2008 - Relatório antropológico sobre os impactos socioambientais de empreendimento minerador sobre os Katitaurlu das T.I.s Sararé e Paukalirajausu, em Mato Grosso

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JORGE EREMITES DE OLIVEIRA LEVI MARQUES PEREIRA

RELATÓRIO

ANTROPOLÓGICO

COMPLEMENTAR

DOS

IMPACTOS

SOCIOAMBIENTAIS DO PROJETO SÃO FRANCISCO, ATUAL SERRA DA BORDA MINERAÇÃO E METALUGIA, SOBRE OS KATITAURLU DAS TERRAS INDÍGENAS SARARÉ E PAUKALIRAJAUSU, EM MATO GROSSO

DOURADOS (MS), MAIO DE 2009.

SUMÁRIO

Siglário...................................................................................................................................3

1. Histórico das pesquisas e procedimentos científicos.........................................................4

2. História regional e etno-história katitaurlu.......................................................................17

3. Territorialidade, organização social e atividades produtivas...........................................62

4. Pontos de vulnerabilidade das TI’s Sararé e Paukalirajausu e avaliação dos impactos socioambientais...............................................................................................114

4.1. Pontos de vulnerabilidade...........................................................................................115

4.2. Impactos detectados....................................................................................................132

Referências bibliográficas..................................................................................................147

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SIGLÁRIO

CIMI – Conselho Indigenista Missionário CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico DGI-MT – Diretório Geral dos Índios da Província de Mato Grosso EIA – Estudo de Impacto Ambiental FAB – Força Aérea Brasileira FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária GPS – Sistema de Posicionamento Global (Global Positioning System) MJ – Ministério da Justiça MPF – Ministério Público Federal OIT – Organização Internacional do Trabalho ONG – Organização Não-Governamental PIV – Posto Indígena de Vigilância PSF – Projeto São Francisco RIMA – Relatório de Impacto ao Meio Ambiente SBMM – Serra da Borda Mineração e Metalurgia SPI – Serviço de Proteção ao Índio SIL – Sociedade Internacional de Linguística TI – Terra Indígena UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso UNB – Universidade de Brasília UTM – Sistema Universal Transversa de Mercator

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1 HISTÓRICO DAS PESQUISAS E PROCEDIMENTOS CIENTÍFICOS

O presente relatório atende às exigências relativas aos estudos de natureza antropológica contidas no Termo de Referência – Estudos de Complementação dos Impactos Socioambientais do Projeto São Francisco em Terras Indígenas (FUNAI 2008). Trata-se de um documento produzido a partir da análise feita no primeiro semestre de 2008 por técnicos do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sobre os estudos dos impactos socioambientais gerados pelo Projeto São Francisco (PSF), atual Serra da Borda Mineração e Metalurgia S/A (SBMM), sobre o componente indígena existente na área diretamente afetada. O componente indígena de que trata o estudo complementar ora apresentado abrange os índios Katitaurlu das Terras Indígenas (TI’s) Sararé e Paukalirajausu, as quais juntas compreendem parte dos municípios de Conquista D’Oeste, Nova Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade, no estado de Mato Grosso. A Terra Indígena Sararé está regularizada como patrimônio da União, com usufruto exclusivo e permanente dos índios. Já a Terra Indígena Paukalirajausu, por sua vez, encontra-se em posse de particulares e também é conhecida como Piscina, em referência a um córrego que ali existe. Por isso os Katitaurlu aguardam, temporariamente fora dessa área, a finalização do processo oficial de identificação e delimitação da mesma, bem como os desdobramentos necessários à conclusão definitiva sobre seus direitos de posse. Portanto, neste trabalho embora ela seja mencionada como Terra Indígena, cumpre salientar que a área ainda não foi oficialmente declarada como tal. Por se tratar de um estudo complementar, não serão reproduzidos aqui os dados contidos no relatório intitulado Estudos dos impactos socioeconômicos e ambientais do componente indígena referentes ao Projeto São Francisco/MS (estrada de acesso). Este trabalho foi elaborado pela equipe técnica da empresa Documento Antropologia e Arqueologia SS Ltda., sob a coordenação geral de Erika Marion Robrahn-González, da 4

qual fez parte a antropóloga Cláudia Tereza Signori Franco (Robrahn-González et al. 2006). Os Katitaurlu, também chamados de Nambikwara do Sararé, constituem um grupo étnico ainda pouco conhecido em termos etnológicos e etno-históricos. Seu idioma nativo, denominado nambikwara do sul, está filiado à família linguística nambikwara, que corresponde a um complexo dialetal não vinculado a nenhum tronco lingüístico conhecido atualmente (Urban 1992; Montserrat 1994; Rodrigues 1996). São os habitantes da região compreendida pela sub-bacia hidrográfica do rio Sararé, localizada na bacia do Guaporé, uma área ecologicamente marcada pela transição entre os biomas do Cerrado e da Amazônia, onde estão estabelecidos desde tempos imemoriais. Ali predomina um clima do tipo tropical úmido, com temperatura média não inferior a 18ºC. As pesquisas antropológicas ora apresentadas foram realizadas junto à comunidade Katitaurlu estabelecida na TI Sararé, cuja totalidade da população é falante do idioma nambikwara do sul e utiliza o português como língua franca para se comunicar com os não-índios da sociedade nacional. O domínio da língua portuguesa é mais fluente entre os jovens do sexo masculino, sendo que as mulheres e os idosos e crianças de ambos os sexos normalmente apresentam pouco domínio da língua portuguesa. Os trabalhos de campo, tanto os realizados junto aos Katitaurlu quanto os realizados em arquivos públicos e privados, foram desenvolvidos no período de 29/03 a 09/04/2009 nos municípios mato-grossenses de Cuiabá, Pontes e Lacerda, Vila Bela da Santíssima Trindade e Conquista D’Oeste. De 30/03 a 08/04/2009 foram feitas pesquisas etnográficas junto aos Katitaurlu que vivem na TI Sararé, distribuídos entre as aldeias PIV (Kalutakũtayesu), Serra da Borda ou aldeia do Domingos (Walokayesu), Seis ou aldeia do Mateus (Newãne’kajasu) e Sararé (Nutãyensu), sendo que esta última também é chamada de Central, do Américo e do Posto Velho. Na sequência consta um quadro com as atividades concluídas durante os trabalhos de campo.

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Quadro 1: Cronograma das atividades desenvolvidas. DATA ATIVIDADES 28/03/2009 Viagem terrestre de Dourados (MS) para Cuiabá (MT), feita das 3h às 21h. 29/03/2009 Durante a tarde foi mantida interlocução com Ariovaldo José dos Santos, funcionário da FUNAI em Cuiabá, ex-administrador regional do órgão e responsável pela coordenação de um projeto desenvolvido na TI Sararé que conta com o apoio financeiro da Mineradora Serra da Borda. Esta primeira reunião foi muito produtiva, tendo em vista que o indigenista é profundo conhecedor da região do Vale do Guaporé e da comunidade Katitaurlu, na qual atua desde a década de 1980. Ele forneceu importantes informações históricas e etnográficas sobre a população indígena que reside na TI e reivindica a TI Paukalirajausu, além do histórico da ocupação da região por frentes econômicas não-indígenas, especialmente garimpeiros, madeireiros, palmiteiros e criadores de gado. Tais informações foram fundamentais para uma primeira aproximação da situação que os pesquisadores encontrariam no campo, bem como para o estabelecimento de uma relação profissional mais direta com o referido funcionário público federal. 30/03/2009 Viagem de Cuiabá para a Terra Indígena Sararé, precisamente para a sede do PIV (Posto Indígena de Vigilância) da FUNAI, onde reside o funcionário Natal Jesus de Lima, de 52 anos, chefe daquela unidade do órgão indigenista oficial. A viagem aconteceu das 8h30min. às 20h30min., com parada para o almoço na cidade de Cáceres. 30-31/03 e Interlocução com o chefe do PIV, Natal Jesus de Lima, durante a qual foi 01/04/2009 feita a devida explicação da natureza e objetivos dos trabalhos antropológicos a serem realizados na região. Também foi feita a devida solicitação da colaboração do mesmo para o bom andamento das pesquisas, quem de pronto de se prontificou a ajudar no que fosse necessário e estivesse ao seu alcance. Por meio do referido funcionário público foram recolhidas mais informações sobre o histórico dos contatos entre os Katitaurlu e os não-índios presentes no entorno, sobretudo garimpeiros, madeireiros, palmiteiros e criadores de gado. Nesse período também foi realizada pesquisa de campo na aldeia PIV (Posto Indígena de Vigilância), cujo nome foi dado em alusão ao posto da FUNAI naquele ponto, considerado uma posição estratégica para o controle do acesso de invasores na terra indígena, especialmente garimpeiros, madeireiros e palmiteiros. A aldeia PIV está ocupada pela família de Paulo Katitaurlu e alguns agregados. Esse primeiro contato com os indígenas foi importante para recolher dados sobre estrutura de parentesco, organização social, economia (agricultura, caça, pesca, coleta e manejo agroflorestal), cosmologia, cultura material e história do grupo, especialmente a história dos contatos interétnicos com os garimpeiros e as mudanças socioculturais deles advindas para os Katitaurlu. Os dados recolhidos na aldeia PIV foram de fundamental importância, pois constituíram a base de referência para os procedimentos de campo desenvolvidos nas demais aldeias katitaurlu. 01/04/2009 Pela manhã fez-se uma viagem para Vila Bela da Santíssima Trindade, onde se conheceu o Museu Histórico e Arqueológico da cidade e foi mantido contato com técnicos daquele órgão. Ali foi possível conhecer as pesquisas arqueológicas e etno-históricas realizadas e em andamento por profissionais ligados à empresa Zanettini Arqueologia, com sede em São 6

Paulo, incluindo assuntos relativos à presença dos Katitaurlu no Vale do Guaporé. Na ocasião também foi possível manter uma breve interlocução com o Gustaf Adolf Bringsken, mais conhecido como pastor Gustavo, o primeiro missionário protestante a manter contato com os Katitaurlu na década de 1950, quem prestou importantes informações sobre a história da região do Vale do Guaporé. Após o almoço fez-se uma viagem para Pontes e Lacerda para a realização de uma reunião no final da tarde e à noite com os demais técnicos da equipe multidisciplinar responsável pelos estudos complementares exigidos pela FUNAI. Na reunião foram acertados os procedimentos de campo e a dinâmica de divisão de trabalho entre as diversas equipes (antropologia, fauna, flora, solo etc.), e alguns procedimentos para proporcionar o perfeito entendimento com a comunidade Katitaurlu e o chefe de posto da FUNAI. 02/04/2009 Pela manhã toda a equipe técnica responsável pela confecção do relatório complementar se encontrou com o chefe do posto da FUNAI na cidade de Pontes e Lacerda e em seguida todos os pesquisadores viajaram para a Terra Indígena Sararé, aldeia Sararé, também conhecida como aldeia Central, aldeia do Posto Velho e aldeia do Américo. Na escola municipal existente na sede dessa aldeia os técnicos foram apresentados às lideranças indígenas locais e aos demais membros da comunidade indígena que se encontravam presentes. Na ocasião, a liderança Saulo Katitaurlu fez um longo discurso para recepcionar a equipe e expressar as principais expectativas que nutriam em relação aos resultados dos estudos. No mesmo dia os técnicos se dividiram em várias equipes, de acordo com suas áreas de conhecimento e iniciaram os trabalhos. Os antropólogos da equipe, que já haviam trabalhado na aldeia PIV, dirigiram-se para a aldeia Serra da Borda, onde deram sequência a seus estudos. 02, 03, 04 Pesquisas na aldeia Serra da Borda, onde os antropólogos ficaram alojados e no prédio que corresponde à extensão da Escola Indígena Walokayesu, e 05/04/2009 contaram com a colaboração da Profa. Sara Barros do Nascimento, docente daquele estabelecimento de ensino fundamental e conhecedora do modo de vida e da história dos Katitaurlu. Nessa área foi feito o levantamento de dados etnográficos e históricos relativos às relações de parentesco, organização social, sistema de assentamento, trajetória de ocupação do local, economia, relações com os não-índios do entorno e demais dados necessários para a composição do relatório antropológico. Na ocasião contaram com o apoio dos seguintes indígenas Katitaurlu: Aritana, Kimã, Ricardo e Samuel. Dados sobre parentesco, organização social e etnohistória foram obtidos durante a interlocução com Domingos Katitaurlu, liderança da aldeia Serra da Borda e da Terra Indígena Paukalirajausu, Mateus Katitaurlu, principal liderança da aldeia Seis, e Nilo Katitaurlu, liderança de um grupo que está a constituir uma provável nova aldeia na área. No dia 05/04/2009 foi feita uma viagem a pé da aldeia Serra da Borda até os limites com a Terra Indígena Paukalirajausu, assim identificada pela FUNAI. Durante a viagem os antropólogos estiveram acompanhados dos indígenas Aritana, Kimã, Ricardo e Samuel Katitaurlu, os quais discorreram sobre diversos aspectos de sua cultura e da história de ocupação que desenvolvem na região. Na ocasião foram identificados acampamentos de caça, pontos de paradas durante as expedições de caça e coleta, áreas preferenciais de caça de determinados animais e outros 7

aspectos da paisagem fundamentais para a identificação das formas de manejo dos recursos e de mobilidade dos Katitaurlu pela área de ocupação tradicional. Também foi possível identificar importantes referências para a cosmologia do grupo, como pequenas “cavernas” localizadas nos barrancos da margem esquerda de uma vertente e que seriam entradas para o local de habitação dos seres espirituais guardiões de espécies animais por eles caçadas. 05, 06, 07 Pesquisas antropológicas na aldeia Sararé e realização do mesmo tipo de e levantamento feito anteriormente nas aldeias PIV e Serra da Borda. Nessa 08/04/2009 outra parte da Terra Indígena Sararé os antropólogos permaneceram alojados na sede da Escola Indígena Walokayesu, e contaram com a colaboração do Prof. Sérgio Beck de Oliveira, docente que atua neste estabelecimento de ensino fundamental mantido pela prefeitura de Conquista D’Oeste. Durante este período tiveram a oportunidade de realizar uma viagem por todo o percurso da reserva, sendo que na maior parte da mesma os pesquisadores foram acompanhados pelo chefe do PIV da FUNAI. Trata-se de um importante colaborador para o entendimento das ações que o órgão indigenista realiza na identificação dos pontos de vulnerabilidade da reserva indígena e do planejamento desenvolvido para a proteção da mesma. No percurso identificaram os principais pontos de vulnerabilidade de ação garimpeira, madeireira e de extração de palmito e arrendamento de pasto para criadores de bovinos. Na oportunidade também foi mantida interlocução com lideranças indígenas locais, a exemplo de Danilo, quem muito ajudou os pesquisadores nesta parte dos trabalhos, Pedro, Américo, Roberto, Moisés, Saulo, Carlos (Carlinhos) e Jackson, todos Katitaurlu. 08/04/2009 Realização do percurso da estrada municipal que dá acesso a mineradora, identificando os principais pontos de vulnerabilidade para com a comunidade indígena Katitaurlu. Viagem de volta para Cuiabá, saindo do início da estrada municipal que dá acesso à mineradora por volta das 11h. Chegada em Cuiabá por volta das 17h30min. 09/04/2009 Reunião em Cuiabá, na sede da FUNAI, com Ariovaldo José dos Santos, funcionário da FUNAI já citado anteriormente, com quem foi feita uma discussão sobre como o órgão indigenista oficial percebe os impactos negativos e positivos do empreendimento e da estrada municipal que dá acesso ao mesmo sobre a comunidade Katitaurlu. Na sede da FUNAI ele franqueou o acesso a documentos e esclareceu muitas dúvidas sobre o trabalho da FUNAI na referida área que emergiram a partir da pesquisa de campo. Esta etapa final dos trabalhos foi proveitosa, haja vista que foi possível reunir os dados necessários para a composição do relatório complementar final. Regresso de Cuiabá para Dourados, Mato Grosso do Sul, com saída no dia 09/04 às 15h30min., e chegada às 7h do dia 10/04/2009.

Durante todos os trabalhos de campo foi impressa uma conduta profissional pautada pela discrição sobre a natureza das pesquisas em desenvolvimento e pelo respeito aos interlocutores, fossem eles indígenas ou não-indígenas. Incluem-se aqui as ocasiões em

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que as pesquisas foram realizadas fora das TI’s Sararé e Paukalirajausu, quando houve o estabelecimento de uma interlocução com regionais e outros atores sociais não-índios. De uma maneira geral, e em atenção ao Termo de referência... firmado pela FUNAI (2008), direcionou-se os estudos antropológicos para as seguintes questões: (1) atividades econômicas tradicionais e aquelas referidas a tentativas de incorporação de novas tecnologias produtivas, categorias de classificação dos elementos da paisagem local e pontos de vulnerabilidade das Terras Indígenas Sararé e Paukalirajausu; (2) percepção dos Katitaurlu a respeito da presença de não-índios na região onde está localizado o empreendimento e a estrada municipal que dá acesso ao mesmo, com ênfase na história dos contatos interétnicos e nas mudanças socioculturais deles advindas, sobretudo no que diz respeito aos garimpeiros, madeireiros, palmiteiros e criadores de gado; (3) etnicidade dos Katitaurlu e sua rede de relações sociais intra e extra-grupais; (4) histórico da construção e uso das estradas existentes no entorno das citadas terras indígenas; (5) impactos negativos e positivos do empreendimento e da estrada municipal que dá acesso ao empreendimento Serra da Borda Mineração e Metalurgia (SBMM), sobre a comunidade Katitaurlu de Sararé e Paukalirajausu; (6) a percepção expressa pelos Katitaurlu do cenário multiétnico regional atual e do lugar que nele ocupam ou podem ocupar. A respeito dos procedimentos científicos adotados para a realização dos estudos antropológicos, foi feito uso concatenado de metodologias mundialmente consagradas no campo da antropologia cultural ou social. Os métodos recorridos foram o etnográfico, o genealógico, o da história de vida e o da etno-história. São metodologias bastante seguras e recorridas com sucesso em outros estudos realizados pela equipe de antropólogos, a exemplo de dois laudos periciais que elaborou para a Justiça Federal em Mato Grosso do Sul (ver Eremites de Oliveira & Pereira 2003; Pereira & Eremites de Oliveira 2007). O método etnográfico, também conhecido como observação direta ou observação participante, consiste na observação direta da vida social e da cultura de grupos humanos. Este procedimento científico foi desenvolvido a partir da segunda metade do século XIX, concomitantemente na Europa e na América. Sua efetiva consolidação na prática antropológica se deu com a publicação do clássico Argonautas do Pacífico ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia, escrito pelo antropólogo polonês-britânico Bronislaw Malinowski (1884-1942) e publicado pela primeira vez em 1922 (Malinowski 1984 [1922]).

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No entanto, não se deve confundir a observação participante aplicada no presente estudo como sinônimo de etnografia densa. Um método de pesquisa assim exige anos de convivência com os grupos humanos observados para dominar sua língua nativa e apreender em profundidade seu modo de ser (cosmovisão, religião, organização social, economia etc.), tal qual fez Malinowski para a conclusão e publicação da obra retro citada. Um estudo deste nível seria operacionalmente inviável para a finalidade do trabalho aqui apresentado, tampouco foi esta uma das exigências constantes no Termo de Referência... da FUNAI (2008). Na opinião de Roberto Cardoso de Oliveira (2000), um dos primeiros antropólogos profissionais do país e autor do livro O trabalho do antropólogo, a pesquisa etnográfica consiste em três procedimentos básicos: “olhar”, “ouvir” e “escrever”. O olhar e o ouvir fazem parte da primeira etapa dos trabalhos antropológicos, aquela que é realizada em campo, isto é, o registro etnográfico de dados empiricamente observáveis. O escrever constitui a segunda etapa das pesquisas, a interpretação etnológica, quer dizer, a análise teórica dos dados etnográficos obtidos durante a observação do grupo estudado. De acordo o referido pesquisador: Examinados o olhar, o ouvir e o escrever, a que conclusões podemos chegar? Como procurei mostrar neste início, essas “faculdades” do espírito têm características bem precisas quando exercitadas na órbita das ciências sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia. Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar. Quero chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar claro que – pelo menos no meu modo de ver – é no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática (Cardoso de Oliveira 2000:31-32).

A proposição formulada pelo cientista social vai ao encontro dos ensinamentos de Marcel Mauss, um dos fundadores da antropologia moderna, sobrinho e discípulo de Émile Durkheim (1858-1917), quem, por sua vez, é considerado o fundador da sociologia moderna. Ele assim registrou no Manual de Etnografia, escrito originalmente na primeira metade do século XX e publicado pela primeira vez em 1967:

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A ciência etnológica [antropologia] tem como fim a observação das sociedades, como objeto o conhecimento dos fatos sociais. Registra estes fatos e, quando necessário, estabelece a respectiva estatística; e publica documentos que oferecem o máximo de certeza. O etnógrafo deve ter a preocupação de ser exato, complexo; deve ter o sentido dos fatos e das relações entre eles, o sentido das proporções e das articulações (Mauss 1993:21-22).

Segundo a linha argumentativa do referido antropólogo, a pesquisa etnográfica tem de ser exata, haja vista que a “intuição não tem lugar na ciência etnológica, ciência de verificações e estatísticas” (Mauss 1993:22). O rigor metodológico proposto no plano teórico por Mauss encontra sua contrapartida demonstrativa no trabalho de campo realizado por Malinowski, pois ambos foram contemporâneos no esforço de alçar a antropologia ao estatuto de ciência autônoma. Para o segundo etnólogo: Nas ciências históricas, como já foi dito, ninguém pode ser visto com seriedade se fizer mistério de suas fontes e falar do passado como se o conhecesse por adivinhação. Na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador; suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas a documentos fixos, mas sim ao comportamento e memória de seres humanos. Na etnografia, é frequentemente imensa a distância entre a apresentação final dos resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida tribal (Malinowski 1984[1922]:18-19).

O método da observação direta é comumente orientado por contribuições consolidadas em trabalhos clássicos da disciplina antropológica e diz respeito ao conjunto de preocupações que nortearam as pesquisas em campo. Tais preocupações englobaram o ato de estar em campo e mobilizar todos os sentidos envolvidos na observação, assim como o esforço de interagir com os sujeitos que compõem o cenário a ser pesquisado. Nesta perspectiva, os atores sociais indígenas foram situados na condição de interlocutores com os quais os pesquisadores compartilharam o processo de cognição em vista a elucidação dos temas propostos para o estudo. Evidentemente que isto tudo foi realizado dentro de condicionantes temporais distintos de trabalhos de natureza puramente acadêmica. Contudo, a experiência dos pesquisadores proporcionou a oportunidade de mobilizar tais conhecimentos para a realização de um estudo focado no atendimento às exigências de identificação dos impactos gerados pelo empreendimento minerador aos habitantes das terras indígenas objeto do presente relatório. Além da observação direta, o método genealógico foi outro procedimento científico recorrido durante as pesquisas de campo. Trata-se igualmente de um recurso metodológico muitíssimo utilizado em estudos sobre grupos étnicos. Foi primeiramente 11

desenvolvido na década de 1910 pelo antropólogo britânico William Halse Rivers (18641922). Este método inspirou importantes explorações antropológicas a respeito das propriedades dos diversos sistemas de parentesco presentes entre as sociedades humanas (ver Cardoso de Oliveira 1991). Através da aplicação do método genealógico foram averiguados os referenciais que orientam a participação dos indígenas na constituição dos grupos de parentesco existentes entre os Katitaurlu e a lógica que rege a constituição da relação entre eles. Esses grupos são definidos pelo reconhecimento de relações de ancestralidade, consanguinidade, afinidade e aliança política, cuja combinação imprime uma feição social exclusiva aos Katitaurlu. O método permitiu ainda aferir o grau de proximidade e distância relativa dos diversos grupos de parentesco que fundamentam a composição das aldeias existentes na terra indígena Sararé. As redes de relações de parentesco conectam as diversas aldeias e oferece elementos sociológicos para os Katitaurlu se projetarem em termos da constituição de um grupo humano com vínculos biológicos, históricos e sociais com aquela região situada na bacia do rio Guaporé. Também contribuiu para avaliar a percepção e as expectativas dos diversos segmentos da população katitaurlu em relação ao empreendimento Serra da Borda Mineração e Metalurgia (SBMM). Destaca-se aí a percepção do segmento composto pelas lideranças jovens do sexo masculino, que será detalhada mais adiante. Nos estudos genealógicos normalmente são confeccionados diagramas de parentesco em que indivíduos são representados por alguns símbolos, conforme explicado no quadro a seguir. Embora tenha sido feito diagramas de parentescos de todas as famílias katitaurlu existentes na TI Sararé, neste trabalho constam apenas os diagramas mais representativos para a compreensão da organização social do grupo, incluindo aqui as alianças matrimoniais.

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Quadro 2: Símbolos usados nos diagramas de parentesco. SÍMBOLO

SIGNIFICADO Homem Mulher Conjugalidade Conjugalidade desfeita Descendência ou filiação Germanidade (filhos do mesmo pai e mesma mãe) Ligação para indicação do terceiro laço de conjugalidade e subsequentes

ou

Ego (“eu” em latim; pessoa de referência na genealogia) Indicador de filhos independente da quantidade e do sexo dos indivíduos

Indivíduo falecido + NOTA: Cada plano horizontal do diagrama, como no símbolo correspondente à germanidade, corresponde a uma geração de indivíduos. A geração de ego é considerada como geração zero (G0), a geração dos pais de ego como geração um (G1), e a de seus avós como geração (G2). No caso das gerações descendentes, os filhos de ego pertencem à geração menos um (G-1) e a de seus netos a geração menos dois (G-2).

Paralelamente foi aplicado o método da história de vida para melhor compreender a história indígena local e a percepção que os Katitaurlu têm dos não-índios que vivem na região, incluindo as alianças e as guerras e outras situações de conflitos que mantiveram com eles no passado. A história de vida permite ainda reunir dados a respeito das alianças e dos conflitos internos entre as diversas aldeias e seus líderes. Por meio de entrevistas individuais e coletivas, registradas em gravador digital e em diários de campo, foi levantada e analisada a história de vida de vários indivíduos e parte da memória genealógica do grupo. Neste aspecto em particular teve-se dificuldades ao trabalhar com a trajetória pregressa do grupo, haja vista que os Katitaurlu, em especial os mais idosos, evitam expressamente menções aos nomes dos mortos. Isto porque eles não apreciam falar dos mortos, tampouco pronunciar seus nomes, visto que suas almas estão em um mundo espiritual. Portanto, recordá-los pode causar tristeza, nostalgia e melancolia aos vivos que os conheceram e mesmo ser interpretado como tentativa de estabelecer contato com os mortos, o que pode ser fatal para os vivos. Mesmo assim foi possível aferir dados como local de nascimento, filiação, formação dos grupos de referência, tipos de vínculos do grupo com o território, graus de compreensão e inserção junto às instituições da sociedade nacional e o histórico dos contatos com atores sociais não-índios (missionários, 13

fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, palmiteiros etc.). Os dados levantados trouxeram importantes subsídios para o entendimento da situação pretérita e atual dos indígenas no contexto sócio-histórico regional. A história de vida é um método qualitativo tão antigo quanto o são o método etnográfico e o método genealógico. Entrementes, foi na antropologia praticada nas primeiras décadas do século XX que este método teve um tratamento científico adequado e foi cientificamente sistematizado. Hoje em dia esta metodologia é bastante recorrida por historiadores, psicólogos, sociólogos e outros cientistas sociais, cada qual com suas peculiaridades e objetivos científicos (ver Vansina 1966; Trigger 1982; Debert 1983). Os dados registrados sobre a história de vida dos indivíduos foram aferidos e controlados por meio de diagramas de parentesco, nos quais diversas informações foram sistematicamente cruzadas para dirimir, por exemplo, eventuais dúvidas e informações que pudessem denotar contradição ou apresentar lacunas. No estudo etnográfico de grupos indígenas este método é imprescindível por se tratar de grupos humanos de tradição oral e não de tradição escrita. Grupos assim, como é o caso dos Katitaurlu, possuem um idioma cultural próprio e distinto do predominante na sociedade nacional. Em tais circunstâncias é de bom alvitre a concatenação de diversos métodos de pesquisa, com o cuidado de proporcionar a aproximação sucessiva dos fatos que constituem o foco da pesquisa. Aplicando-os dessa maneira, os fatos reaparecem e podem ser vistos em diversos ângulos, permitindo compor um quadro significativo dos acontecimentos que a pesquisa procura elucidar. Para amalgamar, sistematizar e interpretar os dados etnográficos, genealógicos e de história de vida, valeu-se, por fim, do método da etno-história, nome este que deriva do termo inglês ethnohistory, assim grafado pela primeira vez em 1909 por Clark Wissler nos Estados Unidos (Trigger 1982, 1986; Eremites de Oliveira 2003). Seu conceito mais comum é o que se refere a um método interdisciplinar para estudar a história de grupos étnicos a partir de dados variados (arqueológicos, etnográficos, iconográficos, orais, textuais etc.). Seu foco maior está nos contatos interétnicos e nas consequentes mudanças socioculturais deles advindas, algo que somente é possível de apreender quando considerado o processo histórico e sociocultural vivido pelos grupos étnicos. Acrescenta-se a tudo isso o levantamento e a análise da literatura etnológica e etnohistórica mais acessível sobre os Katitaurlu, além de pesquisas feitas na Internet, na sede

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da FUNAI em Cuiabá e Brasília e no Museu Histórico e Arqueológico de Vila Bela da Santíssima Trindade. No trabalho de campo em antropologia a aplicação desses métodos científicos requer a construção de um ambiente de empatia e respeito entre entrevistadores ou analistas (antropólogos) e entrevistados ou interlocutores (indígenas). Neste sentido, registra-se que durante todo o tempo em que se permaneceu junto aos Katitaurlu não foi registrado qualquer episódio de incidente, intolerância ou conflito envolvendo indígenas e pesquisadores. Muito pelo contrário, predominou o ambiente de cooperação e entendimento mútuo, imprescindível para o bom andamento da pesquisa. No que se refere aos trabalhos de campo, foram ainda tomadas as necessárias precauções no que diz respeito ao georreferenciamento dos locais estudados. Isto foi feito com o auxílio de um aparelho GPS, marca Garmin, modelo Etrex, com 12 canais para a recepção de satélites, por meio do qual foram obtidas coordenadas UTM (Sistema Universal Transversa de Mercator). Trata-se de coordenadas expressas em metros, cujos eixos cartesianos de origem são a linha do Equador para coordenadas Norte (N), e o meridiano central de cada zona para coordenadas Leste (E). Relativo ao sistema geodésico regional, o GPS foi operado com o SAD-69 (South American Datum – 1969). Feitas essas considerações de natureza técnico-científica e teórico-metodológica, cumpre explicar a grafia de nomes tribais adotada neste trabalho. Conforme estabelecido em convenção antropológica internacional, realizada em 1954 na cidade do Rio de Janeiro, o nome de etnias indígenas é grafado de forma fonética e no singular. Quando empregados em expressões como “os Katitaurlu” e “os Bakairi”, são grafados com letra inicial maiúscula, como nome próprio, já que desempenham a função gramatical de substantivo. No entanto, quando usados como adjetivos permanecem no singular, porém como nomes comuns, a exemplo de “a reza bororo” e “as casas xavante”, são grafados com a letra inicial em minúsculo (ver ABA 1954). Registra-se ainda que as palavras katitaurlu transcritas pelos autores deste estudo não seguem ipsis litteris a proposta de grafia da língua nambikwara desenvolvida por Menno Kroeker (1996) e outros linguísticas ligados à SIL – Sociedade Internacional de Linguística, pois se trata de uma forma de escrita pouco operacional. Procurou-se, ao contrário, grafá-las de uma maneira mais inteligível e operacional em termos fonéticos e

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para um público não especializado em línguas indígenas, mesmo reconhecendo que a forma aqui utilizada implica em prejuízo ao rigor fonético. Finalmente, esclarece-se que este relatório complementar está dividido em três capítulos. Os dois primeiros tratam basicamente da etno-história e da etnologia dos Katitaurlu das TI’s Sararé e Paukalirajausu, nos quais também constam dados etnográficos obtidos por meio da observação direta. São de fundamental importância para a compreensão do terceiro e último capítulo, o que trata da avaliação dos impactos do PSF/SBMM sobre o componente indígena em sua área de influência. Isto porque os dois primeiros capítulos fornecem o embasamento histórico e a justificativa etnográfica para as proposições apresentadas no terceiro capítulo Em suma, os trabalhos antropológicos foram concluídos por meio do uso de procedimentos científicos qualitativos, complementares e interdependentes. Dessa forma foi possível responder as questões de natureza antropológica apresentadas no Termo de Referência... da FUNAI (2008).

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2 HISTÓRIA REGIONAL E ETNO-HISTÓRIA KATITAURLU

Ao que foi possível apurar, na região brasileira compreendida pelo vale do alto curso do rio Guaporé e seus principais tributários, os primeiros contatos diretos entre os grupos falantes da língua nambikwara e os conquistadores lusitanos e seus sucessores ocorreram a partir da primeira metade do século XVIII. Naquela época os antepassados dos atuais Katitaurlu já estavam assentados no vale do rio Sararé e passaram a ficar conhecidos pelo apelativo Cabixi. Segundo consta no Relatório de Identificação e delimitação da área indígena Sararé na 15ª. DR, elaborado pela antropóloga Maria Helena de Amorim et al. (1981), em 1731 houve a descoberta, por parte dos conquistadores de além-mar, de jazidas auríferas de aluvião entre a Chapada dos Parecis e o rio Guaporé. Por conta disso houve ali a fundação dos arraiais de Pilar, Santa Anna, São Francisco Xavier da Chapada e São Vicente, sendo que o terceiro foi alvo de pesquisas arqueológicas sob a coordenação de Paulo Eduardo Zanettini (2007a, 2007b), responsável pelo projeto Fronteira Ocidental: Vila Bela da Santíssima Trindade. A partir de então a região passou a ser conhecida como Minas de Mato Grosso, em referência, também, à densa floresta que ali existia e às minas de ouro aluvião que passaram a ser exploradas pelos portugueses. Estava criado então o nome de Mato Grosso, o qual posteriormente serviu para nominar a capitania e depois a província e o estado. Este acontecimento motivou a vinda de centenas de não-índios para aquela área e, por conseguinte, os contatos interétnicos que passaram a manter com vários povos indígenas ali estabelecidos. Desde o início esses contatos foram marcados pela extrema violência, especialmente a praticada nos setecentos durante os ataques organizados, chamados de expedições punitivas, e nas tentativas de escravizar os índios. No artigo Nomes e destinos: etnohistórias Sararé, Edwin Reesink (2003) explicou que desde a primeira metade do século XVIII até o início do XX, vários grupos étnicos posteriormente chamados de Nambikwara e Paresi foram genérica e equivocadamente 17

nominados de Cabixi. Posteriormente, em 1907, a partir dos contatos que mantiveram com a Comissão de Construção Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, mais conhecida como Comissão Rondon, nome este associado ao seu comandante, o marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, parte deles passou a ser conhecida pelo apelativo tupi de Nambikwara. Esta palavra significaria “adorno na orelha”, ao menos segundo consta em Indiens D’Amazonie, Brésil, organizado pelo Musée d’Ethnographie de La Ville de Genève, publicado em 1971 (apud RobrahnGonzález 2006:24). No entanto, uma explicação mais segura consta em um texto elaborado pela antropóloga Joana Miller e disponível no sítio eletrônico do Instituto Socioambiental: O termo Nambiquara é de origem Tupi e pode ser glosado como “orelha furada” [nambi = orelha; kwara = furo, buraco]. Foi a partir da penetração da Comissão Rondon no interior do Mato Grosso que os índios até então referidos como “Cabixi” passaram a ser designados “Nambiquara”, termo pelo qual são conhecidos até hoje. Os guias Pareci que trabalharam para a Comissão Rondon, pensavam que este termo tupi – usado originalmente para designar um grupo falante de língua Jê localizado na região entre o rio Arinos e o rio do Sangue – significava “inimigo” e, assim, usaramno, quando falavam em português com os funcionários da Comissão, para se referir aos seus vizinhos ocidentais (Miller 2008:2).

