão O tema da nossa comunicação teve por objetivo abordar a visão artístico-pedagógica de cada propulsor da prática da cópia na AIBA: Jacques Lebreton, Félix-Èmile Taunay e Manoel de Araújo Porto-alegre. Sendo assim, é possível identificar um período de introdução da cópia no campo acadêmico pelas mãos de Lebreton na aquisição dos primeiros materiais didáticos para a instituição brasileira, as coleções de pintura (originais e reproduções) para a formação da Pinacoteca da Academia. Um segundo impulso, em favor da cópia, pode ser verificado durante o mandato de Taunay como diretor da instituição na criação do Prêmio de Viagem à Europa proporcionando o contato do aluno brasileiro com os museus e igrejas estrangeiras motivando o contato com as Escolas Artísticas Européias. Finalmente, um terceiro nome é apontado como exemplar propulsor da prática da cópia na formatação da Reforma Pedreira em 1855, Manoel de Araújo Porto-alegre, consolidando assim, o interesse pelas tipologias pictóricas eternizadas pela tradição européia.

*Reginaldo da Rocha Leite é professor do Centro Universitário Metodista Bennett e doutorando em Artes Visuais no PPGAV/EBA/UFRJ. Referências bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BARATA, Mário. Manuscrito inédito de Lebreton sobre o estabelecimento de uma dupla escola de artes no Rio de Janeiro em 1816. Revista do SPHAN, nº14, 1959. BORGES, Sílvia Barbosa Guimarães e SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Escolas de papel – a influência de gravuras européias no Brasil Colônia. Anais do XXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, Belo Horizonte: C/Arte, 2005. FERNANDES, Cybele Vidal Neto. Os caminhos da arte. O ensino artístico na Academia Imperial das Belas Artes (1850-1890). Rio de Janeiro: IFCS/ UFRJ, 2001. (Tese de Doutorado). FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. SÁ, Ivan Coelho de. Academias de modelo vivo e bastidores da pintura acadêmica brasileira: a metodologia de ensino do desenho e da figura humana na matriz francesa e sua adaptação no Brasil do século XIX ao início do século XX. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2004. (Tese de Doutorado). SERRÃO, Vitor. A pintura protobarroca em Portugal 1612-1657 – o triunfo do naturalismo e do tenebrismo. Lisboa: Colibri, 2000. SILVA-NIGRA, Dom Clemente Maria da. Construtores e artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Salvador: Tipografia Beneditina, 1950.

A excepcional maleabilidade da cópia; que na Academia Imperial apresenta-se numa gama ampla de linguagens: a partir dos desenhos dos professores, do modelo vivo, das moldagens em gesso, das gravuras estrangeiras e das pinturas provenientes das tradicionais Escolas Européias; fazia-a com efeito apta a difundir tipos representacionais evidenciados pela tradição pictórica internacional, principalmente italiana e francesa. Sem dúvida com a absorção do sistema beauxarts de ensino pela Academia brasileira a cópia garantiu a função de eixo para a formação do artista oitocentista o que levou à constituição de dois grupos possuidores de ferrenhos antagonismos, os defensores da cópia, de caráter tradicional e os contrários à cópia, de postura emancipadora e libertária tendo a modernidade como ponto norteador. O estudo da função da cópia como processo de educação do olhar caracterizou a abordagem do nosso pensamento crítico. A Academia Imperial, detentora do controle da produção e do ensino artístico nacional, buscou principalmente pelas

Notas 1

FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. “A arte da talha no Porto na época barroca; artistas e clientela, materiais e técnica.”. Apud: FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha

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Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006, p.66. A pesquisadora trata da formação do artífice em solo português, no entanto, o Brasil enquanto colônia herda a cultura oficinal das Corporações de ofício de sua matriz portuguesa alterando, ou talvez, adaptando algumas cláusulas dos seus regimentos. “Daquilo que se tem revelado acerca da organização do trabalho oficinal no Brasil, conclui-se haver algumas diferenças na aplicação do padrão português nas diversas regiões brasileiras. Em Salvador, segundo constatações de Maria Helena Flexor, o padrão aproximava-se daquele vigente em Lisboa, com adaptações apropriadas à realidade da cidade.”. FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006, p.70. 2 Conferir sobre as pinturas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro: SILVA, Carlos Henrique Gomes da; SOUZA,

Jorge Victor de Araújo e VIEIRA, Bruno Matos. “Iconografia Beneditina: análise comparativa de duas séries de pinturas”. PEREIRA, Sonia Gomes. Anais do VI Colóquio do Comitê Luso-Brasileiro de História da Arte, vol.1. Rio de Janeiro: CBHA/PUC-Rio/UERJ/UFRJ, 2004, pp. 355-365. 3 “Procurar identificar os modelos que serviram aos pintores coloniais constitui, pois, do ponto de vista histórico, artístico e técnico, uma tarefa altamente útil para os historiadores da arte no Brasil colonial.”. LEVY, Hannah. “A pintura colonial no Rio de Janeiro”. Revista do SPHAN, vol.6, Rio de Janeiro, 1942, p.87. 4 As três Reformas citadas foram: Reforma Lino Coutinho (1831), Reforma Pedreira (1855) e a Aprovação dos Estatutos da Escola Nacional de Belas Artes (1890).

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nosso objetivo neste modesto artigo é apresentar certos aspectos da formação de Pedro Américo no séc. XIX, muitas vezes ignorados nos estudos já publicados. De modo geral, repetem-se duas linhas de análise: uma conservadora e outra modernista sobre as qualidades do pintor. Para a primeira o artista seria um acadêmico tradicionalista e fiel seguidor do rigor da grande arte neoclássica de seus mestres como Jean Dominique Ingres, com quem teria estudado ou com Flandrin, Leon Cogniet, Horace Vernet, segundo seu primeiro biógrafo Luis Guimarães Jr. (GUIMARÃES JR.,1871:45) 1 . Para a segunda ele seria o representante máximo da arte Pompier, um apelido pejorativo surgido somente no final do séc. XIX, o qual associava a Pintura de História como uma arte medíocre, decadente, de mau gosto e conservadora. Mas até o início do séc.XX, este era o gênero mais prestigiado pelo público que pagava caro aos artistas que detinham as glórias oficiais e das encomendas públicas. Tão privilegiado, que a ambição comum dos pintores independentes ou conservadores - era serem reconhecidos e adquirirem fama e glória através dos Prêmios nos Salons. Ou seja, esse sistema produzia os picassos e matisses da época e portanto era quase impossível um artista escolher como mestre os pintores vanguardistas, porque eles estavam fora do mercado, sendo que os impressionistas só seriam conhecidos amplamente depois de 1880.

pedro américo contra a academia neoclássica francesa, a favor da fotografia e das reformas de napoleão iii, em 1863 vladimir machado

O atelier de um pintor de história já famoso deveria ser, mal comparando, uma “agencia de publicidade”, encarregada da “campanha” de uma política visual dos poderes estatais, obviamente, sem os recursos de hoje do cinema, televisão, computadores digitais e muito menos luz elétrica. Não é difícil imaginar a grande tarefa que tinham que desempenhar os artistas de Pintura de História para dominar com habilidade o artesanato para pintar retratos, feitos heróicos, elogios da vida pública, decoração dos palácios, centros de cultura entre várias áreas em que o pintor poderia trabalhar. Diante disso, as acusações de que esses pintores eram convencionais e seguiam estritamente as regras acadêmicas só tem razão em parte. É forçoso perguntar se uma agencia de publicidade de hoje, concorrendo com várias agencias tecnicamente atualizadas no mercado para ganhar uma conta de publicidade do governo de milhões de reais, iria utilizar os recursos do cinema de vanguarda ou experimental, correndo o risco de perder a disputa? Mesmo que se tratasse de uma exigência profissional para estar na vanguarda artística do dia, a solução equilibrada para essa agencia seria, salvo raras exceções revolucionárias, agir como os pintores de história: uma prudente tradição com uma pitada de audácia experimental “vanguardista”. 122

Pedro Américo contra a Academia francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863

Era, grosso modo, o que acontecia nas academias do século XIX. Os pintores eram preparados para serem profissionais objetivos e práticos em busca de eficiência e rapidez na produção de objetos estéticos, para enfrentar uma disputa cada vez mais acirrada visando ganhar os prêmios e com este prestígio, receber as gordas encomendas do Estado. Assim sendo, a intenção da disciplina Pintura de História nas academias, não era para ser somente subjetiva ou decorativa, como o era a pequena e transportável pintura de cavalete. A pintura histórica, às vezes era isto também como fazia espertamente Meissonier, com seus quadrinhos de dimensões reduzidas à holandesa feitas para um discreto apartamento burguês, mas era sobretudo, uma pintura de composição muito mais complexa, monumental, ideológica e inserida nas circunstâncias socioculturais de seu tempo. Acima das disputas estéticas ou apesar delas, todo artista que almejasse ser um pintor de História, deveria ser um mestre, conhecer os vários estilos de pintura já consagrados, a rigor, dominar todos os gêneros paisagem, retratos, naturezas mortas e conhecer bem a historia clássica, religiosa, literatura etc. Além disso, deveria contribuir com sua originalidade interpretativa, para impor sua marca na atualização da arte.

como a grande polêmica durante a inauguração do Salon oficial e a criação do Salão dos Recusados, sem esquecer da reforma ruidosa e significativa do Júri para o Salon oficial de 1864. Tivemos na Casa Museu Pedro Américo em Areia, Paraíba, a felicidade de ter acesso a um livreto escrito em francês com o título, La Réforme de L´École des Beaux-Arts et l´opposition e publicado pelo artista em 28 de dezembro de 1863, em Paris2. Este opúsculo, algumas vezes citado mas nunca analisado e divulgado em seu conteúdo, nos deu a oportunidade de ter em mãos a apresentação de um perfil rebelde e moderno do artista, totalmente contrário ao que até então a historiografia havia registrado. O jovem artista encarava de frente o debate sobre a reforma do ensino na academia sobre arte e indústria fotográfica na França, um dos motivos da reformulação da Pintura de História diante das imagens produzidas pela máquina. Longe de defender a imutabilidade e infalibilidade das academias Pedro Américo considerava indispensável a Reforma no sistema de ensino oferecido aos jovens artistas na EBA, principalmente,segundo ele, por seu caráter antitradicional. O artista estava seguro de que com a reforma haveria uma eclosão de novos talentos, libertos das corrente que os ligavam às doutrinas e teorias mais ou menos absolutas da école classique ou de tradition. Os artistas que não se submetiam à essa idolatria da forma estavam impedidos de se mostrar na arène des imitateurs des Grécs, ou seja, vencer os concursos escolares e os Prêmios dos Salons (AMÉRICO,1863:9).

Nossa tentativa aqui, portanto, é se aproximar do universo de P. Américo na sua formação de pintor de história na academia e ver se corresponde ou não, o seu perfil de um acadêmico reacionário. Seguimos a estratégia proposta pelo Prof. Dr. Elias Saliba de suspender a crítica modernista feita a posteriori e passar a consultar e interpretar os documentos escritos, visuais e a recepção crítica da época em que o artista vivia. Isso permitiu na medida do possível, uma avaliação nova da trajetória e do perfil do pintor. Tratava-se de um artista liberal, inovador da Pintura de História no Brasil. Ao fugir das frias e pálidas ficções neoclássicas, ele fazia uma assimilação intermediária e inteligente entre Géricault, Delacroix e o culto à realidade da vida moderna. Passava a incluir em sua obra o que era mais desafiador aos modelos neoclássicos, qual seja, a fotografia como registro verdadeiro do real, mantendo livre sua imaginação romântica em suas pinturas de retratos e das batalhas contemporâneas

Ao que se sabe, somente P.Américo como alunoartista, assumiu publicamente sua indignação contra ao que ele chamava de severidade tirânica dos métodos de ensino neoclássico, escrevendo esse virulento manifesto. Antes de comentar esse texto de P. Américo contra a academia, é necessário um breve e rápido olhar sobre o ensino de arte na França, para que possamos avaliar a importância desse documento para uma redefinição do perfil do pintor. A Academia Real de Pintura e Escultura, fundada em 1648, era uma nova instituição em que privilegiava o ensino do desenho, como uma ciência comum às três nobres artes, arquitetura, escultura e pintura. A criação da Academia foi de extrema importância: ela sistematizava as novas preocupações profissionais dos artistas do séc. XVII. As três artes unidas pelo desenho de projeto, provava que a Academia não se tratava de um lugar só para aprender um ofício e afastava o peso das críticas de Platão que atacava a pintura mimética como uma brincadeira graciosa por sua imitação

Portanto nosso foco de atenção se dirige para uma época rica de interesse: de 1859 a 1863, quando P. Américo estudava em Paris dos 16 aos 21 anos de idade. O artista vivenciou momentos palpitantes da reestruturação da École des Beaux-Arts, realizada pelo ministro de Napoleão III, Nieuwerkerke e o arquiteto Viollet-le-Duc, bem 123

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

como um espelho. Alem do estudo privado com um mestre pintor, o aluno recebia na Academia uma pedagogia teórica essencial. Ela oferecia conhecimentos da antiguidade clássica, fundamentais para o artista atingir um status de atividade intelectual e liberal e não somente de uma hábil atividade mecânica. (LUDERIN,1997:29).Toda ênfase era voltada ao desenho, copiando os mestres consagrados, depois as esculturas clássicas e por fim desenhar um modelo vivo nu, cuja longa e sofisticada prática assumiu o nome de academia, desenhada ou pintada. Este sistema desenvolveu por mais de duzentos anos um rigor prático e teórico baseado no modelo clássico e serviu de referência para as academias nos séculos seguintes, sendo interrompida em 1792, quando foi fechada pela Revolução Francesa.

grande golpe no poder exclusivo dos mestres da academia, que até então, decidiam o acesso dos artistas ao Salon e aos premios. O pintor brasileiro defendia com ardor esta medida a qual favorecia aos jovens artistas. Ela rompia com a hegemonia neoclássica para a seleção e os prêmios dos Salons e que doravante o acesso poderia ser livre para todos os talentos e seria então possível restituir às atitudes mais variadas, uma fama que as doutrinas ortodoxas da escola de tradição talvez, lhes recusassem (AMÉRICO,1863:12). A reforma foi implantada e a eleição do novo Júri do Salon anual pelos artistas de fato ocorreu em março de 1864. Além desta direção liberal em ratificar as exigências democráticas do público e da crítica, outra mudança radical do governo, condenada com veemência pelos acadêmicos neoclássicos, era referente à contratação de artistas-professores estrangeiros para lecionar nos ateliês localizados na Escola de Belas Artes. Essas mudanças foram duramente rejeitadas em um manifesto chamado Réponse au rapport au reforme des École Impériale des BeauxArts, escrito em1863 pelo pintor Jean-Dominique Ingres. No seu manifesto Ingres escrevia que esta decisão iria representar mil perigos se fosse aplicada. Pedro Américo contra-atacava apoiando totalmente esta medida, a qual na sua visão, não teria outro propósito senão desenvolver nas jovens cabeças o amor à instrução e a acelerar o movimento das idéias, tão fatalmente amortecidas há tantos anos na Academia (AMÉRICO,1863:12). O jovem artista de 21 anos entrava em um debate público, não com um interlocutor qualquer, mas como se sabe, com o mais famoso e respeitado artista da França, membro do Instituto e nesta época Senador. E ele o atacava frontalmente chamando-o com um certo desdém, de patriarca da escola de tradição e afirmava que Ingres reclamava para seu grande e célebre mestre neoclássico Jacques David um culto que havia consagrado a si mesmo. Pedro Américo tinha esperança que a Reforma decretada iria arrebatar para outra direção toda esta juventude destinada a perpetuar os princípios da escola de David, praticada pelo Sr. Ingres e respeitada por seus alunos. O jovem pintor duramente defendia ser um direito livrar a juventude dessa servidão artística defendida pelo patriarca do ensino neoclássico tão feliz à época de David como é tão deplorável hoje, porque já desempenhou seu papel e deve se retirar desse teatro, onde não há mais nada a fazer. (AMÉRICO,1863:10-11).

Com a Restauração Bourbonica a partir da queda de Napoleão em 1815 a Academia foi reaberta e recuperava daí por diante a denominação prérevolucionárias de Academia des Arts, Académie des Peinture et Sculture (na 2ª restauração) e finalmente Académie des Beaux-Arts. Mas não ficava somente no nome. Os antigos membros ligados à tradição retornavam formando parte dos júris que controlavam os Salões, as premiações e principalmente as disputadas encomendas públicas para as pinturas de história. Esse era o poder restituído à Academia e em conseqüência eles orientavam o gosto oficial e faziam a ligação entre artistas e Estado (WAT,1999:142). Como nas antigas academias, os artistas famosos tinham ateliês particulares onde preparavam os alunos para os concursos e forneciam durante a escolaridade ensinamentos práticos que faltavam na EBA. Estas práticas restauradas pelos Bourbons, se mantiveram de forma substancialmente imutáveis até a Reforma da École des Beaux-Arts de 1863. A Reforma de Viollet-leDuc põe por terra este sistema, determinando que os ateliês práticos fossem instalados dentro da Escola, retirando a autoridade dos ateliês particulares. Ao mesmo tempo criava um Conselho Superior de Belas Artes, composto de artistas e pensadores eminentes, que auxiliariam o Ministro das Belas Artes nas questões de seleção e critério artístico para os Prêmios e medalhas. Esta função até então era exclusiva dos professores da Academia e do Instituto de França. Pedro Américo recebeu com entusiasmo este projeto no qual identificava uma via liberal e que diante disso todo mundo deveria aplaudir. Com a criação desse novo conselho, os membros que o comporiam, passariam a serem eleitos pelos próprios artistas inscritos no Salon, o que em princípio, era um

A Reforma de 1863, também contemplava a criação da Union Centrale des Beaux-Arts Apliqués 124

Pedro Américo contra a Academia francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863

à L´Industrie, fato de grande relevância, por desenvolver o desenho industrial e considerar a fotografia como arte. Segundo Scharf, Ingres refutava não só o projeto, mas motivado pela tendência de divergências artísticas no meio da elite intelectual, atacava também o Romantismo porque os seguidores desta escola, da qual Pedro Américo fazia parte, fomentavam idéias novas que dariam por resultado a corrupção da arte e a destruição do estilo antigo greco-romano. Para Ingres a fotografia, como uma arte industrial, era tão desprezível quanto esses artistas modernos e advertia: “Agora querem misturar a indústria e a arte. A indústria! Isso sim é que não queremos! Mantenhamo-la em seu lugar, sem colocá-la na entrada do nosso verdadeiro templo de Apolo, que está consagrado exclusivamente às artes de Grécia e Roma!” (SCHARF,1994:162-163). Não é de se estranhar que Ingres um ano antes, encabeçasse um protesto des grands artistes (Flandrin, Isabey,entre outros.) contra toda assimilação de la photographie à l´art (ROILLÉ,1989:399). Pedro Américo também neste ponto, estava na defesa da modernidade, porque indústria aqui, também se referia ao campo industrial da fotografia como arte:

Ao lado da opinião pública dos grandes jornais, agora cada vez mais circulavam pela cidade a impressão de manifestos, assinados ou com pseudônimos, à espera de réplicas ou tréplicas sobre os assuntos do momento. Pedro Américo assinaria o seu, como um aluno pensionnaire brésilien na École des Beaux-Arts, reagindo com diplomacia mas com apaixonada firmeza, contra os que moviam uma oposição às reformas .O jovem artista com sarcasmo, identificava que os artistas opositores queriam era proteger a fama que eles adquiriram, mais pelos erros da sua época atrasada do que por suas qualidades e que agora com a Reforma, eles sentiam perder seu prestígio diante das felizes inovações que vinham abrir ao mundo um novo caminho. (AMÉRICO, 1863:1). Ele deixava claro que era necessário destronar esta facção que estava sentada em um velho pedestal neoclássico. Opunha aos erros dessa orientação da academia, para o artista já inaceitáveis, o modelo de duas outras escolas de arte, que para nossa surpresa não floresciam na mítica Itália mas sim na Alemanha e na Bélgica. Estas escolas, segundo o artista, estavam baseadas em princípios totalmente diferentes da escola francesa. Quais seriam esses princípios?

Monsieur Ingres queixa-se dos conceitos do relatório a propósito da indústria em França e a influência das Belas Artes sobre esta fonte de riquezas. Contudo em relação a isto, nos permitam uma reflexão: não se trata mais de uma reforma para introduzir a industria na arte, mas sim a arte na industria, e por aí , participar da vida cotidiana. De sorte que a objeção do ilustre mestre cai por si só. (AMÉRICO,1863:11)

Podemos esboçar uma aproximação desde a orientação anti-acadêmica do grupo místico romântico dos Nazarenos alemães ( 1810-1840), o qual havia fundado uma confraria de pintores e que tiveram influência na criação dos Pré-Rafaelitas na Inglaterra em 1850, este grupo também em luta contra as convenções clássicas da Academia Real de Londres. Pedro Américo devia conhecer bem esses grupos anti-academicos, já que estudou com Sebastién Cornu, um obscuro discípulo de H. Flandrin, sendo que ambos participaram dessa confraria alemã. Além disso a arte na Alemanha continuava a ter grande interesse nos anos 1860 e 70 nas pinturas de Menzel, Max Klinger e de Böcklin, este o artista preferido de Nietzsche (LE RIDER, 2001:51).

Nesse ano polemico, Pedro Américo vivia o apogeu político e econômico da França com o Imperador Napoleão III, que passava a adotar essas importantes reformas elaborando um programa artístico também na área cultural. O Imperador assumia como sendo importante para um governo liberal, as tendências românticas e realistas que pintavam os dramas, alegrias e costumes do seu tempo. Desse modo o governo estimulava os artistas que estavam tentando caminhos novos e mais próximos ao gosto do publico. Por mais de vinte anos, os avanços notáveis problematizado pela indústria fotográfica na arte, já mostravam o sucesso do uso da fotografia nas pinturas românticas ou realistas de Delacroix, Corot, Horace Vernet, Yvon, Meissonier, Courbet (A fonte, 1862), Manet (Almoço na Relva,1863) ao lado do progresso industrial exibidos nas Exposições Universais e das questões socialistas, positivistas e científicas divulgadas (LUDERIN,1999:48).

A outra Pintura de História considerada inovadora por P. Américo, ele conheceu estudando também na Universidade Livre do Partido Liberal na Bélgica em 1862-67-68, e cuja produção artística híbrida de uma poética romântica com detalhes de um realismo fotográfico, apresentava .. .um caráter mais em harmonia com o espírito moderno que a escola atual em França... Os artistas belgas pregavam uma arte livre, uma representação dos eventos patrióticos que acentuasse o caráter singular, realístico dos retratos e acessórios, com uma deliberada busca de uma sinceridade arcaica, pré-renascentistas, fora das convenções já 125

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esgotadas da tradicional composição acadêmica neoclássica. Nós identificamos como exemplos, as obras da pintura de Louis Gallait (1812-1887) e a pintura de história anti-clássica, proposta por Henry Leys (1815-1869), um dos fundadores na arte belga da via da observação realista. A pintura de Gallait exibia um realismo fotográfico nos temas românticos, destinados a emocionar pela imitação fiel do real, visando se aproximar muito mais a uma cultura popular do que erudita (TINTELNOT, 1965:206). Já Henry Leys, valorizava a cor e o movimento, inicialmente em temas de batalhas e massacres. Mais tarde, inspirado nas pinturas do artista alemão Holbein, Leys exerceu em seu tempo uma grande influência na França e Inglaterra. Um imaginário fotográfico apresentava a cena pintada como verdadeira, como se fosse possível imaginarse diante da cena real (BENÉDICTE:282-285). Enquanto estas pinturas eram desprezadas pela academia devido ao seu novo realismo fotográfico, Pedro Américo as considerava de grande “ousadia e originalidade” as quais despertavam tanto entusiasmo no jovem artista que este sonhava antevendo “os mais belos dias da grande pintura flamenga” (AMÉRICO,1863:8).

estava interpretando com sabedoria a liberdade proclamada pelo espírito de nossa época. A Reforma procurava politicamente, premiar uma racional pluralidade de estilos para também enfrentar a concorrência moderna das outras potencias européias, como a Alemanha e a Bélgica, cujas escolas de arte vimos P.Américo destacar como as mais avançadas. Diplomaticamente, ele compreendia que o ardor dos professores da École des Beaux-Arts em defender a “imutabilidade” das tradições contra o “espírito novo”, procediam de um “verdadeiro amor pelos princípios elevados da arte” mas acusava a inferioridade das últimas produções da Escola francesa em Roma, assim como as obras dos últimos grandes prêmios que ele viu no Salon de maio de 1863. Estas pinturas “testemunhavam com bastante eloqüência a fraqueza dos princípios preconizados” na formação dos grandes talentos, cuja exclusiva orientação neoclássica, segundo ele, excluía toda originalidade. Pedro Américo seguia a filosofia eclética de Victor Cousin e pregava com entusiasmo um pluralismo cultural para que os estudantes pudessem ... desfrutar das doutrinas artísticas as mais opostas como o realismo, romantismo, classicismo, oferecidas ao temperamento de cada um, a seu caráter, à seu gênio, enfim, para que possam escolher o que lhes convenha melhor [...] A originalidade pessoal não será daqui em diante sacrificada a nenhuma escola, à nenhuma doutrina exclusiva, e o espírito nacional se desenvolverá bem mais comodamente aos raios de um novo sol, do que sob os dias da facção de uma antigüidade bastarda e desencorajante (AMÉRICO,1863:12-13).

Vivenciando de perto essas inovações, era natural que o artista se manifestasse contra a academia francesa, a qual continuava até 1863 defendendo com rigor a antiga hierarquia das artes maiores e artes menores, favorecendo sobretudo, os pintores de história encorajados a pintar com uma fatura lisa e linear,valorizando os meios tons, eliminando um forte claro-escuro, e o vigor das pinceladas. Os retratistas vinham em segundo lugar, seguido dos pintores de cenas de gênero e desdenhavam dos pintores de paisagens e naturezas-mortas (WAT,1999:162). Como adiantamos, P.Américo participava com sua opinião a favor das reformas liberais, as quais tentamos contextualizar com as grandes questões artísticas da época, na esperança de mostrar o equívoco em se considerar hoje P.Américo um artista conservador e neoclássico. O manifesto mostrava sem meias palavras, que o pintor considerava a EBA o lugar de sofrimento dos jovens artistas e este lamento talvez venha a ser o dele mesmo. Ele condenava os julgamentos inflexíveis do Instituto de France com suas máximas neoclássicas friamente calculadas para intimidar o gênio. “Nada mais admirável que a arte antiga continuava P.Américo mas também nada mais insuficiente que os meios que são colocados à disposição do artista para atingir ao ideal moderno”. (AMÉRICO,1863:9).

Alguma dúvida em ver claramente a distância enorme que separava o artista das idéias clássicas e conservadoras? O livreto-manifesto a favor das Reformas nos esclareceu que P. Américo era contra o sistema neoclássico ou de tradição, estando próximo a Géricault , Delacroix, a escola belga e nunca como se divulga na historiografia, estudou com Ingres nem com Horace Vernet, que faleceria em 1863, nem com Paul Delaroche. Entre 1859-63, em plena discussão apaixonada sobre se a fotografia era arte ou não, é impensável que P. Américo não estivesse atento a essa polêmica. Mas será que o artista ao defender a união entre arte e indústria, teria se utilizado de fato do instrumental fotográfico para dar mais originalidade à sua arte? Pedro Américo certamente conhecia as reflexões sobre fotografia de seu mestre, o romântico Araújo Porto-alegre já

P.Américo estava totalmente de acordo com a administração liberal bonapartista que para ele 126

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posta em discussão, do ponto de vista da sobrevivência do artista. Na última das trinta teses colocadas para um debate na congregação da Academia no RJ, em 1855, P.-alegre indagava: “A descoberta da fotografia foi útil ou perniciosa à pintura ? E se ela chegar a imprimir as cores da natureza com a fidelidade com que imprime as formas monocrômicamente, o que será da pintura e mormente dos retratistas e paisagistas?” (FREIRE,1916:85) .Mas nenhum livro de história da arte brasileira nos auxiliava, sobre como saber se P. Américo conhecia ou não o universo fotográfico e se havia usado ou não fotografias para pintar. Um texto inédito do pintor, manuscrito em 1864 e o livro Holocausto escrito nesta mesma época mas publicado em1882, finalmente nos apresentava um artista dialogando com a modernidade de seu tempo que ele chamava de “felizes inovações”.

feita de modelo-vivo, de estampas, ou com instrumentos óticos, teria que considerar um grande acontecimento a invenção da “imagem daguerreotípica”, como ainda era chamada por alguns a fotografia dessa época, fruto de uma máquina que o pintor acreditava que fizesse uma imagem do real, sem artifícios, “fiel e ingenuamente”. Como muitos críticos do seu tempo, Pedro Américo identificava duas fraquezas da fotografia em relação à sofisticada pintura. A primeira é que a imagem técnica abstraía o colorido, nessa época só produzindo fotografias em preto-e-branco e a segunda é que representava o retratado congelando um instante do real, “sem a expressão característica” que um artista tinha dever de descobrir e fixar na pintura. Apesar disso, o pintor considerava extremamente positivo o uso da fotografia como modelo, porque em relação aos fatos reais, ela nunca deixaria de ser “fiel e verdadeira” e “ter um fundo essencialmente sincero” (AMÉRICO,1882:332). Essa importantíssima e desconhecida reflexão de Pedro Américo, espelhava com clareza uma sensibilidade nova em relação à fotografia. O pintor deixou esse testemunho inequívoco de que considerava a fotografia como um “documento irrevogável” comemorativo de fatos reais, feito de forma fiel e ingênua e talvez, por isso mesmo, louvado pelo artista como essencialmente sinceros4. Eram esses valôres socioculturais novos da “fidelidade histórica” na representação dos acontecimentos na Pintura de História, testemunhados e fixados como se fosse uma “inartificiosa fotografia”, que Pedro Américo lançaria mão para pintar. O pintor passaria a usar as fotografias fiéis e realistas como modelo, mas também a imaginação criadora e a memória inventiva para representar o movimento, fixar uma ação significativa na pintura das batalhas e que ele iria buscar com obsessão na representação do instante.

No texto manuscrito de 1864, depois publicado no Jornal Mercantil do RJ neste mesmo ano, o pintor defendia a liberdade de criação e era contra “... essa baixa opinião que o fim da arte e sua condição única é imitar a natureza no sentido vulgar da palavra, que quer dizer coisa real e visível [...] o artista deve renunciar ao método acanhado daimitação exclusiva” [fotográfica]. (AMÉRICO,1864:160) No contexto dos anos 1863/ 1864, ficava evidente que Pedro Américo buscava uma conciliação entre o olhar ainda acanhado das limitações técnicas da máquina fotográfica ,com o olhar biológico e a imaginação sofisticada e anticlássica da arte romântica. Nessa discussão o que é de extrema relevância e o mais surpreendente, é descobrir no outro texto autobiográfico publicado em 1882, que para Pedro Américo, essa mudança inevitável por mais realismo na pintura trazida pela fotografia, longe de representar uma ameaça à arte, deveria ser considerada “positiva e fundamental”. A representação na pintura dos “fatos reais sucedidos em grande parte na presença de numerosas testemunhas” faria com que, tanto o romance histórico como os que ele escreveu, bem como a pintura de história que ele pintou, não perdessem o seu “verdadeiro caráter: a fidelidade histórica”. Esta só se afastaria desses princípios em relação às datas, à transmutação de acontecimentos visando uma “maior clareza de exposição”, consideradas “alterações levíssimas” pelo pintor, e que não apagariam nunca o “cunho de uma história verdadeira, de uma inartificiosa fotografia”3. Para um pintor como Pedro Américo, que tinha um domínio sofisticado de artifícios pictóricos para construir uma imagem, até então

Pode-se notar nesse manifesto de P. Américo, escrito em dezembro de 1863, também uma posição clara contra o rigor severíssimo e sem precedentes do júri da Academia no Salon oficial. Das 5.000 obras apresentadas em maio desse mesmo ano, o júri recusou cerca de 3.000 e as reclamações foram tão fortes, que o próprio imperador Napoleão III, constatou que algumas obras selecionadas não eram melhores que as recusadas, decidindo fazer uma exposição paralela 5. Como observou Luderin, o fenômeno mais extraordinário e pela primeira vez na história, foi a “opinião pública” ser chamada para julgar os dois modos contrapostos de se entender a arte: 127

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uma no Salon Oficial e outra no Salon dos Recusados expostos no Palácio da Indústria (LUDERIN,1999: 49) . Se no Salão oficial destacavam-se os nus representativos das diversas tendências da arte acadêmica, de Eugène Emmanuel Amaury-Duval, de Paul Baudry e de Alexandre Cabanel; no outro o nú ‘escandaloso’ de Manet com seu Déjeuner sur lherbe. Pedro Américo visitou os dois Salons e escrevia no final de seu manifesto em dezembro de 1863:

moderna e tão fora dos padrões, que foi motivo de recusa pelo mordomo Paulo Barbosa quando Pedro Américo pretendia ofertar a obra ao imperador Pedro 2o. O mordomo ou o “reservado” e “puritano” imperador - considerou a pintura por demais licenciosa e indigna da coleção imperial, a pintura ficando no atelier do artista até 1871.(GUIMARÃES JR.,1871:57). As novidades plásticas que Pedro Américo introduziu na pintura deste nu e que motivaram um escândalo, pode-se debitar na apropriação feita pelo artista no uso de retratos fotográficos para pintar, no tratamento diverso da cor e alguns detalhes de fatura realista. A própria Exposição Geral de Belas-Artes da Academia Imperial de 1865, devido às atenções do início da Guerra do Brasil contra o Paraguai, passaria despercebida se não fosse essa pintura rebelde aos cânones neoclássicos das outras obras ali expostas. Machado de Assis, em uma crônica revelava que a pintura dA Carioca tinha sido “objeto de uma discussão renhida”.

Nós amamos a França e admiramos cada dia mais esta grande nação... Eh, muito bem, mas nossa admiração diminui quando , em visita a uma exposição de pinturas, no Palais de L´Industrie ou na École des beaux-arts, nós preferimos nos retirarmos a termos que comparar estas frias e honestas telas, pálidos reflexos de uma grande civilização, com os gigantescos monumentos que a literatura e a ciência produziram nestes últimos anos (AMÉRICO,1863:14-15). Além desse manifesto ainda em 1863, ou talvez no inicio de1864, P. Américo realizava uma pintura que intitulou A Carioca. Esta pintura estava intimamente ligada aos modos diferentes de entender o nú vistos no confronto entre o recusado Almoço na relva de Manet, e as glórias do salon oficial, o Nascimento de Vênus, de Cabanel e A pérola e a onda de Baudry. A Carioca que simbolizava a nascente do Rio Carioca no Cosme Velho no RJ, não era a representação de uma branca ‘Vênus’ mítica do Salon oficial. Ela se afastava dos padrões de Ingres, sendo representada como se fosse uma “morena andaluza”, de cabelos negros. A pintura escapava também das duras críticas da nova intelectualidade carioca às “tolas presunções e programa estritamente falso da escola brasileira” cujas extravagantes representações na pintura se resumiam em florestas virgens e a nudez dos índios do período colonial (GUIMARÃES JR., 1871:52). Esta pintura de uma morena carioca “voluptuosa” e “trigueira”, com uma sensualidade bem terrena, e que não possuía adornos indígenas, iria provocar um inesperado escândalo no principal evento cultural do Império.

Alguns, certamente por identificar essa audácia moderna acima referida, defendiam com exaltação a pintura como “sublime”, enquanto outros “respondiam aos gritos - detestável!”6 A paisagem do fundo à direita nada tinha de neoclássica, revelava antes, a sensibilidade romântica de P. Américo e como observou o saudoso Prof. Mário Barata, remetia até aos primeiros paisagistas realistas, desprezados pelos critérios dos Salons oficiais na França. (ZANINI,1983:423). O biógrafo de P. Américo reconhecia esta heresia paradoxal do desvio romântico-realista: condenava “as tinturas empastadas do céu e das árvores[...] o pincel criador calcou demais na tela, talvez por seguir os ímpetos febris do talento artístico e do sonho do poeta”(GUIMARÃES JR.,1871:54). Se para nós hoje, a pose d´A Carioca lembra uma pose acadêmica, a recepção da época ao contrário, considerava bem reais e penetrantemente irresistíveis os “contornos redondos e opulentos”, “a pele amorenada e rica de um sangue virgem e os deliciosos membros da soberba criatura” (GUIMARÃES JR.,1871:54).O rosto que representava as características de uma morena carioca, era descrito como sendo sensual e realista com seu caráter humano e lascivo. Este retrato teve por modelo certamente uma fotografia da esposa do Sr. M. A., um funcionário do consulado do Brasil em Paris, cujas iniciais, continuam a intrigar a identidade do modelo real cuja “beleza era admirada e de vantajosa reputação nos dois mundos”. O escritor destacava o realismo e a “perfeição” do retrato, e associava “aquela boca

Olhando-se a pintura no MNBA-RJ, uma segunda versão exposta em 1884, é quase impossível entender hoje, o escândalo que esta obra provocou na Exposição da Academia Imperial no Rio de Janeiro em 1865. A rigor, com a familiaridade das reproduções fotográficas modernas, hoje é difícil entender também, o escândalo em torno da obra de Courbet, Manet, ou dos impressionistas. Mas em 1865, a pintura de Pedro Américo era tão 128

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suave e aquela melancólica fronte” à pintura de uma Cabeça de Anjo de Paul Delaroche (GUIMARÃES JR,1871:54-56). Como é sabido, este artista era ninguém menos do que o pintor que declarou em 1839, ao ver as primeiras fotografias, que a pintura havia morrido. Isso não o impediu de redigir uma nota afirmando que a fotografia possuía a “perfeição de certas condições essenciais da arte” para que o físico F. Arago pudesse aprovar em 3 de julho de 1839, um projeto de lei na Câmara dos Deputados para uma pensão aos inventores da fotografia Daguerre e Niépce (ROILLÉ,1989:39). Podemos afirmar portanto, que Pedro Américo usou uma fotografia e não o modelo vivo, porque esta era uma prática bastante comum aos pintores que viviam o “espírito novo” da vida moderna ,cuja máquina fotográfica facilitava a realização da pintura com a vantagem de garantir uma severa discrição para uma mulher casada vir servir de modelo nu, a um pintor.

(1871) e Batalha de Avaí(1877) marcava um tempo de polemica e inovações na Pintura de História brasileira. Referências bibliográficas: a) Fontes de arquivos AMÉRICO,Pedro. La Réforme de l’École des Beaux-Arts et l’opposition. Par un élève. A. Morel et Cie, Editeurs, Paris, 1863, 15p.- Rue Bonaparte, 13 (em face l´École des Beaux-Arts). 15 X 10 cm. Casa Museu de Pedro Américo, Areia, Paraíba. _____Considerações Filosóficas sôbre as Belas Artes entre os Antigos. Manuscrito Original (inédito),179p. Rio de Janeiro, 1864. Dedicado ao Imperador em 6 de janeiro de 1865, junto com o quadro A Carioca ( Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, RJ. Cod :Doc. 6622 M .135). ______ Considerações Filosóficas sôbre as Belas Artes entre os antigos. RJ, Correio Mercantil, nº 272 a 285, outubro de 1864. Publicado em capítulos de setembro a novembro de 1864. Arquivo da Biblioteca Nacional, PR-SPR (1-53). ______ Holocausto. Romance filosófico de caráter e de costumes. Florença, Itália, Ed.Typographia Cenniniana, 1882. 401. Arquivo Casa Museu de Areia,Paraíba. GUIMARÃES Jr., Luis. Pedro Américo. Ed. H.Brown e J. de Almeida, RJ, 1871. 128p. Arquivo do Museu Nacional de Belas Artes-RJ.

Essa mistura de tradição cultural e novidade encontrava-se de fato, no próprio quadro Dejeneur, de Manet, o qual lembrava uma montagem fotográfica em que a composição era herdeira de Giorgione e Rafael em um tema novo e atualizado na indumentária em moda na época, como se fossem “parisienses em férias” (ARGAN,1999:9596). Neste contexto, podemos aceitar que A Carioca era na verdade também uma pintura - manifesto do jovem pintor que ensaiava com audácia e tradição, as soluções dos nus tanto os de Cabanel e Baudry , como os de Manet, que o artista havia visto no Salão Oficial e dos Recusados. Claro que não se pode cometer o crime anacrônico de cobrar a P.Américo que fizesse nessa época uma ruptura radical. De fato mesmo Manet “além da sua audácia técnica, cromática e a grande simplificação obtida, acumula muitas contradições não resolvidas”(LUDERIN,1997:77).O que ele procurava era dar um novo significado as velhas formulas, atento a complexa e variada potencialidade expressiva existente na tradição. Da mesma forma, Pedro Américo escrevia que em lugar de sonhar sem cessar a procedimentos plásticos de uma arte que, sendo eminentemente bela, ao tempo de Da Vinci ou Miguelângelo, o neoclassicismo não poderia mais ser a arte de uma época onde o homem e o mundo eram considerados “sob um ponto de vista bem diferente” (AMÉRICO,1863:9). Com a pintura d´A Carioca e o manifesto a favor da Reforma, o artista mostrava com ousadia juvenil uma modernidade possível no gênero da Pintura de História, trilhando um caminho à distância das idealizações neoclássicas da academia.O artista se apropriando amplamente da fotografia para pintar a Batalha de Campo Grande

b) Bibliografia geral ASSIS, Machado de. Coletânea de Crônicas - O Velho Senado. Brasília: Ed. Centro Gráfico do Senado Federal , 1989. ( Col. Milton Campos: vol. I ). ARGAN, Giulio. Arte Moderna. SP: Cia. das Letras,1999. Trad. Denise Bottmann e F. Carotti. AGUILLAR, Nelson (org.) Catálogo da Exposição Mostra do Redescobrimento: Arte do Séc. XIX (Curadoria de Luciano Migliaccio.), de 23 abril a 7 de setembro de 2000. Fundação Bienal de São Paulo, Associação Brasil 500 anos, Artes Visuais, 2000. BENÉDITE, Léonce. La peinture au XIXième Siècle dáprés les chefs-doeuvre des maîtres et les meilleurs tableaux des principaux artistes. Paris: Ernest Flammarion, s.d. Catálogo da Exposição LArt du nu au XIX e siècle- La photographie et son modèle, com a colaboração da École Nationale Superieure de Beaux-Arts e o Musée Rodin, de 14 de outubro de 1977 a 18 de janeiro de 1998. Edit Hazan/ Bibliothèque Nationale de France François Mitterrand, vv.aa., 200p. il.

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FREIRE, Laudelino. Um Século de Pintura no Brasil: apontamentos para a história da pintura no Brasil de 1816 a 1916. RJ: Tipografia Röhe, 1916. LE RIDER, Jacques. Arnold Böcklin ou le retour à lantique de la modernité. La Revue du Musée dOrsay,2001,n.13,114pp, p. 51. LUDERIN,Pierpaolo. L´Art Pompier. Immagini, significati, presenze dell´altro Ottocento francese (1860-1890).Leo S. Olschki Editore,Castello(PG),1997. MACHADO,Vladimir. Ela é A Carioca. RJ:Ed.do Autor,2005. __________. A fotografia na Batalha do Avaí de Pedro Américo: a obsessão de representar com realismo o movimento. Latitudes-Cahiers Lusophones: Brésil/Brasil, n.23- Abril de 2005, 104pp.:il. p 35-40. Artigo comemorativo do centenário de morte de Pedro Américo dentro do Ano Brasil em França durante o ano de 2005. __________ . A fotografia na Batalha do Avaí de Pedro Américo. Revista Nossa História, n.33, Julho de 2006 98pp:il, p.34-38. __________. A fotografia na Batalha de Campo Grande de Pedro Américo. 19&20 - Revista do site DezenoveVinte. Volume III, número 1, Janeiro 2008. Disponível em: www.dezenovevinte.net/19e20/. OLIVEIRA, Cecíla Helena Salles de & MATTOS, Claudia Valladão (orgs,). O Brado do Ipiranga. Edit. São Paulo, USP, Museu Paulista da USP, 1999. 138p. il. ROUILLÉ, André. La photographie en France: Textes & Controverses, une anthologie-1816-1871. Paris: Ed. Macula, 1989. 549p.il SCHARF, Aaron. Arte y Fotografia. Mdrid:Ed. Alianza Editorial,1994. (Versão espanhola de Jesús Pardo de Santayana). TINTELNOT, Hans. De L’ Art Classique a l’ Art moderne. Paris:Ed. Payot, 1965- 206 pp.:il. WAT,Pierre Salonard et refusés,XIXe siècle. LANEYRIE-DAGEN,Nadeje (org.). Le Métier d´Artiste. Paris: Ed. Larousse-Bordas/HER, 1999. ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil, SP: Instituto WalterMoreiraSalles,1983, 483.

Américo tinha 13 anos e estava entrando para a academia no RJ, só chegando em Paris em fins de 1859. Colocamos com cautela o artista haver estudado também com Leon Cogniet (1794-1880), Horace Vernet (1789-1863) e Hipolite Flandrin(1809-1864) .O único documento existente até agora consultado é uma carta ao Imperador Pedro 2º enviada em 1861, pelo obscuro professor do artista, Sebastién Cornu (1804-1870). 2 AMÉRICO, Pedro. La Réforme de L´École des BeauxArts et l´opposition- par un éléve. A. Morel et Cie, Editeurs, Paris, 1863,15p. Agradecemos imensamente a escritora Janaína Azevedo e ao Padre Rui Vieira, este fundador da Casa Museu Pedro Américo em Areia – Paraíba, o acesso a esse importantíssimo livreto. As citações a seguir do manifesto, foram traduzidas pelo autor. 3 AMÉRICO, P. O Holocausto. Ed.Typographia Cenniniana,Florença, Itália, 1882,401pp., p332. Grifos meus. Note-se que para a pintura “Independência ou Morte” (Museu Paulista-USP) de 1888, o artista escreveu um opúsculo em que reafirmava essas idéias de juventude (1864): “Um quadro histórico deve, como síntese, ser baseado na verdade e reproduzir as faces essenciais do fato [...] A realidade [ou a “inartificiosa fotografia”] inspira e não escraviza o pintor [...]”. AMÉRICO, P. O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil. Agradecemos à Prof. Dra. Cecília Salles de Oliveira o acesso à esse texto, durante nossa pesquisa em 1998. O opúsculo encontra-se reproduzido na íntegra in OLIVEIRA, Cecíla Helena Salles de & MATTOS, Claudia Valladão de (orgs.). Edit. São Paulo, USP, Museu Paulista da USP, 1999. 138p. il. p 19 e 21. Ver também nesse mesmo livro, o ensaio de Claudia de Mattos Algumas Palavras acerca do Texto ‘O Brado do Ipiranga’ e de Sua Ligação com a Tradição Acadêmica, pp.119 a 132. 4 Ao narrar a chegada do personagem Agavino ao Rio de Janeiro, P. Américo,fazia um triste retrato da capital do Império e do uso da fotografia como documento “fiel” da realidade. A cidade apresentava “[...]aquelas praias esquálidas e despidas de qualquer artefato hidráulico, das quais os estrangeiros se compraziam em tirar a fotografia, para zombarem do nosso pouco asseio [...]”. AMÉRICO, P. O Holocausto. Ed. Typographia Cenniniana, Florença, Itália, 1882. 401pp., p. 196., grifos meus. 5 WATT, Pierre. Salonards e refusés. XIXe siècle. p.162. Segundo outras fontes 2000 obras foram recusadas. 6 Cf., Machado de ASSIS na crônica para o jornal liberal, Diário do Rio de Janeiro, Seção Ao acaso, 21 de fevereiro de 1865 in: O Velho Senado, Ed. do Senado Federal,1989,528p., p.152. Esta crônica desmente a “calmaria” da vida artística no Rio de Janeiro oitocentista. A historiografia moderna sobre a arte deste período no Rio de Janeiro é unânime em fazer crer que os artistas eram todos conformistas e reacionários acadêmicos.Na verdade havia uma efervescência cultural entre várias tendências estéticas que se digladiavam entre si.

Notas 1

Anotamos um pequeno equívoco do Prof.Mario Barata ao colocar P.Américo estudando em Paris em 1856,com Paul Delaroche (1797-1856) sendo que este havia já falecido (ZANINI,1983:420). Nessa data - 1856 - Pedro

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capitulo 3 outros centros de formação artística

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As técnicas praticadas pelo homem, algumas vezes, produzem obras artísticas. Assim, foi estabelecida uma divisão entre a chamada arte pura e a arte aplicada. A arte pura era considerada superior à arte aplicada. Argan ressalta que “o próprio conceito de aplicação implica a idéia de uma precedência da arte pura e do sucessivo emprego secundário das suas formas de produção e objetos de uso”. (ARGAN, 2000:123). Aqui serão trabalhadas provas de desenho, a partir das quais se pretende entender a função da disciplina de Desenho no que diz respeito à aplicação da arte. Por conseguinte é possível estabelecer relações entre alguns anseios da sociedade e o ensino dessa disciplina. Segundo Argan, “a arte assim chamada aplicada transmite a imagem da sociedade e de seus graus e valores internos, e sobretudo das suas funções”. (ARGAN, 2000:117). Dessa forma objetiva-se recuperar parte da história da disciplina de Desenho nas Escolas Normais Oficiais de Minas Gerais, no período compreendido entre 1892 a 19064. Para isso, utilizamos como referência provas, Programas e Pontos da disciplina de Desenho encontradas no Arquivo Público Mineiro, por meio do Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais: organização, preservação e acesso do acervo documental (1889-1945) 5. Como fontes para a análise da documentação, servimo-nos de leis e decretos mineiros, além de pareceres e reformas propostas por Rui Barbosa a partir de 1880. Segundo Souza, muitas das concepções e propostas contidas nos estudos de Rui Barbosa “foram adotadas nas reformas da Instrução Pública, realizadas em várias províncias na década de 1880 e, posteriormente, pelos estados nas primeiras reformas educacionais da era republicana” (SOUZA, 2000:10); entre estes o de Minas Gerais.

o desenho em foco: a arte aplicada na transição do século xix para o xx daniela flávia martins fonseca 1, bruno dos santos dias 2, renata garcia campos duarte 3

O estudo das propostas de Rui Barbosa justificase, devido à importância 6, atribuída por ele, a algumas disciplinas no currículo escolar, com destaque para a de Desenho. Em 1882, Rui Barbosa, então deputado, apresentou à Câmara um projeto que tratava da Reforma do Ensino Secundário e Superior, visando preparar o aluno para as mudanças no cenário nacional. Era necessário privilegiar conteúdos como, por exemplo, Música, Ginástica, Higiene e Desenho. Designado como relator do projeto de reforma da instrução no Brasil, Rui Barbosa foi influenciado pelo movimento intelectual que acreditava na educação como um dos pilares para a formação de uma nação em ordem, rica e moralizada. É possível verificar em seus trabalhos as referências 133

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

[...] indispensável à perícia especial do futuro operário, à honra industrial e à prosperidade mercantil do país, o desenho apresenta ainda, enquanto à cultura geral da inteligência, assinaladas vantagens: é um meio de desenvolver a faculdade perceptiva e, ao mesmo tempo, um preciso auxiliar a vários outros ramos do ensino (a escrita, a aritmética, a geometria e a geografia); a disciplina, a um tempo, um espírito, a mão e o olho; inclina o menino a ordem, a precisão; incute-lhe gosto, e inspira-lhe o amor do belo. (BARBOSA, 1883:115).

feitas aos modelos dos países ditos “civilizados” que deveriam ser seguidos. Como consta no prefácio do Parecer da Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições da Instrução Pública, escrito por Jacobina Américo Lacombe, na edição de 1950, a obra possui ao total 365 citações bibliográficas especializadas no assunto, sendo 179 em língua francesa, 129 em língua inglesa, 26 em português, cinco obras em língua alemã, quatro em italiano e cinco em espanhol. Para o republicano e liberal Rui Barbosa, era urgente que o país se desenvolvesse e se tornasse também uma nação industrial. Acreditava que “o dia em que o desenho e a modelação começarem a fazer parte obrigatória do plano de estudos na vida do ensino nacional, datará o começo da história da indústria e da arte no Brasil”. (BARBOSA, 1882:257).

Com o ensino do Desenho não era esperado que surgissem grandes artistas, mas sim operários mecânicos capazes de ler os signos mais importantes para o exercício de suas funções, capazes de compreender os signos do desenho e também produzir objetos úteis a sociedade. Barbosa ressalta que o fim da educação não era “promover individualidades extraordinárias”, mas sim “educar esteticamente a massa geral das populações, formando a um só tempo, o consumidor e o produtor, determinando simultaneamente a oferta e a procura nas indústrias do gosto”. (BARBOSA, 1882:07).

Conforme a leitura dos pareceres de Rui Barbosa, percebe-se que, para ele, existiam duas formas de arte. Uma era a arte de admiração e contemplação e outra, que nos interessa aqui, a arte aplicada. Essa não se destinava ao cultivo superior da pintura, da escultura, da estatuária, mas a explorar completamente as opulências inexauriveis da adaptação da arte ao trabalho industrial, mediante o estudo cabal do desenho e da modelação sob os seus variadíssimos aspectos, cada um dos quais é uma mina de riquezas para o Estado. (BARBOSA, 1882:194).

A reforma do ensino que Rui Barbosa propunha abrangia a aplicação das disciplinas, a reestruturação do espaço escolar e, sobretudo, a reorganização dos métodos e a reforma do professorado. Para tanto, as escolas normais 8 seriam espaços privilegiados para a formação de professores primários que disseminariam os seus conhecimentos a maior gama possível da população. Dentre as disciplinas a serem ministradas nas escolas normais e nos diversos níveis da Instrução Pública estava a disciplina de Desenho. Barbosa mencionava que não bastava

De acordo com esse pensamento, tudo seria subordinado ao caráter de aplicação industrial, em prol do crescimento e fortalecimento do Estado. Barbosa criticava que, no Brasil, ao contrário do resto do mundo civilizado, o ensino do desenho era envolvido pela idéia de prenda de luxo ou dom inato, “um passa tempo de ociosos, um requinte de distinção reservado ao cultivo das classes sociais mais ricas, ou à vocação excepcional de certas naturezas privilegiadas para as grandes tentativas da arte”. (BARBOSA, 1882:108). Defendia que tanto o ensino como o aprendizado do desenho eram úteis e necessários a todos que se dedicassem a tal fim, recomendava que deveria ser disciplina ministrada desde a escola primária, ou citando Pestalozzy 7, poderia vir antes mesmo do estudo das primeiras letras, já que o desenho seria uma inclinação natural do espírito humano, tendo somente a contribuir para o aprendizado, jamais retardá-lo. Apontava as contribuições do ensino do Desenho às outras disciplinas do currículo escolar e para a formação de um novo padrão de valores. Afirmava, ainda, ser o Desenho

[...] dispor de excelentes professores especiais de desenho, estabelecer bons cursos e boas escolas especiais; é mister que TODOS OS MESTRES E MESTRAS sejam habilitados a distribuir, nas aulas DIÁRIAS, A TODA A POPULAÇÃO DAS SUAS ESCOLAS O ENSINO PRIMÁRIO DO DESENHO. (BARBOSA, 1882:107-108). Segundo Rui Barbosa o método que deveria ser adotado na reforma do ensino deveria ser o Lições de Coisas ou Método Intuitivo9. Este já havia sido formalmente adotado pelo artigo 4º do Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, conforme a Reforma Leôncio de Carvalho. Entretanto, Barbosa criticava a rotina com que o método era aplicado, alegava que não passava de imitação dos modelos 134

O desenho em foco: a arte aplicada na transição do século xix para o xx

desenvolvidos – pelos estudiosos dos países “civilizados” – com tamanha precisão e coerência. Lourenço Filho resgata o pensamento de Rui Barbosa,

Na legislação mineira do início do período republicano é possível perceber, no Regulamento das Escolas Normais, no Decreto nº 607, de 27 de fevereiro de 1893, o espaço reservado à disciplina de Desenho. O Art. 3º estabelece que “O curso normal será de 4 annos, e comprehenderá as seguintes matérias [...] desenho geométrico, topográfico, de ornato, de paizagem e de figura”, com lições de desenho do primeiro ao quarto ano, divididas em três lições por semana no 1º ano, uma lição no 2º, duas lições no 3º e três lições no 4º ano. Em relação ao método a ser utilizado, o artigo 9º determina que “os professores das aulas práticas farão três vezes por semana lições de cousas, às quais assistirão os alunos do primeiro anno”.

Cumpre renovar o método, orgânica, substancial, absolutamente, nas nossas escolas. Ou, antes, cumpre criar o método; porquanto o que existe entre nós usurpou um nome, que só por antífrase lhe assentaria; não é o método de ensinar; é, pelo contrário, um método de inabilitar para aprender. (BARBOSA apud LOURENÇO FILHO, 1945:XXXI). O Lições de Coisas consiste em explorar os sentidos como instrumento do aprendizado, substituindo o caráter abstrato, baseado na palavra e na memorização, por atividades que valorizassem a percepção e intuição do aluno. De acordo com Valdemarin “devido ao uso dos objetos, à observação e ao resultado projetado, este método é considerado por seus propositores como sendo concreto, racional e ativo”. (VALDEMARIN, 2000:77).

Constantemente é ressaltado o caráter prático e profissional do método de ensino. O Decreto nº 607 também assevera: “sempre que for possível se farão uso dos processos intuitivos, tanto nas aulas práticas como nas do curso normal, não chegando aos estudos abstractos sinão progressivamente”. Era repudiada a idéia de se usar o método de forma em que o professor apenas repetisse os pontos e os cobrassem nos exames e exercícios. Recomendava-se que “no desenvolvimento das lições, deverão os professores associar à exposição a interrogação, não só para estimularem a attenção dos alumnos, mas também, para se inteirarem do aproveitamento dos mesmos”.

O ensino do desenho, associado ao Método Intuitivo, esteve constantemente relacionado à idéia de desenvolvimento industrial. Essa era a justificativa para a consolidação das novas disciplinas nos currículos educacionais das instituições de ensino do país. Barreto ressalta que “o ensino da arte, mais propriamente dito o ensino do desenho assumiu papel relevante na educação para o trabalho, seja ele como objeto disciplinador, ou como forma de aperfeiçoar a mão-de-obra e cultivar o espírito de trabalhador”. (BARRETO, 2006:02).

O fato de a legislação determinar, não significa que tenha sido cumprida a fio. Percebe-se que a repetição, e a utilização do método, às vezes, era bem diferente da proposta de Rui Barbosa, mas por outro lado encontram-se, também, outros documentos que demonstram que as propostas da Reforma haviam conseguido adeptos e eram seguidas em Minas Gerais. Foram encontrados programas de ensino do Lições de Coisas, nas escolas normais do estado a partir de 1896, que utilizam como compêndio a tradução da obra de Calkins realizada por Rui Barbosa, ou seja, o ensino da disciplina pontuava-se pelas propostas mais modernas daquela época. Esses programas são provenientes, principalmente, das Escolas Normais de Campanha, Montes Claros e São João del Rei, os quais apresentam semelhanças entre si como, por exemplo, o pressuposto do desenvolvimento da faculdade de observação do aluno.

É possível que Rui Barbosa tenha entrado em contato com esse método quando, segundo Lourenço Filho, em 1879, se transfere para a Corte, onde conhece a professora norte-americana Eleanor Leslie, diretora do Colégio Progresso. Esta provavelmente possuía a obra Primary Object Lesson, de Allison Norman Calkins, pois “comprazia-se em conversar sôbre assuntos de ensino, informando-se do movimento de idéias pedagógicas nos Estados Unidos”. (LOURENÇO FILHO, 1945:XV). Também aponta a possibilidade de ter ocorrido os primeiros contatos de Rui Barbosa com a obra, por meio do relatório de Ferdinand Buisson referente à seção de educação da Exposição Internacional de Filadélfia, em 187910. A grande contribuição de Rui Barbosa no que diz respeito ao Método Intuitivo está na tradução dessa obra, bem como as críticas feitas à forma com que o Método era aplicado no Brasil.

Na documentação estudada nota-se que dentre as técnicas propostas por Rui Barbosa, consta a utilização do Método Estigmográfico. Este o define da seguinte forma: O papel para o desenho, segundo o método estigmográfico, é quadriculado, isto é: está 135

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

perspectivas, valorizando o modelo de acordo com a proposta do Lições de Coisas.

coberto com linhas, que enchem a folha, cruzando-se em ângulo reto, e formando uma rede de pequenos quadrados. As figuras formam-se traçando, isto é, cobrindo as linhas de um quadrado a outro, até se completar a figura proposta pelo mestre como modelo. As linhas da rede estigmográfica são mais tarde substituídas por pontos e, finalmente, os pontos reduzidos em número, mais e mais, até desaparecerem de todo e darem lugar ao desenho livre a olho; Com este método não havia, nem há, nem haverá saltos mortais; a progressão pode ser graduada matematicamente. (BARBOSA, 1883:151).

Estendendo-se por todos os anos do Curso Normal, a disciplina deveria assegurar o domínio das técnicas estudadas criando as condições básicas para o desenvolvimento do desenho industrial: mobiliário, peças de maquinário, desenhos de arquitetura e engenharia civil, como consta na documentação encontrada. Em síntese, como demonstrado por Bitencourt, “as finalidades de uma disciplina tendem sempre a mudanças, de modo que atendam diferentes públicos escolares e respondam às suas necessidades [...] inseridas no conjunto da sociedade”. (BITENCOURT, 1998:42). Nota-se que com a disciplina de Desenho não foi diferente, uma vez que correspondeu à necessidade de seu tempo, e por isso pode ser analisada como um fenômeno histórico.

Esse método, de influência austríaca, era baseado na utilização de cadernos quadriculados para a realização de exercícios a mão livre. Nota-se, na documentação encontrada, a ausência do emprego da régua devido à falta de firmeza no traço. Barbosa deixa claro em seus trabalhos, que não se deveria iniciar o estudante no ensino do desenho usando a régua, pois isso limitaria a criatividade do aluno prejudicando todo seu aprendizado.

A utilização de desenhos como fonte para a pesquisa acadêmica ainda não é suficientemente explorada. Esta restrição explica-se em parte pelo fato do desenho ser considerado como esboço ou exercício preparatório para uma obra a ser elaborada, todavia, fundamental para a compreensão do processo de construção de uma idéia, as alterações operadas em seu desenvolvimento e, finalmente, a obra materializada. Concentrando-se preferencialmente na obra final, as pesquisas perdem muito, deixando em segundo plano os desenhos (os esboços), que nos dão a dimensão do processo de produção.

Também foram encontrados desenhos de figuras humanas, animais, ornatos fitomorfos e geométricos – barrados e frisos inspirados na gramática clássica, edifícios em perspectiva e fachadas, utensílios domésticos e de uso litúrgico, formas geométricas, etc. Percebe-se que esses desenhos se inserem no campo das artes aplicadas, pois pretendem assegurar o aprendizado de técnicas úteis ao indivíduo em sua vida profissional.

Referências bibliográficas

Outra técnica utilizada era o estudo das formas vegetais, a base para a arte ornamental; compreende-se que o treinamento em desenhos padrões vegetais aprimora os desenhos de ornatos. Estes são inspirados no vocabulário rococó, comum na maioria das cidades e presente na vida cotidiana dos alunos.

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Os desenhos não eram meramente enfeites, estavam inseridos em uma seqüência de aprendizado que partia do estudo da geometria, incluindo o estudo da perspectiva, da luz e da sombra, do espaço e da linha, conforme a graduação alcançada pelo aluno. Eram utilizados nas aulas modelos em gesso, estampas e objetos, conforme a proposta do Lições de Coisas11 . Entre os documentos, foi encontrado um projeto de arquitetura de interior, uma sala de aula adequada ao estudo do desenho. A disposição do mobiliário e a localização das janelas (a entrada de luz natural) privilegia a visão do estudante de diversas 136

O desenho em foco: a arte aplicada na transição do século xix para o xx

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Graduada no curso de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e bolsista BAT (Bolsa de Auxílio Técnico) do Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais: organização, preservação e acesso do acervo documental (1889-1945) no Arquivo Público Mineiro. 2 Graduando do curso de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e bolsista do Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais: organização, preservação e acesso do acervo documental (1889-1945) no Arquivo Público Mineiro. 3 Graduanda do curso de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e bolsista BIC (Bolsa de Iniciação Científica) do Projeto Memória da Administração do Estado de Minas Gerais: organização, preservação e acesso do acervo documental (1889-1945) no Arquivo Público Mineiro. 4 Esse recorte temporal se deve ao fato da maior parte da documentação encontrada se referir a esse período. 6 Compreende-se que a importância dada a essas disciplinas nos currículos escolares articulou-se com as exigências e as necessidades próprias do desenvolvimento industrial e o processo de urbanização do país, momento em que ocorria a escolarização de diversos saberes sociais, com fim prático e objetivo. 7 Ver BARBOSA, Rui. Lições de Coisas. Obras Completas de Rui Barbosa. 8 A origem da instituição designada Escola Normal, no Brasil, a partir da primeira metade do século XIX, se deu em função da necessidade de profissionalizar o corpo docente nacional. Sua criação vem em decorrência da necessidade de uniformizar o sistema educacional do país, e a formação de professores capacitados fazia parte dessa reforma. 9 É necessário ressaltar que a aplicação do método intuitivo não era novidade na segunda metade do século XIX. Segundo Schelbauer, foi nesta época, sobretudo por meio das Exposições Internacionais, dos Congressos Pedagógicos, dos Relatórios Oficiais, além dos compêndios e manuais de ensino, que o conhecimento em torno do ensino intuitivo foi colocado em circulação, associado à idéia de que ele se constituía em um instrumento capaz de reverter a ineficiência do ensino escolar e o método mais apropriado à difusão da instrução elementar entre as classes populares. Com esta roupagem, desembarcou na realidade brasileira como um saber pedagógico que traduzia as expectativas de renovação educacional que os intelectuais ilustrados acreditavam poder modificar o

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República industrial, copiada pelos países do Velho e do Novo Mundo interessados em seguir o modelo de desenvolvimento da então potência mundial. A partir de então, gradativamente, nota-se a influência dessas Exposições no Brasil, como se percebe no relatório do conselheiro Francisco Inácio Carvalho Moreira, em visita à Exposição de 1862. 11 Não foi possível descobrir se eram realizadas aulas ao ar livre. Um estudo mais detalhado da documentação poderá esclarecer-nos.

cenário da nação, modernizando-a por meio da educação. (SCHELBAUER, 2006:19). 10 Na segunda metade do século XIX, no mundo ocidental, as discussões em relação aos métodos de ensino ocorridas nos congressos, conferências e exposições pedagógicas atingiram grande proporção, produzindo importantes inovações pedagógicas na escola. Nas Exposições Internacionais de Londres, de 1851 e 1862, a Inglaterra foi o grande exemplo de desenvolvimento artístico-

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Como centro dos meus interesses que é o estudo da História das Artes na Bahia, abordamos, neste texto, aspectos da formação profissional dos serralheiros e ferreiros que produziram as diversas grades de ferro presentes em Salvador no século XIX, momento em que elas estiveram no seu apogeu. A presença e diversidade das grades de ferro na cidade do Salvador foi uma constante ao longo do século XIX, período inclusive que pode ser considerado como fase de apogeu no qual elas abundam como elementos decorativos em várias edificações. Essa presença é marcada pelas transformações sociais e culturais ocorridas nesse período, já que as grades de ferro se desenvolveram e acompanharam as tendências do neoclassicismo e ecletismo na arquitetura conforme podemos ver no Gradear do arco cruzeiro-Igreja N.S.Rosário dos Preto e no Balcão da Escola de Belas Artes-UFBA. É possível também que as influências dos ingleses que habitavam Salvador tenham contribuído na difusão de novos processos técnicos e artísticos na cultura local, principalmente na arquitetura. Portanto, nesse período, a difusão do ofício do artesão especializado na cultura artesanal do ferro, na qual a forja teve seu destaque se fez de modo marcante quando se vê que alguns deles, dada essa habilidade específica, realizaram muitos trabalhos na cidade e, segundo registros de fonte documental, parte deles prosperou deixando bens imóveis e escravos para seus familiares.

subsídios sobre a formação do serralheiro e ferreiro e seu sistema profissional na bahia oitocentista dilberto de assis

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Tendo em vista recuperar aspectos da formação profissional dos serralheiros e ferreiros utilizamos como fontes de pesquisa Inventários, Livros de Atas, Livros de Recibos e documentos avulsos sob custódia de Irmandades religiosas sediadas em Salvador que puderam oferecer importantes subsídios para reconstruir um perfil dessa formação. Muitos desses documentos ainda inéditos nos forneceram nomes de artífices ferreiros e serralheiros, endereços de suas oficinas, datação de algumas peças e outras informações, a exemplo de documento localizado no Arquivo da Santa Casa de Misericórdia – Bahia no qual consta uma declaração de uma empresa que se diz capacitada em não só realizar as grades de ferro para o Hospital de Nazareth, como também se acha apta a realizar qualquer tipo de desenho.2 Para melhor compreender a difusão da cultura artesanal do ferro é importante considerar que a chegada do ferro a Salvador remonta à época da fundação da cidade em 1549, para a qual, juntamente com Tomé de Souza, veio grande equipe de operários, que se ocuparam da 139

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

construção civil comandada pelo mestre de obras Luís Dias que declarou haver, num grupo de 101 artífices, a presença de ferreiros (CEAB, 1998, p. 22). Por tratar de obras iniciais para a construção de uma cidade, subentende-se que a utilização do ferro atendia basicamente a construção civil em seu uso mais ordinário, como arames para amarrações de colunas, pregos, barras e a confecção de algumas ferramentas rudimentares.

vertiginosa decadência devido à sua descapitalização em conseqüência das “[...] quedas de influências que sofreram no Brasil de 1822 a 1838” (TAVARES, 2001:283). É possível que tenha vindo da Inglaterra grades prontas, juntamente com o ferro na sua forma bruta para atender à produção siderúrgica local. Haviam casas especializadas na comercialização do ferro, nas quais ingleses e escoceses não pouparam o uso dos recursos e das potencialidades plásticas desse material. Pelo fato de ser um mineral destacável naquela época em durabilidade e resistência, o ferro foi considerado o material mais utilizado no século XIX, na arquitetura e na decoração.

Qualquer análise sobre a formação colonial brasileira, passa pela influência da cultura portuguesa, que esteve sempre presente na Bahia desde os primórdios e que atingiam todos os setores da vida da sociedade baiana, inclusive a arquitetura. A constatação da existência de alguns exemplares de grades em monumentos anteriores ao século XIX leva-nos a crer que chegaram a Salvador trazidas de Portugal, quando o comércio e as importações lusitanas predominavam nessa cidade.

Entre nós, a presença de empresas inglesas para a comercialização do ferro encontra-se registrada em Luís Henrique Dias Tavares (2001:283-286), que nos apresenta uma lista de algumas delas e de fundições que pode ser comprovada nos reclames de jornais da época. Já Kátia Mattoso (1992: 491) indica que, no início do século XIX, a Grã-Bretanha, experiente no comércio angloportuguês, transferiu para a Bahia parte de sua operação, até então dirigida a Lisboa, o que muito facilitou a comercialização de diversos produtos ingleses, dentre eles os manufaturados de ferro.

Investigando os caminhos da chegada das grades à Salvador, temos como exemplo a existência de uma cultura manufatureira do ferro em Portugal que provavelmente chegou ao Brasil. A constância dos modelos dessas grades respeitava um sistema monótono: travessões que sustentavam hastes com intervalos regulares Em alguns exemplares, acrescentavam-se às grades discretos ornamentos como aduelas, bolas ou pinhas. Para Dilberto de Assis (2003), o resultado dessa produção assemelha-se muito a alguns balcões atualmente encontrados em alguns edifícios na cidade do Salvador3, e provavelmente a sua origem remonte as oficinas lisboetas.

Para melhor atender às vendas dessas importações, supomos, ainda tendo por base fontes documentais que aqui chegavam catálogos mostrando uma variada tipologia de produtos da arquitetura pré-moldada, como também de objetos de uso doméstico e hospitalar. Esses catálogos estiveram presentes em Salvador por todo o século XIX, o que denota, portanto, a capacidade de organização comercial conseguida pelas empresas inglesas e escocesas, das quais a Macfarlane teve ampla atuação na América Latina (SILVA, 1988: 51). É possível que, alguns catálogos, circulassem entre os serralheiros e ferreiros baianos, e tenham servido como fonte de inspiração nas composições das grades, mesmo que os desenhos nele contidos sejam específicos para a fundição, diferentes pois dos da forja. Um modelo de grade que pode ter sido importado — e ainda pode ser apreciado — é aquele que se encontra colocado na janela de um sobrado localizado na Ladeira de São Bento nº. 28, Centro – Salvador-Ba. Apesar de não encontrarmos documentação que ateste a sua origem, constatamos em uma publicação que o seu padrão ornamental coincide exatamente com o padrão da grade existente na Catedral de Puy, Alto Loire, França (SUBES, 1928: 20), datada do século XIII. Essa grade em Salvador é um caso raro quando comparada a outras.

Sendo a França detentora da mestria da serralharia, pode-se notar a presença dos artesãos franceses, registrada desde o século XVII quando eles trabalharam em Portugal. Suas influências, aí deixadas, podem nos ajudar a compreender a longa trajetória da arte do ferro até sua chegada a Salvador. A presença desses artesãos também foi constatada em outros países da Europa, a exemplo da Inglaterra, que também assimilou as influências francesas, e foi através dela que algumas obras artísticas da ferraria e da serralharia chegaram até nós, no século XIX, época em que houve uma maior difusão do emprego da grade na arquitetura. Nesse momento, a Inglaterra detinha a hegemonia comercial na cidade do Salvador. A difusão de produtos e costumes ingleses resultou de forma patente na eliminação da manufatura local, destruindo qualquer possibilidade de concorrência. Os ingleses possuíam capital e considerável influência, o que gerou a retração do comércio local eminentemente português, entrando este em 140

A formação do serralheiro e ferreiro e seu sistema profissional na bahia oitocentista

A partir dessa época o sistema da aprendizagem de serralheiro desenvolveu-se na Bahia. Esse sistema consistia, na prática, na adoção, por parte de um mestre, de um jovem para que este, no convívio diário e na observação do trabalho da oficina, aprendesse o ofício desejado passando por todas as etapas do conhecimento técnico. Não havia idade certa para o início do conhecimento do ofício, como também não existia uma duração específica para a formação do oficial. Sobre tal particular, Flexor (2000: 81) diz, por exemplo, que já no século XVIII os barbeiros, filhos da Misericórdia da Bahia, passaram por esse sistema para aprender a arte de sangrar4. Tal atividade podia render ao barbeiro mestre no final de três anos, por aprendiz mantido em sua oficina, a considerável soma de 12$000 (doze mil réis). Pelo visto, a manutenção de um aprendiz podia constituir-se em um bom e rentável empreendimento (FLEXOR: op. cit: 81).

A sua qualidade técnica é ressaltada pela elaborada composição, e pode ter influenciado na produção da serralharia em Salvador ao observarmos outros modelos com seus enrolamentos mais cerrados, resultado do aproveitamento da espessura das barras. Sua composição difere, por exemplo, da composição de outros tipos de grades menos elaboradas. Sobre a formação do artesão especializado na Bahia Com a presença de jesuítas na Bahia desde os primeiros momentos da colonização, sabe-se que houve a implantação de oficinas de ofício em seus seminários, engenhos e fazendas, com a finalidade de ensino inclusive da arte além da evangelização dos índios. Acreditamos que estavam aí alguns dos primeiros prenúncios de uma formação profissional na qual se incluía os ferreiros, fabricando “anzóis, facas, enxadas, machados, foices, pregos, e mais ferragens comum de utilidade imediata” (LEITE, 1953: 48). Serafim Leite comprova tal fato ao apontar os constantes pedidos à Corte do envio de padres mestres com habilidade na arte do ofício (LEITE: op.cit: 19). Mais adiante diz o autor: “Antigamente a arquitetura e as outras Belas Artes não se estudavam em escolas públicas, senão nas oficinas dos mestres” (LEITE: op. cit: 41).

Quando havia o interesse do mestre pela admissão de um jovem aprendiz em sua oficina, eram celebradas regulamentações contratuais entre os progenitores e os mestres para estabelecer os direitos e deveres. Nesses acórdãos, incluíam-se responsabilidades de ambas as partes, como, por exemplo, a do mestre em relação ao aprendiz, que deveria dar casa e alimentação, além de todo o conhecimento técnico. O aprendiz, por sua vez, em hipótese alguma poderia ausentar-se da oficina antes do prazo estipulado no contrato (FERREIRAALVES, 1989: 70) 5. Após os acórdãos para a referida admissão, estes eram lavrados num contrato constando diversas cláusulas.

Vieram de Portugal os ofícios mais necessários para o recente processo de colonização. Aqui estes foram adaptados para atender às realidades vigentes no Brasil Colonial, principalmente na Bahia. No século XIX, por exemplo, a sociedade baiana, nas esferas, econômica, política e social, revelavam características próprias, diferentemente das evidenciadas pela sociedade do Rio de Janeiro, que nessa época era a capital do país.

Quanto à duração da permanência de um aprendiz na oficina, variava de acordo com o ofício, podendo chegar a alguns casos até cinco anos, ou até quando o aprendiz estivesse apto a ser examinado pelos Juízes de Ofício da Câmara Municipal e pudesse seguir a sua vida, assumindo seu próprio sustento. Os examinados eram avaliados mediante a execução de uma obra do seu domínio técnico, através da qual o oficial podia mostrar toda a sua mestria (FLEXOR, op. cit: 31). Àqueles considerados habilitados ao exercício da profissão; após o exame, eram concedidas cartas chamadas de Certidão de Exame, que lhes facultavam, além do exercício profissional, a abertura de suas próprias tendas na cidade de Salvador (FLEXOR, op. cit: 32).

A formação técnica era dada aos aprendizes através do ensinamento oficinal. Em princípio trazido pelos portugueses, esses ensinamentos propiciavam uma formação baseada no sistema do medievo europeu que estava relacionada com a de Lisboa. Em Salvador, conforme Ma. Helena Flexor (1974), há um documento de 21 de maio de 1641, relatando que fora instituído o cargo de Juiz do Povo que tinha a mesma função e denominação de “Mesteres”, os chamados representantes eleitos para os diferenciados ofícios, que contribuíam para a “criação dos regimentos dos ofícios, fixação de preços e salários e qualidade do trabalho das diversas ocupações”, além de examinarem aqueles que quisessem entrar nas atividades (FLEXOR: op. cit::9 e 12). Se haviam nesse período examinações, era porque, já no século XVII, existiam estruturas de formação profissional.

Ainda no século XIX, conheceu-se um outro modelo de formação profissional estruturado no Colégio e Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim, fundado em 1825 e estabelecido no local onde ainda hoje se encontra. O seu objetivo era segundo Alfredo Matta, 141

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de Janeiro que inaugurava o ensino artístico no Brasil.

“direcionar as populações de menores órfãos ou carentes, para dar-lhes instrução profissional e torná-los úteis à sociedade” (MATTA, 1999: 51).

Não se pode esquecer que a esmagadora presença de produtos industrializados importados dos ingleses, como também a fundação de fábricas para produção em série, provavelmente induziu o paulatino desaparecimento da técnica da forja em Salvador consolidada com o surgimento da solda alógena ainda na primeira metade do século XX. Exemplo dessa expansão pode ser lido na solicitação de estatutos à Junta Comercial da Bahia para a implantação de uma fábrica [...] de objetos de utilidade doméstica, artigos de ferro estanhado e especialmente esmaltados, imitando todos os artigos immagináveis de louça ou porcelana fina.[...]7

A formação profissional de ensino oficinal, oferecida ao órfão nessa instituição, especializava o menor em uma das artes de ofício nas oficinas da própria casa, ou essa formação poderia ser adquirida em oficinas de particulares pelo sistema de aprendizagem. Tanto era assim que um Decreto Imperial de julho de 1832 determinava que, nos arsenais da Guerra e da Marinha, a preferência pela admissão de novos jovens aprendizes fosse dada aos órfãos egressos da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim (FONTES, 1985:21). A formação ao assistido previa um melhor futuro para os menores, com o alcance de uma vida mais digna e íntegra, e visava a sua integração no mercado de trabalho e na sociedade quando ele saísse da Casa Pia (MATTA: op. cit: 126). Esse autor exemplifica a conhecida prática dos mestres oficiais mecânicos requisitarem menores órfãos, diretamente à Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim, para aprender um ofício. Era um sistema de formação do conhecimento técnico, voltado para o acompanhamento das tendências da modernidade na indústria e das suas inovações, bastante difundidas no século XIX.

Sistema profissional Como já foi acima enunciado, a existência de oficiais mecânicos em Salvador é notada desde a chegada de Tomé de Souza em 1549. Observase, pois, que devido ao desenvolvimento da cidade, no século XVII notava-se a existência de considerável número de artesãos trabalhando nas mais diversas atividades como ferreiros e serralheiros (FLEXOR: op. cit: 15). Esses profissionais deviam obedecer às determinações impostas pelos Regimentos da Câmara Municipal. Já os oficiais pintores, escultores, engenheiros e arquitetos considerados profissionais liberais, já não dependiam, por exemplo, de autorização da Câmara para estabelecer e colocar em funcionamento suas oficinas. (FLEXOR: op. cit: 16).

Também em documentação encontrada nos arquivos da Santa Casa de Misericórdia da Bahia constata-se um sistema de formação profissional semelhante ao da Casa Pia. No relatório anual do ano de 1885, assinado pelo Sr. Barão de Guahy há uma solicitação de rescisão de contrato datada de 14 de setembro de 1884, requerida por Constantino Nunes Mucugê, ferreiro, devolvendo os irmãos menores expostos de nomes Evaristo e Ignácio de Mattos, por indisciplina. Chamado o mestre para acareação junto à mesa administrativa, e uma vez contornada a situação, os menores retornaram à oficina do ferreiro para continuar com a aprendizagem6.

Dentre as adaptações ao sistema profissional, citase a estrutura dos ofícios anexos, que inclui, por exemplo, os barbeiros, espadeiros, corrieiros, latoeiros, armeiros e caldeireiros, os quais eram anexados à categoria dos ofícios de ferreiros e serralheiros (FLEXOR: op. cit: 15). Essa parceria era necessária muitas vezes para permitir a melhor fluência do trabalho, como observou Carlos Ott (1979:.253). Esse autor nos fala que os latoeiros eram os executores dos trabalhos de estampagem em chumbo, criando elementos decorativos como florões, rosetas, bilros e lanças para os acabamentos das grades de ferro, conferindo a estas especial destaque quando a combinação ferro-chumbo resultava sempre em belos exemplares, como pode ser visto ainda hoje: o portão e as grades principais do adro da Igreja da Ordem 3ª do Carmo em Salvador constituem alguns dos exemplos.

Acreditamos que tal formação profissional sofreu alterações com novas propostas de formação educacional. Ainda no século XIX, foram criadas instituições de ensino como o Lyceu de Artes e Ofícios em 1873, e a Academia de Belas Artes da Bahia em 1877, que em 1881 após passar por reforma de ensino passou a chamar-se Escola de Belas Artes. Essas duas instituições apresentaram novas propostas de ensino. A primeira voltada para a qualificação do operariado, e a segunda, com uma proposta mais arrojada de realizar um ensino baseado nas Academias de arte francesas, muito semelhante a já instalada em 1836 no Rio de Janeiro, Academia Imperial de Belas Artes do Rio

Mas são as Posturas Municipais, que nos trazem detalhadas informações para compreender o ofício 142

A formação do serralheiro e ferreiro e seu sistema profissional na bahia oitocentista

e produção dos ferreiros e serralheiros, após a fundação da cidade do Salvador. Esses documentos eram leis promulgadas que determinavam diversas regulamentações com muitas restrições, e que também cuidavam dos exames dos oficiais, da padronização de preços dos serviços para um determinado ofício, além da tentativa de se organizar as profissões por arruamento. Para os serralheiros, por exemplo, as Posturas Municipais descreviam as peças que poderiam ser por eles confeccionadas, e como deveriam seguir o valor padrão estipulado para o mercado local. (FLEXOR: op. cit: 53).

diversa, que muito contribuiu para a beleza dos edifícios e do espaço urbano de Salvador no curso de todo o século XIX. Referências bibliográficas ASSIS, Dilberto Raimundo Araújo de. O gradil de ferro em Salvador no século XIX. (Dissertação de Mestrado apresentada ao PPG-MAV-EBAUFBA) Salvador-Ba. 2003. 235 p. il. CENTRO DE ESTUDOS DA ARQUITETURA NA BAHIA / FUNDAÇÃO GREGÓRIO DE MATTOS. Evolução Física da cidade de Salvador. 15491800 Salvador: 1998. 184 p. FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. A arte da talha no porto na época barroca. Porto: Arquivo Histórico - Câmara Municipal do Porto. 1989. V. I 330 p. FLEXOR, Maria Helena Occhi. Oficiais mecânicos na cidade de Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador / Departamento de Cultura / Museu da Cidade, 1974 90 p. ________.Oficiais mecânicos e a vida quotidiana no Brasil. “Oceanos”. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, nº 42 - Abril/Junho 2000. 169 p. il. FRANÇA, José Augusto. Lisboa Pombalina e o iluminismo. 2ª ed. revista e aumentada. Lisboa: Bertrand, 1977. 388 p. il. LEITE, Serafim. Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa: Bratéria, 1953. 324 p. MATTOSO, Katia. Bahia: Século XIX, uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1992. 747 p. OTT, Carlos. Atividade artística nas igrejas do Pilar e de Santana da cidade do Salvador. Salvador: FFCH/Centro Editorial e didático da UFBA, Vol. I. 1979 393 p. il. SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do Ferro no Brasil. 2 ed., São Paulo: Nobel, 1988. 248 p. il. SUBES, Raymond. Les arts décoratifs - La Ferronerie d’art - Du XIe. Siècle. Au XIXe siècle Paris: Flamarion, 1928. 97 p. il. TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: UNESP: Salvador: EDUFBA, 2001. 542 p. il.

Apesar das regulamentações oficiais das profissões, estabelecidas para os oficiais mecânicos pela Câmara Municipal, sabia-se da existência de alguns litígios e de certas atitudes maliciosas por parte de alguns oficiais no intuito de subornar os regimentos. Esses indesejados acontecimentos obrigaram a Câmara a adotar “acrescentamentos” às Posturas, principalmente ao que diz respeito às regulamentações dos exames dos oficiais quando estes desejassem obter licenças para a abertura de suas tendas. Ainda assim, os oficiais ferreiros, juntamente com os serralheiros unidos na mesma irmandade, mantiveram-se fiéis ao cumprimento de suas obrigações dentro das leis (FLEXOR: op. cit: 33 e 54). As várias alternâncias econômicas de expansão e retração comercial em Salvador no século XIX, identificadas por Mattoso (1992:457), e os resultados das lutas abolicionistas, aumentando o número de homens livres, muito contribuíram para o recrudescimento da pobreza em Salvador. Neste contexto, a prática da formação oficinal pelo sistema de mestres e aprendizes ainda se fez presente naquele século, e era vista como uma alternativa para se garantir alguma atividade. As observações a respeito da produção significativa de grades de ferro na Bahia oitocentista, nos mostraram que as transformações acontecidas na sociedade ocorreram com o advento do Neoclassicismo quando os artista e artífices estudavam, copiavam e praticavam suas formas. Inicialmente se constituíram em cópias e padrões importados , reveladoras da estética vigente na Europa, para só depois apresentarem estilo próprio, isso graças às constantes observâncias ao ensino oficinal que se manteve até o século XX. Os resultados das análises que empreendemos, comprovam que, em razão da profusão de detalhes, que assumiam um cunho decorativo, a serralharia foi uma manifestação constante e

Notas 1

Mestre em Artes Visuais – PPGMAV – EBAUFBA, professor da EBADE - Escola Bahiana de Arte e Decoração – [email protected] 2 Correspondências Recebidas – Provedoria (Documentos avulsos 1855) ASCMB. 3 Antigo seminário de São Damaso, Rua do Bispo Centro; Palácio Arquiepiscopal, Sé - Centro; Lateral da Igreja da Santa Casa de Misericórdia, Sé - Centro; Casa dos 7 Candeeiros, Rua São Francisco - Centro e

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 5

Esta citação aplicava-se ao caso português. Como as estruturas do ensino oficinal no Brasil baseavam-se nos moldes lusitanos, é provável que entre nós seguiu-se o mesmo sistema. 6 Relatório apresentado à Mesa e Junta, por ocasião da Posse do Barão de Guahy - Livro de Atas da Mesa (18841891), f. 37. ASCMB. 7 Livro de contratos alterações e distratos e ss/aa 1.0161.048. ano 1891. documento 01 AJCB.

Solar do Ferrão Rua Gregório de Matos, Pelourinho Centro. 4 Técnica considerada como paramédica, pela qual o praticante fazia pequenos cortes em determinadas partes do corpo humano. Acreditava-se que, com essa prática, haveria renovação e fortificação do sangue, além do expurgo das doenças. Segundo o viajante Wetherel naquela época era prática comum quando ele cita: “ Sangria - pequenos cortes de navalha nas costas do doente sobre as quais colocam-se pequenos cornos vendando-lhes para que aconteça a sucção, operação que dura cerca de 10 min.” (WETHEREL, 1972:17).

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Oficialmente os trabalhadores manuais, ou oficiais mecânicos, estavam sujeitos à regulamentação e fiscalização da Câmara. Com a reforma do Senado da Câmara, a 1º de outubro de 1828, e a divisão dos poderes entre a Intendência (executivo) e a Câmara (legislativo) municipais1, a administração da cidade foi bastante modificada. Embora só Salvador tenha replicado o modelo europeu das guildas, entre 1641 a 1713 (FLEXOR, 1974:13), quando, a pedido dos próprios vereadores, a representação dos trabalhadores foi retirada das sessões da Câmara, na prática, o modelo daquelas organizações continuou a ser seguido até a referida reforma, provocada pela Independência do Brasil. Não quer dizer que, de imediato se implantaram as novas normas, especialmente quanto à possibilidade dos artesãos e artífices trabalharem livremente, a não ser se submetendo às normas de licença e de fiscalização. Pelos anos de 1830 até 1833, encontram-se, ainda, nos livros da Câmara, registros de documentos e pagamentos exigíveis anteriores à reforma. E, na prática, até que novas instituições e processos de trabalho revolucionassem o mundo Ocidental, os artesãos e artífices, ou oficiais mecânicos, continuaram a proceder exatamente da mesma forma, em especial, conservando a mesma hierarquia de qualificação anterior, como servente, aprendiz, oficial e mestre 2. A aprendizagem fazia-se nas oficinas dos mestres, ou nos canteiros e obras, e na prática.

de oficial mecânico a operário ou artista: o liceu de artes e ofícios e a academia de belas artes da bahia maria helena ochi flexor

Na primeira metade desse século, a pintura e a escultura ainda eram feitas nos moldes das guildas medievais. Embora, desde o século XVI, os artistas não dependessem do controle administrativo das Câmaras 3 , como acontecia com os oficiais mecânicos, os “ateliers” tinham a mesma estrutura e funcionamento das tendas ou oficinas dos artesãos. Estampas e obras de mestres serviam de modelos, como era a prática, visto que a maestria só era alcançada quando se copiava, o mais perfeitamente possível, a obra de um grande mestre 4. A prática medieval européia uniu-se à prática barroca brasileira sem hiato. A pintura dos artistas do século XIX continuou a reproduzir os modelos da segunda metade do século XVIII, tanto nos tetos, quanto nos painéis, onde o ilusionismo, através da perspectiva com um, dois ou mais pontos de fuga continuava. Os temas das pinturas e das esculturas, por terem como cliente a Igreja, eram bíblicos ou da tradição da vida dos santos, reproduzindo composições européias. A teatralidade das cenas se amenizava, sem, no entanto, deixar de ter a profundidade ditada pelo claro-escuro. A técnica e a policromia eram as mesmas do setecentos, mudando-se apenas os 145

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

motivos, não faltando as molduras barroco-rococós como complemento decorativo. Cabia aos pintores, também, a encarnação e pintura da imaginária, pinturas internas de oratórios, caixas, arcas e douramentos. Os escultores, da mesma forma, exerciam funções outras, além de executar as chamadas obras primas, incluindo restauração ou modernização de imagens.

temas que se distanciavam dos bíblicos e religiosos em geral. Essas, como outras, iniciativas eram isoladas. Em 1841, Paul Geslin, pintor de história, da Academia de Paris, anunciava lições de pintura e desenho, com a utilização de método fácil para principiantes, segundo informações de Manoel Querino (1911: 104). O mesmo autor dá notícias de que, no ano de 1845, existia, na Praça de Palácio, um estabelecimento de Belas Artes, pertencente a Luiz Antônio Dias, onde se ensinava ... “um sistema completo de ceroplastia, ou seja, imitar ao natural, com a máxima semelhança, qualquer objeto; desenho e pintura oriental e mais doze ramos diferentes”.

Só pelos anos 1830-1840, as influências neoclássicas se fizeram sentir nos templos religiosos, quando se começou a promover reformas de seus interiores ou a mandar modernizar as imagens, procurando tirar-lhes o volume e o movimento do período barroco. Atingida por uns poucos reflexos do liberalismo, e das mudanças técnico-científicas européias, a Bahia e seus habitantes viram-se numa situação intermediária, procurando adaptar a antiga forma de trabalho à “era industrial”. Esse fato trouxe, de um lado, modificações nas relações de trabalho, entre os operários e os antigos oficiais mecânicos, que passaram a se unir para trabalharem por empreitada e, em conjunto, participarem das concorrências públicas, tanto nos canteiros de obras civis, quanto religiosos. Foi assim que os baianos marcaram a passagem do trabalho artesanal, manufaturado para, inicialmente, o semiindustrial.

Uma década depois, em 1856, Antônio José Alves, no edifício onde funcionava uma Academia de Belas Artes, então residência do Conselheiro Jonathas Abbott, e um grupo de homens de letras fundou a Sociedade de Belas Artes, com o “objetivo de despertar o gosto pelas manifestações literárias, elevando moralmente a classe dos artistas e, ainda dando mais oportunidade, oferecendo exposições anuais” ... “Mais tarde, a Sociedade de Belas Artes convidou as pessoas que quisessem vender quadros, esboços, desenhos, como gravuras ou outras quaisquer peças de arte, para organização da sua biblioteca” (Id.: 105, 106), bem como promoveu concursos de pintura histórica, principalmente em homenagem ao 2 de Julho5.

Essa passagem de uma forma de trabalho para a outra demoraria alguns anos, embora já começasse a ter indícios de inovação no início do oitocentos. A primeira forma de ensino, fora dos “ateliers”, oficinas, tendas ou obra de artistas e artesãos, foi na área do desenho. As aulas públicas de desenho iniciaram-se em 1813, nas dependências do Convento de São Francisco, tendo como professor e diretor Antônio da Silva Lopes, português que, segundo Manoel Querino, era deficiente como ensinante, devido à morosidade do processo que adotava. O desenho duma cabeça de tamanho natural poderia ocupar um aluno durante seis meses. Mesmo assim, alguns desenhistas concluíram o curso e, entre eles, Fortunado Cândido da Costa Dormundo, que “como copista, imitava com a pena qualquer gravura” (apud a OLIVEIRA, 1970: 12). Esse professor ministrou aulas até 1820 e, no ano seguinte, foi nomeado, lente substituto da cadeira, o artista Antônio Joaquim Franco Velasco, considerado bom professor e cuja atuação prolongou-se até 1833, época em que o curso passou para a orientação de José Rodrigues Nunes, até 1860 e, posteriormente, para o seu filho, Francisco Rodrigues Nunes (OLIVEIRA, 1970: 12). Franco Velasco tinha grande habilidade para retratos e para

Antes disso, a Assembléia Provincial, pelo que consta, chegou a votar crédito para a construção de um Palácio de Belas-Artes e, entre 1841 e 1870, a Bahia já enviava alguns artistas para se aperfeiçoar na Europa, independentemente de instituições oficiais ou particulares. Francisco Rodrigues Nunes, que pertencia à Sociedade de Belas-Artes, e ensinara desenho nas aulas públicas, estudou pintura, Francisco Moniz Barreto foi estudar música e pintura e Francisco de Azevedo Monteiro Caminhoá arquitetura civil, entre outros (Id.: 107, 108). Por outro lado, já em 1864, Antônio Álvares da Silva tinha apresentado Projeto de Lei para criar um Liceu de Artes e Ofícios (Id.: 110), mas só em 1871, artistas e operários, julgando estreitos os moldes da Sociedade Montepio dos Artífices6 e a Sociedade Beneficiente Montepio dos Artistas 7, desejando ampliar seus horizontes, cogitaram os meios para a fundação de um estabelecimento de ensino profissional, teórico e prático que, ao mesmo tempo, fosse uma instituição de beneficência (Id.: 112). A visita de D. Pedro II à Bahia, em 1859, teria 146

O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

sido fundamental para a criação do Liceu de Artes e Ofícios, que só se efetivou em 1872.

foram fatores que não permitiram, de um lado, o conhecimento instantâneo do que se passava em matéria de criações artísticas novas em outros centros urbanos e, de outro, para que novos estilos não encontrassem campo próprio para sua instalação imediata.

O Liceu mantinha aulas e oficinas de primeiras letras, aritmética, álgebra, geometria e trigonometria; desenho de figura e ornato, desenho industrial; geografia e história universal para ambos os sexos, piano, canto para meninas, orquestra e canto para meninos; inglês teórico e prático; curso noturno de primeiras letras para adultos; francês teórico e prático; português e música vocal e instrumental. As oficinas eram de escultura, encadernação, marcenaria, douramento e pintura decorativa 8 . As aulas dividiam-se em letras, desenho, gramática, filosofia e francês, como formação geral, somada às oficinas. As primeiras oficinas a funcionar foram as de encadernação e escultura. Criaram-se posteriormente as de marcenaria e tipografia.

No Liceu de Artes e Ofícios, além do conjunto de matérias previstas e cultura musical, promoviamse exposições anuais dos trabalhos dos alunos, congregando, também, os candidatos às exposições nacionais e internacionais. Nas exposições, podiam-se ver, além dos trabalhos específicos pertinentes ao Liceu, quadros a óleo e crayon, esculturas, tapeçarias, chapéus etc. Da exposição de 1888 participaram, por exemplo, 500 expositores com mais de dois mil objetos. Em 1898 contava com 2.216 associados e o Estado provia as suas receitas com mais de 50% do total arrecadado. Toda essa organização fez aparecer, em 1890, o jornal A Verdade, com características republicanas.

No mesmo ano de 1872, o Diretor Geral da Instrução Pública do Governo Provincial, desembargador João Antônio de Araújo Freitas Henriques, em Relatório, dava conta da existência das cadeiras de música e desenho no Liceu Provincial, voltado ao ensino de 2º grau, porém sem fazer parte do curso regular, salientando que “seria fácil a criação de um modesto Instituto de Belas Artes, aumentando-se uma cadeira de Escultura”, concluindo, no entanto que, se essa idéia não fosse aprovada, as duas cadeiras deveriam passar para a Escola Normal. O Liceu Provincial possuía, também, uma galeria de pintura – galeria Jonathas Abbott9 – que, segundo o mesmo Diretor, “não tem sido visitada, como deveria ser, pois é importante, e contém quadros preciosos” (FALLA, 1872)10. Em relação à Escola Normal, dizia-se que o ensino de desenho de imitação, além de prestar serviços outros, “forma o gosto e desenvolve o sentimento do belo” (Id, 1881.:30), bem dentro da ideologia classicista. Todos os colégios, na segunda metade do século XIX, ofereciam aulas de dança, música e desenho para os meninos e, ainda, aulas de prendas domésticas para as meninas.

Nessa segunda metade do século XIX também começaram a se implantar algumas indústrias em Salvador, sobretudo na região da Península de Itapagipe que, até os anos de 1980 seria, por assim dizer, o lócus do parque industrial da cidade. Isso só foi possível, em parte, graças aos novos meios de transporte que se instalaram, mais uma vez devidos aos ingleses e franceses, especialmente o bonde, que alargou as fronteiras da capital, quanto do trem que começou a ligar a capital as cidades interioranas, sem falar no transporte vertical ou inclinado. Por outro lado, foi um período em que a classe média começou a atingir o poder e foi quando o bacharel em direito cedeu lugar aos outros profissionais liberais e comerciantes nesse poder. Estes, voltados para novas pesquisas e tecnologias inovaram, também, o ambiente criando instituições beneficientes, abolicionistas e culturais. Como políticos, transitavam nas altas esferas soteropolitanas, bem como nas da Corte do Rio de Janeiro. Foram eles, sobretudo, os idealizadores e portadores das inovações introduzidas na Bahia na segunda metade do século XIX11.

As instituições artísticas foram se multiplicando, inclusive por influências inglesa e francesa. Nos meados de 1877 se tem noticias, também, de um Instituto Artístico, sob a direção de Barbosa Nunes, cujas aulas podiam ser freqüentadas pelos associados e seus filhos (DIÁRIO, 1877: 2). Tudo isto se passava na capital da Província da Bahia onde, por falta de rotas de comunicação interna, e com os grandes centros culturais, a população diminuta, a migração de intelectuais para o Sul do Pais, e para a Europa, a quase inexistência de instituições culturais oficiais e oficiosas; a falta de desenvolvimento industrial, técnico e científico,

Nesse contexto, Liceu de Artes e Ofícios tinha como objetivo principal qualificar operários para o novo contexto político e para o mercado de trabalho que se descortinava. Seu aparecimento se deu justamente no período em que se iniciava o processo de diminuição da mão-de-obra escrava, provocando a passagem do antigo regime de trabalho, para o trabalho livre. Destinava-se, por 147

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

isso mesmo, aos filhos dos operários que fossem associados.

estabelecimento a funcionar em um edifício, por concessão da Presidência da Província, de 1880, “prestando as classes pobres relevantes serviços” (FALLA, 1886: 33)16.

Ajudaram muito as ditas aulas noturnas, abertas à população, desde que resguardassem as “condições morais”. Nasceu como sociedade, com subsídio estatal e apoio da população através de doações. Voltava-se para o ensino prático e teórico, visando uma formação para o trabalho nas oficinas, coadjuvada, como se viu, por uma formação humanística12.

De imediato trataram de preencher os lugares de professores. Em janeiro somavam-se, aqueles professores fundadores, Carlos Celso de Moraes e o farmacêutico Amaro de Lellis Piedade, o primeiro para lecionar matemática e este para a cadeira de estética e história das belas artes (ATAS, 14 jan. 1878, fl. 4), Francisco Barbosa de Araújo17, Eduardo Dotto, indicado para aritmética, álgebra, ciências físicas e naturais.

O Liceu de Artes e Ofícios seguia, ainda, as características mutualistas das irmandades setecentistas, reforçando a ideologia de ressuscitamento das guildas medievais, dando assistência, além da de formação profissional, à sobrevivência dos sócios e seus familiares. Foi criada pelos próprios operários, ou artistas e artífices descendentes ou remanescentes do antigo sistema dos ofícios mecânicos, como João Francisco Romão, cujo pai foi um ativo pintor, Francisco da Silva Romão, que chegou, inclusive, à vice-presidência da Associação. Recebeu a maior adesão, por parte dos artífices, artistas, operários, a ponto da Academia de Belas Artes se ver diminuída pelo impacto causado pela atuação do Liceu, e que contava, no seu primeiro ano de existência com 178 sócios, dos quais a grande maioria era formada por artesãos e operários.

A criação do Liceu de Artes e Ofícios e da Academia de Belas Artes foi reflexo da separação que se iniciou entre arte e indústria, entre artista e operário, entre neoclassicistas e os neomedievalistas e “ambientalistas” da Grã-Bretanha e da França. Tanto a arte oficial na corte de Napoleão, implantada na Academie des Beaux Arts, na École des Arts Décoratives, de Paris, quanto o movimento Arts and Crafts, da Inglaterra, tiveram reflexos na Bahia e no Brasil 18 . Foram esses movimentos, melhor consolidados, que influenciaram nas práticas coletivas, na formação das sociedades e montepios e na reabilitação do classicismo e do gótico, ao lado de toda uma atitude de preservacionismo e reconstituição da natureza, que foi muito bem retratada pelos prerafaelistas ingleses.

Iniciou-se, como não poderia ser diferente, no seio da Sociedade Montepio dos Artistas, passando, posteriormente para um prédio na rua dos Mercadores, atual rua Chile. Dois anos depois adquiriu o edifício, conhecido como Paço do Saldanha, com campanhas de arrecadação de fundos. O século XX iniciaria o processo de decadência da instituição, quando ela deixou de ser mutualista para se transformar em instituição de educação profissional formal.

Criada por iniciativa particular daquele grupo de cidadãos, a Academia tinha como fim o ensino, teórico e pratico, propagar e aperfeiçoar os ramos de estudos das belas artes, habilitando os alunos para o exercício das profissões de pintor, escultor, arquiteto, empreiteiro e desenhista (VIANNA, 1893: 251). Regendo-se por seus estatutos (DO, 1923:497), os cursos dessas profissões se distribuíam por três seções principais: pintura, escultura e arquitetura, e uma anexa, a de música (VIANNA, 1893: 251; QUERINO, 1911: 120).

A Academia de Belas Artes da Bahia só apareceu em 1877, sessenta e um anos depois da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Esta foi fruto da dissidência entre professores do Liceu de Artes e Ofícios, como conseqüência a uma discussão, ainda não muito esclarecida13, O pintor espanhol, natural de Valência, Miguel Navarro y Cañizares retirou-se do Liceu 14 , levando seus alunos15 e, auxiliado pelo pintor João Francisco Lopes Rodrigues, pelo engenheiro José Nivaldo Allioni, pelo médico Virgílio Clímaco Damásio, o professor primário Austricliano Ferreira Coelho, fundou a Academia de Belas Artes (DO, 1923: 497). Em 17 de dezembro do citado ano, durante o governo do desembargador Henrique Pereira de Lucena, futuro Barão de Lucena, começou esse

Na seção de arquitetura existiam três cursos básicos: um para arquitetos, outro para empreiteiros e um outro, ainda, para desenhistas, tendo este por fim preparar indivíduos para as diversas profissões, como carpinteiros, marceneiros, ferreiros, entalhadores, marmoristas, canteiros, pedreiros, pintores de casa etc. (RELATÓRIO, 1882: 59). Como se verifica, mantinha cursos de atividades que se classificariam entre os ofícios mecânicos, portanto, caberiam mais ao Liceu de Artes e Ofícios.

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O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

Além desses cursos regulares funcionavam, intermitentemente, outros cursos, além da possibilidade dos professores poderem admitir seus alunos particulares. Datam da fase em que o trabalho dos professores era gratuito, os cursos especiais de desenho e pintura para senhoras, sob a responsabilidade de João Francisco Lopes Rodrigues e Miguel Cañizares (ATAS, 1 abr. 1878, fl. 12, 13). Da mesma forma João Francisco Lopes Rodrigues Filho e Carlos Carvalho se propunham a criar uma aula de desenho noturna, sob a direção de ambos (Id, 22 abr. 1882) etc.

Congregação. Assim, com o tempo foram contratados vários professores, entre eles alguns ex-alunos que, inicialmente funcionavam como ajudantes para depois serem efetivados. De início, o trabalho de vários desses professores foi gratuito. Aos poucos começaram a receber vencimentos, ainda bastante modestos, não muito diferentes daqueles do porteiro da Academia. Posteriormente, outros, ainda, se ofereceram e começaram a trabalhar gratuitamente, porém, isso trouxe vários problemas o que os levou à proibição de aceitar novos professores nessa condição.

A administração era feita pelo corpo docente, constituído em congregação, presidida por um diretor (FALLA, 1880: 16). Cañizares, enquanto diretor, propôs que fossem permanentes os cargos de presidente e vice-presidente da Academia, “salvo os casos de renúncia voluntária com direito a título de honorário com aprovação da congregação, e os casos de procedimento censurável serão exonerados por votos pela Congregação” (ATAS, 12 abr. 1880, fl. 36). O cargo de diretor também se tornou efetivo. Os demais funcionários ocupavam cargos eletivos, cuja escolha se efetuava anualmente: vice-diretor, secretário, adjunto de secretário, tesoureiro e bibliotecário, sendo permitida a reeleição. Em conseqüência, o diretor, inspirado nos usos das academias européias propôs a criação do lugar de presidente da Academia e sugeriu que fosse nomeado o Dr. Virgilio Damásio, o que foi aceito, tendo o mesmo direito a assistir as reuniões de congregação. Também foi aprovado o “diploma de benfeitor” e que “fosse tirado a óleo o seu retrato para ser colocado em uma das salas” da Academia (ATAS, 23 abr, 1978, fl.10, 11), um costume que se divulgou largamente nos finais do XIX e princípios do XX.

Desde a sua fundação, a Academia passou por altos e baixos, financeira e administrativamente. Os professores, não só pensavam em pedir auxilio ao governo quanto, por várias vezes, deixaram de se reunir em congregação por períodos grandes por terem que se ocupar em outro trabalho. O diretor dizia, comparando a Academia à outra instituição, instalada pouco antes, “lamentar a pouca animação deste estabelecimento” e chamava a atenção da Congregação para a animação em que se achava o Liceu de Artes e Ofícios, pedindo uma comissão de sindicância para saber de onde vinha a tal animação do Liceu. (ATAS, 28 jul. 1884). Allioni propôs, por seu turno, a criação de “diversos cursos anexos a Academia com o fim de ver se o aumento do número de matriculas dava mais impulso ao estabelecimento” (ATAS, 25 abr. 1884; 8 jul. 1889, fl. 121). Pretendiam, também, constituir uma instituição de beneficência, chegando a estabelecer as regras, o que tornaria a Academia mais próxima dos propósitos do Liceu de Artes e Ofícios (ATAS, 3 abr. 1889)21. Ficou apenas na proposta. Tentaram recorrer ao Barão de Guahy, Joaquim Elysio Pereira Marinho, para que tomasse a si o encargo de pedir uma subvenção ao Governo Geral (ATAS, 3 abr. 1889, fl. 118; 6 mai. 1889, fl.120), e ao Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos Benjamin Constant Botelho de Magalhães (Id, 22 mai. 1890, fl.125). Chegou-se a um estado que Braz do Amaral, “falando dos meios em geral de melhorar o cofre da Academia”, “dizia que se soubesse que não resultaria a queda da Academia”, lembrando um pouco Pardal Mallet, faria “destituí-la completamente para fundá-la de novo”. Reconhecia a necessidade de reformar os estatutos para criar uma sociedade que, com a Congregação, sustentasse a Academia “cujo peso já é demasiado para os seus professores atuais aos quais não pode ser agradável nem digno dirigirem-na na vida inglória e enfraquecida que ela vai levando” (ATAS, 27 jul. 1887, fl. 104).

Cañizares foi, portanto, seu primeiro diretor 19. Licenciando-se, por tempo indeterminado em 188220, foi substituído por João Francisco Lopes Rodrigues, pai, até sua morte, em 1893, e depois por Braz do Amaral e Eduardo Dotto, nesse princípio de vida da Academia. O engenheiro José Allioni, igualmente, ocupou por muito tempo o cargo de tesoureiro da instituição. Qualquer dos membros podia ser eleito, incluindo os estrangeiros (ATAS, 9 set. 1895, fl. 168). Todas as tarefas, de interesse para a coletividade docente e discente, eram executadas por comissões, eleitas pelos pares da Congregação. Normalmente os professores eram contratados, ou por indicação dos colegas, ou se ofereciam, através de requerimento, com documentação comprobatória de capacitação. Os pedidos ou recomendações eram julgados pela 149

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Entrementes, os limites entre as ações do Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes eram confusos ao ponto da própria Presidência da Província ter proposto a junção das duas instituições, inclusive porque o então diretor e fundador da Academia, Cañizares, estava passando por dificuldades financeiras 22 . O Presidente da Província, Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo, o Barão Homem de Melo, chegou a chamá-lo ao palácio propondo a anexação da Academia ao Liceu, garantindo-lhe um bom ordenado, o que não foi aceito (ATAS, 22 jul. 1878, fl. 15-16). Essa discussão prolongou-se até 1890, já na República, (Id., 1890, fl.126, 127), quando, o então presidente da Academia, Virgílio Damásio, assumiu interinamente o Governo do Estado, na qualidade de vice-governador provisório, e propôs que a Academia entrasse em acordo com o Liceu que ele, como maior autoridade, sancionaria o que fosse proposto (Id., fl.128). Ainda em 1891, os membros da comissão de reforma da instrução do Estado, declararam ter a intenção de, na reforma, autorizar ao Governador entrar em acordo com as diretorias da Academia de Belas Artes e do Liceu de Artes e Ofícios sobre o ensino técnico e profissional. Nesse sentido, para diferenciar-se mais do Liceu, a Congregação dividiu o curso de história de belas artes e estética em dois: curso de estética, estudo geral das artes e suas aplicações e história propriamente das belasartes (Id., 6 ago. 1891, fl.131).

do orçamento da receita, o que não podeis fazer é deixar no esquecimento, como tem estado até aqui, a instrução e educação técnica dos nossos operários”. Os professores Braz do Amaral e José Allioni foram encarregados de contatar o Diretor Geral da Instrução Pública, Sátiro de Oliveira Dias, os membros da comissão de reforma e instrução, sobre o programa da reforma da Academia (ATAS, 4 ago 1891, fl. 130, 131). Iniciaram-se, portanto, os trabalhos discutindo-se os estatutos e os capítulos do programa de reforma relativos ao “curso geral e especial” (ATAS, 24 set. 1894, fl.153). A 5 de dezembro de 1894 fazia-se a discussão, e última leitura, dos estatutos (Id., fl. 158) que, com a aprovação da Congregação, entrava em vigor23. José Allioni dizia, então, que se devia modificar o programa de estudos da Academia e propunha o curso completo, que seria dividido em curso preparatório e curso especial. O primeiro desses cursos compreenderia as aulas elementares, desenho geométrico até perspectiva, - desenho de ornamentos, folhagens, etc. -, e desenho de figura. Essas aulas seriam obrigatórias e seguidas por todos os alunos, qualquer que fosse a orientação que desejasse dar a sua carreira. No fim, os alunos seriam obrigados a passar por um exame de suficiência, antes de cursarem as aulas especiais, sem o que não poderiam ser aceitos. Nos cursos especiais haveria toda independência. O aluno seguiria o curso que mais lhe agradasse, conforme a idéia ou carreira que quisesse seguir: arquitetura, pintura, escultura ou os ofícios que deles fossem dependentes, como artes mecânicas e liberais, pintor de retratos, paisagem, retocador, litógrafo e, enfim, a classe dos entalhadores, modeladores, canteiros etc etc. (ATAS, 14 fev. 1890, fl. 124, 125). Esse programa já mostrava diferença nas concepções estéticas e profissionais do Liceu de Artes e Ofícios, mas não se distanciaram radicalmente.

Proclamada a República, iniciou-se o real processo de reforma, em conseqüência da Reforma do Ensino Secundário e Superior da República, em 1890, realizada no Ministério de Justiça, Negócios do Interior, Instrução Pública etc, conhecida como Reforma Benjamin Constant. Dentro do programa de reforma da Academia, Braz do Amaral consultou, por sugestão de Allioni, as opiniões do Diretor da Instrução Pública, de alguns deputados e senadores “sendo todas de opinião que a congregação da Academia deve fazer desde já a reforma do seu ensino”.

Além das seções específicas, funcionaria uma outra anexa, uma aula primária, na qual se ensinaria caligrafia, leitura, história sagrada, história pátria, geografia, lições de coisas, elementos de ciências naturais, desenho e música (VIANNA, 1893: 252).

Em 1891, o próprio Governo sugeria, em Mensagem dirigida ao Congresso Estadual que “o Liceu de Artes e Ofícios e Academia de Belas-Artes, que bons serviços já tem prestado, e melhores poderão prestar, se forem convertidos em estabelecimentos oficiais, recebendo a organização que vossa sabedoria lhes der ou auxiliados por fortes subvenções sendo, neste caso, reorganizados com intervenção e fiscalização dos poderes públicos. Nesse sentido fareis o que mais acertado julgardes, tendo em atenção as forças

Com a reforma dos estatutos e dos cursos, Manoel Lopes Rodrigues e José Allioni foram encarregados de “apresentar um trabalho organizado” (ATAS, 3 set. 1894, fl. 152). Assim, pouco depois, Braz do Amaral, como diretor, apresentou a lista com a distribuição das cadeiras que deviam formar os cursos da Academia, segundo a reforma por que estava passando, indicando os nomes dos 150

O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

professores (ATAS, 21 nov. 1894, fl. 157). Todos professores demitiram-se dos cargos anteriores para assumir os novos encargos. O curso de música continuou a ficar como seção anexa (ATAS, 4 mai. 1895, fl. 162).

metade do telhado do atelier de pintura por um grande caixilho de vidro, a fim de que ficasse com as condições indispensáveis às aulas de pintura (ATAS, 6 jul. 1895, fl. 163), numa cópia visível do “atelier” da Academia Imperial, além de outras adaptações. Parte dos móveis, bastante simples, foi feita pelos alunos. Outros foram doados pelo governo, como cadeiras, mesas, sem uso no Externato Normal de Senhoras (ATAS, 10 jun. 1887, fl. 101v), sendo aos poucos suprida de maneiras as mais diversas possíveis. O professor Manuel Lopes Rodrigues, pensionista em Paris, encarregou-se de comprar mobília e material de trabalho na França, pedindo, então, 10% de pagamento pelo trabalho (Id., 29 out. 1894, fl. 155; 10 jul. 1895, fl. 164).

Além de mudar estatutos e programas, depois da Reforma Benjamin Constant, a Academia de Belas Artes foi, como a antiga Academia Imperial de Belas Artes, denominada Escola de Belas Artes da Bahia, nos inícios de 1895 (ATAS, 7 jan. 1895, fl. 159)24. Essa reforma alijou alguns dos antigos professores. Pelo novo regimento, aqueles professores que estavam licenciados foram considerados membros honorários, o que causou grandes transtornos, não só aos atingidos, quanto à própria Escola, como foi o caso de João Francisco Lopes Rodrigues Filho. Didaticamente, o fato mais importante que merece indicação é que só a partir dessa reforma passou-se a utilizar “modelo vivo”25.

Apesar da modéstia, o valor da Academia já era reconhecido nos dez primeiros anos de sua existência. O Presidente da Província, em exercício em 1888, desembargador Aurélio Ferreira Espinheira, solicitava os objetos, adquiridos pela Academia, para a exposição sulamericana, promovida pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, quando a convidara para tratar da “representação da Província da Bahia na Exposição de Paris”, no ano seguinte (ATAS, 13 jun. 1888, fl. 110, 111).

Quando da aquisição do solar Jonathas Abbott, no caminho Novo do Gravatá, ou rua 28 de Dezembro, o Governo, que o comprara para as escolas do Curato da Sé, cedeu uma parte do edifício – o pavimento superior – para a Academia que ali se instalou muito precariamente (FALLA, 1878: 41). O Presidente da Província, Antonio de Araújo de Aragão Bulcão, o Barão de São Francisco, chegou a pedir que desocupassem o prédio. Como estava anunciada a 1ª exposição dos trabalhos dos alunos, depois de muitas ponderações feitas pelo secretário da Academia, as diversas conferências com sua excelência, deram resultados, marcando, inclusive, sua presença na solenidade da inauguração da exposição, músicas para as noites de quintas-feiras e domingos, a aprovação da planta de obras, mandada fazer por Henrique Pereira de Lucena, Barão de Lucena, Presidente da Província seguinte, e que garantia à Academia a sua permanência efetiva na parte superior do edifício (ATAS, 25 jan. 1879, fl. 27-28).

Para os fins do século, para melhorar o ensino, dizia Braz do Amaral, que o Governador já lhe declarara “que desejando aproveitar artistas nacionais na reforma que vai fazer no ensino”, achava conveniente chamá-los para esta cidade. Nesse sentido foi convidado Horácio Hora que, como Manoel Lopes Rodrigues, estava em Paris. Horácio Hora27, no entanto, mandou carta na qual dizia “que a vista dos últimos acontecimentos do nosso pais e as más noticias que acaba de receber adia a viagem para mais tarde, aguardando resposta para o seu governo” (ATAS, 22 jan. 1890, fl. 123). Adoeceu, vítima de tuberculose, faleceu e nunca foi para a Bahia.

João Capistrano Bandeira de Melo, enquanto Presidente da Província, visitou a Academia, em janeiro de 1887, porém deu usufruto das lojas e sobrelojas ao arrendatário do prédio, Francisco Leôncio Serapião, que se instalara com uma rinha de luta de “aves domésticas” no quintal (ATAS, 27 jul. 1887, fl. 102,112). A Academia recebeu reformas no prédio, enquanto que, pouco a pouco, foi conquistando todos os espaços e ali funcionou até 196926.

Por insistência de Braz do Amaral, o Governado Manoel Rodrigues Lima pediu à Assembléia Estadual autorização para contratar um artista em Paris, por conta do Estado. No período, dois artistas estrangeiros foram contratados, o professor francês, de origem russa, Maurice Grün e, posteriormente, o francês Joseph Gabriel Santis. Maurice Grün veio de Paris, em 1895, para lecionar modelagem, ornamentação, pintura do natural e desenho de relevo, ficando até 1899, Gabriel Santis encarregou-se do ensino de escultura (OLIVEIRA, 1970: 25). O primeiro não aceitou as novas bases do contrato e o segundo não continuou na Escola por falta de verba, dizia José Allioni, em 1923.

Nessa primeira sede foram feitos “ateliers” para alunos de pintura, de escultura, salas para aulas de desenho e aulas teóricas. Foi substituída a 151

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

segundo o Diário Oficial, edição especial, “foi esse o período áureo da Escola de Belas Artes” (DO, 1923:497).

Presidentes da Província não se desdenhavam de proteger e animar a cultura artística”..., enquanto ...”no regime republicano, divorciado o poder público do elemento popular, tem-se refletido nas artes o lamentável choque do desprezo”.

A manutenção da Academia provinha de várias fontes como recursos especiais, fora o curricular, cujos alunos pagavam matricula, subvenção estadual (DO, 1923, p. 497), porcentagens provenienes de contratos, por exemplo, com a Companhia Lírico-Francesa do Senhor Roger et Cie e do teatro São João, em 1878 (ATAS, 1 fev. 1878, fl. 5), ou o espetáculo no teatro público em concordata com os artistas Aurora e Valle, marcado para o dia 4 de dezembro de 1878 (Id., 19 nov. 1878, fl. 23), loterias, por ser considerada uma instituição de utilidade pública, esta, porém, só a partir de 1917, concertos patrocinados pelo Governador no Palácio, etc. a subvenção inicial, recebida do Governo, por exemplo, era de 2.000$000 de reis, dividida em parcelas. Era a mesma quantia concedida para 3 dias de festejos do dia 2 de Julho já referido. O Liceu de Artes e Ofícios recebia 20:000$000 de réis anuais, o que sempre suscitava reclamações dos professores da Academia.

Ao ver dos contemporâneos, os meios empregados para animar o estudo e desenvolver o gosto pelas belas-artes, como se via nos respectivos estatutos da Academia, eram, como acontecia na Imperial Academia do Rio de Janeiro, os concursos e exposições anuais e distribuição de prêmios e recompensas aos autores de trabalhos expostos (RELATÓRIO, 1882: 60). A primeira exposição, como já foi referido, foi realizada em 1878, premiando-se os expositores com medalhas de ouro, de prata, de bronze, compradas em Paris. Havia expositores internos e externos e, entre outros, nessa primeira exposição, foram premiados os presos da penitenciaria com medalha de ouro, conferida à oficina de marcenaria (ATAS, 25 jan. 1879, fl. 27-28), o que mostra os limites confundidos com as atividades do Liceu e da Academia. Desde logo foi proposto que das exposições anuais só participassem “trabalhos propriamente de belasartes ou aqueles, que com elas tivessem relação”. Mas, em 1883, ainda havia julgamento das comissões, com um presidente e mais dois julgadores, de trabalhos externos de prendas, de mobílias escolares, de fotografia, de desenhos, de imitação de pedra (ATAS 18 out. 1883, fl. 73-74).

Tudo isso era alcançado com grande luta, o que levou os professores a elegerem benfeitores. As principais figuras e benfeitores tiveram seu retrato na galeria da Escola, colocados solenemente. O Barão de São Francisco, Antonio de Araújo de Aragão Bulcão, recebeu o título de protetor da Academia (ATAS, 5 mar. 1880, fl. 33-34). Esses benfeitores, tanto eram homens públicos, quanto os próprios professores. Em 1885, por exemplo, foi feita a proposta para feitura28 do retrato de João Francisco Lopes Rodrigues para ser colocado no salão de honra, sendo encarregado seu filho, Manoel Lopes Rodrigues, para ser pendurado com cerimônia, com a presença da Congregação e alunos (Id., 28 jan. 1884, fl. 77). Em homenagem a sua memória foi dado o nome de Galeria Lopes Rodrigues ao salão de gessos (IDEM, 27 out. 1993, fl. 143). Foi aprovado, ainda, e entre outros, o retrato do professor José Allioni para figurar junto com Lopes Rodrigues, pelos serviços prestados à Academia (Id., 15 jun. 1892). Senadores, deputados, presidentes da província, políticos em geral e professores, e mesmo alunos, tiveram seus nomes, de alguma forma, perpetuados na Academia.

Em 1886 José Allioni propôs se admitissem trabalhos de outros ofícios, que não tivessem relação com as belas artes, fazendo uma sessão a parte para animar a exposição. O professor Austricliano Coelho, no entanto, ponderou sobre “o mal que pode porvir dessa idéia e fica determinado continuar a Academia aceitar somente obras de arte como até aqui” (ATAS, 15 dez. 1884, fl. 83). Posteriormente essas exposições foram destinadas somente aos alunos da Academia (TORRES, 1953:197). A premiação, como a escolha de alunos, seguia quase sempre o gosto pessoal dos professores, mas, a partir de 1885, a congregação declarou que se deviam premiar, daí por diante, os trabalhos e não os expositores (ATAS, 26 jun. 1885, p. 94). Para essas ocasiões sempre se formavam duas comissões, uma de ornamentação do edifício e outra para os convites aos expositores, chegando a dividir-se esta em duas, uma para a Cidade Alta e outra para a Baixa. A partir de 1884, os trabalhos dos alunos passaram a ser julgados com os das alunas (ATAS, 15 dez. 1884, fl. 83, 84).

Houve quem acusasse o novo regime – a República – como responsável pelo abandono a que chegou a Escola de Belas Artes. Assim procedeu Manoel Querino (1913, p. 27-28), ex-aluno fundador da Academia de Belas Artes, quando afirmava, em 1911, que “no Império, honra é confessar, os 152

O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

Com a reforma dos anos 1890, os prêmios, de acordo com os novos estatutos, passaram a ser pecuniários, como forma de novo incentivo. A Escola, a exemplo também de sua congênere do Rio de Janeiro, levou a efeito os concursos de prêmio de viagem à Europa, sendo enviados a Paris, por três anos, os alunos premiados em pintura, Archimedes José da Silva e Antonio Claro Baptista (DO, 1923: 497). Quando da premiação de Archimedes José da Silva houve grande discussão, pois, devido às próprias deficiências da Academia, o aluno não tinha prestado alguns exames. Disso resultou a proposta de que se aproveitasse “os estatutos do Rio de Janeiro com relação aos compromissos que devem ligar o aluno pensionado à escola fazendo-se naquele regulamento as modificações adaptáveis às condições da escola” (ATAS, 17 mai. 1897, fl. 24v). A comissão encarregada do assunto, mostrava bem as obrigações desses pensionistas no período de três anos em Paris:

direção à École des Arts Décoratives e Ècole des Beaux Arts, de Paris. Como se sabe, o século XIX trouxe novas fundações, correções de estatutos das Academias de Belas Artes, inicio da tendência para transformação em centros de investigação e, também, a concorrência particular sob a forma de academias de ensino de pintura, como as parisienses de Carrière, Julien, etc. (CHICO, 1962: 17). As viagens sucederam-se periodicamente até as quatro primeiras décadas do século XX, quando o classicismo e o neo-classicismo se mantiveram como modelo da Escola e do gosto de muitos baianos. Entretanto, as novidades européias não deixaram de atingir a Escola. Em 1893, José Allioni fazia ver a “grande utilidade de uma maquina fotográfica para a Academia”, ficando encarregado da compra de um exemplar (ATAS, 10 ago. 1892, fl. 135). Um ano depois, o então diretor, Braz do Amaral, dizia que o motivo da reunião de Congregação era para os “colegas assistirem a primeira experiência da Maquina fotográfica” (Id., 24 nov. 1893, fl. 144). Porém, uma proposta de reforma do curso de desenho, aprovada em 1894, feita pelo professor Oséias Santos, mostrava qual era o emprego da máquina fotográfica nas aulas: “a fotografia entrará no estudo da paisagem ao ar livre para melhor orientação dos alunos sobre distinção de planos, perspectiva aérea, etc” (ATAS, 14 fev. 1894, fl. 144, 145).

“1º ano – oito estudos dos quais quatro academias, estudos feitos no Atelier Julien, devendo freqüentar o Curso Noturno da École des Arts Décoratives, onde não terá despesa alguma e onde muito aprenderá desenho, compreendendo-se que o aluno fará todos os seus esforços para entrar na Escola de Belas Artes de Paris, desde sua chegada nesta Cidade. 2º ano – oito estudos pintados, dos quais algumas academias e uma cópia de quadro notável nos museus do Louvre ou Luxembourg. Neste ano porém o aluno deverá ser admitido ou propor-se à admissão da Escola de Belas Artes, apresentando certificado do resultado de seu concurso, que não sendo satisfatório na primeira inscrição, poderá sê-lo nos outros obrigando-se desde sua admissão a freqüentar o curso da tarde que é o principal curso desta Escola. 3º ano – uma cópia de tela importante, cujas dimensões mínimas em tela no 80 (1,35x0,95m), um quadro original e os estudos que poder, entre eles alguns esbocetos de sua composição com obrigação de mandar todos os anos um trabalho ao salon, sobretudo o quadro original que tiver de mandar-nos no ultimo ano, devendo remeter-nos o documento ou carta de admissão ou recusa dos seus trabalhos no dito salon”29. A Academia Julien, tanto recebia pensionistas da Escola Imperial de Belas Artes, quanto a sua congênere da Bahia. Estava, então dentro do espírito da época, no que diz respeito à arte oficial. Era, portanto, o primeiro passo, em

Alias, mesmo antes da criação da Academia, um anúncio do Diário da Bahia, de 1874 (15 jan. 1874, p. 4), mostrava, inclusive, o uso corrente da fotografia como modelo: “Photographia Imperial, Rua Direita de Palácio, sobrado 7” “Photographie Bombe, imitando esmalte, colorido ou não, e retrato a óleo por ‘habilissimo artista’, podendo tirar a foto para remeter ao pintor” (DIÁRIO, 15 jan. 1874: 4). Mas, os reflexos mais diretos vinham das Academias parisienses e dos usos da Julien. Segundo Oliveira (1970: 26) “Para que os cursos funcionassem a contento, a direção da Escola de Belas Artes, não satisfeita com a importação de professores, manda vir também da Europa”... o material, ferramentas, utensílios, móveis, etc para completar o aparelhamento do curso de escultura... e mais” ...”telas, tubos e caixas de tinta, pincéis, frascos de óleo, vernizes papéis – ingres, canson, pincéis pêlo de porco, etc. – caixas de desenho linear,” ... “esquadros, réguas, tês, pranchas, etc., 153

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

além dos modelos clássicos de gesso que serviriam na feitura de exercícios de copias, aos alunos de desenho, pintura, arquitetura e escultura”...

reclamando-se o prestígio do comércio. “A elle sam devidas as grandes massas que ornam as frentes e fachadas dos mais soberbos edifícios, os aquedutos, as ricas mobílias, os utensílios” (apud FREYRE, v. 1: 275). O desprestígio dos “mechanicos” certamente influenciou a sua liberação da Câmara, mas, aos poucos, além de trabalhar por empreitada, começaram a ver o mercado invadido por produtos importados, feitos em série, semi ou inteiramente industrializados, que tomavam seus lugares. Os artistas só substituiriam estilos.

Já em abril de 1878 Cañizares, como diretor, propôs que se mandasse vir da Europa”objetos modelados em gesso, destinados ao estudo e cópia dos alunos”. Chegaram á Bahia três meses depois (ATAS, 2 abr. 1878, fl. 6; 22 jul. 1878, fl. 15-16). Mais tarde fariam mais encomendas de figuras (Id., 2 ago, 1888, fl. 112; 31 jan. 1889, fl. 116; 4 fev. 1889, fl. 118), além de livros para a biblioteca30. O próprio Presidente da Província, João Capistrano Bandeira de Melo, pediu, espontaneamente, ao conselheiro Antônio Nicolau Tolentino, Diretor da Academia de Belas Artes da Corte, “alguns modelos de pintura, escultura e estatuária” para a Academia da Bahia (ATAS, 27 jul. 1887, fl. 103). Os modelos, constituídos de gessos clássicos greco-romanos e neoclássicos eram complementados por gravuras, especialmente aquelas imprensas em série em Paris, que traziam como temas moralistas, alegóricos, históricos que, igualmente, invadiram as residências e igrejas baianas. O mesmo sistema de cópia dos grandes mestres, ainda remanescente do renascimento e barroco, foi adotado como metodologia da Academia e depois Escola de Belas Artes. Para tanto, foi tentada, em vão, a transferência para a Academia “da galeria Abbott para por ele fazerem os alunos do curso superior seus estudos” (ATAS, 23 ago, 1880, fl. 44)31.

A eficiência da ação do Liceu de Artes e Ofícios no século XIX ainda necessita de avaliação, considerando, sobretudo pensando-se que as maiores e mais importantes indústrias da Bahia, surgidas no mesmo período de sua criação, estavam ocupadas na tecelagem32, porém, não se pode deixar de notar a ativa participação da entidade, tanto nas feiras nacionais, quanto nas internacionais, sediando sempre as exposições para a escolha dos participantes. Por sua vez, viu-se que o neoclassicismo se familiarizou em Salvador tardiamente, e suas influências se fizeram sentir de diversas maneiras, oficial ou particularmente, não só nas residências e nos edifícios religiosos, mas instalando-se na Academia, que lutou nos anos que se seguiram, com grandes dificuldades até sua incorporação a Universidade da Bahia e, finalmente, se federalizando, integrando a Universidade Federal da Bahia. O academicismo marcou, ainda, boa parte da vida acadêmica da primeira metade do século XX da Escola de Belas Artes

Em 1893, Francisco Vicente Viana (1893: 251) dizia que “esta sociedade” [...] “possui pequena biblioteca, grande coleção de estampas e gessos, compreendendo modelos de arquitetura, folhagens, mãos, pés, rostos, cabeças, bustos e estátuas completas, metade do tamanho natural. Além disso possui todos os preparos e instrumentos para o desenho, e o número dos alunos que freqüentam, tem sido, na média, de 150 a 200, sendo no ano de 1892 de 162”.

A Escola de Belas Artes herdou o solar Jonathas Abbott, doado pelo governo estadual, através da Lei no 1187, de 11 maio de 1917. A Galeria Abbott, entretanto, foi doada ao Museu do Estado – Museu de Arte da Bahia – onde se pode observar, ainda hoje, alguns exemplares de cópias de grandes mestres restantes –, como Tintoreto, Corregio, Carraci, Caravaggio, Dominichino, Guercino, Dolci, Boucher, etc., efetuadas nos séculos XIX, seguindo a prática da arte de então, por José Antonio da Cunha Couto, Francisco Rodrigues Nunes, José Rodrigues Nunes, Macário José da Rocha, João Francisco Lopes Rodrigues, Francisco da Silva Romão entre outros.

O neoclassicismo, vigorando nas Escolas de Belas Artes, a partir do apoio oficial que sempre teve, fez com que os artistas se colocassem, como vários filósofos os viam, como deuses, pois criavam “entes” artísticos. Por todo o mundo Ocidental, entretanto, e a partir de outra corrente tradicionalista, começou a combater, como no Rio de Janeiro, em 1822, a distinção entre “mechanicos” e os “liberais”, considerando que “todas as Artes úteis sam tanto mais nobres quanto mais necessárias para a mantença da sociedade”,

Tanto no Liceu de Artes e Ofícios, quanto na Escola de Belas Artes, durante todo o século XIX e entrando pelo século seguinte, o mundo europeu, seguido pelo americano, serviu de modelo para as criações artísticas e usos de objetos de arte do cotidiano, como seria normal a um País que, só a 154

O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

partir do segundo quarto do século XX, começaria a desenvolver um intenso sentimento nacionalista, hoje já perdido.

FALLA com que abrio no dia 1º de Maio de 1880 a 1ª sessão da 23ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial da Bahia o Exm. Sr. Dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente da Província. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1880 FALLA com que no dia 1º de Abril de 1881 abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial da Bahia o Ilm. E Exm. Sr. Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá, Presidente da Província. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1881. FALLA com que o Exm. Sr. Conselheiro Pedro Luiz Pereira de Souza abrio a 2ª sessão da 23ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial da Bahia em 3 de abril de 1883. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1883. FALLA com que o Exm. Sr. Conselheiro Pedro Luiz Pereira de Souza abrio a 1ª sessão da 23ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial da Bahia em 9 de abril de 1884. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1884. FALLA com que o Ilm. e Exm. Sr. Dezembargador Espiridião Eloy de Barros Pimenteu abrio a 2ª sessão da 25ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial da Bahia em 1º de Maio de 1885. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1885 FALLA com que o Exm. Sr. Conselheiro Theodoro Machado Freire Pereira da Silva abrio a 1ª Sessão da 26ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial da Bahia em 3 de abril de 1886. Bahia: Typ. da Gazeta da Bahia, 1886. FLEXOR, Maria Helena. Oficiais mecânicos na cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal do Salvador/Departamento de Cultura, 1974. FRANÇA, Acácio. A pintura na Bahia. Bahia: Imprensa Oficial/Secretaria da Educação e Saúde, 1944. (Publicação do Museu da Bahia, 4). LICEU DE ARTES E OFÍCIOS DA BAHIA. Enciclopédia Itau Cultural/Artes Visuais. Acessado em www.itaucultural.org.br, capturado em 29 dez. 2007. LIVRO DE ACTAS da Congregação da Academia de Bellas Artes da Bahia, 1878, no 2, 175 fls. ms. LIVRO DAS ACTAS das Sessões de Congregação da Escola de Bellas Artes da Bahia, 1896, no 4, 96 fls. ms. LIVRO DE REGISTRO DE EXAMES da Academia de Belas Artes, no 3, 8 fls.ms, (incompleto). MATTOS, W. Apontamentos biográficos dos pintores; Pinacoteca do Paço Municipal. Salvador: Manu, 1959. OLIVEIRA, Zélia Maria Povoas de. Desenhoensino-comunidade. Salvador: Estuário, 1970. OTT, Carlos. História das artes na cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal, 1967. p. 74, 75.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

PONTUAL, Roberto. Dicionário das Artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969. p. 321. QUERINO, Manuel. As artes na Bahia. Salvador, Diário da Bahia, 1913, p. 27-28. ________. A Bahia de outr’ora, vultos e factos populares, 2ed. Bahia: Livraria Economica, 1922. ________. Artistas baianos, indicações biográficas, 2ed. Bahia; Oficinas da Empresa A Bahia, 1911. RELATÓRIO apresentado a Assembléia Legislativa da Bahia pelo Excelentíssimo Sr. Barão de S. Lourenço, Presidente da mesma Província, em 6 de maio de 1870, Bahia, Jornal da Bahia, 1870. RELATÓRIO apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Dezembargador João José d’Almeida Couto, 1º vice-presidente da Província pelo 4º VicePresidente Dr. Francisco José da Rocha ao passarlhe a Administração da Província em 17 de Outubro de 1871. Bahia: Typ. Correio da Bahia, 1871. RELATÓRIO com que o Excelentíssimo Senhor Dr. Venâncio José de Oliveira Lisboa abrio a 2ª sessão da 20ª Legislatura da Assembléa Legislativa Província da Bahia no dia 1 de março de 1875. S.l, s.d. RELATÓRIO com que o Excellentissimo Senhor Presidente Dr. Luiz Antônio da Silva Nunes abrio a Assembléa Legislativa Provincial da Bahia no dia 1º d Maio de 1876. Bahia: Typ. do Jornal da Bahia, 1876. RELATÓRIO apresentado em 2 de abril de 1878 ao Excellentissimo Senhor Conselheiro Presidente da Província Barão Homem de Mello pelo Bacharel Ignacio José Ferreira, Inspector do Thesouro Provincial da Bahia. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1878. RELATÓRIO apresentado ao Illm. e Exm. Sr. Dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente da Província, em 2 de abril de 1879 pelo Inspector do Thesouro Provincial Dr. Gustavo Adolfo de Sá. Bahia, Typ. do Diário da Bahia, 1879. RELATÓRIO apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente da Província, em 31 de março de 1880 pelo cônego Dr. Emílio Lopes Freire Lobo, Director Geral da Instrucção Publica, anexo a FALLA de 1880. RELATÓRIO com que o Em. Sr. Conselheiro de Estado João Lustosa da Cunha Paranaguá passou no dia 5 de Janeiro de 1882 a Administração da Província ao 2º Vice-Presidente O Exm. Sr. Dr. João dos reis de Souza Dantas. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1882. RELATÓRIO com que o Exm. Sr. Dr. João dos Reis de Souza Dantas, 2o. Vice-Presidente, passou a administração da Província ao Exm. Sr. Conselheiro Pedro Luiz Pereira de Souza em 29 de março de 1882. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1882.

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A Câmara perdeu o poder judiciário. Em algumas profissões se mantém até hoje essa hierarquia: nenhum oficial de pedreiro passa a mestre sem o registro oficial em carteira feito por um engenheiro. Também mantiveram-se as características mutuárias que as irmandades, protetora dos ofícios possuía, agora convertidas em outras entidades, como Sociedade Beneficente dos Alfaiates, Bolsa de Caridade, Sociedade Beneficente Bolsa dos Chapeleiros, Associação Tipográfica Baiana, Sociedade União das Classes, Sociedade Filantrópica dos Artistas, Sociedade Protetora dos Desvalidos, Sociedade Montepio dos Artífices, Sociedade Montepio dos Artistas, Sociedade Montepio Geral da Bahia e Sociedade Humanitária das Senhoras (CASTELLUCCI, 2002). 3 Nos Autos de Correição, do Ouvidor João Alves Simões, de 1741, no Rio de Janeiro constava ...“por constar a ele dito Doutor Provedor que este Senado obriga os Pintores, e Escultores a tirarem licença para exercerem as suas Artes, o que é contra o Direito, por serem liberais de sua natureza, e não variarem de essência, pelo acidente de terem a porta aberta, mandou que não sejam obrigados a tirar as ditas licenças” (TOURINHO, 1929, v. 2: 94). 4 Isto afasta qualquer conceito de plágio, desde que a originalidade não fazia parte do mental artístico do período. 5 2 de Julho refere-se à Independência da Bahia, que se deu em 1823. 6 Criada em 1832, com a designação Sociedade dos Artífices. 7 Criada em 1853. 8 Do patrimônio do Liceu constava, nos finais do século, galeria de quadros, museu industrial, cartas geográficas, esferas celestes e terrestres, grande demonstrador métrico, contador mecânico, quadros de anatomia, de fatos de história santa, de zoologia e de botânica, de geometria elementar e um completo material de ensino intuitivo, de acordo com os princípios da pedagogia moderna de Michel Bréal. 9 Nascido em Londres, em 1796, veio para o Brasil em 1812. Formou-se em medicina na Bahia e foi incentivador e um dos primeiros colecionadores de obras de arte. Em 1918 o Governo do Estado comprou a coleção. Enquanto 2

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O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia permaneceu no Liceu Provincial a sua coleção recebeu várias cópias de mestres europeus, feitas por “bolsistas” cujos nomes até hoje permanecem incógnitos. 10 Com a criação do Liceu Provincial, a cadeira de desenho foi desmembrada, ficando na dependência direta do Diretor Geral, estabelecida pelo # 31, da Lei no 105, de 23 jun. 1868. 11 Atente-se para os exemplos de Luiz Tarquínio, Antônio de Lacerda, Antonio Gonçalves, Carlos Costa Pinto, entre outros. 12 Quase que concomitantemente se criou a Sociedade de Artes e Ofício da Bahia, em 1872, a Sociedade Liga Operária Baiana, em 1876, a Sociedade Democrática Classe Caixeiral, em 1877, etc. 13 Conta-se que a briga se deu por causa da discussão em torno de quem iria pintar um retrato de D. Pedro II, entre os quais estava o fundador da Academia de Belas Artes. 14 Criou-se no Liceu, em 1876, a aula de desenho e pintura sob a direção de Cañizares (DO, 1923: 497). 15 Manuel Lopes Rodrigues, André Pereira da Silva, Antônio Lopes Rodrigues, João Gualberto Baptista, Januário Tito do Nascimento e Manuel Raymundo Querino. 16 O Liceu de Artes e Ofícios e Academia de Belas Artes apareciam como escolas profissionais. A fundação da Academia, segundo Miguel Torres (1953: 192), deu-se na residência de Cañizares, onde havia o seu atelier, no segundo andar de um grande sobrado, situado na Praça de Palácio, no sítio em que a Rua da Misericórdia formava ângulo com a Ladeira da Praça. 17 Este faleceu antes mesmo de começar a lecionar na Academia (ATAS, 10 set. 1878, fl. 19). 18 Essas iniciativas teriam, posteriormente reflexos na Deutscher Werkbund, que buscou na educação, não só a formação do povo alemão para a modernização, através da indústria, mas também como uma bandeira para a unificação da nacionalidade. Este movimento afetou os Estados Unidos, acolhido por John Dewey e que se refleteria na pedagogia empregada no Brasil por longos anos. 19 Ficou na Bahia e direção da Academia até 1882. Desde 1876 se abrigara em Salvador por ter notícias de que no Rio de Janeiro, para onde se dirigia, estava grassando a febre amarela. 20 As suas desavenças com os companheiros da Academia, José Allioni e João Francisco Lopes Rodrigues, devem ter sido bastante sérias. Em 1885, o professor Austricliano Barros solicitou colocar no salão nobre uma placa com o seu nome e seu retrato. Alegaram não possuir dinheiro (ATAS, 15 jun. 1885, fl. 92). A Escola de Belas Artes possui um retrato de seu fundador, porém, é um auto-retrato. Com a morte de João Francisco Lopes Rodrigues, em 1893, o nome de Cañizares foi sugerido por Virgílio Damásio para assumir a direção da Academia. A idéia, porém, não foi aceita. O artista espanhol, segundo Otávio Torres (1953: 196), professor de música do período, Cañizares veio para o Rio de Janeiro onde fixou residência. 21 Provavelmente foi a ausência dessa condição que enfraqueceu a Academia, e depois a Escola de Belas Artes,

já que as Associações e Montepios não tinham a mesma agilidade e poder econômico das irmandades às quais os baianos estavam acostumados há séculos e que cuidavam de cada um, desde o nascimento até entrada e estadia no céu. 22 Entre outras razões, o professor Lellis Piedade dizia que Cañizares estava forçado a partir para Montevidéu pelas dificuldades de poder achar a sua subsistência na Bahia, resultando da falta de trabalho” (ATAS, 11 jun. 1878, fl. 13). 23 Não era preciso pedir aprovação dos novos estatutos ao Governador, devido ao Decreto n. 164, de 17 jan. 1890, do Governo provisório, reformando a lei n. 3.150, de 4 nov. 1882 (ATAS, 5 dez. 1894, fl. 159). 24 Marcando o fato foi colocada uma placa comemorativa no frontispício do edifício. 25 O diretor, Braz do Amaral, foi autorizado a pagar modelos vivos (ATAS, 3 ago. 1895, fl. 168). 26 Enquanto a Academia passou por algumas reformas, mudou-se para uma casa alugada, na mesma rua. Por isso deixou de efetuar a segunda exposição, em 1879 (FALLA, 1880:16). Dessa sede só passaria, provisoriamente, em 1969, para o Museu de Arte Sacra, a ocupar, finalmente, o prédio em que se acha hoje a Rua Araújo Pinho, 212, no Canela. 27 Em 1884, a Congregação fez sessão para “considerar o mérito do pintor sergipano Horácio Hora, cujos trabalhos estavam expostos na Academia”. Foi aprovado por unanimidade conferir-lhe o titulo de membro correspondente e de acadêmico de mérito, de acordo com os estatutos da Academia (ATAS, 7 jul. 1884, fl. 79). 28 “Tirar o retrato”. 29 Estatutos datado de 20 de maio de 1897, assinados por José Allioni, Vieira Campos e Lopes Rodrigues (ATAS, 24 mai. 1897, fl. 15v-16). É interessante notar-se que a designação de academia era dada aos exemplares escultóricos, de corpo inteiro, em geral de gesso, que serviam de modelo a ser copiado pelos alunos. 30 Quase toda a bibliografia era francesa. O próprio professor Maurice Grün, devendo retornar à França, ofereceu-se à escola para comprar uma obra de belas artes com 14 volumes de Charles Blome. Histoire des peintres de toutes écoles, e 5 desenhos seus por 700 mil reis (ATAS, 4 nov. 1895, fl. 17). 31 Consta que Antonio Lopes Cardoso ofertou à Escola uma excelente coleção de gravura, representando os feitos de Napoleão I, gravada a buril por André Appsiani (ATAS, 2 abr.,1878, fl. 6). 32 Na tecelagem da Boa Viagem, da Companhia Empório do Norte, Luiz Tarquínio tinha condições de empregar até 1500 operários. Na falta de meios eficientes para treinar homens, especialmente as mulheres, a Companhia mantinha escola primaria e treinava seus operários na fábrica. A tecelagem de Valença treinou e usou trabalhadores tirados do Recolhimento da Santa Casa de Misericórdia e desabrigados da Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim.ande parte desse acervo, se se fizer comparação com o Catálogo da Galeria Abbott, de 1871, desapareceu.

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capitulo 4 a dinâmica das exposições, a obra e o público

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No século XIX, os concursos para Prêmio de Viagem à Europa eram considerados indispensáveis ao progresso artístico brasileiro. O período de estudos em Paris ou Roma era o mais alto prêmio que um aluno da Academia Imperial de Belas Artes podia almejar. Após sua formação inicial no Rio de Janeiro, a estadia nas capitais européias da arte distinguia os pensionistas e trazia reconhecimento e admiração junto ao público. No entanto, as obras enviadas da Europa pelos estudantes brasileiros nem sempre eram recebidas com unanimidade de opiniões pelos críticos nacionais. Se por um lado, os centros artísticos europeus inspiravam respeito, por outro, percebese que o público brasileiro apresentava suas peculiaridades e complexidades. Para refletir sobre esta relação de admiração, diferenças ou semelhanças entre o meio artístico brasileiro e o europeu, é interessante estudar o caso de A Faceira, estátua em gesso exposta em 1884 no Rio de Janeiro, cuja fundição em bronze, assim como o original em gesso, hoje integram o acervo do Museu Nacional de Belas Artes na mesma cidade1. A Faceira foi executada em Roma por Rodolpho Bernardelli (1852-1931), em 1880. Na ocasião, o artista se encontrava na Itália gozando do Prêmio de Viagem que conquistara em 1876. Em tamanho natural [150 x 75 x 64cm], este nu feminino representa uma índia brasileira de pé, adornada com penas de pássaros tropicais e dentes de feras selvagens, apoiada num tronco de árvore. Em 1884, o escultor enviou-a para a Exposição Geral de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e A Faceira foi exposta entre outras 470 obras que incluíam pinturas, esculturas, fotografias, gravuras e desenhos. Não era a primeira vez que um nu feminino era exposto, assim como não era a primeira vez que uma índia era tema de obra brasileira. Os escritores de tendência romântica já haviam alçado o índio a símbolo da nação, idealizando-o como o bom selvagem, décadas antes.

entre a europa e o brasil : a faceira, escultura de rodolpho bernardelli, e a necessidade de agradar ao público ana maria tavares cavalcanti

Portanto, era de se esperar que a estátua de Bernardelli tivesse boa recepção quando exposta no Rio. Mas Gonzaga Duque, importante crítico carioca, expressou seu descontentamento com a Faceira, publicando seus comentários em 1888, no livro A Arte Brasileira: [Bernardelli] ameaçou desviar-se da arte caindo na caricatura, ao gosto de Grévin. A “Faceira”, estátua em gesso exposta em 1880, nasceu dessa fase, veio desse transviamento. A concepção do artista parece ter sido uma e a execução foi outra. Desviaram-se opostamente. O escultor pretendeu apresentar um tipo de 161

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

cabocla, cujo meneio do corpo, natural e gracioso, cuja expressão fisionômica maliciosa e loureira, concretizassem a concepção explicando o título. Mas, para característico do tipo deu apenas – olhos oblíquos! Vestiu a sua figura com adornos selvagens; dependurou-lhe às orelhas rodelas de pão, atou-lhe ao pescoço colar de dentes, e aos punhos braceletes de penas; e depois animou-a com o espírito de uma rapariga libertina, quero dizer, movimentou-a com tal garridice de gestos que de forma alguma podem acudir à voluptuosidade de uma índia. Demais, a estrutura da “Faceira” é flácida. Há no seu corpo molezas de uma carne já cansada pelas noites febris do deboche; existe em seu sorriso a untura do carmim e a palidez da perversidade; seus olhos miúdos têm o brilho tentador da lascívia, e a posição em que está, apoiada com ambas as mãos a um cepo de árvore que lhe fica às costas, empinando todo o tronco, faz lembrar mulheres experientes em seduções e que estudam ao espelho atitudes provocadoras. Falta-lhe, portanto, naturalidade. 2

tem; seus pés são espalmados, quase sempre cambados pelas contínuas marchas, pelo exercício de subir às árvores, escalar serros, grimpar-se aos outeiros, pisar terreno espinhoso, falso ou pedregulhos; seu olhar é sonolento e contemplativo pelas influências do clima e pela forma externa dos olhos; os exercícios da pesca e da caça, e a fabricação penosa dos arcos, a edificação das malocas, afeiam-lhe as mãos e dão a seus músculos a rigidez dos atletas, a conformação bem acentuada dos tendões como em uma anatômica figura sem pele.4 E conclui, reiterando: Nenhum desses traços possui a “Faceira”, e se a reduzisse em seu tamanho, ter-se-ia uma perfeita produção à Grévin.5 A descrição feita por Gonzaga Duque afasta-se consideravelmente da idealização romântica típica da literatura indianista brasileira, da qual é bom exemplo o romance Iracema de José de Alencar6, cujo personagem título figurou no Salão de 1884, numa tela do pintor José Maria de Medeiros. Mas se a Faceira não agradou a Gonzaga Duque por não corresponder à sua idéia do que deveria ser a representação de uma índia brasileira, a Iracema de Medeiros não teve melhor sorte. Sobre esse nu de atitude clássica e bem comportada, escreveu: “esta figura de forma alguma satisfaz ao espectador. É roliça e inútil”7. Há ainda um aspecto a ser ressaltado: em nenhum momento da descrição dos “característicos étnicos” da cabocla, Gonzaga Duque elogia sua beleza; ao contrário, fala de suas mãos afeiadas pelo trabalho, de seus pés deformados nas caminhadas. Sua pretensa neutralidade científica deixa transparecer uma adesão ao padrão de beleza européia de cânones clássicos, bem representado nas Vênus gregas que, logo a seguir, menciona como o recurso que libertou Bernardelli das caricaturas ao gosto de Grévin:

Essas linhas escritas por um contemporâneo de Rodolpho Bernardelli merecem ser analisadas com vagar. Logo de início, Gonzaga Duque refere-se à fase em que o escultor “ameaçou desviar-se da arte” para cair na caricatura “ao gosto de Grévin”, aludindo assim a Alfred Grévin3 (1827-1892), artista francês de atuação diversificada cujas estatuetas representando sedutoras figurinhas femininas foram muito populares no século XIX. Para explicar melhor sua censura, Gonzaga Duque aponta uma contradição, um lapso entre a intenção e a execução artísticas de Bernardelli. A intenção estaria sinalizada no título e nos adereços indígenas da estátua: Faceira deveria mostrar um tipo gracioso e brasileiro. No entanto, segundo Gonzaga Duque, a execução transformou-a na caricatura de uma mulher experiente em seduções gastas em noites febris. Ou seja, por baixo do disfarce de índia pura e inocente, se oferece uma francesa voluptuosa.

Este estilo, felizmente, foi prestes abandonado pelo escultor, que começou a estudar o antigo chegando a reproduzir duas belas estátuas gregas em mármore – Vênus Calipígia e Vênus de Medicis (A.B.A.) para, em breve tempo, nos oferecer este primoroso grupo do Cristo e da mulher adúltera, concebido fora de toda a preocupação clássica e animado por estranho poder.8

Em seguida, Gonzaga Duque expõe suas idéias sobre a verdadeira aparência de uma índia: A cabocla, mesmo a mestiça, a marabá, tem característicos étnicos. A região pubiana, que na “Faceira” é pobre de tecido adiposo, é desenvolvida e túmida; os cabelos, e isto forma um característico de grande valor, são bastos, ásperos e lisos, muito lisos e ásperos, impossíveis de sujeitarem-se a penteados caprichosos, como é o penteado que a estátua

É importante esclarecer que Bernardelli executou as cópias da Vênus Calipígia e da Vênus de Médicis como tarefa obrigatória de pensionista em Roma9. 162

A faceira de Rodolpho Bernardelli e a necessidade de agradar ao público

De fato, os professores brasileiros que acompanhavam seus progressos enviaram-lhe uma relação de “estátuas indicadas em data de 9 de janeiro de 1880 (...) a fim de executar em mármore a cópia de uma delas” 10 . Da lista, Bernardelli escolheu não uma, mas duas: a Vênus Calipígia e a Vênus de Médicis, cujas cópias concluiu em 1882 e em 1885, respectivamente. Nota-se que entre as estátuas listadas pelos professores constavam diversas figuras masculinas como Adônis, Apolo e Antinoos, mas Bernardelli escolheu justamente dois nus femininos.

Aqui tocamos num ponto importante para a arte do século XIX, não apenas no Brasil, mas em âmbito internacional: o debate em torno da necessidade ou não de agradar ao público e seus efeitos sobre a qualidade das obras artísticas. Esse debate não se restringiu à escultura, e gerou muita controvérsia no campo da pintura. Portanto, antes de retomar as reflexões sobre a Faceira, gostaria de aprofundar a discussão, utilizando para isso o caso de três quadros expostos nos Salões parisienses na década de 1860: O Nascimento de Vênus de Cabanel (1863), Mulher com papagaio de Courbet (1866) e Olímpia de Manet (1863). O primeiro e o último, como se sabe, são paradigmáticos para essa questão.

Quanto às críticas de Gonzaga Duque à Faceira, o jornalista Carlos de Laet (1847-1927) as retomou em 1890, ano em que a reforma da Academia foi tema de debates acalorados. Na ocasião, Laet publicou, sob o pseudônimo de Cosme Peixoto, uma série de artigos atacando Rodolpho Bernardelli. Vejamos a passagem a seguir:

Olhando as três pinturas nessa seqüência – Cabanel, Courbet e Manet – parece que caminhamos da cena mais fantasiosa para a mais realista, como se o feitiço que encantara a mulher nua em divindade mitológica se desfizesse pouco a pouco, revelando aos espectadores os desejos que estavam mascarados sob o véu de uma beleza que não é desse mundo.

Em 1879 mandou da Europa o Sr. Bernardelli um S. Sebastião e Fabíola em que mostrou, juntamente com incontestável progresso, o seu pendor para o culto do bonito, antes que para o do belo. Desde então, aos que sabem ler o futuro no presente, não ficou dúvida sobre a individualidade artística do jovem escultor. Nunca seria um artista criador e de altos vôos, mas ainda podia dar um operário do chic, um hábil fazedor de estatuetas disputadas pelo mundo fashionable. Perfeita confirmação de similhante vaticínio trouxe a célebre Faceira, sobre a qual se tem escrito muita extravagância, muito contrasenso, e jamais com o fino sentimento da verdade exarado em um juízo do Sr. GonzagaDuque Estrada, cujas pisadas nos ufanamos de seguir, tanto mais desassombradamente quanto sabemos que é amigo íntimo do criticado.11

A Vênus de Cabanel, aclamada pelo público e adquirida por Napoleão III, foi o grande sucesso do Salão de 1863. Atualmente exposta no Musée d’Orsay em Paris, é considerada um paradigma do gosto acadêmico da segunda metade do século XIX. A Olímpia de Manet, igualmente pintada em 1863, só foi enviada ao Salão dois anos depois, sendo exposta em 1865. As reações, com raríssimas exceções, foram as piores possíveis, tanto por parte do público quanto por parte da crítica. As duas telas entraram para a história da arte como exatos opostos, assim como seus autores. Alexandre Cabanel é o protótipo do artista oficial do período. Aos 22 anos de idade, conquistou o Grande Prêmio de Roma que lhe permitiu estudar na Itália entre 1846 e 1850. De volta à França, recebeu encomendas de pinturas decorativas e obteve medalhas em exposições públicas. Em 1863, mesmo ano em que sua Vênus foi adquirida por Napoleão III, tornou-se professor da Escola de Belas Artes em Paris e por diversas vezes fez parte do júri dos Salões oficiais. Édouard Manet, seu avesso, é exemplo do artista maldito, o enfant terrible que enfrentou as instituições e os preconceitos. Em 1863, ano da consagração de Cabanel, o Almoço na Relva de Manet, então conhecido como O Banho, foi exposto no Salão de Recusados pois não fora aceito no Salão oficial. O quadro causou escândalo.

Em seguida, após transcrever trechos da crítica já citada12, Carlos de Laet concluiu comentando as palavras de Gonzaga Duque: [...] “se a reduzirem de seu tamanho ter-se-á uma perfeita produção à Grévin”. Não duvidamos subscrever esta sentença; e, compenetrando-se da verdade que a ditou, terão os leitores a explicação dos aplausos que em nossa terra se tem dispensado a esta caricatura em ponto grande. Regra geral, só apreciamos o gaiato e unicamente nos abala o essencialmente brejeiro. No país das operetas a Faceira devia fazer carreira.13

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Enquanto Manet não fez concessões ao gosto do público, Cabanel, ao contrário, pintou uma “história embelezada pela fantasia”14, adocicada e palatável para as multidões, conforme observou Émile Zola em 1875:

que sabem muito bem o que fazem colocando a paisagem acima da mulher nua (o que seria da pintura de estilo se uma mulher moderna, deitada em um canapé sobre a própria camisa, tendo a saia a seus pés, viesse a ser proclamada uma obra-prima e obtivesse a medalha de honra?) – é a opinião pública que fala, a única que deve nos preocupar agora. [...] Quanto a mim, eu defendo a mulher nua, [...]. E depois, que carnação! Que braço, que torso, que ventre! Nunca um tom mais justo aliou-se a um modelado tão correto. Olhem para esse braço no ar: como a atmosfera que o envolve afoga graciosamente seu contorno! Olhem para essa mão na coxa: adorável, coquete, pousada com uma graça encantadora, desenhada com uma arte perfeita, voltamos para vê-la: o objeto é pequeno, a arte imensa.17

A principal malícia de Cabanel é ter renovado o estilo acadêmico. À velha boneca clássica, desdentada e calva, ele presenteou com cabelos postiços e dentes falsos. A megera metamorfoseou-se numa mulher sedutora, empoada e perfumada, a boca em forma de coração e os cachos louros. [...]. É um gênio clássico que se permite uma pitada de pó de arroz, algo como Vênus em penhoar de cortesã. O sucesso foi enorme. Todos caíram em êxtase. 15 De fato, o estilo açucarado dos nus de Cabanel agradava a muitos. Se Zola o denunciou como um artifício falso e detestável, por seu lado, Paul Mantz (1821-1895), ao escrever sobre o Salão de 1863, elogiou O Nascimento de Vênus expressando vívido deleite:

Tanto a Vênus de Cabanel quanto a mulher nua de Courbet foram elogiadas com entusiasmo voluptuoso e descrição detalhada de suas perfeições anatômicas. Cabelos, seios, coxas, quadris e curvas mereceram o apreço dos críticos e, podemos intuir, do público masculino que freqüentava os Salões. Também Zola apontou a atração do público pelas mulheres nuas, porém, sem a cumplicidade compreensiva de Castagnary, mas para repreender aqueles que haviam torcido o nariz para Olímpia no Salão de 1865. Quando, em 1866, os quadros enviados ao Salão por Manet foram recusados pelo júri, Zola dedicou-lhe um artigo inteiro em L’Événement, contando que estivera no ateliê do pintor onde pode rever o Almoço na relva e Olímpia, sobre a qual comentou:

Desde a abertura do Salão, o público deu o prêmio à Vênus de Cabanel. A deusa ainda não saiu do mar: nua e deitada sobre as águas complacentes cujo murmúrio acaba de acordála, os cabelos louros estendidos ao seu redor, o rosto semi-encoberto pela sombra do braço, ela flutua, flor viva do mar, e daqui a pouco vai alegrar o mundo que, ignorante de sua beleza, nada sabe ainda. Suavemente ninada pela onda amorosa, ela chega à praia, e a vaga que a traz, encantada se imobiliza. [...]. Pois a Vênus de Cabanel, sabiamente ritmada em sua atitude, apresenta curvas felizes e de bom gosto; os seios são jovens e vivazes, os quadris têm formas perfeitas, a linha geral evolui harmoniosa e pura.16

Também revi a Olímpia, que tem o grave defeito de parecer com muitas senhoritas suas conhecidas. Depois, - não é verdade?- que estranha mania de pintar de modo diferente dos outros! Se ao menos Manet tivesse pedido emprestado o pó de arroz de Cabanel e tivesse maquiado um pouco o rosto e os seios de Olímpia, a jovem estaria apresentável. E há também um gato que divertiu muito o público. É verdade que esse gato é altamente cômico, não é mesmo? E que é preciso ser insensato para ter posto um gato nesse quadro. Um gato, os senhores podem imaginar uma coisa dessas! Um gato negro além de tudo. É muito engraçado. Oh, meus pobres concidadãos [...]. O legendário gato de Olímpia é um indício certo do objetivo que os senhores se colocam quando vêm ao Salão. Os senhores vêm buscar gatos, confessem, e não perderam seu dia quando encontram um gato negro que vos alegra.18

É nítido o encantamento, não apenas da “vaga que traz” Vênus à praia, mas do articulista que canta a beleza da mulher nua. O tema mitológico era um pretexto para o nu lascivo, e o voyeurismo não era ignorado pelos críticos. Vejamos agora a tela de Gustave Courbet. Quando Courbet expôs Mulher com papagaio e uma paisagem (La remise des chevreuils) no Salão de 1866, Jules Castagnary (1830-1866) comentou a preferência do público pelo primeiro quadro: Courbet enviou ao Salão uma figura e uma paisagem. (...) Dos dois quadros enviados pelo mestre-pintor ao Salão, um deles é, em geral, o favorito. Não falo da opinião de certos artistas 164

A faceira de Rodolpho Bernardelli e a necessidade de agradar ao público

Para bem compreender a alusão feita por Zola ao falar da busca de gatos como o principal motivo da ida ao Salão, é necessário lembrar o duplo sentido da palavra em francês. Chat (gato), e mais comumente chatte (gata), designa não apenas o felino, mas também, em linguagem popular, o órgão sexual feminino.

Émile Zola percebeu e criticou a concessão de Courbet ao gosto público em Mulher com papagaio e na paisagem exposta no Salão de 1866. Sem piedade afirmou: “falta a essas telas aquele não sei quê de potente e intencional que é Courbet inteiro. Há doçura e sorriso. Courbet, para arrasálo com uma palavra, fez ‘bonito’!”21.

Olímpia chocou o público, como é sabido. Não por mostrar uma mulher nua, mas porque essa mulher não era uma deusa greco-romana, e sim uma prostituta que olha sem pudores para o espectador. Além disso, assim como Olímpia não se disfarça em deusa, a tinta francamente depositada na tela por Manet não finge ser a carnação de uma mulher idealizada. Zola elogia essa pintura franca e a contrapõe, com aguçada ironia, ao “pó-de-arroz” usado por Cabanel em seus nus mitológicos.

“Fazer bonito” e agradar ao público tornaram-se atitudes indignas do artista moderno que não deveria transigir quando se tratava de expressar seu temperamento. “Só peço ao artista que seja pessoal e vigoroso”22, escreveu Zola em 1866. Mas voltemos a tratar da escultura de Bernardelli. Na Exposição Geral de 1884, além da Faceira, estava exposta a cópia da Vênus Calipígia. Oscar Guanabarino, escrevendo no Jornal do Commercio, comentou seu fascínio pela Faceira, e comparoua à Vênus:

Era fato percebido e comentado: as pinturas de mulheres nuas atraíam olhares e público aos Salões. Manet estava consciente disso, mas com seu quadro coloca o espectador na desconfortável posição do freguês que é flagrado num ato que o envergonha. A figura feminina, que até então fora simples objeto de prazer visual, já não desvia o próprio olhar. A mulher do outro lado da moldura vê o espectador e sabe que está sendo vista. Mas não é só isso, além de ser incluído na cena pelo olhar de Olímpia, o espectador já não encontra, nesse corpo nu, curvas voluptuosas pelas quais passear os olhos.

Falaremos em primeiro lugar do Sr. Rodolpho Bernardelli que, por conta da Academia estuda atualmente em Roma. É de caso pensado que encetamos o estudo das nossas impressões pela estatua, original em gesso, denominada A Faceira. Impossível seria ocultar que de tudo quanto vimos foi o que mais nos impressionou. Na mesma sala em que esta belíssima criação se ostenta, encontra-se a corretíssima Venus Callipigia, cópia em mármore do original grego que se acha no Museu de Nápoles, feita também pelo Sr. Bernardelli; porém mesmo assim, apesar daquelas formas serenas, macias e proporcionais, postas em relevo e encarecidas pelo mármore, que tem enormes vantagens sobre o gesso, como material de estatuaria, a Faceira não perde com o confronto agradando muito desde o primeiro relance, de olhos, não só pela elegância do conjunto, como pela fisionomia altamente expressiva e de um cunho bem original. Não será um tipo de beleza, dessa beleza convencional; mas é, com certeza, uma criação de grande merecimento como produto da escola realista, com todas as seduções do modernismo. A Venus Callipygia agrada porque é bela; a Faceira é bela porque agrada. A Venus é um atestado de uma época, de uma arte e de uma civilização: tem todos os predicados da arte do seu tempo, e se nos apresenta sem o reclame de uma pose indagada e premeditada, sem a fascinação do olhar fulgurante e sem o sorriso contagioso da mulher galante.

Nesse ponto, voltemos à Mulher com papagaio de Courbet. Essa jovem nua, assim como Olímpia, não é “uma idealização como as Vênus, as Fontes, e os diversos seres mitológicos gerados pelos caprichos do espírito”, e sim “a representação de um ser real e individualizado, de uma mulher contemporânea”, como se expressou Jules Castagnary em artigo já mencionado19. Portanto, a tela de Courbet foi identificada com a tendência moderna de abolir referências literárias, históricas, bíblicas ou mitológicas. Mas a pose langorosa da Mulher com papagaio, ao contrário da pose de Olímpia, transpira sensualidade e traz à lembrança a Vênus de Cabanel. Ambas têm os cabelos soltos e esparramados, poses lânguidas que salientam suas formas generosas, e estão distraídas, inocentes de sua beleza e do olhar do espectador. Até mesmo nos detalhes, Courbet parece citar Cabanel: os cupidos que acompanham Vênus foram substituídos pela ave que brinca com a moça, a espuma do mar se metamorfoseou na brancura dos lençóis. Com o auxílio de Vênus, Courbet domesticou Olímpia, tornando-a aceitável. Chegou a correr a notícia de que a tela seria adquirida pelo Estado francês, o que não se concretizou20. 165

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

juntamente com outros trabalhos do pensionista. No parecer de novembro de 1880, assinado pelo secretário Maximiano Mafra e pelo professor Chaves Pinheiro, lemos:

A Faceira ostenta muito propositalmente as suas formosuras, tem o olhar penetrante, a boca entreabrindo-se num sorriso de meiguice; de rosto mais simpático do que formoso, transmite ao espectador uma impressão, talvez um pouco exagerada mas, com franqueza, muito duradoura e agradável. A moderação dos movimentos e a sobriedade do gesto constituem, entretanto a primeira lei da estatuaria, poderão objectar. Responderemos que os grandes revolucionários nas artes quebram as leis tradicionais e conservam-se sempre ao lado da verdade. Com a denominação da estatua é que não nos concordamos inteiramente; quer parecer-nos que lhe assentaria melhor o de – Sedutora. Quanto aos detalhes são eles tão evidentes que não nos demoraremos em assinalar o que claramente se manifesta ás naturezas mais frias e aos temperamentos mais refratários ás grandes emoções perante a arte vivificada pelo sopro de um cultor de talento real.23

Sente a secção d’Escultura que o pensionista Rodolpho Bernardelli tivesse preferido em todos os trabalhos acima analysados, o estylo moderno ao antigo, a escola realista à grande e bella escola idealista, única capaz de produzir estatuas como o Appolo do Belvedere e a Venus de Milo.....Mas reconhecem o constante e gradual progresso do pensionista e a louvável aplicação ao trabalho.25 A advertência se dirige à simpatia de Bernardelli pela “escola realista”. Hoje, alguns poderiam compreender tal referência como um sinal de modernidade e capacidade de absorver o que havia de mais atual na arte européia do momento. Mas sejamos cautelosos para não cair em armadilhas conceituais ligeiras. Devemos perceber quais os significados de “estilo moderno” e “escola realista” mencionados pelos professores brasileiros. Sim, nota-se algo novo nessa escultura, algo bem diferente da estatuária clássica. Realmente, havia maior independência em relação aos ensinamentos dos mestres, a originalidade era bem vinda e valorizada pelos críticos nos jornais. Porém, uma nova relação de dependência surgia, já que para viver de sua arte o artista precisava agradar os marchands e os críticos que divulgariam seu nome em jornais e revistas. Precisava sobretudo impressionar os espectadores, atrair seus olhares, se fazer amado. Assim, sua liberdade era apenas aparente. Me parece, portanto, mais verdadeiro dizer que A Faceira representa não uma escola realista, mas a arte que disputava a atenção do público em meio à diversidade de tendências à mostra nos Salões.

As palavras elogiosas de Guanabarino às qualidades agradáveis da Faceira contrastam com as críticas que Zola dirigiu à Mulher com papagaio de Courbet. Também contrastam com as opiniões inteiramente opostas de Gonzaga Duque que condenou o tom exagerado e fácil, o querer agradar a todo custo da Faceira. Mas de fato essa estratégia surtia efeito no público que, como Guanabarino se deixava seduzir pela figura: “A Venus Callipygia agrada porque é bela; a Faceira é bela porque agrada”. Curiosamente, o próprio Bernardelli também criticara essa tendência, que ele notara na Exposição Universal de 1878, na França. Escrevendo a João Maximiano Mafra, secretário da Academia, em 7 de janeiro de 1879, dizia:

Meu interesse por A Faceira surgiu, primeiramente, do contato com a obra no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Em seguida, ao ler diversas referências a essa escultura em textos escritos por contemporâneos de Bernardelli, quis identificar as intenções do escultor e analisar as reações do público diante da Faceira. Através desse estudo, meu intuito foi compreender um pouco mais do complexo campo de trocas culturais que marcaram a arte brasileira do final dos oitocentos.

[...] ao meu ver a arte na França tem por primeiro fim ofuscar os olhos dos espectadores, grandes quadros etc etc. Enfim eles têm uma palavra da qual se servem muito amiúde, c’est epatant! A qual caracteriza muito os artistas, porém, voltando ao que queria dizer, achei que tudo era fútil, tudo me cheirava a cocotte, [...].24 Todavia, apesar de acusar de fútil a arte exposta na França em 1878, pouco tempo depois, Bernardelli acaba cedendo ao gosto do público. Afinal, a Faceira não é a própria cocotte, uma cortesã mundana e alegre?

Notas 1

Na base de dados do MNBA, consta no tombo 2820: “Faceira”, bronze fundido, 150 x 75 x 64 cm, entrada em 1937 por transferência da ENBA, assinado Rod Bernardelli

Resta mencionar a opinião dos professores brasileiros, quando do envio de A Faceira, 166

A faceira de Rodolpho Bernardelli e a necessidade de agradar ao público Roma 1880. E no tombo 2829: “Faceira”, 1880, modelado/ gesso patinado, 150 x 75 x 64 cm, doação de Rodolpho Bernardelli em 1921, assinado Rod Bernardelli Roma 1880. 2 GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. (1a edição data de 1888), p. 252-253. 3 Alfred GRÉVIN (1827-1892) – escultor, caricaturista, desenhista e criador de figurinos de teatro francês. Em 1882, fundou com o jornalista Arthur Meyer o museu de cera que leva seu nome. 4 GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. (1a edição data de 1888), p. 253. 5 Id. Ibd. 6 A primeira edição de Iracema de José de Alencar data de 1865. 7 GONZAGA DUQUE. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p.205-206. 8 Id. Ibd. p. 253. 9 Rodolpho Bernardelli, vencedor do concurso para Prêmio de Viagem à Europa em 1876, viveu na Europa entre 1877 e 1885, sendo sete anos e meio em Roma, e um ano viajando. 10 Documento do acervo do M.D. João VI da EBA/UFRJ, notação 5109. 11 COSME PEIXOTO. O Salão de 1890, VI. Diario do Commercio. Rio de Janeiro, 20 de Abril de 1890. [Biblioteca Nacional, seção de obras raras, microfilme PR - SOR 03372. Transcrição de Ana Cavalcanti.] 12 Ver nota de rodapé n.3. 13 COSME PEIXOTO. Ibidem. 14 ZOLA, Emile. « Lettres de Paris ». Le messager de l’Europe. São Petersburgo, Rússia, junho de 1875. « ... De même je pourrais prendre les peintres historiques en flagrant délit de concessions, trahissant les principes classiques en vue d’adoucir la sévérité académique et de se concilier les sympathies de la foule. Ce qui en résulte, c’est l’histoire embellie par la fantaisie, quelque chose comme Caton couronné de roses. Cabanel est le génie de cette école ! » 15 Id. No original : « La principale malice de Cabanel, c’est d’avoir rénové le style académique. À la vieille poupée classique, édentée et chauve, il a fait cadeau de cheveux postiches et de fausses dents. La mégère s’est métamorphosée en une femme séduisante, pommadée et parfumée, la bouche en coeur et les boucles blondes. [...]. C’est un génie classique qui se permet une pincée de poudre de riz, quelque chose comme Vénus dans le peignoir d’une courtisane. Le succès a été énorme. Tout le monde est tombé en extase. » 16 MANTZ, Paul. “Salon de 1863”. Gazette des Beaux-Arts, 1º de junho de 1863, p.481-506. Reproduzido em BOUILLON et al. La promenade du critique influent, anthologie de la critique d’art en France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (p.125). No original : « Dès l’ouverture du Salon, le public a donné le prix à la Vénus de Cabanel. La déesse n’est pas encore sortie de l’onde : nue et couchée sur les eaux complaisantes dont le murmure vient de l’éveiller, ses blondes cheveux sont épandus autour d’elle, le visage à demi voilé par l’ombre de son bras replié, elle flotte, fleur vivante de la mer, et toute à l’heure elle va réjouir le monde qui, ignorant sa beauté, ne sait rien encore. Doucement bercée par la vague amoureuse, elle aborde au rivage, et le flot qui l’apporte s’arrête charmé. (...). Car la Vênus de M. Cabanel, savamment rythmée dans son

attitude, présente des courbes heureuses et d’un bon goût ; la gorge est jeune et vivante ; la hanche a des rondeurs parfaites, la ligne générale se déroule harmonieuse et pure. » 17 CASTAGNARY, Jules. « Salon de 1866 ». La Liberté, 513 de maio de 1866. Reproduzido em La promenade du critique influent, anthologie de la critique d’art en France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (pp.150-152).No original : « Courbet a envoyé au Salon une figure et um paysage. [...]. Des deux tableaux envoyés par le maîtrepeintre au Salon, l’un est généralement préféré à l’autre. Je ne parle pas de l’opinion de certains artistes, qui savent très bien ce qu’ils font en mettant le paysage au-dessus de la femme nue (que deviendrait la peinture de style si une femme moderne, couchée sur un canapé ayant sa chemise sous elle et sa jupe à ses pieds, venait à être proclamée un chef-d’oeuvre et obtenir la médaille d’honneur ?) – c’est de l’opinion publique que je parle, la seule qui doive nous préoccuper désormais. [...] Quant à moi, je tiens pour la femme nue, [...]. Et puis, quelle chair ! quel bras, quel torse, quel ventre ! Jamais ton plus juste ne s’allia à un modelé plus serré. Regardez-moi ce bras en l’air: comme l’atmosphère qui le baigne en noie gracieusement les contours ! Regardez-moi cette main sur la cuisse: mignonne, coquette, posée avec une grâce charmante, dessinée avec un art parfait, on revient pour la voir : l’objet est petit, l’art est immense. » 18 ZOLA, Émile. « Mon Salon - M. Manet ». L’Evénement, Paris, le 7 mai 1866. Reproduzido em La promenade du critique influent, anthologie de la critique d’art en France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (p.147-148.) e no site http://www.cahiers-naturalistes.com/Salons/07-0566.html. No original: « J’ai revu également l’Olympia, qui a le défaut grave de ressembler à beaucoup de demoiselles que vous connaissez. Puis, n’est-ce pas ? quelle étrange manie que de peindre autrement que les autres ! Si, au moins, M. Manet avait emprunté la houppe à poudre de riz de M. Cabanel s’il avait un peu fardé les joues et les seins d’Olympia, la jeune fille aurait été présentable. Il y a là aussi un chat qui a bien amusé le public. Il est vrai que ce chat est d’un haut comique, n’est-ce pas ? et qu’il faut être insensé pour avoir mis un chat dans ce tableau. Un chat, vous imaginez-vous cela. Un chat noir, qui plus est. C’est très drôle... Ô mes pauvres concitoyens, avouez que vous avez l’esprit facile. Le chat légendaire d’Olympia est un indice certain du but que vous vous proposez en vous rendant au Salon. Vous allez y chercher des chats, avouezle, et vous n’avez pas perdu votre journée lorsque vous trouvez un chat noir qui vous égaye. » 19 CASTAGNARY, Jules. « Mon Salon ». La Liberté , 5-13 de maio de 1866. Reproduzido em La promenade du critique influent, anthologie de la critique d’art en France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (p.150). No original: « La figure n’est point une idéalisation comme les Vénus, les Sources et les divers êtres mythologiques qu’engendrent les caprices de l’esprit; [...] c’est la représentation d’un être réel et individualisé, d’une femme de notre temps. » 20 Hoje a obra pertence à coleção do Metropolitan Museum, em Nova York, fruto da doação da viúva de Henry Osborne Havemeyer (1847-1907), magnata americano, generoso colecionador da arte francesa de sua época. Sobre o boato da aquisição da tela pelo Estado francês, conferir em ROOS, Jane Mayo. Early Impressionism and the French State (1866-1874). Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 21

Fabiana Guerra Granjeia, se encontra em http:// www. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / guanabarino_1884.htm 24 Cartas de Rodolpho Bernardelli a João Maximiano Mafra, secretário da Academia, de 1878 a 1885 (acervo do Museu D. João VI – EBA-UFRJ). A transcrição desse documento, realizada por Camila Dazzi, se encontra no site Dezenovevinte: < h t t p : / / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / d o c u m e n t o s / cartas_rodolfobernardelli.htm> Acesso em 1 jul. 2008 25 Arquivos do MNBA, Arquivo Pessoal Rodolpho Bernardelli, Mapoteca, Pasta nº4, doc.nº196. Apud WEISZ, Suely de Godoy. “Rodolpho Bernardelli, um perfil do homem e do artista segundo a visão de seus contemporâneos”. Acesso em 1 jul. 2008

ZOLA, Émile. « Mon Salon ». L’Evénement, 15 de maio de 1866. No original : « Je ne nie point que La Femme au perroquet ne soit une solide peinture, très travaillée et très nette ; je ne nie point que La Remise des chevreuils n’ait un grand charme, beaucoup de vie ; mais il manque à ces toiles le je ne sais quoi de puissant et de voulu qui est Courbet tout entier. Il y a douceur et sourire. Courbet, pour l’écraser d’un mot, a fait du joli ! » [www.cahiersnaturalistes.com/Salons/15-05-66.html] 22 Id. « Mon Salon – Les réalistes du Salon ». L’Evénement, 11 de maio de 1866. No original : « Je demande uniquement à l’artiste d’être personnel et puissant. » [www.cahiersnaturalistes.com/Salons/11-05-66.html] 23 GUANABARINO. A Exposição de Bellas-Artes. In: Jornal do Commercio, ano 63, n.240, p.1. Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1884. Uma transcrição desse artigo, feita por

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Pretende-se refletir, neste texto, acerca do interesse suscitado no âmbito artístico e político do Estado Novo, por obras de artistas agraciados com prêmios de viagem ao exterior pela Comissão Nacional de Belas Artes, ainda nas primeiras décadas de implantação da República. Trata-se de equacionar um momento de crença nos projetos do liberalismo em ascensão e outro em que os projetos políticos da nação já se distanciavam das utopias liberais. Pretende-se, portanto, refletir acera do uso de obras de arte como potencial para mostrar no exterior uma imagem de Brasil em tempos de afirmação nacionalista. A partir de um conjunto de pinturas hoje diluído, na sua maioria, no acervo do Museu Nacional de Belas Artes, entre a reserva técnica e diferentes salas de exposição, que ganhou visibilidade quando da participação do Brasil na Exposição do Mundo Português, ocorrida em Lisboa, no ano de 1940, pretende-se pensar as apropriações na esfera do poder estadonovista, de parcela da produção artística brasileira. Na ocasião, um conjunto de trinta e três pinturas, foi exposto no Stand de Arte do Pavilhão do Brasil e pretendeu mostrar uma síntese da arte contemporânea brasileira. No mesmo espaço também foram mostradas esculturas e objetos decorativos, no entanto, estes não serão abordados neste texto.

artistas em trânsito: arte e política na representação da nação luciene lehmkuhl

A exposição foi dominada por uma visualidade marcada por certo “academicismo modernizado”, com ares de um realismo/impressionismo que agrupou naturezas-mortas, retratos, nus, alegorias e paisagens que procuravam dar conta de um Brasil com representações de uma natureza exuberante e bucólica, com corpos brancos e europeizados. Um conjunto que pareceu, em princípio, pouco representativo daquilo que se poderia esperar como uma amostra da arte contemporânea brasileira em 1940, tendo em conta que a historiografia da arte brasileira costuma definir a arte praticada no Brasil nos anos de 1930 a partir das questões sociais engendradas pelo modernismo2. Quando iniciei as pesquisas sobre este tema esperava, a partir dessas premissas, que uma exposição daquela contemporaneidade trouxesse pelo menos alguns exemplares do que estava sendo gestado, no âmbito da arte moderna, naquele período. No entanto, não foi o que aconteceu.

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Entre as pinturas expostas, em parte realizadas entre os anos de 1920 e 1938, encontram-se pelo menos nove obras produzidas entre a última década do século XIX e segunda década do século XX, são elas: A Copa, c.1905 de Pedro Alexandrino; Sansão e Dalila, 1893 de Oscar Pereira da Silva; Retrato de Sílvia Meyer,1912 de Artur Timóteo da Costa; Abril ou Poesia da Tarde, 1895 de João 169

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Batista da Costa; Amuada, 1882 de Rodolfo Amoedo; Pedro Álvares Cabral guiado pela Providência, 1899 de Eliseu Visconti; Lindóia, 1916 de Augusto Bracet; Interior de Ateliê, 1909 de Carlos Chambelland e Despertar de Ícaro, 1910 de Lucílio de Albuquerque. Os artistas, autores destas obras receberam prêmio de viagem na Exposição Geral de Belas Artes, entre os anos de 1878 e 1907 (excetuando-se Pedro Alexandrino) e seus trabalhos foram integrados ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (excetuando-se o de Eliseu Visconti), quando da sua criação, em 1937.

estranheza, tanto quanto deve ter causado no momento em que foi exposta. Esta inclusão e o impacto causado pela pintura de Portinari no meio artístico português, foi objeto central do estudo desenvolvido para a elaboração da tese de doutorado que defendi no ano de 2002. Dos prêmios e das Instituições Durante o Império, a Academia Imperial de Belas Artes realizou exposições gerais, nas quais conferiu, a partir do ano de 1845, prêmios de viagem visando o aprimoramento dos seus melhores alunos em terras européias. No início da República, foi realizada uma exposição de caráter mais amplo, no ano de 1894, na qual foram instituídos prêmios independentes das premiações acadêmicas, que continuaram a ser oferecidos aos alunos, segundo se lê no Guia das Galerias de Prêmios de Viagem (catálogo referente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, exposto nas instalações do Museu no ano de 1967). A exposição e a premiação de 1894 são consideradas, portanto o primeiro Salão Nacional de Belas Artes, mesmo mantendo a designação de Exposição Geral de Belas Artes. Apenas em 1934 as exposições gerais passaram a ser denominadas Salão Nacional de Belas Artes, em 1940 foi criada a Divisão Moderna do Salão e em 1951 ocorreu a separação definitiva entre “modernos” e “tradicionais” com a criação do Salão Nacional de Arte Moderna independente do Salão Nacional de Belas Artes.

As demais pinturas do conjunto dialogam de certa maneira nos aspectos temáticos e/ou de fatura, seus autores podem ser agrupados em uma mesma geração artística que circulava em um mesmo meio artístico. Tendo sido alunos da Escola Nacional de Belas Artes, receberam prêmios de viagem ao exterior ou ao país, alguns deles tornaram-se professores na Escola e todos tiveram suas obras adquiridas pelo Estado, passando a compor o acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Apresento aqui, a relação dos artistas com suas respectivas obras expostas no Stand de Arte. A maior parte destas pinturas encontra-se atualmente no acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no entanto, algumas delas não foram localizadas até o momento. João Timóteo da Costa. Paisagem, 1926; Levino Fanzeres. Quietude, 1921; João Batista de Paula Fonseca. Paisagem do Grajaú, 1928; Vicente Leite. Pinheiros do Paraná, 1936; Jordão de Oliveira. Mané Preto, 1930; Manuel Faria. Penacova, 1937[?]; Luís Fernandes de Almeida Júnior. Lagoa Rodrigo de Freitas, 1931; Manuel Santiago. Casebres e arranha-céus, 1937; Gastão Formenti. Luz e Sombra, 1935; Henrique Cavalleiro. Vestido Rosa, 1921; Marques Júnior. No Espelho, 1926; Pedro Bruno. Símbolo das Praias, 1923; Armando Viana. Nu Deitado, 1929; Manuel Constantino. Peixes do Mar, 1937; Oswaldo Teixeira. Fim de Romance, 1940 e Cândido Portinari. Café, 1935. Outras obras aparecem apenas listadas nos documentos da Exposição, mas não foram localizadas nos acervos consultados: Rodolfo Chambelland. Retrato de Atílio Correa Lima; Navarro da Costa. Sol de Verão; Leopoldo Gotuzzo. Baiana; Renée Lefevre. Mangueiras; Heitor de Pinho. Marinha; Dakir Parreiras. Paisagem Carioca; Cadmo Fausto. O Rodeio; Georgina de Albuquerque. A Feira dos Arcos.

O “Salão”, marco inaugural das premiações do período republicano, abriu suas portas no dia 1º de outubro de 1894 e no Regimento das Exposições Gerais, publicado no catálogo da exposição de 1895, em seus sete capítulos e cento e sete artigos, classifica as premiações em menções honrosas, medalhas de três classes (ouro, prata e bronze) e medalhas de honra, além de normatizar a concessão do Prêmio de Viagem ao “artista de qualquer das sessões de pintura, escultura, gravura de medalha e pedras preciosas ou arquitetura que se distinguir na exposição” (GUIA, 1967), conforme seu artigo 30. As obras levadas a Lisboa, expostas no Stand de Arte do Pavilhão do Brasil em 1940, escolhidas pelo júri dentre as obras pertencentes ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, tentam conjugar a relação entre as tradições acadêmicas e uma visualidade que se entende como moderna capaz de compor a imagem do Brasil pretendida na época. Especialmente nos anos de 1930 os intelectuais brasileiros passaram a direcionar sua atuação para o âmbito do Estado e assumiram a missão de “representantes da consciência nacional”. Desta

Desta relação de obras apreende-se que o Café de Portinari é presença que parece marcar um disparate em relação às demais, causa hoje 170

Arte e política na representação da Nação

vez, saídos da “torre de marfim” passaram a ocupar a “arena política”, vistos como capazes de captar o “inconsciente coletivo da nacionalidade” a sua “reserva de brasilidade”, na “qualidade de participantes de um projeto político-pedagógico destinado a popularizar e difundir a ideologia do Estado” (VELLOSO, 2003: 148, 149 e 156).

O olhar dos jurados As obras expostas denunciam um olhar interessado num percurso artístico vinculado à academia que se moderniza. Artistas que não romperam definitivamente com os cânones acadêmicos preestabelecidos, antes incorporaram modernizações trazidas para o seio da academia brasileira quando das viagens que empreenderam pela Europa, no período entre a última década do século XIX e o início do século XX. Assim, estas obras ganham importância no seu conjunto, porque o conjunto oferece o olhar que o delineou, é o registro material deste olhar, possibilitando uma aproximação à expressão plástica dos ideais de um Brasil de 1940. Vejamos, portanto, as especificidades deste júri para entendermos as escolhas por ele realizadas.

O conjunto foi composto por obras que costuma ser inseridas, pela historiografia da arte, numa vertente tradicional/acadêmica da arte brasileira, envolta em ares modernizantes. Interessa pensar, no entanto, o que é este “tradicional/acadêmico” e o que é o “modernizante”. Não se trata das tradições acadêmicas interessadas em transpor para o Brasil os cânones da academia francesa na composição de uma pintura que ajudasse a afirmar a participação do Brasil no âmbito das metrópoles imperiais, formulação inerente à transferência da Corte portuguesa e sua instalação no Rio de Janeiro e da conseqüente fundação da Academia Imperial de Belas Artes com a chegada da Missão Artística Francesa.

Eliseu Visconti, José Octávio Corrêa Lima, Carlos Oswald, Armando Navarro da Costa e Oswaldo Teixeira foram os responsáveis pela escolha das obras mostradas em Lisboa. Excetuando-se Armando Navarro da Costa os demais membros passaram pela Academia de Belas Artes e se tornaram professores da Escola.

Não se trata, também, das influências da geração acadêmica preocupada em criar uma história para o Brasil independente e, ao mesmo tempo, devedor de toda uma tradição artístico-cultural européia que, em consonância com a literatura, as artes cênicas e a historiografia buscasse uma identidade para a jovem nação que ainda não havia feito sua entrada na modernidade inaugurada no agitado século XIX. Sabemos que no âmbito das belas artes o debate foi conduzido pelo pensamento de Manuel Araújo Porto-Alegre, pintor, crítico, historiador e diretor da Academia, que soube fomentar entre professores, alunos e bolsistas no estrangeiro o interesse por uma arte nacional idealizada, cujas temáticas pautavam-se simultaneamente na história e na literatura brasileiras, evidenciando a “tradição acadêmica mesclada por valores atenuados do romantismo e do realismo” (CHIARELLI, 1995: 18 e 19).

Navarro da Costa pode ter atuado como elo de ligação entre a Comissão formada para organizar a participação brasileira em Lisboa e o júri, pois esteve presente nos dois grupos, além de ser filho do pintor e funcionário no Consulado brasileiro em Lisboa, Mário Navarro da Costa (1883-1931) freqüentador dos círculos da arte portuguesa que havia sido aluno de Amoedo e participado dos salões de Belas Artes. José Octávio Corrêa Lima (1878–1974), escultor e professor na Escola Nacional de Belas Artes, ingressou em 1892 na Academia, onde estudou estatuária com Rodolfo Bernardelli e desenho com Modesto Brocos e Zeferino da Costa. Em 1899 obteve o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro. Carlos Oswald (1882–1971) fez sua formação acadêmica em Florença, onde vivia com seus pais. De volta ao Brasil acompanhando a família, participou dos Salões de Belas Artes, obtendo medalha de prata em 1907, retornou a Florença em busca da carreira de pintor. Eliseu Visconti (1866–1944) foi aluno no Liceu de Artes e Ofícios e deu continuidade aos seus estudos na Academia Imperial de Belas Artes a partir de 1885. Juntamente com outros artistas, funda o Atelier Livre cujos professores eram Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e os irmãos Bernardelli. Em 1892 obtém o Prêmio de Viagem da então Escola

Nem mesmo, se trata puramente do pensamento da geração que movida pelos ventos abolicionistas e republicanos procurou imprimir uma marca naturalista/realista à produção artística de caráter nacional, visando, sobretudo, a valorização da pintura de paisagens e de gênero movida, especialmente, pelo pensamento de GonzagaDuque que procurava “estabelecer uma reflexão sobre as questões raciais, históricas e sociais do país, que teriam determinado o caráter da população brasileira e de sua produção cultural em geral” (CHIARELLI, 1995: 24) e que acabou por destacar uma visão pessimista/negativa da nação. 171

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nacional de Belas Artes, seguindo para Paris em fevereiro de 1893.

sobre o campo da cultura em geral e das artes em particular.

Oswaldo Teixeira (1905–1974) fez seus estudos na Escola Nacional de Belas Artes. Expositor constante do Salão recebeu o Prêmio de Viagem em 1924 e visitou diversos países. Esteve bastante vinculado ao regime de Vargas, sendo Diretor do Museu Nacional de Belas Artes entre 1937 e 1961 e presidente do Salão Nacional de Belas Artes durante nove anos. Neste período aumentou em muito o número de seus detratores que o viam como responsável pelas decisões e escolhas realizadas no âmbito da cobiçada seleção para o Prêmio de Viagem. Como afirma seu biógrafo, “supunham os concorrentes que ele mandava ditatorialmente nas premiações. Associavam sua posição ao regime de Getúlio Vargas [sem perceberem que] o Presidente do Salão, porém, só poderia intervir nas premiações, em caso de empate” (SILVA, 1975: 96). Oswaldo Teixeira representou o vínculo da instituição aos ideais conservadores tanto na esfera política quanto na artística, devido à sua filiação a grupos interessados na manutenção dos ideais artísticos praticados na Escola e das verdadeiras batalhas travadas contra os artistas que demonstravam algum vínculo com os ideais de renovação na arte e no ensino artístico.

A Escola Nacional de Belas Artes se configurava, nos anos de 1930, como o reduto de resistência acadêmica no ensino da arte, tanto da pintura, da escultura, das artes decorativas quanto, após as tentativas de reformulação em 1931, da arquitetura. Sucessora da Academia Imperial de Belas Artes, que havia sido criada em 1826 sob os auspícios do rei português então instalado no Rio de Janeiro, cujos interesses recaíam sobre a tentativa de tornar a cidade adequada à vida da Corte, seus gostos, suas vontades e sua dignidade. O início da Escola foi marcado por conflitos e disputas entre os franceses vindos com a Missão e os portugueses já instalados no país, que reivindicavam, junto ao rei, a primazia na condução da instituição. Com trocas sucessivas de diretores, seguiu o destino do Império, que de 1880 até a Proclamação da República viu-se em processo de decadência. Ao mesmo tempo em que acompanhava as transformações ocorridas na esfera política, passou por transformações no seu programa de ensino e nas suas políticas artísticas, tendo como primeiras reformulações presentes no decreto assinado por Benjamin Constant, Ministro do Interior, a troca de nome da instituição para Escola Nacional de Belas Artes; o afastamento de professores vinculados à monarquia, como Victor Meirelles e Pedro Américo, e a nomeação de Rodolfo Bernardelli como diretor e Rodolfo Amoedo como vice-diretor.

O Museu Nacional de Belas Artes foi criado em 13 de janeiro de 1937, por Decreto-Lei, e para ele foram transferidas as obras pertencentes à pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes, que vinha sendo constituída desde a vinda da Missão Francesa e conheceu grande ampliação com os esforços empreendidos por Taunay, quando da criação dos Prêmios de Viagem nas Exposições Gerais e a obrigatoriedade do envio de obras dos pensionistas que estudavam fora do País. Durante algum tempo, Museu e Escola dividiram o mesmo espaço físico, fator que permite olhar com maior clareza as entrelaçadas relações entre dirigentes, alunos e professores das duas instituições.

Estas transformações surgiram de disputas recorrentes no âmbito da Academia, desde o ano de 1890, quando ganhou publicidade o conflito entre os alunos denominados Positivistas e os alunos denominados Modernos. Os dois grupos pretendiam reformas no ensino artístico, mas os Positivistas, entre eles Décio Villares e Aurélio de Figueiredo, mais radicais, chegavam a defender a extinção da Academia, enquanto Rodolfo Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Zeferino da Costa, entre os Modernos, propunham uma atualização no ensino. Com a República, o projeto dos Modernos encontrou respaldo no meio político, possibilitando aos seus defensores tornaram-se professores e alunos da Escola Nacional de Belas Artes. No entanto, as transformações republicanas trouxeram vagas de descontentamento, como era de se esperar.

Em tempos de disputa por espaço dentro das instituições ligadas ao campo artístico, como nos anos de implantação da Nova República e do Estado Novo, percebem-se artistas, escritores e arquitetos tentando ocupar cargos e trazer para si e para aqueles com quem compartilhavam sua visão estética e de mundo a possibilidade de interferir e até mesmo de formular novas políticas culturais para o País. Assim é que instituições como a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) e o Ministério da Educação e Saúde (MES) tornaram-se espaços privilegiados de interesse para o exercício do poder

Com o advento da Revolução de 30 e as expectativas de novas possibilidades na conduta da política educacional e cultural do País, ocorre com a nomeação de Lúcio Costa para o cargo de 172

Arte e política na representação da Nação

diretor da Escola Nacional de Belas Artes, uma tentativa de modernização da instituição, mesmo estando estas reivindicações vinculadas às lutas dos estudantes de arquitetura da ENBA, entre 1928 e 1929, cujo clima de intranqüilidade “ensejou uma greve e acabou oferecendo a base de apoio necessária para, uma vez alterada a ordem política do País com a Revolução de 1930, o jovem arquiteto Lúcio Costa ser nomeado seu diretor” (DURAND , 1989: 73).

do século XIX e durante a primeira década do século XX, não se deixou contaminar pelos ideais impressionistas, nem pelas idéias de Cézanne, responsável por uma nova abordagem do gênero natureza-morta. Manteve-se fiel aos princípios da academia, trabalhando nos ateliês de pintores acadêmicos e recebendo títulos acadêmicos na França e na Itália. No Brasil, é premiado no Salão Paulista de Belas Artes e no Salão Nacional de Belas Artes, no qual recebeu medalha de ouro em 1922 e medalha de honra em 1939 (CAMPOFIORITO, 1983: v.5, 76, 78). A presença de uma pintura de Pedro Alexandrino na Exposição de 1940 parece justificada pela importância conferida à sua obra, como marco definidor de oposição ao modernismo. Pedro Alexandrino, neste contexto, não é apenas um acadêmico. É um acadêmico que, em meio à efervescência modernista do início do século XX, opta por se manter fiel aos cânones da academia, conseguindo demonstrar sua virtuosidade no gênero de pintura que pratica.

Seguindo as transformações implantadas com a Nova República, a Escola passou a integrar a Universidade do Brasil, a partir de 1931, com transformações institucionais e no sistema de ensino. Mesmo assim, as transformações ocorridas não foram suficientes para contentar a todos, levando alguns artistas a buscarem novos espaços de estudo, desencantados com os rumos ainda acadêmicos da Escola que, na década de 1930, ainda encontrava dificuldades em propor novas abordagens ao ensino artístico e mantinha práticas como o estudo do desenho do corpo humano através de reproduções de esculturas vinculadas ao classicismo artístico e a cópia de obras importantes de pintura para estudar os efeitos de claro/escuro, bem como as soluções pictóricas encontradas pelos grandes mestres.

PEREIRA DA SILVA, Oscar. Sansão e Dalila. 1893. Óleo sobre tela, 59 x 78,1 cm. Assinada. Procedência desconhecida. Galeria do séc. XIX. Museu Nacional de Belas Artes. Oscar Pereira da Silva (1867–1939) também caracterizou um marco nas artes plásticas brasileiras. Foi o último artista detentor do Prêmio de Viagem concedido pelo Império, estando na Europa entre 1890 e 1896, onde atuou nos ateliês de pintores conservadores, não se deixando influenciar pelo realismo, pelo romantismo, nem pelo impressionismo, dedicando-se aos temas históricos e também de gênero. No regresso ao Brasil, deslocou-se para São Paulo, onde desenvolveu sua produção plástica e lecionou no Liceu de Artes e Ofícios, filiou-se à linha de Almeida Júnior, dedicando-se aos temas locais (CAMPOFIORITO, 1983: v.4, 50). Sua pintura escolhida para a Exposição de Lisboa, Sansão e Dalila, foi realizada ainda no tempo em que esteve em Paris, e em nada se aproxima do mundo brasileiro que se pretendia mostrar em Lisboa. Talvez atue como um marco do potencial virtuoso acadêmico dos artistas brasileiros, pertencentes à geração daqueles formados pela Academia Imperial de Belas Artes. No entanto, Oscar Pereira não era um dos maiores nomes, daquele momento, não era dos mais visados e atacados pelos novos rumos da arte. O pintor havia falecido no ano de 1939, e a inclusão de sua pintura na Exposição pode ser vista como uma homenagem póstuma.

O conjunto de obras levados a Lisboa foge em muito destes parâmetros, mas as nove obras aqui abordadas tangenciam muito de perto estes aspectos, enquadrando-se de uma maneira ou de outra nos moldes acadêmicos, sejam eles de cunho histórico, alegórico, romântico ou realista/ naturalista. Obras e artistas ALEXANDRINO, Pedro. A Copa. c.1905. Óleo sobre tela, 213,8 x 178,7 cm. Assinada. Transferência as Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Técnica. Museu Nacional de Belas Artes. Pedro Alexandrino (1864–1942) realizou sua formação artística em São Paulo, dedicando-se à decoração de interiores, aprendendo com os pintores mestres naquele ofício. Passou pela Academia Imperial de Belas Artes em 1887, como bolsista do governo de São Paulo, mas logo retornou ao seu estado natal. Seu grande mestre, no entanto, foi Almeida Júnior, com quem estudou até obter uma bolsa do governo paulista para permanecer na Europa, ficando por nove anos fixado em Paris, participando de salões e exposições com o gênero de pintura naturezamorta. Mesmo estando em Paris nos últimos anos

AMOEDO, Rodolfo. Amuada. 1882. Óleo sobre tela, (?) x 49 cm. Assinada. Transferência da Escola 173

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nacional de Belas Artes, 1937. Gabinete, 4º andar. Museu Nacional de Belas Artes.

posteriormente ser diretor da Escola Nacional de Belas Artes, foi aluno livre da Academia de Belas Artes e obteve o prêmio de viagem em 1894, medalha de ouro de segunda classe em 1900 e medalha de ouro de primeira classe em 1904 (GUIA, 1967). Esteve em Paris freqüentando as aulas livres da Academie Julien e vivenciou a agitação impressionista que ainda influenciava os pintores de passagem por Paris, mas parece não ter se deixado levar pelos atrativos das pesquisas de luz e muito menos pela dissolução das formas, ao contrário, manteve-se fiel às formas encontradas na natureza brasileira com soluções realistas de representação (FRANCISCO, 1984: 26-30). Buscava os detalhes e a exatidão, trazendo para as telas que pintava a diversidade do meio natural brasileiro sem “impor à natureza artifícios cenográficos, (procurando) fazer valer apenas seus encantos mais singelos” (CAMPOFIORITO, 1983: v.5, 23). Reconhecido por tratar os verdes em gamas variadas sem os radicalismos dos estudos científicos dos impressionistas, recebeu a alcunha de “poeta do verde”. Batista da Costa, como professor de pintura na ENBA, influenciou profundamente os rumos da pintura de paisagem no País; seus ex-alunos, na Exposição de Lisboa, acompanharam o mestre lado a lado.

