2011 Charles Frederick Hartt e a \"Evolução do Ornamento\"

June 29, 2017 | Autor: Daniela Kern | Categoria: Art Theory, Historiography (in Art History), 19th-Century Art
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CHARLES FREDERICK HARTT E A “EVOLUÇÃO DO ORNAMENTO”

Daniela Pinheiro Machado Kern

Porto Alegre, agosto de 2011

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CHARLES FREDERICK HARTT E A “EVOLUÇÃO DO ORNAMENTO”

Daniela Pinheiro Machado Kern

.1 O ORNAMENTO: MEDIDA DE EVOLUÇÃO CULTURAL

A ornamentação, pelo menos desde a Exposição Universal de Londres, era um tema de interesse público não apenas na Europa, como já vimos no subcapítulo 2.2, mas também nos Estados Unidos. Em 1872 é publicado, por exemplo, o primeiro catálogo americano de compras por correio, o Montgomery Ward Mail Order. Tal catálogo, segundo Jonathan Woodham, reflete “uma considerável predileção do público por produtos altamente decorados, particularmente na esfera do mobiliário doméstico [...]”, um “generalizado desejo por parte dos consumidores de estilo efêmero ou ornamentação historicizante”.1 Roupas, artefatos domésticos, decoração de ambientes privados e públicos, são várias as superfícies que se recobrem de ornamentos inspirados nas mais diversas épocas e culturas. Essa verdadeira obsessão pelo ornamento será apresentada e analisada, entre outros, por Charles “Karl” Akers (1835-1906), em um artigo publicado na Atlantic Monthly, em 1872. Akers, colaborador da revista e conhecido escultor em Portland, em seu Common ornament principia pelo elogio ao ornamento e pela justificativa de sua necessidade: É claro o bastante que a tendência a adornar não pode ser ignorada em qualquer esquema prático de civilização. Não importa o quanto de 1

WOODHAM, Jonathan M. Twentieth-Century Design. New York: Oxford University Press, 1997. p. 17-18

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ornamento possa precisar de poda, esse é um ramo normal da atividade humana. O mundo sem ele seria um espetáculo desagradável e muito mais monótono. A arte cria muita variedade, desenvolve muita simpatia. Imagine Roma, Atenas, Paris, representando apenas interesses úteis. A arte individualiza e ao mesmo tempo torna a unidade possível. Ela estabelece uma ponte 2 entre os diferentes tempos.

Akers, no entanto, dedica a maior parte do artigo aos excessos do consumo do ornamento industrial, como deixa bem claro no trecho seguinte: Móveis domésticos, mesmo do tipo mais barato, são cobertos por uma correspondente ornamentação barata. A manufatura é tão uniforme a esse respeito que o comprador não tem escolha [...]. É difícil encontrar qualquer artigo feito simplesmente da melhor maneira a fim de responder a seu uso; tudo é pintando, estampado, moldado, fundido ou tecido com algum tipo de design. Tapetes lisos e papeis 3 de parede lisos são quase desconhecidos.

Akers batizará o excesso decorativo que encontra nos objetos e trajes de todas as classes sociais de “mania pelo ornamento”. Trata-se de um trecho relativamente extenso, mas que merece ser lido na íntegra: O reverso da medalha, onde a mania pelo ornamento é vista nas roupas das classes mais humildes, é ainda mais triste; a pobre elegância da mulher trabalhadora traz um páthos que desarma a crítica. O cientista social não pode ignorar o amor ao ornamento, quando ele considera que fome, frio ou desgraça podem ser representados pelos acompanhamentos das roupas de uma costureirinha. Se aqui a decoração inútil é apenas o resultado do orgulho apropriado, de que se trata o extravagante luxo dos ricos? Eles impõem o exemplo. Que indulgência de tola vaidade é mostrada na vestimenta dos empregados, ataviados com librés ornamentais! [...] Adornos pessoais extravagantes estarão entre os últimos barbarismos a ceder à reforma. Aqui, como nos costumes e religião, a 4 saudável simplicidade vem em último lugar.

Há pelo menos três pontos que merecem destaque aqui. O primeiro deles é o lamento pelo fato de que todas as classes estejam se ornamentando excessivamente. David Summers chama a atenção para a função de distinção social que o ornamento historicamente cumpria, em inúmeras culturas: 2

AKERS, Charles. Common Ornament. The Atlantic Monthly. A Magazine of Literature, Science, Art and Politics, v. XXX, n. CLXXXII, p. 653-661, Dec. 1872. p. 654. 3 AKERS, Charles. Common Ornament. The Atlantic Monthly. A Magazine of Literature, Science, Art and Politics, v. XXX, n. CLXXXII, p. 653-661, Dec. 1872. p. 654. 4 Ibidem, p. 656.

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Tipo e grau de ornamentação tipicamente torna a hierarquia social clara, em roupas e acessórios, e nos espaços sociais nos quais todas essas distinções são evidentes como parte do estabelecimento de 5 relações de status e poder.

Em alguns casos sua simples existência poderia marcar essa distinção, como quando classes mais poderosas tinham condições de consumir ornamentos em bem maior escala, em um ambiente no qual ele era raro e de alto custo. Com a industrialização e com a produção em massa de bens de consumo o ornamento passa a ser um elemento distintivo, antes de mais nada, pela qualidade dos materiais em que é aplicado, e pela qualidade de seu design. O segundo ponto que destacamos na crítica de Akers à mania pelo ornamento é a associação entre ornamento e “decoração inútil”. A crítica geral do ornamento como excesso sem utilidade já estava presente, por exemplo, em escritores da retórica clássica. Eles muitas vezes associavam o excesso ornamental, mais uma vez segundo Summers, ao “oriental” e “asiático”; os escritores renascentistas, por sua vez, associavam o ornamento excessivo ao gótico e a seus bárbaros artistas.6 Podemos aqui, portanto, passar de imediato a nosso terceiro ponto de destaque: Akers menciona que ornamentos pessoais excessivos são barbarismos, retomando assim argumentos da crítica clássica e da renascentista. Todo esse ambiente de culto e crítica ao ornamento era familiar a Charles Hartt. Ele, antes de mais nada, sem dúvida conhecia a Atlantic Monthly. Fundada em 1857, a revista de orientação progressista, abolicionista, darwinista, apoiava ainda a causa das mulheres e contava com textos de escritores como Hawthorne e Henry James.7 Agassiz colaboraria assiduamente com a revista nas décadas de 1860 e 1870, e em 1871 uma resenha muito

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SUMMERS, David. Real Spaces. World Art History and the Rise of Western modernism. New York: Phaidon Press, 2003. p. 98. 6 Cf. SUMMERS, David. Real Spaces. World Art History and the Rise of Western modernism. New York: Phaidon Press, 2003. p. 101. 7 Cf. SEDGWICK, Ellery. The Atlantic Monthly 1857-1909: Yankee Humanism at High Tide and Ebb. Boston: University of Massachusetts Press, 1994.

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elogiosa ao livro de Hartt é ali publicada.8 O filho de Hartt, Rollin, também haveria de se tornar colaborador assíduo da revista anos mais tarde. Finda a Expedição Morgan Hartt irá mergulhar no universo da ornamentação “bárbara” a partir do momento em que retorna a Ithaca, em janeiro de 1872.9 Sua abordagem, como veremos, irá tocar e ao mesmo tempo diferir em muitos aspectos dessa visão polemizante apresentada por Akers nas páginas da Atlantic Monthly. O que ambos manterão em comum, além da preocupação

com

alguns

pontos-chave

(como

o

uso

“bárbaro”

da

ornamentação e a discussão sobre a utilidade do ornamento) é a busca da explicação para o desejo moderno de ornamentar, e a intenção de atingir, através de seus textos, um amplo público leitor. Entre 1872 e 1875 Hartt irá trabalhar nos resultados da expedição ao Amazonas. Suas impressões e seus projetos relativos especialmente ao material arqueológico encontrado na expedição são relatados no Preliminary Report of the Morgan Expeditions, 1870-71, publicado em 1874. As dificuldades de realização da pesquisa em meio aos tantos compromissos universitários são logo apresentadas: “Desde meu retorno do Amazonas, a elaboração dos resultados da expedição progrediu tão rapidamente quanto o permitiram meus deveres na Universidade e a falta de fundos”.10 Ainda assim, a importância que Hartt dava ao estudo das antiguidades e seu entusiasmo com o trabalho também são bastante enfatizados no trecho seguinte, que apresenta igualmente uma mudança de planos no que diz respeito à forma de apresentação de seus resultados de pesquisa:

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Cf. Review: Thayer Expedition. – Scientific Results of a Journey in Brazil. By L. Agassiz and his Travelling companions. Geology and Physical Geography of Brazil. By Ch. Fred. Hartt, Professor of Geology in Cornell University. Boston: Fields, Osgood & Co. The Atlantic Monthly. A Magazine of Literature, Science, Art and Politics, v. XXVI, n. CLVIII, p. 763-764, Dec. 1870. Na p. 764 podemos ler uma avaliação extremamente positiva à obra de Hartt: “Sobre a obra como um todo não é demais dizer que é a mais valiosa contribuição já feita para o desenvolvimento da história física do nobre Império do Brasil”. 9 Cf. RATHBUN, Richard. Sketch of the life and scientific work of Professor Charles Frederic Hartt. Proceedings of the Boston Society of Natural History, v. XIX, p. 338-364, 1878. p. 347. 10 HARTT, Charles Frederick. Preliminary Report. In: _____. Preliminary Report of the Morgan Expeditions, 1870-71 – Report of a Reconnoissance of the Lower Tapajos. Bulletin of the Cornell University (Science), v. 1, n. 1 e 2, 1874. p. 6.

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Como foi necessário que eu me devotasse, antes de mais nada, à descrição das coleções de antiguidades, não pude fazer mais do que supervisionar o trabalho nos outros departamentos.O material arqueológico era tão rico que era muito difícil de preparar. Novas coleções estavam constantemente chegando, e o que eu pretendia que fosse um breve relatório sobre as antiguidades do baixo Amazonas, acabou se tornando um grande volume sobre as antiguidades de todo o Império. Nessa obra, agora bem adiantada rumo à conclusão, propus não apenas figurar e descrever os objetos que chegaram às minhas mãos, tais como implementos de pedra, cerâmica, remanescentes humanos, etc., mas apresentar relatos de 11 sambaquis, estações funerárias, inscrições na pedra, etc.

Alguns temas concernentes à cerâmica indígena encontrada em Marajó chamam especialmente a sua atenção nesse período: as técnicas utilizadas pelas antigas ceramistas marajoaras na construção de suas peças, e a ornamentação dessa cerâmica. Sobre o primeiro tema Hartt irá escrever o artigo Notes on the manufacture of pottery among savage races, que seria publicado pela primeira vez em inglês, no Rio de Janeiro, em 1875. 12 O roteiro de investigação é por ele apresentado no Report, em poucas linhas: Em conexão com meus estudos da cerâmica indígena do Brasil, investiguei cuidadosamente os modos de manufatura da louça de barro empregados entre as raças selvagens mundo afora. Tracei o método de construir um vasilhame por meio da confecção de um rolo de argila, dos Estados Unidos ao Chile, e, como resultado de uma longa pesquisa, devo mostrar que a manufatura da cerâmica, sendo um ramo das atividades culinárias, recai, naturalmente, por toda a parte entre as tribos selvagens, nas mãos das mulheres, um fato de muita importância, devido à intima conexão entre a manufatura de 13 cerâmica e o crescimento da arte decorativa.