As evidências históricas e linguísticas desautorizam usar o termo Nambikwara como categoria de auto-identificação ou etnômio. Trata-se de um rótulo externo atribuído por grupos étnicos com as quais as populações hoje reconhecidas como Nambikwara se relacionavam, ao que tudo indica de modo pouco amistoso. Entretanto, a denominação se consolidou e é assim que em geral essas populações passaram a ser denominados e essencializados na literatura etnológica e etno-histórica. Outras vezes também são citados como o povo das cinzas ou o povo do veneno. Estes dois apelativos têm a ver com o fato de dormirem no chão, ao redor dos fogões domésticos, e por isso às vezes seus corpos ficam impregnados de cinzas, e de manipularem diversos tipos de veneno, como o usado em suas flechas. Sobre o uso de venenos, cumpre aqui fazer uma pequena digressão etnográfica a partir das pesquisas realizadas por meio da observação direta. Na compreensão dos atuais Katitaurlu, os conhecimentos etnobotânicos a respeito de plantas com propriedades farmacopéias são indissociáveis dos conhecimentos sobre manipulação e uso de remédios e venenos, os quais podem ser utilizados para defesa da pessoa ou do grupo de parentes ou no ataque aos inimigos. O envenenamento geralmente é apontado como causa de morte de pessoas, e a ação anti-social é sempre atribuída a algum desafeto ou inimigo. Tais acusações nutrem animosidades e desejos de vingança que se 18

prolongam no tempo e podem ser atualizadas por qualquer fato aparentemente insignificante para o observador externo. O envenenamento entre os Katitaurlu cumpre função acusativa semelhante ao enfeitiçamento em outras sociedades indígenas, a exemplo dos povos Guarani ou Ñandeva e Kaiowa ou Paĩ-Tavyterã que vivem em Mato Grosso do Sul e no Paraguai. Esta situação também lembra o papel atribuído à ação de agentes patogênicos na medicina praticada na sociedade ocidental moderna, com é o caso da atual gripe suína, causada pelo vírus Influenza A, subtipo H1N1. A diferença básica é que no caso do envenenamento, o acusado agiria intencionalmente, a partir da escolha criteriosa de sua vítima, preferencialmente situada entre os desafetos (no plano individual) ou adversários políticos (no plano coletivo). O conhecimento sobre manipulação de veneno é reconhecido como de domínio público entre os Katitaurlu e outros grupos linguisticamente nambikwara. Embora dificilmente alguém esteja disposto a assumir abertamente que conhece e usa tais procedimentos, todos os adultos são reconhecidos como potencialmente conhecedores. Isso por um lado os coloca como suspeitos, mas por outro age como uma espécie de coerção social, explicitando as vantagens da adoção de comportamentos considerados socialmente positivos. Existe o empenho em motivar e evitar a acusação do uso de tais conhecimentos em prejuízo de alguém, o que pode ocasionar sua morte e provocar sérios conflitos. Paulo Katitaurlu, por exemplo, mais conhecido como Paulinho, liderança da aldeia PIV, localizada na TI Sararé, afirmou durante os trabalhos de campo que seu pai, Silvério Katitaurlu, foi morto por envenenamento. Esta também é a principal causa apontada para a morte de outros adultos se levado em conta a recusa da aceitação da morte como fenômeno natural. Na área objeto deste estudo as acusações de morte por envenenamento provocam a revolta dos parentes do morto e a pessoa acusada pode sofrer fortes sanções, inclusive com violência física, chegando a casos extremos da eliminação do acusado. Felizmente a maioria das iniciativas de acusações de envenenamento parece não prosperar e o processo não tem desfecho mais grave, tendendo a se acomodar com o tempo. Mesmo assim o conflito pode permanecer latente e aflorar em outro momento, quando a acusação ganha novo impulso.

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O entrelaçamento entre uso de plantas medicinais e práticas de envenenamento leva as pessoas em um primeiro momento a negarem que dispõem de tais conhecimentos. Entretanto, em muitas casas existentes nas aldeias localizadas na TI Sararé foi possível observar infusões de cascas de determinados vegetais utilizados como remédios. Esporadicamente algum Katitaurlu, quando instigado, apontava um vegetal e dizia para que disfunção orgânica a planta pudesse ser utilizada, mas todos recusavam o rótulo de especialista no assunto. Quando assumiam tais conhecimentos tratavam logo de minimizar sua extensão, como no caso de Paulo Katitaurlu, quem disse conhecer “alguns remedinhos que o velho [seu pai] ensinou, mas só um pouquinho”. Feita esta breve digressão etnológica, retoma-se a discussão sobre o processo histórico regional. De acordo com os historiadores Virgílio Corrêa Filho (1994 [1969]), autor de História de Mato Grosso, e Elizabeth Madureira Siqueira (2002), autora de História de Mato Grosso: da ancestralidade aos dias atuais, anteriormente ao ano de 1731, entre 1718 e 1721, os bandeirantes paulistas, primeiramente sob o comando de Antônio Pires de Campos, haviam descoberto três jazidas auríferas de aluvião no vale dos rios Coxipó e Cuiabá. Em decorrência disso foi fundado em 08/04/1719, sob as ordens do capitão-mor Pascoal Moreira Cabral, o Arraial do Cuiabá, o qual em 01/01/1727, por determinação do governador e capitão-geral da Capitania de São Paulo, Rodrigo Moreira César de Menezes, foi elevado à categoria de Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Mas um evento histórico marcante para a época foi mesmo a fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade, em 1752. Este fato ocorreu em um contexto de disputas entre Espanha e Portugal pela posse de grande parte do interior da América do Sul, como é o caso do vale do rio Guaporé e do vale do alto curso do rio Paraguai. Este povoado tornouse a primeira capital da recém-criada Capitania de Mato Grosso e foi fundado segundo as determinações do português Dom Antônio Rolim de Moura, quem, por sua vez, seguiu “à risca as instruções recebidas da rainha de Portugal” (Siqueira 2002:46). Com isso a coroa portuguesa estrategicamente assegurou a posse do extremo oeste das fronteiras da América Portuguesa com a América Espanhola, mas não concluiu, todavia, o processo de conquista e assimilação dos povos indígenas existentes naquelas terras, tampouco exerceu a ocupação efetiva daquele vasto território do interior do continente.

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No final do período colonial, Vila Bela da Santíssima Trindade “apresentava-se já decadente, quase despovoada, uma vez que grande parte dos comerciantes que ali residiam migraram para Cuiabá, vila então mais progressista e próxima de Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro” (Siqueira 2002:72). Esta situação foi consequência de múltiplos fatores, dentre os quais a exaustão das lavras auríferas de aluvião e a morte de autoridades governamentais vítimas de maleita (malária). Foi por este motivo em especial que, em 1819, sob o governo do militar português Francisco de Paula Magessi de Carvalho, a capital mato-grossense foi transferida para Cuiabá, uma vila que um ano antes, em 17/09/1818, foi elevada à categoria de cidade. Durante grande parte do século XIX e a primeira metade do século XX, os grupos de língua nambikwara conseguiram manter o domínio e a posse de um grande e contínuo território no vale do Guaporé, visto que diminuíram os conflitos bélicos com os não-índios. Na antiga capital de Mato Grosso, apenas para citar um exemplo, restaram poucos brancos e uma população majoritariamente de negros descentes de africanos escravizados, muitos dos quais organizados em comunidades quilombolas. Nas circunvizinhanças do ponto onde o rio Sararé deságua no Guaporé havia vários quilombos e hoje em dia ainda existem no lugar as comunidades Retiro e Boa Sorte, provas da presença marcante de descendentes de africanos escravizados em Vila Bela da Santíssima Trindade (Zanettini 2007b). Isto não significa dizer, bem entendido, que os antepassados dos atuais Katitaurlu tenham ficado como que isolados em relação ao sistema colonialista. As tentativas de aldeamento para a catequese e evangelização propostas pela antiga Diretoria Geral de Índios, na década de 1850, são exemplos disso. Também não podem ser omitidos os contatos que mantiveram com membros da Comissão Rondon, em 1907, e a epidemia de sarampo deles decorrentes e que lhes causou baixas e, consequentemente, depopulação (Robrahn-González et al. 2008). Destes contatos os atuais Katitaurlu preservam a memória do conhecimento e uso de gêneros industrializados, como as ferramentas metálicas que já se prolonga por mais de um século. Lembram-se ainda dos relatos dos antigos que descreviam as dificuldades de tal acesso, descontínuo e difícil, o que motivava as pessoas a improvisarem ferramentas com os pedaços de metais disponíveis, como machados feitos de molas de caminhão. No ano de 1919, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910 e antecessor da atual FUNAI, fundada em 1967, instalou em Pontes e Lacerda um posto para atrair os grupos de língua nambikwara que viviam no vale do Sararé. Em 1921 este posto foi 21

mudado para foz do mesmo rio, “sendo extinto oito anos depois, sem conseguir contato pacífico com os índios” (Amorim et al. 1981:14). Segundo os citados autores, nas duas décadas seguintes o órgão indigenista oficial continuou com a política de atrair esses grupos. Em 1925 criou o Posto Urutau, no rio Juína, que funcionou até 1931, e foi reconstruído em 1942 às margens do córrego Espirro, cerca de 15 km da cidade de Vilhena, no atual estado de Rondônia, desta vez batizado de Posto Indígena Pyrineus de Souza. Hoje a TI Pirineus de Souza e o PIN Aroeira estão localizados no estado de Mato Grosso, na fronteira com o estado de Rondônia. Apesar disso tudo, muitos anciãos costumam dizer que este é um tempo situado no passado muito remoto em que os Kwatyansu (“comedores de feijão”) ou brancos – termo usado para categorizar os não-índios em geral – eram minoria e os índios ainda podiam fazer frente a eles e viver mais tranquilamente em seu território. Esta explicação foi dada por Domingos Katitaurlu, morador da aldeia Serra da Borda e uma das principais lideranças da TI Paukalirajausu, dentre outros líderes de idade mais avançada. Sobre este assunto assim disse Prudente Pereira de Almeida Neto (2004a), autor da tese de doutorado A

sabedoria

Katitaurlu

como

representação

da

“comuniversidade”:

diálogo

intercultural, referência bibliográfica obrigatória para o conhecimento da história e da cultura desse povo indígena: A resistência Katitaurlu por dois séculos e meio, sem contato permanente com os Kwatyansu (os brancos, ou não índios, os civilizados) expressou uma escolha deliberada dos índios a continuarem com seu padrão de vida, não aceitando o papel que aquela civilização colonizadora lhes propunha serem escravos e desterrados (Almeida Neto 2004a:27).

Embora tivessem optado pela continuidade de seu um modo de vida tradicional e resistido ao processo de conquista e colonização inaugurado pelo Império Português, isso não significa algum tipo de total isolamento. Certamente prosseguiram mantendo contatos bélicos e amistosos com os negros e os poucos brancos que permaneceram na região guaporeana e até mesmo com outros povos indígenas ali estabelecidos, muitos deles para fins da concretização de relações de aliança política. Somente na segunda metade do século XX é que os contatos com os brancos se tornaram mais intensos, numericamente desproporcionais e traumáticos para esses grupos, destacadamente a partir da década de 1960. Esta situação ocorreu quando a fragilização do grupo impôs a necessidade de contato permanente como talvez a única alternativa ao extermínio.

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Os índios mais velhos que vivem na TI Sararé, como Domingos Katitaurlu, mencionado anteriormente, relatam histórias antigas, preservadas na memória social coletiva do grupo e transmitidas de geração em geração. As narrativas sobre eventos vividos e acerca da trajetória dos grupos e de seus líderes remetem a um tempo antigo, sem uma cronologia precisa, que aponta a presença de escravos na região e da ocorrência de raptos de índias por eles. Em suas falas a categoria genérica de escravo aparece com o sentido de negro e de estrangeiro. Eles associam esses escravos à presença de negros na região e aos africanos escravizados trazidos desde o século XVIII para Vila Bela da Santíssima Trindade, muitos dos quais fugiram de seus senhores em busca de liberdade e contra a opressão que sofriam. Era comum que buscassem refúgio fora do espaço ocupado pela presença colonial, espaço este ocupado pelos índios, o que dava ensejo a embate e disputas. Ao usarem o termo escravo, portanto, não necessariamente estão a falar dos negros escravizados nos oitocentos ou novecentos, mas referem-se aos negros em geral, inclusive foragidos e quilombolas que permanecem na região guaporeana até os dias de hoje. Muitos deles estão inclusive a reivindicar a condição de quilombola e os direitos assegurados a comunidades tradicionais desse tipo.

Figura 1: Sede da ACORBELA – Associação dos Remanescentes de Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade – MT. 23

Em um desses relatos Domingos disse que uma índia raptada fugiu do meio dos escravos, mas estes vieram em seu encalço e guerrearam contra os índios. Os relatos também fazem referência ao tempo em que os ancestrais dos atuais Katitaurlu não tinham contato permanente com os não-indígenas e não podiam contar com o suprimento seguro de artefatos industrializados, bens que já conheciam e desejavam à época. Para conseguir tais objetos, ele disse que os índios inicialmente chegaram “sem malícia” nos locais ocupados por brancos, pois queriam “pegar machado e facão, mas foram mortos”. A partir dessa experiência frustrada os índios passaram a roubar as ferramentas sempre que as encontravam. Como retaliação, os brancos organizaram expedições de ataque aos índios. Deste episódio teve início a um período de guerras que perdurou por muito tempo, com freqüentes escaramuças entre as partes. Todavia, um evento histórico significativo que definitivamente acelerou os traumáticos contatos que os Katitaurlu tiveram com as novas frentes econômicas da sociedade nacional foi a construção da rodovia federal BR-364. Esta estrada não apenas ligou Cuiabá, em Mato Grosso, a Porto Velho, em Rondônia, mas conectou o centro-sul do país com a região Norte. Este assunto foi assim tratado no relatório de identificação e delimitação da TI Sararé: A partir de 1960, com a construção da BR-364 que liga Cuiabá a Porto Velho, é que foi efetivada a maior invasão do território Nambikwara do Vale do Guaporé. Esta estrada possibilitou a penetração às terras férteis do vale do Guaporé por grandes empresas, que realizaram extensos desmatamentos para a exploração de madeira e implantação de pastagens pra desenvolver a pecuária (Amorim et al. 1981:14).

Na verdade, a construção da BR-364 estimulou a vinda de novas frentes econômicas da sociedade nacional, as quais trouxeram empreendimentos capitalistas, tecnologia moderna e grande número de trabalhadores não-índios para a região. Tudo isso causou muitos impactos negativos de grande magnitude sobre os ecossistemas locais e aos povos indígenas neles estabelecidos. E ainda segundo consta no referido estudo produzido para a FUNAI: Para esses empreendimentos capitalistas, foi utilizada uma tecnologia moderna e grande número de trabalhadores, levando a uma rápida transformação do ecossistema. Para a pecuária extensiva e extração de madeira, foram desmatados rapidamente grandes extensões, empregando-se milhares de peões e produtos químicos desfolhantes, que tornou impraticável o tipo de agricultura do grupo, nas áreas onde atuaram. O valor dos investimentos feitos no vale do Guaporé pode ser avaliado pelas benfeitorias que foram implantadas: serrarias, campos de aviação, escritórios, residências, casas de empregados, vendas, pensões, currais, extensas pastagens e

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numerosíssimo rebanho. A exploração do território Nambikwara, por empresas agropecuárias e madeireiras, trouxe aos índios a desestruturação de seu ecossistema, redução de seus recursos de fauna e flora, poluição de fontes de água, destruição de roças por rebanhos, contágio de doenças, subnutrição, redução populacional, e comprometimento de sua própria sobrevivência (Amorim et al. 1981:14). [destaques nossos]

Foi nessa mesma década que eles aceitaram o contato pacífico e permanente com segmentos da sociedade nacional, como missionários protestantes e funcionários do órgão indigenista oficial. Na análise apresentada por Almeida Neto consta a seguinte avaliação sobre o assunto: Os Nambiquara do Sararé, ao aceitarem o contato com segmentos da sociedade nacional, de forma pacífica e permanente, a partir de 1960, acreditaram estar fazendo alianças com novos amigos, que, na concepção dos índios, poderiam ser provedores de bens e serviços externos almejados pela comunidade indígena. Correspondesse essa representação que os índios tiveram dos brancos, diminuiria os motivos de confrontos externos entre os índios do Sararé e a população não índia, por exemplo, o movimento para fora de suas terras para conseguirem ferramentas agrícolas ou então para circularem livremente pelos seus territórios de caça e coleta. Infelizmente, o contato não trouxe apenas a amizade de novos aliados, trouxe também problemas que os índios, sozinhos, já não conseguiam resolver, como epidemias, invasões e desmatamentos em grandes proporções no seu território e, por conseguinte, o enfraquecimento da comunidade indígena que se viu ficando dependente de proteção e assistência junto à aldeia (Almeida Neto 2004a:27).

Por isso a pacificação e a completa sedentarização dos índios em aldeias controladas por agências missionárias e pelo Estado só ocorreu a partir de meados do século passado. Consolidou-se a partir da década de 1960 com a construção da rodovia BR-364 e o violento processo de desterritorialização, mudança sociocultural e depopulação sofrido pelos Katitaurlu. Eles somente aceitaram a pacificação e a submissão ao controle dos brancos por estarem naquele momento extremamente fragilizados em termos demográficos e socioeconômicos. Este fato impediu a manutenção de um estado bélico permanente face às inúmeras epidemias que assolaram seu território e que provocaram forte depopulação, fato conectado com a entrada massiva de novos ocupantes nãoindígenas. Os Katitaurlu expressam a percepção clara de que o aumento de incidência de epidemias coincidiu com a proximidade maior dos brancos e do crescimento do fluxo de novos ocupantes não-índios na região guaporeana, fatos considerados marcantes em sua história recente. Esses novos ocupantes estavam interessados em desmatar as florestas com o intuito de implantar latifúndios com pastagens para a criação de gado, em extração da 25

madeira e até mesmo em estabelecer garimpos clandestinos. O desmatamento das florestas se deu principalmente por meio da extração e comercialização de diversos tipos de madeira de valor comercial, acrescido do uso deliberado de desfolhantes químicos, conforme explicado amiúde. As formas de ocupação do espaço implementadas pelos novos ocupantes foram e ainda o são expressamente incompatíveis com o modo de ocupação indígena na região. Daí os conflitos que emergem a partir da penetração da nova frente de ocupação. Tal situação só tenderá à acomodação a partir da demarcação da Terra Indígena Sararé, como medida de restrição do espaço de circulação dos índios à área a eles reservada pelo Estado nacional. Entretanto, mesmo a demarcação da terra indígena não se revelará medida suficiente para assegurar a acomodação dos dois modos de ocupação, pois a área passou a ser constantemente assediada por particulares não-indígenas. São brancos interessados em se apropriar dos recursos que ela comporta, tais como madeira, ouro, palmito e áreas de pastos. Além disso, os índios continuam reivindicando uma faixa de terra contígua a área demarcada, a de Paukalirajausu, cujo processo administrativo de regularização fundiária ainda não foi concluído pela FUNAI. Pela experiência que tiveram durante e após a construção da BR-364, os atuais anciãos Katitaurlu e outros membros da comunidade veem com preocupação a construção e o uso de todo tipo de estrada ou via de acesso que circunvizinha seu território, do qual são parte as TI’s Sararé e Paukalirajausu. Acreditam que essas vias são como portas de entrada para os brancos invadirem seu território em busca de madeira, terra, ouro, palmito etc., e com eles à chegada de vários tipos de doença. Tal percepção se referencia na história vivida nas últimas décadas pelos Katitaurlu e requer o esforço dos órgãos públicos e da sociedade civil para evitar a reincidência dos erros cometidos no passado. Madeira nobre e palmito de açaí, por exemplo, são recursos que na atualidade praticamente só existem naquela área, visto que as matas do entorno foram quase que totalmente destruídas, inclusive parte daquelas que por lei constituem área de preservação permanente e reserva legal, como é o caso das matas ciliares. Na década de 1970 os Katitaurlu do vale do Sararé já se auto-identificavam por este mesmo etnômio, conforme consta registrado na literatura etnológica. Tudo indica que esta autodenominação se refere a um antepassado comum que tiveram, uma importante liderança indígena de quem Moisés Katitaurlu descende (Almeida Neto 2004a). Katitaurlu,

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portanto, foi alguém que os índios elevaram à condição de uma espécie de herói fundador pelo fato de os terem liderado na luta em defesa da vida e de seu território contra escravos, exploradores de ouro, madeireiros etc. Paradoxalmente, se hoje em dia eles preferem não pronunciar o nome dos mortos, sua auto-identificação tem a ver justamente com um antepassado já falecido, um indivíduo cuja história representa unidade e capacidade de liderança para o grupo. Seguindo os estudos de Amorim et al. (1981), os índios que vivem na Terra Indígena Sararé descendem de vários grupos estabelecidos no vale do rio de mesmo nome antes da penetração das frentes de ocupação econômica da sociedade nacional. No entanto, a pesquisa de campo realizada para este estudo atestou que na verdade o espaço da TI Sararé se constitui como área de acomodação de remanescentes de diversos grupos linguisticamente nambikwara. Esta condição foi reforçada com a demarcação e relativa garantia da área como espaço de ocupação exclusiva dos índios. Dentre estes grupos figuram os próprios Katitaurlu, denominação que possui certa profundidade temporal e que é percebida atualmente pelos índios do Sararé e pelos vários agentes indigenistas como categoria que engloba todos os indígenas daquela reserva. Mesmo assim é possível identificar alguns indivíduos que preservam a memória de pertencimento a grupos com outras denominações e mesmo grupos familiares que reivindicam outras denominações, embora esta situação não tenha a ver, necessariamente, com a emergência de outros grupos étnicos. Os problemas que os Katitaurlu então enfrentavam somente vieram à tona para o grande público no decênio de 1970. Foi nessa época que a imprensa mato-grossense e nacional divulgou as várias formas de violência de que estavam sendo vítimas. Muitas mortes ocorreram decorrentes do uso indiscriminado de desfolhantes químicos lançados por aviões a serviço de fazendeiros locais, epidemias associadas à presença de agentes patogênicos alienígenas, como a varíola, a gripe e o sarampo, e mesmo os massacres provocados pelos ataques dos brancos com o uso de armas de fogo. Em outra avaliação feita por Almeida Neto: A ocupação brasileira (...) incrementou derrubadas, pastagens e explorações de recursos naturais em lugares tradicionais dos Nambiquara do Sararé. Estes também foram obrigados a conviver com as mudanças em suas terras e, aos poucos, também com o deslocamento forçado de suas aldeias para não dividi-las com pastos cheios de gado. As derrubadas e pastagens, em grande parte, foram feitas com desfolhantes químicos e com semeadura aérea de capim. Assim os índios iam perdendo terreno para um modo de ocupação que, além de lhes tomar a terra imemorial, degradavam-na.

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Consequentemente deixava-os cada vez mais pobres, debilitados e dependentes dos invasores (Almeida Neto 2004a:44-45).

A despeito dos desfolhantes químicos lançados por aviões e a mando de fazendeiros locais, refere-se especificamente ao Tordon 155, mais conhecido como agente laranja, usado inclusive como arma química pelos Estados Unidos na guerra contra o Vietnã, cujos efeitos são avassaladores para a saúde humana e para o meio ambiente. Em seres humanos doses elevadas de dioxina, conhecida como TCDD, um de seus componentes, tem ação teratogênica e hepatotóxica que conduz à perda de peso, lesões vasculares, úlceras gástricas, abortos espontâneos, cânceres e outros prejuízos. No meio ambiente o agente laranja serve principalmente como desfolhante químico e herbicida; destrói coberturas vegetais e com elas o habitat dos animais, acumula no solo e nos lençóis freáticos, polui toda ecologia e passa a fazer parte da cadeia alimentar (Silverman 2009). Entre os Katitaurlu muitas pessoas foram envenenadas por inalação do Tordon 155 e em decorrência disso ficaram subnutridas porque, ademais, estavam com a saúde debilitada e suas roças e matas foram destruídas. Faltaram-lhes saúde e condições físicas para trabalhar em sua economia de subsistência, além de alimentos para colher, coletar e caçar nas matas. Sobre este assunto, assim explicou o pesquisador e indigenista Ivar Luiz Vendruscolo Busatto, autor da dissertação de mestrado Os Nambikwara da Terra Indígena Tirecatinga – Mato Grosso: agricultura, espécies e variedades tradicionais: Como indigenista, vivemos também entre outros povos vizinhos dos Nambikwara: Paresi, Irantxe, Myky, Cinta-Larga, além de atuar também com outros povos em muitos lugares do Brasil. Acompanhamos, nos anos 80, o genocídio dos Nambikwara do Vale do Guaporé, quando a SUDAM e fazendeiros se aliaram para saquear territórios imemoriais daquele povo. Esse “velho filme” que mais uma vez se repetia com cenas tão reais, suscitou denúncias e comoção nacional. Foi terrível ver o impacto do “agente laranja” (Tordon 155), sendo jogado de avião sobre a mata, na qual vivia um povo com autonomia, simplicidade e alegria (Busatto 2003:8).

Este é mais um exemplo para se compreender o motivo pelo qual os Katitaurlu percebem os brancos como especialistas em venenos poderosos que podem lhes fazer mal. Se a tradição do grupo reconhecia o potencial de substâncias intencionalmente manipuladas por seus especialistas, cujos efeitos podiam ser terapêuticos ou letais, os novos ocupantes trouxeram venenos capazes de provocar a morte da maior parte dos indígenas e provocar a destruição do ambiente de que dependiam para praticar seu sistema cultural.

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O uso de desfolhantes químicos não se deu por acaso porque o Tordon 155 foi propositalmente lançado sobre a área onde estavam assentados os Katitaurlu. Dito de outra maneira: o agente laranja serviu como uma verdadeira arma química em uma guerra cujo objetivo maior era, de fato, exterminar os índios para que seu território fosse transformado em pastagens para bovinos, garimpos clandestinos e outros empreendimentos. Os registros documentais e as notícias veiculadas na imprensa evidenciam que a presença indígena era percebida por certos particulares interessados em se estabelecer na região como obstáculo a ser vencido. Desta forma, muitos se muniram dos recursos mais escusos para expropriar o espaço ocupado pelos Katitaurlu. Na sequência são apresentadas três fotografias tiradas na década de 1970 e apresentadas no documento intitulado Governo Extermina os Índios Nambiquara, publicado no ano de 1981 pelo então deputado estadual pelo PMDB Dante Martins de Oliveira (1952-2006), quem posteriormente, em 1983, já na condição de deputado federal foi o autor da conhecida emenda das Diretas Já.

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Figura 2: Homem Katitaurlu debilitado sobre efeito de epidemias e desfolhantes químicos na década de 1970 (Fonte: Oliveira 1981).

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Figura 3: Mulheres Katitaurlu debilitadas sobre efeito de epidemias e desfolhantes químicos na década de 1970 sendo ajudadas pela FAB (Fonte: Oliveira 1981).

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Figura 4: Mãe e filho Katitaurlu em sua casa. Na frente da residência consta uma embalagem metálica do desfolhante químico Tordon 155 (Fonte: Oliveira 1981).

Além disso, tudo leva a crer que as epidemias também não ocorreram por acaso. Alguns anciãos da comunidade indígena do Sararé explicaram que naquela época os brancos lhes trouxeram malas de roupas para usarem, deixando-as em uma estrada próxima ao local onde viviam. Os índios as pegaram para usar porque pensaram que eram presentes, mas logo em seguida todos eles contraíram sarampo e varíola, ficaram gravemente doentes e muitos vieram a óbito: Nas palavras pronunciadas por Moisés Katitaurlu e traduzidas por Danilo Katitaurlu: “Foi branco que trouxe doença, matou muito índio. Só depois que FUNAI entrou aqui e abriu estrada que sai na fazenda. Antes da doença índio era muito. Ia em Vila Bela, matava branco e roubava ferramenta”. Contata-se nesta outra situação que agentes patogênicos de além-mar – com os quais a população regional não-indígena já convivia de longa data e o desenvolvimento da resistência havia diminuído os efeitos sobre seu organismo – foram intencionalmente usados na região como uma espécie de arma bacteriológica contra os índios do Sararé. Com efeito, na década de 1970 os ataques dos brancos contra os Katitaurlu constituíram-se em uma verdadeira guerra química e bacteriológica de proporções

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alarmantes, caráter genocida e favorecida pela ausência do papel moralizador do Estado brasileiro na região guaporeana. Para evitar a concretização de um etnocídio foi criada em 1973 uma força tarefa chamada Operação Sararé, da qual fizeram parte a FUNAI, Cruz Vermelha Internacional, FAB e missionários religiosos, para conseguirem evitar o completo desaparecimento dos Katitaurlu, os quais à época foram acometidos pelo sarampo. Segundo explicou Ariovaldo José dos Santos em um artigo de sua autoria: A população Nambiquara do Sararé era estimada em torno de trezentas pessoas antes do contato em 1960. As aberturas de fazendas no Vale do Guaporé se deram, em sua maioria, com desmatamento químico aéreo, utilizando o agente laranja Todon. Em 1973, os Katitauhlu foram acometidos maciçamente pelo sarampo, tendo a Funai que recorrer ao apoio da Cruz Vermelha Internacional e da Força Aérea Brasileira (FAB) para evitar a dizimação do grupo. Os sobreviventes, na época, não chegaram a cinqüenta pessoas. A imprensa nacional, na ocasião, referiu-se aos sobreviventes do Sararé, como Biafra brasileiro (Santos 2005:208).

Toda esta situação foi assim criticada em 11/06/1980 pelo então deputado estadual Dante de Oliveira na Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso: O Governo Federal no projeto de pavimentação abandonou o traçado da BR-364 para atender os grandes grupos econômicos, interessados que o trajeto da rodovia financiada pelo Banco Mundial seja efetivado cortando o vale do Guaporé, sem se importar com a eliminação dos indígenas, com sua cultura, tradições e locais sagrados. Convém salientar que essas empresas estão ilegalmente instaladas na região atuando de forma criminosa contra o povo indígena e a natureza, utilizando indiscriminadamente o agente laranja, gerando nos seus primeiros contatos, verdadeiros escândalos, pelas doenças provocadas, caso específico da “Operação Sararé”, que levou o Sr. Nelson Faria, Superintendente da SUDECO a comparar os indígenas afetados com os “exilados da Biafra”. Abandonando todas as saídas para atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, o Governo mais uma vez demonstra que é forte apenas para reprimir trabalhadores, punir lideranças sindicais, processar deputados, mas covarde, canalha e subserviente para defender os autênticos interesses de nossa Pátria e de nosso povo. Demonstram também os homens do Governo Estadual que as “profissões de fé humanitárias” são insuficientes para mascarar a face dos verdadeiros inimigos dos índios, que a exemplo de alguns pequenos proprietários, são vítimas dos grandes latifundiários estabelecidos na Amazônia, e financiados com os incentivos fiscais custeados com o dinheiro do povo (Dante de Oliveira 1981 [1980]:10).

Na denúncia apresentada pelo parlamentar, fica claro a conivência do governo federal e do governo estadual com a situação pela qual passavam os Katitaurlu e outros povos indígenas na região mato-grossense do Guaporé. Sem dúvida alguma, um dos maiores saldos negativos desses contatos interétnicos iniciados em tempos coloniais e que perduram até os dias de hoje foi a diminuição da biodiversidade e da sociodiversidade indígena na região do vale do alto curso do rio Guaporé e adjacências. 33

Sociodiversidade não tem a ver apenas com a diversidade de povos e culturas, mas também com conhecimentos e saberes que lhes são próprios e que constituem parte importante do patrimônio cultural da humanidade. Por tudo isso é que na década de 1970 a FUNAI, juntamente com o Exército Brasileiro, ambos sob pressão da opinião pública, de setores da sociedade civil organizada, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e também de políticos mato-grossenses, como o então deputado estadual Dante de Oliveira, tomaram as providências de iniciar a demarcação de terras para os Katitaurlu na região do vale do alto curso do rio Guaporé (Amorim et al. 1981). Para tanto o órgão indigenista oficial contou com a colaboração inicial do antropólogo estadunidense Paul David Price, quem em 1975 apresentou uma avaliação da situação vivida pelos grupos linguisticamente nambikwara e uma proposta sobre a delimitação de uma reserva indígena para os Katitaurlu do Sararé. Sua proposta foi ao encontro de iniciativas e resoluções tomadas pelo próprio CIMI. No ano seguinte, em 1976, a FUNAI enviou para a região o antropólogo Noraldino Vieira Cruvinel, cuja tarefa era a de “propor alternativas para solucionar o problema existente no território Nambikwara” (Robrahn-González et al. 2006:30). Finalmente, em 09/07/1981, a FUNAI publicou a Portaria 357/PRES/FUNAI constituindo um grupo de trabalho para identificar e delimitar as áreas nambikwara no vale do rio Guaporé e seus tributários (ver Amorim et al. 1981). Embora tenha tomado a decisão de reservar terras aos índios no vale do Guaporé, na verdade o governo federal da época, um governo de exceção ligado ao regime militar (1964-1985), valeu-se do órgão indigenista oficial para diminuir o território dos Katitaurlu, forçando-os a um processo de territorialização até então desconhecido: a vida em reservas delimitadas pelo Estado brasileiro. Reservou-lhes uma área menor do que dispunham anteriormente para em seguida liberar parte de seu território tradicional para o avanço das frentes econômicas da sociedade nacional, sobretudo para a implantação de grandes latifúndios. Isto porque Antes do contato (1960), para os grupos étnicos do Sararé na tinha sentido estabelecer limites precisos das fronteiras do seu espaço tradicional, certamente que ao serem acuados pelos expropriadores de suas terras, fazendeiros, posseiros e colonos, esbarraram nas fronteiras de seu território com o território de outros grupos étnicos, como, por exemplo, os Paresi, povo de língua Aruak (Almeida Neto 2004a:129).

Sobre este assunto em particular, vale dizer que em fins da década de 1970 e meados da de 1980 não havia um Estado democrático de direito instalado no país e a 34

sociedade civil organizada tinha sido duramente atacada pelos órgãos de repressão. Também não vigorava no Brasil uma Lei Maior como Constituição Federal promulgada em 05/10/1988, também conhecida como Constituição Cidadã, que em seu artigo 231, dispõe sobre o reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas. Além disso, à época as identificações de terras indígenas não seguiam o que determina o Decreto nº. 1.175, de 08/01/1996, e a Portaria MJ nº. 14, de 09/01/1996, que estabelecem os critérios para este tipo de procedimento. Estes são os motivos burocráticos, administrativos, políticos e legais pelos quais a TI Paukalirajausu e outras áreas adjacentes ficaram de fora desta primeira demarcação de terras para os Katitaurlu no Sararé. No caso da TI Paukalirajausu, cuja maior liderança é Domingos Katitaurlu, levantou-se que a região serrana conhecida como Serra da Borda contém vários lugares sagrados onde moram os espíritos dos índios do Sararé. Esta questão foi devidamente tratada por Almeida Neto e chama à atenção para a importância daquela área para a reprodução física e cultural dos Katitaurlu: Assim, os Nambikwara do Sararé têm aldeia dos espíritos na Serra da Borda [por eles percebida como a região serrana que ladeia o médio curso do rio Sararé e não o que a cartografia nacional distingue como tal] e também nos contrafortes da Chapada dos Parecis, dentro do território Wasusu, indicada como morada dos espíritos aliados dos Sararé. Quando morre um(a) Katitaurlu que esteve casado(a) com um(a) Wasusu e estava morando em território Wasusu a escolha da morada dos espíritos recai sobre a região mais próxima do local da última morada enquanto vivo. Perguntado a Domingos Katitaurlu, se quando morresse Eremita Wasusu, viúva de Simão Katitaurlu, o seu espírito iria par a área Wasusu ou ficaria no Sararé, disse que hoje já não faz muita diferença, pois seus filhos estão todos casados com moradores do Sararé, inclusive o espírito de seu esposo, Simão Katitaurlu, continua entre os Katitaurlu. Américo explica que se o espírito do esposo de Eremita Wasusu estivesse com os Wasusu é provável que o espírito dela tivesse que ir para lá também (Almeida Neto 2004a:130).