Rodolfo Amoedo (1857–1941), mais velho do que Visconti quase uma década, chegou a ser seu professor. Vivenciou o período de transição da Academia Imperial para a Escola Nacional de Belas Artes, onde ingressou como aluno, no ano de 1874, depois de ter estudado, também, no Liceu de Artes e Ofícios. Entre outros, teve como professores, Victor Meirelles, Zeferino da Costa e Agostinho José da Mota. Recebeu o Prêmio de Viagem em 1878, seguiu para Paris onde freqüentou a Academie Julien e a École des Beaux Arts, teve como mestres Cabanel e Puvis de Chavannes, que muitas marcas deixaram na sua produção pictórica, sobretudo quanto ao tratamento cromático; “tanto Cabanel como Puvis eram porém coloristas discretos, e isso explica, ao menos em parte, o papel secundário que desempenha a cor na pintura de Amoedo” (TEIXEIRA LEITE, 1988: 26). Como pintor e como professor manteve-se fiel aos ensinamentos dos mestres parisienses, “mesmo quando, nas primeiras décadas do século XX, [teria] percebido que sua obra se desajustava das correntes que começavam a proporcionar à nossa pintura a aceitação das novas proposições até então abominadas pelo academismo” (CAMPOFIORITO. 1983: v.4, 41). Sua pintura escolhida para figurar em Lisboa, Amuada, foi realizada durante o tempo em que permaneceu em Paris, inscrevendo-se entre suas obras elaboradas com grande preciosismo técnico, demonstrando pleno domínio do desenho e do modelado, escolhendo seus temas entre aqueles passíveis de apreciação no meio acadêmico como os temas bíblicos, literários e históricos, os retratos e os interiores, as cenas de gênero e as paisagens, tendo predileção pela figura humana, tema recorrente em sua obra.

TIMÓTEO DA COSTA, Artur. Retrato de Sílvia Meyer. 1912. Óleo sobre tela, 142 x 72 cm. Assinada. Transferência da Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Técnica - Museu Nacional de Belas Artes. Artur Timóteo da Costa (1882–1923) com a pintura exposta em Lisboa, possibilita perceber a diversidade de caminhos trilhados pelos artistas inseridos nesta vertente acadêmica atualizada. Artur ingressou em 1894 na Escola Nacional de Belas Artes, e no Salão de 1906 conquistou o Prêmio de Viagem, instalando-se em Paris. Nos Salões de Belas Artes no Brasil recebeu menção honrosa em 1905, medalha de prata em 1913, pequena medalha de ouro em 1915 (GUIA, 1967). Obteve formação artística junto ao cenógrafo italiano Oreste Colliva, com quem desenvolveu a pintura cenográfica, fator apontado por Teixeira Leite como responsável por características bastante peculiares de dramaticidade, contrastes de luz e sombras, improvisações e agilidade técnica, aspectos que talvez tenham sido responsáveis pelo desagrado das críticas que faziam referência à deficiência no desenho, à imperfeição no modelado e falhas na volumetria, mas que acabaram por confirmar sua desobediência aos rígidos cânones acadêmicos (TEIXEIRA LEITE, 1988: 508).

BATISTA DA COSTA, João. Abril ou Poesia da Tarde. 1895. Óleo sobre tela, 73 x 126,3 cm. Assinada. Transferência da Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Técnica. Museu Nacional de Belas Artes. Dentre os paisagistas levados a Lisboa, João Batista da Costa (1865–1926) era o grande mestre. Estudante da mesma geração de Antônio Parreiras, Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida, Rodolfo Amoedo, Oscar Pereira da Silva e Pedro Alexandrino, falecido em 1926, sua pintura deve ter sido escolhida também como uma homenagem póstuma, prestada pelo amigo de viagens, entre a cidade do Rio de Janeiro e Petrópolis, Carlos Oswald que bem reconhecia a importância do pintor ao pensar em pintura de paisagem do Brasil. Antes de se tornar professor da cadeira de pintura e 174

Arte e política na representação da Nação

A participação de Artur Timóteo no grupo de pintores, escultores e arquitetos responsáveis pela decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Turim em 1911, inscreve-o no rol dos artistas que tomavam sua atividade como um ofício voltado mais a uma prática de artífice do que a um procedimento intelectual. No entanto, ali entrou em contato com a obra de Puvis de Chavannes, cujas pinturas murais muito haviam impressionado seu colega de ofício em Turim, Carlos Oswald que comenta, na sua autobiografia, o quanto o contato com a obras de Puvis o alertou para a importância de Giotto em relação à pintura mural, já que se inspirava nos pintores da Renascença e procurava “imitar a pátina do tempo que tudo harmoniza com tintas quentes esbatidas, misteriosas” (OSWALD, 1957: 29).

segundo grau em 1905, grande medalha de prata em 1913, pequena medalha de ouro em 1922, grande medalha de ouro em 1923. Sua pintura selecionada para a exposição de Lisboa representa um ateliê europeu, provavelmente parisiense, podendo ser o seu próprio; não aborda, portanto, nenhum aspecto da vida brasileira, apenas salienta o percurso de um artista e seu contato com a arte de um centro irradiador de cultura. Possui, no entanto, obras marcadamente nacionalistas referentes, sobretudo, ao período que esteve em Recife, logo após retornar da Europa, realizando a decoração da igreja das Graças e do Colégio da Estância. É a esta estada que se reporta como a oportunidade de sentir o “verdadeiro espírito da nacionalidade, o orgulho de ter nascido aqui. O rio e o sul do país estão muito trabalhados pela influência estrangeira, e o cosmopolitismo absorveu-nos tanto, que hoje, somente no Norte, se nos depara, em sua pureza inicial, o sentimento da pátria aferrado à tradição, aos costumes, à vibração da alma do povo”. (TEIXEIRA LEITE, 1988: 118).

VISCONTI, Eliseu. Pedro Álvares Cabral guiado pela Providência, 1899. Óleo sobre tela, 182 x 105 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo. Eliseu Visconti (1866-1944) foi membro do júri que selecionou as obras levadas a Lisboa e teve uma de suas obras incluída na exposição. A escolha recaiu sobre uma obra de temática histórica, bastante condizente com o evento comemorado, os centenários de Portugal e a presença do Brasil a reafirmar as relações bem sucedidas das duas nações. Em Cabral, título dado à pintura no álbum do Pavilhão do Brasil, o artista demonstra sua peculiaridade no tratamento do tema. O navegador é apresentado aos pés da providência, alegoria de formas femininas, responsável pela chegada das embarcações às terras brasileiras. A marca simbolista impressa na obra de Visconti, tomada da admiração por Puvis de Chavannes e pelo círculo dos pré-rafaelitas, pode ser percebida em outras obras selecionadas que também se apresentam como alegorias.

ALBUQUERQUE, Lucílio de. Despertar de Ícaro. 1910. Óleo sobre tela, 146,5 x 201,7 cm. Assinada. Transferência da Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Técnica – Museu Nacional de Belas Artes. Lucílio de Albuquerque (1877–1939) em 1906 conquista o Prêmio de Viagem e parte para a Europa, instala-se em Paris, onde freqüenta a Academie Julien e também o ateliê do decorador Grasset. Na Europa pintou o quadro Despertar de Ícaro, apresentado no Salão de Bruxelas, como homenagem ao primeiro vôo de Santos Dumont. Nesta pintura Ícaro “recém-despertado de seu sono, observa ao longe, contra a linha do horizonte, o esbelto perfil do Démoiselle” (TEIXEIRA LEITE, 1988: 154), pouco nítido, numa aparição atmosférica, e vem marcar o poder humano sobre a natureza. Antes de retornar ao Brasil, executa um projeto em vitral para o Pavilhão brasileiro em Turim. Torna-se professor na ENBA, em 1916. Campofiorito ressalta que, mesmo permanecendo cinco anos como pensionista na Europa, Lucílio “não procurou, como era comum aos pensionistas da Escola, comprometer-se demais com os ensinamentos dos famosos pintores exaltados pelo apoio oficial” (CAMPOFIORITO. 1983: v.5, 31). Lucílio recebeu ainda no Salão de Belas Artes menção honrosa de segundo grau em 1902, menção honrosa de primeiro grau em 1904, medalha de prata em 1907, pequena medalha de

CHAMBELLAND, Carlos. Interior de Ateliê. 1909. Óleo sobre tela, 65,2 x 102 cm. Assinada. Transferência da Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Técnica –Museu Nacional de Belas Artes. Carlos Chambelland (1884–1950) foi aluno livre na ENBA, onde estudou com Zeferino da Costa, sendo lá, mais tarde, também, professor em substituição ao seu irmão Rodolfo. Em 1907 recebeu o Prêmio de Viagem e seguiu para Paris, onde se deixou envolver pela obra de Puvis de Chavannes. Participou da decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição de Turim, em 1911, juntamente com Carlos Oswald, entre outros. Nos Salões de Belas Artes no Brasil recebeu ainda menção honrosa de primeiro grau em 1903, menção honrosa de 175

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ouro em 1912, grande medalha de ouro em 1916 e medalha de honra em 1920.

díspares e, portanto, deslocados ou mesmo desconsiderados nas análises historiográficas mais tradicionais.

BRACET, Augusto. Lindóia. 1916. Óleo sobre tela, 116,5 x 150,7 cm. Assinada. Transferência da Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Técnica – Museu Nacional de Belas Artes.

Assim, foi possível pensar o conjunto levado a Lisboa em função da disparidade presente em seu cerne. Foi justamente esta disparidade que permitiu concluir pela multiplicidade de projetos e pensamentos no seio do Estado que se queria centralizador e se tornou totalitário, porque pouco afeito aos liberalismos e democracias. Termos estes em desuso nos anos de entre-guerras, tempo em que se esperavam soluções contundentes para problemas gerados em época de crença nas idéias liberais, como o século XIX. Surgem, então, as críticas nacionalistas que atacam diretamente o modelo liberal vigente, percebido como ineficiente e incapaz de resolver questões prementes, como as de cunho social, exacerbadas pelas contradições inerentes ao próprio capitalismo. No cerne destas críticas encontra-se o ataque ao cosmopolitismo da arte, bem como as propostas de construção de um Estado forte e muito mais intervencionista.

Augusto Bracet (1881–1960) foi aluno de Daniel Berard, Amoedo, Zeferino da Costa e Batista da Costa na ENBA, onde também foi professor de pintura, nomeado em 1925 em substituição a João Batista da Costa, após uma estada na Itália e em Paris, ao conquistar, no ano de 1911, o Prêmio de Viagem. Foi também diretor da Escola em 1938. Sua pintura escolhida para figurar no Pavilhão do Brasil inscreve-se nas temáticas de sua predileção, os nus femininos e os temas marcadamente literários. Foi um pintor de mulheres, mas mulheres belas, não “qualquer mulher”, como afirma um crítico em 1942, ao dizer que o modelo sempre foi uma preocupação do artista que sabendo da raridade de uma mulher completamente bela e que a perfeição não existe na terra, nenhum crime pratica “quando repara um ou outro senão da natureza”. (GOMES, 1942)

O Brasil que no século XIX sonhou em acertar seus ponteiros com o relógio mundial, vivia um processo de crescimento econômico com a expansão do setor cafeeiro, criação de um eficaz sistema de transportes, crescimento e desenvolvimento das cidades, expansão social com a chegada de imigrantes europeus e a conseqüente ampliação do mundo do trabalho, o desenvolvimento das atividades industriais e dos novos padrões de produção e consumo. Euforia ou realidade vivida por grupos sociais beneficiados com o novo regime republicano, os quais ansiavam por uma modernização imediata a qualquer custo.

A permanência das obras de arte Estas nove obras quando pensadas em conjunto e, em contraste com as demais obras expostas em Lisboa, produzidas uma ou duas décadas depois, permitem pensar a mescla de gostos e padrões estéticos presentes no âmbito do Estado Novo. O conjunto pode ser visto como variado e eclético, uma vez que mescla artistas pertencentes a grupos distintos e obras de diferentes faturas, vínculos estilísticos e gêneros. Como pensar então este conjunto? O geral e a sua parte aqui destacada? Como vinculá-lo ao pensamento vigente no âmbito do Estado que ansiava pela criação do homem novo, no seio de uma nova sociedade e de uma nova nação? As respostas, quase sempre fluidas, são elaboradas a partir do pressuposto de que o Estado Novo não comporta um único pensamento, uma única visão de mundo, homogênea e centralizadora como se fez crer na historiografia de viés estritamente político. Abordagens historiográficas voltadas à cultura vêm mostrando, nos últimos anos, a multiplicidade de pensamentos inerentes ao período Vargas. Para tanto tem sido necessário ampliar o raio de atuação dos objetos de estudo da história e consequentemente de consulta aos documentos, bem como a capacidade de análise, com o estabelecimento de novos vínculos e relações entre elementos vistos até então como

Já nas primeiras décadas do século XX toda euforia despencou das alturas, como no loop da montanha russa, descrito por Nicolau Sevcenko. Com ele, os sonhos, os anseios, as vontades e os desejos mais eloqüentes de crescimento sem fim e confiança nas potências individuais de desfizeram como nuvens e a nação, ainda em formação, na busca da sua identidade, em compasso com as nações ditas civilizadas, voltou-se para os discursos que prometiam soluções coerentes com a transformação da sociedade e a construção da sua nacionalidade. Este cenário político, econômico e social comporta uma imagem material, concreta, formada em boa parte por elementos artísticos como as obras de arte produzidas e mantidas nas instituições de ensino, de guarda e de exposição. As obras agrupadas no conjunto de 1940, exposto em 176

Arte e política na representação da Nação

Lisboa, perpassam justamente este período marcado por oscilações e grandes mudanças em todos os setores da vida pública e privada do país que culminou, nas décadas de 30 e 40 do século XX, com a aglutinação de diferentes correntes de pensamento em torno de um ideal nacionalista. Naquele período uma visão crítica da cultura e da sociedade foi substituída por um viés ufanista, dando vazão ao estabelecimento de um modernismo de cunho conservador que permitiu a participação de complexo e variado arranjo composto por modernistas, positivistas, integralistas, católicos e socialistas, no quadro de intelectuais que participaram do regime.

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. (Virando Séculos; 7). 140p. SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio Republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. NOVAIS, Fernando A. (Coord.) e SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da Vida Privada no Brasil, v. 3 República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Companhia das Letras, 1998, p. 513-619. SILVA, H. Pereira da. Oswaldo Teixeira em 3ª Dimensão – vida, obra e época. Rio de Janeiro: Museu de Armas Ferreira da Cunha, 1975. TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Dicionário Crítico de Pintura Brasileira. Rio de Janeiro: Artilivre, 1988. VELLOSO, Mônica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. DELGADO, Lucília de A. N.; FERREIRA, Jorge (org.) O Brasil Republicano – O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 147-177. ZANINI, Walter (org.) História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles / Fundação Djalma Guimarães. 1983. v.2. 180 Anos de Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. 185 Anos de Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001/2002.

Neste viés é que se compreende a permanência de obras de arte tão díspares como representantes de uma imagem de Brasil no exterior e, sobretudo, a sobrevivência e a circulação de uma produção de obras que comportam as contradições que marcaram as gerações acadêmicas das últimas décadas do século XIX e início do XX, além de mesclar distintas visões de Brasil. Referências bibliográficas CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura Brasileira no século XIX. v.5 e v.4. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1983. CHIARELLI, Tadeu. Gonzaga Duque: a moldura e o quadro da arte brasileira. DUQUE, Gonzaga. A arte brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. p.11-52. DUQUE, Gonzaga. A arte brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855 / 1985. São Paulo: Perspectiva, 1989. FRANCISCO, Nagib. João Batista da Costa, 1865 -1926. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1984. GOMES, Tapajós. Augusto Bracet o artista que foge do feio e do trapo. 25 jan.1942. GUIA DAS GALERIAS DE PRÊMIOS DE VIAGEM. Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: 1967. LEHMKUHL, Luciene. Entre a tradição e a modernidade: o Café e a imagem do Brasil na Exposição do Mundo Português. Departamento de História / UFSC, Florianópolis, 2002. (Tese de Doutorado). OSWALD, Carlos. Como me tornei pintor. Rio de Janeiro: Vozes, 1957. PAVILHÃO DO BRASIL NA EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS. Lisboa: Neogravura, 1941. (Álbum).

Notas 1 Professora Adjunta do Instituto de História. Universidade Federal de Uberlândia. 2 O caráter social e nacionalista atribuído a uma segunda fase do modernismo brasileiro, que teria sido precedida por uma primeira fase cosmopolita e de ruptura e precedera uma terceira fase definida pela expansão e difusão, aparece em textos como: ROSSETTI, Marta. Novas propostas do período entre guerras. Do Modernismo à Bienal. São Paulo: MASP, 1982. Catálogo da Exposição; ZILIO, Carlos. A questão política no modernismo. FABRIS, Annateresa. Modernidade e Modernismo no Brasil. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1994. (Col. Arte: ensaios e documentos), p. 111-118; AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira, 1930 – 1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 2 ed. São Paulo: Nobel, 1987; ZANINI, Walter. Transformações artísticas de 1930 ao período da Segunda Guerra Mundial. ________(org.) História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles / Fundação Djalma Guimarães. 1983. v.2. p.568-614; ZILIO, Carlos. A querela do Brasil – a questão da identidade na arte brasileira: a obra de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari / 1922-1945. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Festa da imagem Em 30 de março de 1862, a cidade do Rio de Janeiro assistiu uma de suas maiores festas cívicas. O motivo era a inauguração da primeira escultura pública do Brasil, a estátua eqüestre de d. Pedro I. A promoção da imagem estabeleceu um novo lugar para a escultura na sociedade, integrando o Brasil no contexto de uma prática do mundo ocidental do liberalismo. O Brasil se aproximou, assim, do que na França seria conhecido como a estatuamania no fim do século XIX. 2 Esta inauguração consagrou a afirmação da escultura pública no Brasil e instalou uma tradição que atravessou os tempos até os dias de hoje. O paradoxo dessa situação é que no Brasil da época não havia condições tecnológicas de realização de esculturas de bronze fundido em grande escala. É isso que explica o fato de que a estátua eqüestre de d. Pedro I só tenha sido erguida décadas depois de proposta e sua confecção se realizou na França a partir de um projeto concebido no Brasil. A evidente limitação tecnológica, no entanto, não impediu a afirmação da escultura pública como um elemento importante de mobilização social e promoção das artes.

a festa da imagem: a afirmação da escultura pública no brasil do século xix paulo knauss

A inauguração da estátua foi organizada como uma grande festa urbana. Originalmente, prevista para o dia 25 de março, a inauguração da estátua terminou sendo transferida para o próprio dia 30 de março devido às chuvas fortes típicas da estação do ano. Mesmo assim, no dia da realização da cerimônia uma chuva discreta acompanhou os festejos.

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Maria Eurydice Ribeiro de Barros descreve como a cidade não pôde ficar indiferente a este momento da vida urbana.3 O anúncio e os preparativos da festa foram estabelecendo na população uma grande expectativa. Semanas antes, os curiosos procuravam a praça para tentar ver o monumento em construção e admirar as partes do pedestal expostas. Um motivo de atração a mais eram os lampiões gigantes, que deveriam servir para iluminar a estátua e a praça de modo especial para a época. A imprensa dizia que a luz dos lampiões transformaria as noites em “dias esplêndidos”, dando a medida da empolgação da população urbana. Assim, toda a cidade foi sendo envolvida pelos preparativos. Importa salientar, que os lampiões chamavam atenção para a situação da escultura a ser inaugurada, completando o conjunto urbano. A implantação da obra de arte pública colocava a imagem do imperador de frente para a rua da Imperatriz, dirigindo-se para o portão principal da Academia Imperial das Belas-Artes, na 178

A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX outra ponta da rua. De outro lado, a rua 7 de setembro, com a data da Independência do Brasil conduzia até a praça da estátua, estabelecendo a ligação com a antigo largo do Paço, onde se localizava a sede de governo e a região mais freqüentada da cidade. A escolha do local e da posição da peça, evidentemente, não foram aleatórias e acompanhava o plano de remodelação daquela área urbana, que se transformaria na praça da Constituição, tendo a escultura monárquica ao centro.

princesas imperiais para se apresentar à população. Ao final, se juntou ao cortejo a comissão responsável pela mobilização pública em torno da construção da estátua. Toda organização foi marcada pela exposição das insígnias imperiais. O ritual serviu, assim, para a promoção da imagem. Ao chegar à praça da estátua, a população cercou a estátua, enquanto as autoridades oficiais se posicionaram na varanda do Teatro São João, o maior da cidade na época. Desse lugar de destaque, a ordem institucional do país era afirmada pela reunião do imperador e da família imperial, dos representantes políticos das assembléias provinciais e da Câmara Municipal e dos membros do corpo diplomático e consular. Tropas militares procederam, em seguida, à apresentação de armas. Depois disso, ao som do hino da independência, acompanhada do imperador, a comissão promotora se dirigiu para junto da estátua descerrar o pano que a cobria. Seguiram-se vivas à independência nacional, repetidos pela multidão presente. Um Te Deum complementou a cerimônia oficial com um ato religioso e concentrou as atenções sobre um altar construído na praça. Na seqüência, assistiu-se à leitura de discursos políticos que marcaram o evento. Ao final, a tropa seguiu em marcha de continência acompanhada do som de bandas marciais que tocaram o hino nacional. Nessa altura, ao destacar o papel das autoridades oficiais na cerimônia de inauguração, explicitava-se que mobilização social em torno da imagem afirmava a ordem institucional do Estado nacional. O rito definiu o caráter cívico da escultura envolvida pela mobilização social em torno da imagem escultórica.

Para a inauguração, a imprensa anunciou o aluguel de cômodos com janelas e cadeiras para assistir os festejos com conforto, dando a dimensão do poder de atração da festa organizada para a estátua do imperador. O horário dos trens foi adaptado, de modo a garantir a presença do maior número de interessados. A multidão parece ter tomado conta da cena, como se vê em gravura de época. O comércio foi contagiado e ofereceu aos consumidores diversos artigos. A imagem do imperador apareceu estampada em pesos de vidro para papel, desenhos, hinos e gravuras vendidos nas lojas, entre outros tantos produtos. O comércio teve, também, participação importante na decoração da cidade oferecer folhas de mangueira, cedro e canela para embelezar a arquitetura urbana. Além disso, as lojas ofereceram acessórios para baile e teatro, como cintos, luvas, leques que vinham com uma estampa do monumento, bem como artigos de toalete, que caracterizavam a ocasião como de grande gala. O movimento da cidade afirmava a festa da imagem. Mesmo com a mudança da data da inauguração, o programa previsto foi mantido com pequenas alterações, como se pode acompanhar nas páginas do Jornal do Comércio - o principal veículo da imprensa da época. No início do dia, as fortalezas, que ocupavam posição de destaque na paisagem da cidade, apareceram embandeiradas, salvas militares foram lançadas e repiques de sinos soaram na cidade para anunciar a cerimônia que se preparava. Um desfile triunfal foi organizado, reunindo diversas autoridades apresentadas em alas. À frente representantes da Justiça e da polícia: juízes de paz, delegados, comandantes e oficiais de polícia, notários públicos, procuradores. Reuniram-se, ainda, diversas alas que representavam diferentes comissões, além de políticos e de membros da Igreja: deputados, seguidos de vereadores, ministros, conselheiros de Estado, homens da Corte, prelados e bispos. Completavam ainda o cortejo, os membros da Câmara Municipal que carregavam o pálio, sob o qual se colocaram o Imperador, a Imperatriz e as

A descrição de toda a cerimônia de inauguração da estátua de d. Pedro I indica que o rito social envolveu a imagem. O que chama atenção é o potencial da escultura pública para mobilizar a sociedade. É no processo de ritualização que a escultura se apresenta ao olhar. Ritualização da Imagem A cerimônia de inauguração da estátua eqüestre de d. Pedro I, porém, apenas completava um longo processo de ritualização da imagem caracterizado por várias etapas. A idéia original da escultura foi promovida em 1825 na Câmara Municipal do Rio de Janeiro depois de sugerida no folheto Despertar Constitucional. A iniciativa da instituição política municipal, que foi o centro político do processo de Independência nacional, obteve autorização do próprio imperador d. Pedro I. O local então definido para instalar a 179

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

escultura foi o Campo de Santana, área onde havia sido realizada a cerimônia de aclamação do monarca em 1822. O arquiteto Grandjean de Montigny chegou a preparar dois projetos de padrão neoclássico. As mudanças políticas da época, que levaram à impopularidade do imperador e sua abdicação, em 1831, acabaram por inviabilizar o projeto.4

De resto, a instalação da estátua foi demarcada, também, pelo ritual de lançamento da pedra fundamental, em 12 de outubro de 1855, data do aniversário de Pedro I, que foi acompanhada pelo enterro no local da pedra fundamental de uma caixa com medalha da estátua, moedas dos reinados de Pedro I e de Pedro II, o auto da estátua e a versão original da Constituição. A inauguração, que fora prevista para o dia 25 de março, data de aniversário da primeira Constituição nacional, mas que terminou se realizando apenas no dia 30 de março completou o processo de promoção da imagem.7

O projeto da escultura é retomado no ano de 1839 por uma comissão promotora da iniciativa que lançou uma subscrição pública para arrecadar fundos para o projeto, tal como se verifica em prospecto de época.5 Isso ocorreu um ano antes do chamado Golpe da Maioridade, que conduziria ao trono o imperador d. Pedro II, antes do previsto. Não se pode considerar uma coincidência o fato da retomada do projeto da escultura pública do primeiro monarca do Brasil, que representa a política do centralismo monárquico, tenha voltado à baila justamente no momento de crítica à ordem regencial de tom federalista. Assim, o sentido político implícito à imagem colabora na moldagem da imagem escultórica.

Assim, observa-se que a promoção da imagem obedecia a um padrão demarcado por várias etapas, iniciando-se pela proposição pública da idéia, pela organização da iniciativa por meio da nomeação de uma comissão promotora da imagem, seguindo-se a mobilização social em torno da subscrição pública, da instalação do concurso público de seleção de projeto, pelo lançamento da pedra fundamental e pela cerimônia de inauguração da escultura pública. A promoção da imagem terminou, portanto, caracterizando-se como um largo processo de ritualização da escultura na cidade.

O projeto da estátua do imperador só seria definitivamente retomado pela Câmara da cidade do Rio de Janeiro em 1853, a partir da nomeação de uma nova comissão de promoção e execução da escultura. O projeto recebeu, ainda, no ano seguinte o apoio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a primeira instituição acadêmica do país que se dedicava a promover a história nacional e que se manifestou cobrando das autoridades a continuidade do projeto adiante. Assim, o projeto tinha um pilar no mundo do governo, mas igualmente um outro apoio na sociedade civil definindo o espaço de sua promoção.

Nesses termos, a compreensão da história da escultura pública não se basta nela mesma, pois sua concepção não pode ser isolada do processo social de moldagem que envolve a escultura ritualizada. Construção narrativa O conjunto escultórico inaugurado em 1862 na cidade do Rio de Janeiro marcou a história da escultura no Brasil. Não apenas por seu tamanho, materiais nobres e qualidades artísticas. A estátua eqüestre de d. Pedro I , também, abriu a era da escultura cívica de lógica monumental que mobilizava a sociedade em torno do culto da nação. A marca destas imagens é se caracterizarem, também, como representações do passado que afirmam leituras da história.

Após a organização da comissão de promoção da imagem e do lançamento da subscrição pública, em 1855 ocorreu o lançamento do edital publicado em vários jornais que anunciava o processo de seleção do projeto escultórico. O concurso teve 35 trabalhos inscritos, e três selecionados e premiados. O primeiro lugar, no entanto, foi concedido ao projeto reconhecido pelo anagrama Independência ou Morte, de autoria de João Maximiano Mafra (1823-1908), professor de pintura histórica da Academia Imperial das Belas Artes – AIBA, principal centro da criação artística do Brasil no século XIX. Os outros projetos selecionados foram os de Luiz Jorge Bappo e Louis Rochet. Diante das dificuldades técnicas de realizar o projeto no Brasil, o artista francês Louis Rochet foi escolhido para desenvolver o projeto vencedor em seu ateliê na cidade de Paris.6

Importa destacar que há uma estrutura narrativa que define a composição geral sob a lógica do monumento. No caso da estátua de d. Pedro I, o conjunto é simétrico, de base quadrangular com aspecto octogonal devido aos cantos chanfrados. A composição escalonada se organiza a partir de um gradil de proteção, uma base de cantaria, um pedestal e a estátua, propriamente dita. O gradil de ferro compõe um octógono que cerca a escultura e traz em cada coluna, a inscrição de uma data que demarca os principais fatos da história da independência e da afirmação do Estado nacional; 180

A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX o pedestal em granito apresenta em cada um de suas faces laterais alegorias de bronze que representam os rios do país – Amazonas, Madeira, Paraná e São Francisco – associando a imagem de índios e animais esculpidos em bronze; no alto do pedestal, antes da estátua, contorna a peça os brasões das vinte províncias imperiais, e, finalmente, encimando o conjunto, a estátua eqüestre do imperador em trajes militares sem insígnias monárquicas, com um braço esticado que traz na mão um livro, que representa o Manifesto das Nações, documento importante do processo de Indpendência nacional de 1822. Mesmo o livro sendo de proporções pequenas, chama atenção pelo fato de ser o único elemento fora do eixo principal da composição simétrica, destacando-se do conjunto. Na face principal, na cimalha do pedestal, abaixo da estátua, aparece um escudo com a inscrição D. Pedro I, gratidão dos brasileiros.8

pela segunda imagem, constituindo um circuito narrativo que unia duas praças importantes na vida urbana, constituindo um texto urbano. Este vínculo entre as duas peças já estava explicitado no documento da subscrição para realizar as duas estátuas, referindo-se a “dois monumentos em memória do Senhor d. Pedro I e de seu ministro e conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva”.9 A mesma fonte afirma, ainda, que as estátuas seriam capazes de levar “a mais remota posteridade a memória destes dois varões insignes”. A citação indica que a definição da escultura como monumental estava baseada na caracterização da escultura pública como recurso da arte de memória. Mas, ao lado disso, o documento afirma um princípio de gratidão que estabelece a base afetiva da lembrança e estabelece o vínculo entre passado e presente. O prospecto de lançamento da subscrição dizia, em certa passagem, que “a história das nações consagra [...], o nome daqueles homens que [...] se tornarão credores da veneração de seus concidadãos da humanidade”, e termina afirmando que “os povos agradecidos os transmitem de pais a filhos”. Portanto, evidencia-se que a promoção da escultura pública operava a lembrança do agradecimento para justificar o presente como continuidade do que passou e sacralizando o objeto da memória.

A estrutura narrativa da escultura monumental se evidencia ao relacionar tempo, espaço e sujeito da história, afirmando um enunciado-chave. O tempo da história aparece na cronologia inscrita no gradil; o espaço da história é tratado no pedestal pelas alegorias dos rios nacionais e pelos brasões das províncias imperiais; o sujeito da história e o produto de sua ação se inscrevem na estátua do imperador com o documento da Independência na mão. Há assim, claramente a demarcação do tempo, do espaço e do sujeito da história para contar a história da afirmação do Estado nacional, por meio da escultura. A chave de leitura da história se afirma, no entanto, pela inscrição do enunciado da gratidão, que explica a razão do culto da imagem e a lembrança do passado no presente. Explicitase um certo uso do passado que afirma o caráter cívico da história e da arte, definindo a escultura monumental como imagem do civismo.

Ocorre que a construção da narrativa fixada na escultura pública não ocorre no isolamento do artista em seu ateliê. Antes do concurso, no processo de estabelecimento da comissão promotora da imagem, numa sessão do IHGB de 1854 que Joaquim Norberto de Sousa e Silva propôs, pela primeira vez, relacionar o projeto da estátua à história da Constituição e da afirmação do regime monárquico. Como indica Iara Liz Carvalho Souza10, é a partir daí que a discussão ultrapassa o âmbito do IHGB e alcança o debate na Câmara e nas páginas de jornais. É nessa altura que Araújo Porto-Alegre – membro do IHGB e professor da AIBA - defendeu em O Guanabara a opção pela solução eqüestre, associada ao gesto que traduz o ato da independência, fixado na pintura desde a década de 1840 com o quadro de FrançoisRené Moreau11. De todo modo, o debate definiu o programa da escultura realizada, que se afastou das orientações originais de Grandjean de Montigny, caracterizando uma operação seletiva de modelos. A concepção final conseguiu sintetizar as duas associações propostas por Joaquim Norberto de Sousa e Porto-Alegre ao fixar a imagem eqüestre do imperador no gesto de lançar uma mão ao alto segurando um livro, associando de modo

Cabe anotar, ainda, que a proposta de subscrição pública de 1839, ainda que tivesse como foco principal a estátua do imperador d. Pedro I, propunha erguer, também, uma segunda estátua homenageando o Patriarca da Independência, José Bonifácio. Esta estátua seria inteiramente concebida e realizada por Louis Rochet, na França, e inaugurada no Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1872, por ocasião das festividades do cinqüentenário da Independência. Enquanto o imperador foi representado a cavalo trazendo o documento da Independência para simbolizar a afirmação do Estado nacional, José Bonifácio foi representado como intelectual cercado de alegoria das virtudes clássicas, simbolizando a razão de Estado. As duas imagens se completavam, e a promoção da primeira imagem se estendida, assim, 181

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Por sua vez, um opúsculo anônimo circulou na mesma época da publicação do texto de Teophilo Ottoni para contestá-lo, apoiando-se na condição de testemunho dos fatos e defendendo a posição de que Pedro I atuou no interesse dos brasileiros, sublinhando, porém, que a explicação da independência nacional residia no fato de que com o retorno da Corte a Portugal, não havia como o Brasil retornar à condição de colônia lusitana, sendo as Cortes de Lisboa, portanto, o verdadeiro centro dos acontecimentos.12

original o ato que encarna a proclamação da Independência. Essas referências permitem indicar que a criação do escultor dialogava com as propostas que emergiram no debate público sobre a imagem, produzindo um contexto de autoria compartilhada que contribui para definir o caráter público da escultura que vai além do fato de se localizar em área urbana. Importa, ainda, anotar que os documentos de referência do projeto cumpriam uma função de definir os conteúdos daquilo que a escultura deveria traduzir plasticamente, buscando controlar a concepção e a interpretação da imagem. Assim, no entrelaçamento intertextual da escrita e da cidade se antecipa a obra e a narrativa escultórica.

De todo modo, o que interessa sublinhar é que a promoção da escultura se realizava num ambiente de debate e disputa de sentidos, contrapondo diferentes leituras da história. A polêmica, ou melhor, a polemização provocava o olhar sobre a imagem escultórica. Desafio do tempo

Leituras da história

A promoção da estátua do primeiro imperador do Brasil lançou um modelo de mobilização social que relacionava usos da imagem e usos do passado na cidade. Seu exemplo serviu para inspirar, em 1870, a proposta de se erguer uma estátua ao segundo imperador do Brasil, d. Pedro II.13 O motivo era celebrar a vitória militar do Brasil na Guerra do Paraguai, que finalmente chegara ao fim depois de 5 anos de conflito militar.

A inauguração e a exposição pública da estátua do imperador provocaram reações que traduzem dimensões da apropriação pública da imagem. No dia da inauguração um poema de Luiz Vicente deSimoni foi apresentado, associando Pedro I e Tiradentes numa combinação especial que não contrapunha os dois personagens da história nacional. A sobreposição era reforçada pelo fato de que o logradouro em que se instalou a imagem do imperador foi o lugar do martírio do herói da Inconfidência Mineira. Um fio condutor da história era articulado por meio da lembrança do passado. Nas páginas do Diário do Rio de Janeiro, no dia da inauguração Teophilo Benedicto Ottoni, por sua vez, manifestava sua oposição à iniciativa de promoção da estátua, considerando que Pedro I não era digno da homenagem, colocando o personagem assim no centro de controvérsia histórica. Ottoni questionava o fato de que a independência não era obra de um único nome, sublinhava o fato de que a Constituição imperial foi obra outorgada e não uma construção da Assembléia Constituinte, e levantava a hipótese de que o processo de abdicação foi antes um ato popular liderado pelo partido liberal. Além disso, o autor celebrava as inconfidências e o movimento pernambucano de 1817, destacava a importância de José Bonifácio no processo de independência e terminava por contrapor Tiradentes a d. Pedro I, insistindo na dissociação dos dois personagens. De modo semelhante, no ano seguinte à inauguração da estátua do imperador, Homem de Mello publicou, ainda, um texto reavaliando d. Pedro I como personagem histórico responsável pela dissolução da assembléia e pela afirmação de uma Carta Magna outorgada, condenando-o pelo despotismo.

O projeto da estátua eqüestre de d. Pedro II teve como origem um modelo em gesso de Francisco Manuel Chaves Pinheiro, professor de escultura da Academia Imperial das Belas Artes, apresentado na Exposição Geral de Belas Artes, conforme ofício de 24 de janeiro de 1866, em que se solicitava pagamento dos custos da execução do modelo. Poucos anos depois, segundo a documentação da Academia Imperial das Belas Artes – AIBA, diziase que a escultura perturbava o cotidiano da instituição devido às suas proporções e ao ocupar o centro da pinacoteca, onde esteve para ser completada a execução da peça. Finalmente, a obra foi colocada no vestíbulo da entrada do edifício, onde ficou a partir de 1874, depois de adquirida pelo governo. Em junho de 1882, o diretor da AIBA solicitou autorização para remover a estátua de d. Pedro II, tendo em vista as obras do edifício da academia, aconselhando que fosse colocada no edifício do ministério da Guerra. Com isso, a imagem do imperador foi transferida para o asilo dos Inválidos da Pátria, onde se achava o museu militar, localizado na ilha do Bom Jesus, desativado em 1915. Já nessa época de período republicano, houve a intenção de transferir a escultura para outro local da cidade do Rio de Janeiro, colocando-a na praça XV de Novembro. 182

A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX Rejeitada pela então Escola Nacional de Belas Artes (sucessora da AIBA), a peça foi esquecida onde ficou até ser transferida para o Museu Histórico Nacional, em 1922, por iniciativa do diretor Gustavo Barroso.14

seria expressão da vitória brasileira e, ao mesmo tempo, de afirmação da identidade política do Império do Brasil, definida por contraste em relação à tirania. A contraposição vitoriosa definia a qualidade e a supremacia do regime imperial e do Estado nacional brasileiro. E a figura do imperador encarnava estes pressupostos, o que explica o gesto da estátua.

Assim, enquanto o projeto da estátua eqüestre do primeiro imperador foi desenvolvido e inaugurado com grande festa urbana, o projeto da estátua de d. Pedro II nunca foi completado. Esse percurso é apenas um entre os muitos contrastes entre as duas imagens dos imperadores do Brasil. A força das duas imagens está no gesto da mão das duas figuras. Enquanto d. Pedro I é representado em gesto de conquista, erguendo uma das mãos, na estátua eqüestre de d. Pedro II a figura do imperador estende a mão apontando para baixo. Ao celebrar a vitória militar, a mão estendida da escultura caracteriza a generosidade do vencedor e a solidariedade ao inimigo abatido. O gesto das mãos, portanto, distingue as duas imagens dos imperadores. Uma aproxima a estátua dos céus, e a outra aproxima a imagem do expectador. Uma apresenta um imperador que lidera os cidadãos pela sua dianteira e destaque; a outra apresenta um imperador que procura estar ao lado da sua gente.

A notícia da vitória militar nacional na Semana Ilustrada de 20 de março de 1870 repete os mesmos elementos que caracterizam o discurso compartilhado socialmente. A revista atribuía a vitória à ação patriótica de “bravos inexcedíveis”, capazes de vingar a honra do país ofendido pela tirania. Na leitura da mesma notícia do fim da guerra interessa sublinhar que a vitória nacional é atribuída também às qualidades do imperador: “tenacidade, perseverança, e robusta fé na santidade da causa que defendia realizou o símbolo do varão forte”. Ele, ao lado dos “bravos inexcedíveis” da frente militar, encarna a vitória sobre a tirania, que traduz o movimento da Guerra do Paraguai. A notícia, porém, terminava clamando por “um brado uníssono de gratidão ao nosso imperador”. O princípio da gratidão caracteriza a notícia e o tratamento da imprensa sobre a vitória da guerra na Semana Ilustrada, o que revela sua força na leitura da história e no discurso político da época. Por outro lado, observa-se também o destaque dado ao papel do imperador, pois a gratidão é claramente dirigida a ele, como agente principal da história nacional. Esse mesmo princípio foi reafirmado no projeto do monumento cívico que corporificava a memória da vitória na Guerra do Paraguai na figura do imperador.

Importante é notar que a elaboração do projeto da estátua eqüestre de d. Pedro II foi anterior à iniciativa de sua promoção pública. A documentação não ajuda a entender como o modelo de 1866 se transformou no elemento do projeto do monumento à vitória. De todo modo, a campanha de promoção da escultura de Chaves Pinheiro foi lançada pelo jornal Diário do Rio de Janeiro e anunciada no dia 19 de março de 1870. A matéria se completava ao aclamar a comissão responsável pela iniciativa de organizar o movimento de promoção da imagem urbana, anunciando o surgimento de outras comissões regionais por todo o país “(...) pelos nacionais e estrangeiros amigos das glórias da grandeza e da integridade do Império”. Claramente, a imagem se consagrava à afirmação do Estado monárquico nacional.

Porém, no mesmo dia da divulgação do projeto da estátua, o imperador d. Pedro II surpreendeu a todos apresentando uma carta pública, depois publicada no mesmo Diário do Rio de Janeiro e no Jornal do Comércio, recusando a homenagem, em favor da idéia de construção escolas pública, argumentando que: Se querem perpetuar a lembrança do quanto confiei no patriotismo dos brasileiros para o desagravo completo da honra nacional e prestígio do nome brasileiro. [...] O senhor e seus predecessores sabem como sempre tenho falado no sentido de cuidarmos da educação pública, e nada me agradaria tanto a ver a nova era de paz firmada sobre conceitos de dignidade dos brasileiros começar por um grande ato de iniciativa deles ao bem da educação pública.15

A análise da documentação de época, guardada no arquivo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, permite verificar claramente a relação da imagem com o regime político imperial, pois se fala diretamente de sua associação com a glória, a grandeza e a integridade do Império. Por outro lado, o monumento era afirmado como símbolo da vitória da Guerra do Paraguai, definida como uma luta contra a tirania, identificada com o chefe político do país inimigo. A intenção de utilizar a matéria do bronze obtida pelo botim de guerra, 183

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Com isso, o imperador sublinhava, de um lado, que sua contrapartida ao princípio da gratidão do povo, era a confiança nos brasileiros. Sem abrir mão, portanto, do princípio da gratidão do povo que reforçava sua autoridade, d. Pedro II dirigia seu pensamento à “nova era de paz”. Desse modo, o imperador não rejeitava apenas um monumento, mas rejeitava a idéia de celebrar o passado de guerra. Além disso, para traduzir a era de paz como momento de afirmação da “dignidade dos brasileiros”, na visão do imperador, a melhor forma parecia ser a consolidação da educação pública e não a escultura pública.

De fato, na contramão da proposta do monumento, ainda no mesmo ano de 1870, o imperador participou do lançamento da pedra fundamental das primeiras escolas municipais que foram inauguradas na cidade do Rio de Janeiro, então Corte imperial. As primeiras escolas inauguradas, em 1872, foram as escolas municipais São Sebastião (posteriormente chamada Benjamin Constant e, finalmente, demolida nos anos 40 com a abertura da av. Presidente Vargas), localizada em Santana; e a São Cristóvão (depois chamada Gonçalves Dias), localizada no bairro de mesmo nome. Distribuídas por diferentes áreas da cidade, as escolas conjugavam uma “localização nobre e uma arquitetura de certa imponência e erudição”, conforme caracteriza Rachel Sisson (1990), “compatível com a sua condição de homenagem substituta ao Imperador”. As escolas municipais erguidas nos anos 70 e 80 do século XIX foram envolvidas pela solenidade imperial a partir dos rituais de lançamento da pedra fundamental e de inauguração, marcados pela presença e participação do Imperador. Sua promoção repetiu, então, a ritualização da história que caracterizou a promoção de monumentos cívicos na mesma época.

Na imprensa, o ministro do Império, Paulino José Soares de Souza, acompanhava a posição do imperador ao manifestar, em 21 de março de 1871, sua posição contrária à idéia do monumento a partir dos “elevados sentimentos do imperador” e “os patrióticos intuitos de sua majestade”. O ministro defendia o desejo do governo em promover o “adiantamento intelectual e moral da nação”. Nesse sentido, considerava que a melhor forma de promover o interesse do “progresso nacional” era aplicar o vigor da iniciativa dos cidadãos na instrução pública, assinalando o novo tempo da “volta da paz”. A educação aparecia então como uma das chaves do progresso nacional.

No Parlamento, não tardaram as manifestações dos representantes legislativos. José de Alencar, em maio de 1870, tratou o tema como uma ingerência do imperador no poder legislativo, uma vez que já havia sido aprovado o financiamento da elevação da escultura pública. Além disso, criticou a proposta do ministro da Guerra de promover festejos populares com o dinheiro da subscrição do monumento, considerando que a festa espontânea já havia se realizado após a guerra.16 Na sessão seguinte, porém, o parlamento acompanhou a decisão do imperador e do seu ministro da Guerra. Outra matéria publicada no Jornal do Comércio de 24 de março de 1870 aponta os desdobramentos da querela. Aí se reivindicava a implantação do “ensino livre” como elemento para a prosperidade e para a felicidade a partir do exemplo dos EUA, afirmando-se ser a “alavanca mais poderosa do que estradas de ferro e telégrafos elétricos”. Nesse caso, o que se colocava não era uma crítica à recusa do imperador, ou à leitura da história do progresso, mas uma discussão sobre o modelo de instrução pública. A discussão sobre a estátua provocou, portanto, um questionamento sobre os limites do poder do chefe de Estado.

Alguns dias após a manifestação pública de d. Pedro II em que recusava a homenagem da escultura pública monumental, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro também expressou seu apoio ao imperador, e defendeu o projeto das escolas como “base primordial do futuro dos povos [...]” (Escolas Municipais. Diário do Rio de Janeiro, 5 de abril de 1870.). Claramente, o comentário sublinhava o papel do futuro na compreensão da história nacional. Chama atenção nessas manifestações de defesa de um projeto alternativo ao monumento, que o pensamento sobre a história se desloca. Enquanto o projeto da estátua monumental se caracterizou por valorizar a guerra, o projeto alternativo insistiu na paz. Nesse sentido, não era o passado da guerra que interessava sublinhar, mas o futuro de paz que se colocava em questão. Além disso, enquanto o primeiro projeto relacionava passado e presente, o projeto de construção de escolas visava relacionar o presente com o futuro. Passado e futuro correspondiam, assim, ao binômio de guerra e paz. Por sua vez, a memória não era mais dirigida para perpetuar o passado no presente, mas para antecipar um futuro diferente do passado por meio da promoção do progresso no presente. O projeto das escolas tinha, assim, o progresso como o conceito-chave da leitura alternativa da história.

Contudo, além do projeto das escolas públicas, a estátua eqüestre de d. Pedro II enfrentou a concorrência de dois outros projetos de escultura pública para a celebração da vitória militar. Ambos 184

A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX se encontram na Coleção Thereza Cristina da Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Um deles é de autoria dos arquitetos Francisco de Azeredo Monteiro Caminhoá e Paul Bénard e apresenta a proposta de construção de uma coluna de 62m de altura sobre o chafariz. Diversas alegorias escultóricas completam o conjunto, valorizando a figura feminina, a representação da batalha naval do Riachuelo, em uma das faces, e inscrições de outras batalhas também navais, como Humaitá e Paissandú. O outro projeto é de autoria de Louis Rochet, escultor francês que executou o projeto da estátua eqüestre do primeiro Imperador, sendo o desenho assinado por Jacques Guiaud. A proposta vem acompanhada de uma carta do escultor Louis Rochet ao imperador d. Pedro II, em que apresenta o projeto de uma coluna triunfal de bronze, encimada por figura alada com lança na mão. Todas as propostas escultóricas tinham como logradouro o Campo da Aclamação, atual praça da República, ou Campo de Santana, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O local escolhido para o monumento foi o palco das comemorações oficiais e populares da vitória militar, que se desenvolveram em 1870, organizadas em torno do templo da vitória, monumento de arquitetura efêmera erguido para a ocasião. Estes dois projetos, porém, se aproximam ao apresentar o mesmo partido centrado na referência da coluna. Além disso, os dois se caracterizam pelo fato de evitar a representação da figura do imperador na sua composição. Desse modo, contrastam com o projeto de Chaves Pinheiro da estátua eqüestre, que valoriza a figura do imperador. Mas chama atenção o fato de que o projeto do escultor francês ser acompanhado por uma carta datada de abril de 1870. A semelhança das duas propostas permite imaginar que são frutos do mesmo movimento e do mesmo instante: posterior à polêmica da estátua eqüestre recusada pelo imperador. Os projetos das colunas comemorativas podem ser caracterizados, portanto, como contra-propostas ao polêmico projeto da estátua eqüestre de Chaves Pinheiro. A indicação da data da carta permite afirmar também que a idéia do monumento à Guerra do Paraguai não deixou de povoar as discussões, deixando, no entanto, de valorizar a figura do imperador com a guerra e buscar uma representação alegórica da vitória militar nacional. A concorrência dos projetos não favoreceu nenhuma das propostas de escultura. Todas não passaram de projetos não executados, deixando de povoar o espaço público da cidade, mas demarcando a história da Corte Imperial.

De todo modo, o projeto da estátua eqüestre de d. Pedro II evidenciou a dificuldade de representar o futuro em escultura. Esta dificuldade pode ajudar a entender porque o Império do Brasil foi pouco dedicado a consagrar a Guerra do Paraguai, mesmo tendo sido sua grande vitória, como afirma Ricardo Salles.17 A vontade do futuro de paz e progresso se contrapôs à vontade de lembrança do passado de guerra, que corresponde à lógica da arte monumental. A imagem de um passado, ainda que glorioso, não bastava para representar a imagem do progresso capaz de antecipar o futuro promissor. A imagem da transformação dos tempos exigia outros emblemas, que não estavam contidos na leitura linear da história e na imagem da perenidade do passado. Foi a arquitetura pública escolar que materializou esse discurso sobre o futuro próspero da sociedade nacional, sendo a educação o seu tema principal naquele contexto. A lógica da escultura monumental articulada na relação passado-presente não dava conta de representar o tempo do progresso. A escultura narrativa do monumento cívico não tinha referências plásticas para presentificar o futuro e contar sua história e tratar seu significado.18 Assim, ao lado do processo de ritualização da história é a relação passado-presente que servia para estabelecer a lógica do monumento, não deixando espaço para leituras do futuro. Notas 1

Professor do Departamento de História e do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, Diretor-Geral do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro 2 AGULHON, Maurice. La ‘statuomanie’ et l´histoire. Histoire vagabonde: etnologie et politique dans la France contemporaine. Paris, Gallimard, 1988. v1. 3 RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Memória em bronze, estátua eqüestre de d. Pedro I. KNAUSS, Paulo (coord.). Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999. 4 SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo, Ed. UNESP, 1999. cap. 8. 5 Prospecto de subscrição de dous monumentos...,1839. Arquivo do IHGB. Lata 59, PS 15. 6 Para conhecimento da biografia do artista francês, consulte-se: ROCHET, André. Louis Rochet: sculpteur et sinologue, 1813-1878. Paris, André Bonne, 1978. Nesta biografia também se encontra vasta documentação trasncrita sobre a estátua eqüestre de d. Pedro I. 7 SANTOS, Gisele Cunha dos & MONTEIRO, Fernanda Fonseca. Celebrando a fundação do Brasil: a inauguração da Estátua Eqüestre de D. Pedro I. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 4, n. 1, jan./jun. 2000, p. 59- 76.

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KNAUSS, Paulo. Imaginária urana: escultura pública na paisagem construída do Brasil. SALGUEIRO, Heliana Angotti (coord.). Paisagem e arte. São Paulo, CBHA, 2000. p. 407-414. 9 Prospecto de subscrição de dous monumentos...,1839. Arquivo do IHGB. Lata 59, p. 15. 10 SOUZA,Iara Liz Carvalho. Op. cit. 11 A manifestação de Araújo Porto-Alegre em torno da estátua eqüestre de d. Pedro I é tratada no livro: SQUEFF, Leticia. O Brasil nas letras de um pintor. Campinas, Ed. Unicamp, 2004. 12 Id.. Op. cit. 13 KNAUSS, Paulo. O desafio de representar o futuro: a estátua eqüestre de d. Pedro II e os sentidos da escultura monumental no Brasil. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 37, p. 237-252, 2005. 14 Arquivo do Museu Nacional de Belas Artes: AIBA – Francisco Manuel Chaves Pinheiro, 1861-1915, Documentos Diversos – AI/doc-3.

Carta de D. Pedro II recusando a elevação da estátua em sua homenagem. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 51, 1888. 16 Anais da Câmara de Deputados, sessão de 19 de maio de 1870. - discurso de José de Alencar. 17 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias e imagens. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2003 18 Pode-se dizer que na história da escultura pública do Brasil, esse dilema da lógica dos monumentos só sra resolvido na década de 30 com o projeto da Juventude Brasileira, de Bruno Giorgi, que faz parte do conjunto da sede do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema no Rio de Janeiro. KNAUSS, Paulo. O homem brasileiro possível: o monumento da Juventude Brasileira. KNAUSS, Paulo (coord.). Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999.

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Nas Exposições Universais da segunda metade do século XIX, a arquitetura desempenhou papel fundamental na criação de cenários fantásticos, sendo um dos fatores fundamentais de atração e de sucesso destes eventos. Desde o Palácio de Cristal (Londres, 1851), pavilhão único da primeira Exposição Universal, que a arquitetura é o grande símbolo destas festas do Progresso. Controvérsias à parte, este edifício é referência imediata quando se pensa em arquitetura do século XIX e em arquitetura de exposições. À França coube a iniciativa da segunda Exposição Universal, realizada em 1855 na cidade de Paris. Diante da monumentalidade do Palácio de Cristal, veio, já em 1852, a decisão oficial francesa de construir um edifício destinado às exposições. A Exposição de 1855 ocupou o Palácio da Indústria, o Palácio das Belas Artes e a Galeria das Máquinas, que unia os dois outros prédios. Alguns prédios isolados apareceram, como os dos Panoramas ou das organizações de venda. Todos os países expunham em prédios comuns. A partir daí, cada exposição foi criando um número maior de prédios, e pelas dezenas e até centenas de construções dos mais variados portes, materiais e tipologias que as Exposições Universais produziam, elas representaram, de certo modo, a mais convincente exposição de arquitetura que se possa imaginar, servindo, neste sentido, de campo fértil para o debate arquitetural.

a arquitetura de exposições como repertório de formas e tipologias ruth nina vieira ferreira levy1

Símbolo de progresso e modernidade, as exposições buscavam mostrar uma arquitetura ousada, arrojada e dotada de inovações técnicas. Mas a arquitetura de exposições não se limitava a isso. Lado a lado com a modernidade, cada vez mais foi se abrindo espaço para a reconstituição histórica, dentro do espírito enciclopédico que dominou o século XIX. Verdadeiras máquinas do tempo, numa busca de ressurreição do passado, as reconstituições ofereciam uma antologia arquitetônica que passeava por um repertório que ia da pré-história, passava pela Antiguidade e destacava momentos culminantes das diversas civilizações e nações, expondo sua cultura, seus hábitos, suas formas de viver. Em 1867 foi novamente vez de Paris abrigar a Exposição Universal. O Palácio da Exposição distinguiu-se dos anteriores por sua forma claramente apropriada ao sistema adotado para a classificação dos produtos expostos, que conjugava o emprego dos dois sistemas usados nas exposições anteriores, cuja classificação era dada pela nacionalidade ou pela natureza do produto 187

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

exposto. O Palácio Elíptico abrigava a exposição de todos os países, mas o duplo agrupamento de produtos se fazia em uma disposição circular, de acordo com dois sistemas de divisão: galerias concêntricas o dividiam internamente em oito zonas referentes aos grupos de produtos similares de todos os países, sendo estas galerias cortadas por 16 vias radiais, permitindo observar separadamente a produção de todos os objetos das nações expositoras.

Em 1878 acontece mais uma Exposição Universal parisiense. O edital do concurso para a exposição determinava que o Palácio do Campo de Marte seria construído inteiramente em ferro, seguindo um plano retilíneo, mas possibilitando a exposição dos produtos por natureza e nacionalidade. No centro estariam dispostas as salas para exposição de objetos de arte dos mestres das escolas modernas, sendo previsto também um espaço para uma Exposição retrospectiva.

Se na exposição parisiense de 1867 o Palácio Elíptico era pavilhão que inovava, mostrando claramente através do espaço a importância dos sistemas classificatórios naquele momento, próximo a ele surgiria uma verdadeira cidade no Campo de Marte que, através de suas reconstituições trazia o visitante e o arquiteto para um universo complexo de imagens literárias, coloniais e de fantasia, oferecendo ao presente, imagens convincentes do passado.

Este grande prédio deveria comunicar-se com o do Trocadero por uma galeria coberta. Neste seriam expostos os produtos agrícolas, de horticultura, animais domésticos, modelos de exploração mineral, navegação fluvial e marítima, de aquecimento e ventilação. O Palácio do Campo de Marte possuía planta retangular, dividida longitudinalmente em galerias, separadas em dois grupos por um espaço central vazio. O lado esquerdo era ocupado inteiramente por produtos franceses e o direito destinado aos produtos estrangeiros. O espaço central, parcialmente descoberto, era ocupado pela exposição das Belas Artes de todas as nações, e oferecia uma série de spécimens de fachadas estrangeiras - históricas e contemporâneas constituindo a Rua das Nações.

... uma cidade surgiu como que por encanto sobre o solo do antigo Campo de Marte. Cidade estranha, todavia, onde a modesta moradia do mineiro de Arzin faz pendant com o esplendoroso palácio tunisiano, onde uma igreja gótica fica face a face com um templo asteca, ou o templo anglicano costeia o pagode muçulmano, onde perto de um hangar americano um edifício chinês ergue-se com cores vivas e brilhantes, onde se elevam lado a lado o farol gigantesco e a gigantesca chaminé de fábrica, onde das casas de madeira dos povos escandinavos se passa aos palácios de mármore da Itália, onde cada uma das nações representadas na Exposição quis mostrar os exemplares de seus monumentos, de seu estilo de arte, de sua arquitetura, onde enfim, palácio, casa, vilas, chalés, pavilhões, quiosques, etc., se aglomeram e convivem em uma vizinhança das mais fraternais. [...] Que mina de elementos preciosos para a arquitetura e para o artista inovador, e como o estudo comparado desta imensa variedade de construções será interessante!” (DALY, 1867: vol. 25, p. 29)

Assim, a Exposição Universal de 1878 continua a trajetória da exposição de arquitetura e das reconstituições com a Rua das Nações, na qual 27 fachadas de arquiteturas nacionais criavam um cenário mágico, marcado pelo ecletismo dos pavilhões: o manuelino de Portugal, o chamado Pavilhão neomudéjar de Espanha, os edifícios da Grã-Bretanha e da Itália, em reminiscências góticas, etc., O “revivalismo” arquitetônico foi o denominador comum das Exposições Universais durante o século XIX, porque elas, definitivamente, não faziam senão por em evidência uma sociedade que, paradoxalmente, mergulhando insistentemente na história, impulsionava o progresso na direção do futuro. Os recintos das exposições davam corpo a esta dualidade, pois enquanto o orgulho da modernidade radicava nas espaçosas galerias das máquinas, a Rua das Nações refletia o passado (PALÁCIO, 1997:29).

Outro tema importante desta exposição é o das habitações operárias, com sua vila industrial, suas casas operárias e a casa pré-fabricada de Stanislaus Ferrand. Diante do problema da moradia das classes trabalhadoras nas cidades industriais, como Londres e Paris, as exposições passam, justamente a partir de 1867, a explorar também este aspecto, fazendo entrar fisicamente na exposição, através desta tipologia específica, a questão social e seus atores.

Na Exposição Universal parisiense de 1889 é culminante a dualidade entre a modernidade, a ousadia e a inovação, retratadas, sobretudo, na Galeria das Máquinas e na Torre Eiffel - verdadeiros monumentos do progresso - e a tentativa de 188

A arquitetura de Exposições como repertório de formas e tipologias

resgatar o passado e traçar um esboço de toda a história da arquitetura, através das reconstituições. A História da Habitação Humana de Charles Garnier trazia 44 casas por ele desenhadas, reconstituindo e colocando lado a lado as mais diferentes formas de habitação de diversos períodos e regiões, desde o abrigo troglodita.

nacional, como é o caso dos Estados Unidos. Aliás, as experiências norte-americanas em Exposições Universais também trazem rico e complexo material para análise, não só por sua magnitude e quantidade de pavilhões, mas também por suas características locais específicas e suas relações com a Europa, inclusive como ex-colônia britânica. A Exposição de Filadélfia em 1876 vai ter 249 construções, constituindo-se em catálogo de citações mais ou menos explícitas, com prédios construídos por arquitetos europeus e prédios construídos por arquitetos norte americanos, criando uma situação de análise privilegiada. Também aqui a arquitetura se difunde graças aos exemplos e reconstituições.

Na Rua do Cairo, uma evocação nostálgica do Oriente, as construções eram inspiradas na arquitetura antiga da cidade e decoradas com elementos provenientes de antigas demolições no Egito, como portas, balcões, muxarabis e revestimentos em faiança. Cento e sessenta egípcios vieram a Paris para “animar” constantemente a rua, com suas diversas atividades.

Em 1893 é a vez da cidade de Chicago abrigar a World Fair Columbus Exposition, e criar um cenário mágico que ficou conhecida como a White City. O chamado classicismo Beaux-Arts em escala monumental que se viu ali também serviu de aula de arquitetura e para os mais críticos teve o papel nocivo de desviar a atenção da produção da moderna Escola de Chicago. Os pavilhões estrangeiros quebravam a unidade com suas cores locais.

Essa exposição trouxe ainda uma série de pavilhões nacionais, coloniais, temáticos, de empresas e associações, além dos pavilhões públicos franceses. Na Exposição Universal de 1900, para a qual foram construídos o Grand Palais e o Petit Palais, teve também sua Rua das Nações, chamada ironicamente por alguns de Rua de Babel, em virtude do repertório de arquiteturas de difícil coerência, além da Exposição Colonial, com seu palácios “exóticos”, e a Velha Paris, um quarteirão inteiro reconstituindo uma cidade medieval.

A Exposição de Saint Louis em 1904 contou com nada menos que 1500 edifícios. Era a maior exposição internacional que o mundo havia visto. Ali também as reconstituições curiosas e exóticas tiveram espaço, como os “Alpes Tiroleses”, os “Mistérios da Ásia”, a “Roma Antiga” ou a “Cidade Chinesa”. Na realidade, estas atrações que ficavam num centro de diversões – o Pike –, uma avenida povoada por 8.000 figurantes, já pendem muito mais para o sentido de puro entretenimento do que para uma abordagem com um sentido didático que se pretendeu em exposições anteriores.

Na Exposição de 1900 observa-se a retração no uso de ferro: se em 1889 verifica-se o auge na crença do ferro como solução construtiva, em 1900 a consciência de suas limitações reduz em muito o seu emprego. Segundo Pevsner, do ponto de vista estrutural a exposição que ocorria onze anos depois da Torre Eiffel e da Galeria das Máquinas era uma decepção (PEVSNER, 1976: 252). O ferro usado por necessidade escondia-se embaixo de camadas de estuque nos mais variados estilos, passando pelo medieval, Renascença Francesa e Luis XV.

As Exposições Universais européias fora de Paris também entraram neste domínio como a de Viena, em 1873. Além dos prédios maiores, nesta exposição alguns pavilhões se individualizam, surgindo os pavilhões tem áticos, os pavilhões destinados às personalidades do Império, como o Pavilhão do Casal Imperial, o pavilhão do Duque de Saxe-Cobourg-Gotha e o pavilhão do príncipe Adolf Schwarzenberg e havia ainda as construções exóticas como o pavilhão da Pérsia, a casa de chá chinesa, o jardim japonês, um conjunto egípcio e um grupo de casas camponesas, além dos restaurantes espalhados por diversos pontos. No total, a exposição vienense contava com quase 200 prédios independentes.

A Paris de 1900 marca também, em termos de arquitetura e urbanismo, um novo capítulo na história das Exposições, não apenas em termos de medidas quantitativas, com área e número de prédios muito maiores, mas também com um novo enfoque. Os anos que precedem a Primeira Guerra Mundial correspondem ao florescimento de um tipo de exposição mais vinculado a associações e instituições, que foge ao universo e à filosofia das Exposições Universais. Estas continuam se realizando, sobretudo em países que necessitam afirmar sua identidade

É recorrente se falar em Babel para exprimir os espaços dessas exposições. Não é à toa. A 189

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

convivência destas centenas de prédios em um espaço restrito de uma cidade, com evocações as mais variadas, não deixam de criar, em muitos casos, uma completa confusão.

de guardadas as diferenças principalmente em termos de proporções em relação às Exposições Universais, o papel que coube à arquitetura não foi tão diferente.

Ao mesmo tempo, vivenciar esta experiência era de uma riqueza extrema para as populações do século XIX, quando as informações, imagens etc não se difundiam com a facilidade de hoje.

Em 1908, a título de comemorar o Centenário da Abertura dos Portos às Nações Amigas, realizase, na Praia Vermelha, uma Exposição Nacional para a qual foram construídos grandes prédios – palácios e pavilhões –, além de uma série de outros menores.

Caroline Mathieu cita o Boletim Oficial da Exposição Universal de 1898 onde se lia que “Jules Verne tinha sonhado a Volta ao Mundo em 80 dias. É possível realizá-lo, em 1889, na Esplanada e no Campo de Marte, em seis horas!” (MATHIEU 1989:102).

Outras exposições nacionais já haviam sido realizadas no Rio de Janeiro, mas tinham sido instaladas em prédios já existentes. Na realidade, a Exposição Nacional de 1908 foi a primeira para a qual foi criado um espaço, um cenário, com a construção de prédios destinados especificamente à realização do evento

Aqui, o importante é ressaltar o valor emblemático da arquitetura e uma atitude científica em relação ao passado. A reconstituição pode ser compreendida como uma etapa importante no estudo da arquitetura, formando uma “antologia de estilos históricos”.

A variedade de estilos que aparece nas construções nos dá bem a dimensão do repertório eclético adotado. Como descrevem os guias e relatórios da época havia o Neoclássico do Palácio dos Estados, o Renascença do pavilhão da Bahia e da Sociedade Nacional de Agricultura, a “modernização do estilo clássico” do pavilhão do Distrito Federal, o estilo Manuelino do pavilhão Português, o Egípcio do coreto musical, a “pequena mesquita mourisca”, como é descrito o Pavilhão da Fábrica Bangu, ou mesmo a falta de qualquer rótulo possível, como no caso do pavilhão mineiro que “não tinha estilo definido”. É evidente que essa classificação estilística só faz algum sentido se entendida pela lógica daquele momento, quando os esforços classificatórios eram relevantes e dão conta da análise que era feita da arquitetura.

Isso porque, além da arquitetura construída, as exposições eram fonte de conhecimento e aprendizado de arquitetura uma vez que, em muitas delas, existiram também as seções de exposições de desenhos e modelos de projetos, bem como eram realizados congressos de arquitetos durante os eventos. As exposições representavam também motivação para críticas nas revistas especializadas e debates acirrados sobre os caminhos que a arquitetura deveria trilhar, e a revista editada por César Daly é um ótimo exemplo e uma importante fonte que reafirma este aspecto. Para os arquitetos, era a ocasião de ter diante dos olhos formas e modelos de construção e de distribuição que apenas uma longa experiência em escolas e o contato com revistas especializadas podia oferecer. Os autores Aimone e Olmo dizem então que as exposições funcionavam assim como uma espécie de acelerador de circulação de iconografias e de soluções técnicas (AIMONE, 1993:110).

A filiação arquitetural do que foi produzido está ainda intimamente ligada com o modelo europeu e através de seus exemplares é possível mapear e fazer correlações entre as diversas tipologias e os diferentes “estilos” historicistas que ali se manifestaram e que também marcaram a produção arquitetônica em outros pontos da cidade do Rio de Janeiro, como a Avenida Central.

Representavam, portanto, campo propício e ponto de partida para a discussão, a reflexão, a inovação e a crítica em termos arquiteturais. As exposições representaram também papel de destaque na urbanização das cidades, inclusive em termos de infra-estrutura e serviços. É possível estabelecer relações estreitas entre modernização urbana e arquitetura de exposições.

O único pavilhão estrangeiro, o Palácio Manuelino, trouxe a imagem da colonização, com um estilo que homenageava a época dos grandes descobrimentos, ou seja, da colonização portuguesa em várias partes do mundo. Entretanto, é interessante notar como a tradição colonial brasileira está completamente ausente neste momento. Mesmo os estados como Minas Gerais e Bahia, onde a produção colonial é tão expressiva, se fizeram representar com ares de modernidade, sem qualquer referência ao passado “atrasado”.

* * * Passando às nossas exposições cariocas do início do século XX, em 1908 e 1922, vemos que apesar 190

A arquitetura de Exposições como repertório de formas e tipologias

Isto sem falar do Distrito Federal, empenhado que estava em apagar o passado colonial e valorizar a moderna e civilizada capital de modelo europeu que havia surgido com as reformas de Pereira Passos. Santa Catarina mostrou uma imagem ligada ao passado, mas era um passado recente, da imigração européia do século XIX, desvinculada do período colonial e da escravidão. A valorização do colonial só viria na década seguinte, com o movimento Neocolonial que depois estaria amplamente expresso na Exposição Internacional de 1922.

colonial é apresentado como tendo duas formas básicas, ou dois pontos de vista, apesar de guardar uma unidade: seria o religioso ou ornamental, forma jesuítica, impregnada do barroco, e o popular ou singelo, mais adaptada ao clima, identificada com as construções rurais e a “alma simples do povo brasileiro”. A adoção de uma das duas formas ou a conjugação de ambas é apregoada como “contribuição para a grande obra de nacionalização da arquitetura brasileira. Estas combinações darão ensejo às mais variadas adjetivações como colonial estlilizado, rafiné, de “feição nortista”, e outras. Em qualquer caso, será sempre um colonial modernizado, com nova roupagem, já que uma volta ao colonial, caracterizado desde o século XIX como algo ligado ao atraso, às péssimas condições de higiene e de vida, só poderia ser defensável se o mesmo se apresentasse devidamente reciclado.

A Exposição do Centenário, inaugurada em setembro de 1922, ocupou uma grande área do centro da cidade, que ia do Passeio Público à Ponta do Calabouço e, de lá se estendia até o Mercado Municipal. Foi concebida inicialmente como mais uma exposição nacional, mas tornou-se uma exposição internacional, com participação de diversos países estrangeiros, como França, Portugal, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, México, Itália, Bélgica, entre outros. Nessa grande área destinada à Exposição, foram construídos duas portas monumentais e um grande número de palácios e pavilhões, tanto nacionais quanto estrangeiros. Prédios já existentes, como o antigo Arsenal de Guerra e parte do Mercado Municipal, também foram aproveitados, após sofrerem adaptações.

Como o neocolonial não era visto como um estilo que tivesse fim em si mesmo, mas como uma busca de elementos essenciais para a formação de algo novo, alguns arquitetos alegam que não importava como seria chamado o estilo, mas sim que teria que ser algo novo. O neocolonial estava ligado, pode-se dizer assim, a duas vertentes distintas: de uma parte, a busca por algo novo, afastado da cópia acrítica de modelos existentes, comprometido com a autenticidade e a funcionalidade; de outro, amalgamado ao ecletismo, entendendo este como sinônimo de “indiferentismo”. Na primeira vertente, a busca pelos “elementos essenciais” do colonial, como inspiração para a nova arquitetura, - a adequação ao clima, a adaptação ao meio e à função, a simplicidade, a sobriedade, a verdade, o essencial em detrimento do supérfluo -, apontava o caminho do racionalismo. Na segunda vertente, representaria a última gota no copo já transbordante de um ecletismo desgastado.

Nesta exposição, o ecletismo europeu continua presente, mas dividirá espaço com as manifestações da busca das raízes nacionais, através do movimento neocolonial. Num momento em que a inadequação da arquitetura eclética européia em relação ao nosso clima e às nossas tradições já está no centro do debate entre pensadores e profissionais de arquitetura, alguns dos pavilhões da Exposição vão ter como exigência de edital serem projetados obedecendo “as linhas gerais da arquitetura da época colonial”. O início dos anos 1920 foi marcado por um certo esgotamento de uma maneira de conceber a arquitetura, levando alguns arquitetos a busca de um estilo mais ligado às tradições e ao ambiente brasileiro. A questão do nacionalismo, presente nos debates desde o século anterior, estava agora efervescendo, e sugeria a busca por raízes anteriores ao século XIX, impregnado de um estrangeirismo que precisava ser combatido e superado. Entretanto, o ecletismo era ainda praticado com entusiasmo, estando presente em boa parte dos projetos.

De todo modo, mais uma vez um cenário de exposição serve, de forma pedagógica e sistemática, à produção e ao debate em torno de uma tendência, ao reunir num mesmo espaço várias edificações que suscitam a crítica e a cópia. Como exposição internacional que foi, a Exposição do Centenário contou com sua Avenida das Nações, na qual foram construídos pavilhões de diversos países, trazendo para o centro do Rio de Janeiro expressões arquitetônicas nacionais distintas.

A defesa do neocolonial se apresenta com força, mas não sem uma série de ambigüidades. O 191

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Todos os pavilhões estrangeiros foram construídos ao longo da Avenida das Nações, essa “ala de monumentos que forma hoje, com as ridentes paisagens da Lapa e da Glória, o mais belo recanto da nossa baia”(A EXPOSIÇÃO DE 1922, 1923: n. 12-13). Alguns países, além de um pavilhão de honra nesta avenida, fizeram construir também pavilhões para exposição da indústria mais pesada na Praça Mauá.

De fato, um dos aspectos mais interessantes na análise das exposições é a possibilidade de através de seus exemplares, passando por todos os prédios, dos mais suntuosos palácios aos mais simples quiosques, mapear as diferentes tipologias e estilos que cobriram a prática do ecletismo internacional, no Brasil e, mais especificamente, no Rio de Janeiro do início do século 20. É analisar a Exposição de produtos industriais como uma exposição de arquitetura no sentido de coleção, inventário. Um verdadeiro repertório exemplar de formas e tipologias à nossa disposição.

Interessante registrar como o colonial está presente também em pavilhões estrangeiros: no caso do México, buscando suas raízes nacionais; no caso dos Estados Unidos, buscando uma aproximação com a tradição brasileira, uma vez que o prédio era de caráter definitivo e os americanos quiseram “integrá-lo” à nossa realidade, fazendo uma construção que julgaram adequada à cidade e à sua tradição arquitetônica. É também bastante curioso observar como as descrições de época são condizentes com características dos prédios: minimalista no caso do Japão, rebuscada no caso do México, clássica e contida para os prédios que tinham essas características formais etc.

Referências bibliográficas A EXPOSIÇÃO DE 1922: Orgão da Comissão Organizadora. n. 1-18, 1922-1923. Rio de Janeiro: Tipografia Fluminense, 1922-23. AIMONE, Linda ; OLMO, Carlo. Les expositions universelles 1851-1900. Paris :Belin, 1993. DALY, César (Ed.). Revue générale de l´architecture et des travaux publics. Paris : Ducher et Cie, 1867. MATHIEU, Caroline. Invitation au voyage. 1889: La Tour Eiffel et l´Exposition Universelle. Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1989. PALÁCIO, Pedro. Fundamentos da arquitectura neomedieval. ANACLETO, Regina. (Org). O neomanuelino ou a reinvenção da arquitectura dos descobrimentos. Lisboa: Instituto Português do Patrimônio Arquitectônico e Arqueológico, 1997. p. 2743. PEVSNER, Nikolaus. A history of buildings types. Princeton: PUP, 1976.

* * * A arquitetura de exposições tende a ser associada a um excesso, um clímax, uma exacerbação. A questão a ser colocada é se isso se daria pelos exemplares criados ou pelo fato destes exemplares estarem todos reunidos em um só conjunto. Se pensarmos na frase de Mário de Andrade, quando escreve que “nós já estamos mais ou menos habituados a esta diversidade de estilos que dá à nossa urbe um aspecto de exposição internacional”, vemos a estreita associação entre a diversidade de estilos e o cenário de exposição. A efemeridade característica deste tipo de produção é outro fator de motivação para certas ousadias, graças ao grau de liberdade que propicia.

Notas 1

Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ; Pós-graduada em História da Arte e Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ; Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense e em Museologia pela UNIRIO. É museóloga da Fundação Eva Klabin. É autora de Entre Palácios e Pavilhões: a arquitetura efêmera da Exposição Nacional de 1908. Ro de Janeiro: EBA/UFRJ, 2008.

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Em outubro de 2007, foi formalizada a doação das cerca de 500 obras que compõem a Coleção Brasiliana / Fundação Estudar à Pinacoteca do Estado de São Paulo. Naquela oportunidade, concluía-se um percurso de dez anos de atividades em torno desse acervo, percurso este que se constitui numa experiência bastante singular no contexto do colecionismo no Brasil. O objetivo da presente comunicação é relatar essa experiência, conduzida desde o início por Carlos Martins – artista plástico e museólogo, com significativa atuação na área cultural, tendo sido diretor dos Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro –, e da qual participei como pesquisadora e curadora assistente desde 1997. Até o momento de sua doação, a Coleção Brasiliana era um acervo privado, mantido pela Fundação Estudar, e composto por pinturas, aquarelas, desenhos e gravuras de temática brasileira (como bem indica o adjetivo escolhido para qualificá-la), datadas em sua maioria do século XIX, ainda que compreenda também algumas peças isoladas dos séculos XVII e XVIII. Entre seus autores destacam-se os artistas europeus, que estiveram de passagem pelo Brasil ou aqui residiram, assim como artistas brasileiros das primeiras gerações formadas pela Academia Imperial de Belas Artes. Em grande parte, as obras da Coleção Brasiliana integram o universo iconográfico do que se convencionou chamar de artistas viajantes. Destaco aqui, como exemplos da diversidade de origem, formação e propósitos dos artistas presentes no acervo, o retrato Marquesa de Belas de Nicolas Antoine Taunay (1755-1830), pintor de formação acadêmica francesa, que chegou ao Brasil em 1816 integrando a Missão Artística, e viveu no Rio de Janeiro até 1821; uma aquarela de Benjamin Mary (17921847), diplomata, botânico diletante e artista autodidata, que foi o representante diplomático do Reino da Bélgica no Brasil, autor deste curioso panorama do Rio de Janeiro tomado de Santa Tereza, com cerca de três metros de comprimento; a Natureza morta com flores do pintor brasileiro Agostinho José da Motta (1824-1878), aluno e posteriormente professor da Academia Imperial de Belas Artes; e Enseada de Paquetá de Nicolau Facchinetti (1824-1900), pintor de paisagens de origem italiana, radicado no Rio de Janeiro a partir de 1849. Como é possível notar por essa breve amostra, o acervo possui exemplos significativos dos principais gêneros da arte oitocentista, como o retrato, a pintura de paisagem, a natureza morta, assim como a pintura histórica, representada na Coleção Brasiliana por tela Jean-Baptiste Debret (1768-1848), entre outras.

do privado ao público: a experiência da coleção brasiliana / fundação estudar valéria piccoli

A Coleção Brasiliana teve origem num conjunto de obras adquirido em 1996 dos herdeiros do 193

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

colecionador e antiquário Jacques Kugel (19121985), personalidade bastante conhecida do mercado de arte francês. Nascido em 1912 em Minsk, na atual Bielorússia, Kugel pertencia a uma tradicional família judaica de antiquários, que havia se radicado em Paris a partir de 1925, escapando da revolução bolchevique. Quando da ocupação de Paris pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra, a família sofreria um novo revés, sendo obrigada deixar a França. Para cumprir o plano de fuga, foi imprescindível a astúcia da irmã mais velha de Jacques Kugel, Kila (1908), adida de serviço diplomático. Consta que ela tenha enchido três malas com objetos de arte e jóias e, através de suas conexões, as tenha remetido em segurança para Lisboa, o que permitiu à família estabelecerse na capital portuguesa. Kugel acabaria por casarse em Lisboa com a poetisa Merícia de Lemos (1913-1996).

1997, ela passou a ocupar-se da administração da Coleção Brasiliana e de sua equipe. A decisão de situar a coleção em São Paulo, onde existem poucos acervos com este perfil abertos à visitação pública, foi determinante para o estabelecimento das propostas de atuação em torno da Coleção Brasiliana. A mais importante dessas propostas foi uma deliberada opção por não destinar um edifício próprio para abrigar o acervo, mas, ao contrário, buscar soluções de parcerias com instituições possuidoras de acervos afins. A adoção deste partido (e aqui tomo de empréstimo uma palavra do vocabulário da arquitetura) fundouse na convicção de que é necessário no Brasil trabalhar para o fortalecimento das instituições culturais existentes, tentando evitar, na medida do possível, a dispersão de esforços. Mas, sobretudo, ele diz respeito a um princípio que foi para nós norteador nas mais diversas etapas do trabalho: o de entender este acervo não como um conjunto que se completa em si mesmo, mas encará-lo sempre como parte de um universo iconográfico maior, que só teria a ganhar em sentido no diálogo com outras coleções. Quando da chegada do acervo ao Brasil, a alternativa de parceria que se apresentou como a mais viável foi a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano. Esta instituição, em funcionamento desde 1974, tem sede no bairro do Morumbi em São Paulo, na antiga residência do engenheiro Oscar Americano (1908-1974) projetada, em 1950, pelo arquiteto paulista Oswaldo Bratke (1907-1997). A Fundação Maria Luisa e Oscar Americano possui um acervo de arte brasileira, constituído de mobiliário, prataria e porcelanas, além de esculturas e pinturas de artistas como Frans Post, Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) e Cândido Portinari (19031962). Neste caso, a parceria se deu numa base de permuta, ou seja, a Fundação Estudar construiu uma reserva técnica na sede da Fundação Oscar Americano e, em contrapartida, nos foi permitido usar durante um determinado período de tempo, além dessa reserva, uma sala de trabalho.

Nesses anos de guerra vividos em Portugal, Kugel daria início, então, à aquisição de obras de temas brasileiros das quais nunca se desfaria e que seriam o germe da Coleção Brasiliana. Sabemos que naquele momento, apresentavam-se oportunidades no mercado de arte que propiciaram o incremento e a formação de diversas coleções em vários países do mundo, oportunidades essas às quais Kugel, como um experiente marchand, esteve, sem dúvida, bastante atento. Já de volta a Paris em 1955, encontramos um indício da importância que alcançara então sua coleção na colaboração prestada por ele aos Archives Nationales, organizadores, naquele ano, de uma exposição sobre as relações culturais entre a França e o Brasil desde o século XVI. No catálogo desta mostra, que aconteceu no Hotel de Rohan em Paris, figuram cerca de 30 obras que pertenciam à coleção particular de Kugel, entre elas algumas telas de Frans Post (1612-1680), além de objetos pessoais que haviam pertencido a membros da família imperial brasileira. Destas obras emprestadas por Kugel à exposição France et Brésil, oito integram ainda hoje o acervo da Coleção Brasiliana.

Uma vez definidas as condições para o abrigo da coleção, principiaram também as tratativas para internação do acervo no país, que não vou detalhar aqui, já que envolve uma série de injunções jurídicas. Assim que as peças chegaram a São Paulo, deu-se início a uma série de procedimentos de caráter museológico que visavam preparar a Coleção Brasiliana para ser apresentada ao público brasileiro. Lembro que, do ponto de vista da conservação das obras, uma primeira etapa de trabalho já havia sido cumprida na França, onde as peças que apresentavam condições mais frágeis

Adquirida, portanto, na França em 1996, a coleção ainda inédita no Brasil ingressou no país no ano seguinte em regime de comodato, sob responsabilidade da Fundação Estudar. A Fundação Estudar é uma entidade sem fins lucrativos, que fornece bolsas de estudo e auxílio ao desenvolvimento de carreiras nas áreas de administração e finanças. Trata-se de uma instituição sem perfil cultural, mas que por disposição estatutária foi a figura jurídica que tornou possível a entrada do acervo no país. A partir de 194

A Coleção Brasiliana / Fundação Estudar

de conservação foram restauradas antes da viagem ao Brasil. Em São Paulo, a primeira fase efetivamente de trabalho foi dedicada ao adequado acondicionamento das obras, assim como a providências relativas ao restauro e conservação das demais, da qual tomou parte ativa Ana Paula de Camargo Lima, integrante da equipe naquele momento. Simultaneamente, começou a ser preparada a primeira mostra do acervo, que aconteceu em 1998 na sede da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano.

America, que Ouseley publicou em Londres, em 1852.

Antes de iniciar as etapas de tombamento e classificação do acervo – e aqui passo a me referir mais detalhadamente às atividades de pesquisa – procedeu-se a consultas junto a diversas instituições museológicas para chegar à elaboração de ficha catalográfica adequada ao armazenamento das informações técnicas e de pesquisa sobre o acervo. Da mesma forma, foi configurado um modelo de banco de dados informatizado, habilitado a cruzar informações sobre artistas, obras, bibliografia, exposições, entre outros.

Outro exemplo semelhante para o qual chamo a atenção ocorreu com a retificação de autoria da tela Grande cascata da Tijuca, atribuída na coleção Kugel ao pintor Louis-Auguste Moreau (1817-1877). A obra trazia no verso uma espécie de etiqueta com a seguinte inscrição: “L.A.Moreaux, Lembrança da América”. Além disso, há também uma inscrição legível sobre a pedra na lateral esquerda da pintura, que diz: “A M Moreaux souvenir de la mère de l’eau”. Na nossa citada Lista de óleos, a obra era referida pelo seguinte verbete: “Obra característica deste pintor, irmão de René Moreaux, também ativo como pintor no Brasil. Fixados inicialmente em Pernambuco, desde 1838, embarcaram posteriormente para o Rio de Janeiro, onde morreram”. No entanto, a tela apresentava assinatura e datação visíveis na parte lateral direita, próximo à figura do pássaro: “Araújo, 1833”. Através de estudos comparativos, foi possível notar que a assinatura correspondia à usada por Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879) em desenhos conservados no Museu Julio de Castilhos, em Porto Alegre. Naturalmente, a inscrição sobre a pedra era uma dedicatória e havia sido tomada enganosamente como assinatura da obra.

Por fim, demos início propriamente ao tombamento das obras, durante o qual foi necessário verificar atentamente assinaturas, inscrições, datações, reexaminar, enfim, todos os dados que pudessem contribuir para a confirmação ou contestação de atribuições já assumidas anteriormente. Nesse sentido, lembro que o que tinha sido disponibilizado para a equipe antes da chegada do acervo ao Brasil eram dois volumes encadernados em espiral, um deles denominado Lista de óleos e o outro, Gravuras e mapas. Para ilustrar um pouco o que foi esse processo de tombamento, destaco a aquarela que deu entrada no acervo da Coleção Brasiliana como sendo de autoria do artista inglês David Roberts (1796-1864). Na referência feita a ela no volume Gravuras e mapas, lia-se: “Roberts foi um dos artistas ingleses mais famosos de seu tempo, mais conhecido pelos seus temas orientalistas, como vistas da Síria e do Egito. Esta parece ser a única obra conhecida de Roberts de tema brasileiro”. Na verificação feita no Brasil, retirada a obra de sua montagem original, notouse que a aquarela era assinada no verso com o monograma “WGO”, que constatamos ser do diplomata inglês e artista amador William Gore Ouseley (1797-1866), a quem foi, a partir de então, atribuída a autoria da peça. A imagem corresponde ainda a uma das gravuras do livro Views in South

Eu poderia me estender aqui, já que há vários casos como esses ocorridos no processo de tombamento, que envolveram seja correção de atribuição e/ou datação, seja identificação equivocada de locais representados. Mas cumprida esta etapa de tratamento geral das informações técnicas sobre as obras, que foram devidamente inseridas no banco de dados, chegou-se a uma primeira listagem já mais criteriosa da Coleção Brasiliana. Foi possível, então, iniciar a pesquisa de campo, para o que foi constituída uma equipe de pesquisadores que levaram a cabo um extenso trabalho de coleta de dados junto a museus, bibliotecas e coleções privadas no Brasil, assim como em diversas instituições no exterior, visando a correção de dados biográficos e identificação mais precisa das imagens representadas. Privilegiou-se, da mesma forma, a coleta de imagens de outras obras dos mesmos autores que pudessem situar a peça do acervo da Coleção Brasiliana num contexto mais geral da produção do artista estudado. Entre os membros da equipe de pesquisa, gostaria de nomear especialmente, além da própria Ana Paula, que também fez as vezes de pesquisadora, Renato Palumbo Doria, que por bastante tempo foi uma espécie de “sucursal” da Coleção Brasiliana no Rio de Janeiro, bem como Renata Bittencourt e Gabriela Aidar, que, em etapas

Foi uma pequena exposição de apenas 28 obras, destinada a marcar tanto a parceria entre as duas fundações, como a chegada da Coleção Brasiliana ao país.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Chegamos, assim, a Laudelino Freire, que, em 1916, no livro Um século de pintura, chama Facchinetti pela primeira vez de Nicolau Antonio. Contudo, ainda que a certidão de nascimento de Facchinetti tenha sido publicada como ilustração do texto escrito por Maria Pace Chiavari no catálogo da exposição retrospectiva organizada por Carlos Martins e por mim no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro em 2005, o artista ainda continua sendo chamado de Nicolau Antonio Facchinetti.

diferentes, tiveram um atuação bastante importante no contexto deste projeto. Há também histórias curiosas propiciadas pelo contato com instituições no exterior. Cito aqui o caso da pintura Paisagem com farol, assinada pelo artista alemão Eduard Hildebrandt (1818-1869). Na tentativa de identificar que trecho do litoral brasileiro teria sido registrado pelo artista nessa obra, buscou-se contato com o Kupferstischkabinett do Staatliche Muzeen zu Berlin, Alemanha, onde está conservada a maior parte dos desenhos de sua autoria. Através de um estudo comparativo, foi possível identificar o local representado na obra como sendo um farol em Galle, no sudoeste do Sri Lanka, por onde o artista teria passado no curso da viagem que empreendeu pela Índia, China e Japão, entre 1862 e 1864. A pintura foi realizada, portanto, quase 20 anos após a estadia de Hildebrandt no Brasil.

Decorre de todo esse trabalho conjunto a constituição de um banco de dados e de arquivos de pesquisa abertos à consulta de interessados, e que foram responsáveis por fornecer subsídios para propostas de exposições, publicações e atividades educativas em torno do acervo da Coleção Brasiliana. Nosso foco, nas diversas etapas deste processo, foi tentar definir o valor artístico e histórico de cada obra, trabalho que está documentado no primeiro catálogo publicado sobre a Coleção Brasiliana, Revelando um acervo (São Paulo: BEI, 2000). Nesta edição, contamos ainda com textos de autores convidados, como o historiador holandês e brasilianista Ernst van den Boogaart, que escreveu um instigante ensaio sobre o par de alegorias de América e África que integram o acervo; de Caroline d’Assay, restauradora francesa responsável pela recuperação da Revista das tropas na Praia Grande de Debret, que descreve e documenta o tratamento dado à pintura; do historiador João Hermes Pereira de Araújo, que também aborda a obra de Debret, mas do ponto de vista da descrição do fato histórico; e, por último, de Bernard Jacqué, diretor do Musée du Papier Peint, a antiga manufatura Zuber em Rixheim, na França, que se refere aos métodos de fabricação e comercialização do papel de parede panorâmico Vistas do Brasil, de que a Coleção Brasiliana possui um exemplar impresso em 1829.

Outra dessas histórias diz respeito a um conjunto de 22 aquarelas que documentam uma travessia do Atlântico desde a França, chegando ao Rio de Janeiro e Bahia. Uma das aquarelas era claramente um projeto de frontispíco de livro, onde se lia o título, “Traversée de Toulon à Rio de Janeiro”, e a data, “1837”. Na coleção Kugel, as obras eram atribuídas a um certo Linety, e a leitura da assinatura poderia sugerir de fato que esse fosse o nome do artista. Na tentativa de identificá-lo, contatamos o Service Historique de la Marine Française. Depois de uma intensa troca de correspondências, foi localizado nesse arquivo o dossiê de um marinheiro de nome Jules de Sinety (1812-?), que, a bordo da corveta L’Expéditive, havia participado entre 1837 e 1841 do bloqueio anglo-francês ao Rio da Prata, o que correspondia exatamente aos dados que puderam ser extraídos das aquarelas. Recentemente, tivemos ainda a surpresa de ter sido adquirido no mercado francês um diário de Sinety referente à mesma viagem ao Prata. O comprador argentino entrou em contato com a Coleção Brasiliana no intuito de organizar uma publicação sobre esse marinheiro-artista, que deve vir a público em breve.

Ao conjunto inicial proveniente da coleção Kugel, foram acrescidas, ao longo dos anos, outras obras, com o intuito de que, paulatinamente, as inevitáveis lacunas do acervo fossem preenchidas. Isso motivou a edição de um novo catálogo, publicado em 2006, intitulado Coleção Brasiliana Fundação Estudar. Novamente, colegas historiadores foram convidados a refletir sobre o acervo, organizado, nesta oportunidade, em segmentos temáticos. Os autores deste catálogo são: Beatriz Siqueira Bueno, que escreve sobre a presença da cartografia na Coleção Brasiliana; Vera Beatriz Siqueira, que apresenta um texto sobre “Iconografia e Paisagem”; Rafael Cardoso, que aborda as gravuras dos livros de viagens pitorescas; além de Luciano Migliaccio,

O caso que envolve o nome do artista Nicolau Facchinetti é também elucidativo desse período de correspondências com outras instituições e pesquisadores. A historiadora Maria Pace Chiavari, por facilidades pessoais, conseguiu acesso na Itália ao documento de nascimento deste pintor, natural de Treviso, em que se atesta o nome de batismo “Niccolò Agostino”, o que contesta a historiografia brasileira que tradicionalmente o nomeia “Nicolau Antonio”. De posse desta informação, nos propusemos a retraçar a origem do engano. 196

A Coleção Brasiliana / Fundação Estudar

paisagem do Brasil, assunto tão caro à arte brasileira do oitocentos. Já desde seu processo de conceituação, o projeto de Vistas do Brasil contemplava diversas formas de mediação para atender a diferentes demandas relativas à faixa etária dos visitantes, assim como a graus diversos de interesse e envolvimento com o assunto. Recursos educativos foram então pensados e desenvolvidos pelas educadoras Mila Chiovatto e Gabriela Aidar para estimular a percepção e o prazer do visitante no contato com a arte. As atividades postas em prática envolveram desde o tradicional atendimento ao público por educadores preparados para comunicar conteúdos específicos do projeto (em especial no que tange ao público escolar), a produção de recursos multimídia, folders de visita e áudio-guia. Contamos ainda com a participação de especialistas, convidados a conduzir visitas que propusessem outras abordagens de leitura para a mesma exposição. Este programa, chamado Arte em Prosa, contou com a participação dos artistas Cláudio Mubarac e Sergio Fingermann, da educadora Denise Grinspum, das conservadoras Lucia Thomé e Ana Scaglianti, do curador Felipe Chaimovich e do historiador Jorge Coli. Essa iniciativa foi marcada pela intenção de que a Coleção Brasiliana fosse também um espaço de intercâmbio, e estivesse aberta à interlocução com estudiosos e interessados pela iconografia brasileira do século XIX. Cumprindo um antigo propósito de fazer circular o acervo da Coleção Brasiliana por outros espaços institucionais do Brasil, preferencialmente fora do eixo Rio-São Paulo, esta exposição será remontada em maio de 2008, no Museu de Arte do Espírito Santo, em Vitória.

que se detem nos retratos e cenas históricas presentes na coleção. Quando da elaboração do projeto desta publicação, pretendia-se que o livro pudesse trazer a público uma catalogação completa do acervo. Contudo, após a finalização do catálogo, ocorreram ainda as aquisições dos volumes da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil de Debret e da edição francesa do livro de viagem do príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied (1782-1867), que se somaram então ao conjunto de obras doado posteriormente à Pinacoteca. Em diversas oportunidades, a Coleção Brasiliana foi apresentada de modo abrangente em exposições, caracterizando a contribuição trazida pelo acervo para ampliar o escopo da iconografia dos viajantes sobre o Brasil. Destaco aqui, as exposições ocorridas no Paço Imperial, Rio de Janeiro, em 1999, no contexto da mostra O Brasil Redescoberto, e no ano seguinte na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Da mesma forma, obras da coleção têm sido solicitadas para compor mostras organizadas por instituições culturais no Brasil e exterior. Em 2002, reconhecida sua relevância artística e histórica, a Coleção Brasiliana foi doada em definitivo à Fundação Estudar, e incorporada ao patrimônio cultural brasileiro. Neste mesmo ano, um convênio foi firmado entre a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e a Fundação Estudar prevendo a apresentação de obras da Coleção Brasiliana na Pinacoteca do Estado por meio de exposições de longa duração, sob diferentes recortes temáticos e acompanhadas por programas educativos especialmente elaborados. Estas mostras, além de proporcionarem uma apreciação do acervo da Coleção Brasiliana, tinham também por objetivo oferecer uma introdução à exposição de arte brasileira dos séculos XIX e XX da coleção permanente do museu. Nesse contexto, foram realizadas as mostras Vistas do Brasil (2003-2005) e A figura humana em representação (2005-2006).

A figura humana em representação foi a segunda exposição realizada no âmbito do convênio com a Pinacoteca do Estado e propunha um confronto entre o gênero do retrato, em que a fidelidade ao modelo se apresenta como a condição essencial de seu sucesso, e a figura humana enquanto veículo de idéias abstratas na constituição de pinturas de figuras alegóricas. Um pouco mais modesta com relação à sua antecessora, contudo, esta exposição contou também com recursos multimídia desenvolvidos especialmente para aprofundar alguns conteúdos relativos às obras expostas, principalmente no que se refere às representações alegóricas.

Vistas do Brasil foi um projeto experimental desenvolvido conjuntamente entre a equipe da Coleção Brasiliana e a equipe de Ação Educativa da Pinacoteca do Estado, que se propunha a explorar as possibilidades de interação entre museologia, história da arte e ação educativa. A exposição centrava-se na representação da paisagem brasileira pelos artistas viajantes, tomada na dupla mão da contextualização da prática do registro da paisagem como continuação de uma tradição européia, e da introdução do gênero da paisagem no contexto da arte brasileira. Assim, a exposição investigava os diferentes modelos e intenções que presidiam a representação da

O programa de divulgação do acervo prosseguiu com mostras realizadas também no exterior. Em 2005, a Coleção Brasiliana foi escolhida pelo diretor do Musée de la Vie Romantique em Paris para constituir a exposição sobre o século XIX brasileiro 197

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

no contexto de Brésil Brésils, o Ano do Brasil na França. A mostra La Collection Brasiliana: les peintres voyageurs romantiques au Brésil (18201870) foi apresentada de junho a novembro naquela instituição, que tem como sede a antiga residência do pintor francês de origem holandesa Ary Scheffer (1795-1858). A ocasião revestiu-se de especial interesse, na medida em que caracterizava o retorno de um conjunto de obras que havia sido constituído como uma coleção privada na França, e era apresentada pela primeira vez ao público daquele país. De Paris, a exposição seguiu para Portugal, onde foi mostrada no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, e na Galeria de Pintura do Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Em todas essas ocasiões, obras afins de acervos locais foram adicionadas à exposição, na intenção de estabelecer possíveis diálogos entre obras que se encontram, de outra forma, dispersas.

Por fim, a inauguração da mostra Coleção Brasiliana: versões e narrativas no final de 2007 na Pinacoteca do Estado veio celebrar o momento em que a Coleção Brasiliana passou a pertencer a uma instituição pública. O acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, centrado na produção brasileira de meados do século XIX até a atualidade, foi assim acrescido de um conjunto de obras que amplia significativamente o espectro de sua abrangência temporal. O percurso proposto e pretendido para a Coleção Brasiliana a partir de diálogos e intercâmbios conclui-se assim numa incorporação que, esperamos, possa propiciar sempre a existência de espaços de reflexão e estudo sobre a arte brasileira do século XIX.

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capitulo 5 a crítica de arte, o romance sobre arte, o artista como teórico

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Durante os dezessete anos em que dirigiu a Academia Imperial de Belas Artes, Félix-Émile Taunay implantou diversos projetos. Entre suas investidas bem sucedidas, podemos citar as mais conhecidas, como as exposições gerais de 1840 e o Prêmio de Viagem de 1845. Neste percurso, foram muitas as tentativas, no entanto, de incorporar a Academia ao reduzido grupo de órgãos produtivos do governo imperial, visando, entre outros, a participação das belas artes como veículo de promoção do Estado e da Nação. Com a Coroação de D. Pedro II em 1841 e o início efetivo do Segundo Império, após um longo período de regência repleto de incertezas políticas, há a necessidade natural de se formar um programa nacionalista que corresponda, efetivamente, à instalação de um novo governo. Veremos que se inicia, neste período, o programa voltado à construção de uma idéia de nação já perdida, ou nunca alcançada, no primeiro Império de Pedro I, quando da Independência do Brasil. O segundo Império requeria, necessariamente, a construção da história e da representação visual de uma nação dirigida por um Imperador que, embora filho de Bragança e de Habsburgo, era nascido no Brasil e deveria imprimir o selo nacionalista de uma terra finalmente independente.

félix-émile taunay e a importância do monumento público na academia imperial de belas artes

Sabemos hoje que este programa criado no campo da literatura e das belas artes será quase que inteiramente vinculado à representação do indígena como aquele que, de fato, diz respeito às origens da terra brasileira – seu primeiro habitante – , além de estar inserido, primordialmente, na criação de um conceito intrínseco à formação da nação brasileira: a miscigenação das raças, obedecendo a idéia antes pregada por José Bonifácio. Também nos é conhecido o papel de Manuel de Araújo Porto Alegre e de Vitor Meirelles na construção desta iconografia nacionalista, o primeiro como escritor e articulador deste programa, o segundo como o primeiro pintor de história brasileiro voltado à representação desta nacionalidade.

elaine dias1

É possível, no entanto, retomarmos as origens deste programa por meio das palavras e das ações de Félix-Émile Taunay como diretor da Academia Imperial de Belas Artes. São novamente seus discursos pronunciados2 aqueles que nos dão os instrumentos na compreensão dos primeiros passos tomados na construção da história e da memória nacional. Embora a historiografia não tenha ainda se debruçado no estudo detalhado das fontes que conduziram o pensamento de Taunay em seus 35 discursos proferidos na Academia, convém aqui ressaltar os trabalhos já desenvolvidos sobre a relação de Taunay e o Segundo Império, como os trabalhos de Adolfo 201

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Morales de los Rios Filho3, Francisco Marques dos Santos, Alfredo Galvão e Afonso Carlos Marques dos Santos, cujo trabalho em torno da memória nacional e da “invenção do Brasil” – para usarmos o título de seu livro - foi recentemente publicado no Rio de Janeiro, após seu falecimento. Em sua obra, Afonso Marques dos Santos, no capítulo intitulado “A Academia Imperial de Belas Artes e o Projeto Civilizatório do Império” 4 , trata da importância da Academia dentro do processo de construção da nação, cujo trabalho de Félix-Émile Taunay é fundamental e francamente esclarecido através de seus discursos. Neste mesmo sentido, os trabalhos anteriores de Francisco Marques dos Santos - que igualmente trabalhou com alguns discursos de Taunay 5 - e de Alfredo Galvão 6 , historiadores que se debruçaram sobre o tema nas décadas de 1940 e 1960, são igualmente importantes para o entendimento desta questão.

sucedidas. A escravidão, motor desta sociedade, era, de certo modo, um entrave ao desenvolvimento artístico, menos em razão da inclusão de um escravo negro como modelo vivo – cuja anatomia, ainda que lhe valesse a aprovação ao curso, não indicava, necessariamente, a habilidade das poses - mais em função do caráter retrógrado que a escravidão imprimia à vida social brasileira e impedia, conseqüentemente, o desenvolvimento de uma academia de artes, colocando alguns entraves ao apoio do governo à instituição artística. Como acadêmico e conforme constatamos em seus discursos, Taunay tenta efetivamente mudar a visão da sociedade carioca e do governo quanto à real utilidade de uma academia de artes. Convém ressaltar seus discursos pronunciados nas sessões públicas anuais eram anualmente publicados no Jornal do Comercio, veículo importante de comunicação da academia a uma pequena população de letrados. Além disso, ao lado do Imperador como professor de desenho, pintura de paisagem e língua francesa, Taunay mantém uma proximidade ao poder que, de certo modo, tornase um aliado às suas tentativas. Neste discurso de 1841 e também na Sessão Pública de 1842, além daqueles realizados nos anos posteriores, ele ressalta a necessidade de proteção de sua instituição e de elevação de sua categoria no conceito público, condições necessárias para que esta construção nacionalista - do qual as belas artes têm papel primordial - possa ser colocada em prática. Taunay cita ainda os grandes homens públicos de outrora e o vínculo estabelecido entre sua atuação política e o mundo artístico, sempre numa tática de convencimento ao governo da importância das artes nesta construção. Retoma Alexandre, o Grande, para reforçar seu argumento, através de uma passagem de sua vida retirada de As Vidas dos Homens Ilustres, de Plutarco:

Em 1841, ano, portanto, da Coroação de D. Pedro II, Taunay ressalta em seu discurso realizado na Sessão Pública: [...] acharemos que o papel definitivo de cada nação sobre a terra se resume quase inteiramente na expressão que ela deixa da sua passagem na cena do mundo; depende, em outros termos, da sua literatura e da sua artística, os dois meios pelos quais se perpetuam as tradições dos conhecimentos humanos, a memória dos feitos e as feições das épocas. [...] As Belas Artes, porém, sob a égide de um soberano que as ama e as protege, tem de reclamar parte fraterna neste privilégio do conceito público.” (Sessão Pública da AIBA, 1841) A construção da memória nacional por meio das belas artes não era, contudo, algo fácil de ser assimilado pela corte e pela sociedade brasileira deste período. Vale a pena recordarmos apenas uma das dificuldades em torno do desenvolvimento do ensino artístico dentro da Academia, desde a entrada de Félix no cargo de diretor, isto é, o curso de modelo vivo, o qual refletia inteiramente o caráter de certa forma, colonial, ainda presente na vida social brasileira. O curso, aprovado ainda em 1834, levará ao menos dez anos para desenvolver-se de modo pleno. Não há a profissão no Rio de Janeiro e os poucos “modelos” que se oferecem são “magros”, “idosos” e “estragados”. Os contratados, por falta de um modelo perfeito, são aqueles de “formas moles”, que terminam por servir ao curso até que outro mais adequado apareça. Além disso, as tentativas de Taunay para a inclusão de um escravo negro, “dotado de belas formas artísticas”, segundo nosso diretor, não são obviamente bem

Ó Atenienses, quantos males eu sofro para merecer vossos elogios! Ó Atenienses, a saber, ó artistas e literatos: é para vós, e, por meio de vós, para a posteridade, que eu me fiz com tantas fadigas representante da nacionalidade helênica! (Sessão Pública da AIBA, 1841) A leitura e a inclusão de Plutarco na concepção dos discursos de Taunay é significativa nestes contextos social, político e cultural brasileiros. Basta lembrarmos que será no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, que será criado neste período um programa voltado não só à escrita da história nacional - do qual sairá vencedor Von Martius em sua “Como se deve escrever a história do Brasil”, precisamente em 1844 -, mas igualmente à biografia dos homens ilustres brasileiros, 202

Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na AIBA

programa que se associará, durante estes mesmos anos, à concepção do monumento público brasileiro, da retratística e da produção de bustos, propostos por Taunay na Academia. A rubrica “Brasileiros ilustres pelas ciências, letras, armas, virtudes, etc” aparecerá em 1839 na Revista do IHGB e cumprirá o papel de trazer à tona os homens célebres que formaram a nossa história nos mais diversos campos, desde o período colonial 7 . Concepção ligada ao ideal das luzes, o “grande homem” ou o “homem ilustre” deveria ser recuperado em seu caráter de conhecimento ligado à idéia de progresso e à sabedoria do homem ilustrado formador da pátria. Plutarco é entendido como modelo aos literatos brasileiros, uma vez que sua “As Vidas dos Homens Ilustres” será um exemplo fortemente ligado à construção histórica e literária das nações. Taunay utiliza suas biografias quando quer ressaltar a importância dos grandes homens na relação com o mundo artístico, como Alexandre o Grande ou Péricles, a qual se insere, perfeitamente, no programa destinado à representação visual da nação também por meio da Academia.

entendido como homenagem a determinadas personalidades políticas ou signos do feudalismo, alvo do vandalismo revolucionário – , agora interpretados como agentes de uma memória nacional a ser conservada. Correspondem à história da nação e têm, portanto, a função de instrução. Também Quatremère de Quincy será importante no desenrolar desta questão no período revolucionário, mas através de uma outra via. Ele condenará, em suas célebres Lettres à Miranda9, as chamadas “conquistas” dos objetos artísticos e monumentos públicos pela França no período revolucionário e de guerras napoleônicas. Defenderá, entre outras questões, a noção de que o monumento ou a obra de arte não podem ser desvinculados de seus contextos histórico, geográfico, social e político. Que uma escola artística só pode ser entendida por meio de seu entorno, de seu diálogo com o lugar, de sua ligação ao seu meio físico e humano. A idéia se relaciona, de certo modo, à noção que ganha corpo com Alexandre Lenoir, embora Quatremère condene, nestes escritos, a idéia de museu, central em Lenoir. No entanto, há uma forte relação entre os dois pensamentos, isto é, a idéia de que o monumento público deve ser preservado em razão de sua inerente relação com a memória nacional, veículo, portanto, da educação de uma nação.

Seguindo esta via, Taunay elabora o seu programa dentro do “programa”. Ano a ano, mostra como deve ser realizada a construção histórica desta nação que se inicia. Para ele, o lugar primordial é a cidade. A capital deste novo Império deve ser a porta voz da glória nacional e, para tanto, o Rio de Janeiro deve se desenvolver, seja através da construção de edifícios, seja através do planejamento urbano. O monumento público tem uma função primordial nesse sentido. Ao mesmo tempo em que representa visualmente uma passagem histórica e traduz os grandes feitos políticos, construindo a memória nacional e educando o povo através de sua composição, ele está inserido no espaço público da cidade, contribuindo não só para o sentido moral de sua existência, mas igualmente para o embelezamento da cidade.

Para Taunay, esta noção de educação através das belas artes, do monumento público – fundamentalmente relacionada ao pensamento francês – nasce da união da beleza física com a beleza moral. A arquitetura e a escultura cumpririam, assim, papéis de excelência à execução desta idéia. Ao discutir esta questão, Taunay retoma os escritos do filósofo francês Victor Cousin, editor de Descartes e tradutor de Platão na França, autor, entre outros de Histoire de la philosophie au XVIIeme siècle, em 1829 e Du Vrai, du Beau et du Bien, editado em 1851 a partir de seus escritos anteriores. Taunay se valerá, sobretudo, de sua obra Cours de philosophie professé à la Faculté des lettres pendant l’année 1818 par Monsieur Victor Cousin sur le fondement des idées absolues du vrai, du beau et du bien, publicado entre 1839 e 1842, e do artigo « Du Beau et de l’Art ». publicado em 1845 na Revue des deux mondes. Para Cousin, “la fin de l’art est l’expression de la beauté morale à l’aide de la beauté physique”10, idéia central ao discurso de Taunay. A observação das belas formas naturais, própria ao artista – segundo Taunay nos descreve no discurso de abertura do ano escolar de 1843 – relacionase, assim, aos ideais de virtude e patriotismo, portanto, ligadas ao exemplo moral, princípios que são fundamentais à concepção do monumento

A noção de memória nacional vinculada ao monumento público é algo caro à cultura que nasce com a Revolução francesa, da qual Félix-Émile é filho. Os atos iconoclastas levados a cabo neste período obtiveram uma resposta definitiva através da concepção da idéia de patrimônio e de preservação dos objetos artísticos, da qual Alexandre Lenoir tem um papel fundamental. Frente às ações iconoclastas, fará o resgate de diversas obras para um depósito particular, mais tarde autorizado a se transformar em Musée des monuments historiques8. Será ele, portanto, uma figura importante na transformação da noção de monumento público – muitas vezes apenas 203

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

público. Para Taunay, o artista seria o responsável por um grande “serviço à sociedade”, justamente por unir o belo físico ao belo moral ao representar as ações virtuosas da sociedade, citando direta e indiretamente as teorias propostas por Cousin. Em outras ocasiões, como nos discursos da abertura do ano escolar de 1842 e 1846, Taunay citará o mesmo autor, recuperando justamente o ensaio Du Beau et de l’Art: “o maior dos artistas é, sem dúvida, o homem de bem o qual, expressando pelas suas obras a justiça e a caridade, produz a mais tocante revelação do belo, a que comove logo até às lagrimas a generalidade dos homens”. Nesse sentido, continua Taunay,

Ao chegar um viajante a qualquer cidade, achase favoravelmente predisposto pelo aspecto de grandiosos monumentos, cada um dos quais parece indicar uma qualidade no povo, religião, respeito ao soberano e a justiça, hábitos de ordem, gosto esclarecido. (Sessão Pública da AIBA, 1842) Na questão dos viajantes, da memória através do monumento e da importância do modelo grego, Taunay cita François-René Chateaubriand, Alphonse de Lamartine e Victor Hugo. Curioso é notarmos que tanto Chateaubriand quanto Lamartine são dois autores vinculados ao préromantismo na França. O primeiro, autor de Atalá (1801) e Le Génie du christianisme (1802), será aquele a levantar a relação do homem com a grandiosidade divina da natureza nestes dois romances. Sua viagem aos Estados Unidos e Canadá em 1791 evocam a inspiração à aventura, ao selvagem e ao puramente natural, idéias já caras ao pensamento de Rousseau. Os ideais da beleza, da melancolia e do sentimento serão os motores de seus dois romances, publicados quase que simultaneamente. Já Lamartine, que era conhecido por seu fervor ao cristianismo e sua fé católica, será o autor de Méditations poétiques (1820) e de Harmonies poétiques et religieuses (1829), considerados dois escritos cruciais à manifestação do romantismo na França pós-Chateaubriand. Os dois autores podem ser, no entanto, reconsiderados dentro da história do romantismo francês e de sua aproximação à antiguidade, em razão de duas obras aqui citadas por Taunay. O Itinéraire de Paris à Jérusalem et de Jérusalem à Paris, en allant par la Grèce, en revenant par l’Egypte, la Barbarie et l’Espagne publicado em 1811, aborda a questão do antigo no Oriente e a importância da Grécia em relação ao monumento público. Taunay ressalta que Chateaubriand compara os monumentos de Roma e de Atenas, de como os primeiros são “grosseiros” em relação aos segundos, perfeitos na harmonia e na grandeza. E que os monumentos da França são considerados bárbaros se comparados aos de Roma. Chateaubriand evoca a grandiosidade dos monumentos na Grécia e diz que a única arte da França, a qual pode ser tomada como genuína, é a arquitetura gótica, considerada uma “arquitetura natural”, nascida em seus altares11. Já Lamartine, em Souvenirs, impressions, pensées et paysages pendant un voyage en Orient, 1832-1833 ou Notes d’un voyageur, publicada em Paris em 1835, conta sua admiração pela Grécia e outros países do Oriente, sendo esta obra considerada um divisor de águas em sua fervorosa relação com o catolicismo e, por sua vez, com o romantismo.

ao menos relativamente à utilidade atual, quero dizer, a propaganda da moralização e da virtude, é certo que os monumentos, melhor que os livros, generalizam a fama dos fatos heróicos, e melhor suprem esse admirável instrumento da infância das sociedades, a tradição. Segundo ele, os monumentos são incontestáveis produtos das belas artes e o Brasil apresenta uma propensão inegável à sua execução. O modelo grego é primordial para a elaboração destes projetos, não apenas no que diz respeito à questão da moralidade e da virtude, mas também à forma. A discussão proposta por Taunay envolve claramente a grandiosidade do modelo antigo, sua íntima relação com a arquitetura e sua contraposição ao gótico, em voga neste período na Europa. Para ele, a arquitetura se achará onde existe a ciência das proporções, o que equivale a dizer que ela se acha na escola grega, a qual estudou as proporções em geral sobre o exemplar de proporções mais perfeito que se nos oferece, o corpo humano, [que] aplicou à arquitetura os resultados de observação, os princípios ali colhidos. (Sessão Pública de 1843). No reforço a esta idéia, e inserindo-se numa discussão que ocorre na Europa neste período – portanto contemporânea a ele -, Taunay utiliza-se, no discurso da Sessão Pública de 1843, de alguns “dos mais afamados viajantes e escritores modernos” para reforçar sua argumentação acerca da importância da antiguidade em contraposição ao retorno ao gótico, também na valorização do monumento público. Para Félix-Émile, o monumento exerceria não só função educativa à nação, em primeira instância, mas também ao viajante, conceito caro ao século XIX europeu e americano: 204

Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na AIBA

para a arquitetura e a escultura. Segundo ele, “para o estudo da arquitetura não há senão uma escola, a Grega; por que é a escola mestre das proporções, a irmã gêmea da estatuária” (Sessão Pública de 1843). Os exemplos são anualmente citados no reforço da importância do modelo grego para a construção do monumento público no Brasil. Discorre sobre as mais importantes cidades da Europa e sua efetiva relação com o modelo grego, as quais servem de exemplo ao caso brasileiro. Para Taunay, a cidade do Rio de Janeiro e seu Império americano iria se igualar a Paris, Roma ou Atenas. A França, neste caso, seria a legítima herdeira do mundo antigo, seguindo a linha de Roma e a herança da Grécia Antiga. Em relação à Itália, ressalta a maneira da arquitetura de Buschetto de Pisa na construção da catedral pisana, realizada a partir das colunas antigas e materiais preciosos ali presentes, como o mármore e o granito. Na análise deste exemplo, Taunay retoma certamente a fonte de Quatremère de Quincy em sua Histoire de la vie et des ouvrages des plus célèbres architectes, publicada em 1830, fonte que será usada em discursos posteriores. Quatremère, retomando a Storia della Scultura do Conde Cicognara, esclarece que Buschetto utilizouse de materiais que dispunha das ruínas das termas ou do Palácio de Adriano, onde estava a antiga catedral, desmentindo a lenda de que os materiais haviam sido trazidos da Grécia pelos pisanos por meio de viagens marítimas. A maneira de Buschetto será essencial à retomada do modelo grego em outras cidades italianas, que igualmente irá engrandecer seus monumentos públicos tendo em vista o exemplo do mundo antigo.

Taunay cita-o na seguinte passagem de sua obra para elevar o modelo grego12: Os Propileus, diz ele, o templo de Erechtheo, o Pandroseum, estão ao pé d’aquele templo: obras primas também, mas apagadas pela vizinhança de outra obra prima superior! A alma, como que adormecida por uma impressão nimiamente enérgica ao aspecto dos primeiros, d’esses edifícios, não tem mais força para admirar aos outros. Cumpre vê-lo e ir-se, lamentando menos a devastação d’essa obra sobre humana do homem do que a impossibilidade em que o homem se acha de igualar jamais a sublimidade e harmonia dela. O gótico é belo, mas faltam-lhe a ordem e a luz: luz e ordem! Estes dois princípios de criação eterna! Adeus para sempre o gótico! (Sessão Pública da AIBA, 1843) Como defensor do gótico, Taunay cita Victor Hugo e sua Notre Dame de Paris, obra de 1831, sem mais considerações, apenas ressaltando o “entusiasmo” ao gótico na França neste período. Este entusiasmo estava levando até mesmo à criação de sociedades defensoras da Idade Média, que tentam explicar, segundo Taunay “as figuras e ornatos ridículos e obsessos da sua plástica”. Há aqui uma citação indireta a Marc-Antoine Laugier em seu Essai sur l’Architecture, publicado em 1753 13 , onde em muitas passagens exibe o confronto entre a arquitetura gótica e a arquitetura clássica. Laugier será um arquiteto caro aos neoclássicos, base importante aos trabalhos de Boulée, Ledoux, e de outros arquitetos formados no período revolucionário, como o próprio Grandjean de Montigny.

O exemplo de Buschetto em Pisa e sua circulação às cidades italianas é mais um reforço à tomada do modelo antigo na construção de edifícios e monumentos no Rio de Janeiro. A arquitetura é, para Taunay, “a sábia distribuidora a quem elas [a pintura e a escultura] devem o brilhantismo de sua aparição” (Sessão Pública de 1843). A idéia da arquitetura como a primeira das artes, defendida por Taunay em toda sua trajetória, tem neste trecho, além de uma referência indireta à discussão renascentista levada a cabo por Giorgio Vasari em suas Vite e Benedetto Varchi em seu célebre texto, Due Lezzione, tem também uma clara referência ao universo francês, principalmente se pensarmos no papel da Academia real de arquitetura desde o século XVII, como bem ressalta André Chastel em sua monumental obra sobre a arte francesa. Além disso, Taunay parece remeter seu pensamento a Diderot em seu Essai sur la peinture, publicado em 1765 como um apêndice ao Salão daquele ano. Diderot destaca no trecho “Mon mot sur

Em relação às sociedades criadas, ele não cita quais são elas, mas é possivelmente a Société des antiquaires de Normandie, fundada em 1824 por Arcisse de Caumont, o qual iniciou a revalorização do gótico na Normandia. Ao mesmo tempo, pode também se referir à Commission des Monuments Historiques fundada em 1837 e dirigida por Prosper Mérimée, inspetor geral desta Comissão. O papel de Viollet le Duc se intensifica nesse período, ao lado de Mérimée, sobretudo no restauro de diversas catedrais, como a própria Notre Dame, cujo sucesso do romance de Victor Hugo tem um papel importante, além daquelas de Carcassone e do Mont Saint-Michel. Taunay insere-se, desta forma, na discussão contemporânea acerca da valorização do gótico, posicionando-se a favor do modelo grego, preponderante à criação dos monumentos públicos no Brasil e, em primeira instância, modelo perfeito 205

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

l’architecture”, a importância desta arte em relação às demais. Para ele, trata-se apenas de dizer brevemente que “sans architecture, il n’y a ni peinture, ni sculpture; et que c’est à l’art, qui n’a point de modèle subsistant sous le ciel, que les deux arts imitateurs de la nature doivent leur origine et leur progrès”14. Que a pintura e a escultura devem seu nascimento à arquitetura e que é necessário, imperativamente, que o arquiteto domine o desenho. Esta questão se repetirá, como já afirmamos, em muitos dos discursos de FélixÉmile.

fato, daria maiores possibilidades de emprego aos arquitetos formados na Academia. O tema será novamente discutido na abertura do ano escolar de 1845, relacionando-o à utilidade das belas artes ou leia-se, da arquitetura. Nesse aspecto, a afirmação envolve necessariamente uma comparação com o campo da engenharia na Repartição das Obras Públicas do Rio de Janeiro, o qual detém o poder sobre as construções de edifícios públicos e monumentos na cidade. Diz Taunay que “só os artistas podem dar a cada construção com a sua conveniente distribuição interna, o seu verdadeiro caráter exterior.” Segundo ele, o arquiteto é aquele que pode “coadjuvar os fins da civilização”, pois é ele quem confere a “augusta primazia do soberano”, a beleza dos edifícios nacionais, a hierarquia dos poderes que ali residem e a indicação do seu uso público, tradutoras do respeito ou da submissão.

Nesse sentido, Taunay denuncia, ao defender o papel da arquitetura no Rio de Janeiro, que existe na cidade uma prática voltada a uma suposta economia, na construção de casas “sem arquitetura, hábito este que tem passado até a edificação dos monumentos”. Ressalta a falta de planejamento na realização dos orçamentos, feitos sem conhecimento e dados incorretos, os quais levam a erros de execução e “fantasias” na distribuição “desregrada dos ornatos dos frisos e cimalhas”, que igualmente levam a gastos excessivos quando se queria pensar, supostamente, na economia ao não se chamar um arquiteto. Com isso, Taunay inicia todo um discurso relativo a uma alternativa na construção a partir da exploração de materiais brasileiros para a realização das arquiteturas:

A idéia do monumento que “honra e premia a virtude”, que deve ser grandioso em sua concepção, conquistou em 1845 o apoio do deputado Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, que advogou a causa das belas artes e da importância do monumento público no Brasil. O deputado, irmão de José Bonifácio de Andrade e Silva e, portanto, de características notadamente liberais, seria um aliado poderoso a Taunay na mudança de percepção social e política acerca da instituição acadêmica e sua utilidade ao governo, não fosse sua morte neste mesmo ano de 1845. Ainda que Taunay encontrasse poucos aliados à execução de suas idéias, as tentativas de produção de monumentos públicos, a atuação do arquiteto e do escultor, o engrandecimento da cidade, continuarão recebendo reforços, sempre na tentativa de convencimento das bases legislativas do governo imperial. No discurso de abertura do ano escolar de 1847, ele nos diz:

A opinião é muito esclarecida para que me demore em mostrar quanto importa à capital de um vasto Império favorecer o desenvolvimento das Belas Artes, quando foss somente sobre a luz da fecundação futura por elas de muitos ramos da indústria nacional. A respeito das vantagens atuais que traria a intervenção de bons, estudiosos e diligentes arquitetos, uma só delas apresentarei; e uma que instantaneamente enriqueceria o aspecto da cidade, e também criaria ou tiraria do berço uma indústria muito interessante, da qual tem aparecido amostras: havendo já entre nós dois oficiais no mesmo ramo, um americano, outro italiano, este hoje ocupado na pedreira de S. Cristóvão. Quero falar da preparação dos granitos e mármores brasileiros, os quais sendo polidos dispensariam vantajosamente o luxo pueril da pintura exterior, fingindo mármores. Os granitos custariam mais, é verdade, polidos que picados. Mas que diferença quanto à beleza e mesmo quanto à duração! (Sessão de Abertura do Ano Escolar da AIBA, 1844)

Dizer S. Pedro, o Vaticano, etc, não é dizer Roma? O Campo Santo, a Torre inclinada, Pisa? O Louvre não é Paris? Versailles, a França? S. Pedro, Londres ? Os monumentos são sinônimos da glória dos países, são, em certo sentido, para os viajantes sobretudo, o país mesmo, o que fica do país na sua lembrança. Admira, portanto, que os viajantes, compenetrados da beleza e grandeza dos monumentos que viram em vários lugares, se conservem, ao mesmo tempo, perfeitamente indiferentes sobre a origem, tão necessária de se saber, sobre a causa eficiente da existência dos mesmos monumentos. Diz-se (cousa verdadeiramente prodigiosa entre entes dotados de inteligência!) que o espetáculo das

Taunay traça um panorama destes materiais e de seus lugares possíveis de exploração no Brasil, algo que facilitaria a execução dos monumentos e, de 206

Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na AIBA

investida da autoridade suprema. (Sessão de abertura do ano Escolar da AIBA, 1847)

maravilhas da natureza tornou alguns, incrédulos na existência de uma causa suprema. Dar-se-á também que a contemplação das maravilhas artísticas tornasse a alguns incrédulos na realidade da arte? Serão também os monumentos obras do acaso? E far-se-á preciso, em contraste com uma opinião tão absurda, ainda proclamar esta verdade trivial: os monumentos são feitos pelos artistas e somente por eles! (Sessão de abertura do ano escolar da AIBA, 1847)

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O exemplo das grandes cidades européias e de suas grandes arquiteturas está diretamente relacionado à cidade do Rio de Janeiro, que deve também buscar sua arquitetura, o monumento que a ela diretamente se relacione e que corresponda à sua grandeza. Taunay aqui se utiliza novamente do conceito de viajante, o qual, a partir de sua visita e contemplação das belezas de um país, faz circular as informações acerca do mesmo, assim como o caráter histórico ligado à proposta do monumento. Mais ainda, Taunay toca em outro ponto, que é o papel do artista nesta produção, levantando novamente a discussão acerca das funções destinadas ao arquiteto e ao engenheiro das obras públicas na cidade do Rio de Janeiro. É preciso, no entanto, que o artista tenha o apoio do governo nesta empresa. Neste mesmo discurso, Taunay citará o exemplo de Péricles em Atenas, de Carlos V e sua relação com Tiziano, de Luis XIV e o engrandecimento da França promovido em seu reinado, e até mesmo os Médicis15, que embora considerados por Taunay como inferiores aos demais por seus vícios e crimes, foram também protetores das artes e, de certa forma, considerados maiores que alguns grandes homens da política. Taunay pretende, assim, que o governo exerça o mesmo papel outrora exercido na Europa, chamando a atenção do Imperador Pedro II à utilidade da Academia brasileira, ao mecenato das artes, instrumentos de engrandecimento de um país, como ele bem tenta provar no início de 1847: Quis, ao contrario, dar a entender quanta glória espera os reinados legítimos e moralizadores, se uma proteção esclarecida fizer com que as Belas Artes prestem as brilhantes refrações do seu prisma aos atos de uma administração sábia e generosa, de uma política feliz por moderada e constante; e se o poder de manifestação do belo visível, com toda a sua encantadora magia, servir de intérprete ao amor, a boa vontade mútua e simpatia pode promover entre os homens a virtude nativa 207

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

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Notas 1

Pós-doutoranda em Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (FAU-USP, Fapesp). 2 Os discursos de Félix-Émile Taunay estão incluídos nas atas acadêmicas da antiga Academia Imperial de Belas Artes, documentos estes conservados no Museu D.João VI, na EBA-UFRJ, no Rio de Janeiro. Os discursos proferidos por Taunay nas Sessões Públicas anuais eram também publicados no Jornal do Commercio. 3 MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942. 4 SANTOS, 2007. Esse mesmo artigo pode ser também lido em SANTOS, 1998. 5 SANTOS, 1942. 6 GALVÃO, 1968. 7 ENDERS, 2000: 41-62. Nota-se ainda que será publicado em 1847 o livro “O Plutarco Brasileiro”, por João Manuel Pereira da Silva, reeditado em 1868 como Os Varões ilustres do Brazil durante os tempos coloniais. 8 LENOIR, 1796-1797. 9 QUATREMÈRE DE QUINCY, 1989. Suas cartas foram originalmente publicadas em 1796. 10 COUSIN, 1845 : 774. Ver também COUSIN, 1839-1842. 11 CHATEAUBRIAND, 2005 :181. 12 LAMARTINE, 1874-1880 ; e também LAMARTINE, 2004 : 54-55. 13 LAUGIER, 1753. Ver também CHASTEL, 1993. 14 DIDEROT, 1993. 15 Taunay usa a biografia dos Médicis escrita por Alexandre Dumas. Ver DUMAS, 1999.

208

Pretendo apresentar aqui uma reflexão sobre o lugar dos artistas visuais e estudantes de belas artes no ambiente cultural republicano nas últimas décadas do século XIX no Brasil. Esta apresentação é fruto de um texto que tem origem em minha tese de doutorado, defendida em 2006 na UFRJ, no qual analisei as trajetórias artísticas e obras dos artistas positivistas Décio Villares e Eduardo de Sá. Décio Villares, principalmente, teve grande participação nos debates que envolveram o mundo artístico neste período de transição para a República.2 Em função das intervenções deste artista por mim estudado e preocupada em analisar esse período de transição política é que me sensibilizei a compreender este ambiente de inconformismos, insubmissões, euforia patriótica e adesismos ao regime republicano. Na análise percebe-se que movimentos de contestação ao sistema artístico oficial já se manifestam alguns anos antes da República ser instituída. Quero mostrar que esse período de transição situado no final do século XIX, no que tange ao ambiente das belas artes, não foi isento de debates, de paixões políticas, de profundas transformações institucionais e de mudanças de mentalidades acerca das artes.

“queremos o fim da academia que não se ocupa das artes” - insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a república no brasil

Intento mostrar também que os artistas descontentes com a mentalidade meritocrática do Império não estavam sozinhos. Militares, escritores, jornalistas, estudantes os acompanhavam em manifestações públicas e organizadas em prol de mudanças institucionais e nos mecanismos que regiam a relação cidadão-Estado.

elisabete leal1

Ao estudar este período de transição política me o famoso episódio deparei com “ModernosXPositivistas” ou a “Revolta dos Insubmissos” que envolveu acaloradamente grande parte dos artistas e estudantes de belas artes no Rio de Janeiro. Tenho como finalidade aqui analisar essa manifestação. Percebe-se que na historiografia da arte, que chamarei de clássica, para não chamar de tradicional, é corrente a idéia de que o período áureo das belas artes no Brasil foi durante o mecenato de Pedro II. 3 Grande parte dessa produção encerra suas análises no período de chegada da República ou resume que, com o novo regime, mais nada aconteceu no âmbito artístico. Se alguns trabalhos avançam para além de 1889, normalmente o fazem destacando que a reforma por que passou o ensino artístico com a instalação da República apenas concretizou a mudança do nome de Academia Imperial de Belas Artes para 209

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

construção de idéias importantes para os anos subseqüentes, quando estourou a revolta dos alunos da Academia Imperial em 1890, são elas:

Escola Nacional de Belas Artes, com o agravante de que o mecenato oficial cessara.4 Pesquisa nos jornais cariocas do século XIX revelou que o inconformismo e desejo de reforma da Academia Imperial vinha se mostrando já desde meados da década de 1880, exemplificado na Exposição Livre de alunos em 1886 e 87. Estas exposições livres foram uma resposta à não realização das tradicionais Exposições Gerais de Belas Artes, canceladas desde 1884.5 O assunto sensibilizou a imprensa, que teve opinião positiva sobre a iniciativa particular, já que a Academia não cumpria seu papel, deixando os alunos “desesperados” pelo “indiferentismo” do governo quanto às artes. 6 Já neste momento os alunos mobilizados eram vistos com simpatia, era “a luta da mocidade que freqüenta a Academia”7, dizia um jornal; e o professor de escultura Rodolpho Bernardelli era visto como revolucionário, dado o avanço dos trabalhos de seus pupilos.8

1.que as proteções pessoais nas artes eram inaceitáveis, pois geravam injustiça, e por conseqüência, revolta; 2.que Rodolpho Bernardelli era um revolucionário; 3.que os alunos deveriam se coligar e fazer uma gritaria contra o governo; 4.que ou a Academia se reformava ou fechava suas portas; 5.e que dois grupos estavam constituídos, os a favor e os contra a Academia.12 Havia também artigos defendendo o resultado do Prêmio Viagem, argumentando que o princípio do favoritismo era louvável, que os críticos dos jornais não tinham condições de julgar, que Bernardelli e Zeferino eram ingratos e que era inacreditável a Princesa Regente ter seu favorito e influir no resultado.13 Com o debate instituído na imprensa e provavelmente discutido de forma acalorada nos cafés e “em frente à espuma dos chopes”, usando uma expressão de Vera Lins,14 estavam lançadas as bases da revolta dos insubmissos.

A falta de uma exposição pública das obras dos alunos facilitava a prática abominada de favorecimentos pessoais em detrimento da qualidade técnica do artista; isto valia para as premiações, para a contratação de professores, para a compra de obras de arte e para a escolha do bolsista na Europa. A ausência de mecanismos transparentes e justos que revelassem os que tinham mérito artístico se mostrou no concurso do Premio Viagem de 1887. Diariamente saíram nos jornais, no mês de novembro deste ano, artigos indignados com o escândalo do possível favorecimento do aluno vencedor. Neste concurso, Rodolpho Bernardelli se colocara como defensor dos alunos, criticando a capacidade da comissão da Academia Imperial em avaliar trabalhos em pintura histórica e questionando a cedência do prêmio a Oscar Pereira da Silva. A imprensa chegou a insinuar que o artista era protegido da Princesa Regente e que, por isso, vencera o concurso.9 Para Bernardelli e parte da imprensa, Belmiro de Almeida era o melhor, mas não se tornou aluno bolsista na Europa às expensas do Prêmio Viagem. A atitude, desafiadora, de alguns artistas e críticos que se opunham ao resultado foi efetiva: Rodolpho Bernardelli, Angelo Agostini e Rodolpho Amoedo concederam uma bolsa de estudos a Belmiro para que fosse se aperfeiçoar na Europa, conforme julgavam ser justo. 10 Belmiro partiu em 1888. 11 Estes são fatos já bem conhecidos por aqueles que estudam os artistas ou o período que cito. Eu os trago apenas para recompor a trajetória da revolta no meio artístico em fins do XIX.

Além das Exposições Livres dos Alunos, as exposições particulares que se intensificaram entre 1887 e 1889 também são demonstrativas do desejo da ampliação do campo artístico para além do círculo oficial da Academia. Exemplo dessa demanda é a criação do Atelier Moderno, em 1889. Um atelier privado, inédito no Brasil, criado especialmente para exposições artísticas, com cuidados de iluminação inclusive, onde vários artistas expunham e vendiam suas obras. 15 Menos de uma semana após 15 de novembro de 1889, ocorreu uma grande reunião dos “homens de letras e jornalistas” no foyer do jornal/revista Variedades, para redigir um manifesto de adesão à República, criar uma subscrição para erguer um obelisco a Tiradentes, no local da forca, e organizar uma passeata em comemoração ao novo regime. Durante o ano de 1890, outras reuniões foram feitas visando consolidar uma organização representativa do grupo, destinada a definir uma legislação sobre a propriedade literária e tratar dos interesses econômicos da classe. 16 No mesmo período, reuniões de artistas também ocorriam visando regulamentar o meio profissional. Os artistas Décio Villares, Montenegro Cordeiro e Aurélio de Figueiredo se opuseram a essa regulamentação na área e tentaram neutralizar a petição que outro grupo de artistas †pintores, desenhadores, escultores, gravadores e arquitetos †enviou ao

Notou-se nos artigos de jornais sobre o Prêmio Viagem de 1887 que, neste momento, ocorria a 210

Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

Ministro do Interior, Aristides Lobo, em dezembro de 1889.17 Os requerentes, entre eles Rodolpho Bernardelli, Amoedo, Estevão Silva, Fachinetti e outros, reunidos em três sessões, redigiram o requerimento que reivindicava os seguintes pontos:

se estabeleceu apenas pelas regras do artístico, quero pensar também a regência do político. Já na esperada primeira exposição republicana, aberta em 26 de março e encerrada em abril de 1890, a ausência de Villares e Aurélio foi notada. “Foi com magoa que notei a lamentável ausência dos dous pintores brasileiros dos mais distinctos, Décio Villares e Aurélio Figueiredo, arredados da Academia por prejuízos de seita, que sou, aliás, o primeiro a respeitar” 20, dizia o articulista da Coluna Flocos, publicada no Correio do Povo. Entre os boatos de que os estatutos da Academia seriam reformados, surgiu o de que se chamaria Congresso de Pintura e Arquitetura e de que também já havia o projeto positivista que a extinguia, criando um ensino livre de artes.

1. a obrigatoriedade do ensino de desenho em todos os níveis escolares, 2. a exigência de que operários das oficinas do governo tivessem noções de desenho, 3. a proteção profissional aos habilitados a darem aulas de desenho, 4. o direito de somente arquitetos e engenheiros construírem edificações. Rafael Cardoso mostra que o ensino técnico e industrial, cuja base eram as disciplinas de desenho, tinha na Academia Imperial uma situação ambígua, dividindo as opiniões e balizando sua política institucional. Ora a instituição fundava aulas noturnas, voltadas para a formação de artífices, ora encerrava as disciplinas de gravura de medalhas ou de desenho de ornatos e figuras. A baliza dessas tendências era a divisão nas artes entre útil e belo, entre a formação de um artífice ou de um artista, que para o autor era fruto de uma contraposição positivista.18 Tomo a liberdade de acrescentar que a leitura que os brasileiros fizeram do positivismo contribuiu para a institucionalização do ensino mais profissionalizante ou prático. Villares, de cunho positivista mais ortodoxo, visava manter o ensino nos ateliês em uma relação de mestre e aprendiz, abolindo o ensino acadêmico.

O Salão de 1890 foi muito controverso, pois os professores que compunham a comissão julgadora Pedro Américo, Domingos de Araújo e Silva e João Maximiliano Mafra teceram severas críticas aos trabalhos dos participantes, afirmando que entre as 300 obras expostas avultavam as mediocridades, que tinham dificuldades em atribuir os prêmios e que após cinco anos de espera por uma exposição oficial, ela deveria ser menos pobre e decepcionante. Críticas sobraram para os professores Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo, que participavam, mas não concorriam. 21 Viu-se que décadas antes vinha se formando a idéia de que a salvação da Academia estava na mudança de seu quadro docente. Os professores antigos – os velhos – deveriam se aposentar e dar lugar aos novos. Nos jornais, Rodolpho e Henrique Bernardelli, Antonio Parreira, Rodolpho Amoedo, Eliseu Visconti, todos com quadros expostos no Salão de 1890, eram chamados os novos. Com a República, esse conflito de gerações se acirrou, e é possível que a crítica da comissão julgadora do Salão o refletisse. Mas é possível também que a crítica fosse eminentemente artística, fruto de um diálogo estético interrompido entre os velhos mestres e seus pupilos, muitos destes expondo suas obras feitas no estrangeiro que demonstravam o entusiasmo por novas tendências plásticas, ainda que acadêmicas, principalmente Amoedo, segundo Migliaccio.22

É possível que a petição dos artistas, com um caráter nitidamente regulatório e de proteção à profissão de “desenhadores”, portanto extensivo a todos os artistas, fosse uma tentativa de prevenção às idéias de Miguel Lemos e Teixeira Mendes sobre a liberdade das profissões e contra os privilégios dos títulos acadêmicos e regulamentações profissionais, que vinham sendo publicadas desde o início do século XIX.19 Com esse desacordo no meio artístico quanto aos rumos profissionais estavam estabelecidas as bases de uma disputa que diz respeito não apenas ao campo das idéias, ideologias e política institucional, mas também pessoal. Rodolpho Bernardelli e Décio Villares foram amigos quando estudantes de belas artes, porém a divergência e tentativa de liderança no campo artístico os colocou em situação de disputa. Quero aqui discutir essa disputa apenas porque ela é importante para compreendermos os desdobramentos no campo artístico e no estabelecimento de suas lideranças. Longe de pensar ingenuamente que este campo

Na imprensa, especialmente na Gazeta de Noticias e na Revista Ilustrada, os elogios aos expositores eram abundantes, principalmente a Rodolpho Bernardelli, que era visto como operando um Renascimento artístico no Brasil. As críticas negativas a ele e Amoedo vinham do Diário do Commercio, expressas nos artigos de um certo Cosme Peixoto23, pseudônimo que chegou a ser considerado do Centro Positivista, pela 211

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

coincidência das iniciais e pelos elogios aos trabalhos de Villares e Aurélio, expostos em um Barracão no Largo de São Francisco.

estudá-los. Não é meu objetivo aqui apresentar nem discutir os três projetos, apenas mostrar as estratégias políticas dos artistas visuais no início da República. Não estou interessada em qual projeto era o melhor, nem qual artista venceu a disputa, mas estou muito preocupada em não reproduzir a dicotomia reducionista de que havia Modernos e Positivistas em duro embate.

Em 17 de junho de 1890, Aurélio de Figueiredo presidiu uma reunião de alunos-artistas, sem a presença de Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo e Décio Villares, ou de qualquer outra autoridade da Academia, em que foi questionada a utilidade da Academia Imperial, assim como a qualidade de seu corpo docente. Na ocasião também elencaram algumas propostas a serem encaminhadas pela classe artística. A primeira proposta não causou maior discussão, e concluíram que a Academia era nociva às artes e inútil; no entanto, os presentes se dividiram quanto à quarta proposta, de criar oficinas de belas artes em vez de manter a Academia. A votação desse ponto foi adiada.24 Diante do perigo de que tema de tal monta ficasse restrito à discussão de alguns artistas e um grande grupo de alunos, quatro dias depois, os professores Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo conduziram uma outra reunião, agora com a presença de Villares, que a secretariou. Nesta havia uma aliança entre grande número dos principais artistas do Rio de Janeiro visando pressionar o governo para que a Academia passasse por alguma reforma. Aurélio colaborava emprestando seu Barracão-atelier para sediar o recolhimento de assinaturas dos aderentes da idéia.25

Aguardando assim as providências do Governo Provisório, o grupo de artistas lançou na imprensa um apelo de subvenção para cursos públicos e gratuitos, que seriam temporários, pois, dizia o artigo, o General Benjamin Constant prometera resolver o problema do ensino artístico.27 Vê-se assim que a montagem do Atelier Livre era uma medida provisória de pressão política junto ao governo, não de iniciativa de Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo apenas, como costuma ser afirmado na historiografia, mas uma ação conjunta de todos os artistas, inclusive Villares, visando aguardar as providências do Governo Provisório quanto aos projetos de reforma do ensino artístico em discussão pela categoria. Entro então na parte principal de meu texto em que quero discutir o já tão citado tema neste Colóquio sobre a revolta dos insubmissos da Academia. Procuro analisar tal episódio sob dois ângulos: o de Gonzaga Duque e o de Frederico Barata. Entendo que ambos são construções discursivas que merecem cuidados metodológicos no tratamento. Se os textos de Gonzaga Duque – o romance Mocidade Morta – por ser romance nos coloca a interrogação dos limites da ficção para pensar as possibilidades do passado, o de Frederico Barata – embasado no relato autobiográfico de Eliseu Visconti nos impõe pensar sobre a incorporação de memórias em nossos trabalhos historiográficos.

A união, assim, de todos os artistas, inclusive dos positivistas, e de alunos e professores demonstrava uma estratégia de enfraquecimento e desqualificação da Academia, além de seu abandono, visando obter um posicionamento do governo provisório republicano e do Ministro da Instrução Publica, que ainda não havia se manifestado. A tática funcionou, pois, em 25 de junho, Benjamin Constant recebia Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Aurélio de Figueiredo, Manoel Teixera da Rocha, Baptista Castagneto, Francisco Ribeiro e Pardal Mallet.26 Nota-se que Villares não foi mencionado, mas é provável que também estivesse presente. Havia neste período uma grande animosidade da imprensa com o Centro Positivista, ao qual o nome do artista era associado e, por isso, omitido de eventos que participava. Nesta reunião, três projetos de Reforma dos Estatutos da Academia Imperial foram apresentados ao Ministro Benjamin Constant: o de Rodhofo Bernardelli (escolhido pelo governo), o de Décio Villares (que propunha a extinção da Academia) e o de Pardal Mallet. O Ministro prometeu que iria considerar os três projetos de reforma e montar uma comissão para

O fim dos oitocentos e os primeiros anos republicanos foram um período dos jovens. Renato Lemos mostrou como os jovens da Escola Militar da Praia Vermelha, deixando de ser crianças, começavam a viver como atores sociais, projetando um futuro e também formas de transformação da sua realidade. Para essa juventude militar, o cientificismo, para uns, e, para outros, o positivismo eram referencial da visão de mundo e de intervenção social.28 Um grupo de jovens literatos, inicialmente liderados por José do Patrocínio na folha abolicionista Cidade do Rio, foi analisado por Ana Ferracin da Silva. A autora percebeu que essa geração boêmia da década de 1880 ficou caracterizada pela imagem de um literato militante, cuja literatura e exercício jornalístico eram vistos como “campo privilegiado de intervenção política, 212

Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

onde a pena era antes de tudo uma arma dotada de forte poder transformador”29, dizia ela.

No romance, Gonzaga Duque resume o inconformismo daquela geração que se sentia alijada dos acessos que a Academia poderia proporcionar, além da impetuosidade juvenil que tomava para si a tarefa de transformar seu mundo circundante. A ação transformadora se daria por meio do Zut. Camilo sugere a Agrário que fosse agremiar seus colegas artistas para fazerem o Zut e vão buscar o apoio de Julião Vilela (o personagem de Villares), que era visto como um artista independente, pois havia abandonado a Academia e se formado na Europa. Agrário se colocava como o autor da idéia: “Eu no entanto rebelava-me contra a Academia, procurava realizar o meio prático de abafá-la, de aniquilá-la; fundaria ateliers livres e retiraria do ensino oficial os mais adiantados discípulos, despertaria a atenção do público para os nossos esforços com exposições anuais, levantaria nossa profissão...” 36 Julião Vilela prontamente se dispôs a colaborar com essa proposta. Villares era considerado por esse grupo um natural artista insubmisso, pois ousara abandonar a academia, ganhar prêmios na Europa, recusar o cargo de professor na Ècole de Beaux Arts de Paris e voltar ao Brasil como artista consagrado, além de ter bom trânsito entre pessoas importantes, como o próprio Benjamin Constant, por exemplo. Com isso, Gonzaga Duque sentencia então a participação de Villares nos eventos: “O Julião vai propor ao governo a fundação de ateliês livres, já tem projeto pronto.”37

Gonzaga Duque, também integrante do Partido Abolicionista liderado por José do Patrocínio, iniciou sua carreira muito jovem, e suas propostas estéticas “se articulam com um projeto político específico e um programa de modernidade estética e social para o Brasil, com o qual artistas contemporâneos estavam comprometidos”30, diz Paula Vemeerch. Na obra de Gonzaga Duque me aterei no romance Mocidade Morta. Para Alexandre Eulálio, este romance é uma crônica de grupo (de uma mocidade), um balanço da geração de uma época e um impiedoso retrato coletivo.31 Ângela de Castro Gomes mostra que Gonzaga Duque publicou Mocidade Morta dois anos após a controversa fundação da Academia Brasileira de Letras. Esta Academia, tal qual a Academia de Belas Artes, era “situada como um lugar avesso ao progresso estético e ao engajamento político das novas gerações de artistas”32 e também tinha seus “velhos”, representados por Machado de Assis. O romance situa-se entre os anos de 1886 e 1888 e tem como foco a articulação de um movimento que o autor chamou de Zut! (Basta! Chega!). Em que pese ser uma obra de ficção, podem-se sobrepor os personagens do romance aos artistas da época. Alexandre Eulálio, ao analisar a estrutura narrativa da obra, informa que tal trabalho de identificação foi realizado com o auxílio de contemporâneos, amigos e familiares de Gonzaga Duque.33 Tal justaposição de nomes nos fornece maior segurança na utilização do romance, mesmo que os personagens pareçam ser às vezes caricaturais.

Vêem-se nas falas dos personagens de Mocidade Morta alguns elementos que reportam a eventos que envolveram os jovens artistas no final dos oitocentos, como os ateliês livres, as reuniões de artistas, as exposições independentes e um projeto para o ensino das artes. O autor, não pensava em reformar da Academia, mas em aniquilá-la por meio de ações independentes e conjuntas dos artistas. O que chama a atenção ainda é que Gonzaga Duque não atribuiu a liderança do movimento para a formação do Atelier Livre a Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo e Zeferino da Costa, como comumente a imprensa e a historiografia o faz; eles nem sequer têm personagens fictícios no romance. Agrário e Camilo são os cabeças da idéia e buscaram o apoio de Julião Vilela. Preocupado, assim, com a autoria da revolta do Zut, Gonzaga Duque se questionava em 1897: “Quem havia criado essa revolta? Quem a fizera?...”38 O próprio romance era uma tentativa de resposta...

Tal movimento, levado por “os novos” ou “os insubmissos”, tinha como liderança o próprio Gonzaga Duque (Camilo Prado) e Belmiro de Almeida (Agrário de Miranda), participando ainda os artistas-alunos Isaltino Barbosa e Firmino Monteiro (ambos Sabino Gomes), Benevenuto Berna (Lossio), Maurício Jubim (Franklin) e Arthur Lucas (Artur de Almeida).34 Eles se voltavam contra os professores da Academia Imperial, “a falange gloriosa”, cujo principal representante era Pedro Américo (Telésforo). “Uma tarde, nas colunas da folha explodiu o Zut. Camilo soltou o primeiro grito num ousado folhetim, escalpelando condições antiestéticas do meio fluminense e, sob a ironia fundibulária da sua prosa, apresentava o Zut como um – bando rebelde – proclamando a liberdade absoluta das escolas, salvando e dignificando a Arte.”35

Em 1907, Gonzaga Duque retomou o assunto da revolta dos insubmissos e esclareceu um pouco mais a participação de Villares nos eventos. Coerente com a narrativa de Mocidade Morta, ele 213

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

situa o início da revolta dos alunos contra o arcaísmo dos regulamentos da Academia Imperial em fins de 1887. O autor, junto com um grupo de artistas alunos da Academia Imperial identificados com as idéias de extinção da Academia e de formação de Ateliês Livres como alternativa ao ensino oficial vigente, recorreu ao apoio de Villares para implementar a renovação no ensino artístico, pois este tinha prestígio, experiência e possuía amizades e simpatias de “dinheirosos”. O artista aceitou colaborar, mas a parceria durou pouco. “Após duas ou três solemnes conferências, a que assistiram pessoas que nos podiam coadjuvar, começou [Villares] teimosamente a nos exigir orientação positivista nos projectados cursos! Estava perdida a nossa esperança.”39

do aranheiro. Agora eu passo para uma outra narrativa do mesmo episódio. O livro Eliseu Visconti e seu tempo foi elaborado a partir de entrevistas de Frederico Barata com o artista e publicado em 1944, logo após a morte do entrevistado. 42 Em algumas de suas páginas, o autor relata os eventos de revolta dos alunosartistas que precederam a reforma da Academia Imperial em 1890. Percebeu-se que, neste trabalho, o autor criou uma confusão cronológica sobre os eventos, reduziu o inconformismo artístico do final dos oitocentos à proposta de reforma da Academia Imperial, fundou uma dicotomia entre os artistas envolvidos e, segundo pesquisas de Ana Maria Cavalcanti, inventou a nomenclatura “Modernos.” 43 Em que pese, tais problemas na construção dessa narrativa, é interessante observar a forma como Frederico Barata, por meio das lembranças de Eliseu Visconti, apresentou a versão da polêmica dos Modernos X Positivistas, da criação do Atelier Livre e seu Salão e da proposição de projetos de reforma da Academia Imperial.

Pela narrativa de Gonzaga Duque, o positivismo de Villares foi o ponto de desacordo e de rompimento do artista com esse grupo de alunos insubmissos. No entanto, o Atelier Livre, que na narrativa de Gonzaga Duque parece ter sido sua idéia, foi montado pelo outro grupo, o de Rodolpho Bernardelli, e o crítico não se inclui na iniciativa. Diz ele: “Estava perdida a nossa esperança. Desistimos da tentativa e desanimados, cada qual foi tratar de sua vida como poude. [...] A debandada foi tristíssima.”40 Segundo Gonzaga Duque, outros alunos, apoiados por Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo, freqüentaram o Atelier Livre no Largo de São Francisco, no barracão que serviu de espaço para a exposição da tela de Aurélio de Figueiredo, A Redenção do Amazonas, o também signatário do projeto de extinção da Academia Imperial. Villares apoiou a iniciativa, juntando-se a Rodolpho Bernardelli, o que acabou por finalmente frustrar as expectativas de Gonzaga Duque.

O livro foi publicado após a morte de vários artistas envolvidos nos acontecimentos e em um período em que o positivismo estava em franca decadência cultural, portanto, bastante combatido pelos intelectuais brasileiros, processo já evidente nos anos de 1930. Segundo Frederico Barata, em meados de 1889 os professores Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo abandonaram a Academia para apoiar um grupo de alunos rebelados que montaram o Atelier Livre, no Largo de São Francisco. O professor Zeferino da Costa não abandonou a Academia, mas colaborou no Atelier. Esses, os Modernos, monopolizavam as simpatias da imprensa e ganhavam apoiadores – professores que davam aulas de pintura, artistas feitos que davam conselhos e apoio moral e patrocinadores que pagavam as despesas. Estes últimos eram alguns dos que haviam feito a subscrição para Belmiro de Almeida ir estagiar na Europa, que me referi anteriormente. Tal grupo tinha como alunos mais ardorosos Eliseu Visconti, Fiúza Guimarães e Rafael Frederico, que abandonaram as aulas da Academia. Segundo Barata, os Modernos nada tinham de revolucionários quanto à estética; mesmo seu principal mentor, Rodolpho Amoedo, continuava sendo artista acadêmico. Quanto aos anseios de mudança no ensino das artes, o grupo dos Modernos visava a uma reforma ampla nos estatutos da Academia, dando maior liberdade de didática aos professores, renovando sua direção e restabelecendo o Prêmio Viagem.44

Em 1907, o crítico lamentava a falta de sucesso do projeto de Villares, muito sério e útil, ainda que calcado nas idéias comtistas. Lastimava também a promulgação do projeto de Bernardelli, que era a manutenção de um ensino oficial para as artes, semelhante ao das Academias da Europa, semelhante à própria Academia Imperial. O texto Aranheiro da Escola, escrito por ocasião da abertura do Salão de 1907, servia para criticar as atitudes de Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo quanto à falta de transparência na escolha do júri para aquele concurso e a manutenção do nepotismo e da guerra de ambições na Academia. Usando os eventos da reforma da Academia como exemplo e integrando o grupo de insubmissos que se rebelava contra o sistema clientelista e bajulador,41 o crítico entendia que a reforma de Rodolpho Bernardelli parecia promissora em 1890, porém, em 1907 ele estava emaranhado na teia

Os positivistas eram os mais radicais, defendiam a extinção da Academia e pareciam diferentes “mas 214

Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

no fundo, eram os mesmos depositários fidelíssimos do espírito da Missão Francesa”45, dizia Barata. Eles também eram insubmissos, até mais que os Modernos, porém ficaram apenas no plano das idéias e não das ações. Para Barata, os positivistas Décio Villares, João Montenegro Cordeiro e Aurélio de Figueiredo não eram contra o ensino acadêmico, apenas desejavam ampliá-lo aos alunos mais desfavorecidos e garantir emprego aos artistas no magistério das artes; para isso, não bastava somente reformar os estatutos da Academia, como queriam os Modernos, mas era necessário modificar a base do ensino artístico.46

Cavalcanti também tratou do tema abordado por Barata e chegou a uma importante conclusão: o autor cunhou o grupo dos insubmissos liderados por Rodolpho Bernardelli de Modernos à revelia das denominações usadas na época. 48 Ela evidenciou que a imprensa se referia aos insubmissos como os Novos, termo também usado por Gonzaga Duque, designando, portanto, todos os artistas que eram contra o sistema da Academia, inclusive Villares. O uso do termo Novos para nomear todos os envolvidos nos acontecimentos da revolta colocaria Modernos e Positivistas lado a lado, ainda que com projetos diferentes. O uso do termo Modernos leva o leitor de Barata a pensar que, por oposição, os Antigos (ou os Atrasados) eram os positivistas, criando uma falsa noção dicotômica.

Para pressionar o governo, os professores da Academia Rodolpho Bernardelli e Amoedo e um grupo de alunos a abandonaram e fundaram o Atelier Livre. O governo, por seu turno, não resistiu à revolta e acabou por nomear esses professores para montar um projeto de reforma da Academia. Barata conclui que a vitória dos Modernos foi completa.

Colocados lado a lado evidencia-se que são diferentes os personagens das duas obras que tratam desse mesmo evento, como pode ser visto na Tabela I, no final do texto. Percebeu-se, nas diferentes versões sobre os insubmissos contra o sistema de ensino artístico, que cada grupo ou personagem reivindicava a primazia das idéias de reforma ou extinção da Academia e também a autoria e liderança do Atelier Livre. É possível notar, nos relatos biográficos e em narrativas memorialísticas de políticos, militares, escritores e artistas que viveram a passagem do século XX e os anos iniciais de República, um tom ufanista acerca daqueles tempos, em que esses narradores se colocavam como os protagonistas das mudanças e os autores das idéias, normalmente projeções que homens no final da vida tinham de sua juventude. Isto parece ter ocorrido também vom nossos artistas aqui citados.

O primeiro problema evidenciado na descrição de Barata é quanto ao período dos acontecimentos: o autor situa a disputa entre os Modernos X Positivistas nas vésperas republicanas e mais adiante no texto refere-se à insubmissão como ocorrida em 1888.47 A polêmica artística tratada por Barata ocorreu em fins de 1889 e ao longo de todo o ano de 1890; era um movimento de pressão para reinstitucionalizar a Academia em moldes republicanos. O segundo ponto a ser discutido é uma certa simplificação dos eventos de forma a concluir com a vitória dos Modernos. Viu-se que, já desde meados do século XIX, os estatutos da Academia vinham sendo questionados e sua inoperância respondida por ações independentes, como a exposição dos alunos em 1886 e 1887 e as exposições particulares. Percebeu-se também que Villares esteve presente nas reuniões de artistas que originaram a instalação do Atelier Livre e também Aurélio de Figueiredo, que cedeu seu Barracão para montá-lo. Segundo Gonzaga Duque, Villares foi uma liderança importante no movimento dos insubmissos, que acabou se unindo aos Modernos. Com isso, entende-se que Barata, com o intuito de mostrar a vitória dos Modernos, visto que o relato teve como fonte de informação um dos integrantes, eclipsou a participação dos positivistas nos eventos contestatórios.

Notas 1

Doutora pelo PPG de História Social da UFRJ. Vicepresidente da ANPUHRS, gestão 2006-2008. Este texto é uma versão levemente modificada de minha palestra no I Colóquio Nacional de Estudos sobre a Arte Brasileira do Século XIX e justifica-se o tom coloquial do mesmo. 2 LEAL, Elisabete. Filósofos em Tintas e Bronze: arte, positivismo e política na obra de Décio Villares e Eduardo de Sá. Rio de Janeiro: PPGHis-UFRJ, 2006. 3 GALVÃO, Alfredo. Resumo histórico do ensino das artes plásticas durante o Império – A influência benéfica e decisiva do Imperador D. Pedro II. Revista do IHGB – Anais do Congresso de História do Segundo Reinado. 1. v.. Rio de Janeiro, 1984; MELLO Jr. Donato. As exposições gerais na AIBA no 20. Reinado – sua importância artística e a presença do D. Pedro II. Revista do IHGB – Anais do Congresso de História do Segundo Reinado. 1. v.. Rio de Janeiro, 1984; FREIRE, Laudelino. Um século de pintura. Época de desenvolvimento - quarto período: 18891916. http://www.pitoresco.com/laudelino

Um terceiro problema imprescindível de discussão foi a ratificação da dicotomia Modernos X Positivistas. Ao analisar o conceito de modernidade nos discursos sobre a Academia, Ana Maria 215

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 4

obrigatório no Paraná. 1885; LEMOS, Miguel e MENDES, Teixeira. A obrigatoriedade do ensino. 1886; LEMOS, Miguel. A liberdade espiritual e o exercício da Medicina. 1887. IPB 20 Flocos. Correio do Povo, 14.03.1890. 21 FREIRE, Laudelino. Um século de pintura. Época de desenvolvimento – quarto período: 1889-1916. O parecer da Comissão está transcrito quase na íntegra. http:// www.pitoresco.com/laudelino 22 Existe grande controvérsia na historiografia e crítica de arte sobre as origens do modernismo no Rio de Janeiro e São Paulo. Alguns contestam que esses alunos da AIBA, ainda com uma produção no final dos oitocentos afinada com o academicismo, já estivessem produzindo rupturas estéticas. Para Migliaccio, Rodolpho Amoedo era a liderança da renovação estética na passagem para o século XX, até mais que os irmãos Bernardelli. MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O Mestre, deveríamos acrescentar. MARQUES, Luiz (org.). 30 mestres da pintura no Brasil. São Paulo: MASP. 2001. p. 32-33. 23 Cosme Peixoto era o pseudônimo de Carlos de Laet, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Era católico fervoroso e professor do Colégio Pedro II. Monarquista convicto, na República discursou a favor da manutenção do nome do Colégio em homenagem ao Monarca e foi exonerado. Até 1888 escrevia textos na coluna Microcosmos, do Jornal do Commercio, inclusive criticando “os descalabros do positivismo ortodoxo”. No Diário do Commercio, em 1890, escrevia muitos editoriais. www.academia.org.br. Sobre a participação de Carlos de Laet na fundação da ABL consultar: RODRIGUES, João Paulo C. S. A dança das cadeiras – literatura e política na ABL. Campinas: Unicamp, 2001. p. 44-48. 24 Reunião de artistas. Diário do Commercio; 17.06.1890. Gazeta de Noticias. 17.06.1890. 25 Artes e artistas – reunião de artistas. O Paiz. 21.06.1890; 22.06.1890. 26 MALLET, Pardal. Pela Academia III. Gazeta de Noticias. 26.06.1890. 27 Artes e artistas – Cursos de Belas Artes. O Paiz. 26.06.1890. 28 LEMOS, Renato. Benjamin Constant – vida e história. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. p. 271-272. 29 SILVA, Ana Carolina Ferracin da. Entre a pena e a espada: literatos e jacobinos nos primeiros anos da República. Campinas: Unicamp. 2001. p. 5-6. (Dissertação de Mestrado) 30 VERMEERSCH, Paula F. Por uma arte brasileira: a pintura acadêmica no final do segundo Reinado e a crítica de Gonzaga Duque. Rotunda. Campinas. n. 2, agosto de 2003. p. 23. ________ Notas de um estudo crítico sobre A Arte Brasileira, de Gonzaga Duque. Campinas: Unicamp, 2002. (Dissertação de Mestrado) 31 EULÁLIO, Alexandre. Estrutura Narrativa de Mocidade Morta. GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta... p. 278. 32 GOMES, Ângela de Castro. Os intelectuais cariocas, o modernismo e o nacionalismo: o caso de Festa. LusoBrazilian Review. v. 42. n. 1. 2004. p. 85. 33 EULÁLIO, Alexandre. Estrutura narrativa de Mocidade Morta. GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta... p. 289-290. 34 GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta... p. 88-89. 35 Id., Ibid.. p. 80. 36 Id., Ibid.. p. 48. 37 Id., Ibid.. p. 153. 38 Id., Ibid.. p. 226.

DURANT, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva, 1989. p. 62 e GUIMARÃES, Argeu. Auréola de Victor Meirelles. Rio de Janeiro: IHGB, 1977. p. 122-124. 5 Exposição de Bellas Artes. O Paiz, 08.08.1886; Bellas Artes. A Vida Moderna, 21.08.1886. 6 Salão de 1886. Província do Rio, 03.08.1886. 7 Exposição de Bellas Artes. Diário de Notícias, 02.08.1886. 8 Bellas Artes. O Paiz, 09.08.1886. 9 Prêmio – protestos dos professores da Academia. Novidades. 11.11.1887.; De palanque. Novidades. 19.11.1887. 10 As críticas á AIBA vindas de São Paulo também se direcionavam ao Prêmio Viagem, entre outras. O governo do Estado criou em 1892 um Prêmio próprio, destinado exclusivamente aos paulistas. Sobre o assunto ver: CHIARELLI, Tadeu. A EBA vista de São Paulo: instrumentalizando a instituição a partir de um nacionalismo de viés paulista. 180 anos da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. 11 Um acto de R. Bernardelli – Carta e subscrição a Belmiro de Almeida. Revista Ilustrada, 07.04.1888. 12 De palanque. Novidades, 10.11.1887; GUANABARINO, Oscar. Artes – Academia de Bellas Artes. O Paiz, 10.11.1887; Bellas Artes – Premio. Revista Ilustrada, 13.11.1887; FRIVOLINO. Scena XVIII. A Época, 13.11.1887; GUANABARINO, Oscar. Artes – Academia de Bellas Artes. O Paiz, 10.11.1887; VERON. Academia de Bellas Artes – A Sereníssima Princeza Regente. 15.11.1887; Notas – Premio Viagem. Gazeta da Tarde, 15.11.1887. 13 Prêmio - protesto dos professores da Academia. Novidades, 11.11.1887; Premio Viagem. A Época, 13.11.1887; Microcosmo. Jornal do Commercio, 13.11.1887; Chronica da Semana. Gazeta de Noticias, 13.11.1887; Noticiário. O Paiz, 15.11.1887; Academia de Bellas Artes. Jornal do Commercio, 16.11.1887. 14 LINS, Vera. Gonzaga Duque – a estratégia do francoatirador. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1991. p. 21. 15 Bellas Artes – Atelier Moderno. Diário do Commercio, 16.06.1889; Bellas Artes – Atelier Moderno. Gazeta de Noticias, 14.07.1889; Ecchos Fluminenses – Atelier Moderno. O Paiz, 15.07.1889; Bellas Artes – Atelier Moderno. Revista Ilustrada, 20.07.1889; 27.07.1889; 07.08.1889; 17.08.1889 e 1.08.1889; Bellas Artes – Atelier Moderno. Diário de Noticias, 13.09.1889. 16 Homens de letras. Diário do Commercio, 21.11.1889; Jornal do Commercio, 21.11.1889; 18.05.1890; O Paiz, 07.05.1890; 08.05.1890; 15.05.1890; Diário de Noticias, 05.06.1890. 17 Estudo de desenho. Diário do Commercio,. 05.12.1889, 09.12.1889, 21.12.1889; Floccos. Correio do Povo, 09.12.1889. Os artistas que participaram da reunião foram os seguintes: Rodolpho Bernardelli (Relator), Rodolpho Amoedo (Relator), Facchinette (Presidente), Valle Souza Pinto, Teixeira da Rocha (Secretário), Vasconcelos (Secretário), Souza Lobo (Relator), Estevão Silva, Vilas Boas, Rocha Fragoso. 18 DENIS, Rafael Cardoso. A academia Imperial de Belas Artes e o ensino técnico. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. p. 181. 19 As primeiras publicações da IPB sobre o assunto foram estas: MENDES, Teixeira. Contra a criação de uma Universidade. 1882; OLIVEIRA. J. Mariano. O ensino

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Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil 39

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Id. Ibid. p. 27-37. Id. Ibid. p. 29-37. 47 Quando li pela primeira vez o livro de Frederico Barata fiquei muito intrigada com as datas apresentadas para os eventos dos insubmissos. Perguntava-me se tal movimento teria ocorrido ainda na Monarquia. Pareciame que um movimento de rebelião e questionamento institucional por que passava a Academia combinava mais com os ânimos republicanos. Quando fiz a pesquisa nos jornais cariocas publicados neste período, consultei todo o ano de 1888 e não encontrei informação alguma sobre o assunto. Concluí que aquele primeiro jornal consultado não tratou do assunto. Assim, pesquisei no AEL-Unicamp os jornais Gazeta da Tarde (MR1587), Gazeta de Noticias (MR967), Jornal do Commercio (MR 1389) e Revista Ilustrada (MR 837), e nada foi encontrado com relação ao tema. O mistério se avolumava, e passei a consultar os jornais publicados em 1889. As primeiras notícias sobre o projeto de Villares apareceram em dezembro deste ano. Acrescentei então à pesquisa os jornais O Paiz (MR1082) e Correio do Povo (MR2114) e a estendi a 1890, quando o movimento dos insubmissos se acirrou. 48 CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. O conceito de modernidade... p. 34 e 40.

Id., O aranheiro... Id., Ibid.. 41 A exposição do quadro Rendição de Uruguaiana, de Pedro Américo, e a atitude e elogios dos visitantes, ficcionada em Mocidade Morta, revelam um pouco das críticas de Gonzaga Duque ao sistema bajulador e clientelista em que a Academia estava envolvida. GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta… p. 15-28. 42 Uma conversa que tive com Mário Barata, em 2005, na sede da Associação Brasileira de Imprensa – Rio de Janeiro revelou que seu tio, Frederico Barata, havia feito durante anos uma extensa pesquisa nos jornais cariocas sobre a polêmica Modernos X Positivistas, mas perdera a pasta com todas as suas notas. É possível que ao escrever o livro Eliseu Visconti e seu tempo, o autor tenha contado então apenas com suas memórias e a entrevista com Visconti. 43 CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. O conceito de modernidade e a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Relatório Final de Bolsa de Recém-Doutor EBA/UFRJ/CNPq. 2001. Agradeço à autora pela gentileza da disponibilização de seu texto inédito, que foi fundamental para a confirmação de minha pesquisa. 44 BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1944. p. 29-37.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

I- Parreiras: tradição e autoria Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860-1937), pintor fluminense, tornou-se um dos mais singulares de sua geração, um paisagista inconfundível, mesmo tendo iniciado sua carreira tardiamente para os padrões da profissão, apenas aos 23 anos de idade – idade em que se matriculou na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, para abandonála um ano depois, de acordo com o que nos parece ser a mais completa biografia disponível a respeito do pintor. 1 Em realidade, este fato torna sua trajetória ainda mais impressionante, se o compararmos a um outro grande vulto das artes plásticas do século XIX, Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), o qual, por volta dos 10 anos de idade já integrava como desenhista uma missão científica francesa em sua região natal, a Paraíba e aos 15 anos já ingressara na Academia. Sabe-se que Parreiras, talvez por que teve uma formação oficial esporádica, sem o rigor e a rigidez constantes do ensino acadêmico, por assim dizer, e por ter no gênero paisagístico aquele em que mais tempo despendeu, somente veio a interessarse por um gênero mais anedótico, social, como o histórico, p. ex., decorridos, praticamente metade de sua vida profissional. As ilustrações para a sua autobiografia, intitulada História de um pintor contada por ele mesmo (1926), nosso objeto de pesquisa, como mencionamos anteriormente, fazem parte deste período, quando o artista já tinha passado por algumas instituições de ensino e travado contato com inúmeros artistas2, e, por sinal, realizado diversas encomendas de pinturas de gênero histórico, como nos atesta Salgueiro, baseada na importante biografia do pintor supracitada:

imagem e tradição: retórica e criação visual na obra ilustrada história de um pintor contada por ele mesmo de antônio parreiras fábio pereira cerdera*

Em 1896, após realizar mais uma exposição de seus trabalhos juntamente com seus alunos da Escola de Ar Livre, Parreiras decide explorar outros gêneros de pintura e seguir os conselhos que o pintor de história Vítor Meireles fazia-lhe [...] Começa a fazer estudos de animais e a pintá-los, a compor cenas de gênero, e, aproximando-se do poder, inicia uma carreira como pintor de história. (SALGUEIRO, 2000: 42 e 43). Supomos, apoiando-nos nestes fatos que, a esta altura de sua vida, Parreiras já teria adquirido boa parte de seu repertório visual através dos esquemas legados pela tradição, visto que, para um gênero como o histórico, digamos que, muito menos direto, no sentido inverso de d’après nature – termo comumente aplicado à paisagem a maneira como pintava Parreiras, observando-a diretamente no local – afora o fato de ter de existir uma 218

Retórica e criação visual na História de um Pintor de Antônio Parreiras

experiência com diversos gêneros e seus modos particulares de compor, se faz necessário, é mister forjar uma coordenação entre estes, i. e, em última análise, construir a imagem em função de sua composição. Valéry deixa transparecer este fato, quando critica a redução da arte aos gêneros da paisagem e da natureza-morta:

seja ela pertencente a um passado remoto ou recente, como nestas palavras de Levy: Em Veneza [...] torna-se aluno livre da Academia de Belas Artes local, freqüentando as aulas do Lombardo Filippo Cárcano (18401910), cuja pintura sintonizava-se por aproximação com os preceitos do impressionismo [...] Em Veneza, pinta a ilha de Chioggia e demonstra grande atenção pelas telas de Antônio Canal, o Canalleto, (16971768), e Francesco Guardi (1712-1793). (LEVY, 1981: 31).

O desenvolvimento da paisagem parece claramente coincidir com uma diminuição singularmente marcada da parte intelectual da arte. O pintor já não tem mais tanto o que raciocinar [...] creio que pouquíssimos calculam determinada obra que desejam fazer. Nada os obriga a isso, visto que tudo se restringe à paisagem ou à natureza-morta, que, por sua vez, foram reduzidas a um divertimento de interesse local. (VALÉRY, 2003: 143 e 144).

Ou na seguinte colocação de Salgueiro: As paisagens dos primeiros anos de Parreiras são ainda fortemente dominadas pela linguagem da paisagem pitoresca, com seus planos, distâncias, texturas, caminhos e a presença de uma figura solitária, de costas, ou de grupos pitorescos. Em pinturas de 1888, o pintor faz uso também dos recursos composicionais próprios da estética do sublime em suas paisagens, compostas de elementos denotativos da fúria da natureza como céus encrespados e escuros, árvores curvadas pela força do vento, e a presença da figura feminina, emblemática da sensibilidade romântica, numa atitude pensativa, entregue a seu mundo de reflexões e apreensões em meio ao turbilhão que se passa na natureza, sentada sobre o solo pedregoso, cheio de irregularidades e pleno de textura. É a linguagem da paisagem romântica européia da primeira metade do século XIX nas suas versões mais corriqueiras, tornadas populares e acessíveis a um público mais amplo, dentro e fora da Europa, por meio da reprodução em água-tinta ou litografia. (SALGUEIRO, op. cit.: 37).

No entanto, esta construção, que é uma invenção da imagem, não se baseia, supomos nós, nem numa idéia de pura e simples criação, nem em algo radicado exclusivamente na observação da natureza como às vezes defendia fervorosamente Parreiras e seus pares. Há numa espécie de conhecimento visual erigido ao longo de toda a história das artes visuais e nesse sentido, toda e qualquer imagem produzida no âmbito da sociedade está necessariamente em contato com tal saber. Por vezes, Antônio Parreiras vê com descrença o fato de que este conhecimento específico possa ser absorvido através da prática da cópia adotada nas academias para este fim: “Logo ao matricular-me na Academia, deram-me para copiar uma grande estampa, onde se via uma limosa Chaumière normanda. Tudo que nela estava era-me estranho, desconhecido, não me podia interessar. Impuseram-me porém copiá-la, tal qual, até aquilo que estava errado!” (Op. cit.: 225). Por outro lado, há momentos nos quais contraditoriamente confirma, mesmo que de forma velada nossa prerrogativa, como podemos inferir a partir do seguinte trecho: “Eu me via aniquilado [...] De que me servia o que aprendi nas academias, nos museus do velho mundo?” (Ibd.: 154). É a investigação destas últimas palavras, i. e, da verificação do aprendizado e de como este alicerçou a construção do sentido de sua produção, que pretendemos analisar em nosso objeto de estudo, precisamente no que concerne às suas ilustrações.

Ou ainda em Zanini, para quem “Parreiras, após algumas tentativas de pintura clara em que refletia a liberdade e a inovação do Impressionismo, fixouse em uma arte acadêmica [...]”. (ZANINI, 1983: 416). Ao passo que uma segunda tendência, onde são destacados aspectos particulares da obra de Parreiras, observa que, p. ex. – a partir de 1890 – o pintor começa a desenvolver “uma abordagem da paisagem que significa, sem dúvida, a menos idealizada e a de maior comunhão com a natureza, se comparada àquela até então praticada na arte brasileira [...] Sua obra ‘Sertanejas’ (1896) é exemplar dessa abordagem inovadora no contexto da arte brasileira, tanto no sentido temático quanto composicional [...]” (SALGUEIRO, 2000: 41), assim

Ao observarmos de uma maneira geral como a obra de Parreiras é comentada, notamos que há uma certa dicotomia em tais análises, podemos constatar duas tendências operando: a primeira ratifica as influências sofridas pelo pintor e o fato de parte de seu saber plástico advir da tradição, 219

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

como, “a escolha de uma escala cromática de tonalidades claras representava a preocupação e o interesse de Parreiras pelos fenômenos da luminosidade da natureza brasileira, enfocada de uma maneira personal e absolutamente desvinculada de qualquer influência [...]” (LEVY, 1981: 28), também revela o mesmo ponto de vista. Constatamos dessa forma que existe um hiato, uma lacuna no confronto de ambas as posturas de análise, no que tange a uma possível relação entre o que foi transmitido e vivenciado, com a especificidade plástica da obra de Parreiras. O presente texto tenta lançar luz a esse respeito.

partir de outros artistas teria influenciado no processo de criação, de significação dessas ilustrações? Para a primeira questão, a de como ocorreria a prática de citação imagética como forma de aprendizado, nossa primeira hipótese, o conceito de schemata – esquema visual – divulgado pela perspectiva perceptualista de Gombrich5, segundo a qual seria uma imagem aproximada do que se quer representar, sendo adquirido pelo artista através do contato para com outras imagens artísticas e, utilizado numa construção imitativa em relação ao objeto, parece, mesmo que de forma incompleta e provisória, respondê-la.

II - Questões e perspectivas metodológicas A relação entre os esquemas da tradição visual e a significação da imagem – e aí presumimos estar a importância desta pesquisa – pode residir, conjeturamos nós, no que seria para a linguagem, seu eixo de associações 3, espécie de rede de relações sígnicas, capaz de desencadear a significação da imagem visual, perspectivando-a numa dinamização de seu plano simbólico. 4 Reiteramos, a importância deste estudo está centrada nesta questão. Essa perspectiva teórica mostra-se extremamente pertinente, na medida em que se sabe que “objetos, imagens, comportamentos podem significar, claro está, e o fazem abundantemente, mas nunca de uma maneira autônoma; qualquer sistema semiológico repassa-se de linguagem.” (BARTHES, op. cit.: 12).

No que concerne ao segundo problema, o de como as schematas poderiam contribuir qualitativamente para a imagem, ou seja, em relação ao funcionamento do seu plano do conteúdo, podemos inferir outra hipótese correlata: a imagem visual não é um sistema de significação interpretante como a linguagem, mas interpretado, ou seja, grosso modo, não representa efetivamente, mas, antes, guarda equivalência com o que se refere (BARTHES, op. cit.: 52); nesse sentido, sua significação só se concretiza no seio de seu significante, em termos de artes visuais, em seu material, sua técnica (CARAMELLA, op. cit.: 77), os quais, por sua vez, são inseparáveis de sua forma, de sua materialidade (PLAZA, 2003: 24). Daí que a schemata é algo que diz respeito à matéria visual, é uma imagem aproximada do objeto, e que por sua natureza, já teria sofrido uma seleção e uma organização visuais, sendo, portanto, uma fonte trabalhada e otimizada disponível para o profissional reinventá-la semanticamente; este dado confunde-se, é imanente ao próprio modus operandi do plano simbólico da imagem visual supracitado6, atinge diretamente, se podemos dizer assim, através de Barthes, seu eixo sistemático.

Sendo assim, é de nosso interesse a pesquisa deste possível fato: da correlação do aprendizado de Parreiras, em parte formal, partindo de esquemas visuais alheios, com a produção das ilustrações mencionadas. Antes disso até, de um modo mais amplo, poderíamos nos questionar, se teria mesmo essa prática corrente nas academias da época e ainda presente em muitas escolas atuais, alguma relação com o processo específico, individual de criação da imagem visual. Nossos problemas-pesquisa podem então ser formulados da seguinte forma: 1- sendo possível uma resposta afirmativa, como tal prática se daria? 2- Outrossim, como estaria relacionada qualitativamente com a produção da imagem visual?

Portanto, ao falarmos de esquemas visuais da tradição, de uma forma geral, podemos estar nos referindo diretamente a uma espécie de código visual, nos interessando neste, especificamente, o que seria seu eixo paradigmático ou sistemático, o qual, em última análise, opera por duas vias: o plano da expressão, o significante e o plano do conteúdo, o significado (BARTHES, op. cit.: 76). Assim, presumimos poder sustentar uma análise estilística do significado da imagem visual, por meio de um confronto destes planos em obras distintas. Para tanto, o conceito de oposição mencionado por Barthes e definido como a relação entre os termos no campo da associação, pode nos ser útil, na medida em que obrigatoriamente trabalha com a semelhança e a dessemelhança simultânea dos

Teria Parreiras, por sua maior experiência com a tradição visual dentro dos diversos gêneros pictóricos como a paisagem, o retrato, a pintura de gênero e a histórica, p. ex., adquirido uma sensibilidade visual capaz de imprimir qualidade artística às referidas ilustrações? Ou melhor, na tentativa de sintetizar tudo o que foi dito: a prática de adquirir conhecimento visual por meio da sensibilização em relação a esquemas visuais a 220

Retórica e criação visual na História de um Pintor de Antônio Parreiras

mesmos, instaurando, digamos, uma troca de sentidos instantânea, o que nos leva, por contraste, ao valor da imagem analisada, no sentido de uma ampliação de sua significação.

parecem marcar uma sensação de cadência e profundidade, coincidindo na imagem, por sua vez, com a corriqueira representação hierarquizada da perspectiva aérea e do intervalo das ondas. Somase a isso o encadeamento específico dos termos, onde cada um tem uma função dentro da oração. O advérbio “então” prepara, introduz temporalmente e aproxima a “saudade”; essa é caracterizada então como “imensa”, o que parece torná-la ainda maior, para em seguida dissolvê-la em “me invade a alma”. Da mesma forma que na segunda oração, “é”, marca de maneira breve e enfática um tempo presente, atual, “da lembrança do passado que volta”, sendo logo desmaterializada pelo recurso sugestivo, elíptico das reticências. Tudo alude às qualidades dos elementos imagéticos referidos.

III - Resultados iniciais Como um primeiro e simplificado exemplo do que temos em mente, realizaremos uma análise da quinta ilustração da referida obra de Parreiras. Dentro do primeiro capítulo, o autor tece comentários para cada um dos integrantes do grupo Grimm, brindando-os, por vezes, com uma ilustração, como no caso do pintor Francisco Ribeiro. Parreiras relata-nos como Ribeiro foi um artista de poucos recursos financeiros, e que por isso, “durante muitos anos apenas desenhou, por não possuir uma caixa de tintas” (PARREIRAS, op. cit.: 40), chegando, por fim, a abandonar definitivamente suas aspirações artísticas, diante de contínuas decepções em relação à carreira.

Detendo-nos um pouco mais na ilustração de Parreiras, observamos de imediato que autor a desdobra estruturalmente com base na significação do trecho recortado de seu texto. O ponto de partida da imagem parece estar na silhueta do pintor, de valor alto na escala, em contraste com os rochedos, de valores mais baixos na escala, isto é, a área que concentra a oposição máxima em termos de valores dentro da imagem, atraindo prontamente o olhar do espectador. Em seguida, deslocamo-nos da extremidade superior para a inferior da curva formada pela silhueta, na medida em que sabemos que a direita do plano do quadro contém sempre uma maior força de atração, deslizando assim, por boa direção, por continuidade, até a área representada pelo mar. Retornamos à parte central da imagem, ao seu ponto de partida, em virtude, secundariamente, de dois pequenos triângulos formados pelas rochas e a margem da praia, apontados contrariamente à direção inicial e, principalmente, pelo alto contraste no primeiro plano.

Parreiras encerra o capítulo com a tristeza de quem perdeu para sempre mais um colega de profissão, traduzindo imageticamente tal estado de espírito numa composição que, como buscaremos mostrar, parece remeter a outros esquemas visuais correlatos na história da arte. A ilustração tem como ponto de partida o trecho: “Então uma saudade imensa me invade a alma. É a lembrança do passado que volta...” (Id.: 43), legenda que recorta a imagem, fornecendo-a imediatamente um sentido específico, sem o qual permaneceria numa vaga significação, própria deste sistema semiológico. Notamos que, o que a princípio parece ser uma espécie de animismo das palavras “saudade” e “lembrança” por analogia com o mar representado na imagem, adquire uma dimensão estrutural na medida em que há uma afinidade de qualidades. A analogia se faz no plano do conteúdo, do sistema, haja vista que uma forma similar perpassa os termos no texto e a representação dos elementos horizonte e mar na imagem, no sentido de que todos possuem a qualidade do longínquo, do profundo e do recorrente. Dentro desta mesma linha de raciocínio, torna-se evidente que, assim como a “saudade imensa me invade a alma” e a “lembrança [...] volta”, o mar na beira da praia faz o mesmo.

Este afigura ser basicamente o mecanismo que traduz figurativamente o texto. Algumas relações potencializam este esquema central, como o sentido gradativo, tanto dos valores marcados entre o primeiro, o segundo e o terceiro plano, quanto suas direções, vertical, inclinada e horizontal respectivamente. Enfim, o conjunto das estruturas linear e de valores, acabam por promover um fluxo, ao mesmo tempo, convergente para um estado de repouso visual à direita e expansivo na direção inversa. O observador transita fundamentalmente entre estes dois pontos na composição, o que praticamente materializa o conteúdo referencial, positivo, do retorno de uma lembrança, do lamento e do movimento do mar no texto e na ilustração.

Em seu plano da expressão, podemos destacar, sintaticamente, a forma como todo o período foi recortado. Há uma espécie de ordenação hierárquica entre as orações, onde a duração da primeira é maior do que a da segunda. Tanto a disjunção da pausa brusca do ponto, quanto a gradação de tempo existente entre as orações,

Diante dessa pequena análise reveladora da estrutura e do funcionamento da imagem, nos 221

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

perguntamos: a que recursos de uma linguagem visual recorreu Parreiras e como estes foram articulados especificamente pelo ilustrador?

claro-escuro que acompanha a direção das descendentes citadas, dentro de um acento constante em oposição a gradatividade de Parreiras. A grande área escura em contraste com o entorno ao centro do plano, reforça a importância desse ponto visual na composição.

Como verificamos pouco acima, espacial e temporalmente, o plano da imagem foi dividido basicamente em duas grandes áreas; um corte inclinado do lado esquerdo superior para o lado direito inferior separa o que em termos de significante, corresponde a dois momentos distintos para o olhar: um mais definido, mais presente e outro mais indefinido, menos presente, fundidos produtivamente, instaurando a significação da imagem. Retrocedendo aos primórdios da história da composição visual, de um ponto de vista ainda bem amplo, podemos encontrar vestígios desse modo de pensar o espaço-tempo plástico na arte romana e na medieval, quando esclarecedoramente nos diz Hauser que “na arte romana tardia e na arte cristã medieval empregase o método totalmente diferente [em relação ao Oriente antigo e da Grécia] a que Franz Wickhoff chama ‘contínuo’ [...] que retrata as várias etapas de uma ação na mesma moldura ou paisagem sem interrupção, repetindo as figuras principais em cada fase da ação [...]” (1998: 111). Wölfflin emite opinião semelhante, talvez no que seria a fronteira entre o sintagma e o sistema plástico, quando compara a arte renascentista e a arte barroca. Para o autor, um dos aspectos que caracterizam a produção renascentista é uma certa independência das partes, uma multiplicidade em contraposição à unidade barroca.

Por outro lado, em relação ao plano do significado, Parreiras utiliza menos convenção na medida em que seu tempo anedótico é unívoco, o que significa um grau sígnico menor. Massacio evidencia mais, nesse sentido, um artifício plástico para narrar uma cena, fragmenta-a em diferentes instantes, tornando mais explícito o caráter de representação da imagem. A significação de ambas as imagens emerge com mais intensidade ao atentarmos para o fato de que a gradatividade no âmbito do significante em Parreiras está para a gradatividade no âmbito do significado em Masaccio, assim como uma maior constância do significante neste, está para uma maior constância do significado naquele. Dessa forma, percebemos que a banalidade do tema em Parreiras é irrompida, e o sentido é dilatado num movimento centrípeto por sugestão da própria materialidade plástica, ao passo que a mesma materialidade em Masaccio converte o absurdo tempo-espacial de sua narrativa em algo verídico, que ascende ao real, sendo as diagonais maiores de ambas as composições, de Parreiras e Masaccio, grandes responsáveis respectivamente pelo sentido de lembrança como uma lamuria solitária e como uma história narrada. É importante lembrar que estes valores são relativos, havendo uma ambivalência dos mesmos. Assim, uma aparente distância temática, de sentido, acabou por revelar traços comuns, enquanto uma certa semelhança compositiva inicial, mostrou-se bastante particular em seu desfecho.

Para exemplificar a aplicação deste princípio de composição, no que concerne a uma associação pela substância tempo-espacial no campo expressional, obras como O pagamento do tributo (1426-27) de Masaccio (1401-1428) e a Flagelação de Jesus (1445) de Piero della Francesca (1410?1492), para citarmos algumas das mais conhecidas, podem ilustrar essa disposição, enquanto que numa analogia espaço-temporal neste mesmo campo, Paisagem com bosque (1655) de Ruisdael (1628?-82) ou “Residência de plantadores próxima ao rio Parahyba” (1775) de Frans Post (1612-1680) aproximam-se mais dessa organização.7

Em relação a uma leitura focada mais numa substância do conteúdo, no tema e em seu sentido ideológico mais imediato, encontramos uma correlação direta com a produção romântica, em particular do pintor alemão Caspar Friedrich (17741840). Há nesse sentido, no que se refere ao tema, uma espécie de sinonímia entre uma obra como Nascer da Lua no Mar, de 1822 e a ilustração aqui analisada. Notamos prontamente um paralelismo no contexto de ambas as cenas. Trata-se basicamente de imagens onde figuras em terra, num primeiro plano, contemplam a paisagem marítima, existindo evidentemente diferenças importantes, como a presença de embarcações, da lua e a maior quantidade de figuras em Friedrich

Em uma análise comparativa com a obra de Masaccio, por exemplo, a ilustração de Parreiras – numa reutilização do mesmo princípio – inverte a sintaxe, a forma do esquema linear no plano da imagem. Masaccio trabalha com uma diagonal forte ascendente, compensada em parte pelas linhas descendentes do plano inferior direito, as quais formam convergência em direção ao centro do plano. No esquema de valores, utiliza um ritmo de 222

Retórica e criação visual na História de um Pintor de Antônio Parreiras

em contraste com a figura absolutamente solitária de Parreiras. Um outro ponto de contato entre as duas imagens, que nos parece significativamente importante, é o fato das figuras, no primeiro, encontrarem-se numa vista posterior de três quartos, isto é, quase que inteiramente de costas para o fruidor, enquanto a figura de Parreiras apresenta-se de perfil para este.

indício da personalidade do pintor. Por outro lado, na composição de Friedrich, apesar do elemento humano voltar-se totalmente para a natureza, as embarcações são o elo, o vínculo com a civilização. Sua presença, mesmo que menor, intermitente e dissolvida pelo ambiente, permanece visível, sobrepondo-se ao elemento natural. A partir dessas observações, acreditamos ter esboçado o que seria a forma do conteúdo de uma das ilustrações de Parreiras para a sua autobiografia, estruturada pelo confronto desta numa rede de associações com outras imagens, o que acabou por definir nuanças, algumas especificidades de seu modo de produzir. Por certo que, o que pode vir a ser uma convenção ou quem sabe um código plástico, um modo de significar particular deste sistema semiológico, ainda permanece quase insondável e extremamente difícil de se estabelecer, contudo, a influência de um conhecimento visual, erigido durante séculos, pode ser sentida na produção artística em geral.

Com relação a um conteúdo situado no plano ideológico, esta temática nos revela uma tônica típica do romantismo, em que, fundamentalmente, há uma postura de questionamento e negação dos valores e das conquistas científicas e das crescentes transformações econômicas e sociais pelas quais passavam o período. Podemos encontrar trechos em sua autobiografia ou em suas críticas artísticas, onde Parreiras mostra-se decepcionado de um modo geral com a sociedade e em particular com os rumos da arte nacional em sua esfera institucional, como p. ex. nesta passagem: “quanto tempo perdido? Quanta luta, desgostos, injustiças, calúnias eu não teria evitado se tivesse recusado a cadeira de paisagem da Academia como depois recusei o lugar de professor e de diretor da Escola duas vezes oferecido pelo Governo da República?” (Op. cit.: 103). Essa insatisfação pode ser detectada, primeiro na própria exploração do gênero paisagístico, considerado inferior dentro da hierarquia acadêmica, podendo ser interpretado como um desejo de retorno a algo que está na origem de um questionamento humano e plástico, e segundo, mais especificamente como recurso de composição, na posição das figuras, as quais, de certa forma ignoram a presença do espectador externo.

Com essas palavras finalizamos esta sucinta análise, esperando ter atingido nosso objetivo principal, que era lançar as bases para uma maior compreensão da obra deste importante artista brasileiro do século XIX, especialmente deste documento, depoimento que é sua autobiografia, de grande relevância para o entendimento do período em questão, ainda, por vezes, distorcido por uma visão estereotipada e previsível de alguns autores. Em última análise, esperamos que este texto tenha contribuído para mostrar um pouco mais de perto sua obra no campo da ilustração, para torná-la algo mais particular, certo estamos de que os conceitos aqui utilizados necessitam ainda de um desdobramento maior em sua aplicação, bem como um trabalho de ajuste e correção destes ao nosso objeto de estudo.

No que diz respeito a esse aspecto em especial, é interessante notar que enquanto em Friedrich as figuras meio que absortas, extasiadas com a paisagem, escapam de uma realidade palpável em direção a algo fugidio e nebuloso, em Parreiras uma ambigüidade acaba por criar uma tensão entre as duas realidades. A ilustração, assim, dá forma, pode expressar visualmente a própria indecisão ou por outro prisma, o desejo de Parreiras, de ao mesmo tempo manter um círculo de relações sociais onde as encomendas e os salões lhe garantam uma estabilidade financeira e um status social, como a pintura histórica e a pintura de nus, e uma atitude artística que relegue este tipo de garantia e reconhecimento a um segundo plano, ou seja, pintar pelo puro prazer de confeccionar uma imagem, tendo como base uma empatia, uma relação afetiva com esta, como é o caso da paisagem. Portanto, pode-se dizer que a dicotomia mantida com a natureza e o espectador é sintoma,

Notas *

Professor da Escola Superior de Ensino Helena Antipoff (ESEHA), doutorando pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 1 “Em fins de 1882, vende a casa que havia herdado do pai e matricula-se como aluno amador, a 25 de janeiro de 1883, na Academia Imperial das Belas Artes” (LEVY, Carlos R. M. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1981, 20), mas que, segundo o relato do próprio Parreiras, teria ocorrido no ano anterior: “resolvi, então, realizar o meu ideal – ser um artista. Vendi uma das casas que meu pai me havia legado e entrei para a Academia de Belas Artes para a aula de G. Grimm (1882)” (PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contada por ele mesmo. Niterói: Niterói Livros. Fundação de Arte de Niterói, 1999, p. 16). Aliás, existem outras datas e locais, os quais, a primeira vista, também foram corrigidos por Levy, como p. ex., a do

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 5

nascimento do pintor, quando verifica em seu livro de batismo que, “aos seis dias do mês de janeiro de mil oitocentos e sessenta e um, nesta Matriz de São João Baptista de Nichteroy baptisei [o Vigário Antônio Mello Muniz Maia] solemnemente a Antônio, innocente, nascido no dia vinte de janeiro do ano passado” (Op. cit.: 17), enquanto o próprio Parreiras nos diz ter nascido “em São Domingos de Niterói a 21 de janeiro de 1864, à Rua da Pampulha, hoje Visconde do Rio Branco” (Op. cit.: 13). 2 Sobretudo aqueles pertencentes ao chamado Grupo Grimm, pintores oriundos da Academia de Belas Artes, os quais seguiram o paisagista alemão Johann Georg Grimm quando este se demite daquela e resolve dedicar-se integralmente à pintura de observação direta da natureza. Para saber mais a respeito, cf. LEVY, Carlos R. Maciel. O Grupo Grimm: paisagismo brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1980. 3 Eixo ou “plano paradigmático” ou “sistemático” (BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971, 64) ou antes, “das associações (para conservar ainda a terminologia de Saussure): ‘Fora do discurso (plano sintagmático), as unidades que têm entre si algo de comum associam-se na memória e assim se formam grupos em que reinam diversas relações’” (Ibd.: 63). 4 Cf. nosso artigo CERDERA, Fábio Pereira. Estrutura e Originalidade na Obra de Antônio Parreiras. Jornal da Pestalozzi: informativo da Associação Pestalozzi de Niterói, Niterói, jul. 2006. No 105, p. 2, c. 2. Neste artigo, aventamos a possibilidade de uma leitura do plano do conteúdo da imagem através de sua relação com o legado da tradição visual.

“‘O artista profissional adquire uma grande quantidade de schemata com a qual produz rapidamente no papel o esquema de um animal, de uma flor, de uma casa. Esse esquema lhe serve de apoio para a representação de imagens da sua memória, e ele modifica gradualmente o esquema, até que corresponda àquilo que deseja exprimir. Muitos desenhistas deficientes em schemata e que sabem copiar outro desenho não sabem copiar o objeto.’” (AYER, F. C. apud GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 157). A tese de Gombrich é para nós um ponto de partida, já que o autor trabalha o conceito de esquema apenas em seu sentido referencial, enquanto compartilhamos, como foi colocado pouco acima, com a psicologia da percepção e a teoria formalista, a idéia de que tais esquemas guardam antes um potencial de significação da imagem. 6 A coincidência de um plano da expressão com um plano do conteúdo da imagem visual é extensivamente tratado por Arnheim em suas obras; ARNHEIM, Rudolf. Dinâmica. Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. 8a Edição. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1994.403434, que condensa suas idéias a esse respeito. 7 Cf. o artigo de Uspênski analisando com mais nuanças esse modo geral de compor característico da prérenascença, em que adota, dentre outros conceitos, o de representação dentro da representação (USPÊNSKY, B. A. Elementos Estruturais Comuns às Diferentes Formas de Arte. Princípios Gerais de Organização da Obra em Pintura e Literatura. SCHNAIDERMAN, Bóris (org.). Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 163220)

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Este trabalho tem o propósito de apresentar os resultados parciais de um projeto de pesquisa para o Doutorado desenvolvido no Programa de PósGraduação da Escola de Belas Artes, cujos principais objetivos são o estudo e a análise do texto “Retórica dos Pintores”, autoria de Modesto Brocos y Gomes. Fundamentado no conceito de história da arte, a metodologia deste trabalho está baseada no confronto do texto de Modesto Brocos com trabalhos anteriores, de outros autores sobre as questões que o pintor aborda em sua obra. A publicação de Retórica dos Pintores, de Modesto Brocos, data de 1933, portanto no contexto da Era Vargas e do Modernismo Brasileiro. Alguns embates já haviam sido travados: a histórica semana do Modernismo em São Paulo e seus desdobramentos, como o Salão de 31, que consolidava novos rumos e pensamentos sobre a produção de arte, principalmente. É dentro dessa atmosfera que o livro sai à luz e penso que tem sua principal razão de ser. Para compreensão da linha de orientação adotada, é preciso considerar a linguagem como centro de toda atividade humana - foco do que aqui trataremos – e que sendo ela produzida pelo complexo jogo de relações que os homens estabelecem entre si e com a realidade, ela se transforma também em um elemento de modelação dessa mesmo agrupamento de relações (SEVCENKO:27) :

modesto brocos: a retórica dos pintores josé luiz da silva nunes

Falar, nomear, conhecer, transmitir, esse conjunto de atos se formaliza e se reproduz incessantemente por meio da fixação de uma regularidade subjacente a toda ordem social: o discurso. A palavra organizada em discurso incorpora em si, desse modo, toda sorte de hierarquias e enquadramentos e enquadramentos de valor intrínsecos às estruturas sociais de que emanam.1 Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva, a que nos interessa aqui, a que motivou este trabalho é, particularmente, a retórica. Esta espécie de discurso de elogio, que se tornou objeto e caminho, a partir do Renascimento, para a discussão e o estabelecimento do estatuto da pintura, e por conseqüência dos pintores2. Seu desdobramento é a fundação de um gênero – a comparação entre as artes. A obra de Modesto Brocos é resultante desse longo processo que se inicia, anteriormente, na idéia ciceroniana do “Ut pictura poesis” e que será desdobrado em reflexões de muitos outros autores – ao longo do tempo – como Alberti, Winckelmann, Du Bos, Diderot. É nesse universo que se entrelaça o texto de Modesto 225

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Brocos e será através de seu próprio texto, de suas próprias palavras, de seu discurso, ou melhor dizendo, sua retórica, que pretenderemos tensionálo e distensioná-lo, simultaneamente, para buscar suas propostas e respostas estéticas para os conflitos que marcaram a sociedade brasileira nessa fase.

em Roma durante quatro anos. As Deputacións Provinciais espanholas, como sistema de ajudas aos novos artistas, mediante pensões e subvenções, adquirem um inegável protagonismo no campo das artes plásticas. Modesto Brocos obteve sua pensão ao apresentar à Deputación o esboceto e quadro Rebeca dando de beber a Elizer, tema de caráter bíblico.

Modesto Brocos Y Gomez nasceu em Santiago de Compostela (Espanha) em 1852, em família humilde e voltada para o ofício da arte – avô e pai foram gravadores. Foi seu irmão Isidoro, que chegaria a ser famoso escultor - e um dos principais xilogravadores espanhóis - quem iniciou Modesto na arte da gravura. Inicia-se na Real Sociedade Econômica de Amigos do País – único centro de Santiago que naqueles tempos oferecia possibilidades de formação no campo das artes. A partir de informações da historiadora Maria Cabrera Massé3 , Modesto foi aluno do professor Juan Cancela, que estudara durante alguns anos na Academia de San Fernando de Madri.

A biógrafa Massés afirma que Modesto Brocos, durante sua estadia em Roma, estabeleceu contato com seleto grupo da colônia espanhola, na qual se encontravam Pradilla, Benliliure, Querol, e Villlodas, todos eles assíduos da famosa Academia de Belas Artes espanhola em funcionamento desde 1881. Entre os centros mais importantes freqüentados pelos pintores espanhóis temos a Academia de São Lucas, a Academia de Belas Artes francesa, a Academia Chigi (Roma), que foi a que Modesto Brocos freqüentou. Brocos pintou a tela Defesa de Lugo em 1887, quando era pensionista em Roma, e expôs no Salão Nacional de Madri do mesmo ano. No ano seguinte seria exposto no Salão de Paris.

Em 1871 embarcou para Buenos Aires, Argentina, onde colaborou como gravador em diferentes publicações. Em 15 de julho de 1872 chegava ao Rio de Janeiro, iniciando aqui, também, atividades de gravador. Mais tarde matriculou-se na Academia de Belas Artes como aluno ouvinte na turma de modelo vivo. Em 1875 freqüentava a classe de Vitor Meireles na Academia Imperial de Belas Artes e, nesse mesmo ano, começou a publicar sua primeiras gravuras no jornal brasileiro O Mequetrefe.

Regressou para a Galícia, onde exerceu a posição de catedrático na Real Sociedade Econômica de Amigos do País. Em 1890, parte pela segunda vez ao Brasil. No ano seguinte é nomeado professor de desenho de figura na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Entre 1893 e 1895, administrou classes em substituição a Pedro Weingartner. No Salão de 1895 obteve uma medalha de ouro com Redenção de Cã, adquirida pela pinacoteca da Escola.

Anos mais tarde, junto com seu irmão Isidoro, colaborou assiduamente na La Illustracion Gallega y Asturiana, que estendeu a sua publicação de 10 e janeiro de 1879 a 28 de dezembro de 1881. Modesto Brocos viaja a Paris em 1877, onde estudou por dois anos na École des Beaux-Arts, sendo aluno de Lehmann – professor de Camille Pisarro e George Seurat.

Em 1897 voltou a Santiago de Compostela para realizar o tríptico A tradición do Apóstolo Santiago, que se localiza na Sacristia da Catedral de Santiago. Após uma curta estadia em Roma, regressou ao Brasil, de onde nunca mais sairá. Durante toda sua estadia no Brasil interessou-se pelo ensino de gravura, devendo à sua iniciativa a instalação do material para aulas desta especialidade no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro.

Em 1879 instalou-se em Madri, sendo discípulo de Federico de Madrazo na Escola San Fernando. Federico iniciou a carreira pictórica sob o postulado estético do grupo conhecido como os “Nazarenos”. Em 1881, encontramos Modesto novamente em Paris, outra vez na École, agora sob a tutela de Hédert, pintor que, como Lehman, fora discípulo de Ingres.