Hartt, como fica evidente nas Notes, investigou os textos de vários viajantes que estiveram no Brasil, pesquisou livros sobre técnicas de cerâmica, ampliando, e muito, o embasamento teórico apresentado em seu primeiro artigo sobre a cerâmica marajoara, The Ancient Indian Pottery of Marajó, publicado em 1871 no The American Naturalist. Como uma de suas principais 11

HARTT, Charles Frederick. Preliminary Report. In: _____. Preliminary Report of the Morgan Expeditions, 1870-71 – Report of a Reconnoissance of the Lower Tapajos. Bulletin of the Cornell University (Science), v. 1, n. 1 e 2, 1874. p. 7. 12 HARTT, Charles Frederick. Notes on the manufacture of pottery among savage races. Rio de Janeiro: The Office of the “South American Mail”, 1875; The American Naturalist, v. XIII, p. 78-93, 1879. 13 HARTT, Charles Frederick. Preliminary Report. In: _____. Preliminary Report of the Morgan Expeditions, 1870-71 – Report of a Reconnoissance of the Lower Tapajos. Bulletin of the Cornell University (Science), v. 1, n. 1 e 2, 1874. p. 7.

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referências irá utilizar o texto Indian Pottery,14 do arqueólogo alemão radicado nos Estados Unidos Charles Rau (1826-1887), colaborador desde 1863 dos Smithsonian Reports e curador do Departamento de Arqueologia do United States National Museum desde 1881. O segundo tema de interesse, pesquisado concomitantemente ao primeiro, é de igual modo descrito com brevidade em outra passagem do Report: A ocorrência de belas gregas, espirais e outras formas ornamentais na antiga cerâmica brasileira, formas que, mesmo em detalhe, correspondem exatamente aos ornamentos do mundo antigo, levaram-me a um estudo crítico do ornamento selvagem, e a uma discussão sobre a origem e evolução da arte estética. Devo tentar mostrar que as formas decorativas nos dão prazer, primeiramente, devido aos movimentos musculares feitos para segui-las, e que, da estrutura física do olho, algumas formas elementares devem naturalmente se desenvolver, sempre que se fizer a tentativa de agradar o olho com linhas. Tracei cada passo na evolução dos vários frisos e mostrei como essas bordas angulares dão origem a formas curvas de mais e mais sutil curvatura; a lei da sobrevivência do mais apto a agradar determina a persistência de bem construídos, belos 15 ornamentos por todo o mundo.

É digna de nota a expressão por ele mesmo grifada, que utiliza para designar a lei que acredita encontrar em funcionamento no desenvolvimento da ornamentística indígena: “lei da sobrevivência do mais apto a agradar”. Discutiremos mais adiante o uso feito por Hartt da teoria da evolução de Darwin. No momento em que escreve o Report, a comunicação de Hartt intitulada Beggining of art, or evolution in ornament16 estava prestes a ser publicada nos Proceedings da Convocation.17 Esse trabalho havia sido

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Cf. RAU, Charles. Indian Pottery. In: _____. Articles on Anthropological Subjects, contributed to the Annual Reports of the Smithsonian Institution from 1863 to 1877. Washington: Smithsonian Institution, 1882. p. 49-58. 15 HARTT, Charles Frederick. Preliminary Report. In: _____. Preliminary Report of the Morgan Expeditions, 1870-71 – Report of a Reconnoissance of the Lower Tapajos. Bulletin of the Cornell University (Science), v. 1, n. 1 e 2, 1874. p. 7-8. 16 HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873, p. 143-152. 17 Hartt dá conta disso em uma breve nota de rodapé. Cf. HARTT, Charles Frederick. Preliminary Report. In: _____. Preliminary Report of the Morgan Expeditions, 1870-71 – Report

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apresentado por Hartt, no ano anterior, durante a Convocation realizada em Albany, estado de New York. Daniel Strobel Martin (1842-1925), na época professor de Geologia e de História Natural no Rutgers Female College, assistiu à apresentação de Hartt, deixando um registro sobre ela no texto que escreveu após a morte do colega:

Faz agora cinco anos desde que o Professor Hartt estava conosco nessa Convocation, como representante da Cornell University. Naquela ocasião leu diante de nós um de seus mais notáveis e característicos trabalhos, aquele sobre “Evolução no Ornamento, ou as origens da arte”, no qual seus poderes, tanto de aguda observação como de pensamento filosófico, foram muito claramente mostrados, na medida em que ele estabeleceu amplos princípios do desenvolvimento inicial do gosto estético, a partir da rude cerâmica das raças indígenas da 18 América do Sul, tanto vivas como extintas.

Em 16 de fevereiro de 1874 Hartt apresentara também, no Lyceum of Natural History, em New York, o relato intitulado Aboriginal Manufacture of Pottery. Após detalhar o processo de manufatura da cerâmica entre tribos indígenas da América do Sul (mais uma vez a síntese do que seria publicado nas Notes), Hartt se concentra na análise da ornamentação dessas obras. Destaca, antes de mais nada, o fato de a ornamentação ser tarefa feminina, o que justifica pela constatação “do gosto e gênio natural para a beleza que a mente feminina possui”.19 O redator dos Proceedings do Lyceum, a seguir, sintetiza a teoria de Hartt sobre a evolução no ornamento nos seguintes termos: of a Reconnoissance of the Lower Tapajos. Bulletin of the Cornell University (Science), v. 1, n. 1 e 2, 1874. p. 8. 18 MARTIN, Daniel Strobel. Professor Charles Frederick Hartt, A. M. Proceedings of the Fifteenth Anniversary of the University Convocation of the State of New York, held July th 9 , 10 th and 11 th, 1878; being part IV of the ninety-second annual report of the Regents of the University. Albany: Charles Van Benthuysen & Sons, 1879. p. 125. Na p. 128 Martin descreve suas lembranças da impressão causada por Hartt durante sua participação na Convocation de 1873: “Aqueles que viram o Prof. Hartt naquelas sessões da Convocation, podem bem lembrar sua figura alta, esbelta, seu olhar penetrante, sua maneira rápida, cheia de energia – tudo expressando claramente o caráter do homem – ativo, determinado, cheio de vida e entusiasmo; bondoso e gentil, contudo, atencioso com os sentimentos dos outros, franco, aberto, impaciente com farsas e atrasos”. 19 HARTT, Charles Frederick. Aboriginal Manufacture of Pottery (February 16, 1874). Proceedings of the Lyceum of Natural History of the City of New York. Series I. (April 4, 1870, to December 4, 1871). Pages 1-300. Series II. (January 6, 1873, to June 1, 1874). Pages 1 to 156. New York: Published by the Society, 1874. p. 105.

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Há alguns extremamente interessantes princípios aparentes a respeito dos dispositivos na cerâmica indígena, que ele estabeleceu em sua conferência sobre a “Evolução no ornamento”. Entre esses os mais importantes são dois, a saber: (1) Que nenhum povo rude jamais começa pela imitação de objetos naturais, como folhas, flores, etc., não importa o quão familiares possam ser; mas que tudo isso é um pensamento posterior, começando o processo com a mais simples formação de linhas retas. Essas são, então, variadamente repetidas e combinadas, curvas tomam o lugar de ângulos, etc.; e finalmente semelhanças acidentais sugerem a imitação de objetos naturais, mas apenas depois desse longo processo de treino mais simples. O outro princípio é o de que, (2) deste modo, dispositivos similares e mesmo idênticos crescem espontaneamente e independentemente, em tribos e nações completamente separadas umas das outras. Esse é notadamente o caso da bela “grega”, como se diz, que é representada em cada estágio de sua “evolução”, na cerâmica do 20 Brasil.

Beginning of art, or evolution in ornament, o notável trabalho de Hartt que impressionara Daniel Martin em Albany, e que igualmente irá repercutir em Nova York, inicia com uma breve descrição da descoberta e coleta, entre 1870 e 1871, de peças de cerâmica indígena (urnas funerárias, adornos pessoais, utensílios de vários tipos, etc.) na ilha de Marajó. Após introduzir a questão da semelhança de vários dos ornamentos lá encontrados com aqueles do Velho Mundo, Hartt recorre a Owen Jones, o autor da Grammar of Ornament (1856):

Já foi apontado por Owen Jones que a assim chamada grega teve uma distribuição muito ampla, ocorrendo não apenas na arte egípcia e grega, mas naquela da Índia e da China, enquanto no Novo Mundo 21 era cultivada amplamente em ambas as Américas.

A importância da Grammar de Jones para o impulso das pesquisas sobre a ornamentística de diversas culturas não pode ser subestimada. Hartt se coloca, ao citar Jones, que leu com cuidado, em uma tradição que iria

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HARTT, Charles Frederick. Aboriginal Manufacture of Pottery (February 16, 1874). Proceedings of the Lyceum of Natural History of the City of New York. Series I. (April 4, 1870, to December 4, 1871). Pages 1-300. Series II. (January 6, 1873, to June 1, 1874). Pages 1 to 156. New York: Published by the Society, 1874. p. 105-106. 21 HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 143.

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resultar, mais tarde, em obras tão significativas para a história da arte quanto a Stillfragen (1893), de Alois Riegl (1858-1905). Jones abre, com mais sucesso do que vários de seus predecessores, uma promissora possibilidade de pesquisa e de valorização das manifestações artísticas de povos não europeus. Como bem sintetiza Barbara Keyser, A Grammar foi chamada de “um dos documentos fundadores do modernismo agressivo”, mas pode também ser apreciada como uma 22 abertura do gosto europeu ás formas artísticas não europeias.

O próximo passo de Hartt em seu artigo é apresentar a hipótese da existência de leis universais de desenvolvimento cultural, que se refletem na configuração do ornamento. Em suas próprias palavras,

A distribuição dessas simples formas ornamentais entre amplamente separadas tribos selvagens torna extremamente improvável que eles todos devessem ser originários de uma fonte comum, e sua origem independente é ainda mais provável uma vez que foi conclusivamente mostrado que mitos, ideias religiosas, maneiras e costumes idênticos, encontrados em diferentes partes da terra, frequentemente se 23 originaram independentemente uns dos outros.

A preocupação com a formulação de tais leis, como bem enfatiza Barbara Keyser,24 era característica dos reformadores vitorianos do design reunidos, na década de 1850, na Design School, de Londres. É importante que se chame a atenção para o fato de que tal escola, representada, entre outros, pelo há pouco mencionado Owen Jones, não se alimentava de darwinismo ao buscar essas leis. Ela irá herdar toda a carga de ideias da teologia natural e da anatomia transcendental desenvolvida por gerações anteriores na Inglaterra e no continente. Essa corrente de inspiração platônica vê as formas da Natureza como sinais da inteligência divina. O artista deve agora observar a natureza

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KEYSER, Barbara Whitney. Ornament as Idea: indirect imitation of nature in the Design Reform Movement. Journal of Design History, v. 11, n. 2, p. 127-144, 1998. p. 141. 23 HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 143. 24 KEYSER, Barbara Whitney. Ornament as Idea: indirect imitation of nature in the Design Reform Movement. Journal of Design History, v. 11, n. 2, p. 127-144, 1998. p. 140.

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para apreender as regras gerais do design divino e imitá-la indiretamente. O ornamento passa a ser visto como biológico, e estudado como tal, ou seja, passa a ser alvo, segundo David Brett, de “coleção, descrição e taxonomia”.25 A primeira formulação de Hartt dessas leis aponta para a presença de estágios comuns de desenvolvimento de culturas diversas, que justificariam o surgimento dos mesmos motivos ornamentais em povos que jamais mantiveram contato. Owen Jones procura justificar esses estágios através da conceituação de uma espécie de desejo universal de ornamento: A partir do testemunho universal dos viajantes pareceria que dificilmente há um povo, não importa em quão precoce estágio de civilização, para o qual o desejo pelo ornamental não seja um instinto forte. O desejo não se ausenta em nenhum, e cresce [...] em todos 26 proporcionalmente a seu progresso na civilização.

Hartt, antes de tudo um cientista, procura uma explicação com menor amparo na subjetividade ou em constantes metafísicas. Ele procura desde o princípio estabelecer algumas distinções no âmbito nas artes decorativas:

A arte decorativa imitativa apela ao entendimento; é uma canção com palavras, mas o ornamento meramente estético é música visível sem palavras, e é para essa última divisão do ornamento que devo 27 principalmente pedir sua atenção.