A partir do momento da ocupação da maior parte do território pelas frentes econômicas da sociedade nacional, a história dos grupos nambikwara na região ficou marcada por profundas transformações. O que no passado foi um grande e contínuo território pertencente a vários grupos étnicos de língua nambikwara no vale do Guaporé, que mantinham entre si redes de alianças e hostilidades, a partir da década de 1970 e, sobretudo na década de 1980, tornou-se um conjunto de áreas descontínuas umas das outras. Entre elas foram construídas rodovias asfaltadas, estradas vicinais, assentamentos rurais, grandes fazendas de gado, vilarejos, cidades etc., isto é, um conjunto de ações ligadas às novas frentes econômicas da sociedade nacional que afetaram diretamente a dinâmica territorial dos indígenas. Com efeito, os Katitaurlu e outros grupos estabelecidos 35

no vale do Guaporé sofreram violento processo de desterritorialização e tiveram de se territorializar em espaços menores agora definidos e relativamente controlados pelo Estado brasileiro. Nos anos de 1980, apesar da demarcação da TI Sararé, parte da reserva continuou sendo ilegalmente explorada por algumas fazendas para o extrativismo de madeira, garimpos de ouro e pastagens para bovinos, além de a região mais ampla passar a ser alvo de pesquisas mineralógicas: Na década de 1980, parte do território Katitaurlu, com 67.420 hectares, foi demarcada pela FUNAI e pelo Exército brasileiro como Terra Indígena Sararé. Alguns lugares incluídos na demarcação em 1984 vinham sendo explorados, à revelia dos índios, pelas fazendas (Agropecuária Sapé, Agropecuária Florêncio Bonito e Agropecuária Kananchuê) como pastos e como áreas de extrativismo de madeira. A Mineração Santa Elina também vinha pesquisando no território Katitaurlu onde detinha os alvarás de pesquisa e exploração mineral para as áreas da região, mais especificamente na Serra de São Vicente, Serra da Borda, córregos Banhado e Água Suja, ambos limites naturais da atual TI Sararé (Almeida Neto 2004a:113).

Na década seguinte, a de 1990, os Katitaurlu passaram a sofrer assédio e foram cooptados por madeireiros da região e circunvizinhanças a ponto de “não aceitarem mais a permanência da FUNAI no Posto Indígena, nem a entrada de Fiscalização do IBAMA e até mesmo vacinação pela Fundação Nacional de Saúde” (Almeida Neto 2004a:115). Em troca disso, lideranças indígenas passaram a receber [...] presentes de pagamento pela madeira extraída (mogno, cerejeira, cabriúva, peroba, cedrinho e outros). Para os índios foram construídas casas de alvenaria, todas na aldeia Nutanyensu [Sararé ou do Américo]; foram fornecidas mercadorias, cestas básicas semanais, algumas viaturas, armas de fogo, grupo gerador, televisões com antena parabólica para os principais auxiliares e hotel pago em Pontes e Lacerda quando os índios quisessem. De tal maneira que os Katitaurlu foram deixando de acompanhar os madeireiros na extração de madeira da Terra Indígena, ficando entretidos com televisão e passeios na cidade. Também diminuíram os tamanhos das roças, já que recebiam alimentos prontos, e por decorrência também a caça, a pesca e a coleta foram rareadas. Com isso o território indígena foi ficando livre para os invasores explorarem-no à vontade. Os invasores então abriram estradas e acessos por vários lados da terra indígena, tornando cada vez mais difícil o controle de entrada e saída de caminhões toreiros. Estrategicamente, os madeireiros não ensinaram nenhum índio a cubicar, classificar e entender da atividade econômica com madeira. Aos madeireiros interessava que os índios consumissem o que eles sugeriam e podiam pagar (Almeida Neto 2004a:115). [grifos nossos]

Esta situação ilegal e imoral somente foi interrompida em 1994, quando houve uma intervenção da FUNAI e da Polícia Federal na reserva. Na ocasião o posto indígena foi resgatado e foram presos “madeireiros, equipamentos, tratores, caminhões e madeiras já cortadas”. As madeiras apreendidas “foram alienadas e leiloadas pela Justiça Federal, 36

ficando o valor da arrecadação depositado em juízo, para posterior investimento em projeto sustentável na TI Sararé” (Almeida Neto 2004a:115-116).

Figura 5: Casas de alvenaria construídas a mando de madeireiros na TI Sararé, ocupadas por Marcos e Jackson Katitaurlu (UTM 241836E/8363361N).

Figura 6: Casa tradicional de Samuel Katitaurlu na aldeia Serra da Borda (UTM 225113E/8362941N).

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Dessa convivência com madeireiros resultou “dependências de consumo e hábitos que não tinham antes”, como a ingestão de bebidas alcoólicas, e, por conta disso, uma exigência maior para que a FUNAI garantisse a manutenção do fluxo de mercadorias e serviços que os madeireiros lhes havia imposto. Na mesma década a TI Sararé também foi alvo da invasão de milhares de garimpeiros. Em 1992 uma força tarefa retirou do lugar cerca de 3.000 garimpeiros. No ano seguinte, 1993, madeireiros de Pontes e Lacerda, Nova Lacerda, Vila Bela da Santíssima Trindade e Comodoro invadiram a área, aliciaram e cooptaram os índios para o seu lado (Almeida Neto 2004a)1. Esta situação somente veio a mudar em 1996: A reversão desse quadro veio em novembro de 1996, quando sofreram uma tocaia armada pelos madeireiros e garimpeiros no interior do território indígena, sendo espancados 14 Katitaurlu, inclusive dois dos principais líderes dos grupos Nutantesu e Kwalitsu [aldeias Sararé e Seis], Américo e Mateus, até o desmaio. Em seguida, foram para a aldeia Nutanyensu e lá saquearam todos os bens de valor encontrados, os quais eles, os madeireiros e garimpeiros, tinham dado para os índios em permuta com madeira e ouro; como carros, motos, armas, equipamentos e munição. Tal evento modificou a imagem de amigo que os Katitaurlu tinham de seus aliciadores, transformando-os doravante em inimigos merecedores de expulsão da terra indígena (Almeida Neto 2004a:116).

Até então os próprios Katitaurlu tinham diminuído a atenção para com a proteção da reserva indígena e perceberam que a porção sul da área estava invadida por milhares de garimpeiros: Diante deste contexto, os Katitaurlu voltaram a pedir apoio à FUNAI para desintrusar os invasores: garimpeiros, madeireiros e palmiteiros da Terra Indígena Sararé. Foi aí que se revelou o conhecimento de que a área sul da reserva estava invadida por milhares de garimpeiros. Novamente foi preciso de um “pool” de Instituições Federais, Estaduais, Municipais e ONGs para retirar no início de 1997, aproximadamente 8.000 garimpeiros, espalhados por várias lavras aluvionares no sopé da Serra da Borda, sobre antigas lavras coloniais do século XVIII (Almeida Neto 2004a:117).

Depois disso, a presença ocasional desses indivíduos na área perdura até os dias de hoje, haja vista que eles continuam a assediar os índios para voltarem à atividade extrativista ilegal na reserva, sobremaneira os índios mais jovens mais propensos a dependência de bens de consumo da sociedade nacional.

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Por meio de pesquisa realizada na Internet contatou-se que há até uma Associação de Garimpeiros do Vale do Sararé, cujo endereço é o seguinte: Avenida Municipal nº. 959, Centro, Pontes e Lacerda-MT, CEP 78250-000.

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Figura 7: Fotografia estampada na capa do jornal Diário de Cuiabá, de 01/12/1996, retratando garimpeiros ilegalmente trabalhando com draga na reserva Sararé.

O estabelecimento dos primeiros garimpos de ouro na região onde se localiza a TI Sararé remonta à primeira metade do século XVIII. Em 1993 chegou a ocorrer um embate bélico entre eles e os Katitaurlu. Alguns índios liderados por Américo Katitaurlu lograram flechar um garimpeiro e este culminou por falecer. Seu corpo foi conduzido pelos brancos na carroceria de uma caminhonete a desfilar pelas ruas da cidade de Pontes e Lacerda. Assim o fizeram para demonstrar a suposta ferocidade e selvageria dos índios, os quais são chamados na região de bugres, termo de origem colonial altamente pejorativo e que tem o sentido de indivíduo selvagem, rude e desprovido de humanidade. O próprio nome da cidade parece fazer jus aos embates e rusgas entre indígenas e os brancos. Sobre o assunto, Paulo Katitaurlu, de 29 anos, liderança da aldeia PIV, disse se lembrar quando era criança e adolescente e a reserva estava invadida pelos garimpeiros. Disse inclusive que sempre acompanhou as tentativas da FUNAI de livrar a área dos invasores, mas segundo afirmou, “não era pouco garimpeiro, era muito...”. Destacou a 39

impotência do próprio órgão indigenista frente ao grande número de invasores e a dificuldade que foi para os Katitaurlu reaverem a posse da reserva indígena. A lembrança dos tempos difíceis serve como motivação para resistir ao constante assédio de garimpeiros interessados em retomar a atividade na área. Segundo explicou, “gente da cidade qué tirá ouro. Fala que tá sozinho, que vai trazer dinheiro rapidinho, mas eu não quero pra não bagunçar nossa vida, pra não perturbar nossa vida!”. Disse ainda que garimpeiro “parece com boi branco”, referindo-se aos milhares deles que chegaram ali logo que souberam da existência de ouro no lugar. Ainda segundo explicação dada pelo referido indígena, no início das conversas que os Katitaurlu mantiveram com os garimpeiros, eles prometeram que usariam apenas a bateia, espécie de peneira de metal utilizada na extração de ouro em pequena escala2. Depois trouxeram máquinas pesadas para revolver a terra e isso causou grandes impactos negativos ao meio ambiente e à comunidade indígena do lugar. Por isso ele explicou que quando os Katitaurlu perceberam a “maldade” dos garimpeiros ao não cumprirem a palavra empenhada, decidiram atacá-los, isto é, fazer guerra contra eles em defesa de seu território e como forma de vingança, uma das mais fortes expressões da reciprocidade negativa. Atualmente, ao menos pelo que se tem notícia, a TI Sararé está livre da presença de grupos de garimpeiros, embora os Katitaurlu continuem sendo assediados pelos brancos a deixá-los entrar na reserva. Além de garimpeiros, os madeireiros também continuam a assediar membros da comunidade, em especial os mais jovens, aqueles que, como dito antes, mais sentem necessidade de adquirir bens de consumo da sociedade nacional: caminhonetas, celulares, chuteiras, máquinas fotográficas, motocicletas, relógios de pulso etc. Palmiteiros, por seu turno, vez e outra entram clandestinamente na TI Sararé para a extração do palmito de açaí, comercializado nas cidades da região. As conversas mantidas em campo com diversos atores sociais que vivem na TI Sararé – indígenas, professores não-índios e o funcionário da FUNAI que responde pela chefia do PIV – revelaram que alguns jovens acabam por ceder às propostas de brancos interessados em explorar os recursos ambientais da reserva. Eles realizam acordos pessoais que os beneficiam com recursos financeiros e até mesmo com oportunidades de frequentar 2

Distingue-se aqui garimpo de mineração. O primeiro tem a ver com as atividades não regulamentadas de extração mineral. A segunda, pelo contrário, diz respeito à exploração e extração de minérios em conformidade com a legislação mineral e ambiental em vigor.

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prostíbulos nas cidades vizinhas, o que pode ser uma forma perigosa de contrair e propagar doenças sexualmente transmissíveis. No caso das TI’s Sararé e Paukalirajausu, objeto deste estudo, levantou-se que elas foram delimitadas em, respectivamente, 67.419,52 e 8.400 hectares, o que totaliza 75.819,52 hectares (Robrahn-González et al. 2006:37). No entanto, entre os meses de abril e maio de 2009 os antropólogos que assinam este estudo estiveram na FUNAI em Brasília à procura dos relatórios administrativos. Só foi possível ter acesso ao relatório da TI Sararé, pois esta terra já tem seu processo administrativo concluído. Quanto ao relatório da TI Paukalirajausu, o mesmo ainda está em fase de avaliação interna no órgão indigenista oficial e seu conteúdo ainda não pode ser divulgado, em consonância com o regimento do serviço público. A responsável pela elaboração do relatório é a antropóloga Siglia Dória, que trabalha na sede do órgão em Brasília. Ela gentilmente recebeu um dos pesquisadores em seu gabinete e prestou todos os esclarecimentos possíveis sobre o processo conduzido pela FUNAI. Informou que no relatório não existem alterações significativas a respeito dos procedimentos anteriores que constam em mapas e em outros documentos oficiais que se referem à área da Paukalirajausu como terra de ocupação tradicional indígena, conforme constatado na sede da FUNAI em Cuiabá. Isto porque durante o levantamento realizado pela antropóloga os índios mantiveram a mesma demanda que já haviam expressado em levantamentos anteriores. Resumindo, o processo histórico transcorrido do século XVIII até hoje em dia explica o porquê dos Katitaurlu serem um grupo étnico constituído por remanescentes de vários grupos de língua nambikwara assentados no vale do rio Sararé, e quais foram os eventos que os levaram à atual situação em que se encontram. Tais populações resistiram de diversas formas ao estabelecimento de uma interação permanente com os não-indígenas radicados nas proximidades de suas terras. Para isto, repetidas vezes alternaram estratégias de ataque e fuga para a mata, sobretudo quanto ainda podiam fazer frente aos poucos brancos que ali existiam. Ao aprofundar o estudo sobre as origens éticas do grupo, o antropólogo, historiador e indigenista Ariovaldo José dos Santos (2000:16), autor da monografia de especialização em antropologia Sararé: reocupações Nambikwara no alto Guaporé, uma das principais referências bibliográficas sobre o grupo, chegou à seguinte conclusão quanto à origem desses índios: “Os Katitaurlu são um conjunto de grupos indígenas da etnia Nambikwara, chamados regionalmente como os índios Sararé, em distinção dos seus patrícios e vizinhos, 41

os índios Galera (Wasusu)”. Tudo indica, portanto, que a denominação Katitaurlu emergiu mesmo no momento da reterritorialização de membros dos grupos que viviam no vale do Sararé, o que se deu a partir de ações promovidas pela FUNAI para a demarcação de uma reserva indígena na região. O próprio autor registrou que o termo Katitaurlu passou a ser utilizado para nomear “os remanescentes dos grupos Nambikwara do Sararé: Nutantesu, Kwalitsu, Waihatesu e Yanaliritesu” (Santos 2000:16), embora Amorim et al. (1981) tenham apontados os Qwalitsu, Kaluhwaisu, Waihlatsu e os próprios Katitaurlu: Waihatesu – povo da cachoeira do córrego Banhado; Kwalitsu – povo da região entre Pontes e Lacerda e Vila Bela; Yanaliritesu – povo vizinho entre as cabeceiras do Sararé e Galera; Nutantesu – povo do alto Sararé ao córrego dos Bugres (Santos 2000:17; Santos 2005:208). Independentemente do nome dos grupos de que descendem, desta situação sóciohistórica ligada à demarcação da TI Sararé e à relativa proteção e assistência oferecida por missionários protestantes e pela FUNAI, permitindo que ali se reunissem os remanescentes dos principais grupos de língua nambikwara do vale do rio Sararé, é possível extrair duas deduções. Primeira, a etnicidade Katitaurlu teve maior visibilidade a partir das gestões que gravitaram em torno do processo administrativo de identificação e demarcação da TI Sararé. Isto se deu em um contexto histórico marcado por intensos contatos interétnicos decorrentes do avanço das frentes econômicas da sociedade nacional e pela ação de um governo central ligado a um Estado de exceção. Assim sendo, sem se considerar o contexto sócio-histórico regional e nacional não é possível compreender a própria ação do órgão indigenista oficial no vale do Guaporé. Segunda, Katitaurlu é uma categoria êmica que incorpora remanescentes de antigos grupos que viviam no Sararé, identificados anteriormente por outros nomes, mas que passaram a ser reconhecidos e a se reconhecerem por este etnômio. Esta situação somente foi possível acontecer quando eles puderam constituir um grupo étnico com uma particular organização social de sua cultura, uma autoidentificação comum e um sentimento de pertencimento a uma coletividade indígena e a um território ancestral. Ariovaldo José dos Santos iniciou sua experiência com os Katitaurlu em 1975, sob a orientação de Paul David Price, sendo um dos responsáveis por acompanhar as gestões do órgão indigenista na referida área até os dias atuais. Também foi o responsável pela primeira orientação de Prudente Pereira de Almeida Neto no indigenismo em Mato Grosso. 42

Por isso ele categoricamente afirmou que: A resistência Katitaurlu por dois séculos e meio, sem contato permanente com os Kwatyansu (os brancos, ou os não índios, os civilizados) expressou uma escolha deliberada dos índios de continuarem com seu padrão de vida, não aceitando o papel que aquela civilização colonizadora propunha para os índios: de serem escravos e desterrados (Santos 2000:4).

Paul David Price (1972), por sua vez, foi o autor da tese de doutorado intitulada Nambikwara Society e coordenador, na década de 1970, do Projeto Nambikwara, desenvolvido pela FUNAI, cujo objetivo era prestar assistência aos grupos de língua nambikwara estabelecidos “no sul de Rondônia e oeste de Mato Grosso” (Santos 2000:6). Foi ainda o realizador do primeiro esforço de analisar todo o território ocupado por esses grupos, pois a etnografia da região “foi excludente para os grupos Nambikwara do vale do Guaporé e Sararé” (Santos 2000:13). Ocorre que os contatos e os registros estavam mais restritos “aos grupos Nambikwara ocupantes da região que margeava a Linha Telegráfica de Rondon, no trecho entre o rio Juruena (MT) e rio Pimenta Bueno (RO)” (Santos 2000:13). Diante destas explicações, constata-se que os territórios ocupados pelos grupos de língua nambikwara no Sararé, tanto em caráter permanente como sazonal, passaram por alterações profundas a partir do maior assédio das frentes de ocupação econômica da sociedade nacional. As perdas foram cumulativas e os índios tiveram o espaço no qual podiam viver cada vez mais reduzido, sobretudo na segunda metade do século XX. Por isso a terra que dispõem atualmente constitui o espaço reduzido e demarcado pelas linhas divisórias que separam aquela reserva indígena de outras partes de seu território tradicional, as quais estão ocupadas por não-índios que ali desenvolvem um estilo de vida e de produção econômica totalmente diferenciada da dos Katitaurlu. Esta proximidade física, aceita pelos índios devido à situação de fragilidade e dependência em que se encontravam desde os anos de 1960, facilitou o contato permanente com os representantes da sociedade não-indígena. É claro que o contato intercultural não constitui em si um problema, como se fosse possível ou desejável evitar a relação com o outro. Não obstante, deve-se considerar que esta máxima não pode servir de justificativa ou álibi para aqueles contatos marcados pela intolerância étnico-racial, por tentativas de etnocídio através de guerra química e bacteriológica e pela violação dos direitos elementares de todo ser humano. O contato é um fenômeno quase que universal nas sociedades humanas, inclusive buscado voluntariamente 43

pela maior parte dos grupos. Geralmente é dividido entre o receio e a curiosidade pelo diferente. No caso dos contatos interculturais no vale do Guaporé, o problema tem a ver com a violenta imposição de uma situação colonialista que se apresentou como a força motora de abruptas e traumáticas mudanças socioculturais e econômicas para os grupos étnicos minoritários ali estabelecidos, os originários da terra. Na região do Sararé, em específico, constata-se então que desde longa data os contatos entre índios e brancos são marcados por forte assimetria, o que levou os Katitaurlu ao quase extermínio. Do ponto de vista demográfico, o militar e indigenista Cândido Mariano da Silva Rondon estimou que em 1910 a população dos grupos por ele reconhecidos como Nambikwara, aí incluídos os ancestrais dos atuais Katitaurlu, girava em torno de 10.000 pessoas; no ano de 2000 eles eram estimados em torno de 1.100 indivíduos (Santos 2000:11). Disto resulta que em noventa anos eles foram reduzidos a quase 10% da população que deveria existir no início do século XX. Os relatos dos Katitaurlu mais idosos expressam a redução da diversidade interna dos grupos linguisticamente nambikwara, pois muitos deles foram extintos ou se mesclaram em outros. Isto evidencia que a depopulação implicou na diminuição da sociodiversidade indígena no vale do Sararé, na dissolução de redes de alianças e na necessidade de formulação de novos arranjos grupais, como o que tem lugar na TI Sararé. A população de língua nambikwara no Sararé antes do contato estabelecido em 1960 era estimada em 300, sendo que em 1973 os sobreviventes “não chegavam a 50 pessoas” (Santos 2000:18). O relatório de identificação da TI Sararé lista 36 pessoas. Entretanto, o período crítico foi superado e aos poucos a população vem recuperando seu crescimento demográfico. Em 2000 eram 93 Katitaurlu (Santos 2000:18; Almeida Neto:54) e atualmente a população gira em torno de 115 indivíduos. Entretanto, é possível observar para aquele ano uma lacuna na faixa etária dos indivíduos entre 31 e 51 anos. No período compreendido entre 1955 e 1971, quando o contato mais intenso com os brancos estava estabelecido e parte de suas terras não estava demarcada, ocorreram muitas mortes, principalmente de crianças. Por este motivo a população atual é majoritariamente jovem, embora seja promissora a recuperação demográfica dos Katitaurlu, conforme demonstrado no quadro a seguir.

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Quadro 3: Pirâmide demográfica dos Katitaurlu em junho de 2000. Pirâmide demográfica dos Katitaurlu em junho de 2000. + 65 61 – 56 – 51 – 46 – 41 – 36 – 31 – 26 – 21 – 16 – 11 – 06 – 01 – 00 – Masculino – 44 F.E. Feminino – 49 Nota: “F.E.” significa Faixa Etária. Fonte: Santos (2000:18).

A respeito da difícil situação em que se encontravam os índios do Sararé quando aceitaram o contato permanente com os brancos, a partir da década de 1960, Santos fez o seguinte balanço geral: [...] o contato não trouxe apenas a amizade de novos aliados [missionários protestantes, agentes do Estado etc.], trouxe também problemas que os índios sozinhos já não conseguiam resolver, como epidemias, invasões e desmatamentos em grandes proporções no seu território e, por conseguinte, o enfraquecimento da comunidade indígena que se viu ficando dependente de proteção e assistência junto da aldeia (Santos 2000:4-5).

Isto ocorreu porque o aldeamento surgiu como estratégia para a constituição de uma unidade de ocupação, de um espaço onde todos os Katitaurlu estariam a ocupar, isto é, a aldeia Sararé, localidade que serviu para a prestação de serviços por parte das agências da sociedade nacional. Ali foi o lugar para onde todos os índios deveriam ser atraídos para então renunciarem a outras formas de territorialização no vale do Sararé. Com cerca de meio século de domínio e reclusão na TI Sararé, os remanescentes dos grupos que viviam na região desenvolvem uma nova forma de territorialização no espaço a eles reservado pelo Estado, pois, como reconheceu autor citado amiúde neste estudo: 45

O território é uma construção cultural e social edificada no confronto com o invasor. Afirmar para o outro sua identidade com o espaço que usa e ocupa tradicionalmente, delimitar aí marcas de sua presença, é também reconhecer no entorno desse espaço, a alteridade e a territorialidade de outras etnias. As ocupações como aldeias, áreas cultivadas, áreas recorrentes de caça, coleta e pesca, cemitérios, aldeia dos mortos, lugares míticos sinalizam marcas culturais na composição e reconstrução do espaço reconhecido como território (Santos 2000:4).

A vida na TI Sararé impôs aos Katitaurlu desafios de natureza diversa. Eles procuraram estabelecer redes de alianças que promovessem o fortalecimento da comunidade a partir desta nova realidade de histórica e do processo de territorialização a que foram submetidos. Daí emergiu e consolidou uma nova etnicidade, cujo etnômio remete a um passado não muito distante marcado por intensos e traumáticos contatos com os novos conquistadores brancos. Para que esta etnicidade emergisse e se consolidasse, os Katitaurlu mobilizaram seus conhecimentos e sua criatividade ao colocarem em prática regras matrimoniais que integram seu modelo de organização social, e procuram estabelecer redes políticas entre as lideranças. Elas foram e ainda são imprescindíveis para tornar viável a realização dos eventos coletivos no campo da vida política, econômica e religiosa, necessários à reprodução física e cultural do grupo. A memória da localização das antigas aldeias e de outras referências da ocupação tradicional situadas no interior da terra demarcada, bem como das formas de sociabilidade aí desenvolvidas, servem como referências e inspiração para o desenvolvimento de práticas sociais reconhecidas como parte da identidade étnica do grupo. Isto ocorre mesmo vivenciando experiências históricas inteiramente novas. Durante as pesquisas antropológicas foi possível atestar em campo a vívida memória dos locais das antigas aldeias e a forte ligação que a memória social coletiva desempenha na escolha dos novos locais para construção de aldeias e roças. Existe a preferência de construir as novas aldeias nos lugares das antigas ocupações ou em suas proximidades. Isto se dá tanto por motivos ecológicos – como para evitar a exaustão dos recursos ambientais ali disponíveis – quanto por motivos cosmológicos, estes últimos decorrentes da associação dos assentamentos a determinados espíritos que vivem em certos espaços territoriais. A este respeito, Santos (2000:27-28) também registrou o diálogo que manteve com Tito Katitaurlu, da aldeia Sararé, já falecido, que quando perguntado se seria capaz de reconhecer plantas medicinais fora de seu território, alegou que teria muita dificuldade. Acontece que fora dali ele não contaria com o auxílio dos seres espirituais que ali vivem, o 46

que “exigiria muito cuidado para não errar, pois estaria sem a ajuda dos espíritos (anunsu) ligados ao seu território no Sararé”. E o autor ainda acrescentou: Um lugar em que os Katitaurlu não reconheçam as plantas é um lugar potencialmente inóspito. Se este lugar não está habitado por espíritos conhecidos, que possam atender o chamado das flautas e dos cantos, então é um lugar não território. O reconhecimento da unidade de paisagem pode revelar conhecimentos apreendidos e vividos com os antepassados (Santos 2000:28).

Nos locais de suas antigas ocupações por vezes ocorrem evidências arqueológicas como a presença de fragmentos de vasilhas cerâmicas, bem como a concentração de palmeiras de várias espécies, com a bocaiúva, fenômeno recorrente entre vários povos indígenas (Eremites de Oliveira 2001; Eremites de Oliveira & Pereira 2003). A presença de palmeiras como vestígio de antigas aldeias é o registro de um processo de humanização da natureza que também foi atestado pelo indigenista: “Algumas concentrações de palmeiras, como o tucum, a bocaiúva, o acuri, o babaçu, a bacaba e o açaí, comumente são indicadoras de antigas aldeias ou roças” (Santos 2000:26). Esta percepção amiúde foi expressa pelos Katitaurlu durante o trabalho de campo. No final deste capítulo consta anexo um quadro com a relação deste e de outras dezenas de lugares visitados e devidamente georreferenciados durante os trabalhos de campo, cujas informações nele contidas são importantes para a compreensão das avaliações apresentadas no decorrer do presente estudo. Em suma, portanto, os traumáticos contatos interétnicos que os Katitaurlu e seus antepassados mantiveram com os brancos, sobretudo a partir do século XX, causaram-lhes enormes prejuízos de toda ordem: demográficos, ecológicos, econômicos e socioculturais. Disso resultou uma percepção particular que eles têm dos brancos ou não-índios em geral que vivem na região do vale do Guaporé e seu entorno, incluindo aí a área diretamente afetada pelo PSF/SBMM. Esta percepção tem a ver com quatro idéias básicas, explicadas na sequência. Primeira, que os brancos desconhecem e não praticam os princípios da reciprocidade, isto é, do dom de dar, receber e esperar para retribuir, característica esta que é marcante na vida social das comunidades indígenas em geral. Ao contrário, eles constantemente dão demonstrações de somente conhecerem a reciprocidade negativa praticada sob forma de violência física e moral. Por isso os brancos frequentemente mentem e voltam atrás com a palavra empenhada em acordos firmados, a exemplo do que em um passado não muito distante fizeram os madeireiros e garimpeiros. Os índios, ao 47

contrário, entendem que se alguém pratica maldade contra uma pessoa, em contrapartida também receberá outra maldade, podendo assumir a forma de violência física ou danos causados pela manipulação de veneno. Do contrário, se pratica bondade receberá bondade como retribuição. Esta lógica da reciprocidade nativa foi devidamente explicada por Paulo Katitaurlu, da aldeia PIV. Segunda, que os brancos são gananciosos e não se contentam com o que têm. Por isso constantemente tentam tomar as riquezas que os Katitaurlu e outros povos indígenas possuem em seu território (ouro, madeira, palmito, terras férteis etc.). Para os índios a floresta tem mais valor em pé, isto é, viva, haja vista que eles não a percebem como uma propriedade privada que lhes pertence. Pelo contrário, eles é que pertencem àquele território e por isso a continuidade de suas vidas também depende da vida da floresta, lugar que também serve de moradia para vários seres espirituais. Mas entendem, contudo, que para os brancos a floresta tem mais valor quando derrubada, morta, sem seres espirituais, palmeirais de açaí e árvores de grande porte e madeira nobre, visto que a preferência deles é por áreas transformadas em garimpos, pastagens para bovinos e lavouras de monocultura. Disso resulta uma percepção diferente que índios e brancos possuem sobre a terra e os recursos nela disponíveis: para os primeiros ela é território, o espaço social e culturalmente construído para a vivência de uma coletividade étnica de acordo com seus usos, costumes e tradições; para os segundos ela é propriedade privada, um direito político-jurídico concedido pelo Estado para a geração de riquezas e diferenciação social dentro da lógica de um sistema político e socioeconômico que não se orienta pelo dom da reciprocidade e a solidariedade entre os indivíduos. Terceira, que os brancos manipulam vários tipos de venenos, por eles entendidos como substâncias tóxicas de todo tipo que podem ser usadas para causar mal às pessoas: desfolhantes químicos, herbicidas, pesticidas, fertilizantes químicos, mercúrio usado nos garimpos, medicamentos e até mesmo microorganismos manipulados para a produção de vacinas e medicamentos diversos etc. Por isso os Katitaurlu, especialmente os mais velhos, são temerosos quanto à possibilidade de novamente serem vítimas de epidemias e outras formas de envenenamento decorrentes da ação dos brancos, como o que já aconteceu com parte dos recursos hídricos ali existentes. No caso do rio Sararé, por exemplo, os índios são unânimes na afirmação de que anos atrás suas águas eram tão transparentes como as do córrego Piscina, localizado na TI Paukalirajausu, onde costumam pescar com arco, flecha, arpão e timbó. Atualmente, entretanto, as águas do Sararé são turvas e barrentas devido à 48

quantidade de matéria orgânica e sedimentos carreados para seu leito e que permanecem em suspensão. A idéia de que os brancos manipulam venenos potentes e perigosos referenda a própria resistência apresentada a certas práticas de promoção de saúde, como a vacinação, sempre um desafio quando se trata da população katitaurlu. Quarta, que os brancos não são confiáveis, mas que hoje em dia é inevitável o contato com eles e isso cada vez mais se dá através de uma relação de dependência e dominação. Exemplo disso é o que ocorre com o assédio que a geração dos mais jovens sofre dos madeireiros, garimpeiros, palmiteiros e arrendatários de terra para a bovinocultura. Isso causou entre os Katitaurlu uma idéia de que o acesso aos bens de consumo da sociedade nacional, desde uma chuteira até uma caminhoneta, se dá de maneira fácil, o que dificulta a execução de futuros projetos sustentáveis de geração de renda entre eles. Esta mesma situação também tem sido motivo de conflitos diversos entre representantes das gerações mais jovens e as gerações mais antigas. A compreensão dessas quatro idéias básicas que os Katitaurlu têm em relação aos brancos é de fundamental importância para o entendimento das avaliações feitas sobre os impactos do PSF/SBMM sobre a comunidade indígena das TI’s Sararé e Paukalirajausu. Feitas as explicações necessárias para este capítulo, registra-se em tempo que no capítulo seguinte constam dados etnográficos e análises etnológicas de grande relevância para a compreensão da organização social e do modo de ser dos Katitaurlu. Sem isso qualquer avaliação feita no que se refere aos impactos do PSF/SBMM sobre o componente indígena também não terá base etnográfica que possa lhe sustentar.

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Quadro 4: Locais georreferenciados durante os trabalhos de campo, sendo as partes em negrito alguns dos pontos de vulnerabilidade. Nº. 01

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IDENTIFICAÇÃO E LOCALIZAÇÃO PIV. UTM 230964E/8344909N 262 m alt. Antigo garimpo. UTM 231139E/8344502N 231 m alt.

DESCRIÇÃO DO LUGAR Sede do PIV – Posto Indígena de Vigilância na TI Sararé, onde mora a família de Natal Jesus de Lima, 52 anos, funcionário da FUNAI. Antigo garimpo ilegal e de onde garimpeiros foram retirados em 1997 pela FUNAI e por forças policiais. Este lugar está próximo da estrada municipal que dá acesso à mineradora e à aldeia PIV e constitui-se em um ponto de vulnerabilidade da TI Sararé, sobretudo quanto à entrada de garimpeiros, madeireiros e palmiteiros. A instalação do PIV nas proximidades teve como proposta maior dificultar novas invasões nessa parte da TI Sararé. Local onde ocorrem fragmentos de vasilhas cerâmicas, próximo à casa de Paulo Katitaurlu. Chama a atenção o fato dos índios construírem nova aldeia nas proximidades desse sítio arqueológico, pois isso ressalta a importância da localização de antigas aldeias para o estabelecimento das novas ocupações. Local onde o chefe do PIV depositou troncos de aroeira que apreendeu na localidade de Corgão, no interior da TI Sararé, no início de 2009, e que foram ilegalmente derrubados não-índios do entorno, situado na aldeia de mesmo nome. Local onde está estabelecida a aldeia PIV, assim chamada por estar localizada próxima da sede do Posto Indígena de Vigilância da FUNAI. A estratégia do órgão indigenista é que os índios da PIV auxiliem no trabalho de fiscalização desta parte da reserva. Local onde Paulo Katitaurlu e sua família fizeram uma roça do tipo coivara, com plantações de mandioca e cará em uma área de 1 hectare, na aldeia PIV.

Sítio arqueológico. UTM 231768E/8344319N 247 m alt. Depósito de madeira. UTM 231878E/8344275N 253 m alt. Aldeia PIV. UTM 231954E/8344269N 256 m alt. Roça familiar ativa. UTM 230930E/8345120N 285 m alt. Roça familiar desativada e Local onde havia uma roça feita pelos Katitaurlu e que está ao lado de uma antiga estrada construída antiga estrada madeireira. por madeireiros no interior da TI Sararé, a qual está em processo de regeneração da cobertura vegetal, UTM 232492E/8344606N situada na aldeia PIV. 266 m alt.

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Antiga estrada madeireira. UTM 232516E/8344232N 298 m alt. Estrada. UTM 232317E/8344107N 270 m alt. Antigo garimpo. UTM 227217E/8347082N 224 m alt. Antiga casa. UTM 224891E/8362845N 353 m alt. Casa de Domingos. UTM 224948E/8362918N 366 m alt. Casa de Jurumi. UTM 224978E/8362889N 352 m alt. Casa de Marino. UTM 224982E/8362861N 353 m alt. Casa de Aritana. UTM 224940E/8362939N 360 m alt. Casa de Samuel. UTM 225113E/8362941N 360 alt.

Antiga estrada madeireira, cuja área atualmente está em processo de regeneração de sua cobertura vegetal. Ponto situado na estrada que dá acesso ao PIV e à aldeia de mesmo nome e dali para as estradas que chegam às aldeias Sararé, Seis e Serra da Borda. Antigo garimpo ilegal e de onde garimpeiros foram retirados em 1997 pela FUNAI e por forças policiais. Este lugar está próximo da estrada municipal que dá acesso à mineradora e à aldeia PIV e constitui-se em um ponto de vulnerabilidade da TI Sararé, sobretudo quanto à entrada de madeireiros, garimpeiros e palmiteiros. Antiga casa construída com paredes de tijolos que pertenceu a Tito Katitaurlu, falecido recentemente, na aldeia Serra da Borda. Casa onde mora o grupo residencial de Domingos Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda, quem também é liderança da TI Paukalirajausu. Casa onde mora o grupo residencial de Jurumi Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda.

