(2010) \"UM POUCO DE POSSÍVEL SENÃO EU SUFOCO... \"
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LucíLlA MARIA DE SOUSA ROMÃO SORAVA MARIA ROMANO PAcíFICO (Organizadoras)
EFEITOS DE LEITURA, SUJEITOS E SENTIDOS EM MOVIMENTO
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p~
ALPHABETO IDlrolA
2010
"U
m pouco de possível senão eu sufoco ...••
Lauro José Siqueira Baldini'
Com essas palavras do filósofo francês Gilles Deleuze, traçamos o percurso deste trabalho. Sugerir, indicar, vislumbrar, talvez, um caminho possivel em meio ao panorama de certezas que atinge as ciências humanas como resultado indireto dos tempos de pouca aventura que vivemos. Resistir, seria esse o lema abandonado das linhas escritas por teóricos do porte de Louis Althusser, Michel Pêcheux. Michel Foucault, entre tantos outros? Parece-nos que sim, na medida em que tais pensadores não se contentaram com a mera descrição dos fenômenos, muito pelo contrário, sua abordagem tinha a pretensão (hoje tão malvista) de atingir o próprio fenômeno, isto é, seguindo a lição deixada por Marx, Freud e Saussure (quem se lembra, hoje, das palavras do genebrino: "o ponto de vista cria o objeto"?), trata-se de tocar o real pela teoria, produzindo uma modificação neste mesmo real pela via da prática científica. Como diz Zizek
(1994a:271 ),
, Doutor em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP,
Profes-
sor-adJunto do curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da UNIVAs. Ijsbaldini@gmail,com
Email:
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"0 objeto' do marxismo é a sociedade: porem, a 'luta de classes na teoria' significa que o tema fundamental do m3.rxlsmo é a 'força material das idéias', isto é, o modo como o mélrxismo qlJa teoria revolucionária transforma seu objeto (provoca a emergência do sujeito revolucionário etc.). Isso é análogo na psicanálise, que tampouco é simplesmente uma teOrli'Jde seu 'obJeto' (o inconsciente). senão uma teoria cujo modo intrinseco de existência implica a lransformaçao do seu objeto (através da Interpretação na cura psicanaliticjj'"
Uma visada, portanto, que vai de encontro ao paradigma da distinção radical entre sujeito e objeto, entre teoria e prática, uma volta aos anos 60/70 e ao afã de transformação do mundo. Estamos falando de tempos antigos ... de tempos de resistência.
Um corpo que resiste Todos conhecem, mesmo que seja por ter OUVidofalar, o vagabundo Carlltos, de Charlie Chaplin. Alguns certamente puderam rir dele. daquele humor Ingênuo e UtÓpiCOque pouco se vê atualmente (suas peripécias causariam riso ou enfado, hoje?). A última aparição de Carlitos, esse vagabundo. se dá no filme "Tempos Modernos", de 1936, peiicula na qual o vagabundo (agora um operário) tem um momento de loucura: exasperado pelo ritmo da máquina que deve acompanhar, "surta", e começa a executar o mesmo movimento de apertar porcas, mas agora de maneira espasmódica, sem controle. Qualquer coisa que se assemelhe a uma porca o atrai: um nariz, botões de um vestido, os mamilos de um companheiro de trabalho ... Esse espasmo mecánico, no entanto, lentamente começa a dar lugar a uma dança graciosa, na qual Carlitos, como um bailarino, sobe onde não devia, liga o que deveria ficar desligado, joga óleo no rosto de companheiros, dos chefes, do patrão .. Finalmente, ele é contido e enviado ao manicômio, não sem antes lambuzar o rosto do enfermeiro que vem buscá-lo numa ambulância.
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Outro momento, do mesmo filme, é aquele em que Carlitos apanha uma bandeira vermelha que cai de um caminhão. Ele a apanha e começa
a correr, balançando-a
para chamar
a atenção
do mo-
torista do caminhão. Em seguida, uma manifestação de operários vira uma esquina e se põe logo atrás de Carlitos que, evidentemente, é confundido
com o lider da passeata
e é preso. Primeiro, o manicômio,
depOIS,a prisão. E, na cadela, não demora para que tudo se resolva em confusão novamente:
inadvertidamente,
Carlitos consome
a cocaína
da num saleiro por um dos criminosos presos e, devidamente
deixaturbina-
do, impede uma fuga. o que lhe rende uma carta de recomendação do diretor da prisão. Não é preciso dizer que a carta de recomendação não lhe será de muita valia. pois ele insiste em não fazer o que se espera dele, nas mais diversas ocasiões.