É curioso observar como essa passagem ecoa fortemente esta outra de Kant, à qual supomos que Hartt tenha tido acesso, de modo direto ou indireto:28

Assim, os desenhos à la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de parede, etc., por si não significam nada; não representam 25

BRETT, David. Design Reform and the Laws of Nature. Design Issues, v. 11, n. 3, p. 37-49, Autumn, 1995. p. 38. 26 JONES, Owen. The grammar of ornament. New York: DK Publishing, 2001. p. 31. 27 HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 143. 28 Hartt dominava várias línguas, entre elas o alemão, logo a leitura de Kant no original não é uma impossibilidade. Talvez a pesquisa em sua documentação pessoal pudesse oferecer alguma pista a esse respeito. Entre as fontes indiretas plausíveis de acesso a Kant, por outro lado, podemos encontrar, por exemplo em Jones, menção à melodia da forma, mas em nenhum outro momento no livro Jones aproxima-se de modo tão evidente da citada passagem de Kant quanto o fizera Hartt em sua comunicação.

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nada, nenhum objeto sob um conceito determinado, e são belezas livres. Também se pode computar como da mesma espécie o que na música denominaram-se fantasias (sem tema), e até a música inteira 29 sem texto.

Após elucidar, portanto, que irá tratar da forma no ornamento, e não do colorido, afirma que o efeito prazeroso buscado por todos os homens quando observam ornamentos30 pode ser compreendido a partir da interação entre formas decorativas e a estrutura do olho humano. No lugar do platônico desejo de ornamento de Jones, uma bem mais aristotélica anatomia da visão. De todo modo, ainda que a partir de pontos de vista diferentes, Hartt e Jones se interessam bastante pela recepção estética do ornamento. Convém sublinhar que Hartt se afasta, neste ponto, do crítico de arte vitoriano John Ruskin, cuja obra Pedras de Veneza havia lido. Ruskin, inimigo declarado das teorias de reformadores do design como Owen Jones, irá enfatizar a estética de criação do ornamento, a sua poética, atitude que Gombrich31 identifica como precursora das posturas expressionistas. A fim de estabelecer, em sua comunicação de 1873, uma distinção clara entre ver e observar, Hartt propõe um exemplo concreto:

Quando olho pela minha janela uma paisagem, a imagem de um trecho muito grande cai em minha retina. Vejo ao mesmo tempo uma multiplicidade de casas, e a infinidade de objetos que constituem a imagem, e aparentemente vejo tudo de modo distinto, mas este está realmente longe de ser o caso. Se olho repentinamente para uma paisagem que nunca vi antes, e fixo meu olhar em um campanário de igreja por poucos momentos, a imagem da paisagem cai imóvel na retina; mas se eu agora repentinamente recuo e tento esboçar minha paisagem, ou escrever uma descrição do que vi, devo me encontrar 29

KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 75. Para uma breve análise do prazer estético desinteressado em Kant e sua relação com o ornamento, cf. CRITICOS, Mihaela. The Ornamental Dimension: Contributions to a Theory of Ornament. New Europe College Yearbook (New Europe College Yearbook), Issue: Special ed., 2004, p. 201. 30 Mihaela Criticos (op. cit., p. 202) comenta essa questão, recorrendo à uma citação da obra The language of ornament, de um notório especialista no tema, James Trilling: “O caráter hedonista assumido pela função decorativa era e ainda é visto como definidor no que diz respeito ao conceito de ornamento. De acordo com um dos últimos pronunciamentos sobre esse tópico, ‘o ornamento é a única arte visual cujo primordial, se não exclusivo propósito é o prazer’”. 31 GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002. p. 42.

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totalmente incapaz de reproduzi-la. [...]. Eu vi a paisagem, mas não a 32 observei.

Aparentemente vejo toda uma paisagem, mesmo me concentrando em uma única casa ou árvore. Contudo, não serei capaz de reproduzir o que assim vi em um desenho se não me puser a observar. E a observação envolve a movimentação do olhar, o que Rudolf Arnheim, muitos anos mais tarde, em seu clássico Arte e Percepção visual, a partir de exemplos curiosamente muito semelhantes aos de Hartt, chamaria de captação ativa:

Se a visão é uma captação ativa, o que ela apreende? Todos os inúmeros elementos de informação? Ou alguns deles? Se um observador examina atentamente um objeto, percebe que seus olhos estão bem equipados para ver detalhes diminutos. Ainda assim, a percepção visual não opera com a fidelidade mecânica de uma câmara, que registra tudo imparcialmente [...]. Ver significa captar algumas características proeminentes dos objetos – o azul do céu, a curva do pescoço do cisne, a retangularidade do livro, o brilho de um pedaço de metal, a retitude do cigarro. Umas simples linhas e pontos são de imediato reconhecidos como “um rosto”, não apenas pelos civilizados ocidentais, que podem ser suspeitos por estarem de acordo com o propósito dessa ‘linguagem de signos’, mas também por bebês, 33 selvagens e animais.

Gombrich, no capítulo IV de The sense of order, também toca nessa diferenciação entre, segundo seus próprios termos, focar e prestar atenção, que considera, de resto, crucial para o estudo e compreensão da arte decorativa.34 Não causa espécie que Gombrich, nessa obra, se apresente como devedor das teorias evolutivas que explicam ornamento, bem como da psicologia da percepção. A seguir Hartt passa à abordagem que certamente teria desagradado John Ruskin. Segundo Jonathan Smith, Ruskin preocupava-se com o fato de que o realismo científico, personificado por Darwin, com cujas ideias

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HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 144. 33 Cf. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. 6. Ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1991. p. 36. 34 GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002. p. 95-97.

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antipatizava, estivesse se apropriando "do campo artístico como se fosse seu".35 E Hartt, ao propor uma explicação para a evolução do ornamento amparada no funcionamento mecânico do olho, de certa forma concretiza essa ameaça. Hartt, explorando um gráfico que apresenta a mecânica dos quatro músculos do olho, e ainda explicando o modo de funcionamento da visão retiniana, procura uma justificativa física para a apreciação, pelo homem, das linhas retas e das linhas curvas. Pela conformação muscular do olho, as linhas retas seriam mais fáceis de observar, pois exigiriam menor movimentação do olhar.

Fig. 1. Os músculos do olho. Fonte: HARTT, 1886, p. 98. Desenho de Hartt.

A necessidade de movimentação do olho também é justificada por Hartt através da explicação do funcionamento da macula lutea (“yellow spot”) de Soemmering. Mesmo que o cientista alemão Samuel Thomas von Söemmering (1755-1830) tenha descoberto a macula lutea em 1791, nas décadas de 1840 e de 1850 manuais populares de fisiologia ainda não fazem mais do que descrevê-la, sem indicar sua função na visão.36 A mácula lútea é a responsável pela acuidade de nossa visão central, e há um limite para a quantidade de

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SMITH, Jonathan. Charles Darwin and Victorian visual culture. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2009. p. 27. 36 Um bom exemplo é o manual The Essentials of physiology, de Malcolm William Hilles. Na primeira edição, de 1860, a macula lútea é apenas apresentada. Na segunda edição, de 1876, sua função é identificada: “A macula lutea é o ponto no qual a visão é mais nítida” (HILLES, Malcolm William. The Essentials of Physiology. 2. ed. London: Henry Renshaw, 1876. p. 391).

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informação visual que pode abarcar – é para esse ponto que Hartt chama a atenção, pois o movimento do olho é necessário para a captura de elementos essenciais e para a posterior “montagem” da imagem a ser processada no interior do olho. É preciso lembrar outro fator que auxilia no esclarecimento deste ponto: na época em que Hartt escreve prevalecia a chamada ótica geométrica, cujas bases sólidas haviam sido lançadas por Gauss em 1843. Conforme G. Westheimer, tratava-se de uma teoria “bastante adequada ao estudo do relacionamento entre posição e tamanho dos objetos e suas imagens retinianas”.37 Amparado por essas características biológicas da estrutura do olho, Hartt julga que as linhas mais fáceis de observar são as retas e perpendiculares. As oblíquas e curvas apenas se consegue observar confortavelmente após muito treino. Sentimos mais uma vez aqui o eco de teorias que circulavam em seu tempo. No que diz respeito à necessidade de educação do olhar, essa era uma ideia então corrente nos meios científicos, que podemos mesmo ler no manual de fisiologia de Hilles. 38 Isso não significa, contudo, que fosse unânime. A partir justamente da década de 1860 ganha força a polêmica entre os nativistas, que defendiam a natureza inata da visão e que eram representados por Ewald Hering (1834-1918), e os empiristas, liderados por Hermann Von Helmholtz (1821-1894), que defendiam que a visão era aprendida através da experiência (este era, por conseguinte, o partido de Hartt).39 Quanto às diferenças qualitativas entre a percepção de retas e a de curvas, elas já haviam sido identificadas por Owen Jones: Na decoração de superfície, qualquer arranjo de formas, como em A, que consista apenas de linhas retas, é monótono, e proporciona 37

WESTHEIMER, G. Specifying and controlling the optical image on the human retina. Progress in Retinal and Eye Research, v. 25, n. 1, p. 19-42, Jan. 2006. p. 20. 38 Conforme Hilles, “O Olho, em seu estado não educado, não pode enviar ao Cérebro nenhuma propriedade peculiar do objeto visto – tal como forma, cor, distância, etc. Esse poder é adquirido pela educação, na qual as mãos ou dedos são essencialmente úteis; deste modo são as crianças impelidas a sentirem os objetos colocados diante delas, a fim de se certificarem de suas qualidades [...]” (HILLES, Malcolm William. The essentials of physiology. 1. ed. London: Henry Renshaw, 1860. p. 266). 39 Cf. OLESKO, Kathryn M. Review: In the Eye's Mind: Vision and the Helmholtz-Hering Controversy by R. Steven Turner. The American Historical Review, v. 101, n. 4, p. 11801181, Oct., 1996.

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apenas prazer imperfeito; mas introduzir linhas que tendam a conduzir o olho em direção aos ângulos, como em B, e você tem de uma só vez um prazer ampliado. Então adicione linhas dando uma tendência circular, como em C, e você agora tem completa harmonia. Neste caso o quadrado é a forma principal, ou tônica; o angular e o 40 curvo são subordinados.

Este caminho trilhado por Jones, e depois por Hartt, que busca esmiuçar o funcionamento da percepção das formas, será posteriormente identificado por Gombrich41 como precursor da psicologia da percepção e da Gestalt.42 Hartt, com recurso a uma série de ilustrações feitas por ele próprio, dá continuidade a sua argumentação. Linhas retas (Fig. 2) estão presentes na própria origem dos motivos decorativos. Retas em vertical, paralelas, aparecem com frequência na arte que ele chama de “rude”. Hartt destaca as duas dimensões da séria ornamental, uma que se desdobra no espaço (o conjunto do motivo, apreendido simultaneamente) e outra que se desenrola no tempo (o percurso do nosso olhar através dos caminhos propostos pelos motivos ornamentais).43 Nem sempre a série ornamental apresenta um bom desenvolvimento, como Hartt ilustra na Fig. 3, entendendo esse fracasso na obtenção de harmonia e simetria, ligado à má escolha de linhas e dos ângulos em que são combinadas, como sinal de um “rude estágio da arte, ou da obra de alguém responsável por um trabalho mal-feito”.44

Fig 2. Séries com linhas retas. Fonte: HARTT, 1875, p. 270. Desenho de Hartt.

40

JONES, Owen. The grammar of ornament. New York: DK Publishing, 2001. p. 190-191. Para um comentário sobre esse trecho específico, cf. GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002. p. 53. 41 GOMBRICH, op. cit., p. 50. 42 Nas palavras de Gombrich (op. cit., p. 51), “Jones trouxe ao debate um critério que estava faltando em Ruskin e em Semper: a psicologia da percepção”. 43 HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 147 44 Ibidem.