Casa onde mora o grupo residencial de Marino Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda.

Casa onde mora o grupo residencial de Aritana Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda.

Casa onde mora o grupo residencial de Samuel Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda.

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Casa de Athos. UTM 227034E/8360804N 348 m alt. Depósito de milho. UTM 224896E/8362928N 360 m alt. Depósito de milho. UTM 224920E/8362927N 361 m alt. Posto de saúde. UTM 224842E/8362897N 352 m alt. Escola. UTM 224835E/8362937N 354 m alt. Casa de Sara. UTM 224870E/8362976N 355 m alt. Antigo chiqueiro. UTM 224896E/8362848N 352 m alt. Antiga casa. UTM 224891E/8362845N 253 m alt. Roça familiar desativada. UTM 224672E/8362834N 353 m alt. Casa de Nilo. UTM 224070E/8362705N 352 m alt.

Casa onde mora o grupo residencial de Athos Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda.

Depósito de milho plantado na aldeia Serra da Borda.

Depósito de milho plantado na aldeia Serra da Borda.

Posto de saúde construído para a FUNASA e que se encontra desativado na aldeia Serra da Borda.

Escola Indígena Walokayesu, localizada na aldeia Serra da Borda.

Casa de alvenaria da Profa. Sara Barros do Nascimento, docente da Escola Indígena Walokayesu, localizada na aldeia Serra da Borda, cuja construção ainda está em fase de acabamento. Antigo chiqueiro de porcos existente na aldeia Serra da Borda.

Local onde havia uma casa que foi completamente destruída como tempo e onde atualmente há um varal de roupas, na aldeia Serra da Borda. Local onde havia uma roça familiar feita pelos Katitaurlu e que desativada há mais de cinco anos na aldeia Serra da Borda. Casa onde mora o grupo residencial de Nilo Katitaurlu, localizada na aldeia Serra da Borda, em um local que também é chamado de aldeia Nova.

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Cachoeira. UTM 224278E/8311935N 253 m alt. Roça desativada. UTM 224104E/8362565N 345 m alt. Taquaral. UTM 224335E/8362058N 361 m alt. Local de coleta de larvas. UTM 224705E/8362490N 345 m alt. Local de coleta de jatobá. UTM 224821E/8362660N 344 m alt. Local de caça. UTM 223091E/8363371N 281 m alt. Antigo garimpo. UTM 222069E/8364371N 285 m alt.

Antigo garimpo. UTM 221719E/8364555N 277 m alt.

Cachoeira Jabuti ou Yanũlu usada pelos Katitaurlu para tomar banho, localizada nas proximidades da aldeia Serra da Borda. Local onde havia uma antiga roça feita pela FUNAI na aldeia Serra da Borda e que hoje em dia está em processo de regeneração de sua cobertura vegetal. Ponto onde os Katitaurlu coletam taquara para fabricar hastes de flechas, localizado nas proximidades da aldeia Serra da Borda. Ponto onde de coleta e consumo de larva de coleóptero (sou’su) em um tronco caído de jaracatiá, localizado nas proximidades da aldeia Serra da Borda. Ponto de coleta e consumo de frutos de jatobá (kaũkisu), localizado nas proximidades da aldeia Serra da Borda. Local onde frequentemente os Katitaurlu caçam caititu, situado nas proximidades de um sítio arqueológico que corresponde a um antigo garimpo colonial situado nas proximidades da TI Paukalirajausu. Antigo garimpo ilegal e de onde garimpeiros foram retirados em 1997 pela FUNAI e por forças policiais. Segundo Samuel Katitaurlu, no lugar houve conflito armado entre índios e garimpeiros. Ali Domingos Katitaurlu trocou tiros com garimpeiros, acertou um deles e foi alvejado pelo mesmo. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da TI Sararé, o qual está localizado nas proximidades da divisa com a TI Paukalirajausu. Antigo garimpo ilegal e de onde garimpeiros foram retirados em 1997 pela FUNAI e por forças policiais. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da TI Sararé, o qual está localizado nas proximidades da divisa com a TI Paukalirajausu.

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“Caverna na terra”. UTM 221026E/8365296N 253 m alt.

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Acampamento temporário. UTM 218699E/8366669N 281 m alt.

Espécie de caverna mágica existente no barranco em um ponto que lembra um córrego intermitente. Os Katitaurlu entendem que daquele lugar saem todos os animais de caça (antas, caititus, cutias, pacas, queixadas etc.). Chamam-no a área de Yakatasihensu e próximo desse ponto, cerca de 50 m, existe outra caverna. Nessa área toda vive um ser espiritual que é dono da caça e que ali recolhe um número infinito de animais, os quais ele libera aos poucos para que os Katitaurlu possam caçá-los e assim garantir a carne necessária para se alimentar. Na oportunidade os índios tomaram uma lanterna e aproveitaram para espiar dentro do buraco. Também relataram a história contada através das gerações de Katitaurlu, segundo a qual no princípio só o dono da caça tinha acesso aos animais. Depois o primeiro índio olhou e viu como ele fazia e pediu-lhe para caçá-los para também comer carne. O espírito-dono dos animais lhe ensinou então uma reza para atrair cada bicho, podendo assim chamá-los toda vez que sentisse necessidade de matar um. Naquele tempo o índio só chegava à caverna, rezava e logo saía um animal que ele então matava. Por descuido, um dia o índio jogou uma bituca de cigarro dentro da caverna. Nesse momento os animais saíram todos dali e se esparramaram em várias direções. Desde então ficou difícil encontrar os animais e a caça se tornou uma atividade que exige certo esforço. Ainda assim os índios seguem proferindo as rezas que têm o poder de atrair os animais, mesmo sem a mesma eficiência dos primeiros tempos. No local foram encontradas pegadas de onça-pintada, segundo identificação feita pelos índios. Local de acampamento de caça e parada para descanso durante as viagens que os Katitaurlu fazem para o córrego Piscina e a TI Paukalirajausu, utilizado principalmente na época da seca. No lugar foram encontrados 3 cascos de jabuti, 1 panela velha de alumínio com capacidade volumétrica para cerca de um litro, 2 cestos cargueiros com capacidade de 40 e 80 litros, 1 moqueador, 1 pedaço de câmera de ar de pneu, utilizada para fazer máscara para mergulho. Para lá os Katitaurlu costumam trazer mandioca, cará e milho para consumirem com a carne de caça e o peixe, além de fazerem chicha de milho. O acampamento é de uso comum, pois as pessoas sempre sabem se alguém o está ocupando no momento; se não tem ninguém ele é considerado livre e qualquer um pode fazer uso dele com sua família. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade por estar na divisa das TI’s Sararé e Paukalirajausu. Nas proximidades, já na área da Paukalirajausu, foi registrada a derrubada ilegal de madeira da área de preservação permanente do córrego Piscina e uso da margem esquerda daquele curso d’água como local de lazer para não-índios que ali jogam lixo diverso (latas de cerveja, embalagens plásticas etc.).

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Encruzilhada. UTM 230732E/8356888N 324 m alt. Escola. UTM 241889E/8363423N 317 m alt. Projeto SIVAN. UTM 241834E/8363464N 316 m alt. Antigo posto da FUNAI. UTM 241823E/8363463N 315 m alt. Posto de saúde. UTM 241818E/8363441N 313 m alt. Casa de Pedro. UTM 241846E/8363499N 313 m alt. Casa de Américo. UTM 241792E/8363390N 313 m alt. Casa de Roberto. UTM 242113E/8362743N 313 m alt. Casa da Jackson. UTM 241845E/8363372N 326 m alt.

Cruzamento das vias de acesso às aldeias Sararé, PIV, Seis e Serra da Borda.

Escola Indígena da Aldeia Sararé. Por estar na parte central da aldeia e próxima da rodovia federal BR-364, que liga Cuiabá a Porto Velho, este local também um ponto de vulnerabilidade da TI Sararé, por onde já entraram muitos brancos para assediar os índios a deixá-los extrair madeira e garimpar ouro na reserva indígena. Esta avaliação serve para toda a aldeia Sararé. Local na aldeia Sararé onde há a instalação equipamentos do Projeto SIVAN – Sistema de Vigilância da Amazônia, elaborado e implantado pelas forças armadas para a vigilância do espaço aéreo da Amazônia brasileira. Local onde foi construído o antigo posto da FUNAI na aldeia Sararé, atualmente desativado.

Posto de saúde construído para a FUNASA e que se encontra desativado, localizado na aldeia Sararé. A ausência de ações preventivas de saúde provoca vários problemas entre os Katitaurlu, principalmente entre as crianças, mas a interlocução dos profissionais de saúde com os Katitaurlu não tem sido fácil, o que levou a saída da FUNASA do local. Casa onde mora o grupo residencial de Pedro Katitaurlu, localizada na aldeia Sararé.

Casa de alvenaria onde mora o grupo residencial de Américo Katitaurlu, maior liderança da aldeia Sararé. Casa onde mora o grupo residencial de Roberto e Judithe Katitaurlu, localizada na aldeia Sararé.

Casa de alvenaria onde mora o grupo residencial de Jackson Katitaurlu na aldeia Sararé.

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Casa de Marcos. UTM 241832E/8363369N 326 m alt. Fogão doméstico. UTM 241836E/8363361N 321 m alt. Casa de Moisés. UTM 242139E/8362715N 323 m alt. Casa de Saulo. UTM 241780E/8363699N 310 m alt. Casa de Carlos. UTM 241808E/8363705N 310 m alt. Estrada para assentamento rural. UTM 234911E/8379585N 302 m alt.

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Voçoroca. UTM 236258E/8373348N 296 m alt.

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“Colchete”. UTM 236648E/8372745N 277 m alt. Rastro de moto. UTM 236870E/8372488N 313 m alt.

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Casa de alvenaria onde mora o grupo residencial de Marcos Katitaurlu na aldeia Sararé.

Fogão doméstico comum para as casas de Marcos e Jackson Katitaurlu, na aldeia Sararé.

Casa onde mora o grupo residencial de Marcos Katitaurlu na aldeia Sararé.

Casa onde mora o grupo residencial de Saulo Katitaurlu na aldeia Sararé.

Casa onde mora o grupo residencial de Carlos Katitaurlu, mais conhecido como Carlinhos, localizada na aldeia Sararé. Entrada de uma estrada que dá acesso a um assentamento rural regularizado pelo INCRA em Conquista D’Oeste, por onde não-índios têm acesso à TI Sararé. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena. O assentamento é denominado na região de “Assentamento FUNAI” e alguns de seus lotes incidem sobre a TI Paukalirajausu, em processo de identificação. Voçoroca feita por processo de assoreamento causado por ação antrópica não-índia em ponto próximo à divisa com a TI Sararé e ao assentamento rural regularizado pelo INCRA em Conquista D’Oeste, conhecido como “Assentamento FUNAI”. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena. Colchete (espécie de porteira) em estrada que dá acesso à TI Sararé e ao assentamento rural regularizado pelo INCRA em Conquista D’Oeste, conhecido como “Assentamento FUNAI”. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena. Local onde foi encontrado rastro de moto dentro da TI Sararé, veículo que estava sendo pilotado por um não-índio da região que está ligado ao arrendamento de terra para pastagem na TI Sararé. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena.

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Pasto arrendado. UTM 236934E/8372335N 319 m alt.

Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena. A área foi arrendada por uma jovem liderança da aldeia Sararé, quem disse receber R$ 1,00 por cabeça de gado ao mês, preço bem abaixo do mercado, já que a atividade ilegal envolve riscos para o arrendatário. Entrada de sítio. Entrada de um sítio na zona rural de Conquista D’Oeste e próximo da TI Sararé por onde UTM 225703E/8376250N madeireiros entraram em 2003 para a retirada ilegal de madeira da reserva indígena. 285 m alt. Atualmente o local é chamado de Sítio Vista Alegre. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena. Local de retirada ilegal Local onde o chefe do PIV fez uma apreensão de troncos de aroeiras retiradas ilegalmente da TI de madeira. Sararé em fevereiro de 2009. Este é um dos pontos de vulnerabilidade da reserva indígena. UTM 220997E/8380296N Local de entrada ao ponto onde o chefe do PIV fez uma apreensão de troncos de aroeiras 231 m alt. retiradas ilegalmente da TI Sararé em fevereiro de 2009, fotografadas no PIV. Este é um dos pontos de vulnerabilidade da reserva indígena. Quando o local foi visitado o chefe de posto identificou sinais de entradas de veículos, indício de que a retirada de madeira ilegal continua acontecer na região. Estrada e antiga aldeia Estrada que corta a antiga aldeia Sapé, o lugar onde Mateus Katitaurlu, Paulo Katitaurlu, Nilo Sapé. Katitaurlu e Timóteo Katitaurlu moravam antes de se transferirem da aldeia Sararé para as aldeias UTM 240655E/8364016N Serra da Borda e PIV. 302 m alt. Roça familiar desativada. Local onde havia uma roça familiar de Mateus Katitaurlu e que está ao lado de uma estrada que liga UTM 240574E/8364049N as aldeias Sararé e Serra da Borda, cujo lugar está em processo de regeneração da cobertura vegetal. 314 m alt. Roça familiar desativada. Local onde havia uma roça familiar de Domingos Katitaurlu e que está ao lado de uma estrada que UTM 240503E/8364083N liga as aldeias Sararé e Serra da Borda, cujo lugar está em processo de regeneração da cobertura 313 m alt. vegetal. Antiga estrada madeireira. Antiga estrada que dá acesso à Fazenda Kananchuê, construída por madeireiros para a retirada ilegal UTM 240299E/8364152N de madeira da TI Sararé, cujo lugar está em processo de regeneração da cobertura vegetal. Neste 318 m alt. ponto os Katitaurlu Américo, Paulo, Saulo, Danilo, Armando, Marino e sua esposa Elizabeth foram amarrados em troncos de árvores por homens armados e encapuzados, todos eles a mando de madeireiros da região. Os índios foram espancados durante esta investida de jagunços armados.

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Roça coletiva desativada. UTM 240063E/8364156N 302 m alt. Roça familiar desativada. UTM 239982E/8364125N 295 m alt. Roça familiar desativada. UTM 239898E/8364099N 293 m alt. Roça familiar ativa. UTM 239834E/8364051N 294 m alt. Roça coletiva ativa. UTM 239590E/8363920N 292 m alt. Sítio arqueológico. UTM 223091E/8363371N 281 m alt. Casa de Mateus. UTM 228693e/8359259n 346 m alt. Casa de Marcos. UTM 228714E/8359228N 347 m alt. Casa de Izaque. UTM 228642E/8359202N 349 m alt.

Local onde havia uma roça coletiva de Pedro Katitaurlu e outros índios e que está ao lado de uma estrada que liga as aldeias Sararé e Serra da Borda, cujo lugar está em processo de regeneração da cobertura vegetal. Local onde havia uma roça familiar de Mateus Katitaurlu e que está ao lado de uma estrada que liga as aldeias Sararé e Serra da Borda, cujo lugar está em processo de regeneração da cobertura vegetal. Local onde havia uma roça familiar de Domingos Katitaurlu e que está ao lado de uma estrada que liga as aldeias Sararé e Serra da Borda, cujo lugar está em processo de regeneração da cobertura vegetal. Roça familiar em que foi plantado milho e agora está com bananeiras, na aldeia Sararé.

Roça coletiva na aldeia Sararé em que foi plantado inhame, mandioca amarela, mandioca branca, mandioca vermelha, batata-doce, milho branco, milho vermelho, mamão, banana e cana-de-açúcar. A área plantada possui cerca de 10 hectares e trabalhada pelos Katitaurlu Danilo, Pedro, Armando, Carlos, Jurandir, Fernando e Marcos. Sítio arqueológico que corresponde a um antigo garimpo colonial, assim identificado pelos índios, localizado entre a aldeia da Serra da Borda e o córrego Piscina. Ali existe uma vala escavada no cascalho com cerca de 5 a 6 m de largura e entre 2 a 3 m de profundidade. Casa onde mora o grupo residencial de Mateus Katitaurlu, maior liderança da aldeia Seis.

Casa onde mora o grupo residencial de Marcos Katitaurlu, localizada na aldeia Seis.

Casa onde mora o grupo residencial de Izaque Katitaurlu, localizada na aldeia Seis.

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Galinheiro. UTM 228631E/8359183N 348 m alt. Caixa d’água. UTM 228546E/8359286N 346 m alt. Bomba d’água. UTM 228546E/8359311N 347 m alt. Rodovia BR-364. UTM 250420E/8360440 (localização aproximada) Ponto nº. 1 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 232619E/8325038N 355 m alt. Ponto nº. 2 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 232362E/8325579N 305 m alt. Ponto nº. 3 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 231952E/8327718N 309 m alt.

Galinheiro que pertence à família de Izaque Katitaurlu, localizado na aldeia Seis.

Caixa d’água de 1.000 litros, localizada na aldeia Seis.

Casa de máquinas da bomba d’água da aldeia Seis.

Parte da reserva que lindeia com a rodovia BR-364 e lugar de incursões ilegais de palmiteiros para a retirada do palmito de açaí. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade TI Sararé. Local onde há uma placa de sinalização a indicar a presença de bovinos na pista.

Local onde há uma placa de sinalização caída com os dizeres “Use o cinto de segurança”.

Local onde foi registrada a presença de uma comitiva com peões e boiada a transitar pela estrada municipal de acesso à mineradora.

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Ponto nº. 4 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 231543E/8328496N 318 m alt. Ponto nº. 5 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 226022E/8343122N 299 m alt. Ponto nº. 6 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 225638E/8346039N 227 m alt. Ponto nº. 7 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 223619E/8346039N 262 m alt. Ponto nº. 8 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 222150E/8353664N 396 m alt. Ponto nº. 9 na estrada municipal de acesso à mineradora. UTM 221036E/8354821N 444 m alt.

Local onde águas de chuvas danificaram parte da estrada municipal de acesso à mineradora, criando uma pequena área erodida com até 50 cm de profundidade. No ponto indicado foi fotografada uma caminhonete a transportar passageiros na carroceria do veículo.

Ponte sobre o rio Sararé que desce da TI Sararé. No local há um bar que comercializa bebidas para pessoas que ali param com para pescar ou de passagem para outro lugar. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da área, por onde não-índios podem adentrar na reserva indígena por via fluvial. Porteira que dá acesso à TI Sararé e ao Posto Indígena de Vigilância da FUNAI. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena no que se refere à ação de palmiteiros. Trata-se de uma porteira com cadeado e acesso restrito.

No local há duas pontes sobre cursos d’água que correm para a área de estudo. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena no que se refere a eventuais acidentes com veículos transportando carga perigosa que possa vir a contaminar parte dos recursos hídricos da área. No local há uma ponte sobre curso d’água que corre para a TI Sararé. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena no que se refere a eventuais acidentes com veículos transportando carga perigosa que possa vir a contaminar parte dos recursos hídricos da área. O local também é vulnerável no que se refere à propagação de incêndios durante a época da estiagem. Local onde foi fotografado um bovino passando pela estrada municipal e um trator atravessando uma ponte que passa sobre córrego permanente que corre para a TI Sararé. Este é um ponto de vulnerabilidade no que se refere a eventuais acidentes automobilísticos causados pela presença de animais naquela via.

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Ponto nº. 10 na estrada Local próximo uns 500 m da sede da mineradora. municipal de acesso à mineradora. UTM 217934E/8355413N 702 m alt.

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3 TERRITORIALIDADE, ORGANIZAÇÃO SOCIAL E ATIVIDADES PRODUTIVAS

A etnologia e a etnografia dos grupos étnicos de língua nambikwara, como os trabalhos de produzidos por Claude Lévi-Strauss (1998), Edgard Roquette-Pinto (1975), Kalervo Oberg (1953), Paul David Price (1972), Paul L. Aspelin (1976, 1979) e outros, apresentam importantes dados sobre sua territorialidade, organização social e economia. Uma característica importante desses estudos é o dualismo socioeconômico recorrido para explicar o sistema de assentamentos dos povos chamados genericamente de Nambikwara: uns centrais e permanentes, onde ficam os agrupamentos maiores, chamados de aldeias; e outros periféricos, provisórios e sazonais, onde agrupamentos menores permanecem por determinada época do ano, chamado de acampamentos. A combinação destes distintos assentamentos é fundamental para o desenvolvimento da vida social do grupo, tanto para a realização de atividades econômicas relativas à reprodução física das pessoas, quanto para a manutenção da própria organização social e continuidade de importantes aspectos da cosmologia katitaurlu. O livro Tristes Trópicos, escrito por Lévi-Strauss (1998), antropólogo fundador da antropologia estrutural, é uma das obras mais conhecidas e lidas do autor em todo o mundo. Nela constam os resultados das pesquisas que ele realizou no Brasil na primeira metade do século XX, por meio das quais os grupos linguisticamente nambikwara ficaram conhecidos internacionalmente, pois uma sessão do livro é reservada para a etnografia destes grupos com os quais o autor realizou pesquisas de campo. A perspectiva dualista adotada por Lévi-Strauss na abordagem dos dados nambikwara inspira-se no método estruturalista por ele desenvolvido. Tal abordagem foi analisada criticamente por Aspelin (1976) em seu artigo Nambicuara economic dualism: Lévi-Strauss in the Garden, once again, no qual ele demonstra que a aldeia e acampamento são apresentados no trabalho de Lévi-Strauss como distintas modalidades

de assentamentos humanos. Em nosso trabalho de campo foi possível identificar que, segundo a percepção dos índios da TI Sararé, a aldeia e o acampamento são concebidos como complementares e interdependentes em si, pois ambos integram um único sistema sociocultural, o modo de ser katitaurlu. Em termos analíticos é possível reconhecer que estas duas modalidades comportam especificidades no plano das tecnologias desenvolvidas e mobilizadas para a produção de alimentos, nas formas de convívio social e na relação com o sobrenatural. A combinação de um período de vida na aldeia, onde a população pode chegar a algumas dezenas ou mesmo eventualmente ser superior a dois dígitos, com um período de vida em acampamentos temporários, reunindo grupos menores ou mesmo uma única família nuclear, é bastante recorrente entre os povos indígenas sul-americanos. Este é caso dos Arawete, brilhantemente descritos por Eduardo Viveiros de Castro (1986) em Araweté: os deuses canibais. Pensar dessa forma não significa corroborar, em hipótese alguma, com a idéia ultrapassada de que os Katitaurlu e outros grupos linguisticamente nambikwara praticam algum tipo de nomadismo errante, muito pelo contrário. Nomadismo geralmente tem a ver com a idéia eurocêntrica e evolucionista de perambulação a esmo em busca de alimentos e da ausência de uma noção apurada sobre o território. Esta perspectiva não se aplica a esses povos, como também a praticamente nenhum outro povo indígena conhecido na literatura etnológica e na historiografia. Isto porque esses grupos possuem uma economia de reciprocidade historicamente caracterizada pela abundância de alimentos e um território ocupado de modo dinâmico no tempo e no espaço. A partir dos dados etnográficos obtidos através da observação direta foi possível inferir que, no caso dos Katitaurlu, a frequência de saída da aldeia para os acampamentos e o tempo de permanência neles variam de acordo com o nível de desenvolvimento social das famílias. Os jovens e pessoas com menos atribuições sociais de caráter coletivo têm disponibilidade em realizar as saídas com mais frequência e também de permanecer mais tempo nos acampamentos, a exemplo do que fazem às margens do córrego Piscina, na divisa entre as TI’s Sararé e Paukalirajausu. É claro que isto também varia de acordo com as preferências das pessoas, bem como da opção por um estilo de vida mais próximo das atividades produtivas tradicionais do grupo ou dos serviços e bens proporcionados pelas agências de apoio da sociedade nacional.

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Nos acampamentos são realizadas importantes atividades para a definição da identidade katitaurlu, com destaque para a caça, a coleta e a pesca. As pessoas com mais atribuições na vida social da aldeia, como as lideranças mais representativas, tendem a permanecer menos tempo nos acampamentos. As visitas aos parentes e a participação em eventos políticos ou rituais, como nos encontros para tocar flauta, são outros motivos frequentes para a saída da aldeia. Isto acontece até mesmo com lideranças mais jovens, como no caso de Saulo Katitaurlu, da aldeia Sararé. Mas nesses casos sempre acontece alguma saída. Com menor ou maior freqüência, o trânsito pela mata cumpre importantes funções psicossociais de distensionamento da vida social na aldeia, além de funções educativas, como a transmissão de conhecimento dos mais velhos ou experientes, e de relação com os seres espirituais que vivem ou agem preferencialmente na mata. As saídas das aldeias também são motivadas pelas visitas aos parentes e a participação em eventos políticos ou rituais, como nos encontros para tocar flauta. As visitas e os deslocamentos temporários para os acampamentos na mata imprimem intenso dinamismo ao ritmo da vida social em uma aldeia katitaurlu. Tal mobilidade é notada pelo constante fluxo de pessoas, indo ou vindo de algum lugar, levando e trazendo notícias, contando novidades, combinando casamentos, fazendo novas alianças e, não raramente, envolvendo-se em complicações e atritos. Como explicado no capítulo anterior, os Katitaurlu também descendem de vários outros grupos que viviam de modo autônomo no vale do rio Sararé até o estabelecimento do contato mais intenso com os não-índios, o que se deu a partir da segunda metade do século XX. Esses grupos acabaram se fundindo ou amalgamando em um único grupo étnico devido a um conjunto de fatores, dentre os quais a depopulação, a desestruturação socioeconômica e o empenho da Missão Cristã Brasileira e da FUNAI para que eles vivessem na aldeia Nutanyensu ou Sararé, onde passaram a receber assistência externa. A reunião de toda a população em apenas uma aldeia aparentemente só foi possível devido três fatores centrais: situação de debilidade da maior parte dos grupos; alianças firmadas anteriormente em uma rede de relações social intra e extragrupais; e presença de agentes externos que podiam ser acionados na resolução de conflitos internos que normalmente redundariam na fragmentação dos Katitaurlu.

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Ariovaldo José dos Santos (2000:20) registrou que “os grupos originais tentam manter suas lideranças e seus ambientes tradicionais no território integrado à Terra Indígena (TI) Sararé”. Isto significa que a aceitação da proposta de viverem reunidos em uma única aldeia não implicou na diluição completa do sentimento de pertencimento a grupos exclusivos, normalmente ligados por laços de parentesco, reciprocidade e aliança política, o que não necessariamente tem a ver com a existência outras etnicidades. O mesmo autor afirmou que a opção de junção dos grupos em um único lugar foi em grande medida motivada pela necessidade de defesa da demarcação do território ameaçado pelo avanço das frentes de ocupação agropecuária. Quando tal objetivo fosse atingido, a tendência seria novamente a fragmentação dos grupos, pois “passado o risco comum ou a necessidade premente de estarem juntos e solidários na defesa do território, tenderiam a retomar aos seus lugares de uso e ocupação tradicional (Santos 2000:20). A oscilação entre a junção em aglomerados maiores, formando aldeias com maior número de pessoas ou a dispersão em pequenos grupos, remete a um sistema de assentamento particular, profundamente arraigado na experiência histórica dessas populações. Estes aglomerados maiores emergem em momentos de necessidade de defesa do território, quanto pode ter duração relativamente longa até que o problema seja solucionado. Pode também ter um caráter mais efêmero, como no caso dos rituais mortuários dos líderes de aldeia ou na realização de outras atividades festivas e rituais com potencial para despertar o interesse de pessoas que vivem em diversos grupos. De ordinário, o modelo político da população indígena do Sararé apresenta pequenos grupos locais dispersos por uma área, porém compartilhando com um mesmo sentimento de pertencer àquele território e, na atualidade, de se identificar e ser identificado como Katitaurlu. Tal modelo costuma ser denominado em etnologia de minimalista e suas características formais foram apresentadas no estudo de Peter Rivière (1984), a obra Individual and Society in Guiana: a comporative study of Amerindian social organization, uma síntese sobre a morfologia social das populações indígenas da Guiana. Tal estudo é considerado referência na etnologia sul-americana e mereceu uma resenha de Viveiros de Castro (1985), quem situa sua importância não só para a compreensão das populações da Guiana, mas como importante inspiração para o estudo de outros casos etnográficos. Os Katitaurlu parecem preferir a vida em pequenos grupos. De acordo novamente com a observação de Ariovaldo José dos Santos (2000:20): “Se em tempo de 65

paz continuam concentrados em apenas uma das aldeias a tensão entre os grupos originários tende a se acirrar”. O processo de dispersão das aldeias em curso na TI Sararé parece confirmar a constatação do autor. Entretanto, se na maior parte do tempo as atividades cotidianas podem se desenvolver em pequenos grupos, alguns processos sociais exigem a cooperação de mais de um deles, tais como casamentos, festas e guerras. Assim, o Outro relacionado não é o Outro totalmente alterno, mas alguém com quem é possível estabelecer comunicação e interação necessárias para casar, festejar ou guerrear. É no campo gravitacional instituído pelos gradientes de proximidade e distância relativa atribuídos ao Outro relacionado que se desenvolve a problemática dos grupos chamados de nambikwara, tema ao qual a etnografia regional tem dedicado especial atenção, embora nem sempre a partir da teoria da etnicidade. Paulo Katitaurlu, da aldeia PIV, afirmou que o sistema matrimonial prevê como regra o serviço da noiva, na forma de prestação de serviço do genro ao sogro. Dessa maneira, o genro idealmente deve residir com o sogro por um tempo variável após o casamento. Nesse período, ele tem obrigação de trabalhar na roça do sogro e de realizar com maior frequencia outras atividades produtivas, como caça, pesca e coleta, contribuindo decisivamente para o provimento das necessidades do grupo residencial do pai de sua esposa. Pelo que foi possível inferir em outras conversas sobre o tema, o tempo de prestação do serviço varia de acordo a proximidade social já existente entre as famílias do sogro e do genro, sendo que a existência prévia de casamentos entre as duas famílias atua como fator de diminuição nas obrigações. O status dos pais dos cônjuges também implica no cumprimento da regra. O rapto da noiva, por exemplo, atua como um mecanismo que permite escapar do serviço da noiva, mas as mulheres são sempre protegidas pelo grupo de parentes e esta prática pode redundar em conflitos com desfechos imprevisíveis, inclusive guerras intertribais. Alguns dos velhos da comunidade ainda chegaram a praticá-lo em um tempo em que os grupos falantes de língua nambikwara viviam dispersos por um amplo território. Com muita habilidade era possível se aproximar de um grupo não aparentado e retirar uma mulher para local distante, onde viviam os parentes do raptor, sendo que os parentes da mulher dificilmente se aventurariam em território estranho para retomála. Ariovaldo José dos Santos relatou que o desequilíbrio provocado pelo esse rapto nas relações entre dois grupos poderia ser quitado por outro rapto, uma forma de reciprocidade que de certa forma liquidava o débito contraído, ou mesmo pela prestação 66

do serviço da noiva. Ainda segundo as informações que prestou aos antropólogos, os Waikisu e os Walantesu teriam se envolvido em um conflito bélico em 1972, mas em seguida se uniram contra os Katitaurlu por conta da prática do rapto de mulheres. Isso tudo indica uma lógica segmentária, onde grupos inimigos podem eventualmente se unir em função da ameaça de um terceiro grupo, contra o qual se nutre um sentimento mais forte de alteridade e de inimizade. Por isso o sistema matrimonial é fundamental na estruturação das aldeias de acordo com o sistema político praticado pelos Katitaurlu. A poligamia, na sua forma poligínica, com um homem dispondo de mais de uma esposa, é um privilégio de poucos indivíduos, como Américo Katitaurlu. Mas também é fundamental para que um líder possa ampliar o grupo de pessoas com as quais pode identificar relações de parentesco próximas. Estas relações de proximidade parental referendam, pois, um sistema de direitos e deveres que permite ao líder que dispõe de várias esposas ampliar o número pessoas sobre as quais pode exercer certa influência. Nesse sentido, é fundamental o respeito que o genro deve ao sogro, conforme Aritana Katitaurlu e outros indígenas explicaram repetidas vezes. A tendência dos líderes que dispõem de várias mulheres é terem também várias filhas e, por consequência, vários genros sobre os quais exercem algum controle ou ascendência política. De certa forma, o sistema de atitudes comportamentais compensa o desconforto que pode ser gerado pela obrigação de respeito ao sogro com a instauração de atitude descontraída e jocosa entre os cunhados. Isto ajuda a aliviar a tensão de viver no grupo do sogro, permitindo a existência de aglomerados políticos maiores. Um sogro poderoso e habilidoso no trato com os parentes, como no caso do próprio Américo Katitaurlu, da aldeia Sararé, pode reunir sob sua influência várias famílias nucleares. Interessante que a aldeia Sararé é também denominada de aldeia do Américo, ressaltando o fato de ele se constituir na principal liderança política local. As trocas matrimoniais ocorrem entre as aldeias e mesmo entre os grupos de língua nambikwara que, a despeito da proximidade linguística e cultural, reconhecem entre si distintos estilos comportamentais. Tais distinções muitas vezes podem ser expressas em códigos culturais e atuar como marcadores étnicos. Até recentemente as trocas matrimoniais oscilavam entre a cessão e o rapto de mulheres. Desta forma, as regras de casamento atuam como mecanismo regulador da relação com a exterioridade e a alteridade, mobilizando gradientes de aproximação e repulsão social, o que permite o 67

estabelecimento de alianças e ou declaração de hostilidades abertas. Os raptos de mulheres e as acusações de envenenamento podem evoluir para conflitos bélicos, com mortes ou massacres de famílias. O risco de tais conflitos não está de todo descartado na atualidade, mesmo com a atual presença do Estado na TI Sararé. O fogo culinário, por sua vez, tem grande importância para os índios do Sararé. Kimã Katitaurlu, por exemplo, explicou que dormir perto do fogo e fumar antes de dormir são procedimentos importantes para “afastar o sonho ruim”. Este é um fenômeno muito temido pela crença nas consequências maléficas que tais sonhos podem provocar na vida das pessoas que sonharam ou na vida das pessoas que compõem seu círculo de convivência próxima. Nas casas construídas a partir do modelo arquitetônico tradicional, o fogo se constitui no centro da vida doméstica e mesmo social. É ao seu redor que os visitantes devem tomar assento e é ali que as conversas reservadas e os assuntos de interesse público são tratados simultaneamente ao movimento das crianças brincando com animais de estimação e das mulheres realizando seus serviços culinários. Tão forte quanto a relação com o fogo é a relação com o chão da casa, informação esta confirmada pela professora Sara Barros do Nascimento, docente que vive na Serra da Borda e é observadora atenta do modo de vida dos Katitaurlu. Por conta do fogo permanentemente aceso, o seu entorno vai ficando todo coberto de cinzas misturadas com sedimentos do chão, formando uma espécie de tapete, no qual os animais domésticos e os Katitaurlu que praticam um modo de vida mais tradicional dormem e passam a maior parte do tempo. O tipo de solo é ainda um importante critério para o estabelecimento de novas aldeias, havendo a preferência por solos secos e arenosos, aqueles cujo chão é o ideal para se dormir. Os Katitaurlu seguem mantendo este hábito de dormir e permanecer parte de seu tempo em contato com o chão da casa, misturados aos animais de estimação. Tal determinação se confronta com a forte pressão dos não-indígenas para o abandonem, pois o consideram como um costume anti-higiênico e inapropriado à vivência humana. Acontece que para os Katitaurlu a terra não é algo sujo ou impuro. Pelo contrário, é limpa e pura e por isso estar coberto de cinza e areia não é visto como um costume antihigiênico. Por isso eles assam batata-doce, inhame, cará, mandioca e um tipo de beiju feito de milho no borralho e nas brasas do fogão doméstico, de onde os retiram para se alimentar e também compartilham os alimentos com os animais de estimação com os quais dividem o espaço da casa. 68

O hábito de sentar próximo ao fogo tem fundamentos práticos e simbólicos. O fogo que serve para iluminar o ambiente, aquecer as pessoas e assar os alimentos, também afugenta maus sonhos e permite os homens acender o charuto, cuja fumaça tragada clareia o pensamento e faz fluir a fala que promove o entendimento entre as pessoas. Do ponto de vista prático, o fogo permite processar o alimento sobre a labareda e a fumaça ou sob a cinza e a brasa, além de produzir fumaça que afugenta os insetos. A relação com o tabaco também é muito forte, tanto que Kimã Katitaurlu explicou que quando estão trabalhando na roça é necessário estar com o cigarro na boca, considerado um procedimento ritual necessário ao bom andamento das atividades produtivas. O mesmo vale para quando os homens estão a caçar na mata, quando é necessário realizar paradas para fumar. Outro assunto a ser tratado neste momento diz respeito aos grupos étnicos linguisticamente nambikwara. Uma dos aspectos sobre os quais paira ainda muitas indefinições diz respeito aos diversos grupos mencionados na literatura etnológica e etno-histórica sobre os grupos linguisticamente nambikwara. Esta questão diz respeito especialmente ao histórico de surgimento de cada um deles e sobre o papel destas distinções na composição social das identidades exclusivas destes segmentos, os quais geralmente são identificados como subgrupos ou parcialidades. As categorias subgrupo e parcialidade merecem uma avaliação crítica à luz das contribuições mais recentes da teoria antropológica voltada para a análise dos grupos étnicos. Em grande parte dos estudos sobre os grupos falantes de língua nambikwara as categorias subgrupo e parcialidade são usadas de forma equivocada, imprecisa e essencialista. Isto porque passa a impressão da existência de um único grupo primordial, o Nambikwara, do qual todos os “subgrupos” descenderiam. Assim sendo, os atuais subgrupos tendem a ser apresentados como a atualização incompleta de uma suposta essência nambikwara, esta sim, completa, primordial e perfeitamente legítima. Esta forma de apresentação de grupos étnicos atuais como referidos a uma suposta identidade que transcende sua experiência social, contraria os avanços feitos no campo dos estudos sobre etnicidade, com destaque para os aportes do antropólogo norueguês Fredrik Barth (1969, 2000), autor da clássica Introdução aos Grupos étnicos e suas fronteiras. Por isso consideram-se aqui os Katitaurlu como um grupo étnico específico, isto é, um

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grupo humano que possui uma forma particular de organizar socialmente sua cultura e que se auto-identifica e é identificado como tal. Neste sentido, a documentação sobre os diversos grupos que comporiam uma unidade

maior,

genericamente

identificada

como

Nambikwara,

apontam

o

reconhecimento da proximidade linguística como elemento preponderante para a identificação de uma etnicidade mais abrangente. Contudo, as mesmas fontes escritas também registram que as diferenças entre esses grupos são valorizadas como sinais diacríticos que traçam as fronteiras de inclusão e distinção entre os falantes das línguas nambikwara e seus diversos dialetos. Os próprios Katitaurlu reconhecem que conseguem compreender a fala de outros povos linguisticamente aparentados, mas ressaltam que uns falam mais pesado e que outros falam mais leve; e há mesmo aqueles que falam uma língua que se distancia mais da que de fazem uso no Sararé, a qual tem mais dificuldade de entender. A proximidade histórica e cultural desses grupos também se expressa em outros planos da vida social, como na cosmologia e organização social. Sobre as características compartilhadas pelos diversos grupos identificados como Nambikwara, Ariovaldo José dos Santos destacou o seguinte: (1) o hábito de deitar-se “diretamente no chão”; (2) o cultivo de roças, o mito em comum sobre a origem das plantas cultivadas e ainda o destino pós-morte da alma das pessoas para determinadas cavernas que pode estar situadas em terras ocupadas por outros grupos; (3) no caso dos meninos, costumam realizar o furo na orelha, no septo nasal e no lábio, onde são introduzidos adornos corporais; (4) realização do ritual de passagem feminino, a partir da primeira menstruação das meninas (Santos 2000). Em outra passagem de sua monografia, o autor registrou dados sobre a cosmologia compartilhada pelos diversos dos grupos nambikwara: O mito de origem do povo Nambikwara procedendo de uma colina de pedra e sob a proteção do seu criador (Oklihaitlisu) é aceito por todos os grupos, mas reelaborado conforme a cultura local do conjunto de grupos das áreas geo-culturais. As aldeias dos mortos seguem concepções similares para todos os grupos Nambikwara, mas se situam em cada área cultural, em cavernas da região das aldeias dos vivos (Santos 2000:19).