Em depoimento para o catálogo de exposição do centenário de nascimento do pintor, no Museu Nacional de Belas Artes, em 1952, o pintor e crítico de arte Reis Junior, revela alguns traços da personalidade e modo de atuação de seu professor Modesto Brocos:

Em 1882 Modesto Brocos é aceito no salão de Paris com auto retrato que reproduziu na revista L’art, obtendo o favor da crítica. O ano de 1883 marca um fato importante em sua carreira, pois que obtém um bolsa da Deputación da Coruña para trabalhar

Sabia ensinar respeitando e incentivando a incipiente personalidade que descobria nos 226

Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

alunos. Juntamente com o seu refrão predileto - ´beja o ângulo que fais´ - índice da sua maneira de educar a visão a transpor exato, ele procurava incutir no aluno a compreensão do caráter do objeto, sobre a reprodução minuciosa da sua aparência superficial. Por esse processo, procurava revelar-lhe a diferença substancial entre a concepção acadêmica e a clássica. Também era inteligente e avançada, muito construtiva, a indicação que dava para a marcação do desenho – decompor o motivo em formas geométricas simples, como quadrados, retângulos, cilindros e dentro delas inscrever o arabesco das linhas e o jogo dos planos. Não estou fantasiando esses preceitos de inspiração cubista no ensinamento de Modesto Brocos. Também, não posso afiançar que Brocos os tivesse haurido nas teorias cubistas calcadas na frase célebre de Cézanne. O fato é que esses preceitos constituíam o fundamento básico do seu processo de ensino. Porém, em se tratando de Brocos, não é desarrazoado supor que ele tivesse conhecimento daquelas teorias e daquela frase. Porque Brocos, a despeito do seu todo bisonho, era um espírito eminentemente curioso, sobretudo das questões relacionadas com sua profissão e inteligente bastante para, não conceituando a arte apenas dentro das rígidas fórmulas acadêmicas, admitir e mesmo adotar idéias estéticas mais atualizadas. As manifestações artísticas originais ou influenciadas pelas novas tendências da pintura não provocavam em Modesto Brocos a exasperação que suscitavam – e que ainda suscitam – por entre os artistas formados nos mesmos princípios que os dele. Ao contrário, acolhia-as com uma simpatia compreensiva e encorajadora. Já da mesma maneira não recebia as opiniões dos críticos-de-arte, aos quais não atribuía grande autoridade.4

tomou lugar bem definido, e digno entre os representantes da pintura contemporânea do Brasil. O meticuloso pintor de costumes roceiros.5 Depois de longa e frutífera vida dedicada à arte e ao seu ensino, Modesto Brocos falece a 28 de novembro de 1936, aos 84 anos de idade. Retórica dos Pintores: algumas questões A obra de Modesto Brocos “Retórica dos pintores”6 está estruturada da seguinte forma: um prólogo, quatorze capítulos e um apêndice. É nossa intenção metodológica ir apresentando a estrutura do texto, tal qual foi organizada pelo seu autor, Modesto Brocos, e ir tecendo comentários críticos sobre sua escrita, seu pensamento, as correlações que se fizerem necessárias e/ou pertinentes. Ao longo do desenvolvimento do seu pensamento, Modesto Brocos inicialmente apresenta-nos os conceitos mais gerais de que irá tratar – retórica, estética, beleza, arte, razão, que serão contemplados, mais abrangentemente, neste texto. Sem, entretanto, deixar de pormenorizar, posteriormente, esses conceitos, subdividindo-os, elaborando-os em questões ligadas à visão, cor, pintura histórica, de paisagem, de retrato, arquitetura, métodos, princípios, aspectos filosóficos, práticos, técnicos, sem deixar de atacar de frente, de uma maneira singular um tema, que está na ordem do dia – a arte nacional, bem como reformas do ensino artístico: É muito digna de louvor esta aspiração de termos uma arte nacional, aspiração que aliás todas as nações que se prezam deverão Ter; mas não será gritando alto que nós conseguiremos esta aspiração, será, sim, trabalhando forte e forte que, seguindo todos os pintores as pegadas do primeiro iniciador, depois de algumas gerações, chegaremos a obter um resultado lisonjeiro.7

Modesto Brocos, devido ao seu espírito inquieto, e ademais sua dedicação ao ensino de arte, publicou diferentes livros. Em 1915, A Questão do Ensino de Belas, Viagem a Marte, publicado em 1930 pelo editorial Arte e Letras, de Valencia. Quiçá seu livro mais conhecido seja Retórica dos pintores, publicado no Rio de Janeiro, em 1933.

No prólogo o autor debruça-se sobre as razões que o fizeram dedicar-se à escrita do livro, e apresenta ao leitor, em linhas gerais, a qual conceito de retórica se filia. Este trabalho, que tenho a honra de apresentar ao público, é feito com a intenção de ajudar aos estudantes de pintura nos seus estudos, dando-lhes uma orientação que até agora faltava, e vem preencher uma lacuna que se fazia sentir, lacuna que eu mesmo senti quando, em Paris, estudava a pintura..8

Um dos mais influentes críticos de arte do século XIX, Gonzaga Duque em comentário sobre a exposição individual de Modesto Brocos, na Escola Nacional de Belas Artes em julho de 1892, comenta: Pintor de raça, pintor de fibra, nascido para ser pintor pela fatalidade impulsiva de sua organização, por influência hereditárias [...] ele 227

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

E acrescenta qual a amplitude que desejaria para a sua obra. Neste seu comentário, poderemos perceber as correlações e forças que o intelectual Modesto Brocos faz das produções do campo das artes e literárias, naquele momento:

da palavra falada, se for literatura, ou por meio da forma desenhada, pintada ou esculpida, se forem as belas artes. Os homens em todos os tempos têm sentido a necessidade de exteriorizar suas idéias da maneira mais digna, com o fim de aperfeiçoar a existência, contribuindo para fazer a vida mais doce e feliz do que era anteriormente. Chama-se Retórica a certas regras que os escritores devem ter presente para expressar suas idéias com concisão e clareza.11

Eu desejaria dar a este despretensioso trabalho uma feição mais artística, fazendo um paralelo entre a literatura e as artes. Comparando os grandes templos da Índia com os seus poemas, o Mahabharata e o Ramayana; a Ilíada de Homero com o Parthenon de Athenas; a Divina Comédia do Dante com a catedral de Milão, os Lusíadas com o convento dos Jeronimos; seguindo depois neste paralelo, comparar o Rolando Furioso de Ariosto, com as pinturas de Miguel Ângelo na capela Sixtina; a Jerusalém Libertada do Tasso, com as estancias de Rafael, etc. E, continuando neste passo comparar os escritos célebres com as pinturas e as esculturas mais notáveis. Deixarei aqui consignada esta idéia para quem mais tarde a quiser utilizar.9

Vale evidenciar, neste trecho, a questão da validade da obra pictórica, como discurso, tanto quanto se verifica na literatura, e que o autor já manifesta essa correlação de forças discursivas da obra pintada e/ou escrita. Outros autores (Leonardo Da Vinci, Du Bos, etc) dedicaram atenção ao tema, não havendo, portanto, qualquer primazia na anunciação de Modesto Brocos. Entretanto, não podemos negar a importância desta sua obra, por seu caráter didática, dentro de nosso meio intelectual e artístico.

O rol de obras acima, faz-nos pensar e desdobrálo em outras possibilidades – seria essa a formação/informação desejada e esperada para um pintor – ou qualquer intelectual de seu tempo?

Mais adiante, em sua abordagem, verificamos ressonâncias do pensamento do intelectual Winckelmann: E foram os Gregos os que botaram os fundamentos a esta arte [retórica] e aperfeiçoaram a arquitetura, a escultura e a pintura. Na antigüidade, a literatura Grega chegou a um estado de perfeição nunca excedido, e o mesmo podemos dizer das belas artes.

E problematiza um dos obstáculos que se interpõem na trajetória dos aspirantes à condição de pintor, naquele momento. Acentua a observação da natureza como orientação: O pintor [...] é embargado pelo problema da cor nas suas variadas e infinitas manifestações, tendo necessidade de observar infinitas manifestações, tendo necessidade de observar a todo instante os aspectos da natureza, que se apresenta azul, nos dias claros; cinzenta nos dias tormentosos; dourada, nos plácidos e cálidos crepúsculos; prateada, nas noites de luar. E é pela variedade das cores que as montanhas, os campos, as árvores e os animais se diferenciam. Enfim, a cor, com as suas múltiplas e variadíssimas tonalidades, vem a ser a linguagem da Natureza.10

Senão, vejamos, o que nos diz o autor alemão Johann Joachim Winckelmann12: O bom gosto, que mais e mais se expande no mundo, começou a se formar, em primeiro lugar, sob o céu grego. De qualquer modo, todas as investigações dos povos estrangeiros não chegaram à Grécia senão como uma primeira semente, e receberam uma natureza e uma forma diferentes no país que, diz-se Minerva destinara aos gregos como morada [...] O gosto que essa nação testemunhou em suas obras lhe é peculiar.13

No primeiro capítulo Modesto Brocos faz comentários mais detalhados como manipula os conceitos de Retórica, com suas divisões e regras, tecendo uma construção de sua retórica para a pintura, a partir da literatura:

O nosso autor adota a divisão da Retórica em cinco partes : invenção, disposição, elocução, pronunciação e fundo, em lugar das quatro divisões tradicionais, ligadas à literatura:

Dizem os velhos retores que a Retórica é uma arte estética, cujo objeto obedece a uma aspiração da nossa alma na sua ânsia de elevar nosso coração para as coisas belas, por meio

Na retórica do pintor entram todos tratados: a invenção corresponde ao pensamento ou idéia nova que represente o quadro; a disposição é 228

Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

As regras somente deverão servir de estímulo para observar, sentir e praticar o que elas preceituam. Não se creia que para fazer bem um obra consista em recordar umas tantas regras. Isto seria desconhecer por completo o homem, que só poderá produzir quando a Divindade o tenha dotado de imaginação criadora.16

a maneira de distribuir e colocar os personagens e que o assunto fique bem composto; a elocução refere-se à boa execução do quadro, que, na plástica, a habilidade do pincel e o colorido vai de acordo com o assunto; a pronunciação corresponde à maneira de desenhar as figuras e demais objetos que entrem no assuntos e que se achem não só bem desenhados como bem proporcionados e corretas de forma; e o fundo, poderemos substituir pelo sentimento que se destaque da obra, todo em si subjetivo e que nos emociona internamente, sendo esta emoção a qualidade superior a todas as outras. E de todas as qualidades acima expressadas, quando bem executadas e harmonicamente compostas, resultará o estilo.14

Para ele a imaginação e a inspiração aumentam e desenvolvem-se estudando o real, razão pela qual os pintores começam seus estudos pelo modelo vivo, tal e qual se apresenta a seus olhos, o que os prepara para os desenhos do natural, que, gravados na memória, facilitariam as primeiras composições sem necessitar de modelo.

São estes conceitos que Modesto Brocos irá desdobrar, ao longo de sua obra, mais detalhadamente e que devido a exigüidade espaçotemporal deste veículo iremos pincelar alguns comentários do autor e sinalizar apropriações e ou correlações de linha mais gerais do pensamento do autor com outros intelectuais, não unicamente de seu tempo, mas também anteriores a ele.

A análise do discurso ou do quadro é composta de duas partes que são: o fundo e a forma. O fundo, ou seja o assunto, compreende tudo quanto o homem pode expressar com o pensamento, na procura do belo e deverá reunir os preceitos de Quintiliano para a Retórica: instruir, agradar e comover. Contudo, salienta que estas três dimensões são pertinentes à literatura, “porque em arte só poderá agradar e comover, porém nunca instruir!”

Para Modesto Brocos, na gênese da obra artística, intervém uma forma interior ou pensamento e uma forma sensível de expressão – personagens e objetos que entram na composição -, expressos pelo desenho, na obra pintada ou pela palavra na obra literária. (BROCOS: 10)

Reconhecemos nessa assertiva de Modesto Brocos a influência do pensamento de Winckelmann, apesar de parecer opor-se, sutilmente, ao historiador alemão: “Todas as artes têm dupla finalidade: devem ao mesmo tempo agradar e instruir”. 17

Define Modesto Brocos o artista como “todo indivíduo que possua aptidões para executar bem um trabalho com consciência e habilidade”15 e apresenta-nos as condições necessárias para a realização de um bom trabalho: conhecer o assunto; aplicar oportunamente as regras indicadas para bem compor; estudar e observar obras dos grandes artistas antigos e modernos, a fim de assimilar os que neles encontre, “mas conforme com seu talento e tendências naturais”.

Modesto Brocos, então, acaba confirmando o que Winckelmann referendou: Devemos concordar que hoje as ilustrações que se intercalam nos livros, sejam ou não didáticos, com a facilidade da gravura química, tornaram-se um instrumento de instrução , pois a apresentação de uma figura num livro fala mais claro do que uma longa descrição18 Percebemos aqui nesse trecho, em que há uma clara defesa da supremacia da eloqüência da imagem em comparação à da palavra escrita, filiações ao pensamento de Leonardo da Vinci, quando em seu Tratado da pintura –O paragone – defende a mesma tese da superioridade da pintura sobre a poesia.19

As três condições anteriores sugerem os caminhos trilhados pelo artista-autor – o domínio técnico, o rigor, a pesquisa, mas também a capacidade de distanciamento das obras do mestres na construção da identidade do artista. Em sua opinião, as regras de composição são direções – a serem perseguidas ou evitadas – pelos artistas para que a obra alcance a maior perfeição possível:

Devemos ressaltar que a imagem ilustrada, em todos os tempos teve uma função instrutiva, pois, afinal, a divulgação de tantos trabalhos no campo da arte foram sendo assimilados e retrabalhados, graças à circulação de gravuras, a partir de seus modelos originais. O historiador Argan nos 229

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

apresenta um conceito de “gravura de tradução” , em decorrência da importância da circulação e difusão das gravuras, n cultura artística européia nos séculos XVII e XVIII (ARGAN:16)

venham interromper a nossa solidão. O isolamento é o remédio eficaz para domar a apatia do cérebro.22 Assim nos aproximamos, de alguma forma, do seu processo de trabalho - como se dava a construção de sua obra:

Avançando no texto de Modesto Brocos nos colocamos diante dos cinco estados do discurso: invenção, disposição, elocução, pronunciação e fundo, a seguir apresentados:

Foi na Barreira do Soberbo [Teresópolis, RJ], lugar alto, de ar oxigenado e águas puríssimas, onde tive as minhas melhores idéias, tanto em arte como em literatura: este mesmo trabalho foi esboçado ali, há mais de quinze anos. A vida real é também campo para busca de elementos que constróem o arcabouço da imaginação.23

A invenção é o esforço que faz nosso espírito para encontrar o assunto. Para descobrir um assunto será preciso, antes de mais nada, ter muitos assuntos em projeto, sejam esboços ou rascunhos. Depois se escolhe, entre os que temos em mão, aquele que fale diretamente à nossa alma e que temos o convencimento que é a melhor idéia a por em execução.20

E continua propondo orientações: Por disposição entende-se a colocação lógica do que se vai compor, de modo a saber-se o que vai no primeiro plano, no segundo e nos últimos. Todos os elementos que entram em uma composição devem ter por fim a unidade do conjunto, e fazer com que todas as figuras, os movimentos variados, as direções das linhas, tudo tenha por fim ajudar ação que se quer representar.24

Neste ponto de sua argumentação Modesto Brocos coloca-nos a invenção como idéia. Entretanto, seu pensamento não é muito claro, posto que introduz noções de assunto, projeto, esboço e rascunho, todas entrelaçadas dentro do escopo da invenção. Ainda que possamos entrever as sutilezas de seu raciocínio, torna-se paradoxal ao dizer que para o encontro do assunto, é preciso ter muitos assuntos em projeto.

Por disposição propõe: personagens, ações, movimentos, direções, entrelaçando-se para tornar claro o discurso pictórico:

No desenvolvimento de seu texto, mais adiante, põe em relevo a questão da novidade como ponto a ser observado pelo artista, ou apresentar uma idéia/forma já utilizada anteriormente, de modo original, que não traga à memória nenhum quadro já visto:

[...] precisará ser grande observador, conhecer o coração humano, estudar os gestos que as paixões operam na fisionomia dos indivíduos. Também será preciso que, tanto o artista como literato, sintam a paixão que desejam expressar.25

A principal preocupação do escritor, como a do artista, deverá ser a de que o argumento ou o assunto sejam apresentados com novidade, e que não se pareçam com outro quadro já visto. A idéia poderá não ser nova, mas deveremos lembrar La Fontaine que, com idéias tiradas de outros, fez fábulas que ficarão eternas e serão lidas com prazer.21

Esta idéia tem conexões com Diderot, sem nos esquecermos de o Epítome de Anatomia de FélixÉmile Taunay (1837), obra seminal que compila a teoria das expressões de Charles Le Brun, entre outros tratados para o ensino artístico:

Acrescenta a inspiração como esforço, produto da concentração do espírito, enfim, conseqüência do trabalho, e não fruto do acaso. E para a indolência imaginativa propõe “deve-se-lhe dar excitantes” e exemplifica:

Eis o que diz respeito aos caracteres e suas diferentes fisionomias; mas não é tudo: é preciso acrescentar a esse conhecimento uma profunda experiências das cenas da vida. É preciso ter estudado a ventura e desgraça humanas sob todos os seus aspectos. 26

Se for, por exemplo, um assunto bíblico o que precisamos fazer é ver a bíblia de Snord, ou de Gustavo Doré, ou a de Tissot [...] Quando não vêm [as idéias], deveremos fugir do mundo, isolando-nos num lugar retirado, onde não se recebam jornais, nem revistas, nem visitas, que

Comparando o texto literário com o texto pictórico, Modesto Brocos adverte que os recursos de que dispõe o orador, não são pertinentes ao artista:

230

Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

[...] porquanto está limitado, em absoluto, a representar um dado momento, um instante da cena ou drama que se quer representar.27

Modesto Brocos afiança que o desenho é “alma do quadro” e a probidade da arte, como “disse Ingres”33:

Há um trecho do abade Du Bos28, sobre o recorte cronológico da ação dentro do poema e dentro da pintura, em sua narrativa do paralelo entre a pintura e a poesia, que diz:

Uma obra bem desenhada faz passar despercebida os defeitos de um quadro; seja a cor a composição, e mesmo A invenção passam ao segundo plano, isto é, quando o desenho está feito com verdade, todas as outras qualidades lhe ficam subordinadas. O desenho, num quadro, é o elemento inseparável do assunto; poderemos prescindir das outras qualidades. Quando, porém, uma obra está bem desenhada, impõe-se à admiração do espectador. Sem esta qualidade superior, a obra não se pode suster, nem resiste à análise do crítico, nem mesmo ao juízo imparcial do espectador. Em suma, para terminar: assim como a pronunciação é a alma do discurso, o desenho, em uma pintura, é a alma do quadro.34

Como o quadro que representa uma ação nos permite ver apenas um instante da sua duração, o pintor só pode elevar à condição de sublime coisas que precederam a situação atual e que à vezes sugerem um sentimento comum. A poesia, ao contrário, descreve todos os incidentes notáveis da ação que trata e aquilo que ocorreu e lança freqüentemente algo de maravilhoso sobre uma coisa comum que foi dita ou acontecerá em seguida.29 Cotejando os textos anteriores, do Modesto e Du Bos, fica configurada uma intensa proximidade.

O fundo vem a ser a ação moral que se desprende do discurso [...]. Essa ação moral em arte descobre-se pela impressão de alegria ou tristeza que a vista de um quadro, desperta no espectador, e que poderemos dar o qualificativo de sentimento.35

Sobre a elocução Modesto Brocos propõe que os elementos sejam bem desenhados e pintados para o convencimento e deleite do público: A elocução corresponde na pintura à perfeita execução do quadro, que tem as qualidades que pode ter o discurso: de expressar com verdade o assunto, que a cor seja justa, que a execução seja franca, briosa e de fácil aspecto, que os movimentos dos personagens que entram em cena sejam variados e expressivos, e que o artista apresente no quadro um conjunto harmonioso de beleza e verdade.30

Avalia este estado como superior, intrínseco à própria obra e dela inseparável, pois representa a emoção do artista que a criou. E iguala espectador e artista, imantados pela mesmo sentimento frente à obra. Começa o autor, advertindo-nos dos limites que se impuseram na busca de definições para Beleza: Não nos vamos ocupar de fazer a descrição da beleza, por ser impossível descrevê-la. Nós nos contentaremos de ler o que dizem os tratados que se ocupam dela.36

Nesse ponto de texto, põe em relevância sua idéias sobre o desenho, dentro da obra artística: A pronunciação bem sentida, bem acentuada, com suas paradas, suas mudança de voz no correr do discurso, não pode ser comparada a outra coisa que ao desenho de um quadro, que, pela exatidão dos seus contornos, a verdade das formas, a justeza dos acentos, e a exatidão dos detalhes impressiona agradavelmente ao espectador e seduz a todos os instantes que nos encontremos em sua presença na obra. O desenho, num quadro, é o elemento inseparável do assunto.31

Fazendo eco às palavras de Modesto Brocos, apontamos o que Jean Cassou descreve: Mas se se pode empregar a arte para fins sociais, não é essa, porém, a sua função essencial e específica. Mesmo quando o artista perfilha as doutrinas, as convicções e as mentalidades da sociedade que o utiliza, um sentimento diferente, ainda que obscuro e informulado, guia a sua mão executora e faz do objeto fabricado o receptáculo de uma outra força desconhecida que é a beleza.37

As idéias acima apresentadas, são as idéias correntes do texto de Ingres, no qual diz: O desenho é a probidade da arte e compreende tudo, exceto a tinta. 32

A beleza de uma obra poderia ser qualificada, para alguns, quando há uma “finalidade de imitação servil da natureza”. Aquele que se aproxime mais 231

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

do natural era considerado o mais perfeito – como sucedeu em tempos do realismo e do naturalismo. Aqui, referências ao pensamento de Winckelmann podem ser sugeridas, para quem: A imitação do belo na natureza ou diz respeito a um objeto único, ou reúne as observações sugeridas por diversos objetos e realiza um todo único.38

Entremeado ao seu discurso, vemos considerações mais gerais sobre o processo artístico que delineiam a construção da obra, naquele momento, ou, particularmente, o processo de criação de Modesto Brocos, que deveria seguir uma tendência, um caminho adotado por demais pintores, como: Já tenho dito que será proveitoso, antes de compor, dispor o ânimo vendo revistas de museus, de galerias, ilustrações, etc., para adquirir idéias. Será preciso escolher entre os mestres aqueles que deixam ver o processo empregado, como sejam as obras de Giotto, Mantegna, Boticelli, Carpaccio, em geral todos os quatrocentistas. Agora os autores do século XVII pintaram com malícia, ocultando os processos, porém, nos servem para admirar alguns deles como Velazquez, Van Dick, Murillo, Ribera, etc. Fora destes grandes artistas, que nos merecem respeito, deveremos fugir de todos os pintores da época de Luís XV. [...] tudo quanto fizeram naquela época está longe de ser belo, e em vez de arte é um artifício. Sobre os processos de pintar não creio que se tenha escrito nada de valor. Nos modernos pintores, o processo percebe-se em poucos; é bem notório em David. Em nosso tempo, em Puvis de Chavannes. Para tirar partido do que se vê, eu aconselharia aos que estudam pintura, quando virem um quadro ou uma fotografia que os impressione, ter à mão um álbum dedicado a estes trabalhos e fazer um rascunho a lápis do assunto que o tenha impressionado42.

Para Modesto Brocos, existem duas belezas na obra de arte. A beleza objetiva que é inseparável da escultura, do quadro ou do assunto em questão; e a beleza subjetiva a qual se refere às sensações que a obra produz no espectador. A primeira é exterior, aparente, enquanto a segunda pertence ao foro íntimo, ao nosso juízo. Para o autor existem diferenças entre o belo e o formoso. Se para os retóricos o belo está em conexão com a razão e o formoso à experiência individual, para Modesto Brocos, o belo é uma aspiração da alma para fim indefinido e absoluto (BROCOS:22). A estética vem a ser a sensação que produz em nosso eu, ou seja no íntimo de nossa alma, as obras da natureza, de uma parte, e a dos homens e do artista, do outro; também definem ser a estética a ciência do belo. Só deverá ocupar nossos pensamentos a beleza estética ou seja a beleza das formas, que tem representação plástica 39 E em defesa da obra plástica, - propriamente da pintura -, declara em relação à fotografia, revelando, de uma certa maneira, um debate que deveria estar na ordem do dia – o status da fotografia, como categoria estética: A imitação pode agradar ao vulgo, porém aos espíritos refinados a simples manifestação fotográfica não pode satisfazer, somente nas obras onde se sinta a interpretação do artista, através de sua visão, porquanto, se fôssemos fazer a imitação do que vemos sem metera nossa visão particular, a fotografia seria, por si só, o cúmulo da arte: - falo com relação à pintura.40

É impressionante o texto acima, pois revela-nos as preferências estéticas do autor Modesto Brocos, além de acentuar os artistas para os quais direcionava suas pesquisas, bem como seu processo de anotação em caderno – rascunho – das imagens mais estimulantes, fosse pintura ou fotografia. É particularmente curiosa, a inserção da fotografia como recurso para futuros estudos. E continuando, propõe um exercício voltado para o desenvolvimento das faculdades imaginativas dos alunos, que é revelador sob o ponto de vista metodológico seguido pelo artista, quando em sua função de professor:

O autor, em seu texto sobre estética cita: D. Quixote de Cervantes, Hamlet de Shakespeare, Moisés de Michelangelo, os anões de Velazquez, Viollet-leDuc, Buda, o que nos dá uma compreensão das suas escolhas (BROCOS:27). E ao pontuar sua definição de estética, percebemos uma adesão ao pensamento de Winckelmann, como já aludido anteriormente: A ciência do belo na arte, e mais propriamente: a ciência que tem por estudo as manifestações do gênio artístico dos gregos, na literatura e nas artes.41

[...] será apresentar-lhes em aula o quadro ou assunto de um mestre e dizer-lhes: façam este assunto, porém de outra maneira; isto obrigaria o aluno a compor de diferente maneira o que tinha diante dos olhos, e com aquele modelo bom, eles não poderiam deixar de fazer algo 232

Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

saliente, e o pior que poderia sair seria um pastiche. Outra coisa importante que o professor poderia ensinar em aula: - Por que um quadro faz bem? Isto seria a pedra de toque para se apreciar um quadro e também a cultura de um professor.43

os assuntos belos de verdadeiro valor, dará às suas cores um sentimento estético que os primeiros não terão e suas obras, mau grado o insucesso do primeiro momento, passarão à posteridade. O artista deverá preocupar-se com as relações que existem entre o mundo em que vive e o que imagina e no qual deseja viver; aquele que está cheio de imperfeições, este seguido de grandíssimas dificuldades: o primeiro diz as coisas como elas são, o segundo como elas deveriam ser. Devermos, pois, partir da realidade para elevarnos ao ideal de beleza a que aspiramos, tal será o resultado de um educado entendimento. A muitos pintores lhes sucede de olhar com indiferença para os humanos conhecimentos e afiguram-se que, para ser artista, não precisam mais que saber desenhar e pintar; estes no meu entender não são artistas.[...] o artista e o escritor precisam de grande elevação de espírito e muito saber para conservar-se à altura de sua missão.45

Na sua abordagem do tema em questão é flagrante sua adesão ao raciocínio duplo – arte e religião – como entidades quase indistinguíveis, tanto que pensa em uma religião futura: A arte é uma necessidade que poderemos chamar de superior, que os homens sentem pelas idéias elevadas e poética, coisas que não estão ao seu alcance imediato e das quais precisam para fazer mais agradável a existência. A obra de arte esteve sempre e seguiu “pari passo” a idéia religiosa, e a de fixar nos seus monumentos os grandes feitos da humanidade; mais tarde serviu para as novas religiões, e agora com as modernas idéias, nas quais os povos esperam encontrar seus ideais em um estado de governo mais perfeitos e que poderá dar nascimento à religião futura. Podemos, pois, definir a arte como sendo uma alta manifestação da humanidade ao serviço dos ideais de um povo, sejam estes de interesse imediato, de interesse remoto ou sem interesse algum. Resumindo: arte é um sentimento elevado da nossa alma para as coisas que se encontram fora do nosso alcance e que poderemos chamar divinas. O verdadeiro artista precisa ser um sonhador, que na sua vida trata de fugir a tudo quanto o circunda para formar-se o seu mundo ideal e conservar-se nele sempre a uma altura que o afaste dos perigos ordinários que possa oferecer-lhe a vida vulgar. A arte, segundo, Tolstoi, é um dos órgãos do progresso humano; pela palavra o homem comunica seus pensamentos, pelas imagens comunica seus sentimentos com todos os homens não só do presente como também do porvir.44

As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram registradas nas artes, sobretudo, provocando inquietação. A economia dita novos rumos – São Paulo assume um status novo e sua intelectualidade aciona novos personagens e novo corolário ao programa de arte no país. O nacional é a discussão que se propõe como estética, e que se impõe, às vezes pela força do discurso, pura retórica, do grupo paulista. E é a partir do mesmo recurso - discurso e retórica - que se apropria o autor Modesto Brocos para dar materialidade às suas reflexões, inquietações e inquietações. E consegue, assim, dar corpo, voz e alma ao conteúdo ao longo de seu texto, nem sempre isento como quase sempre desejamos, mas deixando transparecer suas reminiscências, suas heranças e filiações. Coloca em sua pauta discutir o nacional, propor mudanças, as suas, talvez menos revolucionárias. Seu texto está impregnado pelas fragmentações que se fizeram sentir no tecido artístico da virada do século XIX às primeiras décadas do século XX - as propostas modernistas, as vanguardas européias, o advento da fotografia e sua reprodutibilidade, o uso de novos materiais.

E acentua a missão do artista: Podemos definir a razão como sendo o poder que tem nossa alma para conhecer; e as idéias, a representação deste conhecimento. Segundo o que acabamos de dizer, o artista pode escolher entre seus assuntos aqueles que mais agradam ao público, e, seja artista ou literato, não fará com isto mais do que prostituir sua pena ou seu pincel. Agora, o que escolhe

Mas, o que mais se evidencia é sua preocupação da primeira hora – criar melhores condições para seu primeiro leitor – os pintores em formação. Darlhes conteúdo, matéria, substância e espírito. 233

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 28 2 LICHTENSTEIN, Jacqueline(org.). A Pintura – Vol. 7 : O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, .p. 9. 3 MASSÉ, Maria Cabrera. Modesto Brocos. Pintores Gallegos do siglo XIX. 4 Catálogo da Exposição Modesto Brocos/ Retrospectiva. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde/Museu Nacional de Belas Artes, 1952. 5 DUQUE-ESTRADA, Gonzaga. Contemporâneos (pintores e esculptores). Rio de Janeiro: Typo. Benedicto de Souza, p. 87. 6 BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro, 1933. 7 Id., p. 133. 8 Id., p. 5. 9 Ibid., p. 7. 10 Ibid., p. 7. 11 Ibid., p. 9. 12 WINCKELMANN, Johan Joachim. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975. 13 Id. p. 39. 14 BROCOS. Op. cit., p. 10. 15 BROCOS, Modesto, Op. cit., p. 10. 16 Ibid. 11. 17 WINCKELMANN. Op. cit., p. 69. 18 BROCOS. Op. cit., p. 12. 19 VINCI, Leonardo. Tratado da pintura (O Paragone). LICHTENSTEIN, Jacqueline.(org.) A pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, pp. 17-27. 20 BROCOS. Op. cit., p. 13. 21 Id., p. 13. 22 Ibid., p. 14. 23 Ibid., p. 14, 24 Ibid., p. 15. 25 Ibid., p. 16. 26 DIDEROT, Denis. Op. cit., p. 88. 27 BROCOS. Op. cit., p. 16. 28 DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 60-73. 29 DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A Pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, p. 63. 30 BROCOS. Op. cit., p. 17. 31 Id., p. 18. 32 INGRES. Écrits sur l’art. Paris: Bibliothèque des Arts, 1994, p. 41. 33 A historiadora Ana Cavalcanti em artigo faz uma análise comparativa entre os pontos de vistas

Referências bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão. São Paulo: Cia das Letras, 2004. BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro, 1933. Catálogo da Exposição Modesto Brocos/ Retrospectiva. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde/Museu Nacional de Belas Artes, 1952. CASSOU, Jean. Situação da arte moderna. Lisboa: Publicações Europa-Améric, 1965. CAVALCANTI, Ana. O conceito e a arte na visão de um pintor brasileiro entre os séculos XIX e XX – uma leitura dos cadernos de notas de Eliseu Visconti (1866-1944). Artigo disponível na Internet, Dezembro/2007. DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. Campinas: Papirus, 1993. DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 60-73. DUQUE-ESTRADA, Gonzaga. Contemporâneos (pintores e esculptores). Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929. INGRES. Écrits sur l’art. Paris: Bibliothèque des Arts, 1994 MASSÉ, Maria Cabrera. Modesto Brocos. Pintores Gallegos do siglo XIX. SEVCENMKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. TAUNAY, Félix-Émile. Epítome de anatomia relativa às bellas artes seguido de hum compêndio de physiologia das paixões e de algumas considerações geraes sobre proporções com as divisões do corpo humano; offerecido aos alumnos da Imperial Academia das Bellas Artes do Rio de Janeiro, 1837. VINCI, Leonardo. Tratado da pintura (O Paragone). LICHTENSTEIN, Jacqueline.(org.) A pintura – Vol.7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, pp. 17-27. WINCKELMANN, Johan Joachim. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975. WINCKELMAN, J. J. – Reflexões sobre a imitação das obras gregas em pintura e em escultura. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura – Vol. 4: O belo, pp. 76-84. Notas 1

SEVCENCO. Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira 234

Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores 39

antagônicos de Eliseu Visconti e Modesto Brocos, quanto a este aspecto. 34 BROCOS. Obra citada p. 18. 35 Ibid., p. 19. 36 Ibid., p. 21. 37 CASSOU, Jean. Situação da arte Moderna. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965, p. 13. 38 WINCKELMANN. Obra citada, p. 47.

40 41 42 43 44 45

235

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

p. p. p. p. p. p. p.

25. 26. 28. 32. 34. 38. 40.

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O tema de nossa comunicação é a crítica de arte tal como praticada no Brasil ao tempo da chamada Belle Époque, das duas últimas décadas do Séc. XIX às vésperas da Semana de Arte Moderna, ou seja, entre o ocaso do Império e a primeira República. Não sendo possível à mingua de espaço analisar a contribuição de todos os inúmeros críticos ativos no período, centraremos nossas atenções em alguns dos mais eminentes, como o foram decerto Gonzaga Duque, Ângelo Agostini, Félix Ferreira, Angione Costa, João do Rio, Monteiro Lobato e os talvez menos conhecidos Flexa Ribeiro, Virgilio Maurício e João Ribeiro Pinheiro, deixando para uma próxima oportunidade a análise da produção crítica de Melo Morais Filho, Oscar Guanabarino, Escragnolle Doria, Laudelino Freire, Nestor Rangel Pestana, Moisés Nogueira da Silva, Terra de Sena, Torres Pastorino, Carlos Rubens, Carlos Américo dos Santos e Tapajós Gomes, entre outros. De modo geral, a crítica de arte brasileira da época era provinciana e desinformada, merecedora decerto do sombrio diagnóstico que lhe traçou Frederico Barata: Àquele tempo, o que caracterizava o bom artista era o perfeito da técnica acadêmica, por intermédio da qual revelava e afirmava a personalidade. Destacava-se quem, dentro de fórmulas mais ou menos rígidas, melhor se subordinava aos cânones oficiais. Tudo era simples e todos podiam saber o que era melhor porque havia um padrão inalterável para o aferimento da capacidade do pintor: o padrão instituído entre nós pela Missão Le Breton e aperfeiçoado com ligeiras e superficiais variantes pelo ensino da Academia Imperial de Belas Artes, apoiado e estimulado pelo mecenato conservador de Dom Pedro II. Era a época de uma sociedade que vivia com os olhos postos em Paris, tendo na França todos os seus ídolos pictóricos. Diante de um quadro, numa exposição indígena, o melhor louvor seria: parece pintura francesa -, como seria o melhor elogio a uma senhora elegante, vestida com roupas importadas do Velho Mundo, dizer-se: parece uma parisiense. Era o momento em que a crítica pontificava, também ela padronizada, com citações de Ruskin e de Taine e comparações eruditas entre os nossos e os mestres do passado e do presente da França imortal, valendo pela erudição que demonstrava ao expor teorias científicas de Chevreul, Veron ou Charles Blanc, para provar que Bernardelli abusava dos violetas e que “a sombra deve tingir-se sempre da complementar da cor iluminada”, ou para arrasar a bela marinha Um dia de gala, de

a critica de arte da belle époque josé roberto teixeira leite *

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A critica de arte da Belle Époque

Castagneto, porque “a fumaça se dirige para o fundo da paisagem, em caminho da barra, sendo o vento reinante nessa ocasião o do Norte, enquanto as bandeiras de todos os navios estão tremendo à brisa do Leste”...

É certo que entre nós todos os que escrevem a respeito de exposições, concertos, ou qualquer outra manifestação artística, se acreditam críticos de arte. Na verdade, o que faltava à crítica de arte brasileira de então, além da experiência visual apenas adquirível no convívio com grandes obras de arte de todos os tempos, gêneros e estilos, era um maior embasamento teórico, familiaridade com os problemas da Estética e da História da Arte. Atividade quase sempre de literatos, limitava-se a descrever com belas palavras o assunto das obras de arte, sem nunca ir além da simples transposição literária; ou então era ocupação de artistas frustrados, que se apraziam em apontar falhas de desenho, erros de anatomia etc. Houve exceções, é claro – mas poucas. Nas páginas que seguem enfocaremos algumas delas, críticos e historiadores de arte que se destacaram no período, a começar pelo maior de todos, Gonzaga Duque.

Desmoralizada e improvisada, equiparada ao que de mais frívolo e superficial existia no jornalismo da época, assim a via ainda em começos da década de 1920 Flexa Ribeiro, para quem teria deixado de ser aquele ... dever sagrado que o crítico é chamado a exercer: mas que, infelizmente, entre nós, quase não existe, pois que um ou dois espíritos que dela se ocupam com devotamento, com ardor, com fé e honestidade ficam desde logo esmagados pela algaravia de latão e pechisbeque com que os mocinhos dos jornais atestam a opinião comum. Manda-se fazer, nas folhas, o comentário do “Salão” com o mesmo leviano açodamento com que se anotam, nas seções “Sociais” e “Elegantes”, as pessoas que se acotovelaram num baile; e o repórter que vai entrevistar o inspetor da Alfândega sobre as novas tarifas aduaneiras é o mesmo infeliz a quem se comete o carrego de criticar, com gravidade, as obras de arte exibidas nas galerias anuais, pelos infelicíssimos expositores.

Gonzaga Duque (1863-1911) Filho de pai sueco que não chegou a conhecer (foi registrado pelo pai adotivo, com o sobrenome materno), Gonzaga Duque nasceu no Rio de Janeiro, e a Andrade Muricy a atividade na qual se destacou pareceu tão apartada do gosto nacional que o grande exegeta do Simbolismo no Brasil pretendeu explicar por essa ascendência escandinava “a excepcional sensibilidade para as artes plásticas” cedo revelada pelo autor de A Arte Brasileira!

Mais ou menos na mesma tecla batia Virgílio Maurício, a reclamar do despreparo dos críticos e de como se improvisavam da noite para o dia:

Gonzaga Duque fez estudos básicos na cidade natal e em Petrópolis, enveredando em seguida pelo jornalismo para afinal ingressar no serviço público, e ao falecer prematuramente em 1911 dirigia a Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro. Embora se tivesse notabilizado como crítico de arte, romancista e contista, sua primeira vocação foi a pintura, da qual cedo teve de se apartar pelos motivos que expôs numa anotação feita a 4 de janeiro de 1900 em seu Jornal:

- Quais os nossos críticos de arte? Em geral, o que se registra vive circunscrito a um círculo de simpatias ou antipatias, às amizades que os expositores conquistaram com os diretores dos diários, à intimidade com este ou aquele repórter, o que lhes assegura notas cheias de louvores, não lhes proporcionando emoção, porquanto foram traçadas por quem não entende de pintura, não conhece técnica, não viu e não tem cultura bastante para evidenciar a beleza de uma pasta, o traço estilístico de uma obra, a originalidade de expressão de um artista, a simplicidade correta do traço, a ciência complexa dos valores. Infelizmente, a maior parte dos que assinam artigos sobre pintura não entende do que analisa. Para ser crítico de arte não basta apenas saber escrever bem, ser fecundo em imagens literárias, conhecer as regras da gramática. É necessário possuir outros predicados: visão, perceptibilidade, conhecimento técnico dos ateliês, estudo especial bebido nos museus, diante das grandes obras e cultura geral – muita cultura.

- Morava eu muito longe e de mais só podia contar com um dos olhos porque a catarata passava para a vista direita. A esquerda, de que fui operado, dificilmente deixava-me trabalhar à noite. A cor branca do papel e a claridade da chama da vela (porque a minha pobreza me não consentia ter uma boa lâmpada de leitura) perturbavam-me a absorção visual. Ao fim de uma hora de leitura eu nada mais via. Os caracteres esmaeciam, tornavam-se indistintos; uma enorme mancha amarelada cobria as folhas. 237

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Queixa-se outra vez da perda gradual da visão numa conversa com o pintor Roberto Rowley Mendes, relatada no mesmo Jornal com data de 8 de março de 1900:

recentes, não raro reformulando posições e conceitos anteriores. Muito significativo, não só por se referir ao Impressionismo num momento em que pouquíssimos brasileiros tinham a mínima informação sobre essa tendência pictórica, como pelas violentas críticas endereçadas ao ensino acadêmico e ao tipo de arte dele proveniente, é o trecho que abaixo transcrevemos:

- Afinal, como Roberto me pedisse opinião sobre um valor empregado na tela e eu dificilmente o distinguisse, queixo-me de mais esta infelicidade, a perda de um excelente órgão que tanto influiu na minha disposição para a crítica de belas-artes. Nasci pintor – disse eu – creio que poucos têm possuído uma tão grande sensibilidade para a cor como eu tive. Cheguei a perceber a combinação das tintas nos mais velhos quadros. E, agora, rendo graças a Deus por me não ter favorecido a oportunidade desta profissão, porque no estado em que me acho, se fosse pintor, suicidavame.

- A arte de pintar está paralisada neste país, enfezou nos cueiros. Enquanto ela, na Europa, se serve de uma técnica rigorosa, possui todos os segredos da refração da luz, do prisma solar; todos os recursos da química, que lhe dão a transparência das tintas, a segurança dos valores, a límpida simplicidade dos tons, aqui continua nos arcaicos processos onânicos da pintura friccionada, esbatida e raquítica, sem nervos, sem sangue, sem alma! É uma masturbação à blaireau. - E o que pode resultar deste vício secreto senão a clorose desanimadora, o contágio desmoralizador que estamos observando? Vocês vivem na Academia como se vivessem num internato de padralhões sórdidos, sob o jugo da rotina e a infecção do sodomismo, bestializam-se e esgotam-se. Para cada parede que olham, em cada passo que fazem, têm um mau exemplo, uma arte sem valor técnico e sem espiritualidade. A Pinacoteca ali está, reparem em suas coleções. Que pobreza! Que impotência! Não se nota na maioria dessas obras uma alma, um temperamento. Concepções tomadas de empréstimo, ou servilmente imitadas, execução frouxa, fraca, inútil; aí tudo é negativo, é reles ou é chato; não afirma um talento, não constata saber. Os panejamentos tanto podem ser panos como pedras, as carnes aproximam-se dos rabanetes pela cor, ou das neves amorangadas dos saraus, pela densidade. Um horror!...

Decerto não é o momento de traçar a biografia de Gonzaga Duque; diremos apenas que em vida só publicou dois livros de crítica, A Arte Brasileira, em 1888, e Graves e Frívolos, em 1910; além disso, o romance Mocidade Morta, em 1899, a biografia Marechal Niemeyer e ainda Revoluções Brasileiras. Postumamente apareceriam os contos de Horto de Mágoas (1914) e as críticas e crônicas de arte de Contemporâneos (1929) e de Impressões de um Amador (2001). Todo o vasto material aparecido em jornais e revistas da época e ainda inédito em livro vem sendo sistematicamente trabalhado pela Fundação Casa de Ruy Barbosa, na qual se conserva o Arquivo Gonzaga Duque, ali depositado por seu genro, o poeta Murilo Araújo. Considerado, ao lado de Nestor Vitor e de Rocha Pombo, um dos expoentes máximos da prosa simbolista no país, Gonzaga Duque é autor do talvez único romance à clef brasileiro, Mocidade Morta, no qual esboçou o panorama do ambiente artístico do Rio de Janeiro às vésperas do Séc. XX, com seus personagens, aspirações e frustrações. Muitos desses personagens podem ser identificados: Camilo Prado, por exemplo, é o próprio Gonzaga Duque; Agrário é Belmiro de Almeida; há traços de vários figurões artísticos de começos da República, mas principalmente de Pedro Américo, na figura de Telésforo de Andrade, enquanto sob as roupagens de Sabino escondese Isaltino Barbosa, há algo de Castagneto em Sforzani e Cesário Rios é o escultor Almeida Reis. Todos são artistas insatisfeitos ou revoltados, incompreendidos por um meio ao qual devotavam por sua vez profundo desdém. Por suas bocas, Gonzaga Duque externa suas próprias convicções estéticas, algumas já enunciadas mais de dez anos antes em A Arte Brasileira, mas a maior parte

Num outro diálogo entre jovens artistas, o autor divaga sobre a arte do futuro: - Toma a tua palheta, vai para a natureza, estuda-a, observa, resolve, esmiúça, procura bela o que ela há de ter unicamente para a tua visualidade, fixa esta nota, desenvolve-a, vive para ela, dá-lhe a tua alma... - E depois? - Depois, terás conseguido a tua arte, nota bem – a tua arte! – e outros virão fazer com a mesma independência, animados pelo exemplo triunfante do teu lutar. Depois cairão os estafados preceitos do academicismo, o sistema métrico das concepções guiadas, os 238

A critica de arte da Belle Époque

Essa obediência servil à realidade motivaria aliás ao jovem crítico algumas de suas páginas menos felizes. Exemplos:

dogmas estéticos do ensino oficial. Aí tens tu, é o início da revolução com que sonho... Voltemo-nos porém para os livros especificamente de crítica de arte que Gonzaga Duque deixou. O mais antigo, A Arte Brasileira, escrito aos 23 anos e publicado aos 25, impressiona pela precocidade do autor e por sua invulgar cultura livresca, evidenciada por abundantes citações a Oliveira Martins, Taine, Theodore Silvestre, Charles Blanc, Fromentin, Veron, Claretie, Gigoux, Planche, Chesneau e inúmeros outros. Mas o que dá encanto especial a algumas páginas, como as que dedica a Castagneto ou a Belmiro de Almeida, é que Gonzaga Duque privou da intimidade de muitos dos artistas cuja obra comenta.

- A expressão desta figura não tem verdade. Um caçador que passa por uma impressão como aquela, não olha para o céu, admira curiosamente a descoberta feita por acaso. O movimento dos cães que se estorcem, latindo, escaldados pela temperatura das águas termais, é bem precisado; e o busto do pajem que está acocorado no segundo plano revela não vulgares conhecimentos de anatomia das formas. - A espádua e o braço esquerdos, a saliência do músculo deltóide, o comprido supinador, toda a contração do pulso e mão deste braço, são admiravelmente observados. - A figura de Dom Pedro é poseuse e acha-se mal montada, gravidade esta que aumenta diante da grande reputação de perfeito cavaleiro de que gozava o primeiro monarca. - A cabeça de Sertório, como ali se vê, é vulgar e até feia. O seu tipo não indica uma personagem que tanta importância teve na guerra da Espanha. É uma figura risonha, raquítica, cabeça chata, cabelos à escovinha, barba aparada à moderna. Não sei em que documento histórico o artista estribou-se para fazer do simpático personagem um ente tão feio.

Como um todo, A Arte Brasileira é obra de inspiração taineana, o que se percebe já no primeiro capítulo, “Causas”, que fecha com uma citação da Philosophie de l´Art dans les Pays-Bas, e fica ainda mais nítido quando, ao tratar da arte de Henrique Bernardelli, o autor afirma que “para se compreender uma obra de arte é necessário compreender o meio em que esta nasce”; aliás, a própria estrutura geral do livro em quatro grandes seções – “Causas”, “Manifestação”, “Progresso” e “Conclusão” – deve-se decerto a Taine, como também a Comte. A crítica de Gonzaga Duque, nesse seu livro da mocidade (que de modo geral persegue a trilha aberta poucos anos antes por Félix Ferreira, como veremos mais adiante), baseia-se no velho critério da semelhança, segundo o qual as obras devem guardar estreita semelhança com o modelo de que se originam. Assim, ao se referir às naturezasmortas de Estevão Silva, ele não encontra elogio maior do que dizer:

Por vezes a crítica acadêmica cede vez à crítica de ateliê, já que para o pintor que Gonzaga Duque também era, a cozinha pictórica parece não ter tido segredos: - O verde azulado, talvez azul da Prússia e um pouco de ocre, que se lhes nota, predomina em todas as folhas; a luz, cujo foco não é precisado, uniformiza todos os tons, confunde o valor e as complementarias, obscurece os efeitos do claro-escuro. - A cor é quente, quase sempre exata, bem observada; o desenho minucioso em todos os detalhes, as perspectivas felizmente desenvolvidas, em suma, as suas obras são concluídas com máximo rigor.

- Os seus pêssegos são na forma, na cor, na penugem macia e alourada que os reveste, verdadeiros pêssegos; sente-se nas mangas por ele pintadas o olor penetrante e delicado desses frutos saborosíssimos; não é possível que haja cor mais exata, desenho mais preciso, do que a cor e o desenho desses abacaxis que se vêm em suas telas, entre os mais frescos, os mais sazonados cambucás, abacates e laranjas. Que excelentes uvas, que doces araçás, que gostosos frutos, estes que ele imita. Ali está a fidelidade, está a realidade, e quando o artista consegue nos iludir perfeitamente, quando consegue passar para a tela o que vê e o que sente na natureza, tem conseguido tudo.

A Batalha de Campo Grande, a Fuga para o Egito, o Último Tamoio e tantas outras obras notáveis servem-lhe de pretexto para minuciosas descrições literárias, repletas de preocupações historicistas. Assim, para demonstrar que Pedro Américo equivocou-se ao representar Joana d´Arc como se fora um personagem bíblico – “incorrendo em falta gravíssima, porque praticou um crime contra a probidade histórica” -, alonga-se por três páginas, 239

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

citando as opiniões de Martin, Lock, Laturneau e outros para concluir ter ela sido “uma pobre rapariga alucinada, vítima de uma erecção cerebral, e de uma excepcional organização física”!

Mais vivido, mais mundano, reinando absoluto nos círculos artísticos da capital da República de começos do Séc. XX, Gonzaga Duque põe de lado a crítica “ensobrecasacada, circunspecta e doutoral” para adotar atitude menos rígida. E embora por vezes ainda o incomode a anatomia das figuras de um Artur Timóteo, por exemplo, ele dá-se agora o direito de intercalar em seu discurso crítico a descrição de uma “esvelta senhora” com que se depara ao visitar o Salão de 1906:

São, os seus, defeitos também da época. De qualquer modo, A Arte Brasileira, se possui o mérito de revelar pela primeira vez em visão panorâmica a produção artística nacional dos primórdios a 1888, é livro prejudicado pelos próprios preconceitos de seu jovem autor; aliás, o próprio Gonzaga Duque anos mais tarde se aperceberia da fragilidade da maioria dos argumentos e conceitos que empregara na mocidade, e até prometia uma nova edição aumentada e decerto revista do trabalho de estréia, o que a morte não permitiu realizasse.

- Ah!... Percebo que se me foi o bom humor depois que aquela formosa dama de lindos olhos partiu. E quem seria?... Ora, que me importa saber quem seria tão donairosa dama! Uma deusa, talvez, descida à terra para dar a um pobre mortal, arruinado e tristes, a alegria necessária à sua penosa missão... De qualquer forma, verdadeira ou imaginária, deusa ou simples madame três estrelinhas, de qualquer forma, uma linda mulher! Isto basta.

Em Graves e Frívolos, de 1910, e em Contemporâneos, publicado postumamente, desaparecem o tom dogmático e mesmo a rabujice. A frase sai-lhe sempre elegante ou graciosa, e ao academicismo ranheta da primeira fase sucede um impressionismo bem mais do agrado dos leitores. As citações continuam abundantes – agora a Ruskin, Langel, Arrest e outros hoje esquecidos; mas a linguagem tende a assumir forma poética, às vezes nefelibata. É o simbolista, mais do que o crítico, quem assim descreve as Oréades de Visconti:

Quando externa sua admiração por Dame à la Rose, de Belmiro, é em termos galantes que o faz: - A linha esguia deste corpito, vestindo tecidos negros, move-se numa graça serpentina e tão nervosa e magra ela é que lembra uma tulipa negra! Sobre a fragilidade do pescocinho a cabeça volve-se para nos sorrir – descobrese-lhe, então, a insídia do olhar que nos fascina, a feitiçaria do sorriso que nos entontece. É uma viva figura, uma admirável figura que, entusiasmando Policarpo, lhe arranca da originalidade esta frase, em que está caracterizado todo o exquis do modelo: Bizarro louva-deus da moda!

- Oréades – chamavam-se as ninfas dos montes e dos bosques, na suntuosa e fecunda mitologia. Por declínio das tardes, ainda sob o derramo de ouro polvilhado do sol, elas surgiam de encantados esconderijos, aos tabefes nas panderolas e sons de avenas, para a ronda saltitante de enamorados, às mãos dos zagais mancebos. E, na cadência das danças, lá se iam por meandros de vales e touças de montes, entre descantes e voleios, numa folgada seranda de rapazio gárrulo...

Julio Castañon Guimarães observou que o título Graves e Frívolos do livro de 1910 pode derivar de um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, no qual o personagem dirige ao leitor estas palavras: ‘Acresce que a gente frívola achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião”.

Volta e meia as frases soam pedantes, quando não ameaçam transformar-se numa algaravia incompreensível – como nesse trecho, em que trata de uma obra de Hélios Seelinger: “Não é que ela se force nos ambages de exotismos pasmadores, que deliciam o snob nas bizarrices crespas do seu guindado gosto à des Esseintes postiços, e estupidificam ainda mais, se é possível o máximo, os farsantes do amadorismo que se empavesam e repimpam com o xairel da nobiliarquia...

Por sua vez, para Massaud Moisés o título revela “o inconsciente desejo do autor de pousar em temas alguns graves, outros frívolos, sem maior compromisso senão com a beleza da forma” – compromisso que irá caracterizar a segunda fase da crítica de Gonzaga Duque, aquela que seria a mais típica do autor, e também a mais reveladora das preocupações e anseios do 1900 pictórico brasileiro.

Ou então neste outro, em que analisa um retrato pintado por Presciliano Silva: ¨O tipo parece kodaquisado. “É um manso pastrano feito de abegão ou de arrais, de cara anfrata, escarafunchada e estúpida”. 240

A critica de arte da Belle Époque

Idêntica ironia perpassa por seus escritos, como nesse trecho de um artigo publicado na mesma Revista Ilustrada de 10 de maio, com críticas a Vitor Meireles e à sua Batalha dos Guararapes:

Precursores, Contemporâneos e Retardatários Sem terem desfrutado do prestígio de Gonzaga Duque, muitos antes dele, quando vivia ou após sua morte foram os que trataram de exposições e outros assuntos de arte na imprensa, quando não publicando livros. Detenhamo-nos brevemente no exame de alguns deles.

- Quem percorre os Fastos de Napoleão, ou outra coleção qualquer de quadros de batalha, encontrará muita figura parecida com as da Batalha de Guararapes; e no entanto há defeitos muito salientes neste quadro: o chão está asseado como se a empresa Gary tivesse varrido e irrigado na véspera; as fardas estão escovadas e sopradas, que fazem a inveja dos nossos oficiais que vão ao beija-mão; o cavalo de Vidal de Negreiros, brunido e lustroso como um bagre recém-pescado, parece copiado de um cavalinho de pau. Há figuras em posições realmente cômicas: no primeiro plano um holandês de quatro pés, parece na atitude espectante de algum medicamento que não se toma pela boca, e o holandês, ao lado, com a mão cerrada e erguida como quem tem desejo de dar um murro na cabeça do outro para não ser tolo; à direita do espectador, um índio com o cabelo todo voltado para o lado, como os carecas que levam o cabelo da nuca até a testa, ergue a perna procurando aliviar não a dor do ferimento, mas algum incômodo do ventre; o grupo do tambor que parece duvidar se aquilo é mesmo uma batalha ou um encontro feliz dos heróis daquela época; e à esquerda do espectador, um holandês junto dos pretinhos, que abre os braços e olha muito admirado para as calças amarelas cheias de sangue, como quem exclama: - Diabos!... Esses moleques não me sujaram as calças! E todas essas figuras, analisadas conforme o assunto do quadro, não parecem contrariadas por se acharem ali reunidas? O Sr. Vítor Meireles pinta uma figura de pernas abertas, e pensa que desenha um homem a correr; mas não há movimento, não há animação, e todos os seus personagens, frios, calmos, parecem doidos por deixarem a incômoda posição em que foram pintados.

Ângelo Agostini (1843-1910) Para muitos o maior caricaturista brasileiro do Séc. XIX, nascido embora na Itália, Ângelo Agostini nunca se arvorou em crítico de arte, o que não o impediu de publicar textos críticos nos periódicos em que colaborou, como a Vida Fluminense e mormente a Revista Ilustrada, que fundou e dirigiu entre 1876 e 1889. Por outro lado, e admitindo que uma imagem vale por mil palavras, não deixam de constituir um tipo sui-generis de crítica de arte as caricaturas, ou comentários gráficos satíricos (como as definiu Alvarus), que publicou a partir de 1879, analisando obra a obra, por vezes em sucessivas edições da Revista, os envios às Exposições Gerais de Belas Artes, pondo a nu defeitos de composição, anatomia, proporção, perspectiva, desenho etc., tudo com uma segurança reveladora de largo tirocínio e bons conhecimentos técnicos. Sofreram dessa maneira sob o cutelo de sua impiedosa ironia pintores como Zeferino da Costa, Amoedo, José Maria de Medeiros, Vítor Meireles, Pedro Américo e dezenas de outros. A caricatura da Joana d´Arc, de Pedro Américo, exposta no Salão de 1884, trazia por exemplo a seguinte legenda: “Ouve uma voz que lhe prediz seu fatal destino. Terás uns olhos que não caberão na tua cabeça e serás pintada pelo professor Pedro Américo de Figueiredo e Melo... Joana aterrada e com os olhos a saltarem da cabeça cai ajoelhada. É o momento escolhido pelo pintor”... Os mais ferinos comentários gráficos de Agostini seriam porém os que dedicou à Batalha do Avaí e à Batalha dos Guararapes, exibidas lado a lado na Exposição de 1879. No primeiro, publicado a 25 de abril desse ano, soldados e cavaleiros da Batalha do Avaí emigram da agitada composição de Pedro Américo para a morna Batalha dos Guararapes de Vítor Meireles, na vã tentativa de torná-la mais animada; no segundo, de 10 de maio, encarapitados em escadas ou pendurados em andaimes, oito pintores se incumbem da execução da Batalha do Avaí (uma alusão a Horace Vernet, Gustave Doré e outros artistas que Pedro Américo teria plagiado), vendo-se o próprio Pedro Américo a um canto, escrevendo, sentado a uma mesa e rodeado de livros...

Felix Ferreira (1848-1898) Nascido e falecido no Rio de Janeiro, Félix Ferreira foi escritor, jornalista, bibliófilo, funcionário da Biblioteca Nacional e dono de livraria. Autor de comédias em verso, romances, biografias, livros didáticos e ainda de outros livros, sua importância para a crítica de arte brasileira reside no fato de ter publicado em começos de 1885 Belas Artes – Estudos e Apreciações, obra na qual, apesar do juízo severo e certamente injusto com que a fulminou Sílvio Romero na História da Literatura 241

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Brasileira – “ultimamente apareceram uns Estudos sobre Belas Artes do Sr. Felix Félix Ferreira. São despidos de merecimento do ponto de vista crítico e histórico” -, possui méritos, inclusive o da precedência, uma vez que antecipou em três anos o aparecimento do tão mais conhecido A Arte Brasileira, de Gonzaga Duque – que bem pode ter nele encontrado motivação.

alguns defeitos, é verdade, mas tem belezas, principalmente de colorido” – e posa de moralista ao analisar o envio de Rodolfo Amoedo à grande exposição de 1884: “... o Sr. Rodolfo Amoedo, com o Sacrifício de Abel, em que vai melhor que nas mulheres nuas que deu agora para fazer, para pasto dos olhos naturalistas e com prejuízo de seus progressos artísticos”.

Belas Artes divide-se em quatro partes, sendo a primeira uma síntese histórica da arte ocidental, e a última um perfil de Bethencourt da Silva. As segunda e terceira partes nos importam mais, porque reúnem comentários sobre seis exposições realizadas em 1882 e 1883 – a do Liceu de Artes e Ofícios e as de Almeida Júnior, Arsênio Silva, Aurélio de Figueiredo, Firmino Monteiro e Vítor Meireles -, e uma análise minuciosa da Exposição Geral de Belas Artes de 1884, última do Império.

Alguns trechos de seu livro revestem-se por outro lado de valor inestimável – como o em que descreve, melhor dizendo, recria o ateliê de Aurélio de Figueiredo, ou a minuciosa análise que faz da Exposição Geral de Belas Artes de 1884, artista por artista e quase obra por obra. Angione Costa (1878-1954) Arqueólogo, jornalista e professor no Museu Histórico Nacional, o potiguar João Angione Costa fez seus estudos no Pará antes de se radicar no Rio de Janeiro, onde faleceu. A justificativa para a sua inclusão na presente comunicação é o livro A Inquietação das Abelhas, que publicou em 1927 e no qual recolheu o que pensavam e diziam alguns dos principais pintores, escultores e arquitetos do momento. Talvez remotamente inspirada por O Momento Literário, de João do Rio, A Inquietação das Abelhas principia por longa introdução na qual o autor emite opiniões nem sempre favoráveis sobre alguns dos mais festejados artistas da época, revelando-se um não-conformista, aberto às tendências de renovação que já então sacudiam o país. Escreve por exemplo sobre Pedro Alexandrino:

Mesmo sem se considerar crítico de arte (“não tendo estas páginas pretensões a crítica de arte, que é coisa difícil e requer competência que me falece, aqui darei apenas as minhas impressões, unicamente do ponto de vista em que apreciei os quadros”), não deixa Félix Ferreira de externar juízos críticos sobre exposições, artistas e tendências, quase sempre se limitando a extensas descrições literárias de pinturas como o Combate Naval do Riachuelo ou Francesca da Rimini. Por vezes devaneia, como quando descreve Um cantinho de ateliê, de Almeida Júnior: - A figura da moça é muito natural, bem desenhada e delicadamente colorida; a sua presença na sala de trabalho do pintor desperta uma lembrança poética, que interessa o contemplador, a de um segredo revelado talvez na hora da partida, uma doce lembrança desses dourados sonhos que povoam abundantemente a mocidade dos artistas e poetas, esses eternos boêmios das floridas regiões do amor e da fantasia...

- O mais justo conceito que a sua arte pode inspirar à nossa crítica, é que, a sua fábrica de artefatos, tachos e metais, se mantém a mais variada e perfeita, da pintura nacional. As suas naturezas-mortas continuam a dar bons preços no mercado, embora o mestre já se haja habituado a truques normais para conseguir determinados efeitos, especialmente quando pinta metais.

Tal como o Gonzaga Duque da primeira fase, dá fundamental importância à correção anatômica – “a musculatura dos braços parece-nos boa, outro tanto não diremos do tronco”, escreve sobre o São Sebastião de Chaves Pinheiro), parece identificar como “impressionismo” qualquer coisa mal acabada, apressada ou incompleta – “tudo ali é tratado com um cuidado que revela um artista consciencioso, e não desses que, sob o pretexto de impressionismo, escondem no apressado do esboço a insciência do bem acabar” (sobre Pendant le Repos, de Almeida Júnior), limita com freqüência seus juízos de valor ao mero gosto/não gosto das apreciações subjetivas – “Partida de Jacob tem

Não menos contundente é sua opinião acerca de algumas glórias nacionais: - Desse grupo notável de pintores vivos da mais velha geração brasileira, é possível tentar, numa síntese, o quadro comparativo seguinte: Rodolfo Amoedo é a decadência; Pedro Alexandrino, banalizou-se; Bernardelli e Parreiras, pararam; Visconti, o mais avançado de todos, e sensivelmente mais moço que os outros, se atira a uma luta formidável, para não

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A critica de arte da Belle Époque

elefantíases mal-esculpidas”, confessando-se porém perturbado ante os Passos da Paixão (“essas figuras causam alucinações... uma sensação mórbida que me faz apressar a saída”). Espírito predisposto ao novo, seu corajoso discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (na qual ingressou com menos de 30 anos), perante uma platéia que incluía Rui Barbosa, Bilac, Coelho Neto e outras celebridades nada propensas a novidades, foi o de um pré-modernista, alguém certamente a par das idéias expostas por Marinetti no Manifesto Futurista, publicado em Paris poucos meses antes:

desmerecer das conquistas de poucos anos atrás. Só mais um exemplo: - Perdoe-nos, Dona Georgina. Mas desejaríamos vê-la preocupar-se menos com os efeitos de luz sobre as formas femininas e empregar o seu magnífico talento em composições de maior responsabilidade, que não constituam variações do eterno tema da moça deitada, casta e ingênua, ao sol. Há de confessar que o seu talento pode produzir muito mais.

A paisagem com a vegetação dos canos das usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos, a disparada dos automóveis, os oceanos desventrados pelos submarinos obrigam o artista a sentir e ver d´outro feitio, amar d´outra forma, reproduzir d´outra maneira... A aspiração dos artistas novos seria a de fixar através da própria personalidade o grande momento de transformação social de sua pátria na maravilha da vida contemporânea; a de refletir a vertiginosa ânsia de progresso; a de gravar o instante em que os velhos sonhos afundam, com todas as superstições de outrora, inclusive a da moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável.

Inversamente, não esconde sua admiração por um pintor nada convencional, como o era então Henrique Cavalleiro, em quem reconhece “o mais moderno, o mais forte, o mais acertado artista das novas gerações brasileiras”. João do Rio (1881-1921) Gordo, mulato, homossexual, protagonista de rumoroso caso de amor protagonizado com ninguém menos do que Isadora Duncan, venal e destemido, feminista e anti-burguês, autor de livros que em sua época representaram uma drástica ruptura com a mesmice literária e que se chamaram, entre outros, A Alma Encantadora das Ruas ou As Religiões do Rio, o escritor e jornalista carioca João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto) praticou no início da carreira a crítica de arte, assinando-se então Claude, pseudônimo aliás tomado de empréstimo a Zola. Foi crítico rigoroso, que em seus comentários às Exposições Gerais de Belas Artes de 1899 a 1901, publicados em A Cidade do Rio, O Dia e Ateneida, desanca com desassombro nomes consagrados, como Amoedo, Henrique Bernardelli ou Belmiro de Almeida, arrasa a crítica de arte de seu tempo, que define como “hilariante”, “retórica mofada”, “feita de senhores a quem em primeiro lugar falta o imprescindível senso estético”, e por outro lado apóia com decisão artistas como Visconti e Seelinger, nos quais destaca as inclinações para o Simbolismo e o Art Nouveau.

E tudo isso, veja-se bem, onze anos e meio antes da Semana de Arte Moderna, mais precisamente em começos de agosto de 1910! Monteiro Lobato (1882-1947) O grande escritor pré-modernista, que foi pintor e desenhista amador e ainda em 1935 freqüentava as aulas de modelo vivo de Wasth Rodrigues, firmou sua reputação graças aos artigos polêmicos que publicava na imprensa paulistana sobre os mais diversos temas, entre eles, de modo especial, as artes plásticas, sua primeira vocação. Quer comentando salões e exposições, quer externando com objetividade e em linguagem sarcástica e não raro contundente pontos de vista originais sobre o ambiente artístico e a política das artes no estado e no país, Lobato estava fadado a ser, como foi, o mais representativo crítico de arte de São Paulo nas duas primeiras décadas do Sé. XX.

Teve olhos e sensibilidade para perceber a pintura das ruas – título de um dos deliciosos capítulos de A Alma Encantadora das Ruas, no qual louva “os pintores da rua, os heróis da tabuleta, os artistas da arte prática”, humildes decoradores de “bodegas reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis”. Numa viagem a Minas, esteve em Congonhas e viu os Doze Profetas do Aleijadinho, que lhe pareceram “detestáveis, olhando o povaréu com o olhar zangado, por cima de um nariz enorme...

Seu primeiro artigo sobre tema de arte – “Alvorada de uma Artista”, sobre Georgina de Andrade, depois Georgina de Albuquerque – apareceu em 1905 ainda no Jornal de Taubaté; exatos dez anos transcorreriam antes de que publicasse o segundo, “A Caricatura no Brasil”, já agora em O Estado de S. Paulo; de então por diante, nesse jornal e principalmente na Revista do Brasil, fundada em 243

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

1916, suceder-se-iam até fins de 1922, a intervalos, umas poucas dezenas de textos nos quais expunha e defendia com veemência suas idéias acerca de uma arte nacional brasileira, pautada pelo naturalismo e livre o mais possível de influências estrangeiras, como se pode observar por esse trecho de um artigo de fins de 1916:

brasileiros, que no seu entender “continuam de boca aberta esperando as senhas de Paris”: - Até aqui, em matéria de arte nacional, não fomos além da paisagenzinha, da banana ao tacho e do caipira picando fumo. O pintor, esgotados esses três temas geniais, olhava em torno e, nada mais enxergando condigno das suas broxas, fazia delas gancho e se pinha com a máxima seriedade – seriedade de chimpanzé – a pescar faunos, e sátiros e ninfas da Grécia, ou a pilhar cenas da Bretanha. Imitavam nisso os poetas parnasianos (que o são porque o parnasianismo esteve em uso na lua – a lua deles também é Paris); os quais poetas, depois de bem ostrados numa repartição pública, armam botica de ourives ao pé da Acrópole e despendem os ócios a polir e repolir Frinéias, Laíses, Corinas e toda a rua Ipiranga do século de Péricles.

- A pintura brasileira só deixará de ser um pastiche sem valor, um mambembe pó senões, quando se compenetrar que é mister compreender a terra para bem interpretá-la. Foi esta compreensão da terra que possibilitou o surto das escolas holandesa e flamenga até esses cimos Rembrandt e Rubens. Wasth Rodrigues tem a alma aberta a estas luzes. Compreende o erro e vê o caminho. Vai deixar o ateliê constrictor pela única oficina donde saem os grandes artistas: o ar livre, o campo, a mata, a roça. No dia em que as demais vocações artísticas embicarem pela mesma senda, teremos pintura. Até lá teremos uns produtos muitíssimo lógicos da irrisória estética oficial – cadinho de verter para o francês o que é por essência intraduzível.

Infelizmente, porque baseando seus juízos estéticos no naturalismo e na concepção de uma arte nacional, Lobato – que como se percebe não pode ser considerado propriamente um crítico conservador ou acadêmico – muita vez identificou em artistas discretos, como seu próprio mestre Wasth Rodrigues, as sementes da nova arte brasileira, ao mesmo tempo em que não teve olhos para ver a renovação que representava uma artista como Anita Malfatti, sobre cujo envio à citada Exposição do Saci assim escrevia em novembro de 1917, por conseguinte um mês exato antes do desastrado artigo “A propósito da Exposição Malfatti”:

Na mesma tecla de uma arte nacional, naturalista mas não propriamente acadêmica batia Lobato em dois ensaios publicados na Revista do Brasil em fins de 1916 e começos de 1917, respectivamente sobre Pedro Américo e Almeida Júnior, enfatizando a importância da “arte que olha em derredor de si e toma homens e coisas como os vê e sente, dando de ombros aos sobrecenhos carregados e aos ares de desprezo dos bonzos empoados do passado”, ao mesmo tempo em que explicava o que a seu ver inferiorizava o pintor paraibano: “Pedro Américo não era brasileiro, ou melhor, brasílico. Tinha a alma condoreira dos para quem a pátria é o mundo. Dessa feição psíquica resultou o tornar-se com o tempo o maior dos pintores brasileiros e o menos brasílico dos nossos pintores”.

- A Sra. Malfatti também deu sua contribuição em ismo. Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Para. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está hosconcours. Não cabe à crítica falar dele porque não o entende: a crítica neste pormenor corre parelhas com o público que também não entende. É de crer que os artistas autores entendam-nos tanto como a crítica e o público. Em meio deste não entendimento geral é de bom aviso tirar o chapéu e passar adiante.

Quanto a Almeida Júnior, representa, inversamente, “uma coisa nova”, o ponto de partida de uma pintura nacional, que era, no seu entender... o naturalismo: “ A madrugada do dia seguinte raia com Almeida Júnior. Ele conduz pelas mãos uma coisa nova, e verdadeira, o naturalismo. Exerce entre nós a missão de Courbet na França. Pinta não o homem, mas um homem – o filho da terra, e cria com isso a pintura nacional em contraposição à internacional, dominante até aí.”. Por ocasião da Exposição do Saci, por ele organizada em outubro de 1917, Lobato publica, em O Estado de S. Paulo, artigo no qual critica com a mordacidade de sempre os artistas

Flexa Ribeiro (1884-1971) 244

A critica de arte da Belle Époque

José Pinto Flexa Ribeiro foi poeta simbolista, historiador e crítico de arte, professor e colaborador de Ilustração Brasileira, O Malho, Jornal do Comércio e Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, do Correio Paulistano em São Paulo e de La Prensa em Buenos Aires. Tendo concluído seus estudos em Paris, tornou-se em 1918 catedrático de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes, com a tese Rubens e os Flamengos. Na ENBA lecionou até 1954, quando se aposentou, após tê-la dirigido de 1948 a 1952. Além de grande número de artigos na imprensa sobre Rodolfo e Henrique Bernardelli, Zeferino da Costa, Pedro Américo, Rosalvo Ribeiro, Marques Júnior e tantos outros, publicou em 1925 o volume de ensaios O Imaginário – Pretextos de Arte, e a partir de 1962 os quatro alentados tomos de uma História Crítica da Arte.

– eis aí as duas atividades inerentes, consubstanciais de um julgamento dessa natureza. Um só desses fatores é impotente para gerar a nova forma de conhecimento. O crítico de arte não é o que prefere; é o que compreende; e aqui compreender – é criar. Ele precisa sentir o pensamento, e raciocinar as emoções. Só do jogo dessas faculdades, e do conhecimento direto da técnica, resultará, verdadeiramente, a aptidão predestinada a tão elevado ofício. Virgílio Maurício (1892-1937) Virgílio Maurício era o nome artístico do alagoano Vitor Maurício da Costa, pivô de um escândalo que sacudiu na década de 1920 os meios artísticos do Rio de Janeiro: dizia-se que não pintava os quadros que ostentavam seu nome, simplesmente os adquiria em Paris, moço rico que era, e lhes apunha a própria assinatura. Nunca ficou cabalmente comprovado serem ou não de Virgílio Maurício as pinturas que apresentava como suas, e nem hoje isso tem muita importância. Importância tem, isso sim, sua atuação como crítico de arte, consubstanciada em livros como Algumas Figuras e Outras Figuras, e nos muitos artigos ainda dispersos em jornais. Assim, foi dos primeiros entusiastas da obra do Aleijadinho (que em 1925 ainda estava longe de ser uma unanimidade nacional), e percebeu e defendeu com lucidez e vigor a modernidade da obra de Henrique Cavalleiro, Hélios Seelinger ou Artur Timóteo, que preferia às “figuras desarticuladas e sem volume do Sr. Guttmann Bicho”, aos “cromos coloridos do Sr. Teodoro Braga”, à “eterna reprodução de trabalhos anteriores que o Sr. Batista da Costa assina” ou aos “bonecos insignificantes do Sr. Bracet”. Essa independência do crítico, aliada à sua homossexualidade, pode explicar ao menos em parte a grande animosidade que contra ele se levantou. Aberto às novas tendências, foi dos primeiros a perceber a qualidade da pintura do então desconhecido Alfredo Volpi, sobre quem publicou em 1935 em O Imparcial essas palavras, reveladoras de sua acuidade crítica:

Dentre seus livros, O Imaginário é o que mais revela quanto às suas concepções estéticas, fundamentadas no Simbolismo. Enfeixa, ao lado de ensaios mais extensos sobre temas gerais, como “Dois Intérpretes Plásticos de Dante”, “A Pintura na Época de Napoleão”, ‘Renovação da Técnica Escultural” ou “A Estética do Cubismo” (“uma terrível doença de feiúra na arte francesa, e que já passou”), pequenos textos de teor jornalístico alusivos a acontecimentos da vida cultural do Rio de Janeiro – uma encenação de Pélleas et Mélisande em 1920, a presença de Isadora Duncan na cidade, a morte de Alberto Nepomuceno, uma exposição de arte japonesa em 1921 -, quando não a eventos internacionais, como as mortes de Renoir e Jean-Paul Laurens, a dispersão num leilão parisiense do Ateliê Carrière ou o sensacional furto da Gioconda. Fecham o livro dois ensaios sobre crítica de arte, o primeiro sobre Eugene Fromentin, cujo centenário então transcorria, e o segundo, “Da Crítica Nacional”. É no texto sobre Fromentin que Flexa Ribeiro expõe seus próprios conceitos sobre o que deva ser a crítica de arte: - A crítica de arte exige, além do dom providencial, larga aptidão, específica, certeza instintiva no surpreender a beleza, uma espécie de perpétua adivinhação dos instintos revelados. Não basta a cultura: é necessário uma copiosa educação visual. Nela o conhecimento lógico não é bastante; não satisfaz; o intuitivo, que logo se relaciona com a imaginação, é indispensável; é insubstituível. A crítica de arte é uma criação raciocinada. Ela procede por uma análise do sentimento, que se deve concluir por síntese do pensamento. Sentir a minúcia – no modelado, na cor, e apreender – na linha e no volume – a relação de universalidade, de correspondência mental

- Desde ontem procuro uma frase, uma expressão, uma palavra que possa definir, sintetizar minha impressão ao defrontar-me com os trabalhos do Sr. Volpi. Nunca pensei em encontrar em São Paulo um pintor de tão altos recursos técnicos e de tão acentuada personalidade. É uma das organizações mais ricas que tenho encontrado. João Ribeiro Pinheiro (?-1935) 245

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Romancista, poeta e historiador, coube a João Pinheiro Ribeiro publicar em 1931 uma História da Arte Brasileira. Obra de inspiração anti-acadêmica e nacionalista, nela o autor – que não esconde suas simpatias pelo Modernismo – enfoca com originalidade a pintura brasileira tanto antiga quanto contemporânea, não poupando aquela e procurando imprimir rumo ou sentido a essa. Já na “Orientação” com que se abre o livro, explica:

objeto que termina para sua impressão ou sugestão, um quadro que realize espiritualmente para ele um perpétuo status nascens. Qualquer outra forma de pintura, contornada e acabadinha, por maiores que sejam as suas restantes virtudes, dão a impressão de um objeto mumificado e pretérito. Quando tenta porém passar da teoria à prática, João Ribeiro Pinheiro revela-se impotente em enquadrar a produção de nossos pintores nos estreitos limites de seus conceitos: fulmina velhos mestres, como Vítor Meireles (“acho deplorável, como pintura, a sua Batalha dos Guararapes, que lembra em nossos dias, século do cinema, uma visão de bonecos numa fase de câmera lenta”), comete erros grosseiros de avaliação (“os negros não trouxeram maior lastro artístico para a nossa civilização”), nega qualidade às marinhas de Castagneto porque esse artista estaria a seu ver “muito longe do sentido brasileiro subjetivo das marinhas nossas”, sustenta que “a oceanografia é a mais vasta de todas as ciências e o marinhista moderno não pode ser alheio ao seu conhecimento”, maravilha-se com as bananeiras pintadas pelo russo Paulo Gagarin, a quem qualifica de “um pintor das nossas árvores” e aguarda com ansiedade o surgimento daquele a quem chama de o “pintor-herói - explorador e poeta –“, ao qual caberá criar “uma obra nacional e eterna percorrendo os rincões dos guascas até os tejupares do extremo norte, sentindo o ambiente, apreendendo os tipos característicos de cada região nos seus labores naturais¨...

- Tratando-se de um ensaio, onde procuro dar uma idéia do que tem sido e do que pode ser a pintura brasileira, e não propriamente de um catálogo com biografias, não acho que valha a pena analisar os inúmeros cavalheiros, mais ou menos anônimos, que encheram por tantos anos as paredes do nosso salão anual em pura perda. A galeria Uffizi tem 14.000 quadros; há italianos em todos os trajes, barões em todas as vestes, pierrôs com todas as máscaras, espanholas dançando em todos os passos, enfim, a vida da Europa perpassa ali mumificada em duas dimensões. Não é preciso, pois, relembrar a obra inútil dos cavalheiros que entre nós continuaram e continuam a fabricar as mesmas espanholas obsedantes, os mesmos retratos imponentes, de que o Louvre está abarrotado e o Museu do Prado cheio, e que com a sua obra parasitária estrangeira tanto mal têm causado à nossa arte. Ideólogo da cultura mais do que crítico ou historiador de arte, conclui: - A vida moderna destruiu o conceito permanente, pernicioso, que confundia a emoção arqueológica, que a pintura do passado dá, com a verdadeira emoção estética que ela realmente nos deve comunicar. O espectador deve ter de um quadro o fresco sabor dum mundo ou dum

Notas * UNIFIEO; CBHA; ABCA

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Somos assim, meu caro Agrário [...] quando muito pedimos emprestado à França, a Portugal mesmo, duas idéias que não compreendemos mas que nos trazem o deslumbramento da novidade, e começamos a dançar em derredor dela, como selvagens, em torno de um manipanso.[...] seremos, eternamente, uns imitadores, minados pela ociosidade, aterrorizados pela obstinação das criações, preteridos pela imbecilidade ovante... Mocidade Morta, p.78. Mocidade Morta, de Luís Gonzaga Duque Estrada (1863-1911), é apontada por especialistas como uma das mais importantes realizações da prosa simbolista brasileira. Incluída em antologias e manuais de literatura, já foi objeto de diversos estudos literários, e está entre os principais romances brasileiros do século XIX. O romance é o primeiro texto ficcional publicado por Gonzaga Duque. A obra traça um retrato bastante amplo e minucioso da vida artística carioca em fins do século XIX, cobrindo um complexo formado por artistas marginalizados e acadêmicos, críticos, apreciadores de arte e curiosos. Também aborda as difíceis condições de sobrevivência do artista, as formas de apreciação e os padrões de gosto em diferentes extratos da sociedade carioca. Finalmente, não deixa de iluminar os espaços sociais disponíveis ao debate e à atividade crítica no Rio de Janeiro às vésperas da proclamação da República. Essas questões são tratadas ficcionalmente por alguém que conhecia muito bem tudo aquilo: Gonzaga Duque foi um dos maiores, se não o maior crítico de arte de seu tempo. Por tudo isso, trata-se de um romance que tem muitos elementos que interessam aos que estudam a arte brasileira do século XIX. Apesar disso, o texto não tem recebido a atenção que merece dos historiadores.

da arte incompleta à morte de um insubmisso: mocidade morta (1899) de gonzaga duque leticia squeff

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Minha intenção aqui hoje é comentar com vocês algumas conclusões que venho tirando do estudo dessa obra tão curiosa produzida pelo grande crítico. O romance não pode ser perfeitamente compreendido por aqueles que não conhecem o crítico. Trabalhando nas fímbrias da ficção e da realidade, criando uma obra cheia de alusões a pessoas e fatos reais, Gonzaga Duque escreveu um romance que tinha objetivos precisos e visava um público específico. A leitura que farei aqui hoje pretende iluminar não apenas o pensamento e a atividade crítica de Gongaza Duque, como também esse controvertido momento da história das artes brasileiras que foi o final do século XIX brasileiro. Em primeiro lugar, destaco algumas das intenções e demandas que poderiam ter motivado Gonzaga Duque a escrever 247

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mocidade Morta. A seguir, será a vez de investigar o texto ficcional propriamente dito, buscando entender o que ele informa do cenário artístico da época. Antes de começar, porém, vale fazer alguns recortes.

1971: 11; LINS, 1991: 50). A obra não foi bem recebida pelos contemporâneos. Críticos importantes, como José Veríssimo e Medeiros de Albuquerque, veriam sobretudo no estilo o principal problema do livro (LINS, 1991:51, EULALIO, 1995: 294). O romance recebeu apenas duas reedições nos anos 70, e uma mais recente (1995), na esteira do interesse que o Gonzaga Duque crítico vem despertando entre os pesquisadores (KURY, 1995: 9-10). A narrativa de estilo preciosista, o uso de neologismos e palavras inusitadas, entre outros aspectos, tornam o livro difícil de ser percorrido pelo leitor contemporâneo, a despeito do riquíssimo panorama da vida cultural que apresenta.

Não discutirei questões relativas à características internas ao romance, seu vínculo com a estética simbolista e outras correntes literárias. Também sua ligação com a extensa, e ainda em parte dispersa obra de Gonzaga Duque está fora das preocupações desta apresentação. Finalmente, o que estou apresentando é parte de um trabalho que está em andamento. Sendo assim, as hipóteses e conclusões apresentadas aqui podem e deverão ser revistas em outras oportunidades.

Críticos literários e historiadores têm visto em Mocidade Morta relações com mais de uma obra de seu tempo. Para Afrânio Coutinho, o romance reflete o conteúdo doutrinário e técnico da obra À Rebours (1884) de J.K. Huysmans (1971:7). Vera Lins observa que o romance alinha-se aos textos autobiográficos do final do século XIX no Ocidente, que se constroem como reformulação moderna do Bildungsroman (LINS, 1991: 48).

1. Gonzaga Duque e Mocidade Morta Gonzaga Duque começou a colaborar em revistas e jornais do Rio de Janeiro bastante jovem, ainda em 1880. Foi desenhista e pintor, tendo ilustrado a primeira edição de D. Carmen, de B. Lopes. Como literato, pertenceu à roda boêmia do Grupo dos Novos - primeiro grupo simbolista brasileiro (COUTINHO, 1971; MURICY, 1987:248), tendo escrito romances e contos. Dedicou-se à critica de arte por quase três décadas, participando de algumas das mais importantes publicações da época. Exerceu esta atividade de maneira franca e combativa, utilizando-se freqüentemente de pseudônimos. Foi uma das mais renitentes vozes de oposição à Academia Imperial de Belas Artes e seus modelos. Visto como um precursor do modernismo nas artes visuais, Gonzaga Duque seria, junto com Lima Barreto e Machado de Assis, um dos iniciadores de uma vertente crítica da modernidade no Brasil (LINS, 1991: 30; Id., 2001: 25- 31). Para Vera Lins, pela diversidade de temas que abordou e por seu engajamento crítico, Gonzaga Duque teria sido mais que um crítico de arte, um crítico da cultura (LINS, 2001:25).

Para outros, o romance seria amplamente inspirado em L´Oeuvre, do crítico e romancista Émile Zola. (EULÁLIO, 1995: 291-293; LINS: 1991:48) Nessa obra, 14 o romance do ciclo Rougon-Macquart, a narrativa ficcional serviu para o crítico expor e defender seus pontos de vista a respeito da arte francesa. O livro retrata a boemia parisiense, tendo como protagonistas o pintor Claude Lantier (irmão do mineiro revolucionário de Germinal) e o literato Pierre Sandoz – geralmente apontado como alterego de Zola. Já à época de seu lançamento, em 1886, o romance foi entendido pelos contemporâneos como uma espécie de história ficcionalizada do Impressionismo. O romance é apontado por vários estudiosos como o estopim para o rompimento da longa amizade entre Zola o e o pintor Paul Cézanne. O artista teria se reconhecido na figura patética e derrotada de Lantier. (cf por exemplo SHAPIRO, 2002:301)

Foi assíduo freqüentador de cafés e bordéis do Rio de Janeiro, o que iria impregnar seus escritos de um viés boêmio e radicalmente urbano, típico das sensibilidades do final do século. Num contexto de adesão compulsória das camadas letradas às novas idéias, prometedoras de uma nova fase na história do país, Gonzaga Duque foi um participante apaixonado das correntes de renovação que iriam defender a república, entre outras bandeiras polêmicas à época (MARTINS, 1993:18).

De fato, L´Oeuvre é mencionado por seu êmulo brasileiro mais de uma vez, como a sugerir formas de ler e compreender Mocidade Morta.2 Em seu romance, Zola quis transpor a vibração pictórica, tipicamente impressionista, para as descrições da paisagem parisiense (EULALIO, 1995: 285). O crítico brasileiro busca dar à sua narrativa efeito semelhante. Situações e personagens dão ensejo a longas descrições que buscam oferecer ao leitor a possibilidade de visualizá-los em termos plásticos. Para Alexandre Eulálio, o autor faz uma espécie de “divisionismo sonoro e visual” na descrição de ambientes e cenas. Por causa disso,

Escrito entre 1895 e 1897, Mocidade Morta foi publicado em 1899. A primeira edição, de 300 livros, saiu com tantos erros que Gonzaga Duque pensou em queimá-la e imprimir outra (Apud COUTINHO, 248

Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

Mocidade Morta já foi definido como um “romance estético” (MOISÉS, 1973: 244).

referência ao Visconde de Taunay (EULÁLIO, 1995).

Há outras semelhanças entre os dois textos. A exemplo do modelo francês, Mocidade Morta parece comprometida com algumas das mais importantes bandeiras defendidas por Gonzaga Duque. Há longos trechos em que se discutem questões de arte. Sobressaem a preocupação em sintonizar as artes brasileiras com o que acontecia na Europa, particularmente na França, além de um projeto de superação da prática artística tal como realizada segundo a ‘tradição’ instituída pela Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Se em L´Oeuvre Sandoz era o alter-ego de Zola, Gonzaga Duque parece ter feito do crítico fictício Camilo Prado seu porta-voz no romance (EULALIO, 1988:184-)

Também chegam aqueles que o autor denomina simplesmente como “Insubmissos de vestes coçadas e jovialidade boêmia” (p.17, grifado no original). O chefe do grupo, por ser “o mais amado, pela diferença com que o tratavam”, era o crítico Camilo Prado, “um anêmico escanifrado com ares de fidalguia abastardada” (p. 17). Os rapazes fazem troça da obra, lançando uma espécie de provocação a Telésforo. A seguir, a narrativa retrocede no tempo, acompanhando a formação do grupo dos Insubmissos – “para realce de suas qualidades de rebelados e raros em contraposição ao burguês subserviente e comum” (p. 30); o nome adotado por eles - Zut! -, suas motivações artísticas e estéticas. Sob a liderança do crítico Camilo Prado, e tendo como figura mais proeminente o pintor Agrário de Miranda, os artistas tentam organizar um movimento de contestação à “Academia” (grifado no original). A idéia era organizar uma “corporação” que organizaria ateliês livres e promoveria “exposições independentes” para chamar a atenção do público.

Já foi observado que nas obras de Gonzaga Duque a reflexão sobre artes plásticas ultrapassa o espaço da crítica, permeando também romances e contos (GUIMARÃES, 1988:85). Sendo assim, Mocidade Morta deve ser situada, por nós historiadores, como mais do que um simples romance. Aqui, os limites do texto ficcional se esgarçaram. O romance tornase meio para fins que estão além dele mesmo. E o romancista deixa falar o crítico.

A partir do capítulo IX, o leitor acompanha os desdobramentos da provocação feita a Telésforo. Camilo Prado escreve um artigo criticando a Academia e apresentando o Zut!.

2. A ficção e a vida artística carioca em Mocidade Morta A história de Mocidade Morta acontece no Rio de Janeiro, entre 1886 e 1888. Começa com a abertura da exposição da tela Rendição de Uruguaiana - 28 de setembro de 1865, do artista acadêmico Telésforo de Andrade. Esta é certamente a cena mais admirável de todo o romance. O panteão feito especialmente para abrigar a obra é chamado de “monstruosidade entabuada” (MOCIDADE MORTA, 1995:15). 3 A tela tem dimensões pleonásticas: quatorze metros de comprimento por doze de altura; e sua descrição sugere uma paródia das pinturas de batalha. Artista formado na Europa e principal nome da Academia carioca, Telésforo de Andrade é descrito como “dignitário da Rosa, palma d´Academia de França, resplandecente de várias nobilitações estrangeiras” (15). Entre os que chegam para admirar a enorme pintura estão a “Princesa” e o marido, nomeado simplesmente como o “Conde”. Para qualquer leitor atento, a descrição desses personagens lembra figuras bastante conhecidas da vida política e cultural do império: a princesa Isabel e o conde D´Euconsiderado na época um dos heróis da Guerra do Paraguai. Outro admirador do artista, descrito jocosamente como “adamado senhor de mocidade artificial”, que “cheirava à baunilha”, parece ser uma

Camilo soltou o primeiro grito num ousado folhetim, escalpelando as condições antiestéticas do meio fluminense e, sob a ironia fundibulária da sua prosa, apresentava o Zut como um - bando rebelde - proclamando a liberdade absoluta das escolas, salvando e dignificando a Arte. (p. 80) Inspirada pelo artigo, começa uma onda de críticas à Academia. Os jornais protestam contra a instituição, quadros de artistas acadêmicos são vandalizados, as “Galerias da rua do Ouvidor” fechem suas portas. Um clima de euforia toma conta dos Insubmissos. Contudo, ao contrário do que o crítico imaginava, os pintores não conseguem se organizar e a sonhada ‘Exposição dos Insubmissos’ jamais se realiza. Enquanto isso, Telésforo contra-ataca: graças a bons contatos entre políticos da corte e homens de imprensa, o pintor inicia uma bem sucedida campanha de difamação do grupo. Camilo perde o emprego. O pintor Agrário – maior aposta de Camilo para a renovação estética do meio carioca –desinteressa-se do movimento. O final é 249

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

melancólico, com a morte de Camilo numa rua deserta, durante a madrugada.

por Pedro Américo e depois litografada em 1872 (EULALIO, 1995: 289).

Misturando ficção e narrativa autobiográfica, invenção e testemunho, o texto promove um instigante jogo de espelhos. Personagens e situações, e até mesmo algumas obras de arte citadas no romance são referências mais ou menos explícitas a pessoas e quadros da época. Trata-se de uma obra que tem a pintura, principalmente, como mote para uma abordagem bastante abrangente do mundo da arte carioca de fins do século XIX, e dos valores, personagens e interesses que o conformavam. Nesse ambiente brilhante e artificial, o pesquisador deve se mover com cuidado.

Ao fazer alusões quase literais a personagens e obras conhecidos por Gonzaga Duque, Mocidade Morta carrega um forte traço autobiográfico. Talvez por isso tem sido comparada, freqüentemente, ao livro A Conquista, de Coelho Neto. Este romance de um dos maiores nomes do parnasianismo brasileiro também foi publicado em 1899. As duas obras têm em comum o teor memorialista e uma visão desencantada do passado. Um focando a vida literária, outro a artística, tocam numa questão candente para literatos e artistas daquele final de século: a sensação de fracasso de toda uma geração.4

Se Camilo Pena já foi apontado como alter-ego de Gonzaga Duque, os outros personagens também parecem ter sido inspirados em figuras conhecidas do cenário artístico carioca. Agrário de Miranda seria o pintor Belmiro de Almeida. Telésforo de Andrade, uma síntese dos pintores acadêmicos de maior sucesso na época, misturando atributos de Pedro Américo, Vitor Meireles e Rodrigues Duarte (EULALIO, 1988: 184). Talvez para evitar esse tipo de associação, o autor coloca na boca do personagem principal uma referência explícita aos dois pintores máximos do império:

O romance é o lugar, ainda que ficcional, em que Gonzaga Duque avalia, retrospectivamente, sua atuação e a de sua geração. Narra os anos de luta que antecederam a reforma da Academia, falando dos artistas, dos sonhos e projetos malogrados de toda um grupo de artistas e homens de letras. Mocidade Morta pode ser vista, assim, como registro de um crítico militante que, num momento chave da história do país – a virada do século –, e de sua geração, resolve contar a história da qual não só fora observador como também um dos principais protagonistas.

O Pedro Américo já deu o que podia, o Mereiles está esgotado; dessa geração entanguida, que foi o fruto temporão de uma árvore transplantada e não cuidada, resta-nos o que se pode ver na Pinacoteca e a nova glorificação do Bernardelli, na escultura... (91)

3. Mocidade Morta Mas se pretendeu ser uma espécie de interpretação a posteriori das lutas e demandas de toda uma geração de artistas e críticos, resta compreender qual era a avaliação do crítico sobre seu passado.

Apesar desse esforço, rapidamente os estudiosos fizeram hipóteses relacionando personagens fictícios e reais. Mesmo negando que a obra possa ser qualificada como roman à clef, Alexandre Eulálio observou que o autor usou vários modelos “da vida real” para a caracterização dos personagens (EULALIO: 1988: 183). Os Insubmissos Arthur de Almeida e Frankin seriam, respectivamente, Artur Lucas e Maurício Jubim. Já o personagem Sabino Gomes poderia ser Isaltino Barbosa, Firmino Monteiro ou ainda Estevão Silva (EULALIO, 1995: 289-90). A lista de personagens e seus respectivos modelos da vida ‘real’ é bastante longa. Há, por outro lado, algumas controvérsias sobre o assunto. Alguns costumam associar a figura de Telésforo somente a Pedro Américo. Uma das razões para isso é justamente a tela inaugurada pelo personagem. Sabe-se que não há nenhum quadro com esse nome entre as grandes pinturas produzidas para comemorar a guerra do Paraguai. Mas uma Rendição de Uruguaiana foi desenhada

Em 1929, o crítico Nestor Vitor apontava no livro “uma charge desapiedada contra o oficialismo artístico ainda do tempo do segundo reinado” (VITOR, 1979: 244). Há, de fato, vários momentos em que o romance deixa transparecer a aversão de seu autor ao sistema oficial de artes carioca. Um tom caricatural permeia a descrição da abertura da exposição do quadro de Telésforo. As “Enfatuadas celebridades da política e do jornalismo” que lotam o recinto para admirar o quadro não economizam elogios ao pintor, fazendo associações estapafúrdias entre ele e artistas consagrados da história da Arte como Ticiano, Rafael, Velásquez e Murillo: “O exagero resvalava, pela inconsciência cognominativa, para o estortego do ridículo.” (p. 25) A ironia permeia também a descrição da conversa entre Telésforo e o “Visconde de dicção afetada”. Após afirmar que a tela “Ia além do sublime!” (p. 24, grifado no original), 250

Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

o visconde aumenta os elogios quando nota no peito do pintor a condecoração da “Coroa de ferro”.

dá ensejo para que o romancista leve o leitor a conhecer mais de perto alguns dos Insubmissos e suas obras. Um deles é o pintor Sabino Gomes, que resolve pintar a tela histórica Vercingétorix diante de César. O resultado obtido não deixa de ser narrado em tom de troça. Na tela “grande e larga como uma porta d´armazém”

Os discursos do crítico Camilo Prado são permeados por críticas à Academia e seus valores: “O Academismo nos impõe suas formas, não é? Desprezemo-lo e desprezemo-las. Costas à Academia!” O jovem tenderá a se colocar como um crítico “moderno”, propondo caminhos para as artes de seu país e participando ativamente dos movimentos artísticos do tempo.5 A intenção do crítico é “[...] tentar uma reforma exemplificada no movimento atual da França.” (p. 37)

[...] César, o conquistador, foi apanhado no bosquejo de três horas sonolentas, por provada dedicação de um barbeiro, amigo do rapaz. Espapaçou-se na tela um César sacristão e dengoso, com adiposidades suínas de apolentado, que lhe traíam as origens aldeãs; mas, uma fita branca, diademando a cabeleira e um lençol fazendo de clâmide - deixavam suspeitas d´ autenticidade do sexo. (p. 83)

Camilo discorria sobre as telas impenitentes de Édouard Manet, sobre as paisagens vernais de Pissarro e os motivos escandalizantes de Caillebote. Os nomes de Claude Monet e Madame Morizot vinham, às citações, fulgurando entre círculos de fogo, paradeiros resistentes do incondicional, que os isolavam da vulgaridade aplaudida. Com o dedo nervoso e sarrento ele vincava páginas de brochuras novas, apoiando-se no apostolado reformador de Zola, na análise vesicante de Huysmanns, citava a crítica facetada de Ortigão e traduzia, declamava os períodos incisivos, de exame glácido e seguro, da prosa aceirada de Félix Fénéon: [...] (p. 33)

Talvez por causa do ridículo involuntário, os modelos desistem de posar para Sabino Gomes. E a obra fica inacabada “[...] no fundo dum mísero quarto sem luz”. Ao leitor atento, a escolha do artista é sem dúvida paradoxal. A narrativa mostra que a intenção de Sabino era fazer um quadro segundo os mais óbvios valores acadêmicos: a opção pelo gênero histórico – considerado o mais alto e mais nobre entre os temas disponíveis ao pintor – , o tema, tirado de um “Fato” retirado história antiga; sem falar nos procedimentos, típicos do fazer artístico ensinado nas academias.6 Estranha contribuição para um grupo que se queria contrário à Academia, seus “cânones” e “códices” (p. 37).

Como alternativa à “vulgaridade reinante” da arte acadêmica, o impressionismo seria apresentado aos ouvintes como modelo indiscutível. Tendo como base os acontecimentos recentes na arte francesa, a intenção de Camilo é promover um movimento parecido, levado a cabo por um grupo de artistas à parte – os Insubmissos à Academia e a tudo que ela representava. Para isso, era preciso organizar um grupo de ex-alunos da Academia e de artistas independentes.

Em outra ocasião, Camilo é procurado por Valeriano Costa. O episódio também vale a pena ser transcrito: Na brancura do papel, em traços rústicos de nanquim, avultava um informe desenho carregado, num corte oblíquo, em perpectiva: sobre esse corpo bruto, representando os muros duma fonte pública, surgia do centro dum terraço barroco, o remate decorativo duma esguia pirâmide cujo ápice ostentava a esfera armilar do escudo brasileiro, fisgada das três setas de São Sebastião. - Sabe o que é? - Sei. É o chafariz do Largo do Paço. Valeriano sorriu envaidecido a explicar as dificuldades da perspectiva. [...] Camilo percebeu a febre que inquietava o pobre desenhista, tranqüilizou-o com engano e piedade: - Sim, senhor!... É uma prova....é de quem sabe o que estudou... (p. 86)

Por que não fazemos uma reunião definitiva de todos os que querem resistir à contagiosa estupidez de nosso meio social? Combinando, agremiando, poderíamos formar uma oposição vitoriosa, fundaríamos ateliers livres, teríamos exposições independentes, em suma, seríamos uma corporação vivendo vida própria, exercendo uma profissão. (p. 45) Camilo chegaria a chamar o pintor Agrário de “Manet brasileiro” (p. 33) ou ainda “grande Manet indígena” (p. 67), sem falar na escolha para o nome do grupo – Zut! – que reproduzia a interjeição francesa (EULALIO, 1995: 288). Após organizar o movimento, Camilo Prado começa a visitar ateliês e casas de artistas. Isso 251

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Aqui o outro Insubmisso fez um desenho urbano. Seu foco é uma construção colonial: o chafariz do Largo do Paço. Curioso o artista não ter voltado sua atenção para um monumento mais recente, ou para outro aspecto na urbe que evocasse o grande modelo dos Insubmissos: os pintores impressionistas, com suas representações de uma Paris agitada e feérica. Seja como for, a descrição da obra explicita os limites do desenhista. Seu “informe desenho” não escondia os parcos recursos plásticos do arquiteto.

situações. Em outros momentos, o romance adquire tons bebidos no naturalismo, e apresenta da forma mais crua a situação dos artistas que estão fora do ambiente oficial: personagens patéticas, muitas vezes atingindo a demência, que habitam ateliês e moradias imundas e degradantes.7 O escritor faz aparecer aos poucos um julgamento desencantado dos artistas Insubmissos. Deste modo, se há no romance enorme carga crítica contra a Academia e seus representantes, o autor censura mesmo os Insubmissos (EULALIO, 1995).

Continuando sua peregrinação, Camilo chega, por fim, à casa de Vieira.

Não havia condições para que a luta dos Insubmissos desse certo. Faltavam artistas ‘modernos’, mas, sobretudo, faltavam artistas. A sonhada ruptura com a Academia é abortada não porque os insubmissos são refusés, porque fazem uma “arte nova” para a época. Mas porque não havia condições para isso. São eles, comparados com Telésforo - cujo nome admite vários significados, entre eles “aquele que realiza” - a ‘mocidade morta’ do título (EULÁLIO, 1995: 287).

Um dia, chegando em casa do Vieira, não lhe foi possível sofrear a estupefação: - Mas, qu´é isto? O gorduchito sorriu, frisando a finura do seu entendimento moderno. — Está em mau lugar... Chegue-se mais para aqui... Mais um pouco... Olhe agora. Camilo observou: “é um rio.... com dois barcos...” Vieira: - “Nada, nada... É uma estrada... Lá estão dois bois... Repare com atenção... Não vê uma árvore no fundo? E Camilo apertava as pálpebras movendo a cabeça, inclinando o busto para trás. — Uma árvore, heim?... Uma árvore!... - Enquanto o aguarelista, amparando-o com ambas as mãos pelos ombros, procurava, cauteloso, colocá-lo no raio da perspectiva. - daqui, nesse ponto... Repare. - Ah!... bem. Então aquilo lá no fundo é uma árvore? - Com certeza! Você sabe que a escola moderna tem dessas cousas, não detalha, é tudo simples, manchas e tons. Camilo deixou-o falar. Estava vencido diante daquela formidável bota [...] (p. 84)

Contudo, o romance deixa várias pistas que sugerem que talvez o significado de “Mocidade Morta” seja ainda mais abrangente do que se pensava até hoje. 4. O fantasma da Academia No intrincado jogo de espelhos que constrói, Mocidade Morta tem muitos aspectos desconcertantes. Talvez o principal seja a ausência do antagonista. A Academia, mencionada diversas vezes por Camilo e por outros personagens, jamais aparece. Isso é especialmente estranho quando pensamos que um dos objetivos do livro é justamente construir um panorama da vida artística carioca de fins do século XIX. Objetivo que o autor alcança na maioria das vezes com riqueza de detalhes, como já foi apontado. Mas nenhum episódio do romance se passa dentro das paredes da Academia. Nem aquele considerado seu representante pelos Insubmissos, Telésforo, aparece lá dentro. Sabese ao final da história que ele se torna diretor da instituição. Mas só isso.

Finalmente um artista que pretende trazer à exposição dos Insubmissos uma obra alinhada ao que ele entendia por “moderno”. Mas a pintura realizada por Vieira é uma paródia, uma caricatura da “arte nova” (p. 33). E mais uma vez o problema é a baixa qualidade da obra, por isso mesmo referida por Camilo como “bota”. Com descrições entre cômicas e trágicas como essas, o romance vai mostrando quem eram os Insubmissos, as difíceis condições de sobrevivência desses artistas, e mesmo seus limitados conhecimentos práticos e teóricos. A história é narrada por vezes de forma caricata, em que a linguagem rebuscada promove efeitos hiperbólicos na descrição de personagens e

A Academia nada faz por Telésforo. Também nada fez contra os Insubmissos. Ela paira sobre as mentes, como uma espécie de fantasma. Ela é pretexto. Alucinação. Sua existência inspira o crítico Camilo a construir planos mirabolantes de exposições de recusados à brasileira, ou carioca, de pintores-chefes de uma pretensa “nova pintura”. 252

Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

Se a ausência da Academia chama a atenção, mais desconcertante ainda é a definição da “arte nova” (p. 33) sonhada pelos Insubmissos. Nas longas preleções estéticas de Camilo há poucas explicações objetivas. Mas há um momento em que ele e Agrário imaginam como seria o quadro que “daria o pontapé nos preceitos acadêmicos” (p. 33):

referência aos dois artistas permite enxergar no romance um comentário ainda mais ambicioso de Gonzaga Duque sobre os fatos que presenciou. Talvez a história dos Insubmissos seja um comentário ficcional àquele curioso episódio da história da Academia Imperial de Belas Artes que ficou conhecido como embate entre “acadêmicos e modernos”. No final da década de 1880, descontentes com a situação em que se encontra a Academia, alunos e professores se dividem quanto à solução a tomar. A rivalidade entre os dois grupos acaba em pancadaria, com o venerando secretário João Maximiano Mafra de olho roxo e a polícia prestes a invadir o edifício (BARATA, 1944). No calor do confronto, os Modernos abandonam a instituição e criam um ateliê livre. Também chegam a promover uma exposição de trabalhos filiados ao movimento, em 1889 (BARATA, 1944:37).

“Veio em tempo a lembrança de um estudo à Manet, largo, à espátula, sem preocupações de agrado; escolheriam por assunto qualquer coisa escandalosa, uma rapariga nua, sobre uma pele negra de urso, a rir-se, embriagada e lúbrica; ao lado - uma taça partida de champagne, jóias arrebentadas e um coração esmagado. Oh! O coração era pulha, cairiam na alegoria romântica. Nada, realidade pura, a eterna verdade!” (p. 74) [Estudo de Mulher, de Rodolpho Amoedo]. O pintor lembrou-se de um busto de mulher, simples, sob um efeito de luz em cheio, repousando numa almofada encarnada, carnes descobertas, intumescências sensuais de seios, um langor sonolento de olhar, lábios mordidos em expressão de gozo: Seria Cleópatra, seria Salomé...E perguntava: - Hein? Que achas? Um escândalo, a burguesia vociferando, a polícia metendo-se no caso. Magnífico[Messalina, de Henrique Bernardelli]. [...] Ficou escolhido o assunto do novo quadro.(p.74)

Ao colocar no sonho dos personagens as obras de dois artistas “Modernos”, Gonzaga Duque aponta que houvera, sim, uma pintura que configurava uma “arte nova” no contexto carioca. Mas esse caminho não fora mantido por seus autores. Não custa lembrar que em 1899, ano em que Mocidade Morta foi publicado, Amoedo e Bernardelli já eram, há alguns anos, membros do corpo docente acadêmico, confortavelmente instalados na instituição contra a qual, durante um curto período de suas vidas, ensaiaram uma revolta.9 No entanto, o próprio teor dessa “revolta” deve ser bem matizado.

Impossível não comparar a descrição feita pelos personagens com as duas obras selecionadas acima. Desse encontro entre a literatura e a pintura – apenas mais um num romance que busca criar efeitos sinestésicos o tempo todo, como já foi observado – todo o significado de Mocidade Morta pode ser revisto.

Entre os positivistas estava um fiel aluno de Cabanel como Décio Vilares. Enquanto os “modernos” Amoedo, os irmãos Bernardelli, Eliseu Visconti, entre outros, lutaram pela manutenção de alguns procedimentos tipicamente acadêmicos, como os prêmios de viagem.10 Não havia, assim, entre uns e outros, nenhuma grande crítica ideológica ou mesmo estética à instituição brasileira. Tanto que, feita a República, os excontendores acabaram se unindo na feitura do projeto que iria reger a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) (BARATA, 1944: 49).

A imaginação dos personagens remete o leitor a duas obras que efetivamente foram produzidas nos anos 1880, por dois personagens-chave do período: Rodolfo Amoedo e Henrique Bernardelli. Tendo em vista as inúmeras referências no romance a personagens e obras da vida artística carioca, seria ingênuo achar que essas semelhanças sejam casuais. Seria talvez ainda mais ingênuo supor que um crítico do porte de Gonzaga Duque não tenha pensado nessas obras ao colocá-las no ‘sonho’ de seus dois protagonistas.

Por outro lado, a historiografia mais recente vem destacando as apropriações que Amoedo e Bernardelli fizeram das correntes de renovação da pintura européia oitocentista (MIGLIACCIO, 2000; MARQUES, 2001, DAZZI, 2004). As clivagens entre acadêmico – não-acadêmico eram, no Rio de Janeiro como em outros pontos do planeta, àquelas alturas, muito menos profundas do que viria a fixar uma certa historiografia.

A menção a elas amplia o quadro de referências enunciado pelo romance: talvez o personagem Agrário de Miranda possa ser visto como um dos dois pintores, ou um misto de atributos de Amoedo e Bernardelli, e não Belmiro de Almeida como vem sendo repetido há algum tempo. 8 Além disso, a 253

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mesmo na França a polarização entre impressionistas e artistas acadêmicos deve mais à historiografia do que geralmente se pensa. Da perspectiva da história cultural, no momento em que surge, o impressionismo não tem significação. Era uma atividade limitada e insignificante de uma dezena de pintores (Apud SHAPIRO, 2002:248). Com o tempo, quando já perdera a força transformadora, o movimento ganha reverberação não apenas nos meios artísticos franceses como em outros lugares (Id., ibd.: 249).

como ex-alunos ou professores, à AIBA e depois à ENBA. Caso de artistas como, além dos já citados, Belmiro de Almeida, Eliseu Visconti, e tantos outros.12 5. A morte do crítico Com uma orquestração refinada dos vários elementos em jogo, Mocidade Morta aponta as grandes questões e demandas do universo artístico carioca de fins do século XIX. Sendo um romance, a obra explicita, dentro do âmbito da possibilidade, na liberdade garantida pela ficção, dilemas e contradições vividas não só pelos personagens, mas também por seu autor, o crítico Gonzaga Duque, e muitos contemporâneos.13

Desde meados do século XIX a pintura de história, a retratística, a paisagem e a pintura de nu vinham sendo submetidas a experimentações diversas (FRASCINA, 1998). Os artistas brasileiros que estudaram na Europa não ficaram totalmente infensos a esse clima de transformação. A Academia Julien teve um papel fundamental na aclimatação dos brasileiros a esse ambiente de apropriações e reelaborações do fazer artístico acadêmico (SIMIONE, 2005).Se passaram pelo aprendizado de Cabanel, Bouguereau, Bonnat, entre tantos outros, os jovens artistas conviviam num ambiente perpassado por suavizações e releituras da arte acadêmica, onde as inovações temáticas pareciam tão importantes quanto as formais. Já foram apontadas, por exemplo, as relações de Belmiro de Almeida com Puvis de Chavannes, de Bernardelli com o verismo italiano ou, ainda, de Amoedo com temas e faturas tipicamente impressionistas (SIMIONE, 2005; DAZZI, 2004; MIGLIACCIO, 2001) Chegando ao Brasil, esses artistas assumiram seu lugar na AIBA, mais tarde, ENBA.

Mocidade Morta oferece-se, assim, como o contrário da crítica: aqui Gonzaga Duque não defende nenhuma bandeira. Ao contrário, as bandeiras defendidas pelo crítico ficcional são tratadas de modo extremamente irônico no romance. A argumentação de Camilo Prado, cheia de referências a artistas e críticos franceses, reveste-se do mesmo teor que permeia a caracterização de outros personagens e situações no livro: o da paródia, da caricatura. Todo o discurso do crítico é baseado no notável domínio que tem sobre os recentes movimentos artísticos franceses, particularmente do Impressionismo, de seus críticos e defensores mais controvertidos. No entanto, como o livro vai desnudando aos poucos, Camilo não conhece os artistas com quem convive. Não sabe do que são capazes. Encantado pela imagem que vem de fora, esquece de olhar em torno. Daí sua luta cair no vazio.

E aqui a ausência da Academia no romance encontra uma explicação. Como vêm atestando algumas pesquisas, a história institucional da AIBA esteve muito longe, sob vários aspectos, de seu modelo francês (MARQUES, 2001). No âmbito carioca, a instituição simplesmente era o único caminho possível para um aprendizado formal de artes. Vale lembrar, por exemplo, que o Estudo de mulher de Amoedo provocou recriminações no júri da congregação acadêmica de 1884, mas não foi recusado por causa disso.11 Ou seja, a Academia brasileira “jamais teve força e doutrina para engendrar refusés” (MARQUES, 2001: 23).

Pode-se aventar que há no romance, certamente, uma referência sardônica de Gonzaga Duque a seus colegas e, por extensão, à atuação dele mesmo na luta contra a Academia carioca e seus valores. Enquanto os críticos brasileiros citavam os irmãos Goncourt e comparavam os artistas nativos a Michelangelo, Ticiano ou mesmo Manet, a produção artística carioca seguia caminhos próprios. 14 Nessa vertente tão particular, os modelos externos serviam para pouca coisa. Nesse ponto, vale ressaltar a sutileza e sagacidade com que o romancista se apropria de seu proclamado modelo. Se Gonzaga Duque explicita diversas vezes a dívida de seu romance para com L´Oeuvre, a história contada por ele guarda uma diferença fundamental da ficção francesa. No romance de Zola, o pintor Etienne Lantier se suicida. Em Mocidade Morta quem morre é o crítico.

Mocidade Morta permite compreender a riqueza e multiplicidade de projetos de modernidade em jogo no período, bem como o lugar que alguns artistas brasileiros assumiam nesse panorama. O romance desnuda, assim, um aspecto fundamental da arte brasileira nesse final do século XIX: a modernidade pictórica no Brasil passou pela Academia carioca. Foi feita dentro dela, por artistas que pertenciam, 254

Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

Gonzaga Duque enumera, em seu romance, uma a uma as impossibilidades com as quais o crítico brasileiro se confronta: a pouca formação da maioria dos artistas, as condições adversas do meio, o arsenal crítico disponível, que pouco ou nada tinha a ver com as demandas locais.

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Também se pode dizer, assim, que a Mocidade Morta do título é todo um sistema: não apenas os Insubmissos, o crítico Camilo, ou a própria Academia, tão recente no território americano e já sem forças, ou mesmo a “arte nova” sonhada por Camilo e não realizada. A literatura desnuda aquilo que a crítica não foi capaz de mostrar. E aqui, novamente, a metáfora do jogo de espelhos pode servir: ao espelhar a realidade, a ficção a mostra pelo avesso, de um modo insuspeitado até mesmo, pode-se supor, para o próprio autor. Seja como for, essas reflexões, ainda que preliminares, permitem situar o romance de Gonzaga Duque num novo patamar. Ao lado de A Arte Brasileira, Mocidade Morta deve ser considerada uma das maiores realizações de Gonzaga Duque, fundamental para se compreender não apenas o cenário artístico carioca do final do século, como as demandas e contradições do grande crítico de arte brasileiro. Referências bibliográficas Arte no século XIX. Mostra do Redescobrimento: século XIX. Texto de Luciano Migliaccio. Fundação Bienal de São Paulo/ Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro, Ed. Zélio Valverde, 1944. CAMPOFIORITO. Quirino. História da Pintura Brasileira no Século XIX. V. 4 (1850-1890), Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1983. CHIARELLI, D. T.Gonzaga-Duque: a moldura e o quadro da arte brasileira. Gonzaga-Duque. L. A arte Brasileira. (1888), São Paulo/Campinas, Mercado de Letras, 1995. COLI, Jorge. A Batalha dos Guararapes de Vítor Meirelles e suas relações com a pintura internacional. IFCH/ UNICAMP, Tese de LivreDocência, 1996. COUTINHO, Afrânio. Introdução. Gonzaga Duque. Mocidade Morta. 2ª Ed., Rio de Janeiro, INL, 1971. DAZZI, Camila. A trajetória artística do pintor Henrique Bernardelli na década de 1880 – algumas considerações. Anais do XXIII Colóquio de História da Arte. Rio de Janeiro: CBHA/UERJ/ UFRJ, 2004.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

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morceaux de bravoure decadentistas, de assomos polêmicos espirituosos no referente à pintura, arte em que ele [Gonzaga Duque] tinha posto a mão na massa.” MURICY, 1987: 248. 8 Como o personagem Agrário de Miranda, Bernardelli perdeu o concurso de viagem de 1878 justamente para Amoedo. Mas foi para a Europa assim mesmo, estudando em Roma por oito anos. CAMPOFIORITO, 1983:43. 9 Rodolfo Bernardelli chefiou a Escola Nacional de Belas Artes por 25 anos (1890-1915), tendo Rodolfo Amoedo (1857-1941) como vice-diretor. Amoedo lecionou até 1935. Já Henrique Bernardelli (1858-1936) foi professor de pintura da instituição entre 1891 e 1906. Apud Id., ibd.. 10 Os modernos “(...) eram assim denominados unicamente porque pugnavam por uma certa modernização dos regulamentos, de acordo com as últimas observações colhidas na Europa por R Amoedo e R bernardelli.” “Nada tinham de modernos na acepção de nossos dias, nem de revolucionários, inovadores ou rebeldes contra a técnica ou a compreensão pictórica dos mestres.” BARATA, 1944:38. 11 O próprio Gonzaga Duque narra o episódio em A Arte Brasileira (1888). 12 Ao contrário do que afirma a “construção histórica modernista”, São Paulo e Rio de Janeiro, entre os anos 1860 e 1915 não estiveram estagnados, mas em “sintonia tão fina e criativa com os centros inovadores da arte ocidental, e portanto tão atualizada, quanto durante o período modernista (...)”. A obra de Amoedo deve ser vista como exemplo disso. Apud MARQUES, 2001:21. 13 “A literatura fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) Pode-se portanto pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não consumidas.” SEVCENKO, 1995: 21. 14 O famoso debate sobre as pinturas de batalha de Meireles e Américo é marcado por essas comparações. Sobre o assunto cf GUARRILHA, 2005.

Notas 1

Mestre em História Social (FFLCH/USP) e doutora em Arquitetura (FAU/USP). Atualmente desenvolve projeto de pós-doutorado no Instituto de Artes da Unicamp. 2 Cf., por exemplo, Mocidade Morta, p.37. Mas o texto também possui referências a Huysmans, entre outros. 3 Todas as citações de Mocidade Morta são extraídas da edição de 1995. A partir de agora, as páginas do romance serão apenas numeradas no corpo do texto principal. 4 Para corroborar as consonâncias entre as obras, Gonzaga Duque teria adotado o “barroquismo vocabular” de Coelho Neto. O mesmo crítico notou que o ano de 1899 foi o da publicação de outra obra em que passado e visão desencantada se combinavam - Memórias póstumas de Brás Cubas. (MARTINS, 1993: 98) 5 As palavras “povo” e “moderno” aparecem algumas vezes durante o romance, o que sugere que Gonzaga Duque estava sintonizado com as leituras de críticos como Baudelaire e Zola. Fato apontado por Alexandre Eulálio e Vera Lins, entre outros. 6 Jorge Coli descreve as etapas da “pintura lenta” realizada por Vítor Meireles, segundo as regras acadêmicas. Apud COLI, 1996: 34. 7 Em Mocidade Morta ”(..) Os processos são, por via de regra, dum naturalismo de transição, entremeado de

256

O ano de 1890 foi bastante significativo no quadro geral da história da arte no Brasil. No final dele se oficializava a mudança para Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), daquela que já não podia mais ser chamada de Academia Imperial, pois a República do Brasil acabara de ser proclamada. Ana Maria Tavares Cavalcanti, em seu artigo Os embates no meio artístico carioca em 1890 antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes 1 , discute e atualiza essas questões, corrigindo alguns dados e demonstrando que, apesar de não ter ocorrido uma reforma profunda no ensino artístico, os acontecimentos daquele ano não podem ser menosprezados. Arte e política Em 26 de março de 1890, inaugurou-se no Rio de Janeiro, com toda a pompa e circunstância, uma Exposição Geral de Belas Artes (EGBA), o que não acontecia havia seis anos. Registrou-se e a presença do general Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório, e a execução, por duas vezes, do recém-composto Hino Nacional Brasileiro. (O PAIZ, 1890 a) Oscar Guanabarino expressou assim seus sentimentos quanto ao passado e ao futuro do evento: 1890 – o primeiro ano da república agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de eliseu visconti mirian nogueira seraphim

A exposição de bellas-artes, organizada agora pela academia, é a apuração dos melhores trabalhos realizados de 1884 até á presente data. Vinte nove exposições têm sido feitas por essa academia, desde 1837; e em 53 annos de sacrificios pagos pelo povo o resultado é quasi nullo, inda que sejamos obrigados a reconhecer que o actual certamen artístico é superior a todas as justas até aqui franqueadas ao publico. [...] Quem escreve estas linhas é um desanimado em questões de arte no Brazil; e Deus queira que esse desanimo se dissipe em breve. Na exposição de 1884 fizemos severas criticas aos quadros de professores que impingiam suas telas ao governo por preços fabulosos; [...] Muitos expositores fizeram parte da commissão julgadora, e ao passo que recebiam altas sommas por quadros sem valor, eram condecorados para mais ridicula se tornar a burla do concurso em que tudo foi aceito sem o menor escrupulo. (GUANABARINO, 1890)

*

Apesar de considerar esta exposição melhor que todas as anteriores, o que é confirmado também pelo balanço de sua visitação 2 , o crítico não acreditava que o fato revelasse uma mudança significativa. Ele expressa nestas linhas a insatisfação geral, que se arrastava desde muito 257

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

tempo, com a grande protagonista das coisas relacionadas às artes plásticas no Brasil Imperial – a Academia das Belas Artes.

que ele adotaria durante toda a sua carreira, transitando desde as esferas oficiais até as manifestações marginais que mais se harmonizavam com seu espírito.

Com o advento da República, veio também a esperança para o meio artístico. O então Ministro do Interior, Aristides Silveira Lobo nomeou, já em 30 de novembro de 1889, uma comissão de professores da Academia – entre eles Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo – para elaborar um projeto de reforma desta instituição, 3 que ficou conhecido com o nome de seus dois autores mais famosos, e foi datado de 25 de janeiro de 1890. Cinco dias depois, aparece um outro projeto que, inspirado nas doutrinas positivistas, propunha a extinção da Academia e foi firmado por Montenegro Cordeiro, Décio Villares e Aurélio de Figueiredo (MALLET, 1890 d,i). Provavelmente, não houve tempo, para que fossem sequer estudados esses dois projetos, pois em 10 de fevereiro, Silveira Lobo, que encomendara o primeiro com apenas 15 dias de proclamada a República, deixava o cargo por divergências com o chefe do governo provisório. Este chamou, então, para ocupar o ministério vago, José Cesario de Faria Alvim (GAZETA..., 1890a).

Além disso, é provável que o nome de Visconti tenha ficado ligado aos acontecimentos que antecederam a reforma da Academia, justamente porque foi a partir das suas memórias, que Frederico Barata escreveu o relato que serviu de base para todos os outros sobre este assunto, até bem pouco tempo (1944: 29-50). Apesar de, aos 78 anos de idade, a memória de Visconti ter se confundido quanto a datas e alguns nomes, o fato de meio século depois, somente ele narrar o episódio com riqueza de detalhes, mostra bem a importância que aquele período teve em sua carreira. Quase dez anos antes, houve quem cometesse erros muito piores. Numa breve biografia de Visconti, a história era contada assim: “Em 1888, Rodolpho Bernardelli fez uma reforma na escola e alguns alumnos se rebellaram contra este acto. Em sinal de protesto, abandonaram-na...” (A NOITE ILUSTRADA, 1936) Provavelmente, o desejo de fazer justiça ao antigo diretor levou Visconti a relembrar os fatos para seu amigo Barata.

Talvez no intuito de conquistar a simpatia do povo e do novo ministro para a causa da arte, o projeto Bernardelli-Amoedo foi publicado na íntegra, na Gazeta de Notícias de 12 de março, ocupando quase duas páginas do jornal. Uma intenção menos nobre deve ter inspirado a caricatura não assinada, que saia numa página da revista Vida Fluminense no primeiro dia do mesmo mês.

No entanto, a busca em documentos primários para corrigir os equívocos e preencher as lacunas daquele relato, revelou uma riqueza de informações e um nível dos debates travados pelos jornais, que faz admirar o fato deste ano ter sido relegado ao esquecimento por seus protagonistas. O catálogo da mostra de 18904 apresenta as 131 pinturas a óleo expostas pela primeira vez ao grande público, dentre as quais, seis eram de Visconti, que apresentou ainda, na seção seguinte, um retrato a crayon. Das pinturas a óleo de Visconti, o catálogo destaca a primeira, Ladeira do Monte Alegre (paisagem), como quadro “premiado com a medalha de ouro no último concurso escolar”.

O adiamento da inauguração da EGBA, aguardada por seis anos, foi também matéria para mais críticas. Desde o dia 8 de março, a capa da Vida Fluminense retratava a revolta dos artistas. E ainda no dia 20, nada havia se resolvido: Ha longos dias estão dispostos nas salas da Academia todos os objetos d’arte que representam a luta dos nossos artistas contra o meio esteril em que se debatem; está prompto o catalogo, as aulas não se podem abrir, porque as salas estão tomadas pela exposição, e esta não é inaugurada, com prejuízo do publico, dos expositores e do ensino. (Ibid., 1890c)

Em 1889, Visconti havia conquistado três medalhas na Academia: uma de prata em Pintura Histórica, uma pequena de ouro em Modelo Vivo e a grande medalha de ouro em Paisagem (GALVÃO, 1958). Infelizmente, não se pode identificar com certeza, essa Ladeira do Monte Alegre, mas é plausível supor que seja a hoje conhecida como Menino na Ladeira, datada daquele mesmo ano. Em sua primeira participação numa Exposição Geral de Belas Artes, Visconti foi premido em 1890, com o quarto lugar, ao lado de J. Batista da Costa, França Júnior, Raphael Frederico e Braz de Vasconcelos, todos com Menção Honrosa (FREIRE, 1916: 508).

Memórias de Visconti e sua participação na EGBA de 1890 Sintetizando a opinião de diversos outros autores, Roberto Pontual afirmou: “Eliseu Visconti, melhor do que ninguém, reflete o momento.” (PONTUAL, 1976:15). E de fato, a atuação de Visconti nos acontecimentos de 1890 já anunciava a postura 258

1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

Os comentários à exposição eram sempre ocasião para se insinuar a crítica ao ensino da Academia. Como as obras das galerias permanentes continuassem expostas, ao mesmo tempo que as selecionadas para aquele evento, ficou evidente a comparação entre o fruto daquele ensino com a produção dos mais novos:

do quadro com “umas folhas no primeiro plano” combina perfeitamente com Menino na Ladeira. Mais política e denúncias No dia 18 de abril era anunciada a determinação do Ministro do Interior, Cesario Alvim, de que a exposição se encerrasse no próximo dia 30, e só então, em 5 de maio, fossem iniciadas as aulas na Academia. (O PAIZ, 1890b) Os alunos ficaram, assim, quase todo o primeiro semestre do ano, ociosos.

O que consola, na actual exposição de pintura, á falta de cor local, é a independencia que vão revelando os pintores. O confronto d’ella com a galeria da chamada escola nacional dá esperanças de futuro lisongeiro, e demonstra a reacção espontanea dos moços contra a rotina que sempre predominou na Academia.

No dia seguinte a este anúncio, é criado mais um ministério – o da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, que fica a cargo de Benjamin Constant, até então Ministro da Guerra. Mais uma vez, renovam-se as esperanças e as disputas afloram.

Basta ver os paizagistas. O bom Grimm arrancouos das salas sem luz, onde elles copiavam paizagens de lithographias baratas, e levou-os para o campo, pol-os na escola da natureza; ahi eles aprenderam a pintar por si...

Durante o mês de maio, alguns acontecimentos no mundo das artes chamam a atenção do jornal O Paiz. No dia 11 é noticiado o auxílio de oito contos de réis, que o novo ministro resolveu conceder “ao notavel artista nacional Décio Villares para a conclusão de seu patriotico quadro A epopéa africana, que vai ser offerecido á municipalidade”. A partir do dia 15, é divulgada a exposição do quadro A Redenção do Amazonas, de Aurélio de Figueiredo, no barracão do Largo de São Francisco de Paula. E no dia 30, é anunciada a breve inauguração da exposição de 19 quadros do paisagista Antonio Parreiras, que acabara de chegar de sua viagem a Itália. Na mesma edição, publica-se a nomeação de Parreiras para o cargo de professor interino de Paisagem da Academia. Esta, por sua vez, anunciava, todo o domingo, o número de visitantes que recebera na semana finda, e o horário em que continuava franqueada, a visitação às suas galerias.

Mais novos do que elles, Visconti e Baptista da Costa, guiados cremos, que por Zeferino e Amoedo, aprendendo tambem na natureza, vão revelando disposições notaveis para a arte, principalmente o primeiro, que fez n’esta exposição uma estréa brilhantissima. (GAZETA..., 1890d) Visconti destaca-se desde cedo, e esta tônica será mantida por toda a sua carreira. O Jornal do Commercio de 6 de abril ocupou-se um pouco mais do pintor iniciante: Outro artista, no começo da sua carreira, o Sr. Elyseu d’Angelo Visconti apresenta também cuidadosos trabalhos do natural. É um dos raros artistas, que tem conseguido pintar arbustos, folha por folha, sem se tornar mesquinho e amaneirado. Ha um quadro, sobretudo, que tem umas folhas, no primeiro plano, tratadas com uma limpidez de tintas, com uma severidade de desenho e com uma franqueza de toque, verdadeiramente raras. Elyseu Visconti está em bom caminho, fossem quaes fossem os esforços que fizessem, para o arrancarem delle, já ninguem lhe incutia as falsas convenções, do estylo academico.

Porém, já no primeiro dia de junho, uma nota anunciava que o diretor da Academia solicitava ao ministro que fosse nomeada uma comissão de inquérito, para procurar provas que fundamentassem as acusações feitas dois dias antes. (Ibid., 1890 f) Esta nota referia-se a um artigo publicado pelo novo colaborador da Gazeta de Notícias, Pardal Mallet, que no dia 24 de abril era apresentado aos leitores como “extraordinario e originalissimo frondeur” e cujas crônicas seriam tão freqüentes quanto possível. O jornalista já havia chamado a atenção de Teixeira da Rocha, redator artístico da revista Vida Fluminense, que o retratou em uma caricatura, a respeito de um artigo seu no Correio do Povo, em que afirmava ser a arte da palavra superior à outras. (VIDA..., 1890b) No final do ano, assinando apenas com suas iniciais, Mallet confessará sobre a pintura:

Este trecho é parte de uma série de 5 críticas intituladas Exposição geral de 1890, publicadas pelo jornal entre 30 de março e 2 de maio. Essa série ressaltou, o tempo todo, o progresso que a EGBA representava, pela orientação que tomavam os “modernos artistas”, que se distanciavam da arte acadêmica, julgada falsa, teatral, um vício, um “cancro roedor”. Visconti foi considerado já seguro do caminho diferente que percorreria. A descrição 259

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A seguir, passa a expor detalhadamente os aspectos que, segundo sua opinião, exigiam mudanças, e é quando faz suas críticas mais severas. Respondendo à reação do diretor da Academia, Mallet publica, três dias depois, seu segundo artigo, no qual, em tom de desafio, sintetiza:

Tinha-a na conta de paradoxo, de caçoada contra a geometria, reduzindo tres dimensões a duas. E acceitava os pintores, e admiravaos, e estava prompto a trabalhar por elles em attenção ao esforço psychologico empregado, mas não pelo resultado objectivo que conseguiam. (MALLET, 1980m)

E para que no espirito d’essa futura commissão não pairem duvidas, ou incertezas sobre as accusações aqui feitas, ellas ahi vão repetidas e numeradas: 1.º - Vestutez [sic] e imprestabilidade do actual regulamento, que reclama urgentes reformas, para as quaes já existe elaborado o projecto Bernardelli-Amoedo. 2.º - Impropriedade do predio onde funcciona a Academia. 3.º - Incompetencia do director. 4.º - Desleixo de uma parte do pessoal docente. 5.º - Anarchia administrativa, manifestada pela ingerencia e supremacia do porteiro, em tudo quanto se refere á Academia. 6.º - Existencia de um syndicato para exploração do orçamento da Academia, e que em defeza do seu monopolio não recua nem mesmo para a pratica de manobras indecorosas pela imprensa. Agora, uma vez formulado o libello, é justo que eu reserve para a imprensa o direito de acompanhar o processo. (Id., 1890 b)

No entanto, ele foi um dos principais protagonistas dos debates que antecederam a reforma da Academia. Nesta primeira crônica sobre o assunto, ele já expõe, logo nas primeiras linhas, uma síntese das suas idéias: “Falla-se em supprimir a Academia de Bellas Artes. A conserval-a como está, melhor é com effeito supprimil-a.” Citava a proposta dos positivistas como alternativa mais aceitável que a situação atual, embora fosse contra esta atitude radical. A seguir, faz graves denúncias sobre o que acontecia na instituição, envolvendo inclusive o orçamento destinado a ela, e aponta o motivo pelo qual os professores mais jovens haviam recentemente deixado a Academia: Bernardelli e Amoedo, que eram lentes e acreditavam que a revolução de 15 de novembro devia repercutir em todas as espheras da actividade nacional e tudo refundir, Bernardelli e Amoedo vinham de apresentar um projecto de reforma radical e completo. Era preciso desgostal-os, forçal-os a demittirem-se. E foi d’isso que se encarregou o escriptor ou escriptores que com o pseudonymo de Cosme Peixoto appareceram n’uma critica covarde, porque era anonyma mesmo quando se a queria responsabilisar, e deshonesta porque aggredia ao envez de criticar. (Id., 1890a)

E após fazer sua apologia à imprensa, fecha o artigo declarando que ela poderia cumprir bem seu papel, posto que se tratava do ministério de Benjamim Constant, que ele considerava bastante receptivo e devotado ao interesse público: “É sobre elle que pousam actualmente todas as esperanças do artista brasileiro.” Novamente, Pardal é caricaturado na Vida Fluminense, desta vez aparecendo na capa, a espetar, com um florete, uma colméia. (VIDA..., 1890 f)

Parece que este texto assinado com pseudônimo, foi o estímulo para que o então secretário da Sociedade dos Homens de Letras do Brasil, Pardal Mallet, abraçasse a causa dos artistas plásticos5. O longo artigo apresenta, então, seus argumentos em defesa da continuidade da Academia, e aquele que o escritor reputa ser o mais importante, é no mínimo sugestivo:

Começa o debate artístico Poucos dias depois, Mallet inicia uma série de crônicas que ele vai numerando, para agora esmiuçar cada um dos pontos colocados, mostrando-se empolgado com o desafio:

Elle é uma lei darwinica, é a historia de todo o desenvolvimento biologico, é o principio de que a funcção faz o orgão. Não temos artistas! não temos meio artistico! vamos a fingir que temos, vamos exercer esta funcção, porque o orgão de que necessitamos apparecerá com este exercicio. —— Mas, si procedem estes argumentos em favor da continuação da Academia, é preciso reformal-a.

A posição especial em que o Sr. conselheiro Maia me collocou, não só requerendo uma commissão de inquerito para averiguar accusações aqui feitas, mas tambem incluindo um exemplar da Gazeta onde vinha o meu primeiro artigo no officio que dirigiu ao general Benjamin Constant, força-me á justificação completa do libello que formulei contra a 260

1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

Só depois passa a demonstrar a necessidade de um novo prédio para o funcionamento desta nova Academia. E assim, Mallet prossegue a cada crônica, defendendo um dos pontos do seu libelo, sempre levantando e debatendo todas as idéias que circulavam sobre a questão, e demonstrando que pesquisava sobre cada item antes de escrever. Procurou trazer a data do decreto de nomeação do diretor e de cada um dos velhos professores da Academia, e quanto a estes, não demonstrou nenhuma condescendência. Sobre o diretor, conselheiro Dr. Ernesto Gomes Moreira Maia, confirmando sua fama de maldizente, o autor conclui:

Academia de Bellas Artes, mesmo antes de nomeada a referida commissão. E eu gostosamente presto-me ao caso... A primeira proposição enunciada affirma não só a vetustez e imprestabilidade do atual regulamento, mas também a conveniencia de promulgar o projeto de reforma Bemardelli Amoedo. (MALLET, 1890c) Bacharel em Direito, Mallet passa a explanar sobre o assunto mostrando conhecimento de causa. Traz trechos do regulamento atual da Academia, ressaltando a urgência em substituí-lo e re-publica, em grande parte, o projeto encomendado pelo ministério.

Pesa sobre si a responsabilidade de todo o atrazo e de todos os desleixos d’esse estabelecimento de instrucção. Tibio por um lado, incompetente por outro, S. Ex. se tem prestado ao serviço de todas as conspirações, ora com uns, ora com outros, sempre com aquelles que parecem ter a influencia do momento. [...] Ao S. conselheiro Maia resta em synthese um recurso – pedir a sua aposentadoria. Si a não pedir, é preciso aposental-o. Em nome da Arte, em nome d’esse talento brasileiro que agora apparece tão grande, é preciso pôl-o para fora da Academia. (Id., 1890e)

Animado ao mesmo tempo do sentimento o mais liberal e do desejo de fazer efetivo o nosso desenvolvimento artístico, este projeto tem a grande vantagem de não estagnar professores lá na Academia, de deixar sempre a porta aberta aos novos. É, enfim um projeto de artistas. No segundo artigo da série, antes de entrar na questão das condições precárias do prédio, Mallet retoma a idéia da acabar com a Academia, que circulava nas conversas de café, e havia sido levantada pelo segundo projeto dirigido ao ministro do interior, o dos positivistas. O escritor considera que em um ponto todos estavam de acordo – a necessidade de subvencionar as artes plásticas. “Esta necessidade é obvia. E nenhum Estado póde a ella se furtar.” (Id., 1890d) Após defender essa premissa, passa a analisar as razões psicológicas que determinavam o anti-academismo do segundo grupo. Além da desmoralização da atual Academia, ele aponta ainda a influência das tradições européias sobre nossos artistas, e então demonstra porque se posicionava contra a extinção:

Na crônica sobre os professores, inicia retomando uma portaria do governo, de 1861, “chamando a attenção do director sobre o deleixo [sic] e abandono em que os lentes da academia tem os seus cursos. E desde então pouca differença existe no procedimento do pessoal docente.” (Id., 1890f) Passa a justificar cada um dos professores que pouco mesmo podiam realizar devido às condições atuais, e então considera: Afóra estes, existe a velha guarda que pelo prestigio de seu nome devia ser a zeladora impeccavel do nosso desenvolvimento esthetico, mas a quem immediatamente depois do director cabe a responsabilidade do triste estado de cousas aqui notado.

Só na Europa existe arte velha e sedimentada; existem escolas differenciadas em seu processualismo, guerreando-se, rivalisando-se. Aqui existe por fazer. A revolta lá na Europa consiste em destruir, a revolta aqui no Brasil consiste em construir. [...] As Academias não prestam, são absorventes e atrophiadoras, trabalham por esterilisar os artistas n’uma só feitura e n’uma só modelagem. Mas começam a não prestar 50 annos depois de constituidas. Não nos serve, pois, a revolta lá dos outros, porque ainda não temos academia. Vamos construil-a, porque ella é necessidade dos tempos de agora! E vamos construil-a na certeza de que ha de ser preciso destruil-a d’aqui a 50 annos!

A seguir, ele critica duramente, um a um, aqueles que julgava indefensáveis: Maximiano Mafra, Victor Meirelles, Pedro Américo e também Bittencourt da Silva, aposentado e não substituído da cadeira de Arquitetura, que ainda exercia influência nociva na Academia. No quinto artigo da série, resume os argumentos aos dois últimos pontos do seu libelo e conclui com mais denúncias:

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A velha guarda da Academia, os imprestaveis e os nullos deffraudam com effeito os cofres publicos porque recebem dinheiro para fazer umas cousas que não fazem, porque encarregam-se de promover o nosso adiantamento artistico, e cruzam os braços na inercia criminosa de quem recebe salario e não trabalha. E, cuidando apenas de seus interesses pessoaes, cuidando apenas em conservar os logares que occupam, não vendo que estes interesses pessoaes estão em guerra aberta contra o interesse geral, formaram syndicato para oppor-se a imprescindivel reforma que os deve desalojar de suas sinecuras. São pelo menos elles os responsaveis pela critica anonyma de Cosme Peixoto que visava o intuito de desgostar os novos. Foram elles que intrigaram junto ao Sr. Cesario Alvim, que levaram um numero da Vida Fluminense, onde S. Ex. vinha caricaturado, a proposito de cousas da Academia, para conseguir que se não fizesse a reforma. Rua! com elles. (Id., 1890g)

Sujeita á discussão é approvado unanimemente o artigo 1º e prejudicados os 2º e 3º. Sobre o artigo 4º suscitou-se longa discussão, ficando, por proposta do Sr. Emilio Rouéde, adiada para melhor opportunidade e regeitadas as propostas dos Srs. Teixeira da Rocha, Luiz Ribeiro e P. Netto e encerrada a discussão. (GAZETA..., 1890f) O Paiz noticiou o resultado parcial e acrescentou um complemento: “Foi approvado o art. 1º da proposta, concordando todos os presentes que a existencia da academia era inutil e nociva.” (O PAIZ, 1890 g) Parece que todos concordavam com as primeiras palavras do Pardal: “A conserval-a como está, melhor é com effeito supprimil-a.” Mas não quiseram se comprometer nas questões mais particulares: a administrativa e a docente. O artigo quarto da proposta era justamente a alternativa dada pelo projeto dos positivistas à extinção da Academia. No entanto, não houve consenso quanto às Oficinas de Belas Artes. Nesta primeira reunião, também foi aprovado unanimemente um voto de louvor ao jornalista Pardal Mallet, por sua brilhante atitude e inestimáveis serviços prestados à arte brasileira, e nomeada uma comissão de cinco artistas para lhe dar ciência oficial, da qual fez parte Visconti. Foi proposto e aprovado ainda, que se estendesse o voto de louvor também a José do Patrocínio, redator chefe da Cidade do Rio, e à sociedade Derby-Club, que lhes cedia o salão.

Os artistas se reúnem No dia 17 de junho, os jornais anunciavam uma reunião de artistas realizada no dia anterior, no Derby-Club. A Gazeta de Notícias foi mais detalhada, transcrevendo a ata na íntegra, que listava o nome dos 33 artistas participantes. É interessante notar a ausência dos irmãos Bernardelli, de Amoedo, Décio Villares e Montenegro Cordeiro. Encabeçava a lista, Aurélio de Figueiredo, que foi eleito presidente da mesa. Pelas proposições apresentadas, pode-se concluir que ele pretendia conseguir o apoio dos artistas para o projeto apresentado por si e seus companheiros:

Os debates se aquecem A nova escola ou ateliers livres? – Este era agora o tema da discussão! E já estava destacado numa carta publicada no dia seguinte, dirigida ao Dr. Rozendo Moniz, professor de Anatomia e fisiologia das paixões, e assinada por Rodolpho Bernardelli:

“Art. 1º – É ou não é util a existencia da Academia de Bellas Artes, no estado de desmoralização em que se acha ? Art. 2º - É ou não é bem gasta a subvenção dada pelo governo, e esta subvenção tem produzido os resultados a que é destinada ? Art. 3º - Actualmente a corporação docente da academia está na altura de pertencer a uma Academia de Bellas Artes ? Art. 4º - Não será mais util ao ensino artistico que se applique esse dinheiro subvencionando Officinas de Bellas Artes, a moços, que tendo dado provas publicas de talento, queiram estudar bellas artes nos grandes centros europeus, mediante concursos, exposições, etc ?”

O fim, porém, do presente é o seguinte: no seu artigo do Paiz de hontem, o senhor allude a um professor que, sem estar doente, tem deixado de comparecer para dar aula; essa sua accusação, sem dizer o nome, póde prejudicar aquelles pacatos professores que tão systhematicamente ganham o seu ordenado. Venho, pois, declarar que esse professor sou eu, eu que tenho brio e amor á arte, para nunca mais comparecer emquanto não se fizer a nova escola ou ateliers livres. Declaro mais que não peço licença nem demissão, deixo que o governo me demitta a bem do serviço publico. O meu atelier estará sempre aberto para todos os moços que quizerem aprender.

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1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

Os fatos que se sucederam, mostram que os dois lados da questão resolveram se unir a fim de tomar uma providência. Uma nota do dia 21 de junho anunciava:

Feitas estas declarações, pretendo não voltar mais á imprensa, aguardando porém que o governo tome a resolução de acabar com aquella instituição mumificada, e tão levemente desmascarada pelo illustre Pardal Mallet. (BERNARDELLI, 1890)

Reunidos na officina Bernardelli, os artistas Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Henrique Bernardelli, Baptista Castagnetto, Decio Villares, Manoel Teixeira da Rocha, Aurelio de Figueiredo, Francisco Ribeiro e Emilio Rouède, convencionaram convidar os seus collegas pintores, esculptores, architectos e gravadores para uma reunião que se effectuará hoje, ao meio-dia, no salão do Derby Club, a fim de assignarem a petição que devem dirigir ao cidadão ministro da instrucção publica. (O PAIZ, 1890h)

Para se ter uma idéia de como andavam as coisas dentro da Academia, é particularmente interessante o último parágrafo do citado artigo do professor de Anatomia: Quanto ao dilemma de só fazer jus ao ordenado, leccionando para os bancos vasios, ou excluir-me do quadro dos professores, não me presto á intimativa. Fique ao criterio do governo, devidamente informado, resolver entre a minha permanencia na cadeira e a insubordinação de alguns moços, visivelmente desencaminhados por insidiosos conspiradores, em exercicio activissimo dentro e fóra da academia, os quaes não descansam, emquanto não derrubarem tudo. (MONIZ, 1890)

Apenas Montenegro Cordeiro não aparece mais no palco dos acontecimentos. Os demais signatários dos dois projetos, juntamente com outros artistas importantes à época, resolvem encaminhar ao ministro um pedido referente ao ponto que já era pacífico. No dia seguinte, a reunião era noticiada:

Após agradecer aos artistas pelo voto e a R. Bernardelli pelos elogios em sua carta, Mallet reinicia o debate: “... resta agora saber o que é que se vai pôr no logar da velha Academia. Sim, porque no final das contas o governo não ha de simplesmente destruir, precisa construir um substitutivo.” E defende seu ponto de vista em relação ao impasse:

Por acclamação foi nomeado presidente da assembléa o illustre artista Rodolpho Bernardelli, que escolheu para seus secretários os seus distintíssimos colegas Rodolpho Amoedo e Decio Villares. Lida a representação, documento importantissimo, que obteve unanimes applausos, foi em seguida assignada por todos os artistas presentes e, segundo deliberação da mesma assembléa, estará até o dia 24, no barracão de exposição do quadro alegorico á Redempção do Amazonas, á disposição das pessoas, artistas ou amadores de bellas artes, que queiram subscrevel-a. (Ibid., 1890i)

Mas o academismo só é prejudicial, atrophiador e oppresivo, quando chegou a sedimentar tradições, quando cunhou moldes definitivos, dentro dos quaes desapparece a individualidade de qualquer. A vantagem de crear escolas diversas! Mas escola – methodo e systema – é tão atrophiadora como a Academia, é uma academiasinha; e depois não vem ao caso porque nós não podemos ter escolas sem primeiro ter Arte. (MALLET, 1890h)

A petição em forma de abaixo-assinado aproveitava seis dos considerandos do projeto positivista6, excluindo aqueles que julgavam uma reforma inútil ou que defendiam a proposta dos ateliers livres, e concluia “...que a atual Academia das Bellas-Artes do Rio de Janeiro, além de não preencher os fins a que é destinada, é nociva, e vêm pedir ao digno ministro da instrucção publica a sua extincção.” (O PAIZ, 1890p)

É neste artigo que Mallet ressalta o ponto que julga mais importante no projeto Bernardelli-Amoedo, o que prevê uma academia sem caráter de fixidez: “Marcando 10 annos para periodo maximo da actividade de lente, marcando 5 para duração da gerencia de cada director, ella ficará constantemente a renovar o pessoal, a dar logar aos novos.” E é justamente o fato deste ponto jamais ter sido observado na prática, o que mais desgostou os futuros críticos desta reforma que se desenhava.

Um terceiro projeto Mas este ato conjunto não significava que os dois grupos concordassem com os destinos do ensino da arte no Brasil. Três dias após a assembléia que apresentava a petição ao ministro para o conhecimento e assinatura dos artistas, o jornalista Mallet se vê compelido a retomar o debate: 263

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Com o prestigio do talento e da sua posição artistica, Aurelio de Figueiredo começou hontem, no Correio do Povo, uma serie de artigos, tendentes a insinuar e justificar a extincção completa da actual Academia de Bellas-Artes e a sua substituição apenas por ateliers, esparsos, subvencionados pelo governo. (MALLET, 1890 i)

1º anno – Aritmetica e geometria. Historia das Artes. Desenho de figura. 2º anno – Sciencias naturaes em geral. Physica e chimica, especialmente applicadas ás artes. Perspectiva. Anatomia. Desenho de modelo vivo. 3º anno – Physiologia applicada ás artes. Archeologia. Desenho de modelo vivo e de paysagem do natural. —— Assim preparado com este curso, rapido alias e não sobrecarregado, póde o alumno tratar de fazer a sua individualidade como bem quizer, livre de regulamentações precisas, mas já apto elle mesmo a saber o que quer e a chegar á sua especialização artistica. Fica-lhe então permittido o tomar um professor particular, ou matricular-se em um dos ateliers que o Estado para tal effeito deve subvencionar. E ahi torna-se perfeitamente indifferente que o atelier funccione no predio onde funccionou a academia, ou em outro qualquer logar. Elle deve, porém, estar subordinado á fiscalisação do director da academia, porque as artes precisam independer do governo, fazer vida á parte, dirigirem-se a si mesmas. (Id., 1890j)

E para munir seu ponto de vista de maior credibilidade, Mallet começa por transcrever os onze artigos do projeto elaborado por Montenegro Cordeiro, Décio Villares e Aurélio de Figueiredo. Em seguida, resume seus argumentos contra: O projecto supra é oppressivo. Subordina o artista ao governo como de forma alguma outra é possivel. [...] Tolhe o desenvolvimento esthetico do paiz, não permittindo que particular adquira a posse de trabalho artistico porque o § IV do art. 6º – em que se regulam as obrigações da primeira classe de pensionistas, a dos pensionistas que recebem subvenção para trabalhar, para fazer Arte, ordena que elles percam a posse material dos seus trabalhos e que estes sejam recolhidos ao Museu. [...] E mais ainda:

Um dos pontos que o articulista havia ressaltado no vetusto regulamento atual da Academia era a exigüidade das exigências para o seu ingresso: que o aluno soubesse ler, escrever e contar. Na última crônica desta segunda série, seu autor faz um resumo em tópicos do resultado de toda a discussão, e então conclui:

Não diz uma palavra sobre o ensino superior da Arte a que entretanto têm direito as vocações fortemente accentuadas, e que é uma necessidade para o exercicio completo das funcções organicas da nação. No dia seguinte, dando continuidade à sua nova série de artigos, Mallet procura desembaralhar as questões do ensino artístico, identificando as características dos três níveis que se mantêm até hoje: A difusão do ensino elementar do desenho – reclamada por todos – não entrava na questão, pois pertencia ao plano do ensino primário, que a Constituição acabara de tornar obrigatório; o segundo nível, o do preparo intelectual dos que se destinam à profissão artística; e o terceiro, o da formação da individualidade do artista. Para estes dois últimos, o Pardal divulga, então, sua proposta de conciliação dos partidos antagônicos:

O Sr. Benjamin Constant, recebendo hontem uma commissão, composta de Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Aurelio de Figueiredo, Teixeira da Rocha, Castagnetto, Ribeiro, e do escriptor d’estas linhas, declarou que pretendia gradativamente fazer a reforma da instrucção primaria, da secundaria, da superior e da artistica. [...] S. Ex. de toda esta discussão aproveitará a apresentação de tres projectos: o BernardelliAmoedo, o Decio-Aurelio, e o meu que é conciliador. [...] Bem orientado e criterioso, dispondo d’estes elementos todos, o Sr. Benjamin Constant está, por conseguinte, nas condições perfeitas de tornar-se o pai e o constructor da Arte Brasileira. (Id., 1890k)

Seja como fôr, adoptem o projecto que adoptarem, existirá o Museu. Junto a elle exista a academia do ensino secundario, cujo regulamento póde ser feito á vontade, uma vez que tenha o seguinte arcabouço: Preparatorios exigidos: Portuguez, francez ou italiano, aritmetica, geographia e historia. Curso:

Tal importância adquiriu o jornalista no debate das questões do ensino da arte, que acompanhou os artistas na entrega da petição, provavelmente a convite dos mesmos. Após onze artigos sobre a 264

1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

questão da Academia, Mallet ainda publica um intitulado Os novos, no qual engrandece a nova geração de profissionais de várias áreas, e em especial...

Aurelio de Figueiredo, pintor. Manoel Teixeira da Rocha, pintor, Francisco Ribeiro, pintor, Baptista Castagneto, pintor, Emilio Rouède, pintor, Henrique Bernardelli, pintor. (O PAIZ, 1890j)

Na esphera da actividade artistica é espantoso o movimento e a pujança da tal gente nova, verdadeiramente nova, que quasi nada fez ainda, que ainda não tem a consagração de uma victoria completa, mas que ahi vem forte e resoluta, destinada a marcar em periodo aureo a sua passagem fecundante. [...] Aos novos, o Brasil! Os novos podem ter no maximo a loucura, que é o portico do genio; o velhos têm no minimo a senilidade, que é o portico dos cemiterios. (Id., 1890l)

Para manter o protesto e esvaziar a Academia, o grupo que se reuniu na oficina Bernardelli propõe agora a experiência dos “cursos livres de belasartes”. Os jornais passam a publicar as listas dos patrocinadores, dentre eles dois bancos e alguns dos próprios artistas. A soma publicada chegou a 4:000$000 (quatro contos de réis). No dia 6 de julho, uma nota anunciava a abertura dos cursos para o dia 15; o local provisório, que seria o barracão montado no largo de São Francisco de Paula, para a exposição do quadro de Aurélio de Figueiredo, que se encerrava nesta mesma data; e a abertura do livro de matrícula para os interessados nos cursos de pintura, escultura e arquitetura. (Ibd., 1890k) Nos dias que se seguem, são publicadas três listas de inscritos, somando cinco para o curso de escultura e 25 para o de pintura, entre estes, Eliseu Visconti, João Batista da Costa, Fiuza Guimarães e Bento Barbosa. (Ibid., 1890l,m,n)

Os novos, termo usado já em vários outros artigos por Mallet, é aquele pelo qual será conhecida esta geração de artistas que aproveitou a mudança política do país para lutar por melhorias também para a sua classe, ao lado de seus jovens mestres. Entre os nomes citados neste artigo, estão Fiúza Guimarães, Raphael Frederico, João Batista da Costa e Eliseu Visconti. Experimentando a idéia dos positivistas

Logo após o início dos cursos livres de belas-artes, o general Deodoro da Fonseca fez uma visita à Academia, acompanhado de senhoras da sua família e do diretor, que lhe mostrou as galerias e todas as dependências. A visita foi chamada de inesperada, minuciosa e demorada. (Ibid., 1890o) No dia seguinte, é finalmente publicada, na íntegra, a petição dos artistas ao Ministro do Interior, um mês após a sua redação. (O PAIZ., 1890p).

Entregue a decisão nas mãos do ministro, após exaustivos debates, e com a informação de que a reforma do ensino artístico seria a última a ser realizada, nada mais a fazer do que esperar? No dia 26 de junho, a Seção livre do jornal O Paiz publicava uma circular: Não podendo ficar paralysado o estudo das bellas-artes, e estando os ex-alunos da academia moralmente obrigados a não aproveitar o pouco material de ensino que lá se fornece, a commissão promotora da mensagem que acaba de ser entregue ao governo pedindo a suppressão da academia, resolveu organizar cursos publicos e gratuitos em local que será mais tarde annunciado. Para a realização desta idéa pedem os abaixo assignados a subvenção do publico, subvenção que será provisoria, porque o Sr. general Benjamin Constant comprometteu-se a resolver satisfactoriamente e dentro em breve o problema do ensino artistico entre nós. Como processo de recolher a subvenção, os abaixo assignados deixam listas nas redacções dos jornaes. Capital Federal, 25 de junho de 1890. Rodolpho Bernardelli, esculptor. Decio Villares, pintor. Rodolpho Amoedo, pintor.

O barracão não serviu apenas para as aulas dos cursos livres, abrigou também a primeira exposição de pintura de Belmiro de Almeida, que se encontrava morando em Roma. A exposição inaugurada em 21 de agosto ficou ali por pouco tempo. No dia 27 do mesmo mês, era anunciada a mudança dos cursos livres de belas-artes (que contavam 40 dias), para o prédio do antigo Atelier Moderno, á rua do Ouvidor, 45, por haver expirado o prazo da licença concedida pela municipalidade, para a permanência do barracão no largo S. Francisco de Paula. (Ibid., 1890q,r) Vence a idéia da nova escola O mês de setembro começa com a notícia de que também o Ministro da Instrução Pública fez sua visita demorada às galerias e dependências da Academia das Belas Artes, acompanhado do seu diretor e dos professores Victor Meirelles e José Maria de Medeiros. (Ibid., 1890 s ) Apesar de 265

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

26 de novembro, (Ibid., 1890 y) e não recebeu muita atenção da imprensa. O nome do antigo Atelier Moderno foi sempre atrelado aos cursos que ali funcionaram, nos pequenos anúncios que foram publicados sobre a exposição. Os raros comentários se mostraram pouco entusiasmados:

esvaziada a Academia, seu diretor procurava ainda reabilitá-la. Conseguiu verba extra para uma excursão à serra de Teresópolis, para os alunos da aula de Paisagem, do professor recém contratado, Antonio Parreiras; e concedeu o prêmio de Viagem à Europa ao aluno Oscar Pereira da Silva. (Ibid., 1890u) Os jornais noticiavam, ainda, o número de visitantes à Academia em cada semana; e a exposição do Panorama do Rio de Janeiro, de Victor Meirelles, instalado na rotunda da Praça Quinze de Novembro, cuja inauguração foi adiada para janeiro, por conta de estragos sofridos no arsenal de guerra, onde o panorama ficou depositado durante seis meses. (Ibid., 1890t,v)

Passei, ha dias, pelo Atelier moderno. Lá estiveram expostos os trabalhos dos discipulos revolucionarios da escola livre. Impressão tardia a que dou. Como arte revolucionaria deve-se dizer que ali nada existia que pudesse dar semelhante inducção. Mas havia um grande número de telas agradáveis. Havia, por exemplo, as telas de Visconti, que, na sua qualidade de esperança, abusa consideravelmente do verde. As suas paizagens dão os ares de parque inglez, pelos seus tons de verde tenro, muito cuidado, de jardim. Por isso mesmo, um só quadrinho em que não se nota esse abuso é o melhor e é aquelle que nos mostra um pardieiro amarello sob a ramada de uma bella arvore bem colorida. Notarei aqui um mimo do Bento Barbosa, pequeno quadro de genero, delicioso e verdadeiro. (J.R., 1890)

Finalmente, o Ministro da Instrução Pública cumpre sua promessa: No dia 23 de outubro de 1890 é publicado o seu projeto para a Instrução Primária e Secundária, esta última incluindo desenho, música e cinco línguas estrangeiras. No dia seguinte, Benjamim Constant publica o projeto de reforma das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, e a criação da Escola Superior de Farmácia. Quinze dias após, são aprovados os estatutos para a Escola Nacional de Belas Artes, pelo decreto n. 983, do Governo Provisório da República. E no dia 20 de novembro, na Secretaria da Instrução Pública, tomava posse o diretor da nova escola, Rodolpho Bernardelli (Ibid., 1890x), que dois dias depois, apresentou-se para assumir suas funções, em grande estilo:

Mas o nome pelo qual ficou conhecida esta experiência foi dado por Pardal Mallet, e lembrado por Visconti. O cronista que andava sumido das páginas da Gazeta de Notícias, desde o início de agosto, quando embarcara para o Rio da Prata, como correspondente do jornal, manifestou-se novamente três dias após a inauguração da exposição, assinando apenas com suas iniciais:

Ao entrar no saguão, o glorioso artista foi enthusiasticamente acclamado pelos alumnos e funccionarios do estabelecimento, que o cobriram de flores. As escadas do edificio até o gabinete do director estavam tapetadas de flores e a secretaria do eximio artista também festivamente adornada. Bernardelli percorreu todo o edificio, acompanhado por altos funccionários da secretaria do interior e da instrucção publica, director, secretario e professores do instituto nacional de musica, senhoras e cavalheiros, e depois de servido profuso lunch retirou-se. (Ibid., 1890w)

E venha-me agora o Cosme Peixoto com todas as más theorias! Venha-me até o Decio Villares com as suas pinturas positivistas de caixinhas de phosphoro! Eu venho da exposição dos trabalhos executados no Atelier Livre. E quasi que começo a aceitar e comprehender a pintura. [...] ... porém, o que se encontra na actual exposição do Atelier Moderno. ... télas que pelo menos são outros tantos documentos de psychologia, onde se pôde apprehender a elaboração cerebral de interpretar a natureza. Frederico, Fiuza e Visconti (colloco-os em ordem alphabetica), são temperamentos que rivalisam entre si, e rivalisam com outros já acclamados e vulgarisados pela notoriedade, para impôr aos outros as suas visualidades pessoaes, nevroticas e doentias, como as de todos os artisticas.

Vitoriosos, os “insubordinados” alunos e “insidiosos” professores podiam voltar agora para a “nova escola”. Antes de abandonar o prédio do antigo Atelier Moderno, organizaram ali uma exposição dos trabalhos realizados durante os quatro meses de duração dos cursos “livres” ou “públicos” de belas-artes, como eram chamados pela imprensa. A exposição foi inaugurada no dia 266

1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

O verde característico da nossa terra foi uma busca constante na carreira de Visconti. Já desde a exposição do Atelier Livre, inaugurada oito meses após esta EGBA, foram notados “seus tons de verde tenro”, embora o crítico considerasse seu uso abusivo. (J.R., 1890) Datadas deste ano, temos a Paisagem com figura, do MNBA, e Mamoneiras que é considerada por Jorge Coli como protoSegall, pela comparação com a tela do pintor lituano, Bananal, de quase 40 anos mais tarde.

E, quando a gente sae d’aquelle salão, onde está manifesta e clara a justificativa da revolução artistica que elevou Bernardelli a director da escola de Bellas Artes, traz no corpo todo inteiro uma sensação gostosa de banho de luz, de crenças e de trabalho, que fortifica o espirito e o faz sonhar na grandeza de nossa terra brasileira. (MALLET, 1890m) Diversamente de seu colega de O Paiz, Mallet julgou que o resultado da exposição validava a revolução artística. Sem dúvida, os comentários dos dois críticos coincidem com o lado da questão ao qual cada um dos jornais mostrou sua simpatia, durante aquele ano, através dos artigos que publicou.

Provavelmente pintado no Atelier Livre, ou logo em seguida, o auto-retrato mais antigo de Visconti de que temos conhecimento, traz também vários tons de verde na paisagem esboçada ao fundo. Seu traje é insólito, pois combina terno branco e gravata com um chapéu de palha, que parece testemunhar o trabalho feito ao ar livre.

Ambos, porém, dão destaque a Visconti, que viria a ser aquele que relembraria parte dessa história às gerações futuras. O orgulho do jovem Eliseu em participar daquela experiência contestadora ficou registrado em uma pintura sua, datada de 24 de setembro de 1890, na qual se pode ler: Atelier Livre, e a dedicatória a Julio de Magalhães Macedo, colega que com ele fez parte da primeira lista de inscritos para o curso livre de pintura.

É importante ressaltar, que Visconti já se dedicava a temas brasileiros mesmo antes de todo esse debate, como em Casebre no fim da praia do Flamengo, de 1888, e Mamoeiro, de 1889, do acervo do MNBA – para citar apenas algumas telas conhecidas hoje. Estas provavelmente fizeram parte da exposição dos trabalhos dos alunos da Academia, visitada por Teixeira da Rocha, em janeiro de 1890. Após criticar duramente os trabalhos das aulas de desenho e pintura, o colega dá um Bravo! para os estudos de Visconti da aula de paisagem. (VIDA..., 1890a)

Reflexos na pintura de Visconti Estudando a obra e as idéias sobre arte declaradas por Visconti, mesmo décadas depois, pode-se perceber o embrião nos acontecimentos de 1890. Desde as críticas à EGBA, no início do ano, falouse muito sobre a questão da arte nacional:

Também do exterior veio o reconhecimento. Visconti conquistou uma medalha por mérito especial, na Exposição Internacional de 1893, em Chicago, EUA, por oito paisagens a óleo. Entre elas estava pelo menos uma das várias Lavadeiras que realizou em 1891.

Quem visita a nossa Academia de Bellas Artes não sente a impressão agradavel do viajante que volta á sua terra, do homem que entra em sua casa. O ar que alli se respira não é o nosso ar, aquelles não são os nossos costumes, não é aquélla a nossa gente, não é assim a nossa paizagem, e portanto, aquella não é a nossa arte, não é a arte nacional, não é a fixação na téla e no marmore da vida, da alma brasileira. Na galeria em que estão expostos os quadros novos, em cuja honra foram abertas as portas do velho edificio, que alli vive esquecido em um becco, ha aqui e acolá umas abertas para esse ceu; ... verdes de tonalidades alegres, abrilhantadas pelo sol; é preciso procurar a nossa natureza n’uma pequena paizagem que Hypolito Caron pintou em Juiz de Fóra, em uma outra de Pombal, de Rodolpho Amoedo, e em outras de França Junior, de Visconti, de Baptista da Costa, e de poucos mais. (GAZETA..., 1890d)

Na primeira EGBA organizada pela nova escola, em 1894, Visconti, apesar de se encontrar em Paris, participou com dez pinturas, dentre as quais cinco paisagens e uma intitulada Bananeiras. Assim se referiu a algumas delas, um cronista da exposição: N’estas tres télas o que eu noto como dominante é uma grande belleza de colorido, uma cuidada execução das folhas e mesmo das arvores, uma esplendida escolha do verde, que é caso raro na exposição, o verde d’aqui, o verde verdadeiro, considerada a luz como exacta. (J.B., 1894) Infelizmente, não sabemos apontar todas as paisagens expostas nesta ocasião, apenas é possível citar aquela Lavadeiras premiada em Chicago e uma paisagem da coleção Lily Marinho. 267

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mas, muito provavelmente, eram todas pintadas ainda aqui, antes de Visconti partir, em 1893, para o gozo do seu Prêmio de Viagem à Europa.

Vários outros autores concordam com essa posição, entre eles, Flávio de Aquino, Frederico Morais, e Mário Pedrosa, todos comentando sobre o impressionismo viscontiano:

Assim que voltou, após oito anos, realizou sua primeira exposição individual, na ENBA, em 1901, para mostrar sua produção daquele período, todas obras realizadas na Europa. Porém, em sua participação na EGBA de 1902 – com um total de 25 obras – além de várias daquelas, podemos identificar, pelos títulos, algumas paisagens brasileiras: Igreja da Candelária; Igreja do Carmo; Perfil da nossa baía, Tarde de julho (Pão de açúcar). Mas além das paisagens, notamos que os verdes invadiram também seus retratos: “... Visconti expõe, por sua vez, notabilissima collecção de belli retratos, tratados com um namoro especial do nosso ambiente tropical; muitos destes feitos en plein air.” (MORALES DE LOS RIOS, 1902) Felizmente conhecemos dois destes magníficos retratos: o do Dr. Romeiro e o do Sr. Simas . Sugestivamente, Visconti apresenta ainda uma pintura intitulada Os novos, a qual, embora não saibamos exatamente o que retrata, foi descrita pelo crítico como “inspirada no nosso sol e suas reverberações”.

Trouxe-o da França ainda quente das discussões, vivo; transformou-o, ante o motivo brasileiro, perante a côr e a atmosfera luminosa do nosso país (AQUINO, 1949). ... mas Visconti é o coroamento do Impressionismo no Brasil, aquele que o enraizou na terra brasileira e o impregnou de uma sensibilidade especificamente nossa (MORAIS, 1980: 91). Mais tarde, no Brasil, sob a luz tropical ainda indomada na nossa pintura, Visconti é um conquistador de atmosfera. E aquela ciência da luz e do colorido que aprendeu em França vai servir-lhe agora para dominar o vapor atmosférico. Será esta a sua grande contribuição. [...] Pintor até a raiz dos cabelos, êle compreende que o destino de sua arte está na vitória sobre aquêles elementos. Os matos cariocas, a serra de Teresópolis, travam com êle um diálogo misterioso (PEDROSA, 1950: 6).

Para não repassarmos uma a uma as participações do pintor nas exposições anuais do Rio de Janeiro7, lembraremos apenas mais algumas telas, em que se percebe uma preocupação especial de Visconti em retratar nosso verde e nosso sol. Em torno de 1910, temos Morro de Castelo; Recanto do morro de Santo Antonio, Paisagem de Santa Teresa e Crisálida; da década de 1920, Baixada de Vila Rica, Garotos da Ladeira e A visita, Uma lição no jardim; da década de 30 são, Na alameda, O batizado da boneca, Solar de Teresópolis e Descanso em meu jardim; e dos anos que antecederam sua morte em 1944, Passeio no parque, Roupa estendida, Quaresmas e Para o banho.8

Orientação para novas atitudes As escolhas que Visconti fez, como bolsista do Estado Brasileiro em Paris, são sempre apontadas com admiração, pela novidade que representaram em relação às de seus antecessores. Quando os concursos para o prêmio de estudos na Europa foram restabelecidos pela ENBA, em 1892, Visconti foi o primeiro classificado em todas as provas. Seguiu para Paris em março do ano seguinte. E apenas três meses após sua chegada, classificava-se em sétimo lugar entre os 220 concorrentes iniciais, e os 84 admitidos na seção de pintura da École des Beaux-Arts, de Paris. Apesar desse sucesso rápido, logo deixava essa escola, no início de 1894, optando por ambientes mais arejados e novos caminhos. Continuou, então, freqüentando a Académie Julian, o mais importante atelier não oficial da época, onde poderia cumprir suas obrigações de pensionista, e ingressou na École Guérin, no curso de composição decorativa de Eugène Grasset. Mário Pedrosa faz sua avaliação do Visconti estudante em Paris:

O fato de Visconti ter nascido na Itália e vivido por vários períodos na França, gerou uma idéia equivocada de que o pintor teria visto o Brasil como um europeu. José Paulo M. da Fonseca respondeu a esta questão a partir da análise de suas obras: ... quem observa uma paisagem de Teresópolis ou um recanto do Rio inundado pelo sol, quem os observa num quadro de Visconti, percebe, irrecusàvemente, uma intimidade com o tema, ... como algo que é olhado e recordado ao mesmo tempo, aquela visão na qual a intimidade percebe tanto quanto o olhar, na qual o tema já se encontra humanizado pelo observador. Ora, essa duplicidade de visão assegura o brasileirismo de Visconti. 9

Em geral, os outros laureados brasileiros saiam daqui para a metrópole artística do mundo, sem o menor espírito crítico, sem quaisquer veleidades de independência, jungidos de um 268

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condizentes com seu caráter e conceitos artísticos. Da estética simbolista, por exemplo, aproveitou apenas a vertente mais “saudável”; nada encontramos em sua obra daquela decadentista, também muito em voga na passagem do século XIX para o XX. Mostrou-se assim, ainda em seu período de formação, já um artista consciente de sua individualidade, maduro, capaz de escolher entre as opções que tinha para renovar-se, sem ficar preso à tradição, nem correr atrás de toda e qualquer novidade.

respeito fetichista à tradição e ao consagrado. Visconti, porém, ainda em embrião, já daqui partia minado por um ideal menos estereotipado, mais pessoal, isto é, uma ambição mais intrinsecamente criadora. Êle ia aprender, sim, mas sobretudo assimilar e crescer; ao passo que os outros iam apenas aprender, passivamente, e diplomar-se. (Id., 1950: 6) No entanto, ele foi um dos principais protagonistas dos debates que antecederam a reforma da Academia. Nesta primeira crônica sobre o assunto, ele já expõe, logo nas primeiras linhas, uma síntese das suas idéias: “Falla-se em supprimir a Academia de Bellas Artes. A conserval-a como está, melhor é com effeito supprimil-a.” Citava a proposta dos positivistas como alternativa mais aceitável que a situação atual, embora fosse contra esta atitude radical. A seguir, faz graves denúncias sobre o que acontecia na instituição, envolvendo inclusive o orçamento destinado a ela, e aponta o motivo pelo qual os professores mais jovens haviam recentemente deixado a Academia.

A adoção daqueles movimentos de vanguarda da época em que buscava especializar-se garantiu o sucesso de Visconti nas várias exposições estrangeiras das quais participou, como diversas vezes nos dois salões anuais parisienses. Também nas exposições ditas Universais – a de 1900, em Paris, com as pinturas Oréadas e Gioventù, e a de 1904, em Saint Louis, com Recompensa de São Sebastião – conquistou uma medalha de prata e uma de ouro, respectivamente. Estas duas últimas obras foram também expostas em Londres, e reproduzidas na revista inglesa The Studio, em junho de 1902. (CORREIO PAULISTANO, 1903) Visconti participou ainda da exposição que inaugurava o Museo Nacional de Bellas-Artes de Santiago do Chile, em 1910, quando teve sua pintura Sonho místico adquirida para aquela instituição. E também existem indícios de ter participado de mostras marginais, como a da Secessão de Munique, em 1896, com a pintura A convalescente.

Não apenas as instituições de arte que freqüentou demonstram o quanto aprendeu com todo o debate de 1890. Seu espírito crítico e independência são evidentes, também, pelo fato de Visconti ter sido o primeiro bolsista brasileiro a permear suas obras com as correntes artísticas, que se desenvolviam fora do ensino oficial da academia francesa. No catálogo da Exposição Retrospectiva de Visconti, montada em sala especial da II Bienal de São Paulo, a tônica de todos os artigos foi o caráter moderno da obra do mestre. Nas palavras de Herman Lima:

Em suas primeiras exposições individuais – no Rio de Janeiro, em 1901, e em São Paulo, em 1903 – Visconti surpreendeu público e crítica, apresentando a novidade de uma seção de “arte decorativa aplicada às indústrias artísticas”, ao lado da seção de pintura e desenho. Em São Paulo, acrescentou ainda uma terceira seção, na qual expôs dez peças pintadas a mão.

... Elyseu Visconti não passaria pelo estágio europeu sem experimentar vivas reações, interessado por tôdas as manifestações estéticas do seu tempo, mesmo as mais revolucionárias, tolerante e duma esclarecida receptividade para com as inovações, do que decorre o conceito muito justo de ser um verdadeiro marco divisório no cenário artístico brasileiro, pelo frêmito de renovação que a sua arte haveria de trazer à nossa pintura... (LIMA,1954)

A terceira secção – ceramica artistica nacional, desperta muito interesse, por ser a primeira tentativa nesse genero no Brasil. O talentoso artista iniciou-se nesse ramo das artes com o intuito de fundar uma ceramica puramente nacional, inspirada na nossa natureza. (COMMERCIO..., 1903)

Além de adaptar as técnicas impressionista e pontilhista à sua sensibilidade própria, Visconti transitou pelas esferas do art-nouveau, prérafaelismo e simbolismo. No entanto, nem todas as manifestações estéticas daquele tempo encontraram ressonância em sua arte. Visconti deixou-se influenciar somente por aquelas mais

Além de continuar buscando criar uma arte genuinamente nacional, Visconti rompe a separação valorativa entre belas-artes e artes aplicadas, alinhando-se, assim, a vários movimentos europeus contemporâneos10.

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e sem o qual não é possivel crear uma arte brasileira. Tenho grandes esperanças que o novo director da Escola de Bellas Artes, Sr. José Marianno Filho, nos reserve fructos saborosos para o futuro. [...] Na architectura e nos outros cursos de arte applicada sente-se a necessidade de estabelecer um curso pratico de “pesquiza” e “creação”; só assim, dentro de alguns annos, podemos começar a plasmar uma arte de caracter nacional. (VISCONTI apud COSTA, 1927:82)

Conceitos arraigados Mas também, a marca dos caminhos esboçados naqueles anos de agitação artística no Brasil, pode ser notada em duas entrevistas de Visconti, realizadas várias décadas depois. Uma foi concedida a Angyone Costa, e publicada primeiramente em O Jornal, de 11 de julho de 1926, e depois reunida a outras, no livro A inquietação das abelhas, do ano seguinte. Respondendo a diversas perguntas, Visconti expressa idéias difundidas naqueles debates: É um engano falar em arte no Brasil. Nós não temos arte. Nunca tivemos. Difficilmente teremos, se não alterarem, profundamente, os methodos de ensino no paiz. [...] A Escola tem alguns professores bem interessantes. Outros, habeis e competentes, mas que precisam descansar. Ha necessidade de uma conpulsoria. É preciso renovar... [...] As reformas da Escola de Bellas Artes têm sido reformas burocraticas e o que se quer são reforma didacticas. [...] A Escola tem de ser o centro convergente de um amplo trabalho de vulgarização da arte por meio de escolas disseminadas pelo paiz inteiro, onde se ensine a desenhar. Depois de frequentadas taes escolas, as especializações seriam feitas na Escola de Bellas Artes. É preciso fazer o ensino aproveitando e pesquizando as vocações. Onde haja um estimulo, desenvolvel-o e utilizal-o. [...] O “salon” estabelece premios e vantagens, que são conferidos por um “jury” composto na maioria de professores da Escola. Veja a que não ficam sujeitos taes julgamentos, desde que o professor póde ser, simultaneamente, juiz, expositor e mestre dos expositandos. É uma organização condemnada e perigosa, prejudicial ao desenvolvimento das bellas artes. Deve ser remodelada, em sua essência, de maneira a assegurar maior justiça nos julgamentos, impedindo vicios originários da sua organização actual. (VISCONTI apud COSTA, 1927:79-80)

A outra entrevista foi concedida a Tapajós Gomes, e publicada no Correio da Manhã, de 15 de dezembro de 1935. Visconti, já com quase 70 anos, mostra-se mais desanimado com a mesmice das coisas relacionadas à arte: Preferimos assimilar o que nos vem de fóra, despresando o que é nosso – a começar pela nossa propria natureza, que é um manancial inesgotavel de pesquisas e de surpresas. Mas o que é nosso não nos interessa... preferimos bater palmas para tudo quanto nos vem de fóra! [...] O desenho – diz elle – deve ser a base primordial da educação do publico. Aqui, entretanto, se ha estudo deficiente é esse. Nas escolas primarias e secundarias, ensinam-se tres ou quatro linguas estrangeiras, algumas inuteis, como o latim e o grego, cançando-se o cerebro dos alumnos, e esquece-se de se lhes ensinar desenho, que é a linguagem expressa pela fórma, a linguagem que suppre todos os idiomas, a linguagem universal, enfim! [...] ... a Escola de Bellas Artes até hoje, ainda não comprehendeu a extraordinaria utilidade do ensino das artes apllicadas industrialmente. Por isso ao invez de abrir caminhos novos á intelligencia dos moços, continua a obrigal-os a copiar annos e annos os mesmos modelos tradiccionais e seculares! Resultado: os alumnos saem da Escola, capazes de reproduzir figuras de gesso e incapazes de criar um desenho novo, para um mosaico, um objeto, um movel ou mesmo para um vestido. (VISCONTI apud GOMES, 1935:1)

Apesar dos problemas continuarem exatamente os mesmos, passadas três décadas e meia, a esperança também se mantinha. Um novo diretor, talvez... Mas quanto à arte nacional, cuja expectativa, em 1890, estava na pintura de paisagem, Visconti agora a desloca para outra arte:

Mas o mestre que manteve a vitalidade, produzindo e renovando-se até o fim, não perdeu jamais a esperança dos “novos” de 1890, associando-a aos ideais que conheceu na Europa e ao amor incondicional por sua pátria de adoção:

Se quizessemos trabalhar, quanto teriamos que fazer! Só as artes applicadas são um assumpto amplissimo, de que ninguem se preoccupa aqui

Se ha na America do Sul uma arte nova, essa está no Brasil, e é a arte decorativa brasileira 270

1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

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que desponta e cujo futuro considero immenso! Ha de chegar o dia em que poderemos exportar muita coisa que tenha o cunho de uma arte nacional, cheia de pujança e de vitalidade, pela fórma e pelo esplendor do motivo colhido na nossa propria natureza [...] A pintura, a esculptura e as artes decorativas são inseparaveis da architectura e com ella fazem corpo. As bellas artes constituem um unico organismo que trabalha para um fim comum. É dessa collaboração que nasce esse conjuncto de elementos que formam uma nacionalidade e caracterizam uma epoca. (VISCONTI apud GOMES, 1935:2) Referências bibliográficas AQUINO, F. de. 1949. Elyseu Visconti. Diário de Notícias (Movimento Artístico), Rio de Janeiro, 27 nov. BARATA, Frederico. 1944. Eliseu Visconti e seu Tempo. Rio de Janeiro: Zélio Valverde. BERNARDELLI, Rodolpho. “Ao Dr. Rozendo Moniz”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 jun 1890, p. 1. BRAGA, Theodoro. 1942. Artistas Pintores no Brasil. São Paulo: São Paulo CARDOSO, R. 2007. “Dois ramos do mesmo tronco- Arte e Design na obra de Eliseu Visconti”. Eliseu Visconti: Arte e Design. Rio de Janeiro: Caixa Cultural. CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Os embates no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/criticas/ embate_1890.htm COSTA, A. 1927. A Inquietação das Abelhas. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello. DUQUE, Gonzaga. 1929. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Benedito de Souza. Exposição Visconti. 1903. O Commercio de São Paulo, 8 mar. Exposição Visconti. Encerramento. 1903. Correio Paulistano (Factos Diversos), 4 abr. FREIRE, Laudelino. 1916. Um Século de Pintura: apontamentos para a História da Pintura no Brasil – de 1816 a 1916. Rio de Janeiro: Röhe. GALVÃO, Alfredo. 1954. Subsídios para a história da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil. Gazeta de Notícias. 1890. Rio de Janeiro, [a] 11 fev, p.1; [b] “Escola Especial de Bellas Artes”, 12 mar, p.2 e 3; [c] “Bellas Artes”, 20 mar, p.1; [d] “Bellas Artes”, 31 mar, p.1; [e] “Bellas Artes”, 7 abr, p.1; [f] “Reunião de artistas”, 17 jun, p.1.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 4 D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / catalogos/1890_egba.pdf 5 Infelizmente, não foi possível encontrar esta crônica assinada por Cosme Peixoto. O professor Rodopho Bernardelli nem chegou a se apresentar à Academia, quando iniciaram-se as aulas em 6 de maio de 1890. 6 Estes podem ser conferidos no artigo “O aranheiro da Escola” de Gonzaga Duque, publicado inicialmente na revista Kosmos, nº 8, de agosto de 1907, e também em Contemporâneos, de 1929. 7 Ele participou de 38 das EGBA realizadas pela ENBA, a partir de 1894, além da de 1890, organizada ainda pela Academia. 8 Estas e muitas outras pinturas de Visconti podem ser apreciadas em seu site oficial ( www. e l i s e u v i s c o n t i . c o m . b r ) n o l i n k O b r a s / Classificação por tema. 9 FONSECA, J.P.M da. “Eliseo D’Angelo Visconti”. Artigo de um recorte existente na pasta do artista, organizada pela Biblioteca do MNBA, infelizmente sem nenhuma identificação; do qual só é possível inferir-se o ano de 1967, pela menção da comemoração do centenário de nascimento do artista, ocorrida com um ano de atraso. 10 Ver artigo de Rafael Cardoso no catálogo Eliseu Visconti- Arte e Design, 2007.

PONTUAL, Roberto. 1976. Arte Brasileira Contemporânea. Coleção Gilberto Chateaubriand. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil. Vida Fluminense. 1890. Rio de Janeiro, [a] 18 jan; [b] 15 fev; [c] 1º mar, p. 4; [d] 8 mar, p. 1; [e] 29 mar; [f] 4 jun; [g] 18 jun. Notas * Docente do Cefet MT, doutoranda em História da Arte pelo IFCH/Unicamp, bolsista da CAPES. 1 Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/criticas/ embate_1890.htm 2 Diariamente, a coluna “Artes e Artistas” do jornal O Paiz, noticiava a visitação do dia anterior e o preço da entrada, sendo 1$000 (mil réis) aos sábados, 500 réis na quarta-feira, e no restante da semana, 200 réis. Normalmente, contavam-se de 180 a 300 pessoas; sempre nos dias de preço mais elevado a visitação baixava para em torno de 50; e aos domingos subia para mais de 400 pessoas. 3 O documento comunicando a nomeação foi lido em 19 de dezembro, na Congregação da Academia. Acervo Arquivístico do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Notação: 6153.

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Em muitos ramos dos conhecimentos humanos, artes e ciências são de tal modo entrelaçados, que não é possível fazer-se uma separação completa Francisco Cordeiro da Silva Torres, O Auxiliador da Indústria Nacional, ano III, v.9, p.265-6, 1835 A escrita da história, e neste caso da história da arte, pode ser considerada uma autoridade institucional, pressupondo a observação do tempo, espaço e sujeito que está produzindo o discurso histórico. A mudança dos traços pictóricos e composição visual, elementos como originalidade/ imitação, contemplação do belo/funcionalidade, artífice/artista, assim como, o deslocamento de objetos funcionais fabricados pelo homem até o lugar considerado nobre, como galerias e museus, não são consensuais e necessitam de uma averiguação do universo cultural onde essas construções são feitas. Dentro do movimento romântico a arte ganha importante função de civilizadora, pelos sentimentos que sua experiência pode despertar e desenvolver como a civilidade, patriotismo, costumes e será aliada ao ideal de história como mestra da vida, no caso do Brasil oitocentista. Pensadas desta forma, a criação de várias instituições de saber no Brasil durante a primeira metade de século dezenove são significativas para se compreender a formação do Estado Nacional brasileiro e sua relação com o campo cultural e artístico.

considerações sobre história e arte nos manuscritos de porto-alegre paula ferrari

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A monarquia brasileira, segundo Líria Moritz Schwarcz, em As Barbas do Imperador, seguiu um trajeto original combinando a tradição européia ao ambiente singular da ex-colônia: “[...] uma cultura que se construiu com base em empréstimos ininterruptos, os quais, no entanto, incorporou, adaptou e redefiniu ao justapor elementos externos a um contexto novo”. Durante o século XIX, houve um amplo debate sobre como deveria ser construído o recente Estado-Nação brasileiro, geográfica, histórica, cultural e politicamente, e sobre quais aspectos definiriam de forma inequívoca a expressão de uma identidade local intransferível. A pesquisa relativa a Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879)2 visa a sua produção historiográfica, tentando compreender a relação entre arte e história, assim como a possibilidade de um campo emergente de história da arte brasileira nesse período. As fontes escolhidas para estudo são manuscritos da Coleção Porto-alegre do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, priorizando rascunhos e textos historiográficos, muitos não publicados.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Consideramos importante traçar a trajetória intelectual de Porto-alegre, observando leituras, relações pessoais e locais que manteve dentro do recorte cronológico adotado, ou seja, da sua entrada na Academia Imperial das Belas Artes (1826) até o ano em que parte para a Europa em carreira diplomática (1860). A trajetória serve nessa pesquisa como parâmetro para compreender suas escolhas e preocupações, tornando-se ora um paradigma indiciário de leituras necessárias para o desenvolvimento da pesquisa, ora como baliza para a crítica dos manuscritos. Essa metodologia nos permite aprender a ler como certas questões são abordadas por Porto-alegre. A proposta de vasculhar a formação de Manuel de Araújo Portoalegre busca traçar um panorama do que é possível e, talvez mais essencial, o que não é possível extrair dos seus manuscritos. O presente artigo busca perceber a influência da Academia Imperial das Belas Artes na conformação de pressupostos culturais que possam trazer chaves interpretativas a seus escritos.

hypotheses, conjecturas, ou o socorro de algum systema engenhoso, que mais abrilhanta a sagacidade do seu inventor do que esclarece a verdade.(PORTO-ALEGRE, 1855) A obra de arte, conservando em sua matéria vários conhecimentos, tecnológico, estético, cultural, que são necessários para a sua confecção, encerra em si um arquivo para se compreender o universo onde foi gerada revelando-se um termômetro de sua sociedade. O gênio, a inspiração do artista, para ele não são suficientes, é necessário também o conhecimento técnico e erudição4 para que seja desenvolvida uma arte superior capaz de condensar em si todo o conhecimento acumulado até sua época. Esta educação não se restringiria ao artista, mas direcionar-se-ía a toda a sociedade, aos que se utilizam deste conhecimento para produzir e domar a natureza bruta, aos que usufruem dessa produção; pois, para se apreciar e compreender a profundidade do Belo também são necessários treino e educação. Winckelmann atribuía à perfeição que a arte grega atingira ao clima ameno e ao estudo do Belo ideal através do escorço; o clima do Brasil parecia oferecer a Portoalegre as mesmas condições, embora sem os mesmos resultados, o que o levava a questionar outros fatores 5: sociais, culturais, ou inclusive, históricos.

Além de ter sido inspirada na Académie Royale Peinture et Sculpture da França, a Academia Imperial das Belas Artes, segundo Castro, também teve grande influência de Winckelmann (17111768)3. Este arqueólogo do século XVIII, em seus estudos sobre a estética grega, afirmava que a arte teria uma dupla função: agradar e instruir, inspirando nos espectadores sentimentos e comportamentos civilizados, buscando elevar o espírito para atingir a bela alma. Nos manuscritos de Porto-alegre encontramos a mesma admiração pela arte grega e defesa da elevada função da arte na sociedade, ele também compreende a evolução da arte em períodos pendulares como na história da humanidade, compostos de infância, maturidade e declínio.

Nesses termos a Reforma da Academia é indispensável à história da nação, segundo Porto Alegre. Sua produção salvaria os homens finados e presentes do esquecimento e também elevaria o futuro, numa prova material da civilização brasileira. Passemos, pois a considerar o desenho como elemento civilizador, como termômetro social, e como base de seguro desenvolvimento nas obras do homem, que pertencendo ao domínio da imaginação criadora por meio das formas. Os espíritos vulgares o consideram como uma arte de luxo, porém os homens que pensam, as inteligências superiores, o encaram como uma necessidade para a civilização.(Id., 1855)

A arte para ele possui dois pontos de permanência importantes: a universalidade que sua linguagem das formas pode atingir e a duração da idéia materializada. Sendo o desenho a base essencial dessa linguagem, o pintor o coloca como uma escrita universal, que vence a diferença entre o viajante e os lugares, desvela o sudário do tempo que se interpõe entre o homem de hoje e o antigo sacerdote. Nessa orientação, a arte se torna um registro histórico que é capaz de vencer o prisma do tempo

A arte sempre é tratada de forma elogiosa, motor da civilização tanto no aspecto material quanto ontológico e o desenho seria a base fundamental para que seus objetivos fossem alcançados. Embora anteriormente já houvesse uma disciplina de desenho para o primeiro ano dos cursos, ao analisar as mudanças curriculares efetuadas na reforma, essa disciplina foi desmembrada em Desenho geométrico, pré-requisito para as demais disciplinas oferecidas, dividida em duas séries: a primeira de desenho linear e complementar à cadeira de matemática aplicada, a segunda

[...] que decompõe a tradição e translus toda sorte de enganos [...] todas as memorias monumentaes levantadas á divindade, ao homem ou aos fastos nacionaes, são conservadas e transportadas por esta terceira forma do pensamento, sem comentarios, 274

Considerações sobre história e arte nos manuscritos de Porto-alegre

destinada a aplicações do mesmo desenho à indústria conforme o destino dos alunos; Desenho de ornatos; Desenho figurado, com duração determinada conforme o aproveitamento do aluno; Perspectiva e teoria das sombras, cujos concursos eram destinados à todos os alunos três vezes ao ano como forma de avaliação do aprendizado. A utilização do desenho visava um planejamento e estudo de possibilidades da confecção da obra, na sua forma estética e material, atestando o uso da razão pelo artista.

academias européias do Ancien Régime, um gênero menor. Os debates com August Müller, que ministrava a disciplina “Paisagem, flores e animais”, servem como eixo para entender os desdobramentos sobre a questão da natureza. Porto-alegre coloca o paisagista como um integrante necessário das expedições científicas. Essa atuação não era desconhecida de Portoalegre, discípulo dileto de Debret, autor de “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, cujo texto é ricamente ilustrado com registros aquarelados; também o seu conhecimento sobre arqueologia, que o levou a fazer um curso em Roma com Antonio Nibby, utilizava esse tipo de registro para compor catálogos e estudos comparativos.

Os traços de sua formação na Academia podem ser apreendidos no seu estilo de escrita e em várias outras preocupações que não pretendemos esgotar aqui. Uma das questões é sobre a natureza. Sabemos que, apesar da natureza americana ser apontada como cor local, encontramos um conflito em seus textos gerado pela necessidade de inserir o Brasil na História da humanidade como um império civilizado e seus valores orientados pela tradição acadêmica da hierarquia de gêneros de pintura6.

Como vimos, através do desenho, o artista pode registrar todas as informações necessárias para o estudo em gabinete feito posteriormente pelas expedições, assim como a divulgação do conhecimento obtido, O desenho suppre o Cadaver ao anatomico, as collecções ao Zoologo, as flores ao botanico, as viagens ao geographo, os modêlos ao engenheiro e ao artista, e como um poderoso auxiliar da palavra, que produz aquelle meanto indisivel que experimentei quando o immortal Cuvier narrava a epopéia da creação, e com o giz na ardosia ressuscitava a imagem d’esses seres perdidos, d’esse mundo abafado pelo diluvio, e petrificado pelas trevas.(PORTOALEGRE, 1855)

Segundo Chiarelli, até o final da década de 1870, a Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro formou artistas que produziram pinturas de paisagens, mas esses trabalhos eram esporádicos e guardavam os princípios estruturais do paisagismo acadêmico mais convencional, sem constituir uma escola de paisagem com características próprias ou locais. (CHIARELLI, 2007: 310) Tanto na Academia, quanto no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o meio intelectual, na primeira metade do século dezenove, segue uma tradição iluminista. Segundo Maria Odila, o traço de continuidade mais significativo dos homens de ciência no Brasil, dos fins do século XVIII à geração dos românticos, foi a sobrevivência de uma inclinação pragmática

O ponto sobre um possível campo de atuação a mais para o artista, em um país onde só Suas Majestades compravam obras de arte, no parecer7 sobre as aulas de Müller é evidente. O diretor sugeria que o professor de paisagem tivesse noções de ciências auxiliares como botânica, geologia e metereologia “porque Lineu, Cuvier, Tournefort, Flourens, nos ensinaram a pintar, assim como os anatomistas, matemáticos, poetas, filósofos, físicos e fisiologistas” (SQUEFF, 2004: 212-213), segue ainda no texto a inserção do ensino da técnica da aquarela cujo solvente é a água, mais adequada às condições que o artista enfrentaria nas expedições,e revelando-se resistente às ações do tempo conferia vantagens para a preservação da obra

[...] que se exprimiu no culto às ciências e aos conhecimentos úteis, dedicando-se à busca, consciente e pragmática, dos instrumentos da nova nacionalidade [...] Punham no culto à ciência o mesmo fervor com que veneravam a arte. “Tratava-se” escreve Antônio Candido “de construir uma vida intelectual, em sua totalidade, para o progresso das luzes e conseqüente grandeza da pátria.” (DIAS, 2005:117)

[...] O que faria um de nossos alunos viajando, ou adido a uma expedição científica no interior de país? Onde ele iria buscar os comôdos que pede a pintura a óleo, ou como poderia ele conservar a fidelidade do colorido com o lápis somente? [...] (CHIARELLI, 2007:226)

Para Porto-alegre, o estudo de paisagens era uma possibilidade para o exercício da profissão, enquanto arte, no entanto, o gênero era considerado, dentro das concepções das antigas 275

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Porto-alegre defendia a necessidade de aulas práticas para os alunos mais adiantados desta disciplina. O hábito das cópias das estampas européias privava o aluno de captar os exemplares característicos do local da paisagem trabalhada, o que era ruim, no seu ponto de vista, seja pela questão técnica da falta de familiaridade e treino com os modelos durante os trabalhos em expedições científicas, seja pela falta de veracidade na execução de pintura histórica.

mas vimos anteriormente que uma das funções da arte é servir de instrumento para domar a natureza bruta como elemento civilizador. A arte, dentro de sua concepção, se entrelaça em dois momentos com a história, sob o caráter de escrita da história, compreendida sob duas conotações: no desenrolar das ações humanas que ficaram registradas materialmente, ou, como forma de historia magistra, que organiza e seleciona os fatos memoráveis para as gerações futuras. “Sem arte não há cunho de civilisação, não há expressão do bello, não há documento do passado”. (Id., 1855)

A pintura histórica requeria a exaltação e fixação dos momentos gloriosos da nação e dos atos heróicos de grandes homens; dentro dos preceitos de Winckelmann, tornou-se o espaço privilegiado para gravar na alma de seus observadores nobres sentimentos de amor à pátria, “Por essa razão, acharam muitos dentre os maiores paisagistas que se desincumbiriam apenas de metade das suas obrigações para com a arte, se deixassem as suas paisagens sem nenhuma figura humana.” (CASTRO, 2007: 16).

Mais sutilmente, percebe-se nessa relação artecivilização-história o mesmo pensamento de Varnhagen, na infância da humanidade, na barbárie só é possível a etnografia. Sendo a civilização adotada como parâmetro européia, vemos a Arte seguir o mesmo raciocínio. Fora dos padrões da Academia temos, artífices, artesões, vocação para a arte, uma infância da humanidade, reconhecidas por Porto-alegre de forma pragmática dentro da evolução da História Universal e de cunho inferior dentro da tradição que faz parte da sua formação. Porto-alegre reconhece a necessidade desse tipo de mão-de-obra dentro da sociedade, mas não aceita a sua tradição e propõe que esses profissionais também tomem aulas na Academia, ou sigam as orientações de artistas formados por esta, para que os seus trabalhos possam progredir no aspecto material e estético.

A valorização dos momentos gloriosos da nação e dos atos heróicos de grandes homens também é encontrada no IHGB através do elogio histórico, para o universo aquém da civilização havia preocupações etnográficas e geográficas, buscando conhecer o país detalhadamente. Assim como outros sócios do Instituto Histórico, encontramos nos manuscritos a oposição entre civilização versus natureza bruta. A uma cabe a elevada tarefa da história, à outra resta somente a etnografia e outras ciências naturais. Os seus apontamentos sobre uma visita ao sul, acompanhando o Conselheiro Pedreira são concluídos desta forma:

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[O Itajahy] É um rio de 50 braças de largura na entrada e 40 ate o salto grande, que não é mais do que uma grande cataracta, que se dispenha em escaloens de sonoras catadupas da altura de 60 palmos. Vi muitos rios afamados da europa e nenhum d’elles é mais formozo e pictorico do que este; o que lhe falta somente é a historia da humanidade escripta com pedra e cal [grifos meus], quer n’esses castellos que dominam o cimo dos montes, ou n’esses coruchios de igrejas que nos transportam ao começo do christianismo, e que em caracter architectonico nos revelam a marcha do Evangelho atravez da idolatria.(PORTOALEGRE, s/d) Porto-alegre não chega a ser tão pessimista como seu contemporâneo Varnhagen, em cujos textos, a natureza ganha ares predatório e selvagem. Nossa natureza é pictórica, digna de ser pintada, 276

Considerações sobre história e arte nos manuscritos de Porto-alegre

________. Trinta teses para discussão, Ata da 2a Sessão Pública da Academia das Belas Artes, em 27 de setembro de 1855 – Presidência do Diretor. Texto disponível no site: http:// www.dezenovevinte.net/, contribuição de Arthur Valle.

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Notas * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora com a pesquisa “Porto-alegre e o IHGB: Reflexões sobre a construção da história da arte brasileira” sob orientação da prof. Dra. Maraliz de Castro Vieira Christo. 1

Para esse projeto optamos por Manuel de Araújo PortoAlegre porque representa um letrado de formação acadêmica com possibilidade de ação dentro das instituições de saber e grupos políticos ligados ao centro de poder do Império. Foi pintor, professor de pintura histórica, diretor da Academia Imperial das Belas Artes, escritor, dramaturgo, cenógrafo, caricaturista, arquiteto; é considerado primeiro crítico e historiador da arte brasileira. Porto-Alegre, como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, escreveu uma série de textos para a revista do instituto, refletindo sobre a arte brasileira. Nascido em Rio Pardo-RS, em 1806, ele presencia ao longo de sua trajetória biográfica mudanças políticas e estéticas do período. Foi discípulo de Debret e Montigny na Academia Imperial das Belas Artes, em 1831 acompanha Debret de volta a Paris, conhece Jean Antoine Gros e boa parte da geração romântica parisiense. Na Itália, estuda com o arqueólogo Antonio Nibby. Ainda na França, funda juntamente com Torres Homem e Gonçalves de Magalhães a revista Nitheroy: Revista brasiliense, sciencias, lettras e artes (1836) marco do romantismo brasileiro, posteriormente Porto-Alegre funda e dirige os periódicos: Minerva Brasiliense (1843), Lanterna Mágica (1844) e Guanabara (1849). Enquanto diretor da Academia Imperial das Belas Artes propôs reformas no curriculum e na metodologia do ensino do Instituto, ações que fizeram parte da Reforma Pedreira de 1855. O projeto civilizador de Manuel de Araújo Porto-Alegre, de ordem prática e estratégica, mudaria toda a compreensão do status do artista. Suas idéias, que tomaram corpo na Reforma Pedreira (1855), dividiram para sempre o artífice de ofício do artista, através do ensino diferenciado, visando a capacitação de mão-de-obra para a indústria e a equiparação do império à civilização da Europa, foi um homem que tomou para si as preocupações com a arte. (SQUEFF, 2004; FERNANDES, 1999; CHIARELLI, 2007; PINASSI, 1998) 2 “Os estudos de Winckelmann também tiveram grande influência no ensino da AIBA, citado diversas vezes por Taunay em seus discursos, suas obras também faziam parte do acervo bibliográfico da academia.” (CASTRO, 2007: p. 14). 3 A erudição aqui é utilizada no sentido de educação adquirida para compreender as manifestações do pensamento. A base dessa educação seria constituída, para Porto Alegre, primeiro pela gramática, chave de todas as línguas; a geometria onde se encontra a lógica e o conhecimento dos números e da extensão, e, por último, o

Fontes PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo (1806-1879). Sobre baile na colonia alemã de Fortaleza Carolina (Santa Carolina), oferecida ao Consº Pedreira. s/d. (manuscrito Coleção Araújo PortoAlegre, Arquivo do IHGB). Discurso pronunciado em Sessão solene de junho de 1855 na Academia Imperial de Belas Artes por Manuel de Araújo PortoAlegre por ocasião do estabelecimento das aulas de mathematica, esthetica, etc, etc. (manuscrito Coleção Araújo Porto-Alegre, Arquivo do IHGB) 277

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desenho que possibilita a perfeição da vista na apreciação das formas e na compreensão do belo. 4 Algumas dessas preocupações estão presentes na proposta de trinta teses para discussão, Ata da 2a Sessão Pública da Academia das Belas Artes, em 27 de setembro de 1855 – Presidência do Diretor. Contribuição de Arthur Valle Texto disponível no site: http:// www.dezenovevinte.net/: 14.° - Nas diferentes arquiteturas conhecidas, será devido o seu caráter especial à qualidade dos materiais empregados, às crenças religiosas que elas simbolizam ou à organização social dos povos que as criaram? / 17.° - As diferentes escolas de pintura procedem mais da natureza do país onde florescem, ou das doutrinas especiais de seus mestres? Deverão ser elas consideradas pelos caracteres técnicos ou pelos morais? Será boa a atual classificação das escolas, ou convém adotar outra mais explícita, e menos confusa na sua ordem e filiação? / 20.° - O que tem mais concorrido para o atraso da arquitetura, as leis do nosso país, e educação dos nossos homens de Estado, ou a falta do gosto nos particulares?

A pintura histórica era considerada a categoria artística mais importante por incluir em sua constituição todos os demais gêneros da pintura. Em ordem decrescente a hierarquia dos gêneros de pintura estava desta forma estabelecida: Pintura Histórica; Pintura de Paisagem, de Retrato e de Gênero. 6 Porto-alegre e August Müller mantiveram discussões acaloradas e dissidências sobre o ensino e conteúdo da disciplina de Paisagem, como atestam o parecer de Portoalegre, “Algumas reflexões que submeto à consideração do Sr. Müller, professor da aula de paisagem”, apud Alfredo Galvão, “Manuel de Araújo Porto-alegre: sua influência na Academia Imperial de Belas Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro”; e também “Ata da sessão ordinária em 17 de novembro de 1855”, cf. Livro de atas das sessões de ordinárias da Academia Imperial de Belas Artes, 1841-1856. (SQUEFF, 2004: 238), (CHIARELLI, 2007: 310).