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Fig. 3. Frisos simples. Fonte: HARTT, 1875, p. 270. Desenho de Hartt.

Em seguida Hartt constata que a grega (Fig. 4), prazerosa de observar e também de desenhar, encontra-se frequentemente na arte aborígene americana, assim como na arte clássica grega. O homem, no entanto, sempre na busca de mais prazer para o olho, à medida que evolui e se educa, procura soluções visuais mais complexas e passa a preferir a observação das curvas, que exigem mais esforço e por isso acabam por se tornar visualmente mais gratificantes. É assim que o motivo labiríntico da grega se arredonda e se transforma nas espirais, características de vários motivos, por exemplo, da arte decorativa etrusca (Fig. 5).

Fig. 4. Friso grego. Fonte: HARTT, 1875, p. 271. Desenho de Hartt.

Fig. 5. Frisos com linhas curvas. Fonte: HARTT, 1875, p. 272. Desenho de Hartt.

As espirais, no entanto, logo se convertem em sigmóides, e o espaço livre resultante na composição passa a ser preenchido, por exemplo, por pequenos triângulos, que depois darão lugar a motivos vegetais estilizados,

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como os honeysuckle ou antêmios (Figs. 6, 7, 8 e 9). O próximo passo evolutivo do antêmio será a queda dos sigmóides que o acompanhavam em função cada vez mais acessória. Haveria ainda mais um membro luxuriante dessa série, o acanto, que Hartt apenas menciona, ao dar por encerrado seu trabalho de análise da evolução do ornamento, uma vez que não teria tempo de desenvolver seu raciocínio por completo.

Fig. 6. Evolução dos pequenos triângulos de preenchimento nos frisos. Fonte: HARTT, 1875, p. 272. Desenho de Hartt.

Fig. 7. Borda com linha de sigmóides. Fonte: HARTT, 1875, p. 273. Desenho de Hartt.

Fig. 8. Motivo “honeysuckle”. Fonte: HARTT, 1875, p. 274. Desenho de Hartt.

Fig. 9. Motivo “Antêmio”.

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Fonte: HARTT, 1875, p. 274. Desenho de Hartt.

A oposição entre retas e curvas, que tanto destaque recebe de Hartt na comunicação de 1873, já se encontra presente em Jones e Ruskin. As retas, mais simples, são associadas ao que é primitivo (gregos, povos arcaicos ˗ as retas podem estar na base do que se considera clássico) e as curvas, mais complexas, são a seu tempo associadas ao que é mais civilizado (povos orientais ˗ as curvas podem, por outro lado, ser consideradas decadentes). Tal oposição seria retomada com grande repercussão por Wölfflin em sua caracterização do Clássico e do Barroco. A evolução natural se dá do simples para o complexo, logo, do uso de retas para o uso de curvas. Em suma, culturas mais rudes prefeririam retas e culturas mais sofisticadas, curvas. O modo de valorar essas preferências é variável; Owen Jones em sua Gramática do Ornamento, de 1856, prefere os estágios iniciais da cultura, conforme deixa manifesto na seguinte passagem: O ornamento de uma tribo selvagem, sendo o resultado de um instinto natural, é necessariamente sempre verdadeiro em relação a seu propósito; enquanto que em muito do ornamento das nações civilizadas, [...], o ornamento é muitas vezes mal empregado, e ao invés de buscar primeiro a forma mais conveniente e adicionar beleza, toda a beleza é destruída [...] pelo excesso de ornamento em formas mal-concebidas. Se retornássemos a uma condição mais saudável, deveríamos ser mesmo como as crianças pequenas ou os selvagens, deveríamos nos livrar de tudo o que é adquirido ou 45 artificial, e retornar e desenvolver os instintos naturais.

A análise feita por Hartt da passagem das retas às curvas nas séries ornamentais

produzidas

na

antiguidade

clássica

e

entre

aborígenes

americanos encontra seu ponto alto no trecho em que o autor recorre à então muito recente teoria de Darwin para alinhavar suas próprias hipóteses: A arte decorativa cresceu na constante tentativa de agradar o olho por meio de formas mais bonitas, e através da sobrevivência do mais belo ou apto a agradar; pois formas puras, bem construídas são

45

JONES, Owen. The grammar of ornament. New York: DK Publishing, 2001. p. 190-191. Para um comentário sobre esse trecho específico, cf. GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002. p. 38.

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persistentes; enquanto que aquelas que são anormais, bizarras ou 46 não adaptadas ao olho, morrem.

Hartt espirituosamente adapta a famosa fórmula de Herbert Spencer, Survival of the fittest, elaborada em seu Principles of Biology (1864), após a leitura de On the origins of species (e que Darwin, aliás, incorporaria na 5. edição de sua obra, em 1869),47 às suas necessidades, surgindo assim o motto “sobrevivência do mais belo”. De todo modo, é preciso enfatizar que Hartt usa muito comedidamente esse repertório imagístico darwiniano, sobretudo para coroar a conclusão de seus argumentos. Com o emprego da ideia de seleção natural e evolução, que Hartt vincula à Darwin, mas que, como vimos, também se origina de outras fontes (a Design School de Londres, a prática da geologia, etc.), ele explora uma dimensão que Owen Jones havia deixado apenas esboçada em sua Grammar. Jones estava mais interessado na morfologia do ornamento do que propriamente no estudo da evolução histórica de sua transformação. A essa sincronia Hartt contrapõe a visão diacrônica, evolutiva, da transformação de séries formais ao longo da história – uma abordagem que constituiria, de resto, um dos pilares da Escola de Viena tal qual formulada por Riegl. Hartt deixa de lado a teoria da evolução aplicada ao ornamento nos parágrafos finais do texto de sua conferência. Além de exaltar as ceramistas de várias culturas, responsáveis, segundo ele, pelo desenvolvimento da ornamentação (cuja prática associa ainda ao desejo de tornar mais belo o ambiente doméstico), Hartt, que havia no começo de seu artigo enaltecido o papel do ornamento entre as sociedades humanas,48 conclui indicando dois motivos pelos quais o ornamento precisa ser estudado de modo mais inteligente: o fato de ser extremamente necessário para a vida civilizada,49 um 46

HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 151 47 Cf. DARWIN, Charles. The origin of species. 6. Ed. New York: F. Collier & Son, 1872. p. 93. 48 HARTT, Charles Frederick. Beginning of art, or evolution in ornament. Proceedings of the University convocation, held at Albany. Albany, NY: University of the State of New York, 1873. p. 146: “É realmente surpreendente ver o como o ornamento é um elemento importante na vida”. 49 HARTT, op. cit. p. 151.

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topoi comum nas revistas de variedades que então circulavam, como vimos em Akers; e o problema, crescente em sua época, de as pessoas não saberem separar o bom ornamento do mau, ornamentando consequentemente em excesso as superfícies.50 Em 1875 Hartt publica a comunicação de Albany, agora revisada (especialmente em questões de estilo) e acrescida de notas explicativas, em um dos mais populares periódicos de divulgação científica dos Estados Unidos, o Popular Science Monthly. O título, no entanto, é mais simples, correspondendo ao que costumava utilizar em conferências de divulgação científica sobre o tema, Evolution in ornament.51 A essa altura Hartt já estava instalado no Brasil, onde presidia a Comissão Geológica do Império, criada por Pedro II. Os acréscimos a esse texto encontram-se realmente, em sua maior parte, nas notas.52 As versões em português de sua comunicação sobre a evolução do ornamento

serão

publicadas

postumamente,

uma

versão

abreviada

provavelmente por Orville Derby em 1882, A origem da arte ou evolução da ornamentação, na Revista da Exposição Antropologica, e uma versão completa, publicada em 1885 nos Archivos do Museu Nacional, intitulada A origem da arte ou a evolução da ornamentação, com consideráveis alterações e acréscimos em relação à comunicação inicial de 1873 e ao artigo publicado na Popular Science Monthly. 50

HARTT, op. cit. p. 151-152. HARTT, Charles Frederick. Evolution in ornament. The Popular Science Monthly, v. VI, p. 266- 275, 1875. 52 O teor das notas, em suma, é o que segue. Na p. 266 Hartt remete a seu livro quase pronto Antiquities of Brazil, para um maior aprofundamento sobre a questão da origem independente dos ornamentos entre os povos. Na p. 267 define melhor o conceito de observação, dando o exemplo de sua prática nas ciências naturais. Na p. 269 acrescenta duas notas novas, uma sobre o prazer derivado de uma linha reta, decorrente do uso regular dos músculos necessários para apreciá-la, estabelecendo um paralelo com o apalpar um tecido suave ou ouvir uma única nota musical, e outra sobre a passagem da monotonia à sutileza na música (sutileza, força e aceleração), devido ao desejo de escapar à fadiga da repetição. Na p. 270 explica melhor por que motivo a “irregularidade no intervalo interrompe o efeito estético”, recorrendo ao yellow spot e ao efeito produzido no cérebro pelas séries ornamentais que nele incidem. Com o progresso vem o amor à mudança; paralelos entre ornamentação na América e da Grécia Clássica. Na p. 272 discorda dos autores que dizem que o espaço demanda ornamento – para ele se trata de uma interpretação puramente subjetiva. Na p. 273 argumenta que bordas funcionam melhor e agradam mais ao olho quando usadas na horizontal. Na p. 274, enfim, apresenta o comentário crítico que Ruskin faz, em Stones of Venice, aos motivos ornamentais ovo e língua e ovo e seta. 51

22

A versão abreviada de 1882 acrescenta ao texto de Albany e da Popular Science Monthly um paralelo novo, quando apresenta a especulação sobre a origem independente dos ornamentos entre os povos. Como chineses e índios brasileiros teriam os mesmos ornamentos? A evocação dos chineses não é acidental; durante a cobertura pela imprensa da Exposição Universal de 1851, o estande chinês causou grande alvoroço, e os chineses eram utilizados como exemplo da abrangência da feira e, ao mesmo tempo, de exotismo e da figura do estrangeiro.53 Mesmo Baudelaire recorrerá à figura do chinês em alguns de seus textos críticos.54 Fazendo uso assim de uma imagem em circulação e bem conhecido, Hartt poderia causar mais impacto junto ao público e chamar maior atenção para o seu objeto de pesquisa, a ornamentação dos objetos indígenas brasileiros. Além disso, veremos no subcapítulo seguinte que a menção à China já era usada por Hartt em suas palestras sobre o tema. Se nas versões de Albany e da Popular Science Monthly Hartt procede a uma classificação geral dos ornatos em imitativos e puramente estéticos, aqui ele a vincula a estágios de desenvolvimento cultural dos povos. Deste modo, nessa versão afirma que na arte primitiva os ornatos estéticos não são derivados da natureza e não têm significação; já os ornatos imitativos são convencionalizados e representam uma cultura mais avançada – argumento que será melhor desenvolvido, como veremos, no texto de 1885. Na passagem a seguir, de Gombrich, pode-se constatar que esse afã em procurar as origens do ornamento na arte então dita primitiva era uma preocupação que Hartt compartilhava com seus contemporâneos: Eruditos do século XIX pensaram que uma resposta a esta questão estava à mão. Iniciados como estavam no credo evolucionista, estavam convencidos de que tinham um fácil acesso ao passado remoto de nossa civilização. As assim chamadas tribos primitivas do que hoje chamamos de áreas “subdesenvolvidas” representariam aquela fase em réplica. O estudo da arte decorativa dos “selvagens”

53

Na peça de Clairville e Cordier, Le Palais de Cristal ou les Parisiens à Londres, encenada em Paris pela primeira vez em 26 de maio de 1851, esse estereótipo dos chineses que participaram da Exposição Universal é onipresente. Cf. CLAIRVILLE, MM.; CORDIER, Jules. Le Palais de Cristal ou les Parisiens à Londres. Grande Revue de l'Exposition Universelle en cinq actes et huit tableaux. Lagny: Imprimerie de Vialat et Cie., 1851. 54 Cf., por exemplo, BAUDELAIRE, Charles. Exposition universelle, 1855, Beaux-Arts: I. Méthode de critique. De l’idée moderne du progrès appliquée aux beaux-arts. In: _____. Oeuvres complètes. T. II. Paris: Gallimard, 1976. p. 575-583. (Bibliotèque de la Pléiade)

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iria, portanto, fornecer a chave para nossa compreensão das origens 55 do ornamento.