Do mesmo modo, o mito da origem das plantas cultivadas é compartilhado por todos os grupos de língua nambikwara. Está representado pelas partes do corpo do

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menino da flauta sagrada, as quis deram origem às plantas de que retiram o sustento de suas famílias, conforme quadro reproduzido a seguir.

Quadro 5: Correlações das doze plantas cultivadas pelos grupos de língua nambikwara com o mito do menino da flauta mágica. NOME DA NOME CIENTÍFICO PLANTA Mandioca Manihot esculenta Feijão preto Phaseolus vulgaris Feijão fava Phaseolus sp. Abóbora Cucurbita sp. Araruta Maranta arundinacea Cará Dioscorea sp. Taiá Alocasia sp. Milho Zea mays Pimenta Pimenta sp. Tabaco Nicotiana tabacum Cabaça Legenaria siceraria Urucum Bixa orellana Fonte: Santos (2000:19).

NOME NAMBIKWARA Walinsu Kwatyantsu Kwatsu Pêhlu Yelausu Há’kisu Yapantasu Kayatsu Sanesu ’etsu Walutsu T’uhsu

CORRELAÇÃO Ossos da perna Costelas Orelhas Olhos (semente) Espinha dorsal (raiz) Testículos Fígado Dentes Vesícula biliar (fel) Lêndea de piolho Crânio Sangue

O autor identificou algumas distinções nas formas de produção entre os diversos grupos linguisticamente nambikwara, as quais refletem inclusive a diferença no manejo e apropriação de recursos distribuídos desigualmente na formação vegetal de cerrado e de mata. Entre os grupos moradores de regiões onde há a presença de matas com terras mais férteis, como é o caso dos Katitaurlu estabelecidos no vale do Sararé, predomina o cultivo de milho, uma das bases da alimentação de origem vegetal. Nos grupos estabelecidos em áreas de cerrado predomina o cultivo da mandioca, que tolera o plantio em solos com menos fertilidade. Dessa forma, explica o indigenista e pesquisador: “Os grupos Nambikwara da floresta têm no milho fofo (kayatsu – milho de índio, milho saboró) o seu alimento básico. Os grupos do cerrado têm nas várias espécies de mandiocas (Walinsu) a base alimentar” (Santos 2000:11). O grupo reunido na TI Sararé é normalmente identificado como os Nambikwara do Sararé. Embora naquela região predominem as matas, sua formação florestal apresenta mosaicos de vários tipos de vegetação, combinando áreas de mata, cerrado alto, cerrado aberto, matas ciliares, vegetação de ambientes pedregosos em ambientes acidentados etc. Ariovaldo Santos propôs uma projeção para a variedade de formação 71

florestal nos 67.420 hectares da TI Sararé que comportaria “aproximadamente 2/3 de florestas no médio vale do rio Sararé, com ilhas de cerrado completando a área demarcada” (Santos 2000:21). Resulta daí grande diversidade de ecossistemas com alternativas variadas de manejo dos distintos recursos, a partir dos conhecimentos práticos dos Katitaurlu. Prudente Pereira de Almeida Neto (2004a:156-157) classificou o território katitaurlu de acordo com quatro ecozonas por eles utilizadas: rio, baixio, encosta e terra firme, conforme constam na figura e no quadro apresentados a seguir.

Figura 8: Ecozonas utilizada pelos Katitaurlu (redesenhado de Almeida Neto 2004a:156).

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USO E OPORTUNIDADES

SOLO

CARACTERÍSTICAS DOS ECOSSISTEMAS

Quadro 6: Ecozonas utilizadas pelos Katitaurlu e sua importância de uso. RIO Ecossistema aquático de alta biodiversidade, com peixes, répteis, bêntons, plânctons e plantas aquáticas.

BAIXIO Baixa diversidade florística se comparado com a encosta e a terra firme, mas com grande fitomassa. Plantas com raízes tabulares e quase inexistência de palmeiras.

ENCOSTA Maior biodiversidade, devido à maior diferenciação das condições ambientais. Possui, no entanto, uma menor fitomassa.

TERRA FIRME Grande biodiversidade florística, com muitas matas de galerias. São encontradas diversas espécies de palmeiras e árvores de grande porte.

Presença de Predomínio de material solos gleisados, bentônico, argilosos e com conchas e baixa aeração. artrópodes Devido à associados a alagação são argilas de depositados profundidade. através das águas grade quantidade de matéria orgânica, o que aumenta a sua fertilidade.

Existe uma maior diversidade de tipos de solo, com predomínio dos podzólicos com argila de baixa atividade e latossolos.

Predomínio dos solos vermelhoamarelos, com baixa fertilidade natural, mas possuindo uma boa estrutura física.

Via natural de transporte fluvial. Utilizado para pesca e abastecimento de água.

Utilizada como área de caça e coleta, sendo também implantadas roças anuais.

Locais normalmente preferidos como moradia, caça, coleta e prática da agricultura. Historicamente são os locais tradicionalmente habitados pelos Katitaurlu.

Local de caça e coleta para os Katitaurlu. Na época menos chuvosa a população regional pratica agricultura de vazante nestas áreas.

Fonte: Almeida Neto (2002 apud Almeida Neto 2004a:156-157).

Os Katitaurlu têm grande familiaridade com o ambiente da mata, muito valorizada para o cultivo da roça de coivara, familiar ou coletiva, em especial para o plantio de milho, o que exige solos mais férteis. Por outro lado, dominam uma série de técnicas e conhecimentos práticos que permitem explorar e manejar recursos do cerrado, com destaque para a coleta de frutas, tubérculos e plantas medicinais. 73

O cerrado é o ambiente preferido para a construção das aldeias, já que os Katitaurlu consideram o ambiente aberto e seco como o mais apropriado para a construção das moradias, fenômeno este também constatado por outros pesquisadores citados anteriormente. Todas as aldeias atualmente existentes na TI Sararé estão construídas em clareiras no cerrado, em espaço não muito distante – de 1 a 3 km – de áreas de mata, mais apropriadas para o cultivo das roças. Em alguns casos fazem plantações de mandioca próximas à aldeia, mesmo em áreas de cerrado, considerando que a planta é mais resistente aos solos arenosos, ácidos e com poucos nutrientes disponíveis. Entre os grupos identificados como Nambikwara ocorre ainda a territorialização em um amplo espaço contíguo, onde existem áreas ocupadas com relativa exclusividade para cada um deles. Os que se reconhecem como mais próximos em termos socioculturais, praticam intercâmbio matrimonial com certa frequência e outras formas de solidariedade grupal. Tudo indica que as populações chamadas de Nambikwara compunham um sistema de interação permanente, marcado pela construção de redes de aliança e redes de hostilidades em permanente dinamismo. Foi o impacto causado pelas frentes econômicas da sociedade nacional, principalmente a partir da segunda metade do século XX, que fragmentou esse sistema. Ordinariamente, as trocas matrimoniais favorecem a contração de relações de alianças entre famílias de um mesmo grupo e, extraordinariamente, entre famílias de grupos locais distintos. O ideal da endogamia é expresso na distinção terminológica entre primos paralelos (filhos da irmã da mãe e do irmão do pai) e primos cruzados (filhos do irmão da mãe e da irmã do pai). O sistema de atitudes comportamentais também dispensa tratamentos opostos aos primos paralelos e cruzados, enfatizando o atributo de consanguinidade para os paralelos e da afinidade para cruzados. Desse modo, enquanto os primos paralelos são considerados parentes sanguíneos muito próximos, é entre os primos cruzados que se deve buscar o cônjuge preferencial. O casamento entre primos cruzados atenua o rigor da obrigação do serviço da noiva, pois nesse caso o sogro é alguém com quem já se tem uma relação social construída na geração dos pais dos cônjuges. O casamento entre primos cruzados reforça alianças entre famílias em gerações sucessivas, contando com um lastro de laços parentais já estabelecidos. A aplicação de tal regra é fundamental para a maior coesão

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dos grupos locais, cujos membros se reconhecem como parentes próximos pela replicação de laços parentais. A dificuldade maior emerge quando se casa com alguém que pertence a uma família ou grupo no qual não existem casamentos na geração dos pais. Muitas vezes o rapto surge como uma alternativa sedutora para o homem pelo sabor da aventura e pelo desejo de driblar a obrigação de cumprir o serviço da noiva. Em caso de rapto, a situação pode evoluir na direção da aliança, desde que o débito fosse quitado por outro rapto praticado contra o grupo do raptor ou o homem raptor se resignasse a prestar o serviço da noiva. Em muitos casos ele pode também evoluir para um conflito aberto, como possíveis desfechos bélicos com consequências imprevisíveis. De certa forma, é possível dizer que os casamentos regulam o pêndulo da proximidade e da distância social entre os grupos, permitindo que pessoas pertencentes a famílias ou grupos locais possam ser classificadas como parceiros matrimoniais estáveis, esporádicos e potenciais ou não-casáveis. Esta forma de classificação vale até aos que estão situados como fora do campo da aliança, caracterizados pelo signo exclusivo da inimizade. Mesmo na ausência de dados seguros sobre a gênese das distinções entre os diversos grupos locais, é possível afirmar que eles se enraízam no processo de distribuição territorial das famílias, agrupadas em torno dos líderes de aldeia, potencialmente aliados ou rivais entre si. A dinâmica deste processo sofreu inevitáveis alterações devido à perda do controle sobre o território promovido pelo avanço das frentes de expansão econômica na região e, também, à enorme depopulação por que passaram todos os grupos classificados como Nambikwara. Muitos destes grupos desapareceram, outros se viram tão diminuídos que acabaram por se fundir a outros. A etimologia do termo Katitaurlu pode dar importante pista para a compreensão do sentido da existência destes módulos organizacionais denominados de subgrupos ou parcialidades, mas aqui entendidos a partir da lógica de composição e contraposição entre grupos étnicos, diferenciando-se dos grupos locais (famílias extensas, parentelas, unidades de ocupação etc.). Paul David Price (1972) foi quem primeiro propôs uma classificação mais consistente sobre as distinções entre os diversos grupos linguisticamente nambikwara. Apresentou uma divisão em três áreas, cada uma comportando uma expressão geográfica e cultural própria. Na classificação proposta pelo autor, baseada em um modelo essencialista que conjuga ecologia com cultura e língua, os grupos do Sararé 75

estariam classificados – de fora (exterioridade) para dentro (grupo étnico) – como os Nambikwara do vale do Guaporé. Esta região seria compartilhada pelos Manairisu, Alantesu, Waikisu e Wasusu. Interessante notar aí ausência da categoria Katitaurlu enquanto etnômio, sendo possível subtender que neste momento os Katitaurlu ainda não haviam emergido como identidade específica. Provavelmente eles estivessem englobados na identidade geral de Sararé; ou, o que é mais provável, sua etnicidade passou despercebida à observação do antropólogo, visto que à época ele poderia ainda não ter devidamente incorporado à teoria da etnicidade em sua análise. Na classificação linguística mais conhecida, os Katitaurlu aparecem como falantes da língua nambikwara do sul, do grupo dialetal sararé, falantes do dialeto katitaurlu, dialeto este que seria compartilhado pelos Kwalitsu, Nuntatesu e Waihatesu, os quais teriam como referência territorial as TI’s Sararé e Paukalirajausu (Santos 2000:14). Ariovaldo José dos Santos conhece os Nambikwara desde a década de 1970 e detém um bom conhecimento da língua e da história desses grupos. Em comunicação pessoal aos antropólogos que assinam este relatório, ele explicou que o termo Katitaurlu significaria alguém que tem o saco escrotal avantajado, do tamanho do fruto do pequi. Inicialmente o nome teria sido atribuído a um antigo líder de aldeia na região do Sararé. Com o tempo, a designação passou a ser estendida a todos os membros da aldeia, grande parte formada por seus descendentes, já que ele dispunha de várias mulheres. Pelas histórias que ouviu, estimou que o tal líder chamado de Katitaurlu tivesse falecido na década de 1970, provavelmente no contexto das epidemias que assolaram a região. Esta narrativa é importante porque demonstra que uma característica atribuída ao líder de aldeia poderia fornecer um elemento de identificação para todas as famílias que viviam no local, de modo semelhante ao que acontece hoje, quando a aldeia Sararé é às vezes referida como aldeia do Américo e a aldeia Serra da Borda como a aldeia do Domingos. A referência ao saco escrotal avantajado pode estar associada a sua capacidade de gerar muitos filhos e também constitui um símbolo de poder. Tais atributos são perfeitamente compatíveis com a posição de prestígio atribuídas ao dono de aldeia entre os Katitaurlu. A virilidade focada na ereção do pênis é o tema transversal de todas as conversas informais ou mesmo daquelas com certo grau de formalidade entre os jovens Katitaurlu. Todavia, os professores missionários que vivem entre eles há vários anos acreditam que em parte esta obstinação sobre o tema da ereção peniana pode estar 76

ligada aos contatos mantidos com madeireiros e garimpeiros da região; ou mesmo com outros atores sociais não-índios que costumam verbalizar esse tipo de manifestação de virilidade, visto que entre os mais velhos não foi observado tal fenômeno. Ainda em comunicação pessoal, o referido indigenista também lembrou que hoje em dia o termo Katitaurlu é utilizado para se referir especialmente ao Américo Katitaurlu. Todos os moradores das aldeias da TI Sararé são Katitaurlu, mas ele seria a expressão máxima dessa designação por ser o mais poderoso. Com seu prestígio e poder, Américo seria uma metáfora para expressar o sentido da designação Katitaurlu. Outras lições podem ser extraídas desta narrativa, pois a constituição dos grupos não parece estar inteiramente dependente de uma essência abstrata, herdada de um passado remoto, do universo mítico ou da inspiração religiosa. Pelo menos nesse caso, a origem da designação Katitaurlu é histórica e egocentrada, indicando a possibilidade lógica do surgimento de outros grupos no seio da atual população Katitaurlu, a partir de outras formas de carisma, atributos e performances de outros líderes atuais ou que venham a existir. Isto demonstra que as categorias de identificação dos grupos locais se articulam a partir de elementos históricos e dinâmicos, o que impede de reduzi-las a entidades autocontidas ou fixas. São, portanto, mutáveis ao longo do tempo histórico do grupo de acordo com ritmo de suas transformações socioculturais e dinâmicas territoriais. Como bem notou o referido funcionário da FUNAI: [...] cada grupo Nambikwara tem sua auto-denominação, que pode estar associada a uma referência de liderança (Katitaurlu – antepassado de Moisés do Sararé, por exemplo), a uma característica ambiental (Halotesu – povo do cerrado), (Waihatesu – povo da cachoeira), ou ainda a uma qualidade marcante do grupo (Hahãitesu – povo cantador) (Santos 2000:17).

Os etnômios que distinguem os vários grupos atuam como rótulos que servem para comunicar processos de diferenciação que emergem na relação de alteridade com outros grupos igualmente instituídos. Tais distinções são históricas, sendo possível propor que elas podem surgir em determinadas circunstâncias e mesmo desaparecer em outras, quando as configurações que lhes deram origem ou sustentação se transformam, cedendo lugar a outras classificações. A organização política entre os Katitaurlu se orienta pelo reforço da autonomia dos grupos locais e pela recusa ativa à centralização política em torno de uma estrutura ou líder. As características gerais desse sistema político são compartilhadas por várias 77

sociedades indígenas sul-americanas, e receberam brilhantemente formulação no trabalho de Pierre Clastres (1978), denominado A Sociedade Contra o Estado. Por conta deste modelo de organização política, a existência de aldeias maiores surge como esforço vinculado à capacidade relativamente rara de alguns líderes em resolver os problemas de convivência que surgem em aglomerados Katitaurlu que reúnem algumas dezenas de pessoas. Isto leva as pessoas, principalmente os líderes familiares das aldeias maiores, a ficarem divididos entre o desejo de viverem em uma grande aldeia, onde podem usufruir de maior extensão e complexidade na convivência social e ritual, e a dificuldade de lidarem com a tensão e conflito que necessariamente emergem nesses lugares. Por outro lado a idéia de viver na dependência de um líder de maior expressão nem sempre agrada aos chefes de famílias nucleares e aos líderes emergentes. Mas a opção preferencial por viver em aldeias pequenas tem ainda uma razão prática: o fato de as pessoas terem, por exemplo, de dividir animais caçados com os demais membros do grupo local por se tratar de uma regra de reciprocidade cumprida à risca. Igualmente, quanto maior o grupo local, maior também será a pressão exercida sobre os recursos ambientais disponíveis em determinada área e menor também será a possibilidade vigiar um grande território contra eventuais invasores. A opção em viver em aldeias pequenas parece ser a mais viável para os jovens líderes, aqueles que estão adquirindo conhecimento sobre como conduzir a vida política na aldeia e também não dispõem ainda de laços parentais que lhes permitam agregar um grande número de pessoas. Nesse sentido, a fala de Paulo Katitaurlu, líder da pequena aldeia PIV, parece instrutiva. Ele afirmou que “tem que afastar da aldeia, ficar longe um pouquinho, pra evitar brigas; meu pai já explicou pra mim”. Realizando o cruzamento dos dados demográficos com os dados referentes à territorialização das famílias, é possível identificar que opção de Paulo, em viver com sua família em localidade mais distanciada das aldeias maiores, é a mesma seguida por Athos e por Kimã Katitaurlu. Os dois se distanciaram cerca de dois quilômetros da sede da aldeia da Serra da Borda, bem como por Mateus Katitaurlu, um pouco mais radical, que vive a cerca de seis quilômetros da mesma aldeia. Paulo Katitaurlu disse que sempre praticava a pesca com timbó na região denominada de Piscina, que fica na TI Paukalirajausu. Entretanto, como atualmente esta

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terra – mesmo estando em fase de identificação e delimitação pela FUNAI – permanece na posse de particulares, este tipo de pesca está suspenso ou é praticada muito esporadicamente no local. Segundo explicou, os peixes mais comuns nas pescarias com timbó eram lambari, cascudo, traíra, bagre, peixe-cachorro, piau, pacu, piranha, cará e tuvira. A pesca com timbó é descrita como um evento social de grande importância dado seu caráter coletivo e lúdico. A pesca envolve famílias inteiras, crianças, homens e mulheres que se jogam na água, com grande algazarra. É possível inferir que a importância da pesca com timbó não é apenas econômica. Ela é muito mais do que uma atividade produtiva orientada para a produção de suprimento protéico, isto é, por uma razão prática. Nela as pessoas se divertem e exercitam formas de cooperação ampliada. No córrego Piscina e em outros cursos d’água transparente da região, meninos e homens Katitaurlu também praticam a pesca aquática e subaquática com arpão. Este artefato é feito com uma ponta de metal, produzida a partir de um pedaço de arame galvanizado com uma extremidade afiada com lima de metal, e uma haste de taquara. Seu tamanho gira em torno de 1 m de cumprimento. A ponta não tem farpa ou fisga e é fixada em uma extremidade da haste e amarrada com elástico obtido a partir de câmaras de ar de pneus de automóveis. Na outra extremidade fixam a ponta de um garrote de uso hospitalar e na outra parte deste elástico fazem uma espécie de dedeira para ser presa ao dedo indicador. Com isso eles têm em mãos um arpão para a pesca subaquática, o qual se assemelha a uma funda ou estilingue. Usam ainda uma máscara também fabricada por eles através do uso de um pedaço oval ou retangular de vidro liso, de uns 3 mm de espessura, cortado dentro d’água com ajuda de uma tesoura, assim o fazendo para evitar trincá-lo e acidentes com sua manipulação. Este vidro é colocado em um pedaço de câmara de ar de pneu cortada transversalmente, na qual fazem um pequeno orifício por onde encaixam e prendem o vidro. Na hora de usar esta máscara eles passam sabão em barra ou creme dental na parte interna para evitar embaçar o vidro durante o mergulho, o que dificultaria a visão debaixo d’água.

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Figura 9: Ricardo e Aritana Katitaurlu exibindo o resultado da pesca com arpão no rio Piscina, na divisa entre a TI Sararé e a Paukalirajausu.

Outro tema a ser abordado nesta parte do relatório trata de informações etnográficas registradas sobre as aldeias existentes na TI Sararé. Neste sentido, registra-se que os trabalhos antropológicos de campo tiveram início pela aldeia PIV. A denominação da aldeia é a sigla da nomenclatura Posto Indígena de Vigilância, constituído pela FUNAI para cumprir a função de posto de guarda avançado em um ponto da terra indígena identificado como muito vulnerável para a entrada de garimpeiros, madeireiros e palmiteiros clandestinos. Trata-se de indivíduos que por várias vezes ali adentraram para exploração ilícita de recursos ambientais. O chefe do posto, Natal Jesus de Lima, de 53 anos, reside na sede administrativa, que reúne as funções de sede da FUNAI e residência de sua família, constituída por sua esposa e filha. Ele é contratado como prestador de serviços para a FUNAI e, na condição de estar em um cargo de confiança, mediante função gratificada, já atuou como chefe do posto da TI Sararé por um período de mais de um ano, entre 2005 e 2006, e retornou posteriormente para reassumir o cargo. O acesso ao posto é feito pela estrada municipal de acesso à mineradora, através de uma estrada vicinal anteriormente construída para dar acesso a um garimpo que 80

ficava próximo ao posto (ver local nº. 09 no Quadro 4). Por isso esta é uma das áreas de vulnerabilidade da TI Sararé. O chefe de posto informou ainda que a FUNAI fez um acordo com o proprietário de uma área particular que fica entre a estrada municipal para a mineradora e a terra indígena para utilizar a antiga estrada dos garimpeiros. A partir desse acordo a FUNAI cercou os dois lados da estrada, formando um corredor por onde os índios e os funcionários do órgão indigenista circulam com acesso exclusivo, já que a saída para a estrada municipal que dá acesso à SBMM é fechada com porteira e cadeado. O antigo garimpo fica na estrada vicinal, agora controlada pela FUNAI, cerca de 2,5 km da sede do PIV (ver local nº. 10 no Quadro 4). O local era denominado de rio Ferrugem e os garimpeiros fizeram grandes crateras no lugar, agora transformadas em montes de pedras e lagoas. Como a atividade garimpeira na área foi interrompida há cerca de 13 anos, aos poucos a vegetação característica do local, que combina montes de pedra com áreas alagadas, está se recompondo. Aos poucos também vai se instalando uma fauna aquática e terrestre, embora se suponha que no fundo das lagoas ali formadas possa ter sido depositado uma grande quantidade de mercúrio. Após cruzar o garimpo extinto, termina o corredor na área particular e a estrada ingressa na terra indígena.

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Figura 10: Local de antigo garimpo ao lado da estrada que dá acesso ao PIV, onde gradualmente a área é recoberta por vegetação nativa (UTM 227217E/8347082N).

O posto dispõe de uma caminhonete marca Mitsubishi, modelo L200, ano de fabricação 2007, uma caminhonete marca Toyota, modelo Bandeirantes, um trator, uma motosserra e vários outros equipamentos que permitem operacionalizar uma série de atividades produtivas. Essas atividades são feitas com maior incidência no seu entorno e destinadas em sua maioria ao suprimento do próprio posto, que funciona como um sítio rural bem estruturado. Dispõe de um pomar plantado recentemente e de uma horta, além de um piquete onde são criadas vacas leiteiras, cuidadas por André Katitaurlu, um jovem índio que presta serviços domésticos ao chefe de posto e sua família. Na época o Chefe contava ainda com um não-indígena, contratado para a prestação temporária de serviços. Mas para a maioria deles contava com a colaboração de André Katitaurlu. A aldeia PIV é, em termos numéricos, a menor de todas as aldeias situadas na TI Sararé e está localizada cerca de 1 km da sede do posto. É composta basicamente pela família de Paulo Katitaurlu. Na entrada da aldeia foi encontrado um amontoado de esteios de aroeira, apreendido recentemente pelo chefe do posto e alguns indígenas na parte da terra indígena conhecida como linha seca, região também denominada Corgão, mencionada anteriormente. Trata-se de madeira retirada ilegalmente por madeireiros que insistem na prática ilegal, mesmo já tendo ocorrido diversas operações de repressão envolvendo a FUNAI e a polícia federal. A madeira apreendida foi depositada neste local, pois segundo o chefe do PIV, será utilizada na própria comunidade para expansão 82

da área cercada que forma piquetes destinados à criação de gado. A proposta da FUNAI é cercar e ocupar com criação de gado as antigas pastagens deixadas pelos posseiros em diversos trechos da terra indígena, criando uma alternativa de geração de renda para as famílias que formam as diversas aldeias.

Figura 11: Lascas de aroeiras derrubadas ilegalmente da TI Sararé por brancos a serviço de madeireiros e/ou trabalhadores rurais do “Assentamento FUNAI”, apreendidas pelo chefe do PIV com a ajuda de alguns homens Katitaurlu (UTM 231878E/8344275N).

A atividade de criação de gado tem prosperado mais no entorno do posto, sob os cuidados diretos do funcionário da FUNAI. Segundo informações recebidas em campo, recentemente foi realizada uma transferência de cerca de 70 cabeças de gado para a aldeia do Sararé, sendo que o gado ficou sob a responsabilidade de Saulo Katitaurlu, jovem liderança indígena. Os resultados até o momento não foram os esperados pela FUNAI e o número de cabeças vem diminuindo constantemente porque os índios mataram ou venderam várias delas, pois por falta de manutenção na cerca os animais entram com frequência nas lavouras e destruíram plantações. Esta situação demonstra o quanto é difícil desenvolver novas atividades econômicas em harmonia com as atividades tradicionais como a agricultura de coivara.

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A dificuldade em consolidar o programa de criação de gado demonstra ainda o quanto é necessário manter o dialogo com os Katitaurlu para que eles entendam as novas alternativas produtivas oferecidas pelos programas apresentados pelas agências da sociedade nacional. Tais alternativas requerem o domínio de competência técnicas e de rearranjos em suas práticas cotidianas, e isto deve ser explicitado e discutido sob pena de se comprometer por completo os resultados das ações. Retomando a descrição da aldeia PIV, é possível afirmar que o seu entorno foi bastante afetado pelo desmatamento que ocorreu por ocupantes não-indígenas no período anterior à demarcação e relativa proteção do território por parte da FUNAI. A intenção destes ocupantes era expulsar os índios, formar pastagens e legalizar a posse da terra. Natal Jesus de Lima e Ariovaldo José dos Santos conhecem a região desde a década de 1970 e confirmaram que muitas áreas foram desmatadas com a utilização de desfolhantes químicos pulverizados por avião, conforme explicado no capítulo anterior. Muitas das antigas pastagens estão atualmente tomadas pela mata secundária, que sufoca os últimos brotos do capim, tornando-as novamente adequadas ao cultivo pela técnica de coivara. Quando se caminha pelo local é possível também identificar espaços ocupados por roças indígenas, abandonadas há vários anos, e em cujos espaços a vegetação nativa se encontra em graus variados de regeneração. Esses locais constam devidamente georreferenciados no Quadro 4. A aldeia PIV é formada por 11 pessoas, mas eventualmente esse número pode ser alterado pela saída de alguns membros que vão visitar parentes ou pela recepção de parentes vindos de outras aldeias. A aldeia foi formada por iniciativa da própria FUNAI que considera necessária a presença indígena no local para monitorar e impedir a entrada de possíveis invasores. Em suas expedições de caça, coleta, pesca etc., os índios ali estabelecidos exercem o controle da presença de não-indígenas na área, devendo comunicar ao chefe do posto sobre qualquer vestígio de estranhos na área. A roça nova de Paulo Katitaurlu tem cerca de um hectare. Nela ele plantou dois cultivares de mandioca e uma espécie de cará do ar. Tanto a mandioca como o cará são consumidos assados, modo de processamento de alimentos predominante entre os Katitaurlu. Sua roça de coivara está literalmente escondida na mata, em um local de 84

difícil acesso para impedir que os bovinos criados no posto da FUNAI possam destruir as plantas cultivadas caso escapem do piquete. Ele reclamou que a roça antiga, situada ao lado de sua casa e de onde extrai os alimentos que consome enquanto a nova amadurece, foi atacada amiúde por esses animais, o que o motivou a fazer outra roça em local de difícil acesso. O caso demonstra o cuidado requerido quando se programa alternativas de produção econômica na terra indígena que podem interferir sobre outros usos tradicionais do espaço.

Figura 12: Paulo Katitaurlu em sua nova roça familiar de mandioca e cará (UTM 230930E/8345120N).

O foco de articulação da aldeia PIV é o laço de conjugalidade entre Paulo e Wyara Katitaurlu. A seguir consta a genealogia do grupo e os componentes da aldeia, informando idade aproximada e local de nascimento e outras informações consideradas relevantes.

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Figura 13: Genealogia parcial da família de Paulo Katitaurlu, sendo a parte pontilhada a que corresponde ao grupo local, aquele que reside na aldeia PIV.

1. Paulo Katitaurlu, 29 anos, mas conhecido como Paulinho, nasceu na antiga aldeia Sapé (Akalkiravyesu), atualmente abandonada e lugar onde os brancos invadiram o território indígena. Casou-se com uns 15 anos de idade. É considerado pelos Katitaurlu de outras aldeias como um grande conhecedor do sistema tradicional e uma pessoa cujas opiniões sempre são levadas em consideração nas decisões que afetam toda a comunidade. Ele informou inclusive que foi apontado por seu pai biológico, Silvério Katitaurlu, líder da aldeia Sapé ou Atoleiro, e por outros líderes antigos, como pessoa que deve se preparar para assumir futuramente o papel de líder da comunidade. Entretanto, alegou que isto implica em muitas obrigações e, aparentemente, demonstrou pouca disposição em seguir a orientação. Dispunha anteriormente de duas esposas, o que é facultado pelo sistema de parentesco Katitaurlu que permite a poliandria, mas acabou desistindo da segunda esposa por conta do ciúme de Wyara Katitaurlu, sua atual mulher. Entretanto, um casal de filhos do antigo casamento reside com sua atual esposa, o que parece não constituir foco de tensão na convivência do casal. A agregação dos filhos da ex-esposa em sua aldeia amplia o número de pessoas que seguem sua orientação, ampliando sua importância como liderança. Deka Katitaurlu, mãe de Paulo, vive na aldeia da Serra da Borda, onde ele vivia antes de se mudar para o PIV. Paulo sempre visita

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sua mãe, como aconteceu durante a realização do trabalho de campo, quando foi de trator levar carne de uma vaca abatida no posto da FUNAI para consumo interno da comunidade. Nestas visitas as relações de solidariedade política e dependência mútua entre as aldeias são sempre reforçadas, mantendo e ampliando as alianças entre os diversos grupos familiares. 2. Wyara Katitaurlu, de uns 27 anos, filha de Timóteo e Lídia Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. Mãe de cinco filhos, parece corresponder bem ao ideal de esposa Katitaurlu, desempenhando bem as atividades produtivas, educativas e sociais atribuídas ao gênero feminino na sociedade. Seu avô materno era Mané Waikisu. 3. Ana Paula Katitaurlu, 9 anos, nasceu na aldeia PIV. 4. Carolina Katitaurlu, 10 anos, nasceu na aldeia Sararé. 5. Indiara Katitaurlu, 8 anos, nasceu na aldeia Serra da Borda. 6. Indiana Katitaurlu, 3 anos, nasceu na aldeia Serra da Borda. 7. João Paulo Katitaurlu, 8 meses, nasceu na aldeia PIV. 8. Ex-esposa de Paulo Katitaurlu. 9. Alisson Katitaurlu, 11 anos, nasceu na aldeia Sararé. 10. Isabel Katitaurlu, 15 anos, nasceu na aldeia Sararé. 11. Cristiane Katitaurlu, 5 anos, nasceu na aldeia Sararé, atualmente vive com a mãe na aldeia Sararé. 12. Eliete Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé e é tia materna de Paulo Katitaurlu. 13. André Katitaurlu, 25 anos, também conhecido como Peri, nasceu na aldeia Sararé. Manifestou intenção em mudar sua denominação de Katitaurlu para Wasusu, já que é fruto do casamento de pai Katitaurlu e mãe Wasusu, e reconhece que seu registro de pertencimento grupal realizado pela FUNAI não condiz com sua auto-identificação étnica. É um personagem complexo porque vive ligado ao posto da FUNAI, o que gera certa suspeita entre os demais índios com os quais parece interagir pouco. Sua condição de adulto solteiro também é vista como problemática no grupo, cujos costumes recomendam o casamento assim que se atinge a maturidade sexual. Ouviram-se vários comentários jocosos e até maldosos, apontando a excepcionalidade de sua condição. É tio materno de Paulo Katitaurlu e isto explica sua inclusão no grupo que compõe a aldeia liderada pelo sobrinho.