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No Brasil do século XIX a crítica de arte ainda começa a esboçar suas primeiras reflexões, no entanto já é possível notar em vários campos artísticos a busca de alicerces mais sólidos para a produção das diversas artes. É o momento em que o país se torna independente, no qual surge a imprensa, abrindo um novo campo para o desenvolvimento das letras. É também na primeira metade do século XIX que se organiza a Missão artística francesa, cujo objetivo era iniciar no país uma instituição de ensino artístico oficial. Vêemse no Brasil daquele período ações no sentido de consolidar a nação em seus aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais.1 No aspecto cultural, de particular interesse para essa comunicação, a literatura e talvez também a música tomaram a dianteira no processo de construção e busca de suas raízes nacionais. Em Formação da literatura brasileira, Antônio Candido coloca a atuação dos escritores neoclássicos no século XVIII, os quais buscavam provar sua capacidade na produção literária frente aos europeus, algo que depois da independência “se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimilos. [...]” (CANDIDO, 1975: 26)

caminhos da crítica de arte no brasil: século xix rosangela de jesus silva *

O primeiro espaço utilizado para as discussões literárias aqui produzidas foi a imprensa. A crítica literária foi se firmando com a ampliação das discussões e criação de periódicos especializados. Segundo Oscar Mendes, na apresentação do livro de José Veríssimo Estudos de literatura brasileira2, teriam surgido, já a partir de 1812, várias revistas em torno das questões literárias, e que um estudo do conjunto da literatura, criticamente analisada, teria surgido em 1852 com a publicação do Curso elementar de literatura, do Cônego Fernandes Pinheiro (c.1825-1876), o qual teria sido um dos pioneiros da crítica literária brasileira. A produção das artes plásticas teve um debate crítico mais tardio, além do mesmo ter sido bastante fragmentado na imprensa da época. Não se pode deixar de lembrar a iniciativa de Manuel de Araújo Porto Alegre que, entre outras iniciativas no cenário artístico, publicou, em 1841, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, um artigo sobre a Escola Fluminense de Pintura, um texto curto, mas que reivindicava para o Brasil uma vida artística anterior à chegada da Missão Francesa. Em 1857 surge o Brazil Artístico, revista da Sociedade Propagadora de Belas Artes e que teve, nesse primeiro momento, apenas seis números 279

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

publicados. A revista teve como redator chefe Francisco Joaquim Bittencourt da Silva. A idéia apresentada pelo periódico era de criar um interesse pelas belas artes, para isso contaria com uma grande aliada a imprensa:

fraco elemento na constituição do brasileiro. Diante dessa observação Romero faz uma crítica ao Romantismo brasileiro, os quais atribuíam ao índio um papel fundador, o que para o crítico seria um erro.

Os Brazileiros têem engenho natural para o cultivo das artes e dos estudos liberal, falta lhes somente amor do porvir, faltam-lhes energia e estímulo. Entretanto, para que o futuro risonho que antolhamos se aproxime, e se alcance o prospero resultado que almejamos, é preciso um agente – O agente que poderá operar esta espécie de ressurreição, é a imprensa – essa única invenção do gênio humano cuja honra foi disputada por 17 cidades, e que foi desde o seu nascimento proclamada, até por papas e bispos, um dom divino. E’ pela troca das nobres idéias, pela exposição de sãos princípios, pela insinuação de elevados pensamentos, pela instrucção, pela cultura do gosto e pela moralidade, e que se chega realmente ao engrandecimento, bem estar e liberdade de um paiz. (p.7/8)3

Romero apresentava uma explicação para o desenvolvimento considerado mais tardio das belas artes: Nós nunca tivemos um público que se interessasse profundamente pelas conquistas da inteligência; não possuímos tradições e verdadeiras escolas evolucionais na literatura e na arte. Por isso nossas produções aparecem esporádicas, quase sem nexo, sem o liame tradicional, sem a seiva de um germe que se desenvolve. Pelo que toca à poesia, a mais expansiva das artes, a mais comunicativa de todas, a história não é muda e é possível reconstruir o passado brasileiro nesse domínio. O mesmo não se dá com a música, a pintura, a arquitetura, etc. A razão é simples: a poesia demanda uma menor aprendizagem, menos esforço e é mais fácil de propagar-se. [...] (ROMERO, 2001: 974)

Em 1879, a crítica de arte contaria com um periódico que se queria mais especializado: a Revista Musical e de Bellas Artes. Ainda assim, dividindo espaço com a crítica musical, responsável pela maior parte dos artigos. Não se observa, através da crítica daquele período, uma preocupação de sistematização da história do desenvolvimento das artes plásticas no Brasil, como por exemplo, se vê na literatura, tanto em termos de produção quanto de crítica. Só se verá algo próximo a isso com o trabalho de Gonzaga Duque A Arte Brasileira de 1888.

Em uma crítica publicada na Revista Illustrada em dezembro de 1879, Angelo Agostini também esboça uma opinião sobre qual seria o motivo do desenvolvimento da poesia e o “atraso” das outras artes: Em quanto porém a musica tem cultores apaixonados, em quanto a poesia renega a convicção das escolas gastas, para seguir o novo impulso e cantar outro ideial; só a pintura, a architectura mostram-se completamente alheias, corrompem-se abastardam-se, definham. A causa parece patente, é que não ha uma Academia para a litteratura, é que ninguem vai pedir inspiração ao Conservatório, é que não ha um codigo systematico, uma poetica official para a poesia; e só para os alumnos de bellas-artes existe um estalão presumpçoso, um molde rhetorico, uma esthetica falseada pela incompetencia, que só podem produzir o aleijão e o aborto.4

Livros com o propósito de fazer crítica de arte só surgiriam no Brasil na década de 1880, mais precisamente em 1885, com o trabalho de Felix Ferreira Belas Artes: Estudos e apreciações, seguido em 1888, pelo trabalho de Gonzaga Duque Estrada A Arte Brasileira. Conseqüentemente, também não se encontra, de forma sistematizada, uma crítica da crítica de arte. A crítica literária teve, entre outros, o nome de Silvio Romero (1851-1914), o qual publicou em 1880 A literatura brasileira e a crítica moderna, livro que reunia artigos publicados entre 1872 e 1874. Em seus escritos Romero buscou reconstruir a história da formação do Brasil através de fatores que teriam contribuído para a constituição da literatura brasileira. Destaca como um dos mais importantes fatores a formação do povo pelas três raças: o branco português, o negro e o índio, sendo este último, segundo o autor, apenas o terceiro e mais

Romero e Agostini apresentam motivos bastante distintos para explicar o desenvolvimento desigual dessas artes. O primeiro acreditava que, além de não haver um público que se interessasse pelas artes, seria um ofício mais difícil que a literatura, enquanto o crítico da Revista Illustrada entrega toda a responsabilidade nas mãos de um ensino que não seria adequado. Porém, ambos concordam que a literatura estaria à frente das artes plásticas. O 280

Caminhos da crítica de arte no Brasildo século XIX

que é possível observar é que a literatura conseguiu se firmar no Brasil com uma produção mais ampla e amadurecida antes das artes plásticas, inclusive no sentido de ser capaz de refletir e assumir posições sobre seu caráter nacional já em meados do século XIX.

Uma segunda possibilidade de reflexão sobre a produção crítica em torno das belas artes aqui apresentada será a identificação de aspectos comuns ou diferenciadores entre algumas das produções críticas do Rio de Janeiro, a partir da década de 1870.

A crítica literária teve um papel fundamental na definição do nacional em literatura. Buscou construir as origens dessa literatura a partir de um estudo sistemático do que foi produzido no Brasil desde a chegada dos portugueses. Houve muitas discussões acerca do que ou, de quem, poderia ser considerado nacional. No debate, por exemplo, entre Romero e José Veríssimo, se pode observar uma discordância até no que tange ao conceito de literatura, passando por quem consideravam precursores da produção literária no Brasil. Nesse debate entraram outros nomes como Araripe Junior (1848-1911), Tobias Barreto (1839-1889), Capistrano de Abreu (1853-1927), Rocha Lima (1855-1878), entre outros.

Se um dos problemas hoje encontrados para analisar a crítica de arte do século XIX brasileiro é devido a sua fragmentação e, por isso, até um certo desconhecimento da crítica produzida, colocar juntos comentários críticos publicados em periódicos como a Revista Musical e de Bellas Artes, Revista Illustrada, Revista Brasileira, além dos livros de Félix Ferreira e Gonzaga Duque Estrada, pode ampliar e trazer algumas luzes ao horizonte dos estudos em torno da crítica de arte daquele período. A constante presença da AIBA nas críticas Um dos temas mais dicutidos pela crítica foi a Academia Imperial de Belas Artes, como o grande centro formador de artistas nacionais, foi alvo de muitos comentários bastante ácidos.

A arte brasileira também viveu esses conflitos da busca de um caráter nacional. Na década de 1870, por exemplo, houve uma grande discussão em torno da chamada “Escola Brazileira”, a qual seria a classificação de um grupo de artistas que comporiam por sua produção um estilo brasileiro de fazer arte. É claro que não foi algo comumente aceito, discutia-se, entre outras questões, como artistas formados no estrangeiro ou a partir de premissas estrangeiras poderiam compor uma arte brasileira.

A Revista Musical, assim chamada até o número 02, só receberia o complemento e de Bellas artes, a partir do número 03. Sua fundação foi um empreendimento dos músicos Arthur Napoleão5 e Leopoldo Américo Miguez6, ambos nomes conceituados no cenário musical brasileiro daquele período. É de se esperar que a Academia Imperial de Bellas Artes deveria então ser um ponto importante da crítica realizada na revista. Em vários números foram publicados artigos com este titulo, sempre na primeira página.

As reflexões sobre a produção artística no Brasil do século XIX são bastante lacunares, há pela frente um imenso trabalho de recuperação de fontes e análises. Para realizar essas análises, uma das possibilidades poderia ser com o auxílio da crítica literária, a partir dos problemas comuns que essas produções enfrentaram e as soluções que elas buscaram. Não se pode deixar de notar que o meio intelectual brasileiro, praticamente todo concentrado no Rio de Janeiro, ou ao menos o que foi até hoje considerado pela historiografia, tinha em seus horizontes referências comuns importadas da Europa, assim como problemas comuns como o analfabetismo e conseqüente diminuição de público fruidor, dificuldades de financiamento, diferenças políticas, entre outros.

Em seu número 10, ao comentar a abertura da Exposição Geral da Academia, faz algumas provocações a esta instituição: Revelará ella uma evolução artística, que tranforme completamente a nossa esthetica, que não tem tido, entre nós outro norte senão a convenção? Indicará ella qual a tendência idealista ou realista da nova geração de artistas que ha de vir substituir Victor Meirelles, o falecido Motta, e muitos outros que por tantos annos têm occupado a atenção do Brasil com as suas magníficas composições?

È certo que não se pode deixar de lado as particularidades de cada produção, todavia, o olhar contemporâneo dos homens do século XIX brasileiro sobre aquele momento histórico e seus desdobramentos políticos, sociais e culturais podem ser de grande valia para uma reflexão hoje.

Os discipulos pensionistas, ao chegar do estrangeiro, trouxeram nos seus saccos de viagem, alguma idéa nova que rasgue novos 281

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A academia retornaria às páginas da Revista Musical, agora no número vinte e quatro, para tratar da necessidade de reformas naquela instituição. O artigo começa noticiando uma reunião de alunos que estavam se organizado para pedir providências ao governo na reformulação do método de ensino nos cursos da academia. A partir desse acontecimento o crítico discorre sobre os vários e graves problemas da instituição, os quais já teriam chegado a tal ponto que os próprios alunos estariam insatisfeitos com seu ensino.

horizontes á arte brasileira, e que ponha de lado idéas e processos rotineiros adoptados até aqui? A academia de bellas artes terá feito escola? Imprimirá ella os seus alunos discipulos essa feição uniforme, rigida e, em melhores termos: academica, que, que levada ao extremo, tão condemnada tem sido nos outros paizes?”teria esta então uma maior vantagem em relação a crítica musical. As inúmeras indagações com as quais o texto foi construído já poderia ser um indicativo de que a revista duvidava da academia e do seu ensino. Quando lemos as questões colocadas essa possibilidade parece se confirmar. Fala-se de uma academia baseada em convenções, de uma necessidade de mudança e renovação, questionase as práticas da academia demasiado atrasadas e se ressalta, inclusive, a condenação dessas práticas em outros lugares.

Fala-se dos altos custos de manutenção da instituição, a qual, por sua vez, não ofereceria contrapartida que justificasse esses gastos, além disso, as aulas seriam ministradas por professores que não teriam competência na área exigida, como no caso das aulas de paisagem estarem sendo ministradas por um pintor histórico, entre outras disciplinas na mesma situação. O crítico questiona porque os alunos pensionistas não contribuem, ao menos, fornecendo informações sobre os métodos das academias européias e conclui dizendo que os professores deveriam se juntar aos alunos para pedir também a reforma da academia.

A crítica à Academia de Belas Artes foi também um tema recorrente nas críticas da Revista Illustrada, a qual creditava a essa um papel prejudicial ao desenvolvimento da arte no Brasil. Gonzaga Duque também teceu considerações bastante críticas àquela instituição, chegando a afirmar que sua fundação teria castrado o elemento nacional da arte.

Um outro momento de atuação bastante contundente do periódico em torno das ações da Academia foi no número dezenove, cujo tema do artigo era: “O Premio de Roma”. O escolhido naquele ano foi Rodolfo Amoedo. Em princípio a revista não questionaria a competência de Amoedo para o prêmio, mas sim a forma como se deu o processo de escolha, entre empates nas votações, mudanças de votos e abstenções de professores, os quais seriam os mais abalizados para fazer a escolha, o caso foi decidido por um “voto de Minerva”.

Algo muito interessante de se observar na crítica feita pela Revista Musical e pela Revista Illustrada, é que a segunda assume um posicionamento muito mais apaixonado, por vezes até mesmo passional em torno dos temas tratados. Sua defesa do escultor Rodolpho Bernardelli é um exemplo. Já a Revista Musical tenta se colocar de uma forma mais imparcial, até mesmo na forma como os artigos são escritos, na escolha das palavras, sua crítica não tem a acidez violenta que é possível observar na revista de Angelo Agostini.

O tema das premiações, não apenas de viagem, mas da exposição, foi também discutido por Angelo Agostini na Revista Illustrada. Sua indignação aparece em textos como o que se segue:

Há também momentos em que essas críticas se aproximam, como por exemplo, na intenção de educação do olhar do público, as escolhas podem ser diferentes, mas a preocupação é comum. A Revista Musical e de Bellas Artes acreditava que era preciso escolher o melhor escultor para dar o melhor exemplo ao olhar do povo brasileiro A Revista Illustrada via em Rodolpho Bernardelli o grande e melhor exemplo. Assim, algo comum no universo dessa crítica é que o melhor seja dado ao povo brasileiro, porque só assim seria possível uma educação para o aprimoramento do gosto e conseqüente fruição da arte.

Como vê-se, a rhetorica e o cantochão deramse as mãos para o realce d’essa festa artistica, em que uns foram injustamente esquecidos e outros lembrados injustamente. Uma cousa compensa a outra; e o jury... * E o jury é o jury. E como tal tem todas as lincenças, mesmo a de conceder premios superiores aos artistas que nada expuzeram, como o leitor já deve ter notado pelas noticias dos grandes amoladores diarios.7 282

Caminhos da crítica de arte no Brasildo século XIX

Tanto a crítica da Revista Musical, quanto a da Revista Illustrada, fazem em suas páginas constantes denúncias sobre as chamadas “injustiças”, cometidas pela Academia e seus responsáveis.

professores de pintura que não sabem desenho, professores de paisagem que não conhecem a natureza, professores de esculptura que não tem noção da arte, professores de architectura pedreiros aposentados, o ensino academico será forçosamente nocivo, corruptor fatal ás artes.9

Em dezembro de 1879, no número cinqüenta, a Revista Musical, volta ao tema da Academia. Faz dessa vez não apenas uma crítica à instituição, mas à imprensa fluminense. De acordo com o artigo a imprensa teria notado só agora a decadência da academia, a falta de méritos dos alunos, as injustiças cometidas no prêmio de viagem, entre outros problemas da academia e estariam clamando pelo seu fechamento.

Os motivos para o não fechamento da academia, apresentados pelo crítico da Revista Illustrada, não são os mesmo que o da Revista Musical e de Bellas Artes. Na Illustrada, parece existir uma preocupação de que com o fechamento da AIBA o Brasil ficasse totalmente alheio à produção artística, sem a possibilidade de formar artistas. Uma reforma radical sim, esta seria indispensável segundo o crítico, com inclusive a substituição do corpo docente. Já a Revista Musical, parece mais adotar uma posição em defesa do corpo docente, o qual precisaria provar sua inocência ou competência do que a própria defesa da instituição.

O crítico da revista se apresenta indignado com a posição da imprensa, não porque os problemas citados não sejam reconhecidos, mas porque, segundo o texto, são problemas demasiado antigos e que a imprensa só estaria se levantando agora, quando já poderia ter tomado uma atitude antes que a situação chegasse ao ponto que teria chegado.

Ao contrário da literatura, em que a discussão em torno do nacional começa a ganhar força ainda na primeira metade do século XIX, e da crítica literária que, através da organização de uma história da literatura brasileira data o nascimento da produção nacional já no século XVII e XVIII, a arte brasileira e principalmente a crítica se colocaram essas questões de uma forma mais forte na segunda metade do século XIX. Até então a produção artística nacional ainda não era vista como algo que se sustentaria por si própria, além da necessidade dos modelos europeus, parte da crítica nem mesmo acreditava no potencial dos artistas como representantes de uma produção artística.

O crítico concorda que as mudanças são urgentes, que inclusive uma sindicância deve ser realizada e não simplesmente fechar, afinal o que seria feito dos professores e alunos daquela instituição, eles não poderiam ser simplesmente descartados. O tom desse artigo é bastante interessante pela defesa que faz dos membros da instituição, destacando inclusive o nome de um dos professores, o prof. Mafra8, o qual seria alguém zeloso. O crítico pede ações desde que os membros da instituição não sejam prejudicados. O artigo, como os demais, não foram assinados, mas pela forma como se coloca é muito provável que tenha sido escrito por um professor da instituição ou por alguém muito próximo. Todavia, a Revista Illustrada, que sempre foi muito combativa em relação à atuação daquela instituição de arte, em dezembro de 1879 também demonstrou uma opinião contrária ao fechamento da academia:

Não havia na Revista Musical e de Bellas Artes ou na Revista Illustrada, por exemplo, como se pode ver na crítica literária, uma preocupação em reconstituir ou construir uma história da arte nacional, a busca dos precursores, das raízes brasileiras, é como se só fosse considerado parte da produção artística nacional, ou seja, o que fosse produzido na AIBA ou a partir daquela instituição, só a produção oriunda dela recebia alguma menção.

A imprensa tem reclamado o fechamento, a abolição da Academia de bellas-artes. Attendendo a falta de um museu, onde os artistas pudessem ir estudar os bons modelos, á falta de cursos em que bebessem os principios necessarios, sem uma atmosphera artistica, é certamente um erro pedir tanto; o mal não implica a falta do bem. Mas é necessaria, indispensavel uma reforma completa, uma substituição do pessoal docente; porque em quanto os alumnos tiverem

Essa questão começa a ser tratada por Porto Alegre, conforme mencionado acima, em 1841, mas só será retomada em 1888 em A Arte Brasileira de Gonzaga Duque, como se verá adiante. A publicação em 1885 do livro Belas Artes: Estudos e apreciações, escrito por Félix Ferreira, teve uma boa recepção por parte da imprensa. O índice do livro propunha um amplo panorama do 283

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

desenvolvimento da arte. Parte do que seria a origem desta, passando pelo florescimento, decadência, Renascimento e Arte Moderna. Além disso, o autor escreve sobre o que chama de “Pequenas exposições”, as quais consistem em individuais de artistas, fala da exposição do Liceu de Artes e Ofícios de 1882, e da Exposição Geral de 1884.

“Ninguém hoje ignora que as bellas-artes são o influxo de todas as industrias, as bases de toda a perfeição manufatureira.”11 Na primeira parte do texto Ferreira tenta fazer um histórico do que ele acredita serem os fundamentos do nascimento de uma escola artística no Brasil. Fala da idéia de uma escola artística brasileira, a qual seria dos tempos coloniais, e cita o nome do Conde da Barca12 (1754-1817) como o idealizador da vinda da Missão Francesa, conta todo o processo conturbado da chegada da missão até a inauguração da academia. E conclui o artigo com alguns comentários sobre a sede da academia, a construção do arquiteto Grandjean de Montigny (1776-1850) e a reconstrução do prédio.

Ferreira apresenta uma idéia evolucionista da arte, diz que a primeira forma de expressão teria sido a arquitetura, depois a escultura e por último a pintura. Para demonstrar sua tese utiliza o Brasil como exemplo, onde a pintura seria rudimentar e a escultura mais desenvolvida. Não podemos deixar de notar que a teoria evolucionista de Darwin e a biologia como um todo estavam muito em voga na segunda metade do século XIX.

Não se observa na crítica de Agostini uma reflexão acerca das origens da arte no Brasil, portanto não há uma idéia clara sobre seu posicionamento a este respeito. Todavia o comentário que faz sobre Ferreira dá uma indicação de que o crítico não deveria concordar com a opinião desse, pois acreditava ser mais importante comentar o que estava exposto.

Segundo Julio Castañon Guimarães o livro de Ferreira suscitaria algumas considerações em comparação com A Arte Brasileira de Duque Estrada, pois ambos apresentariam um panorama da arte brasileira: [...] O de Félix Ferreira desenvolve uma história universal da arte, para em seguida comentar, ainda que de forma detalhada, apenas algumas exposições realizadas no Rio de Janeiro entre 1882 e 1884. O tom do seu livro dá a impressão de um comentário que procura ser fundamentado e objetivo. Já o livro de Gonzaga Duque tem intenções bastante diferentes. Trata-se efetivamente de uma apresentação da história das artes plásticas no Brasil. [...] 10 (DUQUE ESTRADA, 2001: 15)

Ferreira recebeu a exposição de 1884 de forma bastante positiva, falou da grandeza desta, do progresso que a arte no Brasil teria alcançado e do grande número de bons artistas nacionais e estrangeiros que teriam participando da exposição. Reconhece, todavia, que num país em que haveria tão pouco, ou melhor, tão grande atraso nas letras e nas artes, não seria prudente só escolher os melhores artistas para expor, assim como não se poderia cobrar obras inéditas, quando muito, poderia haver uma separação das obras inferiores.

No trabalho de Gonzaga Duque é possível perceber um tom diferente daquele adotado por Ferreira, o qual não faz uma ligação entre a primeira parte do seu livro, com sua história universal da arte e o contexto brasileiro. Não é criado nenhum vínculo, ou relação de causa e conseqüência.

A opinião de Ferreira é bastante branda e reconhecida como tal. Embora o crítico note alguns problemas na produção artística, acreditava que quanto mais se produzisse, independentemente da qualidade, melhor, ao menos inicialmente. Seria essa uma forma de aperfeiçoamento, de melhorar a produção. Um exemplo disso é quando comenta o grande número de quadros expostos por Firmino Monteiro e Aurélio de Figueiredo na exposição: “Os Srs. Firmino Monteiro e Aurélio de Figueiredo foram os dois pintores moços que maior soma de composições apresentaram na atual exposição. Querem uns ver nisto um mal, outros um bem; quanto a mim, sou sempre pelos que mais produzem.”

Ao comentar a exposição do Liceu de Artes e Ofícios realizada em 1882, enfoca as dificuldades financeiras, a falta de oficinas, máquinas e pessoal que esta instituição enfrentaria, além disso, diz que o Liceu teria se limitado apenas às belas artes, quando precisaria também atender necessidades da indústria. Segunda a avaliação de Ferreira, o Liceu teria que ser um braço da indústria moderna, portanto precisava progredir para, dessa forma, dar impulso à indústria.

Ao contrário de Ferreira, Agostini, que já tinha defendido o trabalho de Firmino Monteiro em outros momentos, critica o artista justamente pelo excessivo número de trabalhos expostos, segundo

Essa reivindicação de Ferreira já havia aparecido no Brazil Artístico, no qual foi defendida a necessidade da arte para auxiliar a industria: 284

Caminhos da crítica de arte no Brasildo século XIX

o crítico, o artista deveria se empenhar para fazer bem o trabalho com muito estudo e não se entregar a uma produção extensa e sem méritos.

que para Agostini seria necessária uma total reformulação, quase que um recomeçar do zero. O texto de Ferreira apresenta como um bom caminho para a arte a sua popularização, assim sugeriu que fossem realizados concertos musicais nas exposições com a finalidade de atrair o público, assim como para a premiação fosse criada uma comissão de professores da Academia, que não estivesse expondo, para julgar os trabalhos de todos, assim como a presença de um representante dos artistas. Ou seja, há por parte do crítico uma confiança na instituição, nos seus membros para avaliar os trabalhos. Algo que, por exemplo, não vemos em Angelo Agostini, para o qual as premiações foram sempre motivo de desagrado, seja pela parcialidade do júri ou mesmo a incompetência que este teria para avaliar.

Algo em que os críticos se aproximam é no reconhecimento da falta de instituições como bibliotecas, museus e galerias para orientar e auxiliar os artistas em seu trabalho, além de modelos e espaços adequados. Ferreira afirma que a arte brasileira ainda estaria na sua infância, no momento de formação e que só o surgimento de uma geração adiantada traria o progresso às artes. Agostini também acreditava que a arte brasileira estava na sua infância, porém: “Resignemo-nos; mas a respeito de bellas artes estamos ainda na infancia. E na infancia caduca, o que é ainda peior[...]”.13 Os críticos concordam no termo, mas Ferreira é muito mais otimista, vê a possibilidade de progresso entre os artistas da Academia. Ao passo que Agostini parece não ver grandes esperanças na afirmação da arte no Brasil, ao menos, sob a tutela da Academia.

O livro de Duque Estrada, A Arte Brasileira, publicado em 1888, é ainda uma importante referência para os estudos artísticos do século XIX brasileiro. Duque Estrada tem como um dos grandes diferenciais em relação à crítica até aqui citada, uma erudição e uma preocupação em balizar suas análises a partir dos principais nomes da crítica européia. O crítico demonstrava, a partir das citações, um grande conhecimento da produção crítica, sobretudo francesa, da época.

Bethencourth da Silva, enquanto representante da AIBA, não discordava dos críticos acima no sentido de que a arte no Brasil só estaria no começo, porém, ao contrário de Agostini, via um horizonte imenso e muito rico para ela, no qual a Academia teria um grande papel:

A crítica de Agostini, pelo contrário, apresenta uma quase ausência de referências diretas a outros críticos de arte para embasar os seus textos. Os raros momentos em que recorre aos nomes de artistas ou críticos estrangeiros é utilizada para mostrar a pretensão de algum artista ou da crítica brasileira em geral, os quais ousariam se comparar à Europa, ou para ressaltar a importância da crítica:

A arte entre nós começa apenas a sua existência; balbucia as suas primeiras phrases, levanta as suas mãos mal robustecidas, infantis e inexpertas, mas grande e nobre como tudo que a cerca, ella olha para os esplendores da nossa terra, para as alturas das nossas montanhas, para o sombrio das nossas mattas, para o cerúleo esmalte do nosso ceo, e quer ser grande e immensa como é a luz do nosso sol, como é a fertilidade espontânea de toda esta uberrima natureza. A exposição geral de Bellas Artes, a qual acaba de encerrar-se na respectiva Academia é inquestionavelmente o gérmen de uma grande revolução artística, um esforço notável do talento nacional, digno de séria e profunda analyse, que procuraremos fazer em subseqüentes artigos.14

Não distinguir o bom do soffrivel ou do medíocre, não pôde agradar senão aos que se acham n’esta ultima classificação. Mas o que se há de fazer?... Não se pôde exigir que a nossa imprensa tenha críticos da força de Charles Blanc, Theophilo Gauthier e outros. E se por acaso os tivesse, estou bem certo que quase todos os artistas se empenhariam para que não fallassem das duas obras.15 Uma outra questão, diferencial, a ser destaca na crítica de Duque Estrada é uma tentativa de sistematização. O crítico fez uma reflexão que buscou identificar os germens da arte brasileira, as condições que propiciaram seu florescimento e o desenvolvimento desta até a publicação de A Arte Brasileira.

Ferreira, assim como Agostini, também acreditava que a arte no Brasil precisaria passar por reformas, sobretudo sua instituição maior, a Academia, porém Félix Ferreira demonstrava que o que já se produzia deveria ser aproveitado e burilado. Há no texto uma grande reverência aos artistas pelo seu esforço diante de uma situação tão complicada como aquela que o país impunha aos artistas. Ao passo 285

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Conforme a apresentação de Tadeu Chiarelli, na edição de 1995, de A Arte Brasileira, Gonzaga Duque apresentaria uma visão bastante pessimista da formação do Brasil. Inicia falando da decadência de Portugal, e de como a colonização do Brasil teria sido feita com degredados, judeus, jesuítas, a partir da escravização do índio e depois do negro, das péssimas condições de higiene e edificação das cidades, vícios, ou seja, uma mistura cujo resultado não teria sido nada nobre. Em tais condições, sem um meio que propiciasse bons frutos, a produção artística teria sérias dificuldades a enfrentar.

Le stylie l’architecture La sculpture - La peinture. La danse La musique - La poesie - L’esthetique de Planton. Paris: Schleicher, 1904. Notas 1

O movimento de construção da “nação” e a reflexão em torno do que é nacional estão presentes, no século XIX, em vários países no mundo, tanto na Europa quanto na América. Vide: HOBSBAWM, E. J. Nações e Nacionalismo deste 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 2 VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira. 3ª série. Introd. de Oscar Mendes. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. 3 Brazil Artístico, Rio de Janeiro, N.01, 1857. 4 Revista Illustrada, Rio de Janeiro, Ano IV, N.187, 1879, p.02 5 Arthur Napoleão nasceu no Porto, Portugal, em 1843, se destacou desde muito cedo como pianista, seu primeiro recital teria ocorrido aos sete anos, viajou pela Europa e América, atuou como solista e também como camerista ao lado dos violinistas Henri Vieuxtemps e Henryk Wieniawski. Fixou-se no Rio de Janeiro em 1866, onde também tornou-se comerciante, foi professor de Chiquinha Gonzaga, em 1883 fundou uma Sociedade de Concertos Clássicos e faleceu no Rio de Janeiro em 1925. 6 Leopoldo Miguez nasceu no Rio de Janeiro em 1850, foi compositor, violinista e maestro. Viajou pela Europa, estudou em Portugal e na Bélgica. Aproximou das idéias do compositor Wagner, o qual teria influenciado decisivamente sua orientação musical, assim como Listz. Ganhou o concurso realizado em 1890 para o Hino Nacional que posteriormente foi adotado para o Hino à República. Neste mesmo ano foi nomeado diretor do Instituto Nacional de Música. Miguez morreu em 1902 no Rio de Janeiro. 19 Revista Musical e de Bellas artes. Rio de Janeiro, 1879, Ano I, Nº10, p.1. 7 Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1879, ano IV, n.172, p.2 8 Maximiano Mafra (1823-1908) Pintor e escultor, foi aluno da AIBA, estudou com Porto Alegre e posteriormente se tornou professor da Academia, na cadeira de pintura histórica. 9 Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1879, ano IV, n.187, p.2 10 DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Impressões de um amador: textos esparsos de crítica (1882-1909). Org. Júlio Castañon Guimarães, Vera Lins. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. 11 Brazil Artístico. Rio de Janeiro, 1857, p.18. 12 Bitencourth da Silva, professor da AIBA, em uma série de artigos publicados na Revista Brazileira em 1884, também menciona o Conde da Barca como aquele que teria feito vir ao Brasil a missão artística, a qual, por sua vez teria sido responsável pela primeira lição de desenho aos fluminenses. 13 Id., 1879, ano IV, n.159, p.2 e 3. 14 Revista Brazileira, Bellas Artes, 1884, p130. 15 Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1882, ano VII, n.292. p.3

A forma como Duque Estrada inicia sua análise e mesmo os argumentos são muito próximos daqueles utilizados por Sílvio Romero, conforme citado anteriormente. Ambos acreditavam que a formação do povo brasileiro seria determinante para o precário desenvolvimento das artes no Brasil. E todos os críticos aqui apresentados demonstraram preocupação com a necessidade de formação e educação desse povo para as artes. Referências bibliográficas CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. 1º e 2º vol. ________. Silvio Romero: Teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Ed. da USP, 1978. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. A Arte Brasileira; introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. ________. Impressões de um amador: textos esparsos de crítica (1882-1909). Org. Júlio Castañon Guimarães, Vera Lins. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Publicação Digital, ArteData, 1998. ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Org. Luiz Antonio Barreto. Rio de Janeiro: Imago Ed; Aracaju – SE: Universidade Federal de Sergipe, 2001. TAINE, Hippolyte. Da Natureza e produção da obra de arte. Trad. Paulo Braga. Lisboa: Editorial ‘Inquérito’, 1940. VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira. Introd. Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. VERON, Eugène. L’esthetique: origene de arts-le gout le genie. Definition de l’art et de l’esthetique -

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capitulo 6 arquitetura e ecletismo

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Com a Proclamação da República, em 1889, a Academia Imperial das Belas-Artes tornou-se Escola Nacional de Belas-Artes, mudança que não ocorreu somente na denominação da instituição. O governo provisório republicano havia instaurado uma comissão, à qual pertencia o futuro diretor da escola, Rodolfo Bernardelli, cuja principal incumbência era reformular o ensino artístico. 2 Professores foram demitidos, outros foram contratados, a escola passou a ter novos estatutos e, assim, novo direcionamento nas questões de ensino. Como afirmou Rodolfo Bernardelli em relatório sobre o primeiro ano de suas atividades como diretor da Escola: Substituindo-se a Academia criou-se a Escola Nacional de Belas-Artes, que pode definir todo o seu programa de repulsa com que foi condenado o título pretensioso e nefastamente sugestivo de sua antecessora. A academia era a contemplação ritual do passado; era a veneração do cânon inviolável das convenções plásticas dos antigos [...]. (BERNARDELLI, 1890: 19) Portanto, a mudança na nomenclatura, como se pode perceber nas palavras de Bernardelli, não tinha caráter puramente formal, trazendo à tona o repúdio à estagnação que havia se instaurado na Academia. Mas, principalmente, demonstrava o quanto a mais importante instituição das BelasArtes no Brasil tinha se deixado contaminar pela inércia nestes 64 anos, desde o início de seu funcionamento em 1826.

o ecletismo e civilização 1 claudia thurler ricci *

A fundação da Academia pelos artistas da Missão Francesa significou a possibilidade da instauração do ensino acadêmico das Belas-Artes no Brasil. Não se tratava, portanto, de negar pura e simplesmente o neoclássico e muito menos a importância dos fundadores da Academia, mas sim de renovar a escola, abrindo suas portas para novas propostas e questionamentos que já se instauravam em diversas outras instituições artísticas no ocidente3. Questionamentos que, aliás, como o feito por Bernardelli, colocavam em xeque a validade inexorável das normas clássicas às quais estava submetida a Academia. E era exatamente esta uma das preocupações do então diretor Rodolfo Bernardelli: ‘a veneração do cânon inviolável das convenções plásticas dos antigos’.4 A Academia, que outrora fora vista como missão civilizadora, era acusada de estagnação através da manutenção do cânone clássico, pautado pela crença na existência de princípios universais do belo. Tratava-se, desta forma, de renovar a instituição, dando ao ensino um novo direcionamento. Motivada pela nova ordem política 289

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ecletismo e a prática da reformada École des Beaux-Arts, segundo os quais a verdade em arquitetura não mais se encontrava determinada em uma única doutrina artística reconhecida, em um único tipo de beleza. Caberia aos arquitetos, ao estudarem todas as produções do passado – clássicas ou não – selecionar o que de melhor havia sido produzido pelo homem e operar uma síntese, constituindo, assim, uma arquitetura que fosse bela e útil ao satisfazer as necessidades do presente e projetar uma imagem de sociedade para o futuro. O ecletismo vai então se firmando como uma forma de ação no mundo e de constituição de uma sociedade que, voltando-se para o conhecimento do passado, busca instaurar um projeto de futuro.

que se instaurava no país com a Proclamação da República, a reforma do ensino tornou-se a prioridade da instituição. Conforme a significativa frase de Bernardelli, após o Quinze de Novembro, “o ânimo de renovar, que então se generalizou, veio ao encontro da necessidade no desmantelo do ensino. E o momento da reforma chegou”. (BERNARDELLI, 1890: 22). A renovação, tão aclamada por Bernardelli, e que apontava para o redirecionamento do ensino das artes, pode ser percebida em uma medida sutil nos estatutos de 1890, aprovados pelo decreto no 983: a supressão do ensino de estética, que visava não a redução, mas a ampliação dos horizontes do ensino ao possibilitar que o aluno tivesse contato com diferentes doutrinas artísticas não estando submetido exclusivamente a uma única. A justificativa apresentada por Bernardelli para esta reformulação no currículo indica que a escola se deixava permear pelos questionamentos sobre a validade de um ensino que ficasse circunscrito a dogmas artísticos. Como afirmou o diretor ao justificar tal medida:

Percebe-se, portanto, a grande importância que adquiria a história da arte e o desenvolvimento das modernas técnicas arqueológicas, que neste momento estavam imbuídas de um caráter científico no estudo e na organização dos fatos arquitetônicos. O discurso corrente sobre o estilo e a história era dividido em dois aspectos, aparentemente contraditórios: 1) a constituição de uma história dos estilos – desenvolvida a partir das pesquisas levadas a cabo pela arqueologia; 2) a pesquisa e criação de um estilo que fosse reconhecido como representativo do período, e que surgisse da combinação das formas, dos materiais e dos métodos construtivos estudados. (CHANTAL, 1990: 63-79)

O critério do Belo forma-se na consciência do aluno, se for um espírito capaz de síntese, [...] formar-se-á espontaneamente como a suma das doutrinas que professores habilitados lhe forem ministrando em cada matéria; nascerá como opinião individual da simples convivência e prática com o alto objetivo de sua estudiosa aplicação [...]. (Id., 1890: 24)

Desta forma, a história da arquitetura estava presente como disciplina que fornecia instrumental para enfrentar os problemas colocados pela sociedade do presente. Ou seja, o ecletismo se caracterizava também pela pesquisa de materiais e técnicas construtivas que no período eram objeto de grande estudo, e não só pela combinação de estilos do passado. Cabe apontar que a pesquisa das formas plásticas do passado se encontrava aliada às pesquisas técnicas realizadas no período e que, a partir da utilização de novos sistemas construtivos e novos materiais como o ferro, redimensionavam e modernizavam antigas estruturas.

Portanto, a defesa de Bernardelli era de que a criação artística não deveria ser pautada pela submissão a um único tipo de ‘doutrina’, mas sim pelo conhecimento de todas as doutrinas artísticas, possibilitando que o artista formasse a sua própria concepção de belo. Tomada de empréstimo à filosofia eclética, o ecletismo em arquitetura assumia a mesma posição defendida pelo seu fundador, o filosofo Victor Cousin, que em seu livro Du vrai, du bien, du beau (1836) preconizava “a busca dos elementos a serem utilizados no presente, através do conhecimento de todos os sistemas que foram propostos na história para dizer a verdade do mundo” (ÉPRON, 1997: 15). Esta tendência a abarcar o estudo das diferentes produções arquitetônicas do passado já havia se firmado na École des Beaux-Arts de Paris, que após a reforma de 1863 passou a abrigar ateliers oficiais de diferentes escolas do pensamento arquitetônico.

A penetração de novas tecnologias e, conseqüentemente, o redimensionamento do ensino de arquitetura se fez sentir também na Escola de Belas-Artes. O novo currículo deste curso, instaurado com a reforma de 1890, apontava para a renovação da instituição, que pretendia imprimir ao estudo da arquitetura um caráter mais pragmático e mais afeito às tecnologias desenvolvidas no período, incluindo disciplinas ou dando às já existentes uma outra perspectiva. Cálculo e mecânica, materiais de construção e sua

Assim, à crítica que fazia Bernardelli à antiga Academia juntavam-se as proposições do 290

O ecletismo e civilização

resistência, topografia, tecnologia das profissões elementares e higiene das habitações faziam parte deste novo enfoque. Entretanto, percebemos no novo currículo a manutenção da antiga disciplina ‘estereotomia’, que se dedicava a ensinar a arte de dividir e cortar com rigor os materiais de construção, principalmente a pedra e a madeira, constituindo, a princípio, a manutenção de antigas técnicas construtivas.

Neste sentido, se a história fornecia os modelos a serem utilizadas no presente, novas oportunidades surgiam para os arquitetos, pois, partindo do domínio das novas tecnologias, poderiam manipular e redimensionar estas formas, tornandoas aptas ao uso contemporâneo. O passado era revisto e transformado “de forma arrojada, valente e ampla” e as antigas estruturas, as formas oferecidas pela história, ganhavam nova dimensão e utilidade através da pesquisa de materiais e técnicas construtivas. A tecnologia desenvolvida no presente solucionava problemas do passado e apontava para a constituição de um estilo do futuro. A história era, portanto, mais do que uma disciplina fornecedora de ‘estilos históricos’, ela também era a responsável por prover o suporte teórico e metodológico para as pesquisas realizadas pelos arquitetos no campo das técnicas construtivas.

No concurso para o lugar de lente de estereotomia, realizado em 1897, a necessidade de modernização do conteúdo da disciplina se faz notar na exposição de Morales de los Rios em sua Tese Apresentada no Concurso para o lugar de Lente de Estereotomia da Escola Nacional de Belas-Artes. Reconhecendo o suplantar da madeira e da pedra pelo ferro, e certo da penetração deste material nos sistemas construtivos do período, Morales se colocou como defensor da instauração de uma disciplina que tratasse exclusivamente da estereotomia do ferro. É o que nos apresentava no capítulo em que se dedica a dissertar sobre “Estereotomia – teoria e trabalho gráfico”, indicando algumas proposições que julgava necessárias para o redimensionamento da disciplina e a sua modernização.

Esta nova relação com a produção arquitetônica do passado foi fruto do crescente interesse histórico e arqueológico frente à arquitetura produzida anteriormente e que, ao se conectar, já em inícios do XIX, com o historicismo, acabou por encampar a noção de relativismo, acarretando uma nova forma de conhecer o mundo e que vinha ao encontro dos questionamentos e interesses dos arquitetos. 5

II – No estudo da estereotomia deve ser compreendido o das construções de ferro e aço e feita com o da geometria analítica e dos cálculos. III – Dada as tendências atuais da arquitetura, a estereotomia na sua aplicação ao corte de pedras e madeiras, deve apresentar cada vez maiores tendências para se tornar uma ciência eminentemente arqueológica sem assentar-se por isto em descabido exclusivismo da matéria no seu ensino profissional. (Morales de los Rios, 1897: 5).

A noção de relatividade histórica foi conscientemente encampada pelos arquitetos, fazendo com que as diferentes linguagens plásticas não fossem mais vistas como um dos aspectos parciais de uma norma universal, mas sim como o resultado das forças históricas que as produziram. Como afirma Alan Colquhoun isto se deve à mudança na atitude frente à história que, em fins do XVIII, com a filosofia idealista de Hegel e com o historicismo, passou a ser vista não mais como a expressão de leis naturais – no qual trabalho do historiador seria expor o essencial e universal –, mas sim como campo no qual o homem e suas instituições deveriam ser estudadas no contexto de seu desenvolvimento histórico. Portanto, se todo fenômeno era visto como historicamente determinado, relacionando-se a um tempo e espaço determinados, tornava-se impossível privilegiar um estilo arquitetônico em detrimento de outro. A produção arquitetônica do passado só poderia ser avaliada e julgada segundo suas próprias características, e não conforme um ideal fixo, alçando-se um estilo como paradigma, a exemplo do que faziam os neoclássicos. Foi a apropriação da noção de relativismo na prática arquitetônica que levou os arquitetos do século XIX e inícios do XX a pensarem nas formas artísticas como produtos de uma fase particular da história, fazendo

O interessante é que, contraditoriamente, o ponto sorteado para a prova escrita do concurso foi ‘Arcabouços de ferro nas abóbadas’. Morales de los Rios fez uma bela prova na qual, já de antemão, indicava o caminho que tal disciplina deveria tomar. Demonstrou amplo conhecimento do tema apontou para a necessidade de incorporar à estereotomia as novas tecnologias desenvolvidas com o emprego do ferro. Reconhecendo a importância que este material possuía na construção da edificação moderna, afirma em sua prova ser uma: “(...) vulgaridade repetir-se que o emprego do ferro e do seu derivado, o aço, veio trazer a completa revolução na construção em geral. Os problemas que os construtores anteriores tiveram, foram solucionados de forma arrojada, valente e ampla em nossos dias”. (MORALES DE LOS RIOS, 1897) 291

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

com que se tornassem ‘objetos’ catalogáveis ou elementos dispostos ordenadamente, tal como foram produzidos no passado.

Pode parecer estranho ao olhar moderno que o desejo de criar um novo estilo fosse pautado pela utilização do vocabulário tectônico do passado e que o estudo da história se colocasse como um guia para o futuro. Contudo, o sentido de mudança não se pretendia ‘rompimento’ com a história e, conseqüentemente, a criação desarraigada de um novo vocabulário. Ao contrário, dando continuidade à evolução progressiva da história da arquitetura, era necessário aprimorar os princípios compositivos e construtivos tornando-os representativos da sociedade que os produziu.

Portanto, o estudo histórico das formas do passado, atrelado à noção de relatividade, trouxe em si a perspectiva de que a nenhuma produção artística poderia ser dada prioridade normativa. Como afirmava Hippolyte Taine, sucessor de Viollet-leDuc na cadeira de História da Arte da École des Beaux-Arts, o historiador poderia então ignorar a norma e observar a sucessão dos estilos com imparcialidade, isto é, abordar as diversas criações passadas como o botânico analisa seu material, ou seja, sem se preocupar se são belas ou feias, venenosas ou não. (GOMBRICH, 1990:112). À forma era atribuído um valor de neutralidade, ao ser catalogada a partir de suas características comuns – que previa uma ordenação cronológica e espacial –, tornando-a objeto de conhecimento e conseqüentemente sendo alçada ao estatuto de linguagem formal.

Neste sentido, todos os procedimentos da arquitetura eclética e a teoria que a substanciava a tornavam uma forma artística ideal para responder às solicitações práticas surgidas com o crescimento da cidade do Rio de Janeiro e sua elevação à condição de capital da República do Brasil e, conseqüentemente, como forma de assinalar o progresso alcançado pela então jovem nação brasileira.

Como o “catálogo” se reportava às formas do passado, que haviam sido previamente estudadas e catalogadas pela historia, tal distanciamento e imparcialidade permitiam sua utilização e manipulação em outro contexto, e porque não?, com outras ‘normas’ que não aquelas que haviam determinado a sua constituição no momento de sua criação. A mistura dos estilos, algo próprio da prática eclética, desenvolveu-se concomitante à descoberta da inexistência de um estilo característico do século XIX, associada à necessidade de uma maior liberdade criativa, pois já estava ‘provado’ que toda produção arquitetônica era historicamente determinada, e que as normas clássicas deviam sua “autoridade aos costumes”, como havia afirmado Claude Perrault em fins do século XVII.

Mas, ao incorporar este raciocínio, o que se percebe na produção eclética brasileira é a necessidade de criar simbolicamente um lastro cultural que apontasse para a filiação do Brasil às produções arquitetônicas da civilização européia. Portanto, os arquitetos inscreveram no traçado do Rio de Janeiro uma história da arquitetura à qual efetivamente não pertenciam, mas da qual desejavam tornar-se parentes, apagando conseqüentemente das linhas desta cidade sua história colonial. Assim, o desejo de instituir um estilo nacional, tal qual acontecera em diversos países da Europa, e que levaram ao estudo e revitalização de movimentos como o Gótico e o Românico, entre outros, tem no início da prática eclética brasileira sua expressão, não no sentido de descobrir origens, mas sim, de forjá-las. Inserese o país numa ordem civilizada, cosmopolita e moderna, sedimentada, como era de se esperar, pela tradição artística ocidental, o que garantiria não só um presente vinculado ao progresso, mas conseqüentemente um futuro que apontasse para o desenvolvimento do país.

As formas arquitetônicas adquiriram uma nova leitura ao serem inseridas na linha evolutiva da história. Passaram a ser percebidas como resultado da evolução dos povos, marca impressa na edificação, levando à compreensão do estágio cultural e material alcançado por determinadas civilizações. A partir da sedimentação desta perspectiva histórica, na qual é inserida a arquitetura pretérita, os ecléticos tomaram para si a função de criar um novo estilo, mas que pudesse ser identificado como representativo de sua época. Portanto, história e arquitetura formavam um dueto indissociável, uma vez que o próprio ato projetual se reconhecia enquanto inscrição na pedra, capaz de fornecer, não só para o presente, mas também para o futuro, uma leitura do estado em que se encontrava a civilização que o produziu.6

A República, símbolo da liberdade política, apontava para a liberdade estética, contrapondose ao academicismo neoclássico, símbolo da estagnação das Belas-Artes. A Escola, não mais subjugada pelos dogmas dos puristas do classicismo idealizado, acolheria o ecletismo arquitetônico tornado símbolo do progresso e de uma nova sociedade, com novos hábitos e, conseqüentemente, novas solicitações. A modernização da cidade colocava em pauta a 292

O ecletismo e civilização

necessidade de uma nova espacialidade, não só urbana, mas igualmente arquitetônica.

aluno da Escola, vencedor do ‘Prêmio Viagem à Europa’, que se encontrava em Paris, na École des Beaux-Arts, como pensionista. Ludovico Berna só iniciou suas atividades acadêmicas em 1897, mas outras cadeiras importantes para o ensino de arquitetura estavam sendo preenchidas com a contratação de professores, o que não fez com que o ensino fosse interrompido. Sante Bucciarelli, Carlo Parlagreco e Heitor de Cordevile foram respectivamente contratados para as cadeiras de estereotomia, de história e teoria da arquitetura e de elementos de arquitetura e desenho elementar de ornatos. Assim, a Escola se preparava para se colocar em posição de destaque e formar profissionais devidamente capacitados para empreender esta tarefa de modernização da cidade e de sua arquitetura.

Não se pode afirmar que a mudança de uma determinada concepção projetual para outra tivesse sido resultado somente da imposição de novos estatutos à Escola Nacional de Belas-Artes, ocorridos com a reforma Bernardelli. Esta mudança já se encontrava em gestação na antiga Academia de Belas-Artes, onde se sentia a presença dos “princípios modernos” defendidos principalmente “pelos professores de nomeação recente” (Bernardelli, 1890: 19). E, com certeza, a Proclamação da República veio ao encontro de tais ideais de mudança, possibilitando a reformulação do ensino artístico e a adoção dos princípios ecléticos em arquitetura. É necessário reconhecer e apontar a função desempenhada pela Escola Nacional de BelasArtes como principal instituição de ensino difusora da arquitetura eclética e, conseqüentemente, analisar as modificações implementadas em seu currículo, não só no sentido de filiar-se a este moderno estilo, mas igualmente de ministrar novas disciplinas de caráter mais técnico como ‘higiene das habitações’, tão em voga no período. Entretanto, deve-se deixar claro que o projeto eclético foi encampado e defendido pela escola, mas não ficou circunscrito a ela. Ganhou espaço nas diferentes publicações do período e, também, junto a outras instituições como a Escola Politécnica – que possuía no curso de engenharia civil uma cadeira de arquitetura –, e o Clube de Engenharia - cujo corpo de sócios congregava diversos arquitetos.

Contudo, os frutos demoraram a aparecer. A formação de um mercado específico, que determinaria o lugar do arquiteto na produção, seria um árduo trabalho a ser desenvolvido. Portanto, não seria de estranhar que a exposição dos projetos vencedores do “Concurso de Fachadas”, ocorrida em 1904 (já haviam se passado 14 anos da reforma da Escola), tenha suscitado tantos comentários. O mais importante deles pode ser resumido com a seguinte declaração – de espanto – por parte de Olavo Bilac, que, ao que parece, era seguida por muitos dos brasileiros: Toda a gente, no Salão da Escola Nacional de Belas-Artes, que admirou os projetos apresentados ao júri, - só tinha uma pergunta á flor dos lábios: ‘Onde estavam metidos, que faziam, em que se ocupavam todos estes arquitetos que apareceram agora, com tanto talento, com tanta imaginação, com tanto preparo, com tanta capacidade? E como é que, havendo arquitetos e tão bons arquitetos, não há na cidade demonstrações visíveis e palpáveis da sua existência em edifícios dignos de um povo civilizado.(BILAC, 1904)

Mas a Escola Nacional de Belas-Artes, em seus primeiros anos após a reforma não tinha o prestígio e status acadêmico e social adquirido anos mais tarde e que, ao meu ver, decorre essencialmente do projeto civilizatório7 que atribui ao arquiteto a função de ‘cuidar’ da espacialidade e estética das construções, posto que ele detinha um ‘conhecimento específico’.

No que se refere à qualidade dos trabalhos apresentados, não há como polemizar com Olavo Bilac, mas no que diz respeito ao seu comentário de que estes arquitetos estariam ‘escondidos’, certamente cabem algumas considerações. Em um total de 23 profissionais que apresentaram projetos, nove se auto-proclamavam arquitetos 10, quatro eram engenheiros, um era pintor, dois eram construtores e sete receberam a simples denominação de “Senhores” (A RENASCENÇA, 1904: 67). Vários não eram de nacionalidade brasileira, tendo aqui aportado exatamente em função das grandes obras de remodelação que se

No ano seguinte à Proclamação da República encontramos um curso de arquitetura ainda desestruturado, sem novos alunos matriculados e, principalmente, sem um professor para a principal cadeira: a ‘Cadeira de Arquitetura’ (BERNARDELLI, 1890: 22). Rodolfo Bernardelli tentou contratar diversos professores estrangeiros, apontando assim para a ausência de profissionais brasileiros habilitados a ocuparem o cargo.8 O arquiteto italiano Manfredo Manfredi9 foi a primeira escolha do diretor que, no entanto, não se confirmou. Bernardelli decidiu-se então por contratar Ludovico Berna, ex293

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

clamado aos sete ventos pelo plano de remodelamento da cidade de Pereira Passos. O desejo de constituição de uma urbe moderna e civilizada finalmente ganharia o espaço físico da cidade, abrigando a nova arquitetura e inserindo a cidade na ordem cosmopolita vigente nos séculos XIX e inícios do XX.

iniciavam no Rio de Janeiro sob o governo de Rodrigues Alves e a prefeitura de Pereira Passos.11 Nota-se, portanto, que a carência de alunos, referida por Bernardelli em seu relatório de 1890 – no qual afirmava não haver nenhum aluno de arquitetura inscrito no curso –, continuava a ser notada ainda em inícios do século XX. E que mesmo os poucos que se dedicavam à produção arquitetônica não tinham um espaço garantido como profissionais na cidade do Rio de Janeiro.

A arquitetura eclética, com a sua nova maneira de projetar, foi aos poucos se impondo e modificando os espaços construídos, que passaram a ser pensados segundo um sistema compositivo que privilegiava noções como conforto, higiene e modernidade. Objeto de uma reflexão sistemática que ambicionava criar espaços de fácil percepção e apreensão, o ecletismo – que neste momento está presente em todas as capitais ao redor do mundo – tem o seu amplo desenvolvimento no Brasil.

Este quadro apresentou relativas mudanças em inícios do século, e as reformas urbanas possuíram, neste sentido, grande importância, pois, inseridas no “projeto civilizatório” do país, buscavam alçar a prática profissional de arquiteto e engenheiro a uma questão de ‘necessidade estética e técnica’. Uma prova desta lenta transformação nos foi dada por uma crônica publicada na revista A Renascença que, ao comentar o sucesso obtido entre o público pelo “Concurso de Fachadas”, remetia à mudança no status das instituições de ensino e da própria profissão. Iniciava-se então, mesmo que a passos lentos, a formação de profissionais da área:

Obra de grande importância para a arquitetura do período foi Eléments et teorie de l’Architecture, publicado em 1901 por Julien Guadet 12, na qual ele expôs pela primeira vez uma teoria sobre o projeto arquitetônico (KRUFT, 1994:288), afirmando o privilégio dado à prática projetual em contraposição ao estabelecimento de determinações e normas a serem seguidas. A exemplo de J.N.L. Durand,13 Guadet rejeitava as regras impostas pela normatização clássica. Ao inserir as ordens em uma perspectiva histórica, ele discute a sua pertinência somente no que elas poderiam oferecer do ponto de vista prático da composição arquitetônica que, ao seu ver, era a mais importante qualidade artística da arquitetura (Id., 1994:289). O que significou afirmar que as ordens clássicas, mesmo sendo utilizadas nas edificações, não eram mais consideradas em sua função de determinante do espaço arquitetônico, mas sim como linguagem passível de ser manipulada. A grande contribuição de Julien Guadet foi o privilégio dado ao ato da composição como resultado do estudo das necessidades programáticas e construtivas da edificação.

Efetivamente, a matrícula deste ano na Escola de Belas-Artes, na seção de arquitetura da mesma escola, tem sido muito superior a dos anos procedentes, e bem assim sabemos que outros jovens engenheiros formados pela Escola Politécnica, tratam de cursar e formarse na especialidade de arquitetura. É esta, sem dúvida alguma, uma conseqüência proveitosa do concurso de fachadas em boa hora ideado pela administração pública, e não fosse senão por motivo desse movimento de renascimento artístico seria preciso felicitá-la, e é o que aqui fazemos (Ibid., 1904: 68). Assim, é importante assinalar, neste processo de transição em direção à modernidade, a posição ocupada pela Escola Nacional de Belas-Artes e pela Escola Politécnica. Aos poucos os profissionais que vão sendo por formados por estas instituições se tornam mentores, teóricos e práticos, de uma nova espacialidade e de uma nova estética, aclamada pelo seu caráter cosmopolita, associado a uma nova fase da história da cidade que deixava para trás seu passado insalubre, não sendo mais a “Nódoa brutal na paisagem radiosa”, como afirmava Luiz Edmundo (1983: 18).

Tratava-se de uma nova maneira de projetar a edificação, que partia do principio de que era necessário responder a determinações que diziam respeito às próprias noções de projeto, e não mais a uma determinada norma de composição. E mais, a certeza de que a forma era um vocabulário e, portanto, destituída de propriedades metafóricas, a tornava um objeto apto a ser manipulado, estando, deste modo, sujeita a diferentes combinações que não eram somente as que se encontravam subsumidas a uma normatização.

A empolgação dos professores com a reforma de Bernardelli em 1890 não se esvaiu, e os problemas enfrentados pela Escola no período “da república que não foi” (CARVALHO, 1987) foram mitigados com as promessas do “projeto civilizatório”, 294

O ecletismo e civilização

de uma edificação, privilegiando a experiência desfrutada em seu interior, como se imaginássemos – através da leitura dos desenhos que representavam o edifício –, que estamos percorrendo seus principais espaços e, portanto, sendo tomados por imagens e sensações que eles nos ofereciam. (ZANTEN, 1977: 112-115)

O privilégio era dado à planta, que se tornou uma habilidosa articulação dos requisitos funcionais exigidos pelo programa arquitetônico, ditando agora as normas do fazer em maçônico. Para compreender o predomínio dado à composição deve-se ter em mente, num primeiro momento, a transformação da própria noção de arquitetura como imitação de modelos naturais para uma noção que a privilegiava como ‘eficiente fechamento de espaços específicos’ em decorrência da própria prática projetual. Despidas desta conotação clássica, as edificações deixaram de ser analisadas e projetadas a partir da proporção das ordens e do seu detalhamento – como, por exemplo, fazia Quatremère de Quincy 14 –, passando o caráter do edifício a ser identificado com a experiência do espaço como um todo e na sua capacidade de satisfazer as próprias exigências projetuais. A arquitetura passou a ser vista como sensação, como massa construída que continha espaços, podendo ser experimentada quando se percorria seu interior.

Assim, o aperfeiçoamento das formas de compor uma edificação acabou por alçar, em fins do século XIX, a prática da composição ao estatuto de método, a uma maneira que seguia um sistema, não mais uma determinação resultante da abstração de leis naturais, que resultaria em uma interpretação dos sistemas das construções grecoromanos. Projetar uma edificação era um procedimento, uma forma de fazer (ÉPRON, 1997). Portanto, não havia uma norma rígida substanciando a prática projetual, ela era uma forma de ação, pautada pela escolha do arquiteto. Ou seja, pelo parti que ele adotava. E esta ‘forma de ação’ é claramente explicitada por Reynaud, ao discorrer sobre os “Princípios Gerais de Composição”:

Esta mudança na noção de arquitetura nos é indicada pela nova abordagem na análise das edificações, agora feita conforme a sua composição, entendida aqui como ‘por junto’, integrar harmoniosamente elementos que deveriam ser capazes de funcionar como um todo. Assim, ao se proceder a composição de um projeto novas noções iam sendo incorporadas e valorizadas, como disposição, que designava o arranjo das diversas partes que compõem o objeto, diferenciando-se da distribuição, como nos aponta Reynaud:

A distribuição visa ser boa, a disposição a ser boa e bela, a primeira não exige mais do que uma certa dose de inteligência, a segunda, o gênio do artista para imaginá-la. O importante ao dispor um edifício é conhecer sua destinação, o nome e uso das peças que deve conter, como conseqüência, as formas e dimensões mais convenientes a cada uma. Estes são os determinantes do problema, é o programa da composição. Deve-se meditar sobre este ponto, penetrar nas exigências do tema, buscar quais são as principais divisões que comporta, apreciar a importância e o desenvolvimento de cada um e depois examinar em que ordem devem se apresentar. (REYNAUD, 1870: 4)

Um apartamento, por exemplo, é bem distribuído se todos os cômodos que o compõem são planejados de forma a mais favorável para os usos aos quais se destinam, mas pode ser ao mesmo tempo mal disposto se não forem tiradas todas as vantagens possíveis da sua localização, se um ou mais cômodos não possuem as formas e dimensões necessárias e, se as paredes e as aberturas forem realizadas de forma a complicar a execução, e não simplificar e se, finalmente, a composição do interior não se manifesta no exterior através de uma configuração satisfatória. (REYNAUD, 1870:3)

O método de composição deveria prever o desenvolvimento do projeto segundo suas próprias características, atentando-se sempre para qual era a destinação da edificação. Neste sentido, podemos afirmar que foi esta prática, tornada conceito-chave, que permitiu o aparecimento de um novo sentido de beleza, um novo enfrentamento da questão do belo, já que ao sujeito era atribuída a função de coordenar, inspirado pela sua capacidade de escolha e de invenção, a composição da edificação. Desta forma, sob o comando do arquiteto, o projeto se tornou o ponto de determinação da atividade arquitetônica.

Outras expressões que foram incorporadas ao vocabulário arquitetônico para analisar as edificações, como marché e parti (originado da expressão prende parti, ou “fazer uma escolha”), apontam para as prioridades que passaram a ser valorizadas na constituição dos projetos. O termo marché tinha a função de descrever a disposição

Como a composição espacial da edificação era prioritária, os ambientes deveriam privilegiar a 295

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

utilização do usuário, devendo, assim, responder a questões práticas ditadas pelo projeto. A linguagem formal arquitetônica acaba por funcionar em seu sentido utilitário. O que significa dizer que o que determinava as proporções das ordens arquitetônicas não era mais a norma erudita, a norma clássica de proporção elaborada por Vitrúvio e sedimentada por Vasari (Gombrich, 1990: 115). Em nome da praticidade moderna, da higiene, do conforto da edificação e até mesmo da movimentação do indivíduo neste ambiente é que eram estabelecidas as proporções arquitetônicas. Ou seja, uma série de questões que anteriormente não faziam parte do universo arquitetônico, como espaços construídos ‘segundo as modernas técnicas da higiene’, acabam por se tornar prioridades, solicitando uma outra postura frente às normas e regras arquitetônicas. A norma clássica exigia uma certa proporção, mas como obtê-la em um terreno urbano não afeito a estas proporções?

estilística. Diziam respeito a uma nova concepção espacial, que caminhava lado a lado com as reformas urbanas de que era alvo a cidade, ao propor espaços mais adequados às novas solicitações da sociedade. É importante identificar o surgimento e o impacto das novas concepções formais e espaciais na construção de uma nova sociabilidade, atrelada ao ideário de civilização, progresso e modernidade, tão aclamado no período. A arquitetura, portanto, torna-se objeto privilegiado para compreender a construção da imagem de uma nova sociedade que se deseja instaurar com a República. Neste contexto é que entendemos a importância da produção arquitetônica eclética como relato de uma época. Reafirma-se o fato de que a arquitetura eclética tornou-se expressão máxima do ideal republicano de nação civilizada, valendo-se de sua linguagem plástica, espacialidade e avanços técnicos para estabelecer uma imagem própria. Imagem que lhe assegurasse o pertencimento ao mundo ocidental, civilizado e moderno, mundo que hoje nos parece tão distante.

Estas eram algumas das imposições modernas, que solicitavam que os arquitetos refizessem a sua própria relação com a normatização. Assim, identificamos aqui a atuação do princípio do sacrifício, discutido por Gombrich (1990: 116), através do qual o que é sacrificado é reconhecido como valor, embora deva se render a outro valor maior. E estas eram, a meu ver, as prioridades determinadas pelo fazer arquitetônico eclético, que buscou uma conciliação entre tradição e modernidade, privilegiando as solicitações contemporâneas, mas não rompendo com as linguagens do passado.

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O projeto civilizatório buscou, através da instituição de uma nova linguagem plástica, construir a noção de um espaço moderno, contando com a presença dos profissionais ligados à Escola. Mas, por outro lado, tentou cooptar novos alunos para que se pudesse efetivar o projeto de remodelação e transformação do Rio de Janeiro. E a cidade finalmente se viu palco das inovações formais e tecnológicas que serviriam não só para modernizar a cidade, mas também para incentivar a melhoria da produção arquitetônica brasileira e, conseqüentemente, aumentar o número de profissionais dedicados a esta área. A prática eclética respondia às necessidades de modernização da capital ao privilegiar a utilização de novas técnicas construtivas, a adoção de novos materiais e a implantação de uma infraestrutura capaz de fornecer conforto e comodidade aos seus usuários. Assim, os edifícios que passaram a ser projetados no Brasil segundo o ecletismo arquitetônico não decorriam de uma simples opção 296

O ecletismo e civilização 3

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Prova da reverência pelos primeiros professores da academia pode ser vista na construção do novo edifício para a Escola Nacional de Belas-Artes, de Adolfo Morales de los Rios, na Avenida Central, que trazia em sua fachada medalhões com o retrato dos artistas franceses. (RICCI, 1997: 632-653). 4 Nos estatutos da Academia de Belas-Artes o ensino teórico de arquitetura previa que ao aluno seria ensinado “a mudança de gosto e estilos na história da arquitetura, sempre tendo como modelo a arquitetura grega e a romana, dando aos discípulos exemplos extraídos dos monumentos existentes na Grécia e na Itália, e as cinco ordens de arquitetura de Vignola”. (MORALES DE LOS RIOS FILHOS, 1938) 5 Citamos aqui os trabalhos desenvolvidos por Alan Colquhoun (1994) e Peter Collins (1970) nos quais esta relação é amplamente tratada. 6 Estas reflexões acerca do ecletismo decorrem da minha dissertação de mestrado (RICCI, 1996). 7 Referimos-nos aqui à discussão empreendida por Afonso Carlos Marques dos Santos sobre a questão civilizatória, na qual o autor aponta ser necessário problematizar o “processo civilizador”, e não tomá-lo como um dado. (Santos, 1999). 8 Francisco Joaquim Bittencourt da Silva, que também era professor da Escola Politécnica, lecionando na Cadeira de Desenho, foi o último professor a ocupar a Cadeira de Arquitetura, tendo sido jubilado a pedido em 1888. 9 Manfredo Manfredi (1859-1927) foi o responsável pela construção do Monumento a Vittorio Emanuele II, Roma, após a morte de Giuseppe Sacconi, autor do projeto. (ANTIGÜEDAD, 1998). 10 Esta observação decorre do fato de que neste período não havia um controle na emissão dos diplomas, principalmente no que diz respeito aos estrangeiros. 11 A exemplo do que havia acontecido em Buenos Aires por ocasião das reformas urbanas e que pode ser exemplificado em carta aberta enviada da Capital Platina ao prefeito Pereira Passos por Francisco Guimarães em 1903: “(...) E se V. Ex. estimular esta reforma benemérita, estabelecendo prêmios anuais, embora modestos, recompensando as casas mais belas, as vilas operárias mais higiênicas e confortáveis, em breve haverá aí uma verdadeira febre de estética urbana e uma imigração de arquitetos italianos, franceses ou alemães, de Buenos Aires, de Montevidéu, do Rosário, além de uma multidão de pintores – decoradores, desenhistas, escultores, estucadores, marmoristas, canteiros, ebanistas, ferreiros, fumistas, fundidores, atualmente superabundantes por aqui [em Buenos Aires]”. (BRENNA, 1985: 30-35). 12 Julien Guadet (1834-1908), arquiteto diplomado pela École des Beaux-Arts de Paris, foi pupilo de Labrouste e trabalhou no atelier de Charles Garnier durante a construção do Ópera de Paris. Em 1872 tornou-se professor da École, em 1894 assumiu a cadeira de Teoria da Arquitetura. Em sua obra Elements et théorie de l’Architecture, de 1901, temos uma clara visão dos métodos e das idéias da École. (KRUFT, 1994: 2889). 13 Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834) foi certamente o teórico de arquitetura mais importante do século XIX. Foi professor catedrático de arquitetura da École Polytechnique de Paris. Em 1800 publicou Recueil et parallèle des édifiies en tout genre, em 1802-09 publicou Précis et leçons d’architecture, sua principal obra. (PEVSNER, 1980: 179-180).

Notas *

Doutora em História Social da Cultura IFCS/UFRJ, Professora do Instituto de Artes/UERJ. 1 Apresento neste texto algumas reflexões desenvolvidas no capitulo “A dissolução da normatização e a liberdade plástica” de minha tese de doutorado em História Social, Construir o passado e projetar o futuro: A arquitetura eclética e o projeto civilizatório brasileiro (Rio de Janeiro 1903-1922), IFCS-UFRJ, defendida em 2004. 2 A comissão, nomeada pelo Ministro Dr. Aristide da Silveira Lobo, era composta por Rodolfo Bernardelli, Rodolfo Amoedo e José Rodrigues Barbosa. Bernardelli tornou-se diretor em 1890 permanecendo até 1915.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 14

normativa da história, segundo a qual a origem, princípio, teoria e prática da arquitetura vinham da Grécia. O gótico era simplesmente ignorado por ele. Aplicava a mesma rigidez de sua visão classicista aos arquitetos barrocos, acusando Borromini pela sua “perversidade de gosto”. (KRUFT, 1994: 2778).

Antoine-Chrysotome Quatremère de Quincy (17551849) foi, segundo Hanno-Walter Kruft, o principal representante do classicismo idealista acadêmico. Secretário permanente da Académie e da École des Beaux-Arts de 1816 a 1839, foi autor do Dictionnaire d’Architecture e do Histoire de la vie et des ouvrages des plus célèbres architects. Possuía uma visão

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Curiosamente, pode-se dizer que foi com a chegada, em 1816, de um navio de bandeira norteamericana, chamado Calpe, que se preparou o terreno para a criação da primeira escola de arquitetura, no Brasil. Este navio trouxe ao Rio de Janeiro artistas que ficariam conhecidos como membros da Missão Artística Francesa. Alguns desses artistas se envolveram, dez anos mais tarde, na constituição da Academia Imperial de Belas Artes, na mesma cidade, dando origem ao primeiro curso oficial de arquitetura do país. A Academia Imperial de Belas Artes passou a ministrar o curso de arquitetura em 1827, ano em que seu funcionamento foi oficialmente autorizado. Este ensino tinha como um dos lentes principais Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny, arquiteto laureado pela École de Beaux- Arts de Paris, em 1799, e ganhador do Grand-Prix de Rome, um dos mais altos reconhecimentos artísticos para a sociedade francesa de fins do século XVIII e início do XIX (CONDURU, 2003: 143). O que vários autores sustentam é que, durante o Período Imperial, a repercussão da escola e a qualidade do trabalho de seus formandos eram deficientes, pois a instituição não abordava, especificamente, aspectos de base tecnológica na formação dos alunos. Com isso, priorizava-se uma formação mais artística, a qual se dava de forma conjunta com os candidatos a escultores, gravuristas e pintores, até o terceiro ano do curso, quando, então, os arquitetos eram submetidos a aulas de Pequenas e Grandes Composições para obtenção do título específico (SOUSA, 2001: 60). De fato, a carreira arquitetônica não atraía muita atenção do público brasileiro apto a procurar um curso superior. Alberto Souza apresenta algumas razões para a pouca repercussão dessa formação, ainda nos primeiros anos da Academia, e comenta que, em vinte e três anos ininterruptos de atuação docente, Montigny preparou somente treze arquitetos, na fase que se seguiu à instalação do curso, e três, nos últimos anos de sua vida (SOUSA, 2001: 57).1 Uma das causas dessa pouca atração de alunos era o descrédito alcançado pela Academia, que era julgada, socialmente, por educar arquitetos incapazes de construírem o que desenhavam.

um sotaque disfarçado: a recepção de referências americanas no curso de arquitetura da escola nacional de belas artes fernando atique *

Sabe-se que com a Proclamação da República o curso sofreu alteração significativa recebendo, inclusive, no começo do século XX, uma nova sede, construída na Avenida Central. Também sob a República, a denominação da Academia Imperial foi alterada para Escola Nacional de Belas Artes – ENBA -, e a separação dos cursos artísticos (pintura, desenho, escultura) do curso “aplicado” 299

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

(arquitetura) se tornou mais nítida, chegando a estipular exame admissional específico para a carreira arquitetônica. Todavia, a ENBA continuou conhecida como formadora de “arquitetos-artistas”.

campo crescente para suas obras na sociedade, sobretudo na construção de palacetes, edifícios comerciais e institucionais, na administração da ENBA ocorria o mesmo.

Após o período republicano notou-se que havia por parte dos docentes e administradores dessa escola, uma atenção significativa pelo universo norteamericano de publicações. Sabe-se, por exemplo, que Adolfo Morales de los Rios,2 em concurso para provimento do cargo de professor de estereotomia na ENBA, em 1897, explicitou a necessidade de se adotar o modelo de ensino superior da Stanford University, nos Estados Unidos. Embora possa soar estranho que uma escola que foi criada e mantida, pelo menos durante seus primeiros anos, vinculada ao modelo das Écoles de Beaux-Arts, procurasse referenciais estadunidenses para suas classes, deve-se ter em mente quão diversa foi a trajetória da ENBA ao longo de toda a sua existência. Uma explicação para tal ação deve-se ao fato de muitos docentes terem buscado qualificação profissional no estrangeiro, sobretudo na Europa. Mas, como se nota, também as publicações norte-americanas favoreceram esse aumento de repertório. Mais uma vez, deve-se apontar que Morales de los Rios era leitor e articulista, nos primeiros anos do século XX, do periódico The American Architect and Building News.

De fato, na ENBA, predominou, até por volta dos anos 1920, a matriz européia. Contudo, isto não significa que não houvesse, desde os tempos de Adolfo Morales de los Rios, nos primeiros anos de República, material norte-americano na instituição. A pesquisa revelou que, em 1897, já havia o livro de Henry A. Reed, intitulado Topographical Drawing and Sketching, Including Applications of Photography, publicado em New York por John Willey & Sons. Este era livro de referência no cenário estadunidense de estudos topográficos. Dos primeiros anos do século XX foram localizados o livro de Russell Sturgis, de nome A Dictionary of Architecture and Building: biographical, historical, and descriptive by and many Architects, Painters, Engineers, and other expert writers, American and Foreign, publicado em New York pela MacMillan, em 1901. Com relação às revistas voltadas à arquitetura foram localizados exemplares da Architectural Record, editada em Boston, desde 1876, primeiramente sob o nome The American Architect and Architecture e, depois de 1910, já com esta designação. O acervo desta revista na biblioteca da antiga ENBA iniciou-se em 1912, no número 31, e está completo até os dias de hoje. A Architectural Record foi porta-voz dos estilos historicistas e do modernismo, dedicando reportagens inteiras ao movimento de construção de edifícios dentro do repertório do Mission Style. Em 1922, por exemplo, o periódico de janeiro trouxe reportagem sobre a residência J.P. Jefferson, em Montecito, California, projetada pelo arquiteto Reginald D. Johnston, de feições tipicamente missões (ARCHITECTURAL RECORD, Jan, 1922: 8-15). O número de julho dedicou 21 páginas para abordar os projetos recentes do escritório de Marston & Van Pelt, atuante no sul da California, e mostrou 4 projetos completos vinculados ao Mission Style (ARCHITECTURAL RECORD, Jul, 1922: 17-38). Em outubro, foram publicadas mais sete residências concebidas dentro do mesmo princípio arquitetônico (ARCHITECTURAL RECORD, 1922, Oct: 318 – 340), para citar apenas um ano da revista, além dos precedentes e, principalmente, dos sucessivos, nos quais esta temática foi abundante.

O significado do interesse de docentes, como Morales de los Rios, pelos Estados Unidos, expressa que a ENBA passou a abrigar profissionais de origem social bem diversa daquela dos pintores e escultores dos períodos anteriores. Com a mudança do perfil dos docentes, houve a necessidade de se ampliar as fontes repertoriais para a produção e para o pensamento arquitetônico. Como a aquisição de livros em inglês era, em certo sentido, fácil, no Rio de Janeiro, ainda no século XIX, por conta dos diversos acordos comerciais com a Grã-Bretanha, a descoberta do mundo editorial norte-americano, após a década de 1870, também não causa nenhum espanto. Por meio de livrarias e das casas exportadoras, como a Nathanael Sands, facilmente se conseguia publicações que dirigiam o olhar dos intelectuais e dos acadêmicos para os Estados Unidos. Com o prenúncio de alteração do perfil dos docentes após os primeiros anos da década de 1900, também o dos alunos de arquitetura da ENBA se alterou, atraindo filhos da elite econômica e intelectual para o curso de Arquitetura, enquanto as demais carreiras oferecidas pela escola ainda recebiam membros dos extratos mais pobres da República, tal qual na época imperial (DURAND, 1989). Se, neste período, o arquiteto encontrava

Além da Architectural Record, localizaram-se números da revista Architectural Digest, no entanto, sem volumes seqüenciais. A edição mais antiga remonta a 1920. Esta revista é publicada, até os 300

A recepção de referências americanas no curso de arquitetura da ENBA

dias de hoje, mesclando reportagens sociais com projetos de arquitetura. A Architectural Digest, produzida, desde 1914, em Los Angeles, pela California Knapp Communications Corporation, também abordou projetos de formas hispânicas, em diversos números, ao longo dos anos.

dos referentes hispano-americanos de escolas, hospitais, creches, além de outros programas de edifícios institucionais. Se havia fontes para apreensão da arquitetura missões, dentro da ENBA, não se deve deixar passar, despercebidamente, os projetos publicados por alunos e ex-alunos da instituição, no órgão oficial de seu grêmio: a Revista de Arquitetura da ENBA. Fundada em 1934, por Levi Autran e Paulo Motta, e dirigida por Sebastião de Almeida, a revista surgiu após a passagem de Lucio Costa pela diretoria da Instituição. Entretanto, mesmo contando com colaboradores ligados ao modernismo, como Álvaro Vital Brazil e Affonso Eduardo Reidy, foi possível identificar muitas reportagens sobre a temática da arquitetura neocolonial. Por vezes, foi possível encontrar projetos vinculados à arquitetura missões trazidos a público em propagandas de escritórios de arquitetura, mas, também, como artigos da própria revista. Na edição de número 11, de maio de 1935, o escritório Galo, Barata e Fonseca publicou uma proposta de residência assobradada que misturava as referências hispânicas de forma bem livre, mostrando uma das variantes do neocolonial praticado no Rio de Janeiro. (REVISTA DE ARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.11, mai: 1012).4

Junto dessas revistas estão os livros técnicos estadunidenses, estes, sim, mais numerosos. Extremamente importante é a presença dos já citados livros de Paul Harbeson, professor na University of Pennsylvania, nos Estados Unidos, no acervo da ENBA: The Study of Architectural Design, with Special Reference to the Program of the Beaux-Arts institute of Design, publicado em New York pela Pencil Points, em 1927, e Winning Designs, 1904-1927, Paris Prize in Architecture, editado pela mesma companhia, em 1928, no qual são expostos projetos criados dentro das regras “beauxartianas”, mas com várias referências hispânicas, aos moldes do Pan-American Union Building, de Paul Cret e Albert Kelsey, de 1907 (ATIQUE, 2007). Embora os livros de Harbeson sejam importantes, não são comparáveis aos produzidos por Rexford Newcomb, o principal divulgador da história e dos edifícios criados dentro do vocabulário hispânico, nos Estados Unidos. Na ENBA foi possível encontrar volumes do Spanish House for America. Este livro, publicado pela editora J.B. Lippincott, da Philadelphia, foi muito popular no Brasil, nos anos 1920 e 1930, e foi, sem sombra de dúvida, uma das principais referências para o projeto de edificações dentro dos princípios coloniais hispanoamericanos, em todo o continente.3 Sua presença na biblioteca da instituição revela o porquê de muitos projetos realizados pelos egressos da ENBA mostrarem um apurado senso compositivo e de detalhamento. Crê-se, todavia, que o rigor projetual dos alunos foi também alcançado pela consulta a outro título importante, o Architectural Details of Southern Spain: One Hundred Measured Drawings, One Hundred and Thirteen Photographs, trabalho de Thomas Gibson e Gerstle Mack, publicado, em New York, em 1928, que apresenta um verdadeiro arsenal de modelos para detalhamento da arquitetura missões. Na mesma linha, localizouse outro livro, de nome Measured Drawings of Early American Furniture, da lavra de Burl N. Osburn, de 1926, que trazia, dentre muitos desenhos ligados a outros estilos arquitetônicos, referências ao mobiliário de caráter hispânico.

Com relação aos textos nos quais a defesa do neocolonial era praticada, há um de autoria de Adolfo Morales de los Rios Filho, 5 de nome “Arquitetura não é Standard”, publicado em março de 1935, que comenta abertamente o desenvolvimento da arquitetura nos Estados Unidos. Para ele, a arquitetura predominante na costa leste, calcada no modelo do arranha-céu, não era tão proeminente na costa oeste, pelo fato de “o espírito espanhol e luzitano” não ter desaparecido de seus antigos territórios, como “os sobrenomes ilustres e a heraldica recordam aos presentes”. Mas, para além desta constatação, um tanto quanto simplória, Rios Filho agrega suas considerações arquitetônicas, dizendo que “onde abundam os edifícios das ‘Missões’ espanholas dos Seculos XVII e XVIII, verdadeiros nucleos arquitetônicos – a arquitetura é outra. ‘El rancho’, ‘la casona’, ‘el solar ’, são os tipos representativos dessa arquitetura néo-colonial norte-americana” (REVISTA DE ARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.9, mar: 11). A conclusão deste autor se baseava no fato de que o desenvolvimento “dessa arquitetura hoje denominada ‘Mission Style’ ou ‘Mediterranean Style’” se pautava pelo entendimento de que “Arquitetura não é Standard”, já que “ela sempre

Outro título digno de nota, encontrado no acervo da ENBA, é American Public Buildings of Today, de 1931, escrito por Randolph Sexton, que mostra quase uma centena de projetos executados dentro 301

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de 1929, trazendo, já na capa, um projeto com elementos missiones. Apesar de apresentar algumas referências ao que Paulo Santos chamou de “casinhas em pan-de-bois”, o carro-chefe da publicação foram as casas de arquitetura vinculada ao Mission Style. Durante aproximadamente um ano – a revista desapareceu precocemente – Fraga projetou muitos edifícios residenciais dentro das referências missões. Seu objetivo era atrair clientes para si próprio e para seus colegas da ENBA, muito embora ainda fosse um graduando.

deverá corresponder ao material, aos usos e costumes, aos fatores mesológicos, ás condições econômicas e á mão de obra” (REVISTA DE ARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.9, mar: 11). Pelo exposto, nota-se que o debate acerca das proposições norte-americanas de entendimento do lugar, de desenvolvimento de uma arquitetura que trabalhasse a questão das heranças culturais encontrou abrigo dentro da ENBA. Cabe, então, abrir espaço para abordar de que forma houve a transmissão dessas referências entre professores e alunos, e entre os antigos alunos e a sociedade. Para tanto, torna-se importante a transcrição de trechos da obra Arquitetura no Brasil: depoimentos, do arquiteto Abelardo Reidy de Souza. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes, em 1932, Souza acompanhou todo o processo de mudança acontecido com a chegada, à direção da Escola, de Lucio Costa, que manteve o corpo docente tradicional lecionando nos últimos anos do curso, enquanto implantou cadeiras novas nos anos iniciais, voltados à valorização técnico-construtiva, ministradas por professores afinados com o ideário moderno. Tentando demonstrar sua vinculação à matriz modernista, Abelardo de Souza expôs o ambiente de ensino-aprendizado dentro da ENBA, de maneira depreciativa, mas importante de ser analisado:

ENBA parece não ter se oposto à revista, uma vez que vários projetos produzidos em suas classes foram divulgados pela publicação que, por sinal, sempre colocava subtítulos indicativos da condição de alunos dos colaboradores do periódico. Logo em seu número 1 foi publicado o exercício destinado a sondar o repertório mobilizado na execução de uma “Casa para Milionário”. O projeto desenvolvido pelo aluno Gerson Pompeu Pinheiro, batizado de “Pinturesco Colonial”, era uma típica solução de arquitetura neocolonial onde ficava explícita a fusão dos estilemas luso-brasileiros com os hispânicos (ARCHITECTURA: MENSÁRIO DE ARTE, 1929, n.1: 21). No mesmo número também foi exibido o projeto realizado por Pinheiro em conjunto com Affonso Eduardo Reidy, para outra residência de um milionário. Neste projeto, a fusão dos elementos hispânicos se dava em menor grau com os de fundo luso-brasileiro, apesar de a implantação ser tipicamente baseada nos princípios emanados das lições “beauxartianas” francesas (ARCHITECTURA: MENSÁRIO DE ARTE, 1929, n.1: 28).

Antes dos anos trinta, a arquitetura brasileira era uma constante cópia de vários estilos que imperavam na época, vindos todos de outras terras. Para a arquitetura residencial, que era o que mais se fazia, copiava-se o ‘espanhol’; com seus avarandados em arcos, suas janelas protegidas por grades de ferro retorcido formando desenhos os mais variados, seus pátios internos pavimentados com lages de pedra e um poço no meio, geralmente, sem água. Copiava-se, também, o ‘mexicano’, um espanhol transportado para o Brasil via Hollywood, sem passar pelo México. (...) Todos esses estilos, menos o nosso ‘colonial’, chegavam por aqui por meio de revistas ou livros de arquitetura. Duas revistas que eram, na época, muito difundidas entre os estudantes, (...) eram a Mi Casita, que se não nos enganamos, era de origem Argentina e uma outra, bem brasileira, feita por um então aluno da ENBA, seu proprietário, seu editor, seu redator, autor da maioria dos projetos apresentados e, também, seu distribuidor. (SOUZA, 1978: 15-17).

Abelardo de Souza expôs, mesmo que de maneira combativa, não só a disponibilidade de encontrar livros e revistas que mostravam a arquitetura espanhola, californiana, missioneira, enfim, “colonial”, dentro da ENBA, como o fato de que os docentes da casa sabiam e aceitavam os modelos neocoloniais advindos dos Estados Unidos. Este treinamento em sala de aula era completado, entretanto, pelas atividades de estágio, processadas em importantes escritórios do cenário carioca de então. É importante informar, neste sentido, que a familiaridade de Abelardo de Souza com as questões atreladas à difusão do Mission Style, no Rio de Janeiro, deve-se, principalmente, ao fato de ele ter sido estagiário do escritório de Edgard Vianna e de Raphael Galvão, em princípio dos anos 1930. Estes dois arquitetos, que, nesse período, trabalhavam juntos, empreenderam muitas obras dentro da imagética hispânica 6 (CONSTANTINO, 2004: 44).

Souza se referia à popular Architectura: Mensário de Arte, preparada por Moacyr Fraga. Este aluno lançou o primeiro número da revista em 8 de junho 302

A recepção de referências americanas no curso de arquitetura da ENBA

A revista Architectura no Brasil, em 1925, também publicou projetos realizados pelos exalunos da ENBA expostos no Salão de Belas Artes daquele ano. Um que chama muito a atenção é o do arquiteto Attilio Correia Lima, que expôs o projeto de uma residência vazada dentro dos princípios volumétricos e ornamentais do missões. Projetos semelhantes também foram expostos por Paulo Antunes Ribeiro e por Raphael Galvão, todos para residências missões (ARCHITECTURA NO BRASIL, 1925, n.25: 27 - 28). Em vários números dessa publicação seriam verificados projetos neocoloniais, mas, talvez pelo fato de ser um periódico mais ligado às entidades de classe do Rio de Janeiro, onde estavam os mentores do Movimento Neocolonial, foi difícil encontrar as variantes hispânicas em suas páginas.

EXPOSIÇÃO de Bellas Artes. Architectura no Brasil. Rio de Janeiro: a.III, v.5, n.25, p.27-28, 1925. GIBSON, Thomas; MACK, Gerstle. Architectural details of Southern Spain: one hundred measured drawings, one hundred and thirteen photographs. New York: W. Helburn, 1928. HARBESON, Paul. The study of architectural design, with special reference to the program of the Beaux-Arts Institute of Design. New York: Pencil Points, 1927. JOHNSTON, Reginald D. J.P. Jefferson house, Montecito. Architectural record. S.n., p. 8- 15, Jan, 1922. LOS RIOS, Adolpho Morales de. The rebirth of Rio de Janeiro. The American architect and building news. N. 21, Jul, 1906, p.20 – 28. LOS RIOS FILHO, Adolfo Morales de. Arquitetura não é Standard. Revista de Arquitetura da ENBA. Rio de Janeiro: ENBA, n.9, mar, 1935, p.11. MARSTON & VAN PELT. Architectural record. S.n., p. 17 – 38, Jul, 1922. NEWCOMB, Rexford. The Spanish house for America: its design, furnishing and garden. Philadelphia: J.B. Lippincott, 1927. ORIENTAÇÃO nacionalista na arquitetura. Revista de Arquitetura da ENBA. Rio de Janeiro: n. 13, p. 25, jul, 1935. PROJETO de Galo, Barata e Fonseca. Revista de Arquitetura da ENBA. Rio de Janeiro: ENBA, n.13, jul, 1935, p.22. REED, Henry A. Topographical drawing and sketching, including applications of photography. New York: John Willey & Sons, 1897. REIDY, Affonso Eduardo. Residencia para um milionário. Architectura: mensário de arte. Rio de Janeiro: n.1, p.28, 1929. STURGIS, Russell. A dictionary of architecture and building: biographical, historical, and descriptive by and many architects, painters, engineers, and other expert writers, American and foreign. New York: MacMillan, 1901. SEXTON, Randolph. American public buildings of today. New York: Architectural Book Publishing, 1931. SOUSA, Alberto José de. O ensino de arquitetura no Brasil imperial. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2001. SOUZA, Abelardo de. Arquitetura no Brasil: depoimentos. São Paulo: Livraria Diadorim Editora, 1978.

Embora a Escola Nacional de Belas Artes tenha sido taxada de “arcaica”, “equivocada”, “atrasada”, por várias gerações de arquitetos, ela foi, de fato, uma escola com repertório internacional, afinada com as discussões em processo em todo o continente americano. Defende-se a tese de que mais do que enxergar a ENBA como uma escola pró-ecletismo ela foi, especialmente nas décadas de 1920 e 1930, uma instituição que soube se comunicar com suas congêneres de norte a sul das Américas e que teve um projeto de ensino arquitetônico. Assim, pode-se dizer que ela foi uma Escola “Internacional” de Belas Artes. Referências bibliográficas ATIQUE, Fernando. Arquitetando a “Boa Vizinhança”: a sociedade urbana do Brasil e a recepção do mundo norte-americano. (Tese de Doutorado). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2007. OSBURN, Burl N. Measured drawings of early American furniture. Milwaukee: The Bruce Publishing Company, 1926. CALIFORNIA Houses. Architectural record. S.n., p. 318 – 340, Oct, 1922. CONDURU, Roberto. Grandjean de Montigny: um acadêmico na selva. In: BANDEIRA, Julio; XEXÉO, Pedro Martins Caldas; CONDURU, Roberto. A Missão Francesa. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. CONSTANTINO, Regina Adorno. A obra de Abelardo de Souza. (Dissertação de mestrado). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2004. DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855 / 1985. São Paulo: Perspectiva, 1989.

Notas *

Arquiteto e urbanista, mestre em História da Arquitetura e Doutor em História e Fundamentos Sociais da Arquitetura e do Urbanismo, todos os títulos obtidos na USP. Docente

303

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República e Pesquisador da Universidade São Francisco, campus Itatiba / SP, desde 2003. 1 Após a morte do mestre francês, em 1850, a Academia foi conduzida pelo professor Job Justino d’Alcântara, um dos primeiros arquitetos por ele formados (SOUSA, 2001: 54). 2 Adolfo Morales de los Rios nasceu na Espanha em 1858, onde também se formou arquiteto. Radicou-se no Brasil, no ano de 1890. Extremamente produtivo, Morales de los Rios teve uma atuação ímpar no meio intelectual carioca, tornando-se, inclusive, professor da ENBA, nos últimos anos do século XIX, possivelmente com a referida tese citada por Carlos Comas, em 1896. Teve ativo escritório, o qual, dentre várias obras, projetou a sede da ENBA na Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, local onde, atualmente, funciona o Museu Nacional de Belas Artes. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1928. Seu Filho, Adolfo Morales de los Rios Filho também foi arquiteto e docente na ENBA. 3 Logo no início desta pesquisa de doutoramento, em 2003, foi possível adquirir, num sebo especializado em

arquitetura, em São Paulo, um exemplar desse livro, que pertencera ao escritório carioca MM Roberto, o que mostra como os arquitetos egressos da ENBA tinham ciência das publicações estadunidenses. 4 No número 13, publicado em julho de 1935, era possível ver outro projeto da mesma Galo, Barata e Fonseca, dentro da linguagem arquitetônica do missões. 5 Morales de los Rios Filho era espanhol, assim como seu pai. Matriculou-se na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes, por volta de 1910. Em 1914, formou-se engenheiro-arquiteto pela ENBA. 6 E d g a r d Vi a n n a , g r a d u a d o n a U n i v e r s i t y o f Pennsylvania teve, pelo menos, dois sócios ao longo de sua curta trajetória profissional. Morto em 1936, no auge de sua produção, ele foi associado, em momentos não-precisados, mas não concomitantemente, de Roberto Lacombe e de Raphael Galvão, entre 1920 e 1936.

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Embora continue sendo sempre útil lembrar que a arquitetura do século XIX foi e continua sendo objeto de um arraigado preconceito estético, preconceito que, como já demonstramos, deve-se a uma historiografia modernista ainda não superada no Brasil 2 , hoje já é possível afirmar que as pesquisas relativas a esse período passaram por uma verdadeira revolução metodológica nas duas últimas décadas do século XX. Os novos estudos ampliaram consideravelmente o conhecimento sobre a cultura arquitetônica do século XIX, tanto em relação à abordagem teórica dos profissionais quanto, principalmente, no que se refere à relação entre a teoria da arquitetura e as concepções epistemológicas e científicas contemporâneas. Continuando o processo de redescoberta do século XIX iniciado na década de 1970, os trabalhos recentes reconhecem cada vez mais a especificidade e a autonomia do período em relação ao século que o precedeu ou que o sucedeu. Primeiro, as novas abordagens metodológicas revelam um período muito mais complexo que o pálido retrato traçado pela grande maioria dos autores, um período tão complexo quanto qualquer outra grande época ou qualquer outro grande estilo; ou melhor, revelam um século de intensa experimentação estética e de formulações teóricas profundas e atualizadas. Segundo, os historiadores estabeleceram novos objetos de pesquisa capazes de estreitar ainda mais a relação entre as concepções arquitetônicas e o contexto cultural do período. Finalmente, e conseqüentemente, a nova história cultural do século XIX trouxe ao primeiro plano personagens que até há pouco tempo desempenhavam um papel menor na história da arquitetura3.

léonce reynaud e a concepção teórica do ecletismo no rio de janeiro marcelo puppi

1

Dentre estes personagens revalorizados através dos quais podemos ver um outro século XIX, o arquiteto-engenheiro Léonce Reynaud é talvez o caso mais exemplar. Autor de uma obra que no mínimo o iguala a seu grande rival Viollet-le-Duc, Reynaud praticamente caiu no esquecimento no século seguinte, ao passo que o célebre apóstolo da arquitetura medieval tornou-se, ou foi transformado pela historiografia modernista em um dos heróis do racionalismo contemporâneo. Contudo, a abordagem de Reynaud mostra-se uma das mais abertas e mais representativas de toda a cultura do século XIX. Resumindo sua contribuição teórica em uma fórmula breve, Reynaud propôs nada mais nada menos que uma nova concepção da arquitetura, a qual, opondo-se diretamente à teoria de Quatremère de Quincy e de Durand (oposição aliás comum a toda sua geração), pretende inserir plenamente a arquitetura no dinamismo do história contemporânea.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Inicialmente, a Ecole Polytechnique lhe revela o processo de matematização do saber que punha em questão os conhecimentos tradicionais da engenharia, até então baseados apenas na geometria; isto é, ele ingressa na instituição no momento em que as ciências do Iluminismo davam lugar às novas ciências físico-matemáticas do engenheiro moderno. Entrando em seguida na Ecole des Beaux-Arts, ele passa a integrar o meio artístico e assim descobre o romantismo, movimento que, como se sabe, apresentava-se como uma alternativa tanto à cultura do Iluminismo quanto ao processo de especialização da ciência contemporânea que Reynaud presenciara na Ecole Polytechnique. Por sua vez, a descoberta do romantismo abre-lhe o caminho para o pensamento dos saint-simonianos, cuja doutrina proclamava a superação definitiva de todas as contradições do presente, e principalmente das contradições intelectuais que ele, transitando de um lado a outro do pensamento da época, já constatara por sua própria conta. Finalmente, na Ecole des Ponts et Chaussées ele reencontra as ciênciais do engenheiro das quais ele partira na Ecole Polytechnique; ou melhor, ele agora já considera essas ciências segundo uma perspectiva bem diferente da idéia que o próprio conhecimento científico da época faz de si mesmo, bem como da visão que ele mesmo tinha da organização do saber no início desse percurso.

Engenheiro de estado, teórico racionalista, e além do mais simpático ao imaginário científico dos saintsimonianos, ele paradoxalmente mostrou-se favorável ao ecletismo de seu tempo. Sua principal obra, um abrangente e volumoso Traité d’Architecture 4 , chegou a ser oficialmente reconhecida pela Academia, reconhecimento que lhe assegurou a livre utilização, desde meados do século, no ensino de arquitetura da própria Ecole des Beaux-Arts. A aprovação da Academia colaborando, o tratado de Reynaud tornou-se internacionalmente conhecido na segunda metade do século XIX. Ainda que não se saiba ao certo o grau de difusão internacional da obra, ela pode ser encontrada em vários países da Europa e da América, incluindo o Brasil. No nosso caso, o Traité d’Architecture parece ter sido uma fonte corrente na formação dos arquitetos durante o final do século XIX e início do XX, uma vez que há diferentes edições de seu tratado nas bibliotecas relacionadas ao ensino de arquitetura no período, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Graças à presença de uma escola de belas artes inspirada no modelo francês, o Rio de Janeiro era sem dúvida, no contexto brasileiro, o lugar mais favorável à transmissão da teoria de Reynaud. As condições particulares do ecletismo carioca permitem formular a hipótese bastante verossímil que, na antiga capital federal, o tratado de Reynaud ocupou um lugar proporcional ao que lhe fora reservado no contexto da arquitetura francesa. De fato, pretende-se mostrar a seguir que a concepção teórica do ecletismo no Rio de Janeiro deve muito mais a Reynaud e a seus discípulos franceses diretos que a qualquer outro autor contemporâneo ou a teóricos como Quatremère de Quincy e Durand que, nas primeiras décadas do século XIX, prolongam a cultura iluminista do século XVIII.

Durante a década de1820 e início dos anos1830, Reynaud descobre em suma um novo contexto cultural que representa uma verdadeira revolução em relação à cultura ainda Iluminista das primeiras décadas do século XIX, e que ele incorpora operando uma reviravolta total em seu pensamento. Enquanto na organização do saber do século XVIII e primórdios do XIX todo conhecimento deve estar subordinado ao imperativo da utilidade e à razão científica que assegura sua concretização, na filosofia romântica da primeira metade do século XIX, e em particular no saint-simonismo que ele conheceu de perto, o conhecimento intuitivo e a imaginação estética passam a ocupar o topo do processo cognitivo. Se, como se sabe, o século XIX não se tornou uma época plenamente romântica nem muito menos saint-simoniana, os dois movimentos contribuíram significativamente para moldar uma nova cultura de natureza contraditória e também, por isso mesmo, mais complexa que o Iluminismo do século precedente. Reynaud pretendia justamente inserir a teoria e a prática da arquitetura no novo contexto cultural que emergiu a partir dos anos 1820 e 1830 e que ele vivenciou pessoal e ativamente.

Um novo contexto cultural No seu longo itinerário de formação, que se estende por mais de uma década, Léonce Reynaud deparou-se com algumas das grandes questões culturais de seu tempo e que estão na origem mesma da cultura contemporânea. Seus estudos começam em 1820 na Ecole Polytechnique, continuam em seguida na Ecole des Beaux-Arts e se concluem em 1833 na Ecole des Ponts et Chaussées depois de uma breve passagem pelo movimento saint-simoniano. Esse percurso aparentemente errático atravessou um período de grande ebulição e de grandes transformações culturais e científicas na França, transformações que, passando de descoberta em descoberta, Reynaud acompanha passo a passo e incorpora finalmente a seu próprio pensamento. 306

Léonce Reynaud e a concepção teórica do Ecletismo no Rio de Janeiro

prática profissional dos engenheiros, e assim reduzida ao arranjo geométrico mais simples, a disposição axial das partes5.

Do método analítico de Durand à composição orgânica de Reynaud O envolvimento direto de Reynaud com as grandes questões culturais de seu tempo leva-o a rever completamente os fundamentos teóricos da arquitetura, a começar pelo método de composição ensinado na Ecole Polytechnique por Durand, de quem ele fora aluno no início de seu longo período de estudos e a quem ele finalmente sucederia em 1837, logo no início da sua vida profissional. Reynaud não estava sozinho neste ambicioso programa de renovar de cima abaixo a teoria da arquitetura para inserí-la plenamente na nova cultura que emergia na primeira metade do século XIX. Ele combatia ao lado de Labrouste, Vaudoyer e de outros contemporâneos da geração dos historicistas românticos, que se opunham à concepção estática da arquitetura sustentada pela Academia, e particularmente à teoria da imitação de Quatremère de Quincy. Mas, sempre contribuindo para a discussão de seus amigos arquitetos sobre os princípios teóricos que deveriam fundamentar o ensino da arquitetura na Ecole des Beaux-Arts, Reynaud dedicou-se principalmente a formular um novo método de composição para ser ensinado na Ecole Polytechnique, método destinado também aos arquitetos. Mais precisamente, Reynaud consagrou-se a substituir o método analítico de Durand por um novo método orgânico, ou sintético, de composição arquitetônica.

O método de composição que Durand elaborou e ensinou na Ecole Polytechnique de 1794 a 1833 foi resumido na sua obra mais influente, Précis des Leçons d’Architecture Données à l’Ecole Polytechnique, publicado em dois volumes em 1802 e 1805. A legitimação científica da arquitetura e a abordagem geométrica da composição expostas na obra enquadram-se no espírito politécnico, mas vão também ao encontro da expectativa dos arquitetos, os quais, durante a primeira metade do século XIX, encontram no Précis uma fundamentação teórica e prática para o processo de composição aprendido na Ecole des Beaux-Arts. Aqui é preciso lembrar que Durand fora discípulo de Boullée, e portanto que o método analítico do professor da Ecole Polytechnique representa a sistematização dos fundamentos teóricos e práticos da composição buscados por Boullée e Ledoux no último quarto do século XVIII. Quanto a Reynaud, para ele a composição não é mais uma simples aplicação da ciência, mas está além dela, situando-se em um plano mais elevado do processo de conhecimento. Acompanhando as especulações filosóficas de seu tempo, isto é, do romantismo e principalmente do pensamento saintsimoniano, segundo os quais são as partes que nascem do todo, e não o todo das partes, ele considera a composição como um todo maior que a simples soma das partes, um organismo complexo que gera as partes ao invés de ser gerado por elas. Isto representa uma inversão total em relação ao método elaborado por Durand. Na perspectiva de Reynaud, o processo de composição deve caminhar não das partes ao todo, mas do todo às partes, ou, dito de outra forma, a concepção arquitetônica deve ser guiada por um método sintético, ao invés de analítico, ao contrário portanto do que preconizava seu antigo professor. A seus olhos, e de modo geral de toda a geração que se formou durante o apogeu da cultura romântica, a vantagem do método sintético era evidente: somente uma arquitetura complexa, ou orgânica nos termos da própria época, seria capaz de incorporar a complexidade e o dinamismo do século da indústria, para inserir-se plenamente nele e poder interagir com a sociedade contemporânea.

Para Durand, que desde 1794 é professor da Ecole Polytechnique, primeiro de desenho, e logo em seguida do curso de arquitetura, a arquitetura define-se como uma aplicação da ciência, tanto teórica quanto prática. Trabalhando em um dos principais centros de produção científica na França do final do século XVIII e início do XIX, Durand incorpora plenamente a ciência analítica do Iluminismo, segunda a qual o conhecimento deve começar pelas partes para depois chegar ao todo. Isto é, qualquer objeto de estudo deve ser dividido em quantas partes forem necessárias, para que a compreensão do todo resulte da somatória dos conhecimentos particulares e detalhados de cada uma das partes do objeto. Se no século da utilidade a arquitetura buscava a legitimação da ciência, para Durand a própria composição arquitetônica deve seguir o método analítico. A composição deve tornar-se um processo combinatório baseado na decomposição do todo em partes e, inversamente, na recomposição das partes para formar novamente o todo. Ou seja, tornar-se um método no qual o todo resulta simplesmente da soma de partes independentes umas das outras. Trata-se além do mais de uma combinatória destinada à

Nada que seria possível através do método analítico de Durand, e muito menos da teoria da imitação de Quatremère de Quincy, concepções estáticas do homem e da natureza, e portanto indiferentes às transformações históricas e ao aperfeiçoamento da sociedade esperado na época. 307

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Todavia, se para alguns historiadores Reynaud limitou-se a continuar o ensino de Durand na Ecole Polytechnique, a confusão deve-se em parte ao fato que o aluno conservou o uso do termo composição tanto no seu curso de arquitetura quanto no Traité d’Architecture, publicado igualmente em dois volumes em 1850 e 1858. Mas uma comparação aprofundada entre o Précis de Durand e o tratado de Reynaud revela diferenças fundamentais entre as duas obras, que apareceram em um intervalo de quase exatamente meio século. A começar pela ciência, que já não é a mesma nos dois autores; se a ciência de Durand é a geometria analítica de Monge, a qual domina a primeira fase do ensino na Ecole Polytechnique, a ciência de Reynaud já é o conhecimento físico-matemático que começa a fazer parte da formação do engenheiro a partir de aproximadamente 18306. Por exemplo, o primeiro volume do Traité d’Architecture, intitulado justamente Art de Bâtir, expõe noções de resistência dos materiais e apresenta fórmulas para o cálculo matemático de estruturas simples.

que lhe é próprio e que conseqüentemente lhe garante um lugar à parte na esfera das atividades de caráter técnico7. A resposta é aparentemente simples, mas no contexto da época quer dizer muito. No romantismo em geral, como no pensamento saint-simoniano que Reynaud incorporou em suas grandes linhas, a arte tem um papel fundamental no processo cognitivo que Schlegel define como o “conhecimento a partir do todo”: a imaginação teórica e a arte que lhe dá acesso formam a um só tempo o início e o fim desse processo, confundindo-se com a própria filosofia e, portanto, estando acima da razão e da ciência. Para Reynaud, como também para muitos saint-simonianos, a arquitetura é uma manifestação artística que, retomando seu poder de falar à imaginação, pode contribuir mais do que qualquer outra forma de arte tanto para levar o público à compreensão da unidade orgânica do mundo quanto para aperfeiçoar cultural e socialmente a humanidade. Isto não significa que Reynaud desconheça ou subestime o valor da ciência e seu papel na arquitetura. Ao contrário, Reynaud foi um dos principais representantes do racionalismo estrutural do século XIX, figurando ao lado de nomes como Viollet-le-Duc e César Daly. Mais ainda, ele conhecia melhor do que qualquer outro arquiteto do seu século as ciências da construção, como testemunha o primeiro volume do Traité d’Architecture. Por razões profissionais, ele acompanhava de perto, como vimos, o processo de matematização das ciências do engenheiro, tendo sido aluno e depois colega, na Ecole de Ponts et Chaussées, de alguns dos principais responsáveis por esse desenvolvimento. Por exemplo, embora o imaginário científico de Violletle-Duc fosse mais abrangente que o domínio teórico de Reynaud, a ciência deste último era bem mais atualizada e mais complexa que a mecânica romanceada do autor do Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française. Se o racionalista Reynaud põe a arte acima da própria ciência, é porque ele, como antigo simpatizante da utopia saintsimoniana, acreditava que em um futuro não muito distante triunfaria o novo pensamento orgânico a cuja elaboração e difusão ele e alguns dos seus contemporâneos se dedicaram ao longo de suas vidas. Um pensamento no qual não haveria mais distinção entre ciência e arte, isto é, no qual arte e ciência constituiriam a um só tempo origem e fruto do potencial criador da imaginação teórica.

Da mesma forma, a noção de composição também não é a mesma nas duas obras. Ainda que Reynaud retome o termo que a esta altura já tinha se tornado sinônimo do método analítico de Durand, ele dálhe um sentido completamente diferente, como acabamos de observar acima. Ao invés de abandonar a noção de composição, o autor do Traité d’Architecture prefere introduzir um deslocamento teórico na própria concepção do termo, como se ele estivesse restituindo-lhe seu verdadeiro significado. Tudo se passa como se ele proclamasse sutilmente no seu tratado que uma composição analítica é por princípio inconcebível, e que por definição toda composição é orgânica, ou sintética. Uma forma não de convencer pelo argumento, que poderia gerar dúvidas e suspeitas, mas de estimular a imaginação e a inteligência do leitor, para que ele chegue por ele próprio aos fundamentos mais profundos da arquitetura, ou então se entregue inconscientemente a um novo pensamento que está além da razão. Justamente como deve ser o papel de toda arquitetura digna desse nome, isto é, de toda verdadeira obra de arte. Eis a dificuldade, mas também o prazer, de descobrir Reynaud. Uma nova concepção da arquitetura Se para Reynaud a arquitetura está além da ciência (de seu tempo, deve-se acrescentar), qual então seu lugar? Desde seu primeiro escrito, que data de 1834, ele responde sem hesitar que a arquitetura é uma arte: ela precisa ser útil e econômica, como qualquer outra atividade que faz uso da técnica, mas deve sobretudo falar à imaginação, papel aliás

Em suma, a concepção arquitetônica de Reynaud representa, em todos os sentidos, uma reviravolta total em relação à Durand, e mais geralmente a 308

Léonce Reynaud e a concepção teórica do Ecletismo no Rio de Janeiro

de seu tempo. Este paradoxo não decorre nem de um aparente desencontro entre teoria e realidade, nem muito menos de oportunismo intelectual, mas é parte integrante e relevante da teoria do autor. Para ele, como para os saint-simonianos, a arquitetura e, de modo geral a era orgânica do futuro somente poderiam ser atingidos após uma fase de transição, na qual conviveriam contraditoriamente os últimos resquícios do conhecimento analítico do passado e as primeiras luzes da cultura orgânica por vir. A seus olhos, o ecletismo constituía justamente esta arquitetura transitória e contraditória do intervalo inevitável entre uma época e outra, uma criação que, sem ter a força dos grandes estilos do passado, tinha o mérito de representar as condições de sua própria época (deve-se observar que, para os saintsimonianos, o papel da verdadeira arte não é representar sua época, mas estar adiante dela). Transitório e contraditório, o ecletismo já contém em germe a arquitetura orgânica do futuro, um potencial cuja evolução não é de forma alguma determinista (eis o abismo que separa os racionalismos de Reynaud e de Viollet-le-Duc), mas que precisa ser alimentado e cultivado pelas gerações futuras para florescer. Ou que pode fenecer, se o potencial orgânico do presente não for fertilizado nem criar raízes.

toda teoria do século XVIII, Quatremère de Quincy incluído. Rompendo com o utilitarismo e com o método analítico do Iluminismo, ele reatava com a concepção orgânica do vitruvianismo que, a partir de Alberti, inseriu a arquitetura no território da arte e da imaginação criadora. Não para voltar a uma tradição anterior que já estava superada, mas para atualizá-la, aprofundá-la e, principalmente, dar-lhe um novo conteúdo. Do mesmo modo que o Traité d’Architecture conserva a noção de composição para alterar seu significado, Reynaud não hesita, uma vez mais, em retomar a tríade albertiana solidez, comodidade e beleza. Para ele, como para Alberti, apenas a beleza é capaz de gerar um todo orgânico, razão pela qual ela constitui o coroamento do processo de composição arquitetônica. Porém, diferentemente de Alberti, a beleza é um meio privilegiado para “superar as lacunas da ciência” (palavras do próprio Reynaud, em outro contexto), conduzir a uma nova compreensão da natureza e promover o advento de uma nova cultura. Ou, dito de modo mais simples, para criar uma arquitetura orgânica e dinâmica capaz de avivar a sensibilidade do expectador, elevar o pensamento da sociedade que a criou e, conseqüentemente, contribuir para o aperfeiçoamento do homem e da sociedade. Um estilo transitório e contraditório A teoria de Reynaud apresenta-se na dupla perspectiva da fundamentação teórica da arquitetura de uma nova era orgânica e do papel da arquitetura em seu próprio tempo. A primeira dimensão fica deliberadamente mais oculta que aparente e dirigia-se aos poucos leitores interessados em desvendá-la; ela permanecia acessível somente a quem a procurasse, isto é, a quem estabelecesse as conexões necessárias com o contexto cultural que lhe deu origem (conexões estrategicamente excluídas da exposição). O segundo aspecto, inversamente, destinava-se ao público mais amplo que se interessava apenas pelas questões arquitetônicas da época ou simplesmente pela prática profissional. Como provavelmente calculado pelo autor, foi este ponto de vista que assegurou o reconhecimento do Traité d’Architecture pelos contemporâneos, bem como sua aprovação oficial pela Academia. Aprovação que, por outro lado, gerou recentemente a desconfiança de alguns historiadores a respeito do caráter racionalista da doutrina de Reynaud8.

O Traité d’Architecture apresenta enfim, de forma muito sutil é verdade, uma fundamentação teórica para o ecletismo de seu tempo. Isso não quer dizer que seu papel seja apenas teórico, ao contrário, para Reynaud sua relevância é também e sobretudo estética. Se, por um lado, a arquitetura eclética incorpora o progresso contemporâneo da ciência e da técnica à arquitetura, sem todavia se submeter a ele nem glorificá-lo, por outro ela se põe clara e incondicionalmente do lado da arte. Para ele, é justamente graças à valorização da arte que o estilo do século XIX pode contribuir para a superação das contradições históricas do qual ele é fruto e que ele põe em evidência. Defendendo e difundindo a imaginação estética, ele favorece indireta e originariamente a tomada de consciência da unidade orgânica da natureza como do conhecimento. Ou, dito de outro modo, o ecletismo seria o primeiro e importante passo para transformar o homem e a natureza através da arte e, mais geralmente da cultura. Em um país ávido de progresso mas sem capacidade industrial nem infraestrutura, como era o caso do Brasil na passagem do século XIX ao XX, o ecletismo oferecia justamente essa possibilidade de estimular a evolução da sociedade através da arte, isto é, de utilizar a arte como

Ainda que o Traité d’Architecture não fizesse o elogio da arquitetura eclética, distanciando-se assim de César Daly que expõe a apologia do estilo nas páginas da sua Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics, a obra era indireta mas francamente favorável ao ecletismo 309

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

instrumento para fomentar o próprio progresso. Daí o sucesso e a rápida propagação do estilo do lado de cá do Atlântico, e particularmente no Rio de Janeiro que, além de capital, abrigava uma escola de Belas Artes estreitamente ligada ao modelo francês. Triunfo que, olhando de perto, não se deve apenas nem principalmente ao fato que o ecletismo tornou-se símbolo do poder, como foi aventado por alguns historiadores 9 . Reynaud não tem, naturalmente, nenhuma relação com a introdução do novo estilo no Brasil, mas, em um segundo momento, e mais do que no próprio continente de origem, seu ponto de vista sobre a arquitetura eclética não apenas fundamentava o papel que já lhe era atribuído, mas principalmente propiciava uma compreensão mais profunda tanto do potencial da arte quanto do potencial histórico do próprio país.

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No estado atual da pesquisa, ainda não é possível estabelecer até que ponto a teoria de Reynaud foi incorporada pelos arquitetos cariocas do período em questão. Mas a fecundidade de um pensamento também pode ser conhecida através dos frutos que ele produziu. Sabe-se hoje que a contradição, a complexidade e, podemos acrescentar, o potencial criador da arte que emanam da primeira arquitetura moderna brasileira (1936-45) estão diretamente relacionados à profunda compreensão e aplicação da teoria eclética pelos arquitetos da geração moderna formada na Escola Nacional de Belas Artes nas décadas de 1920 e 3010. No contexto histórico evocado acima, a imaginação estética que deu origem a essa arquitetura demonstra indireta mas claramente, a nosso ver, que a concepção teórica da arquitetura no ecletismo carioca deve muito a Reynaud.

Notas 1 Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina, Mestre em História da Arte pela Unicamp e doutorando na Universidade de Paris 1/Sorbonne. Publicou Por uma História Não Moderna da Arquitetura Brasileira, Campinas, Pontes/ Unicamp, 1998. 2 M. Puppi, Por uma História Não Moderna da Arquitetura Brasileira, Campinas, Pontes/Unicamp, 1998. 3 Para um balanço metodológico dos estudos decorrentes da nova história cultural do século XIX, ver M. Puppi, “A nova história do século XIX e a redescoberta da dimensão imaginária da arquitetura”, Arquitextos, São Paulo, março 2005. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/ arquitextos/arq058/arq058_02.asp 4 L. Reynaud, Traité d’Architecture, Paris, Carilian-Goeury et Dalmont, 1850-1858, reeditado em 1860-63, 1867-1870 e 1875-1880. 5 Sobre a relação entre a teoria de Durand e o contexto científico e cultural do Iluminismo, ver A. Picon, “From ‘Poetry of Art’ to method : the theory of Jean-Nicolas-Louis Durand”. J.-N.-L. Durand, Précis of the Lectures on Architecture, Los Angeles, The Getty Research Institute, 2000, pp. 1-68. 6 Sobre a evolução do ensino na Ecole Polytechnique na primeira metade do século XIX, ver B. Belhoste, “Un modèle à l’épreuve. L’Ecole polytechnique de 1794 au Second Empire”, in B. Belhoste, A. Dahan Dalmedico, A. Picon (org.), La Formation Polytechnicienne, 1794-1994, Paris, Dunod, 1994, pp. 9-30. Sobre a evolução do ensino de arquitetura nas escolas de engenheiro, no mesmo período, ver A. Picon, L’Invention de l’Ingénieur Moderne. L’Ecole des Ponts et Chaussées, 1747-1851, Paris, Presses de

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Léonce Reynaud e a concepção teórica do Ecletismo no Rio de Janeiro l’Encyclopédie Nouvelle. Amphion, Paris, Picard, 1987, v. 1, pp. 137-145. 9 Ver G. R. del Brenna, Ecletismo no Rio de Janeiro (séc. XIX-XX). Ecletismo na Arquitetura Brasileira, São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, pp. 29-66. 10 Sobre a relação entre a teoria do século XIX e a arquitetura moderna brasileira no período 1936-45, ver C. E. Comas, Précisions Brésiliennes sur un Etat Passé de l’Architecture et de l’Urbanisme Modernes, tese de doutorado apresentada na Universidade de Paris VIII, 2002.

l’Ecole Nationale des Ponts et Chaussées, 1992, pp. 528563. 7 L. Reynaud, “Architecture”. Encyclopédie Nouvelle, t. I, Paris, Librairie de Charles Gosselin, 1836, pp. 770-778 (editado originalmente em 1834, em fascículo). 8 R. Middleton considera que, em relação ao ponto de vista racionalista exposto em 1834 pelo próprio Reynaud no verbete “Architecture” da Encyclopédie Nouvelle, o Traité d’Architecture representa uma regressão ao classicismo conservador da Academia. Ver R. Middleton, “Rationalisme et historicisme : un article de L. Reynaud pour

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Qualquer abordagem da arte brasileira no século XIX terá forçosamente o foco principal na produção relacionada à Academia Imperial de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Entretanto, as reflexões apresentadas a seguir voltam-se para uma outra faceta da arte do século XIX: as manifestações ligadas à emergência do Romantismo, corrente da qual John Ruskin é um dos mais famosos epígonos, como se sabe. A posição aqui adotada é a de que a arte – e mais especificamente a arquitetura - do século XIX tem que ser compreendida à luz do longo processo de transformação social que se inicia no final do século XVIII, manifestando-se ao longo do Oitocentos em movimentos arquitetônicos formalmente diversificados, mas que seguem uma direção comum: o paulatino colapso do sistema cultural clássico - sistema vigente, em sucessivas releituras, até então. Tais movimentos reportam-se à emergência de duas tendências de pensamento que estão se delineando em paralelo ao conjunto de profundas transformações políticas, econômicas e sociais que desembocará na ‘Dupla Revolução’ (HOBSBAWM), na segunda metade do Dezoito. o pensamento de john ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920 maria lucia bressan pinheiro

Reportando-nos especificamente à repercussão na arquitetura destas transformações, centraremos nossa argumentação, por razões didáticas, nos contextos individualizados da França e da Inglaterra. Entretanto, é importante ressaltar o constante intercâmbio entre os dois países, bem como seus diálogos contínuos no campo da arquitetura 2.

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Inicialmente, é imprescindível lembrar, com BENEVOLO (1974), que a arquitetura encontravase, já há três séculos, condicionada por um sistema de regras – deduzidas em parte da Antiguidade e em parte da tratadística do Renascimento – consideradas universais e permanentes, baseadas na natureza das coisas e na experiência da antiguidade concebida como segunda natureza. O Classicismo – ou a autoridade deste sistema de regras – é que será paulatinamente questionado pelas tendências de pensamento mencionadas acima, a saber: a tradição francesa, decorrente de uma tendência cartesiana à clareza e à certeza matemática, que desabrochará, por assim dizer, no Iluminismo; e a tradição empirista inglesa, firmemente ancorada na realidade e na natureza. A bem da verdade, entretanto, o contexto de crise que levará à perda daquele conjunto de “formas normatizadas extraídas da Antiguidade Clássica” (BENEVOLO, 1981:7) já está instaurado desde o final do século XVII, e pode ser evidenciado pela 312

O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

recusa de Luís XIV ao projeto por ele encomendado a Gian Lorenzo Bernini, o mais renomado arquiteto da época, para a ala leste do palácio do Louvre, em 1660. A reforma efetivamente realizada no palácio é atribuída ao médico Claude Perrault – que, na justificativa do projeto, menciona as colunas góticas da Catedral de Notre Dame como uma de suas fontes de inspiração. A par de prenunciar uma incipiente reabilitação da arquitetura gótica, o episódio assinala claramente uma mudança fundamental de orientação na cultura européia: a transferência do centro de hegemonia cultural – até então localizado na Itália – para a França.

sobre a natureza humana, sua psicologia e suas sensações, e à revalorização da imaginação e do sentimento. A obra emblemática desta tendência é The pleasures of imagination (1712) de John Addison, que, por sua vez, inspira-se nas formulações teóricas do empirismo inglês, de Berkeley e de Locke. Addison afirma que a beleza das ordens clássicas não está em suas abstratas proporções matemáticas, e sim na riqueza de associações histórico-literárias e ético-religiosas que relacionamos a tais formas (PATETTA, 1997: 308-309). Desta vertente desenvolvem-se as noções alternativas, por assim dizer, de beleza, que exerceriam importante papel não só nas idéias estéticas do século XVIII, mas também na emergência do Romantismo do século XIX. Aqui, cabe mencionar a obra A philosophical enquiry into the origins of the Sublime and Beautiful (1756), de Edmund Burke, para quem o Belo é um valor que não se refere ao intelecto e sim à esfera dos sentimentos; as proporções e a perfeição geométrica e matemática concernem somente à esfera lógico-intelectual, não se configurando como qualidades estéticas. A arte, ao contrário, deve suscitar emoções, e sobretudo inspirar estupor com a variedade e a novidade.

Na mesma direção situa-se a fundação da Academia de Arquitetura Francesa, em 1671, dentro do espírito normatizador de Luís XIV. A própria necessidade de criar um órgão investido da atribuição de conceituar e regulamentar a arquitetura prenuncia o debate sobre a validade das normas clássicas e da própria Antiguidade como modelo artístico, que logo se instaurou a partir da publicação de obras como o tratado de René Ouvrard, de 1677, no qual o autor estabelecia uma analogia entre as proporções matemáticas da música e as proporções da arquitetura, afirmando que “o que fere o ouvido em uma, fere o olho em outra”. Destaca-se aí a obra Ordonnance des Cinq Espèces de Colonnes (1683), do já citado Claude Perrault, na qual o autor estabelecia uma distinção entre dois tipos de beleza: a beleza absoluta – “convincente, mecânica e inevitável”- e a beleza arbitrária, que “depende da predisposição” (apud RYKWERT, 1983:41-42).

A imediata incorporação destas idéias pelo paisagismo inglês do período – consubstanciada no famoso ‘jardim pitoresco’ - contribui para o delineamento de uma ênfase tipicamente inglesa no meio-ambiente, entendido não só como o cenário físico – rural ou urbano – onde a obra arquitetônica se insere, mas também como seu contexto histórico. Tais idéias são explicitadas já em 1709 pelo arquiteto inglês John Vanbrugh, que, em seu projeto para o Palácio de Blenheim, preconizou a preservação das ruínas pré-existentes no terreno, afirmando que os edifícios de tempos distantes “inspiram reflexões mais vivas e agradáveis sobre as pessoas que viveram neles; sobre as coisas notáveis que neles tiveram lugar, ou sobre as circunstâncias extraordinárias da sua construção” do que a história pode fazer, sem a sua ajuda (MIDDLETON & WATKIN, 1993:35).

Perrault introduz, assim, uma variável subjetiva – o Gosto – no debate arquitetônico francês. Podese dizer que, em certa medida, a beleza deslocase do objeto – onde sempre parecera residir – para o sujeito, abrindo o caminho para a introdução da psicologia e das emoções humanas nas noções estéticas. Mas, neste momento inicial, a polêmica se dá entre os adeptos do emprego ‘literal’ das formas derivadas da Antiguidade Clássica – posição predominante na Academia francesa – e os progressistas, adeptos do emprego ‘racional’ das formas clássicas, admitindo sua possibilidade de aperfeiçoamento e atualização, inclusive através do recurso à arquitetura gótica, como Perrault.

Poderes evocativos, narrativos ou literários são, portanto, atribuídos à arquitetura como parte de algo mais – como um incidente histórico ou na paisagem – ficando aberto o caminho para todo tipo de associações românticas entre meioambiente e as emoções humanas. Sublinhe-se, aqui, a evidente vinculação entre tais noções e a transformação e degradação aceleradas da natureza, que é uma das primeiras e mais evidentes conseqüências da Revolução Industrial.

Tendo delineado as características do debate francês – que tenderá a aprofundar-se com a mediação da Ilustração, disposta a discutir o saber instituído, fazendo-o passar pelo crivo da razão (BENEVOLO, 1974:23) -, cabe examinar a outra tendência apontada anteriormente: a tradição inglesa, ligada às noções estéticas do sublime e do pitoresco, que surge dos primeiros estudos 313

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

É neste contexto que surge a figura de John Ruskin (1819-1900), que compartilha claramente das idéias acima mencionadas de Vanbrugh, como se pode verificar no trecho a seguir:

Diante da abrangência de temas enfocados por John Ruskin, de suas idiossincrasias pessoais, e de seu radicalismo e veemência, pode-se imaginar as inúmeras polêmicas nas quais esteve envolvido. Porém, sua obra escrita sempre gozou de grande prestígio e popularidade, a ponto da venda de seus livros constituir sua principal fonte de renda ao final de sua vida, quando já se esgotara a grande herança que recebera de seu pai (estimada entre 150 e 200.000 libras) 4 - empenhada em sua maior parte em causas sociais, e também - em escala incomparavelmente menor, é verdade – em contribuições financeiras para a causa preservacionista5.

Como é fria toda a história, como é sem vida toda fantasia, comparada àquilo que a nação viva escreve, e o mármore incorruptível ostenta! – quantas páginas de registros duvidosos não poderíamos nós dispensar, em troca de algumas pedras empilhadas umas sobre as outras! (1989:178) 3 Quase exatamente contemporâneo da Rainha Vitória (1819-1901), Ruskin viveu durante o auge do poderio econômico e militar da Inglaterra – “o melhor e o pior dos tempos”, no dizer de Dickens , configurando-se como uma das mais emblemáticas e controvertidas figuras daquele conturbado período, em que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, como magistralmente escreveu Karl Marx.

Assim, não é de todo surpreendente constatar a ressonância de seu livro As Sete Lâmpadas da Arquitetura em um âmbito tão distante da Inglaterra vitoriana quanto o panorama cultural brasileiro das primeiras décadas do século XX, principalmente entre os adeptos do Neocolonial. O livro foi escrito por Ruskin em 1849, “no olho do furacão”, vendo o mundo em que fora criado esboroando-se à sua volta. Sua principal preocupação é a dissolução de valores e princípios – morais e estéticos, e viceversa, já que ambos são indissociáveis em seu pensamento - nos quais acreditava profundamente, procurando a todo custo preservá-los das transformações em curso. Particular atenção merece A Lâmpada da Memória, no qual se encontra o poderoso libelo de Ruskin contra a restauração de edifícios, tal como era praticada no século XIX:

Excêntrico, reacionário, intransigente inimigo da industrialização – diz-se que não admitia que nem sequer os seus livros fossem transportados por ferrovia -, Ruskin foi um dos maiores expoentes da crítica romântica, de cunho socialista, à sociedade capitalista industrial e suas evidentes mazelas miséria generalizada, injustiça social, inchaço urbano, destruição da natureza, entre outras -, e sua contribuição foi essencial para as correções de rumo que, pouco a pouco, foram feitas em termos de reformas sociais, urbanísticas, de proteção ao meio ambiente, etc.

Nem pelo público, nem por aqueles que são responsáveis por monumentos públicos, o verdadeiro sentido da palavra restauração é entendido. Significa a mais total destruição que um edifício pode sofrer; uma destruição após a qual nenhum remanescente pode ser reunido; uma destruição acompanhada de uma falsa descrição do objeto construído. Não nos deixemos enganar nesse assunto importante; é impossível, tão impossível quanto ressuscitar os mortos, restaurar qualquer coisa que tenha sido grande ou bela em arquitetura. (1989:194195)

Entretanto, para além da dimensão política – talvez a mais conhecida – dos múltiplos interesses de John Ruskin, não menos importante é sua reflexão sobre o papel da arquitetura, e sua preservação, para a sociedade moderna; reflexão por vezes obscurecida pela generalizada aversão contemporânea ao exacerbado romantismo oitocentista, do qual constitui um dos pilares. Em que pese tal preconceito, o pensamento de Ruskin aponta para várias questões ainda extremamente pertinentes para o debate arquitetônico atual. De fato, tendo iniciado sua carreira como crítico de arte, suas idéias evoluíram paulatinamente para o campo da política, assumindo um cunho socialista ao defenderem questões tão atuais como: ensino público obrigatório; nacionalização da produção e do comércio dos bens de consumo elementar, em um regime de coexistência e concorrência com a iniciativa privada; seguro-desemprego; previdência social para invalidez e velhice.

As idéias contidas na Lâmpada da Memória constituem, assim, a base daquela tendência inglesa conhecida entre nós como Movimento Antirestauração6. Alicerçado em todas as Lâmpadas da Arquitetura, porém mais especificamente vinculado à Lâmpada da Memória, o movimento – como seu nome já indica – coloca-se radicalmente contra a restauração, advogando em contrapartida o cuidado e a manutenção constantes aos monumentos, como se vê no trecho a seguir: 314

O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

finalidade mais importantes do que quaisquer outros pertencentes a sua mera beleza sensível, podem ser colocados entre suas características mais puras e essenciais; tão essenciais, em minha opinião, que eu penso que não se pode considerar que um edifício tenha atingido sua plenitude antes do decurso de 4 ou 5 séculos... (1989:193)

Cuide bem de seus monumentos, e você não precisará restaurá-los. Algumas chapas de chumbo colocadas a tempo num telhado, algumas folhas secas e gravetos removidos a tempo de uma calha, salvarão tanto o telhado como as paredes da ruína. Zele por um edifício antigo com ansioso desvelo; proteja-o o melhor possível, e a qualquer custo, de todas as ameaças de dilapidação. Conte as suas pedras como se fossem as jóias de uma coroa; coloque sentinelas em volta dele como nos portões de uma cidade sitiada; amarre-o com tirantes de ferro onde ele ceder; apóie-o com escoras de madeira onde ele desabar; não se importe com a má-aparência dos reforços: é melhor uma muleta do que um membro perdido; e faça-o com ternura, e com reverência, e continuamente, e muitas gerações ainda nascerão e desaparecerão sob a sua sombra. Seu dia fatal chegará finalmente; mas que chegue declarada e abertamente, e que nenhum substituto desonroso e falso prive o monumento das honras fúnebres da memória.(1989:196-197)

O tema reaparece na década de 1920, como se vê no artigo Chafarizes do Rio de Janeiro, em que o gravador Adalberto de Mattos, realizando uma peregrinação imaginária pelos chafarizes cariocas, constata: Bem raras são as vetustas recordações históricas que conservam o cunho característico e tradicional. Tudo tem mudado, mais ou menos dentro do prisma estético, deste ou daquele administrador. As grades dos nossos jardins, a cantaria dos nossos edifícios aí estão, clamando piedade. Os nossos monumentos acompanham em coro esses queixumes. A impiedade os atinge, emprestando-lhes um aspecto de mascarada. Para simular um amor que não existe, lançam mão da escova e dos cáusticos, com que inutilizam as pátinas, preciosa colaboração do tempo. Exemplo vivo desse sacrilégio é o soberbo monumento de D. Pedro I, que, de vez em quando, é violentamente esfregado, para em seguida serem os seus dourados avivados com o fatídico ouro banana!... (1921: s/p.)

Tais conceitos ruskinianos sobre a importância dos edifícios antigos e sua conservação - em oposição a qualquer idéia de intervenção restaurativa - estão presentes em data tão precoce quanto 1904, no relatório sobre Os reparos nos Fortes de Bertioga, preparado por Euclides da Cunha para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo: Trata-se de conservar duas grandes relíquias, que compensam a falta absoluta de qualquer importância estreitamente utilitária, com o incalculável valor histórico que lhes advém das nossas mais remotas tradições.

A menção ao ouro ‘banana’ – sucedâneo barato do metal precioso, visualmente espalhafatoso e artificial – remete a considerações feitas mais ou menos na mesma época por um jovem arquiteto bastante próximo do círculo neocolonial carioca, liderado pela polêmica figura de José Mariano Filho: Lúcio Costa.

Compreende-se, porém, que tais reparos tendam apenas a sustar a marcha das ruínas. Quaisquer melhoramentos ou retoques, que se executem, serão contraproducentes, desde que o principal encanto dos dois notáveis monumentos esteja, como de fato está, na sua mesma vetustez, no aspecto característico que lhe imprimiu o curso das idades.(1966:677680.)

Em seu artigo A alma dos nossos lares, Costa condenava o ideal de perfeição doméstica então vigente, em que imperava o apreço pelo “novinho”, “pintadinho”, “bonitinho”, afirmando: O ideal em arquitetura doméstica não é essa casa de aspecto eternamente novo, reluzente, lustrada, polida, que parece gritar-nos: ‘Cuidado, não me toquem! Cuidado com a tinta!’ Não... longe disso. A verdadeira casa é aquela que se harmoniza com o ambiente onde situada está, que tem cor local; aquela que nos convida, que nos atrai, e parece dizer-nos: Seja bem vindo! (1924:1)

Euclides da Cunha toca aqui na questão da pátina, que Ruskin considera um dos principais aspectos a serem preservados num edifício; a pátina teria exatamente esta função, mais nobre nela do que em qualquer outro objeto: a de evidenciar a idade do edifício – aquilo que, como já foi dito, constitui a sua maior glória; e, portanto, os sinais exteriores desta glória, tendo poder e 315

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Continua Lucio Costa, com palavras que ecoam as de Ruskin, quando o inglês preconiza que as casas de moradia “expressem o caráter e ocupação de cada homem, e parte de sua história”, evidenciando a noção de empatia entre a edificação e o morador – tão cara ao pensamento ruskiniano:

Alguns reclamam que, para compor a arquitetura monumental de uma cidade moderna, são necessários os moldes clássicos consagrados das obras-primas da humanidade, aplicando cada arquiteto o estilo a que o seu talento pode dar mais intensa expressão artística; essa deveria ser a fonte da inspiração - a arte é universal e não nacional. Mesmo quando seja justa esta maneira de ver, há que ponderar que o caráter de uma cidade não lhe é dado pelos seus monumentos, colocados em pontos dominantes, grandes praças ou lugares históricos. Ligam esses locais as ruas e avenidas, marginadas por casas de variado destino; e são estas que dão a característica arquitetônica da cidade; com efeito, o monumento é uma exceção, a casa é a nota normal da vida quotidiana do cidadão, é como uma lápide epigráfica da sua ascendência e da sua história.(1916:79-81)

Com o mesmo amontoado de moedas que se faz uma casa pretensiosa, inexpressiva e fria, de uma complicação que nada exprime... podese fazer uma jóia de arquitetura, um paraíso onde se viva; uma casa rica de simplicidade, de beleza, de conforto; que pareça viver conosco e conosco sentir; que tenha personalidade; que esteja em harmonia com o temperamento daquele que nela mora... Uma casa que tenha alma, enfim. Aliás, a arquitetura residencial – ou doméstica, como ele prefere – é tema cara ao pensamento ruskiniano. De fato, Ruskin considera que é ela que “dá origem a todas as outras” e “que não desdenha tratar com respeito e consideração a pequena habitação, tanto quanto a grande, e que investe com a dignidade da humanidade satisfeita a estreiteza das circunstâncias mundanas. (1989:181)

Tal referência a Ruskin pode ser retraçada a partir das afinidades entre Ricardo Severo e o movimento da “Casa Portuguesa” – movimento de valorização da arquitetura vernácula portuguesa apoiado pelo historiador Rosa Peixoto e pelo arquiteto Raul Lino - estabelecidas quando de sua estadia em Portugal entre 1897 e 1907. Raul Lino, cujas idéias alcançaram certa repercussão no Brasil através da obra A Nossa Casa – Apontamentos sobre o Bom Gosto na Construção das Casas Simples e de artigos difundidos na imprensa especializada, estudou arquitetura na Alemanha, onde teve contato também com a tendência romântica inglesa de matriz ruskiniana ligada ao Arts & Crafts8.

Ruskin gostaria que nossas casas de moradia usuais fossem construídas para durar e construídas para serem belas; tão ricas e cheias de atrativo quanto possível, por dentro e por fora; [...] mas, de todas as formas, com diferenças tais que estejam de acordo com, e expressem o caráter e ocupação de cada homem, e parte de sua história.(1989:182)

As idéias de Ricardo Severo, por sua vez, contagiaram aquele que viria a tornar-se o principal paladino da arte e da cultura genuinamente brasileiras: Mário de Andrade, que, neste início da década de 1920, entusiasmou-se grandemente com o Neocolonial9. Em 1920, após empreender uma viagem a Minas Gerais, Mário escreveu uma série de artigos invocando nominalmente a autoridade de Severo como estudioso da arquitetura colonial brasileira 10. Significativamente, o trecho da conferência A Arte Tradicional no Brasil acima citado, relativo à importância da arquitetura doméstica, chegou a ser então transcrito por Mário:

Diz ainda que Até hoje, a atração de suas mais belas cidades [da Itália e da França] reside não na riqueza isolada de seus palácios, mas na decoração requintada e cuidadosa das menores moradias de seus períodos de maior esplendor. A mais elaborada peça de arquitetura em Veneza é uma pequena casa no começo do Grande Canal, consistindo de um piso térreo e dois andares superiores, com três janelas no primeiro piso, e duas no segundo.(1989:182)

Os grandes monumentos podem ser construídos nos estilos que se universalizaram mais ou menos pela sua beleza. Não modifica a feição duma cidade brasileira que lhe seja a catedral de estilo gótico. A justificativa da nossa estaria nas próprias palavras do Sr. Ricardo Severo, apóstolo do estilo neocolonial, quando diz: ‘o caráter duma cidade não lhe é dado pelos

Ora, precisamente este trecho parece ter inspirado o engenheiro português Ricardo Severo, o epígono do movimento neocolonial em São Paulo, como se pode ver no seguinte trecho de sua conferência A Arte Tradicional do Brasil 7:

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O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

Pois, de fato, a maior glória de um edifício não está em suas pedras, ou em seu ouro. Sua glória está em sua Idade, e naquela profunda sensação de ressonância, de vigilância severa, de misteriosa compaixão, não, até mesmo de aprovação ou condenação, que nós sentimos em paredes que há tempos são banhadas pelas ondas passageiras da humanidade. [Sua glória] Está no seu testemunho duradouro diante dos homens, no seu sereno contraste com o caráter transitório de todas as coisas, na força que através da passagem das estações e dos tempos, e do declínio e nascimento das dinastias, e da mudança da face da terra, e dos contornos do mar - mantém sua forma esculpida por um tempo insuperável, conecta períodos esquecidos e sucessivos uns aos outros, e constitui em parte a identidade, por concentrar a afinidade, das nações. É naquela mancha dourada do tempo, que nós devemos procurar a verdadeira luz, a cor, e o valor da arquitetura; e não antes que um edifício tiver assumido este caráter – apenas quando ele tiver se imbuído da fama dos homens, e se santificado pelos seus feitos; apenas quando suas paredes tiverem presenciado o sofrimento, e seus pilares ascenderem das sombras da morte - é que sua existência, mais duradoura do que a dos objetos naturais do mundo ao seu redor, poderá ser agraciada com os mesmos dons de linguagem e de vida que estes possuem. (1989:186-187)

seus monumentos, colocados em pontos dominantes, grandes praças ou lugares históricos.... (apud KRONBAUER, 1993:94) Trata-se, portanto, exatamente daquele trecho em que é evidente a influência da Lâmpada da Memória, como vimos. Embora o tom geral destes artigos esteja distante da espontaneidade e ousadia intelectual que viriam a caracterizar a obra de Mário de Andrade, assomam aqui e ali pontos de vista pouco convencionais em seus comentários principalmente sobre as igrejas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, que visitara pessoalmente. Comparou, por exemplo, a Igreja de São Bento do Rio de Janeiro com “a caverna dos Nibelungos”; considerava São Francisco da Penitência “positivamente feia”, devido a seu “aspecto exterior bisonho e desajeitado”. Seu interior, porém, era digno de elogios; Mário o comparou a uma casa de moradia: “...apesar de totalmente dourada, é afetuosa, é alegre, tem um ar familiar de quem diz: Sente-se. A casa é sua” (KRONBAUER, 1993:6970). Estes mesmos trechos nos remetem novamente a outros trechos de Ricardo Severo, em que o engenheiro português demonstra compartilhar das noções associativas de Beleza tão exploradas por Ruskin: Na arquitetura de uma casa são partes integrantes da sua armadura externa o telhado e os muros, como na cara os cabelos e o rosto, e são órgãos de expressões as janelas e as portas, como os olhos e a boca, dando a característica da sua fisionomia. Assim, há casas de amoroso semblante que parecem ninhos perpétuos de idílios e noivados, outras de aspecto hospitaleiro e generoso como fraternais albergues, graves algumas e sisudas como tribunais ou cadeias, outras ainda que são antipáticas e repulsivas, e mais raramente algumas que por soturnas e misteriosas, como habitações de duendes, só causam assombração e desgraça.(1916:54-55)

A influência do pensamento de John Ruskin é igualmente evidente nos escritos do médico pernambucano José Mariano Filho, mentor intelectual do Neocolonial no Rio de Janeiro e um dos primeiros a ensaiar uma abordagem da arquitetura colonial a partir de seus condicionantes de partido - técnicas e recursos disponíveis, características climáticas do país, etc. (o que ele chama de “arquitetura mesológica”). A despeito de suas inúmeras incorreções a esse respeito, é inegável sua postura de valorização daquilo que é específico, local, nacional, expressa em inúmeros artigos, como A Nossa Arquitetura: Que espírito é esse que emoldura docemente num quadro de tranqüila beleza as velhas cidades de antanho? Por que motivo inexplicável o velho solar da marquesa de Santos é mais nobre, mais “nosso”, do que o caricato Pavilhão Monroe? [...] É o espírito do passado; e é a esse espírito que eu chamo o “caráter” na arquitetura colonial.

Ora, embora privilegiasse as associações morais, em alguns trechos Ruskin também faz associações de cunho psicológico. Na Lâmpada do Poder, por exemplo, compara os matacães em balanço do Palazzo Vecchio, de Florença, a um cenho franzido (1989:76). Porém, o trecho que melhor caracteriza a abrangência da concepção ruskiniana de empatia entre o homem e o meio ambiente encontra-se ainda na Lâmpada da Memória:

As evidentes referências pictóricas remetem-nos ao Setecentos; mas a menção ao “espírito do 317

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

passado” leva-nos diretamente às idéias de Ruskin. Aliás, o próprio Mariano Filho encarrega-se de citálo nominalmente ao longo do artigo, quando trata da verdade dos materiais e o anti-convencionalismo das arquiteturas locais:

velho caráter dos seus monumentos. A isso seria mil vezes de preferir a ruína, que destrói a matéria mas respeita a alma.(1928:s/p.) Como se vê, as idéias de John Ruskin influenciaram literatos e intelectuais de várias tendências, ainda que manifestem-se mais consistentemente no círculo de adeptos do neocolonial, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro – onde se inclui Lúcio Costa, que, como vimos, revela-se leitor atento de Ruskin ao longo de toda a década de 1920.

A simplicidade desse casarão provém daquele discreto equilíbrio de massas de que os grandes mestres possuem a justa medida. Tudo nele é verdade. Tudo tem a sua razão de ser, a sua lógica, o seu sentido. O pátio estabelece a corrente de ar entre o claustro e os aposentos que lhe estão em torno. O alpendre alviçareiro quebra a tranqüilidade da fachada engrinaldada de trepadeiras virentes. Ruskin, o gótico, o teria canonizado sob a luz serena das sete lâmpadas eternas da arquitetura.(1922:s/p.)

De fato, no artigo O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional, de 1929, encontram-se alguns dos trechos mais genuinamente ruskinianos do período, como: Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa, a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam dentro de nós, não sei. (COSTA, 1962:15)

Mariano Filho também revela-se partidário de uma postura não intervencionista, de respeito à manutenção das características arquitetônicas e da dignidade dos monumentos, como se vê no artigo sobre a demolição do Solar de Megaípe, uma das primeiras vítimas da ampliação do debate preservacionista no país11:

Ao exaltar aquilo que é essencial na arquitetura colonial brasileira - o “verdadeiro espírito de nossa gente” - em detrimento do decorativismo que atribuía ao artista mineiro, Lúcio Costa investiu corajosamente neste artigo contra o único ícone então reconhecido da arquitetura colonial brasileira:

Com a arte brasileira acontece exatamente o que está acontecendo com as florestas brasileiras. Discursos, poesias, e devastação por fim. [...] Chegou a vez [de Megaípe]. Ao menos não lhe profanaram o corpo, como ao velho edifício da rua do Passeio, onde funcionou a Maçonaria brasileira, hoje loja de automóveis. Transformavam-lhe a metade inferior numa “boutique” moderna, revestida de pedra artificial, e deixaram a parte superior tal como a havia concebido o grande arquiteto Grandjean de Montigny. Megaípe, ao menos, não sofreu o aviltamento de vestir roupas canalhas. Morreu com dignidade.(1943:35)

E é assim que a gente compreende que ele [o Aleijadinho] tinha espírito de decorador, não de arquiteto. O arquiteto vê o conjunto, subordina o detalhe ao todo, e ele só via o detalhe, perdiase no detalhe, que às vezes o obrigava a soluções imprevistas, forçadas, desagradáveis.(1962:14 -15) Ora, suas críticas ao Aleijadinho tem claras afinidades com a advertência, contida na Lâmpada da Beleza – o quarto capítulo das Sete Lâmpadas -, sobre o perigo da sedução do ornamento escultórico para o arquiteto:

É de destacar, aí, a comparação entre a arte e o meio ambiente natural brasileiros – numa incipiente denúncia que não tem paralelo então.

No momento em que o arquiteto se permite dar ênfase às porções de imitação [os ornatos copiados da natureza], existe uma chance de que ele perca de vista o dever do ornamento, de seu papel como parte da composição, e sacrifique os pontos de sombra e efeito pelo prazer da talha delicada. E então ele está perdido. (RUSKIN, 1989:135)

Um seu conterrâneo, o poeta modernista Manuel Bandeira, também compartilha da mesma postura, ao alertar, em 1928, para a necessidade de proteção do patrimônio da cidade de Ouro Preto: Essa tradição é que cumpre zelar. Não permitir que os seus templos se arruinem, como está acontecendo com a deliciosa capelinha do Padre Faria, contemporânea dos primeiros descobrimentos de ouro. Sobretudo não consentir nas restaurações depredadoras do

O desfavor das idéias de matriz ruskiniana fica, por outro lado, evidente a partir das palavras do mesmo Lúcio Costa, anos depois, quando, 318

O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

descartando seu envolvimento com o neocolonial, tachou-o de “ruskinismo retardado”, na conhecida passagem do artigo Depoimento de um arquiteto carioca, de 1951.

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Foi contra essa feira de cenários arquitetônicos improvisados que se pretendeu invocar o artificioso revivescimento formal do nosso próprio passado, donde resultou mais um pseudo-estilo, o neocolonial, fruto da interpretação errônea das sábias lições de Araújo Viana, e que teve como precursor Ricardo Severo e por patrono José Mariano Filho. Tratava-se, no fundo, de um retardado ruskinismo, quando já não se justificava mais, na época, o desconhecimento do sentimento profundo implícito na industrialização, nem o menosprezo por suas conseqüências inelutáveis. Relembrada agora, ainda mais avulta a irrelevância da querela entre o falso colonial e o ecletismo dos falsos estilos europeus: era como se, no alheamento da tempestade iminente, anunciada de véspera, ocorresse uma disputa por causa do feitio do toldo para o ‘garden-party’. (COSTA, 1962:185, grifo nosso) Apesar de desdenhar então esta matriz comum – o pensamento romântico do século XIX em geral, e de John Ruskin em particular -, não seria surpreendente se estudos posteriores vierem a constatar que ela teve significação maior do que o próprio Costa mostrava-se disposto a admitir. Afinal, as idéias de Ruskin, filtradas pelo grupo Arts & Crafts, constituem parte dos fundamentos da própria arquitetura moderna12. Não deixa de surpreender esta ascendência de John Ruskin no contexto brasileiro dos anos 1920, com tal ênfase na dimensão física da preservação de monumentos, por se tratar de um campo pouquíssimo explorado no período. Tal influência reveste-se de maior interesse – tanto mais se pensarmos na predominância da cultura francesa na intelligentsia brasileira, o que, no tema em questão, nos remeteria a seu antípoda Viollet-leDuc13 - cujas idéias viriam a repercutir fortemente na década de 1930, na atuação do primeiro órgão brasileiro de preservação – o SPHAN – em suas primeiras décadas de existência. Referências bibliográficas BANDEIRA, Manuel. Crônicas da Província do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1930.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 4

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Foram vendidas 44.000 cópias de Sesame and Lilies uma de suas mais populares coletâneas de escritos e palestras - desde sua publicação, em 1871, até 1900. Consta que a venda de seus livros lhe rendia a expressiva quantia de 4.000 libras por ano. 5 Em 1855, Ruskin propôs a criação, no âmbito da Sociedade de Antiquários, de um Fundo para a Conservação (Conservation Fund), destinado à manutenção e eventual aquisição de imóveis históricos ameaçados de destruição. 6 A tendência alcançou grande popularidade na Inglaterra na segunda metade do século XIX, alcançando logo o continente europeu, e contava entre seus principais expoentes o arquiteto e designer William Morris que, inspirado nas idéias de Ruskin, fundou em 1877 a Society for the Protection of Ancient Buildings (SPAB), ou Sociedade para a Proteção dos Edifícios Antigos. V. a respeito PINHEIRO, 2004. 7 Trata-se da conferência em que Severo lançou o movimento neocolonial, por assim dizer. 8 Para uma biografia de Raul Lino, ver RODOLFO, 2002. 9 É digno de nota, a esse respeito, que a seção de arquitetura da Semana de Arte Moderna de 1922 compunha-se de um projeto neocolonial de autoria do arquiteto polonês Georg Przyrembel - além de desenhos de influência Art-Déco realizados por outro estrangeiro, Antônio Moya. 10 Publicados originalmente em A Cigarra e na Revista do Brasil, estes artigos foram reproduzidos por Claudete Kronbauer (1993). 11 O Solar de Megaípe foi demolido logo após a criação da Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais de Pernambuco, em 1928. 12 Leonardo Benevolo considera o ano de 1862 - início das atividades da firma Morris, Faulkner, Marshall & Co. idealizada por William Morris, o principal seguidor de John Ruskin na Inglaterra – como um dos marcos fundadores da arquitetura moderna (1974: 7). 13 São surpreendentemente raras as menções a Viollet-leDuc na imprensa do período, e geralmente ligadas a sua dimensão de estudioso da arquitetura gótica - como é o caso do longo artigo A alma das Catedrais, em que Gustavo Barroso discorre sobre as catedrais góticas européias, citando nominalmente Viollet-le-Duc. No mesmo artigo foi transcrito também um trecho da Lâmpada da Memória (1921, s/p). Já o deputado pernambucano Luiz Cedro, em seu projeto de lei de criação da Inspetoria dos Monumentos Nacionais, em 1923, mencionava a lei francesa de 30 de março de 1887 e invocava o artigo Guerre aux démolisseurs, de Victor Hugo, em defesa de seus argumentos.

Notas 1

Professora Associada da FAU-USP; Diretora do Centro de Preservação Cultural da USP. 2 É interessante constatar, por exemplo, que, antes de lançar-se à empreitada da Enciclopédia (cujo primeiro volume foi publicado em 1751), Diderot já havia traduzido obras inglesas, como Inquiry concerning Virtue and Merit, de Shaftesbury (1745); a própria Enciclopédia foi inspirada por obra análoga idealizada por Chambers e John Mills. 3 Os excertos reproduzidos aqui foram extraídos da tradução realizada pela autora de The Lamp of Memory, o sexto capítulo de The Seven Lamps of Architecture (no prelo).

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Até o final do século XIX, o urbanismo colonial caracterizava visivelmente o centro de Salvador. Fundado sobre uma colina segundo um traçado urbano regular, este centro passou logo a desenvolver-se a partir de uma configuração de ruas irregulares, consolidando-se desta maneira. Entretanto no início do século XX, Salvador, como as demais capitais brasileiras, participava do programa de construção da República iniciado pelas reformas de Pereira Passos no Rio de Janeiro, então Capital Federal. E assim, durante o primeiro governo de J. J. Seabra (1912-1916), obras urbanas foram empreendidas na cidade na tentativa de transformar completamente a sua área central. Acompanhando o espírito moderno empreendido no Rio de Janeiro, as elites soteropolitanas consideravam que era preciso modernizar o antigo e principal centro do Brasil colonial, mesmo que este processo não correspondesse a uma alteração total da realidade. Os baianos viam isto como um impulso de desenvolvimento que estabeleceria a entrada de Salvador no quadro de progresso nacional, integrados especialmente pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Assim, em 1912, alguns anos após a modernização do Rio de Janeiro (1903-1906), dois projetos principais foram concebidos para o centro de Salvador: o projeto Melhoramento de Partes da Cidade de Salvador, que prevendo drásticas alterações do tecido urbano existente foi mantido no papel; e o projeto Melhoramentos da Sé, que preservando a antiga estrutura urbana e realizando basicamente apenas o alargamento das vias principais do centro e dos bairros nobres do sul, foi o principal respaldo das alterações urbanas do período. Pode-se afirmar que tais obras não resultaram em profundas alterações dos espaços da cidade. Apesar das parciais demolições, a estrutura urbana do centro soteropolitano teve o seu traçado, suas praças e seus quarteirões mantidos e nenhum espaço urbano totalmente novo e diverso do existente foi criado.

a arquitetura monumental de salvador no início do século xx. Uma resposta local a um processo internacional suely de oliveira figueirêdo puppi *

Entretanto, foi precisamente nos limites deste perímetro onde as obras de modernização não alteraram radicalmente o tecido urbano, que os principais monumentos arquitetônicos, elementos formadores de uma nova imagem de Salvador, foram implantados. Estes edifícios foram um dos principais resultados deste processo de modernização da cidade no início do século XX; e se esta modernização teve de certa maneira como modelo maior a ordenação monumental de Paris no período de Haussmann 1, os nossos edifícios monumentais, concebidos inclusive por profissionais italianos, são importantes 321

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

experiências locais de um estilo arquitetônico internacional, sugerido pelos empreendimentos urbanos parisienses e pela propagação do ensino Beaux-Arts.

saneamento e principalmente de embelezamento urbano. O classicismo eclético, como o denomina Claude Mighot6, afirmou-se na segunda metade do século XIX como um estilo internacional e seus exemplos arquitetônicos tornaram-se um modelo por excelência. A ópera de Garnier uniu uma planta submetida à composição Beaux-Arts, uma fachada que rompe com o princípio de unidade referencial __ esta era também uma característica da composição Beaux-Arts__, monumentalidade e certo racionalismo construtivo. Resultado das divergentes preocupações da época, a ópera foi um dos maiores exemplos do momento, tornandose modelo de inspiração para a construção de teatros em outros países.

1. A produção de uma arquitetura internacional Ao observar a arquitetura produzida nos diversos países europeus, sobretudo durante a segunda metade do século XIX, devemos considerar que as produções locais eram resultado de uma interferência das experiências internacionais, as quais tinham em Paris o seu centro principal, aliada certamente aos seus traços característicos particulares. Deste fato, tratamos aqui da arquitetura monumental realizada em Salvador no início do século XX também segundo o contexto de uma produção internacional. E sendo assim, abordamos esta arquitetura a partir dos seus traços dominantes, os quais têm origem na produção francesa: os princípios de composição do sistema Beaux-Arts, a doutrina racionalista de Viollet-le-Duc e o ecletismo, movimento resultante de um processo de colagens, efetuado a partir da composição de vários e diversos elementos arquitetônicos2.

No caso do Brasil, por exemplo, temos o teatro municipal do Rio de Janeiro que projetado por Francisco de Oliveira Passos lembra, segundo Giovanna Rosso del Brenna, a ópera de Garnier. No Rio de Janeiro do início do século XX, as importantes construções teriam sido concebidas a partir de uma ênfase tipológica. Segundo Giovanna, a identificação imediata do edifício como “o teatro”, “o museu” era fundamental7. Sendo assim, o teatro municipal teria que se inspirar na ópera de Garnier, exemplo maior dos teatros da época. Assim, ao tratar da arquitetura de marcas européias na Salvador do início do século XX, não poderíamos ignorar a grande importância da produção parisiense da segunda metade do século XIX.

Segundo o crítico Laffitte, o século XIX não era uma época na qual a arquitetura européia realizava-se através da aplicação de princípios compatíveis, mas através da fusão de princípios contraditórios3. Pode-se dizer assim que o ecletismo foi certamente o resultado das constantes contradições da época, incluindo o classicismo Beaux-Arts e o racionalismo da doutrina de Viollet-le-Duc, correntes teóricas contemporâneas a ele.

2. Composição Beaux-Arts Usando formas simples para determinar uma figura, o arquiteto Beaux-Arts construía um plano no qual o traçado de eixos, a simetria e a construção de sucessivas perspectivas constituíam os principais pontos da composição. Assim a forma antecedia as necessidades determinadas pelo programa, e o principal objetivo era elaborar um edifício no qual plano e volume se correspondessem perfeitamente, formando um todo harmonioso de espaços desenvolvidos em torno de um eixo principal de equilíbrio.

Esta ambiguidade fez inclusive parte da história da Escola de Belas Artes de Paris. O interesse pelo racionalismo, e portanto uma oposição ao academicismo imposto pela escola, nasceu no ambiente desta mesma instituição de ensino. As preocupações racionalistas tiveram origem no grande interesse dos vencedores do Prix de Rome pela técnica das construções romanas4. A importância internacional da arquitetura parisiense deu-se basicamente por dois motivos. Por um lado a École des Beaux-Arts ganhou prestígio mundial através da propagação do seu ensino de composição arquitetônica, e mesmo através das próprias discussões teóricas existentes no seu meio acadêmico5, sobretudo na segunda metade do século XIX. Por outro lado, a Paris de Napoleão III ganhou igualmente reconhecimento e admiração mundial devido à sua obra de

No início do século XIX, a organização das fachadas, respondendo às leis clássicas, era baseada na hierarquia das ordens. O espaço central do edifício, elemento dominante da planta, era geralmente valorizado no volume exterior, independentemente do seu grau de importância para o programa do edifício. Porém, a multiplicação e diversidade dos programas logo alteraram algumas leis iniciais. A 322

A arquitetura monumental de Salvador no início do século XX

organização planimétrica dos edifícios seguiu ainda as regras de um partido monumental, mas suas fachadas tiveram concepção desvinculada da idéia de uma obediência perfeita à hierarquia das ordens.

o ornamento em um elemento independente, “contradizendo a unidade geral do edifício, tão importante para a composição Beaux-Arts: cada motivo é uma adição de objetos, cuja síntese é artificial já que ela é dada apenas pelas grandes linhas do traçado” (LOYER, 1983: 126). A idéia de ecletismo como produto de uma colagem tem assim suas principais bases históricas. Nota-se claramente, sempre segundo Loyer, que o mesmo era resultado de uma escolha consciente, na qual a unidade artificial tinha seus próprios objetivos, não se tratando assim de um mero pastiche.

A composição passou a basear-se na idéia do point. Este, em planta, era o local de encontro do eixo de equilíbrio, longitudinal, com o eixo secundário, transversal. O point veio determinar o ponto principal de referência da obra que era igualmente expresso na composição dos volumes exteriores, através de uma valorização vertical. O espaço no qual dava-se o encontro destes eixos era o compartimento representante da mais importante atividade do edifício, ou seja, era o espaço dominante e essencial da obra arquitetônica em questão.

A ópera de Garnier é um dos representantes mais importantes desta nova fase. Segundo François Loyer, os pontos referenciais da ópera multiplicamse e sua composição dá-se a partir do destaque de determinados “centros de interesse”. Sendo assim, às diferenças estilísticas existentes entre os diversos programas, ou seja, à determinação do caractère, une-se a valorização do detalhe, do ornamento.

Assim, o abandono da hierarquia das ordens do sistema Beaux-Arts e a expressão da dominante nas fachadas deram lugar a uma nova concepção arquitetônica, cujo princípio central de organização era o caractère dos edifícios. Nesta nova concepção, estilo e programa correspondiam-se e cada edifício parecia assim ter um lugar bem definido na estrutura urbana e social. Segundo François Loyer, este processo arquitetônico, ou simplesmente o ecletismo do qual já falamos, correspondia à definição da sociedade francesa do século XIX. Cheia de contrastes, ela evidenciava todas as suas diferenças de status através do tipo de roupa, cores etc. A arquitetura passou a seguir a mesma lei8.

Neste momento, a idéia de composição de Albert Ferran9 parece ultrapassada. A ordenação de um edifício não poderia ser mais definida a partir de um único ponto referencial, ou seja a partir do point, local onde os principais eixos de uma composição Beaux-Arts encontravam-se no espaço essencial do edifício. Igualmente, a valorização deste point na fachada não proporcionava mais sua imediata identificação. Neste percurso, sendo desfeita a especificação compositiva, deu-se o domínio da independência entre a composição dos planos e dos volumes. O sistema Beaux-Arts perdeu então totalmente sua lógica e pertinência.

Os princípios definidos acima, independentes das alterações sofridas no tempo, faziam parte da concepção de uma obra Beaux-Arts, constituindo um corpo de idéias bastante diferente, por exemplo, dos elementos da doutrina racionalista de Violletle-Duc. A organização espacial de um edifício, segundo Viollet-le-Duc, dava-se exatamente de modo contrário: seu princípio fundamental em planta era a justaposição das superfícies, que tinham suas formas definidas em função das exigências do programa e da construção. A assimetria, o jogo de volumes, a multiplicação de pontos referenciais, respondendo às exigências construtivas e de certa maneira funcionais do plano, eram as bases de sua realização.

Em 1900, a dicotomia entre o clássico e o pitoresco, existente também nos espaços da cidade __ o primeiro integrante do centro, da arquitetura oficial, e o segundo das habitações suburbanas como já dito __, foi também substituída pela arte monumental urbana, na qual composições Beaux-Arts e pitorescas passam a conviver lado a lado10. 3. A questão monumental Segundo Loyer, o edifício burguês parisiense adquiriu características físicas de um monumento arquitetônico, no momento em que ganhou grandes proporções, elementos decorativos e nobres materiais. Sendo construído em toda cidade, ele criou uma imagem uniforme de Paris que parecia monumentalisar-se. Isto, segundo o autor, perturbou a dicotomia que normalmente se estabelece nas cidades entre o que é monumental

Porém, a partir do progresso técnico e científico, do avanço industrial contínuo, do surgimento de novos materiais e da determinação da nova organização dos edifícios em base do caractère, esta e outras dicotomias desfizeram-se. Unido a isto, deu-se o triunfo do detalhe. Triunfo que, herdado do racionalismo gótico, transformou 323

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

e o que é vernacular11. Afinal, a arquitetura de um monumento destaca-se do contexto da arquitetura ordinária, não se confundindo com as edificações do ambiente no qual se encontra.

eram equipamentos de uso público, cujos programas praticamente inexistiam até então em Salvador. O palácio Rio Branco, a Associação dos Empregados do Comércio, o Instituto Histórico e Geográfico e o Palácio da Aclamação são importantes exemplares destes edifícios. Monumentos da arquitetura eclética, são muitas vezes vistos como produtos de importação, cuja marca da influência européia reside apenas nas fachadas.

Buscando então uma revalorização da sua condição de elemento urbano extraordinário, os monumentos arquitetônicos da Paris do século XIX tiveram suas características alteradas. Também segundo Loyer, estes edifícios passaram então a ser definidos por dimensões ainda mais imponentes que aquelas do immeuble burguês, por um enriquecimento emblemático e por uma complexidade volumétrica, sobretudo no coroamento. Esta complexidade foi totalmente oposta aos volumes unitários dos edifícios burgueses.

Esta produção arquitetônica parece ser julgada assim, a partir de uma rápida observação apenas dos seus elementos decorativos exteriores. Porém, a partir de uma análise minuciosa destes edifícios segundo a estrutura urbana na qual foram implantados, nota-se que os mesmos foram marcados por elementos da produção européia do século XIX, não apenas nas suas fachadas, mas também nas suas plantas14. Percebe-se que estes elementos adaptaram-se à situação urbana e histórica local, refletindo assim de maneira incompleta as características mais gerais da arquitetura européia.

Tratando-se da situação propriamente urbana, os monumentos arquitetônicos passaram a constituir elementos geralmente isolados, que integrantes da estrutura das grandes avenidas, mostraram-se como construções essenciais na organização do espaço urbano, pontos de atração visual importantes, determinando diversas perspectivas urbanas. Assim, eles foram elementos fundamentais para a compreensão das transformações urbanas de Paris do século XIX.

Como já afirmamos, apesar das alterações urbanas do início do século, o urbanismo colonial caracterizou o centro de Salvador. Entretanto, é preciso também analisar os resultados de um edifício monumental construído nesta época a partir de uma nova situação urbana. O caso específico do palácio da Aclamação, edifício de propriedade pública com função residencial, construído na área mais ao sul da cidade, é exemplar. Edificado nos limites do antigo Passeio Público, o Palácio da Aclamação possui duas fachadas: uma que se volta para a avenida Sete de Setembro e outra para o jardim do Passeio Público15. A existência de um terreno em condição urbana diferenciada não proporcionou ao edifício uma implantação extraordinária.

4. O edifício monumental no centro de Salvador: uma resposta local A produção de italianos no contexto de alterações urbanas de Salvador no início deste século é particularmente voltada para a construção de importantes e luxuosos palacetes na cidade, como também para a construção ou reforma de edifícios de uso público de caráter monumental. Deste fato, a questão do monumento arquitetônico, edifício que se destaca no ambiente devido às suas proporções e formas excepcionais e que possui um conteúdo simbólico forte 12 , torna-se aqui elemento fundamental para o nosso estudo. Na realidade, construir monumentos arquitetônicos foi uma das questões das mais importantes para os dirigentes da época13. Eles tentavam construir a história do presente em base do exemplo da Terceira República Francesa, para a qual os monumentos tiveram, como ressaltamos, um papel fundamental na organização de Paris e evidentemente na sua história.

Todos estes monumentos apresentam entre si elementos comuns que indicam assim a caracterização fragmentada do estilo arquitetônico internacional em Salvador. Independentemente da teoria de composição seguida, suas plantas apresentam um vestíbulo central e suas fachadas, tripartidas, possuem um coroamento também central que tenta sugerir determinada verticalidade ao conjunto. Pois seus volumes com tímidos recuos e avanços apresentam uma forma compacta de predominância horizontal.

Em Salvador, acompanhando uma prática realizada nos grandes centros republicanos brasileiros, edifícios de proporções monumentais foram construídos pelo governo e pelos grupos sociais em ascensão no início deste século. Muitos destes

Os edifícios monumentais soteropolitanos, concentrados geralmente nos limites do antigo 324

A arquitetura monumental de Salvador no início do século XX

centro, foram edificados em terrenos de pequenas dimensões de características coloniais, cujos perímetros terminaram condicionando a forma compacta do edifício. No caso do Instituto Histórico e Geográfico, construído em um terreno de perímetro irregular, o lote inclusive condicionou de certa maneira a volumetria do edifício. E quanto ao palácio da Aclamação, notamos que sua determinação formal segue também as características dos monumentos coloniais, embora tenha sido construído nos limites de um grande jardim, o Passeio Público.

Na realidade, explorou-se a topografia acidentada da cidade, como também as particularidades do urbanismo colonial, como a irregularidade do traçado das ruas e suas pequenas larguras e o tipo de praça fechada para a determinação do monumental. Assim, se observarmos que o centro colonial teve seus principais monumentos localizados em pontos estratégicos e altos de sua topografia acidentada, o mesmo aconteceu no início do século XX, quando também se deu preferência a este tipo de implantação. 5. Conclusão

As dimensões dos terrenos dos edifícios monumentais seguiram neste momento os parâmetros definidos no período colonial, seja por uma imposição da cidade existente, seja pela continuidade de uma prática tradicional. E repetindo também esta prática, eles geralmente ocuparam toda a superfície dos terrenos de características coloniais, ou seja, testada longa e laterais pouco profundas, o que geralmente proporcionou-lhes uma volumetria de predominância horizontal.

Concluimos assim que as características urbanas preservadas e valorizadas no momento em questão não favoreceram a produção de plenos monumentos com base nos sistemas de composição parisiense. Quando a arquitetura burguesa parisiense atingiu uma condição monumental, os verdadeiros monumentos tomaram maiores proporções, ocupando grandes áreas compatíveis com a trama de largas avenidas da cidade de Haussmann. Houve assim uma verdadeira cumplicidade entre a arquitetura e as características urbanas de Paris e os edifícios monumentais integraram certamente condições favoráveis para obtenção de perfeitas composições, sobretudo as empreendidas pelo sistema Beaux-Arts. Além do mais, estes edifícios foram situados no encontro de largas avenidas, no centro de espaços abertos e assim passaram a integrar grandes perspectivas urbanas.

No que se refere então à situação destes edifícios no contexto da cidade, notamos que, quando situados nas avenidas, eles foram implantados na testada do terreno, como as construções ordinárias. Desta maneira, eles constituíram com estas uma espécie de bloco construtivo que acompanhou a irregularidade do traçado urbano. E nas praças, no caso mais específico da praça do Palácio, no topo da colina, eles foram implantados na margem do espaço vazio como os monumentos coloniais.

Os monumentos de Salvador, ao contrário, foram situados em pontos estratégicos de uma topografia acidentada e em uma trama de ruas estreitas de traçado irregular, características às quais conjugouse a ênfase da verticalidade, através da utilização de elementos arquitetônicos.

Sendo assim, a posição do edifício na rua colaborou com a sua inscrição em ângulos de vista oblíquos determinados pela trama de vias estreitas de traçado irregular; e sobre a praça, às margens da escarpa, no caso da praça do Palácio, explorou-se as qualidades do local, como a sua altura e os aspectos naturais e pitorescos do sítio.

Além disto, houve o estabelecimento de um constante diálogo entre a arquitetura e a cidade. Pois enquanto os planos destes edifícios eram concebidos a partir de certos elementos e conceitos do sistema Beaux-Arts ou a partir da doutrina racionalista de Viollet-le-Duc, a concepção de fachadas desarticulada da composição dos planos demonstra um forte compromisso com os espaços da cidade e sua hierarquia. Através da composição arquitetônica, estas fachadas foram muitas vezes dispostas em uma relação espacial com importantes áreas urbanas da história colonial. Este fato parece sugerir a transmissão de uma mensagem política, econômica ou social: a relação do momento republicano com o glorioso passado colonial, quando Salvador era o maior centro do país.

Percebemos assim que a preocupação com a cenografia urbana, como apontam Ana Fernandes e Marco Aurélio Gomes observando a implantação do teatro São João no início do século XIX 16, também fez parte das principais realizações monumentais do início do século XX. Ligadas a uma valorização das características naturais do sítio, a política urbana que dirigiu a implantação de monumentos no início deste século situou-os consciente ou inconscientemente em pontos estratégicos e altos da topografia acidentada da cidade, ou mesmo em pontos estratégicos de uma trama de ruas de traçado irregular. A surpresa e o êxtase seriam os guias desta experiência urbana. 325

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Ao contrário da França, do Rio de Janeiro e de São Paulo, Salvador não investiu muitos recursos e esforços em uma produção industrial. No início do século XX, sua principal base produtiva ainda ancorava-se nas atividades do seu porto, como no período colonial, enquanto os grandes centros mundiais industrializavam-se.

Referências bibliográficas ARANTES, Otília. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Edusp-Nobel, 1993 BAHIA, Centro de Estudos da Arquitetura na. Evolução Física de Salvador. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1980 (séculos XIX e XX, texto datilografado). EPRON, Jean-Pierre (dir.) Architecture. Une Anthologie, Liège : Mardaga, s/d. FABRIS, Annatereza (org.) Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel-Edusp, 1987. FERNANDES, Ana e GOMES, Marco Aurélio A. F. “Idealizações Urbanas e a Construção da Salvador Moderna: 1850-1920”. Espaço & Debates. 1991, no 34, pp. 92-103. FERRAN, Albert. Philosophie de la composition architecturale. Paris : Vicent-Fréal et Cie, 1955. LOYER, François. “Ornement et Caractère”. In: Le siècle de l’éclectisme. Lille 1830-1930. Paris/ Bruxelas: AAM, 1979. ________. Le siècle de l’industrie. Paris: Skira, 1983. ________. Paris XIXe siècle. L’immeuble et la rue. Paris : Hazan, 1987. MIGNOT, Claude. L’Architeture au XIXe siècle. Paris : Editions du Moniteur/ Office du Livre,1983. PINHEIRO, Heloisa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador, EDUFBA, 2002. PUPPI, Suely de O. F. A Arquitetura dos Italianos em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços europeus e modernização urbana no início do século XX. São Paulo:1998. Dissertação apresentada ao Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Fauusp.

Apesar dos fatores que denotam o aumento de riquezas individuais, o gasto e o desenvolvimento de uma vida material com base em produtos suntuosos importados, o estado da Bahia como um todo não mostrava n época sinais de progresso com base na nova ordem nacional e internacional, ou seja, a industrialização. Movida pela idealização de uma sociedade nos moldes europeus, o processo de modernização de Salvador carregou porém sobre si toda a herança colonial. Esta posição não deixava de ser fruto de uma suposta e ilusória necessidade de preenchimento de um vazio: a condição de centro principal do Brasil colonial. Esta necessidade parece ter obtido espaço, em primeiro plano, para que Salvador se mantivesse, sobretudo pelas mãos de sua elite, mais uma vez fiel à sua realidade do passado. Sendo assim, torna-se claro que a criação de edifícios monumentais marcados pela arquitetura européia do século XIX no centro de Salvador resultou especialmente da vontade, desvinculada da sua realidade, de modificar a imagem da cidade colonial, vontade baseada na idéia de progresso que estava em vigor no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX. Isto mostra de certa forma a autonomia arquitetônica. Quanto à política urbana colocada em prática na implantação destes monumentos arquitetônicos, concluímos que ela é a confirmação de uma tradição, continuidade de certos hábitos espaciais estabelecidos no passado. Embora estes monumentos apresentem diferenças, eles foram construídos nos limites do terreno, seguindo o traçado das ruas, usufruindo da configuração urbana para reafirmar a sua condição de monumento. Desta maneira, como os monumentos coloniais, eles foram implantados segundo uma perfeita harmonia com as características do sítio. Por outro lado, esta política está incluída no contexto da arte urbana que, por volta de 1900 na Europa, ultrapassava a oposição entre o que era clássico e pitoresco em relação à arquitetura e aos espaços urbanos.

Notas · Este artigo foi elaborado em base da dissertação de mestrado A Arquitetura dos Italianos em Salvador, 19121924. Monumentos de traços europeus e modernização urbana no início do século XX defendida pela autora na Fauusp em 1998. * Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas pela Fauusp, professora de Teoria e História da Arquitetura no Centro Universitário Filadélfia-Unifil em Londrina-Pr. 1 Ver Heloisa Petti Pinheiro, Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador, EDUFBA, 2002. 2 Fraçois Loyer, Paris XIXe siécle. L’Immeuble et la rue, Paris, Hazan,1987, p.128 3 Citado por François Loyer, Le siècle de l’industrie, Paris, Skira, 1983, p. 178. 4 Id., p. 112 5 Jean-Pierre Epron (dir.), Architecture. Une Anthologie, Liège, Mardaga, s/d, p. 171. Segundo o autor, a École des Beaux-Arts passou apenas a ter grande importância a partir do momento em que houve um confronto das diversas

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idéias dos seus professores, institucionalisando-se assim o debate arquitetural e autorisando o ecletismo. 6 Claude Mighot, L’architecture au XIXe siècle, Paris, Hazan, 1987, p. 156. 7 Giovanna Rosso del Brenna, “Ecletismo no Rio de Janeiro (séc. XIX-XX)” in: Annatereza Fabris (org.), Eletismo na Arquitetura Brasileira, São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, p, 57. 8 Ver François Loyer, “Ornement e caractère”. Le siècle de l’eclectisme. Lille 1838-1930, Paris/Bruxelas, AAM, 1979, pp.65-104. 9 Ver Albert Ferran, Philosophie de la composition architecturale, Paris, Editions Vincent Fréal, 1955 10 François Loyer, Le Siècle de L’Industrie. Paris, Skira, 1983, p. 231. 11 Fraçois Loyer, Paris XIXe siécle. L’Immeuble et la rue, Paris, Hazan, 1987, p.293. 12 Cf. Otília Arantes, “ Os dois lados da Arquitetura pósBeaubourg”. O lugar da arquitetura depois dos modernos, São Paulo, Edusp-Nobel, 1993, p. 179.

Evidenciamos nos discursos de J. J. Seabra e nos jornais da época, a preocupação de modernizar, civilizar a cidade através da construção de palácios, além das largas avenidas. 14 Na dissertação de mestrado A arquitetura dos italianos em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços europeus e modernização urbana no início do século XX , defendida pela autora deste artigo na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo em 1998, existe um capítulo que trata especificamente dos traços da arquitetura BeauxArt nos edifícios monumentais soteropolitanos. 15 O Passeio Público de Salvador foi construído no início do século XIX. Mas durante a criação da avenida Sete de Setembro sua área foi alterada, uma vez que esta avenida teve trecho construído nos limites internos deste jardim. 16 Para maiores detalhes, ver Ana Fernandes e Marco Aurélio A. F. Gomes, “Idealizações Urbanas e a Construção da Salvador moderna: 1850-1920”. Espaços e Debates, 1991, n.34, p.99-103.

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capitulo 7 artes decorativas e repertórios ornamentais

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É curioso como pouco se sabe sobre a obra de inúmeros artistas de significativa atividade no Brasil no século XIX, e o que não dizer sobre muitos daqueles que atuavam na Corte do Rio de Janeiro no período. Dentre esses, cito um artista de formação erudita e de importância inquestionável no cenário da segunda metade do século XIX na cidade: Antônio de Pádua e Castro. Segundo Moreira de Azevedo, 2 Pádua e Castro nasceu em Magé, no Estado do Rio de Janeiro, em 07/03/1804. Seus pais, João Francisco Lourenço e Quitéria Vicenzia da Conceição, trouxeram o filho ainda criança para a Corte e o conduziram ao Convento de Santo Antônio, para que recebesse formação religiosa. O nome Pádua lhe foi acrescentado na ocasião. Com a morte dos pais, porém, Pádua e Castro abandonou o convento, desligando-se da vida religiosa. Estudou com o artista Brás de Almeida e, posteriormente, com Francisco de Paula Borges e Francisco Xavier Soares, escultores e toreutas que haviam sido discípulos e oficiais de Mestre Valentim da Fonseca e Silva. 3 Tendo sido iniciado na arte da escultura, para aprofundar seus conhecimentos, ingressou na Academia Imperial das Belas Artes, embora tardiamente ( pois a Academia, via de regra, recebia rapazes muito jovens para ali estudarem). O livro de matrículas referente ao período 1833 a 1844 registra a sua inscrição como aluno da Classe de Escultura de Ornatos, nos anos de 1839 e 1840, quando tinha então trinta anos de idade. Assim sendo, Antônio de Pádua e Castro foi aluno de Marc Ferrez, mestre francês responsável pela cadeira de Escultura, no período de 1837 a 1850, tendo como companheiro Francisco Manuel Chaves Pinheiro, artista que mais tarde atuaria como professor da AIBA, dominando quase todo o Segundo Reinado.4

entre a academia e as ordens terceiras. antônio de pádua e castro e o gosto na corte de d. pedro ii cybele vidal neto fernandes

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Não encontramos mais nenhuma referência sobre a formação de Antônio de Pádua e Castro no Brasil e não há qualquer indício de que tenha viajado para a Europa. Aceitando-se a hipótese de que tenha se iniciado na arte da Escultura ainda no Convento de Santo Antônio (onde encontramos registro de várias de suas obras da fase inicial de produção) é certo que procurou aperfeiçoar-se com artistas atuantes na cidade somente depois de ter deixado a vida religiosa. Sendo uma pessoa bem formada, com conhecimentos adquiridos após vários anos de estudos junto aos religiosos, sem dúvida os mestres mais confiáveis naquele momento, Pádua e Castro deve ter concluído que era imprescindível buscar, junto à Academia Imperial, o aprofundamento necessário para ser realmente reconhecido na cidade como um artista bem formado. Prova disso foi a sua intensa atividade como arquiteto, escultor e decorador de inúmeras 331

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igrejas da Corte, com as quais contratou obras de reforma, ampliação e decoração, tendo interferido até mesmo no prédio da Academia.5

casando-se aos quarenta e sete anos com Firmina Joaquina da Silva Castro, com a qual teve uma filha e três filhos. Apenas o mais velho ingressou na Academia e, seguindo os passos do pai, formouse em escultura.8

Desse modo, àquele menino que ficara “órfão, sem amparo e sem futuro”, segundo Moreira de Azevedo, caberia desempenhar um papel de grande importância no cenário artístico da segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro, não só como um artista muito atuante, mas também como professor da Academia Imperial, cargo que assumiu a partir de 1863, aos cinqüenta e nove anos. Naquela época, coube a Pádua e Castro uma vaga pleiteada por outro artista, Quirino Antônio Vieira que, apesar de ter obtido várias premiações, inclusive medalhas de ouro e de prata, tivera o seu pedido negado pela congregação, sob a alegação de que a Academia estava aguardando “pelo ensejo de aumentar o pessoal do corpo acadêmico com um artista de superior e reconhecido talento”.6

Moreira de Azevedo é o único cronista da época que nos oferece algumas informações sobre o artista. Segundo o cronista, teria sido Pádua e Castro o autor da reforma do coche imperial para o segundo casamento de D. Pedro I, em 1829. Datam de 1840 o entalhe das peças ornamentais para o nicho ou maquineta do altar de Nossa Senhora das Dores na Igreja da Candelária, assim como os andores para a Procissão de Cinzas da Igreja de São Francisco da Penitência. Foi, porém, na década de 1850, que realizou diversas obras de vulto em igrejas de Ordens Terceiras da cidade: Santa Cruz dos Militares, dos Terceiros do Carmo, do Santíssimo Sacramento, de São Francisco de Paula. Em 23/09/1856 ingressou como membro da Sociedade Propagadora das Belas Artes, mantenedora do Liceu de Artes e Ofícios, fundado pelo arquiteto Francisco Bittencourt da Silva, também professor da Academia Imperial das Belas Artes.

Vivendo no centro cultural e político do país, ali deixou toda a sua alentada obra, que se refere à reforma e decoração à talha de quatorze igrejas do centro histórico da cidade, cujos arquivos guardam contratos que confirmam a autenticidade do seu trabalho. Na Academia atuou durante dezoito anos, como professor de Escultura de Ornatos, disciplina que fazia parte da formação do arquiteto, do escultor e das artes industriais, além de desempenhar várias outras funções nas inúmeras comissões de que participou.

O convento de Santo Antônio era o local onde tradicionalmente se reunia a intelectualidade da época. Ali Pádua e Castro foi educado, durante muitos anos, familiarizando-se com os debates e os acontecimentos políticos que abalaram o país desde o início do século. O artista viveu nesse ambiente erudito, no qual moldou seu caráter e firmou os propósitos para o seu futuro. Ali também estiveram outros artistas e intelectuais, dentre os quais Porto-Alegre que, seja no Brasil ou na França, soube tirar o melhor proveito possível dessa convivência tão rica e sábia com homens respeitáveis, como Frei Francisco de Monte Alverne, personalidade de grande influência religiosa e política, na época.

Assim sendo, Pádua e Castro dividiu-se em duas áreas de atuação: uma vinculada ao seu mercado de trabalho - trabalhando para as capelas de Ordem Terceira, especialmente, ao restaurar ou completar a decoração a talha das igrejas iniciadas no século XVIII, mais ligadas à estética setecentistas, ou reformando as fachadas e revestindo com talha algumas outras igrejas. A outra forma de atuação refere-se às suas funções como professor da Academia, então voltada para a orientação da estética neoclássica, segundo o modelo introduzido pelos mestres da Missão Artística Francesa, revisto por Porto-alegre na Reforma de 1855. É importante analisar a posição e a obra do artista comprometido, portanto, com essas duas áreas de atuação.

Talvez por essa razão também lhe tenham sido abertas as portas da Maçonaria, corrente filosófica de importância considerável no Brasil e em especial no Rio de Janeiro, da qual faziam parte inúmeros intelectuais e homens ilustres. Lançamos aqui a hipótese de que o artista fosse membro maçon, apesar de não termos condições de o provar. O que podemos levantar como argumento, para sustentar essa hipótese, são os elementos característicos da Maçonaria que aparecem na composição de um quadro a óleo, pintado por Joaquim da Rocha Fragoso em 1865, em homenagem ao artista. O referido quadro foi localizado por mim e faz parte da galeria de retratos dos irmãos Definidores da Ordem Terceira dos

Na Academia Imperial distinguiu-se, em várias ocasiões, como artista e professor que gozava de grande respeitabilidade. Em 1865, participando da Exposição Geral, recebeu Prêmio de Medalha de Ouro e o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa. Era reconhecido como arquiteto, desenhista, escultor, matemático, administrador de obras. 7 Como cidadão ,constituiu família já tardiamente, 332

Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II

Mínimos de São Francisco de Paula, e encontrase localizado no corredor lateral à nave da igreja, do lado da Epístola.

materiais convenientes ao exercício e progresso da indústria. Do conjunto de obras realizadas por Pádua e Castro na cidade, são mais relevantes aquelas ligadas aos seguintes contratos: Ordem Terceira do Carmo (1850 /1865) ; Ordem Terceira de Nossa Senhora Mãe dos Homens ( 1852 /1857) ; Igreja da Cruz dos Militares ( 1853) ; Ordem Terceira do Santíssimo Sacramento ( 1855 / 1859) ; Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula ( 1855 / 1865). Não caberia, num trabalho de síntese, a reflexão sobre a obra de Pádua e Castro, em toda a sua extensão. O que nos interessa, nesse momento, é situar a presença do artista no cenário das artes do século XIX e fazer o inventário de sua obra, trazendo algumas notícias sobre a relevância da mesma como parte do pensamento que caracterizou a produção artística no Rio de Janeiro no Segundo Reinado.

Para não fazer uma análise delongada do referida obra, dizemos apenas que ali estão os elementos característicos do quadro de companheiro de uma loja maçônica: o piso em xadrez, a luva, as colunas, o malhete, o cinzel, o compasso. Os demais elementos não aparecem com nitidez, mas é certo que a representação não se dá na oficina do artista nem em uma sala de residência. Por outro lado, observamos ainda que, colocados em meio aos elementos da talha decorativa que realizou em várias igrejas, pode-se perceber diversos elementos que remetem aos símbolos da Maçonaria. Podemos supor que Pádua e Castro pertencia realmente à Maçonaria, e isso comprovaria mais uma vez a sua boa formação intelectual, aspecto importante para a sua aceitação em qualquer loja maçônica, e é esse o ponto que nos interessa aprofundar.

É importante deixar claro que, ao assinar os contratos de obras, Pádua e Castro enfrentava duas situações distintas: seja restaurando ou completando uma decoração a talha já existente, como nas igrejas de Nossa Senhora Mãe dos Homens, Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, Ordem Terceira do Carmo, São Francisco de Paula, dentre outras, onde não trabalhava com liberdade, em relação à obra anterior. Seja trabalhando de modo mais independente, realizando uma obra nova a partir do próprio risco, como nas igrejas de São Francisco Xavier do Engenho Velho, Tijuca, e Capela do Imperador, situada no edifício da Santa Casa de Misericórdia.

Antônio de Pádua e Castro deixou uma obra vasta e um percurso respeitável na Academia, onde trabalhou até morrer em 10/11/1881, aos setenta e sete anos de idade. O artista é muito pouco conhecido pelo público, apesar da alentada obra que deixou, num período de grandes transformações em nosso país. Quase nunca lembrado, foi entretanto homenageado em 1921 por Henrique Bernardelli, Patrono da Escultura, quando o referido artista projetou a colocação de vinte e dois medalhões em relevo, pintados em afresco, com o busto de artistas nacionais que contribuíram para a evolução das nossas artes. Esses medalhões foram fixados na fachada do prédio da Escola Nacional de Belas Artes, atual MNBA. O que representa Pádua e Castro, Patrono da Modelagem, encontra-se na fachada, quase na extrema direita do edifício, ladeado pelo do escultor Francisco Chaves Pinheiro e do pintor e ex-diretor da AIBA, Porto-Alegre.9

Dentro de sua produção mais significativa, vamos nos deter sobre a obra que realizou para a igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula. A partir desse exemplo poderemos considerar a sua posição como artista atuante na cidade e também como artista e professor da Academia Imperial das Belas Artes. Importa reconhecer o seu papel não só como decorador, mas também como arquiteto, já quer alterou a fachada da igreja e interferiu também no seu espaço interior. Ali é possível considerar as suas soluções para uma obra em espaço monumental, a sua relação com a obra de Mestre Valentim, o seu papel como projetista ou riscador, a sua obra frente à crítica oficial da época.

A Escultura de Ornatos na Academia Imperial das Belas Artes só tomou impulso a partir do decreto de 14/05/1855, que instituiu a Reforma Pedreira ou Porto-Alegre.10 Apesar da disciplina já ter sido prevista pelos mestres franceses (1824) a Reforma de 1855 implantou e regulamentou o ensino de escultura dentro do curso de Arquitetura, mas direcionada também às necessidades da indústria. 11 Deveriam ser ensinados escultura e ornatos de toda a sorte, a arte da cerâmica, os ornamentos de vasos, modelagem. Aos alunos mais adiantados seria indicada a aprendizagem do entalhe na madeira, pedras, granito, mármores, dentre outros

A Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula foi instituída no Rio de Janeiro por D. Antônio do Desterro em 11/06/1756, em solenidade na igreja da Cruz dos Militares. Em 1757 foi erguida uma ermida no Largo da Sé Nova, para abrigar a imagem do orago. Em 1759 foi lançada a pedra fundamental do novo templo, cuja edificação 333

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

prolongou-se até o inicio do século XIX. A nova igreja situava-se em uma praça e o seu edifício deveria dominá-la por suas dimensões, imponência e localização privilegiada. Prova disso é que o espaço da capela-mor do novo templo ocupou toda a área da primitiva capela( que possuía dois altares laterais, além do altar-mor). A fachada projetada com evidente imponência, poderia ser vista de diferentes ângulos, e colocava a igreja sobre elevação de sete níveis acompanhando toda a extensão da fachada, destacando-a dos prédios vizinhos. A planta da nova igreja tinha grandes dimensões, a exemplo da Igreja dos Terceiros do Carmo, (1752), com grande salão e corredores laterais, ampla sacristia transversal ao fundo. O conjunto testemunhava a ambição das Ordens Terceiras, naquele período.

acesso ao segundo piso. Na parte superior, à frente, está o coro; três pares de tribunas se abrem para a capela-mor, e o consistório se localiza sobre a sacristia. A decoração interna do templo foi iniciada, segundo os documentos da Ordem, no início do século XIX. Ali estão registrados contratos com o Mestre Valentim, que trabalhou para a igreja entre os anos de 1801 e 1813, quando morreu. Mestre Valentim realizou toda a obra da Capela do Noviciado de Nossa Senhora das Vitórias e apenas iniciou a decoração a talha do altar-mor da igreja, que seria concluída somente na segunda metade do século XIX. Somente em 09/07/1855 a Mesa da Ordem registrava o exame de novos riscos, dessa vez para a execução da decoração a talha do corpo da igreja. Foi escolhido o projeto do artista italiano Bragaldi, “que estavam mais de acordo com a obra da capela-mor”, em detrimento do projeto de Antônio de Pádua e Castro. Bragaldi era artista conceituado e estava de passagem pelo Rio de Janeiro, certamente em direção à Argentina, onde realizou várias obras.

Considerando-se a divisão vertical da fachada, observamos que o corpo central da igreja avança em relação ao plano das torres, limitado por pilastras colossais em granito. Ali se encontram as três portas do coro. Essas portas foram alteradas por Pádua e Castro por ocasião das grandes reformas de 1855/1865. Quando o artista realizou as obras da nave, onde trabalhou primeiro, observou que a mesma tinha o pé direito muito baixo, inadequado à altura da capela-mor. Assim sendo, ao elevar o pé direito da nave, precisou elevar também as janelas do coro. As alterações maiores da fachada foram feitas nas três portas do piso, principalmente na porta central, esculpida em mármore português, num tratamento e desenho bem eruditos, em edícula, com colunas compósitas e frontão triangular.

No entanto, por ocasião da assinatura do contrato para a execução da obra, Bragaldi já não se encontrava no Rio de Janeiro e Pádua e Castro assumiu a mesma, obrigando-se a ser fiel ao risco do artista embora, ao longo da sua execução, tenha realizado muitas alterações no mesmo. Ainda pelo item décimo do contrato, ficariam pertencendo a Pádua e Castro toda a talha já realizada por Mestre Valentim, mas ainda não colocada na capela-mor. De forma mais específica, trabalhando na decoração da nave, o artista deveria “fazer seis altares, pelo gosto já combinado, em capelas fundas, sendo todas forradas com obra de talhaI”.Os antigos altares seriam vendidos juntamente com os púlpitos.

As duas folhas da porta foram entalhadas em madeira, num conjunto majestoso capaz de representar toda obra executada na igreja, em arquitetura e talha pintada e dourada. A porta foi exposta sob o número sete na Exposição Geral da AIBA de 1865, e conferiu ao artista a premiação maior concedida pela Academia, O entalhe remete à delicadeza do Rococó, na sua elegância, misturados aos elementos clássicos que emanam da solução da edícula ou tabernáculo em mármore. Tal solução já anuncia a ambigüidade estilísticoformal do interior do templo, no qual o vocabulário clássico se mistura com elementos remanescentes do rococó classicizante tardio, do início do século XIX.

No entanto, a intervenção de Pádua e Castro na igreja seria muito mais ampla, pois o artista trabalhou durante dez anos cumprindo contratos sucessivos, que se referiam tanto à estrutura como à decoração igreja. Alterou a fachada, elevou o pé direito da nave, deu maior envergadura ao arco cruzeiro, também elevado em função da nova altura da nave. A capela- mor foi aprofundada, tornandose mais elegante com seis tribunas; o presbitério e trono do altar-mor foram elevados, uma clarabóia foi aberta sobre o altar( essas alterações foram observadas em outras obras do artista na cidade). O coro e o sub-coro foram decorados com talha e sustentados por uma imensa mísula que caem lateralmente; as esquinas da nave receberam quatro portas sob tribunas. O arremate das paredes laterais foi valorizado com uma grossa cornija

A plantada igreja tem a forma de um grande quadrilátero, no qual a nave central aparece ladeada pelos dois corredores laterais, tendo a sacristia ao fundo. Do lado da Epistola, situa-se a Capela do Noviciado de Nossa Senhora das Vitórias e do lado do Evangelho uma ampla escada dá 334

Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II

contínua, que percorre toda a nave, entra na capelamor e se fecha no arremate do altar principal.

com trono elevadíssimo e elaborado coroamento. Queremos aqui lembrar que Pádua e Castro foi contratado inicialmente para realizar obras na nave, nos altares laterais e nos púlpitos. No entanto, terminadas essas obras, o artista considerou que a capela-mor estava em desarmonia com o corpo da igreja, como o descreve no seguinte documento:

Os seis altares laterais ( São João Batista, São José, Nossa Senhora da Conceição, do lado do Evangelho e São Miguel, São Francisco de Sales e Nossa Senhora das Dores, do lado da Epístola) foram abertos em arcadas e flanqueados por colunas colossais assentadas sobre altos suportes. O espaço compreendido entre cada altar e a cornija foi preenchido por imensas tarjas com cenas da vida de São Francisco de Paula, sendo seis ao todo. 12 Os púlpitos, de forma arredondada, valorizam a abertura do arco-cruzeiro. São de base circular e finamente decorados com talha. Arrematando a decoração da nave, uma cartela foi colocada sobre o arco cruzeiro, com o tema da apoteose de São Francisco de Paula, entre anjos e nuvens. Essa tarja se harmoniza com as demais cenas alegóricas colocadas na parte superior das ilhargas da nave da igreja. 13 Desse modo, Pádua e Castro corrigiu e deu mais elegância ao arco- cruzeiro, considerado pelo artista chato e de mau gosto, sustentado por colunas ora estreitas ora largas, com pouca elevação, e em desacordo com a capela-mor.

Saibam que a obra da capela-mor, considerada em si só e em separado seja boa e mesmo de bom gosto em seu gênero, todavia outro tanto não se pode julgar no seu todo da mesma capela, na sua parte arquitetônica; tomando o ponto de vista conveniente nestes trabalhos, parecem as colunas do altar-mor pequenas, a cimalha mesquinha o remate do mesmo altar quebrado por falta de altura do forro e os anjos do dito arremate fora do equilíbrio natural; as figuras da Fé e da Esperança mal colocadas e fora de seus lugares; o trono é mais uma torre que um trono de igreja... Para ficar a capelamor mais elegante e majestosa proponho: acrescentar mais dois degraus de mármore ao presbitério e mais dois de madeira ao sucedâneo do altar; assim ficará o mesmo altar mais elevado. Desmanchar todo o altar-mor e assentá-lo de novo no lugar primitivo, que é uma parede curva que está dentro, encoberta; levantar e acrescentar o forro segundo as dimensões do arco cruzeiro. Fazer duas tribunas novas, iguais às antigas e mais duas mísulas-pilastras forradas de ornatos iguais às que estão feitas; ornar com ornatos novos e copiados dos antigos para ser o segmento dos painéis do forro por cima das tribunas novas. Criar novo camarim de trono com zimbório e clarabóia; reformar o trono a ficar como deve ser convenientemente. Continuar a linha da altura dos pedestais das colunas do corpo da igreja e segundo elas aumentar e levar às devidas proporções as colunas e mísulas da capela-mor e regular os seus pedestais por essa mesma linha para que não pareçam como atualmente estão , uns para cima e outros para baixo ... ( grifos nossos)14

A capela-mor foi dividida em três tramos por elementos arquitetônicos muito originais que o artista denominou de mísulas-pilastras. Esses elementos são sustentantes complexos, que conferem grande requinte ao conjunto da capela, onde plumas, espanholetes, candelabros, mísulas, girassóis e pelicanos, rosas e lírios, anjos pequenos ou de corpo inteiro, recobrem as superfícies com elegância e graciosidade. O altar-mor da igreja é muito original: dois pares de colunas colossais balizam o altar, com fustes canelados contínuos, envolvidos por grinaldas de flores que sobem em movimento helicoidal. Assim sendo, não existe embasamento dos suportes, pois os mesmos nascem no nível do chão e sobem até ao coroamento, balizando a abertura do camarim e sustentando a pesada cornija que percorre toda a nave, à direita e à esquerda, e se fecha em curva, abraçando o imenso camarim. Acima dessa imensa cornija se destaca o complexo coroamento do altar, onde elementos simbólicos e composições alegóricas contornam o emblema de C haritas, num conjunto que se derrama no teto.

A transcrição um tanto longa desse documento se justifica para que possamos compreender os diversos problemas que o artista observara no conjunto da capela. Pelo documento, vimos que Pádua e Castro propôs profundas modificações, tanto na estrutura quanto na decoração da capela, para que ficasse à altura da obra já realizada na nave da igreja.

Pode-se perceber a criação original do artista no traçado desse imenso altar, um exemplo raro no Brasil. Todo o conjunto do altar é realmente digno dessa grande capela e satisfaz plenamente à função de apoteose do espaço interior da igreja A idéia de monumentalidade é sentida primeiramente no uso das colunas colossais, no imenso camarim

A decoração da igreja de São Francisco de Paula, como um todo, remete à suntuosidade resultante de um espaço interior de grandes dimensões, 335

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

combinado com a talha, presente não só nos altares, como também nas ilhargas, nos púlpitos, nas portas-balcão ( quatro na nave e duas na capela-mor) forro do teto, arco-cruzeiro.

Notas 1

Autora: Professora Dr.a Cybele Vidal Neto Fernandes. Instituição: Escola de Belas Artes/UFRJ. 2 O tema aqui abordado, Antônio de Pádua e Castro, sua vida e obra, foi desenvolvido na dissertação do Curso de Mestrado da Escola de Belas Artes, cujo título é: A talha religiosa da segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro através de seu artista maior Antônio de Pádua e Castro. Autora, Cybele Vidal Neto Fernandes ( Orientador Almir Paredes cunha, defesa em Março de 1991) . O que se pretende no presente trabalho é apenas , de modo sucinto, apresentar o artista e discorrer, de modo breve, sobre a importância da sua obra na igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula. Quanto aos dados oferecidos por Moreira de Azevedo, conferir: AZEVEDO, Manoel Duarte Moreira de. O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1969, 2 V, p.318 – 320. 3 Um levantamento que realizei apontou como escultores/ entalhadores atuantes no Rio de Janeiro no século XIX vinte e nove artistas, dentre os quais vários foram discípulos de Mestre Valentim, que dominou o início do século. Os artistas citados, Francisco de Paula Borges e Francisco Xavier Soares trabalharam na igreja de São Francisco de Paula na década de 1830. 4 Sobre aos registros de Pádua e Castro como aluno da Academia, seus professores, sua formação, ver Arquivos do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes/UFRJ. 5 Dentre as diversas Comissões de que participou registramos: 1865, para a escolha de Pensionista do Estado; 1866, para a avaliação do gradil do monumento a D. Pedro II; 1867, para as obras da Academia; 1868, para a avaliação dos envios de Cândido de Almeida Reis; 1870, para a avaliação dos trabalhos da Exposição Geral; 1870, para os Exames finais de Matemática e Desenho; 1871, para a apreciação do mausoléu edificado por Bithencourt da Silva para a Princesa Leopoldina; 1872, para a avaliação do monumento à vitória do Brasil na Guerra do Paraguai, no Campo da Aclamação; 1879, para a avaliação dosd trabalhos da 26.a Exposição Geral. 6 Os arquivos do Museu D. João VI guardam vários documentos relativos à posse e à presença de Pádua e Castro na AIBA. A posse foi efetivada pelo Decreto de 14/ 10/1863 e a Congregação de 19/10/1863 registrou o ingresso do novo professor de Escultura de Ornatos. 7 As suas credenciais podem ser comprovadas a partir da sua participação em diversas Comissões, como também pelo reconhecimento, por parte da Academia, em relação a diversas obras realizadas na cidade, especialmente na Santa Casa de Misericórdia, na igreja de Ordem Terceira do Sacramento, de São Francisco de Paula, do Carmo. Ver pasta do artista nos arquivos do Museu D. João VI/ UFRJ. 8 Sobre a sua posição e finanças, ao morrer, o artista possuía vários bens, de acordo com o seu testamento localizado no Arquivo Nacional. (conferir: dissertação citada pela autora) . 9 Os arquivos do Museu D. João VI guardam , na pasta do artista Rodolfo Bernardelli, os desenhos referentes ao projeto dos medalhões: 1921 – documento participando que os medalhões já foram colocados e o envio da planta de situação dos mesmos no edifício da ENBA.

A escala monumental da igreja certamente sugeriu ao artista soluções originais, como o acréscimo das colunas às pilastras. Essas colunas valorizadas ainda pela colocação das imagens dos Evangelistas, em grande porte, sobre as mesmas, enfatizaram soberbamente a divisão da nave em três tramos, contrabalançada pelo entablamento contínuo, muito pronunciado, à romana. No entanto, poderíamos dizer que a Igreja de São Francisco de Paula apresenta uma talha que utiliza elementos formais do Rococó mas afasta-se das características de um interior rococó, não só pelas suas grandes dimensões, como também pela monumentalidade de determinados elementos ligados ao gosto classicizante. Tais fatores quebram a graciosidade e a leveza de uma decoração plenamente rococó, mas também não permitem que se classifique esse interior como puramente clássico. Na verdade, observa-se uma tentativa de harmonizar duas escolas, resultado que talvez possa ser definido como um rococó classicizante, pois revela a persistência da estética do setecentos numa sábia convivência com o gosto neo-clássico do período, difundido pela Academia Imperial. Segundo Germain Bazin esse retorno às formulas do século precedente é uma das características do Neoclassicismo em vários países 15. Assim, essas inovações atingem primeiro a arquitetura e depois interferem, de modo pleno, no ornamento. O Rio de Janeiro, portanto, não é um caso isolado nesse tipo de solução e, como a Bahia, vai apresentar primeiramente uma ornamentação de transição neoclássica e, posteriormente, outra já completamente evoluída. Assim sendo, podemos dizer que a decoração da igreja de São Francisco de Paula é uma forma local de convivência de um Rococó tardio, presente nos interiores das igrejas de Ordem Terceiras, combinado com as soluções neoclássicas, adequadas sem dúvida, ao ambiente religioso. Observa-se, portanto, nessa solução, a suntuosidade e o requinte necessários a uma igreja de Irmandade Terceira tão poderosa naquele momento. O trabalho de Pádua e Castro recebeu total aprovação da Academia Imperial das Belas Artes, pelo qual foi premiado, assim como das poderosas mesas de irmãos definidores das irmandades com as quais assinou inúmeros contratos de obras de arquitetura e decoração.