Após discorrer novamente sobre a fisiologia da percepção, com a descrição da mácula lútea e do funcionamento dos músculos do olho, sobre a facilidade de observação das linhas retas e a dificuldade das curvas, Hartt introduz uma novidade, a relação bem sublinhada entre a aquisição do senso estético por meio da cultura: A apreciação do efeito estético das formas da natureza não é intuitiva, mas vem da educação, e o que se chama senso esthetico é devido à cultura, não sómente do indivíduo, como também de algum modo, da nação. A criança, como um povo, aprende lentamente a arte, e as suas linhas tornam-se cada vez mais subtis e bellas com a 56 cultura.

São inúmeras as fontes às quais Hartt poderia ter recorrido em busca dessa metáfora da infância. Uma das mais evidentes, no entanto, é mais uma vez Owen Jones, que também falava na infância da civilização:

Os esforços de um povo em um estágio inicial de civilização são como aqueles das crianças, ainda que apresentem um desejo de poder, eles possuem uma graça e uma ingenuidade raramente encontradas na idade madura, e nunca no declínio do homem. É 57 igualmente do mesmo modo na infância de qualquer arte.

O interesse pelo estudo da decoração cerâmica, na tentativa de desvendar essa “infância da arte”, por outro lado, é reforçada por outra leitura de Hartt, Semper, que indica a cerâmica e, principalmente, os têxteis, como as primeiras manifestações das artes utilitárias humanas: É difícil estabelecer qual dos ramos técnicos listados no capítulo anterior foi praticado em primeiro lugar no curso natural do desenvolvimento humano, e em suma há pouco proveito em saber isso. Mas não pode haver dúvida de que nos primeiros dois ramos – têxteis e cerâmica – encontramos os primeiros esforços para

55

GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002. p. 222. 56 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou evolução da ornamentação. Revista da Exposição Anthropologica, p. 42-44, 1882. p. 43. 57 JONES, Owen. The grammar of ornament. New York: DK Publishing, 2001. p. 32.

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embelezar objetos funcionais através de uma escolha consciente de 58 forma e decoração.

Uma diferença em relação às versões anteriores que merece destaque é que aqui a imagem da sobrevivência do mais apto a agradar é bastante antecipada, e foi transportada do fim para o princípio do texto. Hartt também leva adiante sua tentativa de situar a cerâmica marajoara relativamente à arte de outros povos antigos: “Todos estes espaços se vêem na louça de Marajó, mas alli parece ter parado a evolução na America da arte classica do Egypto e da Europa [...]” (p. 44). A arte marajoara se encontraria, então, no mesmo estágio de desenvolvimento da antiga arte egípcia e europeia. O motivo que justificaria essa “estagnação evolutiva” não é, contudo, explorado aqui. A última modificação sobre a qual lançaremos luz nesse texto é o acréscimo de uma discussão, ilustrada (cf. Fig. 10), a respeito da ornamentação de Marajó baseada na figura humana59 – tópico que comentaremos na análise da versão final de Evolução no ornamento. Em A origem da arte ou a evolução do ornamento, de 1885, novamente temos como introdução ao tema a descrição, agora mais detalhada, da viagem ao Amazonas que resultou na localização das peças marajoras. No momento em que se pergunta como é possível a origem independente dos ornamentos entre os povos (pois acredita que esse é um fato inconteste, e está longe de propor as hipóteses difusionistas que fariam sucesso mais tarde), apresenta uma resposta reformulada: O homem applicado à etnologia sabe que não há costume algum de uma tribu de cultura baixa que não se encontre em outra. Durante a infância da sciencia da Theologia, identicos costumes passaram por ser de origem commum. Hoje o homem scientifico vê perfeitamente que o desenvolvimento de uma nação há-de corresponder mais ou 60 menos à evolução de qualquer outra.

58

SEMPER, Gottfried. Style in the technical and tectonic arts; or, pratical aesthetics. Los Angeles: The Getty Research Institute, 2004. p. 113. 59 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou evolução da ornamentação. Revista da Exposição Anthropologica, p. 42-44, 1882. p. 44. 60 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 96.

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A comparação entre chineses e índios do Brasil é repetida, e maior atenção é dedicada, outra vez, ao desenvolvimento de seus argumentos sobre o progresso na arte ornamental:

Entre as nações primitivas existe uma graduação na arte ornamental. Há algumas nações, como por exemplo os Botocudos, que desconhecem quase ou inteiramente o ornato; outras que ornamentam a louça, as armas ou outros objetos de fôrmas muito simples, compostas de linhas retas; e outros há que não somente empregam estas formas simples, mas também círculos e espirais, ignorando porém o uso de curvas mais sutis. Pode-se classificar as tribos e as nações pelo estado de progresso em que se acha a sua arte ornamental. O mesmo progresso se observa na história da arte antiga. Os ornatos mais antigos da Europa são feitos de linhas retas; depois vem outros, compostos de curvas circulares e de espirais, e a estes seguem formas que se tornam cada vez mais sutis na sua 61 curvatura.

Hartt constata que a evolução do ornamento pode servir não apenas para medir os graus evolutivos dos povos indígenas quando comparados aos povos europeus ou do Oriente Próximo, mas para avaliar as diferenças evolutivas entre os próprios povos indígenas. A partir dos variados casos que pesquisou, e que parecem se enquadrar bem em sua teoria, Hartt deduz então a lei segundo a qual “Pode-se classificar as tribos e as nações pelo estado de progresso em que se acha a sua arte ornamental”. Tal lei talvez procurasse dar conta da aplicabilidade e, portanto, da utilidade das pesquisas de Hartt sobre a evolução do ornamento. Talvez fosse possível, segundo a concepção de Hartt, através desses cuidadosos estudos da evolução do ornamento, montar um quadro classificatório e, quem sabe, até mesmo uma cronologia dos passos evolutivos da cultura humana. Hartt ataca nesta versão de 1885 uma questão que não merecera o mesmo destaque nas versões anteriores, a saber, a da representação da natureza na arte “primitiva”: Nota-se uma outra cousa que, na arte primitiva, os ornatos estéticos não são derivados da natureza, são puramente estéticos e não têm significação, enquanto que os adornos imitativos não conservam a beleza das curvas naturais, mas estão convencionalizados,

61

Ibidem.

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correspondendo à delicadeza das suas formas ao estado de cultura 62 que se acha a arte puramente estética da tribo.

No trecho citado, Hartt reforça a crença kantiana no ornato puramente estético. Limita-se a registrar, aqui, características gerais da ornamentística que encontrou sobretudo entre as culturas indígenas. Em outra afirmação, contudo, irá se posicionar de modo bastante explícito sobre o que confere qualidade à ornamentação:

Um bom ornato não devia imitar exatamente a natureza: devia somente conservar bastantes das suas formas e cores para produzir sobre nós o mesmo efeito estético, pois que, representando 63 exatamente o objeto, cessa de ser um ornato.

Encontramos aqui, claramente, uma ressonância da proposição 13 apresentada por Owen Jones em sua Grammar: Flores ou outros objetos naturais não devem ser usados como ornamentos, mas sim representações convencionais neles baseados, sugestivas o suficiente para sugerir à mente a imagem pretendida, sem destruir a unidade do objeto que devem decorar. Universalmente obedecida nos melhores períodos da Arte, igualmente violada quando 64 a Arte declina.

Para Hartt, a imitação da natureza deve passar por uma estilização, como prega Jones. Vimos anteriormente, aliás, que Ruskin e Owen Jones divergem também nesse ponto em suas teorias, 65 e mais uma vez poderemos 62

HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 96-97. Na p. 104 Hartt, em um bastante exemplo concreto, defende a ausência de significação das sigmóides na arte decorativa marajoara: “Esta se assemelha às ondas do mar, e muitos escritores que tem escrito a arte dizem que as sigmóides ligadas na arte antiga do Oriente eram no princípio uma representação convencional do mar. Ao contrário, na minha experiência, esta borda era no princípio simplesmente um ornato que não tinha significação. Duvido que os marajoaras pensassem no mar quando faziam este ornato. Nos vasos e espelhos da Etrúria não há dúvida de que às vezes queria significar ele o oceano, porque o artista ali representou peixes nadando por baixo, ou delfins saltando graciosamente por cima das ondas”. 63

HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p.106. 64 JONES, Owen. The grammar of ornament. New York: DK Publishing, 2001. p. 25. 65 Barbara Keyser apresenta um bom exemplo do teor das desavenças entre Ruskin e os reformistas do design, entre os quais se alinhava Owen Jones: “Ruskin negava que a forma da planta era bela por sua função; ao invés disso, era bela porque fora indicada por Deus – daí sua hostilidade aos reformistas do design, que despiram as plantas de seus detalhes particulares e basearam os designs em sua forma geométrica subjacente” (KEYSER, Barbara

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perceber aqui que essa divergência pública não impediu Hartt de selecionar, em um e em outro, os argumentos com os quais concordava, em uma tentativa de harmonizar entendimentos antagônicos acerca do desenvolvimento e das características da ornamentação. Hartt, mesmo admitindo que o ornamento não deva ser uma cópia fiel da natureza (essa foi a grande discussão provocada entre designers a partir da ornamentação dos objetos exibidos na Exposição Universal de Londres, de 1851), mostra-se, nessa versão de 1885, intrigado com o que considera a falta de sensibilidade do selvagem para as belezas da natureza:

O selvagem não é sensível às belezas da natureza, e por conseqüência não as pôde delinear. D’Orbigny já mostrou que na arte indígena da América não se vêem representadas nem folhas nem flores. É unicamente o homem civilizado e de alta cultura que aprecia a beleza da natureza, e tanto mais se cultiva, tanto mais chega ele a sentir a influência das formas naturais. Mais adiante hei de mostrar que o emprego destas formas na ornamentação vem somente depois 66 da cultura do olho pelas formas puramente estéticas.

Essa passagem, com sua fé na superioridade da apreciação da paisagem natural, é tipicamente ruskiniana. Já em Pedras de Veneza, lido por Hartt, Ruskin reclama que a arte hindu “nunca representa um fato natural... Eles não desenharão um homem, mas um monstro de oito braços - eles não desenharão uma flor, mas apenas uma espiral e um ziguezague". 67 Ruskin, em A manufatura moderna e o design (1859), depois de indicar o defeito da arte hindu, aponta a solução para o design vitoriano, a criação a partir da natureza:

Descobrirão, repito, que toda e qualquer grande arte ornamental se fundamenta na capacidade do trabalhador artístico de desenhar a figura humana e, nas melhores escolas, de desenhar ainda tudo que a cercava na natureza. Reconhecemos que a melhor cerâmica é a grega, e todo o poder de design que ela exibe, até o último ziguezague, surge em primeiro lugar do fato do trabalhador ter sido

Whitney. Ornament as Idea: indirect imitation of nature in the Design Reform Movement. Journal of Design History, v. 11, n. 2, p. 127-144, 1998. p. 135). 66 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 97. 67 Apud GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002. p. 45.

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obrigado a desenhar ninfas e cavalheiros: seu poder advém dessas 68 figuras drapeadas e armadas.