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14. Silvério Katitaurlu, supostamente morto por envenenado quando Paulo tinha a idade de seu filho Alisson Katitaurlu. 15. Deka Katitaurlu, viúva de Silvério Katitaurlu, vive na aldeia da Serra da Borda, atualmente casada com Domingos Katitaurlu, principal liderança local. Na aldeia PIV, ao lado da casa de Paulo e Wyara Katitaurlu, funciona a escola municipal com uma única classe multisseriada em construção, cuja arquitetura se aproxima da indígena. A professora é a filha do chefe do posto da FUNAI, e a merendeira é sua esposa, ambas contratadas pela Prefeitura Municipal de Vila Bela da Santíssima Trindade. A família do chefe de posto é de filiação religiosa evangélica neopentecostal e não raramente costuma estranhar e reprovar certos comportamentos indígenas, como o hábito de fumar de Paulo Katitaurlu, a culinária praticada na família indígena, o modo de ministrar cuidados higiênicos e sua religião tradicional. Tal atitude gera certa tensão nas relações com o líder da aldeia PIV. Entretanto, a laboriosidade e a presteza do chefe de posto da FUNAI no atendimento às necessidades dos índios ajudam a manter a viabilidade da convivência no arranjo organizacional formado entre a aldeia e o posto da FUNAI. Isto ficou evidente no nascimento do último filho de Paulo e Wyara Katitaurlu, atestado por registro fotográfico feito pelo próprio funcionário da FUNAI. É comum Paulo emprestar a espingarda do posto para caçar, embora também cace de arco e flecha, e depender do posto para conseguir ferramentas e semente de milho híbrido, denominado de milho duro, destinado a alimentação de galinhas criadas soltas na aldeia e na sede do posto. O entorno da aldeia PIV sofreu forte pressão nos recursos naturais, explorados intensamente pelos não-indígenas que ocuparam a área. Por este motivo, o chefe do posto afirmou que sempre recomenda a Paulo e sua família que procurem cortar mais babaçus para utilizarem suas folhas na cobertura das construções. Com isso, entende ele, diminuirá a pressão sobre a retirada das palmas do açaí, uma palmeira que demora mais tempo para crescer e cujos frutos são muito apreciados na culinária katitaurlu. A respeito de outros grupos étnicos de língua nambikwara, Paulo Katitaurlu afirmou que os Hahãitesu vivem no município de Comodoro e falam com sotaque diferente dos Katitaurlu do Sararé, pois possuem uma pronúncia mais pesada. Ele disse ainda que os mais idosos fazem uso de um sotaque diferenciado e que os jovens às

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vezes têm dificuldades em se comunicar com eles, pois preservam menos as distinções dialetais. Aqui é possível imaginar duas hipóteses: (1) estaria em curso o surgimento de uma língua franca, que apagaria ou minimizaria as diferenças dialetais; (2) os jovens teriam menos presente o histórico dos embates entre os dois grupos, tendo menos necessidade de enfatizar as distinções. Na aldeia Serra da Borda, por sua vez, foi possível estabelecer uma relação intensa com os líderes jovens como Aritana e Samuel Katitaurlu. Logo no primeiro dia Samuel explicou que a região do córrego Piscina, como eles costumam denominar a TI Paukalirajausu, foi identificada como terra indígena pelo antropólogo Marcelo Fiorini, mas que o processo está parado na FUNAI. Reclamou que enquanto a situação não é definida, particulares não-indígenas tomaram posse da terra e estão promovendo o seu total desmatamento. Segundo afirmou ainda, também está sendo destruído um cemitério da comunidade que ali existe e que a FUNAI, mesmo tendo conhecimento, nada faz para impedir a destruição do que pode ser classificado como patrimônio material e imaterial do grupo. Ele afirmou ainda que “nós tá proibido de entrar lá, de banhar, de pescar, mas o branco tá lá desmatando e destruindo nosso cemitério!”. Para Samuel os Katitaurlu que vivem na Serra da Borda concebem sua presença no local como estratégica para a continuidade da demanda pela demarcação da TI Paukalirajausu, pois como esclareceu Ariovaldo José dos Santos: O córrego P’aukalirahjausu ou Piscina, como está sendo conhecido hoje pelos Katitaurlu/Waihatesu, é um afluente esquerdo do córrego Banhado que ficou fora da demarcação da TI Sararé, mas que pela sua importância tradicional e atual nunca deixou de ser utilizado pelos Waihatesu. Entretanto, proprietários Kwatyansu dos lotes de assentamento fundiário, sobrepostos ao território reivindicado pelos índios, apressam os desmatamentos até a beira do córrego e promovem usos inadequados à preservação da mata ciliar e do próprio córrego P’aukalirujausu. Os Waihatesu estão com aldeia na Serra da Borda, há aproximadamente cinco quilômetros dali, e já pensam em mudar para mais perto, com fim principal de proteger aquela parte de seu território (Santos 2000:25).

No trabalho de campo foi possível atesta o grau de deterioração da vegetação nativa pelos ocupantes não-indígenas e a grande revolta dos Katitaurlu da Serra da Borda pelo fato de a FUNAI até o momento não ter conseguido barrar o processo de dilapidação dos recursos que consideram imprescindíveis para a reprodução física e cultural do grupo.

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Figura 14: Lascas de madeiras cortadas ilegalmente à margem esquerda do córrego Piscina, em sua área de preservação permanente, localizada na TI Paukalirajausu (UTM 218699E/8366669N aprox.).

Figura 15: Lata de cerveja descartada por brancos à margem esquerda do córrego Piscina, em sua área de preservação permanente, na TI Paukalirajausu (UTM 218699E/8366669N aprox.).

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Figura 16: Marco do INCRA encontrado à margem esquerda do córrego Piscina, no local onde foi feita a derrubada ilegal de madeiras (UTM 218699E/8366669N aprox.).

Na aldeia Serra da Borda a maior liderança é Domingos Katitaurlu e por isso aquela área também é chamada de aldeia do Domingos. Na sequência constam dados de sua genealogia.

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Figura 17: Genealogia parcial da família de Domingos Katitaurlu, sendo a parte pontilhada a que corresponde ao grupo residencial.

1. Domingos Katitaurlu, 90 anos, liderança política e religiosa, nasceu em Setawakayesu, uma antiga aldeia localizada no atual município de Nova Lacerda, é aposentado, assim como sua esposa, e por isso recebe um benefício mensal do governo federal. No passado mais distante participou de guerras contra os brancos e outros índios na região. Sua casa é muito visitada por parentes e aliados políticos, desde os mais idosos até os mais jovens. 2. Deka Katitaurlu, cerca de 54 anos, sua esposa e mãe de Paulo Katitaurlu, também aposentada, nasceu em Sawetanũluyasu, próximo à região dos Paresi. 3. Jurumi Katitaurlu, 23 anos, mora na aldeia Serra da Borda, filho biológico de Severo (falecido) e Deka, de quem atualmente Domingos é pai pelo sistema de parentesco katitaurlu. 4. Tânia Katitaurlu, 23 anos, mora na aldeia Serra da Borda, filha de Mateus e Neuza Katitaurlu. 5. Júlio Katitaurlu, 7 anos, mora na aldeia Serra da Borda, onde nasceu. 6. César Katitaurlu, 4 anos, mora na aldeia Serra da Borda, nascido no hospital de Vilhema (RO). 7. Paulo Katitaurlu, líder da aldeia PIV. 8. Cecília Katitaurlu, esposa de Saulo, com quem mora na aldeia Sararé. 9. Saulo Katitaurlu, cunhado de Paulo Katitaurlu, morador da aldeia Sararé. 10. Kawany Katitaurlu, 18 anos, nascida na aldeia Sararé e moradora na aldeia Serra da Borda. 92

11. Aritana Katitaurlu, 22 anos, filho de Mateus e Clarice Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé e reside na aldeia Serra da Borda. 12. Norumi Katitaurlu, 22 anos, nasceu na aldeia Sararé, é filho biológico de Timóteo e Laura Katitaurlu e neto biológico de Domingos, quem juntamente com Deka atualmente assumiu o papel de seu pai. Atualmente mora na aldeia Serra da Borda. 13. Cristiane Katitaurlu, 6 anos, filha de Norumi em casamento anterior; mora com Domingos e Deka. 14. Nilo Katitaurlu, 72 anos, viúvo de Lídia Waikisu, articulador de um grupo que passou a residir em um local chamado de aldeia Nova, próximo a Serra da Borda. Atualmente ele considera Domingos Katitaurlu como seu pai devido às alianças políticas e matrimoniais articuladas no grupo. Com Nilo residem seu filho Kimã, 24 anos, e sua nora Luana Katitaurlu, 20 anos, juntamente com seus netos Fábio, 5 anos, e Flávio, 3 anos. O local passou a ser sua residência no início de 2009, o qual também é conhecido como aldeia do Gaúcho, em referência a um funcionário da FUNAI que ali morou na década de 1990, quando a área estava invadida por garimpeiros. Aritana Katitaurlu e Samuel Katitaurlu são dois jovens que estão se preparando para assumir a atividade de professor na aldeia Serra da Borda. Por esse motivo eles estão sempre presentes na escola, onde a professora e missionária ministra suas aulas.

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Sobre a aldeia Seis, a terceira aqui tratada, também chamada de aldeia do Mateus, cujo líder é o próprio Mateus Katitaurlu, seguem abaixo os dados de sua liderança.

Figura 18: Genealogia parcial da família de Mateus Katitaurlu, sendo a parte pontilhada a que corresponde ao grupo residencial.

1. Mateus Katitaurlu, 65 anos, nasceu na aldeia Sararé. É casado com três esposas, o que lhe confere o status de futuro dono de aldeia, sendo que ele passou a ocupar uma região situada cerca de 5 km de distância da sede da aldeia Serra da Borda. Administrativamente o local de sua residência está associado à aldeia Serra da Borda, mas é recorrente ouvir a designação aldeia do Mateus como indicativo da probabilidade do local futuramente se tornar uma aldeia autônoma. 2. Neusa Katitaurlu, 48 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Clarice Katitaurlu, 47 anos, nasceu na aldeia Sararé. 4. Laura Katitaurlu, 65 anos, nasceu na aldeia Sararé. 5. Tânia Katitaurlu, 20 anos, nasceu na aldeia Sararé. 6. Fani Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé. 7. Pani Katitaurlu, 10 anos, nasceu na aldeia Sararé. 8. Athos Katitaurlu, 28 anos, nasceu na aldeia Sararé. 9. Rita Katitaurlu, 15 anos, nasceu na aldeia Sararé. 10. Jurumi Katitaurlu, 23 anos, nasceu na aldeia Sararé. 11. Júlio Katitaurlu, 7 anos, nasceu na aldeia Serra da Borda. 12. César Katitaurlu, 4 anos, nasceu em Vilhena (RO). 94

13. Marcos Wasusu, 15 anos, veio de Nova Lacerda, “fugido”, quando tinha uns 14 anos de idade. 14. Natália Graciela Katitaurlu, recém-nascida na aldeia Serra da Borda. 15. Araçatuka Katitaurlu, 23 anos, nasceu na aldeia Sararé. 16. Carlos Katitaurlu, conhecido como Carlinhos, 23 anos, nasceu na aldeia Sararé. 17. Jean Katitaurlu, recém-nascido na aldeia Sararé.

A última aldeia a ser tratada é a Sararé. Esta é a aldeia que se constituiu como o foco de aglutinação da população Katitaurlu quando a FUNAI iniciou os procedimentos de regularização fundiária da área a partir da pressão dos ocupantes brancos, os quais passaram a requerer a titulação de terras na região. Nesse período a FUNAI reuniu toda a população indígena que hoje recebe o nome de Katitaurlu em uma única aldeia, denominada de Sararé, que também passou a nomear oficialmente a terra indígena demarcada. Antes da atuação da FUNAI, a localidade se chamava aldeia Nutanyensu, mas daí em diante passou a ser denominada de aldeia Sararé devido à proposta de identificação que seguia o curso do rio com a mesma denominação e também pelo fato de os índios dali serem conhecidos como Nambikwara do Sararé. Conforme explicado no capítulo anterior, a intensificação dos contatos com os não-índios foi fator predominante na constituição da atual composição étnica da população katitaurlu das TI’s Sararé e Paukalirajausu, haja vista que As alianças por casamentos aproximaram os grupos e após o contato, essa aproximação foi efetivada com mudanças das aldeias para perto da aldeia Nutanyensu, onde a Missão se instalou em 1960 e ao seu lado a Funai em 1975. Os remanescentes dos grupos, Kwalitsu, Waihatesu, Nutantesu e Yanaliritesu estão hoje incorporados como Katitauhlu (Santos 2000:20).

Entretanto, o autor registrou que as antigas identidades particulares não se dissolveram completamente na identidade katitaurlu. Os diversos grupos originais “tentam manter suas lideranças e seus ambientes tradicionais no território integrado à Terra Indígena (TI) Sararé” (Santos 2000:20). O mesmo autor registra ainda que os Katitaurlu também incorporaram indivíduos de outros grupos linguisticamente nambikwara do vale do Guaporé: “Com os Katitaurlu, há também representantes de outros grupos Nambikwara do Vale do Guaporé procedentes de casamentos com mulheres dos grupos vizinhos Wasusu e Waikisu/Waikatesu (Santos 2000:20).

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Entretanto, os indivíduos vindo de fora tendem a se fundir aos grupos do Sararé nos quais foram incluídos. É importante evidenciar que existe o desejo de manter a identidade desses grupos locais com as áreas das antigas aldeias, mesmo que a situação histórica póscontato tenha os levado a viver por várias décadas em uma única aldeia. Este desejo é manifesto na disposição de fundar novas aldeias, retomando formas de territorialidade mais sintonizadas com o formato da organização social destes grupos, sempre divididos em famílias pouco numerosas, constituindo aldeias autônomas. Com o estabelecimento da aldeia Sararé, a FUNAI construiu o primeiro posto indígena no local. Daí sua denominação aldeia do Posto Velho, a qual ainda aparece em diversas falas indígenas por ter sido até recentemente a sede administrativa da FUNAI na TI Sararé. Algumas vezes ela é também denominada de aldeia Central porque ela é a mais antiga e as outras – tidas como periféricas – derivaram dela. Entretanto, Ariovaldo José dos Santos em comunicação pessoal demonstrou descontentamento com esta denominação, pois ela pode respaldar algum tipo de hierarquização entre as aldeias, o que não teria nenhum fundamento na organização social do grupo. Sua população atual é equivalente a da população da aldeia Serra da Borda, e a rivalidade entre elas fica evidente até nas disputas de futebol que costumeiramente ocorrem em um campinho na aldeia Sararé. Nas partidas de futebol há uma nítida rivalidade entre os jovens da aldeia Sararé e a aldeia Serra da Borda, visto que as demais não possuem um número suficiente de homens para compor um time e também pelo fato de nas duas residirem as principais lideranças dos Katitaurlu e seus descendentes. A aldeia Sararé, cuja denominação aqui usada segue a expressão mais recorrente entre os indígenas, apresenta aspectos materiais que sugere certa decadência. No lugar existem antigas construções que se encontram mal cuidadas ou abandonadas. Esta é o caso da antiga casa do chefe do posto da FUNAI. Existem ainda várias casas de alvenaria, cobertas com telha de zinco, construídas pelos madeireiros na década passada para que os índios concordassem com sua presença no local. Isso aconteceu no período do auge da extração ilegal de madeira da área, quando toda sua população estava ali concentrada. Na época era grande o fluxo de recursos externos, sobretudo bens industrializados (carros, motos, eletricidade, eletrodomésticos, alimentos, bebidas

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industrializadas etc.), proporcionados pelos madeireiros, responsáveis por garantir uma grande efervescência social da qual agora só existem vestígios. Nas décadas de 1970 e 1980, a FUNAI juntamente com outros órgãos de governo, e com apoio das forças armadas, fizeram investimentos relativamente expressivos no local, como construção da sede do posto, pista de pouso para pequenos aviões, estradas etc. Também ocorreram alguns investimentos de missionários. Entretanto, o maior investimento foi mesmo dos madeireiros para que os índios permitissem que eles retirassem dali madeiras de várias espécies. Este é o caso das citadas casas de alvenaria cobertas com folhas de zinco. Por isso os madeireiros também recortaram toda a terra indígena com estradas por eles feitas para escoar a madeira. Embora esse período seja descrito pelos índios como de muita efervescência e consumo compulsivo de produtos industrializados, também foi marcado pelas violências perpetradas pelos madeireiros no momento em que eles se preparavam para sair da terra indígena. Na aldeia Sararé, o líder Saulo Katitaurlu se apresentou como a principal liderança na interlocução com os representantes das instituições da sociedade nacional. Dessa maneira, no dia 02 de abril de 2009, quando foi realizada uma reunião na aldeia Sararé com todos os técnicos responsáveis pelos trabalhos que subsidiam o relatório complementar solicitado pela FUNAI, foi ele que assumiu a direção da reunião. Arguiu aos técnicos ali presentes, especialmente ao coordenador da equipe responsável pela execução das pesquisas. Saulo manteve a mesma postura durante todo o período em que os técnicos estiveram na área, embora nem sempre acompanhasse pessoalmente os trabalhos de campo, pois os pesquisadores se dividiram em equipes menores e realizaram suas pesquisas de forma simultânea em diversos pontos da terra indígena. Outros jovens indígenas, como Ricardo Katitaurlu e Jackson Katitaurlu, também participaram ativamente de todas as discussões envolvendo o desenvolvimento dos trabalhos de campo e seus possíveis desdobramentos futuros. Os líderes mais velhos, como Américo e Pedro Katitaurlu, mantiveram postura diferente. Sempre reservados, só falavam quando solicitados a relatarem eventos históricos ocorridos no processo de reconhecimento da terra indígena ou nos embates que mantiveram com garimpeiros, madeireiros, palmiteiros e outros brancos. Na maior parte do tempo falavam em sua própria língua, dialogando com os técnicos por meio de um intérprete, sempre uma liderança mais jovem. Nestas ocasiões ficava claro que o 97

discurso era dirigido para todos os membros da família presente, ou seja, o momento era apropriado como uma oportunidade para socializar a história do grupo e a experiência de vida. Era comum também que as pessoas participassem da conversa e assim instauravam um longo e tranquilo debate. Em uma das conversas realizada com as jovens lideranças na aldeia Sararé, Saulo Katitaurlu expressou descontentamento pelo fato de o chefe do posto ou outro funcionário da FUNAI não estar acompanhando as equipes que realizavam os estudos. Segundo explicou, este teria sido motivo da reclamação de Américo Katitaurlu, por ele denominado de cacique geral do Sararé, pois ele mesmo não teria sido previamente informado sobre os trabalhos que os pesquisadores estavam a realizar e que isto era motivo de apreensão no líder. Na sequência seguem informações genealógicas sobre algumas famílias da aldeia Sararé. A primeira família é a de Américo Katitaurlu:

Figura 19: Genealogia parcial da família de Américo Katitaurlu, sendo a parte pontilhada a que corresponde ao grupo residencial.

1. Américo Katitaurlu, 68 anos, nasceu na aldeia Sararé. Nas conversas mantidas com Ariovaldo José dos Santos, em Cuiabá, várias vezes ele se referiu a aldeia Sararé como aldeia do Américo, conforme também consta em seu trabalho (Santos 2000). Analisando as genealogias de parentesco da aldeia constata-se que tal referência tem importante fundamentação sociológica, alicerçando-se no sistema político praticado pela população indígena Katitaurlu. Isto porque Américo é, dentre as lideranças mais antigas, aquela que recebe maior 98

reconhecimento por contar com laços de parentesco que se estende por praticamente todos os moradores da aldeia Sararé. Soma-se a isto o fato da maior parte deles ter em Américo uma referência de autoridade fundamentada em seu carisma e conhecimentos da tradição cultural e religiosa do grupo. Outras pessoas idosas como Pedro, são parentes diretos de Américo e manifestam reconhecimento ao papel de líder que ele ocupa, ampliando seu reconhecimento. Entretanto, Américo demonstra um comportamento reservado frentes aos visitantes e, ao que parece, deixa que os novos assumam a relação mais direta com os visitantes para evitar a exposição constante sua autoridade. Desta forma, resguarda o prestígio e o carisma de líder para as situações cruciais, quando julga necessário ou vantajoso atuar. 2. Rosa Katitaurlu, 28 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Alice Katitaurlu, 12 anos, nasceu na aldeia Sararé. 4. Tonir Katitaurlu, 2 anos, nasceu na aldeia Sararé. 5. Raquel Katitaurlu, 5 anos, nasceu na aldeia Sararé. 6. Americano Katitaurlu, 12 anos, nasceu na aldeia Sararé. 7. Aritana Katitaurlu, citado anteriormente, nasceu aldeia Sararé e vive com sua esposa na aldeia Serra da Borda. 8. Lourenço Katitaurlu, 7 anos, nasceu aldeia Sararé. 9. José Katitaurlu, recém nascido na aldeia Sararé. 10. Solevante Katitaurlu, 11 anos, nasceu aldeia Sararé. 11. Rute Katitaurlu, 6 anos, nasceu aldeia Sararé. 12. Davi Katitaurlu, 5 anos, nasceu aldeia Sararé. 13. Marcel Katitaurlu, recém nascido na aldeia Sararé. 14. Renata Katitaurlu, 51 anos, nasceu aldeia Wasusu. 15. Tainá Katitaurlu, 20 anos, nasceu aldeia Sararé. 16. Rogério Katitaurlu, 16 anos, nasceu aldeia Sararé. 17. Rafael Katitaurlu, 24 anos, nasceu aldeia Sararé. É filho de Jorge Katitaurlu, falecido em conflito com garimpeiros que invadiram a terra indígena. Jorge era irmão de Américo, que casou com a viúva do irmão e adotou seus filhos, os quais já o chamavam de pai pela aplicação do sistema terminológico do parentesco Katitaurlu. 18. Marino Katitaurlu, 28 anos, nasceu aldeia Sararé. Vive na aldeia Serra da Borda e é um dos líderes jovens que mais enfatiza a necessidade da conclusão do 99

processo de regularização da terra indígena Paukalirajausu. Nesse sentido, parece ser uma espécie de preposto de Américo na aldeia Serra da Borda, com a função estratégica de ficar próximo da terra reivindicada. Reclama que o processo está paralisado na FUNAI e que nenhum funcionário vem até a comunidade explicar com segurança como está o andamento do processo. Marino reclama das ameaças dos ocupantes não-indígenas da terra Paukalirajausu que, segundo ele, ameaçaria os índios que se aventuram a circular na área. Um destes ocupantes não-indígenas, que ocupa a cabeceira do córrego Piscina, região pela qual os Katitaurlu devotam especial apreço, foi apelidado de “embaçado”, gíria que provavelmente os Katitaurlu emprestaram de madeireiros ou garimpeiros com os quais conviveram e que serve designar pessoa de difícil relacionamento. É filho biológico de Jorge, falecido em conflito com garimpeiros que invadiram a terra indígena. Jorge era irmão de Américo, que casou com a viúva do irmão e adotou seus filhos (que já o chamavam de pai, pela aplicação do sistema terminológico do parentesco Katitaurlu). 19. Joanir Katitaurlu, 25 anos, nasceu aldeia Sararé. É filha biológica de Jorge, falecido em conflito com garimpeiros que invadiram a terra indígena. 20. Juliana Katitaurlu, 20 anos, nasceu aldeia Sararé. 21. Marilene Katitaurlu, 6 anos, nasceu aldeia Sararé. 22. Marlene Katitaurlu, 3 anos, nasceu aldeia Sararé. 23. Cleidiane Katitaurlu, 3 anos, nasceu aldeia Sararé. 24. Rosana Katitaurlu, 15 anos, nasceu aldeia Sararé. 25. Cleverton Katitaurlu, 5 anos, nasceu aldeia Sararé. 26. Érica Katitaurlu, 1 ano, nasceu aldeia Sararé. 27. Samuel Katitaurlu, referido anteriormente, nasceu na aldeia Sararé e atualmente vive na aldeia Serra da Borda. 28. Everton Katitaurlu, 3 anos, nasceu na aldeia Sararé.

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A segunda família é a de Moisés Katitaurlu:

Figura 20: Genealogia parcial da família de Moisés Katitaurlu.

1. Moisés Katitaurlu, 75 anos, nasceu na aldeia Sararé. É o líder político de uma parentela numerosa, embora sua pretensão de representação política na aldeia Sararé seja menos ambiciosa que a de Américo Katitaurlu. Moisés fez um longo discurso, traduzido por Danilo. Disse que antigamente, quando Danilo nem era nascido ainda, seu pai, seus tios e avós eram vivos. Ele nasceu nas proximidades da atual aldeia Sararé e naquele tempo não tinha branco por perto: Naquele tempo tinha muito índio. Foi o pastor Gustavo que os descobriu ali: “Voou por cima e descobriu, daí veio pelo rio de barco, até encontrar. Algum índio queria matar Gustavo, daí entrou outro índio e segurou”. Naquele tempo andam nus e não tinham panela de alumínio, tampouco ferramentas de metal. Antes da panela, a chicha era feita em uma vasilha confeccionada com o tronco da árvore sawisu, conhecida como Sete Pé; enchia-se a vasilha com a mistura de água e farinha de milho e então se jogavam pedras aquecidas no fogo (pedras termóforas), chamadas ta’alusu, para provocar a fervura do líquido. Quando Gustavo chegou, teria perguntado o que os índios queriam: panela, foice, açúcar? Daí Gustavo levou os índios à cidade e “comprou tudo para amansar o índio”. Naquele tempo “a água do rio Sararé era limpinha”, como a do córrego Piscina. Os índios se acostumaram a ir a Vila Bela e um dia os pistoleiros seguiram os índios e mataram vários deles. Apenas um escapou da chacina e veio avisar os outros, que se reuniram, buscaram os corpos e se vingaram, matando também alguns pistoleiros. Daí então os brancos trouxeram malas de roupas e deixaram na estrada; os índios as pegaram para usar e ficaram todos doentes, muitos morreram: “Foi branco que trouxe doença, matou muito índio. 101

Só depois que FUNAI entrou aqui e abriu estrada que sai na fazenda. Antes da doença índio era muito. Ia em Vila Bela, matava branco e roubava ferramenta, mas como era difícil conseguir, usavam foice de madeira e machado feito com pedaços de ferro, com molas de caminhão”. Moisés se lembra também dos relatos dos antigos sobre o tempo em que os brancos trouxeram os escravos para fazer buraco (garimpo) e depois foram embora: “Garimpeiro queria entrar aqui novamente, mas Gustavo descobriu que eles estavam tomando terra do índio, avisou a FUNAI, depois veio com Ariovaldo. Naquele tempo índio matou vaca, deu briga, daí a FUNAI demarcou o Sararé. Américo já matou dois madeireiros brancos. Agora não dá pra matar mais porque já tem documento, qualquer coisa já vai preso”. 2. Eremita Wasusu, 70 anos, nasceu na aldeia Wasusu. 3. Dora Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 4. Ariana Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 5. Juliana Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 6. Roberto Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 7. Danilo Katitaurlu, 32 anos, nasceu na aldeia Sararé. Ele juntamente com os indivíduos 3, 4, 5, 6, 8, 9 e 10 são filhos de Eremita com um Simão Katitaurlu, já falecido. Com a morte do pai de Danilo, sua mãe viúva se casou com Moisés que ajudou a criar os filhos e passou a ser chamado de pai pelos filhos da esposa, costume que faz parte do modo de organização social Katitaurlu. Entretanto, Danilo veio a se casar com Elizabete Katitaurlu, filha de Américo Katitaurlu e Luiza Katitaurlu (falecida), que era considerada sua irmã classificatória, mas não parente sanguíneo. Com o casamento, Danilo reclassificou sua relação de parentesco com Moisés que deixou de ser chamado de pai e passou a ser considerado sogro. Como consanguinidade e afinidade são dois princípios organizacionais opostos, a atualização de um implica na anulação do outro. Nesse caso, a consanguinidade foi englobada pela afinidade. Com o tempo, Danilo se separou da filha de Moisés, mas continuou considerando Moisés como sogro, segundo sua explicação, “porque acostumou chamar assim”, bem como mantendo com ele uma relação tipificada como de genro-sogro. Dados como este, são de fundamental importância para a compreensão do ordenamento da vida social Katitaurlu evitando a projeção de categorias do nosso próprio sistema de parentesco sobre o sistema que eles praticam e que nitidamente opera com 102

outras categorias organizacionais e distintas lógicas classificatórias. A classificação de Moisés como sogro também amplia as chances de Danilo se colocar como referência de liderança política, pois amplia o lastro de suas relações parentais, mesmo ele já não contando com a filha de Moisés como esposa que seria o produto concreto dessa relação. 8. Danielson Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 9. Estela Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 10. Patrícia Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 11. Maria Waikisu, 65 anos, nasceu na aldeia Waikisu, em Comodoro. 12. Palita Katitaurlu, 29 anos, nasceu na aldeia Sararé. 13. Lúcia Katitaurlu, 22 anos, nasceu na aldeia Sararé. 14. Eliete Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé. 15. Raony Katitaurlu, 19 anos, nasceu na aldeia Sararé. 16. Peri Katitaurlu, nasceu na aldeia Sararé. 17. Danielsnon Katitaurlu, 32 anos, nasceu na aldeia Sararé. É casado com três esposas. Já foi morador nas aldeias PIV e Serra da Borda e acabou retornando para a aldeia Sararé, de onde novamente pretende se mudar. Entretanto, enfrenta a oposição das esposas que preferem permanecer no Sararé porque o acesso é mais fácil para os filhos seguirem estudando na cidade de Conquista D’Oeste. 18. Daiam Katitaurlu, 14 anos, nasceu na aldeia Sararé. 19. Ângela Katitaurlu, 12 anos, nasceu na aldeia Sararé. 20. Sara Katitaurlu, 9 anos, nasceu na aldeia Sararé. 21. Orlando Katitaurlu, 8 anos, nasceu na aldeia Sararé. 22. Alandro Katitaurlu, 7 anos, nasceu na aldeia Sararé. 23. Círio Katitaurlu, 4 anos, nasceu na aldeia Sararé. 24. Sanaia Katitaurlu, 29 anos, nasceu na aldeia Sararé. 25. Tatiana Katitaurlu, 8 anos, nasceu na aldeia Sararé. É filha de pai branco. 26. Daniel Katitaurlu, 5 anos, nasceu na aldeia Sararé. 27. Dani Katitaurlu, 4 anos, nasceu na aldeia Sararé.

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A terceira família é a de Danilo Katitaurlu:

Figura 21: Genealogia parcial da família de Danilo Katitaurlu.

1. Danilo Katitaurlu, 32 anos, nasceu na aldeia Sapé. Líder cujo perfil oscila entre as lideranças jovens e o modelo mais tradicional. Muito próximo de Américo (sogro), quem é casado com duas de suas irmãs, assim consideradas pelo sistema de parentesco do grupo e não por laços de consanguinidade. Foi o principal colaborador dos antropólogos no trabalho realizado na aldeia Sararé. 2. Elizabete Katitaurlu, 31 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Marcos Katitaurlu, 16 anos, nasceu na aldeia Sararé. 4. Edmilson Katitaurlu, 5 anos, nasceu na aldeia Sararé. 5. Márcia Katitaurlu, 13 anos, nasceu na aldeia Sararé. 6. Cristina Katitaurlu, faleceu após o parto na aldeia Sararé. 7. Ládia Katitaurlu, faleceu no parto na aldeia Sararé. 8. Heleno Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé. 9. Yasã Katitaurlu, 15 anos, nasceu na aldeia Sararé.

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A quarta família é a de Pedro Katitaurlu:

Figura 22: Genealogia parcial da família de Pedro Katitaurlu, sendo a parte pontilhada a que corresponde ao grupo residencial.

1. Pedro Katitaurlu, 72 anos, nasceu na aldeia Sararé. 2. Ninita Katitaurlu, 50 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Reginaldo Katitaurlu, 22 anos, nasceu na aldeia Sararé. 4. Silo Katitaurlu, falecido na aldeia Sararé. Era irmão de Américo, o que coloca as famílias ligadas diretamente a Pedro como compondo o mesmo grupo de parentes de Américo, líder tradicional de maior expressão na aldeia Sararé. Américo seria tio paralelo, patrilinear de Pedro, o que pelo sistema classificatório dos Katitaurlu corresponderia a pai. 5. Iracema Katitaurlu, 25 anos, nasceu na aldeia Sararé. 6. Yasã Katitaurlu, 14 anos, nasceu na aldeia Sararé. 7. Itamaraci Katitaurlu, 19 anos, nasceu na aldeia Sararé. 8. Jéssica Katitaurlu, 3 anos, nasceu na aldeia Sararé. 9. Cleiton Katitaurlu, 2 anos, nasceu na aldeia Sararé. 10. Vagner Katitaurlu, 3 anos, nasceu na aldeia Sararé. 11. Silmara Katitaurlu, recém nascida na aldeia Sararé. 105

12. Ilheno Katitaurlu, 19 anos, nasceu na aldeia Sararé. 13. Gabriel Katitaurlu, 3 anos, nasceu na aldeia Sararé. 14. Ricaro Katitaurlu, 23 anos, nasceu na aldeia Sararé.

A quinta família é a de Jackson Katitaurlu:

Figura 23: Genealogia parcial da família de Jackson Katitaurlu.

1. Jackson Katitaurlu, 27 anos, nasceu na aldeia Sararé. É um líder jovem muito próximo de regionais que vivem nas cidades de Conquista do Oeste e Pontes e Lacerda, considerado um dos prepostos destes agentes nas investidas em busca de retirada de madeira ilegal. 2. Estela Katitaurlu, 20 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Eremita Waususu, 52 anos, nasceu na aldeia Wasusu. 4. Simão Katitaurlu, falecido na aldeia Sararé.

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A sexta família é a de Roberto Katitaurlu:

Figura 24: Genealogia parcial da família de Roberto Katitaurlu.

1. Roberto Katitaurlu, 26 anos, nasceu na aldeia Sararé e é irmão de Danilo Katitaurlu. 2. Judite Katitaurlu, 32 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Rakechia Katitaurlu, 7 anos, nasceu na aldeia Sararé. 4. Késia Katitaurlu, 11 anos, nasceu na aldeia Sararé. 5. Micheli Katitaurlu, 2 anos, nasceu na aldeia Sararé.

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A sétima e última família é a de Saulo Katitaurlu:

Figura 25: Genealogia parcial da família de Saulo Katitaurlu.

1. Saulo Katitaurlu, 29 anos, nasceu na aldeia Sararé. Ele foi a liderança que no momento inicial dos trabalhos de campo se apresentou com mais desenvoltura nas relações com os representantes da sociedade. É enfático defensor da relação direta dos das lideranças indígenas com os representantes do empreendimento minerador para que os Katitaurlu tenham acesso ao controle e aplicação dos recursos do projeto de desenvolvimento local coordenado por Ariovaldo José dos Santos, sem a necessária intermediação da FUNAI. 2. Cecília Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé. 3. Carlinhos Katitaurlu, 20 anos, nasceu na aldeia Sararé. 4. Rita Katitaurlu, 15 anos, nasceu na aldeia Sararé. 5. Armando Katitaurlu, 50 anos, nasceu na aldeia Sararé. 6. Linda Katitaurlu, 43 anos, nasceu na aldeia Sararé. 7. Jean Katitaurlu, 1 ano, nasceu na aldeia Sararé. 8. Jurandir Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé. 9. Fernando Katitaurlu, 18 anos, nasceu na aldeia Sararé. 10. Rubem Katitaurlu, 7 anos, nasceu na aldeia Sararé. 11. Jair Katitaurlu, 6 anos, nasceu na aldeia Sararé. 12. Nahira Katitaurlu, 5 anos, nasceu na aldeia Sararé.