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Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II 10

12

Sobre a Reforma Pedreira ou Porto-Alegre ver dissertação já citada pela autora e também vários outros trabalhos , dentre os quais a tese de Doutoramento: Os caminhos da arte. O ensino artístico na Academia Imperial das Belas Artes, 1855 – 1890. ( Autora Cybele Vidal Neto Fernandes; Orientador Manoel Luis Salgado Guimarães, IFCS/UFRJ, 2001) . 11 Sobre o assunto, além dos trabalhos citados, ver também: MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. O ensino artístico, subsídios para a sua história. Anais do Terceiro Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: IHGB/ Imprensa Nacional, 1942, 8.0 volume.

Pádua e Castro trabalhou muitas vezes com outros artistas. No caso da igreja de São Francisco de Paula podemos citar a participação de Francisco Chaves Pinheiro e de Cândido de Almeida Reis, professor e aluno da AIBA, artistas atuantes na cidade. 13 Essas tarjas são obras dos escultores Chaves Pinheiro e Almeida Reis, que muitas vezes trabalhavam em equipe com Pádua e Castro. 14 Conferir Arquivos da Ordem de São Francisco de Paula e trabalho citado. 15 Conferir: BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1965.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Há na historiografia da arte brasileira uma extrema valorização da Missão Artística Francesa e das conseqüências de sua ação para a renovação estética do Brasil no século XIX. Essa ênfase e a falta de estudos da arte oitocentista nas várias regiões têm contribuído para um certo descuido quanto à penetração e maturação do neoclássico no Brasil através das artes tradicionais, ou seja, das artes sacras católicas, notadamente a talha, a azulejaria e a pintura, presentes na ornamentação dos templos, na ourivesaria e em outras artes decorativas que integram o complexo artístico eclesiástico. O fenômeno foi percebido em pequeno ponto por Mário Barata em 1983 2, sobretudo na arquitetura. Com o avanço dos estudos em cidades onde a penetração neoclássica se deu na transição do século XVIII para o XIX, como Recife, Belém, o próprio Rio de Janeiro e Salvador, a percepção dessa manifestação na Bahia ampliou-se bastante a ponto de podermos hoje dimensioná-la e qualificá-la. Em Salvador e no estado da Bahia a atividade de entalhadores, pintores e douradores na ornamentação e re-ornamentação das igrejas manteve o dinamismo, razão pela qual teremos ainda no século XVIII a presença de tendências neoclássicas, que, se comparados os conjuntos e as peças executadas nesse período com alguns, de uma década atrás, a diferença estilística se faz notar com muita clareza, denunciando a chegada de um novo gosto, de uma nova estética.

o lugar da ornamentação sacra católica na renovação estética do século xix no brasil luiz alberto ribeiro freire

1

Bazin observou que o neoclassicismo na Bahia não se manifestou na decoração como sendo uma reação. Ele aparece pouco a pouco, saindo do rococó, ao qual a princípio se misturou. O espírito novo se manifestou primeiro na estrutura, antes de atingir o ornamento que durante bastante tempo permaneceu fiel ao rendado rococó.3 De fato, basta olharmos para conjuntos ornamentais ou mesmo para peças retabulares executadas supostamente no final do século XVIII, ou nos primeiros anos do século XIX para percebermos o hibridismo formal determinado por estruturas “neoclássicas”, ou do barroco derivadas e ornatos de um rococó bastante simplificado de inspiração francesa. Conjuntos ornamentais inteiros que se preservaram são: o da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Terreiro de Jesus; o da Igreja do Convento de N. Sra. da Palma, no Largo da Palma e o da Igreja do Convento (especialmente sua capela-mor) e da 338

A ornamentação sacra católica na renovação estética do Século XIX no Brasil

A única obra de talha dos conjuntos mencionados que sabemos o período da fatura e o nome do mestre que projetou e liderou a oficina responsável pelo entalhamento é a da Igreja da Ordem Terceira de N. Sra. do Monte do Carmo. Os recibos e ajustes assinados pelo mestre José Nunes de Santana datam de 1801, 1802 e 1803, sendo o conjunto pintado e dourado de 1816 a 1817/1818 pelo eminente pintor José Teófilo de Jesus9.

Ordem Terceira de N. Sra. do Monte do Carmo, situadas no topo da Ladeira do Carmo. Infelizmente nenhuma cronologia de obras de talha da Igreja de São Pedro dos Clérigos e da Igreja Conventual de N. Sra. do Monte do Carmo pôde ser reconstituída, nem conhecidos os mestres que lideraram as oficinas contratadas, por não serem localizados os documentos4. Sobre o conjunto ornamental da Igreja do Convento de N. Sra. da Palma, Bazin sugere o ano de 1785, baseando-se no fato de terem os Agostinhos, ocupantes desse convento, perdido o hospital em 1778 por ordem do governador e restituído alguns anos depois, tendo o Frei Bento da Trindade mandado reconstruí-lo, assim como a igreja5.

Do ponto de vista estilístico podemos observar, nestas ornamentações, uma clara tendência à depuração ornamental, distinguindo-se dos modelos barrocos, à simplificação da pompa barroca, o acento do caráter ornamental palaciano parece ter sido transposto para a igreja, a ênfase nas estruturas retabulares que voltam por vezes a uma configuração arquitetônica no sentido mais clássico do termo e a uma participação controlada do ornamento, que perdem a alta volumetria barroca, e resgatam uma superficialidade e refinamento, sem contudo se igualar ao caráter “plateresco” (cinzeladura da prata e do ouro no século XVI) da talha maneirista.

Maria José Rabelo de Freitas apontou e questionou a veracidade das inscrições numa lápíde sita à parede esquerda do templo na qual está registrada o período de 1897 a 1898 para a finalização da edificação6 . Da referida igreja, afirmou: A verdade é que a igreja, construída na era de 600 foi reedificada pelos agostinianos, a quem se deve toda a obra de talha e douramento como o assentamento dos dois altares laterais, que divergem do estilo dos demais, decoração confiada ao entalhador e pintor Veríssimo de Souza Freitas, que só a terminou em 17957.

O repertório ornamental altera-se substancialmente, por um lado, os ornatos advindos da arquitetura da antiga Grécia e Roma, que nunca foram abandonados pela arte barroca, ganham o realce que possuíam na antiguidade clássica e no renascimento

Mais adiante levanta a possibilidade de os altares mais novos, de transição entre o rococó e o neoclássico, datarem de 1803, quando foi reformado o altar-mor8. Entretanto a autora não faz referência da fonte que lhe informou esse ano para a reconstrução do altar-mor.

Esse quadro entretanto, está longe de ser homogêneo, ou de guardarem entre si uma afinidade formal que denote tradição estilística, ao contrário, notamos multiplicidade formal e sobretudo policrômica. Se na Igreja do Convento do Carmo temos um retábulo-mor inteiramente dourado, nos terceiros da mesma devoção, ele é branco e dourado e toda a talha de São Pedro dos Clérigos é em fingimentos de mármores e outras pedras, em um colorido alegre contrastando com os ornatos dourados.

Supomos a partir da própria obra ainda preservada, que a talha dessa igreja foi realizada em três momentos diferentes, o momento em que foram construídos os retábulos colaterais, outro em que foram realizados os retábulos laterais e os respectivos painéis pintados (provavelmente na segunda metade do séc. XVIII) e o momento em que o antigo retábulo-mor foi destruído e construído o novo que lá está e que não foi dourado e que deve ter sido a última obra de talha feita nessa igreja, sendo muito provável que essa permuta tenha se dado no século XIX.

Verificamos pois, que no final do século XVIII havia na cidade da Bahia modelos de retábulos híbridos de barroco e rococó e de rococó e neoclássico. Nesse cenário teremos um caso emblemático, exemplo do contraste de modelos saídos de uma mesma oficina, e do avanço na conformação de um modelo neoclássico de retábulo. O entalhador Antônio Rodrigues Mendes (Arcos de Val de Vez Portugal, 1ª metade do séc XVIII – Salvador, 1792), casou-se na Bahia em 1753. Em 1774 realizou um novo retábulo-mor para a Igreja da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, ainda existente, representa um modelo híbrido de barroco e rococó com o

A cronologia dessa sucessão de obras não é possível determinar, devido ao desaparecimento dos documentos consultados pelos referidos pesquisadores, resta-nos a única balisa cronológica da lápide.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

arremate em dossel bulboso, emblemático da retabílistica baiana do setecentos10. Dezoito anos depois, em 1792 o mesmo entalhador concebeu um exemplar para a Capela do Santíssimo Sacramento da antiga Sé, formalmente bem distante daquele da Santa Casa. O novo modelo recupera o caráter arquitetônico, enfatizando a estrutura, apega-se a um modelo realizado por Andréa Pozzo no altar-mor da Igreja de S. João e S. Paulo, em Veneza (1630-1674) entre outros e divulgado no seu tratado11.

formulação neoclássica, como o da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, outros com forte permanência das soluções barrocas e do Luis XVI, ou nelas inspiradas13. Se tomarmos os modelos de algumas localidades européias como parâmetro, sobretudo a Itália, as estruturas retabilísticas praticadas na Bahia do século XIX se identificam com os modelos barrocos, considerando aí a tendência classicizante de um determinado barroco italiano. Contudo se analisarmos a movimentação local das formas, as preferências da clientela, entendemos que a partir das últimas décadas do século XVIII e por todo o século XIX os entalhadores e pintores, baianos, ou que ai atuaram, inventaram tipos de retábulos bastante diferentes dos seus predecessores.

Caracteriza esse modelo da Capela do Santíssimo da Sé, o arremate em frontão curvo com ressaltos nos cantos e no centro, colunas de fustes retos e canelados, ornamentação fina subordinada aos espaços destinados a ela pela arquitetura do retábulo, havendo uma mudança radical no cromatismo, abdicou-se da predominância do dourado e da variegada policromia da talha barroca e se adotou a bicromia de branco para os fundos e dourado para os elementos decorativos, com marcante predominância do branco.

Não só nos retábulos de altares, mas em toda a talha desse século existe um caráter neoclássico comum decorrente de uma nova moral católica, influenciada pelo iluminismo; pelas novas teorias que demandaram novas práticas higiênicas; pela necessidade de sobrevivência das irmandades e ordens terceiras; por uma nova mentalidade e estilo de vida, com intensificação da vida social e por uma estética renovada.

O novo retábulo da Capela do Santíssimo da Sé não foi, entretanto uma obra consecutiva, pois não houve outras adesões naquele momento, ao contrário, outro modelo de caráter mais decorativo e representativo do estilo Luis XVI, híbrido de rococó com neoclássico, será realizado na Igreja dos terceiros do Carmo nos três primeiros anos do século XIX.

Esse neoclassicismo comum se expressa por ambientes mais limpos e depurados. A proibição dos enterramentos no chão das Igrejas, permitiu a difusão da prática de ladrilhá-los com pedras mármores em branco e azul, ou branco e preto, intercalados; a necessidade de ambientes arejados e iluminados pela luz natural, provocou a abertura de óculos na capela-mor, assim como foram abertas mais duas portas de entrada dos templos, na fachada, ladeando a única porta existente no centro, o que melhorou o fluxo de fiéis.

No novo exemplar dos terceiros do Carmo o gosto pelas estruturas vazadas e pelos ornatos delicados e esgarçados é pronunciado, assim como a manutenção do predomínio do dourado e da “rocaille”, afinal uma ordem tão economicamente poderosa não se conformaria com o pouco emprego de ouro e a simplicidade do modelo há poucos anos implantado na Capela do Santíssimo da Sé.

A talha abandonou por completo o ideal de igreja forrada de ouro do Barroco, toda a ornamentação passou a se limitar às peças, cujas funções litúrgicas e de segurança sempre foram fundamentais: Retábulos-mores, colaterais e laterais; púlpitos; tribunas; coro e arremates de arcos cruzeiros.

A onda reformadora da talha irá se instaurar na Bahia em 1813 com a reforma ornamental da Igreja de N. Sr. Bom Jesus do Bonfim, na qual um novo modelo de retábulo-mor será plasmado, o arrematado por “cúpula vazada sobre volutas” 12 com importante adesão à estética neoclássica, mas com forte inspiração do barroco poziano. Esse modelo repercutirá em grande escala em Salvador, no recôncavo e no sertão baiano sofrendo uma depuração ornamental em cada re-interpretação, mas nunca perdendo sua marca identitária.

A diversidade simbólica do barroco: fênix, pelicanos, puttis, aves bicando uva, querubins, serafins, atlantes, cariátides, mascarões, grotescos, foi decididamente banida da talha e do interior das igrejas. O programa iconográfico pretendido, mas nem sempre realizado, pois passou a encarecer os projetos, constava da colocação de esculturas a todo vulto de alegorias das virtudes teologais, e

Onze outros modelos de retábulos-mores serão criados com a reforma da talha baiana no oitocentos, alguns com estruturas avançadas na 340

A ornamentação sacra católica na renovação estética do Século XIX no Brasil

com menor freqüência, as cardeais. Essas esculturas foram posicionadas preferencialmente no retábulo-mor, ou na sua base, ou no seu arremate. Nos retábulos colaterais e laterais a aparição das virtudes é menor, quando existem, posicionam-se na zona do arremate.

alta e dramática volumetria dos motivos decorativos barrocos. Para finalizarmos esse rol de aspectos distintivos e comuns do neoclássico na talha baiana apontamos para o cromatismo. Nesse âmbito a reforma ornamental foi ortodoxa em abandonar por completo a forte, contrastante e efusiva policromia barroca, trocando-a por uma bicromia, ou tricromia clara, em que o branco, o azul cerúleo e o creme aparecem em abundância nos fundos.

Os motivos ornamentais que predominaram na talha oitocentista baiana foram os provenientes da arquitetura da Grécia e da Roma antiga (capitéis compósitos e coríntios, dentículos, ovalos, pontas de folhas de acantos, caneluras, pérolas, gregas, olivas, guirlandas, festões, etc) e composições de folhas de acanto com fios de pérolas, decrescentes ou não, botões.

Na talha propriamente o branco, o creme, o marmorizado claro é mais utilizado nos fundos, enquanto que nos forros, o azul celeste aparece regularmente. Esses fundos valorizam sobremaneira os ornatos dourados.

As composições das grades dos guarda-corpos dos coros, das tribunas e dos púlpitos, assim como nos arremates dos arcos cruzeiros a presença de composições vazadas em molduras que se metamorfoseiam em folhagens de acantos é extremamente comum na ornamentação baiana do século XIX.

Tal tendência já é verificada no final do século XVIII no mencionado retábulo da Capela do Santíssimo, isso se a sua cor original não foi alterada no século XIX, pois o exemplar foi destruído com a demolição da antiga Sé, e o que nos resta dele é uma fotografia em preto e branco, nos sendo impossível fazer prospecção da camada pictórica para verificar se havia outra mais antiga, diferente da que podemos ver hoje na fotografia, sem esquecer dos limites da fotografia P&B.

Reservas de molduras com fios de trifólios e florões povoam os intradorsos de arcos, os pilares e frisos, aliás, a multiplicidade de florões clássicos na talha baiana é notável. Decididamente os motivos fitomórficos dominam a ornamentação das igrejas reformadas no século XIX.

Conforme verificamos a arte tradicional motivada pela religiosidade católica não ficou imune às transformações mentais e estéticas do século XIX na Bahia. Essas foram assimiladas e adaptadas ao sabor das tradições do gosto local, mantendo o hibridismo comum a toda talha brasileira e inventando novas formas, somente possível pelo diálogo entre o antigo e o novo, mantido por entalhadores decorrentes de sólida formação oficinal no meio baiano e fora dele.

Outra distinção e elemento comum na talha baiana oitocentista é a preferência por retábulos-mores do tipo baldaquino, dotados com muitas colunas, mais do que o necessário para sustentar a cúpula. Seis, oito, dez e até doze colunas aparecem em baldaquinos, como o de N. Sr. do Bonfim, o de Santo Antônio Além do Carmo, entre outros. Reminiscência talvez de modelos implantados no século XVIII, de cujo testemunho mais remoto nos restou o retábulo-mor da Igreja do Convento de N. Sra. da Conceição da Lapa, obra de Antônio Mendes da Silva, realizada em 175514.

O exemplo baiano mostra como a continuidade da produção ornamental das igrejas no Brasil pode ter gerado tipologias novas em outras regiões, ainda mal conhecidas, ou mesmo desconhecidas por falta de pesquisa científica. Urge inventariar esse patrimônio e estudá-lo com vistas à identificar tradições e inovações formais; continuidade de oficinas, implantação de novas oficinas; influências estrangeiras e das diversas regiões brasileiras; trânsito de idéias e circulação de modelos, para que possamos ter um quadro mais completo da renovação estética no Brasil.

É preciso frisar que as colunas utilizadas nos retábulos oitocentistas não são mais helicoidais, seus fustes são retos, canelados e no máximo trazem uma marcação no terço inferior, que pode ser em forma de anel no limite do terço, ou em colocação de delicados ornatos (pérolas, trifólios, etc.) no interior das caneluras, na área do terço inferior, intercalada ou continuamente. A marcação dos três terços é mais rara, assim como a do terço médio.

Referências bibliográficas ALVES, Marieta. Convento da Lapa, Salvador: Prefeitura do Salvador, 1953, 26 p. il. (Pequeno guia das igrejas da Bahia, 13).

É preciso ressaltar que todos os ornatos da talha desse período são realizados com baixa volumetria, sendo, portanto, finos e delicados, contrariando a 341

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 3

BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 2 v. il. v.1, p. 307. FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Talha Neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. 560 p. il. FREITAS, Maria José Rabelo de. Pequeno guia das igrejas da Bahia, XIX, Igreja de N. S. da Palma. Salvador: Prefeitura do Salvador, 1964. MEDEIROS, Maria Beatriz (org.) Arte em pesquisa:especificidades. V. 1, Brasília: ANPAP/ Pós-Graduação em Arte UNB. 454 p. OTT, Carlos. Atividade artística da Ordem Terceira do Carmo da Cidade do Salvador e da Cachoeira (1640-1900). Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo/Fundação Cultural, EGBA, 1998. 252 p. il. Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, 25) ZANINI, Walter. org. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, 1983. v. 1. 2v.

BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v. 1, p. 307. 4 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Talha Neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. p.147-155. 5 Id., ibid., p. 306. 6 FREITAS, Maria José Rabelo de. Pequeno guia das igrejas da Bahia, XIX, Igreja de N. S. da Palma. Salvador: Prefeitura do Salvador, 1964. 7 Id., ibid., p. 10. 8 Id., ibid., p. 16. 9 OTT, Carlos. Atividade artística da Ordem Terceira do Carmo da Cidade do Salvador e da Cachoeira (16401900). Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo/Fundação Cultural, EGBA, 1998. 252 p. il. p. 99-101. (Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, 25) 10 Germain Bazin identificou esse arremate emblemático na talha baiana setecentista e o denominou de “dossel piriforme” (BAZIN, op. cit. V. 1. p. 304) 11 Esse assunto foi tratado com maior profundidade no artigo FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Sé da Bahia na reforma ornamental oitocentista in MEDEIROS, Maria Beatriz (org.) Arte em pesquisa: especificidades. V. 1, pp.164-171. p. 165-169. 454 p. 12 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Talha Neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. p. 203 13 Id., ibid., p. 197-217. 14 ALVES, Marieta. Convento da Lapa, Salvador: Prefeitura do Salvador, 1953, 26 p. il. (Pequeno guia das igrejas da Bahia, 13). p. 10.

Notas 1

Professor de História da Arte Brasileira da Escola de Belas Artes da UFBA/ Doutor em História da Arte/PQII-CNPQ.2 BARATA, Mário. ZANINI, Walter. org. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, 1983. v. 1. p. 381-382.

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Para podermos ter uma dimensão da importância da elite cultural no Brasil deste período, devemos debruçarmos mais pormenorizadamente sobre as personalidades dos Governadores e dos Vice-Reis do Rio de Janeiro, nomeadamente D. Luís Soares Portugal, Marquês do Lavradio, D. Luís de Vasconcelos e Sousa; D. José Luís de Castro, Conde de Resende; D. Fernando José de Portugal e, por último, D. Marcos de Noronha e Brito que, dedicados aos ideais do absolutismo iluminado e à cultura do Humanismo, sob os quais foram educados enquanto membros de uma sociedade de elite erudita, organizavam-se como um só corpo, independentemente do país onde se encontravam. São nobres das mais ilustres linhagens portuguesas do século XVIII, formados para servirem, em nome do monarca D. José I, e sob a orientação e protecção do Primeiro-Ministro Marquês de Pombal, a sociedade civil que, desgovernada e inculta, não sabia governar-se a si própria. Independentemente, do país e do local onde se encontravam, estes nobres deviam guiarse por normas sociais, éticas e morais muito específicas e do ponto de vista cultural, competências em domínios que abarcavam a política, as ciências exactas, a economia, o direito, a astronomia, a física, a botânica, a biologia, a música, as letras, a filosofia e as artes 1.

formas e ambientes: a explosão do ornamento na época de d. joão vi e de francisco i, imperador da aústria

Obras como Ricerche sulla scienza dei Governi 2 ou Il vero dispotismo 3 , incentivam-nos a implementar estruturas que promoviam a prosperidade pública e a felicidade do povo 4 . Influenciados pelo Contrato Social de Jean Jacques Rousseau (1762), deveriam possuir uma forma de lutar contra o clericalismo do poder absoluto dos antigos regimes, que nunca tiveram em conta o bem-estar social comum.

maria joão nunes de albuquerque

A Corte Portuguesa tinha, desde os casamentos de D. João V com D. Maria Ana de Áustria e de Sebastião José de Carvalho e Melo com a Condessa Maria Leonor Ernestina Daun, dama de honor da Arquiduquesa Maria Teresa de Áustria, relações de oficiais e privadas muito estreitas com o Império Austro-Húngaro que se traduziram desde meados do século XVIII, na forma como, sobretudo a partir do terramoto de Lisboa de 1755, foram introduzidas as muitas reformas em Portugal. Circulando nesses meios políticos mais restritos da corte, os governadores e vice-reis nomeados para Angola, Brasil e os outros territórios do Império Português participavam da sua vida cultural e artística, que era também, em muitos aspectos a que se vivia nos grandes centros cosmopolitas europeus, nomeadamente nas cortes de Frederico II da Prússia; de Catarina II, na Rússia; de Gustavo 343

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III da Suécia; de José II, Príncipe dos Estados Alemães, de Maria Teresa da Áustria de Leopoldo de Habsburgo e Grão-Duque da Toscana e futuro Imperador da Áustria. O Marquês de Pombal implementou uma educação que privilegiava a relação do indivíduo com o Estado. Em consonância com o que acontecia em Milão, Pádua, Viena e noutras cidades europeias foram criados, em Portugal, os cargos de mestres em Literatura Latina, Retórica, Gramática Grega e Língua Hebraica, (1761) tão importantes para a formação do gosto pelo antigo que irá desenvolver na corte e nos meios sociais mais cultos o gosto pelo antigo, o grotesco e a chinoiserie.

revelam o cosmopolitismo e as mais privilegiadas relações de trabalho ou amizade de todas estas tramas político-sociais entre estes nobres e com aqueles países6. Voltando ao Rio de Janeiro e ao período de governação como Vice-Rei da colónia, D. Luís Almeida Soares Valadares agia como um verdadeiro representante do Iluminismo Europeu e pôs em prática um projecto de acção políticodiplomático, militar económico-financeiro, social e artístico-cultural muito próximo dos modelos já trabalhados pelos déspotas esclarecidos já anteriormente mencionados, cujas teorias também já circulavam em português. Efectivamente, José Seabra da Silva publica Dedução Analítica, Cronológica e Analytica, um repositório da teoria da política do Absolutismo Iluminista português, onde faz uma crítica muito acidulada ao desempenho da Companhia de Jesus no Império Português, nomeadamente relativamente ao estado do Ensino e dos curricula dos colégios e universidades.

Também no Brasil se assistia a uma rede clientelar e familiar que estabelecia redes de comunicação, em que se incluia a epistolar, que trabalhavam, conjuntamente, para uma política, que na esfera do público, se ligava às linhas programáticas do governo central, mas que na esfera do privado, fortalecia o poder das famílias desses nobres que procuravam a promoção e o poder que lhes tinha sido outorgado desde o início dos Descobrimentos Portugueses na Índia e no Brasil. Efectivamente, quer a família Cunha Menezes5, quer as famílias Ataíde e Mello, Albuquerque ou Noronha, que descendiam da família Gomide Albuquerque Angeja, faziam parte da elite no Governo do Brasil Colonial.

Na série “Resenceamento” das suas cartas publicadas7, relativas ao ano de 1769, o Marquês do Lavradio apresenta um inventário dos engenhos de açúcar, de aguardente, número de escravos, igrejas do Estado do Rio de Janeiro; manda fazer melhoramentos nas fortificações da cidade, entre muitas outras medidas tomadas que cumprem aquele projecto de reestruturação da capital da colónia. No âmbito deste colóquio e da temática proposta, debruçar-nos-emos, no entanto e apenas, nas reformas do Ensino das Ciências e das Artes e sua divulgação, uma vez que as suas decisões e empreendimento que alicerçaram a base cultural que D. João VI e a corte portuguesa encontraram à sua chegada ao Rio de Janeiro, apresentando primeiro aquelas que se situam no domínio e esfera do público e tem directamente com o poder central, seguindo-se depois aquelas que se prendiam com as acções mais restritas e que tinham que ver com o domínio da esfera privada e das relações clientelares, parentais e de amizade, e uma demonstração de poder pessoal e erudição.

É interessante observar a construção do trama administrativa do território português na América do Sul: D. Luís Almeida Soares Portugal tinha sido nomeado Governador da Baía a 4 de Novembro de 1769 com a missão específica de preparar a transferência da capital para o Rio de Janeiro, deixando o Governo da Baía a um parente seu José da Cunha Grã Ataíde e Melo. Outra família que foi relevante para esta comunicação é a família Teles da Silva. Fernão Teles da Silva, 2º Conde de Vila Maior foi militar no Brasil, tendo deixado uma rede de relações clientelares muito importantes que os filhos, Fernão Teles da Silva, encarregue das negociações do casamento de D. João V e responsável pela embaixada que foi buscar D. Maria Ana de Áustria a Portugal e o Conde de Tarouca, João Gomes da Silva, Embaixador de Portugal em Viena durante o reinado de D. João V. As redes parentais e a esfera de relações mantinham-se entre Manuel Teles da Silva, amigo pessoal de Sebastião José de Carvalho e Melo, após o período em que este tinha sido embaixador em Viena e do neto, o Conde Frantisek NostitzRieneck de quem falaremos posteriormente. A inúmera correspondência oficial e pessoal dispersa por diferentes bibliotecas brasileiras e europeias

Após a expulsão dos Jesuítas em 1759, o então Governador do Rio de Janeiro, Conde de Azambuja, fundava, nesse mesmo ano, e para uma elite cultural muito restrita de membros nobres e ilustres e ainda enquadrada na estrutura barroca das academias a dos Selectos, seguindo-se-lhes a Academia dos Felizes, dos Perfeitos, para só citar algumas. Propriedade particular, foi inaugurado em 1679, o primeiro teatro brasileiro em frente à casa dos 344

Ornamento na época de D. João VI e de Francisco I, imperador da Aústria

Governadores. A casa da Ópera do Padre João Ventura, também designada pela Ópera dos Vivos, ficava situada na rua do Jogo, depois rua dos Andradas8 era um teatro de guignols tão em voga em toda a Europa do século XVIII, mas ainda completamente barroca. Este teatro foi destruído por um incêndio em 1769.

neste Continente pertencentes aos 3 reinos: vegetal, animal e mineral [...]11 Não é por acaso que esta carta era endereçada a D. Pedro de Noronha Moniz e Sousa (1716-1788), nobre que viria a suceder a Marquês de Pombal como Primeiro-Ministro de D. Maria I e que com ela viajou para o Brasil. D. Pedro e o irmão D. Henrique de Noronha dedicaram-se especialmente à ciência botânica, tendo iniciado na década de 1750 a estruturação do primeiro jardim botânico de Lisboa, sob a orientação de Domenico Vandelli. Interessante é o facto este naturalista, professor de Química e de Física em Itália, ter ensinado na universidade Carlos IV de Praga e de ter projectado o jardim de Prohonice, domínio privado dos Tarouca na Boémia e um dos primeiros jardins botânicos da Europa. Este especialista terá feito parte do grupo que D. Luís Almeida Soares Portugal convidou para vir trabalhar no Rio de Janeiro.

Por instruções dadas pelo Primeiro-Ministro Marquês de Pombal e na mesma altura em que reforma o Ensino da Universidade de Coimbra, D. Luís Almeida Soares Portugal foi encarregue de gerir o Ensino, substituindo o sistema jesuítico. Foi instituído o “subsídio literário”, imposto destinado a manutenção dos ensinos primário e médio9. Uma das mais importantes acções neste domínio foi a criação da Academia Científica do Rio de Janeiro em 1772 que instalava na própria residência dos Palácio dos Vice-reis onde residia. Os conceitos de arte e ciência, o século XVI e já propostas pela obra Il Cortegiano, de Baltazar Castiglione, estavam particularmente associados ao conceito de natureza expresso por Kant e Hocke e às ciências exactas e experimentais. Para o naturalista e filósofo oratoriano Teodoro de Almeida:

Estes nobres iluministas esclarecidos que vinham na colónia, de Portugal e dos grandes centros difusores de cultura portugueses são também os dois cientistas italianos, Domenico Vandelli e Giovanni della Bella, projectaram o Gabinete de Curiosidades, futuro Museu de História Natural do Rio e um laboratório de Química.

a utilidade das ciências, no âmbito da reforma da vida do homem em sociedade, [...] característico do ideal iluminista; é [...] o culminar desse processo [...], no quadro de uma aliança entre a teologia natural e a filosofia experimental. Esta “ atitude [...] [assumida] pelos modernos, num novo contexto assinalado pelo apogeu da física matemática, continua a perceber o sentido divino das realidades visíveis, num processo que muito aproxima estes autores do pujante movimento dos virtuosos [...], onde militaram os grandes vultos do naturalismo europeu dos séculos [...] XVIII.10

A colecção Mayense do Museu de Física da Universidade de Coimbra conservou 10 peças que terão muito possivelmente pertencido ao Gabinete de Curiosidades do Rio de Janeiro, de que destacamos a título de exemplo, o barómetro de quadrante, construído em latão, vidro, pau-santo e pau-rosa de madeiras que terão sido enviadas por Constantino Lacerda Botelho Lobo do Brasil para Lisboa. O carro Constantino Botelho de Lacerda12 a partir da experiência do Marechal General Conde Lippe, nascido na Boémia e militar importante na organização da Infantaria austro-húngara da Guerra dos Sete Anos e, posteriormente na de Portugal, quer na metrópole, quer no Brasil, nomeadamente no Rio, situações que revelam a partilha entre saberes entre nobres que são homens do mundo.

Numa carta endereçada ao 3º Marquês de Angeja a 6 de Março de 1772, D. Luís de Almeida Soares Portugal expunha as bases dessa academia de que transcrevemos um pequeno excerto: [...] vendo eu o pouco caso que na América se fazia das suas preciosidades que não fossem ouro, ou diamante tendo todo este Estado [...] admiráveis plantas e raízes, óleos, bálsamos e gomas [...] deixando por esta causa de se aproveitar mais este ramo de comércio [...] resolvi-me a fazer um ajuntamento de médicos, cirurgiões, botânicos, farmacêuticos, e alguns curiosos [...] formando com eles uma assembléia, ou academia para se examinarem todas as cousas que se puderem encontrar

A partir desta partilha de conhecimentos técnicos daquele militar com o novo continente foram descritos e desenhados nos seus livros de infantaria, cujos uniformes foram criados para os soldados, tambores e oficiais do Reino. O Alvará de 24 de Março de 1764, regulamentava o uso dos uniformes para o Exército e Marinha, “dava-lhes um aspecto igual, por Armas (infantaria, cavalaria, etc.) ou seja o mesmo feitio, sendo os 345

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regimentos distinguidos uns dos outros pelas cores das golas, bandas, canhões das mangas, forros, calções e véstias. O Exército do Reino fardaria todo o Exército de Infantaria e Cavalaria de azul ferrete com excepção para os tambores e pífanos. A Marinha vestiria de verde”13.

propaganda e poder na esfera do público. São do mesmo período os seis carros alegóricos, inventados e executados por António Soares Francisco, de que apresentamos o segundo, que representa Júpiter, Deus do Céu e da Luz.17 A nível local, o mestre Valentim da Fonseca e Silva a viver no Rio desde 1770 faz uso dessa mesma gramática erudita. Em frente ao jardim público projectou e construiu majestoso chafariz das Marrecas, um arco de pedra liós cujo centro era preenchido por marrecas de bronze. Eco e Narciso 18 as duas figuras mitológicas que se banhavam, cada uma em sua concha de água Eco, no seu pedestal, olhava Narciso, Narciso olhava o seu próprio rosto -, metáforas de uma sociedade erudita que oscilava entre o passado e um futuro que traria, com a chegada da corte de D. Leopoldina os ideais de autodeterminação e autonomia que se viviam na corte austríaca em Viena e que fariam o seu pai abdicar do título de Imperador do Império Áustro-Húngaro, passando a governar apenas como Imperador da Áustria.

Na esfera do privado, a sintonia com os países pertencentes ao Sacro Império Romano era evidente, nomeadamente na criação dos mesmos espaços de corte eruditos. Em 1776, D. Luís Soares Portugal mandava edificar o Teatro de Luís Vivos e de frente ao palácio do Governador. O teatro ocupava: Dois pavimentos, com janelas de peitoril, na fachada uma porta e quatro janelas no primeiro pavimento e cinco no segundo; a face voltada para o Largo do Paço apresenta nove janelas em ambos os pavimentos e, a que dava para a Travessa do Paço tinha no primeiro pavimento oito janelas e uma porta. No interior a sala apresentava duas andares de camarotes dispostos circularmente estava:

Em 1777, o Mestre Valentim Fonseca projectou o jardim público, e em 1779, inaugurou-se o jardim zoológico da cidade, também conhecida como Casa dos pássaros, obras de urbanismo que D. Luís de Vasconcelos e Sousa recebia do seu antecessor e a que daria prosseguimento19.

iluminado por arandelas e lustres de cristal, destacando-se à direita, ampla e ornamentada, a tribuna do Vice-Rei, cujas cortinas, de damasco e ouro, eram encimadas pelo escudo real e os dragões de Bragança. Adornado de vistosas bambinelas, sobressaía no acanhado palco um riquíssimo pano de boca, pintado pelo pardo Leandro Joaquim, artista de reputação célebre e seu principal cenógrafo.14

Um outro exemplo de erudição e cultura a nível regional é o caso de José Mariano da Conceição Xavier. Nascido em S. João del Rei, empreende uma viagem pela floresta do Rio de Janeiro entre 1783 e 1790, e publica a obra Flora Fluminensis20 partindo depois para Lisboa para trabalhar com Domenico Vandelli na comitiva de D. Luís Sousa Menezes, que terminava a sua missão no Rio. A sua dedicação ao trabalho no jardim botânico da Ajuda levaram-no a fazer parte dos botânicos da Academia de Ciências de Lisboa que D. Luís Almeida Soares Portugal e o Duque de Lafões, D. João Carlos de Sousa Ligne, filho do Príncipe Carlos José de Ligne, embaixador na corte do Imperador Leopoldo III e de mãe portuguesa regressava a Lisboa em 1777, fundaram com a experiência adquirida anteriormente.

O excerto parece traduzir os ensinamentos de François Cuvillès, o introdutor do estilo rocaille em território Habsburgo15, onde Mozart apresentou, em estreia, a Ópera Idomeneo, em 1781. Ambiente e ornato são próprios desta sociedade cosmopolita no Brasil definidos em obras como Ricerche intorno alla natura dello stile16, publicada em 1770, para o ideal de homem sensível, com um carácter virtuoso e filantropo. A cultura classicista, onde se admira a grandeza das estátuas e desenhos da mitologia greco-latina retrata-se Na Relação dos Magníficos carros, que se fizerão de arquitectura, perspectiva e fogos…” que descreve minuciosamente o cortejo realizado no Rio de Janeiro a Janeiro a 2 de Fevereiro de 1786 para festejar o casamento de D. Carlota Joaquina com o futuro D. João VI, onde existe uma colecção de seis desenhos a bico de pena, incluídos no manuscrito que reforçam esta ideia de partilha e de coerência na explosão de ornamentos que se utilizaram nos programas de

Terá também sido Domenico Vandelli21 o autor e orientador das instruções compostas para a Flora fluminensis. Estas expedições foram muito importantes para a partilha de conhecimentos de novos mundos e a criação de ambientes exóticos muito ao gosto da época. Prova deste facto é a pintura decorativa realizada para os quartos imperiais da Arquiduquesa Maria Teresa de Áustria e de José II no Palácio Schonbrunn em Viena, 346

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quartos que a princesa Leopoldina terá conhecido, enquanto aí viveu. Pintadas por volta de 1777 pelo pintor checo Johann Bergl, a partir de estampas e gravuras estrangeiras, estes quartos procuraram criar a ilusão de se estar num ambiente tropical, ambiente exótico existente também noutros espaços do palácio, nomeadamente na série de tapeçarias, com motivos de paisagens brasileiras, plantas e animais tropicais das colecções da América do Sul; no antigo Jardim Botânico (hoje, o palmarium), e no zoo de Schönbrunn.

o 1º Engenheiro tenente José Leal Teixeira, realizou quando integrou uma comissão de técnicos, tendo feito um minucioso relatório sobre a situação, onde incluiu uma série de plantas desenhadas a nanquim e aguarela em papel fino colado sobre cartolina, hoje documentos importantes para o estudo da arquitectura militar23. O rei D. João VI procurava manter as suas linhas de governação nas colónias e de orientação relativamente às preferências diplomáticas seguidas, nomeadamente durante o período de ocupação de Portugal pelas tropas napoleónicas, entre 1807 e 1818. As invasões napoleónicas foram a causa de profundas mudanças no Império-AustroHúngaro e mais particularmente nos reinos da Boémia, Morávia e Hungria. A Declaração de Pillnitz e o Tratado de Aliança entre os Habsburgos e a Prússia a 7 de Fevereiro de 1792 durou pouco mais de dois meses. Logo após a morte de Leopoldo II a Assembleia Constituinte francesa declarava guerra a Francisco I, rei da Boémia e da Hungria, alterando definitivamente o palco político da Europa Central absolutista, que se via envolvida nas três alianças contra Napoleão. O Imperador francês julgou poder manter isolada a Grã-Bretanha, “querendo conquistar o mar pelo poder na terra” , mas a 22 de Outubro desse ano, a família real era transportada em navios sob escolta inglesa para o Brasil.

São do mesmo ano duas cartas do Marquês de Angeja sugerem a D. Luís de Sousa Menezes sugerindo que naturalistas acompanhassem os matemáticos nas missões de demarcação22. O governo de D. Luís de Castro -1790/1801 -, 2º Conde de Resende e 5º Vice-Rei do Brasil assumiu contornos diferentes. A fase da eclosão do espírito reformista e a penetração dos ideais enciclopedistas foi responsável pelas conjurações autóctones em vários estados do Brasil. A revolta mineira no ano anterior ao da sua chegada, levouo a temer os intelectuais e a fechar a sociedade literária, onde a vontade de igualdade e de liberdade se tinha acendido. Mas tal como nos outros países do Centro-Leste Europeu em luta pela autodeterminação dos povos, o bem-estar social era ainda regulado pelo absolutismo esclarecido. A Europa estava em guerra. As obras de remodelação dos fortes foram outra das prioridades, tal como a do apoio à reconstrução dos edifícios do território dos setes povos das missões do Sul do Território e fronteira com o Uruguai.

Na distância entre estes dois continentes, e as duas Europas - a Continental e a Ocidental – há dois modelos programáticos de concepção do poder diferentes que se estruturaram na possibilidade da construção de um Império, absolutista e dinástico na nova capital portuguesa do Brasil que se espelhavam nas personalidades e modos de actuação das duas personalidades femininas. A Ocidente, a mulher de D. João VI, a Imperatriz D. Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon, representante da linhagem em terras americanas promovia uma actividade diplomática entre estes dois países e uma reacção muito acesa. A América do Sul era, pela primeira vez, vista como uma unidade geopolítica e considerava-se a possibilidade de um projecto que elejesse rainha dos territórios do Rio da Prata, incentivando os primeiros sintomas de emancipação. Ao contrário do que promovia D. Leopoldina, que defendia a unidade do território português, D. Carlota Joaquina queria para si ou para o seu irmão Fernando VII, o trono das províncias espanholas da América. A invasão das tropas napoleónicas a prisão da família real espanhola e a partida da família real portuguesa para a colónia goraram, no entanto, os planos da imperatriz.

D. Fernando José de Portugal e Castro, 1º Conde e 2º Marquês de Aguiar, casado com Luísa Lorena Teles da Silva teve um período difícil também no Brasil com as leis da abolição da escravatura, que se tornavam um imperativo no mundo civilizado. As suas meticulosas anotações realizadas sobre o Regimento de Infantaria e de Cavalaria e sobre a governação da capital da colónia são um documento importante para a recriação da vida no Rio de Janeiro sobre esse período. D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos, ao contrário dos seus dois antecessores, procurou dar maior incentivo às artes e às letras, procurando igualar Lisboa na construção de novos teatros e na abertura de novas tipografias que difundissem a notícias que vinham da Europa. Técnicos militares foram mandados para examinar as fortificações e para melhorar o sistema defensivo. Como apontamento poderemos referir o manuscrito que, em 1810, já depois da chegada da corte em 1808, 347

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A chegada da comitiva tinha trazido, no entanto, e a nível cultural e artístico novo folgo à cidade. Depois das muitas festividades que mantiveram o programa decorativo ainda muito próximo daqueles que tinham sido utilizados anteriormente, o neoclassicismo impôs-se na arquitectura das novas moradas. D. João VI utilizou e reorganizou algumas estruturas pontuais deixadas pelos vice-reis, mas traçou um projecto concertado e visionário de uma nova capital. O resultado mais visível deste período de preparação do novo urbanismo do Rio de Janeiro foi a presença de uma nova classe dirigente que recorria a técnicos especializados, administradores, letrados e artistas conceituados nas melhores universidades portuguesas e europeias que tinham vindo com a comitiva. D. Fernando José de Portugal e Castro fundou a primeira tipografia e publicou o jornal Idade do Ouro no Brasil. Para guardar os milhares de livros da Biblioteca Real e das muitas bibliotecas privadas que lhe foram oferecidas foi da a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro, hoje Biblioteca Nacional do Rio para a qual foi nomeado Luís Joaquim dos Santos Marrocos, por cuja correspondência, recebemos em primeira mão, muitas notícias que enviava para Lisboa. Algumas cartas escritas ao pai são particularmente interessantes. A de 22 de Novembro de 1811, participava a morte de Fr. José Mariano Veloso, sendo a sua biblioteca de 2.500 volumes integrada na Real Biblioteca.

pequenas; no friso estava escrita a data 1813 com caracteres romanos. Havia um terraço ou varanda na frente do edifício que serviu de palco para importantes pronunciamentos históricos. Identificando-se com o antigo teatro Frantisek Nostitz-Rieneck, (a que já nos referimos, e já Real Teatro dos Estados de Praga, nacionalizado em 1798 pelos Estados Checos), a decoração do teatro do Rio de Janeiro, de que destaco a pintura do pano de boca onde se via a entrada da esquadra portuguesa na baía da Guanabara, conduzindo a família real, é apresentado do seguinte modo em dias de espectáculo: nos dias de gala comparecia toda a família real ao teatro, que se mostrava ornado de sedas, de flores e iluminado com arandelas e lustres. Logo que se abriam as cortinas encarnadas com franjas de ouro, que fechavam a tribuna, aparecia o príncipe regente acompanhado de toda a sua família. Os camarotes, principalmente os de segunda ordem, eram ocupados pelos fidalgos, que se apresentavam com fardas encarnadas bordadas de ouro e cobertas de condecorações, e as damas com altos toucados, onde resplandeciam pérolas e pedras preciosas. Cortinas de seda, ramos, grinaldas de flores enfeitavam os camarotes... Havia dois panos, um talar e outro de boca: aquele representava a entrada da família real na barra do Rio de Janeiro, as embarcações e fortalezas a salvarem e grande quantidade de botes, canoas e faluas.

É profuso em informações sobre a remodelação da Quinta da Bela Vista e a construção do Teatro Real de S. João. Sente-se a animosidade que nutria pelo Governador e que é notória noutro excerto que apresentaremos de seguida, mas é curiosa a forma como a história nos é contada em primeira pessoa em carta de 28 de Setembro de 1813: “A toda a pressa se está aprontando uma casa de Opera no sitio de botafogo” e seguidamente “Do novo theatro que vai a abrir-se no dia 12 de Outubro, e que tem sido feito à imitação e grandesa de S. Carlos, a troco de despesas incríveis, queria Marcos ser dispotico director com 2.000$000 e alem de benefícios o melhor Camarote da bocca”.

Destruído por um incêndio a 25 de Março de 1824, o Real Teatro de S. João ficou perpetuado por uma aguarela de Thomas Ender, o pintor austríaco na viagem que fez ao Brasil, inserido na Missão oficial chefiada pelo Barão de Langsdorff, e onde se encontravam também Johann Von Spix e Carl Von Martius, dois dos maiores pesquisadores da fauna e flora brasileira. A princesa Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo, cuja entrada, a 6 de Novembro de 1817, foi retratada no leque que aqui incluímos, e que terá sido usado em alguns dos eventos sociais, nomeadamente no teatro. Este leque comemorativo do casamento de D. Pedro com a princesa e, no verso, um pássaro e várias flores do Brasil, foi copiado de uma pintura de Jean-Baptiste Debret. Fabricado em papel pintado a guache, com varetas esculpidas e gravadas, este leque representa uma completa mudança de gosto, pautado pelo domínio francês e sentida no Rio após a chegada da Missão Artística Francesa ao Rio de Janeiro (1816), que,

Por Alvará de 28 de Maio de 1810, o projecto do Engenheiro Marechal do Campo João Manuel da Silva construiu em terreno pantanoso que pertencera a D. Beatriz Ana de Vasconcelos e adquirido por Fernando José de Almeida, e perto do Largo de São Francisco de Paula, o teatro mais importante do Rio de Janeiro desse período que Henrique Marinho descreve do seguinte modo: Na frente o theatro tinha apenas um único andar, havendo porém, sobre as três janelas do centro, outras três de peitoril muito 348

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chefiada por Le Breton, sobressaem os pintores Nicolas-Antoine Taunay, Félix-Émile o escultor Auguste Taunay e Jean-Baptiste foi trazida com o patrocínio de d. João VI para preparar a chegada da princesa.

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D. Leopoldina partiu da capital do Sacro Império Romano e foi viver para a Quinta da Boavista, residência de D. João VI, numa altura em que a nova política do auto-determinismo e dos nacionalismos se consolidava na velha Europa Central, de quem a princesa bebia na fonte. Esta princesa teria uma grande influência na proclamação do Rio a sede de governação (1815), tendo encorajado as aspirações de unidade que existiam nas províncias meridionais, especialmente em São Paulo. A sua educação, no entanto, estaria marcada pela sociedade e valores setecentistas: D. Leopoldina viveu acompanhada por numerosos cientistas, botânicos e pintores, dedicada ao estudo da botânica e mineralogia que tinha iniciado em Schönbrunn e que não esquecera. Com efeito, em 1818 enviou para o pai, já Imperador Francisco I de Áustria, a primeira remessa de animais, vegetais, e outros objectos etnográficos, acondicionados em 36 caixas de porão, que fundou, num palácio do centro da cidade o Brasilium, o primeiro museu brasileiro de Viena, convertido em Museu Nacional de Belas Artes, diminuído o interesse do Imperador pelo mesmo depois da morte da princesa em 1835.

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Entretanto, em Lisboa a situação também se tinha modificado., Ressentida e prejudicada pela assinatura do decreto de Abertura dos Portos às nações Unidas, já em 1808, a grave situação económica vivida em território europeu português, a após a derrota de Napoleão, a Revolução da classe burguesa e mercantil no Porto, a 24 de Agosto de 1820, chamaria D. João VI a Portugal em Fevereiro de 1821, tendo a corte regressado a Lisboa a 26 de Abril de 1821. Pelas razões expostas, previa-se a continuação dos movimentos intelectuais para que levariam à independência do território, concretizada a 7 de Setembro de 1822, iniciada nas margens do rio Ipiranga, na região de S. Paulo, durante a regência de D. Pedro. Terminaria assim o período político e social marcado pelos ideais de uma Europa absolutista que sonhou com um grande Império. Do ponto de vista cultural e artístico fechar-se-ia um ciclo que consagrava os cânones estéticos e filosóficos de uma urbanidade cosmopolita que se difundiu e fundiu pelos diferentes continentes.

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VELOSO, José Conceição Mariano. Florœ Fluminensis Icones fundamentales ad vivum expressœ jussu illustrissimi ac prœstantissimi domini Aloysii Vasconcellos & Sousa, a sacratioribus conciliis S. Magestatis, totius ditionis Brasiliœ mari terraque Prœtoris generalis, ac ProRegis IV Fluminensis &c. ,1790, Edições em 18251827 e 1832

CRULS, Rio de Janeiro, 11 de Maio de 1979: a indicação que esta investigadora dá e de que o teatro se situava na“Rua do Fogo - também chamado Caminho Prás Pedreiras, no Largo do Capim. A Rua do Fogo é hoje Rua dos Andradas. O local desapareceu com a abertura da Av. Presidente Vargas”. 9 Azevedo, Rio de Janeiro, 1963, p. 599 10 Calafate, Lisboa, 1999, 11 Marquês do Lavradio. Cartas do Rio de Janeiro..., carta 355, p. 96-97 12 Lobo, 1812, vol I, p. 329 13 Rodrigues, www.viriatus.com 14 Azevedo , M. D. Moreira de, 1963, Morais Filho, Morais, Alexandre José de Melo. Factos e memórias... Rio de Janeiro, H. Garnier, 1904. 15 Teatro da residência do Eleitor da Baviera, Maximiliano José III 16 Biffi, Giambatttista, Ricerche intorno alla natura dello stile, Milão, 1770. 17 Mendonça, 2001, pp. 301-328. 18 Callado, Rio de Janeiro, 10/2/90 19 Mestre Valentim Fonseca e Silva entrega o projecto do Recolhimento da Nossa Senhora do Parto a D. Luís de Vasconcelos e Sousa, João Francisco Muzzi, 1789 20 Veloso, 1790. Impressa em 1825-1827 e 1832. 21 Brasiliana, BNRJ, p. 58 Vandelli é também autor de Memórias sobre as Minas de ouro e de Diamantes do Brasil, Anais da BNRJ, Rio de Janeiro, 1898. 22 Marquês de Angeja, Lisboa,1818, pp. 47-50 23 BNA, Lisboa, Ms. 279 – 1867 4876 IA

Notas 1 Molleret, 1958, p. 189 e segs. Les hommes de lettres sont hommes cosmopolites et de toutes les nations. 2 Gorani, Livorno, 1759 3 Gorani, Génova, 1768 4 Verri, Milão,1763, Verri, Genova 1781, período que corresponderá aos Governos de D. Luís de Castro, Conde de Resende (1790 a 1801); de D. José Fernandes de Portugal e Castro (1801 a 1806); e ainda de Marcos Noronha e Brito, Conde de Arcos.(1806 a 1808). A reedição da obra revela a actualidade que os ideais do absolutismo esclarecido mantém na Europa do Sacro.Império Romano. 5 “A família Cunha Menezes ocupou a governança de importantes capitanias da segunda metade do século XVIII. Francisco da Cunha Menezes foi governador de São Paulo, de 1782 a 1786, vice.rei da Índia de 1786 1 1794 e da Baía, de 1802 a 1805 6 BNL- Arquivo Tarouca, Colecção Pombalina; BNRJ – Fundo Marquês do Lavradio; ANTT- Colecção Pombalina 7 Fundo Marques do Lavradio, Inventário, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1999

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Muito se falou de quem fez uma obra de arte, para quem foi feita e os possíveis porquês, do seu estilo, das suas técnicas, dos seus contextos (sociais, políticos, econômicos), entre outras abordagens. Se hoje as grandes obras apresentadas pela história da arte estão, não por acaso, encerradas em museus, fincadas em paredes que se pretendem ‘neutras’, nem sempre foi assim. Parece que todas as obras dignas de serem chamadas obras de arte foram naturalizadas pelos museus. Se tomarmos o sentido de naturalização como o “ato pelo qual um indivíduo se torna cidadão de um país em que não nasceu, perdendo sua nacionalidade de origem” (HOUAISS, 2001: 1998), a obra que foi musealizada assumiria outra naturalidade e perderia a sua identidade local original. O local de onde a obra partiu é substituído, então, anulando a procedência: do ateliê, do palácio, da casa ou da galeria. O lugar para onde o quadro foi idealizado passou a conviver com um vazio – a falta do quadro. E cada novo lugar abriu espaço para abrigar a obra e a re-contextualizou. De certo que tal interpretação não é válida para todas as obras, pois muitas foram idealmente pensadas para museusTambém não é o caso da perda de origem merecer postura de total desconsideração do lugar natural da obra, ou seja, de onde ela foi proveniente ou para onde foi idealizada. Mesmo que alguém se naturalize, não se despe de sua origem, não se livra de suas marcas natais. Elas permanecem enraizadas, apesar de propensas a se somarem a outros registros ganhos em novo lugar ou estarem intencionalmente encobertas pelos artifícios do novo contexto.

ambientes interiores e o ideal decorativo - em busca de lugares para a arte marize malta *

Naturalização também pode ser entendida como “adaptação bem-sucedida de uma espécie a uma nova região, resultando em seu estabelecimento e propagação, sem a intervenção do homem” (Id., 2001: 1998). Tal sentido leva a idéia de que o museu naturalizou o lugar da obra. A naturalidade da obra, tomando a palavra como identificadora do local de nascimento, ficou ilusoriamente identificada com o museu, que posiciona as obras em novo território. A obra também mudou de locação, adotando posição completamente diferente daquela que originalmente se encontrava. A localização da obra define e especifica uma posição espacial que interfere na observação da obra e nos significados atribuídos a ela. Entretanto, diferente dos afrescos, que não possuem a mobilidade das telas de cavalete, o quadro tem a possibilidade de adquirir vários domicílios e assumir outras naturalidades. Sendo assim, devem-se considerar os vários lugares da 351

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obra no seu processo de significação (Cf., LEPPERT: 12), pois em cada espaço que a abrigou, cada obra assumiu posições específicas que permitiram alguns pontos de vista e modelaram certas expectativas visuais, dirigindo o modo como se fez visível.

Com seria, então, olhar para a arte oitocentista finessecular de dentro das casas que a acolhiam? Entremos e vejamos... A decoração doméstica oitocentista, especialmente aquela de fins do século, identificada como de ordem eclética, trouxe novas questões sobre o lugar da arte. Aquilo que era próprio do banal e cotidiano oferecia novos horizontes e novas superfícies para a arte. O lugar da intimidade abria-se para o prazer visual. Nele seriam depositados atrativos para o olhar e deleite para o espírito. Como se dizia em fins do século XIX: “É necessario que o logar em que se vive a maior parte da existencia contenha elementos de prazer, que dê á vista a idéia do bello sob todas as suas formas” (SYLVINIO JUNIOR: 133). O lar assumia o lugar de guia visual e os olhares se voltavam para ele. As imagens de arte sobrepunham-se às paredes e se expunham aos olhos de todos (os convivas).

O que nos interessa aqui é chamar a atenção para os lugares dos quadros que não sejam museus e dos olhares sobre as obras que não considerem exclusivamente sua posição em museus, galerias privadas, exposições públicas, locais normalmente tomados como próprios para trabalhos de arte. Falamos de outros locais em que obras de arte estiveram presentes, nos interiores domésticos, por exemplo, onde muitas telas foram destinadas e que pouco têm participado na composição da historiografia da arte. E se falamos em interiores domésticos, a preocupação decorativa entra no contexto e permite reposicionar a arte como elemento decorativo.

A decoração adequada, ordenada e asseada não só embelezava o lar mas era garantia de bem-estar familiar. Fixava-se quase como uma obrigação saber tornar os ambientes domésticos agradáveis, onde a família encontrasse um lugar ideal para o descanso e lá descobrisse a felicidade (a partir do visual). Diversos manuais foram editados para orientar o interesse expandido pelo decorativo nas casas, guiando escolhas e locações de revestimentos, móveis, estampas, cores, objetos. A maioria das publicações sobre o assunto que chegou ao Rio de Janeiro data de fins do século XIX em diante. Muitos desses guias integraram bibliotecas institucionais e particulares, disseminando suas idéias por meio dos discursos de seus textos e das imagens que veiculavam. Também serviram de referência para os manuais de economia doméstica editados no Brasil, visto que a decoração de interiores era assunto integrante da “arte de dirigir e regular economicamente as cousas de casa” (FERREIRA:1).

As questões ligadas ao decorativo, sob seus vários aspectos, estiveram em destaque a partir do século XIX, inclusive aquelas relacionadas à decoração de interiores doméstica. Muito provavelmente por esse motivo pouco têm dialogado com os estudos referentes à arte, raramente afeitos a coisas menores ou a coisas de-coração1. A significativa produção em torno do decorativo propiciou uma nova maneira de olhar para as coisas, cuja localização, posição e arranjo das imagens intramuros trouxeram outros sentidos para a produção artística. Desejamos inserir a problemática da dimensão decorativa nos debates sobre a arte brasileira oitocentista, apresentando algumas reflexões sobre o processo de decoração das casas e as questões referentes à localização dos objetos de arte nos ambientes domésticos e as implicações que esse procedimento trouxe para um novo olhar. Partiremos da análise das orientações dos principais manuais para a decoração do lar de fins do século XIX e início do XX que, como seus títulos sugeriam, apontavam para o desejo de introduzir arte dentro das casas. Títulos como L’art dans la maison, de Henry Havard; L’arte in famiglia, de Alfredo Melani, The house beautiful and useful, de Elder-Duncan, The house in good taste, de Elsie de Wolfe, e The art of the house, de Rosamund Watson, atestam o quanto a arte, beleza e bom gosto eram valores a serem destacados nos ambientes das casas aburguesadas, envoltas por uma infinidade de revestimentos e objetos com suas múltiplas formas, cores e texturas.

O lar tornava-se lugar privilegiado para a educação do olhar para a arte – um olhar decorativo. Diferente do olhar estético aflorado em visitas a galerias, salões de arte, museus, o olhar para a arte dentro de casa demandava outra postura. A arte porta adentro, a arte da domesticidade, apontava para um olhar diferenciado – o olhar decorativo. A partir da leitura dos manuais podemos observar a crença na influência benéfica que entornos aprazíveis poderiam atuar nas pessoas. Eles falam das motivações para decorar. Ao escolher objetos, cores e texturas, atuava-se como um educador do olhar, ao dispô-los artisticamente nos ambientes, 352

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aprimorando o gosto daqueles que iriam conviver com lugares decorados.

outra e deveria estar de acordo com a atmosfera geral do cômodo. Portanto, seleção e disposição eram aspectos primordiais para elaborar uma decoração (ELDER-DUNCAN: 24). A pintura, como elemento decorativo, deveria se conformar ao esquema expressivo escolhido para o cômodo que iria abrigá-la e, assim, a tela se submetia aos desígnios decorativos.

A decoração dependia de um conjunto de vários elementos que se relacionavam: “[...] house decoration implies an organic scheme of colour, form and proportion, to bring all the parts and appoitments of a room into harmonious relation with each order” (ELDER-DUNCAN:19). Constantemente encontramos advertências para se evitar discrepâncias. Cada cômodo teria uma decoração que harmonizasse com sua finalidade, fosse coerente com o restante da casa e apresentasse certa atmosfera peculiar. A decoração, por conseguinte, partiria de uma idéia de expressão e de personalidade.

As recomendações seguiam, de início, uma tipologia que guiava o arranjo final da decoração, uma espécie de decoro, que estabelecia o que seria mais apropriado para cada tipo de cômodo, tipo de casa (pequena, média ou grande), para cada padrão de vida familiar (menos ou mais modesto). Cada ambiente ofereceria distrações aos olhos com a distribuição de belos objetos em lugares precisos ou prováveis, sem que houvesse excessos. Com as campanhas sanitaristas alargando seus postulados higienistas pelos interiores domésticos, alguns manuais mais ortodoxos recomendavam, em prol da saúde, até evitar quadros nas paredes, em virtude de acumularem poeira e micróbios (MOLL-WEISS: 126). Exageros à parte, os quadros eram cada vez mais requisitados nas decorações, mesmo que demandassem limpezas periódicas. Além de seus atributos estéticos, podiam servir para repousar os olhos e fazer esquecer, por um instante, a vida real.

Em Noções da vida doméstica, Félix Ferreira apresentava a fórmula para interpretar a aparência da decoração de interiores: A boa ordem reina em casa e dá ideia da economia que a governa quando ao primeiro lanço d’olhos reconhecem-se os habitos laboriosos e caseiros daquelles que a habitam, e isto se manifesta claramente pelo arranjo dos moveis, dos adornos, pelo aceio e cuidado com que estão dispostos. Se a confusão reina por toda a parte, se as etagéres e dunquerques estão pesados de objectos inuteis, se os livros amontoam-se nas cadeiras e as musicas sobre o piano, é que a prodigialidade e a desordem predominam nesse lar. (FERREIRA: 170-171)

Os quadros, como outros objetos de arte, cumpriam variados papéis: entreter os convidados, tornar sua estada agradável, oferecer cordialidades visuais, contribuir para expressar o gosto da família que possuía tais peças e educar olhos inexperientes. Para isso, recomendava-se que as boas peças de arte devessem ser procuradas no ambiente e nunca se impor ao olhar (HAVARD: 382). Elas não estariam em destaque, mas acomodadas de tal modo que parecessem naturais ao ambiente, parte indispensável da organicidade do cômodo. Mesmo assim, as obras eram para serem notadas e até admiradas. Os quadros disputavam, desse modo, interesse tanto de olhos alheios ao ambiente quanto dos olhos caseiros: “Ornamentem as paredes e terão uma nobre officina ad home, logar de honra e trabalho, ensinando aos estranhos como as asperezas da vida são amenizadas pela intelligencia e pelo amor ao lar”. (SYLVINIO JUNIOR: 47)

A decoração porta adentro inaugurava mais um código para leitura das aparências. Além de formas vestimentares e modos de se comportar em público, as maneiras de preencher as casas com objetos concorriam para intensificar as normas disciplinares sobre modos de ver e reconhecer a personalidade dos outros que, nem em casa, escapavam de estar sendo avaliados. As regras para decoração criavam indicadores precisos para se reconhecer com segurança o caráter das pessoas e suas personalidades, assumindo, a imagem decorativa, o papel de símbolo psicológico (cf., SENNET: passim). A grande dificuldade e, segundo os guias, os piores resultados estavam na combinação dos padrões que envolviam cores, estampas, materiais diferentes. Quando se acomodavam tapeçaria, tapete, carpete, tecidos e papel de parede em um mesmo cômodo havia que se pensar no efeito que cada peça exerceria sobre a outra e nos móveis e demais objetos que estivessem presentes. Nenhuma peça chamaria mais atenção do que

Nas casas ideais (familiares e burguesas) cada tipo de pintura parecia ter destino certo: pinturas a óleo na sala de jantar, gravuras ou aquarelas na sala de visitas (ELDER-DUNCAN: 152). Nas salas de jantar, por volta de meados do século XIX, davamse preferências aos vermelhos e verdes nas paredes porque, segundo se acreditava, melhor 353

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combinavam com as molduras douradas dos quadros. Nessa situação, a moldura da obra dirigia a decoração e a cor do ambiente era escolhida em função de melhor destacar os limites das telas, e por conseqüência, os quadros.

exemplo, era comum sugerir uso de pequenos quadros ladeando as camas, geralmente sobre as mesas de cabeceiras. Sobre uma secretária ou cômoda-toilette também era comum dispor paisagens emolduradas, nem sempre totalmente desimpedidas para visualização, visto que jarros de flores, castiçais ou pequenas estatuetas poderiam estar à frente do quadro, mostrando que a imagem retratada não deveria estar sempre em destaque. Em alguns arranjos de sala, móveis, como biombos, por exemplo, poderiam interferir na visualização dos quadros, ficar à sua frente, colocando-os na posição de fundo decorativo.

Nos vestíbulos, nada de quadros elaborados, que precisariam de boa luminosidade para poderem ser devidamente apreciados. Deveriam, contudo, ser agradáveis aos olhos: “Let the picture be of a decorative rather than a pictorial character” (ELDER-DUNCAN: 140). Era considerado exemplo de generosidade oferecer um ambiente cercado de beleza para que tornasse menos penosa a espera, normalmente ocorrida nos vestíbulos. Em finais do século XIX, sugeria-se uso de gravuras, preferencialmente japonesas, com temas frugais.

Não só paredes serviam de anteparo para quadros. Eles eram submetidos a várias situações: sobre mesas, apoiados em pequenos suportes; sobre frisos ou prateleiras, escorados às paredes; assentados em cadeiras, pousados em seus braços; isolados em destaque, apostos em cavaletes. A prática decorativa encontrava outros lugares para locar os quadros, oferecendo distintos pontos de vista para observá-los e relativizando a parede como seu lugar ‘natural’.

Para as salas de jantar, prescrevia-se comedimento e uso de poucos atrativos às paredes para que os comensais pudessem se concentrar nos prazeres à mesa. Quadros muito enigmáticos deveriam ser evitados e até atrapalhariam a digestão. Os temas careciam ser simples e de fácil compreensão, priorizando-se as naturezas-mortas e paisagens (HAVARD: 335; MELANI: 61). Para casas mais modestas, Gonzaga Duque, sob pseudônimo de Sylvinio Junior, recomendava gravuras para as salas de jantar e quartos de dormir, nesses termos:

Dos manuais, as orientações para a decoração ganharam espaço nos periódicos, ampliando suas repercussões. Mesmo resumidamente, os conselhos para a decoração do lar disseminavam preceitos dos manuais, por vezes atualizando-os quanto a certas preferências locais. As dicas para o embelezamento das casas eram desenvolvidas em seções dirigidas a assuntos familiares, como o Jornal das Famílias, da Revista da Semana. Em 1922, o artigo ‘Como decorar as paredes’ mostrava o quanto a locação dos quadros na parede ainda era condicionada por uma série de convenções:

[...] aconselharemos quadros alegres, embora baratos, sobre tudo as bellas chromotypogravuras que os jornaes parisienses publicam e vendem por preços ínfimos. Ha algumas realmente lindas, e , para quem não está em condicções de ter bons quadros a oleo, póde aproveital-as com o fim de alegrar a sua sala. (SYLVINO JUNIOR: 3940)

A escolha dos quadros e dos objectos que contribuem para a ornamentação das paredes é uma prova certa de bom gosto: deve se saber o que vae bem á sua casa como o que vae bem á sua pessoa. Porque é uma loucura collocar, por exemplo, gravuras claras e leves n’um aposento severamente mobiliado sob pretexto que essas gravuras são authenticamente antigas. E é inversamente tambem pouco logico illustrar um quarto Luiz XVI com pinturas á Rembrandt. (COMO DECORAR...)

Se as gravuras contribuiriam para alegrar a decoração de “casa pobre” (SYLVINIO JUNIOR: 40), provocariam efeito negativo nas salas de visitas. Nos cômodos íntimos, era concedido aos seus proprietários acomodar toda a fantasia eclética, permitindo-se coalhar as paredes com todas as preferências pessoais. Podiam-se escolher os objetos mais íntimos, fixar os quadros e quadrinhos da maneira mais particular e vislumbrar as imagens sem pudor. Só os olhos mais íntimos entravam em contato visual com esses quadros de quartos, gabinetes, boudoirs e alcovas.

Os quadros, portanto, eram signos participantes de um conjunto visual, cuja leitura apontava para modos de vida, gostos pessoais, níveis culturais. Como mais um indício para interpretação do caráter da família, as pinturas deveriam ser corretamente escolhidas e sabiamente locadas. Erros eram vistos como ausência de razão e de lógica, como falta de

Através de as imagens veiculadas nos manuais podemos observar os locais mais usuais para locação dos quadros. Nos quartos de dormir, por 354

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conhecimento, ignorância. Era preciso saber o que se adequava, o que combinava, o que agradava.

O tamanho do quadro demandava uma distância focal para melhor admirá-lo. Ajuntar quadros de tamanhos diferentes em uma mesma parede considerava variadas posições do observador no cômodo: ora mais distante, capaz de olhar com clareza as telas maiores, ora próximo e com a visão ajustada a perceber as pequenas composições pictóricas. Os quadros em casa pressupunham diversas posições espaciais de seus observadores, principalmente porque cadeiras caminhavam pelas salas conforme os melhores arranjos para o momento e isso promovia novos pontos de vista para as paredes do cômodo.

Deve-se cuidar tambem de não sobrecarregar as paredes; uma sala não é um museu, o conjunto deve ser sobrio e sem uniformidade. N’uma sala de jantar com bonitos moveis de carvalho de um estylo serio e severo substituese o espelho de parede por um panneau de velha seda bordada, sobre a qual se destaca um prato de cobre ou de estanho cinzelado, como lâmpada um relicario esculpido; nas outras paredes pinturas representando cabeças de homens estylo flamengo, cabeças de veado e candelabros de cobre polido. (COMO DECORAR...)

A parede, de certo, era a superfície considerada a mais importante para a decoração, um espaço privilegiado para atrair o olhar decorativo. Conforme a dimensão livre e proporção dominante da parede, um tipo de composição e de quadro era considerado mais atraente:

Alertava-se para a peculiaridade da geografia doméstica. A casa não era museu. A sala e a parede de todo o dia não eram de museu. A pintura em casa demandava outra postura: não era peça de uma coleção (galeria de pintura), não era parte de um coletivo de quadros (pinacoteca), não se pressupunha obra de primeira linha (digna de museu). O quadro fazia parte das coisas de casa, sendo item doméstico, coisa do lar, ao mesmo tempo que contribuía para ampliar a carga decorativa do ambiente e facilitar o reconhecimento do caráter familiar. A pintura fazia parte dos arranjos das paredes, funcionando também como complemento:

Quando um aposento possue poucas paredes livres e em panneaux estreitos, deve-se preferir collocar quadros pequenos n’este gosto: gravura muito pequena, em baixo uma maior flanqueada de duas outras muito mais em baixo; a terceira fila comporta um quadro rectangular e um par de miniaturas, depois finalmente um unico quadro para terminar esta série. (Ibid.) Nessa sala o arranjo dos quadros é tratado como série, uma seqüência compositiva que melhor se adequaria à situação de pouca superfície livre. Mesmo com curto espaço, os quadros não foram proscritos. Ao contrário, os tamanhos foram reduzidos conforme a necessidade, mostrando que nem sempre o tamanho original da imagem era respeitado e a miniaturização gerava novas relações visuais. Nos cômodos mais íntimos, os quadros misturavam-se a uma infinidade de pequenos trabalhos manuais ou eram de formatos predeterminados, como podemos ver a seguir:

Um arranjo feliz para uma grande parede de uma sala: admittamos como moveis um canapé e duas poltronas, o centro occupado por uma grande gravura hollandeza, ladeada, um pouco mais abaixo, por duas gravuras antigas; em cima de cada uma dessas gravuras estão candelabros de braço em bronze guarnecidos com pingentes de crystal, depois dous quadros antigos de pintura a oleo em cada ponta. A symetria deve ser rigorosamente observada: é isso um ponto essencial, portanto deve se contar rigorosamente todos os espaços com o centimetro. (Ibid.)

Para as paredes do quarto de dormir é bom reservar as gravuras claras, os bordados sobre seda, pinturas a agulha e os antigos bordados de contas enquadrados, alphabetos antigos em ponto de cruz, cordões de campainha bordados, enfim tudo que é original, sem extravagancia.

Gravuras e pinturas a óleo dividiam o mesmo espaço, imagens antigas misturavam-se com mais recentes, mostrando a convivência de diversidade de processos técnicos, tamanhos, procedências e tempos. A situação mostrava o quanto o olhar decorativo estava alicerçado na disposição – rigorosamente simétrico, neste caso – que estabelecia uma disciplina compositiva para primeiro atrair o olhar e depois guiá-lo para cada elemento do conjunto.

Nos boudoirs os quadros emoldurados em oval, medalhões, ficam muito bem suspensos por fitas guarnecidas com rosas chatas feita com fitas de outro tom ou por correntes de crystaes iguaes ás dos lustres: é absolutamente uma ideia nova, ousada mas não luminosa! (Ibid.)

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O gênero aqui não importava, mas sim o formato oval do quadro, levando a acreditar que a qualidade plástica da obra nem sempre era prioritária e sim a conformidade de sua dimensão e seu formato à decoração. Porém, isso não era ponto pacífico.

aberrações. Mesmo tratados como peças da decoração, pinturas, desenhos, aquarelas e gravuras deveriam assumir certas qualidades estéticas, frente à opinião de certos críticos, ainda que o publico pouco delas exigisse.

Dependendo do emissor das orientações decorativas, podia-se dar mais ênfase à qualidade dos quadros. Sylvinio Junior sugeria a decoração de uma sala modesta e recomendava o uso de poucos quadros, assim:

Vale lembrar que muitas gravuras foram produzidas com intenções puramente decorativas. Suas múltiplas tiragens possibilitaram o barateamento de seu custo e a ampla circulação expandia a repercussão de suas imagens, como atesta trabalho de Pierre-Lin Renié sobre as estampas decorativas. A Maison Goupil (1827-1921), por exemplo, produziu dezenas de milhares de estampas e fotografias que foram difundidas pelo mundo inteiro, a partir da França, com filiais em Berlim, Londres, Haia, Bruxelas e Nova Iorque. Essas gravuras eram consideradas ornamentos para cobrir paredes não suficientemente ricas para ostentarem quadros a óleo ou mesmo aquarelas, frutos de obras únicas. Suas dimensões e temas buscavam se adequar aos modos com os quais eram dispostos comumente nas paredes.

[...] poucos quadros, se não forem a oleo, mas não os de carregamento que o estrangeiro nos importa para as casas da rua d’Ouvidor (com rarissimas exceções) e bazares, quadros de um ridículo medonho; se não forem a oleo, diziamos nos, algumas gravuras á agua forte ou em aço em molduras escuras com um ou dois frisos de ouro fosco; os quadros devem pender do alto da parede, onde fica a barra do técto, em pregos grandes de cabeça dourada, e receberem dos pendentes a precisa inclinação para não se furar as paredes com pequenos pregos de escora; lembramos á leitora que há no paiz não pequeno numero de pintores; se os não acceitar porque não póde gastar grandes sommas com objectos de arte, encontrará adiantados estudantes de BellasArtes que, por encommenda, podem fazer boas paizagens e figuras, dez milhões de vezes melhores que os taes quadros que se vendem ahi em grandes molduras douradas. Devem ser banidos da sala de visitas os retratos de familia, salvo um trabalho de grande valor artistico feito por incontestada sumidade. (SYLVINIO JUNIOR: 33-34)

Ao lado das gravuras, as fotografias se tornavam cada vez mais freqüentes nas paredes das casas, normalmente enquadradas por molduras ovais e dispostas em par ou grupos. Se Gonzaga Duque recriminava o uso de fotos familiares nas salas de visitas, o público parecia não acreditar em sua sensibilidade e gosto, pois era comum vê-las em salas, gabinetes e quartos, enfim, em praticamente quase todos os cantos da casa. De certo modo, as fotos substituíam os retratos pintados do passado, prestígio de poucos, que atestavam uma ascendência distinta, até nobre. Mostrar a família era apresentar as origens do berço, certificado para um homem ser acatado como de boa família, digno de respeito, estima e consideração.

O olhar do crítico de arte (Gonzaga Duque) se justapunha ao do conselheiro para assuntos domésticos (Sylvinio Junior). Os quadros deveriam ter qualidades próprias, valendo-se por si mesmos e pareciam não interferir no efeito global da decoração, caso fossem de ‘boa qualidade’. A advertência para não se usar pregos de escora já apontava, por outro lado, a consideração do entorno imediato da obra, que deveria estar livre de interferências para uma fruição ideal. Focalizavase o valor intrínseco do quadro e por isso recomendava-se procurar bons pintores ou mesmo apelar para as boas gravuras, de certo imagens com preços mais em conta.

Além da escolha dos gêneros de pintura conforme demandava o decoro do cômodo, a colocação dos quadros na parede seguia os preceitos da composição decorativa, devendo eles estar distribuídos de forma harmoniosa, estabelecendo uma imagem de equilíbrio e agradabilidade na sua disposição. Tal efeito se alcançava ao dispor as massas de modo a que nenhuma das proporções (horizontais ou verticais) estivesse em evidência. Para Henry Havard, a melhor maneira de dispor nas paredes quadros de tamanhos diferentes seria mantê-los assentes sobre uma mesma linha imaginária horizontal (HAVARD: 226). Haveria duas grandes direções de linhas paralelas – as horizontais (da parede e das bases dos quadros) e as verticais (da parede e das laterais dos quadros), oferecendo uma ordem visual. Evitava-se, por

É comum encontrarmos nos manuais a menção do uso de gravuras, principalmente de litografias, nas casas aburguesadas do Rio de Janeiro. Oleografias também eram citadas, ora qualificadas como ‘bem bonitas’ (ALMEIDA: 41), ora como 356

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exemplo, qualquer idéia de progressão aritmética de proporções: jamais se pensaria em dispor três quadros na parede, do menor para o maior. “Tandis que si nous emmployons une autre disposition, la ligne reprend en partie les qualités expressives qu’on est en droit d’exiger d’elle, et la décoration retrouve un équilibre qu’elle avait perdue » (Id.: 230). Isso implica na criação de uma convenção que atribui certos modos de interpretação dos objetos e das pinturas conforme a maneira como estão dispostas no ambiente. Por exemplo: se algumas telas estivessem arranjadas de modo desarmônico provocariam uma reação de desagrado e, por conseguinte, de desinteresse. Se houvesse muitos quadros amontoados em uma determinada parede, o acúmulo desordenado determinaria uma aversão visual, o que impediria a apreciação das telas. Mesmo assim, alguns autores afirmavam que, por mais que aconselhassem o uso parcimonioso de quadros, sabiam que seus leitores iriam encher deliberadamente suas paredes com toda sorte de quadros (WOLFE: 209).

absoluta, geométrica, e acreditar nas estranhas verdades dos equilíbrios por efeitos ópticos. A locação dos quadros estava longe de ser um assunto menor nas prescrições para decoração de interiores. Afora os textos que recomendavam esse ou aquele modo de pendurá-los, imagens (em gravuras ou fotos) traziam outras referências e exemplos visuais de composição dos quadros. Em alguns manuais, até nas vignettes, o tema do quadro na decoração estava em evidência, apresentando situações de locação, ação de fixar quadros na parede e acidentes de percurso (Id.: 7, 29, 280). Nas paredes das casas ampliava-se a variedade de imagens, expandia-se a quantidade de quadros, inaugurando uma nova visualidade cotidiana – a arte era uma agradável acompanhante. Sejam em pinturas autênticas, de pintores renomados e de ilustres desconhecidos, ou em forma de cópias, a arte pictórica alcançava novos espaços e novas condições: no ambiente doméstico o quadro era acolhido por um olhar decorativo. A pintura se integrava à decoração de interiores.

Uma ordenação muito simétrica também era proscrita de grande parte das orientações para boas composições. A simetria absoluta promoveria idéia de monotonia (HAVARD: 244), a repetição deliberada corresponderia à esterilidade mental (MELANI : 82) e o arranjo extremamente ordenado favorecia a percepção do espaço (WOLFE: 169), isto é, dos vazios entre os quadros e não para eles próprios.

Levar o objeto artístico para o espaço cotidiano, tê-lo em casa, era oportunizar sua contemplação em diferentes momentos, a revisão de suas formas, a descoberta de novas nuances, favorecendo a percepção de detalhes que só durante convivência e proximidade se efetivaria. O fato de o quadro adentrar no universo da decoração do lar encorajou o processo de formas íntimas de olhar para as obras.

Alguns efeitos visuais de composição eram tomados de estudos fisionômicos, como os de Humbert de Superville – Signes inconditionnels. Linhas inclinadas ascendentes, a partir de um eixo central, promoviam alegria; caso estivessem descendentes passavam tristeza, tal como as representações de expressões faciais. Desse modo, uma arrumação de vários quadros cujos elementos da extremidade fossem mais altos, passavam idéia de júbilo e contribuíam para criar uma atmosfera de vivacidade, considerada condizente para as salas de recepção (HAVARD: 228-229).

Essa intimidade com a obra poderia sugerir uma afinidade com o procedimento do crítico de arte, que para julgar, olhava atentamente, percorria toda a obra, demorava em detalhes. O crítico estabelecia uma intimidade com a obra ou com as obras do autor da obra e, portanto, a condição de intimidade propiciava apurar conhecimentos, adquirir olhar refinado, o chamado the good eye, para usar termo de Irit Rogoff (ROGOFF: 14-16). Acreditava-se que quanto mais se olhava para uma obra, observando-a, mais ela se faria conhecer, mais ela desvendaria seus mistérios, como se todo o seu entendimento estivesse alicerçado na experiência visual: “Por maior que seja a intuição escapam com certeza á vista detalhes e subtilezas que só a longa prática de observação, ou a voz auctorizada de um mestre, ensinam a descortinar” (ALMEIDA: 47). Assim afirmava Julia Lopes de Almeida às suas leitoras brasileiras, acreditando que a maioria não tinha educação artística e não sabia ver nem interpretar telas ou estátuas2.

Outras premissas se referenciavam na natureza, como a que afirmava que “La décoration comme la nature a horreur du vide” (Id.: 232), o que significava que planos vazios provocavam a sensação de amplitude, fazendo com que as áreas parecessem maiores do que eram na verdade e que seria importante saber equilibrar esse peso visual do vazio com o cheio, em uma composição. Isso demandava desobedecer a uma simetria rigorosa, 357

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Ser íntimo da obra significava também que ela se encontrava no âmbito familiar, lugar considerado próprio e até exclusivo para a intimidade – intimidade burguesa. A situação desmerecia o estatuto da obra de arte, visto que o espaço da domesticidade era tratado como lugar das coisas banais, corriqueiras, cotidianas. Um confronto se estabelecia entre a idealização da obra de arte como objeto único e especial frente à sua condição de elemento trivial da decoração doméstica, quase como um móvel, pois pelos dizeres da época acreditava-se que “[...] a nossa casa é, na essencia, constituida pela habitação e pela mobilia. Por isso, habitação e mobilia, são fundamentaes e capitaes elementos da organização material da vida domestica”(SOUZA: 23). O quadro incluía-se na categoria de coisas móveis, ou seja, era peça de mobiliário.

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O valor do objeto único se enfraquecia na medida que o quadro compartilhava de um conjunto – o todo da decoração do ambiente. Ele assumia o papel de partícipe da decoração como mais uma imagem e não como a imagem. Excetuando as pinturas encontradas em galerias de quadros ou em casas de colecionadores, é importante destacar que os quadros nos ambientes domésticos assumiam papéis próprios: compor conjuntos, preencher vazios, entreter os olhos dos convidados, auxiliar em efeitos expressivos, permitir escapes da realidade, educar os filhos, etc. Essas atuações, bastante comuns em domicílio, estão bem distantes dos atributos de sacralidade que normalmente envolvem os assuntos de arte. A experiência ‘única’ da criação da obra de arte transpunha a dimensão do artista divino e especial e também se afirmava como experiência de público não especializado, assumindo domínio de olhar familiar em casa. Outros olhares, outros tipos de convívio, outras locações faziam dos quadros objetos decorativos. A obra de arte ganhava outros sentidos: alcançava a qualidade de decorativa e isso não significava desmerecer a obra. A arte só estava em outro domicílio ou, até poderia se dizer, que a arte tinha finalmente voltado para casa. Referências bibliográficas ALMEIDA, Julia Lopes de. Livro das noivas. 3 ed. Rio de Janeiro: Typografia da Companhia Nacional Editora, 1896. CHERRY, Deborah ; CULLEN, Fintan. On location. Art History, Oxford, vol.29, no.1, 532-539, sep. 2006.

Notas 1

Fazemos referência a um dos significados atribuídos, etimologicamente, ao verbo decorar –

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Ambientes interiores e o ideal decorativo

saber de cor, sendocor proveniente do latim cordis, coração (Cf., VIANA, 1906: verbete decorar). 2 Julia Lopes de Almeida sugeria visitas às exposições anuais da Escola Nacional de Belas

Artes que, segundo ela, seriam “[...] estou certa, o inicio da educação do nosso gosto” (ALMEIDA: 47). Recomendava, inclusive, que os pais não se esquecessem de levar os filhos a esses eventos.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Sabemos que o embate entre modernidade e tradição é um fator cardeal no sistema de pensamento e significação das sociedades ocidentais entre o século 19 e as primeiras décadas do século 20. Observa-se, nesse contexto, uma reação diante da descoberta da existência como sendo ordenada numa narrativa linear. Friedrich Nietzsche (1844-1900) não via no progresso, nem na história caminhando estes de renovação em renovação na facticidade, a possibilidade de uma saída da decadência. Reconciliava modernidade e eternidade como única possibilidade de se escapar da decadência. Acreditava que no interior do instante habita uma eternidade produtiva na qual passado e futuro coexistem momentaneamente. No âmago do instante residiria uma abertura perpétua, uma concepção de totalidade. Também indagava Charles Baudelaire (1821-1867) em 1855: “Mas onde está, eu vos pergunto, a garantia do progresso para o amanhã?”, “Digo que ela só existe na vossa credulidade e na vossa fatuidade” (apud COMPAGNON,1999:126). Para o poeta, a modernidade concentra a força do novo e, paralelamente, celebra um movimento de apreciação do antigo, não como espelho mas como história, gerando uma consciência da historicidade do presente.

tradição versus modernização na arquitetura do rio de janeiro: ornamentos mouriscos rosane bezerra soares

1

Entre modernidade e tradição, é interessante destacar o papel polêmico exercido pelos ornamentos, entre teóricos e artistas. Com a revolução industrial, o desenvolvimento dos transportes, a popularização de livros e jornais, o aprofundamento dos estudos históricos _ entre outros fatores _ , amplia-se o desejo de conhecimento dos modos de vida de outros povos. Multiplicam-se, assim, as viagens e também as pesquisas arqueológicas. Na arqueologia, os monumentos históricos eram identificados e classificados por meio de ornamentos; com o conhecimento de modelos da antigüidade e o desenvolvimento das técnicas de impressão, surgiram então diversos repertórios de padrões ornamentais, sendo esses representativos de diferentes períodos históricos. Durante o século 19 esses livros tornam-se cada vez mais acessíveis, sendo utilizados como material de consulta de arquitetos, artistas e artesãos. Houve posições extremadas contra e a favor ao uso de ornamentos. As idéias de John Ruskin (1810 – 1900), por exemplo, foram decisivas para o surgimento do movimento de artes e ofícios; acreditava que o trabalho artesanal representava uma força poderosa de resistência. Além de artista e crítico, Ruskin era teórico da arte e da sociedade; 360

Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

suas opiniões inspiraram a criação de oficinas artesanais nos diversos países europeus e na América do Norte. Destacava que somente os ornamentos, realizados artesanalmente, seriam capazes de trazer para o mundo um pouco da variedade da natureza, devendo ser protegidos do avanço da racionalização e da supremacia dos valores comerciais.

nesse grupo August Pugin (1812-1852) com Glossary of Ecclesiastical Ornament and Costume (1846) e Floriated Ornament (1849). Mais tarde, Christopher Dresser (1834-1904) lança Studies in Design (1874-1876). Nessa categoria também poderíamos destacar os trabalhos de William Morris (1834-1896) na Inglaterra e, na França, Eugène Grasset (1845-1917) com La Plante et ses applications ornamentales e o estilo Art Nouveau.

Alois Riegl (1850 – 1905) enfatizava que os seres humanos possuíam um impulso artístico imanente, sendo a necessidade de adornar anterior à necessidade de cobrir o corpo. Acreditava que a arte surgiu com o ornamento, mais especificamente quando a linha conquistou a sua independência em relação aos modelos naturais e passou a obedecer a leis fundamentais da simetria e do ritmo, considerando assim o ornato como arte de superfície. Em 1893 Riegl lança um livro sobre a história do ornamento, “Stilfragen” (Questões de Estilo), apoiando-se no método de análise histórica e comparativa.

Já na terceira categoria se apresentariam as antologias de ornamentos do passado consideradas como meios de inspiração para decoradores e designers do mundo moderno. Nessa categoria se encontrariam Ornamente aller klassischen Kunstepochen (1831), editado por Wilhelm Zahn (1800-1871), que impregnou o seu estudo histórico com um caráter moderno. Mais tarde, Heinrich Dolmetsch (1846-1908) lançou Der Ornamentenschatz. Inseridos na diversidade artística do século 19, junto a representações focadas no mundo ocidental, observa-se um interesse pelos ornamentos de culturas não européias, como a chinesa, a japonesa e a islâmica.

Por outro lado, o arquiteto austríaco Adolf Loos (1870 – 1933) publicou inúmeros artigos em jornais e revistas, no período entre 1897 e 1930, iniciando uma guerra contra o ornamento, o qual seria crime, por ser anti-racional. Para ele, o caminho da cultura iria do ornamento à sua exclusão; a sua crítica contribuiu em muito para a desvalorização moderna do ornamento. Além de condenar o uso de ornamentos inspirados naqueles publicados nos repertórios ornamentais, condenava a criação de novos ornamentos porque essa atividade impediria a consolidação de um estilo realmente genuíno do século XX, o qual se afastaria da própria idéia de estilo.

No Brasil, o Rio de Janeiro apresenta uma das principais manifestações da arquitetura do século 19 do país e, entre os mais variados ornamentos, um tipo parece ocupar um lugar especial: os ornamentos mouriscos, que convivem com o choque tradição secular x modernização já com a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro. Mais tarde, o repertório foi reinterpretado e aplicado em algumas edificações. O nosso objetivo nesse trabalho é exatamente refletir sobre o embate entre modernização e tradição que caracterizava o contexto da época, utilizando como fio condutor a presença dos ornamentos mouriscos.

A diversidade artística do século 19 representou também um esforço na busca de um estilo característico. Assim, muitos artistas procuravam conciliar a tradição com as transformações do seu tempo. Nesse contexto, é interessante observar os repertórios de padrões ornamentais que, em termos gerais, poderiam ser agrupados em três categorias. Num primeiro momento, poderíamos destacar aqueles que buscavam a interpretação de estilos do passado para o uso moderno, como as obras de Henry Shaw, The Encyclopaedia of Ornament (1842), Decorative Arts, Ecclesiastical and Civil of the Middle Ages (1851). Ainda nessa categoria estaria incluído o trabalho de Owen Jones (18091874) com o livro One thousand and one initial letters (1864), entre outros.

1. Ornamentos mouriscos? Para a análise de obras construídas a partir das edificações mouriscas, é interessante destacar as características gerais das construções que as inspiraram. A arte mourisca floresce no Mediterrâneo Ocidental, compreendendo o norte da África, Sicília e Península Ibérica. O seu desenvolvimento significou, em primeiro lugar, um processo de fusão no qual elementos iberoromanos, visigodos, sírios, bizantinos e arábicos se misturam para formar um novo estilo autônomo, o qual por outro lado proporcionou o estímulo para outras criações artísticas.

Na segunda categoria estariam aqueles que procuravam apresentar novos estilos de ornamentos para uso contemporâneo. Destaca-se 361

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Com o enfraquecimento do Império Romano, os árabes começaram a penetrar na Península Ibérica por meio do comércio; cristãos, judeus e muçulmanos passaram então a conviver lado a lado. Assim, de 711 d.C. até o fim da Guerra da Reconquista, no século 13, Portugal viveu um verdadeiro processo de islamização que se refletiu nos conhecimentos científicos, nos conceitos sociais e nos fazeres artísticos.

vegetais e gradualmente se unem com formas geométricas. Os primeiros levantamentos dos monumentos da arquitetura islâmica foram publicados na Europa entre 1835 e 1860. Constam entre os mais importantes Architecture arabe ou monuments du Caire (Paris, 1839) de Da Coste; Essai sur l’architecture des arabes et des mores (Paris, 1841), de Girault de Pravey, e Plans, elevations, sections and details of the Alhambra (Londres, 1837), de Jules Gpoury e Owen Jones.

A palavra “mourisco” vem do grego “mauros”, que significa “escuro”. Esse termo foi empregado para designar a população aborígine não-negróide do oeste da África. Hoje o termo é aplicado indiscriminadamente ao povo do norte da África, constituído especialmente de aborígines e imigrantes árabes.

Nesse contexto, um significado especial é associado aos arabescos. Charles Baudelaire considera o arabesco como o mais espiritualista dos desenhos, acreditando ser esse o ideal de todos os desenhos. Para Henry Matisse (18691954), o arabesco traduz por um signo o conjunto das coisas, fazendo de todas as frases uma única frase. Já Stéphane Mallarmé (1842-1898) fala em um “arabesco total” caracterizado por “saltos vertiginosos”, pleno de “velhos acordes” convertendo-se em música. Como espiral, na significação esotérica do arabesco como forma de voluta da folhagem clássica, era um símbolo da parreira e esta, junto com o vinho, representava a ebriez dionisíaca ou mística e, por isso, a eterna beatitude ( BEHNKE, 1995: 21- 42 ).

Na arquitetura, as residências caracterizam-se pelas paredes grossas, brancas, lisas, o exterior simples, a utilização de arcos, azulejos e, na parte interna, cômodos escuros. No século 10 as construções religiosas, civis etc., já demonstram uma predileção pelo uso de mosaicos e mármore. Elementos da antigüidade clássica, como acantos e folhas de parreiras são encontrados ao lado de padrões geométricos e arabescos. Inspirando-se largamente no arabesco2 desde os fins do século 15, na Renascença italiana o termo foi usado para designar um determinado padrão do desenho islâmico. Poderíamos definir o arabesco como um desenho abstrato, cujas linhas entrelaçadas formam uma trama capaz de se desenvolver em qualquer direção. O motivo se repete indefinidamente fazendo com que o espaço se alargue, garantindo a sua perpetuação, como um labirinto.

2. Ornamentos mouriscos: tradição versus modernização na arquitetura do Rio No Brasil, as casas asseguravam a permanência do legado mouro em relação às técnicas de construção e ao modo de habitar transplantados pelos colonos portugueses para a colônia. A estreiteza das ruas colocava limites à ornamentação das fachadas, inviabilizando elementos que sobressaíssem delas, constantemente ameaçadas pelas rodas de carruagens e carroções.

Molduras de madeira são encontradas em janelas, portas e balcões; empregam-se vários tipos de arcos, do arco de ferradura aos arcos com ponta e multilobulosos; a ornamentação interna é detalhada e fecunda.

Construídas de pedra bruta ou taipa de pilão, as casas possuíam paredes grossas, revestidas de argamassa de cal e marga, que as faziam parecerem caiadas de branco, ou de azulejos coloridos. Outro elemento de ornamentação mourisco muito utilizado era a arte de embrechar, que consistia na incrustação de cacos de vidro e azulejo, pedrinhas e conchas na argamassa ainda mole. Eram voltadas para o interior, e suas aberturas apresentavam-se obstruídas pelos muxarabiês e gelosias que permitiam aos moradores olharem a rua sem serem vistos, além de manterem as mulheres confinadas.

Quanto às paredes, são freqüentemente cobertas por listras horizontais e painéis que proporcionam um eixo para a composição ornamental. Uma grande variedade de formas combinam-se resultando num padrão denso e repetitivo de pequenos elementos revestindo as superfícies; os padrões de estrelas entrelaçadas são empregados para cobrir grandes áreas. As formas derivadas dos romanos, do Oriente e dos visigodos podem ser claramente distinguidas até o século 10. Mais tarde, libertam-se de modelos

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Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

Como característica comum às casas portuguesas, apresentavam-se com uma grande simplicidade de linhas. Como regra, as plantas eram quadrangulares, ocupando toda a área do terreno, com sobrados para habitação, tradicionais portais de pedra e lojas ou depósitos no andar térreo; no pavimento superior localizava-se a residência do proprietário, com os salões na frente, as alcovas na parte central e a sala de estar nos fundos. Esse fato, que sob um certo ponto de vista se relaciona com a natureza dos materiais por permitirem uma construção sólida em altura, apresenta também relações com uma antiga forma de construção portuguesa, em que os homens dormiam sobre o local onde os animais permaneciam à noite, para maior segurança.

uma poética neoclássica. As tintas de cores suaves substituem os azulejos e o cal; utilizam-se também pilastras para marcar as linhas básicas da composição, além de escadarias, frontões, colunatas, platibandas, mármore, motivos alegóricos e mitológicos da antigüidade inscritos nos tímpanos, etc. A partir de 1850 ampliam-se as transformações nas obras, com um repertório variado de bens materiais e simbólicos do velho continente. Além do cimento e dos tijolos, das telhas de Marselha que substituem as de canal ou de faiança, dos estuques e vidros, das louças e instalações sanitárias, importam-se muitos artefatos de ferro forjado ou fundido que são utilizados como elementos estruturais, funcionais ou decorativos, tanto nas obras públicas como nas construções civis. Difundem-se os portões e as grades junto à rua; de ferro também passam a ser as escadas externas e internas, as marquises, as vigas de sustentação e muitos dos elementos empregados na ornamentação.

Em 1808, a abertura dos portos às nações amigas propiciou o intercâmbio comercial do país com o exterior, possibilitando a aquisição de bens procedentes do continente europeu. Com a instalação da corte portuguesa no Rio, no mesmo ano, várias transformações ocorreriam no país. Entre diversas mudanças, poderíamos destacar aquelas resultantes do decreto promulgado por D. João VI proibindo o uso de alguns elementos da arquitetura mourisca, como os muxarabiês (balcão mourisco protegido, em toda a altura da janela, por grade de madeira de onde se pode ver sem ser visto) e gelosias (grade de madeira cruzada que ocupa o vão de uma janela).

Em 1855 foi criada a disciplina escultura de ornatos na Academia; as aulas contavam com material de apoio como os relevos em moldagem direta em gesso tomados às escolas clássicas e séries de gravuras como a coleção das Loggias do Vaticano de Giovani da Udine e Pierino del Vaga, alunos de Rafael; Le guide de l’ornamentiste, de Charles Normand; o Ditionnaire des beaux-arts, de A L. Millin, entre outros. Os alunos encontram então um grande campo de trabalho na ornamentação de edifícios públicos e privados.

O Príncipe Regente nomeou então o conselheiro Paulo Fernandes Vianna, o qual comunicou à população em 11 de junho de 1809 que tendo sido o Rio de Janeiro elevado à categoria de Corte, seriam incompatíveis com a terra “certos góticos costumes”3 e que deveriam ser abolidas as gelosias das janelas e sobrados determinando que sua retirada fosse realizada dentro de oito dias. Entretanto, por falta de recursos, nem todos puderam instalar vidros nas janelas e as transformações ocorreram gradualmente. No lugar dos balcões de madeira, geralmente acompanhados por duas gelosias, foram instaladas sacadas de ferro batido ou de madeira; a introdução posterior das vidraças nas janelas marca o declínio da influência mourisca nas primeiras décadas do século 19.

Entre outras transformações, desempenharam um papel crescente no processo de transferência de tecnologia e materiais os profissionais liberais formados em escolas de nível superior, como os engenheiros graduados pela Escola Politécnica, inaugurada em 1874, junto aos arquitetos estrangeiros, nas obras públicas e particulares; ao lado desses, despontam também companhias construtoras, submetendo os canteiros de obras aos projetos derivados de um aprendizado sistemático. A medicina do século 19 forneceu um embasamento científico para a ideologia que mobilizou os engenheiros e arquitetos. Tudo o que pudesse favorecer a persistência dos estigmas do brasileiro colonial e senhorial converteu-se em sinal negativo, inclusive a tradição construtiva lusomourisca, perpetuada pelos mestres-de-obras portugueses.

Com a chegada da Missão Artística Francesa em 1816 e a criação da Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, atual Escola de Belas Artes, um bom número de livros com repertórios ornamentais vieram para o acervo da biblioteca, impulsionando a escultura de ornatos, sendo também incluída a gravura de ornatos em 1831. Várias obras são realizadas; as construções aproximam-se então de

O choque aparece de forma clara no relatório divulgado em janeiro de 1875 pela Comissão de Melhoramentos do Rio de Janeiro, formada pelos 363

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

engenheiros Jerônimo R. Morais Jardim, Marcelino Ramos da Silva e Francisco Pereira Passos. Convocados pelo monarca para formular um plano geral de reurbanização face ao recrudescimento da febre amarela, afirmam:

construtores de casas higiênicas, como revestir de azulejos as salas de almoço, cozinha e banheiros (os azulejos tornaram-se raros nos exteriores) e equipamentos sanitários de louça e ferro esmaltado.

Construídas geralmente por homens práticos, sem instrução alguma profissional e sem a menor idéia das condições de conforto e de higiene que devem presidir à disposição dos aposentos, são as nossas habitações desprovidas dos meios de ventilação e de renovação do ar nos quartos de dormir, e de muitos outros cômodos indispensáveis em uma residência (...) Alheios às mais simples noções de estética (...) esmeram-se os nossos mestres-deobras em sobrecarregar as fachadas dos prédios com molduras e cimalhas sem sujeição, já não diremos às regras de arte em que tanto primaram a Grécia e a antiga Roma, e que ainda hoje merecem tanto cuidado nos países mais cultos, mas às leis mais simples da conveniência e da harmonia; (...) forram freqüentemente as paredes exteriores com azulejos que absorvem o calor solar e aquecem horrivelmente o interior das casas; fazem, enfim, como essas, muitas despesas inúteis que, além de darem às nossas ruas uma aparência sem arte e sem gosto, imprópria sem dúvida de nossa civilização, tornam-se ainda nocivas ao conforto do interior do lar. (Melhoramentos da Cidade. “Primeiro Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1875”: 7 – 8).

Enfim, com a República, torna-se prioridade a preocupação com a eficiência, a salubridade e a imagem da capital. O Rio de Janeiro encontra-se num processo de crescimento acelerado de sua malha urbana e de grave crise de sua centralidade; multiplicam-se as habitações que abrigavam várias famílias junto ao agravamento da situação sanitária da cidade, com a ocorrência de violentas epidemias de febre amarela, cólera e varíola. A 25 de maio de 1900 foi criado, então, o Instituto Soroterápico Federal, com o objetivo de fabricar o soro antipestoso. O instituto era dirigido pelo Barão de Pedro Afonso e apresentava como diretor técnico o bacteriologista Oswaldo Cruz. Como é sabido, a cidade passa por uma grande reforma entre 1902 e 1906 e o antigo centro colonial de ruas estreitas e lotes apertados é, em grande parte, demolido. No conjunto de obras de reconstrução da cidade, que incluía medidas de saneamento e atividades essenciais na área de saúde, foi planejada então a construção de um amplo prédio, onde seriam centralizados os trabalhos de pesquisas e combate às doenças epidêmicas. O conjunto arquitetônico de Manguinhos, onde se destaca o Pavilhão Mourisco ou Prédio Central da Fundação Oswaldo Cruz, veio substituir as antigas instalações do Instituto Soroterápico Federal. Oswaldo Cruz assumiu a direção geral do novo instituto em 1902, expandindo suas atividades, não mais restritas à fabricação de soros, mas voltadas também para a pesquisa e formação de recursos humanos.

O antigo padrão de obra construída nos limites frontal e laterais de um lote estreito e profundo vai dando lugar a casas com afastamento lateral e frontal, com abertura de janelas no afastamento lateral e a inclusão de jardins no afastamento frontal. A entrada principal já não se coloca no eixo da fachada, dando para a rua, mas se desloca para a lateral, transformando o tratamento decorativo; a sala de estar e a de jantar transferem-se dos fundos para a frente.

3. O estilo Neo-Mourisco no Rio Curiosamente, o mourisco foi escolhido como o estilo predominante para a instituição médica _ o Pavilhão Mourisco ou o Prédio Central da Fundação Oswaldo Cruz _, fato curioso se considerarmos que a medicina desempenhou papel importante no expurgo das influências muçulmanas da arquitetura colonial. A instituição foi construída na Fazenda de Manguinhos, que faria parte do vasto Engenho da Pedra; o perímetro abrangia, a grosso modo, os atuais bairros de Manguinhos, Olaria, Ramos e Bonsucesso. Diversos materiais podem ainda ser encontrados sobre a construção do Pavilhão Mourisco4.

A legislação sanitária fiscaliza as condições de aeração e impõe a utilização de equipamentos relacionados aos serviços de água, luz, gás e esgotos; pátios e os corredores que circundam a habitação garantem sua iluminação e arejamento. A construção de porões deveria neutralizar a umidade do solo e assegurar boa ventilação; é o caso, também, da elevação dos pés direitos. Os elementos que tornavam a arquitetura residencial da época impermeável ao exterior passaram a ser atacados por favorecerem a condensação dos miasmas aos quais a medicina atribuía a propagação de doenças infecciosas. Os médicos colocavam normas a que deveriam se ater os

Tivemos algumas manifestações importantes da arquitetura mourisca no Rio, como o pavilhão mourisco, inaugurado em 1906 na Praia de Botafogo ou o monumental Café Arábico-Persa, na 364

Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

esquina da Avenida Central com a rua do Rosário. Entretanto hoje restam-nos poucos exemplos de edificações públicas; além Prédio Central da Fundação Oswaldo Cruz destaca-se ainda a Basílica do Imaculado Coração de Maria, no Méier.

O edifício é visto à distância por aqueles que vêm do mar, e sua localização foi orientada por estudos meticulosos, como atestam os manuscritos deixados pelo arquiteto, o qual analisa o aquecimento do pavilhão e apresenta um parecer sobre a incidência dos ventos, que deveriam ser varridos segundo o seu comprimento.

Não são conhecidos os motivos que levaram Oswaldo Cruz a optar pelo estilo mourisco de ornamentação para as instalações do soroterápico; existem apenas hipóteses. Algumas explicações são apresentadas pelos cientistas que com ele conviveram e pelos autores que, mais recentemente, estudaram as origens de Manguinhos: uns ressaltam a origem lusitana do arquiteto; entretanto outros acreditam que essa escolha representaria um tributo à medicina dos mouros. Alguns reconhecem nos arabescos desse palácio uma afinidade entre os princípios geométricos que asseguram a repetição ao infinito da ornamentação mourisca com as regularidades do universo micro e macroscópico de que se ocupavam os cientistas. Em sua ornamentação, o pavilhão remete-nos ao palácio Alhambra, de Granada, o edifício mais representativo da arquitetura civil mourisca (século XIV), construído sobre uma colina pelos últimos príncipes muçulmanos da Espanha, os Nasridi. Possui, também, afinidades com o prédio do Observatório de Montsouris, na França, que Oswaldo Cruz freqüentou no período em que realizou sua especialização em microbiologia.

O traçado do prédio assemelha-se aos dos palácios ingleses do período elisabetano, com utilização de torres, valorização da entrada principal, larga escadaria e grandes galerias ligando as salas laterais. É típico desse período a disposição em forma de H ou E, com entrada central e dois corpos laterais pronunciados. A ornamentação mourisca impera nas fachadas, paredes, pisos e forros internos. Nos palácios ingleses, as longas galerias são fechadas para evitar os rigores do inverno. O pavilhão central de Manguinhos, entretanto, exibe suas fachadas leste e oeste totalmente vazadas por vãos em arcos, respondendo a exigências climáticas opostas. Na arquitetura civil islâmica, os palácios se apresentam com pátio interior, devendo o monumento ser visto de dentro para fora: o exterior não apresenta ornatos. Já o pavilhão mourisco de Manguinhos foi projetado para ser apreciado por suas fachadas ricamente decoradas, que se apresentam como atração ao primeiro contacto. No prédio encontram-se arcos plenos e mistos, estalactites, azulejos nas varandas externas, piso coberto de mosaicos lembrando os tapetes árabes e toda a ornamentação é construída geometricamente; os motivos repetem-se ao infinito e se entrelaçam, originando grande variedade de formas.

O arquiteto que iria projetar o Pavilhão Mourisco era pouco conhecido na época, havia chegado ao Brasil em 1900 e aqui se estabeleceu até sua morte. Partindo de croquis executados por Oswaldo Cruz, o prédio teve sua construção iniciada em 1904; em 1905 começa o assentamento da infraestrutura; em 1910 os pesquisadores transferemse para o prédio, e em 1918 concluem-se os trabalhos de ornamentação e outros acabamentos.

O terraço foi pavimentado com cerâmica de Marselha sob lâminas de cobre, sistema dos mais sofisticados para impermeabilização de coberturas. A estrutura das duas torres é metálica em aço, de origem alemã, com planta octogonal e a altura de quase dez metros.

O prédio foi erigido sobre uma das colinas da região, com sua fachada voltada para o mar a cerca de 50 metros de altura. Segue a lógica de funcionamento de uma instituição que combina as características de uma fábrica de produtos biológicos com as de um grande laboratório de experimentação médica, lidando com materiais excessivamente perigosos para conviverem com a aglomeração urbana. Por sua engenharia e infraestrutura tecnológica, Manguinhos encontra-se à frente das outras estruturas arquitetônicas grandiosas da época, até porque apresenta em seu projeto a energia elétrica como força motriz principal.

O salão de leitura da biblioteca é o ambiente de maior riqueza ornamental do pavilhão mourisco. Os grandes painéis de arabescos que cobrem a superfície e a chegada ao teto suavizada pela sucessão de frisos ascendentes, com motivos diversos, transmitem a impressão de isolamento do mundo e de elevação espiritual necessárias a um lugar de recolhimento e estudo. Desenhos geométricos no assoalho são enriquecidos pelos diferentes tons de madeira; os móveis e luminárias estilizados reforçam o aspecto oriental do ambiente. A biblioteca é de aço à prova de fogo e insetos. 365

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O elevador do Prédio Central da Fundação Oswaldo Cruz é um dos mais antigos ainda em funcionamento no Rio de Janeiro e foi instalado em novembro de 1909. Com estrutura de ferro de fabricação alemã é projetado para quatro paradas, possuindo mecanismos de segurança que impedem seu funcionamento caso alguma das portas esteja aberta. O elevador possui duas cabines: uma para passageiros e outra para cargas. A de passageiros é de mogno, luxuosamente ornamentada, com cúpula de espelhos e portas internas com cristal bisotado. O gradeamento externo foi desenhado por Luiz de Morais Júnior e executado pela mesma empresa responsável pelo gradeamento das escadarias.

A partir de 1909 companhias alemães tornam-se responsáveis não só pelo fornecimento como, muitas vezes, pela implantação dos equipamentos de laboratório e das instalações elétricas, telefônicas, térmicas, telegráficas e de circulação vertical. Em 1910 são apresentados os orçamentos de uma estação rádiotelegráfica do sistema Telefunken e de diversos maquinismos elétricos: motor para bomba de pressão, bomba rotativa de compressão e sucção transversal, etc. É confirmado, também, o pedido de diversas peças de iluminação, em estilo mourisco que seriam fabricadas conforme os desenhos de Luiz de Morais. A pedido de Oswaldo Cruz, a Siemens enviou em 1911 prospectos de um ozonificador de água, e em outubro de 1912, de aparelhos que permitiam registrar continuamente a temperatura dos diversos compartimentos do instituto. Os termômetros elétricos, já instalados no pavilhão central, seriam ligados a um instrumento capaz de registrar a temperatura em fitas de papel e acionar, conforme as suas oscilações, campainhas, bombas, ventiladores, etc.

Um contraste gritante salta aos olhos diante da extrema simplicidade de alguns ambientes e a profusão decorativa de outros; a diferença de tratamento das superfícies é resultado do uso ao qual o ambiente era destinado. O construtor abdica dos estuques e mosaicos nos laboratórios e em outras salas de serviço e passa a seguir uma outra linguagem arquitetônica, baseada na funcionalidade e nas rigorosas normas de assepsia e desinfecção que, desde Pasteur, presidiam as construções médico-hospitalares. A localização dos laboratórios nos pavimentos de maior pé direito e a colocação de enormes janelas refletiam a preocupação com o arejamento do ambiente. As paredes apresentam-se lisas e sem ornamentos, tendo os cantos arredondados de modo a impedir o acúmulo de poeira. As superfícies foram revestidas com ladrilhos de cor neutra e tinta impermeável para evitar umidade, propícia às fermentações, e facilitar a lavagem obrigatória com soluções anti-sépticas.

Entre os documentos arquivados na Casa de Oswaldo Cruz, constam, ainda, propostas de outros fabricantes alemães de máquinas e equipamentos, como a Borsig, que instalou o sistema de refrigeração, e a J. G. Schelter e Giesecke, de Leipzig, fabricante do gerador a gasogênio, que durante muitos anos abasteceu o instituto de energia elétrica, já que as linhas da Light and Power só chegaram no início dos anos 1920. A iluminação dos jardins foi derivada do cabo geral no térreo do edifício por meio de um quadro especial; a distribuição da energia até os lugares de consumo foi feita por meio de cabos subterrâneos cobertos com chumbo, recebendo uma armação exterior. Atmosferas de fascínio e funcionalidade encontram-se no Pavilhão Mourisco, tombado em 1980 pelo Patrimônio Histórico Nacional.

Nenhum outro edifício do Rio de Janeiro – e talvez do país – se igualava a este pavilhão em sofisticação tecnológica. É de grande importância para a história da arquitetura o repertório de equipamentos que as companhias ofereciam aos construtores da época. Em dezembro de 1908 foi apresentado projeto do sistema elétrico, incluindo uma extensa relação de artefatos e equipamentos de várias marcas alemães. Os corredores e as duas torres seriam iluminadas por lâmpadas de arco bivolta, uma novidade em lâmpadas de efeito, resultando em uma excelente luz branca. A Siemens oferecia até uma bomba de sucção de poeira, cujos tubos se ramificariam por todos os laboratórios, e um sistema de fechamento automático contra a luz exterior para as janelas e portas.

Entre as construções edificadas nas primeiras décadas do século 20 inspiradas na arte e na arquitetura mourisca ainda existentes no Rio de Janeiro destaca-se também a basílica do Imaculado Coração de Maria, no bairro do Méier, em estilo mudéjar. Nas construções religiosas, a utilização de elementos mouriscos foi mais comum nas sinagogas edificadas desde 1850 pelas comunidades israelitas. A basílica do Méier foge a esta regra.

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Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

Em geral, entende-se por arte mudéjar aquela na qual predominam os elementos construtivos ou decorativos de influência islâmica executados em território cristão da Peninsula Ibérica por artistas muçulmanos ou cristãos. O termo mudéjar vem do árabe mudajjan, que significa “domesticado”. A arte mudéjar pode ser igualmente utilizada numa grande catedral ou em uma humilde igreja de algum vilarejo.

fabricação. Conheceu, na Espanha, os mudéjares e os excelentes produtos de Andaluzia, de Valencia, de Aragão, de Málaga, os da famosa fábrica de Manises (dos séculos 15, 16 e 18), além de belos exemplares de cerâmica de reflexos metálicos dourados de origem persa. Sempre que possível, utilizava azulejos para ornamentar fachadas e revestir paredes interiores. O apreço pela cerâmica o levou à admiração pelas antigas fachadas do Rio de Janeiro; lamentou que a insistência portuguesa de revestir fachadas com cerâmica tivesse sido interrompida.

É interessante destacar, aqui, as características gerais da arte que inspirou a construção da basílica; a arte mudéjar apresenta uma grande variedade e cada região possui a sua própria versão, influenciada por tradições locais. O denominador comum de toda arte mudéjar são as detalhadas formas islâmicas. Inicia-se na segunda metade do século XII, sendo fruto de comunidades muçulmanas que vivem pacificamente após a reconquista dos territórios pelos cristãos, facilitando, com o baixo preço de sua mão-de-obra, a difusão de suas técnicas artísticas. Chegam a criar um estilo aceito em todos os níveis da sociedade cristã. Quanto à área de sua difusão, concentra-se basicamente na ampla zona situada entre León e o Tejo até La Mancha.

De escala monumental para a época, a construção da basílica foi iniciada em 31 de outubro de 1909, tendo a primeira parte inaugurada em 24 de agosto de 1912. Uma imensa multidão lotou a basílica e lugares adjacentes. Elaborada em etapas, no dia 23 de agosto de 1914 inaugurase a segunda parte do santuário e a terceira em 8 de dezembro de 1917. A 31 de agosto de 1919 o Sr. Cardeal Arcoverde benzeu a primeira pedra da torre da basílica, sendo a torre concluída em 22 de setembro de 1924. Revestida de tijolos em tons variados em sua parte externa a basílica do Imaculado Coração de Maria apresenta uma grande torre com arcos agudos e ornamentada de azulejos. As laterais da basílica ostentam belos vitrais em forma de estrela de oito pontas, uma das formas fundamentais do desenho geométrico islâmico. O colorido e a transparência dos vitrais formam um forte contraste com a rusticidade dos tijolos.

Em seu desenvolvimento, a arquitetura mudéjar oferece uma grande complexidade, determinada essencialmente pela diversidade de suas raízes. Em relação à estrutura em geral, os edifícios apresentam o estilo cristão do momento _ Românico ou Gótico. Possui um caráter popular, ao alcance dos setores mais modestos, empregando materiais de baixo custo como o tijolo, o gesso e a madeira. Apesar de ser possível assinalar características regionais, são evidentes as interconexões entre as formas mudéjares dentro de um mesmo reino.

As duas portas da entrada principal apresentam bandeiras de ferro, com mosaicos coloridos. Cada porta divide-se em duas folhas e cada folha tem a sua cancela, que pode abrir-se independentemente, conforme o estilo dos templos moçarábicos (igrejas cristãs erguidas sob o domínio islâmico). Os bronzes aplicados às portas também obedecem ao mesmo estilo. Criado pelo arquiteto Matias Ferreira, o desenho das portas foi executado em jacarandá pela Casa Ferreira e Companhia do Rio de Janeiro; são ricamente esculpidas com arabescos, formas geométricas, arcos e estalactites.

Enfim, no dia 3 de fevereiro de 1907 chegaram ao Rio de Janeiro os padres Florentino Simón e Ignácio Bota, trazendo uma imagem do Coração de Maria talhada em madeira e medindo 1,80 metros de altura. Fora importada da cidade de Olot, na Espanha, onde residiam famosos escultores de arte sacra. Os padres espanhóis Ignácio Bota, Florentino Simón, Fernando Rodríguez e Higino Chasco foram os fundadores da Comunidade do Méier e queriam construir um templo católico com as formas arquitetônicas de estilo mudéjar. Encomendaram então o projeto da basílica ao também espanhol arquiteto Adolfo Morales de los Rios, pai. O arquiteto era oriundo de uma região onde a cerâmica atingiu grande desenvolvimento; estudoua e, com grande interesse, acompanhou a sua

O interior da basílica é rico em elementos mouriscos, como arcos em forma de ferradura, mistos, agudos, rendilhados quadrilóbulos, arabescos, tramas sugerindo tapetes, etc. A basílica reúne, como o pavilhão Mourisco, referências ao antigo e, paralelamente, soluções modernas.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

4. Considerações Finais

Referências bibliográficas

Como é sabido, durante muito tempo a história da arquitetura foi contada e recontada como um processo evolutivo, na qual caminharíamos de renovação em renovação; entretanto, retornando ao pensamento de Baudelaire e Nietzsche, esse valor se tornaria vazio em si mesmo. Supomos que possuímos uma faculdade capaz de se apoderar do tempo, produzindo causa e efeito; essa idéia se contrapõe a outras noções de tempo entre as diferentes culturas, como a oriental, a indígena ou a noção cíclica do tempo da tradição grega.

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A respeito da arquitetura da virada do século, ainda hoje ouve-se a expressão “arquitetura de fachada” a qual teria descuidado da técnica e do espaço interno em prol da fachada e de seus ornamentos. Entretanto, a qualidade e função de um objeto depende do significado que lhe foi atribuído. Criticase aquilo que, na realidade, adquiriu um outro significado funcional e simbólico. No Pavilhão Mourisco, ou Prédio Central da Fundação Oswaldo Cruz, a arquitetura reúne duas tendências consideradas incompatíveis: racionalismo estrutural e construtivismo aliado a uma total liberdade estilística. A ornamentação intrincada e complexa visualmente convive lado a lado com a funcionalidade construtiva e a tecnologia. Razão estética e razão técnica, as grandes questões da época, caminham juntas; a idéia de conciliar arte e indústria era predominante entre muitos arquitetos desde os primeiros tempos da industrialização. A arquitetura do Pavilhão Mourisco mantém o vínculo com o passado, materializado nos ornamentos e, paralelamente, dá ao seu prédio um caráter moderno, acompanhando as novas técnicas construtivas. Atacado como um período ausente de obras criativas, tendo a história como modelo, é interessante observar na Basílica do Imaculado Coração de Maria a criatividade e liberdade demonstradas na reinterpretação de ornamentos mouriscos. A rica ornamentação provoca efeitos ilusórios, partindo de materiais e recursos simples. Também é original a utilização de elementos mouriscos, mais comum nas sinagogas, em uma instituição católica. Os exemplos analisados são a própria face de uma época, com suas contradições, ironias, ambigüidades, contrastes, sonhos: a experiência do novo, a apreciação do antigo. Quanto ao ornamento, não representaria uma intervenção humana naquilo que transcende a função prática?

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Professora do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda do curso de Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 A palavra “arabesco” é expressão orientalista, tendo como origem o termo “rabesco” de onde se originou o nosso “rabisco”. 3 Por “góticos costumes” deve-se entender costumes bárbaros, primitivos, de povos não civilizados e não a arte medieval. 4 Jaime Larry Benchimol reuniu várias informações sobre a instituição publicadas no livro Manguinhos – Do sonho à vida – A ciência na Belle Époque.

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capitulo 8 iconografia: identidade brasileira

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O período compreendido entre a metade do século XIX e o início do século XX constituiu-se em um espaço de grandes transformações engendradas em meio a discussões, propostas e ferramentas ideológicas que concebe o progresso como o grande vetor da história e onde as idéias acerca de “moderno” e “modernidade” pouco a pouco, concretizam-se em imagens e também em marcos simbólicos e sólidos. A referência de modernidade adotada neste texto está vinculada à idéia desenvolvida neste processo de transição onde passado, presente e futuro são linhas que se mesclam, mas, passam a possuir a experiência de vivência que as distingue, não só dos demais períodos históricos anteriores, mas, em uma projeção até então não vivenciada. A modernidade enquanto experiência urbana adaptada às peculiaridades históricas do país implanta-se na remodelação das cidades, redistribuindo o cabedal de estruturas e serviços públicos em uma nova materialidade urbana. A modernidade delineia-se também como experiência inacabada, esboçada, indicada, fugidia neste momento de transição. Desta forma, a modernidade implicou de certa maneira, no aguçamento da sensibilidade moderna e na percepção do mundo fenomenal – especificamente urbano – que era mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que nos períodos anteriores. Em meio à turbulência sem precedentes da cidade, multidões transitam e são bombardeadas de impressões, choques e sobressaltos de várias e múltiplas visualidades e o indivíduo encontra-se diante de uma nova intensidade de estimulação visual, em vitrines e anúncios espalhados em todos os cantos.

“a influência das artes na civilização”. eliseu visconti e o pano de boca do teatro municipal do rio de janeiro ana heloisa molina

1

A cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, capital do Império e da jovem República, apresentase como personagem afeita às mudanças em suas feições e trajetos reorganizando a experiência urbana na relação com seus habitantes. Estas novas disposições redundam na eleição e construção de símbolos culturais como, entre outros espaços e elementos, o Teatro Municipal, inaugurado a 14 de julho de 1909. As reformas urbanas desenvolvidas na virada do século XIX ao XX no Rio de Janeiro desdobram-se em conseqüências sócio-econômico-políticas e culturais. A construção do Teatro Municipal enquanto monumento sinalizador de uma tradição e ao mesmo tempo, em busca de renovação e elementos modernos, terá em seu estilo arquitetônico e decorações internas, chaves de entendimento para a implantação de imagens 373

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

simbólicas de civilização. O pano de boca executado por Eliseu Visconti (1866-1944) entre 1904 a 1908 proporcionará elementos de compreensão desse movimento dialético.

Desta forma, também há necessidade de leitores para significar uma imagem, como ainda elementos narrativos para que ocorra a significação. Outra perspectiva, acerca de uma idéia sobre artefato poderia também fornecer algumas pistas. O olhar não reconhece, mas, responde ao que vê. Podemos considerar este aspecto para as críticas colocadas em diversos níveis: pela presença de figuras populares na multidão do cortejo e a permanência da figura do segundo imperador na recente República; para o caráter enciclopédico dado à composição e concepção do tema e para a construção e interpretação colocadas pelas alegorias.

Esta enorme pintura a óleo sobre tela (12 metros de altura por 13 metros de largura), dividida em 03 secções, pintadas separadamente, foi encomendada e executada quando Visconti encontrava-se em Paris. Mormente as justificativas colocadas por Frederico Barata em seu livro sobre a trajetória artística de Eliseu Visconti (BARATA, 1944) no tocante a espaço adequado para a composição de obra de tal porte e uso de modelos mais experientes encontrados na Europa, levam-nos a refletir como o pintor ponderou e construiu o tema “A influência das artes na civilização” em um ambiente tão distinto do brasileiro, e para o qual tal encomenda estaria à vista para os espectadores do Teatro Municipal no Rio de Janeiro.

Para o tema, o pintor coloca em marcha um cortejo de figuras que criavam, patrocinavam ou apoiavam as artes, as letras e a música. A questão da multidão envolve a idéia de movimento e indica a imagem de uma sociedade das luzes, moderna, que congrega e valoriza, mesmo que esfumaçadamente, todos os representantes das artes para o estabelecimento de uma civilização.

Como pensar o país na perspectiva de viver em outra nação e como esta influenciaria a concepção desta composição?

A multidão é fruto das modificações sociais e avanço tecnológico, que diferentemente das massas do século XVIII, concentra-se nas vias públicas das grandes cidades e mantém o anonimato na mescla de indivíduos, induz o movimento que participa do cortejo e é por ele conduzido à arte, em que ocorre a ocultação/ revelação de sinais.

É certo que tal espaço a que estaria destinada, congregaria espectadores (aqui poderíamos pensar na abrangência das palavras “expectativa”, “espetáculo” e “espectro”) de todas as nacionalidades e teoricamente, de todas as classes. Como abranger e ao mesmo tempo “educar” o olhar aos não iniciados a este mundo intelectualizado?

Este cortejo adentra a cena pelo lado esquerdo com figuras populares, banda e diversos instrumentos musicais, bandeiras e crianças, acompanhados das alegorias Mocidade e Futuro e dois grupos de bailarinas que criam um efeito de asas sobre o pedestal da alegoria Poesia. Estes traçados e o trajeto estabelecem uma proximidade e imediata identificação com o público, pois, estaria em um referencial visual mais próximo.

A sugestão de um “protocolo de leitura’ proposto por Chartier poderia indicar alguns caminhos para refletirmos acerca da “leitura visual” e as interpretações dadas aos seus signos. Tal forma de pensar os códigos visuais que necessitam ser aprendidos pelos que desejam“ler” as imagens, aproxima-se do que Chartier coloca para o caso da leitura: a questão de ter havido, no decorrer da história, diferentes “protocolos de leitura” que eram transmitidos e ensinados. Chartier, mencionando sobre a diferença existente entre o escrito e o lido, esclarece: “[...] a leitura não está, ainda, inscrita no texto, [...] não há, portanto, distância pensável entre o sentido de que lhe é imposto ( por seu autor, pelo uso,pela crítica, etc) e a interpretação que pode ser feita por seus leitores: conseqüentemente um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado [...] (REZENDE, 2000: 13)

Em 1908, quando concluiu seu trabalho, Visconti exibia em suas pinturas influências de impressionismo e pontilhismo, observadas na pintura circular do “plafond”, datada deste período e incorporada em muitos trechos do pano de boca, com efeitos de luzes, sombras e cores nestes estilos. Para a composição do pano de boca ocorrerá um compromisso com o relato do tema, o que irá proporcionar um maior realismo figurativo. Assim, em algumas áreas da composição temos aspectos mais impressionistas, como as que estão 374

Eliseu Visconti e o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro

colocadas mais ao fundo, distantes do primeiro plano e às figuras alegóricas do lado esquerdo. Concorrendo com a execução figurativa, em tamanhos maiores com os efeitos de recurso em névoa, demonstra que o pintor aliou o melhor de sua formação acadêmica figurativa e a capacidade de adequar e interpretar as tendências estilísticas quando de sua permanência em Paris.

entronizados. Música é a arte de combinar sons e o ritmo é um elemento comum à música de todas as culturas. Por isso admite-se a hipótese de que a música tenha surgido originalmente como um acompanhamento rítmico para a dança, que a teria precedido. Todas as culturas conhecidas possuem algum tipo de música, geralmente ligada à religião. A eleição da música como eixo sugere o aspecto mais universal da arte, pois, a música ultrapassa as fronteiras da compreensão da linguagem escrita ou pictórica, onde muitos de seus signos estariam restritos a determinadas culturas.“Se a música é a ciência das modulações, da medida, concebe-se que ela comande a ordem do cosmo, a ordem humana, a ordem instrumental. Ela será a arte de atingir a perfeição.” 2

Veremos que a Arte, figura alada está quase diametralmente oposta à alegoria da Poesia, com o eixo deslocado mais a direita, onde esta empunha a lira e flores sob um pedestal. A Arte seria o vértice de um triângulo formado pela Música coral e os Campos Elíseos. A significação deste triângulo está nos aspectos de anunciação e bem-aventurança proporcionados por estes símbolos.

Outro triângulo maior pode ser traçado. Partindo da Arte podemos ver uma linha até Schopenhauer (filosofia) 3 e na outra ponta a Ciência. Representariam as relações entre Arte e Ciência e Filosofia e a contribuição recíproca para o desenvolvimento de cada área. Aliada à religião, representado pelo clero e papado, temos os quatro pilares da sabedoria humana. Este número e figura estão relacionados à Perfeição Divina, o desenvolvimento completo da manifestação, símbolo do mundo estabilizado.

A Poesia compõe outro triângulo formado pela Mocidade e Futuro (em uma linha feita pela Dança grega) e pela Dança moderna. O sentido pode ser lido como a união de jovens e o futuro estariam entrelaçados à arte pela poesia e danças, demonstrando pelos ritmos orais e corporais as manifestações artísticas, em uma linha de continuidade, base da arte. Lembremos que o triângulo é a primeira forma fechada obtida pela união das linhas e significa concretização. Símbolo da Trindade, com o vértice para cima, representa o espírito liberto da matéria, o que sinaliza, por exemplo, a Arte em seu ponto ápice.

Lembremos que a obra principal de Schopenhauer ‘O mundo como vontade e como representação’ exerceu forte impacto no pensamento moderno mediante o diálogo revitalizado com a tradição filosófica de Platão e Kant e seus conceitos de Idéia e coisa-em-si, bem como estimulou artistas como Wagner, Proust, Mann e Machado de Assis, entre outros, devido a sua concepção da arte como forma especial de conhecimento, superior à ciência por nos trazer satisfação metafísica4, o que de certa forma, viria ao encontro à concepção de arte pensada por Visconti.

Ao lado esquerdo temos um quadrado formado pelo clero, Música instrumental, Ciência e Verdade. Ao lado direito, temos um quadrado formado a partir dos músicos em posição mais elevada em relação ao cortejo: Santo Ambrósio, Palestrina, Beethoven e Carlos Gomes. Lembremos que o quadrado é um dos quatro símbolos fundamentais (os outros seriam: centro, círculo e cruz) e implica a idéia de estagnação, solidificação e até mesmo de estabilização na perfeição. Na tradição cristã, o quadrado em virtude de sua forma igual dos quatro lados simboliza o Cosmo e seus quatro pilares de ângulo. Designa também os quatros elementos essenciais (água, fogo, ar e terra) e os quatro pontos cardeais.

Diversos retângulos podem ser traçados, da parte externa, diminuindo até o centro, localizando os pontos Música coral, Campos Elíseos, o grupo formado por Schopenhauer-Mozart e o grupo com os personagens brasileiros. Recordemos que o retângulo é um quadrado longo e possui a simbologia da perfeição das relações estabelecidas entre terra (os personagens apontados) e o céu (Campos Elíseos e Música coral) e o desejo da sociedade de participar dessa perfeição.

Veremos que a música será a linha que une todas as outras manifestações artísticas ressaltando os maiores músicos ou aqueles que proporcionaram grandes mudanças sendo aclamados e

Um pentágono pode ser traçado tomando por base a Arte e traçando linhas a Beethoven, Poesia e “glórias brasileiras”. Se pensarmos a reta formada 375

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

pela figura de Beethoven ao grupo “brasileiro”, veremos que os personagens aí tomados representam as manifestações artísticas da música, teatro, literatura, pintura, arquitetura, e ainda, as alegorias da Mocidade e do Futuro.

e estava visível), no próprio atelier de Chavannes à crítica francesa, recebendo os maiores elogios. Alguns críticos parisienses filiaram a maneira pela qual Visconti pintou o pano de boca à dos pré rafaelitas ingleses.(BARATA, 1944:122)

O pentagrama simboliza a harmonia universal (o cinco é o símbolo da união, do Homem - os cinco sentidos e as cinco grandes qualidades humanas: amor, bondade, justiça, verdade e sabedoria - e do Universo – os quatro pontos cardeais acrescido do centro é o universo manifestado - representam a ordem e perfeição) e podemos sugerir que o amálgama de todas estas manifestações da arte busca atingir este objetivo: a elevação, a perfeição e a harmonia sem distinções.

A crítica brasileira, porém, foi mais severa e provocará um debate pelos jornais. Barata, assim reporta. O pano de boca foi colocado no Teatro Municipal em julho de 1908, antes da inauguração oficial em 14 de julho de 1909, na presidência de Nilo Peçanha. A crítica brasileira, ao contrário da parisiense, recebeuo muito mal, sofrendo rudes ataques da imprensa. Censuravam-no uns por ter colocado três figuras de negros entre a massa de populares que exaltam o grande cortejo histórico. Isso nos diminuiria consideravelmente aos olhos dos estrangeiros que iam freqüentar as temporadas do Teatro Municipal que poderiam pensar que fôssemos um país de pretos. Um descobriu bananas no taboleiro sustentado por uma dessas figuras e as devolveu insultado ao pintor. Outros, chamando de “cortejo carnavalesco” à grande composição, atacavam rudemente o artista. É certo que esses ataques visavam, indiretamente a Pereira Passos, a quem a imprensa não pudera perdoar ainda a indiferença pela campanha movida contra a sua administração, ao proceder as derrubadas para a remodelação do Rio. (Id., 1944:123)

Um heptágono estaria formado pelas linhas que unem a Arte, Van Dick, Verdi, Poesia, Benjamin Constant e Música instrumental. A forma sete indica o sentido de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva, além de propor a totalidade do universo em movimento. Se pensarmos nos elementos ligados, veremos que Benjamin Constant foi o único republicano retratado (temos outros personagens em cena que lutaram por este projeto político, mas, enquanto liderança ou “fundador” da República, é o único), o que sugere a leitura da união da arte em apoio a um movimento de renovação: o republicano. Um losango (que é um quadrado alongado) estaria também formado pelos pontos Arte, Filosofia, Poesia e Ciência. Símbolo do Universo materializado na Terra significa base e organização, ou seja, estes elementos estruturam o conhecimento materializado em prol da humanidade.

São significativas tais reações. Os vetores e argumentos utilizados englobam um feixe de proposições ideológicas, sociais e políticas que envolvem a construção de uma imagem para o Brasil, pois, não seria admissível o país ser apresentado por um “cortejo carnavalesco” em que figuravam populares e negros em um espaço nobre, destinado a manifestações artísticas elevadas e cartão postal civilizatório para o mundo.

É importante observar que este é um jogo complexo e a relação entre os signos e o que eles representam não é unívoca: o símbolo não está ligado a uma função única e o local em que está impresso, pode estar imbuído de múltiplos valores, eventualmente ambíguos, possibilitando outras leituras.

Por outro lado e compondo com esta imagem, refletimos que o espaço urbano está atrelado a uma rede de relações sócio-culturais e políticas em um circuito de memórias, esquecimentos, afetividades e práticas cotidianas. Assim, podemos tomar os re-desenhamentos do espaço urbano, os planejamentos e as desocupações do centro da cidade, as escolhas de projetos arquitetônicos em tais ou quais estilos e a eleição/destruição de marcas de materialidades físicas como documentos na concepção de sua visibilidade, interpretações e intenções.

Repercussões e reações ao pano de boca Vejamos as repercussões da cena apresentada no pano de boca quando da exposição em Paris no ateliê de Visconti . Frederico Barata em seu relato comenta: Ao terminar o pano de boca em 1908, Visconti expôs a parte inferior (cabia na área disponível 376

Eliseu Visconti e o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro

Ao projetar re-ordenações em sua malha urbana, intentando demonstrar uma concepção de civilização e civilidade em uma cultura urbana, reconfigura suas marcas em outros jogos de poder, de idéias, de normas.

Referências bibliográficas BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1944. BARBOZA, Jair. A metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo:Humanistas/FFLCH/ USP, 2001. C H E VA L I E R , J . e G H E E R B R A N T, A . Dicionário de símbolos. São Paulo: José Olympio,1999. REZENDE, Eliana Almeida de Souza. Imagens na cidade: clichês e foco – o olhar sanitarista. História Social. Campinas.Unicamp. n.o 7 .2000.

O Rio de Janeiro na virada para o século XX vivencia este processo em graus de resistência diversos às diretrizes ideológicas e concretas de implementação de novos modelos de convívio urbano em combates pelos jornais ou na forma de re-apropriações e re-utilizações de espaços destinados ao desfile de novos setores sociais, em outras leituras conotativas. O Teatro Municipal como monumento atrelado aos ideais culturais mais elevados será objeto de concretização dessas idéias, projetando visualidades: arquitetônicas, decorativas e simbólicas.

Notas 1 Departamento de História. Universidade Estadual de Londrina. Doutora em História (UFPR). 2 Boécio distingue três tipos simbólicos de músicas: a música do mundo, que corresponde à harmonia dos astros e surge de seu movimento, à sucessão das estações e à mistura dos elementos. O segundo tipo é a música do homem: ela rege o homem, e é em si próprio que ele a apreende, supõe um acordo da alma e do corpo..uma harmonia das faculdades da alma.. e dos elementos constitutivos do corpo. Por fim, a música instrumental regula o uso dos instrumentos. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. São Paulo: José Olympio,1999, p. 627. 3 É interessante observar que Schopenhauer é o único filósofo representado e na relação das figuras ocupa o lugar 37, ou seja, a metade dos personagens listados. 4 A respeito desta temática ver BARBOZA, Jair. A metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Humanistas/FFLCH/USP, 2001.

O pano de boca executado por Visconti nos habilita a pensar as imbricações visuais, políticas e ideológicas em um período de intensas mudanças, possibilitando perceber as estratégias de permanência de estruturas ligadas ao regime político anterior e os artifícios de concepções de “moderno” e “civilização” a serem implantados pela República. As leituras desta composição proporcionam chaves de entendimento deste embate. Visconti capta e filtra com sua sensibilidade artística, uma dessas dimensões e transpõe em personagens, alegorias e narração pictórica, enciclopédica porque não, um instante fugidio daquele presente, rico em contradições.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Imagens sempre nos instigam a imaginar, concretizar uma narrativa através de nossos conhecimentos acerca do tema retratado. Nessa busca pela historicidade de uma tela do passado muitos historiadores tem sido atraídos pela produção artística nacional. Este é o meu caso: é tentador interpretar uma produção pictórica individual à luz de conceitos mais gerais – políticos, sociológicos e históricos. A tarefa de “ler” o que é pintado acaba, entretanto, se constituindo numa tarefa árdua e por vezes frustante, especialmente quando nos damos conta que além de construir visualmente acontecimentos da época: descobrimento, primeiras missas, independência, proclamação da república, batalhas, grandes personalidades políticas, bem como monumentos e fundações de cidades, os artistas outras vezes nos falam do não acontecido: discursos poéticos, lendas, romances literários e sonhos diversos. Até por volta da metade do século XX era comum explicar as composições de um artista por suas qualidades de ciência exata, fiel aos acontecimentos históricos, da qual dependia os atributos de artista como pesquisador dos fatos ou, no caso de um trabalho sem referências historiográficas, como obra de sua aguçada criatividade e talentos artísticos aprimorados na academia de artes. A situação pode ser exemplificada na observação de duas telas do pintor Theodoro Braga: a primeira, concluída em 1908, feita sob encomenda da prefeitura da cidade de Belém do Pará, tentava dar conta da chegada dos portugueses as nascentes do rio Amazonas em 1616 e tem como título “A fundação da cidade de Belém do Grão-Pará”. O outro quadro, pintado por volta do ano de 1929 e que figura, entre outras obras de referência, na História da pintura no Brasil de José Maria dos Reis Júnior, publicado em 1944, fala de um não acontecido. É intitulado “Fascinação de Iara” e tenta dar materialidade a uma lenda bem conhecida em todo o Brasil sobre uma mulher que vive nos leitos dos rios e seduz mortalmente os homens desatentos.

imagens e imaginário na construção do real andré cozzi 1

Diante destas duas telas em 1967 um acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Pará - IHGP, discursando sobre Theodoro Braga, seu paraninfo naquele Instituto, fez o seguinte comentário: Persegue-nos a DÚVIDA; no entanto, a justificar-se, desde que, no reino das musas convivem deusas de ciências e deusas de arte; e nós, deste barro mal cozido, pegajoso, conformemo-nos em deslumbrarmo-nos com estas e com aquelas. Por isso é que, a nosso Theodoro Braga, devemos admirá-lo nas facetas ambas: de cientista, (historiador, geógrafo, sociólogo), e na de artista, 378

Imagens e imaginário na construção do real

valores estéticos da Europa retardava e chegava mesmo a impedir o surgimento de um estilo tipicamente nacional. Tais questões sobre a arte foram amplamente exploradas em muitos momentos.

estereotipada esta na arte da pintura. Amou o belo, quando estudava e escrevia História para lavrar seus quadros de História, [...] como quando executou o “Fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará[...]. amou o belo quando lavrou a “Muiraquitã – Fascinação de Iara” (ARAÚJO, 1967: 200).

Na exposição da Academia Imperial de Belas Artes de 1879 já era bastante evidente a busca por uma identidade artística nacional. Naquela ocasião a exposição das telas “Batalha dos Guararapes”, de Victor Meireles (1875 – 1879), e “Batalha do Avahy”, de Pedro Américo (1874 – 1877), iniciaram uma discussão que demarcou a formação da crítica de arte no Brasil e acabou extrapolando para os posicionamentos políticos que culminaram com a proclamação da República em 1889. Pedro Américo foi tomado como um pintor antiacadêmico, sendo muito criticado por membros da academia, mas acabou por receber apoio da região de São Paulo, um emergente centro econômico, sendo incumbido da tarefa de pintar o quadro “Grito do Ipiranga” (1885 – 1888). Nesse caso, o artista era preterido mais pelo seu desapego as rédeas da academia (pois esta nunca havia produzido um quadro tendo como referência a paisagem paulista) que por seu estilo pictórico.

Os comentários de Luiz Romano da Mota Araújo nos conduzem a uma forma de perceber o mundo, que subsiste mesmo nos tempos atuais: o de conceber a arte com uma função pragmática no meio social, para educar e promover o progresso do país e por outro lado a arte como estética do belo. Há por trás de tais conceitos, entretanto, um forte teor ideológico de controle social. Desde que Aristóteles escreveu seus tomos sobre política e poética, separando realidade e ficção em dois mundos distintos e irreconciliáveis, temos a nítida impressão que a vida humana segue uma regra similar. Vivemos sempre fazendo estas separações: o real e o imaginário, que devem ser analisados sempre separadamente. Relevantes trabalhos no campo das ciências sociais tem demonstrado que tal separação impede uma análise mais precisa dos acontecimentos a nossa volta. No campo das ciências biológicas, para citar um exemplo, uma mudança de atitude nesse sentido permitiu avanços nunca antes alcançados. No livro “O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano”, o neuropsicólogo Antonio Damásio analisa o papel desempenhado pelas emoções em nossa vida. Somos informados que sem as emoções seria impossível desenvolvermos o pensamento racional. Sob esse ponto de vista, o quadro “Fascinação de Iara” se constitui numa importante referência iconológica sobre o tempo em que foi produzido, bem como sobre seu autor, desfazendo com isso conceitos por muito tempo utilizados para classificar a arte e os artistas com formação acadêmica: marcados pela austeridade, seriedade, apego a regras clássicas do desenho e uso das cores, acabando por relegar esses artistas ao ostracismo de uma arte retrógada que caducou após 1922.

As críticas em torno desses dois pintores foi amplamente veiculada em jornais e periódicos da época, legando aos dias atuais um importante acervo documental, permitindo aos pesquisadores o confronto e entendimento das expectativas em relação ao nascimento da arte nacional. Mas ainda é necessário um aprofundamento tanto horizontal como vertical para uma compreensão mais densa destes acontecimentos. “Assim, enquanto alguns pontos desse embate estavam mais ou menos claros, como o relativo à composição, outros permanecem obscuros e incertos, principalmente a idéia de natureza e suas implicações para a arte” (ALVES, 2003: 165). Mesmo após as reviravoltas políticas de 1889 o dilema sobre como representar o meio no qual vivemos persiste. A formação na Academia de Belas Artes manteve como referente o modelo europeu: depois de receber as primeiras lições no Rio de Janeiro os artistas partem para o exterior, em grande parte para a academia Julian, na França, para aprimorar seus conhecimentos. Esse foi o caso do pintor Theodoro Braga. Iniciado na pintura pelo paisagista Telles Júnior, quando ainda cursava direito na cidade de Recife, em 1894, ao concluir os estudos na Faculdade de Direito, segue para a cidade do Rio de Janeiro e matricula-se na Academia Nacional de Belas Artes. Em 1899 faz os testes para aquisição do prêmio de viagem a Europa oferecido pelo governo e segue para Paris

Theodoro Braga, para além das aparências de intelectual bem comportado tão pontuado no discurso de Luiz Romano, era um artista as voltas com as adversidades de sua realidade. Havia muito tempo os artistas brasileiros estavam envolvidos na discussão sobre uma arte genuinamente brasileira, que na opinião de alguns só seria possível pelo aprofundamento de técnicas consagradas por grandes mestres europeus (principalmente os da escola francesa). Para outros, no entanto, esse apego da academia aos 379

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em 1900 onde passa dois anos, depois para a Inglaterra, onde passa mais dois anos e finalmente para a Itália, por mais um ano. De volta ao Brasil em 1905 vai para sua cidade natal, Belém do Pará, e lá recebe a encomenda oficial para a tela “Fundação da Cidade de Belém do Grão-Pará”, exposta ao público em 1908, durante as comemorações pelo natalício do intendente municipal.

passou a valorizar os aspectos singulares de cada região. No Brasil, esta nova perspectiva se faz sentir principalmente em relação à heterogeneidade da população: os estudos sobre folclore dividem a população em habitantes das matas, das praias, das margens dos rios, dos sertões, das cidades. Por um lado, seguindo as tendências científicas mais correntes no exterior (como a do naturalista britânico Bukle – sobre a influência dos ventos alíseos nas características dos povos do atlântico sul) a idéia central recaía na crença de que nas terras brasileiras a natureza suplanta o homem. Daí a preocupação de Euclides da Cunha em incluir em “Os Sertões”, um livro que foi e continua sendo uma peça chave para o entendimento do pensamento intelectual do modernismo brasileiro, dois longos ensaios sobre A Terra e o Homem. De fato, esta é uma idéia que perdura: o escritor paraense Osvaldo Orico, no livro “Mitos ameríndios, sobrevivências na tradição e na literatura brasileira”, que teve sua primeira edição publicada em 1929, percebemos a recorrência desta fórmula para explicar a variedade das manifestações culturais espalhadas pelo território nacional. Através de uma metáfora descreve a oposição entre campo e cidade; atraso e progresso:

É possível verificar já nesta primeira grande encomenda significativas modificações na forma de conceber e representar a natureza. No quadro sobre a fundação de Belém é perceptível a preocupação do pintor com as particularidades da natureza regional. Atento a crítica local, que já havia anteriormente chamado a atenção ao fato do pintor Antônio Parreiras, na obra “A conquista do Amazonas”, ter descuidado quanto aos “traços fisionômicos dos indígenas”, demonstrando que “Parreiras não é familiarizado com o índio; não obteve, talvez, modelos em condições, de modo que aos silvícolas, que são o elemento tão apreciável na sua composição, falta algo na cor, na expressão, na musculatura, na estrutura orgânica, até” 2 . Assim, no quadro de Teodoro Braga persiste uma profunda pesquisa bibliográfica, que resultam na fiel presença da flora local, não apenas pelo que é mais peculiar, como a seringueira do centro do quadro, símbolo econômico da região, ou a imbaubeira envolta em cipós, representante da grandiosidade da floresta amazônica, mas também por detalhes de fundo, como as nuvens carregadas, comuns a região no mês de janeiro, data da chegada da expedição de Castelo Branco, além de guajarás e aturiás, outras espécies vegetais bem comuns a região.

[...] duas flores realizam o seu destino de maneira diversa: a que brotou naturalmente da terra, na primavera obscura de suas origens, e a que surgiu lentamente do solo, regada pelo suor e alentada pela cobiça. Duas flores que marcam os rumos de nosso espírito e falam dos contrastes de nossa história: a da tradição e a da Cultura. (ORICO, 1930: 14-15).

Temos já nesses primeiros anos do século XX os contornos de uma pintura que busca por uma identidade própria sem necessariamente entrar em choque direto com a escola oficial do Rio de Janeiro. Perseguindo a trilha aberta pelo professor Caleb Faria Alves, a partir de um conceito de Pierre Bourdieu 3, seria ingenuidade de nossa parte acreditar que a prática desses artistas era a concretização de uma liberdade absoluta motivada pela espontaneidade criadora. Antes, parece ter havido o preenchimento de uma lacuna estrutural, criada a partir das contradições existentes nas próprias técnicas e regras ensinadas na academia, questionadas a partir da exposição de 1879 (ALVES, 2003: 136).

A primeira “flor” atrai por seu exotismo primitivo, suas lendas e amuletos (uirapurus e muiraquitãs), ervas aromáticas, olhos de Boto. A outra “flor” é “coloração variada e aventurosa”, “É o mundo dilatado e industrial da raça que trabalha”. Demonstra com isso o autor sua preocupação de que a industrialização e a implementação das técnicas modernas façam desaparecer a tradição; “Porque a flor não tardará a desaparecer, para ficar apenas como relíquia de nossa lembrança a jóia selvagem de nossa emoção...” (ORICO, 1930: 17). Como exemplo dessa ameaça de extinção cita o naturalista Barboza Rodrigues, que em 1884, na cidade de Manaus, quando ao indagar uma índia sobre por que não chorava a morte do marido ouve como resposta: “Nos já não temos alma, os tapuias só tem corpo” (Ibid.: 19).

A idéia de que a natureza brasileira precisava ser interpretada e figurar com originalidade nas produções artísticas também era perseguida pela literatura nacional, que semelhante a pintura

A crença num determinismo geográfico faz com que as pesquisas sobre as origens dos povos recaiam invariavelmente sobre o folclore. Daí a preocupação em preservar a tradição como uma espécie de 380

Imagens e imaginário na construção do real

identidade filogenética, capaz de explicar as peculiaridades do comportamento dos brasileiros nas diferentes regiões do país e constatar a evolução civilizadora dos mesmos, como ocorreu nos demais continentes. Ainda no livro de Orico, podemos encontrar um capítulo intitulado “O Homem e a Terra”, que faz uma relação entre a literatura e os eventos sociais e políticos. Para ele a literatura é como um “espelho” das lutas e triunfos da civilização. Defende que desde o início, como colônia, no Brasil já havia o desenvolvimento de um sentimento de coesão social, inicialmente nativista, que depois passa a ser nacional. Essa literatura recebe influência direta do elemento tradicional.

mitologia nascida do encontro entre homem e terra, manifestada em forma de lendas. Citando o livro Lendas e canções populares4, de Juvenal Galeno, faz uma defesa da presença de uma fatalidade histórica, de uma vocação natural para a música e poesia próprias, original. Daí conclui: “Cabe-nos agora proceder ao exame desse quadro, estudando-o através do sentimento da natureza, do sentimento da raça e do sentimento da história” (p. 29). Segundo tais idéias, o que nos distingue como povo é a íntima relação com a natureza. Desde o descobrimento houve uma forte ligação entre os homens e a natureza exuberante. Cita Pero Vaz de Caminha, Manuel da Nóbrega, Anchieta, Pero Magalhães Gandanvo, Gabriel Soares de Souza, como homens seduzidos e fascinados pelas belezas naturais do Brasil.

A literatura de uma raça, ou simplesmente a literatura de um povo, não está, por certo, no simples instante que marca o esplendor dessa raça ou desse povo. Há um avizado antecedente que nos conduz ao exame de suas forças emotivas; que nos leva á contemplação da beleza em suas fontes obscuras e humildes, que nos transmite a indicação de seus mistérios e genialidades; que nos revela a graça de suas imagens e a surpreza de seus ritmos. (Id., 1929: 22).

Apoiando-se nas teses científicas do período, conclui que existe uma fatalidade geográfica na formação de todas as culturas – sua organização política e de direito. A intenção é romper com a idéia de povo selvagem e incapaz, inexpressivos, refratários a civilização. Esclarecendo as resistências de Tamoios e Potiguares a chegada dos portugueses, Orico sustenta a influência dos franceses e não uma indisposição natural do gentio contra a civilização. A participação efetiva dos indígenas garantiu a “construção do paiz”, por isso não somos simples prolongamento do “gênio português na América” (p. 38). Houve uma mistura do sangue e da tradição portuguesa com o sangue e costumes dos indígenas – influiu e sofreu influência. Não houve uma passividade dos negros e índios no contato com o português, bem como na construção do país.

Orico faz uma analogia entre o desenvolvimento das civilizações da Índia, citando Mahabarata e o Ramayana, da Grécia, nos poemas de Homero, das florestas centrais da Europa, com o misticismo dos Normandos, epopéia dos Niebelugen. No caso do Brasil, as raízes das origens de sua civilização encontram-se na região norte do país: Reconhecem os decifradores da nossa formação e os interpretes de nosso espírito nativo, que é na região septentrional do paiz que rezidiu e ainda hoje rezide o maior contingente de ritmos e lendas que nos transmitem uma idéia mais viva de nossas origens distanciadas e de nossas feições diluídas. (Id., 1929: 25).

O sentimento nacional deriva, antes de tudo, das paisagens que nos cercam e do ambiente em que se banha nosso espírito, da tradição que nos acompanha nos transes emotivos. A tradição é, assim, o vínculo de uma solidariedade com o meio e o patriotismo o seu instinto defensivo (ORICO, 1929: 44).

Para o autor de Mitos Ameríndios, a região norte recebeu, até então, pouca influência das correntes migratórias da ambição e do trabalho, da civilização industrial e agrícola. O que restou, como reação impávida, foram três tipos de nosso habitat: no sul, o gaúcho; no nordeste e norte, o cangaceiro e o cantador. Colocam-se como representantes de um mundo intermediário: os caboclos amazônicos, o sertanejo maranhense, o vaqueiro do Piauí; o jangadeiro do Ceará, o jagunço da Bahia; o tabaréu de Sergipe; o caipira paulista e o garimpeiro de Minas Gerais. No fabulário destes elementos encontra-se a presença de um espírito próprio, uma

Para apoiar suas conclusões sobre a influência do meio e da tradição popular na formação de um povo, Orico cita Herman Keyserling5 e conclui: “A hereditariedade assim entendida não é uma simples transmissão de sangue, mas a força da tradição” (p. 45). Por fim, argumenta ele, o próprio nome Brasil é o resultado da forte influência desta tradição, vencendo as designações oficiais numa clara manifestação de distinção em relação a Portugal. Elege o livro escrito por Frei Vicente do Salvador como o testemunho claro da formação de uma autentica história nacional, que foi ocultada durante dois séculos pela coroa portuguesa, vindo 381

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

a lume apenas após 1881, que até chegou a ser utilizado anteriormente por Varnhagem em Lisboa, mas avaramente este o manteve em segredo.

Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho na nossa arte. E que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou anacronicamente a dormir e a sonhar – na era do jazz band e do cinema – com a frauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena. (JORGE, 1994: 462)

A idéia sobre a prevalência do determinismo geográfico em nossa formação como povo tinha uma profunda penetração no meio social. Em Belém, durante solenidade em comemoração pelo centenário da Revolução Pernambucana de 1817, realizada no Teatro da Paz, no dia 6 de março de 1917, os oradores invariavelmente, de forma direta ou indireta, consubstanciavam sua retórica com argumentos cientificistas. O pronunciamento do Dr. Ignácio Moura, presidente da diretoria provisória do IHGP, é publicado na íntegra na revista daquele instituto, em sua edição de novembro de 1917. As palavras proferidas naquela ocasião mostram a afinidade daqueles homens na crença da influência do meio em nossa constituição como povo:

Ciência e folclore fornecem combustível para as mais diversificadas formulações sobre nossa origem como povo. No livro “Muirakytã e os idolos symbólicos, estudo da origem asiática da civilização do Amazonas nos tempos prehistóricos”, de 1899, o então diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, naturalista Francisco Barboza Rodrigues, defende a idéia de que os muiraquitãs encontrados por ele na região de Alter do Chão, na cidade de Santarém, no estado do Pará, são compostos geologicamente por material oriundo do continente asiático (nephrite), precisamente da China. Este amuleto seria o símbolo de uma civilização já desaparecida (os Káras), vindos da Ásia para o sul do continente norte-americano, e migrado posteriormente para as margens dos rios da bacia amazônica, e que tinham nas Icamiabas (amazonas) as guardiãs destas relíquias. Rodrigues permeia suas assertivas com os relatos das lendas do Muiraquitã, do Jurupari e das Amazonas, entre outras, para comprovar sua tese.

A química social tem dessas vagarosidades, na combinação dos elementos orgânicos e inorgânicos, físicos e morais, que entram em seus fenômenos, para produzirem mais tarde, através do tempo e do espaço, a estrutura e construção de um povo, sob o mesmo aspecto social com o mesmo fim econômico. (CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA, 1972: 179)6. Durante aquela solenidade de criação do IHGP podemos perceber um certo distanciamento do aspecto político para a formação de uma cultura. Sabemos que durante o período bellepoquiano forma-se o caráter social por meio de leis, como é o caso dos códigos de posturas adotado por muitos municípios brasileiros, que impunham regras (beirando às vezes o absurdo) sem nenhuma relação com o cotidiano local, estranha à maioria da população. A situação após os acontecimentos de 1914-1918 é de procurar uma renovação de energias criadoras do real, baseadas em aspectos econômicos e sociais.

A origem de muitos povos do Brazil e principalmente os da região cortada pelos rios para os quaes o Amazonas é arteria gigante, está n´uma destas paginas; e com um pequeno monumento mineralogico, precioso luzeioro nas mãos do archeologista, o Muyrakytã, procuro estudal-a e, se não vejo esclarecida toda a população desta grande zona, apresenta-se-me clara a parte que habitou uma determinada região. (RODRIGUES, 1899: vol. 1, p. I). Presos a esse Muyrakytã, o fanal que me tem guiado para diversos pontos, acham-se vários episódios que se consideram lendas, e são estas que muito favorecem a peregrinação pelos estadios dos tempos idos. (Ibid.: p. IX).

Face a crise política e econômica em que mergulha o mundo nos primeiros anos do século XX, o encanto exercido pela Europa como modelo de civilização entra em crise, fazendo crescer a busca por modelos próprios, que privilegiasse a técnica moderna mas sob um personalismo nacional independente, original, demarcando com isso a alteridade, a soberania dos brasileiros sobre seu mundo, sobre seus corpos, e por conseqüência, sobre seus destinos: homem americano e tropical. Durante a semana de arte moderna de 1922, as palavras proferidas por Menotti Del Picchia dão o tom deste desejo de libertação:

A repercussão de trabalhos científicos que envolvem o folclore, como o de Barbosa Rodrigues, mais tarde serão largamente utilizados para pensar o povo brasileiro, esse parece ser o caso da tela fascinação de Iara. Assim temos o quadro: a bela figura (no sentido mais contemporâneo de Braga) da deusa-mulher Iara ou Uiara, da cosmogonia indígena, no fundo de um lago entre Vitórias-régias7 – parece haver uma estreita relação desta 382

Imagens e imaginário na construção do real

ambientação com outro quadro de Braga: “o lago da Vitória Régia” – sendo admirada/desejada por um observador agachado as margens da lagoa.

Iara, como quando consideramos sua habitação no fundo dos rios. A água por si só já traz uma série de conflitos existenciais: para Tales de Mileto a origem e base de todas as coisas, enquanto que para Heráclito representava a morte e o devir de todas as coisas, um movimento de constante mudança. Associada à mulher a água também pode ser vista como representação dos aspectos ambíguos e misteriosos encerrados no corpo da mulher, a natureza feminina.

Seria esse quadro portanto a tentativa de sintetizar as discussões sobre esse novo modelo social, no qual os elementos que anteriormente serviam apenas como motivos ornamentais, imersos junto à natureza selvagem, adquirem cada vez mais presença como sujeitos: os indígenas que no quadro “A fundação da Cidade de Belém” servem apenas para pontuar a mudança para um estágio do processo civilizador iniciado com a chegada dos portugueses, sem muita importância para a constituição de uma nova e melhor realidade, estando mesmo fadados a completa extinção, uma genuína peça de museu, são agora figuras centrais para o entendimento de quem somos como povo.

Assim, temos na água, e por extensão na mulher, a origem e o fim; a vida e a morte; o bem e o mal; a benção e a maldição. Tais características também podem servir de metáfora quando falamos historicamente em períodos de mudança e ruptura: O dilúvio, a queda de Babilônia, a travessia do Mar Vermelho, para citar apenas os exemplos da tradição judaico-cristã. Algo semelhante parece motivar muitos pensadores nacionais durante os anos vinte do século XX: o mundo pós-1914 parece ter marcado profundamente as perspectivas quanto ao futuro; parecia haver de fato a crença de estarem vivendo num período de transição.

O Brasil tem um segredo na sua natureza: é o mistério das Uiaras. Si alguém se atreve a conhecê-lo, si leva a peito estudá-lo, começa a ver tanta coiza e coizas tão lindas, nas suas florestas e nos seus rios, enleva-se de tal maneira no capricho de suas fórmas vivas, nos imprevistos de sua população primitiva, que logo se prende dum amor tão grande, tão sincero e tão profundo, que nada há que o afaste desse abismo. Na lenda dos seus primeiros filhos houve talvez a idealização do Brazil; quem logra vê-lo não reziste, mergulha, déce, afunda nos seus encantos e perde-se por amor de suas maravilhas. (ROQUETTE-PINTO, Seixos Rolados. In: ORICO, 1930, p.119).

Todo esse imaginário evocado pela pintura da Iara é um motivo para materializar o sentimento sobre o período em que ela é concebida. Essa é uma característica presente em outros quadros e parece também ter exercido sua influência sobre Theodoro Braga. No quadro “Ophélia”, produzido entre 185152, pelo pintor inglês John Everett Millais (18291896), especialmente no posicionamento e atitude dos braços em crucifixo, além do olhar perdido, estabelece um vínculo com o quadro da Iara de Braga. Seu autor, tido como um dos precursores da confraria Pré-Rafaelita de 1848, que buscava inspiração nos pintores primitivos da Itália, representa a imagem idealizada da mulher trágica, predominante na pintura romântica. Os pintores desta confraria se posicionavam contra o estilo acadêmico praticado pela escola inglesa, considerado incapaz de atender as ansiedades do período. Buscavam, como o nome indica, temas e valores do período anteriores ao pintor renascentista Rafael, ou seja, à tardia Idade Média e ao primeiro Renascimento. Para esta análise é importante ressaltar a busca por fontes de inspiração mais autênticas, que no caso destes pintores acabou sendo a Idade Média, os mitos de origem celta e grega, personagens e cenas da história ou da religião. Entre as grandes influências recebidas, está a de procurar por fontes inspiração que remetam a um passado nacional distinto, original.

Para Roquette-Pinto, citado acima8, o mistério das Uiaras representaria o fascínio que as belezas naturais brasileiras despertam naqueles que por ele se aventuram; Osvaldo Orico ao explicá-lo sugere ser esta fascinação, despertada pelas inebriantes belezas naturais do Brasil, a certidão de nascimento de nossa verdadeira identidade nacional. Isto situaria a gênese de uma cultura genuinamente brasileira já a partir da chegada de Cabral em 1500, quando Pero Vaz de Caminha escreve ao rei português contando das exuberâncias das terras brasileiras, estabelecendo com isso uma íntima e forte ligação entre o homem e natureza; tão profunda quanto à ligação consangüínea entre pessoas de uma mesma parentela. Toda esta renovação intelectual transparece ao quadro e parece vir acompanhada de elementos desconcertantes. Este caleidoscópio de teses e idéias sociológicas precisam ainda ser considerados a luz de outros símbolos utilizados pelo pintor acerca da origem e função da deusa

A personagem shakespeareana Ofélia, que serve de inspiração para Millais, assim como outras 383

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

personagens femininas da poesia e literatura medieval, como o caso da Dama de Shalott dos contos arturianos, temas muito caros aos prérafaelitas9, retratada por John William Waterhouse em três momentos (1888, 1894, 1916). Tais pinturas são muito populares no período de sua produção e acabam servindo como modelos para muitos artistas oitocentistas que buscam reelaborar sua própria realidade em transformação (o próprio Millais produz um quadro sobre a Dama de Shalott em 1854).

das mudanças de valores culturais em curso. E aí temos um movimento diacrônico envolvendo produção e recepção. Ao mesmo tempo em que cria, o artista reflete algo mais amplo e complexo: a cultura da qual faz parte. Numa análise mais atenta é possível constatar que aquilo que une as telas de Braga e Millais é também o que as separa: a representação do feminino. Enquanto para o autor de “Ophélia” a beleza e o amor estão inseparavelmente ligados a idéia de tristeza, traduzindo dessa forma a noção vitoriana de romantismo, o quadro da Iara transmite uma idéia positiva da natureza. Mesmo tendo a femme fatale Iara como personagem central, a seduzir seu observador, isto não parece constituir uma ameaça imediata, pois neste encontro entre natureza e cultura há um elemento mediador: a razão, representada pelo desenho trigonométrico formado a partir das folhas das vitórias-régias que se interpõem entre o casal.

Segundo o semioticista Iuri Lotman10 a cultura mantém um estrito vínculo com a memória; a memória por sua vez, é fruto da seleção histórica do material signico a ser preservado às novas gerações, num processo dirigido e complexo, no qual se determina, a partir de um movimento dialético, a oposição entre memória e esquecimento. Neste sentido, a cultura seria um “feixe de sistemas semiótico (linguagens), formalizados historicamente e que pode assumir a forma de uma hierarquia ou de uma simbiose de sistemas autonomos” (FERREIRA, 2003: 74). Nas palavras do próprio Lotman,

Desta forma, podemos concluir que Theodoro Braga acreditava na possibilidade de progresso nacional, sem necessariamente abrir mão das peculiaridades que marcavam até então os traços de nossa gente: sua forte ligação com a natureza selvagem. Como educador Braga dirigiu alguns liceus de artes e ofícios, e como tal acreditava na educação como meio de consolidar o alinhamento do Brasil como país civilizado.

A cultura não é um depósito de informações; é um mecanismo organizado, de modo extremamente complexo, que conserva as informações, reelaborando continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatíveis. Recebe as coisas novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-as para um novo sistema de signos. (Id., 2003: 73).

A trajetória que marca a feitura da tela “Fascinação de Iara” é com certeza muito instigante. Rever a biografia dos pintores formados nas Academias de Belas Artes pode revelar informações sobre nossa história cultural pouco conhecidas, que pedem por maiores esclarecimentos. Seria ingênuo acreditar na noção de atraso e estagnação como característica da arte acadêmica. Longe de terem sido suplantados em sua criatividade e capacidade de imaginar outras realidades, os pintores oitocentistas, mesmo ofuscados pelas imposições da arte modernista, mantiveram suas atividades artísticas e por certo tem muito a nos dizer sobre as razões e sensibilidades de seu próprio tempo.

A arte é um poderoso instrumento de convencimento, fazendo perdurar por gerações uma determinada idéia. Não se trata de uma afirmação volátil, pensar na história como um produto da imaginação. Arnold Hauser (HAUSER, 1988: 47, 48) já havia feito fortes ponderações acerca de uma análise histórica com base na psicanálise freudiana, que incorreria numa forma muito limitada de entendimento, mas ele mesmo trabalha a idéia de um possível alargamento do conceito de psicologia quando aplicado a questões sociais. É preciso levar em conta que o imaginário tem uma estreita relação com a realidade em volta. Mesmo o que chamamos inconsciente é composto por elementos do consciente; não podemos supor que alguém sonhe com algo ainda não teorizado, por mais original que este sonho possa parecer.

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Assim, a pintura de Ofélias, damas de Shalot e Iaras durante o período de crise da síntese burguesa após 1870 não é o mero exercício estético ou a manifestação da excentricidade de pintores acadêmicos, refletem uma tentativa de tradução 384

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Graduado em História pela Universidade Federal do Pará - UFPA (bacharelado e licenciatura), atualmente é professor da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém/ PA. Tem experiência na área do ensino de História, com ênfase em História da arte, atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, arte, pintura, Theodoro Braga e modernismo. 2 Afredo Sousa, “O quadro de Parreiras”. Folha do Norte. Belém, 19 de janeiro de 1901, p. 1. 3 BOURDIEU, Pierre. As Regras da arte – gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 268. 4 Galeno, Juvenal. Lendas e canções populares 18591865. Ceará, Tip. de João Evangelista, 1865 | 2ª ed. aumentada com as Novas lendas e canções e precedida de juízos críticos. Fortaleza, G. R. Silva, 1892. 5 Filósofo radicado na Alemanha (1880 – 1956), era um forte defensor do tradicionalismo aristocrático europeu. Seu posicionamento intelectual fez dele um pensador antiliberal, especialmente em relação ao novo Ethós social, pautado no pragmatismo. Viajou por toda a Europa propagando suas idéias de um novo humanismo, baseado nos antigos sentimentos tradicionais da Europa. 6 Citação retirada do discurso de Luiz Romano da Motta Araújo no IHGP, em 8 de junho de 1967. 7 Subs. fem. – planta aquática (Victoria regia), da fam. das ninfeáceas, nativa da América do Sul, de rizoma vertical, folhas planas formando um disco circular de quase 2m. de diâmetro, flores solitárias, brancas e suavemente aromáticas, e bagas globosas; as sementes são feculentas e comestíveis; apé, forno, forno-d’água, forno-de-jaçanã, forno-de-jacaré, iapunaqueuaupê, iaupê-jaçanã, jaçanã, maruru, milho-d’água, milho-de-água, mururé, rainha-do-

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República lago, rainha-dos-lagos, uapé, uapê, vitória-regina (cf. definição do dicionário Houaiss da língua portuguesa). 8 ROQUETTE-PINTO, Edagard. Seixos Rolados (Estudos Brasileiros). Rio de Janeiro: Edição de Sussekind & Mendonça, Machado e Cia., 1927. 9 Segundo o livro Senhoras de Shalott: Uma Obra-prima vitoriana e seus Contextos (Ed. George P. Landow, U.

marrom: 1979) “[...] este desenho é relacionado de perto ao pintar do afogamento Ophelia de Millais”. 10 Nascido na cidade de Tártu, na Estonia, Lotman é considerado um dos mais importantes pensadores das ciências sociais do século XX. Seus trabalhos permitiram novas reflexões sobre comunicação, arte e sociedade.

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1. Numa tarde invernal, na cidade de Paris, o pintor brasileiro Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860 – 1937) abriu seu estojo de pintura retirando dele um cavalete. Ao desdobrar as compridas patas metálicas, observou que nas bases das hastes havia grãos de terra. “Era terra do Brasil”, escreveu em suas memórias,comovido com a luz brasileira que entrava naquele ambiente hibernal através daquelas minúsculas partículas de solo. Para um artista do seu porte no nosso estreito século XIX, uma amostra do chão pátrio foi capaz de devolver a ele todo o imenso sentimento coletivo que este século de profetas tão poderosamente capitalizava.1 Imaginar e fabricar maneiras de representar a nação o animou em sua fase mais madura. No entanto, o discurso artístico produzido por Parreiras deve ser mediado dentro da exigüidade do circuito das idéias liberais e do mercado dos bens simbólicos no Brasil no século XIX, e nas primeiras décadas do século XX. Ao fim e ao cabo de uma longa existência nosso artista legou à posteridade inúmeras pinturas da paisagem juntamente com cenas históricas encomendadas pelas elites que, graças a esses atos de imagem, inculcava no grande público o ideal de supremacia de grupo e exemplos de virtú cívica de que se julgava detentora.

“era terra do brasil”: representação da nação brasileira na obra de antônio parreiras

2. Durante o processo que culminou com a independência do país em 1822, as elites brasileiras construíram mais um estado que dava suporte para os seus privilégios do que uma nação. Compostas por fazendeiros e comerciantes, mantiveram intactos o latifúndio e o escravismo atualizando a tradição agrária e extrativa da economia colonial às matrizes assimétricas da divisão internacional do trabalho vigente desde 1822. Impondo ao país uma monarquia constitucional como forma de governo, excluíram da política as mulheres, os africanos, os índios e os setores médios urbanos que, para não cair na miséria e degradação sociais, tornaram-se seus clientes. Impedindo o surgimento de pequenos proprietários rurais, entravaram a industrialização nacional e venceram as pressões abolicionistas inglesas. Apesar de muitos de seus membros serem formados na ideologia da Ilustração, limitaram o liberalismo, rejeitando, por exemplo, as idéias republicanas. 2

josé maurício saldanha álvarez

No ano de 1816, atendendo a convite da monarquia portuguesa, desembarcava no Brasil uma missão artística francesa que contribuiu para fundar a Imperial Academia de Belas Artes. Após a independência, essa escola permaneceu sediada na capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro onde desempenhou um papel decisivo 387

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

interessavam aqueles em que havia gravuras».10 A revelação telúrica de que seria pintor ocorreu próximo a sua moradia quando um artista armou seu cavalete pintando uma marinha. Permanecia « Imóvel, absorto, ficava fascinado horas e horas a ver trabalhar o artista. » Após a morte de seu pai seus sonhos de ser artista pareciam sepultados fracassando em inúmeras ocupações. Casou-se para abandonar o lar do qual nasceu um filho, Dakir, seu fiel companheiro de trajetória. Matriculou-se em 1883 na Academia Imperial de Belas Artes. No entanto, aborrecido com o ambiente formal no ano seguinte, mudou-se para sua cidade natal, Niterói integrando o núcleo formado em torno do pintor alemão Georg Grimm e que se dedicava a pintar d’aprés nature e cujo final de vida foi infeliz como tantos outros europeus mal-sucedidos, arribados à América repletos de esperança.11

disseminando os padrões artísticos que compunham os códigos de representação icônica do poder e da civilização européia ilustrada. Devese mencionar que, diante das proporções continentais do território do Brasil, era fundamental encontrar uma linguagem simbólica capaz de forjar um efeito de mundo unificador. O objeto de arte resultante dessa produção simbólica alinhou as elites brasileiras com suas congêneres ilustradas na Europa e nos Estados Unidos. Por outro lado, no Brasil do século XIX, a produção e a circulação dos bens culturais sob a forma de um mercado de arte, permaneceu enfeixado nas mãos da elite. Ela controlou a mobilidade e a ascensão social, ensejando o reconhecimento público como artista somente aos membros de sua clientela incluindo alguns brancos pobres e afro-descendentes. 3 Restava aos segmentos menos favorecidos dos frágeis setores médios, o acesso a profissões subalternas que os românticos consideravam mortais por compromissadas e submissas aos pilares da sociedade burguesa: o exército, a igreja, o comércio e os empregos na máquina do Estado. A ascensão e o reconhecimento passavam por uma indispensável «troca de favor» com as elites. 4 Todos esses fatores, enfim, uns e outros e todos juntos, afinal, limitaram a emergência e desenvolvimento de um mercado artístico e intelectual em terras brasileiras.

Assumindo pleno domínio da técnica de paisagem realizou inúmeras exposições tendo a primeiras recebido o múnus do Imperador do Brasil, o senhor D. Pedro II, conhecido mecenas e incentivador de jovens talentos pátrios. Antônio Parreiras foi convidá-lo pessoalmente no palácio da Quinta da Boa Vista, onde não encontrou o «suntuoso prédio que imaginava. “Haviam-me descrito a extrema modéstia de Pedro II, o seu soberano desprezo pelo luxo.” 12 Apesar do sucesso de vendas de suas paisagens estava fadado a ser mais um dentre as centenas ou mais de artistas que disputavam as magras parcelas do público na Corte e nas capitais provinciais. Graças a um prêmio pecuniário viajou à Europa onde após uma estadia em Veneza, deslocou-se para as luzes industriais e modernas de Paris. Ao retornar ao Brasil em 1890, agaloado pela estadia européia ,desfrutou de crescente sucesso junto ao público passando a integrar a cátedra de paisagem na Academia oficial.

3. A belle époque, integrante da era das certezas, situou-se entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A riqueza das camadas abastadas produzia a impressão de que as sociedades e os regimes políticos eram passíveis de uma gestão moderna e racional. 5A prosperidade desse tempo e a enorme expansão econômica da Europa industrial, num circuito econômico mundial, apontavam para a disseminação da riqueza material além da estreita faixa das elites.6 O novo paradigma de gerenciamento também se fundamentou na cidade moderna cujo modelo se tornou a Paris do Plano Haussmann, o local da peregrinação em busca da Modernidade, caminhando em sagrado êxtase. 7 Esse bem sucedido plano francês engendrou no imaginário mundial a poderosa representação da cidade moderna par excellence, especialmente para os intelectuais latino-americanos8.

A pintura de paisagem e ambiental praticada por Parreiras, representava uma imagem fixada pelo artista em momentos considerados como portadores do « sublime». Ele a abordou « com os olhos de artista, sentindo-a através da emoção que ela nos causa » 13 , o que não descartava a existência de um olhar específico. Wahl, desde o observatório da fenomenologia, considera que «Pas de paisage sans principe organizateur » .14 Ao lado desta questão resta ainda o seu estilo de pintar. Decididamente não parece ser acadêmico porque embora tenhamos muitos desenhos, não há indicação precisa de esboços preparatórios exaustivos antes de principiar uma tela. Há uma relação com a técnica de Couture na consideração entre a preparação e um resultado, seja nas telas de grandes dimensões ou nas de tamanho

No ano de 1860, enquanto a cultura francesa fascinava o Brasil e tornara-se uma palavra de ordem entre as elites e nas culturas populares,9 nascia Antônio Parreiras no dia 20 de janeiro de 1860, na cidade de Niterói. Sua infância livre foi agitada. « Tinha horror aos livros – confessou, revelando sua inclinação original– só me 388

Representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras

reduzido. 15 Árvores, pedras, pessoas são executadas na mesma fatura graças ao emprego de grandes empastamentos de tinta. O ponto culminante de sua pintura paisagística foi uma tela denominada Sertanejas ocorrendo um deslocamento. O pintor abandona a tela no cavalete e transforma-se na luz suave do túnel florestal, nas pedras cobertas de liquens, nas folhas que formam um denso tapete no solo úmido. Assim sendo, nas palavras de Wahl, a paisagem das Sertanejas se autodesigna na fenomenologia: « Je suis ceci et cela», c’est la paisage même qui parle. Je ne suis advennu à lui que pour entendre ce qu’il dit.”16 Esta tela parece resgatar o sentido roussoniano afirmando ser a natureza mais bela do que a paisagem - porque é livre da intervenção do homem. A paisagem é, também, como a definição de nação dada por Anderson, um ato imaginativo. Para Simon Schamma – constitui « cultura antes de ser natureza; um construto da imaginação projetado sobre mata, rocha, água». 17 Já para Heidegger, uma paisagem constitui um habitar.18 Artista maduro nos primórdios do século XX Parreiras torna esta paisagem ser habitada por corpos humanos retirados da história pátria. Desde o Renascimento que a pintura européia experimentou complexas e variadas representações do ambiente natural e do corpo humano. 19 No século XIX, a pintura de paisagem de ares límpidos cedeu lugar a tormentosos cenários naturais, presentes desde o neoclássico e exacerbado pelo romantismo. A paisagem então se agitou e se enterneceu com os dramas humanos e, mediante esta conexão sensível, emocionou fortemente o público. 20 Por um lado, a problematização da pintura de paisagem romântica – no velho e no novo continentes – correspondeu, à concretização das estratégias de produção dos olhares e dos fazeres pictóricos, se integrando ao sentido que Schamma denominou como « o gesto organizador do artista ».

escrevendo em 1882, considerou fundamental para uma nação ter um princípio similar pois « a nation is a soul, a spiritual principle. Two things wich in truth are but one, constitute this soul or spiritual principle. One lies in the past, one in the present».21 Entre nós, o fazer romântico logrou adaptar determinados paradigmas da sensibilidade destinados à produção de sentido, dando conta de problemas típicos da cultura brasileira. Na ausência desconfortável de uma singular medievalidade, fabricou-se um sucedâneo fundacional da nação que reconhecia seu início com a descoberta do território por europeus no ano da graça de 1500. O indígena e o colono português tornaram-se fulcros da tematização romântica, resultando num processo de semantização moderna para seus personagens, excluindo-se do estatuto da alteridade o africano escravizado. A literatura brasileira de matiz romântica produziu artistas como o poeta Gonçalves Dias (1823-1864) e o romancista José de Alencar (1827-1877). O indígena, na tensão americana dos movimentos independentistas, antagonizava o europeu. No entanto, o guapo Peri, no romance de Alencar, se viu subjugado pela civilização européia e amou profundamente a filha de seu senhor, a jovem bela e loira chamada Ceci. Após inúmeros conflitos, ocorre um desfecho dramático, quando o senhor europeu batizou este bom selvagem americano e lhe cedeu como esposa sua amada filha. A tragédia, no entanto, perseguiu o jovem casal, que perece quando a árvore gigante onde se abrigaram desabou, sucumbindo à força do alude diluviano que avassalava a floresta tropical22. Tanto na concepção de Alencar, quanto na de Parreiras, o romance fundador da nação passava por essa tensão necessária entre homens livres. Desdenhavam a alteridade representada pelo africano e os não incluíam em seus códigos de representação. Mary Louise Pratt descreveu a luta cultural travada na América do sul a partir da segunda metade do século XIX, como um combate pela modernidade, pois, « modernity, in its diffusionist momentum, also seeks to destroy alterities – to modernize» 23. Ao mesmo tempo em que a população da capital e dos maiores centros urbanos do país se adaptava aos deslocamentos da percepção e da temporalidade recebidas pelo telegrafo, pela estrada de ferro, pela industrialização e do afluxo veloz das informações midiatizadas, intelectuais brasileiros plasticasmente, antropofagicamente incorporavam as correntes avançadas em sua panóplia especialmente a partir de 1868.24 Entre as idéias estava a do debate da nação da construção das matrizes nacionais, enfim, como se representar a nação brasileira.

O Romantismo mostrou-se teatral em seus códigos de representação, constituindo uma retórica do dizer o que é corretamente necessário nos domínios da história em sua disseminação do velho continente para a América. O romantismo brasileiro surgiu no ano de 1834 demonstrando o deserto intelectual e artístico do país graças à iniciativa de alguns intelectuais brasileiros redigiram relatórios reportando sobre as condições das artes no Brasil e os enviaram ao Instituto Histórico da França, em Paris. O princípio espiritual que aspiravam para a identidade nacional, partiu de uma matriz européia e portuguesa agendada no passado, e que seria atualizado por uma nova matriz européia. Apesar de contraditório, também Ernest Renan, 389

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

No Brasil da primeira metade do século XIX, foi escasso o interesse do público reduzido e dos próprios historiadores pelo estudo da história-pátria dinamizada após a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no ano de 1848. Sua matriz, porém, era fortemente conservadora e etnocêntrica. Nas derradeiras décadas do XIX, novos intelectuais, mesmo em condições difíceis, desgostosos com a ausência de respostas, intensificaram o questionamento sobre o que era Brasil; quem eram os brasileiros e no que consistia a identidade nacional. Somente na conjuntura de consolidação da República é que debate ganhou uma representação visual. As triunfantes elites locais encomendam narrativas oficiais realizando o que Christin denomina de «pratiques de l’image » produzindo sentidos, povoando a história oficial com signos do seu poder e no novo statu quo.25 Talvez pudéssemos designá-las como arte oficial, e que se associaram a uma vasta corrente de outras obras – antigas e modernas - no mundo todo, inclusive no Brasil.

a um pensamento. Pensou numa manifestação visível durável – quadros - transformado na estrutura do mundo social do Brasil daquele recorte. Parece pretender que seus quadros, como explicou Wahl, pudessem constituir um ato metafórico expresso em tintas, cores, manchas, claro e escuro: « hors du toute usage metaphorique du terme, parler. 29». Finalmente, Antonio Parreiras expressou a procura do lugar no mundo, a captura antropofágica de uma identidade nacional moderna, inserida num arco de sentido internacional. Sua pintura, corpo e paisagem, - parece-nos uma matriz de hibridação, porque se ainda mostra-se sensível à produção do sentido romântico, apesar de tardio, seu pragmatismo diante do mercado de arte preconizou sua inserção no statu quo político. Sua obra e vida atingiram um resultado intelectual, cognitivo e artístico, que se tornou uma retórica imagética capaz significar uma narrativa da nação. Inserindose nos quadros da modernidade, reescreveu com sua arte – corpo e paisagem – um compromisso com a civilização européia nos trópicos. Esta talvez fosse a operação constitutiva de uma ekphrasis, geradora de ícones e de ficções.30 gerando o que Bhabha definiu como «other sites of meaning» e que compunham o romance da nação.

Atendendo a essa crescente encomenda Parreiras realizou, desde 1908 até 1937 aproximadamente 22 quadros históricos de grandes dimensões, conectando paisagem e figuras humanas. Ao expor na cidade de Belém, vendeu todas as suas pinturas recebendo nessa ocasião festiva a primeira das grandes encomendas históricas. « O Dr. Augusto Montenegro, governador do Estado, me encomendou um grande quadro – a Conquista do Amazonas, que foi a primeira tela histórica que pintei. » O corpo torna-se uma imagem da condição humana, um suporte para a ação na história 26. O contexto intelectual de produção das pinturas românticas evidencia um olhar humano sobre a história. Seu ineditismo repousa no fato que o eixo significativo e de representação não é mais o mestre virtuoso e seus discípulos. O foco conectivo e retórico é o da humanidade e seu sofrimento heróico. Segundo Guégan, « L’heroisme n’est pas disqualifié comme le répète notre époque incrédule, il s’humanise et transforme l’ndividu, en serait-il aussi la victime, en sujet de l’histoire » 27

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Os personagens que Parreiras pinta em seu quadro histórico tornavam-se objetos nacionais, tendo seus corpos tematizados por gestos dramáticos, superlativos e fabricados. Em sua obra vislumbrase conforme Corbin assinalou, a um «corps socialisé, mise en spetacle , forme de boîtes anatomiques empilées – la Maison, le vetement, la peau. Surtout um corps marque par son pasé, parsemé de signes et d’indices que dissent la passion, le plaisir, la souffrance. » 28 Parreiras, como agente, deu forma a um desejo, a um anseio, 390

Representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 11

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PRATT, op. cit., p. 62, PARREIRAS,op. cit., p.59. 13 SALGUEIRO, Valéria. Antônio Parreiras. Notas e críticas, discursos e contos: coletânea de textos de um pintor paisagista, Niterói, Eduff, 2000, p.188. 14 WAHL, François. Introdution au discours du tableau. Paris: Seuil, 1996, p.74. 15 BOIME, Albert. The Academy & franch paiting in the nineteenth century. New Haven and London, Yale University Press, 1986, p.71. 16 WAHL, op. cit., p.75. 17 SCHMMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 70. 18 Wahl, op. cit. , p. 74. 19 BRION, Marcel. Art of the romantic era. Romantism. Classicism. Realism. London: Thames and Hudson, 1966, passim. 20 CLAY, Jean, Le Romantisme. Paris: Hachette realités, 1980, passim.

Renan, Ernest. BHABHA, Homi, org. and publ. Nation and narration. London and New York: Routledge, 2002, p. 19. 22 Id., 177. 23 PRATT, op. cit.,p.66. 24 BOSI, op. cit. , p. 224-225. 25 CHRISTIN, Olivier. Comment se represente-t-on le monde social? Paris, Actas, 154, Septembre 2004, p. 37. 26 PORTER, Roy. História do Corpo. BURKE, Peter. A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Ed. Da Unesp, 1992, 291. 27 Guéguan, p. 84. 28 CORBIN, Alain et alii. Histoire du Corps. 2. De la Révolution à la Grande Guerre. Paris, Éditions du Seuil, 2005, p. 173. 29 WAHL, op . cit., p.155. 30 GLUCKSMANN, Christine. Buci - L’oeil cartotographique de l’art. Paris, Galilée, 1996, p.55.

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capitulo 9 iconografia: pintura histórica

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Grandes telas históricas nascem com o destino da eternidade, tornando-se análogas ao evento que pretendem narrar. Parece contra-senso pensar que a vida longa de uma tela seja marcada exatamente pelo nexo do efêmero, da efeméride, do passageiro, do transitório. Em suas origens, a noção de efeméride – do grego ephemerís, ídos, pelo latim ephemeride – esteve relacionada, no entanto, a uma data exata, um marco que pudesse ser uma baliza do tempo. Era, de fato, uma tabela que fornecia aos astrônomos, em intervalos de tempo regularmente espaçados, as coordenadas que situavam a posição de um astro. Da natureza à cultura, a efeméride guardou o sentido de grandiosidade e eterno retorno dos questionamentos que a tornariam uma data importante2. Por que uma determinada obra seria obra-prima? Por que seu autor seria um grande artista? Nesta comunicação pretendo investigar esse tema, aqui enquadrado nos limites do centenário de uma tela histórica do acervo do Museu de Arte de Belém - A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará, considerada desde a sua apresentação, há exatos cem anos, a obra-prima de Theodoro Braga (1872-1953). Porém, a história desse objeto de arte, imerso em diferentes memórias, remonta uma longa tradição da pintura histórica no Brasil das últimas décadas do século XIX. Olhando o tema de hoje, o que se nota é uma verdadeira oscilação dos valores da estética [e por que não dizer do próprio ethos da obra] na bolsa das artes públicas e do patrimônio nacional. A narrativa do passado, por isso mesmo, tende a esclarecer o presente. Senão vejamos. Em 1908, a capital do Pará acompanhou o nascimento de um quadro feito para ficar na memória visual da cidade. O dia era 17 de dezembro daquele ano, a data de aniversário do principal chefe político de Belém – o intendente Antônio José de Lemos (18431913)3. O local era o suntuoso Teatro da Paz, a grande vitrine da civilização da borracha. O ato era o vernissage de um pintor ainda pouco conhecido mesmo nas searas brasileiras, o Dr. Theodoro Braga. Nesta feita, em meio a uma platéia de convidados ilustres, foi entronizada a tela A fundação de Belém, divulgada imediatamente na imprensa da época como a obra-prima de seu autor. Aqui vou tentar desvelar um pouco da história desse quadro, que trouxe para o campo das artes plásticas uma nova leitura da história da Amazônia.

o centenário mestiço: theodoro braga e a pintura histórica da fundação da amazônia, 1908-2008 aldrin moura de figueiredo1

Tudo começa em 1899, quando os pintores italianos Domenico De Angelis (1852-1900) e Giovanni Capranesi (1851-1936), entregam à Municipalidade local, o painel Últimos dias de Carlos Gomes, retratando a célebre morte do músico ocorrida em Belém em 1896, sob um funeral heróico. As dimensões da tela fizeram crer ao intendente a necessidade de uma outra para adornar o salão 395

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

do Conselho Municipal com o feito rememorativo da fundação da cidade. O passo seguinte foi encontrar o artista “idôneo” para a feitura da obra e que ao mesmo tempo pudesse empreender a arqueologia dos arquivos à caça dos documentos que ainda estavam à sombra dos compêndios de história. O encontro entre o intendente e o pintor ocorreu em 1906, quando o artista retornado da França começava a fazer sucesso com suas exposições no Rio de Janeiro, Recife e depois Belém, sua terra natal. Exatamente aí o velho projeto toma corpo e Theodoro Braga, agora sob o patrocínio de Antônio Lemos viaja para Europa em busca dos documentos originais sobre o fato que seria narrado pelas tintas.

impressionismo. Porém, essa desconfiança com sua formação afrancesada e os modismos europeus lhe serviu para redescobrir a Amazônia nos fragmentos arqueológicos do Museu Paraense Emílio Goeldi e, daí para em diante, revisitar o próprio traço dos índios de antes de Cabral. Foi assim que, ao mesmo tempo em repensava o cânone da pintura histórica, ajudava a criar um novo movimento nas artes da Amazônia, com a estilização da flora e da fauna brasileira – o neomarajoara –, deixando vários discípulos. Não bastava, no entanto, ser bom pintor. Era fundamental o domínio da pesquisa histórica. O pintor teria se armar de historiador e vice-versa. Pintura e história, natureza e cultura: eis o encontro que revelou a obra prima de Theodoro Braga. Pelas tintas, o artista formulou sua primeira narrativa da história, traduzindo para outra linguagem passagens inteiras da obra de tratadistas, cronistas, missionários e homens de governo. Velhos documentos ganharam novas tonalidades; pintoresviajantes foram acolhidos pelos pincéis do mestre. Theodoro Braga passou em revista os primeiros registros escritos sobre a América Lusa, através dos relatos de cronistas portugueses como Pero Vaz de Caminha com sua Carta (1500), Pero de Magalhães de Gandavo com sua História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil (1576) e Gabriel Soares de Sousa com Tratado Descritivo do Brasil (1587), além das narrativas de viajantes franceses e alemães, como de Jean de Léry, autor de Viagem à Terra do Brasil (1578), e Hans Staden, que escreveu Duas Viagens ao Brasil (1557). Esses e outros testemunhos do passado estiveram entre os seus principais informantes. Em páginas impressas e noutras manuscritas, ficaram os registros dessa façanha da história como pintura e da pintura como história.

Antes da escolha, o mecenas obviamente havia se certificado das origens intelectuais do pintor, que então contava 36 anos. Rapidamente o intendente percebeu o gosto do artista pela história e, mal sabia ele que, naquela encomenda estava nascendo uma nova escrita da história emersa da pintura. Theodoro Braga, como todos os seus contemporâneos, ambicionou o bacharelado, estudando na Faculdade de Direito do Recife. Mas, enquanto se diplomava, por volta de 1893, conheceu o paisagismo pela mão de Jerônimo Telles Júnior (1851-1914), um pintor pernambucano muito influenciado pela pintura do século XVII, especialmente pela obra de Franz Post (16121680), um dos grandes artistas do período holandês do Brasil. Mesmo quando o assunto era a paisagem, a plena descrição da natureza, a história tocava fundo o aprendizado do jovem pintor. Encorajado pelo mestre, Theodoro Braga viajou para o Rio de Janeiro, onde recebeu aulas de uma tríade já bem conhecida nos círculos cariocas: Belmiro de Almeida (1858-1935), Daniel Bérard (1846-1910) e Zeferino da Costa (1840-1915). O próximo passo foi dado em 1899, quando ganhou o prêmio da Escola Nacional de Belas Artes, de viagem à Europa. No ano seguinte, já estava em Paris, como pensionista na Academia Julian, sob a orientação de Benjamin Constant (1845-1902), Henri-Paul Royer (1869-1938) e principalmente do experiente Jean Paul Laurens (1838-1921), havido então como o nome mais importante da pintura histórica na Franca. No ateliê de Paris, o artista descobriu de fato a história, a pintura da história4.

Numa verdadeira arqueologia da arte, inventiva e subjetiva, Theodoro Braga redescobriu os antigos Tupinambá, que habitaram a costa do Pará no século XVII e que haviam sido riscados do mapa no século seguinte. Como reencontrar aqueles índios, suas marcas corporais, sua imagem enfim. O pintor encontrou aqueles que julgou ser seus prováveis descendentes. Os velhos índios Tupinambá estavam lá, nas notícias sobre os Apiacá e dos Munduruku feitos por Hercules Florence (1804-1879), comparadas com as informações colhidas em pesquisa no acervo do Museu Paraense. Da famosa Expedição Langsdorff, no segundo quartel do século XIX, sobreveio um dos principais registros que poderia ser útil a um pintor – com sombras, luzes e cores, muitas cores5. A história foi arte cara no projeto de

De volta à Amazônia, sob a proteção de Antônio Lemos, e mais do que nunca impregnado pelo gosto do passado, transformou a história em assunto de Estado e a pintura em tema de interesse popular. Embora atento às vanguardas que então explodiam do lado de lá do Atlântico, Theodoro Braga olhou com desprezo até mesmo o 396

Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia

Theodoro Braga, tanto que foi necessário explicar tudo aos primeiros que compareceram diante da grande tela. O quadro A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará tem uma versão em livro, com grande parte dos conceitos, referenciais e inspirações presentes na tela6.

com alguns eminentes historiadores sobre o padrão das construções depois da conquista. Todos os documentos de época referem-se a um fortim construído em madeira, uma simples paliçada. A grande capital da borracha não poderia, no entanto, aos olhos do pintor e principalmente de seu mecenas – o intendente Antônio Lemos, ter experimentado uma origem tão simplória. O presente reinventou o passado na paleta do pintor: fez-se então um forte de pedra, como sólida e eloqüente deveria ser a certidão de batismo da cidade. Apesar dessa polêmica, o significado da distância da imagem babélica de um primeiro contato entre europeus e indígenas deveria ser preservado a todo custo na primeira imagem da Amazônia. Índios e europeus começavam aí a falar uma mesma língua. À sombra de uma visão singela do trabalho de construção de uma “pequenina igreja” no interior de um forte de pedra, o pintor procurou dar cabo a uma elaborada interpretação da política sobre a chegada dos portugueses à Amazônia. De primeira olhada, vê-se, na tela, a igrejinha consagrada à Nossa Senhora de Belém, levantada “em taipa, coberta de palhas, ainda não ressequidas e já pronta”. Ao fundo, apareciam as modestas habitações dos novos colonos, simples casebres e algumas palhoças. Mais à frente, o principal alvo da tal querela historiográfica: o forte do Presépio. Na imagem, “o forte, com a sua frente de cestões entre os quais peças de artilharia já estão assentadas começa a terminar-se; um muro com a sua guarita é construído e o resto avança rápido”. Nos contornos internos da moldura, começava a sobressair o vaivém dos trabalhadores portugueses e indígenas.

Mas como transpor para as tintas a narrativa literária da fundação do Pará? Theodoro usou dos pintores renascentistas, optando pelo díptico, pois assim poderia narrar duas cenas independentes e, ao mesmo tempo, preservar uma visão de conjunto. Aqui o díptico deve ser lido da direita para a esquerda, seguindo o modelo oriental, contrastando, portanto, com as regras interpretativas européias. Na primeira cena do quadro, vê-se, ao longe, a chegada das três embarcações que traziam “a expedição civilizadora” – uma caravela, um patacho e um lanchão, tal como faziam crer os velhos anais da marinha portuguesa, exaustivamente consultados pelo artista. O pintor concebeu a pequena esquadra ainda não ancorada, indo ao sabor da corrente, revelando o ângulo de observação em relação à beira do rio. Em terra, encontravam-se os Tupinambá, “olhando com ódio a chegada de seus mortais inimigos”. Aqui houve o desejo de imprimir à cena uma nova percepção desse reencontro: não se tratava mais de representar a curiosidade dos índios em relação ao branco e muito menos a admiração com o desconhecido europeu. Estava em jogo o fato histórico de os índios Tupinambá já conhecerem os portugueses de longa data, em lutas, “através do Rio, Bahia, Pernambuco, Maranhão e finalmente nas terras do Pará”. Na imagem, os índios aparecem montando posto num pequeno igarapé que desaguava na baía do Guajará. A cena, vivida em 1616, vinha ao presente, em 1908, por nova explicação: o pequeno curso d’água onde estavam os nativos “é o que mais tarde foi chamado Ver-oPeso”. Do escuro das matas, rumo ao igarapé, ainda “chegavam outros índios retardatários de suas tabas situadas no interior”. A margem do rio era o lugar onde eles estabeleciam, aqui e ali, suas atalaias de defesa, “pontos de espreita” segundo o pintor.

Com efeito, era necessário marcar o ato histórico com a presença de um herói fundador. Na horizontal, o quadro é descrito em duas cenas. Na vertical, em dois planos, divididos ao meio pelo longo risco da floresta na outra margem do rio. No primeiro dos planos, ao centro da tela, “sob a espessa sombra de grandes árvores”, estava o herói, Francisco Caldeira Castelo Branco, antigo capitão-mor do Rio Grande do Norte, cercado por seu estado-maior, os comandantes das embarcações. O instante procurou traduzir a preparação da viagem de Pedro Teixeira ao Maranhão, “a fim de levar a nova da fundação da cidade de Belém”. Este enquadramento está diretamente relacionado à cena da construção do forte do Presépio, na qual Theodoro Braga redesenhou a imagem dos homens que vinham na frota de Castelo Branco. Contrariando seus confrades de ofício, o novo historiador insistia que “os expedicionários não vinham nem na miséria, a ponto de pedirem o que comer aos índios, nem

A segunda cena, ao lado esquerdo do espectador, representa o adiantado estado da conquista e do senhorio português na nova terra. Esse enquadramento retomava as origens da ocupação da região: “uma vez escolhido o lugar quase isolado e boa altura defensável, deram mãos à obra”. É fundamental perceber que essa cena resultou de um grande esforço de Theodoro Braga em sua tentativa de construir uma nova versão desse acontecimento fundador, com um acalorado debate 397

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

desprovidos de tudo, como é corrente, a ponto de serem ajudados por piedade pelos caboclos do Guajará na construção do forte e habitações”. O pintor veste o conquistador ao modo do holandês de cabedais do século XVII, como o descrito por Rembrandt (1606-1669) em sua A Ronda Noturna, obra encomendada pela Corporação de Arcabuzeiros de Amsterdã, em 16427. A imagem esquálida e indigente da aventura européia não combinava com o mito fundador da grande capital da borracha. Ao contrário, o modelo da burguesia holandesa enriquecida com as novas conquistas ultramarinas parecia-lhe o ideal o contorno da imagem do capitão português conquistador do Pará. Cabia ao pintor, reinventar, pelas tintas, uma outra imagem dos súditos de Portugal e Espanha, além de homenagear seu velho mestre pernambucano Telles Júnior, admirador inconteste do universo de Rembrandt. Do mesmo modo, a presença da Igreja Católica nessa história foi ponto de discórdia entre os especialistas no assunto8.

Boaventura, os dois últimos ignorados na tela da fundação9. Descrita a história, era imprescindível emoldurar a cena com a exuberância da natureza amazônica em seus mínimos detalhes. O pintor migra então da ciência da história para o domínio das ciências naturais. Pela primeira vez, as águas da baia do Guajará, na confluência dos rios Pará e Guamá, trazem uma moderna representação dos rios tributários da foz do Amazonas: a cor barrenta, turva e amarelada. Esse viso era algo impensável para os pintores do século XIX, muito marcados pelos modelos e contornos dos rios europeus. Em contraste com a lenda de um Danúbio Azul, como na valsa de Johann Strauss II (1825-1899), Theodoro Braga pincela um Amazonas barrento, com arrepios de brisa, reflexos do céu em algumas manchas azuladas em meio à tonalidade do rio. Às margens estão os verdes em seus diferentes tons e escalas. A vegetação que orna a vista foi pensada como espécimes de um herbário característico da flora equatorial do Brasil. Ao centro, duas árvores com fortes conotações simbólicas para a Amazônia: a seringueira, responsável pelo triunfo do progresso contemporâneo do artista, via exploração do látex, e a imbaubeira, típica de floresta secundária e, por isso mesmo, representando o trabalho de colonização da região. Enrolada em cipós, ao centro da tela uma grande árvore – uma espécie de síntese visual da flora amazônica, exibindo “a majestade grandiosa das nossas florestas tropicais”. Houve lugar ainda para a palmeira do açaí, que produz o fruto de onde se extrai a bebida mais popular entre os paraenses e, à beira d’água, plantas aquáticas da Amazônia, como o mururé e a aninga, comum na nas redondezas de Belém. E o cenário foi composto por analogia às características ecológicas do litoral lamacento que circundava o Guajará, em cuja vegetação de mangue vicejavam também os aturiás, vistos no quadro como uma espécie de símbolo da vegetação amazônica. Muito evidente foi a intenção do autor em mostrar o contraste dessa pequena planta com “as árvores colossais e enormes das matas paraenses”, que cresciam em direção à terra firme. Ao fundo, no horizonte, aparece a “longa fita arroxeada da verdejante Ilha das Onças”, intacta e contínua, fronteiriça ao desembarcadouro dos portugueses. Todo esse corpus fitológico foi concebido como a parte ornamental da natureza amazônica transposta para um retrato da história, a fim demarcar seus contornos. Trata-se, portanto, da certidão de origem de uma cidade que nascia em meio a maior das florestas do mundo.