Podemos ter a medida da curiosidade e da inconformidade de Hartt com o aparente descaso dos índios brasileiros pela representação da luxuriosa natureza que os cercava quando observamos que, na conferência proferida no Rio de Janeiro, ele acrescentou, ao conjunto de ilustrações comuns aos três artigos, um grupo de motivos copiados da cerâmica marajoara nos quais julgava reconhecer representações convencionais do rosto humano (Fig. 10). Ainda assim, continua a expor sua perplexidade: É fato interessante que ao passo que o homem e diversos animais são representados em relevo na louça de Marajó, é raro que sejam desenhados sobre uma superfície plana. A artista índia sabia bem a arte de modelar e era perita na ornamentação por meio de linhas simples, mas não se tinha adiantado na arte do desenho imitativo. Nenhuma folha, flor ou fruta é representada na louça antiga do Amazonas ou em relevo ou sobre superfície plana. Parece singular que habitando uma região em que o reino vegetal oferece tantas formas belas a artista não escolhesse nenhuma destas para a 69 ornamentação.

68

RUSKIN, John. A Manufatura Moderna e o Design (1859). In: _____. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 167. 69 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 107. A título de curiosidade, vale a pena lembrar que esse interesse pelos motivos de não representação realista nas artes indígenas brasileiras irá se manifestar futuramente no trabalho de antropólogos. Maria Heloisa Fénelon Costa, nas décadas de 1960 e 1970, propôs exercícios de desenhos a meninas e meninos Mehináku, do Alto Xingu, e constatou a recorrência de motivos estilizados entre as meninas (mas não com função puramente estética, como pensava Hartt) e de representações realistas entre os meninos. Cf. COSTA, Maria Heloisa Fénelon. O mundo dos Mehinaku e suas representações visuais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.

29

Fig. 10. Motivos marajoaras que representariam o rosto humano. Fonte: HARTT, 1886, p. 107. Desenho de Hartt.

Particularmente sobre a figura humana, Hartt observa que nas cerâmicas marajoaras em geral são representadas em sólidos modelados, e quase nunca em superfícies planas. A série apresentada por Hartt na Fig. 10 foi cuidadosamente montada a fim de mostrar a evolução da abtsração dessas figuras na ornamentação marajoara.70 A preocupação com o estudo da figura humana, em Hartt, é marcado nessa última versão do texto, mas aparece aqui ainda em um estágio incipiente – em outro texto, Ídolos, também publicado sob o título geral de Contribuições para a etnologia do Valle do Amazonas, Hartt analisará, no entanto, com maior profundidade a constituição da figura humana na cerâmica marajoara.71 Recorrendo outra vez a Ruskin, pode fazer mais sentido a perplexidade de Hartt diante do fato de as artistas de Marajó não desenharem figuras humanas, que são no máximo moldadas, como ídolos. Ruskin associa muito 70

Cf. HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 108. 71 Cf. HARTT, Charles Frederick. Ídolos. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 45-52.

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diretamente a capacidade de criação de formas ornamentais ao domínio da representação da figura humana, como podemos ler a seguir:

Descobrirão, repito, que toda e qualquer grande arte ornamental se fundamenta na capacidade do trabalhador artístico de desenhar a figura humana e, nas melhores escolas, de desenhar ainda tudo que a cercava na natureza. Reconhecemos que a melhor cerâmica é a grega, e todo o poder de design que ela exibe, até o último ziguezague, surge em primeiro lugar do fato do trabalhador ter sido obrigado a desenhar ninfas e cavalheiros: seu poder advém dessas 72 figuras drapeadas e armadas.

Outro sinal da presença das ideias de Ruskin no pensamento de Hartt é perceptível no longo trecho em que discorre sobre a importância da ornamentação no quotidiano. Ruskin ajudou a colocar tal tema na ordem do dia, e discussões sobre os usos correntes do ornamento se tornaram comuns à época, como pudemos constatar por meio da leitura de Akers. Hartt, após constatar a onipresença das gregas no cenário urbano – afinal, elas estavam nos vestuários das senhoras, e ainda “nas molduras das paredes das casas, nas grades de ferro das janellas, na tapeçaria e nos utensilios domésticos”, 73 em uma concessão a seu público carioca, pergunta por que se investe tanto em ornamentação não apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o mundo civilizado? Para uma semelhante pergunta o próprio Hartt já tem a resposta: Ninguém sabe nem pergunta o que significa, ficamos satisfeitos unicamente porque lisongeia-nos a vista. São poucos os que comprehendem a immensa importância da ornamentação na vida humana e a exigência dos olhos. Uma casa de pedra tosca nos daria abrigo; um vestido de couro nos serviria como protecção suficiente contra o tempo, mas não bastam. Não estamos satisfeitos com a utilidade d'uma cousa desde que não dê ella ao mesmo tempo prazer aos sentidos. É d'esta necessidade que nasce e se desenvolve a arte. É para satisfazer á vista que gastamos tanto dinheiro na architectura e que cobrimos as paredes das nossas egrejas e nossos salões de 74 adornos.

72

RUSKIN, John. A Manufatura Moderna e o Design (1859). In: _____. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 167. 73 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 97. 74 HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 97.

31

Para Hartt esse argumento basta para justificar a atribuição de maior importância ao estudo do ornamento, e ele se oferece para suprir uma lacuna nesse sentido, quando afirma que “até agora não ha ninguém que se tenha dedicado á investigação scientificada ornamentação, uma arte muito mais importante na nossa vida e que occupa mais a nossa altenção do que a musica”.75 A consciência que Hartt demonstra da originalidade de seus próprios estudos sobre o ornamento fica, de resto, ainda mais notória no trecho a seguir: Pela primeira vez na história da arte, vou apresentar uma teoria racional da origem e evolução da arte decorativa e mostrar o que é a função do ornato. Nesta conferência não me é possível dar mais do que um ligeiro esboço dos meus estudos, mas, numa obra sobre a arqueologia do Brasil, que brevemente espero mandar ao prelo, da76 los-hei por extenso.

Hartt tem consciência da novidade da própria abordagem, e também da novidade do objeto de estudo, a arqueologia brasileira, como deixa manifesto a seu público carioca na passagem a seguir, que parece ter ainda o propósito de explicitar a relevância das pesquisas sobre esse tema ainda pouquíssimo apreciado no Brasil da época:’

Chamada a minha atenção para o estudo da arte antiga do Brasil, achei-me num campo novo e extremamente interessante. É vasto e difícil de se explorar, tendo podido fazer somente um ligeiro reconhecimento, mas nele tenho descoberto minas de ouro, 77 diamantes e pérolas.

A obra a que Hartt se refere é Brazilian Antiquities (ou Antiquities of Brazil, como escrevia em seus projetos iniciais), ambicioso livro sobre a arqueologia brasileira que nunca chegou a ser publicado. Chama a atenção o fato de Hartt apreentar, de modo tão positivo e seguro, sua originalidade diante de um público brasileiro, que talvez não tivesse como chegar a tal conclusão por si próprio, uma vez que os estudos sobre esse tema eram praticamente inexistentes no país. Nos Estados Unidos tal originalidade era destacada por

75

Ibidem. Ibidem, p. 98. 77 Ibidem, p. 97-98. 76

32

alguns dos leitores ou ouvintes de Hartt, como veremos no subcapítulo 3.2, muito mais do que pelo próprio cientista. Vimos a pouco uma alusão feita por Hartt a seu público carioca. Na versão de 1885 outras menções ao Rio de Janeiro são inseridas por ele, e observar essas inserções nos ajuda a melhor compreender o modo como Hartt procura se adaptar a seus diferentes públicos. As menções são duas: Hartt primeiro descreve como observou os artistas trabalhando na ornamentação do teto do novo salão do colégio D. Pedro II: Porém, quando vi o artista modelando cuidadosamente cada ornato senti que para apreciar perfeitamente todas as belezas d'uma composição decorativa era preciso examinal-a como a examinou o artista que a desenhou, percorrendo com os olhos todas as suas 78 minudencias.

O primeiro observador da ornamentação é o próprio artista, e o modo como ele observa sua obra deve ser por nós adotado como paradigma. Ruskin defendia esse ponto, e Gombrich irá dedicar a ele todo o terceiro capítulo de seu The sense of order. Veremos que Hartt demonstrará crescente interesse pela compreensão dos diferentes pontos de vista que observam o ornamento, o do criador, o do consumidor, o dos membros de povos “selvagens” ou “civilizados”. Antes disso, no entanto, é preciso que informemos que a segunda menção que faz ao Rio de Janeiro: trata-se da indicação de artêmios com sigmóides, uma manifestação rara entre os motivos decorativos, visíveis na torre da igreja do Carmo, no largo do Paço.79 Retomando agora a questão dos diferentes pontos de vista, Hartt apresenta uma surpreendente colocação em perspectiva da interação do selvagem com a arte decorativa, em comparação com a dos civilizados: Há uma grande dificuldade no estudo da philosophia da arte decorativa que já estamos mais ou menos educados e é muito difícil imaginarmo-nos no estado do selvagem sem educação. Estamos já tão acostumados a uma variedade de formas decorativas que, á primeira vista produzem todo o seu effeito. É justamente como o que se vê na musica. Selvagens e pessoas de pouca educação musical querem ouvir muitas vezes a mesma melodia, mas ao músico bastam 78

HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 100-101. 79 Ibidem, p. 107.

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as primeiras notas d'uma ária para despertar n'elle todo o efeito da 80 composição.

Formas decorativas são construções e precisam ser aprendidas, algo que está bem claro para Gombrich, quando comenta que em nossos dias poucos somos capazes de “decodificar” motivos ornamentais complexos, por não estarmos mais habituados à suas convenções. Dando prosseguimento à sua análise, o foco de Hartt recai agora não no observador, mas no artista “primitivo”. Ele se vale aqui de uma lógica semelhante à que utiliza quando discorre sobre os artistas que trabalham na decoração do colégio Dom Pedro II:

Ha também uma outra difficuldade. A arte nasce e cresce debaixo da mão e do olho do artista; e o seu desenvolvimento não depende da apreciação do mero espectador. Em toda esta discussão deviamos imaginar-nos artistas primitivos, desconhecendo a arte superior e procurando modificar lentamente as formas decorativas, afim de que possam dar mais prazer aos nossos olhos. O artista decorativo não pôde traçar uma linha sem examinal-a no seu todo, e elle é quem sente todo o seu effeito. A musica differe da arte decorativa, porque o ouvinte percorre por necessidade toda a composição, emquanto na ornamentação a forma completa apresenta-se de uma só vez e raramente temos tempo de examinar com minuciosidade todas as particularidades da decoração, especialmente si o ornato é 81 complexo.

Como não deve ter soado, no Rio de Janeiro de 1875, o convite de Hartt a que todos se colocassem na pele de artistas primitivos? Outra vez Hartt apresenta aqui uma comparação com a música, recorrendo indiretamente à distinção entre artes do tempo e artes do espaço, que circulava na teoria da arte pelo menos desde o Laocoonte, de Lessing. O artista decorativo, como Hartt aponta, desenvolve a sua arte na prática, a partir da observação de seu próprio trabalho, mesma tese que seria defendida mais tarde por Gombrich no

80

HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 100. 81 Ibidem.

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já várias vezes mencionado The sense of order, e por Luigi Pareyson em seu Os problemas da estética.82 Passando agora a um outro tópico, convém ressaltar ainda, na versão de 1885, um sinal de como Hartt estruturava e conduzia suas conferências: Que uma tal obliteração de partes de um ornato se praticava entre os índios antigos de Marajó, tenho provas abundantes , e na conclusão desta leitura mostrarei a fotografia de um pedaço de louça do túmulo 83 de Pacoval, em que isso claramente se deixa ver.

Na década de 1860 Hartt usava vários desenhos próprios para ilustrar suas conferências, e a eles irá acrescentar fotografias, na década seguinte, o que será abordado brevemente no subcapítulo 3.2.