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Apresentados os dados históricos e etnográficos sobre territorialidade, organização social e parentesco dos Katitaurlu, serão tratadas agora, de maneira sintética, as atividades produtivas do grupo, iniciando pela agricultura, da qual obtêm a maior parte de sua base alimentar de origem vegetal. Os dados aqui apresentados sobre a agricultura se baseiam principalmente, mas não unicamente, na tese de doutorado de Prudente Pereira de Almeida Neto (2004), citada repetidas vezes, e em seu artigo Os sistemas agroflorestais dos Katitaurlu: “território dos saberes, Geografia da biodiversidade” (Almeida Neto 2004b), no qual desenvolveu os dados apresentados inicialmente em sua monografia de doutoramento. Nas visitas que realizadas à roça familiar da aldeia PIV e nas roças coletivas e familiares das aldeias Serra da Borda e Sararé, verificou-se que a agricultura ali revela o profundo conhecimento das possibilidades de manejo dos recursos de solo presentes no território tradicionalmente ocupado pelo Katitaurlu. Revela ainda o conhecimento que igualmente possuem sobre os recursos hídricos, faunísticos e florísticos das TI’s Sararé e Paukalirajausu. A distinção entre roça familiar e coletiva é proposta da seguinte forma por Almeida Neto: Roças inteiramente coletivas, localizadas mais próximo à aldeia, que abrangem em tomo de 10 ha, onde todo o trabalho e os resultados são coletivos e as Roças Familiares, de 1,5 a 5 ha de área, localizadas um pouco afastadas da comunidade, onde a derrubada é realizada coletivamente, mas o plantio e os tratos culturais são realizados pelo “responsável” pela roça (Almeida Neto 2004b:48).

Da descrição realizada pelo autor e com base em na própria pesquisa de campo realizada para este estudo, é possível identificar 3 tipos de roças: coletivas, familiares e quintais agroflorestais, conforme apresentadas nos quadros a seguir.

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Quadro 7: Tipos de roças entre os atuais Katitaurlu. TIPOS DE ROÇA Coletivas

CARACTERÍSTICAS Roças grandes para o padrão dos Katitaurlu, geralmente organizadas por um líder do grupo local, como no caso de Américo na aldeia Sararé, Mateus na aldeia Seis e Domingos na Serra da Borda. Destina-se ao suprimento dos membros da aldeia, mas também para eventuais convidados para festas, rituais ou reuniões políticas. Como é a base principal de alimentação da aldeia, está localizada a poucos quilômetros e todos os que participaram de sua confecção dispõem da prerrogativa de nela recolher alimentos.

Familiares

Roças menores que podem ficar a maior distância da aldeia. Congrega um menor número de colaboradores em sua preparação. Pode ser a opção para famílias que vivem em uma aldeia, mas não compõem politicamente com o líder principal ou que por outro motivo preferem manter maior independência. Em alguns casos pode ser um ponto de apoio para outras atividades, como, por exemplo, quando fica próxima a um acampamento de caça.

Quintais agroflorestais

É cultivada quase que exclusivamente pelos membros da família, reunindo espécies nativas destinadas a usos rituais e medicinais. Com a entrada das agências indigenistas, passaram a plantar muitas espécies exógenas, especialmente de frutíferas, como a manga, que pode ser encontrada inclusive na antiga aldeia do Mateus, próxima a aldeia Sararé. As principais espécies cultivadas nos quintais agroflorestais, embora também possam ser cultivadas nas roças, são: melancia (Citrullus danatus), abiu (Pouteria caimito), jambo (Eugenia jambo), abacate (Persea americana), goiaba (Psidium guayava), citrus (Citrus spp), cupuaçu (Theobroma grandiflorum), cacau (Theobroma cacao), manga (Mangifera indica), mapatí (Pourouma cecropufolia), biribá (Rollinia mucosa), fruta-pão (Artocarpus altilis), coco (Cocos nucifera), abacaxi (Ananas comosus) e outros.

As roças familiares e coletivas dos Katitaurlu revelam ainda a sintonia com as características climáticas e o entrelaçamento entre as feições sociológicas que emolduram a organização social do grupo, além da opção por determinadas técnicas e práticas de cultivo. Estas características também são apontadas por Almeida Neto (2004b:47) quando o autor atesta o seguinte: “A baixa densidade demográfica, aliada a um conjunto de práticas agrícolas adaptadas ao meio, faz com que a agricultura dos índios Katitaurlu seja atualmente um exemplo econômico, social e ambiental”. O sistema de cultivo agrícola praticado na TI Sararé é popularmente conhecido como agricultura de coivara. Vale ressaltar que sob este rótulo se esconde uma gama 110

variada de técnicas de manejo, que vão desde os critérios para escolha do local da roça, o sistema de corte e queima das árvores, a seleção e combinação das espécies cultivadas, o tempo de uso da roça etc. O modo de produção agrícola tradicional praticado pelos Katitaurlu e por vários outros povos indígenas é considerado sustentável do ponto de vista sociocultural e ecológico. É comum que regionais não-índios, por comodidade ou falta de recursos, adotem parcialmente este sistema, muitas vezes com resultados menos favoráveis do que aquele alcançado pelos indígenas do vale do Sararé. A mesma dificuldade em alcançar resultados favoráveis parece acontecer com certos grupos indígenas quando são levados a adotar parcialmente técnicas e recursos do sistema de produção da agricultura comercial, praticado na sociedade nacional. Exemplo disso é o uso de trator e sementes híbridas sem a devida atenção ao conjunto de procedimentos que asseguram a eficiência da agricultura comercial, tais como o modo preciso de preparação e correção do solo. Este dilema já começa a ser vivido pelos Katitaurlu com a introdução do trator e a expectativa de que ele seria o passaporte para a produção de gado ou cereais em grande escala, o que se presencia no entorno da TI Sararé ou nas viagens a locais mais distantes como Cuiabá. Constatam-se aqui um problema no que se refere à perspectiva de parte da população da TI Sararé, especialmente os líderes mais jovens, em desenvolver atividades econômicas para a geração de renda: a tentativa de reproduzi o modelo econômico de seu entorno mais próximo, como a criação de gado, o arrendamento de terras e o extrativismo vegetal. Associa-se a esta situação a idéia equivocada de acesso fácil a bens de consumo duráveis da sociedade nacional, assunto este já tratado anteriormente. Almeida Neto propôs a divisão das plantas cultivas entre cultivos anuais, perenes e plurianuais. Segundo o autor, a “agricultura tradicional” dos Katitaurlu é caracterizada por “policultivos que conformam um sistema agroflorestal” (Almeida Neto 2004b: 47). Seguindo aqui a classificação do autor, porém propondo um agrupamento das espécies um pouco diferente, consta apresentado na sequência um quadro sobre o assunto.

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Quadro 8: Classificação dos tipos de cultivo segundo a perenidade. PERENIDADES DAS ESPÉCIES Anuais

NOME DA ESPÉCIES Milho ou tsari (Zea mays), feijão-de-corda e mandioca ou atsa (Manihot esculenta).

Plurianuais

Banana ou siquin (Musa spp), mamão ou watá (Carica papaya), caráou ou puá (Dioscorea spp), taioba ou uinmam (Xanthosoma spp), batata-doce (Ipomea batatas), cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), abacaxi, urucum ou pete (Bixa orellana) e uaca (planta fornecedora de veneno para peixes) e algodão arbóreo ou nain (Gissypium sp).

Perenes

Palmeiras como a pupunha (Bactris gasipaes) e bocaiúva, e outras espécies como a castanha-do-pará (Bertholettia exelsa) e cacau (Theobroma cacao).

As espécies de cultivo anual são sempre plantadas em roças novas e colhidas apenas uma vez. Já as plantas plurianuais permitem o aproveitamento das roças por mais de um ano, embora a produtividade tenda a declinar significativamente a cada ano até que as plantas cultivadas sejam totalmente sufocadas pela regeneração da floresta. As plantas perenes, por sua vez, tendem a se confundir com a vegetação da floresta, mas os Katitaurlu identificam com facilidade os locais de antigas roças, devido à concentração de determinadas espécies e à memória de ocupação do território. Paulo Katitaurlu forneceu a informação de que a roça abandonada só é utilizada novamente depois de mais de 10 anos de repouso, quando a mata está plenamente recomposta por árvores de médio e grande porte. O tempo de recuperação é relativamente rápido porque a derrubada nunca elimina por completo as árvores maiores e sempre persiste uma rica brotação que acelera a recomposição vegetal. Nesse sentido, os dados registrados em campo corroboram registros anteriores, os quais atestam que: “A partir do 8º ano, a capoeira é considerada madura, sendo uma floresta secundária já em estágio de clímax, pronta para ser novamente derrubada, restabelecendo o processo de sucessão agroecológica” (Almeida Neto 2004b: 48). A lista das principais espécies de plantas extraídas e utilizadas pelos Katitaurlu, por meio da coleta, é também apresentada por Almeida Neto (2004b:51): açaí ou maná (Euterpe oleracea), patauá ou içan (Jessenia bataua), bacaba (Oenocarpus bacaba), jenipapo (Genipa americana), tucum ou daratichó (Astrocarium spp), paxiúba

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(Socratea exorrhiza), curare (Abuta spp), timbó ou comon (Derris negrensis) e jarina (Phitelephas macrocarpa). O conhecimento e uso de plantas certamente compõem uma lista enorme e a apresentação de trabalho detalhado exigiria um levantamento etnobotânico mais detalhado, o que não foi uma exigência apontada no Termo de Referência... da FUNAI (2008). Quanto às atividades produtivas relativas à caça e à pesca, registraram-se vários dados em partes anteriores desse relatório. Vale ressaltar que elas são de fundamental importância para o suprimento de proteínas e se constituem como complemento necessário a dieta alimentar. Nestas atividades os Katitaurlu também mobilizam conhecimentos práticos de notável eficiência, sendo a caça aos porcos-do-mato, como o como caititu e a queixada, aquela que assegura o fornecimento mais regular de carne na época das chuvas. Estas atividades estão intimamente ligadas ao universo mítico/cosmológico, com a relação necessária do caçador com os espíritos protetores dos animais. Tem ainda implicação nos processos de constituição e desenvolvimento da personalidade masculina. Soma-se a tudo isso a criação de animais domesticados exógenos, como galinhas e bovinos. A título de finalização deste segundo capítulo do relatório antropológico, reafirmam-se a importância dos dados aqui apresentados e analisados para elaboração da parte final do relatório geral dos estudos complementares. Isto porque muitos dados serão retomados e ajudarão na compreensão dos possíveis impactos do PSF/SBMM sobre a população indígena das TI’s Sararé e Paukalirajausu.

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4 PONTOS DE VULNERABILIDADE DAS TI’S SARARÉ E PAUKALIRAJAUSU E AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS

Neste último capítulo são indicados os pontos de vulnerabilidade das TI’s Sararé e Paukalirajausu, e avaliados os impactos do empreendimento minerador sobre os Katitaurlu que ali vivem. Referente à avaliação dos impactos do Projeto São Francisco (PSF), atual Serra da Borda Mineração e Metalurgia (SBMM), sobre o componente indígena buscou-se classificar esses impactos em positivos e negativos, diretos e indiretos, reversíveis e irreversíveis, os quais ocorrem a curto, médio e longo prazos, conforme é amplamente realizado em estudos ligados ao licenciamento ambiental. No que se refere aos impactos negativos, considerando que os mesmos podem ser tanto ligados à razão prática quanto à razão simbólica, ao detectá-los procurou-se apontar as respectivas medidas preventivas, mitigadoras e/ou compensatórias para os mesmos. Quanto aos impactos positivos, ao serem detectados procurou-se maximizá-los em consideração aos eventuais benefícios trazidos para o meio ambiente e para a comunidade indígena. Mas antes de tratar destes assuntos propriamente ditos, faz-se necessário ratificar aqui os resultados das pesquisas e as avaliações feitas nos Estudos dos impactos socioeconômicos e ambientais do componente indígena referentes ao Projeto São Francisco/MT (Estrada de Acesso), produzidos pela equipe técnica coordenada por Erika Marion Robrahn-González, da qual fez parte a antropóloga Cláudia Tereza Signori Franco (Robrahn-González et al. 2006). No entanto, não constam aqui os resultados de seus trabalhos porque, como dito amiúde, o estudo ora apresentado foi produzido em complementação a eles e em atendimento ao Termo de Referência... da FUNAI (2008). Significa dizer, portanto, que para compreender o presente trabalho é necessário tomar ciência dos estudos anteriormente realizados pela referida equipe.

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4.1. PONTOS DE VULNERABILIDADE Feitas as considerações preliminares, começar-se-á a apresentar algumas avaliações gerais relativas aos pontos de vulnerabilidade das TI’s Sararé e Paukalirajausu. Para tanto, concluiu-se um percurso pelo entorno das duas áreas, sobretudo da primeira, observando os locais mais afetados por atividades econômicas desenvolvidas por não-índios e os pontos que apresentam maior fragilidade. Tais pontos dizem respeito aos locais de invasões dos brancos, sobretudo de madeireiros, garimpeiros, palmiteiros e arrendatários de terras para a criação de gado. Essas observações feitas in loco permitiram visualizar e entender melhor as informações que aparecem em documentos administrativos, estudos acadêmicos e imagens de satélite. Permitiu ainda o cruzamento dessas observações com relatos a respeito das invasões do território indígena, registrados tanto entre os próprios Katitaurlu, como entre indigenistas e missionários com os quais foram feitas interlocuções. Constatou-se que os atuais pontos de vulnerabilidade das TI’s Sararé e Paukalirajausu são em sua maioria aqueles locais que já sofreram invasões feitas por não-índios no passado, sobretudo por madeireiros, garimpeiros, palmiteiros e arrendatários de terras para a criação de gado. Em parte do percurso realizado contou-se com o acompanhamento do chefe do PIV, quem na ocasião relatou o histórico das invasões e das ações que a FUNAI desenvolveu e vem realizando no sentido de proteger o patrimônio indígena. Em alguns desses lugares persistem estas práticas invasivas, mesmo com incidência menor do que ocorria no passado, como a entrada de pessoas a serviço de madeireiros, palmiteiros e de caçadores instalados no “Assentamento FUNAI”, o assentamento rural regularizado pelo INCRA. Verificou-se também que os Katitaurlu e o órgão indigenista oficial têm grandes dificuldades para monitorar as entradas dos brancos nas TI’s Sararé e Paukalirajausu, as quais juntas totalizam 75.819,52 hectares, sendo 67.419,52 da primeira e 8.400 hectares da segunda (Robrahn-González et al. 2006:37). Salienta-se, todavia, que apenas a TI Sararé está efetivamente ocupada pelos índios. Isto ocorre porque as duas áreas estão circundadas por rodovias asfaltadas e estradas vicinais, com grande fluxo de pessoas e veículos, o que aumenta o assédio dos brancos sobre os índios, especialmente os mais jovens. Este assédio tem a ver com a exploração ilegal dos recursos naturais ali existentes, principalmente madeira, ouro e pastagens para bovinos. Este é o caso das rodovias federais BR-364, que também liga Pontes e Lacerda a Conquista D’Oeste, e 115

BR-070, que igualmente conecta Pontes e Lacerda a Vila Bela da Santíssima Trindade. Acrescenta-se ainda a estrada municipal de acesso ao empreendimento minerador e as estradas vicinais que chegam às propriedades rurais que fazem limite com as áreas. No caso da Paukalirajausu, a situação é agravada pelo fato da área ainda não estar com a situação fundiária devidamente regularizada, e sequer há alguma aldeia indígena no lugar devido ao impedimento legal de os índios ocuparem a terra que está regularizada como propriedade de particulares. Por isso os recursos naturais ali existentes estão sendo deliberadamente dilapidados pelos atuais proprietários, cujos títulos de propriedade possuem – salvo melhor juízo – um vício na origem da cadeia dominial. Trata-se do fato de aquelas terras serem indígenas e por este motivo não poderiam ter sido tituladas pelo governo de Mato Grosso a favor de terceiros. Ainda sobre este assunto, apurou-se que a FUNAI providenciou a realização do estudo antropológico de identificação e delimitação da área como terra indígena, cujo relatório se encontra em tramitação interna no órgão, conforme descrito em parte anterior deste relatório. Mesmo assim, o fato é que a área permanece na posse de particulares, os quais, sabendo que o local foi considerado terra indígena e está em litígio, antecipam-se na retirada da madeira ali existente, inclusive na área de preservação permanente do córrego Piscina. As únicas áreas preservadas são as bordas da serra, cuja topografia acidentada dificulta a exploração da madeira e o desmatamento. Além do desmatamento, a ação predatória de parte dos proprietários da TI Paukalirajausu incide diretamente sobre os recursos de caça e pesca dos indígenas. Os Katitaurlu reclamam ainda que muitos trabalhadores rurais estabelecidos no “Assentamento FUNAI” caçam inclusive dentro dos limites da TI Sararé. Em toda a região, sobremaneira na TI Sararé, o monitoramento é realizado basicamente pelo chefe de posto da FUNAI, quem tem de conciliar a atividade de vigilância com outras atribuições do cargo. Esta deficiência gera reincidentes tentativas de dilapidação do patrimônio indígena com sucessivas invasões de garimpeiros, madeireiros e palmiteiros. Sempre que a situação se agrava, a FUNAI é obrigada a montar operações especiais, deslocando mais funcionários para o lugar e procurando apoio de forças policiais e até mesmo das forças armadas. Os invasores sabem que a operação dura pouco tempo e procuram se afastar da área, esperando o término das ações para fazerem novas investidas.

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Uma rápida análise da imagem de satélite das duas áreas revela que a TI Sararé constitui-se como uma espécie de ilha verde em meio a propriedades particulares ocupadas com pastagens extensivas, destinadas à criação de bovinos. Esta situação ainda persiste apesar dos impactos das constantes invasões registradas desde a década de 1980, quando a área foi regularizada. Muitas dessas propriedades privadas sequer cumprem a legislação em vigor no que se refere às áreas de preservação permanente e de reserva legal, a exemplo das matas ciliares. A análise de imagem de satélite e a observação direta feita in loco revelaram que a TI Sararé é uma a única área com predominância de vegetação nativa em meio ao entorno ocupado por pastagens destinadas à criação de bovinos. As propriedades particulares na região desrespeitaram ostensivamente a legislação ambiental, eliminando a quase totalidade das áreas que deveriam ser destinadas à preservação permanente e também às reservas legais. Disso resulta uma pressão indireta sobre os recursos florísticos e faunísticos, impedindo o fluxo de renovação dos estoques genéticos de plantas e animais, produzindo o efeito borda, que tende da reduzir a biodiversidade local.

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Figura 26: Imagem de satélite com a localização das TI’s Sararé e Paukalirajausu, organizada por Ariovaldo José dos Santos em 2009, gentilmente cedida para a realização dos estudos ora apresentados.

Durante a estadia dos técnicos em campo, os sindicatos rurais da região encontravam-se mobilizados para a realização de audiências públicas nas câmaras municipais de Pontes e Lacerda, Vila Bela da Santíssima Trindade, Nova Conquista e Conquista D’Oeste para debaterem e se oporem à aplicação da legislação ambiental brasileira. O chefe de posto do TI Sararé e o indígena André Katitaurlu participaram da audiência em Pontes e Lacerda e relataram que a revolta dos proprietários contra a necessidade de preservação é imensa, dificultando o aprofundamento da discussão sobre o tema. Esses sindicatos defendem publicamente a mudança na atual legislação para permitir a diminuição da área de reserva legal, e a regularização da situação das propriedades da região onde o desmatamento foi feito para além do tamanho permitido em lei.

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Figura 27: Faixa colocada em frente a uma antiga panificadora de Vila Bela da Santíssima Trindade, com os seguintes dizeres: “Produtor, participe da audiência pública para decidir o zoneamento em nossa região. Nos dias 26, 27 e 28 de março em Pontes e Lacerda. Maiores informações procure o Sindicato Rural de Vila Bela”.

A rodovia BR-364, que liga as cidades de Pontes e Lacerda a Conquista D’Oeste, lindeia um trecho da TI Sararé que é constantemente invadido por cortadores de palmito. Segundo informações do chefe do PIV, do indigenista Ariovaldo José dos Santos e dos próprios Katitaurlu, os palmiteiros costumam desembarcar com seus instrumentos de corte, adentrar na mata, cortar e empilhar o palmito à beira da estrada. Em horário combinado, preferencialmente à noite, um veículo estaciona nas proximidades e o palmito ilegalmente cortado é carregado. Tudo isso é feito em pouco tempo e às escondidas, o que dificulta o controle e a coerção do crime. O perfil do coletor de palmito é do aventureiro pobre, embora instigado pelo comprador do produto e pelo empreiteiro que fornece o carro e os recursos de manutenção. Não há ocorrência de conflitos diretos com os índios, e o dano registrado se constitui mais pela lesão ao patrimônio ambiental, imprescindível à reprodução física e cultural dos Katitaurlu. A mesma rodovia serve de acesso a outros pontos da área onde são praticadas outras formas de dilapidação do patrimônio indígena. Em frente à antiga fazenda Kananchuê, por exemplo, atual fazenda Anhanguera, existe uma estrada vicinal que dá acesso a um assentamento regularizado pelo INCRA, conhecido como “Assentamento 119

FUNAI”. A estrada é bem conservada e utilizada por grande número de veículos que circulam pelo lugar. Por ali também circulam alguns não-índios que roubam madeira na TI Sararé, especialmente aroeira usada na construção de cercas. Na época dos trabalhos de campo havia na aldeia PIV um lote de madeira apreendida em fevereiro de 2009 nessa mesma região. A apreensão se deu em operação realizada pelo chefe de posto com a colaboração de alguns indígenas. A visita dos antropólogos e do chefe do posto ao local, em maio de 2009, revelou que os brancos continuavam retirando madeira no local dessa apreensão, pois a carreteira aberta na floresta apresentava sinais de fluxo de caminhões utilizados no transporte das lascas de aroeira.

Figura 28: Local de entrada de não-índios para a derrubada e retirada ilegais de madeira na TI Sararé, onde em fevereiro de 2009 o chefe do PIV e alguns índios fizeram a apreensão de lascas de aroeira (UTM 220997E/8380296N). 120

A extração de madeira atualmente é pequena e restrita a pontos mais vulneráveis da terra indígena. No período compreendido entre as décadas de 1980 e 1990, os madeireiros dominaram grande parte da área e construíram dentro da reserva uma malha de estradas para escoamento da madeira. Muitas dessas estradas agora são utilizadas pelos próprios índios nos deslocamentos entre as aldeias e para outros locais dentro da reserva, mas a maior parte deles encontra-se abandonada e nelas a vegetação nativa voltou a crescer. Naquele período os índios receberam presentes em abundância, como carros, motos, antenas parabólicas, alimentos diversos e dinheiro. Tal fornecimento foi interrompido de forma brusca e violenta, pois quando diminuíram as árvores de mais fácil extração e a operação do roubo de madeiras perdeu lucratividade, os índios foram surpreendidos pela mudança de postura dos madeireiros: de amigos se transformaram em ferozes inimigos. Os madeireiros montaram uma cilada e retiraram todos os carros, motos, tratores e outros bens que tinham doado aos índios. Isso foi feito sob o pretexto de realizarem revisões ou de os trocarem por novos veículos, mas os madeireiros nunca mais retornaram com os bens prometidos. Um grupo de índios, composto por Saulo, Américo, Marino, Danilo, Elizabete, Armando e outros, foi inclusive preso por elementos encapuzados a mando de madeireiros locais e sofreu violência física. O servidor da FUNAI, Ariovaldo José da Silva, explicou que isto ocorreu em novembro de 2006 e que na época houve o espancamento de 14 índios por parte dos madeireiros e seus capangas armados. Saulo e Danilo Katitaurlu explicaram que Américo tem reclamado de que seu joelho foi ferido na ocasião e que por conta disso ele nunca mais se recuperou integralmente. Pedro Katitaurlu e sua mulher, por sua vez, conseguiram correr para o mato e escaparam das agressões. Na ocasião esse grupo de índios foi amarrado pelos madeireiros e seus cúmplices, e deixados na entrada da fazenda Kananchuê depois de os criminosos haverem tomado posse dos bens de maior valor entregues aos índios em troca madeira. Mesmo com este desfecho trágico, ainda não devidamente apurado por forças policiais, a convivência com os madeireiros introduziu duas mudanças entre os índios. A primeira diz respeito às novas necessidades de consumo, com destaque para produtos industrializados. A segunda, e talvez a mais grave, é a expectativa de que o

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fornecimento de bens de consumo seria contínuo e não requereria dos índios um esforço de produção. Exemplo disso é o sonho que algumas lideranças da aldeia Sararé alimentam em um dia poderem ter uma caminhonete, veículo que é símbolo de prosperidade econômica e poder político em uma região caracterizada pelo agronegócio. Tanto assim o foi que os índios continuam cedendo às investidas dos madeireiros, com os quais muitos deles construíram relações de amizade e aliança política. Superar estas expectativas é o grande desafio para o estabelecimento de programas de geração de renda com sustentabilidade ecológica, e que possa ter o envolvimento de toda a comunidade. Isto se deve, portanto, ao fato de prevalecer na mentalidade de muitos dos líderes Katitaurlu a máxima de que bens de consumo duráveis da sociedade nacional, como veículos automotores, podem ser adquiridos sem muito esforço e no curto prazo, da mesma forma que sua manutenção. Constatou-se ainda que a FUNAI tem encontrado grande dificuldade em coibir o assédio dos índios pelos madeireiros. Segundo informações obtidas de seus funcionários, confirmadas em caráter mais reservado por alguns índios, os madeireiros sempre conseguem cooptar algumas lideranças jovens, principalmente na aldeia Sararé, o que é feito em troca de benefícios financeiros. Estas novas lideranças atuam como prepostos dos madeireiros, monitorando os movimentos da FUNAI no controle e coerção da retirada de madeira. Valendo-se desse expediente, os índios que apóiam esses brancos dispõem de motos, celulares, relógios e outros bens de consumo, o que permite a comunicação rápida para informar os madeireiros sobre possíveis ações de vigilância da FUNAI. Dessa forma, contando com a informação prévia os madeireiros rapidamente se retiram da área, aguardando que os índios informem sobre o momento mais apropriado para retornarem à atividade de derrubada e comercialização ilícitas de madeira. Segundo o chefe do PIV, esta situação ficou patente na operação de apreensão de madeira realizada em fevereiro de 2009, quando todo o sigilo não foi suficiente para surpreender os madeireiros que fugiram rapidamente, levando a maior parte dos seus pertences e deixando apenas a madeira que não conseguiram transportar a tempo. O acesso pela mesma rodovia BR-364 favorece ainda mais a prática da atividade ilegal de arrendamento de pastagem. Trata-se de cerca de 500 hectares que antes da demarcação física da TI Sararé foram desmatados a mando do proprietário de uma

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fazenda lindeira, quem tinha intenção de se apossar indevidamente do local. Com a demarcação e desintrusão da terra, a pastagem permaneceu sem ocupação e passou a ser arrendada por uma jovem liderança da aldeia Sararé, que disse receber o valor de R$ 1,00 ao mês por cabeça de gado colocada na área arrendada. Ele informou que inicialmente o arrendamento estava previsto para 170 bovinos, mas que atualmente só existem 37. O preço muitas vezes abaixo do valor de mercado para o arrendamento de pasto está relacionado aos riscos da atividade ilegal.

Figura 29: Pastagem existente na TI Sararé e ilegalmente arrendada a um criador de gado da cidade de Conquista D’Oeste (UTM 236934E/8372335N).

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Figura 30: Gramíneas com marcas de mordidas de gado na pastagem existente na TI Sararé e ilegalmente arrendada a um criador de gado (UTM 236934E/8372335N).

Figura 31: Estrume de bovino na pastagem existente na TI Sararé e ilegalmente arrendada a um criador de gado (UTM 236934E/8372335N aprox.).

Caso essa área arrendada pudesse ser usada pelos Katitaurlu para a criação de gado, certamente que esse tipo de situação ilegal tenderia a desaparecer. Entretanto, 124

para isso acontecer a contento é preciso de instalações adequadas, desde cercas a currais, e também assistência técnica periódica fornecida por profissionais especializados em pecuária. As jovens lideranças reclamam da ausência deste suporte para poderem criar seu próprio gado nas pastagens existentes. Ariovaldo José dos Santos expressou aos antropólogos a pretensão de ativar uma antiga estrada construída por madeireiros entre a aldeia Sararé e a área arrendada para facilitar a criação de gado da comunidade no local e o controle desta parte da reserva considerada muito vulnerável. A legislação brasileira define que toda terra indígena é patrimônio da União e as comunidades que nela vivem têm direito ao usufruto permanente, coletivo e exclusivo para explorá-la de acordo com seus usos, costumes e tradições. Esta situação está determinada nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, e também pela Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sendo que esta última encontra-se referendada pelo Congresso Nacional. O impedimento legal do arrendamento de terras indígenas foi ainda confirmado em recente decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entretanto, em muitas situações o Estado encontra limitações de aparelhamento para se fazer presente e cumprir o ordenamento jurídico, conforme foi atestado na TI Sararé. As atividades de dilapidação da terra indígena, especialmente pelo garimpo, corte de madeira, extração de palmito e arrendamento de pasto, caracterizam atividades ilegais facilitadas pela ausência ou ineficácia das instituições do Estado Brasileiro no cumprimento de atribuições que lhes são estabelecidas em lei. Não fazem parte, pois, dos usos, costumes e tradições dos Katitaurlu, além de confrontarem as leis do país, devendo ser coibidas. Por meio de uma pesquisa realizada na Internet, constatou-se que na Justiça Federal em Mato Grosso tramitou uma ação de indenização por danos materiais relativos à extração ilegal de 300 m3 de mogno e cerejeira da reserva indígena Sararé. Neste processo a Comunidade Indígena Katitaurlu da TI Sararé, a União e a FUNAI foram autores e o madeireiro Sebastião Bronski Afonso, réu. Em 16/05/2007, por meio do Acórdão nº. 2000.01.00.121009-8, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, os magistrados por unanimidade deram ganho de causa aos índios, à União e à FUNAI. Na verdade, a Justiça Federal negou a apelação civil do réu e confirmou a sentença pronunciada no ano de 2000. O relator do acórdão foi o juiz federal Ávio Mozar José 125

Ferraz de Novaes, por meio da qual o referido cidadão foi condenado pela prática de receptação de madeiras extraídas ilegalmente do interior da Terra Indígena Sararé e a reparar os danos materiais causados à comunidade Katitaurlu (cf. Acórdão Nº 200.01.00.121009-8 de Tribunal Regional Federal da 1ª Região, de 16 de maio 2007). Sebastião Bronski Afonso é conhecido regionalmente como um fazendeiro que tem grande poder político e econômico, cuja riqueza adquirida também adveio da exploração de madeira e criação de gado em Mato Grosso. Ele é apontado como um dos principais madeireiros que causaram danos materiais e morais aos Katitaurlu do Sararé, de quem muitos indígenas temem em falar para não serem vítimas de represálias. No caso da população Katitaurlu, ainda que constatada a conivência e a participação de algumas lideranças mais jovens com esses atos ilegais, o que torna a situação mais complexa do ponto de vista social e político, é preciso frisar que nem toda a comunidade concorda com a situação. São muitos os descontentes e críticos dessas práticas, tanto idosos como Domingos Katitaurlu, da aldeia Serra da Borda, quanto jovens como Paulo Katitaurlu, da aldeia PIV. Eles demonstram ter consciência de que os prejuízos às famílias indígenas são bem maiores que os eventuais benefícios momentaneamente proporcionados por presentes ou propinas oferecidos por madeireiros. Esta situação de conflito de perspectivas em relação ao uso do patrimônio indígena se expressa principalmente entre diferentes gerações de Katitaurlu. Tal situação foi veiculada pela imprensa mato-grossense e nacional, conforme se verifica na matéria Surgimento de novos líderes cria “briga” entre gerações, divulga pelo jornal Diário de Cuiabá em 04/11/2001, e disponível no sítio eletrônico do Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org.br): Tradicionalmente, numa aldeia nambikwára, quem chefia e decide são os índios mais velhos. Mas na reserva Sararé, a partir do contato com o homem branco, lideranças mais jovens começaram a se despontar e a manifestar um tipo de dissidência. Enquanto os mais velhos mantêm íntegros os traços culturais da etnia, como a língua, a coleta de alimentos e as relações de trabalho, os jovens procuram aprender as coisas do branco, como dirigir um carro ou falar o português. Mesmo depois da chegada da ONG Missão Cristã Brasileira às aldeias, por exemplo, os mais velhos continuam a andar nus pela reserva, e das mulheres de mais idade a igreja conseguiu apenas fazer com que elas usassem calcinhas. Os mais jovens, no entanto, passaram a usar calça jeans e camiseta. Como a relação com os brancos é hoje um ponto crucial à sobrevivência dos nambikwára – e os mais jovens acreditam que podem ser os melhores interlocutores com os que vêm de fora – uma certa desunião se instalou na reserva. “Os velhos têm que fazer coisas de velho. Deixar a gurizada nova defender o povo.

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Os velhos estão teimosos, têm cabeça dura”, diz Danielsu Katitaurlu, de 23 anos. “Nós, os velhos, já apanhamos muito, sabemos que madeireiro é safado. Só as crianças ainda não perceberam, porque têm cabeça dura”, responde Pedro Katitaurlu, 65 anos. A esperança da Funai é que, ao se casarem, os jovens dêem mais importância à coletividade, já que cada índio tem às vezes três ou quatro esposas para cuidar. Segundo ele, todos os projetos comunitários devem ser muito conversado com todos os índios, para que possam dar certo. “Assim, os mais velhos continuarão a decidir, num semblante de sabedoria, e os mais jovens serão a força que vai levar o povo para frente”, resume Prudente Pereira [Prudente Pereira de Almeida Neto] .