Tentando mais uma vez retificar as leituras dos historiadores Domingos Antonio Raiol (1830-1912) e Arthur Vianna (1873-1911), o artista trouxe ao acontecimento dois religiosos franciscanos: frei Antonio de Mercianna e Frei Christovão de S. José, que teriam acompanhado Castelo Branco no episódio da fundação. Já que não havia nenhuma pista sobre uma primeira missa, restava então apresentar os clérigos envolvidos na empreitada da construção de uma nova terra sob as bênçãos da Igreja. Ao invés de uma celebração, como fizera frei Henrique em Porto Seguro, em 1500, unindo na assistência os infiéis e os cristãos, na epopéia amazônica os índios já sabiam que os portugueses traziam outros costumes diferentes dos seus, pois que eram, na visão de Theodoro Braga, remanescentes daqueles mesmos Tupinambá que habitaram o litoral da Bahia ao tempo de Cabral. A presença dos padres na narrativa visual causou polêmica. Os historiadores da época sabiam apenas que os franciscanos acompanham a expedição de Jerônimo de Albuquerque para a conquista do Maranhão, em 1615, mas não acreditavam na seqüência de viagem ao Pará, em 1616. As fontes documentais possíveis à época informavam tão somente que, desde 1617, os ditos padres se instalam no sítio Una, nos arredores da recém-fundada Belém do Pará. Os franciscanos de Santo Antônio estão, portanto, na leitura visual de Theodoro Braga por terem sido os primeiros religiosos a chegar à Amazônia. Em 1617, quatro missionários dessa ordem estavam em Belém: Frei Antônio de Mercianna, Frei Cristóvão de São José, Frei Sebastião do Rosário e Frei Felipe de São

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Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia

Ao lado da magnitude da flora local, parecia essencial reconstituir um retrato climático do evento que, ao mesmo tempo, refletisse o traço meteorológico mais comum naquela latitude. O pintor fez assim um “céu tranqüilo e belo” como adorno ao empreendimento da fundação, “enquanto que para o lado da embocadura do rio uma nuvem plúmbea lembra-nos as fortes bátegas da chuva quase diária”. Theodoro Braga se voltou à comparação com a realidade presente, em 1908, quando o regime pluviométrico da área da foz do rio Amazonas praticamente não apresentava flutuações e mudanças bruscas de tempo. Com isso, o artista imprimiu uma espécie de cena intermediária, na qual aparecem, sobre o horizonte, as “pesadas nuvens branco-azuladas”, características daquela hora da manhã e, ao lado direito do expectador, as nuvens mais escuras da chuva tradicional do início da tarde. Desse modo o pintor conclui a feitura da tela. Mas o empreendimento ainda estava pela metade. Para uma grande cena, uma grande moldura. Uma pintura histórica só é capaz de eclodir num quadro de grandes dimensões, guarnecido e emoldurado com a mesma eloqüência da cena narrada pelas tintas10.

ficou guardada numa biblioteca de antiguidades em Braga, Portugal. Em 1825, o gosto pela heráldica e pelos demais registros da história, caro aos intelectuais do romantismo brasileiro, levou Paulo José da Silva Gama, barão de Bajé (1779-1826), então presidente da Província do Maranhão, a mandar reproduzir em tela a descrição do brasão. No final do século XIX, vários artistas e intelectuais se debruçaram sobre essa peça, entre eles o próprio Theodoro Braga. Grosso modo, trata-se de um brasão esquartelado: O primeiro, em azul, ostenta os braços com flores e frutas e a legenda Ver est aeternum – Tutius latent [eterna primavera – escondida é mais segura], alusivos à natureza pródica e bela do rio Amazonas e à geografia escondida do rio Tocantins, com sua riqueza literalmente frutificada. O segundo, um castelo de prata com um colar de pérolas, distintivo da nobreza, do qual pende a quina portuguesa com cinco castelos de ouro em escudo azul, enfatizando a fidalguia de Castelo Branco, o fundador da cidade. A estrada em amarelo que dá acesso ao castelo alui o caminho que devem seguir os sucessos do herói da tela – o da obediência à Coroa de Portugal. O terceiro representa um sol-poente em céu prateado, referindo a hora em que Castelo Branco ancorou na baia do Guajará. A legenda Rectior cum retrogradus [É mais reta se olharmos o passado], indica que o comandante esperou o desembarque para o dia seguinte, visando o fato que iria acontecer no dia seguinte. A fundação de Belém representa aqui a relação entre o desejo do passado e a realidade do presente. O quarto traz os ícones de um boi e uma mula num prado verde à margem de um rio, com as divisas Nequancam minima est [De modo algum és a menor], em referência à cidade que seria consagrada entre as conquistas portuguesas, assim como Belém da Judéia se eternizara entre os cristãos de todo o mundo11.

Theodoro Braga construiu para sua obra-prima uma moldura capaz de traduzir as mudanças que procurava imprimir em suas linhas de trabalho. A moldura é aqui um campo de bricolagens, de mistura e tradução cultural. Sobre a madeira, o ferro e o estuque, o artista esculpiu, modelou, forjou e pintou uma Amazônia brasileira. Na superfície do estuque e de seu douramento, entrecruzam-se ornamentos do classicismo – com seus medalhões – e outros elementos então “desconhecidos” pelos artistas da terra. Ao lado das célebres folhas de acanto, tão características do emolduramento acadêmico, Theodoro Braga construiu moldes de aturiás e folhas de aninga. Ao centro, no alto, ladeando o Brazão de Armas da Cidade de Belém, palmas de açaí, de onde se extrai o vinho dos paraenses. Com isso o pintor estabelecia os contornos de uma arte nacional, angulada por viso amazônico. Estilizando a flora da região, o artista questionava o contorno clássico e aquilo que parecia ser uma velha janela de visão da realidade. Temos à vista, portanto, uma moldura que é alegoria da mestiçagem e do encontro de culturas.

Há também que se pensar sobre o suporte, a técnica e a escala cromática preferida pelo pintor. Sobre uma tela de linho branco, o artista realizou aplicações mistas de tinta a óleo, obedecendo a um riscado que privilegiasse a luminosidade. Nas águas da baía do Guajará, em parte do céu e em algumas figuras humanas as pinceladas são finas e diluídas camadas de tinta quase imperceptíveis. Nas nuvens, terrenos e imediações do Forte do Presépio aparecem tênues empastes e, na copa das árvores e nas demais folhagens, aplicação de densos empastes com pinceladas soltas e muito evidentes. Com isso, Theodoro Braga acabou por imprimir um colorido variado e luminoso, tendendo ao verde-amarelo, – com óbvias preocupações de

No alto, ao centro da moldura, como insígnia de Belém, está o Brasão de Armas. Aqui está uma legítima prova das proezas arqueológicas do artista. A primeira versão desse emblema teria sido feita por Bento Maciel Parente, capitão-mor do Pará entre 1621 e 1626. Perdido, a notícia desse escudo 399

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marcar as cores da nacionalidade, nos sobre-tons de verde e na longa escala do amarelo tendendo ao ocre. Esse amarelo, que certamente é a cor mais incisiva da tela, mistura-se também a outros tons vão do ocre ao vermelho, passando por variações do azul ao cinza, em vários matizes. Por fim, o branco em contraste com ligeiros toques de negro terminam por contornar e realçar o traço colorista da descrição da natureza em contato com a história12.

Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879) foi desenhista, pintor, fotógrafo, tipógrafo, litógrafo, professor e um reconhecido inventor em seu tempo. Chegou ao Brasil em 1824. Atuou no comércio e numa empresa tipográfica, antes de ingressar na Expedição Langsdorff como desenhista, entre 1825 e 1829. Residiu na Vila de São Carlos (atual Campinas), onde criou um processo fotográfico em 1833, batizado de photographie. É responsável por diversas outras invenções, entre elas a polygraphie, um sistema de impressão simultânea de todas as cores primárias. Escreveu memórias e relatos de viagem, entre os quais se destaca Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas, publicado em 1875, com tradução do Visconde de Taunay (1843-1899), citada por Thedoro Braga. Cf. FLORENCE, Hercules. Esboço da viagem feita pelo Sr. De Langsdorff no interior do Brasil, desde setembro de 1825 até março de 1829. Revista do Intituto Histórico e Geographico Brazileiro. tomo 38, 1875, p.231301. Comentários adicionais sobre a obra artística de Florence estão em BRAGA, Theodoro. Artistas pintores no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1942. Antes disso, porém, T. Braga já havia caminhado pelo da representação pictórica dos desenhos corporais indígenas, em BRAGA, Theodoro. A arte decorativa entre os índios selvagens da foz do Amazonas. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará. v.1, n.o1. Belém, 1917, pp. 49-52. 6 BRAGA, Theodoro. A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará: estudos e documentos para a execução da grande tela histórica pintada pelo autor e encomendada pelo benemérito intendente municipal de Belém Exmo. Sr. Senador Antonio J. de Lemos. Belém: Secção de Obras d’A Provincia do Pará, 1908. 7 Sobre as apropriações e influências da obra de Rembrandt em seu tempo e nos séculos seguintes, ver: BLANKERT, Albert et al. The Impact of a genius: Rembrandt, his pupils and followers in the seventeenth century: paintings from museums and private collections. Amsterdam: K. & V. Waterman, 1983; WHITE, Christopher; ALEXANDER, David & D’OENCH, Ellen. Rembrandt in eighteenth century England. New Haven: Yale Center for British Art, 1983; SAMIS, Peter. The appropriation of Rembrandt by the 19th-century French etchers. Tese de mestrado em História da Arte. Berkeley: University of California, 1988; MCQUEEN, Alison. The rise of the cult of Rembrandt: reinventing an old master in nineteenth-century France. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2003. 8 Sou grato a Carlo Ginzburg por ter me chamado a atenção, de viva-voz, quando de sua estada em

Eis a grande invenção de Theodoro Braga. A obra cuja fatura lhe rendeu a reputação de pintor, o destruiu como historiador. Certamente está aí a resposta para a pergunta que fiz lá bem no início deste artigo. A tela de Theodoro Braga é afinal obraprima por ser símbolo de uma época, clímax de um gênero, fronteira de um estilo e marca de um autor. Conta uma história e, no entanto, é transtemporal. Pintada em 1908, remete-se a 1616 e pode ser relida hoje, em seu centenário, como a qualquer momento, em qualquer lugar. Polissêmica, como todo produto da arte, a cada viso do expectador ganha uma nova leitura. À primeira vista, sobrevém o traço acadêmico, o contorno pompier, o registro histórico. No entanto, de segunda olhada, no quadro a natureza toma conta da história, no imenso amarelo-barrento da baía do Guajará, nos tons verdes da floresta de várias idades e ainda nas nuvens carregadas da foz do Amazonas – tudo isso é muito mais que um simples cenário para a efeméride de um centenário mestiço da fundação da Amazônia. Notas 1

Doutor em História. Professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará e Coordenador do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia, UFPA. 2 Na vastíssima literatura histórica sobre os usos do tempo, penso especialmente em POMIAN, Krzysztof. L’ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984 e LE GOFF, Jacques; LEFORT, Jean & MANE, Perrine (eds.). Les calendriers: leurs enjeux dans l’espace et dans le temps. Paris: Somogy; Cerisy-la-Salle: Centre Culturel International de Cerisy-la-Salle, 2002. 3 Sobre Antonio Lemos e seu mecenato, ver SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do Velho Intendente: Antonio Lemos (1869/1973). Belém: Paka-Tatu, 2004. 4 Uma leitura aprofundada da construção da imagem de Thedoro Braga como pintor e como historiador está em FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Theodoro Braga e a história da arte na Amazônia. A fundação da cidade de Belém. Belém: Museu de Arte de Belém, 2004, pp.31-87. 400

Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia

Belém em 2004, da influência da pintura holandesa do século XVII na obra de Theodoro Braga, para além das referencias a Rembrandt. 9 Para uma leitura histórica da presença desses frades nos primeiros tempos do Grão-Pará, vide AMORIM, Maria Adelina. Os Franciscanos no Maranhão e Grão-Pará: missão e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos História Religiosa, 2005. 10 Sobre os significados das dimensões da tela como representação da história da Amazônia, vide FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A tela e o fato: a invenção moderna e a fundação do Brasil na Amazônia. FORLINE, Louis C; MURRIETA, Rui Sérgio S; VIEIRA, Ima Célia G. (Org.). Amazônia:

além dos 500 anos. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2005, pp.151-182. 11 Sobre as polêmicas da época em torno do Brasão de Belém, ver GENU, De Almeida. Dois brasões. Moura, Ignacio Baptista de (org.). Annuario de Belém, 1616-1916. Belém: Imprensa Oficial, 1915, pp.201-2. 12 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A árvore mestiça ea fortaleza de pedra: Theodoro Braga e a pintura da fundação da Amazônia, 1893-1908”. MIYOSHI, Alexander G.; DAZZI, Camila; CARDOSO, Renata. Revisão historiográfica: o estado da questão. Campinas: Unicamp, 2005, volume 1, pp. 35-42.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A Batalha de Campo Grande: o começo da popularidade Em 1864, teve início a guerra que foi para o Brasil a mais violenta de sua história e um acontecimento marcante para a América do Sul: a Guerra do Paraguai. O conflito durou seis anos, deu lugar a numerosas batalhas, e terminou em 1870, com a morte de Francisco Solano Lopez, ditador paraguaio. Entre os diversos comandantes da armada brasileira, Louis Philippe Marie Fernand Gaston d´Orleans, o conde d’Eu, filho do duque de Nemours e marido da princesa Izabel, filha do imperador Pedro II, desempenhou papel de destaque. Ele foi nomeado comandante em chefe das forças militares brasileiras em 22 de março de 1869. Sob seu comando aconteceu uma das batalhas mais significativas daquela guerra: a batalha de Campo Grande. (REIS: 90). A luta teve inicio às oito horas da manha de 16 de agosto de 1869 em um lugar chamado Ñu-Guazu ou Campo Grande. A vitória das tropas brasileiras nessa batalha e o triunfo final na guerra deixaram o país extremamente orgulhoso de seu desempenho militar e o Brasil passou por um período de nacionalismo exacerbado. Foi dentro deste contexto de grande emoção patriótica que Pedro Américo retornou ao Brasil depois de suas duas temporadas de estudo na Europa.

a temática, na pintura do século xix no brasil, como veículo de afirmação e sobrevivência: pedro américo de figueiredo e mello. madalena de f. p. zaccara

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Professor da Academia Imperial de Belas Artes, selecionado por concurso dois anos antes, ainda sem ter exercido as funções do seu cargo uma vez que depois do concurso retornou à Europa em período de licença da Academia, autor de uma pequena produção pictórica executada principalmente na França, o artista era na época um completo desconhecido do grande público de seu país e mesmo do meio mais erudito brasileiro. Suas chances de obter encomendas importantes, portanto, não eram significativas e ele contava principalmente com a possibilidade de continuidade da proteção do imperador - a quem ele havia contrariado recentemente permanecendo mais tempo na Europa do que o desejado pelo monarca - e na sua capacidade pessoal de articulação. O ufanismo da vitória brasileira e o seu senso de oportunidade lhe mostraram o caminho a seguir: registrar aspectos dessa guerra extremamente popular e conseguir, assim, sua própria popularidade. Para tanto, escolheu um tema inserido no assunto que mobilizava todo o país: A Batalha de Campo Grande. Para descrever essa ação, escolheu como personagem principal da composição o genro de seu benfeitor, Pedro II, o

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A temática como veículo de afirmação e sobrevivência: Pedro Américo

conde d´Eu, em um momento de destaque por arrojo pessoal na luta então travada.

um ano mais tarde ela foi apresentada oficialmente à família imperial que a visitou em 11 de maio de 1871 de acordo com matéria publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro daquela data.

Pedro Américo deu início à confecção de sua tela em 1870. É importante recordar que, em princípios desse ano, o artista não tinha nada a apresentar como referência profissional além de exercícios na Academia brasileira (onde conseguiu um bom desempenho e algumas medalhas) e na Escola de Belas Artes de Paris, umas poucas pinturas religiosas encomendadas, a tela A Carioca, rejeitada pelo provincianismo da burocracia do palácio imperial e a composição Sócrates afastando Alcebíades do reino do Vício com o qual ele ganhara o concurso para professor da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Até o fim deste ano, várias personalidades a visitaram e um número espantoso de artigos foi escrito sobre ela. Um deles é particularmente curioso e foi editado no Diário de Notícias do Rio de Janeiro em 20 de agosto de 1871. Faz referência a uma comissão formada por amigos do pintor que estava encarregada de recolher contribuições para oferecer-lhe uma coroa de louros, confeccionada em ouro, em homenagem ao seu talento. Analisando as anotações feitas no álbum sobre os recortes de jornais da coleção “A Batalha de Campo Grande” verificamos que o artista tinha perfeito conhecimento da autoria dos artigos, a maioria não assinados, anotando junto ao recorte o nome do autor.

Dentro desse contexto de retorno, ele iniciou uma atividade paralela bastante intensa na imprensa brasileira colaborando, inclusive, como caricaturista no jornal de costumes A Comédia Social, onde já trabalhava o seu irmão: Aurélio de Figueiredo. A autoria da produção das caricaturas nunca foi assumida por Pedro Américo. Álvaro Cotrin, pesquisando sobre o assunto, justifica essa ausência de reconhecimento pessoal da produção devido ao caráter vaidoso do artista que não a considerava uma atividade relevante. (COTRIN, 1983: 22). A personalidade do artista não atraia, de maneira geral, a simpatia da elite intelectual brasileira de então e se ele conquistou a admiração de alguns por sua inteligência e erudição, também fez um bom número de inimigos que não aceitava a sua maneira de se conduzir, invejava a amizade que o imperador continuava a lhe conceder e tentava minimizar seus proclamados sucessos europeus.

Em 28 de agosto de 1871, um artigo publicado no Jornal da Tarde, atribuído à redação, informa ao público que o deputado pela província do Rio Grande do Norte, Gomes da Silva, havia proposto ao governo comprar o “trabalho patriótico” de Pedro Américo. O artigo vem acompanhado de uma pequena biografia e foi reproduzido ou comentado nos principais jornais do país. O referido artigo se constitui em uma nítida sugestão da mídia para forçar a compra de uma tela pelo governo, tela esta que não tinha sido encomendada por ele. Os artigos se sucederam, já então favoráveis e desfavoráveis. Segundo anotações do próprio artista, nesse diário constituído de recortes de jornais, um inimigo dos artistas brasileiros entrara em cena naquele momento e publicara ofensas a Pedro Américo e a Victor Meirelles. De acordo com a ótica de Américo o objetivo seria provocar a discórdia entre os dois artistas e criar uma imagem negativa de ambos para o público. É difícil compartilhar essa opinião. Pedro Américo havia organizado uma campanha publicitária eficiente (durante o mês de setembro de 1871, por exemplo, não há praticamente um só dia em que ele ou o seu trabalho não sejam citados na imprensa) e uma reação a ela não seria estranha. Principalmente, se levarmos em conta, que, naquele momento, os que se manifestaram “contra” Pedro Américo denunciavam principalmente sua autopublicidade. Não questionavam o seu trabalho. O jornal O Guarani de 2 de setembro de 1871, por exemplo, abordou o assunto sob esse ponto de vista. Só depois que a obra foi exposta ao público é que se passou a discutir estilo e, principalmente, fidelidade histórica.

Dentro desse contexto, Pedro Américo concebeu uma hábil estratégia para divulgar seu trabalho ainda em projeto. Graças à doação de suas netas Virgínia e Carlota Cardoso de Oliveira, ao Museu Imperial de Petrópolis, de uma coleção de recortes de jornais sobre o quadro, com anotações pessoais do artista, pudemos seguir com precisão essa campanha concebida, desenvolvida, executada e bem sucedida através dos instrumentos de comunicação da época. (ZACCARA, 1995: 59. Vol. I). A primeira referência sobre o assunto aparece em um artigo assinado por Ladislao Netto publicado no Jornal do Commércio de 15 de junho de 1870. Intelectual de prestígio junto à corte e amigo do pintor ele faz, então, crítica repleta de elogios, extremamente prematuros, sobre o trabalho que estava sendo desenvolvido. Na época, a tela se encontrava ainda em condições de esboço e só 403

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Foi também durante o mês de setembro daquele ano que apareceu na mídia o anúncio de uma biografia de Pedro Américo que estava sendo escrito por seu antigo colega no Colégio Pedro II, Luis Guimarães Júnior, então jornalista respeitado no meio intelectual do Rio de Janeiro. A obra, abordando a vida e a obra de um artista que tinha apenas 28 anos e poucos trabalhos conhecidos, foi também um grande golpe publicitário. Sua divulgação perfeita. No período compreendido entre 13 de setembro e 29 de dezembro de 1871 toda a imprensa brasileira (da capital e das províncias) comentou a obra de Guimarães Junior. Vários ensaios foram feitos sobre a tela sendo os mais importantes àqueles escritos por Quintino Bocayuva (BOCAYUVA, 1871) e por Otaviano Hudson (HUDSON, 1871) com uma divulgação tão bem elaborada quanto a da biografia de Guimarães Junior.

Ordem da Rosa em 8 de dezembro de 1871.A homenagem da coroa de ouro foi fixada para o dia 31 do mesmo mês. Pedro Américo era então um dos homens mais conhecidos e comentados do país tal como foi a criança mais célebre da pequena cidade de Areia, no interior da Paraíba, onde nasceu. Finalmente, o governo brasileiro cedeu às pressões e comprou a discutida tela por 13 contos de réis em 27 de janeiro de 1872. O público ainda não a conhecia e ela foi exposta, dois meses depois, durante a XXII Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, inaugurada em 6 de março de 1872.A exposição recebeu a visita de mais de 60.000 pessoas segundo estimativa do jornal O Mosquito de 13 de junho de 1872. Logo em seguida, Américo recebeu várias encomendas entre as quais uma do governo brasileiro. Ele foi encarregado de executar uma tela sobre a história brasileira e novamente investiu na Guerra do Paraguai escolhendo como tema outra de suas batalhas: A Batalha de Avaí.

No fim do ano de 1871, Pedro Américo era uma personalidade notória mesmo sem seu trabalho ter sido exposto oficialmente. Todos, republicanos e monarquistas, queriam partilhar essa popularidade. Mesmo os que não simpatizavam com o artista participavam, daquele momento de notoriedade, através da imprensa, por meio de críticas ou debates. Um artigo assinado por Bittencourt da Silva, arquiteto e professor da Academia Imperial de Belas Artes, por exemplo, atacou seu colega Pedro Américo com certa violência no Jornal do Commércio de 7 de setembro de 1871. No artigo o arquiteto denunciou que a fidelidade histórica teria sido desrespeitada pelo autor. No mesmo jornal, no mesmo dia, uma matéria anônima questionava os méritos da produção artística de Américo. Estava lançada a disputa entre os inovadores, partidários do Romantismo ainda questionado pela Academia brasileira e os conservadores, partidários dos rigores do Belo Ideal neoclássico.

A Batalha de Avaí: a afirmação da popularidade Após um período de pesquisas sobre o tema, Pedro Américo conseguiu uma licença remunerada da academia brasileira e partiu para Florença com a família onde deu início à nova composição, de grandes dimensões, que solidificou sua notoriedade como pintor de batalhas. Como no Brasil, em paralelo à confecção da obra, ele utilizou sistematicamente a imprensa italiana que o visitava constantemente em seu ateliê florentino. Vários artigos apareceram, então, nos jornais de Florença e Américo começou também a ser conhecido naquela cidade. Cinco anos depois da encomenda o artista expôs seu trabalho. A mostra iniciou-se em 1 de março de 1877 como parte das comemorações do quarto centenário de nascimento de Miguel Ângelo. O imperador Pedro II compareceu à inauguração juntamente com personalidades da aristocracia européia e o mundo artístico e cultural florentino. A imprensa italiana e internacional divulgou amplamente a exposição e Américo obteve popularidade também na Itália.

A idéia da compra do quadro pelo governo continuou a ser levantada pela imprensa partidária do artista. Entre as várias opiniões sobre o assunto, divulgadas na imprensa, prevaleceu a do professor de anatomia da Academia Imperial de Belas Artes que propunha que a congregação dos professores solicitasse ao governo a compra da obra. A fórmula utilizada por Américo encontrara, enfim, apoio entre seus pares, feito difícil considerando-se as rivalidades do meio.

Alguns ensaios apareceram sobre o seu trabalho naquele momento. Entre eles Itália e Brasile, escrito por Francesco Becherucci, crítico de arte florentino (BECHERUCCI, 1877). A maioria dos biógrafos de Américo afirma que, nessa época, a administração da cidade de Florença solicitou do artista um autoretrato para ser exposto na Galeria dos Ofícios. Durante nossa pesquisa nos arquivos daquela

Naquele momento, a popularidade do artista era imensa. As mais eminentes personalidades lhe visitavam, poemas eram escritos em sua homenagem, botânicos amadores batizavam flores com seu nome e o governo o condecorou com a 404

A temática como veículo de afirmação e sobrevivência: Pedro Américo

galeria não encontramos qualquer documentação a esse respeito. Entretanto, existem dois retratos do artista naquele acervo: um deles datado de 1877 que é, assim, contemporâneo da exposição realizada em Florença e outro, datado de 1895. (ZACCARA P. MADALENA, 1995: p. 73, Volume I).

por um preço razoável e com as mesmas dimensões da tela A Batalha do Avaí. Durante esse período ele também elaborou outro plano para conseguir nova encomenda. Em 1878, escreveu a todos os presidentes de província do Brasil solicitando uma subscrição popular, encabeçada por eles, objetivando recolher fundos para a confecção de um novo quadro. A obra teria como tema uma homenagem ao Marques de Herval e teria caráter patriótico segundo as palavras do artista. (ZACCARA P. MADALENA. 1995: p. 78, Volume I).

Concluída a mostra, o trabalho foi enviado para o Brasil em abril de 1877. O país aguardava a exposição do quadro com impaciência. Victor Meirelles de Lima, o principal concorrente de Américo em termos de popularidade, também havia obtido uma encomenda do governo brasileiro e pintava A Batalha dos Guararapes. Era inevitável a expectativa do público no sentido de comparar as duas obras. A tela foi exposta inicialmente numa construção de madeira situada na Praça Pedro II no Rio de Janeiro. Para admirar a pintura, que havia feito tanto sucesso na Europa, o visitante devia pagar sua entrada.

O tempo passava na antiga cidade dos Médicis. Seus amigos italianos, bem colocados no cenário político florentino o aconselharam a insistir na temática de batalha e pintar uma tela sobre um assunto italiano. Américo concordou e escolheu como tema a batalha de San Martino que havia sido travada contra a Austria e vencida pela Itália. Uma vez tomada essa decisão e com a perspectiva de uma futura aquisição por parte do governo italiano ele deixou Florença e partiu para Montecantini, cenário da batalha a ser pintada, para estudos. A pintura, entretanto, ficou em estágio de esboço. As mudanças da política italiana não permitiram seu desenvolvimento, ou seja, a possibilidade de aquisição por parte do governo.

Após essa mostra Pedro Américo tornou-se ainda mais popular. Seu objetivo, naquele momento, era retornar o mais rápido possível para a Europa onde o aguardava sua família. Antes, entretanto, necessitava receber o pagamento referente à encomenda da tela A Batalha do Avaí do governo imperial. No que se refere a essa etapa o artista passou por algumas dificuldades. O contrato celebrado entre ele e o governo de Pedro II previa que o preço da obra deveria ser estabelecido por profissionais expressamente convidados para essa tarefa (CARDOSO DE OLIVEIRA J. M., 1943: pp. 100-102) e o governo deveria aceitar essa avaliação. Pedro Américo havia contatado membros da Academia de Florença para exercer essa função e a obra foi avaliada por eles em 53 contos de réis. O governo brasileiro considerou o preço excessivo e pagou somente parte da quantia: 40 contos de réis. Inconformado com o resultado, o artista apelou para suas amizades e para a imprensa. Seu amigo, o deputado Fernando Ozório, por exemplo, defendeu com tenacidade seus direitos junto à Assembléia Legislativa, fato que foi noticiado em matéria do Jornal do Commércio do Rio de Janeiro de 2 de setembro de 1877.

Durante esse período florentino Pedro Américo produziu bastante. Enviou para o Brasil onze quadros executados “durante os intervalos de meus sofrimentos físicos”. Desejava que o conjunto fosse exposto na próxima exposição da Academia Imperial de Belas Artes “nas mesmas condições que a dos outros concorrentes”. Nesta mesma correspondência, ele informa o título das obras enviadas: David em seus últimos dias é aquecido pela jovem Abisag; Dona Catarina de Atahyde; Judith rende graças a Jeovah por ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holophernes; uma reprodução com variações do quadro A Carioca; A noite acompanhada dos gênios do amor e do estudo; Joana D´Arc ouve pela primeira vez a voz que lhe prediz o seu destino; D. João IV, Duque de Bragança em 1608; Rabequista Árabe; Retrato de menina em costume espanhol de 1600; A virgem dolorosa; Estudo de perfil; Moysés e Jacobed e um trabalho intitulado Contemporâneo de Van Dyck, cópia do mestre executada por seu discípulo Décio Villares. (ZACCARA. P, MADALENA. 1995: p. 94. Volume I).

Apesar de não receber o resto do montante estabelecido pela avaliação da academia florentina, Pedro Américo retornou àquela cidade após obter nova licença do governo. Instalado na Via di Mezzo n. 4, ele continuou a pedir e a obter novas licenças e a tentar conseguir novas encomendas. Propôs, na época, através de carta endereçada ao Marques de Herval, seu amigo e detentor, no momento, de grande influência política no governo brasileiro, pintar a batalha travada no dia 24 de maio (outra batalha acontecida durante a guerra do Paraguai)

Os títulos dos trabalhos produzidos no período, que não eram resultantes de encomendas, nos indicam que a temática de Pedro Américo difere completamente daquela que o tornou conhecido: a pintura de batalhas. Neste conjunto de obras, que 405

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mais tarde foi vendido ao governo brasileiro, os assuntos abordados variam entre história, mitologia e literatura com ênfase para o Antigo Testamento. Algum tempo depois, o próprio artista vai afirmar ser o tema bíblico o seu preferido. A produção posterior a essa coleção, também vai estar significativamente mais ligada à história sagrada ou profana, a temas mitológicos e às alegorias.

Brasil um romantismo, já em declínio na Europa, mas ainda polêmico no contexto brasileiro. Entretanto, essa produção, que nas circunstancias representava um avanço no universo das artes visuais brasileira, representou para ele sempre um negócio, uma alternativa para a sobrevivência. Ele não retornou mais a essa temática quando o filão se esgotou, característica de um país pouco bélico e, portanto, possuidor de um universo reduzido de temas abordando batalhas. Abriu seu caminho com elas e o fez com eficiência e grandiosidade.

O historiador e crítico de arte brasileira do século XIX Luis Gonzaga Duque Estrada, contemporâneo do pintor, já enfatizava essa falta de interesse do artista pela pintura militar justificando-a como uma espécie de oportunismo natural em um jovem pintor em início de carreira. (DUQUE ESTRADA, 1888 p.p.111-112). A produção madura de Américo confirma a análise do historiador. A temática de batalha configura-se assim como um meio de inserção do artista no mercado de arte da época aproveitando a euforia patriótica brasileira ligada à vitória na guerra do Paraguai e que, graças a um direcionamento bem planejado através da mídia, gerou uma espantosa e rápida popularidade.

Referências bibliográficas BAUDELAIRE, Charles. Critique d´art. Paris: Editions Gallimard. 1992 BECHERUCCI, Francesco. Brasile e Itália. Illustrazione del quadro La Bataglia di Avahy Dell insigne pittore Pedro Américo. Florença, 1877. BOCAYUVA, Quintino de Souza. A Batalha de Campo grande (quadro histórico) Rio de Janeiro: Henrique Brow e João de Almeida Editores. OLIVEIRA, Cardoso de. J. M. Pedro Américo, sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, COTRIN, Álvaro. Pedro Américo e a caricatura. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1983. GONZAGA, Duque Estrada L. A Arte Brasileira: pintura e escultura. Rio de Janeiro: H. Lombaertz, 1888. GUIMARÃES JR, Luis. Perfil Biográfico. Pedro Américo. Rio de Janeiro: Henrique Brow e João de Almeida Editores. 1871 REIS, Everaldo Oliveira. O conde d´ Eu e o exército brasileiro. Anuário do Museu Imperial. Vol. 32. ZACCARA PEKALA, Madalena. Pedro Américo: Vie et oeuvre. Son rôle dans la peinture du Brésil au XIX ème siècle. Thèse de Doctorat de l´Université . Toulouse: Université Toulouse II, 1995, 3 Volumes.

Pedro Américo nunca foi um militar que fazia pintura como disse Baudelaire de Horace Vernet (BAUDELAIRE, 1992). Ele detestava a guerra, não tinha interesse pelo Brasil e relutou a vida toda em retornar ao país natal. Só o fazia para conseguir encomendas ou para a rápida investida no cenário político nacional como deputado eleito pela sua província natal, a Parahyba do Norte, após a proclamação da República. Morreu em Florença e, até seus últimos dias, hesitou ante os convites de dirigir uma escola com seu nome na província do Pará, atividade proposta pelo então senador da República Antonio Lemos (OLIVEIRA. V. CARDOSO. 1902: p.16). Suas poucas pinturas de batalha foram importantes para a sua carreira. Eram necessárias naquele momento e ele as desenvolveu de forma eficaz e corajosa investindo, com o ímpeto da juventude e de quem retornara de outro universo de informações, contra regras aceitas e impostas por grande parte do meio artístico e intelectual brasileiro o que acarretou grande polêmica na época. Américo trouxe para o

Notas 1

Madalena Zaccara é doutora em História da Arte pela Université Toulouse II, Toulouse, França e professora adjunta do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco.

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O pintor oitocentista Pedro Americo de Figueiredo e Mello (1843-1905) representou em grande formato o protomártir da República brasileira, conhecido sob a alcunha de Tiradentes1. A tela possui trajetória muito diferente dos demais quadros históricos do artista. Embora pintada em Florença (Itália), lá não foi exposta, não participando também de nenhuma exposição internacional. No Brasil, não integrou a Exposição Geral de Belas Artes. Apresentada em julho de 1893, na capital federal, a tela não foi adquirida pelo Estado, a exemplo de seus quadros históricos anteriores. Vendida a município do interior do país, por ingerência de um amigo, permaneceu oculta aos olhos do público por longo tempo. De 1893 até 1969, a tela não circulou como imagem, não foi reproduzida em gravuras, não ilustrou livros e pouco foi citada nas biografias do pintor. Por que uma das primeiras representações do principal herói brasileiro foi esquecida? O quadro Tiradentes fora enforcado e desmembrado em 1792, acusado de liderar uma conspiração contra a metrópole portuguesa. Pedro Americo fez uma escolha difícil para um pintor de história: ao invés de representá-lo vivo e glorioso sob o cadafalso, no momento de maior tensão, apresentou, simplesmente, as partes do cadáver ocupando quase a totalidade da tela.

a recusa ao corpo fragmentado: a recepção de “tiradentes esquartejado” maraliz de castro vieira christo

Se o quadro surpreende ao exibir um herói aos pedaços, a sua assepsia causa igual estranheza. Ela rompe com a ação do tempo, nos remetendo ao corpo manipulado pela ciência, próprio, no dizer do pintor, a uma época de dissecação e análise. Pedro Americo procurou, na organização dos fragmentos, alguma coerência com a estrutura corporal humana, incentivando a recomposição mental do corpo. Manteve a cabeça ao alto, tratada dignamente, próxima das imagens de São João Batista, produzidas na Europa meridional do séc. XVI, e distante das representações das cabeças sofridas e cadavéricas de guilhotinados do séc. XIX, apresentadas por Géricault (1791-1824), JacquesRaymont Brascassat (1804-1867) ou Denis Auguste Marie Raffet (1804-1860)2. Pedro Americo afasta sua representação do “Teatro da guilhotina”, a cabeça de Tiradentes não está suspensa pela mão do carrasco para ser exposta ao público. Ela repousa sobre o chão do cadafalso, a exemplo das representações do séc. XIX, mas não a percebemos como “coisa” num plano horizontal. A perspectiva, situando o observador bem abaixo do nível do assoalho, nos impede a visão do plano, transformando-o apenas numa 407

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“linha” onde a cabeça, respeitando sua posição natural ocupada no corpo, situa-se entre dois eixos (o assoalho e o mastro), metamorfoseando o cadafalso em cruz.

os membros parecem privados de volume, tornando-se quase uma figura abstrata. A relação entre o braço direito de Tiradentes com sua perna direita causa estranheza, mas não a repulsa que provocaria a exibição dos cortes, caso Pedro Americo se inspirasse nos fragmentos expostos em Rouen.

Em Tiradentes esquartejado o tronco, pousado sobre o cadafalso, não foi fracionado em dois. Pedro Americo preferiu ignorar o texto da sentença, que ordenava ser, após o enforcamento, a cabeça cortada e o corpo dividido em quatro partes. O artista não só manteve o tronco intacto, impedindo que fosse reduzido a um pedaço de carne cortada, como obstruiu a visão do corte do quadril com a túnica azul. Conservando o tronco, Pedro Americo buscou sua associação simbólica com o braço pendente da Pietá de Miguelangelo ou do Marat assassinado de Jacques-Louis David.

Na organização espacial dos fragmentos, Pedro Americo objetivou a verticalidade como o tradicional caminho para a espiritualidade. O olhar parte da perna esquerda - presa a uma haste de madeira, como um estandarte da barbárie humana -, alcança o tronco, se eleva à cabeça levemente inclinada, cujos olhos semi-abertos vislumbram a luz. Porém, nesse caminho, algo nos perturba: a carne esgarçada, espetada e amarrada da coxa esquerda. É o “detalhe-dettaglio”, retomando o conceito proposto pelo historiador francês Daniel Arasse, que captura o olhar.4

O tronco de Tiradentes nada possui da representação clássica das esculturas da Antigüidade, a exemplo do Torso do Belvédére, de Apollonios (Musei Vaticani, Roma). Seu realismo nos traz à memória obras de italianos contemporâneos de Pedro Americo, como Abel morrendo, escultura de Giovanni Dupré (18171882), exposta no Pallazzo Pitti, ou Santa Felicidade e o martírio dos Maccabei, de Antonio Ciseri (1821-1891) pertencente à Igreja de Santa Felicidade; ambos em Florença, na mesma margem do Arno, onde Pedro Americo trabalhava em seu ateliê, na via Maggio, número 11. Vale ressaltar o contato de Pedro Americo com Antonio Ciseri, professor de Aurélio de Figueiredo, entre 1873 e 1875, período em que este último morou em Florença com o irmão.

Todos os cuidados anteriores, ao ocultar os cortes e posicionar respeitosamente as partes, foram esquecidos. A carne esgarçada da coxa rouba a atenção destinada pela verticalidade à cabeça. Nosso olhar fica pendente entre uma e outra. O vermelho do sangue presente, mesmo não em excesso, na coxa e na base da cabeça, titubeia o olhar. A disposição dos fragmentos de Tiradentes foi inspirada, em parte, no grupo inferior esquerdo de A balsa da Medusa. Esse grupo representa a morte e a desilusão, contrapondo-se àqueles que acenam ao fundo por socorro. A perna esquerda de Tiradentes recorda as pernas que se projetam para fora da jangada, pertencentes ao filho morto seguro pelo pai. Traspassada pela haste de madeira, a perna nos lembra igualmente os corpos atados ou traspassados por galhos de árvores nas gravuras da série Desastres da guerra de Goya.

A perna direita, situada atrás do tronco, sugere o pé representado por Géricault em Fragmentos anatômicos (1888), exposto no Musée Fabre, em Montpellier. Didaticamente, Géricault pintou o mesmo grupo de fragmentos (um braço esquerdo decepado na altura da clavícula e duas pernas) em três ângulos diferentes. A comparação entre o quadro de Montpellier e o exposto no Musée des Beaux-Arts de Rouen é reveladora. No quadro de Montpellier, o ângulo de visão e a penumbra dissimulam as mutilações, o braço enlaça-se ao pé, num jogo romântico capaz de seduzir o olhar, ao passo que o quadro de Rouen provoca o efeito contrário. Ele nos permite observar o lado oposto da representação de Montpellier. Em primeiro plano, iluminado, reconhecemos, antes de tudo, os cortes, como se estivéssemos diante de uma mesa de açougue; ali toda a humanidade dos membros fragmentados se perdeu. Por curiosidade, o terceiro ângulo, pertencente à coleção particular de Robert Lebel, em Paris 3, mostra uma visão lateral, sem profundidade, onde

Ao fixar a perna esquerda na haste, Pedro Americo a distancia do restante do corpo dando-lhe certa autonomia. Ela ocupa um espaço indefinido, quase surreal, entre o observador e o restante do corpo, revelando um aspecto negado aos outros fragmentos: a carne. A autonomia da perna esquerda é a grande inquietude do quadro. Pedro Americo sobrepõe em sua tela referências antagônicas: o corpo de Cristo, o corpo do herói republicano Marat e o corpo da vítima anônima, a exemplo das retratadas por Géricault e Goya. Se a cabeça e o tronco estão prenhes de significação positiva - a salvação da humanidade, os ideais republicanos...- a perna esquerda, reduzida à condição primordial de carne, de testemunho da 408

A recepção de “Tiradentes Esquartejado”

barbárie humana, contamina a visão das outras partes do corpo, negando sua positividade.

perceber o quanto o artista desafiou antigos pressupostos da arte, que, pela posição da crítica na época, parece-nos possuírem ainda alguma ressonância. Para o escritor do século XVIII,

Tiradentes não tivera a mesma sorte das divindades Osires e Dionysos, cujos corpos fragmentados foram recompostos, respectivamente, por Isis e Rhéa. Fracionado e perdido no caminho sua ressurreição é impossível. A imagem que permanece é a do corpo esquartejado.

[...] as formas feias não devem ser representadas, porque as sensações desagradáveis, fixas, imobilizadas e eternizadas, produzem um sentimento inestético: a repugnância. Podemos abstrair esta fealdade e considerar apenas a arte do pintor, mas achamos que é uma arte mal empregada. A fealdade só é pois legítima para produzir o ridículo, por exemplo na caricatura, e para produzir o horrível, por exemplo na tragédia, que leva a emoção até ao último grau.11

A recusa No Rio de Janeiro, o quadro foi apresentado no salão do jornal A Cidade do Rio, de 2 a 17 de julho de 1893 e, até o findar do mês, na Glace Elegante5, uma das poucas galerias de arte da cidade 6. Embora exposto em uma conjuntura de controvérsias, quando, no Congresso Nacional, ainda debatia-se calorosamente o projeto de monumento à memória de Tiradentes, sancionado em 13 de julho, a tela de Pedro Americo atraiu, relativamente, pouca atenção. Levantamos, na imprensa, quatorze notícias sobre o quadro: seis informativas, quatro contrárias à representação do herói esquartejado, três em defesa de Pedro Americo e uma escrita pelo próprio artista.

Foi como repugnante que parte da crítica considerou o quadro de Pedro Americo.12 Pedro Americo rebateu as acusações escrevendo ao jornal. Em sua defesa, aponta para o planejamento inicial, onde o quadro finalizava uma série: o trabalho que agora exponho, teria produzido no meio dos outros impressão diversa e porventura menos terrível13. Quanto ao caráter repugnante, esclarece:

Para alguns críticos, a representação criada por Pedro Americo reforçava o discurso do herói cívicoreligioso, ao aproximar o martírio de Tiradentes com o de Cristo.7

[...] não me parece que eu haja revestido o fato de cores mais vivas do que a crua verdade comportava. Um homem enforcado e imediatamente decapitado e esquartejado por carniceiros ignorantes devia oferecer aos colonos aterrorados um espetáculo muito mais repugnante do que o da pintura exposta. [...] evitei de propósito a representação das contrações da morte, a um tempo por estrangulamento e sufocação, n’aquela face destinada á respeitosa contemplação dos pósteros; e não quis pintar (com os efeitos aliás tão fáceis de obter n’uma tela realista) os intestinos, e as vísceras todas, e até as fezes do supliciado, ali derramadas com a mesma brutalidade e a mesma irreverência com que foram decepados e dispersos os seus membros, e salgada a sua cabeça. Entretanto tê-lo-ia feito Zola, que digo? tê-lo-ia feito Homero, uma vez que não hesita em nos exibir os seus louros e olímpicos heróis, cegos de cólera ou loucos de dor, lutando corpo a corpo pela possessão de um cadáver, ou espojando-se por terra, com a face e os cabelos lustrosos de suor, lacerando as próprias vestes, e esfregando o corpo no pó e no lodo das estradas, em sinal de extrema consternação. Sem duvida por deficiência de talento poderei não ter atingindo o fim que me propus, mesmo

Como visto anteriormente, de fato, a composição elaborada por Pedro Americo leva o observador a esta interpretação. Entretanto outra leitura se sobrepunha à do mártir religioso. Parte da crítica acusava Pedro Americo de ter apresentado uma página demasiadamente eloqüente de propaganda republicana. 8 Não se tratava de uma censura à temática, Tiradentes, mas ao momento escolhido pelo artista para representá-lo. Pedro Americo não deixou ao encargo da imaginação o total cumprimento da sentença. Se a verticalidade da composição apontava para a liberdade da vida eterna, a visão do esquartejamento aprisionava a imaginação na morte, na denúncia da repressão colonial. Pedro Americo, ao ser fiel ao destino de Tiradentes, rompe com os cânones do ‘belo ideal’. Embora obedecendo aos rigores do desenho neoclássico, fazendo um detalhado estudo anatômico, o artista provoca um grande desconforto ao apresentar o corpo em fragmentos. Se compararmos as decisões tomadas por Pedro Americo ao pensamento de Gotthold E. Lessing (1729-1781) 9 , cujo texto o pintor conhecia 10 , poderemos 409

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

julgando-se esse quadro isoladamente; mas, evitando a exibição de contrações e outros efeitos fisiológicos na face serena do grande mártir, e o abuso do sangue e das exibições anatômicas em quase toda a figura, sem contudo recusar a essa pagina da historia o cunho do realismo, que deve caracterizar as produções de uma época de dissecação e análise em todos os assuntos, creio ter oferecido á consideração publica um espetáculo próprio para tornar patente a hediondez da barbaria humana, no tempo em que viveu, cheio de angélicas esperanças e heróicas ilusões patrióticas, o mártir de cuja grandeza moral ainda alguns duvidam.14

humano, não um ato da justiça, que temos diante de nós!18 O articulista, a seguir, faz uma digressão sobre a pintura histórica: Pondera-se que o autor do quadro pudera ter escolhido outro episodio da vida do mártir que não causasse tanto horror, que despertasse melhor a piedade pelos que sofrem! Há aqui uma completa aberração das leis da critica. Se fosse verdadeiro semelhante principio, ele importaria nada menos do que a supressão de uma das manifestações mais poderosas da arte – o gênero da pintura histórica. Neste gênero, verdadeiro trabalho de restituição do passado, o ponto capital é a fidelidade perfeita, o respeito sagrado á verdade histórica, que neste caso é tanto dever do artista, como do historiador.

Respondendo àqueles que o censuravam por ter retalhado o herói e também àqueles que, ao contrário dos primeiros, lhe criticavam a não fidelidade às agonias da morte 15, Pedro Americo nos faz ver como o corpo de um herói, embora fiel ao seu destino, deveria ser tratado com respeitosa contemplação e reverência. Interessante o contraponto entre a pintura e a literatura provocado por Pedro Americo em sua defesa ao citar Zola e Homero. Entretanto, Lessing nos mostra que:

Por fim, Homem de Mello argumentou ser o horror sentido diante da obra e sua rejeição uma reação contrária à justiça de matadouro, ali representada, e não ao artista; assim como destacou o caráter místico da obra, apesar do grito de revolta nela contido. Contrário à posição expressa por Homem de Mello, Carlo Parlagreco, imigrante italiano e professor de Estética da Escola Nacional de Belas Artes, no dia seguinte, escreveu ao Jornal do Brasil. Seu longo artigo inicia-se com uma afirmação provocadora: “(...) a maneira com que o artista quis erguer o seu hino ao glorioso mártir mineiro liga-se a um dos maiores problemas da arte de todos os tempos” 19, ou seja, o verismo e a falta de efeito moral:

[...] a poesia não fixa, faz passar rapidamente a fealdade. É por isso que poderemos verificar nos poetas antigos coisas feias ou que nos inspiram repugnância, mas elas continuam a servir em associação para dar o horrível: as sânies de Filocteto, a fome em Ovídio e Calímaco, por exemplo. 16 Nos dias 14 e 15 de julho de 1893, os leitores acompanharam o confronto de dois críticos sobre o quadro de Pedro Americo, através dos únicos artigos assinados sem o uso de pseudônimos.

[...] O que não posso, porém, apesar de minha boa vontade, louvar, nem admitir no quadro de que se trata é a sua composição e a sua apresentação estética. Qualquer pessoa que não conheça a fisionomia do Tiradentes apenas verá nessa tela um açougue de carne humana. O artista dirá, talvez, que foi fiel á historia; pois sim, mas que quer dizer isso? Si a arte tivesse apenas de reproduzir, com todas as particularidades, o que acontece na natureza, ou na vida, não passaria de uma reprodução banal de impressões fotográficas, a que poderia faltar esse poder misterioso e intangível da inspiração criadora. Si assim fosse, deveríamos preferir a Macbeth e Othelo os resumos taquigráficos dos processos criminais. Eis porque eu penso que esse quadro pode suscitar, mesmo aqui, uma discussão sobre um dos maiores problemas da arte.

No primeiro, o Barão Homem de Mello17, amigo pessoal do pintor ligado à Escola Nacional de Belas Artes, defende no Jornal do Commercio o trabalho realizado pelo artista. Repetindo a informação apresentada por Pedro Americo, em sua carta à Gazeta de notícias, lembra a intenção do pintor de reproduzir não um, mas cinco episódios da Conjuração Mineira. Define a pintura histórica como um processo de restauração, revelando as fontes documentais que embasaram o trabalho do artista: o processo original da Conjuração e a sentença reproduzida pelo próprio Homem de Mello na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O Barão define a cena pintada reproduzindo livremente a exclamação do escritor francês, Charles de Ribeyrolles, ao transcrever em seu livro, Brasil Pitoresco (1859), a sentença condenatória de Tiradentes: É um matadouro 410

A recepção de “Tiradentes Esquartejado”

Procuraremos demonstrá-los. Os principais elementos de cada grande obra de arte são dois: 1 o . Sínteses e idealização de tipos, acontecimentos e sentimentos da vida. 2o. Sugestão educativa. [...] Para ter uma intuição correspondente à idéia moral que representa o Tiradentes na historia brasileira é preciso considerá-lo no ato mais solene de sua vida, no momento épico em que afirma o seu apostolado, e levanta-se acima do comum dos homens, desprezando a morte, confiado na força do seu espírito, coligado a todas as grandezas morais da humanidade, e proclamando acima do poder opressor a supremacia do ideal, a manifestação mais pura da dignidade humana. Si me apresentassem pintado o suplicio de Jordano Bruno em Campo di Fiori, o cadáver carbonizado, não me seria possível reconhecer naqueles destroços alguma coisa do grande espírito, que apavorava o inquiridor com essa apostrofe sublime: “Terás tu mais medo em ler essa sentença de morte, do que eu em ouvila”. Eu desejaria então que esta apostrofe irrompesse da tela, por assim dizer, e me fosse sugerida por um traço de pincel digno de Miguel Ângelo e Rembrandt. O verismo intransigente nunca compreendeu essa superioridade de espírito, porque teve em geral na critica uma geração de eunucos, que enganaram a si mesmos e ao publico, em nome da ciência moderna, que não compreenderam, ou mal interpretaram nas suas principiais conclusões. Si toda a evolução da vida é um movimento continuo para a perfeição ideal, como pode a arte, representação mais nobre e genuína desse movimento, deixar de lado suas manifestações mais salientes e duráveis, para limitar-se a exterioridades insignificantes e comuns? [...] Resta ver a segunda parte, a sugestão. [...] No caso que examinamos, qual o efeito moral, que por meio da sugestão poderá produzir sobre o publico o quadro de Pedro Americo? Um só: o desgosto. Não sai da tela nenhuma idéia de heroísmo, de grandeza, de patriotismo, nem mesmo de martírio. Á vista de um homem esquartejado, seja qual for o seu nome, a primeira impressão é de horror. A piedade vem depois, como reflexo, e

não por sugestão imediata, como acontece nas grandes obras. Estes efeitos são regulados por leis fisiológicas infalíveis. [...] 20 Enquanto Homem de Mello aponta Jacques Callot e Georges-Antoine Rochegrosse – artistas que, em períodos e com intenções diferentes, expuseram realisticamente a violência -, como aval para Tiradentes esquartejado, Parlagreco escuda-se em escritores do final do século, que advogam a perfeição e o fim moral da obra de arte. Apoiandose em Souriau 21 e Bourget 22 reafirma a má escolha do momento para a representação do herói da Conjuração Mineira, assim como o desgosto e o horror provocado pela visão do açougue de carne humana, em que o artista teria transformado a sua tela. O debate entre Homem de Mello e Parlagreco expressa com clareza as mudanças ocorridas na pintura histórica no momento de seu ocaso. Ela não consegue mais capitalizar emoções coletivas; abandonou os grandes projetos ideológicos e passou a narrar os acontecimentos, num registro minucioso, porém, frio e distante. A violência revelada contaminou qualquer leitura do quadro. Nesse aspecto, a tela recebeu forte critica por ir contra a pretensa índole pacífica do povo brasileiro. 23 Em defesa do quadro, um articulista, que assina simplesmente F.C., assim se expressa: [...]Segundo o entender dos que tão rigorosamente o criticam, o artista, mesmo recorrendo á Inconfidência e ao seu chefe, devia ter procurado um assunto mais suave; mas, uma vez que se decidiu a tratar o episodio mais horroroso da conjuração mineira, é lastimável que o não tenha atenuado ad usum delphini. O delphim neste caso é o povo brasileiro, cuja índole não suporta a exibição fiel de um homem esquartejado. Realmente é pena que Pedro Americo de tal modo houvesse atentado contra os nervos de uma população que não pode ver um homem esquartejado numa tela, mas que corre em massa ao necrotério para ver na infeliz Maria de Macedo como é possível reconstruir um corpo mutilado, sem braços, sem pernas e sem cabeça. 24 A ironia de F.C., contrapondo as diferentes reações frente à representação pictórica do esquartejamento do herói e a visão de um corpo real igualmente esquartejado, acaba por relevar 411

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

qual parâmetro orientou a recepção de Tiradentes esquartejado.

pelo Estado da Paraíba. Visando recuperar o lugar ocupado no Império, na produção de bens simbólicos, o artista integraria o esforço por transformar Tiradentes em herói republicano e nacional, numa perspectiva crítica, em que enfatiza a fragilidade interna da sedição. Entretanto, Pedro Americo não concluiu a série proposta, expondo Tiradentes esquartejado isoladamente da narrativa que lhe dava sentido; o projeto de criação da Galeria Nacional não foi aprovado, privando seu quadro de um lugar de consagração. Por fim, o público não aceitou a visão anti-heróica proposta pelo artista.

Maria de Macedo foi uma mulher comum, assassinada em 1892, cujo corpo a polícia encontrou dentro de um cesto, sem a cabeça e membros, só depois localizados. Crime que se manteve presente, por muito tempo, na memória popular. Dos seis artigos de conteúdo sobre o quadro de Pedro Americo, três relacionaram-no ao corpo esquartejado de Maria de Macedo. A Revista Ilustrada apresenta apenas uma pequena, mas significativa, nota sobre a exposição do quadro: “Está exposto no salão da Cidade do Rio um quadro alegorico ao esquartejamento de Maria de Macedo da Silva Xavier, original do Sr. Timotheo Americo de Figueiredo”25. A sobreposição quer do nome do herói (Joaquim José da Silva Xavier), ao da mulher esquartejada (Maria de Macedo), quer do nome de um de seus assassinos (Timotheo) ao do pintor (Pedro Americo de Figueiredo e Mello), não é apenas um modo jocoso e irreverente de noticiar o evento, próprio à Revista Ilustrada. Indica, sim, a aproximação entre a violência sofrida por Tiradentes e a vivida pela população em seu cotidiano.

A partir da representação, por Manet, do fuzilamento do imperador mexicano (A execução de Maximilienm, 1867) como um gesto banal, percebe-se a desconfiança nutrida pelo século XIX quanto aos heróis. Se Pedro Americo aproximavase da pintura européia de seu tempo - que não mais acreditava em heróis e expunha sem pudor a violência, a exemplo do pintor francês Rochegrosse, com o qual o pintor brasileiro foi comparado -, distanciava-se do contexto brasileiro, onde esforços se concentravam na montagem do panteão nacional republicano. Aurélio de Figueiredo, igualmente pintor, acompanhou as dificuldades do irmão, Pedro Americo, quanto à venda do quadro ao município de Juiz de Fora, Minas Gerais. Autor da, provável, primeira representação de Tiradentes com corda ao pescoço, cabelos e barbas longos, exposta no Salão de Belas Artes de 1884, Aurélio, ainda em 1893, projeta outro quadro, agora em grandes dimensões, sobre a execução de Tiradentes. Assim, Aurélio de Figueiredo criou o modelo iconográfico oficial para a morte do herói, Tiradentes no patíbulo 26, onde, retomando as lições de Lessing, privilegiou o momento precioso; nele, Tiradentes aparece vivo, no patíbulo, a caminho do mito.27 Essa imagem, aceita pelo público, tornouse hegemônica, circulando amplamente nas publicações referentes ao herói.

O Antigo Regime dilacerou incontáveis heróis, mas os jornais preferiram ligar Tiradentes ao assassinato de uma mulata, ocorrido um ano antes. A aproximação entre o herói e Maria de Macedo acentua a fragilidade do primeiro, relegando-o a uma situação social paralela, na época, à mulher: vítima. Até que ponto, invertendo-se afirmativamente a provocação de F.C., Pedro Americo poderia ter objetivado atentar contra os nervos da população? O esquecimento Pedro Americo, privilegiando o esquartejamento, objetivava não só denunciar a violência da repressão colonial, mas também a debilidade do movimento sedicioso, conhecido como Conjuração Mineira, que Tiradentes fora acusado, pelos próprios companheiros, de liderar. Na realidade, a conjuração limitou-se a algumas reuniões e foi abortada sem o disparo de um tiro, antes mesmo da prisão de seus integrantes. O artista, inicialmente, planejara pintar uma série de cinco quadros sobre a conjuração, que evidenciasse seu descrédito quanto à viabilidade do movimento. Possivelmente, Pedro Americo pensava expor a série numa Galeria Nacional, cujo projeto de lei para criação, apresentado à Câmara em 15 de julho de 1892, era de sua própria autoria, como Deputado

Quanto à tela de Pedro Americo, esquecida por mais de meio século, permaneceu imune aos momentos em que a história brasileira lançou mão do mito de Tiradentes. Apenas a partir de 1969 atingiu o grande público, reproduzida em enciclopédias; mas esse locus tendeu a obscurecer a percepção de seu poder corrosivo ao vinculá-lo, na maioria das vezes, a um discurso oficial. Entretanto, na década de 70, ainda em plena ditadura militar, os artistas Arlindo Daibert, Sandro Donatello Teixeira, Wesley Duke Lee e, posteriormente, Adriana Varejão nos revelaram um olhar diferente sobre a tela de Pedro Americo. Seu 412

A recepção de “Tiradentes Esquartejado” 15

potencial contestatório foi percebido pelos artistas que, ao dialogarem com o quadro oitocentista, destacaram a perna dilacerada, a materialidade do cadafalso ou a fragmentação do corpo, refletindo sobre seu próprio tempo, sobre a violência e a fragilidade dos heróis.

Segundo as crônicas, antes de ser esquartejado, foi o Tiradentes enforcado, e a cabeça que ali está, não mostra os efeitos anteriores ao corte, as contrações nervosas, ocasionadas pela estrangulação. O Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10/07/1893, p.1. 16 BAYER, Raymond. História da estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1979, p. 194. 17 Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello (18371918), foi um político influente do Partido Liberal, Presidente de várias províncias, Deputado Geral por São Paulo e Ministro do Império e da Guerra no Gabinete Saraiva, Conselheiro do Império com participação atuante na campanha abolicionista. Com a República, afastou-se da vida política, tornando-se professor de História Universal e de Geografia do Colégio Militar, diretor da Biblioteca Nacional e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em 1896, falecendo Raul Pompéia, sucedeulhe no ensino de Mitologia na Escola Nacional de Belas Artes, da qual se fez professor catedrático de História das Artes desde 1897. 18 Charles Ribeyrolles (1812-1860). Brasil Pitoresco. São Paulo: Livraria Martins, 1941, v. 1, p. 55. 19 Bellas-artes, Tiradentes suppliciado, Jornal do Brasil, 15/07/1893. 20 PARLAGRECO, Carlo. Bellas-artes, Tiradentes suppliciado, Jornal do Brasil, 15/07/1893. Grifos nossos. 21 Paul Souriau (1852-1925). Parlagreco refere-se à obra La Suggestion dans l’art Paris: F. Alcan, 1893. 22 Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), autor de Essais de psychologie contemporaine, études littéraires (publicado inicialmente em dois volumes: o primeiro, em 1883, e o segundo, em 1885). 23 Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 10/07/1893. p. l. 24 Tiradentes supliciado. Diário de Notícias. Rio de Janeiro: 18/08/1893. p. 1. 25 Coluna Pequenos Echos, assinada pelo pseudônimo S. Thomé. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, julho de 1893. 26 Aurélio de Figueiredo, Tiradentes no patíbulo, 1898. Óleo sobre tela, Palácio Pedro Ernesto, sede do Poder Legislativo do Município do Rio de Janeiro. 27 Como o descreve Frederico de Moraes: Na tela de Aurélio Figueiredo, Tiradentes veste uma túnica branca, tem barba e cabelos longos, em desalinho, testa larga e olha firmemente o horizonte. Ajoelhado junto a ele, o monge franciscano Raimundo da Anunciação Penaforte ergue o crucifixo e clama aos céus, enquanto o carrasco improvisado, de pele negra, cobre os olhos com as mãos, horrorizado. No céu voejam corvos, mas em primeiro plano, sob o cadafalso, aparece uma pomba branca. Toda a cena é “tomada” de baixo para cima, ganhando monumentalidade. Ou seja, Aurélio Figueiredo focaliza os minutos que antecedem o enforcamento. Tiradentes está vivo, é ainda o homem Joaquim José da Silva Xavier, a caminho do mito, mas ainda não o mártir . MORAIS, Frederico. Tiradentes nas artes plásticas brasileiras. NEVES, José Alberto Pinho (coord.). Tiradentes. Brasilia, MEC, 1993. pp. 77-116.

Notas 1

Tiradentes esquartejado, 1893. Óleo sobre tela, 270 x 165 cm., Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora. 2 Géricault, Cabeças de supliciados, 1818-19 (Estocolmo, Nationalmuseum) – Géricault pintou vários quadros com cabeças, como também várias cópias foram feitas desses quadros por outros artistas-, Jacques-Raymont Brascassat, Tête de Fieschi, à Bicêtre (Musée Carnavalet), Denis Auguste Marie Raffet, Dois estudos da cabeça de um homem morto, 1833. 3 Conhecemos o quadro apenas pela reprodução contida na obra Tout l’oeuvre peint de Géricault, Paris: Flammarion, 1978, PL. XL B 4 ARASSE, Daniel. Le détail, pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris: Flamarion, 1996, p. 12. 5 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24/07/1893, p. 1. 6 DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção; artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/ 1985. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1989. p. 44. 7 SOMEL, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24/07/1893, p. 1. 8 OLIVEIRA, J.M. Cardoso de. Pedro Américo sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 178. 9 LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, São Paulo: Ed. Iluminuras, 1998. (1766). 10 Pedro Americo à obra de Lessing se refere em: Considerações philosophicas sobre as Bellas-Artes entre os antigos, estudo sexto. Manuscrito, 1864, p. 119 e 121. Destacamos uma das passagens em que o cita: A bela expressão de moral visível, aplicada por Lessing à escultura antiga, convém, pois, perfeitamente a essa arte dos gregos, em que, apesar de nua, a humanidade aparece debaixo da sua mais agradável fisionomia, corrigida, enobrecida e divinizada, como se lhe fora dado celebrar na terra as divinas somnidades de sua gloriosa apoteose! Esse manuscrito fora ofertado pelo autor ao Imperador, D. Pedro II. Museu Imperial de Petrópolis, Arquivo Histórico, Doc. 6622 –M.135. 11 BAYER, Raymond. História da estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1979, p.174. Grifos nossos. 12 O Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 10/07/1893. p.1. Grifos nossos. 13 Sobre a série ver: As fontes literárias da narrativa de Pedro Américo sobre a Conjuração Mineira. BORGES, Célia Maia (org.). Narrativas e imagens. Juiz de Fora: EDUFJF, 2006, pp. 13-38. 14 O Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 11/07/1893. p.1.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Quando chegam ao Rio de Janeiro em 1816, os artistas Jean Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay vêm acompanhados de epítetos que bem definem seu papel no Novo Mundo: o primeiro é nomeado “pintor de história e decoração”, enquanto o segundo, vem como “representante do Instituto de França” e deveria se dedicar ao gênero da paisagem. Na recém convertida capital do Império luso, Debret cumpriria, portanto, a tarefa de representar oficialmente a realeza, fornecendo-lhe, igualmente, um cenário mais adequado, mais “civilizado”, mais de acordo com os valores estéticos europeus. Taunay, por sua vez, traria sua autoridade de artista acadêmico, contribuindo especialmente para a fundação da pretendida Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. A participação desses artistas no sistema acadêmico francês era ponto central na argumentação a favor de sua vinda ao Brasil. A ponto eclipsar o fato de terem trabalhado diretamente para Napoleão – inimigo de Portugal –, apesar dos protestos veementes por parte do cônsul francês no Rio ao monarca luso. A despeito disso e levando em conta que os ventos já não sopravam tão favoravelmente para Bonaparte, o que parecia contar acima de tudo era justamente o fato de que traziam na valise uma arte neoclássica acostumada a buscar na Antigüidade os rastros das glórias perdidas e os modelos de virtude. Estavam habituados também a guardar uma certa hierarquia de gêneros artísticos, estando a pintura histórica acima das demais e sendo seguida pelos retratos, a paisagem, a natureza morta e a pintura de gênero. Conheciam, por fim, os rigores da estrutura acadêmica francesa, imbatível na sua tentativa de dar rigor e centralizar as artes. (SCHWARCZ, 2003: 16)

taunay e debret: pintura e história nos trópicos vera beatriz siqueira *

Essa combinação de domínio formal neoclássico com uma estrutura rígida e centralizadora era essencial para os planos do então príncipe regente. A hierarquia dos gêneros pictóricos era um dos fundamentos de todo esse sistema, devendo se repetir na Escola a ser fundada no Rio. Mas o que vemos é que essa hierarquia, que no século XVII assumia a autoridade do dogma, como nas Conferências de André Félibien, cerca de vinte anos após a fundação da Academia francesa, na virada dos séculos XVIII e XIX, desempenhava cada vez mais um papel conservador, de manutenção da própria estrutura de poder acadêmico. Já desde meados dos setecentos, vários artistas e críticos começam a questionar não apenas essa hierarquização, mas também a própria definição dos gêneros artísticos, propondo uma fusão de suas qualidades.

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Taunay e Debret: pintura e história nos trópicos

É o caso de Denis Diderot, em um de seus textos críticos, que chega a sugerir a superioridade da pintura de natureza-morta ou de gênero quanto à representação de elementos particulares e verdadeiros. Segundo ele, por ser basicamente uma arte imaginativa, a pintura histórica corria o risco de não parecer verossímil ou de ser fria e distante. O antídoto seria, portanto, a pintura de pequenas cenas ou dados particulares de cenário, capazes de nos aproximar da imagem apresentada; a fidelidade na representação dos pormenores ou cenas secundárias concederia verdade à narrativa: “Ah!, se um sacrifício, uma batalha, um triunfo, uma cena pública pudessem ser apresentados com a mesma verdade, em todos os seus detalhes, quanto uma cena de Greuze e de Chardin!” (DIDEROT, 1766: 83). Vemos aí a conjunção de dois sentidos de verdade: por um lado, a verossimilhança, por outro, o apelo moral de algo realmente sentido ou experimentado.

Jacques-Louis David assume na Academia francesa, depois de sua célebre representação de Marat assassinado (óleo/tela, 1793). Mas mesmo essa autoridade davidiana não se construiu de forma unânime. David era um jacobino, tendo se destacado como coreógrafo de massa da seção do Museu, durante o período da Convenção, e sua posição na Academia oscilava de acordo com as incertezas revolucionárias. O próprio Taunay sustentava desconfianças com relação ao seu papel de líder da Academia. Desde que o encontrara em Roma – para onde foi como pensionista da Academia francesa em 1784 –, recusava-se a adotar seu classicismo rígido, que preconizava o retorno aos modelos da Antigüidade e do Renascimento, encontrando na pintura de paisagem (gênero francamente desprezado por David) a possibilidade de desenvolvimento do seu estilo pessoal. Ironicamente, será chamado de “David dos pequenos quadros”, pelo crítico e admirador Charles Blanc. Debret, por sua vez, aparentado a David, submete-se a sua influência direta, trabalha no seu ateliê parisiense desde 1768 e viaja com ele à Itália, entre 1784 e 1785. Muitas de suas obras do período mostram a proximidade temática e plástica com as pinturas do primo mais velho. Após o retorno a Paris, Debret estuda na Academia e dirige o ateliê dos alunos de David.

Diderot não está só nesse debate. O artista acadêmico Charles Nicolas Cochin – gravador aceito por aclamação pela Academia francesa após voltar da Itália, em 1751 –, em seus Discursos de Rouen (1777), defende a fusão dos gêneros pictóricos. Chega mesmo a dizer que não se devia mais separá-los. Usa o exemplo das “grandes escolas italianas”, nas quais o “pintor era tão competente no retrato quanto em tudo que se propunha a pintar”, como base para o seu conselho de praticar todos os gêneros. E adverte: “com a separação que ocorreu em nossas escolas, seguiuse que o pintor de história passaria a se contentar com o ‘quase’, nem sempre sendo capaz de representar as coisas em detalhe, enquanto o pintor de retratos se entregaria, muitas vezes, a detalhes extremamente minuciosos”, tornando-se paulatinamente “impossibilitado de abordar temas históricos”. Para evitar o risco de cair num estilo precioso e fácil, de um lado, ou na execução muito ampla e fria, de outro, o pintor deveria retomar a capacidade de circular livremente entre os gêneros. Afinal, conclui, se os “grandes pintores, que fizeram a glória da Itália, são mais notáveis do que nós na execução, é porque eram melhores pintores de gênero, e em todos os gêneros” (COCHIN, 1777: 103-5).

De qualquer maneira, a hegemonia davidiana não significou a adoção de uma concepção única da pintura histórica. Mesmo David mostrava diferentes (e antagônicas) visões sobre o que seria “histórico” em seu Marat assassinado e em sua cena da coroação de Napoleão. Ambas diversas, por sua vez, da idéia apresentada por Taunay em seu quadro O exterior de um hospital militar, exibido no Salão de 1798, no Palácio de Versalhes. Neste, a escolha do tema e as opções formais apontam para um classicismo moralista. Da ambiciosa campanha militar de Bonaparte na Itália, consolidação do seu poderio no Mediterrâneo, o artista escolhe um momento particular, no qual uma charrete traz feridos de guerra para um hospital militar. Cabe lembrar que Taunay não acompanhou a campanha napoleônica. Sua imagem, portanto, como na maioria das cenas históricas, tem origem imaginativa, ainda que submetida às rígidas convenções e ao forte controle bonapartista. As anotações que faz durante sua estada na Itália, os croquis que recebe para basear suas composições, bem como a minudência descritiva das cenas que aparecem na tela, ajudam na formulação de uma imagem plausível. Numa praça italiana, mais de cem figuras são articuladas em ocupações mais

Descontado o tom polêmico dos discursos – proferidos num momento em que Cochin foi sendo colocado de lado na Academia Real, razão pela qual assume um posto na Academia em Rouen –, ainda assim podemos ver como a unidade discursiva das Belas Artes vinha sendo fraturada. O privilégio da pintura histórica é inegável, especialmente a partir da proeminência que 415

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ou menos corriqueiras: do transporte dos feridos para o hospital de campanha ao descanso dos soldados sob a sombra da árvore, da faina dos que se ocupam com os lençóis no terraço à mãe que carrega um filho no colo e outro na mão, sem falar nos cachorros que observam os feridos ou naquele que se deita no chão da praça, no primeiro plano.

forçado a povoá-lo com um exagerado número de figuras, sobretudo tendo em vista as grandes proporções da tela. [...] Enfraquecida pela ausência de uma ordenação que coordene e dê sentido às partes da tela, a cena aparece meio solta, incapaz de estabelecer vínculos entre passado e futuro. O que se queria modelo reverte então novamente ao episódio. (NAVES, 1996 : 56).

Taunay consegue conjugar essas cenas triviais à disciplina formal e moral, destacando virtudes como equilíbrio, retidão, dignidade humana, generosidade e graciosidade. A abundância de detalhes e figuras, de escorços e arquiteturas solenes aponta para a confluência de ideal clássico e gosto típico do século XVIII. A veracidade de seu pincel está na fusão de guerra e drama doméstico, referindo-se ao momento em que soldados franceses e cidadãos italianos se unem em torno de ideais humanitários. Assim, como dizia Diderot, “nos mostrando coisas mais conhecidas e mais familiares, tem mais e melhores juízes” (DIDEROT, 1766: 88). Pela fusão de gêneros pictóricos, a tela combina elevação moral e proximidade sentimental.

Este era um dos problemas centrais da pintura histórica desenvolvida durante a Revolução Francesa. Na passagem de uma pintura que reverenciava, como modelos de ação, fatos históricos do passado clássico (mais especificamente romanos) para uma representação de fatos contemporâneos, precisava lidar com uma de suas muitas contradições: como construir o valor “histórico” de um acontecimento recente? Em seus melhores momentos, como o Marat assassinado, de David, a pintura combinou instantaneidade com eternidade. Marat acabou de ser esfaqueado, mas já morreu há séculos, confirmando o destino heróico do mártir da história. Para o historiador T. J. Clark, essa obra de David é a primeira pintura modernista, justamente por enfrentar este que seria o dilema de toda a arte na modernidade: lidar com as circunstâncias, deixar-se subjugar pela contingência, na impossibilidade da transcendência (CLARK, 2007 : 106). Debret e Taunay, cada qual a seu modo, também deixam-se subjugar pelas circunstâncias: primeiro na própria França, onde pintam cenas napoleônicas; depois no Brasil, onde aportam com seus esquemas culturais e estéticos, com funções precisas de representação do Mundo Novo e encontram-se diante de uma realidade inédita. Aqui, parecem ver justamente na confluência dos gêneros, na fusão da pintura histórica com o particularismo e a parcialidade das cenas menores e da paisagem, a possibilidade de ceder às contingências sem comprometer os princípios de sua arte.

As telas napoleônicas de Debret também sustentam, em outro tom, essa moralidade clássica. Em sua grande maioria, pertencem à tradição de pinturas que buscam construir a idéia do Imperador como um herói humanitário. Em Napoleão presta homenagem à coragem infeliz, apresentada ao Salão de 1805, que trata da mesma campanha militar na Itália, um comboio de soldados austríacos feridos é surpreendido pelo gesto magnânimo de Bonaparte, que ergue o chapéu e reconhece a honra da coragem dos inimigos. Novamente, os valores universais, humanitários, são a tônica discursiva. Entretanto, as diferenças são igualmente grandes. Na obra de Debret – cuja formação artística se deu diretamente sob a influência de David – a composição se divide entre as duas tropas rivais, uma engrandecida pela vitória e pelo altruísmo, a outra sombreada pela debilidade física e moral. A cidade italiana ao fundo, sobre uma colina, comparece apenas como cenário possível, um elemento circunstancial que deveria situar o evento contemporâneo.

História e natureza A glória da pintura histórica passava a conviver, desde o final do século XVIII, com uma série de defesas de um gênero até então menosprezado: a paisagem. A disseminação do hábito cultural das viagens contribui para esse novo interesse pelo elemento característico, particular da natureza. Idéias filosóficas, especialmente românticas, também encontram na natureza um objeto de representação destacado, fonte de estímulos a experiências morais e sentimentais. A partir de Jean-Jacques Rousseau, o moralismo didático do estilo clássico vai assumir tons cada vez mais sentimentais, e a vida rural, próxima da natureza,

Curiosamente, a composição de Taunay, muito mais variada e descentralizada, espalhando-se em pequenas cenas, alcança uma ordenação formal e moral mais impregnante, ainda que diversa da pintura histórica difundida pela Academia durante o período bonapartista. A centralidade da figura de Napoleão, em Debret, não parece conseguir se difundir pela tela. Como já analisou Rodrigo Naves: “Na ausência de uma ordenação que de fato articule a totalidade do quadro, Debret se vê 416

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vai ser associada a elevados valores morais: a grandeza da simplicidade, a beleza da ingenuidade, a altivez estóica do homem rude. Mas também Hegel chega a admirar a natureza-morta e as cenas de gênero flamengas, pois encontra naquela representação da “prosaica realidade”, uma aparência criada pelo espírito, “um milagre de idealidade”, uma elevada ironia romântica, que retira das coisas o seu sentido material, acanhado, de objetos reais, para transformá-las em abstrações, uma “aparência ideal” oferecida “à contemplação puramente teórica” (HEGEL, 1835: 109). Assim concebida, a pintura de gênero ou a natureza-morta ganhava inusitada elevação espiritual no sistema das artes hegeliano, não por sua fidelidade ao natural, mas pelo dado especulativo e abstrato que implica a passagem do real à imagem pintada: “a representação deve aqui parecer natural; mas o que, do ponto de vista formal, constitui o poético e o ideal não é o natural como tal, mas o ato que reduz a nada a materialidade sensível e as condições exteriores” (Id.,1835 : 110).

uma história a ser escrita, uma terra inédita – tudo isso mobilizava o valor ético e sentimental da própria missão artística a ser realizada. Debret, em sua Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, livro publicado após seu retorno à França, repetidamente definiu seu trabalho como uma coleção, como uma “lembrança” sua aos artistas franceses, pintores de paisagem e de história que procuram assuntos inéditos nas descrições do Novo Mundo: “tive à minha disposição todos os documentos relativos aos usos e costumes do novo país que eu habitava e que constituíram o ponto de partida de minha coleção”; “tive a oportunidade de manter, constantemente, por intermédio de meus alunos, relações diretas com as regiões mais interessantes do Brasil, relações que me permitiram obter, em abundância, os documentos necessários ao complemento de minha coleção já iniciada”; “O acaso levou-me assim a iniciar, no centro de uma capital civilizada, essa coleção particular dos selvagens”; “Essa lembrança é uma coleção de desenhos versando especialmente a vegetação e o caráter das florestas virgens do Brasil”. (DEBRET, 1978: 27 e 347)

Todo esse quadro teórico está no horizonte do processo de valorização da pintura de paisagem. Não podemos, entretanto, deixar de mencionar uma circunstância histórica especialmente relevante. Ao estender seu domínio sobre a Holanda, o império napoleônico possibilitou a incorporação da Escola de Arte Holandesa, que privilegiava a pintura de paisagem, ao sistema acadêmico francês. A partir de então, vemos a presença destacada de pintores de paisagem na Academia de França. A ponto de, em 1815, o seu então diretor Lebreton – futuro líder da Missão Artística Francesa no Brasil – sugerir a instituição de uma competição trienal de pintura de paisagem, aos moldes do que era feito na Holanda. Buscou-se, é verdade, reduzir o impacto dessa pintura de paisagem na Academia, limitando seu interesse à “paisagem histórica”, ou seja, valorizando menos o naturalismo ou o pitoresco do que a idealidade dos cenários solenes, geralmente relacionados à Antigüidade clássica. Mas a crescente popularidade e institucionalização desse gênero é um dado importante a ser considerado.

Numa das obras que envia do Brasil ao seu irmão, o arquiteto F. Debret, o artista reúne essa coleção de figuras numa natureza-morta bastante curiosa. Atualmente no museu Magnin de Dijon, a tela As frutas do Novo Mundo, feita no Rio em 1822, confirma o destino colecionista das suas imagens. Sobre uma mesa se espalham vários frutos brasileiros, combinando preocupação descritiva com um arranjo decorativo luxuriante. Alguns toques de representação botânica – como a apresentação do fruto simultaneamente fechado e aberto, mostrando suas sementes – conciliam-se com recursos acadêmicos característicos da tradição das naturezas-mortas – tais como o caule cortado da folha de bananeira que se projeta à frente do limite da mesa, a cana, cuja linha diagonal, cria a distância necessária para o arranjo, ou ainda a verticalidade do bulbo do cacho de bananas, que faz nosso olhar voltar para o conjunto das frutas. Sem a austeridade do gênero desenvolvido por Chardin, a natureza morta de Debret combina a fidelidade descritiva ao mito romântico da fartura natural de uma terra ainda desconhecida. Lembremos que o Brasil começa a ser mais conhecido do público europeu apenas a partir de 1830, com a publicação dos primeiros livros e atlas de viajantes, sendo visto, no período da chegada

Especialmente quando tentamos compreender as obras desses artistas “missionários” vindos ao Brasil. A própria viagem aos trópicos não deixa de participar desse quadro de referências culturais, sendo compreendida por Debret e Taunay, cada qual a seu modo, como um refúgio provisório, bem como um acréscimo de experiência importante para seus antigos esquemas representativos. Um novo contexto objetivo, novas situações de paisagem, 417

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da Missão Artística Francesa como um lugar exótico, formado por florestas virgens e indígenas seminus, visão que Debret parece endossar.

Afinal, fazer história do Brasil seria fazer a história dessa natureza. Na incorporação das contingências históricas do país, os dados da natureza e da cultura tropical são essenciais. A questão da existência desse Novo Mundo era basicamente um problema de representação, no qual os gêneros de história e paisagem se fundiam. Muitas vezes, as imagens de divulgação desse mundo se impunham sobre a realidade, a ponto de ter gerado mal entendidos acerca da veracidade das pinturas de Taunay, por exemplo. Lilia Moritz Schwarcz, em dois de seus textos, refere-se a esse “mal entendido” cultural: “Ninguém compreendia o colorido das ‘vistas da América’: os tons rubros incandescentes, os verdes e azuis ofuscantes, os amarelos ferozes tão distantes das escalas cromáticas dos holandeses” (SCHWARCZ, 2003: 40). Ou ainda: “O que via como realidade era compreendido, nos salons de Paris, como excesso; o que admirava na etnografia passava por fantasia sem chão”.(Id., 2004).

Taunay também se insere, de outra maneira, nesse problema da coleção. Ao chegar ao Brasil, encontra algumas dificuldades de lidar com esse novo quadro objetivo. E resume todos os seus dilemas com a interrogação: “Como prender o sol dos trópicos, que rouba o tempo e insiste em correr?” (Apud SCHWARCZ, 2005: 132). O pôr do sol, que na Europa tem duração longa, tingindo com tons avermelhados o horizonte por várias horas, é, no Rio, acontecimento breve. Em alguns minutos o sol se esconde e cai a noite súbita. Da luz intensa passa-se à escuridão, formas polares de turvamento da visão. O pintor, acostumado à regra paisagística de escolher um momento em que cada elemento da natureza reflita o mesmo tom, precisa se refugiar exatamente nos instantes fugidios em que o sol fornece uma luz menos ofuscante. Como fazer para prender o tempo abreviado? Como fazer para que a fidelidade descritiva consiga se realizar quando não há a possibilidade de maturação da experiência?

O problema do excesso de realidade era, a rigor, intrínseco à pintura histórica e a seu compromisso com a veracidade. De variadas formas os pintores tentavam compensar o realismo excessivo. David teria, segundo T. J. Clark, transposto o domínio da pura materialidade retirando do corpo de Marat assassinado “todos os detalhes confusos de seu martírio, todo o desalinho da cena”, apresentandoo como uma generalidade (CLARK, 2007:132). Além disso, contrabalançava, na tela, a insistência na caracterização dos objetos (banheira, carta, pena, faca, tinteiro, caixote etc.) com o vazio aparente da metade superior, na qual a pintura se representa como pura atividade. O historiador italiano Giulio Carlo Argan também teria visto nessa parede vazia ao fundo a passagem da vida para a morte, da realidade ao nada, numa transfiguração histórica e não sublime (ARGAN, 1992: 44). Mas podemos citar outros pintores de história, como Géricault, em A jangada da Medusa (óleo/tela, 1818), cujo realismo o faz apropriar-se de um fato preciso – o naufrágio de uma fragata francesa e o abandono da tripulação à própria sorte na costa africana –, investigando-o minuciosamente, para que, ao final, como resultado de uma composição profundamente clássica, seja capaz de imantar toda a obra e ameaçar toda a humanidade, com um senso superior de tragédia, quase mitológica. Ou ainda Delacroix, em sua tela célebre A liberdade guiando o povo (1830), na qual o impulso de caracterização social dos personagens (o povo envolvido na insurreição de julho de 1830, que põe fim à monarquia dos Bourbon) se funde com a figura alegórica da Liberdade.

Uma das estratégias adotadas pelo artista é a repetição de elementos, a formação de uma coleção de dados típicos que, ao se repetirem, dariam conta da caracterização do particular. Há em suas paisagens cariocas a recorrência a certos elementos: palmeiras, animais, barcos, igrejas, religiosos, casas brancas com telhados cor de tijolo, montanhas, negros, homens e mulheres da corte, luz de fim de tarde, caminhos interrompidos. Tudo formava uma espécie de repertório iconográfico que, ao mesmo tempo em que correspondia ao real, criava um teatro em miniatura. Dispondo desses elementos típicos, Taunay resolve o problema da descrição verossímil. O fato de vir a utilizar alguns dos dados paisagísticos brasileiros em cenas religiosas como Predicação de são João Batista, enviada do Rio para o salão de 1819, e Moisés salvo das águas, pintada após seu retorno à França e exposta no salão de 1827, confirma essa estratégia de utilizar a coleção de dados particulares para acrescentar veracidade à narrativa, no caso bíblica. Tudo isso nos mostra como a representação da natureza vai assumindo um sentido quase etnográfico, de descrição de um mundo “selvagem”, no qual entram em jogo tanto as características particulares desse mundo quanto os esquemas representativos acadêmicos. No caso brasileiro – diante dessa natureza sem história, de acordo com o entendimento da época – a fusão dos gêneros dos debates acadêmicos ganhava nova direção. 418

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A pintura histórica, portanto, vive nesse início do século XIX uma situação peculiar: mantém-se no posto principal da hierarquia dos gêneros acadêmicos, imersa, porém, em suas contradições. Em solo pátrio, essa contradição ganhou, por vezes, o sentido de um contra-senso. As decorações que Debret fez para a coroação de d. João VI, por exemplo, mostram essa disparidade entre o fato e o seu sentido histórico. A exuberância quase bizarra de seus arcos de triunfo, fachadas falsas, obeliscos e templos consagrados a figuras mitológicas não conseguiam camuflar o vazio dessas alegorias numa cidade que, apesar de ser a sede da monarquia lusa, sustentava sua condição de colônia. Poderíamos colocar esse exagero decorativo na conta da ausência de familiaridade de Debret com a vida no Brasil. Afinal, ele e Grandjean de Montigny foram encarregados de coreografar a aclamação tão logo desembarcaram por aqui (a rainha d. Maria I falecera pouco tempo antes da chegada dos artistas franceses).

frente. Ao fundo, quadros pendurados em todo espaço vago de parede e livros e pranchas guardadas num suporte de madeira. Apesar da fonte luminosa que ilumina a tela frontalmente, advinda de uma abertura à esquerda e da porta semi-aberta à direita, o espaço é nitidamente fechado e, mais particularmente, fechado em si mesmo. Podemos ver aí uma interessante combinação de realismo e imaginação pictórica. Pois parece que cada detalhe do quadro evoca uma ausência. Na realidade a obra é a soma de várias faltas, entre as quais se destacam as ausências dos dois personagens envolvidos na cena: o retratado e o retratista. É recurso comum aos pintores de retrato o uso de manequins como modelos, especialmente para o corpo do retratado, deixando para o contato direto com a pessoa o registro das expressões fisionômicas. Entretanto, nessa pequena aquarela, sua presença serve para reforçar esse discurso sobre a falta. As suas características de imobilismo e inexpressividade irão fundir-se à desolação e precariedade das instalações e à presença flagrante de uma ausência fundamental: o próprio artista. Os quadros pendurados, a tela inacabada, o manequim, os instrumentos de pintura, afirmam a centralidade desse artista que, entretanto, não aparece. A figuração de uma ausência anuncia e fornece as condições para a sua própria existência.

Mas mesmo nas pinturas que faz mais tarde, após convívio cotidiano com o Brasil, como na Coroação de d. Pedro I (óleo/tela, 1828), não consegue esconder essa disparidade. Diferente de d. João VI, cuja figura discreta lembrava sempre a decisão pouco heróica de fugir de Napoleão, a de seu filho podia ser insuflada com novo idealismo, devido a opção em aqui permanecer e capitanear a independência. Debret escolheu uma perspectiva mais ampla, com o monarca visto de lado, em comparação com a perspectiva frontal e rígida que havia escolhido para a Aclamação de d. João VI. É visível a influência da tela da coroação de Napoleão, de seu primo David (Coroação do Imperador e da Imperatriz, 1805-7). Porém, paradoxalmente, a grandiosidade, combinada com as figuras gggubhormam a caracterização dos personagens presentes na cena, bem como do cenário em que esta acontece, numa espécie de índice da estranheza da situação. A descrição realista não encontra um sentido histórico maior e se perde em sua própria artificialidade.

Já nesse momento inicial de contato com o Brasil, o futuro professor de pintura histórica da Academia parece sentir o peso da ausência de um fundamento cultural para a sua ação. Ao se deixar invadir pelas circunstâncias, pelas contingências de uma cidade marcada pelas contradições, Debret manifesta o traço cultural do abandono e da rejeição. Sua visão de história vai ser formada por essa sensação de “exílio às avessas”, nas palavras de Rafael Cardoso (CARDOSO, 2003: 31). O recolhimento se vê nas aquarelas que faz livremente pelo Brasil, sempre retratando cantos urbanos, pequenas cenas, particularidades que, contudo, jamais alcançam o sentido típico.

Debret manifesta claramente esse problema da discrepância entre realidade e sentido nas suas aquarelas. Vejamos, por exemplo, a obra Meu ateliê do Catumbi, no Rio de Janeiro (aquarela, 1816), feita alguns meses depois de chegar ao Brasil e enviada para o irmão, na França. Na representação de seu ateliê, o príncipe regente d. João VI é evocado através de um manequim agigantado, uniformizado, que serve de modelo para o retrato que está sendo pintado. A tela, apoiada precariamente sobre uma cadeira e amarrada pelo chassi em um móvel, inclina-se levemente para

Registros Taunay, por sua vez, escolhe um exílio dentro do próprio exílio. Um ano após chegar por aqui, reconhece o “retardo cultural do Brasil, que estaria ainda submetido ao domínio religioso e longe da influência do espírito das Luzes” (Apud SCHWARCZ, 2003: 35). Decide habitar ao lado da cascatinha da Floresta da Tijuca que, mais tarde, irá herdar seu nome. Possui razões econômicas para essa escolha: pretende cultivar café. Mas isso não elimina – ou antes, reforça – a percepção da 419

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mesma ausência de base cultural para sua profissão. Recolher-se na natureza, contudo, significava admitir, simultaneamente, o fracasso de seu discurso e a possibilidade (ainda que fugidia) de sustentá-lo. Toda aquela mitologia da pintura de paisagem – a imagem do pintor diante de seu cavalete, ao ar livre, de posse de seus instrumentos particulares, devotado à seleção de um motivo e à sua representação pitoresca – ancorava-se numa longa experiência cultural de conversão da natureza em paisagem.

a descrição objetiva não chega a dominar, pois a composição pictórica é cuidadosamente calculada. Dessa forma, os leves toques de cor local não chegam a contrariar os princípios formais europeus, desde que se mantenham apartados de aspectos mais ameaçadores da natureza ou da cultura tropical. Esta parece ser a qualidade específica da pintura de Taunay: a insistência em fazer identificar a busca da verdade da experiência nos trópicos ao compromisso moral com os padrões acadêmicos. Afinal, a sua vivência em terras brasileiras só poderia ser verdadeira se fosse a prova, a um só tempo, da realidade exterior e de seus princípios formais e morais. Se a opção por flexibilizar os valores plásticos acadêmicos não lhe parece válida, tampouco o mero registro lhe interessa. A solução será afirmar uma verdade de fundo moral sobre a veracidade descritiva. Pois só assim a verdade deixaria de ser uma ilusão, uma simples hipótese construída pela pintura de dados particulares de uma cultura estranha, para se tornar existência e memória.

Diante de sua falta, o seu retrato na Floresta da Tijuca, ladeado por dois de seus escravos, buscando representar uma palmeira, ganhou sentido peculiar. Muitos já analisaram a sua pintura da Cascatinha da Tijuca. Houve quem chamasse atenção para o aspecto diminuto da figura do pintor diante da pujança natural. Houve quem notasse a presença dos escravos admirando o ofício do pintor, numa reflexão sobre a presença do trabalho artístico numa sociedade escravocrata. Houve quem visse na tela a representação de seu esforço em representar o mundo inédito dos trópicos com os procedimentos artísticos europeus. Tudo isso mostra como Taunay precisava realizar certos deslocamentos de sentido para dotar a natureza tropical de sentimento moral. Ela não era fonte de sentimentos líricos, nem arquitetura solene para ações grandiosas, tampouco a manifestação concreta da Arcádia.

Nesse sentido, difere da opção de Debret por uma forma capaz de incorporar algo característico da cultura carioca, como afirma Rodrigo Naves, levando-o inclusive a abrir mão de alguns de seus esquemas neoclássicos para poder melhor retratar uma realidade estranha e adversa. A longa convivência do artista com a cidade do Rio leva-o a buscar, nas aquarelas que faz de forma livre, um registro mais fiel que acaba por desafiar as regras da pintura acadêmica. A começar pela própria mitologia do ateliê. Fazendo breves anotações diretas, agachado no chão, ou enfrentando a precariedade de seu próprio ambiente de trabalho (comparável à precariedade do gabinete do cientista, que também retrata), cria imagens que parecem requerer, em sua contemplação, o próprio esquecimento de sua artesania original. Ou melhor, estabelecem uma relação bifronte com o artesanato: de um lado, remetem ao trabalho prévio, ao esboço, aos croquis que serão retrabalhados nas gravuras que virá a publicar; de outro, enfatizam o registro, a recolha e a consignação da realidade, fazendo-nos identificar esse mundo e dificultando nosso acesso a seus procedimentos formais.

A sombrinha aberta pousada no chão é elemento pitoresco a evocar a luz que se põe. Assim como os toques quentes de vermelho nas roupas do pintor e do escravo e nos reflexos luminosos da parte baixa do rochedo. Uma massa vegetal escura e densa interrompe a continuidade entre a cena do primeiro plano e a cascata. Montanhas azuladas ao fundo conferem grandeza e absorvem a atmosfera iluminada pelo sol. A unir os planos da tela, a silhueta diminuta de um homem montado num burro, possivelmente um tropeiro, acompanhado por outro, certamente um escravo, a pé, cujo movimento recoloca distância e morosidade na articulação espacial. Na realidade, nada nas figuras desses negros ou daqueles que aparecem junto ao pintor os identifica à prática social da escravidão. Ao contrário, estes últimos estão postados placidamente ao seu lado; apreciando a tela a sua frente, agem como seus espectadores. A sua simples presença ao lado do artista, que deveria evocar a submissão, é transfigurada numa sorte curiosa de alegoria do público e do destino social da arte. Se a floresta, a luminosidade e alguns elementos pitorescos ajudam a criar uma sensação de verossimilhança,

A idéia de que aquelas imagens seriam recriações literais do Novo Mundo, faz parte da ficção que mobiliza Debret: de que ele teria reunido uma coleção significativa de paisagens, flora, tipos humanos, cidades, que, ao ser contemplada pelo público europeu, seria capaz de produzir o contato indireto com o outro, com a alteridade (o que a 420

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combinação com legendas e textos explicativos reforça ainda mais). Mais do que o tema, a História é o princípio metodológico de leitura dessas obras. Apenas ela é capaz de criar os vínculos entre memória e verdade, fundamentais para que as imagens de Debret assumam a sua significação cultural. Mesmo as aquarelas menos pretensiosas – aqueles registros breves e quase inconseqüentes de elementos prosaicos – acabaram tornando-se um discurso histórico relevante, especialmente por sua autoridade de registros fidedignos de um mundo remoto.

Na tela encontramos dados característicos de sua obra. A começar pela escolha do tema: a realeza vista em ação banal de deslocamento a partir do palácio na Quinta da Boa Vista. Depois, a seleção desse trecho de paisagem, um ambiente intermediário, entre o urbano e o rural, tomado a partir de um ponto de vista elevado que, embora mais largo do que suas usuais vistas, impõe uma escala diminuta para as figuras e nos faz percebêlas como em um único golpe de vista. Estas se ordenam em pequenas cenas, nas quais a estranheza advém de sua trivialidade ou indeterminação. Sem uma ação central, histórica e moralmente impregnante, a narrativa multiplicase em ações que se dobram sobre si mesmas e criam aquela circularidade que se repete no espaço pictórico. E não podemos deixar de mencionar a opção pelo instante de sol baixo, com sombras pronunciadas, figuras em contraluz, reflexos alaranjados e pinceladas de branco que se espraiam nas águas, nas lâminas dos sabres, na aba dos chapéus ou nas rodas da carruagem, configurando a experiência sensível da luz.

Para Taunay, entretanto, que por aqui fica bem menos tempo, a História vai ganhar outro sentido. Associa-se a um valor ético que, no Brasil, o artista irá encontrar apenas na natureza. E numa natureza que, ao ser representada, deixasse de ser um acúmulo de elementos reais para adquirir essa dimensão moral e sentimental, combinando realismo e sentimento moral. A paisagem carioca, a princípio, poderia ser vista como ideal para essa representação. Até o fato de ser pouco conhecida dos seus conterrâneos o ajudaria nessa tarefa, transformando-a não em fato presente, mas em recordação ou rememoração. Assim, sua paisagem seria “histórica”, como sempre frisou o artista – que gostava de se autodefinir como um “pintor de paisagem histórica” –, não por seu mero realismo, e sim por sua capacidade de se desvincular das circunstâncias e se colocar num mundo perpetuamente distante e diverso, ainda que presente.

Para fazer corresponder imagem e sentimento, Taunay precisa dedicar-se à representação da vagueza e indeterminação da nossa realidade. A veracidade da cena não é, portanto, de ordem objetiva e sim correspondência sensível com a experiência do real. Suas imagens não pretendem oferecer respostas à curiosidade européia sobre os trópicos, mas sim evocar o caráter existencial de seu contato com esse mundo inédito. Daí a opção por não nos oferecer nem a natureza exuberante, nem a violência plástica ou histórica. Se ele cedesse aos dados peculiares da natureza e da cultura dos trópicos, não apenas teria que abrir mão de seus princípios morais e estéticos como também sua obra perderia a potência figurativa que veio a adquirir. Se ainda hoje incluímos as suas pinturas na imagem geral que fazemos do Brasil ou do Rio – apesar de seu aspecto sempre artificial – é porque Taunay dedicou-se a criar um registro capaz de transformar a memória e a vivência particular em existência pública, para todos, para o porvir.

Na pintura em que retrata a Passagem do Cortejo Real por uma ponte sobre o rio Maracanã (óleo/ tela, s/d), o artista se esforça para fazer coincidir realismo e composição pictórica, compensando o excesso de realidade com uma sensação pictórica de bucolismo, equilíbrio e diálogos sutis entre os elementos representados. A metade superior da tela é ocupada pelo céu com nuvens rosadas. Na metade inferior, toda a narrativa se desenvolve em cenas particulares e triviais: o cortejo segue pela ponte, à esquerda, com d. João e sua esposa conversando no interior da carruagem; no lado oposto, seis vacas pastando; no centro do rio, um barco transportando lenha, em escorço, cujos mastro e remo encarnam as principais linhas da perspectiva; um pouco atrás, outro barco, guiado por um negro, afasta-se da margem do rio, estabelecendo a relação de distância com o primeiro plano. Nessa última cena, um fato intriga: um homem da corte acena com seu chapéu para o barco, sem sabermos exatamente se o chama ou enxota.

* * * As imagens de Taunay e Debret revestem-se de grande potência figurativa e cultural. O último tornou-se, nas palavras do bibliófilo Rubens Borba de Moraes, “um símbolo”, “o padrão de uma época”, sendo transformado no objeto de desejo de todos os colecionadores brasileiros a partir da década de 1940 (MORAES, 1998: 58). O primeiro também encontra-se presente em todas as grandes coleções de Brasiliana, apesar de ter pintado 421

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

apenas 15 telas com temas brasileiros entre as 45 que produziu nos anos em que aqui ficou. E está colado à história da Floresta da Tijuca, nomeando a pitoresca Cascatinha ou participando do processo de exploração da floresta, que resultou em seu esgotamento e no posterior reflorestamento levado a cabo pelo Barão de Escragnole, e descrito poeticamente pelo Visconde de Taunay, ambos seus descendentes que por aqui ficaram.

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A despeito das divergências que separam as obras dos dois artistas, podemos dizer que a cidade do Rio de Janeiro deve muito a eles, assim como nossa história da arte. Se Debret nos fornece os elementos de uma urbanidade característica, de um tipo de sociabilidade muito peculiar, Taunay contribui para a instituição de um perfil urbano que inclui a natureza. Afinal, o Rio parece ser uma das raras cidades cuja imagem ainda hoje inclui, para além da silhueta dos prédios, o contorno dos morros, a curva da praia, o encontro de céu e mar. Se o primeiro forma vários artistas nacionais em sua atuação na Academia, o segundo deixa, com sua retirada rápida após a morte de Lebreton, o modelo de um comportamento artístico esquivo, de uma obra que se processa lateralmente e que insiste em se aproximar de forma não violenta de uma realidade nem sempre acolhedora. E se Debret gerou ao menos um estudo crítico que o aproxima de alguns dos problemas centrais da visualidade brasileira em A forma difícil de Rodrigo Naves, faltam ainda reflexões que entendam a pintura de paisagem que Taunay aqui realiza como parte de uma série histórica que o relacione, por exemplo, com alguns artistas modernos igualmente marcados por uma relação recatada e lírica com a natureza, como Pancetti ou Volpi. Tarefa cultural importante para futuros estudos históricos.

Notas Referências bibliográficas * Vera Beatriz Siqueira é doutora em História pelo IFCS/ UFRJ, professora de História da Arte no Instituto de Artes da UERJ, onde também é vice-diretora. Esta pesquisa integra o projeto Estilo e instituição: arte e cultura contemporânea no Brasil, vinculado ao Programa ProCiência (UERJ).

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capitulo 10 iconografia: cenas e tipos brasileiros

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O tema da cristandade nas representações de dois artistas viajantes que visitaram o Brasil no início do século XIX permite acompanharmos mais de perto a complexidade de um trançado cultural para a imaginária que identifica o país. Nesse contexto, a cidade do Rio de Janeiro será o alvo dos registros que divulgam o processo de transformação ativado desde a presença da Corte. Duas pesquisas realizadas separadamente, sobre temas similares, reafirmam a realidade distante da colônia, escravista, cuja cultura híbrida tornou o grupo social refém do imaginário da cristandade e do paradigma europeu. A análise das imagens de Debret presentes na obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil – que tratam do tema- é confrontada com a análise da imagem produzida por J.M.Rugendas – Família de Fazendeiros. O resultado do confronto é a afirmação de uma pesquisa pela outra e a reafirmação das evidências dos simulacros, dos valores simbólicos, dos códigos europeus e das interferências (sobreposição de universos simbólicos) no imaginário social. As imagens de Debret são contundentes no desnudamento da imaginário da cristandade sobreposta aos habitantes negros na cidade. A construção de Rugendas analisada é, do mesmo modo, importante, porque delata o espaço da Igreja no seio dos lares descrevendo seu autoritarismo e poder indiscutível. Vamos a elas!

o imaginário da cristandade no rio de janeiro do século xix nas pinturas de rugendas e debret heloisa pires lima e rosana ramalho de castro

A cristandade e os habitantes negros: representações debretianas Heloisa Pires Lima1 A cristandade é um dos eixos que organiza os assuntos que evidenciam os contornos de uma imagem política do país nos três volumes da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834-39), assinada por Jean Baptiste Debret. Exemplar é a forma como o autor integra os habitantes negros nas solenidades cristãs. Este é o aspecto que selecionamos para contribuir com a reflexão acerca da complexidade da produção imaginária de início do século XIX. Quem representa as virtudes? Pedintes das confrarias, devotos, a primeira missa do dia..., são alguns dos assuntos que traduzem o hábito da caridade cristã sugerido na obra. O testemunho do autor credita à prática da humildade, o que impõe a obrigação da coleta, sendo uma regra constitutiva mantida com severidade pelas paróquias do Rio de Janeiro. Mas a peculiaridade do relato aparece numa distinção envolvendo os personagens coletores referidos. Coletores da 425

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Observemos, ainda, que a “pessoa remediada” que se impõe “a mortificação de sair descalça” está acompanhada por um moço negro, elegantemente vestido e bem calçado. O negro elegante é um tipo que circula por entre as estampas. Sempre pertence a uma família rica, o que indica que a abastança das famílias é extensiva a alguns escravos. Nesse caso, o jovem negro, bem apresentado, realça mais ainda a condição de pedinte da moça. [136/ v. 3]

corporação seriam “homens salariados(...) cuja remuneração é proporcional ao produto da coleta” Caracterizados com sinais negativos, tratados como “especuladores”, que treinam para “exercer certo domínio sobre os transeuntes” e que saberiam como conseguir “acolhimento nas casas de gente rica e generosa”, além de buscar por “irmandades opulentas”. [134-5/v.3] O personagem, na verdade, é pretexto para o relator desenvolver outro tema: o da astúcia que, no “país novo, desenvolveu-se com a civilização”. Comentários que aludem à existência de “homens perversos” que agiriam sem remorsos valendo-se de “subterfúgios criminosos” informam o leitor sobre falsos pedintes. O “pedinte malandro vestido como o outro e arrecadando em seu benefício as esmolas destinadas ao santo patrão que finge servir” dá trabalho à polícia que num só dia teria prendido mais de vinte desses falsos pedintes no Rio de Janeiro.

O escravo bem tratado e impregnado de qualidades morais um dos elementos recorrentes para passar a idéia de uma escravidão cristã, enquanto argumento, fundamental nessa autoria. O fato de a moça ter um escravo não enfraquece seus atributos morais. Esta moral cristã não exclui ou recrimina a escravidão. A mensagem parece evidente: a população negra, mesmo idosa e pobre, pode ser protagonista da prática cristã da caridade. A outra personagem caridosa, embora pobre, é trabalhadora e tem a disposição de auxiliar os mais necessitados, enquanto a menina reforça a idéia da educação moral ser ministrada desde cedo.

O “vigarista” terá como contraponto a construção do tema sobre a “verdadeira humildade”, que “se nem sempre predomina no exercício dos deveres de uma confraria religiosa encontra-se, entretanto sempre fervorosa entre as pessoas da sociedade, no cumprimento da promessa bastante comum de oferecer à igreja uma missa paga com esmolas recolhidas nas ruas da cidade. ” [136/v.3]

Voltando ao “pedinte assalariado”, aquele que lucra com tal prática cristã, em novo trecho, Debret o define da seguinte maneira: “conhecido na cidade pelas suas facécias e que neste momento dá provas de presença de espírito, estendendo o guarda-chuva entreaberto para receber uma esmola jogada por uma senhora, da janela do sobrado”. Eis o não tão verdadeiro caridoso, revelado na prancha de nº 4 do terceiro volume, que concentra a fase final da linha de evolução iniciada no primeiro.

A sociedade que vai surgindo na redação, é dividida em classes sociais. Assim, a mulher da “classe abastada” e a moça da “classe indigente” serão as representantes da verdadeira caridade. Na opinião do autor, esta última classe não é menos caridosa no Brasil e “compõe-se em sua maioria de negros livres e pobres vivendo de seu trabalho mas sempre dispostos a auxiliar seus parentes menos afortunados ainda.”

Portanto, é por intermédio população negra que o autor estampa a moralidade cristã existente no país. Igrejas e mais igrejas

Acompanhemos agora o tratamento visual dado ao tema. A “litografia mostra no grupo do primeiro plano uma pedinte descalça, cujo traje revela tratar-se de pessoa remediada”. A moça, na história narrada pela estampa, fica frente a frente com o açougueiro, dito “comerciante em geral pouco estimado”, para mostrar o seu grau de sacrifício, ou quanto tem que se humilhar na função de pedinte.

As igrejas, nas tintas de Debret são partes integrantes das vistas que procuram demonstrar como o brasileiro é “submetido desde à infância às práticas religiosas.” A devoção aparece disseminada, da mesma forma, por entre as classes sociais que acabam qualificadas pelo autor. Porém, quando associada ao rico, é pouco exemplar, pois “(...) o ato de humildade e de gratidão para com o Criador adquire no homem rico, um caráter de ostentação.” [132/ v3] Os pobres, que acreditam agradar mais a Deus quando a oferta é entregue por uma criança, são ironizados pelo autor, que tece comentários sobre a prática de pagar aos santos. O personagem que dá título à prancha Primeira saída de um velho convalescente, embora apareça de pés descalços compondo o

Mas o autor coloca num segundo plano do quadro uma mulher negra, com “uma menina de cor”, nos seus termos. A indigência destas duas obrigou-as a solicitar à vizinha, também caridosa, a toalha e a bandeja de estanho, necessárias para a coleta. Na conclusão do tema, ambas as classes, apesar de “bem distintas”, cumprem a mesma promessa, ou seja, a de serem caridosas. [137/v. 3 ] 426

O imaginário da cristandade no Rio de Janeiro nas pinturas de Rugendas e Debret

centro da cena visual, não será o representante do caráter exemplar: a “verdadeira compreensão da caridade cristã observa-se diariamente na classe indigente” [139-140/ v3]

testemunho da cristandade como fator de civilização. O pintor de história, Jean Baptiste Debret, na sua autoridade acerca do Brasil elenca a cristandade, ao lado de outras construções como a idéia de harmonia social quando oferece o país como possibilidade ao público de sua obra: os franceses.

No texto explicativo é a figura desenhada “embaixo de uma escadaria” que recebe o julgamento moral de Debret. Trata-se de “uma velha negra indigente [que] antes de entrar com sua vela dá um vintém de esmola a outra mais pobre ainda”.

Imagens e evidências do imaginário - a cristandade no interior de uma residência no século XIX

O relacionamento dos habitantes negros com as igrejas também forma um pólo importante na narrativa. Um par de pedintes, por exemplo, media informações sobre organizações religiosas e evidenciam a nuança racial da população.

Rosana Ramalho de Castro2 O processo de colonização da América portuguesa caracterizou-se pela presença de diferentes estilos arquitetônicos. O híbrido cultural apresentava-se nas representações do maneirismo, do clássico pombalino e do barroco português. Também o estilo rococó de Luiz XVI, a riqueza da cultura africana e a cultura material indígena, natural das regiões do extenso território. Todas eram visíveis na cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX.

O“irmão pedinte” branco exerce tal função para a confraria da Santa Casa de Misericórdia . O outro, um “irmão pedinte” negro, trabalha para a Irmandade de São Benedito, que foi um “ santo negro como os irmãos que lhes são devotados e moderno protetor da raça preta, pois foi canonizado há pouco”. [137/ v. 3]

Para aparelhar a colônia e transformar na sede da monarquia portuguesa na América foram adotadas diversas providências a partir de 1808, logo após aportar no Arsenal de Marinha Dom João VI e um grande número de ilustres senhores. A corte passava a ocupar as moradias disponíveis e outras que “se fizeram” disponíveis. As casas eram construções simples, de acabamento precário.

Nova notícia, em nota, revela a existência da irmandade dos mulatos, conhecida como a irmandade de N. S. da Conceição. Entre a cruz e a liturgia Mas, nada é tão singular na construção debretiana como a cena -Negras novas a caminho da igreja para o batismo. Por ela, cita um “artigo da primitiva lei sobre a escravidão” que dizia respeito à cristianização dos africanos recém-chegados, cujo objetivo, em sua opinião, seria moral.O autor se coloca como testemunha que essa lei produziu resultados, visto que seria “raro, encontrar-se hoje em dia um negro que não seja cristão.” Da mesma forma discorre sobre a“educação cristã dos negros”, que “do ponto de vista político” seria uma garantia para os senhores e suas “centenas de escravos reunidos”. Alguns dos “velhos negros livres”, apreciados por saber falar várias línguas africanas, seriam professores dos princípios da religião católica. [147/ v. 3]

Segundo relata J. B. Bury na obra-A Arquitetura e a Arte do Brasil Colônia: “A modesta amostragem da arquitetura civil no Brasil do século XVI ao XVIII é um reflexo da condição colonial do Brasil. Não houve um monarca residente no Brasil antes de 1808, de modo que não havia palácios reais”. Excluindo as Igrejas e edifícios públicos, a cidade apresentava marcas coloniais nas construções simples, de singelo estilo composto em portas e janelas construídas de tábuas rústicas e telhados que destacavam as peças realizadas nos moldes das cochas dos escravos. A mudança de status na cidade evidenciou a simplicidade da arquitetura das residências acrescida da estética da metrópole. As paredes rústicas caiadas de branco e os pisos de tábua corrida abrigavam os móveis de estilo e os hábitos europeus dos novos moradores. A transformação abrupta trouxe à cidade uma visualidade de aspecto tão peculiar que despertava o interesse de artistas estrangeiros.

O catolicismo como forma de progresso também é retratado, visualmente. O pároco que recebe os novos catecúmenos pertence às igrejas servidas por “padres negros”.Todavia Debret ironiza a cerimônia que considera cristandade forçada. A cristianização dos habitantes negros é bem evidente no pescoço de uma cena do cotidiano ou quando eleitos para representar ícones como a dos reis magos, todos os três negros, os inclui no 427

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

As representações em nada apontavam para os modos e hábitos adotados no continente europeu, pois, apesar das contribuições culturais havia o imaginário da cristandade que se mantinha dentro e fora dos lares, nas casas da sede da monarquia, nas residências dos fazendeiros ou nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

Rugendas realizou uma ilustração do interior de uma casa de fazenda que, a nosso ver, é emblemática, pois representa um aspecto que perdura desde a vida colonial na América portuguesa. São perceptíveis as paredes rústicas, o piso de terra batida e o teto feito com ripas de madeira aparente que serviam de sustentação para as telhas canal, forradas com palha na parte interior.

Podemos dizer que os elementos do estilo neoclássico histórico, introduzidos pela missão francesa na arquitetura efêmera dos cenários realizados para a Família Real, tiveram um emprego destinado a mostrar a sede da monarquia para ser vista pelos europeus e, por serem utilizados fora do contexto de sua concepção inicial, o conjunto dos elementos parecia sem sentido para a realidade local. O universo simbólico original, rejeitado pelos artistas franceses não serviram como referência para constituir novos valores estéticos na visualidade da cidade. A desrealização da realidade cotidiana imperava nos simulacros produzidos aqui e espelhados no paradigma europeu.

O cômodo retratado apresenta vários feixes de palha, um deles fixado por um instrumento que define o tamanho padrão de corte. Na cena, provavelmente a palha seria destinada ao pagamento do dízimo à Igreja. Um rapaz negro anuncia a visita de um membro da comunidade e quem parece admitir sua entrada no recinto é o padre, conforme indica a posição de mão do sacerdote. A cena denota a situação hierárquica: o padre é a principal figura retratada, além de ser o centro de atenção da família ali representada em atitude de submissão e respeito. No encontro das linhas estruturais do quadro - as diagonais da composição – encontra-se a figura do padre como principal destaque. A porta entreaberta nos permite ver o avarandado, da esquerda para o centro encontram-se os familiares.

Para compreendermos o distanciamento entre o estilo refletido nos projetos efêmeros e a visibilidade existente na cidade, analisaremos os aspectos coloniais no Rio de Janeiro do início do século XIX observando a obra pictórica de Johann Moritz Rugendas chamada Família de Fazendeiros (1825).

Em primeiro plano, destacam-se as crianças, os negros e a mulher que serve leite à ama. A seguir, os senhores da fazenda: um homem sentado numa cadeira e uma senhora acomodada na rede. Atrás do homem, uma senhora da família se apóia no encosto da cadeira. Vê-se o tocador de banjo além do padre e um rapaz negro que acaba de entrar. À direita destaca-se a palha, os instrumentos de trabalho, o banquinho rústico e a porta entreaberta, com um visitante à espera.

A imagem estudada também apresenta o modo de convivência entre os colonos e o imaginário da cristandade da época, representada na figura do padre em visita à sede de uma fazenda. O desenho faz parte da obra Viagem pitoresca através do Brasil na qual o autor relatou suas experiências no território brasileiro e registrou imagens da região. Nos relatos de Rugendas encontramos informações a respeito da residência de um fazendeiro.

O dedo do negro indica na direção do visitante e a mão do padre demonstra aquiescência à entrada de um homem cujo traje é semelhante ao usado pelo senhor, sugerindo ser ele outro fazendeiro que aguarda a atenção do representante da Igreja. A posição do homem de fora da casa demonstra respeito e submissão. A cabeça tendida para o ombro esquerdo revela apreensão e tentativa de ver, além da porta, entreaberta.

A casa do colono abastado tem apenas um andar; as paredes são de taipa e algumas vezes caiadas. Os alicerces, que se erguem a mais ou menos dois pés acima do solo, são formados de blocos de granito bruto. O telhado, recoberto de largas telhas convexas, ultrapassa de 8 a 12 palmos os muros do edifício e é suportado por vigas de madeira. Em torno da casa, estende-se uma varanda [...] Entra-se primeiramente numa grande peça [...]. E somente num dos quartos laterais se encontram, assim mesmo raramente, móveis mais elegantes, espelhos, etc.

A família, o padre e a palha representam a relação familiar, a cristandade e o preço pago por ela. Ao lado direito, vê-se uma cadeira de estilo marquesa (detalhe do espaldar inclinado para trás), móvel português encontrado nos interiores das residências, antes da chegada da corte à cidade. A cena evidencia características coloniais, pelo acabamento da construção, pelos móveis e uso de objetos da estética indígena e africana. O dono 428

O imaginário da cristandade no Rio de Janeiro nas pinturas de Rugendas e Debret

da casa e o visitante usam o mesmo tipo de vestimenta: calças, camisolas e um casaco curto. Estão sem sapatos ou botas, por isso, concluímos ser o visitante um fazendeiro vizinho. Rugendas relata a forma de vestir dos fazendeiros.

Por sua vez, os habitantes negros, no olhar de Jean Baptiste Debret examinado por Heloisa Pires Lima aparecem, da mesma forma, como simulacros para a representação de uma harmonia social e o devir de uma civilização sob a influência da pátria francesa.

A indumentária do homem consiste em uma camisa de algodão e uma calça do mesmo tecido. Andam descalços, embora com grandes tamancos muitas vezes munidos de esporas, de modo a estarem sempre prontos a montar o cavalo, pois é raro que o colono faça a pé o mais curso trajeto.

Estes registros estrangeiros na sua dimensão realista ou idealizada se servem do argumento acerca da cristandade, destacando-o conforme demonstraram as autoras. Pressupondo o real sempre muito mais complexo que sua representação, a circunscrição de uma leitura do real também desafia por sua complexidade. Tendo como perspectiva o leitor dessas construções, os ambientes que aparecem referidos, os personagens mais ou menos destacados, a posição que ocupam no cenário, tudo faz parte de uma lógica que orienta seus julgamentos. Por sua vez, as categorias em cena resultam do que o autor conhecia daquela realidade observada, o que selecionou ou o que lhe chamou a atenção para registrar. A autoria decodifica ou realiza a tradução a partir de repertórios conhecidos ou reconhecidos pelo público desses retratos sociais. Afinal, o relator é um informante das peculiaridades da nação descrita.

Além dos indícios da cultura portuguesa, indígena e africana, destaca-se, na parede central do recinto, a moldura maneirista com a imagem da santa protetora. Ao lado, vê-se o crucifixo. A moldura apresenta os elementos de folhagens e flores, mas destacam-se na parte superior e inferior elementos antropomorfos, do período maneirista. À esquerda da cena, uma janela é adornada com pesadas cortinas, presas conforme os modelos dos altares das igrejas barrocas do século XVIII. A representação do panejamento pode ter sido escolhida pelo pintor com a intenção de reforçar as linhas estruturais que convergem para o padre, para a imagem maneirista e para o crucifixo, destacando, assim, a força da Igreja no interior da residência.

O Brasil na conjuntura de início do XIX era um recém reino ou império. Portanto, na perspectiva européia uma sociedade em formação. Certamente o potencial econômico geraria aspectos relevantes para os relatos. Mas, sobretudo os hábitos e os habitantes da terra visitada forneceriam o potencial deste devir. E a cristandade aparecia como degrau para a civilização: na imagem de Rugendas, no centro da cena, o pároco com quem se dá a interlocução com os demais figurantes; nas de Debret, a alma cristã nos habitantes negros do país.

Mesmo distante do centro da cidade do Rio de Janeiro, a família mantinha a cultura européia nos elementos maneiristas e no mobiliário português. Mas, além disso, causa impacto o modo de representação da submissão dos colonos à figura representante da cristandade. Enquanto na fazenda via-se a presença da Igreja e os efeitos produzidos nos colonos, na sede da monarquia, na mesma época, ilustravam-se os modos e hábitos franceses.

Como exercício de relação é importante perceber que todas acabam, também, evidenciando a escravidão no país. Porém, associada à idéia de uma cristandade que não a condena. Nos relatos, os autores não se indignam, apesar dessa não ser uma experiência social nos seus países de origem.

Conclusão Como discute Rosana Ramalho de Castro, a mudança da Corte para a cidade do Rio de Janeiro, gesta uma espécie de desrealização que ativa a produção de simulacros espelhados em paradigmas europeus. Em contrapartida, a análise da estampa assinada pelo alemão Johan Moritz Rugendas, vai revelando na reunião de elementos híbridos, seja o cesto indígena, na imagem maneirista na parede seja no mobiliário de gosto português, a extrema rusticidade da vida dos habitantes no país.

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Notas 1

O presente texto é desdobramento das reflexões realizadas na tese – Negros debretianos: Investigação sobre um repertório cultural presente na obra Voyage pittoresque et historique au Brésil (1834-39), defendida no ano de 2006 no Departamento de AntropologiaFFLCH-USP sob a orientação da profª Drª Lilia K. M. Schwarcz. 2 O texto faz parte da tese de doutorado: Imagens e Evidências – a missão francesa, a Academia Imperial de Belas Artes e a identidade monárquica, apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da UFF em 2004.

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Ao se pronunciar Saudade e Nhá Chica, títulos de duas cenas de gênero pintadas em 1899 e 1895, respectivamente, por José Ferraz de Almeida Júnior (1850 – 1899), imediatamente se forma no imenso arcabouço imaginário de cada fruidor, uma infinidade de imagens trazidas da memória. Entretanto, pode-se ter certeza de que nenhuma dessas faz justiça ao que Almeida Júnior realizou. Dito isto, agora é chegado o momento de observar e proceder à análise das obras em questão. Na presente comunicação não se pretende estabelecer uma seqüência cronológica colocando Nhá Chica primeiramente, por ter sido pintada em 1895 e Saudade, por último em 1899, ano da morte trágica do pintor. Antes se prefere definir o padrão de escolha pensando nas afinidades que as obras em questão estabelecem entre si e com outras produções européias privilegiando, sobretudo, as cenas de gênero holandesas do século XVII, em especial, de Johannes Vermeer van Delft (16321675) e de Pieter de Hooch (1629-1684) e as italianas, portuguesas, espanholas, húngaras e russas do século XIX, através de Francesco Paolo Michetti, José Vital Branco Malhoa, José Villegas Cordero, Mihály Munkácsy e Andrei Popov, respectivamente, revelando nestas uma constância, ou melhor, uma permanência nos temas dentro das Academias de Arte.

saudade e nhá chica: duas cenas de gênero de josé ferraz de almeida júnior

O óleo sobre tela Saudade pintado em 1899 traz a representação de uma mulher que chora olhando para um “cabinet portrait”. Note-se como ela está posicionada dentro de um ambiente doméstico rústico, retratado realisticamente com o mesmo grau de minúcia de uma cena de gênero do século XVII holandês de Vermeer e de Pieter de Hooch. Pois, para Almeida Júnior o que parece importar é a representação de uma realidade inerente ao seu viver. Assim, o pintor ituano dispõe sua figura contra uma janela, cuja parede de tijolos traz um chapéu tornado diáfano pela ação do tempo. Do lado esquerdo da figura, ao fundo da cena, há uma canastra encimada por um álbum de fotografias e por um xale branco, cumprindo, dessa forma, um comentário ao provável luto da mulher. Nota-se, além disso, como Almeida Júnior compõe a cena mediante um sagaz jogo de ortogonais presentes na janela, na parede, no chão e na canastra, as quais são contrabalançadas pelas diagonais da tramela, dos braços da mulher e da luz que invade a cena. Almeida Júnior aqui articula perfeitamente seu esquema de ortogonais à fatura cromática, ou seja, o pintor empasta a tinta justamente aonde quer que haja maior carga dramática, como por exemplo, na face de Saudade e em suas mãos.

karin philippov1

A segunda tela dessa comunicação é Nhá Chica, executada em 1895. Nessa obra tem-se novamente 431

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

a inserção da figura feminina dentro de um ambiente caseiro rústico. Porém, se em Saudade a mulher é retratada de corpo inteiro, em Nhá Chica a figura é revelada até um pouco abaixo da linha da cintura. Nota-se que aqui a figura não chora, fuma seu cachimbo enquanto olha para fora da janela e para dentro de si, concomitantemente. Já em Saudade, tem-se a figura olhando para a fotografia e não para o mundo exterior, fato corroborado por estar de costas para a janela e, por esta nada representar além de seus limites. O que há de comum em ambas as telas é que em nenhum momento o pintor permite que o observador seja percebido pelas personagens retratadas.

conforme a observação de Saudade e Nhá Chica atesta. Mas, qual é a origem de seus diálogos? Como localizar sua produção? Por que Almeida Júnior opta por esse caminho? Quem são os artistas com os quais dialoga? Primeiramente, é necessário que o olhar do observador seja cuidadosamente guiado até o século XVII holandês, auge do esplendor das cenas de gênero produzidas na Holanda, através de dois de seus maiores expoentes, Johannes Vermeer van Delft e Pieter de Hooch. Do mesmo modo como Vermeer e Pieter de Hooch descrevem minuciosamente suas cenas, embora com pequenos formatos, Almeida Júnior também o faz, inserindo suas personagens dentro de espaços caseiros rústicos, desempenhando ações banais e sem qualquer traço de idealização. Entretanto, percebe-se que na produção do ituano não há qualquer sentido moralizante, de pureza, de vânitas ou de memento mori. A intenção de Almeida Júnior reside muito mais na descrição do mundo visível inerente a si, do que em qualquer forma de ensinamento moral, pois na arte e na sociedade laica do século XIX não faz mais sentido tratar de assuntos moralizantes. Deve-se ressaltar dentro das academias um forte clima de época, o qual atinge tanto a práxis quanto a teoria, pois através do resgate da tradição holandesa do século XVII, artistas como Vermeer e de Hooch são recuperados e estudados em suas técnicas e produções. Por exemplo, segundo Maria Cecília França Lourenço, o pintor Eugène Fromentin publica em 1876 seu célebre livro Les Maîtres d’Autrefois (LOURENÇO, 2007: 170).

Novamente, ao se pensar na estruturação da imagem, pode-se perceber que em Nhá Chica existe a forte presença das ortogonais na janela correspondentes ao grau de saturação das pinceladas. Dessa forma, tanto em Saudade quanto em Nhá Chica percebe-se o jogo estabelecido pelas ortogonais e vetores internos e externos às figuras, os quais desempenham papel sinalético nas narrativas. Na primeira obra, tem-se a forte verticalidade da janela complementada pelas horizontais da canastra e do chão. Como ponto de equilíbrio da cena, a diagonal do chapéu de palha e a tramela que apontam para a figura, além da estrutura interna dos braços – o direito apontando até os olhos lacrimejantes enquanto o esquerdo, meio na penumbra, traz a fotografia. Já na segunda obra, as verticais dos batentes da janela são contrabalançadas pela horizontal em perspectiva do peitoril. Além disso, note-se como o bule repete o formato do corpo da figura. Aqui, novamente percebe-se como Almeida Júnior posiciona os braços, tendo o direito a função de quase revelar o mundo exterior, enquanto o braço esquerdo faz um triângulo com o longo pito e o corpo de Nhá Chica.

Além disso, é preciso ressaltar a importância das pinturas narrativas de Almeida Júnior dentro dos Salões tanto parisienses quanto brasileiros, uma vez que a temática caipira, considerada pitoresca pelo público dos salões, faz parte do imaginário realista do pintor. Entretanto, a representação de temas banais, cotidianos em espaços domésticos, não constitui marca exclusiva. Há outros pintores contemporâneos à Almeida Júnior que exploram o mesmo tipo de representação, como por exemplo, seu amigo Belmiro de Almeida (1858-1935), pintor de A Tagarela, 1893. Porém, aqui existe uma diferença fundamental na fatura da obra, diferença esta revelada na pose sorridente que a figura faz ao se lançar em direção ao fruidor como se quisesse conversar ou contar algo, muito embora seja uma humilde empregada doméstica, conforme a vassoura e o uniforme revelam. Almeida Júnior traz figuras simples e humildes, mas não as coloca posando francamente para o fruidor. Suas atitudes

Biograficamente, sabe-se que o pintor ituano foi agraciado pelo Imperador D. Pedro II, com uma bolsa de estudos em Paris, entre os anos de 1876 a 1882. Pois bem, durante sua estada na referida cidade, Almeida Júnior além de ser discípulo de Alexandre Cabanel, entra em contato com o que existe de mais contemporâneo artisticamente falando, uma vez que as academias de arte européias estão em profundo diálogo com a tradição européia. Assim, ao se considerar a produção realizada dentro destas academias, devese destacar a convergência de tendências marcadamente realistas, tanto de denúncia social, quanto de descrição minuciosa do cotidiano. Almeida Júnior, portanto, se posiciona nesta última,

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Saudade e Nhá Chica: duas cenas de gênero de Almeida Júnior

são sempre ensimesmadas, as figuras agem sem se darem conta de que estão sendo observadas.

2000:143). As observações das obras de Malhoa e de Almeida Júnior ajudam a esclarecer.

Um outro fator a ser destacado nesta comunicação se refere à passagem de Almeida Júnior pela Itália, sobretudo, por Roma, durante sua primeira viagem. Embora não haja documentos que provem seu contato com os artistas, pode-se propor que o artista se alia à produção italiana, no que tange a representação de cenas banais. Assim, pode-se tentar estabelecer um diálogo entre o ituano e Francesco Paolo Michetti, em Pastorella, 1887, muito embora este último ressalte o lado melancólico dos camponeses e possua um teor adocicado de tendência romântica em sua obra. Em contrapartida, em Almeida Júnior não há qualquer exploração sentimentalista ou idealizada da figura, conforme a análise e observação de Saudade e Nhá Chica revelam. Apesar da figura feminina de Saudade chorar, não se percebe qualquer traço de melancolia adocicada nem de explosão. Tampouco Nhá Chica apresenta qualquer sentimentalismo bucólico, como Michetti representa em sua obra. Ou seja, Almeida Júnior se aproxima muito mais de um realismo de cunho naturalista, do que de qualquer forma de romantismo.

Pensando ainda na produção realizada no universo ibérico, deve-se destacar um outro artista que também esteve na Itália e que traz para suas representações, o mesmo imaginário camponês e humilde, cujo grau de realismo se aproxima do de Almeida Júnior, embora não tenha a mesma força narrativa e nem a mesma estruturação compositiva do ituano. Trata-se do pintor espanhol José Villegas Cordero (1844-1921). A observação da aquarela Camponesa Italiana, 1874, permite perceber no modo de representação do artista, a descrição pitoresca durante sua viagem à Itália, porém, com um toque macchiaoli em sua anotação colhida en plein air. Já em Almeida Júnior, embora não execute suas Saudade e Nhá Chica empregando o recurso adotado pelo espanhol, propõe uma simulação de uma cena colhida ao acaso, como se fossem instantâneos fotográficos, conforme a observação das obras em questão revela. Segundo Lourenço, um outro pintor que produz uma arte semelhante à de Almeida Júnior, no que concerne ao realismo adotado em suas representações, é o artista húngaro Mihály Munkácsy (1844-1900). E aqui eu cito as palavras de Lourenço (LOURENÇO, 2007:174).

Ao se estabelecer um cotejo entre Almeida Júnior e o pintor português José Vital Branco Malhoa (1855-1933), deve-se destacar as condições político-sociais tanto brasileiras quanto portuguesas, pois o Brasil ainda mantém relações com Portugal no final do II Reinado e início da República relações estas que influenciam os costumes e tradições locais de ambos. Além disso, deve-se salientar a situação decadente das Monarquias brasileira e portuguesa, as quais vinculadas ainda às Academias, as enfraquecem favorecendo a busca de novos temas centrados na população camponesa, gênero antes considerado baixo e que assume crescente importância nas representações. A busca de temas camponeses, caipiras, ciganos se torna mecanismo de estudo da condição humana, nesse momento. Aqui cabe mais uma vez lembrar a forte presença de estudos vinculados ao passado holandês, propondo que os artistas da Academia, em face à falência da Monarquia, devem e precisam encontrar temas que retratem a realidade falida da sociedade. Desse modo, alguns denunciam as duras condições de trabalho, outros optam por descrever o que vêem como Almeida Júnior, além daqueles que ironizam, questionam e interrogam como Malhoa, conforme Luciano Migliaccio, que também afirma que “o realismo de Almeida Júnior parece ter afinidades com os quadros de tema camponês pintados pelo português Malhoa...” (MIGLIACCIO,

Munkácsy realiza uma tela notável, [...], denominada Mulher Carregando Fardo (1873), trazendo uma jovem sentada no chão e sendo tomada bem de perto; tem as mãos entre as pernas, os olhos baixos, como se fizesse uma prece ou uma pausa. Carrega um fardo nas costas, amarrado com panos e a tela integralmente reflete os tons terrosos, à exceção do lenço vermelho mantido na cabeça. Particulariza os traços com riqueza de minúcias, conforme também ocorre em cenas assemelhadas de Almeida Júnior, em que conduz o olhar do fruidor para o conteúdo enxuto e direto. Ao estabelecer o cotejo entre Almeida Júnior e Munkácsy, pode-se propor que ambos retratam suas cenas com luz e paletas semelhantes, embora o artista húngaro ultrapasse os limites da descrição, rumando em direção à denúncia social das explorações do trabalho camponês, justamente o contrário do que Almeida Júnior realiza em Saudade e Nhá Chica. Por fim, o último artista a ser analisado na presente comunicação é Andrei Popov (18321896), por produzir uma arte que dialoga com Almeida Júnior, embora haja enormes distâncias 433

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

geográficas entre russos e brasileiros. Entretanto, Popov estudou na Alemanha, na França e na Itália, além de expor nestes mesmos países na época em que Almeida Júnior esteve na Europa. Popov, autor de Um Pequeno Quintal, 1870, se caracteriza por cenas de gênero como esta que representa uma camponesa russa correndo atrás de seus cachorros, os quais, por sua vez, caçam um galo. Aqui também se nota um caráter jocoso e anedótico na cena, muito embora seja esta a grande diferença entre o russo Popov e Almeida Júnior, pois tanto em Saudade quanto em Nhá Chica, não é possível encontrar esse sentido.

DASHKINA, Raisa et allii. 100 Unknown Pictures from the Depositories of The State Russian Museum. Saint Petersburg: Palace Editions, 1998. ESTRADA, Luís Gonzaga - Duque. A arte Brasileira (introdução e notas de Tadeu Chiarelli). Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. GUSYEV, Vladimir et allii. The Russian Museum from the Icon to Modernism. Saint Petersburg: Palace Editions, 2005. LOURENÇO, Maria Cecília França & NASCIMENTO, Ana Paula. Almeida Júnior: um criador de imaginários. Catálogo da Exposição realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo de 25 de janeiro a 15 de abril de 2007. SP: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2007. MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. Catálogo da Mostra do Redescobrimento. SP: Fundação Bienal de São Paulo – Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000. PHILIPPOV, Karin. Saudade. Monografia de Conclusão de Pós-Graduação em História da Arte, realizada na Fundação Armando Álvares Penteado, sob orientação da Profa. Dra. Elaine Dias. SP: FAAP, 2006, 104 páginas.

Portanto, as cenas de gênero de José Ferraz de Almeida Júnior não são resultantes de uma produção isolada, mas sim de uma produção perfeitamente conectada aos ensinamentos da academia, bem como são frutos de um programa pedagógico estabelecido durante a crise do regime monárquico, crise esta que rege e reflete os gostos da burguesia tanto no Brasil quanto na Europa. Assim, a presente comunicação é concluída através da proposição de um olhar renovado para a produção realista naturalista do final do século XIX, a qual foi bastante relegada ao segundo plano pelo modernismo brasileiro, com a utilização da alcunha pejorativa acadêmico.

Notas 1

Mestranda pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IFCH – Unicamp. Bolsista do CNPq, mas não pelo tema apresentado aqui.

Referências bibliográficas COLI, Jorge. Almeida Júnior: o caipira e a violência. Como Estudar A Arte Brasileira do Século XIX?. SP: Senac, 2005, pp.101-114.

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1. Nos comentários que acompanham as pranchas de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, é ambíguo o olhar que Debret lança aos negros. Embora reconheça que neste país “tudo assenta no escravo negro” e condene os castigos públicos - “revoltantes para um europeu” (DEBRET, 1954:8586) -, o pintor segue descrevendo os negros sob a ótica racista própria ao século XIX. Em suas aquarelas, contudo, há uma empatia com os escravos, uma decidida humanidade. Se nos comentários, o negro é tratado de forma genérica, em várias pranchas, sua singularidade é notável. Em comentário sobre os castigos dados aos escravos, destacado por vários autores, Debret diz que “o negro é indolente, vegeta onde se encontra, compraz-se na sua nulidade e faz da preguiça sua ambição; por isso a prisão é para ele um asilo sossegado, que pode satisfazer sem perigo sua paixão pela inação [...].” (Id.: 256-257) Essa descrição cruel corresponde, na verdade, a uma patologia. Rubim de Pinho, psiquiatra que pesquisou doenças mentais em sua relação com a cultura, lembra que a vocação para a tristeza era de fato própria aos negros importados da África. “A partir da viagem até a chegada às nossas costas, [os africanos] apresentavam estados de definhamento, ficavam parados, e a própria expressão Banzo, suposta de procedência angolana, reflete seguramente uma nostalgia, uma saudade da terra”.

melancolia à brasileira: a aquarela negra tatuada vendendo caju, de debret leila danziger 1

[...] o banzo é apresentado como um tipo de nostalgia ou melancolia mortal dos negros da África, se tomados cativos e ausentes de suas pátrias. O antecedente do africanismo “banzar” é encontrado [...] no verbo cubanza, de língua angolana, significativo de “pensar”. (De Pinho, 1982: 20) A descrição dos males do banzo corresponde àqueles que acometem os melancólicos, mencionados desde a Antiguidade. A teoria humoral de Hipócrates definiu durante séculos os sintomas da melancolia: “ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção do desejo e da fala, impressão de hebetude”. (ROUDINESCO, 1998: 506) Nas primeiras décadas do século XIX, Esquirol quis livrar-se da palavra melancolia, que considerava demasiado literária e vaga. Chamoua “lipemania”, pretendendo em vão confiná-la ao domínio médico (PIGEAUD, 1988: 62). Mas a melancolia só pode ser compreendida como doença da cultura, e, por sua vez, doença culturalizante. O banzo é assim um dos nomes da melancolia, que na Idade Média adquiriu contornos particulares sob o termo acedia (que atingia os monges e era vista como pecado) ou spleen, 435

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poliedro, a escada, que oferece o risco de queda no abismo. No lado direito, predomina o aspecto sólido e estável, em que prevalece a forma arquitetônica que sugere uma torre e a figura maciça da mulher alada - alegoria da geometria para Klibansky, Panoksky e Saxl (1964) e da astronomia para Peter-Klaus Schuster (2005). Para esse último autor, Dürer retoma, na composição, minuciosamente construída, a antítese VirtusFortuna, recorrente no repertório alegórico humanista. Para Schuster, Melencolia I é uma exortação à virtude, endereçada ao melancólico para que seu espírito superior se forme e se eleve, apesar de todas as adversidades. A dignidade do homem no humanismo consiste em ser criador de si mesmo e, “pelo uso virtuoso de seus dons intelectuais, pela prática das artes e das ciências guiada na medida justa, só assim se faz verdadeiramente justo à imagem de Deus”. (SCHUSTER, 2005: 93-94)

indissociável da poesia de Baudelaire e do Romantismo. A melancolia já despertara, de forma positiva, o interesse de Aristóteles, e a melaina kholé - a bile negra – faz parte da teoria dos humores de Galeno, físico que viveu em Roma no primeiro século da Era Cristã, e sintetizou conhecimentos que foram surgindo ao longo dos cinco séculos anteriores. Embora tenha sido vista como um desequilíbrio provocado pelo excesso de bile, a melancolia parece insubordinar-se à separação entre a matéria e o espírito. Para Yves Bonnefoy, ela é um “estilhaço na carne da modernidade” que desde os gregos não teria cessado de nascer. (BONNEFOY, 1989: 7-8) Sua mais célebre representação é certamente a gravura de Dürer, Melencolia I realizada em 1514, que possui exaustiva fortuna crítica. Em 1989, Raymond Klibansky escrevia que o número de publicações relativas a essa obra é tal que um bibliotecário penaria em classificá-las. “A quantidade de escritos é proporcional à dificuldade das explicações” (KLIBANSKY e al.,1989: 13). Essa afirmação é extraída da nota introdutória da tradução francesa da imensa obra que Klibansky escreveu junto a Erwin Panofsky e Fritz Saxl Saturno e Melancolia - cujo processo de criação estende-se ao longo de cerca de cinco décadas e domina a recepção da obra no século XX.

A interpretação de Schuster concilia a leitura de Aby Warburg às realizadas pelo círculo de seus alunos Klibansky, Panofsky e Saxl. Segundo Warburg, a gravura de Dürer mostra a personificação da melancolia ao sair vitoriosa na luta com as sombras potentes que a habitam: a loucura, a aflição, a preguiça e o luto. A mulher alada conseguiria superar todos os males que a afligem, explorando as disposições particulares do temperamento saturnino para as ciências e as artes. A ligação entre a melancolia, a filosofia, a poesia e as artes já aparece em Aristóteles, que perguntava: “Por que razão todos os que foram homens de exceção (...) são manifestamente melancólicos?” (PIGEAUD,1988: 81) Para o filósofo e também para Marsilio Ficino, fundador da Academia Platônica de Florença, o temperamento melancólico é a condição de todo grande espírito.

O que nos interessa aqui é tomar a gravura como matriz para olharmos a aquarela de Debret, Negra tatuada vendendo caju, de 1827, que não foi incluída em seu livro célebre. Aluno e sobrinho de Jean-Louis David, com passagem pela Academia Real de Pintura e Escultura, em Paris, formado em contado com as idéias de Winckelmann e Mengs, não há de se duvidar que Debret conhecesse essa gravura de Dürer. 2. Em Melencolia I, o anjo imóvel e de rosto sombrio parece não suportar o próprio peso, sustentando a cabeça inclinada sobre o punho, na postura característica do melancólico. Ao seu redor, os objetos do conhecimento, que deveriam medir o tempo e o espaço, jazem obscurecidos e inertes. O espaço da gravura é constituído pelo acúmulo, pela descontinuidade entre os objetos, que estabelecem nexos obscuros entre si, levando-nos a constituir uma lista para nomeá-los: o anjo, o compasso, o livro, o quadrado mágico, a ampulheta, o cão, o putto, o morcego, a escada, o poliedro, a esfera, o cometa, e vários outros elementos. Há uma desordem que é fruto de um embate silencioso que envolve todas as coisas. No lado esquerdo, os objetos sugerem instabilidade e perigo: o mar em suas mudanças incessantes, a esfera instável, a sombra de um crânio na face do

Retornando a Warburg, ele defende que Melencolia I é uma obra reconfortante, pois mostra justamente a vitória do temperamento melancólico sobre o seu lado sombrio e a superação da aflição que o ameaça em permanência. Ao longo de uma minuciosa análise iconográfica, Panofsky e Saxl vêem, por sua vez, a personificação da melancolia resignada, vencida em sua aspiração ao conhecimento, pois percebe os limites de seu espírito em relação ao Divino e, assim recai no abatimento e no desespero. Independente das eventuais falhas nas interpretações iconográficas de Panoksky e dos demais historiadores, apontadas por Schuster, a recepção da gravura pela arte e pela literatura contemporâneas parece ter esquecido o debate humanista – a oposição entre a Virtude e a Fortuna 436

A aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret

- e percebe-a como um signo da fragmentação e da consciência da incompletude, tão próprias à modernidade. Contudo, para um artista formado na poética neoclássica como Debret, a recepção da gravura na chave da Virtude é certamente muito atrativa. Sua expressão é o cumprimento do dever cívico, a heróica superação dos afetos pessoais, temas de suas obras na França.

realizada por inúmeros artistas, que ao longo de cinco séculos enfrentaram o caráter enigmático da obra e atestaram sua contínua atualidade. 3. Em Negra tatuada, a figura da mulher, sentada diretamente ao solo, inscreve-se num quadrado, o que potencializa a sensação de peso próprio à melancolia. O panejamento volumoso da saia, em tonalidades escuras, confere maior estabilidade à negra, que parece inamovível. À esquerda da composição, o céu da recém-fundada nação brasileira é completamente esvaziado das referências simbólicas presentes na representação do céu do Renascimento alemão. Nenhum sinal da reconciliação de Deus com os homens, simbolizada pelo arco-íris, tampouco a ambigüidade do morcego e a deriva do astro errante, como eram chamados os cometas, cuja trajetória não era ainda passível de ser calculada em 1514, o que era causa de angústia e prova dos limites do conhecimento humano.

Em Negra tatuada vendendo caju, Debret traduz a observação da paisagem humana do Rio de Janeiro em termos conceituais. Embora o formato da aquarela - horizontal, como todas as pranchas dedicadas aos escravos - seja distinto da gravura de Dürer, mantém-se, em sua ideação, fiel à divisão entre duas partes opostas como em Melencolia I. O pintor francês situa a escrava à direita da imagem, em um espaço externo e urbano, próximo a elementos sólidos e estáveis, como os degraus de uma escada, à frente de uma construção semelhante a uma casa. E o que lhe confere particular estabilidade é o marco vertical de pedra, que a supera em altura, da mesma forma que a torre é mais alta que a mulher alada na gravura alemã. A negra foi representada na postura tradicional da melancolia: o braço esquerdo sustenta o peso da cabeça e a mão direita descansa ociosa sobre a saia. Mas sua atitude é toda mais frontal, ereta, clara e aberta do que a criada por Dürer.

A presença do mar na aquarela é mais importante do que na gravura. Debret mostra uma vista da baía de Guanabara, e suas águas falaciosamente tranqüilas e pacíficas. Como escreveu Roberto Conduru, ao analisar a pintura Pesca da baleia, de Leandro Joaquim: “A baía de Guanabara foi o berço de uma cultura da violência” (...). Desde o extermínio dos índios e da expulsão das baleias, instalou-se “um processo contínuo de destruição e construção de referências culturais”. (CONDURU, 2004:1).

A representação da cabeça apoiada sobre a mão é muito antiga e aparece até mesmo em sarcófagos egípcios, para significar a tristeza e o luto, mas aparece em outros momentos associada ao cansaço ou ao pensamento criador. (KLIBANSKY, op.cit.:450) Este motivo teria sido quase esquecido durante a Idade Média; manteve-se, contudo, presente em várias representações de Cronos, e ressurge com vigor nos séculos XV e XVI.

No plano intermediário, entre a vendedora de cajus e o mar, duas escravas conversam, fazem negócios, tratam de assuntos mundanos. Embora possuam o mesmo estatuto social e exerçam as mesmas funções de ambulante, as negras que conversam parecem pertencer a uma dimensão distinta à da vendedora de cajus, que permanece alheia e indiferente no primeiro plano da imagem. Como observou Rodrigo Naves, a quem devo a descoberta da obra central deste ensaio, a vendedora de cajus encarna perfeitamente “o alheamento tristonho dos escravos”. (NAVES: 1996,77) Em seu rosto, traços de pintura branca sublinham os olhos, enquanto pequenos círculos marcam a linha que vai da testa ao queixo. Uma tatuagem em forma de bracelete é visível logo abaixo de seu ombro nu. Os contornos de seu corpo e sua sensualidade explícita destacam-se contra o fundo da paisagem. À sua frente, uma grande bandeja de cajus reforça a sua sensualidade triste e a exposição de seu corpo, que compartilha com a fruta - cuja iguaria é situada externamente - o mesmo destino: mostrar-se, expor-se, ou, mais exatamente, vender-se.

“Ao melancólico dos manuscritos e gravuras germânicas posando com a cabeça sobre a mão, responde, na Itália, por um lado, a figura de Heráclito, na Escola de Atenas de Rafaël, e, por outro, Saturno numa gravura de Campagnola: eis a encarnação majestosa da contemplação de um Deus, o que apenas mais tarde influenciaria os retratos da contemplação humana em geral”. (Id.: 452) Ao criar Melencolia I, Dürer extrai elementos de diversas tradições e os reorganiza em um nova configuração, que dá forma e inteligibilidade aos intensos conflitos que atravessavam a Europa do Norte e do Sul. A menção à imensa fortuna crítica da obra inclui não apenas a sua recepção no campo das disciplinas humanistas, mas também aquela 437

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

negros e brancos, em O Vendedor de arruda, as trocas se dão exclusivamente entre os negros, como a sugerir que aquele tipo de prática restringiase a eles. Mas se a crença que envolve a arruda teria sido introduzida no Brasil pelos africanos, estes são os transmissores de uma tradição bem mais antiga, que remonta à Antiguidade. Na gravura de Dürer, um dos temas centrais, é justamente a transmissão, a permanência e o conflito entre diferentes formas de saber, grosso modo, entre a magia e a geometria. Observe-se, por exemplo, que a coroa de plantas sobre a cabeça do anjo é formada por dois tipos de ervas aquáticas (renoncule d’eau e cresson de fontaine). Essas ervas eram emplastros que deveriam combater a secura do temperamento melancólico. Na gravura, esta prática da medicina, baseada na teoria dos quatro humores, convive com os diversos signos da Geometria, tais como o poliedro, a esfera e o compasso.

A associação entre sensualidade e melancolia está presente numa pintura de Lucas Cranach que pertence ao raio de propagação da obra de Dürer. La Mélancolie, de 1532 tem composição semelhante à Melencolia I e retoma vários de seus elementos: o cão, a esfera, o putto (que se tornam vários). Mas o anjo de Cranach possui acentuados seus atributos femininos e detém algo de lúbrico. Sobre a mesa a seu lado, uma grande travessa com frutas diversas possui afinidades com o prato de frutas na aquarela de Debret. Para Yves Hersant, a pintura de Cranach é uma alegoria do desejo, sempre ameaçado pelo pecado: “a melancolia, segundo Cranach, vem menos de Saturno do que de Satan; e longe de oferecer aos olhos do pintor, como aos de Marsílio Ficino, a promessa intelectual de uma realização criadora, ela é denunciada como a pior ameaça a pesar sobre a salvação dos homens”. (HERSANT, 2005:117) Creio que a postura altiva com que a negra, em sua tristeza, é retratada por Debret constitui-se num contraponto à sensualidade, e visa minimizar seu poder de sedução, em certa medida, ‘humanizar’ a escrava, posto que a sexualidade dos negros é descrita por Debret como algo fora de controle: “O amor é menos uma paixão do que um delírio indomável que induz [o escravo] muitas vezes a fugir da casa de seus senhores, expondo-se, subjugado pelos sentidos, aos mais cruéis castigos” (DEBRET, op.cit.: 257).

De volta à Negra tatuada, a presença dos amuletos na cintura da escrava, sem outros elementos que signifiquem a superação de um sistema de crenças associado à magia, esvazia a tensão que alimenta a imagem do século XVI. Por outro lado, a própria escolha de Debret ao construir a aquarela, informado pela potência da gravura alemã, é muito significativa dos propósitos de sua obra realizada no Brasil. Vale lembrar que na mesma época em que Debret criou essa imagem, o Romantismo alemão redescobria Dürer e Melencolia I foi valorizada como a imagem mesma da Bildung, processo de formação da cultura alemã, em sua vocação de afirmar o nacional para atingir o universal. Como percebeu Sérgio Alcides, a gravura “traduz um ato de insubmissão humanista ao determinismo cosmológico” (ALCIDES, 2001: 160); ela é uma afirmação do Humanismo ocidental.

Observe-se que a escrava sentada leva à cintura um conjunto de amuletos, do mesmo modo que o personagem alegórico de Dürer leva em seu cinturão uma bolsa e um molho de chaves, à pena discernível nas reproduções da obra, pois se confunde às dobras do vestido do anjo. Sobre esses elementos temos a única anotação de Dürer. As chaves e a bolsa, atributos do vestiário feminino em Nüremberg, são associados pelo próprio artista ao poder e à riqueza. Em sua ‘tradução’ de Melencolia I, Debret substitui esses elementos por amuletos da cultura afro-brasileira – a vendedora tem à cintura uma ‘penca de balangandãs’. Entre os objetos que carrega, destaca-se visivelmente uma figa, associada à sexualidade e à fertilidade, cuja função é proteger contra as doenças físicas e espirituais.

Ao tomá-la como modelo, em sentido muito distante daquele que a gravura terá na Alemanha, Debret reafirma os ideais missionários dos artistas franceses, e seu firme propósito de “acompanhar a marcha progressiva da civilização no Brasil”. Embora inexistam signos da Geometria em sua aquarela, a racionalidade ordena o espaço, e a própria postura erguida da negra, em sua tristeza digna e altiva, parece inseri-la por si só na ‘marcha da civilização’, superando o estado de natureza que Debret - em seus comentários, e apenas neles -, reserva aos escravos. “Sem o consolo do passado, sem a confiança do futuro, o africano esquece o presente, saboreando, à sombra dos algodais, o caldo da cana-de-açúcar” (DEBRET, op.cit.: 86). Nessa frase, Debret descreve a plena barbárie da ausência de um tempo colocado em perspectiva

Práticas dos negros consideradas supersticiosas por Debret aparecem em outras imagens. Em O vendedor de arruda, o comércio da planta, à qual atribui-se variados poderes de proteção, é realizado numa esquina da cidade, entre o vendedor e três negras. Ao contrário da aquarela Os refrescos do Largo do Palácio, em que há negociação entre 438

A aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret

pela história, no qual o escravo viveria entregue a prazeres sensuais. Sua aquarela, contudo, aponta caminhos bem mais complexos.

Uma outra importante obra de Tarsila inscreve-se decididamente na tradição ocidental da representação melancólica, orientada, contudo, pela descoberta do inconsciente e a falência daquela idéia de sujeito, cujos primórdios informavam a gravura de Dürer. Em Abaporu, a cabeça minúscula do personagem apóia-se sobre o punho esquerdo – na tradicional postura melancólica - e sugere estar a uma enorme distância dos pés. A imagem afirma a valorização do elemento mítico, recalcado “pela marcha da civilização” e possui uma opacidade que a vem fortalecendo ao longo dos anos.

4. Negra tatuada não é um documento que nos revele a vida dos negros, embora se alimente da observação e da experiência efetiva do artista no Rio de Janeiro, mas sim uma construção que prescreve valores para a nova nação, um quasemanifesto sutil, carregado dos ideais civilizatórios e humanistas que trouxeram os artistas da Missão Artística Francesa ao Brasil. A imagem mostra um espaço secularizado, em que as referências ao mito aparecem controladas pela ideação. É verdade que o espaço representado - sobre o qual as mulheres negras se destacam, assim como a bandeja de cajus - guarda algo não plenamente estruturado e realizado, algo em falta, à espera.

Abaporu foi pintado no mesmo ano em que Paulo Prado publica Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, ao qual Oswald reage, e, em seu Manifesto Antropófago responde: “a alegria é a prova dos nove”. Ainda em 1928, Mário de Andrade publica Macunaíma e instaura-se a preguiça, que é ainda um dos nomes de nossa produtiva melancolia tropical.

Mas não há banzo na aquarela Negra tatuada, mesmo porque este é um termo ainda a ser pensado, construído, habitado -, e sim uma melancolia informada pela cultura européia, sem referências específicas às formas como foram vividas e representadas a tristeza e o mal-estar de tantos exílios nas culturas africanas transportadas para o Brasil. Teríamos que esperar, creio, o modernismo para que algo de mais específico neste sentido ganhasse forma. Suspeito que a melancolia da vendedora de cajus só se torne efetivamente banzo – um sentimento mais singular, gerado pelas trocas que nos são próprias - cerca de cem anos depois, quando encarnada na Negra, de Tarsila do Amaral, uma pintura alegórica, como é a gravura de Dürer e também a pintura de Cranach. Como escrevia Gulhermino César, em Leite Criolo, texto de 1929: “Nós todos mamamos naqueles peitos fartos de vida e estragados de sensibilidade. Em vez da alegria, nos pegou foi a tristeza banzativa que não cuida de melhorar. Até hoje não tivemos a peneiração de quanta coisa nos amolece a vontade de responder à terra” (apud TELES: 1978, 308).

Referências bibliográficas ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX.1; tradução do grego, apresentação e notas Jackie Pigeaud; trad. Alexei Bueno, Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1998. BONNEFOY, Yves. Introduction. Starobinski, Jean. La Mélancolie au miroir – trois lectures de Baudelaire, Paris: Ed. Julliard, 1989. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, trad. e notas de Sérgio Milliet, tomo I (volume I e II), 3ª. Edição, São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1954. DE PINHO, Rubim. Aspectos Históricos da Psiquiatria Folclórica no Brasil. Universitas, vol.0, nº 29, 1982. Disponível em: http:// www.portalseer.ufba.br/index.php/universitas/ article/view/1263/846. Acesso em 25/02/08. CÉSAR, Guilhermino. Leite criolo. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1978. CONDURU, Roberto. A destruição como princípio. Rio de Janeiro: Site Caetano Veloso, 2004. http:/ / www.erratica.com.br/ index.php? page=12>. Acesso em 25/02/08. FARIA, Valéria. J.-B. Debret: historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (18161839), Campinas: Ed. Da Unicamp, 2007. HERSANT, Yves. Mélancolie rouge. CLAIR, Jean (org.) Mélancolie, génie et folie en Occident.

A tela de 1923 possui o conflito, que percorrerá a breve obra de Tarsila em seus momentos mais e menos felizes, entre a aspiração à grade cubista e a afirmação da curva, entre a tarefa de apreender o estrangeiro e construir uma “entidade” nacional, na expressão feliz de Mário de Andrade. Contra o fundo geométrico da pintura, opõem-se as formas arredondadas e monumentais do corpo intumescido da negra, carregado de conflitos formais que marcam o esforço da artista em espacializar experiências que se transmitiram em silêncio, práticas que deixaram poucos vestígios em documentos.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O escultor Rodolfo Bernardelli (Guadalajara, México, 1852 – Rio de Janeiro RJ, 1931), juntamente com os pintores Rodolfo Amoedo (18571941) e seu irmão Henrique Bernardelli (18581936), integrou uma geração de alunos da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro que buscou a renovação da arte no país, ligandose a uma nova estética, realista e simbolista. A compreensão de suas propostas irá permitir conhecer melhor as características da produção artística brasileira do final do século XIX. A análise de trajetória de Bernardelli é tema de minha tese de doutorado no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. O artista ingressou na Academia de Belas Artes em 1870, tendo como professor de estatuária Francisco Manoel Chaves Pinheiro (1822-1884). Em 1874, naturalizou-se brasileiro. Foi premiado na Exposição Internacional de Filadélfia de 1876 com as esculturas Saudades da Tribo (1874) e À Espreita (1875), ambas de tema indianista. Recebeu no mesmo ano o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro. Permaneceu em Roma de 1877 a 1885, onde estudou com o escultor Giulio Monteverde (1837-1917) e conheceu, entre outros, os escultores Achille D’Orsi (1845-1929), Vincenzo Gemito (1852-1929) e Eugenio Maccagnani (18521930).

a propósito de três esculturas de rodolfo bernardelli: a baiana (1886), o retrato de negro (1886) e o túmulo de josé bonifácio (1888-89) maria do carmo couto da silva

1

Ao retornar ao Brasil em 1885, aprovado pela Congregação de Professores, assumiu o cargo de professor de estatuária da Academia Imperial de Belas Artes. Em 1888, com Rodolfo Amoedo, Henrique Bernardelli e Zeferino da Costa, fundou o Atelier Livre, que era uma forma de protesto ao ensino tradicional da Academia. Após a proclamação da República foi nomeado diretor da Escola Nacional de Belas Artes, dirigindo a instituição de 1890 a 1915. Orientou numerosos alunos, tanto na Escola como no ateliê particular que manteve com o irmão Henrique, alguns dos quais se tornaram escultores destacados, como José Otávio Correia Lima (1878 - 1974), Nicolina Vaz de Assis (1874 - 1941) e Amadeu Zani (1869 1944). Bernardelli tornou-se o escultor oficial do novo regime. No entanto, apesar da sua importância no cenário artístico brasileiro, pouco se conhece acerca do escultor. Iniciaremos nossa comunicação a partir da discussão sobre um trabalho de juventude de Bernardelli, realizado na Itália. Nele o artista retoma de forma inovadora a temática indianista. A escultura Faceira, em gesso, foi realizada em 1880 440

A propósito de três esculturas de Rodolfo Bernardell

e recebida pela Academia no ano seguinte. Apenas em 1921 ela foi passada para o bronze.2

árvores, as mãos deveriam ser descuidadas, e os músculos rijos pelas atividades desenvolvidas, o que, no entanto, não acontece. A Faceira, para o crítico, é excessivamente adornada, tendendo dessa forma a uma imagem caricatural. Gonzaga Duque assim descreve a Faceira:

A Faceira é a representação de uma índia, com uma forte carga de sensualidade e muito “inclinada a um exotismo amaneirado”, como aponta Luciano Migliaccio3. Bernardelli realizou vários estudos da Faceira, nos quais é possível perceber a sua preocupação em definir a posição do corpo da mulher. A obra é descrita no parecer da Seção de Escultura de 1882, assinado por Chaves Pinheiro e João Maximiano Mafra:

De mais, a estrutura da ‘Faceira” é flácida. Há no seu corpo molezas de uma carne já cansada pelas noites febris do deboche; existe em seu sorriso a untura do carmim e a palidez da perversidade; seus olhos miúdos têm o brilho tentador da lascívia, e a posição em que está, apoiada com ambas as mãos em um cepo de árvore que lhe fica às costas, empinando todo o tronco, faz lembrar mulheres experientes em seduções e que estudam ao espelho atitudes provocadoras.6

Esta estátua de grandeza natural é uma belíssima figura de mulher lúbrica e provocante da raça americana. O movimento é gracioso, as proporções ficaram bem observadas, o modelado executado com saber. Pertencendo pelo assunto esta estátua a Escultura de gêneros é tolerável a Escola realista em que tem continuado o pensionista, entretanto o talento peregrino que a concebeu e executou com tanta galhardia se tivesse concentrado na Escola idealista, poderia [ter] bem produzido um primor d’arte.4

O tema do índio representando a nação brasileira já integrava o imaginário nacional e nessa obra é tratado pelo artista quase como uma paródia de representações tradicionais. Uma fotografia publicada na monografia de Celita Vaccani sobre o escultor nos leva a refletir sobre as intenções do artista e sobre certa irreverência que predominava nas obras dessa geração7. Henrique Bernardelli vestido de frade e portando um pequeno livro em suas mãos, olha para a figura da Faceira, ainda em barro, em fotografia realizada provavelmente no ateliê do escultor. A foto nos leva a pensar acerca da relação histórica existente entre o índio e a catequização, como forma de civilização. Mas uma outra imagem, um trabalho de Félicien Rops, As tentações de Santo Antonio (1878), pode ter sido referência para a “montagem” da cena. Para Luciano Migliaccio há uma correspondência entre a foto e o quadro de Rops, em que o crucifixo se transforma numa imagem lasciva aos olhos do eremita ajoelhado8.

A Faceira foi a obra mais elogiada pelos professores no parecer. Entretanto, a nosso ver, sua boa aceitação se deveu ao fato de ser considerada como uma escultura de gênero, na qual eram permitidas maiores inovações. A crítica, por ocasião da sua apresentação na Exposição Geral de Belas Artes de 1884, ressaltou além da qualidade do trabalho, a sensualidade da figura, como em texto de Nimil, na Gazeta da Tarde, de 24 de agosto de 1884: Aquela mulher de contornos opulentos e seductores, de seios redondos e grandes, de olhar lascivo e desafiante, com o corpo arqueado sobre um tronco a pedir adorações, a provocar sensualidades que se casem com a sensualidade que de seu corpo dimana: aquela mulher índia, em plena nudez, deixando ver a descoberto as mil bellezas, os mil segredos que ela não teme desvendar, provoca do visitante todas as attenções. [...]. S. Antônio, o casto, não resistiria á Faceira.5

Outra escultura bastante polêmica de Bernardelli é Santo Estevão realizada em Roma em 1879. A escultura encontra-se assim descrita no parecer da Seção de Escultura: O protomártir da religião de Jesus Cristo está moribundo, o excesso das dores que lhe causa o martírio exprime-se perfeitamente na fisionomia, e em todas as fibras de seu corpo ainda jovem, neste transe supremo ele volve para o céu olhos repassados de mais pulsante angústia, e a dor física, e [ilegível] da esperança da glória, que se desenha com rara perfeição, em toda esta estátua, desde os cabelos desalinhados e revoltos da cabeça aos dedos encolhidos dos pés. Esta expressão, por demais realista, substitui aqui aquela de

Já o crítico Gonzaga Duque, em texto de 1888, ressalta o fato que a figura não apresenta características étnicas. Além disso, para ele, os seus cabelos estão presos em penteados caprichosos demais para a representação de uma índia, os pés deveriam ser espalmados pelas caminhadas contínuas e pelo exercício de subir em 441

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

estereótipo cultural de um povo primitivo, vizinho da natureza e instintivamente feliz. A junção entre o pitoresco e a fiel documentação de costumes e dos tipos do mundo napolitano tornou-se na época um sucesso comercial. Na pintura, podemos encontrar uma referência similar em pinturas de Francesco Paolo Michetti (1851-1929).

sentimento ascético que deveria predominar na alma dos mártires cristãos e principalmente na do Santo, escolhido pelo pensionista por ter sido o primeiro que derramou seu sangue como confessor de Jesus Cristo. Na opinião da Seção d’Escultura é isto resultado natural e quase inevitável de filiação do pensionista na escola realista, escola que actual Congregação da Academia Imperial das Belas Artes não aceita, como guarda fiel das boas tradições da arte clássica, que nela felizmente deixaram seus talentosos fundadores.9

Em 1886 Gonzaga Duque se refere a uma escultura de Bernardelli intitulada Hue!, que representa “uma negra crioula da Bahia, trazendo a mão um pequeno balaio de frutos, que num ademane gracioso, faz aquela exclamação”, exposta na Livraria Faro & Nunes, em 1886 12. É possível que seja a Baiana do acervo da Pincacoteca do Estado de São Paulo. Ao representar uma pessoa do povo, a vendedora de frutas, o artista introduz uma inovação na escultura do país. Além disso, a estatueta revela proximidade formal com algumas representações femininas presentes na escultura italiana contemporânea. Para o Gonzaga Duque, entretanto, a obra é elaborada demais. Para o autor esse gênero de escultura reclama, como a caricatura, muita espontaneidade e simplicidade, no entanto: “vê-se claramente que ali andou a mão de um grande artista a procurar o rigoroso modelado das formas”.

Podemos perceber que a Academia desaprovou a expressão excessivamente realista do santo, entendendo que isso se devia a filiação de Bernardelli à escola moderna. Entretanto na maneira detalhada como ela é descrita nesse documento oficial, principalmente nos trechos em que os professores se referem ao corpo do personagem, podemos notar que eles percebem que ela foi muito bem executada, transmitindo o sentimento na representação do corpo. Em trabalhos de menor porte, que não faziam parte das obrigações de pensionista, notamos que o artista apresentou uma maior liberdade na execução. Segundo Corrado Maltese as transformações que marcaram a escultura italiana, significaram, assim como na pintura dos machiaiolli, a eliminação do desenho acadêmico. A modelagem vibrante substituiu a superfície lisa e polida, com áreas elaboradas para refletir a luz de modos diversos, excluindo qualquer resíduo de limite ideal dos corpos 10 . A tendência já se insinuava em algumas obras de Giulio Monteverde, professor de Bernardelli em Roma. Essa forma de modelar caracterizou primeiramente a escultura de Vincenzo Gemito e posteriormente encontrará maior desenvolvimento nos trabalhos de Medardo Rosso (1858-1928). Em alguns bustos realizados por Bernardelli nos anos seguintes, como o busto da Checa (1877), a figura do médico Montenovesi (c.1882) ou o retrato de Modesto Brocos (1883), o artista apresenta proximidade formal com retratos realizados por Gemito, como em Retrato de Michetti (1873).

Já o Retrato de Negro (1886) se insere entre as poucas obras em que se representam pessoas negras no Brasil oitocentista. A meu ver, tratavase provavelmente de uma pessoa do circulo de amizades do escultor e o busto foi elaborado com grande liberdade de execução. Seu retrato revela expressividade e simpatia, aliadas a uma certa informalidade na maneira com que foi representado pelo escultor. França Júnior e Gonzaga Duque escreveram em 1886 sobre os bustos executados por Bernardelli nesse período. França Júnior destaca alguns bustos do artista exibidos na Exposição Vieitas: Como discípulos de escultura apparecem no catálogo Emmanuel LacailLe, Xisto Messias e Benevevuto Berna. A influência poderosa de Rodolphho Bernardelli, o revolucionário que em boa hora entrou para a academia, sente-se naquelles bustos que ali figuram, estudados do natural! Que diferença entre esses barros e gessos e os da antiga escola. A maneira de ver e de modelar já não é a mesma. É que a escultura, como as outras manifestações da arte, passou por salutar transformação.

Uma outra obra do artista intitulada Cabeça de aldeã da Ilha de Capri (s.d.) nos leva a pensar em alguns aspectos da escultura napolitana daqueles anos. Nessa obra Bernardelli mantém diálogo com obras de Achille D’Orsi como Cabeça de Marinheiro (c.1878). Como aponta Mimita Lamberti 11 , a escultura de D’Orsi corresponde ao gosto verista de uma aproximação direta entre a pesquisa folclórica e a classificação cientifica. Confirma o 442

A propósito de três esculturas de Rodolfo Bernardell

foi inaugurado em Santos o mausoléu dos irmãos Andradas, a partir de um programa iconográfico idealizado por Affonso Taunay e contando com painéis em relevo relativos à história do Brasil. O trabalho de Bernardelli foi transportado então para aquele local para compor o Panteão dos Andradas.

Como apóstolos da nova idéa figuram na Itália, donde tem partido a luz, Monteverde, Vela, Ercole, e principalmente D’Orsi...”13 Já Gonzaga Duque escreve: Logo à entrada, não sei se por acaso ou por premeditação, vê-se sobre uma coluna de mármore negro um busto em bronze, cinzelado por Rodolfo Bernardelli. É o retrato da falecida esposa de Luís Guimarães Júnior. Nada posso dizer da cópia, da semelhança do retrato. Nessa produção, na parte que importa diretamente ao escultor e que se chama “expressão e estilo” encontro tudo que se pode exigir: anatomia, movimento e corte. Aquela doce fisionomia, a maneira graciosa de posar a cabeça, os secos cabelos anelados; o meigo olhar contemplativo que o artista tão bem conseguiu esculpir e espiritualizar no bronze, deviam ser bem peculiares à bem-amada do poeta. [...] Isto conseguiu Bernardelli no bronze. Porém quanto não o teria conseguido no mármore? [...] O modelado macio, a pureza das linhas nas formas femininas, surgem mais rápidas e mais belas no mármore...”14

Segundo Costa e Silva Sobrinho “o monumento representa José Bonifácio tal como foi conduzido da rampa do Paço para a eça mortuária da Igreja do Carmo: revestido das insígnias de Cavaleiro do Paço, dentro do caixão aberto.” 15 Sobre o modelo do túmulo encontramos comentários na Revista Illustrada: Visitando o atelier de Rodolpho Bernardelli, ahi vimos o bello tumulo de José Bonifácio, o velho. É uma verdadeira obra de ate, na qual não se sabe que mais admirar, se a execução d’essa serena figura, em cujas linhas fisionômicas se desenha o sonno da morte, se a concepção do conjunto artístico, que dá ao túmulo um aspeccto grandioso e que impressiona profundamente. Tanto a figura do patriarcha da Independência, como a tapeçaria que cobre metade do sarcophago, estão feitas pela mão do mesmo.16

Dessa forma notamos que os retratos realizados por Bernardelli nos anos 1880 foram muito destacados na imprensa carioca. Nesse período o artista dedica-se ainda a realização de retratos da Família Imperial, como busto da Princesa Isabel (c.1888) e da Imperatriz Teresa Cristina (1889), em que se demonstra um notável escultor.

A escultura jacente de José Bonifácio é extremamente inovadora na relação que estabelece com o espectador. Pensada para ser observada no interior de uma igreja, sua figura provoca comoção e admiração. A recorrência à máscara mortuária, em uma imagem impressionantemente realista, traz um apelo novo à estatuária brasileira. Até onde nos foi possível conhecer, trata-se ainda de um modelo escultórico novo no Brasil, cujas referências prováveis são esculturas existentes em igrejas italianas, como Santo Stanislaus Kostka (1703), de Pierre Legros, em mármore colorido.

Por outro lado, uma das encomendas importante que Rodolfo Bernardelli recebeu nesses anos foi a execução do Túmulo de José Bonifácio, localizado atualmente no Panteão dos Andradas, em Santos (SP). Nascido em Santos, Bonifácio havia sido sepultado em 1838 na Capela da Igreja de Nossa Senhora do Carmo na mesma cidade. Em 1886 foi encomendado a Rodolfo Bernardelli pelo Conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira um túmulo para o Patriarca da Independência. A escultura foi executada na Itália por volta de 1888 e enviada ao Brasil no ano seguinte, quando os jornais publicam notícias de que 19 caixas que a continham se encontravam presas na Alfândega de Santos.

Já o emprego da policromia, com uso de materiais diversos, confere à obra um outro significado. O corpo morto de Bonifácio, em mármore branco, contrasta com o bronze do panejamento. Segundo relata a historiadora Ana Rosa Cloclet da Silva, em seu leito de morte José Bonifácio olha para a colcha de retalhos que o cobria e aludindo à heterogeneidade de classes, cores e etnias que compunham o corpo nacional, afirma: “O que afeia estes bordados é apenas a irregularidade do desenho...”.17 É possível concluir que a existência do panejamento na obra possa ser entendido como uma alusão a essa frase, uma síntese do pensamento social de Bonifácio.

O trabalho fora concebido inicialmente para ser colocado na capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Como a possibilidade de colocação no interior da igreja não se concretizou, a escultura foi disposta em uma área rebaixada no claustro do Convento do Carmo, para onde foi trasladada a sepultura de José Bonifácio. Em 1923 443

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 3 MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar. MARQUES, Luiz (org.). 30 mestres da pintura no Brasil. São Paulo: Masp, 2001 p.33. 4 PARECER da Seção de Escultura sobre os trabalhos de Rodolfo Bernardelli, estudando em Roma, 13 jan. 1882. Arquivo Histórico do Museu Nacional de Belas Artes/ Arquivo Pessoal de Rodolfo e Henrique Bernardelli. APO 196. 5 NIMIL. Nas Bellas-Artes. Gazeta da Tarde. Rio de Janeiro, ano 5, n.199, 27 ago. 1884. p.2. Grifo nosso. 6 Ibid., p.253. 7 VACCANI, Celita. Rodolpho Bernardelli: vida artística e características de sua obra escultórica. Rio de Janeiro: [s.n], 1949.Tese de concurso para a cadeira de Escultura da ENBA. p.80 8 MIGLIACCIO, Luciano. Aula ministrada aos alunos de PósGraduação do IFCH/UNICAMP, em outubro de 2007. 9 PARECER da Seção de Escultura sobre os trabalhos de Rodolfo Bernardelli, estudando em Roma, 13 jan. 1882. Arquivo Histórico do Museu Nacional de Belas Artes / Arquivo Pessoal de Rodolfo e Henrique Bernardelli. APO 196. Grifos nossos. 10 MALTESE, Corrado. Storia dell’arte in Italia: 1785-1943. 2ª ed. Torino: Giulio Einaudi editore, 1992. 11 LAMBERTI. Mimita. Aporie dell´arte sociale: il caso Proximus Tuus. Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa. Pisa, ´serie III, v. XIIi, 4, p.1088. 12 Cf. DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. Impressões de um amador / textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. pp.111-112. 13 JÚNIOR, França. Echos Fluminenses. O Paiz, Rio de Janeiro, 9 ago, 1886, p.2. Grifo nosso. 14 DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. Impressões de um amador / textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. pp. 94-95. 15 SOBRINHO, Costa e Silva. Um túmulo para o Patriarca da Independência. Santos, s.n., p.18. 16 PEQUENOS Echos. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 12, nº 451, 19 fev. 1887. 17 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. O homem que inventou o Brasil. Nossa História, Rio de Janeiro, ano 1, n. 9, julho de 2004, pp. 84-87

Nos anos 1880 a luta pela abolição, que fora encabeçada por José Bonifácio nos anos 1820, se tornara um fator político importante, contando inclusive com o apoio da Casa Real. É importante lembrar que a Família Real participou das subscrições para a realização do túmulo de José Bonifácio. A Princesa Isabel havia conseguido com o papa a autorização especial para colocação da obra no interior da Igreja. Isto entretanto não chegou a ocorrer. Segundo o próprio Bernardelli, que fora ver o trabalho em 1921, ou seja, antes da criação do Panteão dos Andradas, a obra se encontrava um pouco desfigurada devido a sua exposição ao ar livre e ele, que muito trabalhara contando com um efeito, percebe que ao final não se concretizara... Podemos concluir que a realização do túmulo de José Bonifácio, no qual o personagem político foi fixado pelo artista no momento das suas exéquias, criando dessa forma uma monumentalização de seu velório, estivesse vinculada a uma clara mensagem política, assim como ao contexto dos últimos anos da monarquia católica no Brasil. Nesta comunicação procuramos abordar alguns aspectos menos conhecidos da produção do escultor Rodolfo Bernardelli, visando compreender a trajetória do artista nos anos finais do Segundo Império e a relevância de algumas obras que executou nesse período. Notas 1

Doutoranda em História da Arte pelo Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual em Campinas, desenvolvendo pesquisa sobre a produção do escultor Rodolfo Bernardelli na Primeira República e a sua atuação na direção da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Luciano Migliaccio. Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 2 Consta da coleção do Museu Nacional de Belas Artes e uma cópia integra ainda o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

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A representação de afro-descendentes é uma questão que caracteriza o processo de modernização artística no Brasil. É um tópico para o qual a divisão da arte em tipos, estilos e segmentos – acadêmica, moderna, sacra, popular e contemporânea, entre outras divisões – ainda muito cristalizada na história da arte no Brasil, implica algumas diferenças, mas não com sentido evolutivo, nem qualitativamente hierárquico. A relação entre arte e afro-descendência no Brasil tem um capítulo especial no final dos oitocentos e no início do século XX, na conjuntura constituída pelo acirramento do processo abolicionista, com o fim da escravatura e a proclamação da República. Presente desde a transposição forçada de africanos à América para serem escravizados, a questão da representação de africanos e afro-descendentes no Brasil é uma que só se complexificou com o passar do tempo e a difusão dos mesmos pelo extenso território brasileiro. Imagens de si e do outro elaboradas por negros, ou não, em processos intricados de representação e auto-representação.1 Desde o início da colonização, durante e após a vigência da escravidão, a questão da autorepresentação pode ser observada em realizações nas quais autorias individuais ou coletivas de africanos e afro-descendentes abordam temas afros ou não. Uma vertente é constituída por obras nas quais os negros participam da construção do aparato de poder dos colonizadores, manipulando os códigos artísticos dominantes, se representando com modos mais ou menos enviesados, subreptícios. Outro caminho é o de resistência à dominação cultural, com a manutenção às escondidas de práticas artístico-religiosas com origens africanas, que constituem auto-imagens mantidas em segredo ou camufladas.

afro-modernidade - representações de afrodescendentes e modernização artística no brasil roberto conduru *

No processo de domínio dos princípios e da linguagem da arte ocidental, os artistas afrodescendentes precisaram se adaptar, ainda no primeiro quartel dos oitocentos, à novidade que significou a implantação do sistema de ensino de arte acadêmico. Contudo, foi a partir no final do século XIX que a questão da representação artística dos afro-descendentes no Brasil nesse sistema alcançou maior relevo com as obras de artistas negros atuantes a partir da década de 1860 e até a de 1930. Pode ser dito que a auto-imagem não parece ser a questão central, nem mesmo uma muito relevante nas obras dos artistas negros que se formaram na Academia Imperial e, depois, na Escola Nacional de Belas Artes, a partir do último quartel dos oitocentos. Estevão Silva (ca.1844 - 1891), Antônio

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Firmino Monteiro (1855 - 1888), Antônio Rafael Pinto Bandeira (1863 - 1896), os irmãos João (1879 - 1932) e Arthur Thimótheo da Costa (1882 – 1922) parecem ocupados em exibir o domínio das ditas belas artes para atender aos anseios de uma clientela ocupada principalmente em mimetizar o gosto europeu, em constituir uma imagem da nação segundo o modelo civilizatório ocidental. Sem parecerem ter se preocupado com questões culturais africanas, eles se distinguiram no campo da arte por dominarem as referências artísticas européias contemporâneas, se afirmaram socialmente atendendo às demandas e gostos da elite sócio-cultural brasileira. Se a afrodescendência desses pintores não obriga suas paisagens, retratos e naturezas-mortas a imediatamente delinearem um estilo afro-brasileiro, vincula suas obras à problemática cultural afrodescendente justo por serem complexas autorepresentações, além de serem representações do outro. Suas obras não figuram temas afro-referidos, mas externam suas visões da cultura ocidental, os modos como as apreendem e são por ela cativados.

Walmir Ayala, na década de 1970, reitera a imagem do artista como uma personalidade tumultuosa ao dizer: “Era de gênio irrequieto e turbulento. De uma vez, em plena solenidade de distribuição de prêmios na Academia, levantou-se e queixou-se a D. Pedro II, presente ao ato, de que tinha sido vítima de injustiça não sendo premiado. A comissão designada para apurar o incidente, após ouvi-lo, puniu-o com a pena de suspensão dos estudos por um ano”.3 Contudo, caso se atente como esses textos reiteram e estimulam o entendimento preconceituoso dos afro-descendentes como ameaças à paz social, inimigos da civilização, é possível perceber quão operativos são discursos como esses para a manutenção contemporânea da condição marginal dos negros na sociedade brasileira. Em conjunto, as obras desses pintores abarcam os gêneros da pintura na época, transitam entre paisagem, retrato, natureza-morta, pintura histórica, temas religiosos e cenas de costume, embora a natureza-morta seja um destaque na obra de Estevão Silva, a pintura histórica, na atuação de Firmino Monteiro e a paisagem, nas pinturas dos irmãos Timótheo da Costa. No arco de tempo delineado pelo conjunto de obras desses pintores negros, é possível observar a influência crescente, embora en retard, além de neutralizadas pela lógica acadêmica, de tendências artísticas de renovação provenientes da França, especialmente o caminho do Realismo ao Impressionismo. Natureza-morta e paisagem são figuradas com sentido mais realista do que simbólico. Aos poucos, também os elementos próprios à pintura vão ganhando proeminência na representação, notadamente a configuração de coisas e espaços com cores e luz mais naturalistas e a evidência da pasta de pigmento e do gestual do pintor.

Sobre Estevão Silva, que é considerado “o primeiro pintor negro de destaque formado pela Academia Imperial de Belas Artes”, 1 Gonzaga Duque escreveu: Quem, como ele, vem de uma rude raça oprimida, e vem sofrendo, e vem lutando [...] vê sempre sanguíneo, vê sempre desesperadamente amarelo. Repare-se, agora, o contraste brusco das sombras cuja cor nunca conseguira perder, apesar do tom pesado, algumas vezes muito violento que punha nos seus quadros. É negro, sem leveza, sem transições. No mesmo texto, de 1891, publicado dias após a morte do pintor, o crítico afirma: “Essa prodigalidade de vermelhos, de amarelos e de verdes não é nem pode ser mais do que um reflexo transfiltrado do seu instinto colorista, vibrátil às sensações bruscas, como é peculiar à raça de que veio.”2 Trata-se de um juízo explicitamente calcado em determinismos raciais, como se o pintor, por ser negro, escolhas não tivesse, opções não fizesse. Juízo derivado de uma visão dos negros como humanos inferiores aos outros humanos porque mais próximos dos animais e, portanto, inexorável e compulsivamente atados às “sensações bruscas”. A princípio, causa estranheza menos encontrar esse obtuário crítico no final do século XIX, na esteira do processo abolicionista, e mais a persistência de juízos desse tipo algum tempo depois (ainda hoje?). O verbete sobre o pintor no Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos, organizado por Carlos Cavalcanti e

Além de lhes garantir a sobrevivência, suas obras alcançaram reconhecimento público e lhes possibilitaram inserção social mais destacada, embora nunca nas instâncias mais altas do meio artístico. Nenhum deles conseguiu o reconhecimento máximo: o prêmio de viagem ao estrangeiro, concedido na Exposição Geral de Belas Artes. Talvez a afro-descendência fosse um empecilho para se alcançar a láurea máxima no sistema de arte acadêmico. Disto o fato mais significativo é a recusa de Estevão Silva, na 25ª Exposição Geral de Belas Artes, de 1879, diante do Imperador D. Pedro II, de receber um prêmio outro que não o máximo, como era suposto por 446

Representaçõ1es de afro-descendentes e modernização artística no Brasil

Um segundo caminho pode ser delineado com obras nas quais africanos e afro-descendentes trazidos forçadamente ao Brasil como escravos, em vez de autores, são temas, tendo suas imagens e seus modos de viver representados por outros. Essas obras fazem parte de um conjunto mais amplo, que foi produzido desde o início da colonização européia da América com o intuito de conhecer, documentar e dominar o Novo Mundo. Além de mapas e vistas da paisagem americana, se encontram registros de características físicas e culturais das populações nativas e dos povos que emigraram para a América. Nesse conjunto, se destacam os registros dos tipos corpóreos e hábitos culturais dos africanos e afro-descendentes, os quais foram produzidos, em sua maioria, por estrangeiros, que dominavam os sistemas europeus de representação: Jean-Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas e Thomas Ender, entre outros.

muitos então. Recusa que lhe custou a suspensão das atividades discentes durante um ano. Apesar de também terem atuado na docência, nenhum dos cinco artistas negros aqui destacados chegou a se tornar professor na instituição mor no sistema de ensino de arte à época: a Academia Imperial, depois Escola Nacional de Belas Artes. Por volta de 1880, Estevão Silva atuou como professor no Liceu de Artes e Ofícios, no Rio de Janeiro; em torno de 1887, Firmino Monteiro foi professor de pintura, na Escola de Belas Artes da Bahia, e de perspectiva e teoria da sombra, no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, em Salvador; entre 1887 e 1890, Pinto Bandeira lecionou desenho no Liceu de Artes e Ofícios de Salvador; em 1919, Arthur Timótheo da Costa fundou com outros artistas a Sociedade Brasileira de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Nas obras de Pinto Bandeira e Arthur Timótheo da Costa, encontram-se alguns retratos de mestiços e afro-descendentes que podem ser conectados à questão da (auto-)representação dos negros naquela conjuntura. Os retratos feitos por ambos de um garoto e um jovem negro sugere a investigação sobre a recorrência do tema da infância e da juventude negra até hoje, passando pela pintura de José Pancetti e a fotografia de Paula Trope, entre outros.

Esse interesse pelos negros e suas culturas manteve-se após o fim da escravidão, persistindo até hoje a atração, estrangeira e nativa, pela paisagem física e cultural de origem africana no Brasil. Entre muitos outros, é possível citar autores como José Medeiros, Pierre Verger, Madalena Schwartz e Sebastião Salgado, cujas obras oscilam entre a documentação histórico-antropológica e a criação artística. Apesar da diversidade de modos de representação, derivadas de diferentes interesses artísticos, da maior ou menor empatia com o tema e dos posicionamentos sociais desses artistas, os afro-descendentes continuam sendo tratados, dominantemente, como elementos exóticos.

Digna de destaque é a tela de Pinto Bandeira, de 1890, cuja imagem de uma mulata finamente vestida, penteada e adornada, de acordo com costumes e gostos ditados a partir da Europa, deixa a dúvida sobre a pertinência em ler sentidos múltiplos, abrangentes, possivelmente conectados às práticas culturais afro-descendentes, tal como aludidos em seu título: Feiticeira. A mulher em tela enfeitiça apenas com seus encantos femininos ou também com poderes mágicos disfarçados com trajes e enfeites civilizados? Especiais também são os auto-retratos de Arthur Timótheo da Costa: se na pintura de 1908 ele foca em seu rosto, na obra de 1919, aparece quase de corpo inteiro; enquanto na primeira ele encara decididamente o espectador, na segunda, a sombra de uma boina ajuda a arrefecer seu olhar; em ambas as telas, aparece trajado elegantemente, portando indumentária e instrumental característicos dos pintores acadêmicos à época. Assim, constitui sua autoimagem menos como um negro e mais como um artista civilizado e bem-sucedido. Como signos culturais, esses retratos e auto-retratos parecem querer defender a possibilidade de integração dos negros à cultura civilizada com o abandono de suas práticas sociais prévias, tanto a escravidão quanto as de seus antepassados na África.2

Se a problemática sócio-cultural afro-descendente no Brasil não parece ser tematizada clara e decididamente nas obras dos artistas negros no final do século XIX e início do XX, ela é apresentada em obras de outros artistas vinculados ao sistema acadêmico. Com efeito, a representação artística dos afro-descendentes no Brasil tem uma etapa especial, perceptível em um conjunto de obras que abordam de variados modos algumas questões da cultura afro-descendente no Brasil. O que apenas parcialmente indica outro rumo para a representação dos negros em relação ao que foi feito anteriormente. No entender de Heloisa Pires Lima: “A presença negra no espaço visual da década de 1880 esteve entre o desprezo e o desejo, entre o centro e fundo. Porém a imagem republicana revigora as conotações depreciativas numa nova oficialidade que vai estruturando uma ideologia que se consolida como força social”.4 447

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

brasileiras. O olhar é um tanto etnográfico, embora pouco neutro, ao figurar os elementos usados pela mulher no processo de adivinhação e outras práticas religiosas: serpente, ramo vegetal, cesto, tabuleiro e outros estranhos utensílios, delineando um cenário desequilibrado, possivelmente à rua. Presa ao chão, a mulher negra parece circunspeta (à espera de clientes?), enquanto a outra (sua assistente ou cliente?) se apóia encurvada sobre o móvel, configurando um clima indolente, algo torpe.

No final do século XIX, persiste a visão da afrodescendência como problema para a sociedade brasileira. O quadro emblemático a esse respeito é Redenção de Cã, de Modesto Brocos, de 1895. O pintor com certeza se preocupou com a tradução visual em duas dimensões de formas, cores e texturas dos elementos representados, de modo a retratar fidedignamente as condições efetivas de vida nos extratos mais baixos da população. Entretanto, para além de seu aparente realismo, a obra é alegórica. O título é a chave de leitura, aludindo à possibilidade de salvação dos negros, a partir da suposição de que Cã, o filho mais jovem de Noé e pai do servo Canaã, seria a origem dos camitas e dos demais povos da raça negra, todos destinados à servidão. Na tela, uma senhora negra parece agradecer a Deus pelo nascimento em sua família de uma criança de pele clara, a partir do cruzamento de sua filha mulata com o genro branco. No centro do quadro, na mão da criança, a laranja redonda e luminosa é um signo de perfeição em meio ao ambiente degradado, com suas paredes carcomidas e coisas gastas, signo das desejadas gerações futuras: na mão do membro mais novo da família, a fruta guarda as sementes de descendentes mais e mais alvos. Essa cena é uma alegoria do desejo, difundido à época, de purificação racial por meio do progressivo branqueamento da população e, assim, de liberação dos estigmas vinculados às condições sociais dos negros. Como disse Rafael Cardoso, a tela é “uma ilustração didática de uma aspiração comum à sociedade brasileira da época – a terrível ideologia do branqueamento da população, imperativo que ainda vigora em alguns recônditos da mentalidade nacional.”5

Em contraposição a essas obras de desqualificação visual nada sutil, que participam do processo de marginalização social dos afro-descendentes, podem ser destacadas algumas obras que procuram configurar outra imagem dos afrodescendentes no Brasil. Um pouco antes do período aqui em foco, deve ser ressaltada a excepcionalidade de uma obra: Retrato do intrépido marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana, de 1853, pintada por José Correia de Lima. Esse “retrato a óleo de um herói negro” está, no entender de Rafael Cardoso, conectado ao “interesse de Paula Brito em produzir e divulgar a imagem de Simão”, o marinheiro africano que salvou 13 pessoas em um naufrágio ocorrido ao sul de Laguna naquele mesmo ano, como parte da militância do editor visando a “abolição da escravatura e a eliminação do preconceito de cor no Brasil.”6 Entre as representações de figuras públicas, de personagens destacados na sociedade brasileira, pode ser destacada a tela Príncipe Obá, de 1886, na qual Belmiro de Almeida se vale de referências recentes na arte do retrato, particularmente da obra de Édouard Manet e de pintores do Impressionismo, para representar a figura polêmica do alferes Cândido da Fonseca Galvão, que participou da Guerra do Paraguai como membro do Corpo de Voluntários da Pátria e se tornou próximo ao Imperador. Vestido segundo os padrões de elegância da época: fraque, luvas, cartola, bengala etc., “a figura negra, embora difusa sob pinceladas numa direção impressionista, dá nome ao quadro e ganha o centro da tela. A identidade, não mais genérica, evidencia um certo lugar como patrimônio a ser representado.” Ainda segundo Heloisa Pires Lima:

Também é possível perceber o sentido de desvalorização e de construção de um lugar secundário, marginal, para os negros na conjuntura social, na idéia do processo abolicionista que Pedro Américo ajuda a forjar visualmente. Em Libertação dos escravos, de 1889, ele compõe uma alegoria pomposa do fim da escravidão no Brasil: ocupando o centro inferior do quadro, três negros (uma criança nua e um casal seminu, mal coberto por maltrapilhos) estão inferiorizados – agachados, encurvados, estão à mercê da graça de alvas musas, sob a proteção da igreja católica, suplicam pelo fim da condição de cativos, agradecem submissamente pela conquista da liberdade, pelo processo de emancipação no qual parecem só ter papel passivo.

O quadro de Belmiro de Almeida [...] carrega uma ambigüidade notável. Os contornos definem uma postura corporal principesca, onde as luvas, a cartola no estilo d. Pedro II, a bengala, o pince nez de ouro, articulam uma nobreza negra. Nesse esquema, até o guarda-sol, um motivo estrutural de certos reinos africanos, reforça a composição.

Com autoria de Modesto Brocos, Macumbeira exibe o misto de atração e repulsa, preconceito e encantamento gerado pelas religiões afro448

Representaçõ1es de afro-descendentes e modernização artística no Brasil

Todavia, a face está sombreada. A construção torna imprecisa, inclusive uma humanidade, pois o rosto, a barba, sombreados não alcançam definição. Obá pisa sobre sua sombra, a imagem refletida, talvez, dos ainda não inteiramente cidadãos naquele ambiente ou o negativo de uma cidadania pretendida.7

problemas devido a suas ambigüidades. Por um lado, o erotismo reforça a visão do negro como uma máquina sexual, próximo da animalidade. Por outro, ao afastar a vinculação da negritude à escravidão, a pintura de Almeida Júnior pode ser qualificada tanto como alienada, quanto como um esforço para recuperar e constituir referências positivas para os afro-descendentes, ao evidenciar a presença negra em outras conjunturas históricas que não as sociedades tidas então como primitivas na África. Outra tela de Almeida Júnior – Negra, de 1891 –, é difícil não ler como uma crítica explícita do pintor à condição marginal dos afrodescendentes após o fim da escravatura.

Pode ser acrescentado que a indumentária elegante, de elite, ocidental, apesar de sua alcunha articulá-lo a tradições africanas, contrasta com o entorno, mal definido, sem estruturação clara e firme, evidentemente tosco, mal formado, já degradado, ou ambos. E que a sombra confortável propiciada pelo guarda-chuva alivia apenas o seu portador da luz excessiva e, provavelmente, do calor inclemente. Ou seja, o Príncipe Obá é uma exceção social. É uma exceção que deve permanecer às escuras.

Não deixa de ser crítico também o tom adotado por Modesto Brocos em Engenho de mandioca, de 1892, que é um retrato realista das precárias condições de trabalho e vida dos afro-descendentes no Brasil, ao representá-los sentados no chão, a descascar mandioca, quase como continuidades da terra, das raízes, das coisas. Paisagem com lavadeiras, do mesmo autor, também apresenta trabalhadores rurais vinculados à terra, à procura de algum conforto à sombra no intervalo (roubado?) do trabalho sob o sol. Nesse sentido, em Mãe preta, de 1912, Lucílio de Albuquerque aborda a figura social da mulher afro-descendente no Brasil, mais especificamente a da mãe preta, apresenta a dor de uma ama-de-leite, também presa ao chão, que deve dividir vitalidade e amor entre uma criança negra (seu filho?) e uma branca (filho dos senhores, dos patrões?). A figuração crítica conduz ao retrato resignado. Nesse caminho, é possível destacar Cabeça de preto, na qual Henrique Bernardelli configura um perfil da sabedoria humilde dos negros idosos, derivada da mistura de culturas ancestrais ao sofrimento, resistência e marginalidade gerados pela escravidão, a partir da qual é fácil chegar à figura social do preto velho e ao universo religioso afro-descendente no Brasil.3

Algumas décadas adiante, pode ser destacada a configuração retrospectiva e ambígua de um dos heróis da negritude que continuaria a ganhar outras representações a partir de então8: o Zumbi pintado por Antônio Parreiras em 1927. Na tela, o líder e mártir do Quilombo de Palmares é figurado como um guerreiro quase natural. Vestido de modo simples, Zumbi é um guerreiro sério e altivo que, de pé, apóia no chão a arma que segura com firmeza tranqüila, enquanto olha ao longe, em vigília contra os inimigos. É uma figura cuja solidez contrasta com a indefinição multicolorida da paisagem, a qual é um tanto estranha às exigências sóbrias e perenes de um retrato histórico, além de injusta: sem indícios de arquitetura e outros bens produzidos pelo engenho humano dos ex-escravos, reduz as condições socioculturais do Quilombo à natureza. Assim, o pintor reitera o entendimento dos afro-descendentes como seres próximos, se não pertencentes, ao mundo animal. Embora esteja vivo, apto à luta, em prontidão contra os inimigos, o Zumbi de Antonio Parreiras parece um tanto animalesco.

Como é sabido, a passagem do tempo não significou mudanças minimamente positivas, seja na condição social dos afro-descendentes, seja no modo como são representados. Ainda na década de 1930, é possível encontrar a visão pejorativa dos africanos e afro-descendentes em uma obra de Belmonte, ou Benedito Carneiro Bastos Barreto. Apesar de ter incomodado a muitos com suas críticas veiculadas em ilustrações, caricaturas e charges, Belmonte parece ter defendido visualmente o mito da hierarquia entre as raças. Em As três raças, com poucas cores, dois pares de tons opostos no espectro cromático – preto e branco, verde e vermelho –, aplicados em chapadas homogêneas, ele recorta planos que, mais do que

No processo de constituição de outra imagem dos afro-descendentes, devem ser consideradas representações de figuras anônimas e tipos sociais. Na pintura de José Ferraz de Almeida Júnior, há variação no tom de abordagem da questão étnica no Brasil. Pode-se ler um elogio velado à negritude em Príncipe negro, que figura um negro altivo, sentado em tecidos alvos, portando uma única peça de indumentária, um turbante, o qual é suficiente para evocar o clima oriental. Nessa tela, o orientalismo parece é só aparentemente escapista, pois ajuda a configurar uma alteridade múltipla: um negro não submisso em tempo e lugar remotos, quase indefiníveis. O que não está isento de 449

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

delinear figuras, configura uma paisagem cultural: diferenças, interações, hierarquias.

nosso carnaval”.9 Ela os exibiu na Pró-Arte Sociedade de Artes, Letras e Ciências, no Rio de Janeiro, em 1933, e no Clube Brasileiro, em Lisboa, em 1934, onde proferiu uma conferência destinada, segundo sua autora, “a servir de legenda aos desenhos”. Exposição e fala que tiveram grande repercussão em Portugal e foram publicadas em separata da revista Mundo Português, no ano seguinte. Desenhos e palavras que só foram publicados no Brasil 50 anos depois, como livro, em cuja introdução Lélia Gontijo Soares defende que

A economia das cores é simbólica: elas identificam e atribuem valores aos seres e objetos representados. O vermelho usado para o índio é um indício da natureza, à qual os nativos americanos parecem eternamente vinculados, pois remete ao Pau-Brasil, a árvore sanguínea que, além de ter gerado muita riqueza para os colonizadores, deu o nome à colônia e, depois, ao país. O africano é representado em preto, em referência óbvia à pele dos nativos na África, o que reitera a fixação dos mesmos como uma única raça em vez de pertencentes a diferentes sociedades. O plano verde configura mar e montanha: tanto, especificamente, o oceano Atlântico e o continente americano, locais do jogo sócio-cultural, quanto, de modo geral, a natureza a unificar as raças. Pequenos toques brancos aparecem no cocar do índio, em componentes do navio e na orelha do negro. O europeu é representado pela caravela, que surge em negativo, a partir do delinear das outras figuras, e tem a cor do papel – modo de figurar que associa embarcação e papel como símbolos civilizatórios em oposição aos elementos dominantemente naturais que os circundam.

“tanto os estudos de folclore como a prática do desenho corresponderam, em Cecília, a uma necessidade de entendimento e de expressão do mundo íntegra, una. Àquela necessidade de ‘saber o nome certo das coisas’ referida por ela, e que pode ser atingida ‘mais especificamente pela palavra’ mas também, acrescentamos, pelo desenho, pelo gesto, ou pela ‘arte de um educador de se fazer presente na alma de seus alunos’ para usar ainda uma expressão sua”.10 O sentido de inovação não deriva apenas das instituições nas quais Cecília Meireles apresentou seus desenhos e palavras. Dados novos em sua produção, essas reflexões gráficas e textuais também são inovadoras no campo de estudos sobre a cultura negra. Ainda que não tenha se constituído como uma pesquisadora específica da cultura afro-descendentes no Brasil, seus desenhos e o texto a eles correspondente estão entre as realizações pioneiras nesse campo, como as de Modesto Brocos, Nina Rodrigues e Artur Ramos, que abriram caminho para outras tantas desde então.

Não está a potência gráfica da obra a serviço da “fábula das três raças”? Não é ela uma ilustração da idéia de superioridade dos europeus brancos sobre os nativos e os africanos? Sim, em As três raças, Belmonte ilustra e defende os preconceitos persistentes à época: a inferioridade dos africanos e afro-descendentes frente aos índios e, sobretudo, aos portugueses. As tão bem aplicadas cores delineiam estereótipos: o africano é um guerreiro cabisbaixo, cujas armas pouco se diferenciam de seu corpo – sinal da fraqueza de sua cultura, vista como primitiva –, e está subjugado pela caravela portuguesa – signo da moderna tecnologia européia –, pela montanha e pelo indígena – símbolos da natureza pujante e atemporal americana.

O texto exibe o misto de repulsa e atração, encantamento e preconceito, que pode ser observado em grande parte das abordagens das manifestações culturais afro-brasileiras. Juízo que causa estranheza atualmente, quando é exigido que o pensamento seja politicamente correto, procurando entender as razões dos outros. A meu ver, entretanto, o que deve ser focado nessa obra é o valor positivo que a autora atribui às práticas culturais afro-descendentes, as quais ela parece ter que efetivamente observado, provado – se não, como poderia ela dizer ser “uma papa consistente” o angu e “muito ardentes” as pimentas do molho feito pela baiana?

A obra é, portanto, uma expressão visual do racismo pseudocientífico vigente quando foi produzida, que defendia o branqueamento da população brasileira. Como não há o tom crítico usualmente atribuído ao trabalho de Belmonte, com essa imagem ele se perfilou àqueles que defendiam (e defendem) uma hierarquia das raças, a qual asseguraria a superioridade dos brancos como grupo dominante na sociedade brasileira.

Cecília Meireles evidencia compreensão da importância da plasticidade concreta das mesmas, cuja cultura material é fundamental na estruturação simbólica e na ritualística. Também tem consciência da necessidade de seu registro visual. Se o tom

No pólo oposto está o conjunto de desenhos que Cecília Meireles fez, entre 1926 e 1934, procurando fixar “o ritmo do batuque, do samba e da macumba – e a indumentária característica da ‘baiana’ do 450

Representações de afro-descendentes e modernização artística no Brasil

A negra, obra de Tarsila do Amaral de 1923, foi criada em Paris, no contexto de descoberta pela artista do interesse europeu pela arte negra, do incentivo de Mário de Andrade para que não se subjugasse às referências européias, dos exemplos na obra de Fernand Léger. Nessa pintura, a monumentalidade é tão crítica quanto afetiva, além de algo laudatória, ao explicitar por meio da dissociação entre fundo abstrato decorativo e figura simbólica, da articulação de signos ambíguos que se referem a membros corpóreos devido às posições que têm na figura, as manipulações sociais, afetivas e sexuais impingidas às mulheres negras. Vinicius Dantas sintetizou a complexidade da tela ao dizer que

do texto é objetivo, os desenhos trilham um caminho entre a etnografia e a ilustração artística que pode ser conectado aos desenhos e pinturas de Carybé, à fotografia de Pierre Verger, José Medeiros e Adenor Gondim, que oscilam, cada qual a seu modo, entre objetividade e subjetividade em suas abordagens de mitos, elementos e práticas rituais da cultura afro-brasileira. Conectados, desenhos e texto não estão subordinados hierarquicamente, pois se iluminam, esclarecendo alguns pontos, deixando outros tanto à sombra. Se o texto é descritivo, enumerando elementos que compõem figuras, coisas, cenas, espaços e acontecimentos, os desenhos os ilustram de modo mais livre, sugestivo. Ecoando seus temas – as “danças negras” e a “baiana” – os desenhos não só fixam gestos de grande significação cultural. Algumas vezes, deixam evidentes os gestos que os constituíram. Assim, exalam um “ar contidamente erótico” que deriva tanto da cena figurada quanto do ato gráfico, do gestual íntimo de Cecília Meireles nos desenhos que a enlaçam ao universo afro-brasileiro, pelo qual ela foi evidentemente seduzida e ao qual ela pretende atrair os que seduz com suas imagens e palavras.

A negra é uma alegoria (cristã?) da maternidade e (afro-brasileira) da terra, um totem pagão cuja poesia emana da estranheza em face do Outro primitivo e latente, mas é também alegoria nacional, cartaz publicitário, artigo de exportação, cromo patriarcal, mãe ancestral, “contraste de formas”, fetiche sexual, manifesto modernista.11 Outras obras de Tarsila do Amaral da mesma década de 1920, como Carnaval em Madureira e Morro da Favela, dão continuidade ao processo de miscigenação de elementos pictóricos e temas ocidentais e afro-descendentes.

A atenção dada então à cultura popular incentivou os artistas a olharem de modo especial algumas práticas e figuras oriundas das culturas africanas, as integrando ao ideário artístico formador da nação brasileira. Entretanto, é preciso ver como, no Brasil, esse interesse por questões culturais afrodescendentes foi de segundo grau, em boa parte estimulado e filtrado pela valorização européia das culturas entendidas então como primitivas.

Menos focados na linguagem pictórica do que no tema são os elogios à mestiçagem nas visões de Di Cavalcanti e Cândido Portinari, cujas obras participam ativamente do processo de construção de afro-descendentes como tipos sociais míticos. Tema dominante na obra do primeiro, a mulata é por ele apresentada como paradigma de beleza nacional. Suas pinturas se querem elegias pictóricas às mulheres afro-descendentes que subvertem os padrões estéticos ocidentais impostos pela cultura bel artística, embora raramente os enfrente plasticamente, insistindo na objetificação sexual da mulher negra. Em Mestiço, de 1934, o segundo apresenta o fruto da mistura étnica como emblema da pujança nacional. Na extensa obra de Portinari, tão dedicada à cristalização monumental e mistificadora de tipos populares nacionais, os negros aparecem também como a mulher sofredora, o boêmio, além da figura do bravo e forte trabalhador.

Além disso, o interesse por questões culturais afrodescendentes não estava isento de preconceitos, nem imune a mitificações e cerceamentos. Persistiu o olhar etnográfico, mais interessado na caracterização de tipos e costumes vinculados a classificações étnicas do que na absorção de práticas culturais e artísticas, que continuaram sendo marginalizadas. Contudo, é evidente como, imiscuída à estranheza, emerge uma empatia que produz outras visadas. Se atitudes diferentes se somaram à visão dos negros como uma raça inferior, elas não foram sempre, nem necessariamente positivas, pois também descambaram para mitos, estigmas e caricaturas, os quais até podem ter facilitado a assimilação social dos afro-descendentes, mas também foram e são aprisionadoras, imobilistas.