Após apresentar todos esses argumentos, e mais alguns outros que não será possível analisar aqui, Hartt, que em seu trabalho como geólogo havia se rendido ao darwinismo, mesmo sendo discípulo de Agassiz, um catastrofista a que contestava as teorias de Darwin, elabora um pouco mais a referência a este último, que já havia aparecido nas versões anteriores:

A evolução da arte decorativa é devida, em primeiro lugar, à tentativa contínua de dar prazer à vista, e, em segundo lugar, pela sobrevivência do mais belo, ou, em outras palavras, do mais próprio. É uma espécie de Darwinismo. Um ornato adaptado aos olhos é realmente belo, e conserva-se, ao passo que as formas mal feitas e mal adaptadas morrem. É interessante notar que os ornatos de graus diferentes sobrevivem uns ao lado dos outros, e que com os ornatos modernos conservamos formas de uma antiguidade immensa. Esta 84 circumstancia nos auxilia muito n'este estudo.

A constatação de que “ornatos de graus diferentes sobrevivem uns aos lado de outros” curiosamente prefigura o cerne da tese apresentada por George Kubler em The Shape of time: séries e tradições....85 Ponto comum na prática profissional de ambos – apesar da relativamente grande distância 82

Cf. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p.103. 84 Ibidem, p. 101. 85 Cf. KUBLER, George. The shape of time. Remarks on the history of things. New Haven and London: Yale University Press, 1962. 83

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temporal que os separa – é a atuação como arqueólogos e a extrema atenção dada à cultura material de povos pré-colombianos. Hartt trabalha, ainda na versão de 1885, um ponto que havia deixado em rodapé na versão da Popular Science Monthly, a degradação do ornamento, contrapartida necessária à ideia de evolução: Até aqui tenho descrito o desenvolvimento progressivo, mas na arte como na evolução dos animais há também degradação ou a adaptação de um ornato de alto grau a um grau inferior. Uma excelente demonstração disto é uma borda que se usa muito na arquitetura chamada a borda do ovo e da língua, ou do ovo e da frecha. O célebre artista crítico Ruskin diz que é uma tolice, e 86 pergunta: “O que é que os ovos têm que fazer com as frechas?”

A seguir, resume a argumentação de Ruskin sobre os defeitos do motivo ovo e flecha, que segundo ele nada mais seria do que uma deformação do motivo de artêmio. De modo algum temos aqui um tema novo. Vitrúvio, em seu célebre Tratado de arquitetura,87 e será seguidamente invocado pelos que criticam, no século XIX, a falta de adequação entre forma e função.

É digno de nota que Hartt também herda a preocupação com o desenvolvimento cultural humano, tanto em sua dimensão de progresso como, por vezes, de “degradação”, do ambiente científico no qual estava imerso. Hartt conviveu com o pensamento de defensores e de críticos do evolucionismo cultural, e irá apresentar uma teoria própria, que bebe em diversas correntes, como procuraremos demonstrar.

86

HARTT, Carlos Frederico. A origem da arte ou a evolução da ornamentação. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 95-108, 1885. p. 107. 87 Famosa declaração sobre essa decadência do ornamento é o seguinte trecho de Vitrúvio, tantas vezes citado: “Com efeito, nos estuques pintam-se mais monstros do que imagens determinadas de coisas concretas: pois ali se levantam caniços em lugar de colunas e, em vez de frontões, varinhas estriadas com folhas ondeadas e enrolamentos, bem como candelabros que sustentam imagens de edículas sobre cujos frontões surgem, a partir de raízes com volutas, tenras flores que apresentam estatuetas sentadas sem qualquer lógica. Isso sem falar dos caulículos que têm figurinhas partidas ao meio, umas com cabeças humanas, outras, com cabeças de animais” (VITRÚVIO. Tratado de arquitetura. Trad. M. Justino Maciel. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 360). Para uma exaustiva discussão sobre o tema da decadência no ornamento, cf. o capítulo II de GOMBRICH, E. H. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. London: Phaidon, 2002.

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Hartt, por exemplo, era leitor de John Lubbock, que cita em um de seus trabalhos.88 Lubbock, conforme a boa análise de Bruce Trigger, defendia que a tecnologia avançada de um povo correspondia também a uma cultura avançada. Ainda conforme a leitura de Trigger, para Lubbock “povos tecnologicamente menos avançados eram não apenas culturalmente mas também intelectual e emocionalmente mais primitivos de um ponto de vista biológico do que o eram os civilizados”.89 Por outro lado, Lubbock também defendia que tribos contemporâneas tinham a inteligência de crianças europeias, eram “incapazes de controlar o mundo natural”, eram mais depravadas moralmente do que os civilizados, possuíam cultura estática, e que as mulheres eram biologicamente inferiores, e em vários de seus textos Hartt apresentou posições incompatíveis com essas, como no apêndice sobre os Botocudos, publicado em Geology and physical geography of Brazil,90 no qual apresenta empatia com as mulheres da tribo e, em defesa dos índios, critica a incivilidade dos portugueses. Dito de outro modo, o evolucionismo cultural de Hartt é com frequência marcado pela moderação. Hartt era amigo do também geólogo e arqueólogo canadense John William Dawson,91 que, conforme Trigger, reagia ao evolucionismo quando apontava que a evidência etnográfica americana “revelava que povos indígenas que produziram os mais bem feitos implementos de pedra também produziam os mais rudes [...]”, de onde deduzia que “não havia evidência de

88

Cf. HARTT, Charles Frederick. Notes on the manufacture of pottery among savage races. Rio de Janeiro: The Office of the “South American Mail”, 1875; The American Naturalist, v. XIII, p. 78-93, 1879. 89 TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 173. 90 Cf. AGASSIZ, Louis; HARTT, Charles Frederick. Scientific results of a journey in Brazil and Geology and physical geography of Brazil. Boston: Fields, Osgood & Co.; London: Trübner & Co., 1870. 91 Cartas de Dawson a Hartt podem ser encontradas em WRIGHT, Albert Hazen (Org.). PreCornell and early Cornell II: letters to C. F. Hartt. Studies in History. N. 16. Ithaca: Cornell University, 1953, passim.

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que culturas em diferentes níveis de complexidade não coexistissem através da cultura humana”.92 Hartt era, enfim, leitor de Squier, outro renomado defensor da unidade psíquica, a saber, a teoria que, em uma de suas formulações mais difundidas, a do etnólogo alemão Adolf Bastian (1826-1905), propõe que pessoas no mesmo nível de desenvolvimento tendem a uma solução similar quando confrontadas com um problema similar.93 Portanto, ainda que Hartt recorra à fórmula biológica de Darwin para sintetizar sua teoria sobre a evolução do ornamento, podemos perceber que ela sem dúvida não dá conta da complexa teia de argumentos que arma em seus textos. Imerso no debate vitoriano sobre a primazia da cultura (Ruskin) ou do inatismo biológico (Darwin), contemporâneo das novas discussões sobre a psicologia da percepção (Owen Jones) e da materialidade da técnica (Semper), discípulo de Agassiz, amigo de Dawson, leitor de um darwinista como John Lubboc, de um moderado como Squier, e talvez leitor de Kant, Hartt procurou uma teoria conciliadora que desse conta das muitas dimensões do desenvolvimento do ornamento, das biológicas às culturais. As constantes revisões, perceptíveis no cotejamento dos seus quatro artigos sobre o tema, indicam um pensamento inquieto, que percebia a dificuldade da tarefa de conciliar esses extremos teóricos aplicados a um contexto arqueológico brasileiro. No próximo subcapítulo, a fim de melhor situar o pensamento de Hartt em sua época, procuraremos recuperar, ao menos em parte, o contexto de recepção de seus textos sobre o ornamento.

92

TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 157. 93 Cf. TRIGGER, op. cit., p. 155.

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REFERÊNCIAS:

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39

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41

2 EVOLUÇÃO DO ORNAMENTO: CONTEXTO, DIVULGAÇÃO E REPERCUSSÕES

Charles Frederick Hartt desenvolveu sua teoria da evolução do ornamento em meio a uma série de compromissos acadêmicos e profissionais, mas também estimulado pelo desafio de comunicar suas ideias a um grande público. Entre suas conferências, aquela sobre a evolução do ornamento, que resultou nos textos analisados no subcapítulo anterior, foi uma das mais repetidas e comentadas. Aqui, portanto, após uma breve apresentação das atividades de Hartt no período, tais quais divulgadas em periódicos americanos, e dos textos sobre arqueologia indígena publicados à época, procuraremos recuperar parte da repercussão dessas conferências junto à imprensa americana, e também alguns de seus desdobramentos posteriores através da análise de autores que deram prosseguimento à pesquisa sobre a evolução do ornamento, nos termos inicialmente propostos por Hartt. Um ex-aluno de Hartt, M. A. Simonds, recorda do dia em que se despediu de seu professor, ainda em Ithaca: Escrevi sobre o professor Hartt como um professor, pois foi como meu professor que eu o conheci. Sua carreira em Cornell terminou com sua partida para o Brasil no outono de 1874. Com uns poucos amigos pessoais eu o acompanhei até o topo de Ithaca Z quando ele partiu no trem para Nova York, e ali eu lhe disse adieu. Ai de mim, 94 esta foi uma despedida final, pois eu nunca mais o vi novamente.

Entre 1874 e 1875, período em que Hartt proferia conferências acerca da evolução do ornamento e publicava seus dois primeiros textos sobre o tema, seus passos são acompanhados de perto pela imprensa norte americana. O The New York Times acusa a chegada de Hartt a Nova York, após se despedir de Simonds, na edição de 27 de agosto de 1874.95 Já em 31 de agosto o jornal 94

SIMONDS, M. A. Professor Ch. Fred. Hartt. The American Geologist, p. 68-99, February, 1897. p. 72. 95 ARRIVALS AT THE HOTELS. New York Times, 27 aug. 1874: “Hon. Lucius Robinson, de Elmira,e o Prof. Charles F. Hartt, da Cornell University, estão na Hoffman House”.

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anuncia que a nova viagem de Hartt ao Rio de Janeiro terá início em 5 de setembro, e que um de seus principais propósitos é a realização de investigações arqueológicas. Os apoiadores da missão também são elencados: entre eles encontram-se as Universidades de Cornell e Yale, os Museus Peabody (Cambridge) e Metropolitam (Nova York – interessante destacar esse apoio de um museu dedicado às artes a uma expedição que visa, entre outras atividades, coletar objetos indígenas), e o jornal O Novo Mundo (Fig. 1), publicado por J. C. Rodrigues, amigo de Hartt.96

Fig 1. Capa de O Novo Mundo, edição de agosto de 1874 Fonte: http://www.onovomundo.net/ago_1874/imagens.htm

Em 27 de setembro de 1874 é a vez do Appleton's Magazine repetir, quase ipsis litteris, a notícia publicada no New York Times sobre a viagem de

96

Cf. Prof. Hartt’s Expedition to Brazil. New York Times, August 31, 1874.

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Hartt ao Brasil.97 Os objetivos de Hartt nessa expedição são melhor detalhados na nota publicada no Cornell Era, também em setembro de 1874: O Professor Hartt embarcou no último sábado em Nova York, para o Brasil, via Liverpool. O objetivo da visita do professor é examinar de modo mais completo o drift, sambaquis, mounds indígenas, rochas com ouro e diamante do Amazonas. Ele também deseja empreender o estudo da linguagem da região. A viagem irá ocupar cerca de quatro meses. Durante esse tempo o Sr. O. A. Derby de ‘74 ficará 98 encarregado pelo laboratório de geologia.