Por fim, o último momento desta obra que quero ressaltar tem a ver com o fato de que, no momento de seu lançamento, o cinema falado já se institui. Há toda uma expectativa sobre quando o vagabundo Irá, finalmente, falar. Por todo o filme, Carlitos fala á maneira dos filmes mudos:
mexe os lábios e, em seguida,
surge um letreiro
indicando sua fala. No final, no entanto, Carlitos irá falar: contratado como garçom, em certo momento deverá cantar uma música (trata-se de um restaurante de "garçons cantores"). Ele escreve a letra da música nas mangas de sua camisa e, como era de se esperar,
ao dançar
Joga longe eSSaSmesmas mangas, ficando numa posição incômoda: deve cantar, mas perdeu a letra da música. Mas ele se sai bem, já que simplesmente o que faz é cantar uma música.. sem sentido. A expectativa dos fãs do vagabundo Carlitos não se consuma: ele não fala, canta; mais ainda, canta algo que não se pode entender. Esses momentos tos de resistência?
descritos não podem ser vistos como momen-
Essa incapacidade
do vagabundo
de estar onde
deveria, de agir como se esperaria, não configuram um modo de resistir ao aprisionamento de um certo sentido ou á falta de sentido? No entanto, tais atos de resistência não poderiam ser atribuidos á vontade de Carlitos, já que se trata mais de algo que resiste nele do que de uma resistência
conscientemente
pensada.
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Tais momentos têm similaridade com outro, este descrito numa nota de rodapé de Pêcheux: "E se a gente se dissesse que nada tem muita importância. que basta se habituar a fazer os mesmos gestos de uma forma sempre idêntica, aspirando somente à perfeição placida da máquina? Tentação da morte Mas a vida se revolta e resiste. O organismo resiste. Algo, no corpo e na cabeça, se fortalece contra a repetiçào e o nada. A vida: um gesto mais rápido. um braço que pende inoportunamente. um passo mais lento, um sopro de irregularidade. um falso movimento, a 'reconstrução', o 'escoamento', a tática do posto: tudo o que faz com que, nesse irrisório quadrado
de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de tra-
balho. haja ainda acontecimentos. mesmo minúsculos, que haja ainda um tempo, mesmo monstruosamente
estirado. Esse desajeito, esse
deslocamento supérfluo, essa aceleraçao súbita, essa solda fracassada, essa mão que retoma a vida que se liga. Tudo o que, em cada um dos homens da cadeia. urra silenciosamente: 'Eu não sou uma máquina'I". (L1NHART (1978. apud PÉCHEUX. 198h3D613D7).
Lá, um vagabundo transformado
em operário passa do espas-
mo ao balé; aqui, um intelectual convertido em operário se dá conta de como seria fácil entregar-se
ao ritmo incessante
do trabalho, "á
perfeição plácida da máquina". Em ambos os casos, algo resiste, uma coisa falha, algo não fica em seu lugar, É como se, por mais que se quisesse submeter O corpo á máqUina, este resistisse, mesmo que na forma de uma loucura própria. Trago-lhes dois exemplos que falam do corpo, mas seria preciso indicar de que corpo se fala. Poderíamos que o corpo, nos casos que apresentei,
pensar, por exemplo,
resiste como se fosse algo
ínerente ao orgãnico (aliás, é a impressão que o texto acima nos dá, quando fala que "o organismo resiste"), quando na verdade é justamente porque se trata de um corpo, e não de um organismo, resistência.
que há
Todos já viram aqueles ratinhos brancos que ficam an-
dando numa roda dentro de suas gaiolas. Nunca chegam
a lugar
nenhum, e não parecem se preocupar muito com isso. Também te-
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mos nossas rodas, por exemplo, as esteiras. Em geral, ou ficam abandonadas em um cômodo, a servir de decoração, ou as pessoas de fato as usam, mas precisam se cercar de cuidados, ouvir música, conversar,
marcar cuidadosamente
as calorias queimadas
ou a dis-
tãncia percorrida, para se certificar de que não são ratinhos andando sem chegar a nenhum lugar. Ora, talvez tenhamos ai uma idéia da separação entre corpo e organismo, na medida em que as funçôes corporais, por assim dizer, precisam estar ancoradas num sentido, mas num sentido que não se feche demasiado,
guardando
"um pouco de possivel".