Nesse sentido, obras como as de Modesto Brocos, Pedro Américo, Belmonte, Cecília Meireles, Cândido Portinari e Tarsila do Amaral permitem dizer que o diferencial maior entre o modernismo vinculado à arte acadêmica e aquele que a ela pretendeu se opor é o valor do componente africano na formação da cultura brasileira. Em vez de 451

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 2

negativa, degeneradora, a miscigenação étnica tornou-se positiva. E mais: a miscigenação passou a ser paradigma e até emblema das relações culturais, artísticas. Foi questão de tempo, nada curto (en retard...), a partir da ação pioneira de Rubem Valentim, na década de 1940, os artistas afro-descendentes tomarem a si a tarefa de misturar referências da arte ocidental e da cultura afro-descendente em suas obras, complexificando suas representações.

Apud op. cit. CAVALCANTI, Carlos; AYALA, Walmir (org.). Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos. Brasília: MEC/INL, 1973-1980. 4 LIMA, Heloisa Pires. “A Presença negra nas telas: Visita às exposições do circuito da Academia Imperial de Belas Artes na década de 1880”. 19&20, Rio de Janeiro, DezenoveVinte, volume III, n. o 1, jan. 2008. http:// www.dezenovevinte.net/obras/obras_negros.htm. Acesso em fevereiro de 2008. 5 CARDOSO, Rafael. A Arte Brasileira em 25 Quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 106-107. 6 Id., Ibid., pp. 49-50. 7 LIMA, Heloisa Pires. Op. cit. 8 Sobre as representações de Zumbi, ver CONDURU, Roberto. “Zumbido alegórico – o monumento no Rio de J a n e i r o e o u t r a s r e p r e s e n ta ç õ e s d e Z u m b i d o s Palmares”. FREIRE, Luiz Alberto; RIBEIRO, Marília Andrés (org.) Anais do XXVII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. 9 MEIRELES, Cecília. Batuque, Samba e Macumba. Estudos de gesto e de ritmo, 1926-1934. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 10 SOARES, Lélia Gontijo. “Introdução”. MEIRELES. Op. cit., p. 13. 11 DANTAS, Vinicius. Que negra é esta? SALZTEIN, Sônia (Org.). Tarsila anos 20. São Paulo: Galeria de Arte do SESI, 1997, p. 48. 3

Notas * Roberto Conduru é graduado em Arquitetura e Urbanismo (UFRJ) e doutor em História (UFF). É professor de História e Teoria da Arte na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde dirige atualmente o Instituto de Artes. É autor de Arte Afro-Brasileira (C/Arte, 2007), Willys de Castro (CosacNaify, 2005) e Vital Brazil (CosacNaify, 2000) coautor de Brazil’s Modern Architecture (Phaidon, 2004) e A Missão Francesa (Sextante, 2003), além de ensaios sobre arte e arquitetura, publicados no Brasil e no exterior. É pesquisador do CNPq e Pró-cientista Uerj/Faperj. É membro e atual presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte. 1 “Silva, Estêvão (ca.1844 - 1891). Comentário Crítico”. Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais. http:// www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/. Acesso em fevereiro de 2008.

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capitulo 11 iconografia: intimidade e representações do feminino

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A tela A Carioca foi realizada pelo pintor Pedro Américo entre 1862 e 1863 – período em que o artista fazia sua formação em Paris graças ao famoso “bolsinho do Imperador” Pedro II. Em 1865, a tela é enviada à Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde recebe a medalha de ouro. Pedro Américo em agradecimento ao Imperador o presenteia com a tela que, para a surpresa do artista, é recusada pelo Mordomo Mor da Casa Imperial, Paulo Barbosa, por considerá-la licenciosa. A tela retorna para o ateliê do artista em Florença, onde viveu grande parte de sua vida. O destino da obra, após a sua recusa, é curioso, já que A Carioca despertando o interesse do Imperador Guilherme Primeiro da Prússia é por ele adquirida, alguns anos depois. Esta que vemos e que atualmente está exposta no MNBA é uma réplica com variações, pintada em 1882. Em 1884 esta réplica foi apresentada na Exposição Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro, quando, então, foi incorporada à pinacoteca da Academia, passando em 1937 a integrar o acervo do Museu Nacional de Belas Artes. A história do percurso acidental desta tela nos aponta para questões extremamente complexas no campo da recepção que as obra de arte em geral, e esta em particular, podem arte brasileira no século XIX – produção realizada suscitar nos circuitos pelos quais atravessa. Pois, como veremos, a primeira condenação da tela, por licenciosidade, parece ter bloqueado a sua recepção por parte do público e da crítica. Contudo, teria sido esta condenação por licenciosidade a razão pela qual a recepção da obra por parte do público e da crítica teria se divergido da intenção do autor? Neste texto pretendemos apresentar algumas digressões sobre a relação entre a criação da obra e sua recepção junto ao contexto artístico e cultural, levando em conta que a interpretação de uma obra não é uma atitude passiva ou estável, mas, ao contrário, por estar imbuída no contexto cultural é atitude interativa, dinâmica, colocando a obra em constante transformação.

imagens da nação: a carioca de pedro américo entre o ufanismo e a licenciosidade claudia de oliveira

Tomando o programa seguido pelo artista, a tela nos apresenta uma alegoria do Rio Carioca que nasce no Silvestre, desce o bairro do Cosme Velho, atravessa as Laranjeiras e deságua na Praia do Flamengo. Em 1503, a mando do Governador Geral Gonçalo Coelho, foi construída uma casa em sua foz, que marcaria para sempre a memória do curso d‘água no cotidiano da cidade. Os índios Tamoios que viviam na região passaram a chamá-lo de Carioca (que etimologicamente significa Casa de Homem Branco), termo que daria nome não só ao Rio como ao povo da cidade. O Rio ganhou importância ainda maior por ser a principal fonte 455

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de abastecimento de água da cidade durante três séculos, sendo que no século XVI ele começou a ser canalizado entre a sua nascente, no final da Rua Almirante Alexandrino, no Silvestre, até o Centro, onde a água era levada até o Largo da Carioca, passando por sobre um aqueduto – os Arcos da Carioca – até chegar ao grande Chafariz da Carioca, construído posteriormente para que a população da cidade tivesse acesso à água do Rio.

cruzamento entre a tradição européia, naquele momento expressa na linguagem Neoclássica, com as apreensões românticas do Brasil. A Carioca, ao contrário do que se esperava das pinturas na época, ou seja, imagens evocadoras de virtudes que exaltassem o patriotismo e a moral, mostrava uma mulher sedutora e, ao que parece, indigna da posição que desejava ocupar no conjunto das alegorias que valorizavam a história, o povo e a Nação. A tela parecia representar apenas a beleza física, mostrando um corpo nu, objeto de escândalo e corrupção deste mundo e da natureza, em conseqüência da depravação e privação da virtude. Ao contrário de uma figura ideal a forma física desta mulher a reenviava para o território humano, erótico, temporal, inteiramente distante da idealidade artística e patriótica desejada na época.

O que teria ocorrido na interpretação da tela que, de uma alegoria ufanista, foi interpretada como uma representação ofensiva e licenciosa da mulher carioca? A partir do programa seguido pelo artista, percebemos que a forma plástica por ele criada para apresentar a alegoria ao Rio Carioca foi à imagem de uma banhista exuberante, uma náiade, uma ninfa, que, como sabemos, na tradição mitológica clássica é uma divindade dos rios e das fontes, mas, no contexto da tela foi “abrasileirada” para expressar uma das mais caras imagens de exaltação da Nação: a exuberância e a potencialidade da natureza brasileira, um dos temas centrais do projeto romântico oitocentista – idealizado pelo Estado Imperial e encampado pela Academia Imperial de Belas Artes, sobretudo na gestão de Manuel Araújo Porto Alegre, diretor da Academia entre 1854 e 1857, e sogro do artista. Assim, a forma plástica criada por Pedro Américo, no contexto exposto acima, não se constitui apenas num fato estilístico, mas, ao contrário, assumiu outras funções, adquiriu novos sentidos, os quais romperam com a intenção primeira do artista. A tentativa de dar uma nova vida à tradição clássica, buscando antigos modos e caminhos para expressar novos objetos, parece, no contexto desta obra, ter sido frustrada.

A imagem, como uma evocação de um cenário das delícias parecia realçar um mundo escarnecido. O erotismo exótico que esta mulher parecia despertar soava como uma ofensa moral, destoando-se inteiramente do projeto artístico mais extenso centralizado pelo Estado Imperial e pela Academia de Belas Artes. Sobretudo, A Carioca no seu erotismo incorporava um ritual de celebração que introduzia no clássico e no apolíneo um elemento inegavelmente dionisíaco. Portanto, estava diretamente relacionada ao irracional. Encarnava o “selvagem”. A Carioca ao incorporar uma intensa produção simbólica, apresentava uma carga dramática moral que a afastava da construção dos novos padrões de uma Nação que se queria civilizada. O simples e constante recurso aos exemplos gregos, a obrigatória exaltação da virtude antiga, modelo da famosa virtù renascentista, do saber antigo, do antigo valor e grandeza de ânimo, parecia, neste caso, levar precisamente a pesadelos humilhantes para os modernos.

Como sabemos, o Estado Imperial investiu não só nas Belas Artes, mas particularmente, elegeu a pintura como um emblema de valorização das virtudes morais e cívicas da comunidade nacional em formação, e também como um instrumento de refinamento do gosto nacional e de exaltação de amor à Pátria: funções extremamente importantes na construção do orgulho, da Civilização e da Cultura Nacional em formação. A Arte traduziria e consubstanciaria uma “memória” necessária à identificação e afirmação dos valores culturais da Nação que se organizava. A virtude deveria conduzir a uma criação artística voltada para a exaltação do patriotismo e da ordem. Neste aspecto a Arte empenhava-se em criar uma imagem na qual, a Pátria brasileira deveria vincular-se à tradição européia e, por conseqüência, caminhar na direção oposta à barbárie. A Arte faria o

Tomando a caricatura de Henrique Fleius apresentada na Semana Ilustrada de 5 de março de 1865, a recepção da obra pelo público e pela crítica fora também escandalosa e ofensiva, mas suscitava o erotismo. Pois, como podemos ver na caricatura, Fleius nos apresenta um casal que olha a imagem no seguinte contexto. A mulher que olha a tela zangada e ofendida puxando o marido que olha para o nu através de seu pince-nez com extrema curiosidade, diz -: “vejam que desaforo! Mandar-me pintar sem ter roupa para vestir”. Deixando de lado o sarcasmo de Fleius com relação à tela, A Carioca de Pedro Américo parecia mesmo não se enquadrar nas noções de virtude e moralidade Palaciana e Acadêmica, e muito menos nos padrões morais da sociedade carioca Imperial. 456

A carioca de Pedro Américo entre o ufanismo e a licenciosidade

Mas, do ponto de vista do artista este criara um programa que seguia uma concepção de arte empenhada em exaltar a natureza local. Seria então apropriado definir como intencionalmente erótica a imagem criada por Pedro Américo?

Carioca teve como seu principal mestre o pintor neoclássico Dominique Ingres. Ingres, é conhecido não só por seu famoso Banho Turco, repleto de odaliscas opulentas, sedutoras e licenciosas, como por suas inúmeras alegorias mitológicas, igualmente sedutoras, como A Fonte, obra que se comunica muito de perto com A Carioca. Ingres, discípulo de David, era então o artista mais influente da Academia Francesa. Ingres era um cultor da clareza e da precisão da forma. Embora estivesse entre os expoentes da escola neoclássica, era um admirador de Rafael mais que do que dos clássicos da Antiguidade. Tanto que, para Ingres, a obra não era apenas um veículo de uma idéia moral e virtuosa, mas era sim uma experiência em si mesma.

Creio que para respondermos a esta pergunta deveríamos nos colocar uma outra: como atua uma imagem erótica? A princípio, o espectador fruidor identifica na figura representada (na mulher nua) a parceira de uma imaginária relação sexual – neste contexto podemos imediatamente nos remeter ao marido da senhora ofendida, que minuciosamente escrutinava a mulher representada. O papel do expectador fruidor, neste contexto, é substancialmente o do flaneur. Papel que corresponde ao expectador masculino que acabamos de mencionar. Aprofundando ainda mais a questão das imagens eróticas, colocamos ainda uma outra pergunta: o que é uma imagem erótica? É uma imagem que se propõe de modo deliberado (mesmo que não exclusivo) excitar o expectador fruidor.

Percebemos também que Pedro Américo inspirouse em Miguelangelo para criar o corpo d‘Carioca, já que podemos notar uma ênfase na anatomia. Miguelangelo era artista extremamente admirado por Pedro Américo. A inspiração nos corpos criados pelo artista italiano, fez Pedro Américo desenhar um corpo de mulher extremamente carnalizado, grandioso, com peso e volume, marcado por uma musculatura tensa e expressiva.

Contudo, ao tomarmos o programa seguido por Pedro Américo, verificamos que a intencionalidade da imagem não é difícil de decifrar. Neste caso, nos parece óbvio que para além das intenções do autor, as quais, a partir do programa por ele seguido, não nos indicam que o mesmo pretendesse despertar sentidos eróticos, a tela, ainda assim, acabou por assumir significações diversas quando saiu de suas mãos e atingiu outros circuitos.

Quando estivera na França, Pedro Américo, visitara a famosa exposição impressionista, denominada Salão dos Recusados, onde estava exposto o nu de Édouard Manet “Piquenique na Grama”. Pedro Américo era também a favor da fotografia e utilizava as imagens técnicas como modelo. Para pintar o rosto d`A Carioca usou como modelo, segundo Wladmir Machado, uma fotografia da esposa de um funcionário do consulado brasileiro, em Paris.1 Embora saibamos que A Carioca não é uma fotografia, a imagem oferece um grau de realismo extremo. Nos parece, então, que Pedro Américo nesta tela estava intimamente ligado a cultura artística de seu tempo, ou seja: as várias tendências européias e ao projeto artístico nacional. Pedro Américo parecia sentir-se livre para empregar vários modelos visuais, antigos e modernos, buscando, ao mesmo tempo, combiná-los com a tradição específica que florescia na pintura brasileira: as alegorias que valorizavam a história, o povo e a natureza local.

Os sentidos, interpretações e compreensões de uma obra conformam uma complexa rede de símbolos e figurações. A imagem, d‘Carioca, em sua aparência clamorosamente erótica, esconde na realidade uma mensagem bem mais complexa que uma mera representação erótica feminina. Esta imagem não representa apenas a vulgarização de um corpo. Pedro Américo extraiu sua inspiração da tradição da pintura clássica, e criou uma alegoria mitológica para abrigar um tema nacional. Contudo, segundo no informa Guillio Argan, para o século XIX o extremo realismo das alegorias mitológicas passaram a ter um caráter essencialmente erótico– vide as inúmeras Vênus de Cabanel que parecem nus de mulheres do cotidiano, e mesmo a própria enchente de alegorias mitológicas femininas que assolaram o mercado de fotografias eróticas na mesma época. Percebemos, então, que os nus mitológicos na era do voyeurismo tomam outro sentido.

O que ocorre então com esta imagem que como primeira impressão suscitada aos olhos do publico é a de uma mulher extremamente real, sedutora e, acima de tudo, o retrato de uma carioca desnuda e não uma alegoria do Rio Carioca? Sabemos que a arte de um período está profundamente enraizada na história, na língua, na estrutura de classes, nos modos específicos de

Finalmente, sabemos que Pedro Américo, no período em que esteve na Europa e pintou A 457

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

produção e recepção. A obra não é somente um produto cultural, mas uma força cultural. Por outro lado, uma representação corporifica um conceito que funciona como um símbolo. Coisas representadas nos remetem ao original. Assim, o sentido representacional de uma obra não pode ser inteiramente entendido a menos que os objetos mostrados pelo artista pertençam a uma experiência compartida, já que o sentido temático literal muitas vezes não conta toda a história representada. Toda obra tem vários sentidos figurativos sobrepostos: contexto, estilo, indivíduos, etc. Toda interpretação implica julgamento, o que pode esvaziar o sentido e não permitir que a obra revele o seu sentido.

O extremo realismo da imagem parece ter se tornado não só um modo de significação mas também um estilo pictórico. Estilo que, como sabemos, foi à forma visual dominante na cultura burguesa, sendo introjetada pela pintura e pela fotografia. O Realismo oferece uma forma de imagem que apresenta um prazer particular, na medida em que sustenta ilusões, despertando para um conjunto de fantasias que parecem ser satisfeitas por meios que asseguram, de certo modo, a credibilidade da cena imaginada. Portanto, são imagens que evocam um culto e detêm uma qualidade icônica. São imagens que contêm uma combinação particular: fisicalidade e olhar à distância. Mas que papel tem essas imagens no jogo do prazer visual?

Em A Carioca nos parece que a carga erótica e o desejo desperto pela imagem são os principais elementos fomentadores deste ruído no circuito que liga a criação à recepção. Esta carga erótica é tão marcante que faz com que os espectadores fruidores praticamente esqueçam que a imagem é a alegoria de um Rio importante do cotidiano da cidade na época. Contudo, o desejo desperto por este corpo nu representado vai se condensando em torno de uma silhueta de mulher e parece flutuar como uma aura em torno do seu corpo. A força deste desejo é duplicada pelo artifício da pose: os cabelos negros que se entrelaçam ao braço, os dedos contorcidos que sugerem graciosidade. O braço sinuoso que promove uma certa ação dramática elevando o teor emocional da obra e seduzindo, ainda mais, o espectador fruidor.

Como as faces icônicas detêm o poder do olhar sobre o espectador. Imagens como esta parecem impulsionar para uma troca de sensações, onde o desejo é pictoricamente articulado. A imagem da mulher nua parece despertar o sentido de ser inteiramente possuída. Assim fetichismo e voyeurismo vão construindo esta imagem do desejo moderno. O olhar fetichista pode existir fora do tempo linear como um instante erótico, localizado somente na fantasia. Sua significação é paralisada, porque o olhar do espectador fruidor é fixado sobre a forma fetiche. Assim desejar definir a fascinação resultaria no desencanto total: uma realidade plana e sem relevo. Pois, arte e sedução escapam ao discurso e o encantamento se renova, mas também se renova a perda, pois ao voltar-se para a imagem que lhe suscita o desejo o espectador fruidor volta-se para a presença do ausente, neste sentido, o modelo, além de sua realidade tangível, corporal ponderável, também é construído de vazio e de ilusão: abole o real. Assim podemos entendê-lo como um simulacro, inteiramente fetiche, espelho.

Esta mulher que posa parece desafiar aquele que a vê, pois seu olhar intenso parece comprometer inteiramente o observador. Seus olhos castanhos são teatrais e, embora não mirem o espectador seu olhar é extremamente expressivo e duro. Estes olhos atraem o olhar do espectador fruidor e o dirigi para o corpo da figura. A relação daquele que olha e daquele que se projeta ao olhar é um meio de acesso privilegiado para algo inacessível: é território particular de afinidades, de sensações, da sedução.

Para concluir, se no auge do Império A Carioca não correspondeu à exaltação do nacional pela via do nativismo romântico, permaneceu transgressora, e t ambém acadêmica, representação idealizada e corpo pulsante. O erotismo d‘Carioca se oferece como um problema não somente estético mas também político e cultural, uma provocação, talvez involuntária, mas saída de dentro mesmo dos mais severos limites da arte oficial. Contudo, como apontei anteriormente, desejar definir a fascinação desta obra resultaria no desencanto total: uma realidade plana e sem relevo, já que a arte e a

Por outro lado, sabemos que esta forma de exposição do desejo relaciona-se diretamente com uma certa economia particular do olhar que opera com um regime de representação que expressa uma certa forma visual. Primeiramente, apóia-se em uma cultura do olhar que é própria da modernidade. Olhar de cobiça, de desejo e que explicita uma idéia do ver como possuir à distância. Assim, parece que a imagem criada se transforma em uma forma fetiche gerada por uma economia ocular que produz uma forma erótica significante.

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A carioca de Pedro Américo entre o ufanismo e a licenciosidade

sedução escapam ao discurso, promovendo, neste sentido, a renovação de seu encantamento.

Notas 1

MACHADO, Vladimir. Pedro Américo. Disponível em: http:/ /www.dezenovevinte.net/bios/bio_pa.htm Acesso em 1 jul. 2008.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

1. Entre os anos 1890 e 1910 houve um constante afluxo de pintores italianos ao meio artístico de São Paulo. Seja em busca de ‘fazer a América’, seja em fuga das mazelas que atingiam o continente europeu, esses artistas tiveram uma presença marcante no cenário das artes no Estado, sobretudo na capital paulista. Realizavam freqüentes exposições, recebiam encomendas da elite local, circulavam em suas festas e salões, lograram incluir seus trabalhos nos acervos locais, privados e públicos. Como exemplo dessa trajetória, é interessante investigar a presença do pintor italiano Giuseppe Amisani (1881-1941) em São Paulo, entre os anos 1900 e 1930. Pintor formado em Milão, na Academia de Brera, retratista de fama razoável, atingiu uma posição de destaque no meio artístico italiano da primeira metade do século XX e galgou uma carreira internacional medianamente bem sucedida (obteve várias encomendas da família real italiana, trabalhou no Egito e na Inglaterra, foi tema de uma monografia redigida pelo importante crítico Giorgio Nicodemi, em 1924). Embora não tenha aderido ao vanguardismo de seus contemporâneos na Academia (que serão alguns dos protagonistas das experiências do futurismo italiano, como Carlo Carrà (1881 - 1966) e Umberto Boccioni (1882 - 1916)), convive no ambiente moderno da Itália do início do século e escolhe a pintura de retratos, paisagens e nus, exercitando-a com um estilo influenciado pelo decadentismo, o Art Nouveau, o simbolismo, e o divisionismo italiano, tendências em voga no período.

pintores italianos em são paulo – o caso da culla tragica de giuseppe amisani fernanda pitta1

2. Giuseppe Amisani nasce em Mede Lomellina, Itália, em 1881. Freqüenta, segundo consta em suas biografias, a academia de Brera, em Milão, como aluno dos pintores Vespasiano Bignami (1841 - 1929) e Cesare Tallone (1853 - 1919), no início da década de 1900 2. O primeiro, além de apreciado retratista e caricaturista, foi escritor e historiador milanês. O segundo3, pintor de relativa fama no final do XIX, colega de Giovanni Segantini e Gaetano Previati na mesma Academia de Brera, é hoje quase esquecido, apenas lembrado como professor de Giuseppe Pellizza da Volpedo e o já citado Carlo Carrà. Os primeiros trabalhos reconhecidos de Amisani são retratos de mulheres que trazem boa dose daquela sensualidade aceitável, característica do erotismo fin-de-siècle. Dentre eles, o de Lyda Borelli, famosa atriz italiana de teatro e cinema, é o mais destacado4, tendo recebido por ele o prêmio 460

Pintores italianos em São Paulo – O caso da Culla Tragica de Giuseppe Amisani

Fumagalli da Academia de Brera em 1912, fato esse que será divulgado com insistência quando de sua estada no Brasil.

acontecimentos que fornecem interessantes indícios de seu entrosamento no meio de arte paulistano e de seu envolvimento com figuras de destaque desse cenário, como Pereira da Silva, responsável pelos murais do Theatro Municipal de São Paulo nesse mesmo período.

3. No país, passa algumas temporadas entre o início do século e os anos trinta, embora poucos registros além dos jornais possam nos dar certeza do período exato em que aqui esteve. Por esses veículos, tem-se o registro de dois períodos pelo menos, entre 1905 e 1908 e posteriormente, entre 1913 e 19145.

Embora o meio artístico paulistano fosse tímido, dada a relativa escassez de espaços de formação e circulação artística em comparação ao meio carioca no mesmo período, Amisani consegue inserir-se próximo à clientela composta pela elite paulistana. São freqüentadores de seu ateliê e compradores de seus trabalhos figuras como o Senador José Freitas Valle (1870 - 1958), o presidente do Banco de Comércio e Indústria de São Paulo, Numa de Oliveira (1870 – 1959), o jornalista Nestor Pestana (1877 - 1933), o Ministro da Agricultura e Senador Pádua Salles (1860-1957), o engenheiro e jornalista Samuel das Neves (18631937), o advogado e futuro deputado Silvio de Campos (1884-1962, irmão de Carlos de Campos, e filho de Bernardino de Campos) e Jorge de Souza Freitas, dono da Galeria Jorge 11. Membros de famílias tradicionais locais, políticos influentes e homens de negócios, estavam ligados a diversas iniciativas culturais, como, respectivamente, o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, o Theatro Municipal e a Sociedade de Cultura Artística12.

Em seu artigo sobre os circuitos artísticos de São Paulo na Belle Époque, Miriam Rossi fornece as datas de 1905 a 1908 para a estadia de Amisani, na qual mantém um ateliê no quarto 62 do Hotel Bela Vista, onde se realizaram exposições de Oscar Pereira da Silva, Peregrino de Castro e Augusto Crotti. A autora também menciona a data de 1913 para uma exposição individual na Casa Mascarani e uma exposição coletiva, em 1914, na mesma casa (sua fonte aqui é o Correio Paulistano de 30/ 12/1912 e de 8/01/1914). Em Fanfulla, segundo relatório de Maria Cecília Gonçalves para a Pinacoteca do Estado, Guido Maragoni comenta que o pintor veio ao Brasil de passagem, quando convidado a fazer um retrato de um membro da colônia italiana em Buenos Aires.6 O artigo “Vita Sociale”, do dia 24/08/1913, comentado no mesmo relatório, afirma que a nova estadia trata-se de uma volta de Amisani ao Brasil, para uma exposição a ser realizada em São Paulo.7

Não sabemos como se deu a aproximação entre Amisani e o senador Freitas Valle, o que sabemos é que ele encomenda um afresco para a sala de banho da Villa Kyrial, sua residência situada na Vila Mariana e local do principal salão do início do século XX em São Paulo. Intitulado A alma das flores, sd., o afresco é uma “alegoria com traços art nouveau exibindo uma ninfa em êxtase”13. Valle também fica responsável pela intermediação da compra e venda de suas obras em suas constantes idas e vindas do estrangeiro.

Sua pintura torna-se muito apreciada no ambiente de São Paulo do início do século XX, tendo entre seus compradores políticos e personalidades influentes da sociedade paulistana. São escassos os indícios que possam explicar o porquê da vinda de Amisani para São Paulo. O pouco que sabemos do contexto das visitas do pintor lombardo nos é informado pelos jornais, ao contrário de seus compatriotas N. de Corsi, N. Fabbricatore, e Antonio Petrilli, dos quais restaram alguma correspondência trocada com o Senador Freitas Valle 8, pelas quais podemos conhecer alguns dos motivos de viagem, tais como convites, visitas a parentes, aventuras e novas alternativas9. O que podemos inferir, a seu respeito é que essas vindas foram bem-sucedidas, já que logo estabelece relações com os pintores locais, vende seus trabalhos e obtém comissionamentos.

Além do afresco da sala de banho, uma das pinturas de figuras femininas de Amisani, tema freqüente de sua produção, compunha a famosa Galeria do Senador. Centro nervoso da Villa Kyrial, a galeria é o aposento onde se realizam os saraus que reúnem “a nata da sociedade, além de poetas sem recursos, buscando apoio e proteção sob as asas da oligarquia”14, freqüentado também pelo pintor italiano.

A inusitada empreitada de montar um ateliê em seu quarto de hotel, onde expõe trabalhos de Oscar Pereira da Silva (1867 - 1939), em 1905, Peregrino Castro (sd. – sd.), 1906 e Augusto Crotti (sd. – sd.) 10 , em 1908, faz parte de uma série de

É possível que o prestígio de Amisani entre a elite paulista tenha se consolidado em 1912 (período imediatamente anterior à estada de 1913-1914), quando recebe o prêmio Fumagalli pelo retrato da atriz italiana Lyda Borelli. O fato certamente 461

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A ambos os seus professores poderíamos tributar uma preocupação com a questão da unidade italiana – Bignami, além de pintor era também historiador diletante, muito interessado nos feitos do lombardo Garibaldi e seus homens21. Cesare Tallone, por sua vez, teve o pai lutando na guerra da independência. Mas nenhum indício comprovava essa associação, e a expressão parece não ser corrente como forma metafórica de alusão a esse processo histórico22.

contribui para sua boa acolhida no Brasil, já que Borelli, primeira atriz da companhia teatral que mantém com Ruggero Ruggeri, havia estado na cidade em 1909, numa série de apresentações no teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro e no Teatro Santana, em São Paulo15. A tela, ou uma versão dela, foi adquirida pelo Conde Silvio Penteado, segundo uma reportagem do jornal Fanfulla, de 07/09/1913 16. Amisani também escolheu a representação do nu, retratando mulheres de aspecto não raro dotandoas de uma volúpia desafiadora, como em Estate, s.d. 17 , ou Signora in poltrona, s.d. 18 . Essa sensualidade está presente mesmo em telas alegóricas, como a simbolista La Culla Tragica, 1910, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo. Aqui o modelado da figura feminina é feito de pinceladas que dão à carne um aspecto pastoso. O forte contraste de luz e sombra atribui à cena um caráter dramático acentuado, embora o fundo receba o mesmo tratamento de pinceladas breves e ligeiras do retrato de Borelli.

Outro caminho foi encontrar alguma referência literária ao termo. Nesse percurso chega-se a Gabriele D’Annunzio, mas um exame nas suas obras não permitiu encontrar uma alusão direta ao termo. Somente a pesquisa iconográfica forneceu a chave para uma hipótese sobre a temática do quadro. Inicialmente identificamos, de maneira completamente fortuita, o parentesco com a iconografia de um desenho de Giovanni Segantini, encontrado na capa do catálogo de leilão da casa Sotheby’s de Zurique 23. O trabalho, um esboço preparatório para o tríptico Werden, Sein, Wergehen (Natureza, vida, morte), intitulado Edelweiss, apresentava evidente parentesco com a representação feminina da Culla Tragica de Amisani. Descrita no catálogo como “uma das imagens mais singulares na tradição da Art Nouveau, A cabeleira abundante e fluente é interpretada como o movimento rotatório de uma força natural, como a água ou o vento”24.

La Culla Trágica O livro tombo da Pinacoteca do Estado de São Paulo dá notícia da entrada do quadro em 1918, com a estranha anotação, posteriormente riscada, de que o autor havia sido Pensionista do Estado 19. Não há documentação de compra, não foram encontradas justificativas na imprensa da época20, embora sejam abundantes as notícias a respeito de Amisani, de suas exposições e aquisições por particulares. As descrições da obra resumem-se a identificá-la como uma tela simbolista. Mas até hoje não há registro de uma análise mais sistemática do quadro, de sua temática, bem do seu contexto de entrada para a referida coleção.

Com relação a Segantini, o único ponto de contato até o momento é o fato dele ter sido professor em Brera na mesma época que Amisani estudava com Cesare Tallone na mesma academia, mas não até o momento não foi possível armar um contexto mais articulado entre as duas obras.

Na tentativa de responder a indagação a respeito da entrada dessa obra na coleção da Pinacoteca do Estado, na falta de registros mais precisos sobre ela, nossa hipótese de trabalho foi tentar compreende-la a partir do interesse despertado pela obra nos possíveis intermediadores de sua compra.

Fazendo um levantamento da pintura contemporânea a Amisani, encontramos no catálogo da exposição Italies, realizada pelo Musée d’Orsay e a Galleria Nazionale d’Arte Moderna di Roma, em 2001, uma análise do díptico de Giulio Aristide Sartorio, Diana de Êfeso e os escravos e A Górgona e os Heróis. Na primeira parte do díptico, representando a figura mitológica grega da Górgona, encontramos novamente semelhanças muito intensas entre o arranjo formal do corpo, dos cabelos e dos gestos da personagem feminina de Culla Tragica.

Algumas suposições, baseadas na inferência a respeito do gosto e dos costumes em voga na São Paulo do início do século XX, perguntamo-nos: poderia tratar-se de uma alegoria histórica? Culla Tragica, berço trágico, por analogia poderia significar nascimento trágico. Alguma alusão à unificação italiana? À Guerra da Independência contra a Áustria (1848), da qual participaram com empenho os lombardos?

A fonte literária confessa de Sartorio para esses trabalhos foi o Trionfo della Morte, de Gabriele D’Annunzio 25. Estruturada em sete partes, a obra é centrada na relação ambígua e contraditória entre 462

Pintores italianos em São Paulo – O caso da Culla Tragica de Giuseppe Amisani

os amantes Giorgio Aurispa e Ippolita Sanzio. Giorgio volta à casa natal, em Abruzzo, em resposta ao chamado da mãe para que salve o pai da vida de descaminhos, fato que dá ensejo para uma série de observações sobre a paisagem, os costumes e modo de vida de Abruzzo. O personagem principal oscila entre o nihilismo e a aspiração por uma vida nova, feita de perfeição espiritual. Sente a relação com a amante como um obstáculo, um limitador, dada a força irresistível de sua fascinação erótica. Ippolita Sanzio simboliza a “nemesis”, o exato oposto do herói, seu espelho, a força primogênita da natureza que torna o homem escravo, e só a morte pode libertá-lo de tal condição.

então prefeito Washington Luís, realizado pelo poeta Guilherme de Almeida e o pintor Washt Rodrigues, também um “motto” d’annunziano? Non ducor, duco.29 Referências bibliográficas BANTI, Alberto Mario. Il Risorgimento italiano. Roma-Bari: Laterza, 2004. COMANDUCCI, M. Dizionario illustrato dei pittori e incisori italiani moderni. Milão: 1962. DELLA PERUTA, Franco. L’Italia del Risorgimento: problemi, momenti e figure. Milano, Angeli, 1997. MARTINS, Wilson. Mundo Antigo. A Gazeta do Povo. Curitiba: 11 de junho de 2001. PINACOTECA DO ESTADO (SÃO PAULO, SP) (org.). Dezenovevinte: uma virada no século. Apresentação Jorge da Cunha Lima; texto Ciça França Lourenço, Ruth Sprung Tarasantchi, Carlos Alberto Cerqueira Lemos, Maria Inez Turazzi, Anna Carboncini, Maria Cristina Castilho Costa. São Paulo: Pinacoteca do Estado, s.d. PINTORES italianos no Brasil. Comentário Augusto Carlos Ferreira Velloso, Gilberto de Mello Kojalwski; apresentação Cunha Bueno. São Paulo: Sociarte, 1982. ROSSI, MIRIAM SILVA. Circulação e mediação da obra de arte na Belle Époque paulistana. Anais do Museu Paulista. Ano/volume 6/7. Número 7. São Paulo, Brasil. Pp.83-122. SCIROCCO, Alfonso. L’Italia del risorgimento: 1800-1860. Bologna: Il Mulino, 1990. TARASANTCHI, Ruth Sprung. Pintores paisagistas em São Paulo: 1890-1920. São Paulo, ECA/USP, 1986. Tese (doutorado). Artes, ECA/USP, 1986. Frederic Michael Litto, orientador.

Segundo Gianna Piantoni, no catálogo da Bienal de Veneza de 1899, que expõe o tríptico de Sartorio, o artista afirma que havia desejado: representar ‘dois aspectos da profunda vaidade da existência humana’, a Górgona, ‘que tem a forma sedutora da Beleza e que é ao mesmo tempo Vida e Morte, pois ela suscita e abate os heróis’ e a Diana de Êfeso, que nutre ‘os homens e suas quimeras’. Pois os homens, segue Sartorio (inspirando-se nos célebres versos de Shakespeare, ‘Somos da mesma matéria que nossos sonhos, e nossa vida ínfima está coberta de sono’26, citados por Gabriele D’Annunzio no Triunfo da Morte), são ‘feitos da mesma substância que seus sonhos e são representados aqui adormecidos, encerrando em suas mãos os símbolos de suas ‘ambições’.27 Ora, temos aqui elementos que podem começar a ser cruzados com as próprias referências de Amisani. Sabemos que muitos de seus quadros foram inspirados em D’Annunzio. O contexto do decadentismo os liga por diversos laços, inclusive através da diva Borelli, mais de uma vez descrita como “D’Annunziana”. A imagem da Culla Tragica parece corresponder àquela da mulher que acolhe e submete os homens, em suas suplicas vãs, simbolizadas pelos punhos cerrados.

Notas 1

Professora do curso de História da Universidade Cidade de São Paulo – Unicid/SP. [email protected] 2 Não foi possível até o momento fazer essa verificação nos arquivos da Academia de Brera. Um elenco dos alunos de Tallone na Academia entre 1905-1995 pode ser consultado on-line em http://www.archiviotallone.com 3 Cf. CARAFOLI, Dominizia. “Cesare Tallone, una figura a riconstruire”, il Giornale.it. 28 novembro 2005. Disponível em: http://www.ilgiornale.it/a.pic1?ID=46162, consultado em 20/02/2008. Ver também TALLONE, Gigliola. Cesare Tallone. Milão: Electa Mondadori, 2005. Em março de 2008 o Museo Villa dei Cedri, na Suíça, abre uma retrospectiva de sua obra. 4 Tallone, um ano antes, também havia retratado a artista. Cf. http://www.archiviotallone.com 5 ROSSI, Miriam Silva. Circulação e mediação da obra de arte na Belle Époque paulistana. Anais do Museu Paulista. Ano/volume 6/7. Número 7. São Paulo, Brasil. P.104. ROSSI, Miriam Silva. op.cit. p.106.

A outra etapa, agora, é claro, deve se desenvolver na busca por indícios que comprovem essas hipóteses, meramente conjecturais. As semelhanças formais são o esboço de um problema de pesquisa, de um insight, como nos lembra Carlo Ginzburg28. Perguntas, não soluções. E seria prudente retomar mais uma, ainda, o início dessas indagações: Como essa tela foi parar na Pinacoteca do Estado? Aqui, pelo pouco espaço que nos resta, podemos lançar um outro enigma, que talvez possa nos servir de chave: não leva o dístico da cidade de São Paulo, encomendado pelo 463

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 6 A Biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo tem, na pasta dedicada a Amisani, o relatório de pesquisa de Maria Cecília Gonçalves, realizado para a Pinacoteca do Estado em 1978, no qual consta um elenco de notícias do jornal Fanfulla, da comunidade italiana em São Paulo, que comentam de sua chegada, exposições, e retornos. Lá também é possível encontrar alguns preciosos cartões postais com a estampa de algumas obras de Amisani. Cf. MARAGONI, Guido . Un pittore del sentimento. Fanfulla, 13/07/1913 Apud GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório de Visita, datiloscrito, 21/08/1978, p.1 (cf. pasta Giuseppe Amisani, Biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo). 7 Apud GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório de Visita, datiloscrito, 21/08/1978. p.6. O resumo da entrevista feita pela autora com Inoccencio Borguese, pintor, em 25/02/ 1978 (também parte do relatório de pesquisa), afirma que Amisani teria organizado uma exposição em um salão alugado na Av. São João, próximo à Av. Rio Branco, e que tal exposição teria propiciado seu contato com a sociedade da época (cf. GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório de Visita, datiloscrito, 21/08/1978. p.1), porém, é de se notar que esse contato e seu estreitamento já deveriam haver acontecido já na estadia de 1905-1908. A estadia de 191314 parece ser o momento no qual sua inserção no meio paulistano do período já está consolidada. 8 Hoje parte do AFV, sob tutela de Márcia Camargos, que pude consultar, por gentileza da pesquisadora, a quem agradeço. 9 Por exemplo 10 ROSSI, Miriam Silva. op.cit, p. 104. 11 Id. Ibid. 12 Para esse tema, cf. o esclarecedor artigo de ROSSI, Miriam Silva. Op.cit. 13 CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da Belle Époque Paulistana. São Paulo: Editora SENAC, 2001, p.51. 14 Id. Ibid. 15 Cf. Celebridades & Mitos - O Mundo do Teatro em Antigos Cartões-Postais. Painel 7 – Atrizes e atores italianos. Disponível em: http://www.brasilcult.pro.br/teatro/ painel07.htm, acesso em 20/02/2008. 16 Arte e artisti: l’exposizione Amisani apud GUIMARÃES, Maria Cecília. Op.cit., p.6. Não foi possível apurar o destino dessa obra até o momento. Em se tratando da mesma tela “Figura feminile o ritratto di Lyda Borelli”, faz parte da exposição atualmente em cartaz no Palazzo Roverella em Rovigo (Vêneto, Itália), La belle époque: arte in Italia – 18801915, de 10 de fevereiro a 13 de julho 2008. No elenco de obras consta apenas “coleção particular”. 17 Lote 400 do leilão da Christie’s Rome, Arte del XIX Secolo ,Terça, 30 Novembro, 1999. Disponível em: http:// www. a r t n e t . c o m / A r t i s ts / L o t D e ta i l P a g e . aspx?lot_id=76020EAAC0C5C20C, acesso em 20/02/ 2008. 18 Acervo da Galeria Ricci Oddi de Arte Moderna, Piacenza, Itália. Disponível em: http://www.riccioddi.it/ collezione_opere_arte/00008, acesso em 20/02/2008. 19 Segundo as regras formalizadas a partir de 1912, isso seria impossível, já que se requisitava que o pensionista

fosse de origem brasileira. Mas sabe-se que mais de uma vez essa regra foi quebrada, como no caso de Brecheret, que a recebeu em 1921. Cf. ARAÚJO, Marcelo Mattos. Os Modernistas na Pinacoteca: o Museu entre vanguarda e a tradição. Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Orientadora: Profª. Drªa. Maria Cecília França Lourenço. Universidade de São Paulo, FAU-PRG-USP, 2002. Infelizmente não foram localizados até o momento documentos que possam comprovar ou descartar a relação de Amisani com o Pensionato no Arquivo do Estado de São Paulo. Márcia Camargos, em seu estudo pioneiro sobre a Villa Kyrial, afirma que a documentação referente a essa política estatal foi queimada junto com a quase totalidade de documentos de Freitas Valle, quando, depois de sua morte, a Villa Kyrial é vendida, em 1959 cf. CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da Belle Époque Paulistana. São Paulo: Editora SENAC, 2001. 20 Foram pesquisados artigos no Estado de São Paulo e Correio Paulistano para o referido ano de 1918. Nos comentários acerca da exposição de 1913 no jornal Fanfulla, nos artigos de 13/07/1913 e 24/08/1913 são feitas menções ao quadro, apud GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório de Visita, datiloscrito, 21/08/1978, pp 5-6. Na pasta Amisani da Pinacoteca existe uma listagem de 104 obras, possivelmente um catálogo de exposição, onde se identifica uma “Alcova Trágica” e um “Studio per l’Alcova Trágica”, porém não há como comprovar até o momento que se trata da mesma obra ou se essa é a listagem das obras expostas em 1913. 21 Van Buren, A. W. “Art activities in Italy – necrology”. Parnasus, n.1, vol.4, abril de 1929. p.9. 22 Indagando colegas historiadores como Luigi Biondi, ele mesmo italiano, não consegui nenhuma pista para essa hipótese. 23 “Schweizer Kunst – Art Suisse”, Sotheby’s Zurich Dienstag, 10 dezembro de 1996. Biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo. 24 “Schweizer Kunst – Art Suisse”, Sotheby’s Zurich Dienstag, 10 dezembro de 1996. p.46. 25 Romance publicado na “Tribuna illustrata” e no “Mattino” de Nápoles, e posteriormente na forma de livro, em 1894. Gabrielle D’Annunzio. Trionfo della Morte. Milão: Mondadori, 1894. 26 “We are such stuff /As dreams are made on; and our little life/ Is rounded with a sleep”. SHAKESPEARE, W. The Tempest. Ato 4, cena 1, 148–158. 27 PIANTONI, Giana. Roma/Byzance. Italies L’art italien a l’epreuve de la modernité 1880-1910.. Roma/Paris: Galleria Nazionale d’Arte Moderna/ Reunion des Musées Nationaux/ Musée d’Orsay, 2001. 28 Para essa questão cf. “GINZBURG, Carlo. De A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre um problema de método”. Micro-História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989 29 Lema introduzido no dístico de São Paulo na gestão do prefeito Washington Luís (O Brasão de Armas do Município de São Paulo, instituído pelo Ato nº 1.057, de 08 de março de 1917), a partir de proposta vencedora em concurso, do poeta Guilherme de Almeida e do pintor Wasth Rodrigues.

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Devemos apresentar nesta comunicação uma análise da obra Desdêmona1 executada pelo pintor Rodolpho Amoêdo (1857-1941) e Efeitos de Sol2 executada pelo pintor Belmiro de Almeida (18581935). Não se trata de uma análise comparativa, trata-se, ao contrário, de demonstrar a originalidade dos dois pintores que seguiram semelhante formação artística na segunda metade do século XIX. A trajetória artística do pintor Rodolpho Amoêdo é marcada por uma excelência técnica, atendendo às expectativas do rígido sistema acadêmico, no qual seguiu com maestria, desde a formação na Academia Imperial de Belas Artes e principalmente durante o período de estudos em Paris, onde executou suas obras mais notórias. Após cumprir o período de pensionato, em que permaneceu nove anos na capital francesa, Amoêdo retorna ao Brasil em 1887. No ano seguinte, o pintor realiza na Escola Nacional de Belas Artes a primeira e única exposição de suas obras executadas na Europa. A consequência do absoluto sucesso da exposição é sua nomeação como professor honorário da Seção de Pintura Histórica da Academia Imperial de Belas Artes. Rodolpho Amoêdo estabelece-se então, no Brasil, dedicando-se ao magistério, principalmente como professor de pintura.

dois pintores. duas gerações. em comum, a paixão pela pintura márcia valéria teixeira rosa *

Da mesma forma, a produção do artista executada a partir deste período permanecerá em estreita sintonia com o que era mais atual no ambiente artístico europeu, garantindo portanto a originalidade e individualidade de seu trabalho. Portanto, devemos salientar que seu talento e principalmente sua atenção para as várias linguagens artísticas que surgiram na passagem do século XIX para o XX, determinaram a produção de variada temática. Em Parecer datado de 18 de fevereiro de 1888, o pintor Zeferino da Costa indica a estratégia a ser tomada pelo recém chegado pensionista em relação à sua carreira: ... se se nota nos seus quadros a falta de individualidade que tanto distingue as obras dos artistas, sendo de suppôr que só a sujeição dos preceitos do Mestre que o guiou será devida essa falta, não quer isso dizer que d’ora em diante livre como deve considerar-se o exPensionista, não procurará imprimir em suas obras esse cunho que é, um dos principaes objectivos do artista. (Parecer datado de 18 de fevereiro de 1888.)

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Considerando este Parecer, Ana Cavalcanti justifica que “os mestres brasileiros compreendiam o período de estudos na Europa como uma etapa de aprendizagem. Eles anteviam em seguida uma liberação do estudante, que deveria conquistar sua independência artística”.(CAVALCANTI, 2001/ 2002:82)

affirmando o soberano valor de um artista que, entre os seus pares, é um grande Mestre”. (DUQUE,1929:18) Ou seja, Gonzaga Duque percebe que tais modificações na fatura de Amoêdo só concorrem para que o pintor seja considerado um grande mestre entre seus contemporâneos e não determinado apenas pelas pinturas históricas que compuseram os envios obrigatórios.

Para fazer jus à esta independência artística, destacamos a obra Desdêmona, cuja fatura confere esta modernidade do artista, tendo em vista a aplicação da pincelada pontilhista para criar o efeito de sombra na composição. Na opinião de Quirino Campofiorito, ao utilizar esta técnica Amoêdo ... demonstra alguma inquietação em suas últimas produções ... (CAMPOFIORITO,1983:186)

Em 1890, Amoêdo participa das discussões e posterior transformação e atualização do ensino acadêmico. O agravamento da polêmica tem como conseqüência o desligamento do grupo moderno das aulas. Por conseguinte, Rodolpho Amoêdo e os irmãos Bernardelli fundam um Atelier Livre, localizado no Largo de São Francisco e inspirado na Academia Julian, da capital francesa.

A tela original de Desdêmona foi executada em Paris em 1891 e esta cópia no Brasil, em 1892. A narrativa foi inspirada em Othelo, escrita por William Shakespeare, entre 1604 e 1605. Na tragédia, Othelo é um guerreiro que se apaixona pela nobre Desdêmona. Muito ciumento, Othelo desconfia da traição de sua esposa, culminando no assassinato de sua amada, sufocando-a na cama. Arrependido, ele decide se matar.

Apoiado por professores e intelectuais, o grupo promove, ainda em 1890, uma exposição dos trabalhos executados por seus integrantes, exposição que teria sido comparada a um ‘Salon des Independants’. As idéias dos modernos são assimiladas e finalmente se realiza uma reforma na AIBA no final do ano. Ao argumentar sobre o suposto autoritarismo dentro da Academia, Luis Marques pergunta-se quem realmente era “acadêmico” e “moderno”, principalmente depois de deflagrada a crise entre 1888 e 1889 em que o “’Atelier Livre’ de Amoedo e Visconti”, mesmo como grupo dissidente, não tinha nenhuma “divergência estética” com a instituição. (MARQUES,2001:22)

Na obra de Amoêdo, as pinceladas são aparentes conferindo à pintura uma qualidade diferenciada em relação às produções do pintor em períodos anteriores. Francisco Acquarone atribui este recurso do artista na iluminação do quadro à um “efeito de penumbra que se acha mergulhada quase toda a composição. O autor afirma que nesta obra O duplo efeito de luz, isto é, o do luar que banha em cheio o primeiro plano e o da candeia, cujo foco está oculto, lambendo escorregadio os contornos da figura é positivamente, obra de mestre”. (ACQUARONE,1949:113)

Devemos salientar a participação do pintor Belmiro de Almeida neste episódio que marcou definitivamente o cenário artístico brasileiro em fins do século XIX. Desde jovem, deixou transparecer seu descontentamento com o sistema acadêmico vigente, frequentando as aulas no Atelie Livre no qual Amoêdo era um dos professores.

Podemos observar o jogo de cores existente em toda a composição, a partir da figura de Desdêmona; um jogo de luzes opostas, envolvendo todo o cenário, que iluminam e destacam a mulher. Amoêdo cria vários efeitos de sombra. A pincelada fina e delicada sugere um efeito de transparência.

Mesmo submetido às convenções técnicas e portanto atento aos preceitos metodológicos, a trajetória artística de Belmiro de Almeida é marcada por uma afinidade às correntes estilísticas de vanguarda. Dividiu-se entre a Europa e o Brasil, produzindo obras de excepcional qualidade técnica, participando dos Salões, conquistando inúmeras premiações.

Em relação às obras executadas por Amoêdo a partir de 1888, Luis Marques afirma que elas mostram “uma modernidade insuspeitada, sobretudo pela violência e materialidade da cor e pela rapidez gestual do traço, por vezes não distante do expressionismo”. (MARQUES,2001:29)

Ao traçar o perfil de Belmiro de Almeida, Gonzaga Duque destaca o comportamento do artista dividido entre a boêmia e sua carreira artística. “Quando solteiro foi um boêmio desregrado, um perfeito tipo

Esta liberdade artística é apontada por Gonzaga Duque como “um desviamento que impressionaria muitissimo”. O crítico afirma que: [...] “ficará 466

Desdêmona de Rodolpho Amoêdo e Efeitos de Sol de Belmiro de Almeida

procedimentos não tinham aceitação do meio artístico e da sociedade. (REIS JR., 1984:29-30)

à murger ... tinha na cabeça um cento de assuntos para pintar e em casa um cento de quadros para concluir “ . Mas o crítico reconhece que como artista Belmiro possui “uma feliz compreensão de seu tempo e do destino da pintura moderna”. (DUQUE, 1995)

O autor defende que a obra Efeitos de Sol representou para a sociedade republicana um “passo gigante na compreensão do modernismo, mostrando-nos em primeira mão a nova técnica que revolucionava a pintura e as artes em geral”.(REIS JR, 1984:36).

Este perfil boêmio muda quando o pintor casa-se e viaja com certa frequência principalmente para Paris, para seu aperfeiçoamento e a partir deste momento, sente a necessidade de uma dedicação maior à pintura.

Sobretudo nas opiniões de seus biógrafos, verificamos o reconhecimento que os dois artistas alcançaram ainda no auge de sua respectivas carreiras. Angyone Costa traça o perfil sobre a vida e obra de Rodolpho Amoêdo, tecendo-lhe inúmeros elogios, ressaltando sua vitalidade, vontade de vencer e personalidade combativa. A impressão que o repórter tem do pintor é a de um homem de conceito e expressões amargas. Um artista que aos 70 anos “... impõem-se-nos como um luctador de vinte. [...] Nelle, apesar da forte descarga de scepticismo e ironia, nota-se a individualidade que quiz e soube vencer”. [sic] (COSTA, 1927:59)

O professor Celso Kelly atribui uma sinceridade de execução, enfatizando “o gosto do cotidiano, resultado da observação sempre atenta para tudo quanto o cercava”. O autor reconhece o talento de Belmiro principalmente no que diz respeito à dedicação como pintor e desenhista. Por outro lado, discordamos de sua opinião quando refere-se às pinturas pontilhistas como “alguns ensaios tímidos de inovação”, considerando que tais obras são exemplos de um ineditismo na arte brasileira. (KELLY, 1958:164).

No ensaio escrito em 1905, Gonzaga Duque identifica a “rotina do ensino archaico”, mas salienta a modificação de Amoêdo quanto à teoria da cor. (DUQUE,1905:11) O crítico tece muitos elogios aos trabalhos executados por Amoêdo, classifica sua pintura como perfeita, dotada de

Por isso, destacamos na produção artística de Belmiro de Almeida a obra Efeitos de Sol, apresentada na primeira exposição do artista em 1893. Executada na Itália, a composição é marcada pela pincelada pontilhista, cuja figura feminima de pé entretida com a leitura destaca-se sob a paisagem. Portanto, tecnicamente, a obra segue os mesmos parâmetros formais da escola francesa instaurada por Seurat e Signac, sobretudo a escolha das tintas e pincelada constituída por toques curtos e justapostos.

... um equilibrio de sobriedade e brilho, que só elle possue em tão justas proporções e que perfeito lhe sáe das longas mãos claras - ..., que são indicativas do pensamento como a forma espatulada inculca a ordem, o methodo e a perseverança, não obstante o idealismo do typo chirognomonico. [sic] (DUQUE, 1905:12)

Considerando que na França a pintura pontilhista causava grande repercução para a crítica e o público, José Maria dos Reis Jr, no livro dedicado à trajetória artística do pintor, surpreende-se que Belmiro de Almeida, ao expor sua obra no Brasil, não tivesse qualquer comentário dos dois principais críticos na época, Angelo Agostini e Gonzaga Duque. O historiador aponta esta indiferença com perplexidade, sobretudo porque compara a reação de ambos em relação à obra Arrufos, executada em 1887 e largamente exaltada pelo seu caráter realista.

Observamos que Gonzaga Duque sempre referese ao pintor com entusiasmo. Utilizando uma linguagem erudita, descreve todo o aprendizado de Amoêdo e as obras executadas principalmente em Paris, apontando em cada uma delas os detalhes formais e comparando-as de maneira poética. Em relação ao pintor Belmiro de Almeida, assinalamos a conferência, igualmente entusiasta, de Celso Kelly na comemoração de centenário de nascimento de Belmiro de Almeida, em que destaca os principais méritos do pintor, quanto à sua universalidade. Na opinião do professor, Belmiro era um “rebelde de temperamento, irreverente de atitude” (KELLY, 1958:164)

No entanto, para Reis Jr, o silêncio da crítica não minimizam a posição vanguardista ocupada por Belmiro de Almeida na história da pintura brasileira, cuja obra foi o resultado de suas várias viagens à Paris, em que esteve atento para os “círculos expressivos e atuantes além dos limites convencionais da École de Beaux Arts e da Academie Julien”, enquanto no Brasil tais

Interessante observarmos aspectos semelhantes no perfil de ambos, o humor mordaz, o prazer em 467

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

pintar, o espírito empreendedor e principalmente o talento reconhecido. Rodolpho Amoêdo foi um incansável professor, mantendo sua carreira a serviço da arte, sempre preocupado com os variados processos técnicos.

a composição é estabelecida no interior do luxuoso leito da protagonista. As pinceladas finas são aplicadas para criar um efeito de sombra como na mão direita de Desdêmona, que pende sobre o lençol. A cabeleira ruiva da personagem destacase na composição e é composta por variada gama de cores aplicadas com uma delicada pincelada, que à distância criam o efeito “cor de fogo”. Considerando as obras que o pintor executou anteriormente, é surpreendente a reação de críticos e historiadores ao se defrontarem com esta produção.

No particular de sua atuação, devemos destacar o ensino de variados processos de pintura, como têmpera a ovo, afresco, encáustica e aquarela. Na exposição organizada por Elza Ramos Peixoto em comemoração ao centenário de nascimento de Amoêdo, foram exibidas não somente as principais produções de Amoêdo ao longo de sua carreira, mas aquelas em que o pintor utilizou diferentes técnicas e suportes.

Em Efeitos de Sol, a ambientação ‘plein air’ denuncia uma tradição desde a pintura impressionista. Nota-se a preocupação do pintor com a distribuição e organização da luz, submetendo cada elemento do quadro ao seu critério pessoal. Para tanto, utiliza pinceladas curtas emparelhadas, aplicadas com espessa camada de tinta, “construindo” toda a composição, subordinando a cor ao desenho, suavizando os contornos.

Alfredo Galvão destaca a erudição de Amoêdo, posto que o pintor estendeu seus conhecimentos sobre a química dos produtos utilizados nas telas, como “os pigmentos coloridos, dos óleos, dos solventes, dos vernizes”. (GALVÃO, 1980:55). Belmiro de igual talento, dividiu-se entre a pintura, a caricatura, a imprensa onde colaborou em diversos periódicos, a poesia e a escultura. O temperamento inquieto do pintor necessitava de constante atualização. No entanto, para atender às opiniões dos professores, a quem Belmiro respeitava, ele não rompe o vínculo com a Academia. Ao contrário, submete-se às diretrizes da instituição participando das Exposições Gerais e atuando no exercício do magistério em curtos períodos sem, contudo, abandonar seu desejo de modernização.

Reis Jr insiste em atribuir ao pintor um pioneirismo e uma ousadia na utilização do pontilhismo naquele momento, considerando que Efeitos de Sol estava, por seu tratamento pictórico, muito afinada com a vanguarda européia, muito embora o autor reconheça que somente em obras posteriores Belmiro irá aprimorar os procedimentos técnicos difundidos por Seurat. Ao escolhermos os dois pintores de distinta geração para este I Colóquio dedicado ao estudo da arte brasileira no século XIX, esboçamos alguns pontos de suas trajetórias artísticas, sua conquistas, mas principalmente destacar obras estreitamente ligadas à produção realizada na França no mesmo período.

Novamente um ponto comum entre os dois artistas que desejaram, cada a seu modo, favorecer o processo de modernização da instituição. Ambos trabalharam para a melhoria das condições de trabalho dos artistas. Em 1890, juntamente com Rodolfo Bernardelli, Amoêdo participou da reformulação curricular da Academia transformada em Escola Nacional de Belas Artes. Em 1930, a convite de Gelabert de Simas, Belmiro fundou o Sindicato dos Artistas, fato que representou o primeiro sindicato de profissões liberais no Brasil.

Devemos concluir que tanto a dedicação de Rodolpho Amoêdo quanto de Belmiro de Almeida em suas produções, estabeleceram certamente uma inovação formal no cenário artístico brasileiro no oitocentos.

A atuação firme e apaixonada de Amoêdo à frente do ensino e igualmente apaixonada e irreverente atitude de Belmiro, legitimam uma posição marcante destes dois artistas na arte brasileira. E na análise das obras destes dois mestres podemos também estabelecer semelhante preocupação às atualizações técnicas, buscando a perfeita assimilação de seus procedimentos.

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Em Desdêmona, Amoêdo ainda mantém-se tanto fiel ao desenho, quanto a narrativa, e portanto toda 468

Desdêmona de Rodolpho Amoêdo e Efeitos de Sol de Belmiro de Almeida

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Apesar dos avanços inegáveis entre pesquisadores e especialistas nos últimos dez anos, ainda se costuma presumir excessiva continuidade entre a Academia Imperial de Belas Artes e a Escola Nacional de Belas Artes, sua sucedânea. A noção de uma emenda perfeita entre as duas instituições está subsumida na grafia “AIBA/ENBA”, freqüentemente adotada por estudiosos para facilitar generalizações aplicáveis a ambas as siglas. Precisamos problematizar essa barra. Há continuidade, sim, entre as duas entidades, sem dúvida; mas há também diferenças suficientes para que mereçam discussão e análise como instituições distintas, produtoras de práticas, estruturas, discursos e sentidos diversos em termos de ensino, exposição e até mesmo posicionamento estético e político. Felizmente, novas pesquisas estão em curso que tenderão a esclarecer melhor os meandros da transição entre AIBA e ENBA, dando conta das rupturas e mudanças, talvez pela primeira vez na historiografia dessa área.2 Os únicos interessados em manter a falta de diferenciação entre essas instituições são os grupos comprometidos com a desgastada contraposição entre um ‘academismo’ retrógrado e um ‘modernismo’ revolucionário, ambos reduzidos a categorias monolíticas e portanto enganosas.

intimidade e reflexão: repensando a década de 1890 rafael cardoso

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O presente texto não pretende discutir a reforma da Academia e sua transformação em Escola Nacional, ocorrida no período crítico da transição republicana entre 1889 e 1890. Basta lembrar que essa mudança não foi imediata, e nem fruto de qualquer unanimidade. Como todo o resto do processo de consolidação da República, deu-se aos trancos e barrancos. Passou quase um ano entre a nomeação da comissão encarregada de elaborar projeto de reforma da AIBA, em 30 de novembro de 1889, e os dois decretos que deram existência legal à ENBA, ambos datados de novembro de 1890. Nesse período de interinidade, surgiram pelo menos três projetos de reforma, apoiados por grupos concorrentes. Agravando ainda mais a precariedade desses doze meses, foi deflagrada em abril a revolta aberta contra a Academia que resultou na criação de cursos livres no barracão do Largo de São Francisco, realizados entre os meses de julho e outubro, segundo relatos em jornais da época. Contando com Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo como principais articuladores entre os professores e com Eliseu Visconti e João Baptista da Costa como lideranças estudantis, o chamado episódio do ‘Ateliê Livre’ configura o que há de mais próximo a uma dissidência, propriamente dita, na longa história do ensino oficial de arte no Brasil.3 470

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Os embates institucionais costumam atrair bastante interesse da parte dos historiadores, porquanto evidenciam as fissuras do sistema. No presente caso, no entanto, faz-se importante não perder de vista que a crise de transição entre AIBA e ENBA reflete um panorama maior de expansão e fortalecimento do meio artístico como um todo. A relativa decadência da Academia tem por paralelo a ascendência de outras instâncias e instituições, correspondendo a uma maior diversidade, complexidade e amadurecimento de público, crítica, artistas e outros agentes novos como galerias. Entre 1880 e 1890, a AIBA se afundava em dificuldades orçamentárias e imbróglios políticos que impediram a realização regular das exposições gerais e dos prêmios de viagem, além de sofrer queda de matrículas e supressão do curso noturno. O pedido de demissão do moribundo diretor Nicolau Antônio Tolentino, em março de 1888, deu lugar à direção pouco convincente do engenheiro Moreira Maia, o qual permaneceu no cargo até sua própria morte em julho de 1890 (exaurido, possivelmente, pelo esforço heróico de realizar a primeira Exposição Geral em seis anos, inaugurada em março daquele ano), deixando a casa acéfala. Enquanto isso, o meio artístico local experimentava uma efervescência e um pluralismo nunca antes vistos. Após o retumbante sucesso das exposições do Liceu de Artes e Ofícios, a qual revelou a obra de Georg Grimm, e da individual de Almeida Júnior, recém regressado da Europa, ambas em 1882, os amantes de arte da Corte imperial assistiram a uma sucessão de exposições em galerias como as casas De Wilde, La Glace Élégante e Insley Pacheco, dentre as quais vale citar as individuais de Arsênio da Silva, Aurélio de Figueiredo e Firmino Monteiro, em 1883. A partir de 1886, esse movimento intensificou-se, com a realização das exposições de Facchinetti e Henrique Bernardelli, nas salas da Imprensa Nacional, e de Castagneto, na galeria Vieitas, assim como exposições estudantis na própria Academia. O circuito expositivo paralelo aos Salões já estava definitivamente consolidado a essa altura, permitindo inclusive a maior regularidade de uma crítica de arte que revelou, nesses anos, Felix Ferreira, Gonzaga Duque e Oscar Guanabarino, entre outros.

cidade efervescente, oferecendo diversas opções de lazer e de entretenimento. Escrevendo em 7 de julho de 1872, n’A Semana Ilustrada, o colaborador que assinava ‘Ninquem’ emitia o juízo: “Agora o povo fluminense não tem razão de queixa. Há divertimentos para todas as classes.” Dentre estas, ele destaca a “exposição de belas-artes para os competentes” e a “rua do Ouvidor para os vagabundos e elegantes”. Com um misto bem carioca de ironia e otimismo, o articulista assevera: “O Rio de Janeiro é na verdade uma Babilônia pela variedade das distrações que proporciona, quando não o seja pela quantidade dos portentos de pedra e de carne que encerra.”4 Esta opinião não era compartilhada por todos, é claro. Em seu grande livro O Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades, de 1877, Moreira de Azevedo critica duramente a falta de “gosto artístico” prevalente e denuncia os próprios artistas, que “vivem essa vida de indiferença e marasmo que nada concebe e produz.”5 Contudo, a simples existência de um livro como o seu demonstra uma consciência que é reflexo do amadurecimento cultural característico da década de 1870. Talvez a avaliação de Moreira de Azevedo fosse menos severa se ele tivesse escrito após a “batalha das Batalhas” que dominou a percepção jornalística do Salão de 1879, colocando em confronto as obras A Batalha de Avahy, de Pedro Américo, e Primeira Batalha dos Guararapes, de Victor Meirelles. O furor público em torno dessas obras gerou uma freqüência impressionante aos salões da Academia e suscitou a publicação dos textos que consolidaram a crítica de arte no Brasil.6 É possível identificar um amplo movimento, entre as décadas de 1870 e 1890, de progressiva intensificação da vida cultural e intelectual da Corte que corresponde ao ingresso do Brasil – ou, pelo menos, de uma parcela de suas elites – no mesmo regime de modernidade que era irradiado a partir de centros como Londres e Paris desde a década de 1850, pelo menos. Essa gradativa mudança de hábitos envolve a busca consciente do lazer e do entretenimento, conceitos fundamentais para a construção da própria idéia de modernidade, assim como uma ênfase crescente no espetáculo como forma de organização social. De modo concomitante, o meio artístico do Rio de Janeiro foi palco de uma liberalização de costumes, quase silenciosa, mas nem por isso menos impressionante. A recepção dada à tela A pompeiana, de João Zeferino da Costa, quando de sua exposição no Salão de 1879, surpreende pelo pouco escândalo provocado por um nu tão gratuito e ousado. Em comparação com o frisson causado cerca de quinze anos antes pela pequena A carioca,

Na verdade, é preciso recuar no tempo mais um pouco ainda para localizar a origem desse movimento. Se o meio artístico brasileiro mostrava sinais de amadurecimento no final dos anos 1880, já era possível antever a promessa desse fruto na década anterior. As páginas das principais revistas ilustradas da década de 1870 traem uma percepção nova e surpreendente do Rio de Janeiro como uma 471

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de Pedro Américo, passou batido o grande nu de Zeferino, mesmo sendo claramente provido de carga sexual. Tirante a bombástica censura de Gonzaga Duque – emitida oito anos depois do fato – A pompeiana foi alvo mais de elogios do que de críticas, evidenciando o relaxamento de velhos padrões moralistas que passava a vigorar na Corte no período pós-Guerra do Paraguai.

de representação e até de auto-representação. Após a aparição, em 1862, do volume, Brasileiras célebres, de autoria de Joaquim Norberto de Silva e Souza, sobreveio a tentativa de dar consistência histórica ao papel da mulher na formação social brasileira, culminando com a publicação, em 1899, do livro influente Mulheres ilustres do Brasil, de Ignez Sabino. Em paralelo a essa consciência incipiente da mulher como agente da história nacional, surge toda uma série de representações de protagonistas femininas nas páginas da literatura brasileira – geralmente, escritas por homens –, as quais buscam explorar a intimidade e a psicologia das mulheres. São bons exemplos dessa tendência alguns romances de José de Alencar, como Lucíola (1862) e Senhora (1875), ou do Visconde de Taunay, como Manuscrito de uma mulher (1873) e O declínio (1899), entre outros. Acompanhando esse olhar masculino para o universo feminino, o mesmo período também testemunhou o surgimento de um número razoável de mulheres artistas, as quais participaram em crescente número das Exposições Gerais da AIBA – a partir de 1844, quando a pioneira Emma Gabrielle Piltegrin Gros de Prangey expôs cinco obras. Dentre as muitas mulheres cujos nomes aparecem nos catálogos dessas exposições, até o final do período imperial, estão: Adele Moreau, Amelia Moreau, Angela Hoxse, Cornélia Ferreira França, Delphine Malbert, Francisca Breves, Guilhermina Tollstadius, Henriette Gudin, Isabel Alberto, Isabel Henninger, Isabel Labourdonnais Gonçalves Pinho, Joana Teresa Alves de Carvalho, Josefina Houssay, Júlia Labourdonnais Gonçalves Roque, Julieta Adelaide dos Santos, Julieta Guimarães, Luiza Hoxse, Madame Saint de Julien, Margarida Fortunata de Almeida, Maria Adelaide Portugal Saião Lobato, Maria Adelaide de Vasconcelos, Maria Antônia Abreu Lima, Matilde Bosísio, Maria Cochrane de Araújo Gondin, Raquel Haddock Lobo, Rosa da Mota, Virginia Lombardi, e ainda diversas senhoras e senhoritas listadas sob anonimato, ou somente pelas iniciais ou pelo primeiro nome. Em alguns poucos casos, uma expositora era identificada como “artista amadora”, designação atribuída, por exemplo, a Francisca A. Torres, filha do Visconde de Itaboraí, quando de sua participação no Salão de 1866. Merece destaque, nessa considerável seara de artistas mulheres, Abigail de Andrade, cuja aparição, primeiramente na exposição do Liceu em 1882 e depois no Salão de 1884, obteve merecido reconhecimento, dando ótimo início a uma carreira interrompida por sua morte precoce em 1889.10

O sentido de traçar esse lento movimento ocorrido ao longo das décadas anteriores é de chamar a atenção para a existência de um novo público consumidor de arte e cultura, o qual se encontrava consolidado na década de 1890. Geralmente englobado por termos genéricos como ‘elite cultural’ ou ‘burguesia urbana’, esse segmento social corresponde melhor à idéia de “uma ilha de letrados”, desenvolvida por José Murilo de Carvalho em A construção da ordem (1980). 7 Grupo por demais reduzido para figurar com destaque das análises socioeconômicas ortodoxas, essa camada constituída por grandes comerciantes prósperos, funcionários públicos, militares de alto patente, profissionais liberais, homens de letras, seus familiares e agregados, exerceu contudo um papel primordial nos rumos políticos da época. Foi, notoriamente, em seu seio que o abolicionismo e o republicanismo encontraram seu primeiro abrigo, refundindo os próprios parâmetros de nação e estado nos anos 1888 e 1889. É curioso reparar o quão pouco esse grupamento social tem sido considerado na historiografia da arte brasileira, dada sua importância inegável na imprensa, na literatura e em outros campos afins. Afinal, os primeiros colecionadores particulares de arte eram oriundos precisamente desse segmento, ao lado da nobreza propriamente dita, com a qual muitas vezes ele mantinha vínculos por casamento ou pelos meandros intrincados do sistema de honrarias imperiais.8 Ademais, diferentemente do grupo conhecido pela alcunha “homens de letras”, o público freqüentador de exposições e consumidor de obras de arte era de gênero misto. O amadorismo – ou apreciação de arte e sua prática em âmbito privado – era visto como uma ocupação aceitável para mulheres, dentro da rígida separação de gêneros da época, e era até incentivado. Isto posto, o meio artístico fornece um estudo de caso de extrema relevância para iluminar um dos mais obscuros “recônditos do mundo feminino” na história da sociedade brasileira.9 Vale ainda uma pequena digressão, a título de definir melhor a especificidade desse novo público de arte. O mesmo período entre as décadas de 1870 e 1890 compreende a cristalização no Brasil de uma noção distinta de universo feminino, digno

A existência desse público ilustrado – não somente letrado, mas ilustrado, no mais perfeito sentido do 472

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termo – explica o paradoxo aparente da ascendência e fortalecimento do meio artístico no exato momento em que a Academia enfrentava seu período mais crítico de declínio e crise, chegando quase à extinção. A tirar pelas indicações de propriedade e proveniência que figuravam dos catálogos dos Salões, os novos colecionadores de arte eram não somente Suas Majestades e Suas Altezas Reais, viscondes, barões e comendadores, mas um número nada desprezível de pessoas sem título algum, inclusive umas poucas mulheres. Isto só pode ter afetado a produção artística, à medida que os artistas vivem de sua arte e, por conseguinte, são obrigados a produzir aquilo que o público consumidor é desejoso de adquirir e capaz de absorver. Na hipótese plausível de que tenha se repetido, no Brasil, a mesma tendência das classes médias européias de preferir quadros menores de paisagem, natureza-morta e costumes às grandes telas históricas, religiosas ou mitológicas, deveria ser possível detectar um aumento de obras do primeiro tipo.11 A predileção pela pintura de costumes e assuntos domésticos, em detrimento dos grandes temas históricos, é claramente sinalizada como prova de atualidade por Gonzaga Duque, em A arte brasileira (1888), como parte de sua avaliação da tela Arrufos (1887), de Belmiro de Almeida:

sob o título brasileiro de O descanso da modelo, e a obra de maior sucesso da exposição.14 De modo geral, nota-se um aumento de cenas de interior doméstico, ao longo do último quartel do século 19 brasileiro, pelo menos tirando pelos dados disponíveis nos catálogos dos Salões. É notável que tenham ganhado popularidade, nas décadas de 1880 e 1890, quadros que retratam cenas de ateliê. Além das produções citadas de Almeida Júnior – e ainda outras do mesmo pintor como Ateliê em Paris (1880) e O importuno (1898) –, diversos outros artistas renderam-se aos encantos dessa temática, na esteira do sucesso de Descanso da modelo. Enquanto nenhuma cena de ateliê figura da lista de quase 400 obras expostas no Salão de 1879, a Exposição Geral seguinte, de 1884, inclui obras desse subgênero de autoria de Abigail de Andrade, Almeida Júnior, Belmiro de Almeida e Oscar Pereira da Silva (cópia d’O descanso do modelo). Em anos seguintes, o mesmo assunto renderia obras marcantes do pincel de artistas como Henrique Bernardelli, Pedro Weingärtner, Raphael Frederico e Rodolpho Amoedo, entre outros, tornando-se corriqueira após 1900. As cenas de ateliê são especialmente interessantes por serem representações auto-reflexivas: obras que falam sobre o fazer artístico e geralmente se dirigem a quem se interessa pelos bastidores do ofício. Guardadas as diferenças, sua recepção tem algo em comum com o modo como o público de cinema hoje aprecia e consome os chamados making of’s, filmes que documentam a produção de outros filmes. No complexo panorama de relações de gênero do último quartel do século 19, as cenas de ateliê também detêm um interesse peculiar pelo modo em que retratam as relações entre homens e mulheres. O aspecto mais chamativo do quadro O descanso do modelo é a contraposição entre o pintor vestido e as costas nuas da “bela rapariga morena como a casca da caneleira”, no dizer de Felix Ferreira.15 Não por acaso, esse confronto entre vestido e despida recorre n’O importuno, do mesmo Almeida Júnior. Pela atipicidade da situação retratada, a cena de ateliê apresenta uma das poucas instâncias, à época, em que a intimidade do espaço privado era dada a ver publicamente, com o agravante de misturar homens e mulheres em relações ambíguas e francamente sugestivas de uma transgressão das normas convencionadas para a convivência respeitável entre os sexos. Para quem duvida do potencial explosivo dessa combinação de homens trajados e mulheres peladas, é só lembrar que a transferência dessa situação de um interior para o

Os assuntos históricos têm sido o maior interesse dos nossos pintores que, empreendendo-os, não se ocupam com a época nem com os costumes que devem formar os caracteres aproveitáveis na composição dessas telas. Belmiro é o primeiro, pois, a romper com os precedentes, é o inovador, é o que compreendendo por uma maneira clara a arte do seu tempo, interpreta um assunto novo. Vai nisto uma questão séria – menos a de uma predileção do que a de uma verdadeira transformação estética. O pintor desprezando os assuntos históricos para se ocupar de um assunto doméstico, prova exuberantemente que compreende o desideratum das sociedades modernas [...]12 Gonzaga Duque erra, intencionalmente ou não, ao atribuir a Belmiro o pioneirismo nessa atitude. Outros o fizeram antes: notadamente, Almeida Júnior, que causou furor no Rio de Janeiro com sua exposição individual de 1882, atraindo mais de mil visitantes por dia, segundo o relato de Felix Ferreira. Duas obras de destaque nessa exposição eram justamente pinturas de gênero – ambas, aliás, representações de cenas de ateliê – Um cantinho de atelier,13 e Pendant le repos, tela consagrada

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ambiente externo condicionou um dos grandes embates do século 19 sobre a imoralidade das imagens: o caso do quadro Le déjeuner sur l’herbe (1863), de Manet.16

representação das figuras femininas, até então bastante rígido, quando não ausente. Surgem na arte brasileira das décadas de 1880 e 1890, talvez pela primeira vez, numerosas representações de mulheres, com direito à profundidade e à agência psicológicas. Tal constatação aplica-se às já citadas cenas de ateliê e, com maior perfeição, a imagens de contemplação feminina como Moça na janela (1891), de Aurélio de Figueiredo (Coleção Fadel), Retrato de senhora (1895), de Henrique Bernardelli (Pinacoteca do Estado), ou às absortas leitoras de Almeida Júnior em Leitura (1892) e Saudades (1899) (ambas, Pinacoteca), todos estes representativos da geração de pintores que então chegava ao reconhecimento popular. De modo menos evidente, ela poderia ser aplicada também a imagens nada inovadoras, em termos estilísticos, como os quadros de Pedro Américo, Judith rende graças a Jeova por ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holofernes (1880) e Moisés e Jocabed (1884) (ambos, Museu Nacional de Belas Artes). Embora mostrem mulheres de ação e atitude, essas telas ainda estão fortemente comprometidas com o regime antiquado de pintura histórica e mitológica, e foram produzidas lado a lado com exemplos os mais descarados de voyeurismo pictórico como a nova versão d’A carioca (1882), O noviciado (1894) e A primeira culpa (1898), todos do mesmo pincel. 18 Não é possível – e nem desejável, aliás, por ser maniqueísta – sugerir uma dualidade rígida opondo uma geração ‘acadêmica’, de saída, a uma nova geração, sensível ao universo feminino.

Quão fascinante, então, é constatar a existência de cenas de ateliê pintadas por artistas brasileiros, nesse período, em que o gênero é invertido e a mulher representada como pintora! É o caso de pelo menos duas telas bem conhecidas: No ateliê (1884), de Pedro Weingärtner (hoje na coleção Sérgio Fadel), e Moça pintando (1894), de Almeida Júnior, pequeno óleo sobre madeira em que o espectador observa por cima do ombro de uma pintora absorta no esforço de evocar uma paisagem. Se a ‘economia de trocas simbólicas’ usual das cenas de ateliê costumava passar pela oportunidade de franquear ao olhar masculino a representação de um corpo feminino despido e vulnerável, como entender esses quadros em que mulheres aparecem não somente completamente vestidas, mas ainda engajadas ativamente na produção da própria obra de arte? Nitidamente, existe aí uma inversão de valores que não pode ser dissociada do surgimento do público ilustrado citado acima, compreendendo a participação constante de mulheres no mesmo, ainda que minoritária. Esse novo público buscava uma outra representação da mulher, condizente com sua crescente sofisticação e cosmopolitismo. A existência de recônditos femininos dentro do meio artístico dessa época demanda uma avaliação do fenômeno sob a ótica daquilo que Griselda Pollock definiu como “espaços da feminilidade” na arte oitocentista:

Sem querer exagerar a contraposição, mesmo assim, é notável o engajamento da pintura brasileira nas décadas de 1880 e 1890 com a representação desses “espaços da feminilidade”, reflexo certamente de mudanças mais amplas nas práticas sociais que cercavam a visibilidade das mulheres na sociedade – em especial, na chamada ‘boa sociedade’. Um quadro como Más notícias (1895),19 de Rodolpho Amoedo (MNBA), é simbólico não somente desse olhar diferenciado para a psicologia feminina, como também de uma nova pintura, elegante e mundana, que então despontava com grande força nas principais capitais do mundo. Os nomes mais representativos dessa tendência são James Tissot e John Singer Sargent, artistas que compartilhavam um olhar atento às nuanças do universo feminino e da alta sociedade, recheando seus quadros de evocações ricas de moda e interiores, retratando com grande sensibilidade as alegrias das noites de gala e o tédio dos dias de ócio. São representações freqüentemente decorativas, às vezes frívolas, nas quais a mulher é vista como objeto de fruição masculina, sim, mas

Os espaços da feminilidade são aqueles a partir dos quais a feminilidade é vivida como posicionamento no discurso e na prática social. Eles são produtos de uma sensação vivenciada de localização, mobilidade e visibilidade sociais, inserida nas relações sociais de ver e ser visto. Formados no interior das políticas sexuais da visão, eles delimitam uma determinada organização social do olhar que, por sua vez, se volta para assegurar uma determinada ordenação da diferença sexual. A feminilidade é tanto condição quanto efeito.17 No caso brasileiro, não se está a falar de estratégias de representação especificamente femininas, discerníveis no espaço pictórico pela recorrência de cacoetes de proximidade e compressão, como aquelas que a autora atribui às produções de artistas como Mary Cassatt e Berthe Morisot. Por espaços da feminilidade, entende-se aqui uma relativa flexibilização do regime tradicional de 474

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com direito a alguma agência e muita profundidade psicológica. Em contraponto com as autorepresentações femininas que passaram a grassar com maior desenvoltura nos salões europeus, essas obras vêm sendo resgatadas pelos historiadores da arte como uma preciosa documentação visual de uma das mudanças mais importantes dessa época: o início da emancipação da mulher na sociedade industrial.20

primeiro passo em direção a uma nova organização social que permitisse maior pluralidade, diversidade e heterogeneidade. Se a dimensão psicológica de algumas obras de arte dessa época continua a ser subestimada ou até negada, isto tem muito mais a ver com os preconceitos da historiografia posterior do que com qualquer deficiência das obras. Do movimento republicano em diante – passando por positivistas e marxistas, desenvolvimentistas e neoliberais, com igual fervor – a aposta ideológica de muitos tem sido na história do Brasil como fruto de movimentos coletivos e de forças impessoais como raça e classe ou geografia e economia. Tal postura pressupõe a reificação do conceito abstrato que atende pelo nome de ‘Povo’ (com direito à maiúscula inicial). Para boa parte de nossa tradição estudiosa da sociedade, tudo que fosse outro do que isso seria alienação. Renegada foi e continua a ser a história de nossas diferenças e individualidades, das idiossincrasias que demarcam a identidade de cada um, da solidão essencial que nos eleva acima da nacionalidade e nos remete à condição humana. A própria noção de uma cultura brasileira, una e autônoma, presume a existência de um substrato ‘popular’, o qual precisa ser problematizado, em especial no que diz respeito à arte, à criação e à memória.22

Sargent e Tissot moviam-se ambos no circuito internacional de arte que então começava a despontar entre Paris, Londres e Nova York, movido por crescentes interesses mercadológicos – em especial, o influxo de ricos colecionadores americanos no cenário artístico europeu. Como eles, muitos outros – artistas franceses, ingleses, americanos e de outras nacionalidades, inclusive brasileiros – passavam a integrar um meio artístico cosmopolita, de fato. Treinados de modo geral pelos mesmos mestres parisienses, esses artistas participavam de um circuito de ensino e exposição cujas partes se comunicavam e permeavam cada vez mais, ainda que tenha permanecido altamente segmentado e hierarquizado até a eclosão consciente do moderno, por volta de 1900.21 Em torno do sistema mundial de academias, começava a existir uma comunidade de estruturas e práticas, o que propiciava a possibilidade de repercutir discursos e tendências em escala internacional. Será tão surpreendente assim constatar que alguns artistas brasileiros, bebendo diretamente nas mesmas fontes que seus colegas de outras nacionalidades, tenham trazido de volta ao Brasil as mesmas preocupações que então agitavam o resto do mundo ocidental?

Ainda rege nossas idéias sobre cultura um mito de morenice normativa, mais afeito às aspirações nacionalistas de românticos e modernistas do que sensível às transformações inegáveis da contemporaneidade globalizada. Diante do colossal constructo histórico da brasilidade, folclórica e genérica, o individual e o particular perdem qualquer relevância. Face a tão gigante paradigma, tudo aquilo que passa pela cabeça da moça do quadro, a que recebeu as más notícias, seriam tolices e futilidades. A primeira ironia disso é que essa brasilidade ‘de raiz’ foi inventada e incensada por uma intelectualidade urbana e minoritária, para aplicação seletiva ao ‘outro’ rural e majoritário. A segunda ironia é que essa moça e seu criador somos nós: os ilustrados produtores e consumidores da cultura erudita no país do populacho. A ironia maior é que nem por isso a legítima criação popular é respeitada, de fato. Será que não está na hora de nos permitirmos perguntas mais matizadas, a fim de obtermos respostas mais precisas? Afinal, a afirmação exacerbada da nacionalidade fazia sentido em uma época quando a identidade pátria sofria ameaças de desagregação, fosse por regionalismos ou por concorrência externa. Hoje, a existência da cultura brasileira não é mais mero objeto de anseio ou

Examinando mais detidamente um quadro como Más notícias, além dos outros citados que tratam da temática de contemplação feminina, percebese uma nova busca pela interioridade, pela intimidade e pela reflexão. A voga das cenas de ateliê atesta igualmente a esse movimento. A arte brasileira começava a se voltar para dentro: não somente para o interior do país (os caipiras de Almeida Júnior), conforme sempre destacou nossa historiografia, mas para o interior das casas e das almas também. Aí, temos uma informação preciosa sobre a transformação da elite ilustrada da sociedade brasileira nessas primeiras décadas republicanas. Vencidas as etapas de consolidação da nacionalidade e de engajamento com um projeto de mudança política, o meio artístico finalmente refletia o amadurecimento suficiente para se dedicar a explorar aquilo que é mais propriamente do âmbito da arte: as agruras da condição humana. O olhar diferenciado para o universo feminino é um 475

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especulação, mas uma realidade incontornável e poderosa. Diante dessa constatação, o melhor que se faz por nossa história cultural é parar de entoar o coro triunfal e prestar atenção aos acordes menores, até agora abafados. Se o Brasil quer mesmo ser um país de todos, é necessário que se reconheça o valor de cada um... ou, no caso, de cada uma.

Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990. Cf. Miriam Andrade de Oliveira, As pintoras das Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes na Primeira República. 180 Anos de Escola de Belas Artes: Anais do Seminário EBA180. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. pp. 333-340. 11 Seria interessantíssimo, como projeto de pesquisa, que se fizesse uma tabulação estatística entre os assuntos dos quadros e a condição social de seus donos, para averiguar se realmente existe qualquer correlação, nesse sentido. 12 Gonzaga Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p.212. 13 Este quadro, em coleção particular, depois ganhou o título espúrio O modelo e teve sua data erroneamente atribuída como 1897 no livro Almeida Jr. (1985), editado pela Art Editora como parte da série popular, “Grandes artistas brasileiros”. 14 Felix Ferreira. Belas artes: Estudos e apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes, 1885. pp.116123. 15 Ibid., p.120. 16 Para um aprofundamento dessa discussão, ver Marcia Pointon, Naked Authority: The Body in Western Painting 1830-1908 (Cambridge: Cambridge U.P., 1990), pp.113134. 17 Griselda Pollock, Vision and Difference: Femininity, Feminism and the Histories of Art (Londres: Routledge, 1988), p.66. [tradução minha] 18 Ver Liana Ruth Bergstein Rosemberg, Pedro Américo e o olhar oitocentista (Rio de Janeiro: Barroso Edições, 2002). 19 Para uma análise desse quadro, ver meu livro A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930) (Rio de Janeiro: Record, 2008), pp.108-115. 20 Ver, entre outros, Elaine Kilmurray & Richard Ormond, orgs., John Singer Sargent (Princeton: Princeton U.P., 1998); e Nancy Rose Marshall & Malcolm Warner, James Tissot: Victorian Life/Modern Love (New Haven: Yale University Press, 1999). 21 Uma idéia da complexidade desse circuito pode ser depreendida de livros como: John Milner, The Studios of Paris: The Capital of Art in the Late Nineteenth Century (New Haven: Yale U.P., 1988); Annette Blaugrund et alii, Paris 1889: American Artists at the Universal Exposition (Philadelphia & Nova York: Pennsylvania Academy of the Fine Arts & Harry N. Abrams, 1990); e Rafael Cardoso [Denis] & Colin Trodd, orgs., Art and the Academy in the Nineteenth Century (Manchester & New Brunswick: Manchester U.P. & Rutgers U.P., 2000). 22 Ver Lélia Coelho Frota, Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005), pp.16-18. Cf. Afonso Carlos Marques dos Santos, A invenção do Brasil: Ensaios de história e cultura (Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007), pp.59-69, 87-95.

Notas 1

Professor associado da PUC-Rio, Departamento de Artes & Design. 2 Promete, nesse sentido, o projeto de doutorado de Camila Dazzi, “A Reforma de 1890” – Da polêmica em torno de sua concepção à forma como se deu sua implementação na Escola Nacional de Belas Artes (1889-1900), em curso na EBA/UFRJ. Para o estado da arte sobre esse assunto, ver Arthur Valle, A pintura da Escola Nacional de Belas Artes na 1ª República (1890-1930): Da formação do artista aos seus modos estilísticos. (Tese de doutorado inédita, EBA/UFRJ, 2007), esp. pp.40-47. 3 Ver Ana Maria Tavares Cavalcanti, Os embates no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes, 19&20: A Revista Eletrônica de Dezenovevinte, v.2, n.2 (abril 2007) Disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_ 1890.htm. Acesso em 1 jul. 2008 4 Ninquem, Um pouco de tudo, A Semana Ilustrada, n.604 (07/07/1872), pp.4827, 4830-4831 5 Moreira de Azevedo. O Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1969. v.2, p. 215. 6 Para uma discussão mais alongada desse episódio, ver meu artigo Ressuscitando um velho cavalo de batalha: Novas dimensões da pintura histórica do Segundo Reinado, 19&20, a revista eletrônica de Dezenovevinte, v.2, n.3 (julho de 2007). Disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/ criticas/rc_batalha.htm. Acesso em 1 jul. 2008 7 José Murilo de Carvalho. A construção da ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ & RelumeDumará. 1996. pp. 55-82. 8 Sobre a formação social desses clãs aristocráticos, ver Eul-Soo Pang. In Pursuit of Honor and Power: Noblemen of the Southern Cross in Nineteenth-century Brazil. Tuscaloosa: U. Alabama Press. 1988. esp. parte II. 9 Embora falem de outra época, o termo é pego emprestado de: Marina Maluf & Maria Lúcia Mott, Recônditos do mundo feminino. Nicolau Sevcenko, org. História da vida. privada no Brasil 3. República: Da Belle Epoque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998. 10 Carlos Roberto Maciel Levy. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes.

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O quadro Arrufos de Belmiro de Almeida é da virada do século, 1887, e causou escândalo na época. Acostumado com quadro de batalhas ou retratos de senhoras e senhores respeitáveis, o público achou um escândalo apresentar emoções íntimas num quadro. A pintura realmente comenta uma cena de casal, em que há uma briga de ciúmes. A mulher chora para um lado, enquanto o homem enrola nos dedos o charuto, um tanto frio, indiferente ao pranto. O ambiente é bem século dezenove, coberto de panos e tapetes, o que Walter Benjamin considerava uma tentativa de mascarar o caráter de mercadoria dos objetos no interior doméstico. O modelo para a cena é Gonzaga Duque, crítico de arte carioca, então com 22 anos, e amigo, companheiro de boêmia do artista. Belmiro, além de pintor, foi caricaturista, escultor, autor do Manequinho da Praia de Botafogo, e viveu entre o Rio e Paris no período entre o final do século XIX e os anos 30. Na tela se pretende pintar o jogo das emoções entre homem e mulher, um espaço de intimidade, deslocando o interesse da arte para uma notação de movimentos menores, mais sutis, talvez inapreensíveis para o indivíduo não acostumado à introspecção e a uma visão psicológica do mundo que toma forma nessa virada do século. a intimidade em cena vera lins

Gonzaga Duque, em A arte brasileira, comenta o quadro, mostrando o quanto é inovador:

1

Ainda no Rio de Janeiro não se fez um quadro tão importante como é este. Os assuntos históricos têm sido o maior interesse dos nossos pintores que, empreendendo-os, não se ocupam com a época nem os costumes que devem formar os caracteres aproveitáveis na composição dessas telas. Belmiro é o primeiro , pois a romper com os precedentes, é o inovador, é o que compreendendo por uma maneira clara a arte do seu tempo, interpreta um assunto novo. Vai nisto uma questão séria – menos a de uma predileção do que a de uma verdadeira transformação estética. O pintor, desprezando os assuntos históricos para se ocupar de um assunto doméstico, prova exuberantemente que compreende o desideratum das sociedades modernas e conhece que a preocupação dos filósofos de hoje é a humanidade representada por essa única força inacessível aos golpes iconoclastas do ridículo, a mais firme, a mais elevada, a mais admirável das instituições – a família. (DUQUE, 1998: 212) Eu queria comentar o que observa Gonzaga Duque com a ajuda de três autores contemporâneos:

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Jacques Rancière, Jurandir Freire Costa, e Richard Sennet.

ser valorizadas e nasce a família nuclear moderna no Brasil. E com isso uma série de mecanismos de controle disciplinarizam os indivíduos. Fala dessa mudança na vida familiar dos tempos coloniais com a urbanização, como uma política que tenta unir o interesse pela família ao interesse pelo Estado. Na família patriarcal rural não havia sentimento de privacidade, porque nada havia a esconder, portanto dominava entre seus componentes uma psicologia rasa. A idéia de personalidade se opõe ao caráter natural. A situação, a cena íntima, que o quadro apresenta, é, portanto, índice de uma modernidade trazida pela urbanização do século XIX.

Rancière fala da modernidade como de uma transformação do regime representativo para um regime propriamente estético. Desde o romantismo alemão busca-se a autonomia da arte. No regime estético as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível que a libera de qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. Valoriza-se a arte como forma e a auto formação da vida. Rancière lembra Schiller na Educação estética do homem, que propunha a partir do livre jogo da arte uma transformação do homem e do Estado. A revolução estética produziu uma nova idéia de revolução política como realização sensível de uma humanidade comum existindo ainda somente enquanto idéia. Essa modernidade para ele começa com o realismo de Flaubert e Zola e vai ser radicalizada nas propostas das vanguardas de ligar arte e vida. Consistiu numa mudança que passou da literatura e das artes para a história:

O pensamento autoritário da elite cosmopolita que tentava “civilizar” o país alimentava-se do ideário positivista e evolucionista-naturalista. À noção de uma realidade externa observável e suscetível de apreensão junta-se a de evolução histórica como adaptação do organismo social ao meio externo extra-histórico. Assim se pretende uma política objetiva, orgânica e racional, em que se trata de encontrar e colocar em prática modelos corretos. A valorização da intimidade começa a acontecer quando a família é assaltada por dispositivos normalizadores, que, desde a transferência da corte, começam a organizar a vida urbana. O indivíduo se torna introspectivo, a cultura burguesa dos sentimentos condiciona a mentalidade de seus intelectuais e artistas, refina suas sensibilidades e gera seus problemas. Mas é com o fim do Império e a tentativa de construção de um Estado-Nação moderno no Brasil, que o novo modelo de urbanização faz surgir na cultura brasileira o interesse pelo eu, o psiquismo e o corpo. Ao mesmo tempo que essa valorização da intimidade, da personalidade e da família nuclear retirava o indivíduo do espaço público e lhe impunha outras formas de controle, dava-lhe também novos instrumentos para entender esse espaço de onde o retiravam. Essa visão psicologizada do real é também uma visão subversiva do mundo liberal racionalista.

Passar dos grandes personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes de ser científico. [...] ... a lógica estética de um modo de visibilidade que, por um lado, revoga as escalas de grandeza da tradição representativa e, por outro, revoga o modelo oratório da palavra em proveito da leitura dos signos sobre os corpos das coisas, dos homens e das sociedades. (RANCIÉRE, 2005: 49-50) Assim, a revolução estética não está no rompimento com a figuração, mas no abandono do sistema representativo. Gonzaga Duque fala dessa mudança quando aponta no quadro de Belmiro uma “verdadeira transformação estética”. O crítico, ao apontar essa mudança a partir da preocupação do artista com o tema da família, está chamando atenção para uma transformação na sociedade brasileira que o psicanalista Jurandir Freire Costa estuda no livro Ordem médica e norma familiar. Ele mostra no seu livro como a família nuclear se forma no século XIX brasileiro em oposição à família patriarcal rural em que conviviam filhos, agregados e serviçais que misturavam o público e o privado. Mostra um movimento semelhante ao que Philippe Ariès descreve na França do século XVII para o XIX.. É com a intervenção dos higienistas e médicos e da política imperial que a criança e a intimidade começam a

Gonzaga Duque imagina toda uma narrativa onde insere a cena pintada, descrevendo-a minuciosamente e nomeando-a como um “tempestuoso momento de rusga”. Tudo nessa cena fala, tudo aí significa como no sonho: É um episódio doméstico, uma rusga entre cônjuges. O marido, um rapaz de boa fortuna, chega em companhia da esposa à bonita habitação em que viviam até aqueles dias como dois anjos. Tudo em redor demonstra que aquele interior é presidido por um fino espírito feminino, educado e honesto. Ela, o encanto 478

A intimidade em cena

Nasce também uma contradição, há mais pessoas nas ruas , mas as relações sociais são mais impessoais. O espectador, que toma o lugar do ator no século XIX, não quer se envolver, se defende através do retraimento e do silêncio. À medida que o desequilíbrio entre vida íntima e vida pública foi aumentando, as pessoas tornaram-se menos expressivas. Têm medo da emoção espontânea que pode irromper e revelar a personalidade. Há uma necessidade de conter as emoções. Começa a ser possível estar na multidão como mero espectador. Sentar num café e ficar em silêncio, como voyeur. A rua se torna uma gastronomia para os olhos, mas o comportamento em público é contido, retraído.

desse interior à bric-a-brac depõe o toucado de palha sobre um mocho coberto por um belo pano de seda e entra em explicações com o esposo. E ele, muito a seu cômodo em um fauteuil de estofo sulferino, soprando o fumo do seu colorado havana, responde-lhe palavra por palavra às explicações pedidas. Há um momento em que ela excede-se, diz uma frase leviana; ele reprova, ela retruca, ele repele; então ela não se pode conter, é subjugada por um acesso de ira, atira-se ao chão, debruçase ao divã para abafar entre os braços o ímpeto do soluço. É este o momento que o artista escolheu. Da esposa, debruçada sobre o divã, vê-se apenas o perfil, mas ouvem-se-lhe os soluços que fazem estremecer o seu corpo. Debaixo de seu vestido foulard amarelo percebe-se o colete, o volume das saias, os artifícios exteriores que a mulher emprega para dar harmonia‘a linha do corpo. Na fímbria do vestido a ponta do sapatinho de pelica inglesa ficou esquecido, sobre o tapete do assoalho, como se propositalmente, animado por estranho poder, tomasse aquela atitude para contemplar a rosa que caiu do peito da moça e jaz no chão, melancólica, desfolhada, quase murcha, lembrando a olorente alegria que se despegara do coração da feliz criatura naquele tempestuoso momento de rusga. E o esposo, um guapo rapaz delicado e forte, num gesto de indiferentismo, atende à tênue fumaça que se desprende do charuto, levantando-o entre os dedos, em frente do rosto.(DUQUE, 1998: 211)

Segundo Sennett, entre os séculos XVIII e XIX, houve uma transformação das regras cognitivas: de uma ordem transcendente, em que os fatos eram referidos a um sistema de valores transcendentes, para uma ordem dos fenômenos naturais, ordem imanente, em que os fatos são compreendidos em si mesmos, e a ordem da mercadoria é companheira da crença no significado imanente do mundo. Uma vida na imanência privilegia as sensações imediatas, sentimentos imediatos. Sem deuses os homens passaram a acreditar na sensação, na imediatez , no concreto As aparências se tornam semelhantes, já que as roupas são feitas à máquina. A marca Singer é de 1825. Passa a ser de bom tom usar roupas como produção de anonimato. Vestir-se de maneira sofisticada, à maneira cosmopolita significava aprender como baixar o tom de sua aparência e como passar desapercebido. Só por detalhes, sutilezas, revela-se algo, dá-se pequenas pistas para o reconhecimento com uma cor, uma gravata. Se fazia necessário um processo de decodificação para reconhecer quem é aquela pessoa. A leitura das roupas e dos detalhes se tornou uma busca de pistas reveladoras. Na família, também a vigilância quanto às emoções mantinha a ordem familiar. O principio da personalidade criava instabilidade em um domínio – a família, onde as pessoas estavam decididas a fixar-se como num quadro. A desordem tinha de ser varrida das ruas, da família, mas irrompia nos corpos como histeria, neurastenia, nevrose.

Eu queria trazer também Richard Sennett para comentar o quadro e desenvolver estas questões.. Em O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, ele fala de como no século XIX há um retraimento do homem enquanto ator, do público para o âmbito privado da família. Lembra também Philipe Ariès na sua História da família e da criança, em que trata do início da família burguesa, modelo nesse momento. É quando surge o homem psicológico, que começa a se ocupar de suas emoções e recolhê-las para a intimidade. Vale lembrar que a interpretação dos sonhos é de 1900. Sennett diz que Por volta de 1870 parecia plausível estudar uma emoção como algo contendo um sentido independente, como se fosse possível descobrir todas as circunstâncias tangíveis nas quais a “emoção” surgiria e os sinais tangíveis por intermédio dos quais a emoção se tornaria manifesta. (SENNETT, 1988: 37)

Há também a erosão de uma vida pública forte. O que no caso do Brasil é marcado com a desencanto com a República. Os jovens republicanos vão dizer que a República não é a de seus sonhos e se refugiam nos cafés, na vida em pequenos grupos e na vida familiar que se torna refúgio contra o domínio publico. Com a ênfase na autenticidade psicológica as pessoas tornaram-se desprovidas

É aí que nasce a privacidade, nos tornamos mais absortos em nós mesmos, a psique é privatizada. 479

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Num fim de século como este, pavoroso e sinistro, em que a flor do Ideal pende, fanada, sobre um Lethys de indiferentismo, em que as nobres e supremas aspirações da alma humana caem cerceadas, levadas a ombro pela chatice burguesa que tudo avassala e a tudo envolve, timbrando por se apresentar obtusa, urdindo a intriga do desprezo contra os raros que ainda estudam; em que a grande e inúmera comunidade dos sensitivos e passionais perece, sufocada pelo positivismo prático dos devotos do deus Milhão; - faz-se urgente a palavra inspirada dos levitas da Arte, procurando elevar acima da vaza das paixões deprimentes, a alma vencida de toda uma geração extraviada nos labirintos da indiferença. (CAROLLO, 1980: 73)

de arte na vida cotidiana, pois são incapazes de recorrer à força criativa do ator. Teatralidade, uma vida pública vigorosa, se opõem a intimidade. Os boêmios cariocas se caracterizam por um comportamento oposto ao do burguês. São dândis como B.Lopes, o poeta que se veste espalhafatosamente e faz declarações de amor no espaço público de uma confeitaria, ou como o próprio Belmiro de Almeida, do qual Gonzaga Duque diz que Entre camaradas, na rua do Ouvidor, com o narizinho arrebitado e atrevido farejando os pacatos burgueses para lhes agarrar o ridículo, tinha na cabeça um cento de assuntos para pintar e em casa um cento de quadros para concluir. A sua predileta musa era a que inspirou e imortalizou Daumier e Gavarni, e, a bem da verdade, deve-se dizer que depois de Borgomainero e Bordallo Pinheiro ninguém tem feito, no Brasil, melhores caricaturas. Só depois de casado e depois de viajado; depois de ter visto de perto quanto trabalho e quanta dedicação são precisos para o artista conquistar um nome foi que ele abandonou a boêmia, de uma vez para sempre. A única cousa que ele jamais abandonará é a toilette... (DUQUE, 1998: 209)

Contra a contenção e a indiferença ligadas ao positivismo e ao dinheiro, cabe cuidar da alma e da sensibilidade. Sennett liga o aparecimento da personalidade e sua contenção ao capitalismo industrial. Por exemplo, o desaparecimento do comportamento teatral do ator se acompanha da fixação do preço das mercadorias. Não se barganha e pechincha mais, o que necessitava de um comportamento mais teatral, do jogo que instabiliza as regras. O comprador passa a ter um papel passivo, não precisa barganhar preços e se torna mais um voyeur, atraído pelo caráter de espetáculo que os comerciantes começam a acrescentar às mercadorias através das vitrines decoradas com fantasia. É interessante que uma das lojas que expunham quadros nesse momento no Rio se chamava “Ao preço fixo”.2

Esses boêmios se revelam contra a contenção dentro dos moldes do comportamento calculado burguês. Se opõem à ordem dominante na própria aparência e no comportamento. A espontaneidade se coloca em oposição à convenção social e faz com que os espíritos livres se sintam divergentes. A boêmia dos cafés do Rio, pelo comportamento indisciplinado, a forma de vestir singular, vai ser considerada transgressora – traz a desordem a uma sociedade que queria ser organizada de acordo com os moldes europeus, no que significavam de contenção dentro de uma racionalidade burguesa. A liberdade de expressão não estava mais nas ruas, nem nos cafés – seu lugar cada vez mais se restringia à arte. A acusação de boêmios encobria a aversão à divergência que artistas e intelectuais opunham à ordem que queria se impor, uma reação a essas modificações no público e no privado. Os rebeldes queriam ainda ser atores e ter a rua como palco e público. Atuando a partir do que tinha sido recalcado, quando a personalidade invade a esfera pública, estão próximos à arte que agora é o único território onde ainda se pode falar, onde se dá forma à desordem.

Sennett afirma também, que apesar da valoração da emoção, do homem psicológico, a contenção a que era submetido fazia com que, em contrapartida, nos anos 1890, fosse por uma transgressão, que uma mulher, ou um homem como Oscar Wilde, podia ser livre. Sentir-se livre para expressar-se a si mesmo, desvio, anormalidade: esses três termos passaram a ser vistos como completamente interligados, uma vez que o medium público se tornara um campo para a abertura da personalidade. [...] Numa cultura da personalidade, a liberdade se tornara uma expressão idiossincrática, mais do que uma imagem de como a humanidade poderia viver. (SENNET, 1988: 237)

O poema em prosa de Dario Velloso, poeta simbolista de Curitiba, mostra sua percepção do momento em que viviam:

Ao mesmo tempo que se valorizava a personalidade no espaço público, ela passava a 480

A intimidade em cena

ser objeto de um intenso controle: qualquer demonstração espontânea ou involuntária tinha de ser dominada. O autocontrole passava a ser imprescindível no mundo civilizado.

E aqui gostaria de fazer uma analogia entre Arrufos e a A noiva do vento de Kokoschka de 1914. Também uma cena íntima - um auto-retrato do pintor com Alma Mahler, em que o homem se mantém impassível, arredio, nele a intensidade aumenta nesses panos que envolvem os dois corpos, construindo uma cena tempestuosa. A relação homem /mulher é assim também fonte de conflitos, mostrando a impossibilidade da relação do indivíduo solipsista com o outro. Schorske comenta o quadro e outros retratos pintados por Kokoschka como tentativas de apresentar o lado oculto, espiritual e doloroso do individualismo burguês. Confunde o título do quadro, chamandoo de Tempestade, como num ato falho, pois a tela é mesmo tempestuosa:

Aqui, em Arrufos, o conflito com essa nova ordem é apresentado e estudam-se as emoções, atentase à sensibilidade. Sennett vai dizer que, no entanto, esse interesse pelo estudo da emoção leva também ao narcisismo contemporâneos. Mas o artista deveria expressar verdades para uma humanidade que desesperava da ordem social enquanto tal. A desordem, o conflito, eclodem na família, cuja solidez é tão enfatizada pela sociedade burguesa. Solidez, estabilidade, serenidade, vão ser questionadas por algo que é reprimido nessa nova ordem familiar e que explode na cena íntima. A exaltação higiência do corpo trouxe-o à cena, mas ele agora vai ser tensionado.

Em “A tempestade”, os corpos dos amantes deitam-se juntos, mas a “consciência visualizada” de Kokoschka diz-nos como é impossível esse amor. O corpo de textura macia de Alma está adormecido em eloqüente contentamento, junto ao peito coruscante de paixão de seu amante. Oskar estira-se tensamente desperto, com o maxilar travado, a cabeça tão rígida sobre os ombros como se estivesse de pé. Os olhos cansados, muito abertos, fixam imóveis o vazio; as mãos calejadas e inchadas, cruzadas frouxamente sobre a virilha, manifestam a tumescência de seu espírito, tão irremediavelmente defasada da serenidade de alma. Da dissonância, da disjunção afásica desses dois seres com o espírito encarnado, eleva-se o furacão. Do seu mar enluarado de amor selênico, a tempestade carrega-os como um barquinho. Será uma nuvem de esperança, um meio resistente da fantasia barroca, a erguê-los? Ou é a depressão de uma onda de desespero que engolirá o seu amor condenado? As ambigüidades do cenário reforçam as ambigüidades dessa poderosa experiência erótica, em que nenhum dos parceiros possivelmente conseguiria distinguir entre o físico e o psicológico, mas onde a posição solipsista nunca poderia ser transcendida. (SCHORSKE, 1988: 320)

O quadro estabilizado se mostra nas pinturas de Modesto Brocos e Almeida Junior. No primeiro, a nova família nuclear é um modelo de tranqüilidade. No segundo aparece a questão da nacionalidade também, numa família de várias cores, chamando a atenção para o convívio multiracial na família brasileira, antecipando as idéias de um Gilberto Freyre. Em Belmiro se instabiliza o quadro da ordem, se suspende essa ordem familiar que foi imposta com a disciplinarização e a contenção. Sua irreverência me surpreendeu também na tela Os descobridores, de 1899, em que tratando de um tema histórico é bastante crítico: foge à monumentalidade em que poderia louvar a nacionalidade, colocando os descobridores como dois desgarrados e solitários, degredados, talvez. O que lembra o monólogo de Dario Fo, A descoberta da América, que desloca o foco do descobrimento de uma narrativa heróica para uma história de invasão e pilhagem. Aqui não se chega a tanto, mas há um transtorno da representação habitual. Nesse quadro também estamos fora do neoclássico da Academia que ainda estava no regime da representação e acontece uma revolução estética – os descobridores são dois homens comuns, não mais heróis. O regime estético das artes desfaz a correlação entre tema e modo de representação.

Segundo Schorske, para os artistas, a afirmação do que é recalcado pela civilização lhes reabria a porta para a vida da ação e da sociedade. Se a civilização repousa sobre a repressão da natureza – a morte, trabalhar com o recalcado é afirmar a vida contra a morte. Para ele, os modernistas são aqueles que ousam dizer que as coisas não são o que parecem.

Em Arrufos, o inconsciente, esses impulsos reprimidos vão anunciando a dissonância , a impossibilidade e a posição solipsista dos homem que depois as vanguardas surrealistas e expressionistas irão colocar em cena com maior intensidade.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Os dois quadros falam de emoções, mostrando uma recusa a se curvar à ordem e, ao mesmo tempo, com a promessa de outras possibilidades de configuração do sensível, pelo que está faltando e que o conflito aponta. O que as vanguardas vão buscar na tentativa de ligar arte e vida.

FREIRE COSTA, Jurandir. Ordem médica e norma familiar. São Paulo: Graal, 2004. LINS, Vera. Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1991. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Monica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005. REIS JÚNIOR, José Maria dos. Belmiro de Almeida, 1958-1935. Rio de Janeiro: Pinakotheque, 1984. SCHORSKE, Carl. E. Viena fin-de-siècle, política e cultura. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SENNETT, Richard. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade. Trad. Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Rancière faz uma diferença entre uma concepção estratégica de vanguarda e outra estética, mostrando a falência da primeira, que se considerava um partido, que marcha à frente, mas a continuidade da segunda como a invenção de formas sensíveis e dos limites materiais de uma vida por vir, como uma metapolítica. Nem todo quadro é político, nem todo quadro é arte. Mas estética e política se juntam no sentido de que, quando há arte, ela é política, na medida em que opera um novo recorte no espaço material e simbólico. Um trabalho de criação de dissenso na partilha do sensível opera uma reconfiguração polêmica deste.

Notas 1

Faculdade de Letras da UFRJ, professora adjunta de Teoria da Literatura e Literatura Comparada. 2 Ver no diário de Gonzaga Duque (LINS, 1991: 162) passagem em que conta de uma exposição do pintor Roberto Mendes na loja “Ao preço fixo”.

É intensificado no quadro expressionista o que já se delineia na tela do final do século XIX, uma profunda visão crítica da ordem que fora implantada. Referências bbliográficas DUQUE, Luiz Gonzaga. A arte brasileira Org. Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995.

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capitulo 12 iconografia: a paisagem

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1. Nas páginas que se seguem, pretendemos apresentar algumas considerações a respeito de como se estabeleceu a relação entre Paisagem e Nacionalismo no debate artístico brasileiro, quando da passagem do Império à República e nos anos imediatamente posteriores ao advento desse último regime. Analisando as apreciações críticas publicadas em periódicos e as declarações dos próprios artistas, podemos verificar que a Paisagem, na medida em que era um indício da natureza brasileira e de suas especificidades - suas formas, suas cores, sua luz local - foi entendida, muitas vezes, como o motivo ideal para plasmar imagens que pudessem funcionar como sínteses visuais da pátria brasileira. Para os diversos críticos e artistas cujos nomes desfilarão aqui, as representações da paisagem estavam então estreitamente vinculadas aquilo que o escritor e filósofo francês Ernest Renan chamara “a alma nacional”, estando carregadas de um potencial capaz de constituir, por si só, o imaginário de uma nação desejosa de afirmar a sua identidade. Embora nos centremos aqui nas agitações artísticas que ocorreram a partir da década de 1880, é importante frisar que a associação entre paisagem e brasilidade não era então propriamente uma novidade: já nos primeiros estatutos da Academia Imperial das Belas Artes, redigidos em 1820, o gênero era louvado justamente por isso, assim como era frisado o quanto as próprias condições físicas do território brasileiro convinham e mesmo exigiam o amplo desenvolvimento da pintura paisagística 1. Durante todo o período Imperial, ao lado de uma cadeira dedicada à Pintura Histórica, houve sempre na Academia fluminense uma outra dedicada explicitamente ao estudo da Pintura de Paisagem, Flores e Animais. Analogamente, na política de unificação nacional e cultural proposta nos anos de 1860 pelo segundo monarca brasileiro, D. Pedro II, as figurações da natureza brasileira, aí incluída de maneira destacada a pintura paisagística, cumpriram um relevante papel nos esforços de construção de uma identidade nacional, bem como na configuração da imagem da nação e do próprio Imperador, que, em muitas representações, aparecia cercado de palmeiras, abacaxis e outras frutas tropicais, destacando-se ao fundo a exuberância de uma natureza sem igual2.

“as bellezas naturaes do nosso paiz”: o lugar da paisagem na arte brasileira, do império à república arthur valle e camila dazzi

2. Todavia, já em finais dos anos de 1870, mudanças políticas, sociais e culturais que anunciavam o republicanismo demandavam um novo tipo de arte, que atendesse as exigências de gosto de uma elite burguesa, avessa ao monarquismo, ligada ao plantio do café e aos novos investimentos que surgiam na então Capital do

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Império. Se tornava, assim, necessário reformular a iconografia da Pintura de Paisagem brasileira.

O sr. George Grimm, professor de paisagem na Academia, bom professor e bom paizagista, expôs quatro quadros. O maior é uma vista de parte da cidade do Rio de Janeiro, tomada do casario de Santa Thereza. O pintor escolheu um dia de chuva, desprezando exatamente o que constitui a belleza natural do nosso paiz: a limpidez da atmosfera, os dias brilhantes e luminosos. [...] Em compensação é bem alegre e bem serena, e bem da nossa natureza, a Vista do Cavallão, com seu portão arruinado, os pilares de tijolos, a sua areia luzidia [...] Foi nesse quadro que o sr, Grimm espaljou a mãos cheias o ar e a luz. A gente sente-os entre as arvores, respira-o e aquece-se. É neste quadro que mais fielmente o Sr. Grimm reproduz a nossa natureza.5

Sintomáticos desse desejo de renovação eram já certos aspectos do debate crítico que eclodira quando da Exposição Geral de 1879, momento no qual a proposta da Academia do que seria a “Escola Brasileira” de pintura - “uma produção idealizada, voltada para a valorização da tradição acadêmica mesclada por valores atenuados do romantismo e do realismo” 3 -, foi alvo de virulentos ataques. Escritores como Félix Ferreira, Gonzaga Duque, Oscar Guanabarino e França Jr. opuseram à proposta da Academia uma alternativa que valorizava a produção dos paisagistas brasileiros, em um registro realista/naturalista. Defendia-se a idéia de que a Pintura de Paisagem devia capturar o “característico” da natureza brasileira, sobretudo no que dizia respeito à sua luminosidade e às suas cores típicas. Esta idéia se distanciava decisivamente do partido usual até então, que subordinava a paisagem à história, e no qual o primeiro gênero se constituía essencialmente como pintura de atelier, como pode ser verificado em obras de pintores ilustres com Victor Meirelles ou José Maria de Medeiros.

No entanto, um artista como Grimm possuía uma séria desvantagem com relação às expectativas dos nossos críticos: simplesmente, ele não era brasileiro. Na citada crítica de L. S. não faltam os indícios de uma parcial desaprovação às suas escolhas, como quando, por exemplo, se faz referência a sua eleição de um dia chuvoso, com a qual o artista desprezava justamente aquilo que constituía “a belleza natural do nosso paiz”: o brilho e a luminosidade atmosféricas. Foram então os novos nomes da pintura brasileira, como Antonio Parreiras e Giovanni Battista Castagneto discípulos de Grimm - ou Henrique Bernardelli, surgidos em meados da década de 1880, que encarnaram os anseios e esperanças dos críticos, não somente pelo tratamento “moderno”, vitalizado pela pintura ao ar livre, que davam as suas obras, mas, principalmente, por revelarem, o potencial para representar uma suposta natureza tipicamente brasileira.

Em meados dos anos 1880, vários fatores testemunham a afirmação dessa nova concepção de Pintura de Paisagem. Tomemos como exemplo a seguinte passagem do Bellas Artes: Estudos e Apreciações de Felix Ferreira, que comenta a Exposição Geral de 1884: Notamos com prazer que nesta exposição predomina a paisagem; que os nossos pintores voltam-se para a natureza e começam a compreendê-la e admirá-la. [...] É da natureza que os nossos pintores têm de haurir todo o nosso engrandecimento artístico futuro; é na contemplação e no estudo desses primores que o Criador derramou a mãos pródigas por esta terra em que nascemos, que o artista encontrará os elementos da verdadeira Escola Brasileira.

A necessária complementação artística européia desses artistas deveria, ela própria, se moldar em função de tais prerrogativas. É o que nos deixa compreender, por exemplo, a recepção extremamente positiva que receberam os quadros enviados da Itália por Henrique Bernardelli, em 1886, os quais, apesar de não retratarem a natureza brasileira, indicavam uma afinidade com o nosso cenário natural e apontavam um caminho a ser seguido pelos novos paisagistas. A escolha de outros artistas brasileiros, como Antonio Parreiras, de aperfeiçoarem seus conhecimentos artísticos na Itália, seria elogiada justamente por permitir o contato com uma natureza que, no entendimento dos críticos, em muito se parecia com a brasileira. Nesse sentido, em um artigo publicada na Gazeta de Notícias, em fevereiro de 1888, Gonzaga Duque afirmava:

Artistas como J. G. Grimm, paisagista bávaro radicado no Brasil entre 1882 e 1887, passam a encarnar o tipo ideal de artista “moderno”, modelado de acordo com as críticas européias dos anos 1870, que, pintando diretamente do natural, era capaz de capturar o típico da paisagem e de romper com os supostamente enrijecidos padrões acadêmicos4. Um trecho de uma crítica publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, datada de setembro de 1884 e assinada com o pseudônimo L. S., se referia da seguinte maneira à produção de Grimm: 486

O lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República

Pintura de Paisagem. Mas esse fato não significava, em absoluto, que a prática do gênero tivesse sido abolida do curriculum da instituição: pelo contrário, esta então se encontrava mais firmemente do que nunca estabelecida na rotina pedagógica dos alunos do curso de pintura da ENBA como comprova, por exemplo, a análise de alguns programas de curso posteriores à Reforma de 1890. Já em 1891, por exemplo, Henrique Bernardelli, um dos renovadores da Pintura de Paisagem na década anterior, prescrevia como estudos de segundo ano nas aulas de pintura por ele ministradas a realização de “cabeças de modelo vivo em luz de interno e ao ar livre e estudos de paysagem bem apurados”9. Em 1896, Rodolpho Amoêdo estipulava de forma análoga, como exercício de “2º anno”, o “estudo de paisagem simplesmente e com figuras” 10 , sendo muito provável que tais exercícios fizessem parte das aulas propostas por Amoêdo desde que reassumiu o cargo de professor, logo após a Reforma de 1890.

É digna de louvor a escolha que fez Antonio Parreiras da Itália como sede de seus estudos [...] O estudo de paisagem em França, onde encontram-se mestres de uma reputação universal, como Harpignies e Zuber, tem um pequeno inconveniente para os artistas brasileiros, sempre dispostos a imitação servil do que aprendem no estrangeiro. Sob esse ponto de vista a Itália apresenta grandes vantagens, e entre muitas acha-se a de uma certa semelhança com o nosso paiz, mormente pela persistência do tom e a immutalidade da luz. Aqui, como no sul da Itália, pode um paisagista voltar duas ou três vezes a um mesmo ponto de estudo que, empregando uma frase de Taine, encontrará o tom posto há um mez sobre a palheta. [...] ora, habituandose o pintor a estudar ao ar livre a isolada natureza italiana, com a maior destreza e facilidade produzirá a nossa paisagem. [...] No meu modo de ver, para quem dispõe de poucos annos de aprendizagem, a Itália é o único paiz em que um paisagista brazileiro póde se aperfeiçoar.6

Um outro aspecto interessante com relação aos programas de Bernardelli e Amoêdo acima referidos, diz respeito especificamente ao fato de que tanto um quanto o outro prescreviam propostas de trabalho que fundiam a pintura de figura e a de paisagem. A afirmação feita por Bernardelli de que “para o estudo da figura humana é necessário contemporaneamente todos os estudos, especialmente a paysagem com a figura e a figura com a paysagem” 11 é um indicativo dessa orientação, marcada não só por uma valorização da pintura paisagística, tida na mais alta estima, como também por um hibridismo explícito dos gêneros tradicionais12.

3. Em finais de 1889, o ‘golpe’ de Estado republicano que extingui o regime monárquico no Brasil não abalou em nada o prestígio crescente que o gênero da Pintura de Paisagem gozava já há anos. Na verdade, poderíamos mesmo afirmar que a importância do mesmo se tornou ainda maior, uma vez que o gênero servia igualmente bem, tanto aos antigos anseios da criação de imagens-síntese da nação brasileira - com a República, mais difundidos do que nunca -, quanto como locus privilegiado para a manifestação das exigências modernas de individualidade e originalidade dos artistas.

Outro professor da Escola, Modesto Brocos y Gomez, que assume cadeiras como as de Desenho Figurado e Modelo Vivo a partir de 1893, foi por sua vez elogiado por Oscar Guanabarino, justamente pela ligação entre paisagem e brasilidade que suas telas apresentavam. O pintor, embora de origem espanhola, estava então, nos dizeres de Guanabarino, “perfeitamente identificado com a nossa natureza”13, e procurava “nacionalisar a arte”, sobretudo através da fixação em suas paisagens da “côr do nosso ambiente, tão difficil de ser apanhada pela inconstancia da luz”14.

A proclamação da República assistiu igualmente uma mudança de rumos na tradicional Academia das Belas-Artes fluminense. Ainda em 1889, o recém-formado Governo Provisório elegeu uma comissão composta por, entre outros, o escultor Rodolpho Bernardelli e o pintor Rodolpho Amoêdo, com a incumbência de elaborar um projeto de reforma da instituição. Depois de inúmeras querelas 7 , com um Decreto promulgado em novembro de 18908, foram aprovados os novos estatutos da instituição, que passou a se chamar Escola Nacional das Belas Artes (ENBA); Rodolpho Bernardelli foi nomeado, ainda nesse mesmo mês de novembro, como o primeiro diretor da Academia reformada, cargo no qual se manteria por quase 25 anos.

A atuação desses professores teve reflexos claros na produção dos alunos que freqüentaram a Escola Nacional de Belas Artes nos anos de 1890, e que passaram a atuar com maior presença no meio artístico carioca após seus retornos da Europa, já nos primeiros anos do século XX. Alguns desses pintores deram continuidade as concepções sobre Pintura de Paisagem formuladas no século anterior,

Nos novos estatutos da ENBA, deixava de constar nominalmente a tradicional cadeira destinada à 487

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

sobretudo no que se refere a tentativa de criação de uma identidade cultural nacional, que por vezes se impregnava de traços marcadamente regionalistas.

descrever, em uma longa écfrase, a fisiognomia da paisagem brasileira, como especificada nos panoramas fluminenses: A caracterização da nossa paizagem, a que elle [Baptista da Costa] nos acostumou e que seus pinceis dia a dia vão conseguindo fixar da maneira mais impressionante, esse inconfundível, por ser hybrido, sentimento de força e de melancolia que resumbra da natureza, por elle interpretada e ao de mais o brio, a luminosidade de suas tintas fundem-se nesse quadro, e delle fazem uma bella obra de verdade e de arte. [...] Sobre este mérito ella reproduz bem approximadamente o caracter da paizagem fluminense - a roça - que não é o bravio sertão nem a matta virgem, mas um meio termo entre o villarejo e a floresta, intermédio á cultura de uma civilização meã e á rusticidade fecunda da natureza livre.18

4. Evidências da grande difusão que a prática a Pintura de Paisagem conheceu nos anos iniciais da República podem ser fornecidas se analisarmos o movimento de obras nas exposições do período, muito particularmente nas Exposições Gerais de Belas Artes, que continuavam a ser, como no período imperial, os principais certames artísticos brasileiros. Novamente, os textos críticos, como os do indefectível Gonzaga Duque, nos aproximam de um entendimento do quadro que então se configurava. Quando, por exemplo, logo na primeira página da sua resenha à Exposição Geral de 1904, Gonzaga Duque afirmava, algo desapontado, que “nesta exposição como nos anteriores Salões, só encontro pintores de figuras e paizagistas”15, não deixava de indicar, de maneira inequívoca, que o gênero da paisagem era um dos mais freqüentes no evento.

Em 1905, Baptista da Costa expunha mais “oito admiráveis trechos desta nossa brilhante natureza por elle surprehendida com o segredo da sua arte”, das quais o crítico destacava A Prisioneira e uma Paizagem de Poços do Caldas, louváveis especialmente por conseguir capturar a intensidade da luz brasileira, “num verde que é caracteristicamente o verde da nossa natureza”19. Analogamente, em 1906, Gonzaga Duque punha na boca de seu interlocutor, Polycarpo, a exclamação “Olha aquilo, olha a nossa luz n’aquelle quadrinho”, referindo-se à uma paisagem do Baptista da Costa, novamente celebrado por ter descoberto “o segredo de reter na téla a cor, a luz, o contorno pittoresco da nossa natureza”20. Por fim, na último resenha, referente ao “Salão” de 1907, não poderia deixar de faltar a referência às “bellas paizagens” de Baptista da Costa, justamente por serem elas, literalmente, “pedaços destacados da nossa formosa terra”21.

As resenhas de Gonzaga Duque sobre as Exposições Gerais evidenciam claramente que os laços entre paisagem e brasilidade continuavam atados na primeira década do século XX. São bastante reveladoras, nesse sentido, as referências elogiosas que o crítico constantemente tece à Pintura de Paisagem de João Baptista da Costa, um artista que se destacara na cena artística fluminense ainda nos anos 1890, tendo sido laureado com o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, na segunda Exposição Geral republicana, a de 189416. No quadro então agraciado com o prêmio, chamado Em repouso, Baptista da Costa já prefigurava o seu interesse pelos aspectos pitorescos do Brasil, ao representar, em um registro inspirado na estatuária antiga, mas, significativamente, contra uma paisagem ensolarada, nada mais nada menos do que um caipira, o célebre motivo ‘inaugurado’ não muitos anos antes pelo pintor ituense J. F. de Almeida Júnior.

Mesmo quando fazia suas considerações a respeito das paisagens de Roberto Rowley Mendes, um pintor de índole bastante diversa da de Baptista da Costa, em cujas obras Gonzaga Duque louvava não o realismo, mas sim o pendor simbólico e “espiritualista” de um autêntico “discípulo de Ruskin”22, o crítico não conseguia se furtar ao elogio de qualidades que decorriam justamente da fidelidade da obra ao que havia de irredutível na paisagem brasileira. Assim comentando um Estudo de mangueiras de Mendes, Gonzaga Duque louvava a fixação do “verde” nacional, “o verde caracteristicamente nosso, que embaraça e cança os paizagistas não familiarisados com a nossa

Nos trechos de seus ‘Salões’ que se referem às obras de Baptista da Costa, Gonzaga Duque repete sem cessar o topos crítico que equaciona a qualidade de uma paisagem ao fato dela ser uma figuração fiel da natureza brasileira. “Esta conseguida qualidade, já notável, de reter na tela a feição da nossa pittoresca paisagem (a do Rio, São Paulo e Minas)”17 estava presente, segundo Gonzaga Duque, em todas as paisagens expostas por Baptista da Costa em 1904. Ao aprofundar sua análise da tela Fim de Jornada, exposta nessa mesma mostra de 1904, O crítico procurava 488

O lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República

designação equívoca26, é possível perceber um verdadeiro renascimento da antiga aspiração pela criação de uma “Escola Brasileira”, entrelaçada com a fixação das belezas naturais do país.

vegetação e, tantas vezes, escapa ou compromette aos nossos próprios artistas”23. Pelo contrário, quando percebia a ausência da nota brasileira em uma paisagem, Gonzaga Duque não poupava a sua ironia mordaz, como ao comentar um quadro de Belmiro de Almeida exposto em 1907, uma “paisagem de Theresopolis”, que deixava o crítico na dúvida “se o meu velho amigo Belmiro fel-o do alto de uma aeronave Santos Dumont, nas proximidades da Torre Eifel ...”24.

Seguindo de perto as concepções de teóricos e artistas oitocentistas, como John Ruskin e Owen Jones27, se acirrou no Brasil da aurora do século XX o debate moderno sobre o ornamento. Era polemizada a apropriação historicista dos motivos decorativos de estilos e épocas heterogêneas que fora até então muito comum, em favor de uma inspiração obtida diretamente da natureza - no caso, como não poderia deixar de ser, de uma natureza tipicamente brasileira. Em certa medida, esse debate reatava com idéias esboçadas no meio artístico nacional ainda em meados do século XIX28: a “Escola Brasileira” deveria surgir na esteira da difusão, em todas as esferas sociais, do ornamento inspirado na nossa flora e fauna, bem como postulou-se posteriormente - em algumas de nossas manifestações culturais autóctones, como a cerâmica marajoara.

5. Sem dúvida, se encontra ausente, mesmo nas críticas elogiosas de Gonzaga Duque às interpretações supostamente bem-sucedidas dos panoramas naturais brasileiros, um certo tom ufanista que fora usual nos textos dos anos 1880: ao que tudo indica, cerca de quinze anos após o 15 de novembro de 1889, a consolidação de um modelo oligárquico de República, controlado por poderosos grupos estaduais e que mantinha qualquer oposição afastada das decisões legislativas, bem como o seu correlato estético as novas ortodoxias estabelecidas na direção dos rumos da Escola Nacional de Belas Artes 25 -, haviam feito murxar os entusiasmos renovadores que outrora derrubaram o poder Imperial e os seus porta-vozes artísticos.

Novamente, podemos perceber a mídia impressa como um campo de debates privilegiado dessa campanha pela nacionalização da arte brasileira. Durante as primeiras décadas do século XX, escritores e articulistas como o citado Gonzaga Duque, Manoel Campello, Plínio Cavalcanti, Flávio Brandt e Flexa Ribeiro, além dos próprios artistas, defendiam em artigos de jornais e de revistas a relação - supostamente necessária - entre a tão desejada criação de uma “Escola Brasileira” e o desenvolvimento de um arte decorativa baseada em motivos nacionais.

Simultaneamente, é certo que os interesses dos pintores paisagistas progressivamente se alteravam, deixando de lado a preocupação com a pura e simples caracterização de aspectos pitorescos para se concentrar em questões que poderíamos designar como mais especificamente pictóricas. Seguindo uma via prenunciada já nas últimas pinturas de Castagneto, afirmava-se claramente na Pintura de Paisagem brasileira, a partir da primeira década do século XX, uma tendência lírica, que muitas vezes chegava às raias da abstração e para a qual os elementos naturais, observados en plein air na paisagem, pouco mais eram do que um pretexto para que o artista executasse um exercício pictural pessoal e dos mais livres: neste, as próprias delineações essenciais do motivo freqüentemente se encontravam dissolvidas e eram exaltadas, em troca, as propriedades materiais e de fatura da própria técnica pictórica empregada.

Vários artistas se engajaram nesse projeto. Provavelmente, o esforço mais conhecido foi aquele empreendido por Eliseu Visconti: desde os primeiros anos do século XX, após seu retorno da Europa, onde estagiara na condição de pensionista da ENBA e estudara com o mestre Art Nouveau Eugène Grasset, Visconti já se dedicava a execução de obras calcadas em motivos da paisagem nacional, estilizando elementos da flora como a flor do maracujá e do cajueiro, a samambaia, entre outros29. Esse era o caso de alguns de seus trabalhos mostrados no Rio de Janeiro em 1901, em uma exposição cuja fria recepção foi comentada à época por Gonzaga Duque30 e rememorada, um tanto amargamente, pelo próprio Visconti em uma entrevista dada, quase 30 anos depois, à Angyone Costa31.

6. Nesse contexto, é significativo que o interesse pela paisagem como um motivo privilegiado na consolidação da identidade cultural brasileira renovasse suas forças em um campo que julgarse-ia inesperado, o das chamadas artes aplicadas ou decorativas. No espírito dos mais diversos artistas envolvidos durante as primeiras décadas da República com esse segmento artístico de

Logo, porém, em um vigoroso crescendo que atingiria seu ápice nos anos 1920, o desejo de criar uma arte decorativa nacional ecoaria muito além 489

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

da Capital Federal: do norte ao sul do país podemos encontrá-lo, mais ou menos matizado por traços regionalistas. Cremos que dois artistas bastam aqui para ilustrar a amplitude do fenômeno. O primeiro é o paraense Theodoro Braga, aluno em Recife do famoso paisagista Telles Junior, e que depois cursou com destaque a ENBA, conquistando o Prêmio de Viagem em 1899. Braga teve na Europa uma trajetória de estudos semelhante à de Visconti e, quando de sua volta ao Brasil, em 1905, teria concluído seu interessantíssimo repertório ornamental, intitulado A planta brazileira (copiada do natural) applicada à ornamentação, hoje na Seção de Obras Raras da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo32.

Castagneto ou Baptista da Costa, com as quais iniciamos o presente texto. Ao interesse pela sugestão de envolventes efeitos de atmosfera e pela transcrição fidedigna da natureza brasileira, se substituía uma fazer artístico eminentemente analítico e intelectual, com ênfase na fragmentação e na estilização depurada de seus motivos. Todavia, por trás de todas essas manifestações, cremos ser possível reconhecer um único e mesmo impulso: o de elaborar, através da representação das belezas naturais do país, uma arte genuinamente brasileira, na qual a essência da pátria pudesse ser vislumbrada.

Nas 18 pranchas d’A planta brazileira ... dedicadas exclusivamente à nossa flora, sucedem-se estudos de diversas plantas - feitos a partir da observação do natural e tratados em um registro estilístico que remete à objetividade das ilustrações botânicas com sugestões de composições ornamentais, feitas a partir da estilização dos motivos originais e pensadas para diversas técnicas “industriais”. Nas décadas seguintes, apesar de não ter conseguido concretizar em grande escala seus projetos, Theodoro Braga continuaria divulgando suas concepções, tanto através da sua atuação como professor, quanto em palestras avulsas e publicações.

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Referências bibliográficas

Quase no extremo oposto do país, o paranaense João Turim desenvolveria, a partir de inícios dos anos 1920, logo após o retorno de uma estadia na Europa, esforços afinizados com os de Theodoro Braga, no sentido de criar um estilo decorativo baseado em elementos da paisagem natural paranaense, como o café, a erva mate, as frutas silvestres, e, especialmente, o pinheiro local 33. Juntamente com artistas como Lange de Morretes e João Ghelfi, Turim desenvolveria projetos naquilo que denominou “estilo paranista” - próximo das manifestações Art Déco - para modalidades artísticas tão díspares como indumentária, baixorelevo, ilustração gráfica, decoração de interiores, mobiliário urbano e arquitetura. Alguns dos prédios concebidos por Turim foram efetivamente construídos, como, por exemplo, a residência do Dr. Bernardo Leinig, hoje demolida, na qual era possível apreciar as colunas inspiradas no pinheiro, verdadeiros ícones do “estilo paranista”, com seu capitéis decorados com grimpas, pinhas e pinhões. A transcrição dos aspectos da natureza brasileira encontrada nas obras decorativas de artistas como Visconti, Braga, Turim, e outros mais, certamente possuía contornos diversos daquela encontrada nas Pinturas de Paisagem como as de Parreiras, 490

O lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República

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Gonzaga. A Arte Brasileira. São Paulo: Mercado de Letras, 1995, pp.18-19. 4 A idéia do pintor moderno como “sinônimo” de pintor de paisagem é recorrente na critica de arte francesa já no início da década de 1870. Em um comentário às pinturas de gênero expostas no Salon parisiense de 1870, Théodore Duret, faz a seguinte consideração: “Se, na escola moderna, os pintores naturalistas representam sobretudo a criação individual, os pintores de gênero personificam o pastiche e a imitação. Nossos paisagistas percorrem o campo, e lá, face a face com a natureza, procuram a interpretar livremente. Entre os pintores de gênero, ao contrario, a invenção e a originalidade são raras [...] e quando um descobre um filão original, logo lhe seguem os copistas e os imitadores”. Tal concepção reverbera pela década de 1880 afora, como atesta um texto de Charles Ephrussi, dedicado a Exposição dos Artistas Independentes, publicado em 1880 na Gazette des BeauxArts, e no qual o autor postulava l’idéal de la nouvelle école: “Compor seu quadro não no ateliê, mas na natureza; em presença do assunto tratado se desembaraçar de toda convenção; se colocar face a face com a natureza e a interpretar sinceramente, sem se preocupar com a maneira oficial de ver; traduzir escrupulosamente a impressão, a sensação, cruamente, por mais estranha que ela possa parecer”. 5 Gazeta de noticias, sábado, 27 de setembro de 1884. Autor: L. S. 6 Gazeta de Notícias, fevereiro de 1888. Autor: Gonzaga Duque. 7 Conferir CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Os embates no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes”, 19&20, Volume II, n. 2, abril de 2007. Disponível em: http:// www.dezenovevinte.net/criticas/embate_1890.htm Acesso 01 ago. 2008. 8 Decreto n. 983 - de 08 de novembro de 1890, deferido pelo chefe do governo provisório, o General Deodoro da Fonseca e assinado por Benjamin Constant, Ministro dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ docs_primeira_republica.htm. Acesso 01 ago. 2008. 9 Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor Henrique Bernardelli. Disponível em: http://www. dezenovevinte.net/documentos/programas_enba. html. Acesso 01 ago. 2008. 10 Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4750: Programa da aula de Pintura, do professor Rodolpho Amoêdo. Disponível em: http://www. dezenovevinte.net/documentos/programas_enba. html. Acesso 01 ago. 2008. 11 Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor Henrique Bernardelli. Disponível em: http:// www.dezenovevinte.net/documentos/ programas_enba.html. Acesso 01 ago. 2008. 12 Luciano Migliaccio mencionou como essa corrosão dos gêneros era já perceptível em obras pintados nos anos 1880, como as de Amôedo; cf. MIGLIACCIO, Luciano. “Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar”. MARQUES, Luiz (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil. São Paulo: MASP / Rio de Janeiro: MNBA, 2001 (Catálogo de exposição). Disponível em: http://

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“Este genero de pintura [Paisagem] he um dos mais agradaveis da Arte e o vastissimo terreno do Brasil offerece vantagens aos Artistas que viajarem pelas Províncias, fizerem uma collecção de Vistas locaes terrestres como maritimas”. Estatutos da Imperial Academia e Escola das Belas Artes, estabelecida no Rio de Janeiro por Decreto de 23 de Novembro de 1820. Uma transcrição desse documento, feita pelo Prof. Alberto Cipiniuk, se encontra disponível em: http://www.dezenovevinte. net/documentos/ estatutos_1820.htm. Acesso 01 ago. 2008. 2 Conferir SCHWARCZ, Lilian. As Barbas do Imperador Um monarca nos trópicos. Rio de Janeiro: Companhia da Letras, 1999. 3 CHIARELLI, Tadeu. “Gonzaga-Duque: a moldura e o quadro da arte brasileira”. DUQUE ESTRADA, Luiz

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República les arts décoratifs. Paris: Gallimard, 1992, pp.18 e 32). No Brasil, esses diversos termos - utilitária, industrial,decorativa, ou ainda, menor - eram empregados simultaneamente e, por vezes de maneira indiscriminada, para se referir ao mesmo segmento de atividades artísticas. 27 John Ruskin, crítico da distinção hierárquica entre artistaintelectual vs artista-artesão, foi um defensor emblemático dessa visão que unia ornamento e natureza, equacionando a concordância com essa última à beleza: na medida em que os objetos se distanciavam da alusão à natureza, discordando dela, eles estariam fadados a serem feios (cf. HESKETT, John. Industrial design. London: Thames and Hudson,1980, p.85); já Owen Jones, arquiteto e desenhista, na sua The Grammar of ornament, apresentava a história do ornamento com objetivo declarado de educar o artista para que este pudesse plasmar suas próprias soluções ornamentais, a partir do natural. 28 Cf., por exemplo, algumas das premonitórias teses lançadas por Manoel de Araújo Porto-alegre ainda em 1855: “28. - Nas formas especiais das nossas plantas, flores e frutas não terá a arte cerâmica, principalmente a Mitecnia um manancial fecundo para novas inspirações? / 29. - A ornamentação e decoração dos edifícios, principalmente a executada pela pintura, deverá substituir os protescos e arabescos pelos objetos da nossa natureza americana; e qual tem sido a causa por que este caminho novo, apenas encetado por Sr. Debret e Francisco Pedro do Amaral, nos seus últimos dias, ainda não tomou o sen necessário e útil desenvolvimento?” GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Pôrto-Alegre – Sua influência na Academia Imperial das Belas Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.14, 1959, pp.57-61; disponível em: http:// www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mapa_teses.htm. Acesso 01 ago. 2008 29 Conferir nesse sentido o recente Catálogo Exposição “Eliseu Visconti – Arte e Design”. De 27 de agosto a 30 de setembro de 2007. CAIXA Cultural Rio de Janeiro RJ. 30 DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. “Elyseu Visconti”. Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, pp.19-26. 31 COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas (O que dizem nossos pintores, escultores, arquitetos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil). Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927, p.82. Texto disponível no site DezenoveVinte : http://www.dezenovevinte.net/ artigos_imprensa/artigos_ac.htm. Acesso 01 ago. 2008 32 GODOY, Patrícia B. O nacionalismo na arte decorativa brasileira - de Eliseu Visconti a Theodoro Braga. In: DAZZI, Camila.; MIYOSHI, Alex. (org). Revisão historiográfica: o estado da questão. Atas do I Encontro de História da Arte do IFCH – UNICAMP. Campinas, SP: UNICAMP/ IFCH, v.3, 2005, p.80; cf. também, da mesma autora, “Arte Decorativa Brasileira: Theodoro Braga e A planta brazileira (copiada do natural) applicada à ornamentação”, Revista de história da arte e arqueologia, Campinas, vol. 5, 2005. 33 Conferir TURIM, Elisabete. A Arte de João Turim. Campo Largo, PR: INGRA, 1998.

www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm. Acesso 01 ago. 2008. 13 Modesto Brocos passou boa parte dos anos 1870 no Brasil, freqüentando, inclusive, a Academia Imperial, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, no início dos anos 1890, convidado para lecionar na reformada ENBA pelos irmãos Bernardelli, dos quais se tornara amigo, quando da sua temporada de estudos na Itália. Portanto, diferente da de outros artistas estrangeiros como Grimm, a experiência brasileira de Brocos não foi temporária; ele aqui se radicou até a sua morte, em 1936. 14 “ARTES E ARTISTAS / Escola Nacional de Bellas-Artes / EXPOSIÇÃO GERAL”, O Paiz, Edição n. 3653, 1 de outubro de 1894, p.2. Autor: Oscar Gaunabarino. 15 “Salão de 1904”, Kósmos, Ano 1, nº , setembro de 1904, p.18. Autor: Gonzaga Duque. Disponível em: http:// w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1904.htm. Acesso 01 ago. 2008. 16 A primeira Exposição Geral republicana ocorrera em 1890. 17 “O Salão de 1904”, Kósmos, Ano 1, nº , setembro de 1904, p.21. Autor: Gonzaga Duque. 18 Id., p.21. 19 “Salão de 1905”, Kósmos, Ano 2, nº 9, setembro de 1905, pp.40-41. Autor: Gonzaga Duque. Disponível em: http:// w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1905.htm. Acesso 01 ago. 2008. 20 “Salão de 1906”, Kósmos, Ano 3, nº 10, outubro de 1906, p.53. Autor: Gonzaga Duque. Disponível em: http:// w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1906.htm. Acesso 01 ago. 2008. 21 DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. “O Salão de 1907”. Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto deSouza, 1929, p.154. Disponível em: http:/ / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1907.htm. Acesso 01 ago. 2008. 22 “O Salão de 1905”, Kósmos, Ano 2, nº 9, setembro de 1905. Autor: Gonzaga Duque. 23 Id., p.151. 24 Id., p.153. 25 Ao menos é o que deixa entrever outro dos textos de Gonzaga Duque, o famoso “o Aranheiro da Escola”, escrito em 1906; cf. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, pp.215-225. 26 As variadas designações que as artes aplicadas conheceram, especialmente a partir do século XIX, são um indicativo eloqüente do seu status ambíguo no quadro geral das artes ocidentais: na França oitocentista, por exemplo, a designação artes industriais foi a mais comum até 1863, quando passou a ser empregada outra, mais lisonjeira, belas artes aplicadas à indústria; por volta de meados dos anos 1870, um novo adjetivo - decorativa - passaria a ser freqüentemente associado às artes aplicadas. (cf. BRUNHAMMER, Y. Le beau dans l’utile: un musée pour

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A pintura de paisagem tornou-se, desde o século XVIII, um espaço privilegiado para projeções de identidades nacionais, em grande parte graças às idéias de uma ligação essencial entre clima, paisagem e povo, propagada, entre outros, pelos escritos de Winckelmann. Nesta chave interpretativa, as características peculiares da paisagem de um país eram tratadas como constituindo a base do caráter moral de seu povo. Representar a paisagem significava, portanto, exaltar a singularidade da nação. A pintura de paisagem produzida no Brasil, ao contrário daquela realizada na América do Norte e em alguns outros países latino-americanos, nem sempre foi marcada por tal repertório romântico. Como observa Luciano Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000), nos tempos da colônia, as representações da paisagem brasileira associavam-se freqüentemente a fins militares, ou econômicos e, mesmo após a independência, elas foram fortemente marcadas pelo universo da ilustração científica, característico da maior parte da pintura de viajantes europeus que transitavam pelo país. Apesar disso, entre as décadas de 1840 e 1850 podemos identificar alguns artistas que usaram a paisagem como veículo para a constituição de um discurso sobre o Brasil. Dentre eles, Félix-Émile Taunay (1795-1881) ocupa uma posição de destaque, entre outras razões, por ter sido por um longo tempo diretor da Academia Imperial de Belas Artes, uma instituição que, ao lado de outras como o SAIN (Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, criada em 1827) e o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838), tinha como programa fundamental contribuir para a introdução da jovem nação brasileira no hall dos países civilizados.2 Na década de 1840, Félix-Émile Taunay realiza dois quadros intitulados respectivamente “Vista da Mãe D’Água” (EGBA 1840) e “Vista de um mato virgem que está se reduzindo a carvão” (EGBA 1843), que se concentram na temática da natureza brasileira. De acordo com Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000: 76), as duas obras demonstram a intenção do artista em fazer do embate entre natureza selvagem e civilização o verdadeiro tema de uma pintura de caráter nacional. 3 Sem descordar em princípio dessa interpretação, o presente artigo pretende apontar para um vínculo entre os projetos de Taunay para uma pintura de paisagem nacional e um importante debate sobre o destino das florestas brasileiras que tinha sido reavivado nas décadas após a independência, especialmente nos círculos intelectuais do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ao qual pertencia Félix Taunay. Um dos pontos centrais desse trabalho será propor uma interpretação mais detalhada e talvez mais “política” das obras “Vista de um mato virgem que se está

paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de félix-émile taunay claudia valladão de mattos1

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

reduzindo a carvão” e “Vista da Mãe D’Água”, entendendo-as como uma tomada de posição do artista com relação a debates específicos que marcaram o período entre o final do primeiro reinado e o início do Segundo Império. Demonstraremos que o compromisso de Taunay com esses debates levou-o a desenvolver um conceito bastante original de monumento, desenhado para responder a questões específicas da realidade brasileira.

do Brasil, as questões referentes à preservação e correta utilização desses recursos voltaram à pauta durante os anos imediatamente anteriores e posteriores à Independência. Naturalmente, o novo país precisava considerar o uso de seus recursos naturais e alguns intelectuais empenharam-se no sentido de promover mudanças políticas que pusessem fim às práticas de desperdício. Certamente o principal militante desta causa foi José Bonifácio de Andrada e Silva, um ex-aluno de Domenico Vandelli que, ao retornar ao Brasil em 1819, após 36 anos na Europa, procurou utilizar sua posição de grande influência para levar adiante algumas reformas que pudessem colocar o país nos trilhos do progresso.

Em seu livro Um sopro de Destruição, José Augusto Pádua (PÁDUA, 2004) aponta para a existência de um debate ambiental no Brasil que remonta à influência de Domenico Vandelli sobre diversos membros da elite colonial que estudaram na universidade de Coimbra ao longo do século XVIII. Alvo principal da crítica de Vandelli e seus discípulos eram as formas rudimentares adotadas na agricultura brasileira, especialmente a prática das queimadas, que, de acordo com eles, levaria inevitavelmente ao rápido esgotamento dos abundantes recursos naturais da colônia lusitana. A crítica à destruição da natureza, não aparecia, portanto, num viés romântico, como conseqüência de um respeito, ou veneração à natureza, mas por razões utilitárias e políticas. Diria Vandelli, por exemplo:

José Bonifácio compartilhava a visão utilitarista de seu professor italiano, porém suas vastas leituras de outros autores europeus e em especial de Alexander von Humboldt, ampliara muito a sua compreensão dos problemas ambientais a serem enfrentados pela jovem nação. Em seu livro sobre as Américas, com o qual Bonifácio estava bastante familiarizado, Humboldt havia feito observações importantes a respeito da relação entre a destruição das matas nativas e a diminuição das águas vivas de uma região, fornecendo uma visão dinâmica dos efeitos devastadores dessa prática:

Entre as plantas das conquistas existem muitas espécies desconhecidas dos botânicos, principalmente árvores de muita utilidade, ou para a construção de navios, casas e trastes, ou para a tinturaria. Porém, no Brasil muitas delas com o tempo se farão raras e dificultoso o seu transporte. Pelo costume introduzido de queimar grandes bosques nas bordas dos rios para cultivar a maior parte do milho ou mandioca, e acabando-se a fertilidade deste terreno em poucos anos passam a fazer novas queimas, deixando inculto o que antes foi cultivado. E assim se destroem árvores úteis e de fácil condução. (VANDELLI, apud PÁDUA, 2004: 43)

Ao cortar as árvores que cobrem o topo e as encostas das montanhas, os homens de todos os climas produzem de uma só vez duas calamidades: a falta de combustível e a escassez de água. Quando as florestas são destruídas, como o são em toda parte da América pelos plantadores europeus, com uma imprevidente precipitação, as fontes de água secam e se tornam menos abundantes; os leitos dos rios, ficando secos uma parte do ano, se convertem em torrentes sempre que uma forte chuva cai nas suas cabeceiras. [...] Desta forma o desflorestamento, a falta de fontes e a existência de torrentes são três fenômenos estreitamente conectados. (BONIFÁCIO, apud PÁDUA, 2004: 49)

Ao longo de todo o século XIX, a crítica ambiental no Brasil seguiu esse mesmo curso pragmático. Apesar da autoridade de intelectuais românticos com Humboldt, ou Chamberlain, por vezes citados pelos autores brasileiros envolvidos com a questão, a preocupação com a natureza permaneceu marcada pela necessidade de implementar um uso racional dos recursos do país de forma a permitir um progresso seguro no presente e no futuro.

Essa mesma visão sistêmica que vemos em Humboldt aparece muito cedo na obras de José Bonifácio. Em 1815, quatro anos antes de retornar ao Brasil, ele escreveria em defesa das matas européias: “Se os canais de rega e navegação aviventam o comércio e a lavoura, não pode havêlos sem rios, não pode haver rios sem fontes, não há fontes sem chuva e orvalho, não há chuva e orvalhos sem umidade, e não há umidade sem matas.” (BONIFÁCIO, apud PÁDUA, 2004: 139).

Como demonstra Pádua, ainda que, desde os tempos da colônia, houvessem vozes dispostas a protestar contra a destruição dos recursos naturais 494

Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay

O retorno de Bonifácio ao Brasil e seu envolvimento político com os rumos do país tornou o seu pensamento ainda mais complexo. Ao lado da dinâmica da natureza, José Bonifácio passou a considerar as estruturas sociais que contribuíam para o estado das coisas no Brasil, dando o que talvez tenha sido a sua mais importante contribuição para a crítica ambiental do período, através da associação entre destruição das florestas e o sistema escravocrata. Essa relação apareceria de forma explícita em alguns de seus textos dos anos de 1820, como o sobre a “Necessidade de uma academia de agricultura no Brasil”, publicado em 1821, ou “Representação à Assembléia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravidão”, de 1823. Em uma importante passagem deste último texto, lemos, por exemplo:

essas instituições, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), fundada em 1827, e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que iniciou atividades em 1838, tiveram papel de destaque. É importante mencionar os estritos laços existentes entre essas duas instituições, pois o IHGB nasce de um desdobramento da SAIN, e lembrar novamente que Félix Émile Taunay era membro fundador do Instituto, assim como outros artistas, como Araújo Porto-Alegre. No contexto dessas duas instituições, houve uma importante inovação quanto ao pensamento sobre a questão das florestas nacionais: os novos autores que ali atuavam deixaram de preocupar-se apenas com a questão agrícola, para abordar com maior freqüência e coerência temas diretamente relacionados à cidade do Rio de Janeiro. Januário da Cunha Barbosa, primeiro diretor da SAIN, publica, por exemplo, em 1833 um texto intitulado: “Discurso sobre o abuso das derrubadas de árvores em lugares superiores de vales, e sobre o das queimadas”, onde o problema da destruição das matas não era mais visto como um fato prejudicial apenas para a realidade rural, mas estava muito mais próximo, prejudicando a vida da cidade. Para comprovar tal fato, de acordo com o autor, bastava escutar:

Se os senhores de terras não tivessem uma multidão demasiada de escravos, eles mesmos aproveitariam terras já abertas e livres de matos, que hoje jazem abandonadas como maninhas. Nossas matas preciosas em madeiras de construção civil e náutica não seriam destruídas pelo machado assassino do negro e pelas chamas devastadoras da ignorância. (...) e desse modo se conservarão, como herança sagrada para a nossa posteridade, as antigas matas virgens que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país. (BONIFÁCIO, apud PÁDUA, 2004: 150).

as observações de pessoas inteligentes encarregadas do encanamento das nossas águas para as fontes públicas, que a sua notável diminuição procede em grande parte de se haverem destruído as matas nos terrenos de sua nascença e passagem. O que vemos ... confirma o princípio de que o abuso da derrubada de árvores, em certas circunstâncias, concorre a esterilizar terrenos que têm sido férteis e que ainda poderão produzir como dantes, se lhes forem conservadas as águas ao abrigo das árvores que o homem tão insensatamente destrói. (CUNHA BARBOSA, apud PÁDUA, 2004: 175)

A campanha de José Bonifácio pela abolição da escravatura e pela reforma agrária foi, de acordo com Pádua, um dos principais motivos para sua perseguição e exílio, ocorridos em 1823, pouco depois de sua ascensão ao cargo de ministro do Império. Sua volta ao poder em 1831, como tutor dos filhos de D. Pedro I e em seguida como deputado, em 1835, marcaram o retorno de Bonifácio à defesa pública da causa ambiental, porém sem a energia e a eficácia de antes. Nas décadas após a sua morte, no entanto, ao mesmo tempo em que ocorria a regeneração de sua imagem e sua ascensão à posição de herói da independência, suas idéias preservacionistas foram ganhando popularidade, até chegarem a seu auge exatamente nos anos 40 e 50.

É nesse contexto que surge o personagem que talvez esteja mais próximo de Félix-Émile Taunay, fazendo a ponte (se é que não existiram outras) entre seu pensamento sobre paisagem e o grupo de intelectuais empenhados em preservar as matas do Brasil. Em 1837, Carlos Taunay, um dos irmãos de Félix-Émile Taunay, escreveu um pequeno livro intitulado Manual do Agricultor Brasileiro, no qual ele dedicava longas passagens às conseqüências da destruição das matas nativas, em especial nas regiões em torno do Rio de Janeiro. Este livro nos parece uma fonte de extremo valor para analisarmos aspectos importantes dos dois quadros de Félix-Émile Taunay: “Vista da Mãe

As décadas posteriores à independência do Brasil marcam também o momento de fundação de algumas instituições que se tornaram “instâncias coletivas de atuação cultural e social”, contribuindo grandemente para o aquecimento do debate crítico sobre o desperdício de recursos naturais com os sistemas de queimadas adotados no Brasil. Dentre 495

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

D’Água” e “Vista de um mato virgem que está se reduzindo a carvão.”

troncos para queimá-los. A relação entre escravidão e derrubada das matas tornou-se, como vimos, um tema recorrente da crítica ambiental, desde José Bonifácio. Carlos Taunay também enfatiza essa ligação, ainda que não defendesse como Bonifácio, a abolição imediata dos negros.4 Félix-Émile, por sua vez, incorpora em seu quadro, essa mesma crítica ao efeito nocivo do trabalho cativo. A brutalidade dos movimentos dos machados e a indiferença dos negros com relação ao destino da floresta torna-se ainda mais evidente pela presença, no quadro, de um único homem branco, de braços estendidos que, como bem observou Elaine Dias (DIAS, 2005: 405), medindo-se com a imponente obra da natureza, evoca concepções românticas do sublime.

Em seu Manual, Carlos Taunay assume um tom de denúncia urgente contra a destruição das matas próximas ao Rio de Janeiro. Ele recomendava aos agricultores “não abusar deste manancial de riqueza quase inesgotável que a natureza nos outorgou, não só pela razão da economia a favor dos nossos vindouros, como mesmo para a boa conservação da terra e temperamento da nossa atmosfera”, criticando “o sistema permanente de devastação que assola e desguarnece as fraldas da serra do Corcovado e das serras da Tijuca.” (TAUNAY, apud PÁDUA, 2004: 239) Ainda em sua opinião, a devastação das florestas estava destruindo o clima na capital:

O horizonte livre de árvores, na parcela esquerda da obra, deixa entrever uma região montanhosa que faz lembrar as serras ao redor da cidade do Rio de Janeiro. Estamos certamente em um lugar elevado, acima do vale que se delineia no plano médio da obra, local que, de acordo com o texto de Carlos Taunay, deveria permanecer intocado. A região central do quadro configura-se como o espaço de fronteira entre a floresta e os campos devastados pelos machados dos negros e pelo fogo. É nesse espaço que se acumula alguns dos elementos centrais à narrativa proposta pelo artista. Salta aos olhos, em primeiro lugar, a grande figueira, cuja frondosa copa ocupa quase toda a parte superior direita do quadro. Ela é o “personagem principal” do drama. Ao seu lado, como a ampará-la, vemos um pau-mulato, uma árvore cuja madeira era muito usada na fabricação de móveis. A posição estratégica que as duas árvores ocupam no quadro lhes dá um aspecto de resistência heróica. Um pouco mais à esquerda, já ocupando a região da queimada, encontramos um riacho que corre com dificuldade entre pedras e entulhos, exposto ao sol e ao vento, em direta contraposição ao leito invisível, porque protegido pela densa mata, do rio à direita. Entre a enorme figueira e o rio agonizante à esquerda, vemos uma estrada lamacenta por onde caminha um negro ao lado de um jumento arqueado sob o peso de sua carga. A dramática narrativa descortina-se diante dos nossos olhos: Escravos negros derrubam as matas nativas nas cercanias do Rio de Janeiro, provavelmente visando o estabelecimento de uma lucrativa lavoura de café e nem mesmo a mata é abatida e já podemos intuir suas conseqüências nefastas: a esterilidade do terreno, representado pelo aspecto espinhoso que ele adquire com a presença dos restos de tronco abatidos, a diminuição das águas expostas a céu aberto e a

a grande extensão que a cultura tomou nas vizinhanças da cidade, e o indiscreto corte de matas que causou, originaram sem dúvida esta alteração. O calor está notavelmente mais intenso. As trovoadas, outrora diárias, são raríssimas, e finalmente, de tantas fontes próximas à cidade, umas já secaram de todo e outras correm mais escassas. (TAUNAY, apud PÁDUA, 2004: 239) Em seu texto, Carlos Taunay enfatizava o importante papel das matas no processo de fertilização dos solos, bloqueio de ventos, conservação das fontes de água e purificação da atmosfera, papel que era ainda mais crucial nos morros, pois o “descortinamento de grande porção deles pode ocasionar uma sensível alteração do clima e notável diminuição das águas.” (TAUNAY, apud PÁDUA, 2004: 238). A leitura dessas passagens do Manual do Agricultor Brasileiro não deixa dúvidas quanto à afinidade de Félix-Émile Taunay com as idéias defendidas por seu irmão. O quadro “Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão” põe diante dos olhos de seu público o próprio drama da destruição das florestas, causadora de todos os males descritos no livro. O quadro divide-se em duas partes. À direita encontramos uma floresta majestosa e centenária, de configuração complexa e repleta de espécies úteis (podemos ver, por exemplo, um grande jatobá no canto superior direito do quadro). Vindo de dentro da mata densa, e desembocando em um poço natural em primeiro plano, corre um rio de águas límpidas. À esquerda, essa bela parcela de mata atlântica é contraposta a uma paisagem desoladora, onde homens negros trabalham sem cessar derrubando a mata a machado e empilhando os enormes 496

Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay

lama que corre pela estrada, como se ela mesma fosse um rio ameaçador.

A presença dessa inscrição, que reapareceu também na exposição de 1841 levou a crítica, desde o século XIX a ver no quadro uma celebração do importante monumento arquitetônico doado pela casa de Bragança ao povo do Brasil. A aparência do quadro, no entanto, não corresponde à inscrição. Vários elementos apontam em outra direção: a construção, que é supostamente o tema principal, encontra-se deslocada do centro da obra e desvalorizada, parecendo mais um casebre simples do que um “monumento duradouro”. As figuras dos escravos descansando ao redor do reservatório também não parecem corresponder a idéias celebrativas.5 E, principalmente, por que Taunay não representou os Arcos da Lapa, citado na “notícia”, este sim, uma obra passível de ser considerada “monumental?

Confrontado com a tradição de crítica às práticas agrícolas brasileiras, o quadro de Taunay e seu projeto para a construção de uma paisagem brasileira a partir de elementos locais, parecem adquirir um sentido menos abstrato e mais político já que tocava em questões que atingiam diretamente a vida da população do Rio de Janeiro. A inscrição que acompanhou o quadro na sua primeira apresentação na Exposição Geral de 1843 parece confirmar essa hipótese: “A desaparição dos mais belos exemplares do reino vegetal nos arredores da cidade ameaça a esta, segundo cálculos irrefutáveis, com diminuição das águas vivas e elevação do grau médio de calor, dois males reciprocamente ativos.”

Devemos nos perguntar, portanto, como seria possível conciliar a visualidade do quadro e a nota explicativa que o acompanha desde sua primeira aparição pública. Talvez uma forma eficiente de abordar a questão seria indagarmos a respeito dos interlocutores de Félix Èmile Taunay. Para quem ele teria pintado esse estranho quadro? Se pensarmos nas data da obra, a resposta só pode ser uma: Para o imperador D. Pedro II que em 1840 adquirira sua maioridade e assumira o comando da jovem Nação. A 12 de Dezembro de 1840, o próprio Taunay acompanhou D. Pedro II em sua visita oficial à primeira exposição Geral da Academia, fazendo o seguinte comentário diante da “Vista da Mãe D’Água:

Desde o século XIX a crítica de arte sempre tendeu a considerar este quadro em uma relação de proximidade com a obra de Taunay: “Vista da Mãe D’Água”. De fato, suas temáticas são semelhantes, assim como as datas em que provavelmente foram criados. O quadro “Vista da Mãe D’Água” representa o mais antigo reservatório de água da cidade do Rio de Janeiro, situado no alto do morro de Santa Teresa. O que domina, no entanto a paisagem não é a construção, mas a mata virgem que rodeia o reservatório e sua tubulação. À semelhança do outro quadro de Taunay, também essa obra fez-se acompanhar de uma “notícia” no momento de sua primeira aparição na exposição Geral da Academia em 1840, com o seguinte conteúdo:

Se, como fora o nosso intento, aparecesse mais extenso a notícia do encanamento da Carioca, não ligaria ela à lembrança atual de um passado de benefícios ao justo amparo que testemunham os fluminenses para a descendência dos príncipes de Bragança?6

Lê-se a seguinte inscrição sobre a caixa, na qual principia o encanamento das águas: ‘Reinando El-Rei Dom João V, nosso Senhor, e sendo Governador o Capitão General desta Capitania e das Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade, do Seu Conselho, Sargento-mór de batalha dos seus Exércitos. Ano de 1744. Outra inscrição lapidar sobre um dos arcos de Santa Teresa diz assim: El-Rei Dom João V, nosso Senhor, mandou fazer esta obra pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Gomes Freire de Andrade, do Seu Conselho, Sargentomór de batalha dos seus exércitos, Governador e Capitão Geral das Capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ano de 1750’. A grandeza das obras e magnificência sem par dos sítios que elas atravessam, correspondem aos paternais desvelos dos reis da Casa de Bragança, atestados pelas muitas Cartas Régias e Provisões que existem a respeito daquelas águas, desde 1672 até o mencionado ano de 1759.

O próprio Taunay explicitava, com essas palavras portanto a ligação entre o tema da obra e a ascensão de D. Pedro II ao trono. Sabemos que Félix-Émile Taunay tornara-se professor de desenho e de francês de D.Pedro II e suas irmãs em 1835 e que em meados de 1839 foi nomeado sub-preceptor do futuro imperador, ao lado do bispo de Chrysopolis. De acordo com o testemunho de seu filho, Alfredo Taunay (o Visconde de Taunay), que publicou em 1916 alguns fragmentos de memórias do seu pai na revista do IHGB, no cumprimento dessa tarefa, a natureza brasileira desempenhou um papel central: “Ao imperador menino, então, foram os desvelos de meu pai inexcedíveis e, ajudado pelos esplendores da natureza brasileira, em cuja adoração viveu 497

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

sempre, por aí é que buscou e conseguiu impingir na alma do jovem soberano o culto do Belo (...).” (TAUNAY, 1916: 96) De fato, tais memórias de Félix Èmile revelam um programa pedagógico de inspiração roussoniana. Em vários trechos percebemos a convicção de Taunay de que o desenvolvimento de uma sensibilidade com relação à natureza levaria à possibilidade de apreciação das artes e ao refinamento cultural em geral. A narração de um pequeno episódio ocorrido durante um passeio ao jardim botânico com seus pupilos, em que D. Francisca, irmã de D. Pedro II, rira de suas exclamações constantes de admiração diante da natureza, serve bem para ilustrar sua posição:

Ainda que igualmente comprometido com as idéias preservacionistas às quais ele era simpático, o quadro “Vista da Mãe D’Água” parece desenvolver um discurso mais complexo. Nessa obra, Taunay preocupa-se em indicar um caminho viável para conciliar o desenvolvimento da nação brasileira, sua entrada plena para a comunidade de países civilizados, e uma política de preservação das matas nativas ainda intocadas. Como o próprio Taunay, enquanto diretor da Academia, reiteradamente afirmara, a medida e a história de uma civilização estaria corporificada em seus monumentos e portanto era necessário pensar a tradição do monumento em sua relação com a realidade local. Nas cidades valia as regras da Europa: deveria-se construir monumentos imortais, de inspiração clássica, pois deles “dependem os destinos da fama das sociedades humanas (...) quando já quaisquer outros vestígios desapareceram.” (TAUNAY, apud DIAS, 2005: 248)7. Porém ao lado desse conceito tradicional de monumento, em “Vista da Mãe D’Água”, Taunay parece conceber um outro, no qual ocorreria uma simbiose entre monumento e natureza, isto é, entre natureza e história. De acordo com essa concepção, a ocupação ponderada dos sítios naturais (da forma proposta por Bonifácio e seus discípulos), sem destruí-los, levaria à construção de um monumento, símbolo da grandeza de seu soberano. Como estratégia retórica, isto é, como forma de sugerir esse caminho como o mais legítimo para a atuação do próprio D. Pedro II, em “Vista da Mãe D’Água”, Taunay apresenta sua nova visão de natureza como monumento, sob as vestes de uma herança da casa Bragança a seu herdeiro. A simbiose entre construção (reservatório e aqueduto) e mata é assim louvada como o grande legado da casa de Bragança ao Brasil. A passagem da “notícia” que vincula “a grandeza das obras” à “magnificência sem par dos sítios que elas atravessam” parece muito relevante desse ponto de vista.

Então lhes expliquei que a admiração pelos grandes espetáculos da natureza e a manifestação das impressões que eles nos incutem, são só próprias do homem civilizado. Os selvagens e entes primitivos não as sentem ou, se as sentem, tem especial cuidado em ocultá-las. (TAUNAY, 1916: 97) A observação da natureza também seria um caminho privilegiado para o aperfeiçoamento moral. Taunay relata que deixou um marimbondo pousar sobre sua mão, diante dos jovens pupilos, para provar que ele era inofensivo quando não se sentia ameaçado, concluindo: D’aí a reconhecer que o mal para o mal pouco se produz na natureza, não há grande distância. Assim também a desconfiança ou o temor de ser molestado gera mais violências e crimes do que a maldade inata, a malignidade gratuita...” (TAUNAY, 1916: 98) Poderíamos aventar a hipótese dessa idéia de educação através da natureza, tal como ela aparece nas memórias de Félix Èmile Taunay, encontrar-se também na origem das duas paisagens de Tauany que estamos analisando. O artista teria concebido-as pensando em seu pupilo e no importante papel que ele estava para assumir à frente da nação. Podemos imaginar que “Vista de uma mata virgem reduzida a carvão” visava atrair a atenção do jovem imperador para a voraz destruição da natureza brasileira que ocorria em todo o país e também nos arredores do Rio de Janeiro, como conseqüência do plantio da monocultura do café, abrindo uma porta de comunicação direta entre o poder imperial e os intelectuais do SAIN e do IHGB que lutavam pela preservação das florestas. Nesse contexto é importante também lembrar que 1843 está em discussão a primeira lei de terras para o Brasil.

A integração entre monumento e natureza é um tema romântico de grande relevância para a paisagem, tal como ela se reinventa ao longo do século XVIII. Caspar David Friedrich possui diversos quadros onde um pequeno túmulo incorpora-se ao cenário monumental da floresta, ou se esconde sob as pedras colossais de uma gruta. Nesses quadros, o Stimmung, ou tom emocional da paisagem orienta nossa aproximação ao monumento. Uma compreensão talvez mais próxima da de Taunay, no entanto, parece ser a do artista Jacob Philipp Hackert. O importante paisagista, primeiro pintor de Ferdinando IV, rei de Nápoles, realiza em 1780, uma série intitulada “Dez 498

Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay

Vistas da Casa de Campo de Horácio” onde vemos ocorrer uma simbiose entre monumento clássico e paisagem.

PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição. Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. TAUNAY, Alfredo. D. Pedro II e o Barão de Taunay. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 77, parte II, 1916, pp. 94-102.

Porém aqui, ao contrário do que ocorre em Friedrich, é a presença do monumento histórico que dá significado e valor à paisagem. A questão ocupou o artista também do ponto de vista teórico. Em uma passagem de seu texto sobre “Pintura de Paisagem” podemos ler: “Muitas regiões agradam, em primeiro lugar, apenas por causa de condições morais, ainda que elas não sejam as mais belas, pois outras idéias do observador se juntam a elas.” (HACKERT, apud MATTOS, 2008: 147-48)

Notas 1

Doutora e História da Arte pela Universidade Livre de Berlin e professora de História da Arte do Instituto de Artes da Unicamp. 2 Outro artista de igual importância é Manuel Araújo Porto Alegre, que sucedeu Taunay como diretor da AIBA em 1855. 3 Elaine Dias propõe uma análise semelhante em sua tese de doutorado: Félix- Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil, defendida no IFCH/Unicamp em 2005. 4 De acordo com Pádua, Taunay “criticou a imoralidade do trabalho forçado, sem defender a necessidade imperiosa da abolição.(...) Mesmo assim, apesar desses atenuantes, a realidade era que a escravidão contribuía para o atraso da agricultura.” O problema deveria ter uma solução paulatina, no futuro. A solução seria a adoção do arado. (p.241) 5 Existe uma outra versão deste tema que se encontra no MASP, onde as figuras dos escravos estão ausentes e a construção recebe maior destaque. 6 Félix-Émile Taunay, “Discurso na visita do Imperador à Primeira Exposição Geral”, 12 de dezembro de 1840. 7 Taunay prevê um processo de adaptação dessa arquitetura européia à realidade brasileira. Em discurso pronunciado na Sessão Pública da Academia em 1834, Taunay diria: “quem a ela se dedicar (à arquitetura), por esse simples fato, torna-se benemérito do Brasil, cujas cidades carecem tão evidentemente de construtores hábeis capazes de aplicare os princípios eternos do bom gosto consagrados na arte Grega às circunstâncias peculiares do clima brasileiro.” Taunay, apud. Elaine Dias, op.cit., p.248. (Grifo meu).

Em “Vista da Mãe D’Água”, também a obra dos Bragança tornou aquele trecho da natureza memorável, um monumento relacionado à grande história do país. Confrontado com a realidade brasileira e com todos os desafios envolvendo a construção da nova nação brasileira, Felix-Émile Taunay reinventa a pintura de paisagem propondo um conceito novo de monumento que pudesse servir também a seu engajamento político em defesa da bela natureza dos trópicos. Referências bibliográficas DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil. Tese de Doutorado defendida no Departamento de História do IFCH/Unicamp, 2005. ________. A Pintura de Paisagem de Félix-Émile Taunay. Rotunda, n.o 1, abril, 2003, pp. 5-18. MATTOS, Claudia Valladão de (org.). Goethe e Hackert. Sobre a pintura de paisagem. São Paulo: Ateliê, 2008. MIGLIACCIO, Luciano. A Arte do Século XIX, catálogo da Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal, 2000.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Eu oscilo entre realidade e irrealidade, entre natureza e não-natureza, entre verdade e aparência. Meus pensamentos e meus espírito são postos em movimento, forçados a balançar de um lado para outro, com se estivessem girando e sendo sacudidos em um barco. Essa é a única maneira que encontro para explicar a tontura e o enjôo que acometem o observador despreparado para o panorama. Citação de Johann Augusto Eberhard (GRAU, 2007: 94) Esta reflexão que ora apresentamos compõem-se de uma reavaliação crítica da figura e da obra de Victor Meirelles em particular, e por extensão, da produção artística do século XIX no Brasil. Tanto Meirelles quanto Pedro Américo estiveram no centro da produção pictórica brasileira com suas telas históricas e retratos relacionados à arte oficial do país. Entretanto nas últimas décadas dos oitocentos, principalmente a obra de Meirelles foi avaliada por muitos críticos seus coetâneos como convencional, sem criatividade e atada à uma tradição artística ultrapassada e destituída de verdade. Identificamos nessas considerações uma mescla de influências mais de caráter político do que artístico; que procuravam desqualificar o trabalho de Meirelles a partir de sua ligação com o regime Imperial ao qual sua obra se fundia, não só devido à contribuição imagética que perpetuaram na construção de uma iconografia nacional, como também, nos laços de amizade entre o artista e o Imperador D. Pedro II. Essas críticas se inserem no interior de uma disputa entre Republicanos e partidários do antigo regime Imperial dissolvido em 1889 como conseqüência da Proclamação da República. Nesse sentido, principalmente a figura de Victor Meirelles era relacionada ao sistema anterior e a construção de uma iconografia que consolidava o projeto civilizatório implantado de forma mais incisiva com a vinda da Família Real para o Brasil, na primeira década do século XIX.

victor meirelles e os panoramas cristina pierre de frança1

No âmbito de questões propriamente artísticas, tanto Gonzaga Duque quanto Oscar Guanabarino, apresentavam críticas que se alicerçavam sobre a mudança nos paradigmas da representação que estavam se operando. O modelo idealistaromântico consolidado em obras como ‘A Primeira Missa no Brasil’, ‘Independência ou Morte’ ou ‘O Último Tamoio’ além das diversas cenas de batalha já não atendem a expectativa de grande parte da crítica nacional. Havia um clamor pelo verdadeiro, pela representação da cor local, pela verdade na pintura. Estas reivindicações anunciam a presença, ainda que não nomeada, do movimento artístico que se 500

Victor Meirelles e os panoramas

como ela é”, eliminando toda ilusão, fantasia ou tendências do gosto. O seu realismo “ desfaz-se de todos os esquemas, preconceitos, convenções, tendências do gosto. Para tocar a verdade, ele elimina a mentira, a ilusão, a fantasia.Tal é o seu realismo, [...] pura e simples constatação do verdadeiro” (ARGAN, 1992: 92).

seguiu ao Romantismo na Europa. Indicam as concepções do Realismo, o qual se encaminha como uma tentativa de exibir uma representação meticulosa da realidade vivida sem idealidade, embebida em objetividade e imparcialidade. Assim, os artistas que caminham no interior dessa poética privilegiam a autenticidade e a sinceridade de suas obras.

Apesar da posição crítica a favor da representação realista, não podemos entender a arte brasileira que se desenvolve nos oitocentos se não compreendemos a diferença de propostas entre esse momento – o das últimas décadas do século XIX e aquele da chegada da Missão Artística Francesa em 1816, relacionando-a ao projeto de civilização do país sob a égide de um modelo modernizador europeu.

O Realismo traz uma nova atitude diante da arte, certamente herdada de uma mentalidade empírica, profundamente norteada por um apreço pela visualidade e por uma nova concepção de tempo imediato, que incide sobre essa produção. O que estava em jogo era a “importância do confronto com a realidade fresca, conscienciosamente despindo suas mentes e seus pincéis de um conhecimento de segunda mão e de fórmulas prontas”.(NOCHLIN, 1978: 20)

A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808, especificamente ao Rio de Janeiro, determinou uma transformação não só no âmbito civil do país, mas também definiu uma mudança em seu estatuto cultural; houve uma adequação da cidade à sua nova função de capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Além desse caráter de presentidade, de absoluta fidelidade a um tempo e a um lugar definido, que é um dos aspectos essenciais do Realismo, encontram-se também outras motivações, as que são esclarecidas nos textos e declarações do pintor Courbet, um de seus principais representantes. Numa afirmação de 1861 Courbet afirmou:

A chegada de um grupo de artistas franceses para fundar uma escola de artes nos moldes da Academia Francesa, que viria a ser denominada de Missão Artística Francesa, estava inserida no seio de medidas, de caráter iluminista concretizadas pelo governo português no Brasil, com o objetivo de civilizar a cidade. Nessa perspectiva fundavam-se as “Academias da Marinha, de Medicina, Militar, de Belas Artes, as escolas do Comércio, de Agricultura e de Botânica além da Biblioteca e Museus” (GUIMARÃES, 1922: 425). Estas instituições visavam implementar as atividades culturais e integrar o país ao modelo europeu.

A pintura é essencialmente arte concreta e pode unicamente consistir na apresentação do real e das coisas existentes. Ela é como uma linguagem física completa, as palavras das quais consiste são todos os objetos visíveis, um objeto que é abstrato, não visível, não é existente e não está dentro do reino da pintura. (NOCHLIN, 1978: 23) As atitudes dos realistas relacionadas às questões como imediatismo e materialidade delimitam o fato dos artistas desse movimento trabalharem com os aspectos visíveis e tangíveis dos objetos. Seu compromisso era de “libertar a sensação visual de qualquer experiência ou noção adquirida e de qualquer postura previamente ordenada que pudesse prejudicar sua imediaticidade,” (NOCHLIN, 1978: 75) determinando sua imposição de trabalhar apenas com o contemporâneo.

O modelo pensado a priori com a implantação da Academia pretendia a inserção do país nas ‘modernidade’ daquele momento, introduzindo no país as correntes contemporâneas de arte daquele período e capacitando uma mão de obra para atuação na indústria. Nesse processo a Academia buscava simultaneamente, inscrever o país num projeto de instrução, de âmbito bem mais amplo do que a formação artística, e a construção de um imaginário que correspondesse aos ideais do império brasileiro, calcado na figura do Imperador e de fatos históricos marcantes na constituição do país (SANTOS, 1998: 128). Retratos, bustos, pinturas históricas e de paisagem passam a integrar com vigor os temas da arte no cenário nacional.

Courbet afirmava que a natureza da arte era a contemporaneidade e que os artistas eram incapazes de reproduzir algo que não fosse relativo ao seu tempo, fosse do passado ou do futuro, numa clara condenação à pintura histórica. Desse modo, a realidade teria que ser mostrada exatamente como ela se apresentava, com a máxima sinceridade, não importando a inexistência de beleza ou de riqueza, sem idealizações ou dramatizações. Courbet quer viver a “realidade 501

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Além disso, a Academia tinha o dever de “promover o progresso das Artes no Brasil, de combater os erros introduzidos em matéria de gosto, de dar a todos os artefatos da indústria nacional a conveniente perfeição, e enfim o de auxiliar o Governo em tão importante objeto”. 2 Esses propósitos estavam claramente delineados na Reforma Pedreira, implantada em 1855.

partindo em 10 de abril de 1853 para a cidade de Roma. Como todos os alunos que obtinham este prêmio, “devia prestar contas de suas atividades aos professores brasileiros durante toda sua estadia na Europa” (CAVALCANTI, 2001-2002: 70), já que como pensionista era subvencionado pelo governo brasileiro. Victor Meirelles foi vencedor do oitavo prêmio de viagem. 3 Na Europa esteve como estudante em duas cidades: Roma e Paris, permanecendo no exterior por oito anos. Manteve correspondência com o Manuel de Araújo PortoAlegre, que como diretor da Academia Imperial, deveria se inteirar dos estudos dos pensionistas, até por força do decreto que em 1855 instituiu a Reforma Pedreira, que define os novos estatutos da Academia Imperial e determina entre outras coisas, obrigações dos artistas pensionistas e valor de sua pensão anual.

Assim para a Academia Imperial de Belas Artes, os aspectos pedagógicos da arte ultrapassariam o circuito do ensino artístico e se estenderia a toda população. As referências à elevação desse gosto popular circulavam nas crônicas de diversos articulistas do período, em jornais como ‘O País’ e ‘O Diário Ilustrado’. Nos textos veiculados encontravam-se freqüentemente alusões à educação artística e desenvolvimento de um determinado gosto na população; corroborando que as implicações e influência do ensino acadêmico superavam em muito a questão técnica e educativa restrita aos alunos inscritos em seus cursos.

Entre as tarefas definidas pela congregação para Victor Meirelles, estava o envio de trabalhos que comprovassem sua aplicação nos estudos. Nesse sentido, foram exigidos tanto cópias de bons autores, quanto obras originais do pintor. Cumprindo suas tarefas com rigor Victor Meirelles envia ao Brasil diversos estudos de pintura à óleo, de desenhos e obras originais e os seguintes trabalhos originais: A Degolação de São João Batista, A Flagelação de Cristo, A bacante e A Primeira Missa no Brasil (FERNANDES, 2001/ 2002: p.21).

Entre os artistas da Missão Francesa, coube principalmente Jean Baptiste Debret a responsabilidade por essa pintura histórica oficial, que representava os grandes atos oficiais da Corte no Brasil, o Desembarque da Imperatriz Dona Leopoldina ou ainda, o Retrato de D. João VI, registraram fatos marcantes da Corte portuguesa no Brasil. Além disso, junto com o arquiteto Auguste-Henri Victor Grandjean de Montigny foi responsável pela decoração dos eventos festivos. Com a efetiva fundação da Academia em 1826, a instrução referente à pintura histórica ficou a cargo de Debret, o ensino de pintura de paisagem sob a responsabilidade de Nicolas Antoine Taunay e o de arquitetura com Grandjean de Montigny.

A obra pela qual Victor Meirelles é mais amplamente conhecido A Primeira Missa no Brasil é realizada entre 1859 e 1860. Inscreve-se sob a égide de uma pintura emblemática, que retrata um momento original e único brasileiro. Constitui uma imagem que determina uma identidade nacional, e atende ao programa de consolidação e criação de uma imagética brasileira. Constrói no imaginário a idéia de uma nação pacífica, imersa numa natureza amigável e sem conflitos – portanto apresenta um programa de caráter idealista e romântico, que configura um mito que aproxima a idéia de civilidade – representado pela ação religiosa européia - e de natureza – a partir da integração dos índios nascidos nesta terra edênica, circundando a cena. Nesse sentido, pode-se entender o porquê de sua apreciação no Salon de Paris.

Os artistas brasileiros discípulos da Academia, em meados dos oitocentos seguiam o caminho iconográfico, definido pela por seus mestres, o de configurar uma memória e uma identidade nacional. Dentre estes artistas destacamos Victor Meirelles (1832-1903). Nascido na cidade de Desterro, hoje Florianópolis, desde cedo mostrou pendor para as artes. Matriculou-se na Academia Imperial de Belas Artes em 1847, com a ajuda do Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho e alguns amigos da família que custearam sua vinda para o Rio de Janeiro. Em 1849 matricula-se na cadeira de pintura histórica, ministrado pelo pintor José Correia de Lima, discípulo de Debret, freqüentando o curso por três anos. Em 1852 apresenta a obra São João no Cárcere, vencendo o concurso para obtenção do Prêmio de Viagem a Europa daquele ano,

A Primeira Missa é inaugural no sentido da construção de uma iconografia de pintura histórica que atende a uma demanda de configuração de uma pátria que estava se constituindo naquele momento. 502

Victor Meirelles e os panoramas

Essa via de aproximação com a natureza provoca duas atitudes que serão marcantes durante o século XIX e que podem ser entendidas como o arcabouço de toda representação de paisagem moderna4: uma francamente naturalista, baseada na realidade empírica e na luz objetiva – a representação flamenga; e outra que busca submeter essa realidade a uma certeza que, decerto, provém de uma realidade externa à arte como a matemática - que é configurada pela representação da paisagem na arte florentina. Esta última se caracterizava, segundo Clark, pelo uso da “perspectiva científica, inventada por Bruneleschi”.5

O outro viés na construção desse ideário imagético brasileiro pode ser assinalado na pintura de paisagem e de natureza morta. No caso da paisagem podemos identificar o pintor Nicolas Antoine Taunay antigo professor de paisagem da Academia como um incentivador dessa representação da terra brasileira, como um gênero autônomo. O termo paisagem é de origem francesa e remonta a 1549. (HOUAISS, 2001: 2105) Inicialmente alude a idéia de “conjunto de países” e “de extensão de terra que a vista alcança”. A acepção da palavra em seu sentido moderno se materializa durante o Renascimento, quando se inicia um processo de domínio da natureza de maneira mais efetiva e ela se transforma em matéria-prima para a paisagem.

Essa acepção de uma obra segundo leis externas a sua própria existência, que regem a pintura de paisagem italiana, configuram o nascimento do homem moderno que pretende o domínio da natureza, submetendo-a à razão e a uma construção inicialmente mental.

A primeira instância imediatamente percebida nesse gênero de pintura, ainda durante a Idade Media, foi a exacerbação ou aguçamento da via sensória a partir das sensações que a paisagem evocava. A segunda esfera diz respeito à questão local, que já está inclusa em sua origem etimológica, mas que só posteriormente iria ser destacada nas paisagens – quando elas aludem a determinados locais em determinado período de tempo.

A paisagem natural só ganha mais espaço a partir do final do século XVIII, não obstante ter havido uma corrente de artistas que deram continuidade a esse modo de representação. A base desse tipo de pintura certamente está assentada sobre a observação direta da natureza, no prazer empírico da observação. Esse período coincide com o movimento romântico,6 quando a paisagem se ergue como um gênero autônomo de pintura de maneira mais consistente. A paisagem que se definia anteriormente ora natural, ora ideal se configura durante esse período sob o domínio do pitoresco e do sublime. Giulio Carlo Argan7 define esses dois modos de representação como uma forma complementar de visão de mundo.

Por outro lado, a pintura de paisagem na representação dos elementos da natureza se opõe a idéia de urbanidade, uma idéia que é apresentada pela primeira vez por Francisco Petrarca (13041374), que segundo Keneth Clark é “o primeiro a expressar [...] o desejo de escapar do torvelinho das cidades para refugiar-se na paz do campo solitário”. (CLARK, 1984: 21). Ainda de acordo com Clark, o poeta italiano foi o primeiro a descrever a idéia de panorama, de uma visão aérea de um local num ângulo de trezentos e sessenta graus e do deleite que essa visão transmite ao espectador. Essa idéia é muito importante para a compreensão da ampliação dos sentidos na arte brasileira do séc. XIX.

Na visão de Argan a questão do pitoresco se relaciona inicialmente a uma idéia de jardim,8 que por sua característica construtiva aproxima os dois conceitos. Nesse sentido, Argan nos apresenta os fundamentos do pitoresco definidos pelo teórico do termo, o pintor tratadista Alexander Cozens.9 Para ele, a fonte de estímulos do artista é a natureza, e nesse sentido é sua função apresentar esses estímulos de maneira clara, a partir das sensações visuais, sem a interferência de esquemas geométricos como a perspectiva. Uma outra propriedade do pitoresco é a busca do variado, do diferente, do característico e singular em detrimento do belo ideal, “o característico não se capta com a contemplação, e sim com a argúcia ou a presteza da mente, que permite associar ou ‘combinar’ idéias-imagens, mesmo muito diversas e distantes” (ARGAN, 1992: 18).

Formalmente Clark identifica a luz como principal elemento da pintura de paisagem, e essa luminosidade pode ser obtida quando o pintor fica diante da natureza. Esta pintura luminosa deve ser resultado da observação direta dos fatos “dificilmente poderiam haver sido pintadas de memória, tinham que estar baseadas em estudos feitos diretamente do natural, [...] de uma cena real” (CLARK, 1984: 36), que se atém à representação direta de um acontecimento e de uma dada situação da natureza.

503

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

truques e maquinações, assimilando as novidades mecânicas e a tecnologia.

As poéticas do sublime foram definidas um pouco posteriormente às do pitoresco e refletem um pensamento algo diferenciado. A relação do sujeito diante da natureza se transforma. No sublime, o sujeito está diante de um ambiente hostil, desmedido, misterioso e fundem-se nele medo e fascínio, bem próximos do sentimento trágico, encontrados nas obras de Henri Fusili, William Blake e Caspar Friedrich. Argan descreve essa poética da seguinte maneira:

Podemos descrevê-los como grandes telas, de forma circular, que se instalavam em grandes espaços fechados, construídos especificamente para esse fim Tanto nomeiam o edifício construído, quanto a pintura representada Panorama: edifício, geralmente circular, no qual pinturas chamadas de panorama são exibidas na parede da rotunda cobertas por uma cúpula ou um telhado de forma cônica.Estes pinturas são fieis reproduções da aparência de um determinado lugar quando visto de todos os ângulos, tão perto ou longe quanto o olho pode enxergar. Para este fim, o espectador é colocado em uma plataforma ou galeria circular que simula uma torre localizada no centro da rotunda, a luz flui pelo alto, através de uma área de vidro fosco encaixada na parte mais alta do telhado caindo sobre as pinturas. Um imenso guarda-sol, suspenso sobre a plataforma de madeira mantém o espectador no escuro ao mesmo tempo que ocultam as fontes de luz. (COMMENT, 1999: 7)

O ‘sublime’ é visionário, angustiado: as cores, às vezes foscas, às vezes pálidas, desenho de tacos fortemente marcados; gestos excessivos, bocas gritantes, olhos arregalados, mas a figura sempre fechada num invisível esquema geométrico que aprisiona e anula seus esforços. (ARGAN, 1992: 19) Essa distinção entre o pitoresco e o sublime é importante para divisar em que âmbito essas poéticas instigaram a pintura de paisagem brasileira do século XIX. A natureza do nosso país oferece um caráter misterioso e assustador, na medida em que nossas florestas simultaneamente apresentam uma grande variedade e abundância de cores e formas, além de uma luminosidade intensa que, encoberta pela copa e pelas folhas das árvores, apresenta efeitos dramáticos e obscuros.

De acordo com Stephan Oettermann o termo Panorama remete diretamente a construção das palavras híbridas cunhadas na era moderna, para designar as novas tecnologias, engrenagens mecânicas e avanços científicos. (OETTERMANN, 1997: 6) Segundo ele, a palavra foi construída pela junção de dois termos gregos: pan (todo) e horama (visão) para significar uma forma específica de representação de uma paisagem pintada a sob um ângulo de 360º.

Apesar disso, grande parte de nossa paisagem se apresentava sob a forma de panoramas, 10 que se constituíam a partir do pitoresco, que não despertavam medo ou angústia, nem os sentimentos inomináveis e desmedidos da poética do sublime. Nessa paisagem tropical parecia existir uma harmonia com a natureza, um sentimento de bem estar e contemplação serena diante da paisagem.

Os Panoramas podem ser descritos como a pintura de uma paisagem - de caráter idílico ou histórico – em uma tela de grandes dimensões de forma circular que mantinham o espectador imerso no interior da imagem pintada. Esse caráter imersivo era potencializado não só pela construção arquitetônica circular, mas também por toda uma ambientação que obscurecia os espaços até a chegada ao foco do interesse, a própria pintura.

Os panoramas brasileiros tinham a característica de uma paisagem composta, (CONSIDERA, 2000: 287-294) de um simulacro da cidade no qual se condensava a vista, unindo e aproximando locais mais distantes. Os panoramas como construção específica do século XIX, embora partam da idéia já descrita anteriormente, de uma visão estendida do espaço, apresentam algumas peculiaridades. Neles havia uma multiplicação dos ângulos de visão, buscavase um olhar total, de maneira que o espectador se sentisse absolutamente envolvido.

Entre as características desse meio de arte, podese afirmar que diferente das outras formas de pintura (como os afrescos ou a pintura de cavalete), o Panorama exigia uma participação ativa do espectador, através não só de deslocamentos na área da pintura, mas também, por sugerir a realização de operações de síntese do espectador para completar o efeito panótico da obra, uma vez que se apresentavam também sob a forma de painéis que recortavam o espaço de maneira

Constituíam-se em uma forma de espetáculo que exigiam uma contemplação que superava os aspectos visuais, iludiam os sentidos através de 504

Victor Meirelles e os panoramas

Esse era um dos motivos, pelos quais estes produtos não eram reconhecidos plenamente como arte, afinal toda estética do século XVIII, era fundamentada na questão do desinteresse, que pregava a não funcionalidade do objeto artístico. Além disso, o Panorama encaminhava uma tensão interna, que aludia simultaneamente ao Belo e ao Sublime. Quando representava uma paisagem com ângulo de 360º abarcava uma vista impossível de ser visualizada pelo olho, a qual passava pela idéia de uma forma ilimitada, de uma continuidade perene, de uma grandeza a que aludem todas as questões relacionadas ao Sublime. Por outro lado, havia uma busca por representações da natureza, vistas consideradas belas e adequadas. Nesse ponto de vista o Panorama não era uma produção confortável,

sucessiva. O espectador se colocava no centro, “sobre uma espécie de mirante”,11 e poderia existir uma ilusão de realidade, de se sentir como se estivesse observando a paisagem exposta ao ar livre,12 uma atitude bem similar aos momentos de lazer, de contemplação da natureza. Reconheço que fiquei agradavelmente surpreso com a vista que se me oferecia à entrada do Panorama [...] Eu me vi genuinamente transportado em pleno ar, sobre a plataforma do pavilhão central das Tulherias, e Paris e suas redondezas descortinaram-se ante meu olhar maravilhado; quando, após toda uma hora, emergi do Panorama, vendo novamente a natureza, tive dificuldade de distingui-la da pintura que acabara de deixar.( MANNONI, 2003: 192)

O outro motivo pelo qual, essa produção encontrava-se no limiar da produção artística, relacionava-se com a utilização das maquinarias em sua execução, geralmente para efeitos de iluminação.

Essa invenção com o nome de “la nature à coup d’oeil” foi patenteada em 17 de junho de 1787 pelo irlandês Robert Barker, que a descreveu como um processo de representação de paisagens com uma “perspectiva correta, uma tela completamente circular”(GRAU, 2007: 85). Entre suas finalidades estava o entretenimento da população, transformando a visita a em um espetáculo semelhante ao do prestidigitador.13

Ao observarmos a constituição do edifício do Panorama detectamos dois pontos importantes; em primeiro o lugar de um lugar específico para o espectador que se colocava no centro, “sobre uma espécie de mirante”, 15 dali, poderia ampliar a ilusão de realidade, podia se sentir como se estivesse observando a paisagem exposta ao ar livre. 16 Em segundo lugar a presença de um lugar específico para a colocação de objetos que confluem na tangência entre o espaço do espectador e a tela exposta. Esses objetos aumentam a confusão entre realidade e virtualidade, potencializam o aspecto ilusório dos panoramas e de seu ambiente imersivo, são chamados de false terrain ou faux terrain na Inglaterra e na França respectivamente. Podemos aquilatar seu impacto sobre o espectador no depoimento abaixo, escrito num jornal carioca por Arthur Azevedo:

A nosso ver o panorama pode ser compreendido como um espaço ambiental, que apresenta a mobilidade como uma de suas características. Nesse sentido, pode ser deslocado, por não estar fixado a um lugar específico. Podem ser montados e desmontados de acordo com a conveniência do artista ou do público. Dessa maneira, nos reportamos a uma produção artística que não tem um caráter tão móvel como a pintura de cavalete, que apresenta uma intervenção pontual no ambiente, nem tão fixo como a arquitetura, que o determina; não nos referimos também aos afrescos nem a pintura mural, que ilusoriamente configuram um ambiente, ampliando-o ou implementando uma realidade artificial. Por esta característica os Panoramas apresentam similaridade com produções da contemporaneidade como as Instalações e Videoinstalações que como estas últimas também apresentam a configuração de um ambiente virtual móvel. 14

Há pouco mais de dois anos, achando-se o autor destas linhas em Paris, teve ocasião de maravilhar-se diante do panorama da batalha de Chantilly, primorosamente executado por dois eminentes pintores militares: Detaille e o malogrado Neuville. Quem nunca viu um panorama, não pode fazer a menor idéia do que aquilo é. O observador que entrar no respectivo edifício, depois de atravessar um espaço escuro, preparando, desse modo o orgão visual para receber o efeito da pintura, é tão completamente iludido, que supõe achar-se realmente no mesmo ponto de vista d’onde o pintor copiou a paisagem. Os primeiros planos são engenhosamente

Essas produções também oferecem um caráter híbrido, pois agregam às imagens expostas, objetos e situações que por vezes, destinam-se a confundir o espectador imersos fisicamente nos ambientes virtualmente construídos. Deixando claro, a ambivalência desses ambientes, que se prestavam de maneira contundente a lazer e ao brincar. 505

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Simultaneamente, eles também estavam relacionados a uma padronização que preconizava a industrialização, 17 que se iniciava em escala ampliada, e a vida feérica dessa população do século XIX, assimilando paralelamente a natureza, a modernidade e a civilização.

arranjados com aspectos naturais, o espectador abaixava-se e apanha um punhado de terra; entretanto, por mais esforços que empregue, não descobre onde acaba o palpável e principia o pintado, tal é a ilusão ótica produzida por uns tanto efeitos de luz, admiravelmente combinados. No panorama da Batalha de Chantilly há (para citar alguma coisa) uma carroça natural a que se acha atrelado um jumento visto de costas. Por mais que m’o explicassem, custou-me a compreender o engenhoso processo pelo qual chegou o artista a tão maravilhoso resultado. [...] ( JORNAL DO COMERCIO, 1885: 1)

A opção por pintar Panoramas feitas por Victor Meirelles indicam que o artista estava sensível às inovações que as Artes Plásticas apresentavam, apesar de se descrédito e desvalorização artística no país. Estas pinturas foram produzidas nos últimos anos do século XIX, e eles podem nos mostrar que apesar de pertencer ao círculo acadêmico, o artista também era interessado nas novas mídias e na pesquisa da imagem e sua recepção.

Essa produção alia a ciência e a tecnologia às artes visuais e utilizam-nas para programar seu projeto ilusório e imersivo de representação, determinando uma realidade virtual vivenciada (GRAU, 2007: 30). Combina ao vocabulário imagético, uma série de artifícios de base tecnológica mecânica, que estimulam os domínios perceptivos do espectador, através de ambientes herméticos, geralmente em espaços de 360º, que coíbem as impressões externas, e apresentamse de forma totalizadora. Estes espaços imersivos promovem uma exacerbação de realismo e segundo Oliver Grau:

O pintor realizou três panoramas, todos tratavam da história do Brasil e de sua paisagem. As exposições foram visitadas por grande parte da população, que as olhavam como um lugar de entretenimento, algo que não era entendido pelos meios artísticos. Talvez esta seja uma das causas da negligencia com seu trabalho, que apodreceu em pleno Museu Nacional. Os Panoramas se incluem na linhagem de invenções e produções que anteciparam a configuração do espaço cinematográfico, com suas grandes telas, causando impacto sensorial no espectador.

podem ser classificados como variantes extremas de mídias imagéticas que, por conta de sua totalidade, oferecem uma realidade completamente alternativa. Por um lado, elas dão forma às ambições que ‘abrangem tudo’ dos fazedores de mídia e, por outro, oferecem ao observador, em particular através de sua totalidade, a opção de se fundir com a mídia da imagem, a qual afeta as impressões e a consciência sensorial. Essa é uma grande diferença em relação aos efeitos não herméticos da pintura ilusionista, como a tromp l’oeil, na qual a mídia é prontamente reconhecível, e às imagens ou aos espaços imagéticos delimitados por uma estrutura aparente ao observador, tais como o teatro ou, até certo ponto, o diorama, a a televisão em especial. [...] (GRAU, 2007: 31)

Além disso, seu lógica de expositiva de itinerância por diversos locais, de padronização de dimensões de tela, de separação e divisão das atividades pictóricas, que já apresentavam configurações que aludiam a idéia de industrialização, seriação e de veículo da comunicação de massas. Nesse sentido, a opção de Victor Meirelles por esta forma de produção artística é inquietante porque no mínimo contribui para relativizar a idéia que o artista se atinha em sua obra apenas a temáticas históricas ou paisagísticas já consagrada. Não obstante ser um pintor comprometido com a tradição acadêmica, esse fato não obstaculizou sua inserção nas novas mídias que se apresentavam, com todos os riscos que essa escolha lhe trazia naquele momento, financeira e fisicamente.

Pelas razões já expostas de conjunção entre arte e técnica não é por acaso que os panoramas e seus similares estavam relacionados às grandes exposições internacionais. Essas “invenções” estavam perfeitamente sintonizadas com esse novo mundo que se avizinhava. De certa maneira, eles eram uma apresentação do progresso, do engenho das novas tecnologias aplicadas a artefatos cada vez mais complexos.

Victor Meirelles, mostra uma abertura conceitual que apresenta conexões com meios de arte mais modernos da Europa, que investiam num novo paradigma imagético, que os panoramas já apresentavam, como a imagem fotográfica e a questão mecânica envolvida em sua execução. O interesse pelo meio novo que os panoramas 506

Victor Meirelles e os panoramas

representavam afiançam o olhar moderno de Victor em relação a pintura.

após camadas de pintura para cria quase um baixo-relevo. Eu repito, que de qualquer modo, o todo apresenta uma agradável impressão. (OETTERMANN, 1997,173)

Victor realizou três panoramas: O Panorama do Rio de Janeiro, que pintou em conjunto com o pintor H. Langerock; A Entrada da Esquadra legal no Porto do Rio de Janeiro e finalmente Descobrimento do Brasil.

Quanto da exibição no Rio de Janeiro, assim como na França e na Bélgica, Meirelles acompanhou essa realização de um panorama explicativo no qual apresentava as dimensões e a sua relação com a tecnologia escrevendo no folheto; como um artefato de “forma cilíndrica- giratória, medindo de diâmetro 36,66 m., de comprimento 115 m., de altura 14,5 m ou sejam 1667 m2” (PEIXOTO,1982: 108) além disso nomeava todos os acidentes geográficos e assinalando também a posição do espectador.

Para construção do Panorama o artista criou uma companhia, a Cia. Grande Panorama Nacional que pretende operar com um panorama na cidade do Rio de Janeiro e de Niterói, o anuncio da aludida companhia foi publicado no dia 2 de outubro de 1884. No anúncio os futuros associados são instados a comprarem ações da empresa e elenca entre as razões para essa aquisição motivações patrióticas, infelizmente não teve êxito ficando endividado quando do fechamento da mesma.

O Panorama foi motivo de grande assistência de acordo com a notícia publicada no Jornal O Paiz, em 11 de janeiro de 1891, assinada pelo articulista J.R. pseudônimo de João Ribeiro

Embora tenha pensado na produção desse Panorama do Rio de Janeiro por um longo tempo, sua efetiva produção vai acontecer apenas a partir de 1886, quando viaja para a Bélgica, juntamente com H. Langerock para sua efetiva realização, a qual se estende por dois anos.