A FUNAI e mesmo o Ministério Público Federal – que também tem como atribuição constitucional defender os direitos das comunidades indígenas – devem atuar no sentido de reverter esta situação, informando a certas lideranças indígenas sobre a ilegalidade de suas ações e as implicações penais que delas podem decorrer. Ao mesmo tempo devem promover um debate interno sobre a necessidade de interromper o ciclo de exploração irracional e predatória dos recursos ambientais existentes na reserva. Caso contrário, os mesmos recursos tenderão a desaparecer nos próximos anos e isso trará consequências nefastas para as próximas gerações dos Katitaurlu, a exemplo do que ocorreu com outras comunidades indígenas no Brasil, como é o caso dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul. A ausência da eficaz ação moralizadora e protetora do Estado brasileiro naquela região sempre causou sérios prejuízos para os Katitaurlu. Este é caso das providências de última hora tomadas para a demarcação da TI Sararé, na década de 1970, quando veio à tona na mídia nacional e internacional o escândalo do genocídio que os índios estavam a sofrer no vale do Sararé. Percebe-se então que o complexo problema atual da conivência de algumas lideranças jovens com os dilapidadores dos recursos da reserva indígena tem a mesma origem: durante muito tempo, mesmo depois da terra demarcada, as instituições do Estado brasileiro não conseguiram proteger a área e deixaram os índios recém contatados, que mal dominavam a língua e os códigos da sociedade nacional, à mercê de aventureiros inescrupulosos e gananciosos. Esses aventureiros, que viam na dilapidação do patrimônio indígena uma maneira de enriquecimento fácil, proliferam na região com o avanço das frentes econômicas que ali chegaram a partir da segunda metade do século XX. Sua prática de assediar os índios para deles tirar proveito foi marcante em vários momentos nas décadas de 1970, 1980 e 1990. Esta situação chegou a ponto de haver momentos em que a reserva indígena Sararé foi literalmente dominada por levas de 127

madeireiros e garimpeiros, sendo que estes últimos também se valeram de estratégias semelhantes para assediar e cooptar lideranças Katitaurlu para depois dilapidar a área. Esses contatos frequentes e intensos dos índios com madeireiros e garimpeiros estimularam a criação de um habitus de interação que se expressa no português falado pelos Katitaurlu e em vários estilos comportamentais. Tal habitus é combatido de forma veemente pelos professores-missionários que atuam nas escolas locais, algo que é feito com base em outras práticas civilizatórias. A esse respeito, o professor da aldeia Sararé e a professora da aldeia Serra da Borda, respectivamente Sara Barros do Nascimento e Sérgio Beck de Oliveira, informaram que a situação já melhorou muito nos últimos anos com a diminuição da presença ostensiva destes agentes externos na reserva. Além de gerarem novos hábitos pouco saudáveis aos índios, como o consumo de bebidas alcoólicas e a dependência de produtos industrializados, os madeireiros e também os garimpeiros causaram grandes impactos negativos sobre os recursos ambientais da área. Propagaram ainda a idéia de acesso fácil a bens duráveis e causaram um sério desgaste da imagem da FUNAI perante os Katitaurlu. Isto porque geralmente o órgão indigenista oficial é visto como uma instituição que não assegura aos índios o acesso a determinados bens de consumo, tampouco os autoriza para fazerem acordos com madeireiros e outros dilapidadores do patrimônio indígena para atender a essas novas necessidades. Esta situação foi assim avaliada por Almeida Neto: Da experiência anterior de convívio com os madeireiros os Katitaurlu adquiriram dependências de consumo e hábitos que não tinham antes. Como não ficaram com economia de reserva ou recurso próprio para adquirir suas novas dependências, passaram a exigir que a FUNAI garantisse a manutenção do fluxo de mercadorias e serviços que os madeireiros lhes haviam imposto. Enquanto isso, os madeireiros que foram retirados da TI Sararé, ao serem soltos da cadeia, foram invadir a área próxima, a 70 km, a TI Vale do Guaporé, fazendo ali outras alianças entre os índios, algumas no sentido de os ajudarem a convencer os Katitaurlu deixarem os madeireiros retornarem para o Sararé. As reincidências de invasores e o assédio de madeireiros sobre os Katitaurlu não parou. A fiscalização, por não ser permanente e também por não contar com a participação regular dos índios, foi ficando cada vez mais ineficiente, resultando apenas em ser paliativa; funcionando precariamente, nos poucos dias em que ficava a equipe em campo, isto é, sem competência para interromper de vez o roubo de madeira da terra indígena. Ao se afastar a fiscalização para operacionalizar nova operação na TI os madeireiros se reorganizavam e continuavam o saque de madeira, muitas vezes com acompanhamentos de índios de outras terras indígenas. Nestas, e em muitas circunstâncias da exploração dos recursos naturais das terras indígenas, o índio foi sendo usado enquanto conivente, propiciando o enriquecimento rápido do invasor e que quem nele investia. Assim que podia e

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lhe fosse conveniente, o invasor invertia o papel de provedor e passava a se o tomador de bens que antes havia passado para o índio (Almeida Neto 2004a:116). [destaques nossos]

Ariovaldo José dos Santos, por sua vez, tem motivado os índios a ocuparem pontos estratégicos da Terra Indígena Sararé, sobretudo aqueles considerados mais vulneráveis a partir da análise do histórico das invasões ocorridas nas três últimas décadas. A proposta implica em criar condições para que a comunidade possa se dividir em pequenas aldeias que passariam a ocupar os pontos mais vulneráveis. Para isso elas teriam de dispor da infraestrutura de uma rede viária para ter acesso a esses locais e para o atendimento e o deslocamento dos serviços oficiais até essas pequenas unidades de ocupação. Esta rede viária também seria fundamental para a comunicação e interação entre as aldeias. A criação das aldeias PIV e Serra da Borda já fazem parte desta estratégia que, até o presente momento, parece ser bem sucedida. Os Katitaurlu aparentemente manifestam receptividade e disposição à proposta da FUNAI de criação de pequenas aldeias, modelo que segundo as descrições etnográficas também seria compatível com o formato de seus assentamentos tradicionais, baseados entre grupos locais que tenderiam a oscilar entre 15 e 30 pessoas. Os grupos menores e maiores só surgiam ocasionalmente, quando estavam em processo inicial de formação ou quando dispunham de um líder com amplo reconhecimento político. O fato é que existem locais na TI Sararé que não dispõem de acesso interno, o que os torna ainda mais vulneráveis às invasões dos brancos. Este é o caso de uma área de pastagem localizada nas coordenadas UTM 236934E/8372335N, onde há um arrendamento ilegal para um criador de gado. Por isso a idéia do citado indigenista é justamente construir uma via de acesso a esses locais, conectando-os com as aldeias já existentes, como é o caso da Sararé. Neste caso em particular, isso permitirá que a comunidade possa ali manejar seu próprio rebanho de bovinos e terminar com esta situação irregular. As considerações apresentadas até aqui servem para se ter uma idéia da complexidade sociocultural e política que implica em avaliar os locais de vulnerabilidade das TI’s Sararé e Paukalirajausu. Tal vulnerabilidade resulta do processo de expansão das frentes econômicas, consolidado na região a partir da década de 1960. São úteis também para dimensionar os pontos de vulnerabilidade dessas áreas 129

e os eventuais impactos gerados pelo PSF/SBMM à comunidade Katitaurlu que ali vive em uma situação já bastante fragilizada do ponto de vista ambiental e social. Com base nas informações e análises apresentadas, e em complementação aos estudos produzidos por Robrahn-González et al. (2006), chegou-se à conclusão de que as TI’s Sararé e Paukalirajausu possuem vários de pontos de vulnerabilidade quanto a possíveis invasões de não-índios e contaminação de recursos hídricos. Esses pontos se referem, sobretudo, às áreas próximas a rodovias e estradas vicinais construídas em seu entorno, bem como às divisas com fazendas, chácaras e sítios de trabalhadores assentados pelo INCRA, e são apresentados na sequência. 1.

Pela rodovia BR-070 chegando até a estrada municipal de acesso à mineradora, e a partir daí até o ponto situado nas coordenadas UTM 225638E/8346039N, que corresponde ao local da porteira de acesso à Terra Indígena Sararé e ao Posto Indígena de Vigilância da FUNAI. Trata-se de um ponto de vulnerabilidade da reserva indígena no que se refere à ação de palmiteiros, garimpeiros e madeireiros, haja vista que naquela área existem alguns garimpos desativados em 1997. O próprio chefe do PIV informou que por ali também tem havido a entrada de palmiteiros. O próprio estabelecimento de um posto indígena de vigilância no lugar corrobora esta avaliação (ver locais nº. 2, 09, 10 e 80 no Quadro 4).

2.

Pela rodovia BR-070 chegando até a estrada municipal de acesso à mineradora, precisamente na ponte sobre o rio Sararé, situada nas coordenadas UTM 226022E/8343122N. Neste lugar há um pequeno bar e dali se pode chegar de barco até a Terra Indígena Sararé, em áreas onde ainda não foram construídas aldeias indígenas para a proteção e o monitoramento da reserva (ver local nº. 79 no Quadro 4).

3.

Pela rodovia BR-070 chegando até a estrada municipal de acesso à mineradora, e a partir daí aos pontos em que há pontes sobre córregos permanentes que correm para as TI’s Sararé e Paukalirajausu, como é o caso das

que

existem

nas

coordenadas

UTM

223619E/8346039N

e

222150E/8353664N. Nesses locais eventuais acidentes com cargas perigosas (produtos químicos, dejetos humanos etc.) poderão contaminar parte dos

130

recursos hídricos que correm para área onde vivem os indígenas (ver locais nº. 81 e 82 no Quadro 4). 4.

Pelas propriedades privadas que estão dentro da TI Paukalirajausu, principalmente por aquelas cuja extensão chega até o rio Piscina, onde tem ocorrido a derrubada e a retirada ilegais de madeira e a deposição de lixo na área de preservação permanente daquele curso d’água (ver locais de n°. 33, 34 e 36 no Quadro 4).

5.

Pelo trecho da rodovia BR-364 que lindeia a TI Sararé, aproximadamente nas coordenadas UTM 250420E/8360440, por onde palmiteiros têm adentrado ilegalmente na reserva para a extração do palmito de açaí e sua comercialização em fabricas da região (ver local nº. 74 no Quadro 4).

6.

Pela rodovia BR-364 até o Posto Sapé, que comercializa combustíveis, e dali pela estrada vicinal que dá acesso à aldeia Sararé, por onde garimpeiros e madeireiros podem chegar até a sede da escola municipal situada nas coordenadas UTM 241889E/8363423N. Ali eles poderão manter contato direto com os Katitaurlu, assediando-lhes de toda sorte (ver locais de nº. 38 a 50 no Quadro 4).

7.

Pela rodovia BR-364 até a estrada vicinal que dá acesso ao “Assentamento FUNAI”, em Conquista D’Oeste, chegando até o local onde há um pasto arrendado situado nas coordenadas UTM 236934E/8372335N, e a um lugar nas coordenadas UTM 220997E/8380296N. Nestes lugares alguns nãoíndios têm feito a derrubada e a retirada ilegais de madeira, sobretudo aroeira (ver locais de nº. 51 a 57 no Quadro 4).

8.

Pelas fazendas que fazem divisa com a TI Sararé e rodovia BR-364, como a antiga Fazenda Kananchuê, por aonde até anos atrás madeireiros adentravam na reserva pelas estradas por eles construídas nas décadas de 1980 e 1990. A vulnerabilidade dos pontos elencados, em especial para invasões de não-

índios, também tem a ver com a ineficácia do Estado brasileiro no cumprimento de seu papel moralizador e protetor junto à comunidade Katitaurlu do Sararé. Esta atribuição também teria que se dar pela ação do órgão indigenista oficial, a FUNAI, e de outras instituições ligadas à União Federal, como o Ministério Público Federal. Exemplo disso foi a regularização, por parte do INCRA, de um assentamento rural nos limites da TI 131

Sararé, na área do município de Conquista D’Oeste, sem preceder qualquer Estudo de Impacto Ambiental. Ocorre que hoje em dia trabalhadores assentados naquele lugar são apontados como os responsáveis por investidas clandestinas na reserva indígena para a derrubada e retirada ilegais de aroeira, madeira largamente utilizada para fazer cercas, e também para a caça de animais silvestres. No entanto, esta questão vai mais além e tem a ver, também, com um primeiro impacto negativo indireto, porém reversível, possível de ocorrer no médio e longo prazos pelo PSF/SBMM sobre o componente indígena existente em sua área de influência direta. Esse impacto e outros são tratados no próximo subitem.

4.2. IMPACTOS DETECTADOS PRIMEIRO IMPACTO O primeiro impacto detectado refere-se à atividade de mineração de ouro em si. Esta atividade embora contribua com o desenvolvimento socioeconômico da região, como a geração de empregos formais, o recolhimento de impostos aos cofres públicos e as ações sociais, também atrai pessoas de todo tipo para os municípios em seu entorno, onde desde o século XVIII tem havido a exploração de jazidas auríferas. Esta atração é algo natural em uma área onde se percebe certa prosperidade econômica. Com isso aumenta a vulnerabilidade das TI’s Sararé e Paukalirajausu, sobretudo da primeira, quanto ao assédio dos não-índios e o aumento da pressão pela exploração ilegal dos recursos ambientais ali existentes, especificamente a ação de garimpeiros de ouro no vale do Sararé. Pode-se se dizer que a presença do PSF/SBMM na região potencializa os pontos de vulnerabilidade apontados no subitem anterior. Sabe-se, entretanto, que o empreendedor controla as entradas e tem acesso exclusivo às jazidas auríferas da área onde está instalada. Isto contribui para o afastamento dos garimpeiros clandestinos de sua área, mas não impede que eles possam voltar para a TI Sararé, sobretudo quando a mineradora for desativada, como ocorreu no passado. Por isso a extensão da estrada municipal construída para dar acesso ao empreendimento Serra da Borda Mineração e Metalurgia (SBMM) deverá ser incorporada, assim que o empreendimento for desativado, a um Programa de Monitoramento, Desenvolvimento e Gestão Territorial das Terras Indígenas Sararé e Paukalirajausu. Trata-se de um programa que deverá ser implementado a título de 132

medidas compensatórias pelo conjunto dos impactos negativos gerados, potencializados e/ou maximizados pelo PSF/SBMM sobre o componente indígena, conforme está mais bem explicado adiante. Seu objetivo não diz respeito apenas à proteção física das TI’s Sararé e Paukalirajausu, mas também ao desenvolvimento de atividades econômicas sustentáveis com vistas à geração de renda e à valorização das práticas culturais tradicionais da comunidade Katitaurlu. No que se refere às atividades econômicas sustentáveis, deve-se ter claro que elas não poderão seguir o modelo econômico regional dos brancos, o qual é predominante no vale do Guaporé. Este modelo de desenvolvimento está pautado na pecuária extensiva, na agricultura baseada na monocultura de grãos para exportação e no extrativismo vegetal e mineral predatório. O desafio colocado está na busca por alternativas de geração de renda que respeitem e valorizem as práticas tradicionais dos Katitaurlu. Isto porque desde as prospecções realizadas para avaliar o potencial da área para a extração de ouro até a implantação e o funcionamento da mineradora, revitalizou-se no imaginário de parte da população não-índia da região a idéia de que ainda existe muito do metal nobre no vale do Sararé. Na verdade, parte da população local percebe os Katitaurlu de modo altamente pejorativo: bugres que constituem um empecilho para o desenvolvimento econômico da região e que estão como que sentados em grandes jazidas auríferas. Acrescenta-se a isso a potencialização da vulnerabilidade em diversos pontos das TI’s Sararé e Paukalirajausu, principalmente na primeira. Prevenir e mitigar esse impacto negativo para que a TI Sararé não venha a ter sua área novamente dilapidada por garimpeiros clandestinos requer, portanto, a concentração de esforços dos poderes públicos e privados, incluindo aqui a própria SBMM. Por isso sugere-se que a mineradora, a FUNAI, o Ministério Público Federal (MPF), os governos municipais de Vila Bela da Santíssima Trindade, Nova Conquista e Conquista D’Oeste, o governo estadual e lideranças Katitaurlu possam criar um Comitê Gestor para discutir, elaborar, aplicar e fiscalizar as ações do referido Programa de Monitoramento, Desenvolvimento e Gestão Territorial das Terras Indígenas Sararé e Paukalirajausu. Neste caso em específico, o empreendedor e cada um desses órgãos públicos poderão participar do Comitê Gestor através da indicação de um antropólogo ou de algum outro profissional de nível superior com comprovada experiência na prática indigenista. 133

Um programa desta natureza não pode ser concebido e aplicado sem a participação da comunidade Katitaurlu, quem deve ser a principal protagonista de ações voltadas para a proteção de suas terras indígenas e para isso deve contar com a orientação e o apoio da FUNAI e do MPF. O passo inicial para a realização do programa seria a FUNAI e demais parceiros da esfera governamental disporem de recursos humanos qualificados para manterem a interlocução com os Katitaurlu, conforme apontado no parágrafo anterior. Esta interlocução deve ser feita com todas as lideranças indígenas, jovens e idosos, com o propósito de construir uma compreensão do conjunto de ações a serem desenvolvidas e da importância que elas teriam para o futuro da comunidade. Recursos para esse Programa de Monitoramento, Desenvolvimento e Gestão Territorial das Terras Indígenas Sararé e Paukalirajausu podem ser destinados para a constituição de um fundo específico para o mesmo, do qual deverão participar com recursos financeiros o empreendedor, os municípios de Vila Bela da Santíssima Trindade, Nova Lacerda e Conquista D’Oeste e o governo do estado de Mato Grosso. No caso dos governos de Vila Bela e Mato Grosso, cumpre destacar que tanto o município quanto o estado arrecadam impostos relativos à Compensação Financeira pela Extração Mineral (CEFEM), uma espécie de royalty que representa um percentual do faturamento líquido de empresas mineradoras, parte dos quais poderá ser destinada a esta finalidade. Além disso, tanto aquele município quanto o de Conquista D’Oeste recebem ICMS ecológico da Terra Indígena Sararé e por este motivo também poderão destinar parte desta arrecadação específica para compor este fundo. No caso de Nova Conquista, caso este município já receba ICMS ecológico, sua participação também se dará da mesma forma. Esta proposta parte do seguinte questionamento: quando finalizarem as atividades da SBMM na região, como será feito o uso e o controle de todo o trecho da estrada municipal que dá acesso à mineradora? Esta será uma espécie de herança deixada pelo empreendimento à comunidade Katitaurlu. Por isso parte dos impostos arrecadados para os cofres públicos deve ser repassada para a constituição de um fundo para a viabilização do referido Programa. A participação dos governos municipais e estadual no Comitê Gestor desse Programa também é justificada como forma deles se inteirarem melhor da realidade

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indígena local e, consequentemente, da gradual inclusão da comunidade Katitaurlu em suas políticas públicas. Em suma, o Programa não poderá ser concebido e aplicado sem a participação da comunidade Katitaurlu – faz-se necessário frisar repetidas vezes –, quem deve ser protagonista de ações voltadas para a proteção, o desenvolvimento sustentável e a gestão de suas terras. Para isso devem contar com a orientação e o apoio da FUNAI e do MPF, assim como de assistência técnica especializada.

SEGUNDO IMPACTO Acerca de outros impactos negativos diagnosticados, deve-se explicar que a aldeia Serra da Borda é o local onde os impactos diretos da atividade de mineração do PSF/SBMM são mais diretamente sentidos. Por isso tratar-se-á do segundo impacto, o qual tem a ver com o fato da comunidade Katitaurlu residente na aldeia Serra da Borda reclamar do barulho e das vibrações provocados pelas explosões diárias partidas da mineradora. Isso diz respeito a um impacto negativo direto registrado desde o curto prazo, isto é, que teve início a partir do funcionamento do empreendimento, mas que pode ser mitigado, conforme explicado adiante. No dia 03/04/2009 os antropólogos estavam na casa de Kimã Katitaurlu, localizada próxima a aldeia Serra da Borda, e ouviram o barulho de uma explosão às 12h50min. Saulo Katitaurlu classificou a explosão como um “escândalo”, que “treme o chão”. Somente em outras conversas mantidas posteriormente foi possível identificar que os fortes estrondos são confundidos com a ação de uma entidade denominada Atasu (leia-se “Atassú”), cuja moradia é exatamente a Serra da Borda, no entorno da área da mineradora. Os missionários protestantes costumam associar esta mesma entidade ao demônio, ou chamá-lo indistintamente “espírito mau” conforme traduziu Adalberto Holanda Pereira (1983:128) e Menno Kroeker (1996:20), e assim o fazem baseado na constatação de que sua manifestação é temida pelos índios3.

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Nos estudos realizados pelo etnólogo jesuíta Adalberto Holanda Pereira (1973, 1974 e 1983), publicados na revista Pesquisas, do Instituto Anchietano de Pesquisas, de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, constam alguns mitos sobre Atasu por ele registrados entre outros grupos linguisticamente nambikwara.

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No entanto, Ariovaldo José dos Santos explicou se tratar de uma força espiritual criadora que promove transformações associadas à comunicação entre o mundo humano e o espaço das divindades. Atasu agrega a força criadora e transformadora que pode se manifestar em forma de um bicho, em uma planta na mata ou mesmo em uma pessoa. A manifestação do Atasu pode ser identificada por um estrondo e por isto sua associação com o barulho provocado pelas explosões na mineradora. Este é um assunto que pode ser mais bem entendido a partir de algumas considerações feitas por Prudente Pereira de Almeida Neto: Segundo relatos de indigenistas que residem na Reserva Indígena Sararé, quanto um índio morre, a família convida os amigos e parentes para “chorar”, seu corpo é enterrado no pátio da aldeia, mas seu espírito deve ser conduzido até um local onde ele deverá habitar. O responsável por isso é o pajé da tribo [Domingos Katitaurlu é um deles], que tem a missão de conduzir esse espírito até o local denominado “Morada dos Espíritos”. Na área existem várias casas dos espíritos, que se localizam em áreas montanhosas nas frestas da serra [da Borda]. A missão em conduzir o espírito parece ser perigosa, dentro da crença dessa etnia, por isso o pajé não a cumpre sozinho, indo acompanhado por outro pajé ou um aprendiz [como foi convidado para ser Paulo Katitaurlu]. Para os Nambiquara, o espírito pode ser bom ou ruim e a índole depende do desprendimento deste com o mundo terreno. Então o espírito de uma criança seria muito menos maléfico que o de um velho, pois esse idoso estaria muito mais ligado às coisas terrenas. Os índios crêem que, ao estar o espírito revoltado, este poderia se transformar em um ente mítico denominado “ATASSU”, um ser mutante descrito pelos índios como um animal grande sendo uma mistura de macaco e onça. Este ser seria mau, e é muito temido por eles. Os índios acreditam ainda que, ao sair para caçar (jovem ou velho), em retornar, este teria se transformado no ser mutante. Os “ATASSUS” habitariam próximo à casa dos espíritos e andariam pelas matas, causando temor, principalmente às crianças, impedindo que estas saiam sozinhas à noite (Almeida Neto 2004a:64).

Percebe-se então que a associação entre o Atasu e as explosões feitas na mineradora somente pode ser entendida em observância e respeito a uma religião indígena que marca a cosmovisão dos Katitaurlu sobre tudo que acontece ao seu redor. Ademais, quando morre alguém e o pajé conduz seu espírito até a “Morada dos Espíritos”, normalmente ouve-se um estrondo semelhante ao som de um trovão quando a viagem foi feita com sucesso, isto é, o espírito chegou a seu destino. Se isso não acontecer, provavelmente o espírito não chegou a sua morada e poderá se transformar em um Atasu. Significa dizer que embora os funerais ocorram ocasionalmente entre os Katitaurlu, as explosões na mineradora são diárias e por vezes percebidas como manifestações do Atasu.

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Segundo informações recebidas do empreendedor, atualmente o número de explosões diminuiu em relação ao que ocorriam na fase inicial de implantação da mineradora. Hoje em dia as detonações são feitas sempre no horário do almoço, por volta das 13h. Durante os trabalhos de campo, não raramente os Katitaurlu se referiram ao Atasu como um macaco de grande porte semelhante a um gorila. Por isso o citavam como sendo um gorilo, valendo-se aqui de um peculiar português índio que flexiona os substantivos de acordo com o gênero. Para os índios mais jovens a produção cinematográfica que retrata a personagem King Kong foi uma apropriada representação dos brancos sobre a imagem mais conhecida do Atasu. Na manhã do dia 03/04/2009, Samuel Katitaurlu relatou que havia dormido mal na noite passada, pois havia sonhado com o gorilo, pressentindo que alguma coisa de ruim poderia acontecer com ele ou com alguém da comunidade. Além desse impacto negativo no imaginário e no cotidiano dos indígenas da aldeia Serra da Borda, detectou-se ainda uma razão prática na avaliação que os Katitaurlu fazem dos impactos das explosões em suas atividades econômicas tradicionais: a temeridade e a suspeição de ter havido uma diminuição da caça por causa dos estrondos e das vibrações causadas pela denotação de explosivos na mineradora. Ainda que a suspeita dos Katitaurlu possua uma lógica, deve-se ter claro que é grande a ação antrópica no entorno da TI Sararé e dentro da TI Paukalirajausu, o que significa, que uma eventual diminuição da caça não pode ter um único motivo, mas um conjunto de ações ligadas à presença dos brancos na região.

TERCEIRO IMPACTO Os Katitaurlu que vivem na aldeia Serra da Borda também reclamam dos incêndios que atingem à terra indígena na época da estiagem e que vêm da direção da estrada municipal de acesso à mineradora. Trata-se de um terceiro impacto. Os índios atribuem esses incêndios ao lançamento de bitucas de cigarros por parte dos brancos que transitam por aquela via. Afirmaram ainda que antes da abertura do trecho final da estrada de acesso ao empreendimento esses incêndios quase não ocorriam. No entorno da aldeia da Serra da Borda roças foram queimadas por incêndios descontrolados em 2008, e o fogo atingiu também áreas de mata com ocorrência de 137

taquaras utilizadas na confecção de flechas, o que obrigou os índios a percorrerem longas distâncias em busca do material enquanto aguardam a regeneração da mata. A suspeição dos indígenas possui certa lógica, mas não pode ser creditada apenas à presença da mineradora na região, haja vista a existência de outros atores sociais não-índios no entorno da TI Sararé e mesmo dentro da TI Paukalirajausu, como é o caso de fazendeiros e sitiantes. Neste caso em particular, na melhor das hipóteses o empreendimento pode ser visto como elemento de eventual potencialização desse tipo de impacto.

QUARTO IMPACTO Há também de citar os impactos negativos diretos que os não-índios causam na atualidade pelo uso inapropriado do córrego Piscina, na TI Paukalirajausu, como balneário local e lugar de lazer. Estas ações constituem em um quarto impacto. Os Katitaurlu da aldeia Serra da Borda reclamaram muito do uso do antigo local de pesca denominado de Piscina como balneário de lazer por parte dos brancos. Referem-se a particulares que vivem na região, funcionários da mineradora ou trabalhadores que prestam serviços terceirizados ao empreendimento e pessoas que vivem nas cidades próximas de Conquista D’Oeste e Pontes e Lacerda. O córrego Piscina fica no interior da TI Paukalirajausu que segue na posse de particulares e é um curso d’água muito importante para a reprodução física e cultural dos indígenas. O lugar é usado como uma espécie de balneário e ali os não-índios jogam lixo e, segundo os índios, fazem até algazarras. Os Katitaurlu denunciam ainda que prostitutas têm frequentado o lugar na companhia de brancos, o que para alguns jovens é uma demonstração de incivilidade. Isto porque manter relações sexuais no mato, fora de suas casas, equivale a se comportar como bicho porque gente somente pode fazer sexo dentro de casa. Do contrário, explicam, os filhos gerados dessas relações na mata serão como os bichos. A grande revolta dos Katitaurlu quanto à presença de não-índios no córrego Piscina é porque o local tem significado religioso, como referência a uma divindade associada aos animais que vivem na água. Os moradores da aldeia Serra da Borda também disseram que os particulares que ocupam essa terra indígena costumam lançar animais mortos no córrego Piscina. Para eles, tal atitude, além o impacto negativo 138

causado ao meio ambiente, tem implicações religiosas associadas ao suprimento de animais de caça, proporcionado por espíritos que protegem os animais.

QUINTO IMPACTO O quinto impacto detectado diz respeito à possibilidade acidentes com veículos na rodovia municipal que dá acesso à mineradora, incluindo aqui o trecho aberto especialmente para esta finalidade, e suas consequências para os recursos hídricos e a população Katitaurlu da região. As fotografias a seguir retratam esta situação, sobretudo no que diz respeito a acidentes com cargas perigosas que possam afetar rios e córregos da região com substâncias tóxicas e contaminantes. Elas foram tiradas pelos antropólogos que assinam este estudo durante o trajeto que fizeram em toda a extensão da estrada municipal de acesso à mineradora.

Figura 32: Placa de sinalização indicando a presença de bovinos, porém inclinada e com vegetação crescendo em volta, antes da estrada municipal de acesso à SBMM (UTM 232619E/8325038N).

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Figura 33: Placa de sinalização caída com os dizeres “Use cinto de segurança”, localizada antes da estrada municipal de acesso à SBMM (UTM 232362E/8325579N).

Figura 34: Boiada sendo levada por peões antes da estrada municipal de acesso à SBMM (UTM 231952E/8327718N).

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Figura 35: Desnível na estrada municipal feito por ação das águas de chuva, com cerca de 50 cm de profundidade, antes do trecho aberto para acessar à SBMM. Neste trecho foi constatado o transporte irregular de pessoas na carroceria de um caminhão (UTM 231543E/8328496N).

Figura 36: Caminhão com placa “Oxidante 5.1” trafegando na estrada municipal de acesso à mineradora. Trata-se de um veículo transportando carga perigosa.

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Figura 37: Ponte sobre o rio Sararé, no início da estrada municipal de acesso à mineradora (UTM 226022N/8343122N).

Figura 38: Máquinas operadas para a manutenção da estrada municipal de acesso à SBMM e caminhão “limpa fossa” estacionado depois de retornar da mineradora.

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Figura 39: Caminhão “limpa fossa”, com placa de Pontes e Lacerda, estacionado na estrada de acesso depois de retornar da mineradora, aguardando a liberação da pista. Trata-se de um veículo transportando substâncias contaminantes.

Apontados os cinco impactos negativos detectados, tratar-se-á da gestão que a FUNAI faz dos recursos repassados pelo empreendedor, a título de antecipação das medidas compensatórias, para um projeto de desenvolvimento local. Tais recursos fazem parte de um fundo composto também por valores repassados de leilões de madeira apreendida pela justiça, conforme informou Ariovaldo José dos Santos, gestor do projeto. Abordar este assunto é de fundamental importância, pois, para a compreensão das recomendações formuladas no final deste capítulo, em observação aos impactos negativos detectados. Sobre este assunto, parcialmente introduzido no capítulo anterior, Saulo Katitaurlu se apresentou como crítico feraz sobre o modo como a FUNAI realiza a gestão dos recursos do Projeto Sararé. Segundo ele “a FUNAI quer fazer do jeito dela; não quer fazer do jeito do índio, assim não dá!”. Por um lado a crítica não pode ser entendida sem considerar as pretensões do jovem líder de ampliar a esfera de abrangência de sua atuação junto ao projeto e, em especial, o acesso aos recursos e a definição dos rumos das ações desenvolvidas. Segundo foi possível constatar pela própria observação e pelo registro de impressões feitas pelo professor Sérgio Beck de Oliveira, Saulo Katitaurlu parece ser o líder jovem que reuniria mais condições de 143

assumir uma participação mais ativa no projeto, posição esta que ele reivindica com veemência. Por outro lado, é possível identificar certa dificuldade operacional da FUNAI, órgão público que por vários problemas – desde a distância e dificuldade de acesso à TI Sararé até a ausência de técnicos capacitados que pudessem realizar o acompanhamento das ações – tem tido dificuldades em dar continuidade aos trabalhos. Durante os trabalhos de campo apareceu muito a reclamação quanto à ausência de um processo de discussões mais detalhadas sobre o projeto. Para algumas das jovens lideranças, essas discussões teriam de envolver grande parte da comunidade, seguindo o ritmo próprio de suas deliberações, para então definir com propriedade o que pode e deve ser feito com os recursos disponibilizados pelo empreendedor. Tal dificuldade estaria na origem da definição das ações que seriam contempladas pelo projeto. No que se referem às ações que estão em andamento, jovens lideranças da aldeia Sararé apontam a dificuldade da FUNAI em manter uma interlocução permanente com os índios. Muitas das ações desenvolvidas são experiências novas para os Katitaurlu e esses líderes reconheceram a necessidade da presença constante de técnicos para explicar procedimentos, esclarecer dúvidas e acompanhar o desenvolvimento das atividades. Estas dificuldades levam os líderes jovens a reivindicarem uma relação mais direta com o empreendedor que repassa os recursos para a FUNAI. Uma proposta desse tipo, embora sedutora pelo seu conteúdo democrático, deve ser avaliada com cautela pelos vícios introduzidos nas relações que os garimpeiros e madeireiros mantiveram com os índios, assunto este já tratado anteriormente. A alternativa para esta situação é a constituição de um Comitê Gestor, composto por representantes da SBMM, FUNAI, MPF, governos municipais de Vila Bela da Santíssima Trindade, Nova Conquista e Conquista D’Oeste, governo estadual e comunidade Katitaurlu. Este comitê gestor deveria se reunir na própria TI Sararé para que os membros daquela comunidade possam participar e tomar ciência das decisões e encaminhamentos relativos ao Programa de Monitoramento, Desenvolvimento e Gestão Territorial das Terras Indígenas Sararé e Paukalirajausu. Este Comitê Gestor não deve ser confundido como algum tipo de tutela ou forma de cercear o protagonismo indígena no vale do Sararé, pelo contrário. Será um grupo que, pautado pela experiência indigenista, possa orientar e assessorar os Katitaurlu na

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tomada de decisões, e fiscalizar a aplicação dos recursos destinados ao referido Programa. Percebe-se, então, que os recursos repassados pelo empreender à FUNAI, a título de antecipação de medida compensatória aos impactos causados aos Katitaurlu estabelecida na TI Sararé, têm afetado positiva e negativamente àquela comunidade. Positivamente porque com os recursos repassados têm sido possível melhor equipar o PIV e adquirir máquinas e equipamentos úteis à melhoria da qualidade de vida dos indígenas, assim como ampliar a assistência prestada a eles. Entretanto, deve-se salientar que ao longo do tempo de convivência com madeireiros e garimpeiros, alguns índios construíram a falsa idéia de poderem adquirir bens de consumo duráveis com muita facilidade e rapidez, baseado na crença de que alguns brancos teriam a capacidade ilimitada de supri-los em suas novas necessidades. Esta situação também tem a ver com a preocupação das lideranças mais jovens em participar e assumir o controle das discussões sobre a aplicação dos recursos financeiros recebidos da mineradora e sua canalização para o fortalecimento de uma situação de liderança ou vantagens econômicas pessoais. Desta forma, caso não seja realizada a reversão dessa expectativa, os recursos podem gerar danos a comunidade, reforçando um tipo de relação insustentável e que, em médio prazo, provocarão danos e frustrações, além de não contribuírem para o fortalecimento da autonomia dos Katitaurlu. Finalmente, seguem elencadas algumas outras recomendações em apreciação aos impactos negativos detectados e, também, à gestão dos recursos que a FUNAI já recebeu do empreendedor a título de antecipação de medidas compensatórias: 1. Que seja incluída a comunidade Katitaurlu das TI’s Sararé e Paukalirajausu no Programa de Comunicação Social do PSF/SBMM. Trata-se, na verdade, de uma forma de aproximação do empreendedor com o componente indígena da área diretamente afetada, fazendo-se conhecer para que não sejam criadas representações deturpadas sobre a natureza dos trabalhos desenvolvidos na região. Neste aspecto em particular, deve-se salientar amiúde que os índios muitas vezes confundem o som das explosões feitas pela mineradora com os sons que costumaram a ouvir e associar à presença de seres espirituais. Também imaginam que as escavações feitas pela mineradora podem atingir o subsolo da área onde vivem, e que ainda o empreendedor pode estar manipulando substâncias tóxicas que pode vir a envenená-los no futuro. Dirimir estas questões 145

é de fundamental importância para o estabelecimento de uma relação de confiança e solidariedade entre empreendedor e comunidade indígena. A produção e a apresentação de materiais impressos e audiovisuais informativos contribuirão para o sucesso desse trabalho. 2. Que a estrada de acesso à mineradora seja mantida em melhor estado de conservação e sinalização, evitando-se assim eventuais acidentes com cargas perigosas que possam vir a causar danos à saúde da comunidade indígena. Exemplo disso é o transporte de cargas com substâncias químicas e até mesmo dejetos humanos que, em caso de acidentes, poderão contaminar os cursos d’água que correm da serra em direção às TI’s Sararé e Paukalirajausu. A existência de um a Plano de Atendimento de Emergência contra esse tipo de acidente também é de grande relevância e crucial para prevenir e até mesmo mitigar eventuais acidentes. 3. Que funcionários da mineradora e trabalhadores vinculados às empresas que prestam serviços a ela sejam devidamente orientados a não entrarem na TI Paukalirajausu para a realização de atividades recreativas às margens do córrego Piscina. Isto deve ser feito mesmo que o processo de regularização fundiária ainda não tenha sido concluído pela e FUNAI e a área esteja na posse legal de particulares. Esta é uma medida preventiva que servirá para evitar conflitos envolvendo indígenas e não-indígenas, causando-lhes danos diversos, inclusive conflitos bélicos, e a prejudicar a imagem do empreendedor. 4. Que seja aberto um canal de comunicação mais frequente entre a FUNAI e a comunidade Katitaurlu no sentido de que sejam feitas as devidas discussões sobre os recursos recebidos da mineradora e o destino dado aos mesmos. Para efetivar tal medida será imprescindível ampliar os recursos humanos na equipe local, incorporando técnicos capacitados para realizar a interlocução com os índios. É o que se tinha a considerar.

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