Então, nos
exemplos de Carlitos e do intelectual, não é o organismo que resiste, mas o corpo, na sua busca de sentido, na sua resisténcia á mortificação do nada. Por outro lado, o excesso de sentido também leva a esse mesmo nada, o que faz com que o corpo se rebele contra o quadrado do sentido fechado. Do ritmo marcado e regular do trabalho Carlitos faz surgir o balé, por exemplo. Vemos, dessa maneira, que falar em corpo é falar em linguagem, Já que é justamente corpos
em vez
por sermos seres de linguagem que temos
de organismos.
É Justamente,
como
diz Henry
(1977:188), retomando o pensamento de Lacan, por sermos atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação, que nos separamos do organismo
e da necessidade
para o campo do corpo e do
desejo.
Os corpos da anãlise de discurso Em Anãlise de Discurso, podemos falar em corpo no sentido de um "corpo textual", isto é, de uma unidade construida pelo sujeito, um texto; podemos falar também de corpus, ou seja, do material que será submetido á análise; e também podemos nos referir ao corpo propriamente dito; em qualquer caso, estão em jogo um limite e uma unidade. Tal limite e unidade são sempre frágeis em sua construção. O texto, como nos mostra a Análise de Discurso, é um efeito de determinações
lingüistico-históricas
que, por sua vez, produz uma 61
evidência de fechamento, apagando, nesse processo, sua própria constituição, Como diria Foucault (1971 :9), 'em toda sociedade a produção do discurso ê ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuida por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temivel materialidade'.
Pêcheux
(1982a:302) deixa bem claro que, para diferenciar tais procedimentos de controle de discurso de uma pura determinação direta semelhante a uma domesticação de animaiS (nas suas palavras, ê preciso retificar o biologismo
larvado de Foucault) ê precIso considerar que estão
sempre presentes o Inconsciente e a Ideologia, estruturas que têm como traço comum '( ..,) o fato de elas operarem ocultando sua própria existência, produzindo uma rede de verdades 'subjetivas' evidentes, com o 'subjetivas' significando aquI não que afetam o sujeito, mas 'em que o sujeito se constituI'" (PÊCHEUX,1982b:148), E, ainda é Pêcheux quem afirma, esse processo nunca é exitoso, algo sempre falha, um 'assuJ8itamento perfeito' é impossivel. No caso do corpus, como nos ,ndica Orlandl (2001), não se trata de justapor uma teoria a um material que se dá a ver, mas em conSiderar que no próprio movimento de constituição do corpus já se está teorizando, o que coloca o analista de discurso numa posição ética de ter que, desde sempre, indicar o lugar de onde constrói o corpus, 'StO é, expor seu olhar, marcar sua posição, ou para usar uma expressão
antiga, tomar partido, Nesse sentido, a Análise de Discurso é uma prática, o que nos impede de vê-Ia como uma teoria que tentaria se apropriar de um dado objeto. Quanto ao corpo, não é ele justamente o lugar em que tais opacidades se mostram como a mais pura transparência? Não é um fato subjetiVO comum o sentimento de que temos um corpo, com O acento no ter? De maneira geral, não sentimos todos que estamos dentro de nossos corpos?
E
com estranheza
que, em certos momen-
tos, sentimos que algo vai mal com nosso corpo, como se aquela unidade que ele nos dá subitamente
se desfizesse
e ele se mostrasse
em sua materialidade de carne atravessada pelo Significante? Lacan, em sua conceituação do "estádio do espelho', irá falar Justamente
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desse momento de captura do sujeito por uma imagem que lhe presentifica uma totalização e uma unidade: "( ...) o estadia do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiênCia para a antecipação - e que fabrica para o sujeito. apa· nhado no engodo da identificação espacial. as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada totalidade
que chamaremos
assumida
de uma identidade alienante,
do corpo até uma forma de sua
de ortopédica
rígida todo o seu desenvolvimento
- e para a armadura
enfim
que marcará com sua estrutura
mental". (LACAN, 1949:96).