O Panorama é a great attraction do público fluminense. Lá fui, era a primeira vez que via um panorama. Gostei enormemente, imensamente. Belo e admirável como a própria natureza. Creio que consumi duas horas de alegre contemplação. Abro agora um novo período. Elogiei até os museus (sem metáfora) para ter o direito de criticar. Não falo do colorido, nem da sombra que mergulha uma parte da cidade e que muitos acham extremamente cinzenta. Mas eu notei que as opiniões exageradas a propósito reduzem-se a duas. Primeira a parte marítima, as montanhas, os últimos planos são magníficos, segunda a cidade, o largo do Roccio, o teatro, alguns momentos são mesquinhos. (O PAIZ, 1891: 1)

O Panorama é inaugurado em Bruxelas na presença do rei e da rainha da Bélgica com a presença de todo o corpo diplomático. Chega a ser visitado por cinqüenta mil pessoas ficando em exposição por seis meses. No ano seguinte é exposto na Exposição Universal de 1889, não conseguindo local para expô-lo nos pavilhões oficiais, instala o panorama na Avenida Suffren. Em 14 de março ele é inaugurado. O Panorama de V. Meirelles foi agraciado com medalha de bronze na grande Exposição parisiense, a qual se encontra no Museu Nacional de Belas Artes.

Na perspectiva das questões relacionadas a percepção do espectador em relação as sensações são assinaladas no artigo que apresentado na Gazeta de Notícias publicado em 5 de janeiro de 1891, no qual os aspectos ilusionísticos da produção de Meirelles são destacados

Transcrevemos abaixo uma crítica feita por Germain Bapst apresentada no livro de S. Oettermann O Panorama do Rio de janeiro é ... pleno do encanto da tarde. O observador é colocado na montanha entre a cidade e as montanhas que a cercam como um anfiteatro, por traz da cidade descortina-se o porte e o mar; As vistas distantes são bem apresentadas e os matizes verdes das montanhas fazer um belo contraste com o azul do oceano. A cidade e seus edifícios, ruas e monumentos estão bem apresentados para o olhar do contemplador. Este panorama usa algumas tecnicas decorativas de Ciceri, certos efeitos são obtidos adicionado camadas

Dedicamos ontem, cerca de uma hora à contemplação do Panorama da baía e cidade do Rio de Janeiro, pintados pelos artistas Victor Meirelles e Langerock e exposto no antigo largo do Paço. Na pintura, o panorama constitui como que um gênero especial e separado. A cenografia entra por muito nele, mas o gênero é mais complexo, mais difícil, porque o pontar de vista gira com o espectador e porque não há meio de recorrer 507

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

na arte, estava apostando numa nova forma de visualidade, que só viria a se concretizar no século vinte.

aos efeitos de luz das gambiarras, que são, nas cenografias, as poderosas e decisivas efeitos(?) do claro. A arte, no que respeita a composição e equipamento, por pouco entra também num gênero que, acima de tudo, demanda verdade minuciosa, ligeiramente modificada pela convenção, imprescindível num gênero que tem por base a ilusão ótica do espectador. No panorama de que agora nos ocupamos, o visitante, assim que chega ao terraço de observação, que tem apenas cinco metros de elevação, tem a sensação da vertigem que nos acomete na altura de cinqüenta metros. A grande tela circular, que apresenta os últimos planos a grande distância, funde-se embaixo sem que lhe perceba solução de continuidade, nos primeiros planos reais, sólidos, verdadeiros, cobertos de palmeiras verdejantes, de arbustos vivos, de grama verde e viçosa cortada por veredas e picadas, que despertam a vontade de descer e observar o que é realmente verdadeiro e o que é artisticamente fingido. O espectador deve destinar os dois ou três primeiros minutos, para preparar os olhos e o espírito para a impressão por assim dizer nova (?) que vai sentir. [...] A gente pisca insensivelmente os olhos, limpa involuntariamente a testa com o lenço e sente satisfação, quando julga ficar ao abrigo do sol, virando-se, vira-se para os lados da Tijuca, já envoltos nas projeções frias e azuladas das montanhas. Julgamos sentir as lufadas refrigerantes, que nos mandam os morros e colinas de Santa Tereza e Paula Matos. Aí, pouco distante de nós está um naturalista, de óculos e cabelos brancos, como todo naturalista que se preza examinando preciosidades mineralógicas, que parece ter apanhado no Morro de Santo Antonio, onde nunca apanhamos senão furiosas calças(?) e estopadas, quando lá subimos, [...] O trabalho dos Srs. Victor Meirelles e Langerock realiza absolutamente o seu desideratum. Com os segundos e últimos planos pintados, com os primeiros em relevo e ornados por árvores, plantas e pedras verdadeiras com os passarinhos voando e chilreando por entre as folhas, os dois artistas apresentam um espetáculo muito para ver-se e pelo qual lhes cabem os maiores elogios. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1891: 1)

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Apenas nesses comentários observamos que o artista ao escolher esse meio artístico, estava vislumbrando uma nova vertente que se constituiria 508

Victor Meirelles e os panoramas

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qual a arte não nasce da natureza, mas da própria arte, e não somente implica um pensamento da arte, mas é um pensar por imagens não menos legítimo que o pensamento por puros conceitos.” 7 Ver G. C. Argan, Op.cit., cap. 1 e 2. 8 De certa maneira o jardim representa uma metáfora da natureza dominada, porque nele há sempre uma interferência humana, nas espécies cultivadas, no desenho, na sua projeção que deixa bem claro que é um projeto humano conduzido pela experiência humana e não pelo divino. Por outro lado existe uma tradição medieval que relaciona paraíso a jardim: “Paraíso significa em persa ‘recinto amuralhado’ e é muito possível que esse valor especial que cobria os jardins no final da Id. Média seja herança das cruzadas...” 9 Argan, G. C. Op. cit., p. 18. 10 Os panoramas aos quais nos referimos aqui, são aqueles definidos na visão de Petrarca, paisagens vistas do alto e num ângulo de 180º. 11 A voga dos cosmoramas. Boletim Belas Artes. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Belas Artes, 1945. nº 1. p. 5. 12 De acordo com Margarida Neves, já existiam dois cosmoramas no centro do Rio de Janeiro pelos anos de 1837, estes eram colocados por Martins Penna numa peça como exemplos de encantamentos. Ver Margarida Neves. Panoramas. Visão do Rio de Janeiro na Coleção Geyer. Curadoria Lourdes P. Horta. Petrópolis/Rio de / Janeiro: CCBB, 2000, p. 28. 13 O Panorama faz parte de uma lista de eventos do período, como a câmara escura e a fantasmagoria que tinham a função de entreter o publico a partir da disponibilização de imagens. Ver livro de Laurent Mannoni, no qual o autor faz um estudo dos avanços de captura e fixação da imagem até o advento do cinema. 14 A origem etimológica do termo virtual., tem seu ponto de partida na Idade Média, na palavra latina virtualis – uma derivação de um outro termo virtus, que significa força, potência. Desse modo o virtual remete a idéia de vir a ser, de devir. Ver Pierre Levy. O que é Virtual? São Paulo, Ed. 34, 1996. 15 A voga dos cosmoramas. Boletim Belas Artes. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Belas Artes, 1945. nº 1. p. 5. 16 De acordo com Margarida Neves, já existiam dois cosmoramas no centro do Rio de Janeiro pelos anos de 1837, estes eram colocados por Martins Penna numa peça como exemplos de encantamentos. Ver Margarida Neves. Op. cit., p. 28. 17 Em seu relato, Margarida Neves alude ao fato de se construir telas padronizadas com as seguintes dimensões: 15 metros de altura e 220 metros de largura.

Periódicos A Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, 1889 -1891 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1885 O Paiz, Rio de Janeiro, 1884 e 1891. Notas 1

Mestre em Artes Visuais – EBA –UFRJ, Professora de Artes Visuais Ensino Fundamental e Médio Colégio Pedro II; do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da UNIGRANRIO, Doutoranda em História e Crítica da Arte/ EBA-UFRJ. 2 Estas afirmações encontram-se no texto da Reforma Pedreira, 14-05-1855, título IV, art. 10. 3 Os prêmios foram concedidos anualmente a partir de 1845 sem interrupções até o ano de 1852, após essa data só foram concedidos a partir de 1860 sem uma periodização mais regular. Ver Tabela dos Pensionistas da Academia Imperial de Belas Artes, apresentada por Ana Maria T. Cavalcanti in 185 anos da Escola de Belas Artes, p. 72. 4 O termo moderno utilizado aqui se refere à classificação histórica que define os momentos que sucedem o renascimento como era moderna. 5 Clark, K. Op. cit., p. 38. Podemos antever nas questões da arte renascentista uma relação muito aproximada com aquelas suscitadas durante os séculos XVIII e XIX entre o pitoresco e o sublime. 6 Para G. C. Argan não existe uma oposição, mas sim uma complementaridade entre o romantismo e o neoclássico, o autor considera ambos como facetas diferentes de um mesmo movimento de revivescência histórica em curso e que supera as divisões anteriores entre clássico e romântico. Por conta disso vai identificar intercâmbios formais entre os dois movimentos. No texto de Arte moderna, p. 12, escreve: “Pode-se, pois, afirmar que o Neoclassicismo histórico é apenas uma fase do processo de formação da concepção romântica: aquela segundo a

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A presente comunicação aborda a produção de pintura de marinha no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX e tem como intuito compreender o desenvolvimento do gênero no país e seus diálogos com a arte internacional. A pesquisa realizada no mestrado sobre o pintor Giovanni Castagneto (1851-1900) permitiu elencar duas vertentes de paisagística marinha na produção artística brasileira: a pintura histórica, que tem na batalha naval, sua representação mais imponente, e a pintura de temática cotidiana, que apresenta no ambiente dos pescadores, uma renovação do gênero. Ambas proporcionam exemplos de apropriação da tradição européia reinventada no país, em um período que abrange desde obras produzidas por ocasião da Guerra do Paraguai até as inovações artísticas ocorridas com o surgimento da pintura ao ar livre e de novas linguagens formais, que não as mesmas propostas pelas vanguardas, mas originais em suas experimentações. A pintura de marinha tem uma longa tradição que remete, principalmente, à Holanda do século XVII2, devido a existência de artistas que se especializaram no gênero, e também à Itália e Flandres3. Notamos nesta produção que a distinção de uma pintura como marinha é dada pela presença do barco. De maneira geral, são encomendas de eventos históricos, como, por exemplo, as batalhas navais ou os “retratos” de grandiosas embarcações, cujo o intuito é celebrar o orgulho das frotas mercante e de guerra. Muito comum na produção holandesa, como podemos detectar em Slive (1998:213), mas não somente nesta, as batalhas navais, portos, naufrágios e cenas de estuário são assinalados por David Cordingly (1986:424) como os motivos mais populares do gênero. George Keyes (1990:04) menciona, basicamente os mesmos motivos, presentes na marinha holandesa, só que divididos em três grupos. São eles: (a) bíblicos, mitológicos e de temáticas morais; (b) eventos históricos; e (c) ‘retratos’ de navios. Essa divisão demonstra, novamente, o barco como personagem central das pinturas de marinhas, em importantes momentos narrativos. No entanto, no decorrer do século XVII, outros motivos como os barcos anônimos e a tensão atmosférica entre o mar e o céu são incorporados ao gênero (SLIVE, 1998:216), trazendo o ambiente corriqueiro como parte integrante da paisagem marinha. Cordingly (1986:424) apresenta o cenário cotidiano, durante o século XIX, quando cenas da beira-mar, barcos de pesca, iates e vistas do mar aberto são retratados por pintores do período.

por sobre as águas: um estudo sobre a pintura de marinha no brasil1 helder oliveira

No texto de Alexei Bueno (2004: 31-63), o autor destaca o mar como um importante tema que dominou principalmente a produção artística do Rio 510

Um estudo sobre a pintura de marinha no Brasil1

de Janeiro durante o século XIX, porém notamos nos exemplos imagéticos de Bueno, a inexistência de obras sem a presença do barco. Neste sentido, há uma similaridade com o ponto de vista de Slive, já que para este autor, – que provavelmente pressupõe o mar na pintura de marinha – a presença do barco é algo que define o gênero. A definição de marinha em Gonzaga Duque (1997:55) é compreendida através dos exemplos citados pelo autor, pois este considera marinhistas apenas os artistas que se dedicavam, especialmente, a representação de barcos e do mar4.

pintura brasileira do século XVIII com a tradição européia do gênero de marinha, que desde o século XVII desperta o interesse em inúmeros pintores. Outra grande contribuição para se avaliar a história do gênero é a presença dos artistas viajantes7 e dos pintores vinculados à implantação da AIBA, no início do século XIX, quando estes realizaram uma intensa produção de imagens das costas litorâneas do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro: as pinturas de vistas. Geralmente associada à construção de uma iconografia da paisagem nacional, a pintura de vista é uma das principais referências imagéticas sobre o país, como podemos notar nas obras dos viajantes Thomas Ender (1793-1875) e Charles Landseer (17991979), e em alguns exemplos realizados por artistas vinculados a AIBA, como Praia de Botafogo (1816) de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830); Vista da cidade do Rio de Janeiro tomada da ilha das Cobras (c.1835), de Félix-Émile Taunay (1795-1881); e A baía do Rio de Janeiro vista da ilha de Villegaignon (1840), de August Muller (1815-c. 1890). Isto sugere claramente a proximidade das relações artísticoculturais travadas entre os artistas viajantes e os artistas fundadores da AIBA e que, de certo modo, influenciará toda uma produção realizada a posteriori. A atuação de Félix-Émile Taunay merece um destaque ainda maior, por ter ele sido, provavelmente, o primeiro artista responsável por um importante exemplo de motivo utilizado para a representação das marinhas históricas: o porto. A obra Paisagem Histórica de um Desembarque no Largo do Paço (1829) permite uma aproximação com a série Portos da França realizada pelo pintor Claude-Joseph Vernet (1714-1789), na qual Vernet faz um retrato fiel da paisagem urbana e dos costumes contemporâneos. Taunay, assim como Vernet, descreve uma cena portuária contemporânea, na qual o desembarque de um grupo de nobres apresenta-se a um público curioso sobre o espetáculo.

Percebemos que desde o cenário holandês dos seiscentos coexistem essas duas vertentes de marinhas, as quais denominamos: (a) marinha histórica e (b) marinha cotidiana. A primeira abrange a representação dos barcos para demonstrar a superioridade naval militar ou comercial de uma nação e em cenas que envolvem a força do mar sobre o homem. E a segunda retrata pequenas atividades de trabalho ou atividades prosaicas, como a pesca, o transporte de cargas e o lazer na praia. De qualquer maneira, o barco permanece como elemento identificador do gênero, associado, tanto ao cenário histórico quanto cotidiano. Apenas a partir de meados do século XIX, o mar passa a ser empregado como elemento exclusivo em uma pintura de marinha. Deste modo, o barco como personagem central, passa a dividir a atenção com o próprio mar, pois este se torna um motivo para a expressão subjetiva do artista. A partir dos autores abordados, observamos que a definição do gênero ocorre a partir da relação entre o mar, o barco e o homem. Inicialmente, esse mesmo entendimento será adotado em nossa pesquisa sobre a produção paisagística marinha. Esta abordagem é importante para fazer um levantamento dos motivos a ela associados presentes na produção brasileira, e na qual destacamos, o diálogo entre o barco, o homem e os grandes rios – característica hidrográfica do país –, que permitiu a apropriação da tradição de representação de batalhas navais em obras de Victor Meirelles5.

O foco principal, em nossa pesquisa, são os objetos artísticos, isto porque privilegiaremos os estudos das imagens para entendermos as transformações artísticas na história do gênero. Para tanto, iniciamos o trabalho ordenando os exemplos mais significativos, em três grandes conjuntos:

No Brasil, uma das primeiras contribuições para uma visão mais precisa da constituição do gênero de marinha é o conjunto de quatro pinturas em formato oval 6, atribuídos ao Leandro Joaquim (1738?-1798?) e realizado no final do século XVIII. Vista da Igreja e Praia da Glória, Visita de uma Esquadra Inglesa na Baía de Guanabara, Procissão marítima e Pesca da Baleia na Baía de Guanabara, demonstram a grande riqueza de motivos retratados pelo artista e revela um diálogo da

- Encomendas oficiais que objetivavam a glorificação da nação. - Representações líricas cujo motivo é o cotidiano à beira-mar. - Experimentações artísticas realizadas nas primeiras décadas do século XX. 511

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O primeiro grupo inclui as batalhas navais Passagem de Humaitá (1868-71) e Combate Naval de Riachuelo (1882-83) de Victor Meirelles e as representações de Eduardo De Martino (18381912) sobre a Guerra do Paraguai, pois consolidaram a promoção das artes pelo Estado (MIGLIACCIO, 2000) a partir do final da década de 1860, em especial por realizarem grandes exemplos de pintura histórica do país. Estas obras suscitam uma investigação sobre as representações artísticas vinculadas ao gosto oficial, pois se tratam de pinturas feitas dentro de um programa que visava a construção de uma iconografia histórica que relatava os principais – e mais emblemáticos – momentos da história do Brasil no período do Segundo Império. Encomendadas, em 1866, por Affonso Celso de Assis Figueiredo, então Ministro da Marinha, as obras Passagem de Humaitá (1868-71) e Combate Naval do Riachuelo (1883) de Victor Meirelles correspondem a embates da Guerra do Paraguai que visavam dignificar a atuação naval do Brasil. A primeira obra retrata um cenário bélico “cheio de manchas negras e clarões vermelhos”, como bem observa Gonzaga Duque (1995:174), embora, digase de passagem, de maneira negativa, pois deixa entrever a sua opinião em relação a um tema histórico sem personagens, na qual o cenário bélico de navios envolvidos pelos vermelhos e negros, não satisfaz, do ponto de vista artístico, a representação de um evento histórico. Essa posição do crítico faz com ele não perceba, neste quadro, o lirismo da cena noturna de batalha, desprezando o teor moderno da pintura. Por outro lado Combate Naval do Riachuelo (1883) dignifica o papel da Marinha 8 por trás da vitória nacional contra as forças paraguaias, pois, o momento escolhido é justamente aquele no qual o Almirante Barroso aparece no passadiço do navio Amazonas, após a vitória da marinha brasileira. Nesta obra, percebemos a representação da imponência dos navios brasileiros, já que o vapor Amazonas é retratado à frente dos demais, passando ao lado de um grupo de paraguaios, a bordo de uma embarcação a pique. Estes quadros tornaram-se imponentes construções imagéticas sobre a memória visual à respeito deste embate bélico e se encaixam perfeitamente na tradição de pintura histórica de marinha, “bebendo” na fonte européia para criar e definir seus modelos9. As marinhas de Victor Meirelles representam, em grandes dimensões, eventos históricos contemporâneos, vivenciados pelo artista e que visavam criar um importante conjunto de imagens da guerra (MIGLIACCIO, 2000:109). E, assim, dar continuidade à divulgação de uma imagem coletiva

de nação, iniciada com as pinturas históricas de Jean-Baptiste Debret (1768-1848)10. Eduardo De Martino (1838-1912) também pintou importantes registros da atuação da Marinha brasileira na Guerra do Paraguai, assim como, representações detalhadas de grandes barcos como Barco no mar em Salvador (1873) e chegadas de membros da família real ao Brasil, por exemplo, a tela Chegada da Fragata Constituição ao Rio de Janeiro em 1843 (1872), na qual narra o desembarque da Imperatriz Teresa Cristina no Brasil. No contexto da tradição de pintura de marinha vinculada aos “retratos” de grandes embarcações, podemos ainda citar Carlos Balliester (1870-1927) que mantém essa tradição em pleno século XX, por exemplo, Navio encouraçado Barroso (1916) e Marinha com regata a velas e rebocador (1919). O segundo conjunto de obras – as representações líricas do cotidiano à beira-mar – demonstra a originalidade de pintores como Castagneto, que constrói uma tradução lírica do ambiente dos pescadores. O foco de suas obras são os barcos que, indiretamente, acusam a existência humana, mais precisamente do pescador, que em algum momento pode aparecer, pegar seu barco e entrar no mar. O barco se torna, de fato, a possibilidade de expressão dos sentimentos do pintor. É o que acontece, por exemplo, em Marinha com barco (1895), na qual notamos a tentativa de compor uma obra que concentrasse toda a atenção na relação que o barco, e só ele, pode expressar através de um lirismo que intui a presença física desse ambiente praiano. A representação de praias e do ambiente dos pescadores pode ser vista, já a partir dos anos 1860-70, em obras como Ilha da Boa Viagem com o Rio de Janeiro ao fundo (s/d), de Henry-Nicolas Vinet (1817-1876), uma cena de praia, na qual os pescadores possuem uma importância tão grande quanto os camponeses da paisagem clássica de Claude Lorrain (1600-1682), da qual a obra de Vinet é devedora. Ou na obra Vista da enseada de Botafogo (1868), na qual observamos uma abordagem direta da realidade visual tropical (MIGLIACCIO, 2000:128), resultado da prática da pintura en plein air, que será difundida, no início dos anos 1880 na AIBA por Grimm. O contato direto com o motivo é significativo para analisar a renovação ocorrida na concepção da paisagística brasileira (Eulálio, 1984, Migliaccio, 2000), inclusive de marinhas, já que, primeiramente, os artistas tomavam como referência os padrões consolidados da tradição européia. 512

Um estudo sobre a pintura de marinha no Brasil1

A estética que Grimm “trazia da Europa [como] um esquema cultural, um modo particular de ver o mundo, um saber enfim” (SOUZA, 1980:229) possibilita criar um cenário de pintores que se conectam com Castagneto e demais integrantes do grupo Grimm, tendo a pintura en plein air como referência para as transformações técnicas e temáticas na pintura de marinha. Esse círculo de pintores é formado por artistas que apresentam, tanto obras vinculadas a representação iconográfica da paisagem local quanto buscam algo de lírico em seus quadros. Podemos citar, Nicolao Facchinetti (1824-1900), pintor de origem italiana radicado no Brasil a partir de 1849 e que retratou várias vistas da orla do Rio de Janeiro, por exemplo, Enseada do Botafogo (1869), na qual associa a vida urbana e o mar da cidade de maneira bastante minuciosa. Merecem destaque também, Jerônimo José Telles Júnior (1851-1914) e Rosalvo Ribeiro (1865-1915) e suas representações de praias. A cena do que parece ser o passeio de algumas pessoas na praia de Telles Júnior em Praia nordestina (c.1895) evidencia a renovação do tema e uma combinação de manchas de cor obtidas através de espessas camadas de tinta, que bem pode dialogar com a produção de artistas posteriores como Garcia Bento e Navarro da Costa. A obra Praia (s/d) de Ribeiro retrata uma cena que privilegia a praia como elemento central e tanto pode se relacionar com a obra de Teles Júnior, em sua similaridade de composição e tons quanto com Marinha com barco (1895) de Castagneto, pela utilização de largas pinceladas que criam manchas de cores e por ser de pequenas dimensões. O mesmo ocorre com os artistas Presciliano Silva (1883-1965) que retratam cenas litorâneas da Bahia, Raimundo Cela (1890-1954) que representou em suas obras a vida dos pescadores do Ceará e Aurélio Figueiredo (1854-1916) que realizou algumas cenas da paisagem nordestina, entre elas uma cena de praia no Ceará.

de Calixto, especialmente nas obras aqui selecionadas, uma preocupação com o realismo e detalhismo da cena, com a criação de uma imagem que seja tão fidedigna quanto possível do mundo empírico, talvez por influência da fotografia, com a qual tomou contato e que possibilitava a reconstituição do local, naquele momento, como em um álbum de viajantes. Além de Calixto, há em São Paulo uma série de pintores paisagistas que realizaram também pinturas de marinha: Antonio Ferrigno (1863-1942), Clodomiro Amazonas (1883-1953), Dario Villares Barbosa (1880-1952), José Marques Campão (1892-1949), Túlio Mugnaini (1895-1975), Paulo Vergueiro Lopes de Leão (1889-1964), entre outros. A maioria retratou trechos conhecidos de praias paulistas, mas necessitam de estudos mais precisos para uma melhor avaliação da sua produção artística no contexto do gênero. Por fim, o último grupo destaca as experimentações artísticas realizadas nas primeiras décadas do século XX, a partir de um conjunto de obras de Mário Navarro da Costa (1883-1931), pintor que consolida a representação de temas cotidianos aliados às novas práticas de pintura que dialogam com movimentos artísticos europeus surgidos no final do século XIX, como o impressionismo, o pósimpressionismo. Suas experimentações pictóricas de cor através do uso de espátula podem ser vistas em obras denominadas Marinha realizadas em 1911, 1912 e 1920. Além de Navarro da Costa é importante citarmos, para a melhor compreensão desse conjunto, a produção de Antonio Garcia Bento (1897-1929), que também realizou experimentações com a espátula em Saveiros (1925) e Porto de Valença (1927) e, a obra Paisagem com Canoa na Margem (1922) de Alfred Emil Andersen (1860-1935), que possibilita visualizar um intenso lirismo na cena ocupada pelo barco, traduzida por suas cores e composição simples. A atuação desses artistas nas primeiras três décadas do século XX é de extrema importância, devido ao fato de trazerem novas propostas formais para produção do gênero de marinha.

Em São Paulo, as representações litorâneas com características iconográficas estão presentes na produção de Benedito Calixto (1853-1927), célebre pintor de marinhas que retratou em suas obras a paisagem do litoral de Santos e São Vicente. Em Entrada do Porto de Santos (Forte) (s/d), vemos um típico exemplo de representação vinculada ao ambiente cotidiano pesqueiro, com seus barcos na beira da praia. O artista também retratou muitas cenas de portos – motivo caro à pintura histórica de marinha –, essencialmente de Santos, como podemos constatar no quadro Rampa do Porto do Bispo em Santos (c.1900), na qual é possível notar a detalhada descrição de uma cena portuária associada a vista urbana. Observamos na produção

Considerações Finais A pintura de marinha ocupa um grande espaço na produção artística brasileira. Um olhar atento a essa produção – a partir da pesquisa realizada no mestrado – nos fez perceber que muitos artistas se dedicaram, em algum momento de suas carreiras, a representação de inúmeros motivos relacionados aos barcos e/ou ao mar, praia e rio. Diante dessa realidade, esta pesquisa inicial 513

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

dedica-se a um estudo sobre o gênero de marinha, já que a produção de paisagens marinhas apresenta questões que se encontram num tecido histórico internacional (COLI, 1999:124). Ou seja, não estão desvinculadas dos debates artísticos que ocorrem fora do país, permitindo analisar através do gênero, as inovações formais presentes no conjunto da história da pintura brasileira.

Campinas: dissertação de mestrado (História da Arte) – IFCH, Unicamp, 2007. SLIVE, Seymour. A Marinha In Pintura Holandesa 1600-1800. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. SOUZA, Gilda de Mello. Pintura brasileira contemporânea: os precursores In Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980. TOLEDANO, John Lionel. Marinhas em Grandes Coleções Paulistas. Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha/ Sociarte, 2000 [catálogo de exposição].

Referências bibliográficas BUENO, Alexei. O onipresente mar. O Brasil do século XIX na Coleção Fadel. Rio de Janeiro: Edições Fadel, 2004. COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX?. MARTINS, Carlos, CARVALHO, Anna Maria F. M. de, BANDEIRA, Júlio, KURY, Loreai, DÓRIA, Renato Palumbo, PICCOLI, Valéria, SIQUEIRA, Vera Beatriz (curadores). O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro: Paço Imperial/MinC, 1999 [catálogo de exposição]. CORDINGLY, David. TURNER, Jane (ed.). The dictionary of Art. London: Grove, 1996 (volume 20). EULÁLIO, Alexandre. O século XIX. FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Tradição e Ruptura: síntese de arte e cultura brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1984 [catálogo de exposição]. GONZAGA DUQUE. A arte brasileira. São Paulo: Mercado de Letras, 1995. ________. Graves e Frívolos (por assuntos de arte). Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. KEYES, George S. Mirror of Empire: Dutch Marine Art of the Seventeenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, The Minneapolis Institute of Arts, 1990 [catálogo de exposição]. LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: ArtLivre, 1988. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura: os gêneros pictóricos. São Paulo: Editora 34, 2006 [coleção A Pintura, vol. 10]. MARQUES FILHO, Luiz César. Catálogo MASP – Museu de Arte de São Paulo ‘Assis Chateaubriand’. São Paulo: MASP, 2001 [catálogo de museu]. ________; MIGLIACCIO, Luciano. 30 mestres da pintura no Brasil. São Paulo: MASP, 2001 [catálogo de exposição]. MIGLIACCIO, Luciano (curador). Arte do Século XIX. AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000 [catálogo de exposição]. OLIVEIRA, Helder. Olhar o Mar: Um estudo sobre as obras ‘Marinha com Barco’(1895) e Paisagem com rio e barco ao seco em São Paulo “Ponte Grande” (1895) de Giovanni Castagneto.

Notas 1

Comunicação baseada em pesquisa de doutorado iniciada em 2008. Doutorando em História da Arte pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. 2 Os primeiros exemplos de pintura de marinha são, na verdade, realizados no final do século XVI, na Itália e Países Baixos. Manoeuvre (2003:01) considera o surgimento do gênero nesses locais, no século XVII. 3 Segundo Slive (1998:214), o holandês Hendrick Cornelisz Vroom (1566-1640) foi o primeiro pintor a especializar-se no gênero, por isso é considerado o fundador da pintura de marinha européia. Antes dele, devemos citar as obras Carracas Portuguesas (1520; National Maritime Museum, Londres), pintada, provavelmente, por Cornelis Anthonisz; Vista de Nápoles (Galeria Doria-Pamphili, Roma) de Pieter Bruegel o Velho e Tempestade no mar (Kunsthistorisches Museum, Viena), atualmente atribuída a Josse de Momper II, como precursoras da grande era da pintura de marinha que estava centrada nos holandeses no século XVII (Cordingly In: Turner, 1986: 423-426). 4 Os pintores marinhistas citados por Gonzaga Duque são: Eduardo De Martino (1838-1912), Gustave James (?-1884), Émile Rouède (18501912) e Giovanni Castagneto. 5 Ver p. 05. 6 As obras atribuídas a Leandro Joaquim têm como hipótese terem sido pintadas para fazerem parte de um dos pavilhões do Passeio Público do Rio de Janeiro (Migliaccio, 2000). 7 De maneira geral, são artistas viajantes aqueles que realizaram diversas representações dos aspectos naturais (paisagem) e dos hábitos e costumes (culturais, sociais), cujo fim, na maioria das vezes, era o registro documental dos mesmos. Estes participaram de expedições científicas ou produziram álbuns iconográficos cuja intenção era o de serem ‘lembranças’ ou ‘guias’ de viagem. Mais sobre o assunto: Belluzzo (1994), Ades (1997), Martins (2000) e Galard, Lago (2000).

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Um estudo sobre a pintura de marinha no Brasil1 8

Neste projeto, quando referenciamos as Forças Armadas da Marinha, esta aparecerá sempre grafada com ‘M’ maiúsculo, enquanto ao referenciarmos a pintura de paisagem que trata da representação do mar e dos rios, a grafia será com a letra ‘m’ minúscula. 9 Pintores como Willen van de Velde, o jovem (16331701), Samuel Scott (c.1702-1772) e Théodore Gudin (1802-1879) são exemplos de artistas que

retrataram em suas obras diversas vitórias navais de seus encomendantes, promovendo, por meio das batalhas, a glória bélica da marinha de seus países. 10 A pintura histórica do Brasil se inicia com a vinda da missão francesa e a instalação de um formato acadêmico de arte aliada ao poder político, isto é, ao imperador. Mais sobre o assunto: Dias (2000).

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Sabemos que o olhar dos viajantes que percorreram o Novo Mundo estava marcado pelo sentido do exótico e do singular e que a produção iconográfica entre os séculos XVI e XIX dividiu-se entre o relato fantasioso, o registro científico e a representação do que identificamos como hábitos e costumes, além dos inúmeros registros da paisagem brasileira. Grosso modo, a produção iconográfica associada às experiências de viagem pode ser dividida em dois conjuntos: um deles reuniria imagens cujo destino seria o de ilustrar, exemplificar e acompanhar textos também originados da experiência do deslocamento; o outro, por sua vez, agruparia as imagens que manteriam sua autonomia em relação a registros não visuais. O que definiria a destinação de cada um dos trabalhos seria, justamente, a intenção de quem os produzia ou demandava, conforme a finalidade que se desejava imprimir às representações elaboradas por desenhistas, artistas amadores e profissionais, bem como por indivíduos sem formação artística. No longo trajeto de sua fortuna crítica, esse grande conjunto a que se denomina iconografia de viagem, viu construirse ao redor de si, de uma maneira indiscriminada e generalista, o atributo do registro documental. Reconhecer seu papel documental, capaz de traduzir, aos olhos de quem não esteve diante da realidade “reapresentada”, o essencial do que ali se havia instituído em termos naturais e humanos, remete para um aspecto da arte desde os seus primórdios e que diz respeito à sua capacidade mimética. Remete, de resto, à capacidade atribuída a toda imagem, de ser a “presença de uma ausência” (BELTING, 2004: 13). É justamente desta capacidade e das possibilidades que dela derivam que a iconografia de viajantes retira seu poder de instituir-se enquanto discurso que autoriza a História1.

iconografia de viagem à luz da história da arte valéria alves esteves lima *

Não apenas para os contemporâneos das imagens, mas para grande parte dos que as utilizariam em suas reflexões e trabalhos, tais exemplares parecem ter sido prioritariamente utilizados para confirmar teses e opiniões, bem como construir conhecimento a partir da similaridade proposta entre realidade observada e representada. Na perspectiva deste trabalho, tal poder não nasce da reprodução precisa e exaustiva dos motivos que “representariam” uma realidade ausente, mas da eficácia do processo de construção das imagens, levado a cabo pelos chamados “artistas-viajantes”. Já tem sido por demais discutida a condição da produção imagética nos países de tradição colonial, onde se identificam práticas e usos da imagem diretamente associados à história de dominação destes territórios. 2 Assim, a fim de mapear os territórios e estabelecer estratégias de exploração 516

Iconografia de viagem à luz da história da arte

e controle, as metrópoles passaram a realizar ou a permitir viagens em que os registros visuais foram adquirindo cada vez maior importância, sobretudo a partir de meados do século XVIII, diante da urgência de fixar, transportar e utilizar os saberes recolhidos. A partir do século XIX, com o avanço da impressão litográfica e a mudanças operadas no campo da produção visual, relacionadas tanto à imagem, quanto aos meios (suportes e veículos) e à sua recepção, a iconografia produzida pelos viajantes que, sempre em maior número, deixavam a Europa e alcançavam diferentes partes do planeta, assume um papel fundamental para a expansão do conhecimento e para a consolidação de políticas voltadas ao “desenvolvimento” dos territórios visitados. No caso do Brasil, mais especificamente, sabemos das profundas alterações vividas pela colônia, após a transferência da Corte portuguesa, em 1808. 3 A curiosidade despertada pelas informações que anteriormente chegavam à Europa a respeito das terras brasileiras, ainda mais instigada pelo longo período de fechamento do território à entrada e permanência de estrangeiros, tornou o cenário muito favorável e convidativo, após as medidas tomadas pela Corte em sua nova sede. Não é estranho, portanto, que se tenha verificado, já desde as primeiras décadas do século, uma extensiva produção de imagens que configuram um dos maiores conjuntos iconográficos produzidos por viajantes. O que chama a atenção, não obstante, é que estas imagens tenham sido, em geral, classificadas como um conjunto à parte da produção artística brasileira, como se pouco ou nada tivessem a nos dizer a respeito da evolução da sensibilidade artística no país. Seja porque muitos de seus autores não tivessem, efetivamente, uma formação artística, seja porque estas imagens fossem produzidas fora do ambiente propriamente artístico ou acadêmico 4 , seja porque demonstrassem pouca qualidade estética (segundo critérios questionáveis, muitas vezes), nota-se certo desconforto ou certa inadaptação quando se pensa em considerar esta iconografia como parte efetiva da história da arte brasileira.

imagens produzidas por viajantes, vale retomar as reflexões de Jacques Aumont, que destaca a dificuldade de encontrar o artístico nas imagens que “veiculam uma referência direta, de tipo documentário, ao mundo visual” (AUMONT, 1993:260). Os elementos formais e estéticos subordinam-se à ótica documental, sob a qual se têm estudado e valorizado a produção iconográfica dos “artistas-viajantes”, transformando-as em referências fundamentais para a investigação dos mais variados aspectos da história brasileira: tipos, costumes, paisagens, eventos políticos, práticas culturais e religiosas, formação urbana, entre outros. O que se busca, nesse trabalho, é escapar um pouco desse cenário e colaborar para um debate que apenas se inicia6, buscando rever o papel desta iconografia a partir de seus exemplares particulares e pensando-a na perspectiva da história da arte. Como indica Marta Penhos, as ferramentas da história da arte permitem ao estudioso das imagens produzidas por viajantes “estudiar los mecanismos formales, compositivos e iconográficos, los préstamos y apropiaciones de soluciones eficaces, la elaboración de modelos.” (PENHOS, 2005: 20) Em particular, as análises que aqui estão desenvolvidas, refletem uma preocupação com a capacidade destas imagens no sentido de despertarem emoções e percepções a partir das escolhas estéticas e formais de seus autores. Enquanto conjunto ou individualmente, essas imagens produzem sentidos para um território que passou por profundas alterações ao longo de todo o século XIX, momento em que, assim como vários países europeus e seus vizinhos americanos, o Brasil busca definir sua identidade nacional, num complexo movimento que viria complementar o processo de delimitação de suas fronteiras territoriais e de redefinição de sua condição política. Os sentidos acima referidos não derivam, portanto, apenas do tema tratado ou das motivações para sua elaboração. Vários desses artistas estavam envolvidos em projetos muito mais complexos do que a simples exploração naturalista, daí ser inevitável encontrar nessas imagens intenções que ultrapassam claramente a preocupação documental. A investigação que ora se apresenta, ainda que de forma bastante embrionária, entende que o sentido das imagens, nomeadamente aquelas produzidas em experiências de contato de estrangeiros em contextos que não lhe eram familiares, está intimamente associado ao efeito produzido pelas diferentes escolhas estéticas que orientaram a sua elaboração. Preocupo-me com os mecanismos através dos quais um desenho, uma aquarela, uma litografia ou uma pintura a óleo

Como já sugerido, um provável motivo para que a história da arte tenha negado à iconografia dos viajantes um olhar mais atento parece residir na dificuldade em reconhecer seu estatuto artístico. A discussão sobre o caráter artístico ou não de determinadas imagens vincula-se a questões muito polêmicas e complexas que derivam, essencialmente, de uma única e constante preocupação: o contínuo esforço para definir o que seja Arte e, no contexto artístico brasileiro, o que seja uma arte nacional.5 No caso específico das 517

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

podem ter sugerido ao espectador uma determinada compreensão a respeito do universo que lhe era oferecido visualmente. Obviamente, esse poder não reside apenas na imagem, se a considerarmos simplesmente como o tema ou o motivo representado. Em seu Bild-Anthropologie: Entwürfe für eine Bildwissenschaft7, Hans Belting aponta claramente para a intrínseca relação entre imagem (de natureza mental), meio (imagem visível – a fabricação) e corpo (que observa e dá sentido à imagem – a recepção), justificando, assim, a perspectiva antropológica adotada em sua análise. O argumento é simples: ce sont les hommes qui ont fabriqué et qui continuent encore de fabriquer des images (BELTING, 2004: 8). Belting afirma que as imagens só existem porque existem meios que as veiculam e corpos/olhares que as admiram. O que condiciona sua existência é, portanto, externo a ela. Para ele, se temos dificuldade em compreender tal argumento é porque nos distanciamos das imagens, ou melhor, isolamos as imagens como entidades simbólicas, afastadas das condições históricas e materiais de sua existência. Estas reflexões parecem adequadas para pensar a iconografia dos chamados “artistas-viajantes”, uma vez que seus trabalhos materializam imagens mentais (impregnadas de sentidos simbólicos), associadas com elementos da realidade local, gerando interpretações/sentidos (também imagens, se assim as quisermos nomear) relacionadas ao contexto e à história local. Considerando que os meios da materialização (papel, tela, água, lápis, tinta a óleo, matriz litográfica, etc.) impõem às imagens mentais condicionantes que são intrínsecos à sua (dos meios) natureza, e que o espectador vai, por sua vez, reelaborar a imagem no campo próprio dos elementos que definem sua condição de observador, podemos concluir que as obras produzidas pelos “artistas-viajantes” devem, necessariamente, receber o olhar antropológico proposto por Belting. É um determinado observador, com uma precisa bagagem e repertório, com expectativas particulares, quem vai admirar e dar sentido à imagem produzida, orientado pelas características específicas do meio que a veicula. Obviamente, a orquestrar todo esse movimento, está novamente o homem (o artista), com suas intenções mais ou menos declaradas, em maior ou menor grau eficazes, no sentido de conduzir a leitura do observador ou dirigir sua percepção. Nas palavras de Wollheim, “as maneiras de pintar coincidem com os tipos de intenção” (WOLLHEIM, 2002: 18) e são estas escolhas que nos permitem chegar mais perto da compreensão do(s) sentido(s) das imagens.

Tomemos como exemplo duas obras do artista austríaco Thomas Ender: “Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro” (pena e sépia sobre papel; 27,2 x 43,3 cm; 1817-18) e “Rio de Janeiro com portos e cercanias” (ol/t; 126,5 x 189 cm; c. 1836-37), figuras 1 e 2, respectivamente. O primeiro desenho serviu de esboço para a segunda obra, uma tela em óleo feita em seu ateliê em Viena, como vários outros trabalhos elaborados pelo artista, a partir dos desenhos e aquarelas realizados durante sua curta estada no Brasil, entre julho de 1817 e junho de 1818. Ender estudou na Academia de Belas Artes de Viena e recebeu um importante prêmio de paisagismo que lhe valeu a recomendação para viajar ao Brasil na comitiva da Arquiduquesa Leopoldina, como pintor oficial. Foi, sobretudo, aquarelista e desenhista, talentos que muito facilitaram o exercício de suas funções no Brasil. Seus trabalhos demonstram um gosto pelas paisagens vazias, por amplas tomadas do espaço urbano e recortes pitorescos da paisagem natural. Em geral, seus cenários indicam uma percepção linear do espaço e dos motivos selecionados, destacando o contorno dos objetos e assegurando uma nitidez que permite facilmente atribuir a estas imagens a função documental de grande parte da iconografia produzida pelos artistas que, como ele, integravam uma missão de reconhecimento e registro da “realidade” brasileira. Esta ênfase na linha estimula a apreensão do real concreto, como se pudéssemos tocá-lo. No entanto, o traço delicado de Ender, sugere uma leitura mais profunda de seus trabalhos. Permite-nos, por exemplo, perceber uma poética dos espaços vazios, vazios sobretudo da presença humana, do isolamento dos homens quando inseridos no espaço urbano construído e do isolamento dos homens entre si. Não parece haver narrativa em suas imagens, mas uma composição que orquestra motivos submetidos, justamente, a essa poética dos espaços vazios. É assim que esta “Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro” deixa de ser apenas um registro objetivo da realidade observada e estabelece possibilidades para uma percepção sensível da paisagem e do espaço carioca. A precisa definição da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, tomada lateralmente, acima da colina que lhe dá o perfeito destaque barroco, funciona como uma passagem entre a rica natureza, ainda que desordenada, do primeiro plano, e a paisagem construída ao fundo, onde se podem identificar os grandes elementos da civilização que já se fazia presente no território que adquiria um indissolúvel laço com a Corte austríaca. O grande aqueduto, torres de igrejas e edifícios 518

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importantes da cidade destacam-se no contorno da baía e no alto de suas colinas. A uniformidade cromática reúne, num mesmo conjunto, a paisagem natural do primeiro plano e a igreja, concedendo ao observador o privilégio de um duplo ponto de visão: situando-se no espaço livre do primeiro plano, admira a igreja, um ponto particular da paisagem, como se estivesse no interior de uma veduta; posicionando-se na beira do adro da igreja, tem diante de si um amplo panorama da cidade e seu entorno, numa relação marcada pela distância. O mesmo partido, portanto, de grande parte de suas obras brasileiras: Ender parece não se identificar com estas paisagens e suas gentes, mantendo-se distante e reservado. Não se trata do olhar à distância adotado por vários outros artistas em nome de uma fidelidade ou abrangência documental, mas de um distanciamento de ordem sentimental. “O olhar do vedutista é um olhar próximo, em busca de particularidades, visão que especifica seu objeto, variando a intimidade desfrutada em função do grau de aproximação do observador com o objeto, de seu interesse na singularidade do observado.” (SALGUEIRO, 1998: 86) A falta de intimidade que parece transparecer das aquarelas e desenhos de Ender, pelo distanciamento em que mantém o observador, certamente traduz a reservada aproximação que este possuía com seu objeto, para usar os termos da autora acima citada. Não obstante, seu talento artístico e uma poética altamente sensível à captação do valor intrínseco das paisagens, fossem elas naturais ou urbanas, abrem caminho para a apreensão de sentidos outros em suas imagens.

adquire sentidos próprios, deslocados daquela experiência. Tomando o desenho em sépia como um modelo para esta tela, Ender aumenta a importância do primeiro plano, preenchendo o espaço com figuras e plantas, construindo um equilíbrio diferente para a composição e estabelecendo uma narrativa que não estava presente na primeira imagem. Seguindo uma importante convenção da pintura de paisagem, Ender demarca os limites laterais de sua composição com duas altas árvores, preenchendo o espaço abaixo delas com outros exemplares vegetais, recantos construídos e personagens – homens e animais. A tela divide-se em quatro partes iguais, passando a linha vertical, de baixo para cima, pelos escravos sentados, pelo pé do outeiro onde está a igreja e, no alto, pelo pássaro que revoa no céu azul. A linha horizontal parte da pequena construção entre as árvores à esquerda, encontra a igreja no alto da colina, atravessa a baía para recortar as altas árvores do canto direito. A igreja, vista do mesmo ângulo, está mais distante, e alguns recantos da paisagem no primeiro plano dão à imagem um tom decididamente pitoresco. Parece que, aí, a intenção foi mesmo criar uma narrativa que faz o cotidiano normal dos escravos (que conversam, deslocam-se, descansam, em poses que dialogam com a tradição clássica) ser interrompido pela chegada de um jovem a cavalo, que surge subindo pela colina e provavelmente já anunciado pelo cão que vem à sua frente. O instante escolhido, porém, não nos permite dizer da surpresa ou incômodo dos escravos, pois parecem não ter ainda percebido a presença do cavaleiro. De toda forma, tendo sido a parte urbana e construída deixada para o terceiro plano, onde mal se podem identificar os traços da presença humana civilizada, ao contrário do que vemos no desenho, o artista parece privilegiar a tranqüila convivência dos escravos nesta paisagem pitoresca, que acolhe igualmente o visitante que chega a cavalo. Essa prática era recorrente entre os pintores de paisagem, que utilizavam o primeiro plano como um palco para suas intenções narrativas.

Anos mais tarde, quando já estava de volta em Viena, Ender elaborou a segunda imagem aqui apresentada: uma tela a óleo, cuja composição apresenta o “Rio de Janeiro, com portos e cercanias”. Vemos, neste trabalho, Ender realizar uma prática típica dos “artistas-viajantes”: dar significação às paisagens reais, introduzindo nelas elementos que aproximassem o público de suas obras, através da criação de uma narrativa que dava à imagem um sentido que ultrapassava o da simples documentação dos tipos e paisagens locais. A imagem em questão, no entanto, foi executada anos depois de sua volta à Áustria, dentro de contextos pessoais e profissionais muito distintos. Ainda assim, constitui um exemplar da vastíssima iconografia do viajante Ender. Faz-se necessário, parece-nos, buscar uma chave interpretativa que evite conceitos como os de “artista-viajante”, ou mesmo, de “iconografia de viajantes”, pois é evidente que, em 1836-37, momento da realização da tela, Ender já deixara há muito sua experiência de viajante e esta imagem

Após o exemplo particular de algumas imagens de Thomas Ender, abordarei, a seguir, uma questão que afeta diretamente a forma como as imagens dos artistas atuantes no Brasil dentro do contexto aqui privilegiado criam significados para a realidade que inspira seus trabalhos. Trata-se da discussão sobre o linear e o pictórico, entendidos como modos de ver que definem formas de representar e estimulam condições particulares de percepção das imagens. Em texto clássico sobre este tema, “O 519

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

linear e o pictórico” (WÖLFFLIN, 1984), o autor atribui à representação linear a capacidade de traduzir as coisas como elas são, enquanto que a representação pictórica traduz o que parecem ser. Segundo ele, da visão linear à visão pictórica, estaríamos aptos a perceber o mundo de uma forma respectivamente tátil e visual. Ao perceber como operam tais mecanismos na produção e recepção da iconografia de viajantes é possível indicar novos caminhos para a compreensão dessas imagens. Determinados pontos e vistas de localidades brasileiras, principalmente da cidade do Rio de Janeiro, foram repetidas vezes tomados como fontes de inspiração para os artistas que estiveram no Brasil a partir do início do século XIX. A Cascata da Tijuca, o Largo do Palácio, a Igreja de Nossa Senhora da Glória, o Largo do Rocio, entre outros, foram objetos de olhares que, informados pela experiência prévia que os marcou, acolheram as impressões causadas pela experimentação do local e do cenário brasileiro. A fim de operar metodologicamente com essa questão, foram selecionados exemplares da produção de artistas-viajantes que denunciam essas recorrências temáticas, manifestando igualmente sua diversidade poética.8

executou durante sua permanência no Brasil. Como seus outros desenhos, esta imagem recupera uma visão concisa, esquemática e pouco provocativa da cascata. Em seu estudo, Wölfflin afirma que o modo de ver linear constrói uma realidade abstrata, onde predominam elementos que sugerem a universalidade de conceitos como linha e superfície uniforme. Tal universalidade estava, como sabemos, entre os pressupostos da arte de JeanBaptiste Debret, herdeiro do neoclassicismo davidiano e aplicador de seus princípios no contexto brasileiro. 10 O registro rápido e sintético que caracteriza muitas de suas aquarelas no Brasil traduz um modo de ver linear, através do qual muitas vezes buscou inventariar temas da realidade observada. O traço fino recorta os elementos da paisagem na figura 4, “Cascata Grande da Tijuca” (c. 1816-1820; aquarela; 8,8 x 16,8 cm), permitindo uma visão perfeita da cachoeira e seu entorno mais imediato. Em outros momentos, a mesma catarata tornou-se objeto de um olhar pictórico, por parte do mesmo artista, como na imagem aqui reproduzida. A clara definição da paisagem dá lugar às massas de cor e contrastes entre claro e escuro, estimulando uma experiência mais subjetiva e particular da natureza.

Tal diversidade faz-se perceber tanto entre exemplares da paisagem natural – como nos exemplos selecionados, cujo tema era a Cascata da Tijuca - quanto nas imagens que privilegiam a paisagem construída, aqui exemplificadas pelas versões do Largo do Palácio. Considerando que a arte linear resulta de uma visão condicionada plasticamente9, que tende a apresentar a realidade com mais objetividade, vendo e interpretando o mundo por linhas que definem plenamente a nitidez de cada elemento da composição, é quase uma conseqüência imediata pensar na relação entre essa forma de ver e as imagens elaboradas na perspectiva do registro científico e/ou por artistas cujo estilo individual é marcado pelo olhar que tende a enxergar a realidade como um todo construído a partir da união de várias partes que, ainda que constitutivas de uma unidade, mantém sua independência em relação ao conjunto da representação. Estas características da arte linear estão presentes, por exemplo, no modo de ver do tenente inglês Henry Chamberlain, cuja estada no Brasil deu origem à publicação de Vistas e Costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820, na cidade de Londres, em 1822. Suas cenas estimulam o sentido tátil, preservando a autonomia de cada um dos elementos da imagem e indicando um maior sentido descritivo. Tal é a impressão provocada por esta “Cascata da Tijuca” (água-tinta colorida; 1822), uma das imagens que

O modo de ver pictórico estimula o visual e a apreensão do real nasce, então, da percepção da imagem como uma massa de reduzida nitidez. As partes da composição deixam de ser independentes e a ênfase é atribuída a um motivo principal, em torno do qual se estabelece uma unidade absoluta, sem a autonomia das partes. Ainda dentro do quadro das conclusões do teórico suíço, o modo de ver pictórico indica um maior sentido decorativo da imagem e exclui, com recursos plásticos, a analogia direta das imagens com o real. Isso não significa que a referência não seja mais a realidade observada pelo artista, mas o resultado de seu trabalho não se subordina ao olhar que tudo classifica e define no interior de contornos muito marcados. Da experiência com o real, o artista que enxerga o mundo dentro da categoria do pictórico demonstra interesse pela superfície do objeto, estimulando o desejo de saber que tipo de sensação os corpos (volumes) transmitem. É dessa forma que podemos, por exemplo, compreender o que caracteriza a versão de M. A. Porto-Alegre11 para a “Grande Cascata da Tijuca” (1833; ol/t; 65 x 81,2 cm), bem como o registro do “Paço da Cidade”, de Karl von Theremin. Nesta litografia de 1818, o edifício recebe uma luz quase dramática, contrastando com o dinamismo das nuvens e o forte tom azulado das águas da 520

Iconografia de viagem à luz da história da arte

baía. Os volumes assim representados são capazes de despertar, no receptor, uma experiência mais sensível daquela paisagem. Nas imagens seguintes, o edifício e o largo do Paço recebem uma leitura mais descritiva. Mais uma vez, podemos dizer que as gravuras de Chamberlain e Debret traduzem uma poética que valoriza o desenho, a linha definidora dos motivos da composição, criando uma sensação tátil, como diria Wölfflin. A clareza e objetividade destes registros são resultados das intenções de seus autores, impossíveis de serem desenvolvidas no âmbito desse trabalho, ainda que seja importante ressaltar que estas intenções adquirem materialidade a partir do exercício de seus talentos, portanto, de suas opções estéticas e formais. Há, nestas imagens, a força de uma narrativa produzida pelas preocupações dos artistas; contudo, sua expressão não apela para o sentimento, mas para a razão, que deve dar sentido às leituras que colaborem com as expectativas daqueles que, como Debret, estavam empenhados no avanço da civilização no Brasil.

AUMONT, Jacques. A Imagem. 9ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1993. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 3 vols, São Paulo/Salvador: Metalivros/ Fundação Emilio Odebrecht, 1994. BELTING, Hans. Pour une Anthropologie des Images. Paris: Éditions Gallimard, 2004. BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. Bauru/SP: EDUSC, 2004. COLI, Jorge. O que é Arte. 10ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HAAR, Michel. A obra de arte. Ensaio sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000. HASKELL, Francis. History and its Images. New Haven: Yale UP, 1993. LIMA, Valéria. J.-B. Debret, historiador e pintor: a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (18161839).Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. Arte do Século XIX. Catálogo da Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000. PENHOS, Marta. Ver, conocer, dominar. Imágenes de Sudamérica a fines del siglo XVIII. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. SALGUEIRO, Valéria. Paisagens de Sonho e Verdade: RJ, BA e cidade do México nos álbuns ilustrados de oito artistas viajantes. Rio de Janeiro: Fraiha, 1998. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da História da Arte. O problema da evolução dos estilos na arte mais recente. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1984. WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

Naturalmente devem ser feitas distinções, na produção de um mesmo artista, entre sua produção em aquarela ou a óleo, por exemplo. Da mesma forma, podemos perceber a adoção de categorias distintas ao comparar os desenhos de campo dos naturalistas e as gravuras que deles se originam. As variáveis são muitas e os itinerários a seguir a partir da proposta aqui esboçada parecem ser numerosos. Como conclusão a esse pequeno texto, com questões absolutamente preliminares a respeito do tema, vale retomar o historiador da arte austríaco, E. H. Gombrich, e relembrar que não existe um olho inocente (apud WÖLLHEIM: 2002, 16). Voltando ao universo dos artistas-viajantes que experimentaram a realidade brasileira no século XIX, esse olhar esteve certamente dividido entre o peso incontestável do pensamento e dos avanços científicos da época e o desejo íntimo de fazer uma arte pitoresca, onde o mundo a ser representado não era o mundo ‘como tal’, mas sim ‘como deveria ser’. A experiência da viagem altera a relação entre observador e observado, levando-nos a questionar qual o significado, para o artista estrangeiro, daquilo que ele via e experimentava. Da resposta a essa questão nasce a possibilidade de entender as opções adotadas pelos artistas em suas composições, pois, como afirma Ana Maria Belluzzo, “na relação cotidiana entre o homem e a paisagem, as significações são pressupostos inerentes à ação” (BELLUZO: 1994/v. III, 11).

Notas * Mestre em História da Arte e da Cultura e Doutora em História Social da Cultura pela UNICAMP. Professora do Curso de História da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. 1 Para o debate sobre imagem e história, ver os trabalhos fundamentais de BURKE, 2004 e HASKELL, 1993. 2 Ver, por exemplo, PENHOS, 2005 e GRUZINSKI, 2006. 3 Importante análise do desenvolvimento das artes no Brasil, ao longo de todo o século XIX, encontra-se em MIGLIACCIO, 2000. 4 Desde 1816, com a chegada dos artistas franceses e, mais especificamente, após a criação da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1826, configurou-se na corte um espaço qualificado para o exercício das belas artes. 5 Para essa discussão, COLI, 1989, WOLLHEIM,2002 e HAAR, 2000. 6 Importantes reflexões a este respeito têm sido apresentadas, em eventos acadêmicos, pela Profª Drª Claudia Valladão de Mattos (IA-UNICAMP).

Referências bibliográficas

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Publicado em 2001, pela Wilhelm Fink Verlag, de Munique, foi traduzido para o francês em 2004. 8 Para respeitar as dimensões deste texto, as imagens selecionadas serão comentadas enquanto conjunto, não sendo possível desenvolver análises particulares de cada uma delas. 9 A referência para as caracterizações de linear e pictórico nesse texto é a obra já citada de WÖLFFLIN, 1984. 10 Sobre Debret, ver LIMA, 2007.

Ainda que se trate de um artista brasileiro, não identificado como “artista-viajante”, sua formação e atuação está intimamente associada ao contexto de p r o d u ç ã o d e s t e s a r t i s ta s n o B r a s i l e p e r m i t e a reflexão a respeito da execução e recepção da arte no período.

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capitulo 13 dosssier pedro weingärtner

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O que é de lamentar profundamente é que o rico material de desenhos, pequenos estudos a óleo e aquarela que deixou, feitos no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, em Roma, em Antícoli, em Nápoles, em Pompéia, em Herculano e Portugal, esteja atualmente tão disperso, que se tornará quase impossível reuni-lo de novo. (GUIDO,1956,p.76) Este estudo, que encontra-se em fase inicial, tem como um de seus objetivos contrariar as palavras pessimistas do importante crítico e artista Angelo Guido, tentando reunir novamente o maior número possível de desenhos de nosso grande artista Pedro Weingärtner. Para tanto a obra de Weingärtner esta sendo objeto de uma pesquisa mais aprofundada: foram organizadas exposições e estamos procedendo a um levantamento de suas pinturas. A sua produção de gravuras já mereceu um estudo, com catalogação e mostra de tudo que se conhece, em 2006 no Museu de Arte do RGS, em Porto Alegre. Mas o segmento menos estudado e mostrado, por enquanto, são seus desenhos. Talvez as explicações estejam na tradição de somente se valorizar a pintura, ao desconhecimento deste segmento da produção do artista ou ao fato desta obra estar extremamente dispersa e não documentada, como nos lembra o professor Guido. É esta situação que pretendemos, dentro do possível, corrigir através desta pesquisa, e sobre algumas questões já levantadas me deterei neste momento.

os desenhos de pedro weingärtner alfredo nicolaiewsky

1

Adotaremos como ponto de partida uma certa liberdade conceitual, e denominaremos de desenho toda sua produção sobre papel, com exceção das gravuras. Ou seja, incluiremos na categoria de desenho, não só os trabalhos feitos a grafite, conte, carvão e nanquim, mas também aqueles à aquarela e à pastel. A maior parte desta produção gráfica não foi feita com o objetivo de ser exposta, e é esta sua principal característica: a de serem desenhos feitos para aprimoramento da técnica, para registros ou como projetos, que hoje os tornam tão interessantes para serem estudados. Através deste levantamento poderemos entender um pouco melhor seu método de trabalho e visualizar o seu desenho como parte desse processo. Sobre os primeiros desenhos feitos, quando de sua chegada à Alemanha, na Real Academia de Berlin em 1880, e considerando o material produzido a partir daquele momento que fazemos nossa pesquisa, sobre o qual escreve Angelo Guido que

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Correndo o risco de cometermos equívocos, decidimos organiza-los pelo que entendemos terem sido suas intenções, e não por técnicas, temas ou datas, ou seja, um grande grupo de exercícios e outro, bem menor, de obras finalizadas. O conjunto de exercícios comporta também uma subdivisão em academias, os estudos e as anotações.

guarda-se um pequeno caderno de desenho onde talvez se encontrem as primeiras anotações de detalhes da figura e de objetos que ele fez na escola. São desenhos sem a maior importância do ponto de vista artístico, mas significativos como documentos da orientação para o traço claro, firme e sutil para a qual já se encaminhavam os estudos acadêmicos do nosso artista. Esses primeiros desenhos mostram que o aluno de (Theodor) Poeckh e de (Ernest) Hildebrand já tinha apreciável maestria de traço, bom golpe de vista e linha incisiva e limpa. Dois retratos a lápis, datados respectivamente de 1879 e 1880, demonstram que firmeza Weingärtner já tinha alcançado no desenho da figura. Além de estudos de objetos e detalhes de figuras, caprichosamente feitos, nos diz dos progressos realizados por Weingärtner um interessante desenho a lápis que ele fez da casa onde nasceu seu pai, na localidade de Pfaffenroth, em Baden. Era uma casa de madeira de um único piso, com escada externa de material, cercada de arvores, de aspecto pitoresco. Este trabalho talvez seja a mais antiga paisagem que de Weingärtner se conservou. Já se vê com que cuidado, carinho mesmo, o talentoso filho de Inácio Weingärtner desenhou com traço limpo e firme, a casa onde seu pai nasceu e talvez morou até vir para o Brasil. (GUIDO,1956: 21 e 22)

Mesmo imaginando a possibilidade de cometermos alguns enganos, pois pode ocorrer que um determinado trabalho que classificarmos como uma obra acabada, posteriormente, possamos descobrir que ela é um estudo para uma pintura, faremos desta maneira. Mas estas retificações somente virão à tona através das pesquisas e de levantamentos mais exaustivos. Um último aspecto que deve ser citado é que diversos destes trabalhos não puderam ser examinados pessoalmente, ou seja, somente tivemos o acesso a eles através de reproduções, muitas vezes sem informações sobre medidas, técnicas, etc. o que também pode provocar algum equivoco. Vejamos então algumas características destes desenhos, começando pelos exercícios, que são em maior número: 1. Academias Segundo Étienne Souriau (1999, p. 566) entre outros sentidos o termo

Voltando então ao material encontrado até o presente momento, já percebemos que:

academia designa um quadro ou um desenho representando um nu, executado para adquirir, desenvolver ou manifestar um bom conhecimento plástico e anatômico do corpo humano, e o interesse se coloca sobre a maneira como são obtidas as formas dos corpos mais do que sobre as aparências ou as qualidades de expressão. Por extensão, e um pouco pejorativamente, academia designa também um nu, em uma composição pictórica, que mais parece um trabalho de escola ou um pedaço de exibição técnica, do que uma obra inspirada.

- Existe um número relativamente reduzido de desenhos localizados (45, apesar de termos conhecimento de pelo menos outros 15, aos quais ainda não tivemos acesso); - Há falta de depoimentos escritos do artista sobre seu trabalho, pois a maior parte de sua correspondência foi queimada pela viúva, segundo nos informa Angelo Guido “porque estas cartas ‘continham referências a coisas íntimas e de familia’. Salvaram-se alguns postais, que não deixaram de servir para o nosso trabalho de pesquisa.” (GUIDO, 1956:154);

Já localizamos dez academias, algumas delas magníficos desenhos, que demonstram seu domínio no desenho da figura humana. Dentre estas podemos enumerar algumas características que nos chamam a atenção:

- E considerando, por último a inexistência de um levantamento exaustivo de sua obra pictórica, tornase difícil saber com exatidão as intenções e objetivos dos desenhos de Weingärtner. Alguns são indiscutíveis tais como as academias, os desenhos anatômicos ou os retratos. Mas sobre a maior parte somente podemos tecer suposições: se são simples registros ou projetos para alguma pintura ou, ainda, exercícios de observação.

- Weingärtner utiliza diversos materiais nestes trabalhos, como conte, carvão, grafite e bico-de-

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Os desenhos de Pedro Weingärtner

pena (técnica esta que não é usual em academias por ser mais demorada);

Temos mais um desenho com uma cabeça de velho a bico-de-pena, que parece ter sido feita a partir de uma escultura, pela rigidez dos traços. Na mesma folha, temos dois pequenos desenhos à grafite feitos com traços rápidos: a cabeça de um homem (ao que tudo indica um auto-retrato) parcialmente atrás de um elemento, que entendemos ser uma tela em um bastidor e uma outra cabeça masculina de costas.

- algumas destas academias são extremamente elaboradas, inclusive com a utilização de elementos gráficos de fundo, como forma de valorizar a luz e sombra nos modelos; - outras, apesar do requinte da elaboração de partes do desenho, estão inacabadas;

E por último temos uma série de pequenos trabalhos à grafite, provavelmente retratos. Se estes são estudos para trabalhos posteriores, exercícios ou mesmo obras finalizadas, por enquanto, não temos como saber. Boa parte deles chama a atenção pelo grau de detalhamento e requinte do desenho das cabeças e pela incompletude do restante das figuras, apenas esboçadas. E também pelo fato de algumas serem assinadas e datadas, o que indicaria um trabalho finalizado. Quem sabe não são retratos de conhecidos, aos quais presenteava?

- em uma delas, com fatura bastante simplificada, vê-se que ele não estava satisfeito com o resultado do desenho dos pés, pois os refez ao lado, uma prática bastante comum, até hoje, nas aulas de modelo vivo; - em mais de um exemplo, a bico de pena ou a grafite, vemos uma série de traços, próximos da borda do papel, como testes, para ver como está a linha (se muito grossa ou com excesso de tinta), prática também bastante comum, até hoje, nos ateliês.

3. Anotações

- em uma, vale a pena chamar a atenção como um registro da maneira como ocorriam as sessões de desenho no final do séc. XIX, vê-se um gancho pendurado, no qual o modelo se segura, para poder ficar mais tempo imóvel, com o braço levantado. Esta prática se perdeu, e estes ganchos não existem mais, na maior parte dos ateliês ou academias.

Para definir as características deste terceiro conjunto de desenhos que tem também características bastante variadas, valho-me da definição de croquis, que é um Desenho rápido, representando por meios muito simplificados um objeto qualquer que mereça a atenção do desenhista [...] feitos em condições que obriguem a uma extrema rapidez de execução. Por exemplo, se tratar de um personagem em movimento, ou de um animal, de um edifício percebido em uma viagem ao qual não se pode ficar longamente a estudar; é por isso que os croquis são feitos seguidamente sobre pequenos cadernos. [...] Muitos dos croquis são feitos pelo artista para ser utilizado posteriormente como documentação e servir sobretudo como ajuda para a memória. (SOURIAU,1999: 531)

2. Estudos Este grupo se compõe de desenhos feitos com intenções bastante variadas. Encontramos estudos anatômicos, como as pranchas com um crânio e outra com uma estrutura óssea, ambas com uma série de anotações com a nomenclatura das diversas partes e ainda uma terceira que representa um modelo, provavelmente em gesso, da musculatura humana. Dentre os estudos também encontramos, até o momento, dois desenhos feitos a partir de estátuas como, por exemplo, a do “Escravo”, de Michelangelo, e mais outros dois, nos quais o modelo é uma mão apoiada sobre uma base, modelo este provavelmente de gesso. Nestes últimos, além da mão de gesso se vê em um, uma cabeça de um homem jovem em escorço, debaixo para cima, aparentemente feita a partir de modelo vivo. Na outra um detalhe de arquitetura, que poderia ser um detalhe de fachada, mas acredito que seja um móvel com duas luminárias de parede ao lado.

Vamos aos desenhos localizados até o presente momento: - são 5 desenhos feitos ao ar livre registrando paisagens ou construções simples. Um único tem a referência que foi feito em Roma e um outro, pelo tipo de paisagem representada, podemos supor que também foi feito na Europa. Um terceiro parece ser uma anotação feita no sul do Brasil, pelo tipo de construção apresentada; - um desenho de vegetação a nanquim;

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

- uma folha com diversas anotações à grafite, com certeza feitas no campo, mostrando um homem com gado, outros com enxadas e um cavalo e que lembram bastante as figuras de homens trabalhando em diversas de suas pinturas, principalmente as paisagens de Antícoli;

Para reforçar nossas palavras acima, quando falamos das anotações, valho-me da referência que Ângelo Guido faz dos hábitos de Weingärtner: Não compunha nunca diretamente na tela. A composição era antes demoradamente meditada; [...] A medida que no espírito o quadro se formava, as fases dessa elaboração iam sendo acompanhadas por schizzi ou esbocetos, desenhos de figuras humanas, de animais, de objetos, feitos do natural, a lápis ou bico-de-pena. Diversos de seus pequenos cadernos estão cheios de rápidos projetos de composições, de desenhos de figuras ou detalhes das mesmas, em que se vê que vai reunindo o material para quadros que está compondo na mente antes de passar a realizá-los na tela. No mesmo caderno, na mesma página, às vezes, figuram em desenhos de traços, delicados elementos que iremos encontrar neste ou naquele quadro ou, em alguns casos, em mais de um quadro. Pelo que se pode deduzir de vários cadernos que examinamos, não viajava nunca, não realizava mesmo um passeio, como os que fazia, aos domingos, em geral, em companhia do íntimo amigo Carlos Magalhães de Azeredo, então cônsul em Roma, sem levar o seu pequeno caderno em que ia anotando o que lhe interessava ou podia servir-lhe para uma composição. E os desenhos miúdos, cuidados ou rápidos, mas sempre reveladores de perícia surpreendente e da elegância conquistada pelo seu traço, iam enchendo páginas e páginas, constituindo um dos aspectos da sua obra sumamente interessante, não só pelo que nos revela do seu valor como desenhista, como observador agudo e estudioso apaixonado do conteúdo estético das coisas, mas também pelo que documenta relativamente aos seus processos de trabalho, ao cuidado e honestidade com que era a sua obra de arte elaborada. (GUIDO, 1956: 75 e 76)

- há um delicado esboço de um cachorrinho nos braços de alguém, sobre o qual talvez seja a referência que Guido faz quando escreve sobre os desenhos feitos em 1882 e 1883 em Paris ao descrever “... vários estudos de nus femininos e masculinos, cabeças do natural, alguns animais, como uma cabeça de cão finamente desenhada...” (GUIDO, 1956: 31); - uma folha, que supomos ter sido feita em um zoológico, dividida em quatro partes: há a representação de um macaco; de um tigre e temos também um homem descansando sob um guardachuva (o que nos leva a confirmar a suposição de um passeio ao zoológico), a quarta Figura parece ser a de um porco, e considerando os outros desenhos, deve ser de um porco do mato, ou algo semelhante; - neste conjunto temos um desenho que pode ter sido um estudo para a figura masculina da pintura Tempora Mutantur, pois apresenta um homem com uma enxada, como na pintura, e que tem alguma semelhança na postura, apesar de estar invertida. Reforça esta possibilidade as colocações de Guido quando comenta que Weingärtner fez uma série de estudos de paisagens e pessoas para executar a obra. “Os estudos das posições, várias vezes mudadas, das duas figuras, encontram-se em algumas paginas de um velho caderno” (GUIDO, 1956: 91). Mesmo considerando que este desenho foi feito alguns anos antes da execução da obra finalizada, entendemos ser possível que tenha sido um dos elementos de estudo preparatório; - existe também um desenho com um detalhe que a mim chama a atenção: a representação, em traços rápidos, de uma figura masculina vestida com uma espécie de túnica. O que o torna curioso é o ponto no qual foi colocada a assinatura, isto é, a folha de papel é retangular e foi usada na horizontal, e a figura encontra-se na extrema esquerda, com a assinatura na extrema direita. Isto indica que o espaço branco do papel (mais ou menos a metade direita da folha) faz parte do trabalho, provavelmente uma maneira de equilibrar o desenho. Este é um tipo de raciocínio que ocorreria normalmente em uma obra acabada, e não em uma anotação, como parece ser devido ao tratamento da figura.

Vejamos agora alguns trabalhos que supomos sejam obras finalizadas. É um conjunto, por enquanto, pequeno e com características bastante variadas: - Temos duas aquarelas, sendo que uma representa uma escada junto a uma construção. Pela descrição feita por Guido em seu livro (conforme citação acima), esta poderia ser a casa dos pais do artista, na Alemanha, que ele teria visitado e desenhado em sua primeira ida a Europa.

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Os desenhos de Pedro Weingärtner

- Uma paisagem a pastel, que talvez seja um estudo para uma pintura, da qual ouvimos falar, mas não tivemos acesso.

qualidade dos desenhos de nosso artista e o quão significativo será este levantamento amplo para compreendermos sua produção como um todo.

- Temos quatro retratos. Um aparentemente a bico de pena e grafite, provavelmente um auto-retrato, em pequeno formato. Três retratos a grafite sendo um deles do Presidente Prudente de Moraes, sendo que aos outros somente tivemos acesso por arquivos digitais de baixa qualidade.

Referências bibliográficas

Finalizamos este texto, repetindo nossa colocação inicial. Este estudo encontra-se em um estágio inicial e com certeza outras obras serão incluídas. Na continuidade da pesquisa poderemos apresentar, em um futuro próximo, um quadro mais detalhado deste importante segmento da obra de Pedro Weingärtner. Mas já é possível perceber a

Notas

GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. RS: Diretoria de Arte da Divisão de Cultura, 1956. SOURIAU, Etienne. Vocabulaire d’esthétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.

1

Artista plástico e professor. Mestre (1997) e Doutor (2003) em Artes Visuais – Poéticas Visuais, ambas pela UFRGS. Professor Adjunto no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Diretor do Instituto de Artes da UFRGS.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Este artigo resulta de um olhar dirigido para um recorte específico na extensa e diversificada obra de Pedro Weingärtner, artista nascido em Porto Alegre em 1853 e nesta mesma cidade falecido, no ano de 1929. Pintor, desenhista e gravador, Weingärtner explorou temas diversos, passando pelas cenas de costumes, pelo retrato, interessado em temas da antiguidade e da mitologia pagã em particular e especialmente pela paisagem, nela registrando aspectos da natureza, da vida e trabalho rural, pelas diversas regiões onde andou, na Europa e no Brasil. Concentramos nosso estudo no interesse de Weingärtner pela paisagem e apresentamos no texto a seguir algumas hipóteses para uma pesquisa que consideramos ainda em estágio inicial, tendo em conta o volume de dados encontrados e necessidade imperiosa de sistematizá-los ao mesmo passo em que formulamos a estrutura teórica e metodológica mais adequada à análise. Cumpre observar que, embora integremos o grupo de trabalho reunido pelo projeto de resgate da obra de Pedro Weingärtner2, nosso interesse extrapola os limites monográficos e está diretamente vinculado ao exercício da coordenação do Arquivo Geral do Instituto de Artes da UFRGS e da galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, órgãos do Instituto de Artes da UFRGS que reúnem preciosos acervos em documentos e obras fundamentais ao conhecimento da história da arte em âmbito regional. Lembrando que o atual Instituto de Artes (UFRGS) foi fundado em 1908 – neste ano completando seu centenário –, o volume de documentos históricos e de acervo artístico é considerável e demanda inúmeros estudos, ainda por realizar em sua forma sistemática. Nestes termos, a questão da paisagem foi assumida como um possível recorte neste universo diversificado, cuja análise poderá contribuir para o esclarecimento de determinadas especificidades percebidas na configuração do campo artístico local, tanto no que diz respeito aos vínculos com o que de forma genérica denominou-se como “arte acadêmica”, quanto – entre outros aspectos – ao que diz respeito ao papel desempenhado pelas artes plásticas na constituição de uma identidade cultural regional.

a paisagem em pedro weingärtner (1853-1929): algumas hipóteses de trabalho ana maria albani de carvalho1

Para sermos mais precisos, entendemos que o estudo sobre a produção gráfica, pictórica e fotográfica realizada pelos artistas gaúchos entre o final dos oitocentos e as primeiras décadas do século XX poderá ensejar uma reflexão sobre as relações entre as artes visuais e o processo de constituição de uma identidade cultural regional e nacional. No atual estágio de nossa investigação, nos concentramos em levantar e analisar a produção artística propriamente dita, considerando as questões relativas ao lugar ocupado pela arte 530

A paisagem em Pedro Weingärtner

na cultura local com atenção aos aspectos históricos envolvidos em tal processo.

determinadas cenas e paisagens serviam tanto a realização de pinturas, como para gravuras, como é o caso da já mencionada “Pousada” (1914), cujo grupo de figuras serve de tema central para uma água-forte datada de 1917 (GOMES, 2006: 29).

Tendo em vista nossos objetivos de pesquisa trabalhamos com uma definição ampliada de paisagem, englobando as representações da natureza, o espaço urbano e ainda obras em que o tema principal pode ser de outra ordem. Nossa construção da noção de paisagem colhe seus fundamentos teóricos tanto no campo das artes plásticas, quanto no da geografia, no que diz respeito ao conceito propriamente dito e as diversas formas de operá-lo3.

Observando a pintura “Pousada” (1914) vemos que a estrutura da composição destaca um grupo de figuras – os gaúchos, carreteiros – em primeiro plano, à esquerda no quadro. O olhar do espectador é conduzido para a direita, no sentido da leitura, e ao fundo da cena, através de outras figuras cuidadosamente dispostas. A paisagem ocupa a maior porção da tela, em cores e formas bem definidas e delineadas. O peso visual entre o lado esquerdo e direito do quadro é contrabalançado por um artifício, que esconde o desnível na linha do horizonte, como podemos verificar observando a quebra de continuidade na mesma a partir da carreta de bois. Como em outras obras de Weingärtner, a composição é meticulosamente estudada, os elementos (figuras, arquitetura, texturas) são facilmente reconhecíveis, pelo emprego das cores e linhas. É interessante observar a gravura de 1917 que explora o mesmo conjunto de figuras, eliminando a expansão da paisagem. Mais instigante ainda será comparar este conjunto com a fotografia de Locara, pseudônimo do fotógrafo Luiz Nascimento Ramos (Porto Alegre, 1864 – 1837), contemporâneo do artista e segundo informações, seu amigo4.

A paisagem desempenha um papel significativo na produção artística de Pedro Weingärtner, assim como na de outros artistas regionais do período representado pelo final dos oitocentos e pelas primeiras décadas do século XX. Entre estes, podemos citar Libindo Ferrás (Porto Alegre, RS, 1887 – Rio de Janeiro, RJ, 1954), professor e diretor do Instituto Livre de Belas Artes do Rio Grande do Sul – atual Instituto de Artes, desde sua fundação em 1908, até o ano de 1937 ou Francis Pelichek (Praga, República Tcheca, 1886 – Porto Alegre, RS, 1937), também professor no IA, desde 1922. O acervo da Pinacoteca Barão de Sto. Ângelo (IA – UFRGS) possui diversas obras exemplares deste tema e período, em pintura, desenho e aquarela. Encontramos em Weingärtner uma atenção especial e, nestes termos, um protagonismo, na representação da paisagem como “materialização de um instante da sociedade” (SANTOS, 1997:72), onde o gaúcho, o imigrante, o trabalhador rural aparecem como sujeitos de diferentes relações sociais. Observe-se neste caso, o exemplo dado pela pintura “Pousada”, um óleo sobre tela datado de 1914, medindo 37 por 73cm, atualmente no acervo da Pinacoteca APLUB de Arte Riograndense, a qual será objeto de comentário mais adiante neste texto.

Outras obras, como a “Vista do Prado”, datada de 1922 e pertencente a um colecionador particular, como o título indica, apresentam a paisagem de uma região específica da cidade, hoje razoavelmente modificada pelo desenvolvimento urbano. Outras, ainda, como a água-forte “Quintal”, situada em Roma e datada de 1918, nos oferecem um cenário cujo ponto de vista é mais próximo ao observador, com um pequeno açude, galinhas, plantas e outros elementos pictóricos. Estes últimos permitiam ao artista manifestar sua maestria técnica e formal através dos grafismos e texturas característicos dos mais variados detalhes de plantas e animais.

O mundo do trabalho rural também é foco de atenção em obras realizadas a partir do cenário europeu, como “Ceifa”, óleo situado em Anticoli, Itália, datado de 1903. Convém observar que Pedro Weingärtner embora estabelecido na Europa (Alemanha, França, Itália) entre os anos 1878 e 1902, realizou viagens freqüentes ao Brasil, realizando exposições (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro) e obras. Nestas incursões à terra natal realizava muitos apontamentos (manchas, croquis, desenhos), os quais davam origem a pinturas e mesmo gravuras, geralmente realizados em solo europeu, posteriormente expostos e vendidos no Brasil. Como veremos logo mais,

Em Weingärtner podemos ainda encontrar uma pintura de paisagem dentro de uma cena de interior, observando atentamente a pequena jóia da arte pictórica denominada “Bailarinas”, datada de 1896 e pertencente ao acervo da Pinacoteca Barão de Sto. Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS. Nesta obra medindo 23 x 36cm, encontramos três personagens – as referidas bailarinas – em um momento de descanso, em um cenário ricamente adornado. Na parede de fundo, como ponto central ao qual se dirige o olhar do espectador, 531

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encontramos a representação de um pequeno quadro de paisagem, que neste caso, deve medir aproximadamente três ou 4cm de largura. Com o auxílio de uma lupa é possível observar que a pintura dentro da pintura inclui um pequeno conjunto de casas, vegetação rasteira, árvores, céu e nuvens.

fosse o caso de Weingärtner – de uma obra de arte com identidade cultural regional, ainda que de alcance universal. No caso do artista gaúcho – e de outros brasileiros que exploraram o tema da paisagem, durante o período em questão – tal temática ensejava uma maior empatia com o público. Para além de um sentimento cívico ou da demonstração da maestria artística, a emoção que a obra viesse a causar no espectador parece ser um elemento significativo para estes artistas e para Weingärtner em especial.

Os comentaristas da obra de Pedro Weingärtner enfatizam o apreço do artista pelo detalhe e pela miniatura, geralmente percebidos como um artifício empregado para demonstrar seu domínio da técnica em geral e do desenho, em particular. Sabemos que o domínio do desenho era apenas um dos elementos que caracterizavam a arte acadêmica, ao lado da “intelectualização do métier (...) condição essencial do movimento acadêmico” aspecto essencial no embate travado pelas artes plásticas para ascender ao patamar das artes liberais (HEINICH, 1996: 21) desde a época do Renascimento.

Em resumo, e para os limites do presente artigo, consideramos que o apreço de Weingärtner pela paisagem em geral e pelo cenário gaúcho em particular, confere complexidade à obra do artista, exigindo que as vinculações entre sua produção e o academismo sejam investigadas com grande rigor teórico e conceitual. A trajetória profissional de Weingärtner pode ser acompanhada através de documentos esparsos e especialmente através das publicações de Ângelo Guido “Pedro Weingärtner”, editada em Porto Alegre pela Divisão de Cultura – Diretoria de Artes da Secretaria de Educação e Cultura, em 1956 e de Athos Damasceno, “Artes Plásticas no Rio Grande do Sul”, esta última mencionada na bibliografia deste artigo e datada de 1971.

A importância concedida à pintura histórica e também à temática mitológica estava associada a este processo de intelectualização, na medida em que tais temáticas exigiam do artista sólidos conhecimentos de perspectiva, da teoria das cores e suas harmonias, de composição, assim como de anatomia humana e animal, somados à representação dos elementos da paisagem natural. Tudo isto era necessariamente acompanhado pelo conhecimento sobre o tema histórico, mitológico ou religioso, o qual permitiria ao artista encontrar a representação ideal para o mesmo, além de demonstrar sua erudição. Tais temáticas demandavam estudos diversos, realizados essencialmente no recinto do atelier.

Weingärtner nasce em Porto Alegre, no ano de 1853 – poucos anos após o término da Revolução Farroupilha, em 1845 – filho de um imigrante alemão com gosto pelas artes plásticas, como nos informa Damasceno (1971: 196), irmão dos responsáveis pela Litografia Weingärtner, considerada – como no informa Damasceno – “uma das mais importantes do Rio Grande do Sul e do Brasil (id.: 356). Não detalharemos sua biografia ou trajetória nos limites deste artigo, mas interessa caracterizar sua formação artística, iniciada em 1878 no Liceu de Artes e Ofícios de Hamburgo, Alemanha. É interessante observar que outros artistas gaúchos ou aqui radicados, provavelmente por questões de origem, realizam sua formação artística na Alemanha ou na Itália e não na Academia brasileira. Retomando a cronologia de Weingärtner, ainda em 1878 desloca-se para a Nobre Escola de Belas-Artes de Baden, dirigida por Ferdinand Keller e na qual, sempre segundo Damasceno, terá Hildebrandt como mestre. Ângelo Guido e Damasceno mencionam que nesta época seus “ensaios de paisagem” já denotavam sua “característica preocupação” com o detalhe (GUIDO, apud DAMASCENO, 1971: 199).

A paisagem propriamente dita, em contraponto, exige – em princípio – um trabalho realizado ao ar livre em contato direto com um “modelo” cambiante, o que não facilita o acabamento demorado da pintura, preconizado pela academia. As regras da geometria que permitem a realização da perspectiva – adequada aos ambientes internos não são suficientes para resolver o problema da representação do espaço, no caso da paisagem. Seguindo esta linha de raciocínio, a pintura de paisagem esteve muito mais associada à perda de hegemonia da Academia em favor de uma estética de cunho mais realista ou naturalista. No caso brasileiro em particular, o enfoque realista e especialmente a paisagem funcionaram como via de afirmação para uma determinada concepção de arte brasileira. Mais precisamente – talvez este

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A paisagem em Pedro Weingärtner

Depois de passar por Berlim em 1880 – acompanhando o mestre Hildebrandt – encontraremos Weingärtner em Paris no ano de 1882. Os comentaristas são unânimes em observar que o pintor gaúcho se manteve fiel a sua concepção estética e artística tradicional, imune ao debate provocado pelo Impressionismo. Vindo de uma família humilde, até então Weingärtner lutara com dificuldades para manter-se fiel ao seu projeto de formação artística. Finalmente em 1884 a sorte lhe sorri e é agraciado com uma pensão oficial do governo brasileiro, capaz de lhe sustentar os estudos e a manutenção nas cidades da França e da Itália. Roma, Tirol, Munique e novamente Roma, onde instalará seu atelier em 1886, para ali produzir as “obras mais salientes de sua carreira”, segundo Damasceno (1971: 201). Entre 1889 e 1892 realizará diversas viagens de estudos – Nápoles, Herculano, Pompéia, Anticoli, sem esquecer de Paris – participando também de exposições. Em todos estes lugares Weingärtner tomará a paisagem como tema para o desenvolvimento de sua pintura.

não era usual, nem divulgada em outros centros, mesmo nacionais. Lembramos aqui o relato de Ângelo Guido (1893, Cremona, Itália – 1969, Pelotas, RS5) – pintor, professor no Instituto de Artes e iniciador da disciplina de história da arte nesta instituição em 1936 – datado de 1925: Quando, em setembro de 1925, chegamos a Porto Alegre, tivemos a impressão de que o Rio Grande do Sul, no setor da cultura, vivia isolado, quase que inteiramente desconhecido dos demais centros culturais do território nacional. Conhecia-se a política do Rio Grande do Sul, os seus embates revolucionários, mas os seus intelectuais e artistas, salvo algumas exceções, como Alcides Maya e Weingärtner, eram ignorados (GUIDO, 1957: 178). Por sua vez, Damasceno cita textos de época e reforça o depoimento sobre a empatia gerada por tais obras junto ao público, em contraponto a escassez de colecionadores entre seus contemporâneos. Em resumo, o público visitante contempla e admira, porém em várias ocasiões suas obras não encontram compradores junto à comunidade local. Cumpre observar que o que poderia ser denominado como um mercado de artes no sentido mais convencional, com o surgimento de galerias e marchands, só ocorrerá efetivamente em Porto Alegre durante as décadas de 1960 e 1970. Podemos traçar diversas teses e reflexões em relação à tradicional resistência das elites gaúchas – especialmente no período em questão, relativo ao final dos oitocentos e início do século XX - em consumir ou apoiar a produção artística contemporânea. Os filhos desta elite – cuja sustentação estava diretamente vinculada à posse da terra e à criação de gado – via de regra, quando dirigia seus interesses para o campo das artes, escolhiam a literatura e a poesia, repetindo a antiga relação de valores que estigmatizava o trabalho manual. Convém lembrar que os estudos nesta época e neste segmento social valorizavam o exercício da advocacia ou da medicina. Nas artes plásticas encontraremos os imigrantes ou seus filhos. Através de relatos – mais uma vez, Damasceno – lembramos que as lições de pintura e afazeres do gênero eram consideradas adequadas à formação das moças de boa família, ao lado do piano e do bordado. O desenvolvimento de tais questões, porém, exigiriam um desvio em relação aos objetivos do presente artigo.

Em 1891 será nomeado professor para a cadeira de Desenho Figurado na Escola Nacional de BelasArtes, atuando no Rio de Janeiro até o final de 1893. Durante este período realiza diversas visitas ao Rio Grande do Sul, onde nunca deixaria de expor. Mais uma vez segundo Damasceno, no ano de 1892 realizará, no Rio de Janeiro, uma exposição de obras: [...] que é salientada por seus críticos, principalmente pela circunstância de representar o primeiro conjunto de trabalhos do pintor, tratando de assuntos nossos. A coleção, em que figuram, além de telas menores, os quadros intitulados Kerb, Fios Emaranhados e Carreteiros, torna-se na realidade, particularmente significativa, porque marca, por assim dizer, o retorno do artista à querência, ao chão nativo, a cujos apelos se rende e de cujas vivências se deixa envolver, após tantas e tão prolongadas andanças por terras estranhas [...] (DAMASCENO, 1971: 203). Como observam os comentaristas, Weingärtner ainda pintará “muitas telas inspiradas em paisagens e costumes da Europa, principalmente da Itália. Mas a partir de então (1882), o Rio Grande do Sul será uma de suas mais constantes preocupações” (Id.; Ibid). A possibilidade de representar a paisagem, a arquitetura e os tipos regionais é percebida por Weingärtner não apenas como uma renovação em sua obra, mas como uma efetiva contribuição ao campo da arte, já que tal temática

Tendo retornado a Itália em 1896, o ano de 1913 encontrará Weingärtner em Porto Alegre, segundo Damasceno, “decidido a renovar-se em sua arte – senão em técnica, pelo menos em temas e 533

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ambientes” (Id.: 213). A paisagem regional – arredores de Porto Alegre, interior e Santa Catarina – servirá como fio condutor para este processo de renovação enunciado por Damasceno. Depois de mais algumas viagens a Itália e Roma em particular, fixa residência em Porto Alegre, expondo também no Rio de Janeiro e em São Paulo.

GUIDO, Ângelo. Trinta anos de pintura (1925 – 1955). BECKER, Klaus. Enciclopédia Riograndense. Canoas, RS: Regional, 1957. HEINICH, Nathalie. Être artiste. Paris: Klincksieck, 1996. SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec, 1997.

No ano de 1925, contando com 72 anos, Weingärtner realiza aquela que será sua última exposição, na Casa Jamardo, apresentando cinqüenta e três peças (Id.: 215). Embora a abertura tenha sido festiva e noticiada pela imprensa local, a exposição foi considerada um fracasso de vendas e de visitação, tendo encerrado antes do prazo estipulado inicialmente. A este fim melancólico associa-se, em 1927, uma doença que o deixa hemiplégico até seu falecimento em 1929.

Notas 1

UFRGS, Professora adjunto no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes. Doutora em Artes Visuais – História, Teoria e Crítica. 2 Os primeiros resultados foram apresentados em 2006, através de uma exposição no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, de uma publicação – A Obra Gravada de Pedro Weingärtner, com texto de Paulo Gomes e comentário técnico de Anico Herskovits – e um seminário, do qual participaram diversos pesquisadores, entre os quais, a autora. O conteúdo destas palestras será objeto de uma publicação específica, atualmente em preparação. O estudo da produção pictórica de Weingärtner encontra-se – por parte da mesma equipe e sob coordenação do dr. Paulo Gomes – em fase de levantamento e registro. 3 Nos referimos especialmente às contribuições da geografia humana, disciplina que tem aberto inúmeras perspectivas instigantes para as abordagens interdisciplinares de questões relativas aos conceitos de espaço, lugar, local e especialmente, paisagem. 4 Sobre Lunara consultar: SERRANO, Eneida. Lunara amador 1900. Porto Alegre, edição do autor, 2002. 5 Ângelo Guido é o iniciador da disciplina de História da Arte no Instituto de Artes, em 1936, tendo chegado a São Paulo em 1895 e ali iniciado seus estudos. Vem a Porto Alegre em 1925, passando a integrar o corpo docente do IA.

Referências bibliográficas A Obra Gravada de Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul, 2006. (texto de Paulo Gomes e comentário crítico de Anico Herskovits). DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul (1755 – 1900) (Contribuição para o estudo do processo cultural sul-rio-grandense). Porto Alegre: Globo, 1971. GOMES, Paulo (org.) Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: uma panorâmica. Porto Alegre: Lahtu Sensu, 2007.

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O texto que se segue está longe de ser uma elaboração definitiva dos diversos contextos históricos e culturais dos quais Pedro Weingärtner participou. Deve ser entendido como uma contribuição para o estudo da obra deste artista brasileiro ainda não devidamente entronizado nos textos que pretendem dar conta de uma história geral das artes visuais no Brasil. Parte deste material foi utilizado numa tese de doutorado1 que tratou de tema mais amplo. Evidentemente, há ainda muitas informações lacunares, e que necessitam ser completadas, para que o conjunto da obra do artista possa melhor ser compreendido. No que concerne ao levantamento da sua produção artística, há muito por ser feito. No Rio Grande do Sul, depois do extraordinário empenho inicial realizado por Angelo Guido para organizar a cronologia e a biografia de Pedro Weingärtner, um longo período se passou sem que as atenções dos pesquisadores se voltassem para o assunto. Há cerca de uma década e meia um grupo de artistas, pesquisadores e colecionadores gaúchos vem se debruçando sobre cada um dos aspectos da produção do artista. Este grupo, que costuma percorrer os locais expositivos da cidade, tem encontrado uma quantidade significativa de obras à venda, que deveriam, ou pelos menos, poderiam pertencer a coleções públicas. Em 2005 foi organizado um seminário sobre Pedro Weingärtner no Studio Clio 2, com a participação de artistas, historiadores, colecionadores e restauradores, oriundos ou não do meio acadêmico. Dito isso, vamos às informações factuais disponíveis até o momento.3.

realidades simultâneas - contextualização histórica da obra de pedro weingärtner neiva maria fonseca bohns *

Nascido em Porto Alegre, em 1853, de uma família de desenhistas e litógrafos, Pedro Weingärtner teve sua iniciação artística no próprio núcleo familiar, através do convívio com o pai, com o tio e com os irmãos. Ainda muito jovem chegou a freqüentar ateliês dos artistas que residiam na capital (é possível que, entre 1870-74, tenha recebido lições de desenho e de pintura do artista fluminense Delfim da Câmara). Depois da morte do pai, em agosto 1867, tornou-se funcionário do comércio, trabalhando como balconista. Nesta época, passou a alentar o sonho de estudar arte na Alemanha. Reunindo suas parcas economias, conseguiu realizar a viagem tão desejada. Em 1878 instalouse na cidade de Hamburgo, matriculando-se na Kunstgewerbeschule. Alguns meses depois, deslocava-se para Karlsruhe, ingressando na Grossherrzöglich Badische Kunstschule, então dirigida por Ferdinand Keller. Lá foi aluno do professor Theodor Poeckh. Em meados de 1880, transferiu-se para Berlim, matriculando-se na Königliche Akademie der Bildenden Künste.

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Em 1882, já em Paris, freqüentou as classes dos artistas Tony Robert-Fleury e Adolfe Bouguereau. Datam dessa época numerosos ensaios de paisagem e figura, a lápis, a bico-de-pena, a óleo, bem como as primeiras experiências no campo da gravura e da composição de quadros de gênero.

1910 expôs em São Paulo quarenta e seis pinturas. Em 1911 expôs na Casa Voelker, em Porto Alegre, vendendo apenas duas obras. Realizou exposição no Rio de Janeiro em outubro, com sucesso de vendas e de crítica. Em 1913, uma associação porto-alegrense formada por um grupo de incentivadores da arte, auto-denominada Centro Artístico, promoveu uma exposição de Pedro Weingärtner na qual foram vendidas quinze obras. No mesmo período, voltou a fazer estudos de motivos regionais no Rio Grande do Sul. Em 1922 expôs no Rio de Janeiro. Em 1925, pouco antes de adoecer, realizou várias exposições em Porto Alegre: no Clube Caixeiral, na casa Jamardo e no Salão de Outono.

A partir de 1884 passou a receber pensão do governo brasileiro. Retornou à Alemanha, instalando-se em Munique. Em 1886 já estava em Roma. Voltou ao Brasil em agosto de 1887, consta que tenha lecionado por algum tempo na Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Em 1893 retornou ao Rio Grande do Sul, passando por Santa Catarina, onde documentou cenas da Revolução Federalista. Em 1895 retornou à Itália. Em 1897 morria sua mãe. Algum tempo depois, contando já com cinqüenta e sete anos, viria a se casar com Elisabet Schimitt. No período de 1905 a 1909, manteve correspondência com o embaixador brasileiro em Washington, Joaquim Nabuco. Em 1909 passou uma temporada em Portugal. Em 1912 estava em Roma. Em 1920 retornava definitivamente ao Brasil, montando ateliê em Porto Alegre. Faleceu em 26 de dezembro de 1929.

Na Europa, assim que tomou pé dos movimentos artísticos mais importantes, a opção de Pedro Weingärtner não foi por um centro de grande ebulição cultural. Depois de realizar o aprendizado inicial na Alemanha, ao invés de radicar-se na movimentada Paris, como seria de se esperar, preferiu estabelecer-se em Roma. Sucede que desde o século XVIII, a arte e a cultura italianas viviam um grande eclipse. A crise da sociedade italiana, e mais ainda a debilidade do país no quadro geral das potências européias, impediram que um paradigma artístico global se impusesse a partir da península, como tinha acontecido num passado não muito distante, quando era inconteste o prestígio artístico e extra-artístico de Roma, capital da cristandade. Até mesmo o paradigma neoclássico atingiu a Itália menos pelo impacto das transformações artísticas do que pela hegemonia política e militar da França napoleônica. Na altura em que Jacques-Louis David executou, em Roma, o Juramento dos Horácios (1784), a tela não suscitou grandes curiosidades, porque a cidade já não era o centro propulsor que tinha sido no passado. Era antes uma espécie de “centro fantasmático” onde se concentravam os desejos, as esperanças e os projetos de muitos artistas estrangeiros, que trabalhavam totalmente alheios da vida artística local, empenhados em procurar nos monumentos do passado as chaves de um futuro novo. Num período de conflito de classes, de tensões ideológicas, de lutas entre paradigmas, como foi o século XIX, as relações com o resto da Europa não se deram através dos grupos mais avançados, mas com aqueles que gravitavam em torno dos salons oficiais (como artistas, críticos e mercadores de arte). Quando o aparecimento das vanguardas desencadeou na França a crise da arte dos salons, muitos artistas, e até muitos centros artísticos italianos, ficaram completamente marginalizados.4

Quanto à profícua produção deste pintor, é importante notar que em 1881, Pedro Weingärtner, da Europa, já enviava trabalhos para a Exposição Brasileiro-Alemã, realizada em Porto Alegre. Em agosto de 1884, suas pinturas eram aceitas no Salão da Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Na capital brasileira realizou, em fevereiro de 1888, sua primeira exposição individual. Passou a ser incluído entre os mais destacados nomes da pintura brasileira da época. Em 1892, mostrava, também no Rio de Janeiro, suas primeiras pinturas com temas gauchescos. Em princípios de 1897 expôs na “galeria de arte” do bazar Ao Preço Fixo, em Porto Alegre. Em dezembro de 1898, novas telas foram expostas na capital gaúcha. Em junho de 1899, expôs Tempora Mutantur na Litografia Weingärtner, em Porto Alegre. Em 1900 participou da Exposição Universal de Paris. No mesmo ano, de volta ao Rio Grande do Sul, pintou diversos retratos. Expôs duas pinturas nas vitrines do bazar Ao Preço Fixo. Realizou exposição em São Paulo. Participou da Seção de Artes da Exposição Comercial e Industrial realizada em Porto Alegre, em 1901, com diversas telas, tendo recebido Medalha de Ouro. Em 1902 executou pintura que evocava um episódio da Revolução Federalista. Em 1905, entregou o retrato de Júlio de Castilhos, pintado em Roma. Expôs em Porto Alegre a tela Rodeio, encomendada pelo Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, presidente do Estado, que seria duramente criticada pela imprensa. Em 536

Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

As causas deste processo estariam, além da crescente decadência econômica de Roma, numa atualização com base em experiências francesas mal selecionadas e mal compreendidas, uma tendência ao compromisso entre realidade e idealização, uma subserviência às expectativas “quer de um público de largas disponibilidades financeiras e gosto fácil, quer de mercadores internacionais em busca de virtuosismos técnicos e luxos profissionais”. 5 Nesta mesma Roma retardatária, várias escolas tradicionais eram ainda mantidas por países estrangeiros, como a academia francesa da Villa Medici, que recebia estudantes de diversas partes da Europa e da América. Naquele ambiente favorável ao gosto tradicional, com redutos que se mantiveram fiéis à tradição clássica, Pedro Weingärtner filiou-se ao grupo In Arte Libertas, interessado em temas mitológicos, na vida popular ou em paisagens rurais.6 Não viu – ou não quis ver – os movimentos artísticos revolucionários que se desencadeavam em outras partes.

convenções sociais, e adaptados a uma natureza embriagante, mostram-se à vontade, e seus corpos, freqüentemente desnudados, não parecem agredir princípios morais da sociedade européia novecentista, embora possam ter sido perturbadores para a parcela da conservadora sociedade gaúcha que os conheceu, ainda sem repertório suficiente no que se refere aos assuntos da cultura clássica. De 1896 a 1902, sem demonstrar interesse pelas novas tendências estéticas, continuou pintando cenas de gênero, cenas clássicas e cenas gauchescas. No campo da pintura de costumes, são dignas de menção, pelo tom anedótico que assumiram, as cenas que representou sobre o trabalho dos caixeiros-viajantes, na incansável missão de levar mercadorias aos estabelecimentos comerciais do interior do Estado. Tanto na pintura Chegou tarde, como no estudo O Bolicho, decididas comerciantes mulheres atendem os vendedores, que aparecem para trazer as novidades da indústria de tecido, de linhas, de botões e demais aviamentos. As amostras dos produtos se espalham pelo chão, enquanto as peças são escolhidas. Estas pinturas e esboços funcionam como verdadeiros registros iconográficos. São documentos históricos, que dão seu testemunho sobre as atividades comerciais nos mais remotos rincões do Rio Grande do Sul. O detalhismo das cenas permite identificar vestuário, mobiliário, e hábitos que dizem respeito ao modo de vida dos habitantes rurais.

Em Roma, ainda no final da década de 1880, Pedro Weingärtner realizou pinturas de gênero como Má Colheita, Arrufos, Ciúmes ou Convalescente. No Rio de Janeiro, em 1888, realizou exposição individual no estúdio do pintor-fotógrafo Insley Pacheco. Eram dez pinturas minuciosamente executadas, a ponto de parecerem, segundo comentários da época, fotografias. A crítica recebeu-a favoravelmente, e até foi chamado de “o primeiro pintor brasileiro”, pois que “nenhum compatriota nosso chegou, com o pincel, a tanta perfeição no desenho, tanta fineza no acabado e tanta observação no estudo.7

No ano de 1897, apesar do interesse despertado no público visitante por uma exposição de dois quadros de Pedro Weingärtner no bazar Ao Preço Fixo, as obras precisaram ser rifadas, recurso freqüentemente lançado para compensar o esforço dos artistas. Essa situação revela que a sociedade sulina não estava ainda estruturada de maneira que pudesse abrigar em seu seio um público consumidor que garantisse o sustento dos profissionais dessa área. Tão gritante era a situação de desamparo dos artistas, que, em 1898, quando Pedro Weingärtner expôs novamente suas obras em Porto Alegre, o médico pediatra, que também ocupava a posição de único crítico de arte local, Olinto de Oliveira, sentiu-se na obrigação de desfraldar uma campanha francamente “civilizatória”, escrevendo incitante artigo no jornal Correio do Povo:

Suas incursões na área da representação mitológica também ficaram conhecidas. Realizou pinturas com temas clássicos, como Flauta de Pã, e Bacanal. Data de 1891 a tela Daphnis e Cloé, em que o artista dá existência a um encontro imaginário entre dois personagens míticos. A cena campestre, meticulosamente construída, descreve uma agradável paisagem outonal, em que os dois pastores enamorados dividem o espaço com um pacato rebanho de cabras. A bela Cloé delicia-se com a música tocada por Daphnis, inventor, segundo a narrativa mitológica, da poesia bucólica.8 Nada poderia alterar aquele estado de harmonia com a natureza. Gravuras em metal, certamente realizadas no ateliê de Roma, também mostram o interesse do artista por temas da mitologia greco-romana. Nestas gravuras, os personagens aparecem sempre em estado contemplativo, ou de perfeita integração com o ambiente natural. Inteiramente livres das

Por diversas vezes têm estado expostos aqui trabalhos do notável pintor rio-grandense [Pedro Weingärtner] e outras tantas vezes têmse manifestado uma certa dificuldade, por parte do público, na aquisição das interessantes telas 537

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de personagens destacados. Ao contrário, optou por retratar uma cena de trabalhadores do campo, como estavam fazendo, na mesma época, muitos pintores realistas europeus. Mas, diferentemente de outras pinturas realísticas (vide As respigadeiras, de François Millet, 1857), a situação em que este casal foi retratado era diferente da dos campesinos comuns. Tanto a indumentária, como a postura ainda altiva diante do desafio que tinham pela frente, revelam uma origem social diferente daquela dos campesinos comumente retratados por François Millet, cujas feições se perdiam no anonimato do trabalho embrutecido.

que o artista de quando em quando envia para cá, como atestado de seu entranhado amor pátrio. A meu ver, não é tanto a relativa pobreza no nosso meio a causa daquela dificuldade. Reside ela, antes, na falta de compreensão do verdadeiro valor da obra de arte, considerada como uma coisa frívola, cujo preço de cotação seja exageradamente encarecido pelos interessados diretos ou não. [. . .] Os proprietários do conhecido bazar Ao Preço Fixo parecem ter compreendido assim as razões da atitude de nosso público e, nessas condições, resolveram-se a um ato que bem se pode chamar de heróico, nesses tempos: mandaram vir por conta de sua casa três dos mais recentes trabalhos de Weingärtner e lá os expuseram, como a desafiar a apática indiferença do meio semibárbaro em que vivemos. Se, comercialmente falando, fizeram aqueles cavalheiros um mau negócio, é incontestável, por outro lado, que foram otimamente sucedidos na escolha dos trabalhos. [. . .]”9

De acordo com Angelo Guido, A tela representa um casal de colonos num momento de descanso, ao cair da tarde, após um dia inteiro de penoso trabalho na terra em que foram abertos sulcos para as sementes. Os troncos abatidos da derrubada no segundo plano, ali estão a testemunhar o tamanho do esforço já feito por aquelas duas criaturas que vieram de longe, para uma região selvagem ainda, mas onde se propuseram começar nova vida e construir novo destino. A fumaça que sobe, ao longe, contra a encosta do morro; a mata ao fundo sobre a qual parece ter descido, com as sombras, a quietude melancólica do entardecer; as árvores que ainda ficaram de pé, junto à aguada, entre as suas companheiras que tombaram aos golpes do machado implacável; a atitude daquele homem de cabeça enérgica e pensativa, sentado sobre o carrinho rústico a meditar; a mulher de nobre perfil, apoiada à enxada e a olhar a palma da mão que se vai tornando áspera e calosa; tudo isto, sente-se, encerra um conteúdo de emoção e de poesia que se vai infiltrando, profunda e sutil, em nossa sensibilidade. Aquela tarde é bem uma tarde brasileira; brasileira aquela luz macia, a magia triste da paisagem e do silêncio que sobre as coisas e as criaturas desceu na hora indefinida em que a alma se sente mais profundamente a si mesma e parece entrar em comunhão com a grande alma da natureza. [. . .] Ele evoca e medita sobre o que foi, sobre o que ficou para trás nos anos que passaram; ela pensa no que eram e no que as suas pobres mãos delicadas e lindas se tornaram, talvez no que sonhou quando uniu o seu destino ao do homem que está ali, a seu lado, a começar tudo de novo na terra selvagem e desconhecida... “Nessun maggior dolore, che ricordarsi del tempo felice nella miseria.10

A importação de obras de arte da Europa para sul do Brasil, mesmo de um artista brasileiro, deve ter envolvido custos substanciais, e um investimento desse porte realizado por comerciantes só se justifica analisado num contexto mais amplo. Sem dúvida, por trás da iniciativa “individual” e “heróica” dos proprietários do bazar que importou as telas, já se pode sentir a existência de um grupo social legitimador da atividade artística, do qual faz parte o próprio comentarista. O papel desempenhado por Olinto de Oliveira, nessa questão, é fundamental para afirmar a existência de poder de compra da sociedade gaúcha, a despeito da falta de percepção que essa mesma sociedade demonstrava possuir sobre o valor da arte. A constante presença de Pedro Weingärtner em Porto Alegre endossa a idéia de que o contato do público com seu trabalho não era tão raro como se supunha, e que inúmeras situações favoreceram a divulgação de seu nome e de sua atividade. Lentamente, o público medianamente instruído tomava conhecimento da existência da figura do artista, e começava a ser convencido sobre sua importância social. Datada de 1898, e fundindo pintura de paisagem com pintura de gênero, a tela Tempora Mutantur apresenta alto nível de realismo, tendo sido executada no ateliê do artista em Roma, a partir de anotações tomadas em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e pode ser interpretada sob o ponto de vista político. Afinal, o pintor não elegeu nenhum assunto grandioso, que colocasse em relevo fatos marcantes da história brasileira recente, pelo viés

Os dois personagens de Pedro Weingärtner, que, exauridos pelo trabalho braçal, fazem uma pausa 538

Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

na árdua missão de preparar a terra virgem, têm identidade reconhecível. Embora seus nomes não nos tenham sido informados, seus rostos não estão ocultos. O artista, colocando-os em posição de destaque na composição, esforçou-se em representar um momento da vida desse emblemático casal, em que parece pairar a dúvida sobre continuar ou desistir. Seu ponto de vista era evidente: queria ressaltar que o esforço necessário de preparar o solo bruto para receber as sementes, que viriam a ser a base de uma promissora economia agrícola, dependeu da força e da coragem desses pioneiros. Tratava-se, portanto, de um tema histórico, que tinha como base fatos realmente acontecidos, e não temas mitológicos, extraídos da literatura. Em termos mais genéricos, a tela representava a incessante luta humana para criar, no meio de uma natureza ainda exuberante de um país de recursos aparentemente inesgotáveis, um ambiente culturalmente propício à sobrevivência.

torno das façanhas dos casais transplantados da Europa para o sul do Brasil, e que enfrentaram toda sorte de obstáculos para sobreviver. A essa altura, alguns grupos de descendentes de alemães, que dispunham de forte poder econômico, estavam perfeitamente integrados à realidade brasileira, e procuravam maior inserção social e representatividade política. Para um governo empenhado em consolidar as bases simbólicas de uma tradição regional, era vantajoso o incentivo da produção de imagens capazes de narrar as façanhas que colaboraram para a constituição do imaginário do povo gaúcho. Sob o ponto de vista do artista, o reconhecimento oficial num ambiente tido como inóspito, significava a derradeira vitória sobre as adversidades. Essa simbiose entre arte e política, embora descontínua, desencadeou um lento processo de valorização das artes plásticas. Assim, por algum tempo, Pedro Weingärtner passaria a ser tratado como respeitável personalidade local, digna de diversas homenagens.

Em carta dirigida a um amigo, o artista revelava suas intenções ao pintar Tempora Mutantur:

Pedro Weingärtner também foi autor de admiráveis retratos, dentre os quais o Retrato de Dona Angélica, datado de 1894, em que as feições da velha e austera senhora, fixadas em algum ponto do infinito, que nunca encontrarão o olhar o observador, mostram muito da capacidade perceptiva do artista. No impecável tratamento da face rugosa, assim como da expressiva mão colocada sobre o peito, deformada pelos maus tratos de uma vida de dificuldades, vê-se a aplicação de conhecimentos aprendidos pelo convívio com o melhor da tradição pictórica ocidental. Nesta pintura, o observador atento poderá perceber o cuidadoso tratamento das diferentes texturas, que variam do delicadamente aveludado ao sutilmente áspero.

Este quadro fiz expressamente para nós, porque aqui na Europa não se compreende facilmente o assunto; inspirei-me, para fazêlo, em certo tipo que encontrei em nosso caro Brasil, homens que aqui na Europa faziam figura, de famílias nobres, que por qualquer motivo abandonaram a pátria atrás da fortuna na América e caíram no caminho e lá se foram água abaixo e ficaram reduzidos ao que vi. [. . .] Eu quis fazer um tipo [. . .], que, não encontrando ocupação, foi obrigado a retirarse para uma colônia, e esta é a cena que reproduzi no quadro, o primeiro dia de trabalho, a pobre mulher vendo as mãos que foram belas e alvas, hoje queimadas pelo sol e calejadas pelo primeiro labor.11

Com uma abordagem bem diferenciada da anterior, é de 1918 o Retrato de Elisabeth Schmitt, esposa do artista. De forte caráter realístico, este já é um retrato moderno, que representa uma mulher do início do século XX, perfeitamente integrada ao seu tempo, em dia com os padrões femininos de elegância disseminados por Paris, o mais importante centro de produção de moda da época. O rosto muito alvo, de feições severas e olhar frio, que revela uma personalidade forte, aparece emoldurado pelo elegante chapéu com plumas, e pela estola de pele, sobre um fundo difusamente escuro. O contraste entre a pele, os cabelos claros e os diferentes tons de negro presentes na indumentária da mulher retratada, denotam o refinamento – e a adesão a certos parâmetros da pintura moderna – a que chegara o já experiente

Em 1898, o presidente Campos Sales, ao passar por Roma, visitara o ateliê de Pedro Weingärtner, demonstrando interesse em adquirir a tela Tempora Mutantur, que já tinha sido destinada ao Rio Grande do Sul. A mesma obra obteve repercussão muito positiva ao ser exposta em Porto Alegre, em junho de 1899. Compareceram à mostra Júlio de Castilhos, chefe do Partido Republicano RioGrandense, e Borges de Medeiros, Presidente do Estado, que se encarregou de adquiri-la para o Palácio do Governo, configurando a primeira grande demonstração pública de interesse do governo republicano, na esfera regional, pelas artes plásticas. Observe-se que, não apenas o artista digno dessa honraria era descendente de imigrantes, como o tema central da tela girava em 539

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pintor. A pintura que fizera de Inácio Weingärtner, alguns anos antes, em 1913, também deixava patente sua grande capacidade como retratista.

se considerava a litografia uma arte menor, sua família, constituída por litógrafos, foi pioneira, no Rio Grande do Sul, na utilização de técnicas de reprodução. 14 Segundo Carlos Scarinci, Pedro Weingärtner também foi pioneiro na divulgação de gravuras em metal. Suas primeiras águas-fortes datam de 1909. Mas como não existiam meios técnicos necessários para realizar gravuras no Rio Grande do Sul, sua produção gráfica, quase sempre baseada em temas regionais, foi realizada em Roma, a partir de estudos feitos durante suas visitas à província.15

Em 1900, numa de suas visitas a Porto Alegre, o jornal Correio do Povo assim se referia ao já ilustre artista: Encontra-se de novo entre nós o insígne pintor rio-grandense Pedro Weingärtner que volta da Itália, a repousar do trabalho junto da família, na terra que se orgulha de tê-lo como filho. O nosso patrício, que descende de uma família de modestos artistas, tem sabido honrar no Velho Mundo o nome brasileiro e dar lustre a seu estado natal. Ao mérito indiscutível de artista exímio, considerado por muitos como o primeiro pintor brasileiro, Weingärtner junta a glória de se haver feito por si, iniciando sua carreira desajudado da fortuna, sem proteção estranha e não confiando mais que no próprio esforço, alentado por uma grande força de vontade. Nascido em Porto Alegre, onde recebeu a instrução elementar, teve ele de abraçar a vida comercial, como simples caixeiro de uma loja de fazendas. Contrariando sua vocação, num meio que não lhe convinha, vexado pelas exigências de uma profissão que estava longe de satisfazer suas inclinações, sujeitou-se, entretanto, às verdadeiras torturas dessa posição, convencido de que, acima de tudo, o trabalho se lhe impunha como um dever imperioso. Não estavam, porém, sufocadas as suas aspirações, e o modesto caixeiro começou a fazer economias que deveriam ser o ponto de partida para futuro cometimento. Assim, logo que conseguiu fazer um pecúlio, pequeno embora, Pedro Weingärtner partiu para a Baviera, no intuito de fazer sua educação artística.12

Durante a exposição Comercial e Industrial, inaugurada em 24 de fevereiro de 1901, a imprensa, que cuidou de fazer uma detalhada cobertura do evento, teve a atenção despertada para o fato de não ver “o tipo rio-grandense bem representado, figurando, entretanto, retratos de estrangeiros mundanos”.16 Isto significa que, a esta altura, as artes plásticas não tinham se apropriado das representações simbólicas da cultura sulina, como ainda viria a acontecer, algum tempo depois, com o desenvolvimento das temáticas regionalistas. Um significativo incidente causado por diferenças de opinião dos membros do júri, composto por figuras eminentes do meio cultural, chama a atenção por assinalar o início de um debate próprio ao campo da arte, que começava a se formar. Novamente entraria em cena Olinto de Oliveira, conhecido como fervoroso defensor de Pedro Weingärtner, e que constantemente usava o espaço dos jornais para divulgar e defender a importância do seu trabalho. Mas desta feita o crítico, alegando uma questão de justiça, não achou adequado que artistas experientes concorressem, em pé de igualdade, com artistas iniciantes. Por essa razão, e só por isso, opôs-se à premiação de Pedro Weingärtner. Advogava que os prêmios deviam servir para revelar novos talentos, e que eram inúteis para quem já tinha obtido consagração.

A teoria do “self made man”, ou do “homem que se faz por si próprio” é comumente aplicada para descrever a situação dos imigrantes de origem humilde que, exclusivamente pelos seus esforços pessoais obtém sucesso profissional. 13 Embora essa teoria costume ser aplicada ao caso dos homens de negócio, percebe-se seu uso também no campo artístico, para expressar a capacidade de superação dos indivíduos, a despeito das suas condições iniciais. Na verdade, Pedro Weingärtner descendia de uma família modesta, mas bastante enfronhada no trabalho artístico e artesanal, o que, de alguma maneira, permitiu-lhe uma iniciação profissional e indicou-lhe o caminho para o aprimoramento de sua vocação fora do Brasil, no lugar que servia de referência cultural mais forte do grupo ao qual pertencia. Numa época em que

O debate, divulgado pela imprensa, mostra a importância da distinção pública no processo de legitimação do iniciante, que vê neste artifício a possibilidade de encontrar público comprador de suas obras. Como se sabe, o processo que levava à consagração de um artista, num sistema acadêmico devidamente estruturado, devia obedecer certas regras, como a passagem por escolas importantes, o acúmulo de experiência, a quantidade de prêmios já obtidos. O problema que se colocava para a situação provinciana é que nem mesmo os artistas tidos como “consagrados” chegavam a obter pleno reconhecimento. As chances de um artista jovem encontrar público comprador, ou simplesmente apreciador de suas 540

Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

obras, era mínima. Essa situação dá conta da instabilidade do processo de consagração de um artista num meio provinciano: ou ele nada merece por ser um ilustre desconhecido, ou precisa abrir espaço para as novas gerações por já ser “consagrado”. No conceito de “consagração”, da maneira como era aplicado, não estavam incluídas as condições materiais de trabalho e de autosustentação de que o artista dispunha. Mesmo aqueles mais famosos enfrentavam dificuldades de sobrevivência.

ser considerado como um sinal de gestação do discurso em defesa do tradicionalismo e do regionalismo. Pedro Weingärtner recebera de Carlos Barboza Gonçalves, então presidente do Estado, a incumbência de pintar um quadro de costumes gaúchos destinado ao salão de honra de um dos navios da Marinha Brasileira, ao qual seria dado o nome de Rio Grande do Sul. A tela, que representava uma “parada de rodeio” 19 , foi exposta numa vitrina da Rua da Praia em 1909, tendo sido impiedosamente criticada pelo público e pela crítica jornalística por, supostamente, apresentar erros na indumentária e nos apetrechos rurais. Como resultado de tal celeuma, capaz de provocar fortes discussões na imprensa, o quadro acabou não sendo adquirido pelo governo do Estado. 20 Justificável ou não, o fato inaugura o primeiro debate público sobre arte (ou melhor, sobre formas de representação pictórica) que se tem notícias no sul do país, com intensa participação de setores populares, que detinham maior ou menor conhecimento sobre as lides campeiras – e muito pouco sobre pintura – e identificavam as falhas de representação. É claro que se pode também entender esta rejeição coletiva à obra de Pedro Weingärtner como um prenúncio de seu declínio artístico e social, já que um artista tão fortemente ligado ao projeto imperial não tinha condições de ser incorporado com facilidade à era republicana. Mas estes podem ter sido os primeiros sinais de gestação de uma cultura visual compartilhada por grupos locais, que acabaria por estabelecer uma gramática própria, baseada nos “valores tradicionais do povo gaúcho”.

Quase quarenta anos depois, o crítico e historiador de arte Angelo Guido, ao fazer uma revisão geral sobre as mostras coletivas acontecidas na capital gaúcha, comentaria, com admiração, o perfil ético de um dos julgadores da mostra de 1901, ao considerar impróprio que um artista consagrado disputasse prêmios num meio tão pouco desenvolvido artisticamente.17 De fato, este dilema não se esgotou com o fértil debate do início do século XX. Nas décadas subseqüentes, a atitude de premiar aqueles artistas que tinham vencido pelo próprio esforço, obtendo o aval de comunidades artísticas mais organizadas, tornou-se uma prática comum. Os artistas jovens, que demonstravam potencial a ser desenvolvido, continuariam sendo submetidos a um regime de total indiferença por parte da sociedade e dos poderes governamentais. Fossem eles suficientemente audaciosos para seguir seus próprios destinos, até poderiam merecer uma maior atenção da elite política e economicamente ativa. Do contrário, as suas atividades seriam relegadas ao mesmo plano do trabalho braçal, desempenhado pelos obreiros e pelos trabalhadores técnicos e artesanais.

A primeira tentativa de reabilitação de Pedro Weingärtner aconteceria no início do século XX, quando uma nova geração com aspirações intelectuais aumentava seu interesse pelas artes plásticas. Em 1913, uma associação portoalegrense formada por um grupo de incentivadores da arte promoveria uma exposição do artista. O Centro Artístico, criado com a finalidade de desenvolver o gosto pelas artes, também se dedicava à aquisição de obras.21

Segundo Angelo Guido, Pedro Weingärtner era um artista conservador, que preferia a segurança das atitudes convencionais, fossem elas políticas, ideológicas ou artísticas. Sua amizade com o Imperador, D. Pedro II, permitiu-lhe tornar-se pensionista, e garantiu-lhe boa receptividade no Rio de Janeiro por algum tempo. Durante a República, estreitou laços de amizade com outras personalidades políticas importantes, como o presidente Campos Sales e o diplomata Joaquim Nabuco, mas não conseguiu manter invicto o prestígio que adquirira no período imperial.18 Apesar da respeitabilidade adquirida pelos estreitos contatos que manteve com o Rio Grande do Sul, Pedro Weingärtner recebeu poucas encomendas oficiais durante o período republicano.

Até o falecimento de Pedro Weingärtner, aos setenta e seis anos de idade, o público gaúcho teve muitas oportunidades de conhecer e admirar sua pintura, e, pelo menos por mais uma década, sua obra continuaria a ser a mais significativa para o Rio Grande do Sul. O fato de não ter deixado discípulos, nem criado escolas, parece ter evitado que uma tradição de pintura clássica tardia se preservasse e se difundisse no circuito local. Decididamente, Pedro Weingärtner não aderiu aos procedimentos modernistas que atribuíam novo

Um episódio, em especial, envolvendo a tela Rodeio, executada em Roma, no ano de 1908, traz à tona um debate que, se não for tratado exclusivamente sob o ponto de vista político, pode 541

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significado ao que, pela ótica acadêmica, consistia em etapas da preparação das telas (como os esboços e os croquis), e teve dificuldade em aceitar a crescente valorização da individualidade e da criatividade, e em romper com o processo criativo baseado em composições estudadas, que obedeciam a regras definidas, e efeitos regulares de coloração e iluminação.22

apresenta certa dificuldade de enquadramento nas categorizações tradicionais da história da arte brasileira.23 Mas se dá no interior de uma complexa rede de relações entre os campos político, econômico e artístico, pontuados pela mudança de regime político e o surgimento de novos parâmetros de apreciação da arte. 24 Infelizmente, a história deste artista, como de muitos outros que não aderiram aos procedimentos modernistas, ficou estigmatizada por uma classificação em que tudo o que se refere ao academicismo parece lembrar conformismo, subserviência aos padrões estrangeiros e espírito conservador.25

Não obstante, em sua última exposição em São Paulo, em 1910, exibiu quinze paisagens e pinturas feitas em Portugal. Tais pinturas, a que chamava de impressionistas, revelam uma sensibilidade mais aguçada, a expressar-se por uma palheta mais clara e despojada. A grande atração da exposição, foi o tríptico La Faiseuse d’Anges, executado dois anos antes em Roma. A presença das obras do artista em Porto Alegre por diversas vezes quebrou a monotonia cultural da cidade, provocando discussões em torno de um assunto ainda pouco conhecido, e sobre o qual raras pessoas dispunham de repertório suficiente para opinar. Se o circuito de apreciadores era restrito, muito mais restrito era ainda o de compradores. Nem mesmo a subordinação cultural em relação ao centro, manifestada na admiração por aqueles que obtinham o aval de outros grandes artistas, era suficiente para permitir o aparecimento de público consumidor. Até 1920, Pedro Weingärtner residiu em Roma, mas fez freqüentes e longas viagens ao Brasil, para executar, no interior do Rio Grande do Sul, paisagens, quadros de gênero e retratos. Seu último quadro, uma Paisagem, data de 1926; no ano seguinte, o artista era acometido de paralisia, falecendo em Porto Alegre, a 26 de dezembro de 1929.

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De certa maneira, sua morte sepultou, no Rio Grande do Sul, o interesse por certos temas clássicos e pelos procedimentos acadêmicos que já não despertavam a atenção dos jovens artistas e dos estrangeiros que se radicavam no estado e disputavam espaço no incipiente mercado de arte local. Mas também se pode supor que, com o desaparecimento de Pedro Weingärtner, o naturalismo pictórico que poderia ter se desenvolvido na direção do realismo, ficou interrompido sem ter alcançado um ponto de maturação. As gerações posteriores, que, motivadas a buscar suas próprias formas de expressão, desejaram romper com a tradição pictórica acadêmica, sentiram dificuldades para encontrá-la. Precisaram buscá-la, novamente, nos grandes centros de produção artística. A biografia artística de Pedro Weingärtner, de forma semelhante a de outros artistas brasileiros que não seguiram a formação acadêmica tradicional, 542

Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

SCARINCI, Carlos. A gravura no Rio Grande do Sul: 1900-1980. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. (Documenta, 10). SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema das artes visuais no Rio Grande do Sul. 2002. 561 p. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2002. SODRÉ, N. W. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. SQUEFF, Letícia. O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre: 1806-1879. Campinas: Unicamp, 2004. TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Entre a proclamação da república e a eclosão do Modernismo: a festa requintada de uma elite confiante no progresso. Arte no Brasil. São Paulo: Abril Cultural e Industrial S/A, 1979. p. 569-572.

para o estudo do processo cultural sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 206-207. 10 GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, Divisão de Cultura e Diretoria de Artes, 1956. p. 90. 11 GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, Divisão de Cultura e Diretoria de Artes, 1956. pp. 92-93. 12 DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio Grande do Sul: 1755-1900: contribuição para o estudo do processo cultural sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 197198. 13 De acordo com essa visão, o colono teria progredido com o seu trabalho agrícola, começando a praticar também um rudimentar artesanato, e, graças às suas virtudes intrínsecas como o esforço, a dedicação e a obstinação, teria “evoluído” para a atividade industrial. Esse modelo poderia corresponder, em alguns casos, à constituição das pequenas indústrias. Mas a grande indústria se formou por meio dos investimentos do capital comercial, ou seja, os grandes comerciantes é que se tornaram industriais de renome. KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002. p. 92 14 Carlos Scarinci, no livro A gravura no Rio Grande do Sul (1900-1980), descreve o desenvolvimento histórico das artes plásticas no decorrer do século XIX, partindo da hipótese de que a gravura constituiu uma prática artística fundamental, mesmo quando não estava vinculada a processos não-artísticos, industriais e comerciais, de produção de imagens. Segundo o autor, a gravura, diferentemente da pintura, participou mais diretamente das transformações da sociedade rio-grandense e brasileira, no que se refere à aquisição tanto de novas técnicas como de novas idéias estéticas. Vide SCARINCI, Carlos. A gravura no Rio Grande do Sul: 1900-1980. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 11. (Documenta, 10). 15 SCARINCI, Carlos. A gravura no Rio Grande do Sul: 1900-1980. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. pp. 2526. (Documenta, 10). 16 Cf. KRAWCZYK, Flávio. O espetáculo da legitimidade: os salões de artes plásticas em Porto Alegre: 1875/1995. 1997. 416 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes, UFRGS, Porto Alegre, 1997. f. 25. 17 GUIDO, Angelo. Exposições coletivas de arte em Porto Alegre. Diário de Notícias, Porto Alegre, 05 nov. 1940. Suplemento, p. 10. 18 Tratando do problemático vínculo de Pedro Weingärtner com a República emergente, Círio Simon levanta a hipótese de que a causa da curta permanência do artista como professor de Desenho Figurado na Escola Nacional de Belas Artes, nos anos de 1891 e 1892, estaria ligada ao contraste entre a política cultural republicana e a política cultural do Império. SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema das artes visuais no Rio Grande do Sul. 2002. 561 p. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2002. f. 69. 19 Chama-se “rodeio” o ato de reunir o gado em local determinado para marcar, curar, ferrar etc. Cf. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2467.

Notas * Doutora em história, teoria e crítica das artes vinculada ao Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Pelotas, RS. 1 BOHNS, Neiva Maria Fonseca. Continente Improvável: Artes Visuais no Rio Grande do Sul do final do século XIX a meados do século XX. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Instituto de Artes/ Programa de PósGraduação em Artes Visuais, 2005. 383 p. Tese (Doutorado) UFRGS. IA. PPGAV. O Studio Clio é um Instituto de Arte e Humanismo fundado 2 em setembro de 2005, em Porto Alegre, RS, que conta com a coordenação cultural do Prof. Dr. Francisco Marshall. 3 Vide DAMASCENO, Athos, p. 208. GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, 1956. pp. 72-73. 4 GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico. História da arte italiana. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. pp. 87-93. (Memória e sociedade). Publicado originalmente em Storia dell’Arte Italiana. Turim: Einaudi, 1979. v. 1. 5 Ibid. p. 91. 6 Cabe lembrar que esse movimento, contrário às inovações na forma de representação pictórica, não tinha relação com as correntes de “retorno à ordem”, que, praticando um modernismo ameno, influenciaram o aparecimento das correntes modernistas no Brasil. O “retorno” propugnado pelo In Arte Libertas não tinha qualquer viés modernizante, e, ao contrário, inspirava-se nos conceitos estéticos da Antigüidade Clássica. 7 TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Entre a proclamação da república e a eclosão do Modernismo: a festa requintada de uma elite confiante no progresso. ARTE no Brasil. São Paulo: Abril Cultural e Industrial S/A, 1979. p. 569-572. 8 Cf. DICIONÁRIO de Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Abril, c1973. p. 44. 9 OLIVEIRA, Olinto citado por DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio Grande do Sul: 1755-1900: contribuição

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Cf. GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, Divisão de Cultura e Diretoria de Artes, 1956. p. 112-114. 21 O grupo era formado por Vitor Silva, Benjamin Flores, Emílio Kemp, Mansueto Bernardi, Leonardo Truda, Mário Totta, Raul Totta, Pedro Weingärtner, Fábio Barros, Irineu Trajano Lima e Lauro de Oliveira. Cf. DOBERSTEIN (1999) citado por SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema das artes visuais no Rio Grande do Sul. 2002. 561 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2002. f. 70. 22 Sobre a relação entre academicismo e modernismo, vide BOIME, Albert apud ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003. p. 42

De modo similar, o pintor paulistano Benedito Calixto, objeto de estudo de Caleb Faria Alves, não freqüentou Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro nem se alinhou com os preceitos defendidos pelos protagonistas da Semana de Artes Moderna de 1922. ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003. p. 22. 24 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003. p. 3334. 25 Sobre tema similar, vide DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: EDUSP, 1989. p. 5 (Coleção Estudos, 108).

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Quem foi Pedro Weingärtner? Qual a sua formação? Como foi sua carreira? Qual a importância de sua obra para a arte brasileira? E para a arte sul-rio-grandense? Onde se encontra sua obra? Foi a certeza da importância da sua obra que criou esta aura impenetrável de consagração e silêncio? Muitas perguntas e poucas respostas. Pintor, desenhista e gravador, um dos mais importantes artistas brasileiros do período de transição entre os séculos XIX e XX, Pedro Weingärtner fez sua formação inicialmente em Porto Alegre, com o pintor Delfim da Câmara e depois, na Europa, onde foi aluno de E. Hildebrand, Ferdinand Keller e Theodor Poech na Alemanha e, de Robert-Fleury e Adolphe Bouguereau, na França. Após seu período de estudos na Europa, como bolsista do Imperador Pedro II, estabeleceuse, finalmente, na Itália, de onde retornaria só muito próximo do final da sua vida. Sua obra pictórica culmina nas paisagens e nas cenas de gênero e fez também grande sucesso como retratista da aristocracia nacional e, principalmente, local. Também tem um trabalho de grande valor e importância como desenhista e como gravador.

alguns comentários sobre pedro weingärtner

Sua carreira se desenvolveu na Europa e no Brasil, simultaneamente e, nas inúmeras vezes que cruzou o Atlântico, levava daqui informações que alimentariam seu trabalho desenvolvido na Itália. Posteriormente esses trabalhos eram trazidos e comercializados no Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro.

paulo césar ribeiro gomes *

Seu prestígio foi crescente até o início do prémodernismo brasileiro quando deixa então de despertar um interesse maior. Atualmente, com o processo de resgate da produção plástica brasileira do século XIX e do início do século XX, seu nome torna-se novamente obrigatório. Sua numerosa obra esta dispersa em coleções privadas e públicas e, calculamos, que só nas coleções públicas de Porto Alegre, dispomos de aproximadamente uma centena de seus trabalhos de todos os gêneros. Referência obrigatória para a compreensão da arte brasileira e sul-rio-grandense, Weingärtner tem sua reputação atual fundada principalmente na sua antiguidade, o que se configura como uma grande injustiça para com um artista responsável pela consolidação de uma auto-imagem plástica, fundada principalmente nas pinturas de paisagens. Situação atual

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A inexplicável escassez de estudos, sobre a vida e obra de Pedro Weingärtner, tem diversas razões, mas acreditamos que a causa principal seja talvez devido ao descaso com que ele tem sido tratado pelas instituições e pelos estudiosos. Acreditamos que a certeza da importância da sua obra criou uma aura impenetrável de consagração e também de silêncio. Em livro temos a sua biografia, obra pioneira e referência obrigatória, escrita por Angelo Guido e o estudo de Athos Damasceno Ferreira1. O texto fundador dos estudos sobre a gravura no Rio Grande do Sul, de Carlos Scarinci 2 , traz algumas informações precisas e muitas especulações sobre a obra gráfica de Weingärtner3. Revendo a reduzida fortuna crítica de Pedro Weingärtner contamos ainda com dois textos de Gonzaga Duque (1863-1911) que, sob o pseudônimo de A.P. (Alfredo Palheta), publicou no Rio de Janeiro4, páginas que enfatizam o caráter dispersivo da sua pintura. É evidente que a obra de Weingärtner não poderia interessar ao crítico pré-modernista, naquele momento envolvido com artistas voltados para uma pintura de gênero contemporânea, dedicada a crônica do cotidiano e com grande intensidade dramática. 5 Mas atentemos que Gonzaga Duque, ao destacar o miniaturista em Weingärtner, está somente antecipando o que mais tarde será dito por Angelo Guido. Além disto faltam estudos sobre seus desenhos, que estão esparsos, sabemos pouco da sua obra pictórica além de eventuais mostras e, finalmente, quase nada conhecemos sobre sua história de vida com precisão, sua formação, sua atuação como professor no Rio de Janeiro, suas exposições, sua peregrinação pelo interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e as inumeráveis viagens entre a Europa e o Brasil.

as águas-fortes a ele atribuídas. Infelizmente não reproduz qualquer uma delas, não informa as medidas, não descreve conteúdos, não indica tiragem, não diz se estão ou não assinadas (nas matrizes) e tão pouco descreve as imagens” (GOMES, 2006: 7). Inventários As investigações sobre a vida e a obra do artista sempre foram fonte de inesgotáveis problemas, conforme podemos ler em nota publicada por Angelo Guido. Esse autor explicita a quase total ausência de informações fidedignas sobre a obra de Weingärtner ao escrever que Das fotografias guardadas dos seus quadros Weingärtner nunca anotou o título, nunca tomou nota das pessoas, museu ou associação a que vendeu numerosas das suas obras, cujo destino ignoramos. O trabalho para elaborar uma lista, embora incompleta, das obras pintadas por Weingärtner foi enorme. (GUIDO, 1956: 154) Ele lista um total de 196 obras pictóricas, 15 gravuras e reproduz (em preto e branco) 28 pinturas. Já Athos Damasceno Ferreira, em 1971, propõe uma outra lista. A soma total das obras listadas pelos dois autores chega a 289. Isso não significa que seja esse o número de obras do artista, pois a tentativa de comparar as duas listas – a de Guido e Damasceno – resulta num imbróglio inacreditável devido à discordância de dados, principalmente dos títulos, além da ausência de medidas e descrição dos temas, impedindo assim uma lista definitiva. Considerando as dificuldades encontradas, que só poderão ser minimizadas após um cadastramento das obras procedemos a um levantamento das peças encontradas em coleções públicas de Porto Alegre. A lista da Tabela I em anexo foi publicada no Jornal do MARGS, em julho de 2003, juntamente com notícia biográfica e cronologia, organizadas por Neiva Bohns 8. O levantamento de obras de Pedro Weingärtner nas coleções públicas de Porto Alegre tem, atualmente, os resultados nela exibidos.

A obra A par dessa carência de estudos temos a quase total ausência de levantamentos sobre sua produção plástica. Conforme já assinalamos, sua pintura, assim como seus desenhos estão sem estudo e esparsos. Com a ambição de estabelecer um catálogo sistemático da obra gravada de Pedro Weingärtner 6 saímos em busca das fontes primárias sobre sua vida e obra. A cinqüentenária monografia de Angelo Guido ainda é o documento mais consistente (o texto de Athos Damasceno é posterior). Quanto às gravuras, Guido lista, ao final, uma série de quinze águas-fortes e, fora isso, são poucas as referências à técnica, como podemos ler as páginas 54, 75 e 144, conforme transcrevemos em “A Obra Gravada de Pedro Weingärtner” 7. Conforme informamos no citado texto “Angelo Guido na sua lista somente enumera

Gêneros Pedro Weingärtner praticou quase todos os gêneros pictóricos: a paisagem, os retratos, as cenas históricas, as cenas de gênero, em praticamente todas as técnicas: pintura, desenho, gravura, escultura9. Conforme Angelo Guido, ele “preferiu a mais modesta pintura de gênero, da 546

Alguns comentários sobre Pedro Weingärtner

paisagem e do retrato” e destacou-se pelo “[...] gosto pelo pequeno quadro, minucioso, bem acabado, de assunto sugestivo, com umas tintas de romantismo” (GUIDO, 1956: 29), ao invés de dedicar-se aos temas grandiosos, dignos da chamada pintura de história.

qualquer outra explicação. O que podemos sobre, por exemplo, seu humor, visível em uma pintura como Chegou tarde!? Aos poucos vamos descobrindo detalhes, informações, facetas desconhecidas. Descobertas recentes são as fotos de seu ateliê em Roma, de propriedade do senhor Percy Becker, seu sobrinhoneto, gentilmente cedidas para serem apresentadas aqui.

Talvez a ausência de grandes narrativas visuais de caráter histórico deva-se ao temperamento quieto e calmo do artista, diversas vezes declarado em Guido. Sua obra está quase que totalmente fundada na observação direta do real, mas Weingärtner tem, entretanto, uma reduzida mas importante parte de sua obra, dedicada as experiências pictóricas com base histórica e literária. Podemos citar aqui a notável Revolucionários, de 1893, além daquela que lhe rendeu fama, o tríptico intitulado Faiseuse d’anges, exposto com enorme sucesso na São Paulo de 1910.

Na primeira delas vemos a possível modelo que podemos encontrar na tela intitulada Caçadora de Borboletas. Observem a caixa de borboletas, presente na tela As Borboletas. Na segunda , temos, acima das figuras, algumas obras expostas, inclusive a Academia Julien (coleção MARGS). Abaixo vemos o modelo masculino da primeira versão de Flauta de Pã, com suas ninfas nuas e tão festivas e podemos ainda ver ao fundo, à direita, o próprio Weingärtner! Estamos tratando apenas de um artista plenamente inserido no contexto de um público moralista e burguês, principalmente as classes abastadas, mas, e os outros Weingärtners? Vamos descobrir...

Angelo Guido nos explica as razões desse sucesso como resultado da publicação, algumas semanas antes da exibição da tela, de uma reportagem sobre a terrível indústria das faiseuses d’anges em Paris, o mesmo assunto da tela (GUIDO, 1956: 120-123). A ecfrasis praticada por Guido no seu texto é enriquecida com comentários entusiásticos e por uma reconstituição detalhada da narrativa.

Referências bibliográficas DUQUE, Gonzaga. Impressões de um amador: textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo Horizonte: Editora da UFMG, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo em 1971. GOMES, Paulo. A Obra Gravada de Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul/FUMPROARTE, 2006. GOMES, Paulo. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: uma Panorâmica. Porto Alegre: Lahtu Sensu, 2007. GOMES, Paulo. “Registros Precários nas Coleções Públicas”. Jornal do MARGS, Julho de 2003, p. 5. GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Divisão de Cultura – Diretoria de Artes da Secretaria de Educação e Cultura, 1956. MEYER, Marlise. Folhetim, uma história. SP: Companhia da Letras, 1996, p. 247. SCARINCI, Carlos. A Gravura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1982.

A Faiseuse d’anges é obra evidentemente inspirada por fonte literária10, talvez menos pelo episódio de Margarida, no primeiro Fausto, de Goethe, mas mais provavelmente no romance de folhetim. Lembremos aqui aquele intitulado La Faiseuse d’anges, de Mie d’Aghonne, cuja frase resumo “O corolário da humilhação da mãe solteira é a impunidade da parteira”, nos é informado por Marlise Meyer, em seu ensaio intitulado Folhetim, uma história (MAYER, 1996: 247). Escreve a mesma autora que dentro do desenvolvimento da temática da sedução e do abandono “O aborto pode ser a única solução encontrada tanto pela seduzida – principalmente se for casada – como pelo sedutor que deseja, antes de casar-se burguesamente, apagar os resquícios de uma vida dissoluta” (MEYER, 1996: 247). Guido, conclui que “[...] Tudo isso poderá parecer mais assunto de literatura que de pintura, mas o certo é que por meio de elementos plásticos o artista nos faz sentir o que através da sua composição quis comunicar. [...]” (GUIDO, 1956: 122).

Notas 1

As obras são: “Pedro Weingärtner”, de Angelo Guido, e “Artes Plásticas no Rio Grande do Sul”, de Athos Damasceno (ver Referências Bibliográficas). 2 Conforme Referências Bibliográficas 3 A estes devem ser acrescentadas as recentes contribuições de Susana Gastal e Maria Lucia Bastos Kern

Considerações finais Pedro Weingärtner era um pintor moralista? É difícil afirmar, pois sabemos tão pouco sobre seu pensamento que poderíamos aceitar essa ou 547

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República em ensaios publicados em “Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: uma Panorâmica (Conforme Referências Bibliográficas). Além destas podemos acrescentar as produções acadêmicas (dissertação e teses) de Susana Gastal, Maria Lucia Bastos Kern e Neiva Maria Fonseca Bohns. 4 Publicado originalmente no Diário de Notícias (Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1888) foi republicado em 2001 (conforme Referências Bibliográficas). Escreve ele que: “Vendo os quadros do Sr. Pedro Weingärtner lembro-me do trabalho daquele obscuro construtor naval. Todos esses alfarrábios, panos, escrínios, leques, rosários, carteiras de colecionador, todas essas recordações de viagens, de tempos, de história, de artes, de arqueologia, e essas cabeleiras empoadas, esses rostos, esses corpos, do Espólio, custaram ao artista um trabalho fatigante, um ano de existência dispendido (sic) em alguns meses de paciência, de observação e de cuidados. E tudo isso reunido, dificilmente dá uma impressão intensa”. Mais adiante, no mesmo texto, ele explica-se melhor “não quero dizer com isso que os quadros do Sr. Pedro Weingärtner sejam defeituosos. As suas telas têm incontestável valor, tomadas como reunião de acessórios escrupulosamente concluídos, e, sobretudo muito recomendáveis são o Almoço em Capri e a Passagem. Em outras, posto que o desenho nem sempre corresponda à verdade anatômica de um corpo, cousas apresentam-se à curiosidade do amador que tornam-se dignas de estima”. 5 Como na celebérrima Arrufos, de Belmiro de Almeida, para a qual o crítico aparece como o marido indiferente. 6 Não temos, e não tivemos, em qualquer momento, a ambição de ir além de um levantamento sistemático e cuidadoso. A ausência de expectativas e do rigoroso aparato científico, que caracteriza tal tipo de publicação, nos interdita nomeá-lo de catalogue raisonné. 7 As gravuras do artista foram objeto da pesquisa intitulada “A Obra Gravada de Pedro Weingärtner”, projeto do Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul, com apoio do FUMPROARTE (produzido por Marisa Veeck, com curadoria e ensaio de Paulo Gomes e ainda comentários técnicos sobre as gravuras, de Anico Herskovits), com mostra apresenta no MARGS, em 2006. O resultado apresentou 27 imagens gravadas, entre paisagens,

temática greco-romana (Angelo Guido usa o termo “temática clássica”), retratos, temática gaúcha, um convite e uma monotipia, obras predominantemente de pequenos formatos e foram localizadas ainda algumas matrizes, conforme o catálogo da mostra. 8 Em julho de 2003, marcando os 150 anos de nascimento do artista, o Jornal do MARGS publicou meu texto intitulado “Registros Precários nas Coleções Públicas”, no qual apresento um levantamento das obras pertencentes a algumas coleções públicas em Porto Alegre (MARGS, Pinacotecas Municipais da Prefeitura de Porto Alegre, Pinacoteca Barão de Santo Angelo, Pinacoteca APLUB, Museu Júlio de Castilhos, Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul). Toda esta produção, de fácil localização e bastante conhecida, até hoje não mereceu um catálogo. 9 Angelo Guido (op. cit., p. 144) escreve que Pedro Weingärtner, “[...] Em 1920 chega ao Sul, com seus quadros, inúmeros desenhos, águas-fortes, seus livros e todas aquelas coisas guardadas com tanto carinho que as não poderia nunca abandonar, como os retratos e as cartas dos amigos, documentos das escolas freqüentadas, diplomas, medalhas, recortes de jornais, os cadernos com estudos de paisagens, se figuras e esboços de composição, as pequenas esculturas que ele fez e as recordações de uma vida nobre e clara, toda consagrada à arte”. (destaque meu). Temos informações ainda, não comprovadas, de peças escultóricas do artista em Porto Alegre. Seu sobrinho-neto, o senhor Percy Becker possui, entretanto, duas peças de artes aplicadas – um cinzeiro em majólica, e uma placa cerâmica – ambas pintadas e assinadas pelo artista, peças a que tivemos acesso e das quais possuímos documentação fotográfica. 10 No mesmo texto, na p. 121, Guido escreve que Weingärtner criou uma “linda fantasia evocadora da romântica Margarida de Goethe, [que] desce do carro para entrar num palácio em festa”. Na mesma página, um pouco mais adiante ele explica-se, afirmando que a figura pintada estava “Fantasiada assim de Margarida”. Como podemos ver a obra é inspirada e não uma ilustração do Fausto. Em outra passagem do mesmo texto (p. 123) Guido escreve informando sobre “alguns esboços num caderno de desenho de 1881 – projeto de um quadro em torno da Margarida do Fausto”.

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1. Introdução Preconceito, medo, deslumbramento, são alguns dos sentimentos que marcam a inter-relação entre as artes e a fotografia. Se nos dias de hoje ainda se assiste, com mais freqüência do que seria esperado, a discussões quanto à fotografia ser ou não uma forma de Arte, ao longo do século XIX as relações eram ainda mais emaranhadas. À fotografia como documento, opõe-se a idéia de fotografia como ramo das belas-artes, uma idéia já em discussão em fins do século XIX. As intervenções no registro fotográfico por meio de técnicas pictóricas foram amplamente realizadas numa tentativa de adaptar o meio às concepções clássicas de arte, no que ficou conhecido como fotopictorialismo. Os fazeres também se emaranhavam. Daguerre, o iniciador da fotografia – embora muito antes, Leonardo da Vinci já houvesse feito experiências com a câmera escura – foi originalmente pintor, com prêmios pelo seu trabalho plástico, e cenógrafo. Depois das experiências de Daguerre com a fotografia, iniciadas pela primeira metade do século XIX (STELZER, 1981), a técnica espalhou-se rapidamente. Em 1861 já haveria 33 mil pessoas vivendo da produção de fotografias em Paris (KOSSOY, 1980: 38).

pedro weingärtner: sob o olhar fotográfico susana gastal

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Se muitos foram os que realizaram experiências com a fotografia, alguns as fizeram com alto grau de maestria e competência, criando maior aproximação com a pintura. Segundo Stelzer (1981), o fotógrafo Gustave Le Gary, por exemplo, teria sido o primeiro a fotografar nuvens. Em 1880, estas fotos podiam ser compradas em vários pontos de Paris, e teriam servido de inspiração a Coubert, para a execução de suas marinhas. Outro que utilizou fotos, embora houvesse participado de um abaixo assinado ao governo francês, pedindo a proibição da fotografia, seria Ingres. Delacroix foi membro de uma das primeiras sociedades fotográficas, e há registros que teria utilizado fotografias como base para alguns de seus desenhos. Degas foi outro fotógrafo apaixonado, para não citar os impressionistas, cuja primeira exposição em 1874 – que serviu inclusive para caracterizar o movimento –, foi realizada no estúdio do fotógrafo Nadar. Para Stelzer (1981:59-60), no caso do uso da fotografia pelos impressionistas: [...] não há nada de estranho, já que estes, pintores do ar livre que ´descobriram´ a luz solar, que buscavam captar o ´momento´ nas cenas fugazes, tinham que sentir em relação aos fotógrafos uma aproximação muito diferente da sentida pelos inumeráveis pintores 549

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de 1901, realizada na Capital, havia um setor dedicado às Artes Plásticas – transformando-a no segundo grande evento de artes, realizado na cidade – do qual participaram vários fotógrafos. A começar pelo artista Santiago da Costa, vindo da cidade de Rio Grande, que mesmo inscrito na categoria pintura, juntou à mostra várias de suas fotografias.

acadêmicos e ´oficiais´, os quais utilizavam a fotografia – às escondidas e com consciência suja – unicamente como substituto de seus modelos. Estes empregavam as fotografias como modelos, para poder copiá-las, pois só eram capazes de empregar as fotos derivadas de das pinturas, ou seja, as convencionais. 2. O Rio Grande do Sul no final do século XIX

Mas outros fotógrafos estiveram presentes na Exposição de 1901, entre eles Balduíno Röhrig, que apresentou “grande quadro contendo retratos fotográficos de alto estilo e, para dar-lhes maior saliência, colocou-o como tal procedera com sua experiência a óleo, sobre avantajado cavalete” (DAMASCENO, 1971:191). Röhrig chegara a Porto Alegre em 1865 e estabelecera-se como fotógrafo. A partir de 1869 esteve com um atelier bem freqüentado na Rua da Praia, a principal da cidade. Só depois de consagrado como fotógrafo, conquistaria espaço como pintor.

O sistema de artes no Rio Grande do Sul é tão recente como presença européia na região. Ele começa a se constituir entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, período em que surgirão os primeiros artistas nascidos na região, como Pedro Weingärtner, ou que ali se fixaram de maneira mais permanente. Este período também será concomitante a entrada da região na Modernidade, se por tal entender-se que a sociedade regional, no período que vai em especial de 1890 a 1930, consolidou um processo de modernização iniciado nas décadas anteriores, com a inserção regional em um capitalismo mais sofisticado e de mercado exportador, e o surgimento de uma classe burguesa local. Seu trabalho tornou o sistema econômico mais complexo, a partir da produção agrícola e da implantação de uma indústria artesanal. Houve, ainda, uma aceleração dos processos de urbanização, em especial da capital, Porto Alegre, e a presença no local de uma forte indústria cultural, marcada não só pela proliferação de salas de cinema já na primeira década do século XX, mas também, por exemplo, da primeira gravadora de discos do Brasil – a Casa Elétrica – e da primeira grande editora, responsável pela Revista do Globo, primeira revista de variedades de circulação nacional. Ou seja, embora os artistas plásticos do período ainda fossem fortemente influenciados pelo academicismo, as lógicas culturais locais estariam associadas não só a um viés erudito clássico, mas muito influenciadas pela presença de manifestações da indústria cultural, que na falta de uma tradição erudita mais arraigada no local, ali encontraram solo fértil.

Apesar destes registros, no cuidadoso estudo de Athos Damasceno sobre as Artes no Rio Grande do Sul, há poucos registros sobre presença da fotografia. Essas rápidas referências à fotografia, quando acontecem, vêm antecedidas de uma explicação constrangida do pesquisador (que, destaque-se, lança seu tratado em 1971, mostrando a permanência dos ranços do século XIX em relação à fotografia): Aos rigoristas há de parecer pouco cabível, em notícias sobre Artes Plásticas, o registro de fotógrafos e fotografias presentes ao certame (refere-se à exposição de 1901). Mas, como para tudo há explicações, queremos dizer que assim procedemos por três motivos: primeiro, porque a inclusão, na galeria artística, de profissionais do ramo e obras do gênero obedeceu critério adotado pelos organizadores da mostra [...]; segundo, porque a arte fotográfica não deixa de ser paraplástica e – olhem lá! – bastante difícil...; e, terceiro, porque – e isto vai por nossa conta! – sendo certo que há fotógrafos que são verdadeiros pintores e pintores que não são mais do que fotógrafos, não vemos razão para que não vivam em perfeita harmonia debaixo do mesmo teto... (DAMASCENO, 1971, p. 191).

Quanto à fotografia, ainda há poucas pesquisas sobre a presença de fotógrafos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Além dos conhecidos Irmãos Calegari, de Terragno, de certa Mme Reeckel – que participara da Exposição Comercial e Industrial de 1875, em Porto Alegre e de Lunara, sabe-se pouco sobre aqueles profissionais que estiveram na cidade e no Estado, no período (ALVES, 1998). Segundo Athos Damasceno (1971), na Exposição Brasileiro-Alemã

Ou seja, o pesquisador reconhece que a fotografia, em mãos talentosas, transforma-se em expressão artística, mas estes artistas só entrarão no seu livro sobre as Artes Plásticas, nos vieses do texto. Seguindo ainda as anotações de Damasceno, vêse que, se os fotógrafos eram tidos pela sociedade 550

Pedro Weingärtner sob o olhar fotográfico

com certo desdém, a aproximação dos artistas com a fotografia, em Porto Alegre, não foi rara. O italiano Frederico Trebbi, por exemplo, acabou optando por residir no sul em 1869. Ex-aluno da Academia de Belas Artes de Roma, foi responsável pela formação de muitos artistas locais, alunos em suas aulas. Trebbi associava ao ofício da pintura, o de fotógrafo, tendo atuado com esta última atividade, inclusive, na Guerra do Paraguai. Mas Trebbi realizou poucas experiências com a pintura de observação, preferindo trabalhar no atelier, a partir de moldes em gesso, ou cartões. Segundo Damasceno, Trebbi reconheceria a superioridade da pintura a partir da observação direta, mas quase não a realizava porque “muito difícil lhe seria oporse a certos escrúpulos do meio, pois falar, então, em pintura ao ar-livre constituiria um desfrute e pensar em modelo vivo – o nu, por exemplo, que horror!.... – produziria escândalo” (DAMASCENO, 1971:221).

Pedro Weingärtner (1853-1929), o mais importante artista do Rio Grande do Sul entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, não ficou imune a esta aproximação com a fotografia, em que pese à desconfiança que tal afirmação possa causar entre os teóricos e os historiadores mais tradicionais. Weingärtner é fruto da primeira geração de imigrantes, já nascida no Brasil, onde a família chegara alguns anos antes. Uma família que se estabeleceu com uma importante litografia, em Porto Alegre. No Rio Grande do Sul, é a partir de 1849 que começam a surgir oficinas litográficas, onde atuavam artistas gravadores, desempenhando as atividades de desenhistas, ilustradores, retratistas e caricaturistas. Aqui no RS, a oficina era a um só tempo gráfica comercial e jornalística, ateliê e escola. [...] Uma das litografias mais famosas do Brasil e do Rio Grande do Sul foi a Litografia Weingärtner, que começou a funcionar em 1885. Tinha como gravadores o próprio (Inácio) Weingärtner e Antonio Francisco Ribeiro e contava com desenhistas da qualidade de João Petersen e Faustino Ladeira (TIBURSKI, 1995: s/p).

Os fotógrafos também valorizavam a aproximação com os artistas. Os Irmãos Ferrari, fotógrafos reconhecidos, sempre mantiveram artistas trabalhando em seu atelier. No final do século XIX, o mercado de retratos, associando pintura e fotografia, era tão próspero que certa Sociedade de Artes, de Buenos Aires, angariava encomenda de trabalhos em Porto alegre. Estes trabalhos, depois, seriam pintados na Argentina, a partir de fotografias. A concorrência argentina deve ter se tornado perigosa porque, em 1897, o estúdio Ferrari contratou o artista Giusuppe Boscagli2, que vinha seguidamente à cidade, a serviço do atelier argentino3. A crítica da época, entretanto, registrou suas desconfianças em relação a este tipo de proposta, quando de uma exposição de dois retratos, assinados por Boscagli:

Esgotadas as possibilidades do meio local, e com muita habilidade para desenho e pintura, Pedro Weingärtner voltou à Europa para aprimorar-se como artista. Estudou na Alemanha, passou por Paris, e por fim estabeleceu-se – por muitos anos – na Itália. Sobre seu modo de vida, marcado por constantes deslocamentos, Bohns (2006:403) registra: [...] Pedro Weingärtner pertence a uma geração em que os acontecimentos precipitaram de maneira mais vertiginosa e, embora os relatos sobre sua personalidade dêem conta de um sujeito pacífico e pouco inclinado a aderir a revoluções no plano político ou artístico, um rápido olhar sobre sua biografia nos faz ver que a facilidade com que se deslocava entre diferentes países, estando ora no Brasil, ora na Itália, ora na Alemanha, já era coisa dos tempos modernos.

Os dois retratos referidos são cópia fotográfica, e nesse gênero não é possível exigir mais de um artista que tem de se subordinar à fotografia que o cliente escolhe. Entre nós ainda há quem queira submeter à exigência artística de pousar para ser retratado por um pintor, durante quatro ou cinco sessões, como seria para desejar, não só para as condições do retrato, mas ainda como conveniência do próprio interessado (apud DAMASCENO, 1971: 413).

Nas vindas periódicas ao Brasil – e a Porto Alegre – apresentava seu trabalho ao público local. Aproveitava as visitas ao Sul para percorrer e cidade e o interior, fazendo anotações que serviriam para futuros trabalho. Mesmo quando não visitava a região pessoalmente, Weingärtner se fazia presente enviando telas que aqui deveriam ser vendidas pela família, ou fotos de trabalhos que estivesse realizando, para conhecimento dos possíveis interessados:

Enfim, são alguns exemplos de como a pintura e a fotografia imiscuíam-se, numa Porto Alegre que dava seus primeiros passos em termos plásticos, em especial no que se refere a produção de retratos. 3. Weingärtner e a fotografia 551

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

da composição atenda aos padrões clássicos da pintura: a imagem coloca o observador à distância e predomina a centralização da linha do horizonte. Nesta mesma imagem, ainda há a visão de um ponto de vista elevado, o que, segundo os autores, também seria uma conquista da estética fotográfica, já que a pintura em seus padrões acadêmicos priorizaria a visão de mesmo nível do observador/paisagem. Este é apenas um caso e, repita-se, este estudo deva ser aprofundado. O que se propõe ressaltar, aqui, é a intimidade de Weingärtner com a fotografia, um fato que talvez venha sendo menosprezado pelos pesquisadores, pelos mesmos preconceitos que, como colocado, acompanharia os críticos das artes.

Weingärtner continuará a fazer-se lembrar, mesmo quando pouco esperançoso de deixar em mãos de seus co-estaduanos os frutos mais valiosos de seu labor. Em setembro de 1897, por exemplo, os jornais da capital voltam a ocupar-se do artista e o Correio do Povo registra: ‘A um dos nossos repórteres foram mostradas fotografias [grifo meu] de admiráveis telas que estão fazendo sucesso em Roma [...]’. As fotografias, a que as notícias aludiam, eram as dos quadros Frauta (sic) de Pan, A sentença de Páris e Um banho em Pompéia, fotos que, apesar de reproduzirem as telas apenas em preto e branco, davam, na opinião do crítico do jornal de Caldas Júnior, prova cabal do extraordinário mérito do seu autor (DAMASCENO, 1971: 204-5).

Os primeiros passos para reconstruir a intimidade de Weingärtner com a fotografia podem ser garimpados no texto de Ângelo Guido (1956), o principal biógrafo do pintor. Guido registra, por exemplo, que nos seus primeiros tempos de Europa, com dificuldade para sobreviver em Berlim, “sem recursos algum, passando privações de toda sorte, desesperado, resolveu empregar-se numa fotografia e abandonar os estudos” (GUIDO, 1956: 25). Weingärtner foi salvo de destino tão cruel – abandonar a Academia, onde estudava, e tornarse fotografo ou colorista de fotografias, ou ainda, pintor de retratos a partir de fotos – pela generosidade de amigos, que passaram a auxiliálo financeiramente.

Quando iniciei a pesquisar as Artes Plásticas em Porto Alegre no século passado, as evidências – como as aqui apresentadas – indicavam que os artistas em atuação no sul do país não estavam imunes à presença da nova tecnologia para obtenção de imagens, com destaque para a máquina fotográfica, e que esta aproximação traria conseqüências diretas na construção das imagens na pintura. A lente fotográfica introduziu uma maneira nova de reproduzir o mundo em imagens. Por suas características, as imagens fotográficas produzidas na segunda metade do século XIX “são marcadas por fortes contrastes, traços sintéticos, ênfase no primeiro plano, exploração de planos diagonais, enquadramento fechado, corte abrupto e o gosto pela geometrização espacial. Características presentes, porém quase nunca simultâneas [...]” (CARVALHO, 1991:208). Na pintura, por outro lado,

Aliás, pintar retratos a partir de fotografias não era atividade desconhecida para o artista. Na carta que dirigiu ao Imperador D. Pedro II, em 13 de abril de 1883, solicitando auxílio financeiro concluir seus estudos na Europa, salienta, referindo-se a mesada recebida dos amigos, que “somente com ajuda de alguns negociantes brasileiros residentes em Hamburgo, foi habilitado de continuar nos estudos até agora”. No mesmo documento lê-se o seguinte parágrafo:

[...] a composição é ampla. O tratamento de conjunto prevalece e com ele a captação de imagem de um ponto de vista distante, onde predomina o plano médio e a centralização da linha do horizonte. [...] Na esteira das inovações fotográficas, a pintura do final século começa a explorar o primeiro plano aproximado (CARVALHO, 1991:209).

O Suplicante, Senhor tomou a liberdade de pintar um retrato a oleo de Vossa Majestade Imperial baseado em n´um pequeno cartão photographico de Alberto Haenschel da Corte, e tambem do Exmo Vosso Conselheiro Henrique d´Avila, actual Ministro da Agricultura, para mostrar os progressos que fez na parte techina d´arte, sendo alias bastante diffícil pintar um retrato sem presença da pessoa o que pode ter dado lugar a erros graves a respeito das cores e da semelhança [...].

Estudar como estas características estariam ou não presentes na produção pictórica de Pedro Weingärtner, é um trabalho exaustivo que está por ser feito. Entretanto, verifica-se, mesmo aprioristicamente, que o pintor do Rio Grande do Sul não ficou imune à questão do primeiro plano. Na pintura intitulada Morro do Chapéu, por exemplo, há um morro, recoberto de vegetação em primeiro plano, e deste morro em relação ao resto da composição há um corte abrupto, embora o fundo

Por via das dúvidas, e para não comprometer o bom nome do seu trabalho, Weingärtner anexou à 552

Pedro Weingärtner sob o olhar fotográfico

missiva um estudo feito na Academia alemã, a partir do modelo vivo.

do início do século XX. Comerciante bemsucedido, dono de um Secos e Molhados, saía pelos arredores para fotografar a rua, as pessoas comuns, os namorados, os exescravos, os aguateiros, os imigrantes alemães do Vale dos Sinos e, claro, gaúchos a cavalo. Congelou, em preto e branco, a Capital de 70 mil habitantes que seguia, passo a passo, o receituário positivista da modernização ainda com a delicadeza das grades rendilhadas nas fachadas. Como bem disse o cronista da Gazeta do Comércio, em 1903, Lunara é um “incorrigível amador da fotografia, que trata simultaneamente de açúcar e de tudo que passa... pela Praça”. Seu olho jornalístico não deixou passar a tradicional exposição festiva de abertura do século (1901), junto à Escola de Engenharia, revelando em panorâmicas os primórdios do nosso Parque de Redenção, um campo sem maiores atrativos onde os carreteiros comercializavam mercadorias do interior. [...] O fotógrafo era um grande amigo do pintor Pedro Weingärtner, uma das referências fundantes da arte no sul. (GOLIN, 2002:3)

Se a utilização de fotografia como base para o trabalho em pintura não lhe era totalmente estranha, como se pode ver, a aproximação com o meio fotográfico era uma constante. Como registra Guido, em suas voltas ao Brasil, Weingärtner realizaria sua primeira exposição no Rio de Janeiro: “Esta exposição foi realizada em 1888, à rua do Ouvidor, no salão do estabelecimento fotográfico Insley Pacheco & Cia4, onde freqüentemente se expunham quadros e outras obras de arte” (GUIDO, 1956: 41). Esta exposição foi muito bem sucedida e, como o Imperador não pudesse visitá-la pessoalmente, “resolveu Weingärtner ir ao passo imperial, em São Cristovão, mostrar ao Imperador alguns trabalhos e fotografias de outras telas” (Id.: 42). Se até aqui parecer ficar demonstrada a aproximação de Weingärtner com os fotógrafos e a fotografia, restaria a dúvida sobre se ele teria utilizado, ou não, a máquina fotográfica como instrumento de registro e levantamento de informações para futuros trabalhos. Ângelo Guido (1956: 76) registra: “Pelo que se pode deduzir de vários cadernos que examinamos, não viajava nunca, não realizava mesmo um passeio, como os que fazia aos domingos, em geral em companhia do íntimo amigo Carlos Magalhães de Azeredo, então cônsul em Roma, sem levar o seu pequeno caderno em que ia anotando o que lhe interessava ou podia servir para uma composição”. O que Guido não informa é se, além do caderno, Weingärtner também carregaria sua máquina fotográfica. Esta dúvida, entretanto, pode ser desfeita por um cartão, cuidadosamente guardado por seus descentes, assinado pelo cônsul em Roma, Azeredo, e datado de 5 de maio de 1905. No cartão se lê:

Sobre o processo de trabalho de Weingärtner, Guido (1956:63) registra: A série de telas inspiradas na paisagem, as cenas, tipos e ambientes do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, verá representar uma parte muito importante no forte e variado conjunto das obras pintadas por Pedro Weingärtner. Não poucas dessas telas foram pintadas no próprio ambiente que representam; diversas, porém, resultaram de composições posteriores, feitas em Roma, mediante numerosos estudos de desenho e pintura executados no local.. Esses desenhos, esbocetos, manchas e pequenas impressões de paisagem e figuras, mostram com que meticulosidade e espírito de fidelidade ao real Pedro Weingärtner reunia o material para os seus quadros de costumes de assuntos riograndenses.

Meu caro Amigo, muito te agardeceria se pudesses vir abraar domingo, trazendo contigo a máquina fotográfica, para desejo que me tires uns retratos do nosso camarada Micello. Teu de coração, Azeredo. Nas visitas a Porto Alegre, os passeios eram feitos na companhia do fotógrafo Lunara. Os dois costumavam percorrer locais dos morros da Glória e Teresópolis, e as margens do arroio Dilúvio, nas cercanias da cidade mas, novamente, as pesquisas não registram se nestas ocasiões Weingärtner também fotografaria.

Como se vê, em diferentes momentos e por diferentes razões Weingärtner esteve muito próximo da fotografia. Repita-se: o quanto esta aproximação condicionou ou influenciou o seu processo de trabalho diretamente, está por ser averiguado. Mas, com certeza, a sensibilidade do século XIX, de modo geral, não ficou imune ao olhar fotográfico. Por que um artista, que justamente se marca por seu olhar sensível, ficaria?

Lunara, pseudônimo de Luiz Nascimento Ramos (1864-1937), deixou para a contemplação do futuro a pequena Porto Alegre

Referências bibliográficas 553

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 2

ALVES, Hélio Ricardo. A fotografia em Porto Alegre: o século XIX.ACHUTTI, Luiz E.R. Ensaios (sobre o) Fotográfico. Porto Alegre: Unidade Editorial/ SMC, 1998, pp.9-21. BOHNS, Neiva M.F. Os primeiros pintores – Presenças desapercebidas, ausências sentidas. LIN, Tau et al. História geral do Rio Grande do Sul. V. 2 – Império. Passo Fundo: Méritos, 2006. CARVALHO, Vânia C. As representações da natureza na pintura e na fotografia brasileira do século XIX. ABRIS, A. (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991 DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971. GOLIN, Cida. Lunara. Jornal do MARGS, nº 78, abril de 2002, p. 3 GUIDO, Ângelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, 1956. KOSSOY, Bóris. Origens e expansão da fotografia no Brasil. Século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. STELZER, Ott. Arte e Fotografia – Contactos, Influencias y Efectos. Barcelona: Gustavo Gili, 1981 TIBURSKI, João C. Boletim Informativo do MARGS, nº 23, out/dez de 1995

Boscagli, Giuseppe (Floreça, 1862 – Rio de Janeiro. 1945). Pintor, desenhista, discípulo de Morini e Massani ca.1897 - Porto Alegre RS - Pinta retrato de Júlio de Castilhos, a serviço do Atelier Ferrari. ca.1899 - Porto Alegre RS - Faz alguns trabalhos para a Sociedade de Artes de Buenos Aires, que mantinha uma agência em Porto Alegre, e recebia encomendas de retratos a óleo, aquarela e crayon, copiados de fotografia. ca.1909 - Torna-se pintor oficial das expedições do Marechal Rondon ao interior do Brasil ao interior do Brasil e fixa inúmeros aspectos da natureza, fauna, população e costumes da região amazônica (Enciclopédia Itaú Cultural Artes Plásticas). 3 Como se vê na nota anterior, segundo a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Plásticas, a situação seria inversa a apresentada por Athos Damesceno: Boscagli teria primeiro trabalhado para o Atelier Ferrari e depois sido contratado pelos argentinos. 4 Insley Pacheco: “Fotógrafo y litógrafo brasileño activo en Río de Janeiro desde 1854 hasta fines del siglo XIX. [...] En Nueva York trabajó primero como aprendiz de Mathew Brady y luego con Jeremiah Gurney, donde se puso al tanto de los últimos adelantos fotográficos. Además estudió pintura con el paisajista Grazoffre. (..) Por mucho tiempo tuvo su estudio en la rua do Ouvidor 102. Participó de varias exposiciones nacionales e internacionales y obtuvo 14 medallas por sus retratos y paisajes. Fue fotógrafo de la Casa Imperial y Caballero de la Orden de Cristo de Portugal. Practicó también la fotopintura. http://www.geocities.com/ alloni1/biografiaslatin.htm

Notas 1 Doutor. Pontifícia Universidade Católica do RS Universidade de Caxias do Sul

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Ao longo deste artigo, pretenderemos analisar: as referências ao pintor Pedro Weingärtner (18531929) 2 em dicionários biográficos; o círculo de amizades e a cultura internacional no qual estava inserido além da análise de dois trípticos de sua obra enfocando o tema da mulher. Ademais, o tríptico Chez la Faiseuse D’Anges (Roma, 1908) é foco do nosso trabalho de Doutorado intitulado A mulher na obra de Pedro Weingärtner. Citamos Coli, em Como estudar a história da arte brasileira do século XIX: “Como vencer os escolhos de uma análise que exige os próprios meios mentais da cultura na qual o artista encontrava-se banhado? Buscando-se alimentar dessa cultura. Que tipo de leitura podiam ter? Que contatos intelectuais?”3. Partindo dos princípios sugeridos por Coli, primeiramente buscaremos nos imbuir das influências na obra de Weingärtner, começando por referências em dicionários biográficos de pintura e em menções que o artista fez em cartas, referindose a pintores que influenciaram de alguma forma a sua obra. No dicionário biográfico de artistas alemães de Thieme-Becker 4 , encontramos uma referência sobre o artista, que remete a uma notícia em uma revista inglesa datada de 1900 e também à exposição Universal de Paris em 1900.

as influências na obra de pedro weingärtner (1853-1929) vivian s. paulitsch

Na revista The Studio de 19005, encontramos uma crítica interessante e uma reprodução de um quadro de Weingärtner. O título da obra é La Moisson ou Harvesting Wheat e trata claramente de uma cena de colheita em Antícoli6. Ademais, a crítica referese a alguns quadros de temas gregos e romanos dos anos 1897-98, do que se presume certa erudição do pintor ao ter conhecimento dessas civilizações. No entanto, vamos nos ater ao quadro reproduzido, uma pintura de gênero aproximandoo do regionalismo italiano e de pintores da ‘campanha’ romana.

1

A crítica salienta que Weingärtner também pinta “sujets modernes” como podemos ver na citação abaixo: Pedro Weingärtner, qui vient de rentrer d’Europe aprés un longue séjour dans l’Ancien Monde, se plait à peindre des sujets antiques, et, dans la peinture de ces scénes empruntées à la Gréce ou à Rome, il fait preuve d’une parfait conaissance de ces civilisations disparues. Nous citerons parmi ses principales oeuvres: Sapho, Daphnis & Chloe, un jardin pompèien, Vengeance de Bachus. M. Weingärtner a aussi peint des sujets modernes. Nous reproduisons de lui un tableau intitulé la Moisson, dont on ne

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

(Roma, 1904) observamos pontos em comum, tais como o uso de diversas diagonais enlaçando as composições de uma forma simples e natural.

manquera pas d’apprécier la sobre ordonnance et la savante composition. No mesmo ano, também na revista The Studio,7 um artigo intitulado Some Modern Italian Artists, de Romnaldo Pantini, trata do desenho e de temas de vários artistas italianos dando um panorama do que ele chamou réveil artistique dos artistas italianos desta época. O texto é claro:

Dois pontos parecem fundamentais: primeiro, que Weingärtner era descendente de imigrantes alemães que colonizaram o Rio Grande do Sul e que se localizaram na zona de São Leopoldo. Segundo, em sua obra a proposta regionalista foi adotada como estímulo para introduzir no Brasil um realismo estilístico de grande significado no momento da passagem do Império para a República.

Le réveil artistique de l’Italie ne date veritablement que de la seconde moitié du XIXe siècle.[...]Prenons par exemple, trois de plus puissantes et des plus heureuses personnalités artistiques que l’Italie ait produites en ces dernières années. [...] Au Grand Palais, à Paris, ont été exposés nombre des dessins de Giovanni Segantini et de Luigi Serra. De ce dernier, on a dit et trop souvent répété qu’il dessinait pour le plaisir de dessiner; il est vrai que son inlassable souci de faire et de refaire son ouvre peut, au premier abord, donner à cette opinion quelque couleur de raison; mais, comme Serra s’attachait toujours à rendre le contour avec une exactitude absolue et à placer les moindres détails dans la vraie perspective,on ne peut guère le blâmer, à cet égard, d’avoir consacréant de soins et de peine à ses oeuvres. Quant aux dessins de Segantini - artiste malheureusement ravi à notre admiration dans toute la force de sa réputation - ces oeuvres attirent l’attention du spectateur par des qualités tout à fait différents de celles de Serra. Les types et les scènes procèdent d’une toute autre manière d’interpréter la realité. On peut observer que l’artiste regretté s’efforçait de donner à ses personnages une expression trés complexe, plutôt qu’à réaliser leur exacte représentation; et il cherchait toujours à empreindre ce caractère d’un charme tout spécial, fait de poésie et de mystére.

Assim, não surpreende que a temática regionalista introduza-se modernamente na sua pintura de gênero, um regionalismo representando a vinda dos imigrantes no sul do Brasil, conforme vemos na citação abaixo: Derrubada, do gaúcho Pedro Weingärtner, talvez seja a obra de maior êxito entre todas as que se inserem no filão da retomada da paisagem nacional baseada no exemplo de Taunay. Contudo, nos troncos retorcidos e nas raízes revoltas, expostas a uma luz crua, o artista soube captar as consonâncias simbólicas do tema, ao passo que resolve os planos e os contrastes luminosos mediante densos empastes de cor na superfície. Em sua pintura de gênero, Weingärtner fundou um novo e vigoroso regionalismo na pintura brasileira, representando o mundo dos emigrantes no sul do país com uma viva sensibilidade para a anedota de costume e, por vezes, com rara concentração formal, como em Desolada, atualmente no Masp.8 No entanto, o pintor e muitos de seus contemporâneos, neste período de dois séculos, imbuídos da orientação do divisionismo e das influências mútuas e complexas do positivismo e do simbolismo que colocam aos artistas interrogações novas a propósito de sua criação, questionamentos estes e pesquisas que compreeendem também sua relação com a fotografia. Pedro Weingärtner, assim como Liebel e os demais, utiliza a fotografia como um substituto do desenho, através de uma arte capaz de dar forma às emoções, concomitantemente à pesquisa expressiva e formal.

A referência no artigo de que vários desenhos de Giovanni Segantini e de Luigi Serra teriam sido expostos no Grand Palais, em Paris, nos conduzem obviamente a inferir que Weingärtner deve ter visto essas obras. Desde cedo, Pedro tinha uma evidente e forte ligação ao desenho, talvez por pertencer a uma família de litógrafos. A distinção entre os desenhos de Segantini e Serra, da forma como os tipos e cenas provêm de uma outra maneira de interpretar a realidade, contrapõe-se ao aspecto em que Weingärtner trabalha, ou seja, de maneira sutil. Em suas cenas de colheita, o artista retratauma paisagem carregada de detalhismo mas com expressões de caráter regional. Nas obras Le moisson (Roma, 1899), Ceifa em Antícoli (Roma, 1901) e Fim de ceifa

Como já foi dito, no itinerário artístico os contatos do círculo de amizade são parte integrante da compreensão da atividade pictórica do pintor. O pintor aragonês Mariano Barbasán Lagueruela9, (Zaragoza, 1864 – Id., 1924), segundo o biógrafo de Weingärtner, foi um dos principais contatos dele 556

As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929)

desde que Roma se tornou sua residência fixa, embora temporariamente se ausentasse do ateliê para breves excursões a Pompéia, Herculano, Nápoles; para passar o verão em Antícoli Corrado, com o seu colega Barbasán, ou para mais demoradas viagens ao Rio Grande do Sul e exposições em São Paulo e no Rio de Janeiro.

medalhas são muito bons, mais agora se paga mais a firma - Vi uma exposição delle em Köen (n’allemanha) onde tinha 70 quadros mas gostei so de 4 ou 5 trabalhos, o resto era bem mediocre, tanto que o resultado pecuniario foi bem modesto. - para os compradores allemães faltava a alma nos quadros de Sorolla, muitos admirarão a técnica,o bom colorido, o desenho correcto.

Em La procesión del Santo Sacramento, de Mariano Barbasán,de 1887, tem-se uma paisagem com uma procissão em primeiro plano, em que os personagens, neste pequeno quadro, povoam o ambiente em uma cena típica desta região. Assim como no quadro Cena de Anticoli (Roma, 1890), de Weingärtner, onde homens e mulheres também estão integrados e, por assim dizer, submetidos ao meio nesta paisagem de campanha.

Retornando à Espanha, Sorolla instala-se em Madri clareando a palheta. Faz viagens freqüentemente a Valência, onde a paisagem e o cotidiano dos pescadores o fascinam. Na produção italiana de Sorolla, dominam as paisagens com um marcado acento realista, características presentes também na obra de Weingärtner principalmente nas obras de ceifa em Anticoli e também em paisagens do interior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

As obras Ceifa em Anticoli Corrado (Roma, 1901) e O retrato dos noivos, (Roma, 1904) apresentam o mesmo imediatismo carregado de verdade humana nestes grupos de camponeses no trabalho da terra, na pose para uma foto em uma festa, respectivamente retratados nestas composições. Ou seja, nos dois pintores vê-se claramente que se interessam pelas relações culturais, pelos gestos, pelo meio e pelos objetos que caracterizam a região representada. Além da máquina fotográfica poder representar no quadro de Weingärtner a simbologia do advento da modernidade, da fotografia como auxiliar do desenho, a aprovação de seu aporte educativo que permite ver adiante, tendo lentamente consciência que ela gera novos hábitos visuais, remetendo a novas convenções da imitação.

A obra Desolada (Roma, s/d),de Pedro Weingärtner pertencente ao acervo do Museu de Arte de São Paulo, é um exemplo desse tipo de paisagens realistas em pequeno formato numa cena com uma palheta suave. Sabe-se que Sorolla expôs freqüentemente na Espanha e na França, no Salão de 1895, na Galeria Georges Petit em 1906, na Alemanha e nos Estados Unidos, ele colecionou medalhas e triunfou na exposição Universal de Paris em 1900. Ao contemplar Mes enfants, um dos quadros que Sorolla expôs na Galeria Georges Petit em 1906, e recentemente exposto no Petit Palais10, levantamos a hipótese de que Weingärtner possa também ter freqüentado esta exposição. A palheta escura,, as pinceladas finas, o acentuado claro-escuro contrastando os vermelhos dos vestidos das meninas, e a dimensão desta tela, que representa com realismo uma cena de interior, podem ter influenciado Weingärtner mais tarde nos trípticos que produziu.

Seria interessante tomar uma obra precisa de Barbasán, Las hormigas, de 1910, para colocá-la em relação com a Ceifa em Anticoli (1903) de Weingärtner. Nas duas telas temos uma atitude semelhante: a colheita na campanha romana. Se as posturas são, portanto, muito parecidas, os tratamentos picturais opõem-se de modo radical. Barbasán modela com pinceladas mais como as manchas do divisionismo italiano. Ao contrário de Weingärtner, onde temos uma superfície mais uniforme, lisa. A presença dos cavalos no centro fundamenta a qualidade construtiva da composição, cuja força neutraliza a paisagem infinita. Em Barbasán isso dá-se pelo grupo de camponeses, cujos gestos estabelecem um ritmo elegante e diversificado no conjunto.

No Estudo de figura (Roma, s/d), de Pedro Weingärtner, pertencente ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul, vê-se claramente uma similaridade com a obra de Sorolla. A composição é mais escura, porém mais carregada nas cores quentes, proporcionando contrastes. O tríptico As três fases da vida 10a, (Roma, 1919) deve ter sido parte de uma das últimas obras que executou no seu atelier da Via Margutta, pois em 1920 Pedro Weingärtner se translada definitivamente ao Rio Grande do Sul.

[...] Aqui nós soubemos do sucesso do pintor Sorolla, e dizem que ele ganhou dois milhões de francos. Eu conheci aqui em Roma o Sr. Sorolla e na realidade, ele tem muito mérito, os primeiros trabalhos com os quais ele teve

Teria sido esse tríptico mais uma obra baseada em um fato cotidiano? Seria essa mulher uma italiana 557

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ou a cena representaria algum fato de que ele tenha ficado sabendo em uma de suas viagens ao Rio Grande do Sul? Poderia fazer alguma referência a uma obra literária?

Na primeira parte, temos em primeiro plano uma menina de perfil, mendigando; atrás dela um idoso segurando um chapéu, e ao fundo da composição, uma vitrine, aparentemente de uma joalheria. O mais importante nesta obra não é a origem, mas a imagem por ela mesma, onde o pintor mascara-a ou a desvenda.

O contexto do que está representado seria da “mulher fatal”, que a literatura apresentava como dotada de exacerbada sexualidade, perigosa, má, bela, sedutora e ameaçadora para a civilização. No imaginário do pintor, essa “mulher fatal” tornase uma figura relevante, ocupando lugar destacado na parte central.

O quadro Suzanne au bain, que se baseia no texto do livro de Daniel do Antigo Testamento 13, nos aproxima da iconografia desta primeira parte. Assim como Weingärtner pode ter feito alusão, outros pintores simbolistas da mesma época, como Gustave Moreau, fizeram obras sobre esta temática. Como o quadro de Antoine van Dyck que pertenceu à antiga Pinacoteca de Munique, onde o pintor Weingärtner pode ter tido contato com a esta obra.

Os escritores naturalistas, ao se volta para o estudo da condição feminina, podem ter criado de certa forma um código discriminatório das mulheres prostitutas, mulatas, lascivas assim como daquelas melancólicas e decaídas. Desde os romances que registram o perfil da mulher casada insatisfeita com a mesmice do casamento e da vida doméstica, a exemplo de Júlia em a Mulher de Trinta Anos, de Balzac, ou de Emma Bovary, de Flaubert, até os romances que abordam a vida cortesã, com seus prazeres, vícios e decepções, a exemplo dos Esplendores e Misérias das Cortesãs, de Balzac, A Dama das Camélias, de Dumas, os Mistérios de Paris, de Eugène Sue, os inúmeros contos de Guy de Maupassant, dos irmãos Goncourt, de Zola, a sexualidade feminina se torna um objeto de preocupação neste período que, paralelamente, investe num campo da medicina destinado à saúde e ao corpo da mulher, a ginecologia.11

O “velho” que está por trás da menina mendigando se parece muito com um dos velhos que acusavam Suzanne mas que na verdade a desejavam e que tentam forçá-la a relacionar-se com eles. O homem “maduro” que corrompe a menina, fazendo-a perder sua “pureza” e a “honra”, e assim entrar no mundo da prostituição mostrando a degenerescência provindo do temor do fim dos tempos. Na parte central, temos um ambiente interno, provavelmente o quarto, onde vemos uma mulher com luxuoso vestido, sentada de costas e se olhando no espelho do toucador em um gesto de estar colocando um colar parecido com o da vitrine representada na primeira parte. À direita, observaa um homem em pé, elegantemente vestido. Poderíamos aproximá-la com a Nana, de Émile Zola. Em vários momentos a vemos contemplarse diante do espelho, admirar seu corpo:

‘Provenientes de antigas mitologias, de terras longínquas ou fantásticas, revelam as fantasias de uma época que fez do sexo a chave da explicação dos atos e comportamentos humanos, como ensina Foucault, e que associou de maneira indissolúvel sexualidade e subjetividade.’12

Um dos prazeres de Nana era despir-se em frente ao armário de espelho,onde podia ver seu corpo inteiro. [...] Era uma paixão do corpo, um arrebatamento pelo cetim de sua pele e pelas linhas delicadas do seu busto, que a deixava séria, atenta, absorta num amor de si própria.14

No contexto em que está representada em As três fases da vida, a figura feminina encarna o tipo da ‘mulher fatal’, figurada na literatura como dotada de super-sexualidade, perigosa, má, bela, sedutora e ameaçadora para a civilização. No imaginário de Weingärtner, esta ‘mulher fatal’, torna-se uma figura relevante, e ocupa um lugar destacado na parte central do tríptico.

Na terceira parte, temos uma mulher idosa, provavelmente a mesma, vestida de preto. Ela espera pacientemente por um homem no segundo plano que examina a jóia entregue por ela. Tratase da última parte desta narrativa, que seria simbolicamente o fim da vida, a velhice e a degeneração do corpo. Nas gravuras do jornal anarquista francês Assiette au Beurre 15, no número especial sobre prostituição La prostitution ilustrado por Kees Van Dongen, vemos a mesma seqüência

O pintor, aos 66 anos, utiliza pela segunda vez o formato de tríptico, criando desta vez uma narrativa evocando as fases da vida de uma mulher. O tamanho da obra nos remete possivelmente ao interesse do pintor em vender para um colecionador particular, devido às dimensões pequenas. O pintor oscila na representação do ambiente externo, interno (privado) e externo novamente.

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As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929)

de representação das etapas da vida das prostitutas.

tema é uma revisitação numa chave simbólica das três fases da vida feminina: infância, maternidade e a inevitável velhice.

Em algumas pinturas do século XIX, principalmente de bordéis, além das pessoas representadas, o espaço pictural e arquitetural ocupa posição de destaque. O desenho nos serve como uma informação destes espaços de diferentes maisons closes e de tipologias de construções que são lugares eminentemente modernos e contemporâneos dos grandes magazins, das gares e das arquiteturas coletivas.

No entanto, temos nos nus uma evocação impressionante da secura esquelética dos corpos das mulheres. A idéia diretriz da Idade Média, Media vita in morte sumus, é prudentemente representada nesta obra com a evocação desta natureza efêmera. Em Weingärtner, a semelhança com Klimt, afora o título da obra, encontra-se no mesmo tema revisto, ou seja, infância, vida adulta e velhice. Porém a distinção está na maternidade não evocada. A supressão da maternidade dá-se pelo fato de a narrativa referir-se possivelmente às três fases da vida de uma prostituta.

A representação de três mulheres em ambientes privados, ou seja, o espaço feminino, é recorrente em outros pintores. Em Trois femmes (1909-1910), de Umberto Bocciono (1882-1916), são representadas a mãe e a irmã de Boccioni e ao centro uma mulher com a qual o pintor tinha vivido uma relação tumultuada.

A pintura Homme et femme (1926), de George Grosz, mostra um quarto com a persiana fechada, onde uma prostituta se admira com um espelho em primeiro plano, vestindo uma roupa transparente. Porém, Grosz não mostra a imagem refletida no espelho. Em segundo plano, um homem sentado na cama, fumando um cigarro e provavelmente terminando de vestir-se, amarrao sapato. Grosz vai mais além de Weingärtner nesta obra: ele representa o mundo privado, o íntimo de forma mais realista, e pode-se até mesmo considerá-lo como uma continuação do que foi representado por Weingärtner.

As três mulheres estão representadas com uma luminosidade descendente e as formas são compostas como em raios oblíquos. Os olhares não se cruzam e cada uma está com uma expressão distinta. A obra testemunha uma assimilação deste pintor pela técnica do divisionismo com zonas monocromáticas e tratadas com degradês. No caso da obra de Weingärtner, as mulheres não estão no mesmo plano e temos uma luminosidade mais saliente na figura feminina da parte central que seria a representação da femme au miroir. É possivelmente a fase mais próspera da vida dela. O pintor não aderiu nem ao impressionismo, nem ao divisionismo, e manteve neste quadro um jogo delicado de pequenas pinceladas sutis e vibrantes, para sugerir uma impressão mais realista.

A mulher infanticida- O filho ilegítimo Em dezembro de 1910, Pedro Weingärtner retornou ao Brasil e em São Paulo expôs 52 obras de sua autoria entre as quais La Faiseuse d’Anges (Roma, 1908). Entre 1905 e 1911, graças à regulamentação jurídica própria e a figura de José de Freitas Valle, foram incorporadas ao patrimônio da Pinacoteca 33 pinturas sempre com iniciativa do governo Estadual de São Paulo. O tríptico La Faiseuse d’Anges foi uma delas, adquirida por uma soma bastante elevada, passando a integrar o acervo da Pinacoteca do Estado a partir de 1911. A obra foi objeto de diversos artigos publicados na imprensa como a reportagem : Exposição de Arte no Diário Popular em 28 de dezembro de 1910 e no Estado de São Paulo nesta mesma data de um autor desconhecido na parte Arte e Artistas.

Em Três mulheres na igreja, de W. Leibl16, a fortuna crítica desta obra comparou-a em relação aos detalhes à obra de Emile Zola. Neste temos representadas três mulheres na igreja em primeiro plano – uma jovem, uma madura e outra mais idosa. Assim como na obra de Weingärtner, é a representação simbólica do tempo que passa e das fases da vida. As três mulheres têm expressões do rosto, vestimentas e posições de oração distintas. No caso do tríptico, temos a mesma mulher representada também em posições, idade e expressões diferentes.

Em uma seqüência de fatos, o tríptico cria uma narrativa: na primeira parte, à esquerda, o artista aborda o que poderíamos chamar, na falta de palavra melhor, a fase da sedução, fazendo referência ao Fausto de Goethe; na parte central, revela a transcendente melancolia da mãe no momento da entrega do filho, e por último, na terceira parte do quadro, à direita, as características

Apesar de não ser a obra de Liebl um tríptico como é o caso de Weingärtner, a ligação mais sólida entre as obras dá-se pela tríade de mulheres. Na obra do austríaco Gustav Klimt denominada Les trois âges de la femme, de 1905, as representações são sintéticas e de um decorativismo geométrico. O 559

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

essenciais simbolicamente representadas do ato do infanticídio - a nuvem de querubins saindo do forno e o dinheiro recebido.

conciliou engajamento artístico e social, jogando com a noção de decadência. A primeira ligação mais pertinente entre as três obras é a forma física de representação, o tríptico, mas também o fato de trazer uma narrativa com um fundo social.

Na trajetória de Weingärtner anterior a esse tríptico, não encontramos elos sólidos com qualquer motivo relacionado a esse tema. Numa carta enviada por Pedro Weingärtner a Joaquim Nabuco, o artista anuncia que fez um quadro grande, um tríptico, intitulado Chez la faiseuse d’anges, de 4,20m x 2,20m. Weingärtner diz que se inspirou em um fait divers ocorrido em Paris. É pertinente salientar que o título da obra refere-se ao aborto, praticado sobretudo por parteiras, então popularmente denominadas faiseuses d’anges na França.

Na primeira parte do tríptico, observamos a representação da sedução. Nela temos no plano de fundo uma evidente ambientação de festa pagã, o carnaval; em primeiro plano, duas mulheres descem de uma carruagem e se dirigem à entrada de um edifício, provavelmente a uma festa privada. Em segundo plano, uma figura masculina acena com um chapéu para a primeira mulher que está descendo da carruagem. Atrás deste personagem, vemos abaixo somente a cabeça de outro personagem masculino, em atitude que sugere estar espiando o acontecimento.

Pedro Weingärtner redefine o tema do infanticídio baseado nesse fait divers, com originalidade e ponto de vista particular. Analisando o formato do quadro de Weingärtner, salientamos primeiramente sua forma de tríptico. No catálogo da Exposição Universal de 1900 em Paris, inúmeros são os pintores que apresentaram obras nesse formato. Na obra de artistas contemporâneos a Weingärtner, como o pintor françês Jean Geoffroy (1853-1924), podemos encontrar a mesma forma de representação em tríptico, mas com um tema oposto. Esta obra está localizada no Musée de l’Assistance Publique de Paris e retrata o aleitamento dos recém-nascidos, relacionado à grande taxa de mortalidade infantil em Paris no começo do século XX. No quadro, encomendado para o Hospital Laborisière, em 1908, Geoffroy homenageia o dispensário da Gota de Leite, fundado em Bellevile pelo Dr. Gaston Variot, para ensinar às mulheres das camadas populares os métodos modernos de higiene dos recém-nascidos. Esses métodos exaltam os valores de uma representação democrática, igualitária, progressista e científica, valorizando a maternidade.

Nessa parte da obra, Weingärtner cita a obra Fausto, de Goethe. O pintor se coloca na posição de explorador desse tema, e se aventura num território de diálogo entre a pintura e a literatura. Assim como Weingärtner, outros pintores recorreram a essas mesmas referências no final do século XIX, talvez porque a lenda de Fausto representasse a luta em que eles mesmos estariam engajados. A relação proposta pelo pintor entre o seu personagem e a Margarida de Goethe remete ao vasto campo de relações entre as artes plásticas e a literatura. Na edição de Fausto publicada em Paris em 1828, há dezessete litografias de Eugène Delacroix (1798-1863) que a ilustram. Ao relacionarmos a litografia de 1827 intitulada Fausto tentando seduzir Margarida com a obra de Weingärtner, notamos que Delacroix mudou a cenografia: Mefistófeles está ausente neste curto encontro de Fausto e Margarida - ele está chegando da igreja, onde acabou de escutar a confissão de Margarida. Weingärtner, assim como Delacroix, quis representar o episódio mais conhecido de Fausto, o de sua paixão por Margarida, quando, tocado por sua beleza e virtude, pede a Mefistófeles (o diabo) para ajudá-lo a conquistá-la.

Outro tríptico, de autoria de Léon Fréderic (18561940), é uma obra de vertente social denominada Les âges de l’ouvrière e pode ser igualmente comparado ao de Weingärtner. O pintor, que não não hesita em sua obra de recorrer à forma antiga do tríptico, tratou na composição,os modelos como retratos, desconsiderando o caráter individual em relação ao caráter da linha das reivindicações sociais do fim do século XIX. A poesia da miséria, da resignação, da cumplicidade silenciosa e do dever em atos de heroísmo escondidos. Essa obra se encontra no Museu D’Orsay, em Paris.

A parte central do tríptico apresenta um espaço de interior mobiliado e com dois personagens em destaque. A hierarquia das posições também é evidente, a esquerda temos a mãe com a criança no colo, com seu vestido elegante, apoiando seu cotovelo em uma mesa e com o olhar perdido em direção oposta à outra mulher. Ao lado desta que se pode denominar ‘Mulher de Luvas’, dita a parisiense, temos um banco com um lenço e uma carteira cheia. A outra mulher em postura decidida, está em um segundo plano e claramente aguarda

Portanto, em Chez la faiseuse d’anges, o excepcional dá-se pelo fato de que podemos inserir o quadro não somente em um debate moralista, mas igualmente científico dessa época. O artista 560

As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929)

a mãe com uma das mãos apoiada na cintura. Na cadeira vemos uma mamadeira, um chale e uma tijela. Estes elementos, foram dispostos pelo pintor pois são necessários à interpretação do quadro. Ao invés de esconder, propositadamente estão à frente dos nossos olhos e é impossível não percebê-los.

Notas 1

Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pelotas-RS-UFPel, Mestre em história da Arte pela UNICAMP, Diplôme de Recherche Appliquée de L’École du Louvre (mestrado) e Doutoranda pela UNICAMPHistória da Arte sob a orientação do Prof.Dr. Jorge Coli. 2 Pedro Weingärtner era filho de imigrantes alemães. Sua formação dá-se então primeiramente com o pai, o irmão, Inácio Weingärtner,c om o português Araújo Guerra e com o pintor Delfim Câmara entre 1870 e 1872. Em 1877, dispondo de recursos financeiros decide partir para a Europa. Em 1878, embarcou para a Alemanha. Em Hamburgo, matriculou-se na Escola de Arte de Baden, na cidade de Karlsruhe, em outubro de 1878. Nessa escola, Pedro ingressou na turma do Prof. Theodor Poeckh e após na de Ernest Hildebrandt. Em outubro do ano seguinte já era admitido na Real Academia de Belas Artes de Berlim. Paris e especialmente a academia Julien atraem-o de 1882 a 1884, antes de se fixar em Roma, subsidiado por D. Pedro II. Dois professores o orientaram durante sua estada na França: Tony Robert-Fleury (1837-1912) e Adolphe Bouguereau (1825-1905). Sua transferência para a Itália deve ter se verificado durante os primeiros meses de 1886. Daí por diante Roma se tornará sua residência fixa, embora temporariamente se ausente do ateliê para breves excursões a Pompéia, Herculano, Nápoles; para passar o verão em Antícoli Corrado, com o seu colega e amigo Barbasan, ou para mais demoradas viagens ao Rio Grande do Sul e exposições em São Paulo e no Rio de Janeiro. Durante cerca de três anos, entre 1891 e 1893, foi professor de desenho figurado na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, depois retornou a Roma, cidade onde passou a maior parte da vida. Em 1920, volta para o Rio Grande do Sul. Viveu os últimos anos de sua atividade em Porto Alegre, onde realizou mais duas exposições na cidade no ano de 1925 e faleceu em 1929. A obra de Pedro Weingärtner não possui numerosos estudos, praticamente seu principal biógrafo - Ângelo Guido, foi quem mais tratou de recolher fontes primárias. Porém, não fez análises da obra e nem a relacionou com fatos sociais, tornando-se necessário um estudo mais aprofundado de sua obra. 3 Coli, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Editora Senac,2005.pg 17 4 THIEME,Ulrich & BECKER,Felix. Allgemeines Lexikon der bildenden Kunstler von der Antike bis zur Gegenwart. Band 1-4 Leipzig : E. A. Seemann, cop. 19801989.Tomo XXXV pag. 292. 5 The Studio - Studio Talk . London Paris : The Studio: Librairie Ollendorff ,1901. Pgs.137-38 pertencente ao acervo da Biblioteca do INHA-Institut National d’Histoire de L’art, collection Jacques Doucet-Paris-França. 6 Atualmente, este quadro faz parte da coleção da APLUB - Associação dos Profissionais Liberais Universitários do Brasil, foi intitulado Ceifa em Antícoli Corrado. 7 The Studio - Quelques artistes italiens modernes. London Paris : The Studio: Librairie Ollendorff ,1901. p.162 8 MIGLIACCIO, Luciano. O século XIX. MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO, 2000, SÃO PAULO. Arte do século XIX. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 180. 9 PANTORBA, Bernardino de. Mariano Barbasán. Madrid, 1939 (ed., Mariano Barbasán Lucaferri). PANTORBA, Bernardino de. Mariano Barbasán. Edición crítica de Manuel García Guatas. Zaragoza: CAZAR, 1984. Barbasán

Weingärtner, constrói uma ambientação que remete a pintura de gênero holandesa do século XVII, através de uma representação do íntimo e da vida doméstica. A melancolia representada na expressão da mãe remete aos pensamentos do passado, a primeira parte do tríptico (sedução), a miséria e a idéia de decadência que subtende o olhar moral posto pela própria sociedade da época. Na terceira parte do tríptico de Weingärtner coloca em primeiro plano, plátanos europeus e outros dois tipos de plantas comuns existentes na época na cidade de Paris são representadas. Em segundo plano, temos a figura da criminosa contando moedas na mesa à sua frente. Ela se volta para trás e se surpreende com uma nuvem de anjos que saem do forno. Salientam-se as afinidades entre as faces desta infanticida de Weingärtner e da Medusa decapitada em cima de uma mesa, de autoria de Rubens, hoje no Kunsthistorisches Museum, em Viena. A iconografia que também seria de uma mulher comum da época,nos parece ter sido reutilizada pelo pintor, ligando-se às idéias associadas ao maléfico e o crime. Assim, seria possível talvez ter sido a finalidade do pintor em mostrar uma certa erudição em termos de técnica e referência aos grandes ‘mestres’ da pintura. Por ser um ato clandestino, o infanticídio era praticado principalmente em lugares com condições deploráveis, por pessoas incompetentes ou pela própria mãe, para escapar à rejeição da sociedade ante a condição de mãe solteira, ou para livrar-se de um filho gerado em relações de adultério. Sem dúvida, trata-se de uma escolha de um emblema petrificante da morte que é dada aos recém- nascidos através da combustão. O percurso do olhar do espectador, nesta obra, se torna uma aventura extraordinária onde o pintor, por meio da citação dos mestres que o precederam, transforma um tema mórbido em fascinante. Weingärtner nos instiga a uma profunda consciência da decadência, do fim do mundo, tão forte na sensibilidade daquele começo do século XX.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República 10

teve sua formação na Academia de Bellas Artes de San Carlos de Valencia, onde se matriculou em 1880, mantendo una estreita relação com seus condiscípulos Joaquín Sorolla e Salvador Abril. Em 1887, mudou-se para Madrid onde realiza suas primeiras obras, pequenos quadros de gênero. Em 1889 obteve uma pensão da Diputación de Zaragoza para completar sua formação na Academia Espanhola de Roma, decidindo estabelecer-se permanentemente na Itália. Mesmo tendo um atelier em Roma, demorava-se longas temporadas todos os anos na campagna romana, em Subiaco e Anticoli Corrado. Sua pintura adquiriu uma difusão na Europa devido à intervenção de marchants ingleses e alemães, assim como pelas exposições realizadas em Berlim, Munique, Viena e em Montevideo. Na América latina, mais precisamente em Montevidéo, chegou em 1912 para realizar duas exposições individuais no Círculo de Bellas Artes. No entanto, sua obra foi pouco conhecida na Espanha: apesar de uma participação na Exposição Nacional de 1887, não retornou a expor em seu pa~is natal até seu regresso definitivo a Zaragoza, onde celebrou em 1923 uma mostra antológica no Centro Mercantil. Em 1925, sua obra póstuma foi exposta no Museo de Arte Moderno de Madrid, seguida, em anos sucessivos, por outras retrospectivas, organizadas pelo seu filho Mariano Barbasán Lucaferri. Seu estilo destaca-se por um esplendoroso colorido e sensitiva luminosidade, mediante una técnica de pincelada abreviada e de pequenos toques de cor, derivada do estilo de Fortuny e dos macchiaioli e pré-impresionistas italianos.

Recentemente, este quadro foi exposto no Petit Palais; cf. Exposition Sorolla et Sargent, peintres de la lumière, au Petit Palais du 15 février au 13 mai 2007. 10a Este quadro encontra-se em uma coleção particular e somente tivemos acesso a imagem reproduzida em um slide pertencente à documentação do MARGS-RS e através de uma entrevista com o Antiquarista Jorge Karam que já viu a obra e nos informou as dimensões do quadro. 11 RAGO, Margareth. Amores Ilícitos na Paris de Émile Zola, in Revista de História e Perspectiva, Uberlândia, n.o 1 julho-dezembro, 1988. p. 15 12 RAGO, Margareth. Op cit. p.14 13 Ver Bíblia on-line sobre A casta Susana http://www. o f i c i n a d e e m o c o e s . o r g . b r / texto.asp?cod_testamento=1&cod_livro=34&capitulo=13 ou http://www.insecula.com/contact/A009589.html 14 ZOLA, Émile. Nana. São Paulo: Ed. Hemus,1982. 15 Assiette au Beurre, n. 30 - 26 octobre 1901 por Kees Van Dongen. Ver em http://www.assietteaubeurre.org/vdg/vdg_f1.htm Acesso em 01 jul. 2008 16 A evolução da pintura de gênero em Munich se deu principalmente graças a atividade de Wilhelm Leibl. O circulo de artistas de Leibl, possuiam tendências realistas que emanavam da França com as contribuições de Millet, Courbet e Manet. O grupo de Leibl se afastou nos anos 1880, mas influenciou a arte em Munique nos anos de 1890. Sabe-se que Weingärtner continuara a manter contato com a Alemanha e estará tematicamente muito próximo deste grupo de Leibl.

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