Do excesso de sentido (a totalidade ortopédica) à falta de sentido (o corpo despedaçado). Como quis sugerir, o limite e a unidade buscados pelo texto, pelo corpus e pelo corpo são sempre um gesto fracassado
que se
deve relançar a cada vez para encontrar, de maneira evanescente, uma estabilidade
provisória. Para o que nos interessa aqui, seria im-
portante dizer do que se encontra no final de uma operação de análise de discurso: uma vez feita a operação que "consiste em desconstruir qualquer identidade substancial,
em denunciar,
por trás de sua
aparéncia sólida, um jogo reciproco de sobredeterminação
simbólica;
em suma, dissolver a Identidade substancial numa rede de relações rliferenciais,
não-substanciais·
(ZIZEK, 1990: 164), chegamos
ao real
do processo de significação, ao jogo entre o real da língua e o real da história. que faz com que as palavras, independentemente
da vonta-
de dos sujeitos, se articulem num sentido (e não em outro). Aqui, no entanto, ainda é preciso avançar. Se ao desconstrulrmos a identidade, qualquer identidade, como um construto lingüisticoIdeológico, chegamos
ao real do processo de significação
- ao real
da lingua conjugado ao real da história, ainda é precIso definir o que cada um destes termos indica.
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Não há corpo no real? Se o sentido nunca se fecha (e se nunca está de todo aberto, pois há uma determinação
dos processos
de significação),
possamos dizer que o que caracteriza o real é justamente
talvez
essa fratu-
ra, essa fissura entre o completo e o incompleto, entre o determinado e o que escapa á determinação. Em Saussure,
por exemplo, encontramos
a ordem própria da
língua, o simbólico como instãncia puramente diferenciai, sem substãncia, mas que encontra seu ponto de ancoragem (provisória) justamente no sentido. Do lado da história, o conceito de luta de classes não indica Justamente o campo de uma dissimetria radical que impede o fechamento do corpo político - cuja resposta mais desesperada é o universalismo
burgués? Quanto ao sujeito, não se trata da mesma
operação de escamoteamento pelo mais profundo
da divisão subjetiva que se expressa
desconhecimento
de si mesmo, tal como nos
revela a psicanálise? A resistência,
por isso mesmo, não se cansa de insistir, seja na
forma de um "resto" da lingua que escapa a qualquer teorização, de certo "mal-estar" do sUjeito que recusa a solução proposta do "bemestar" tão em moda, ou de gestos protagonizados
por atores politicos
que resvalam do debate político autorizado. Assim, o campo do sentido é atravessado impossibilidade,
por um fechamento
que só torna mais visivel sua
isto é, a cada tentativa de totalização,
fica mais e
mais marcado o próprio limite dessa mesma tentativa, pois esse gesto de "fazer corpo", de tentar totalizar, não recebe do Real sua sanção: o real da língua, o real da história e o real do inconsciente
estarão
sempre aí, para nos lembrar de que o sentido é sempre falho, sempre pode ser outro, como tão bem nos demonstra a análise de discurso.
Epílogo Sendo assim, todos esses corpos se movem no limite tenso entre um demais de sentido e um sentido de menos. Mas é preciso ter-
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minar com uma ressalva: a de que o sentido na justa na medida é Impossivel. Isso faz dos corpos, corpos sempre frágeis (pois ancorados numa estabilidade precária e movediça) e maciços (pois uma vez engendrado o sentido não se pode desfazê-lo sem percalços). O nome desse movimento
entre o sentido estabelecido
e a
possibilidade de um novo sentido é política. E é ISSOque configura de maneira especifica justamente ber que "o sentido
o campo da Análise de Discurso, sa-
sempre pode ser outro", como afirma Orlandi
(199664).
Referências
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(1994b) Las metástasis
dei goce Buenos Aires: Paid6s, 2003.
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