Aqui aparece a menção ao desejo de estudar línguas indígenas, informação que não consta nas notas do New York Times e do Appleton’s Magazine. A chegada de Hartt ao Rio de Janeiro em 15 de novembro é igualmente reportada pelo New York Times, em nota na edição de 21 de novembro de 1874, que também anuncia a provável contratação dos serviços de Hartt pelo Império Brasileiro: “O professor provavelmente irá receber uma comissão do Governo Imperial para fazer algumas explorações especiais”. 99 Uma breve nota na Harper’s de janeiro de 1875 anuncia, do mesmo modo, a chegada de Hartt ao Brasil, com o intuito de estudar “a geologia e a arqueologia do país”.100 Depois que Hartt e seus assistentes se instalam no Brasil as notas, nos periódicos mencionados, são mais esparsas. É assim que o Appleton’s Journal de 12 de junho de 1875 cita nota publicada na edição da Nature, de 4 de maio, 97

O texto é praticamente idêntico ao do New York Times. Cf. Science and Invention. Appleton’s journal: a magazine of general literature, v. 12, Issue 288, 26 Sept 1874, p. 414415. 98 Cornell Era, Set. 11, 1874, p. 7. Apud WRIGHT, Albert Hazen (Org.). Pre-Cornell and early Cornell II: letters to C. F. Hartt. Studies in History. N. 16. Ithaca: Cornell University, 1953. p. 43. 99 O correspondente especial do New York Times no Rio de Janeiro escreve sobre Hartt, no dia 24 de outubro de 1874: “O Prof. Charles Frederick Hartt, da Cornell University, chegou ao Rio no dia 15, com seus assistentes, em sua quinta expedição ao interior do Brasil. A expedição é realizada sob os auspícios da Cornell University, mas recebeu grande ajuda material do Cel. Edwin B. Morgan, de Aurora, N. Y., e outro cavalheiros que assumiram até agora um interesse nas pesquisas brasileiras do Prof. Hartt. O Prof. irá provavelmente receber uma comissão do Governo Imperial para fazer algumas explorações especiais. Nesse evento ele estará apto a fazer uma valiosa contribuição ao presente conhecimento sobre a geologia e paleontologia brasileiras” (The Argentine Republic. New York Times, November 21, 1874). 100 A breve nota contém um pequeno erro: Hartt vai ao Brasil em sua quinta, e não quarta expedição: (Miscellaneous front pages. Harper’s New Monthly Magazine, v. 50, n. 296, January 1875, p. 143).

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anunciando a finalização das negociações entre o governo brasileiro e Hartt, que foi então nomeado diretor da Comissão Geológica do Império (a revista informa, no entanto, que os trabalhos envolverão ainda estudos etnológicos), com um salário anual de 10 mil dólares.101 Em novembro de 1876, a Harper’s publica uma nota contando as novidades divulgadas à revista pelo próprio Hartt, agora já investido como chefe da Comissão Geológica, tais como o início do estudo da meteorologia do Império iniciado por sua equipe, e a publicação do primeiro número dos Archivos do Museu do Rio de Janeiro.102 Nota especificamente sobre essa edição dos Archivos aparece também na edição de 22 de setembro de 1876 de Cornell Era,103 e na Popular Science Monthly de outubro do mesmo ano (que também faz referência a uma notícia no jornal Nation): Os Archivos são publicados quadrimestralmente, e são um órgão do Museu Nacional do Brasil. Seu primeiro objetivo é apresentar um relato da contribuição para a ciência feita por essa instituição, mas irá também de tempos em tempos conter ensaios sobre temas científicos de outras fontes. No presente número (que é o primeiro) há três artigos: “Estudos dos Sambaquis do sul do Brazil”, por Carlos Wiener: “Sobre algumas Tangas” (bem traduzido como “fig-leaves” no The Nation”) de barro cozido dos antigos habitantes da Ilha de Marajó”, de Ch. Fred. Hartt; e “Estudos sobre a Evolução morfológica dos tecidos 104 em Sarmentose Caulses”, de Ladislau Netto.

E, enfim, aparece ainda na The Galaxy de fevereiro de 1877, que também divulga, como área de interesse de pesquisa da nova equipe do 101

Cf. Science, Invention, Discovery. Appleton’s journal: a magazine of general literature, v. 13, Issue 325, June 12 1875, p. 766-767. 102 “Professor C. F. Hartt, anteriormente da Cornell University, mas agora chefe da Comissão Geológica do Brasil, escreve que ele tentou fazer algo pela meteorologia naquele Império, onde o campo de operações secunda apenas aquele que é encontrado nos Estados Unidos. A publicação dos arquivos do Museu do Rio de Janeiro foi iniciada, e comunicações relativas à meteorologia podem em breve ser esperadas do Professor Hartt e seus assistentes” (Editor’s Scientific Record. Harper’s New Monthly Magazine, v. 53, n. 318, November 1876, p. 941). 103 “Fomos favorecidos durante a semana com uma cópia dos ‘Archivos do Museu Nacional’, do Rio de Janeiro, através da cortesia do Prof. Hartt, que é um dos editores. O objetivo da publicação é chamar a atenção de sábios e eruditos para a grande importância das pesquisas geológicas e etnológicas que estão sendo feitas agora por eminentes brasileiros e estrangeiros. O número diante de nós contém um artigo do Prof. Hartt sobre cerâmica e wearing apparel dos antigos índios da ilha de Marajó, que é embelezado por várias excelentes fotografias de instrumentos de guerra, cerâmica e ornamentação indígena, na qual o Professor está tão profundamente interessado. Ele é o diretor do departamento de Física, Mineralogia, Geologia e Paleontologia do Museu e reporta grande progresso desde que se conectou a ele” (The Cornell Era, 22 sept. 1876, p. 7. Apud WRIGHT, Albert Hazen (Org.). Pre-Cornell and early Cornell II: letters to C. F. Hartt. Studies in History. N. 16. Ithaca: Cornell University, 1953. p. 47). 104 October Literaty Notice. The Popular Science Monthly, v. IX, may to october 1876. New York: D. Appleton and Company, 1876, p. 762.

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Museu Nacional do Rio de Janeiro, da qual Hartt faz parte, a arqueologia brasileira.105 O curto período que vai de 1874 a 1876 concentra parcela importante das publicações de Hartt sobre arqueologia indígena brasileira. A Nota sobre algumas tangas de barro cosido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó106 publicada na já mencionada primeira edição dos Archivos, em 1876, foi belamente ilustradas por litografias de Angelo Agostini (amigo de Hartt e na época editor da Revista Illustrada), feitas a partir de fotografias tomadas pelo próprio Hartt (Figs. 2 e 3),107 que havia levado ao Brasil, conforme noticiado pelo New York Times e pela Appleton Magazine, um “excelente aparato fotográfico para fazer negativos chapa seca, a fim de tomar uma extensa série de vistas ilustrando o país que ele visita”. 108 Nesse breve artigo Hartt, após descrever um conjunto de tangas encontrado em Marajó, analisa sua decoração, recorrendo a ideias já formuladas em Evolução do ornamento: Muitas de tais figuras são meros ornamentos estéticos, sem significação alguma, porém em alguns exemplares notam-se, como também na louça ordinária do Pacoval, muitos desenhos intrincados que não são senão convenções para representar o rosto humano. As linhas destes adornos estão traçadas com uma firmeza admirável, e a este respeito estes objetos podem ser comparados mui apropriadamente com as produções dos antigos oleiros da Grécia 109 antiga.

105

“Recebemos o primeiro número dos ‘Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro’. Essa é uma instituição científica, e pelo número de funcionários nomeados parece estar preparada para inaugurar um trabalho completo em arqueologia, geologia, botânica, zoologia, etc. Seu objetivo, no entanto, não é meramente o estudo da ciência pura, mas sua aplicação ao bemestar imediato do homem através da agricultura e das indústrias. O diretor geral é op Dr. Netto, e o secretário, o Dr. João Joaquin Pizarro. A maior parte dos funcionários é brasileira, mas nosso compatriota, Prof. Hartt, é diretor das ‘ciências físicas’, incluindo geologia, mineralogia e paleontologia. Este primeiro número dos ‘Archivos’ contém artigos em língua portuguesa sobre remanescentes aborígenes, um pelo Prof. Wiener e pelo Prof. Hartt, e um pelo Dr. Netto, sobre um tema botânico” (Literature. The Galaxy, v. XXIII, n. 2, February, 1877, p. 284). 106 HARTT, Carlos Frederico. Notas sobre algumas tangas de barro cosido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó. Archivos do Museu Nacional, n. 1, p. 21-25, 1876. Uma menção a essa publicação pode ser encontrada em Miscellaneous. Overland monthly and Out West magazine, v. 15, Issue 6, Dec 1875. p. 596. 107 Não dispomos das fotografias originais de Hartt, mas a Fig. 4 é uma fotografia de Frederick P. Orchard, pertencente à Peabody Collections of Archaeology and Ethnology, que mostra justamente uma das tangas também fotografadas por Hartt. 108 Prof. Hartt Expedition to Brazil. New York Times, 31 August 1874. 109 HARTT, op. cit., p. 23.

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Fig. 2. Tangas de Barro cozido. Litografias de Angelo Agostini, a partir de fotografias de Charles Hartt. Fonte: Archivos do Museu Nacional, n. 1, 1876.

Fig. 3. Tangas de Barro cozido. Litografias de Angelo Agostini, a partir de fotografias de Charles Hartt. Fonte: Archivos do Museu Nacional, n. 1, 1876.

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Fig. 4. Ornamento decorado e boca de vaso. Fotografia de Frederick P. Orchard Ilha de Marajó, ilha do Pacoval. Dimensões: 12,7 cm x 17,78 cm Negativo; nitrato. Fonte: Peabody Collections of Archaeology and Ethnology – Collections online.

Um ano antes, em 1875, Hartt publicara no The American Naturalist o artigo The Indian cemetery of the Gruta das Mumias, Southern Minas Geraes, Brazil, no qual descreve os seis corpos mumificados que encontrou, acomodados em vasos, em uma caverna próxima à Fazenda da Fortaleza, do então Conselheiro Diogo Velho de Albuquerque. Também aqui ele procura, sempre que possível, por ornamentação. Como não a encontra nos vasos retirados do local, formula a seguinte hipótese: É seguro dizer que quanto o corpo deve ser enterrado imediatamente o vaso não é feito para esse propósito. Leva tempo fazer e ornamentar um vaso de argila, e pode-se ver que verdadeiras urnas funerárias no Brasil usualmente conterão apenas os ossos limpos do morto. Aqueles de Marajó são com frequência feitos com o maior cuidado e muito elaboradamente ornamentados. Já chamei a atenção para o fato de que são com frequência verdadeiros gesichtsurnem, maravilhosamente semelhantes àqueles do velho mundo, sobre os 110 quais tanto foi escrito nos últimos anos pelos arqueólogos alemães.

110

HARTT, Charles Frederick. The Indian cemetery of the Gruta das Mumias, Southern Minas Geraes, Brazil. The American Naturalist, v. IX, n. 4, p. 205-217, April 1875. p. 217. Uma boa descrição desse artigo, em duas páginas, aparece em A burial cave in Brazil. The Galaxy. A magazine of entertaining reading, v. XXI, p. 135-136, January-June 1876.

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Nessa passagem fica manifesto um outro tema de interesse de Hartt, que surgiu logo que entrou em contato com a cerâmica dos antigos índios da Amazônica: as urnas antropomórficas, chamadas em alemão de gesichtsurnem e em inglês de face urns. Conforme já apontado no capítulo 1, em 1872 Hartt publicara, mais uma vez no The American Naturalist, um artigo sobre elas, On the occurrence of face urns in Brazil.111 Ainda no artigo sobre a Gruta das Múmias merece destaque o parágrafo conclusivo, por apresentar a visão de Hartt sobre o difícil cenário da pesquisa sobre arqueologia indígena com o qual ele se defrontava no Brasil: No presente estado de nosso conhecimento da arqueologia brasileira, é impossível determinar a tribo à qual o cemitério pertencia. Somos ignorantes quanto à época do enterro e com relação à história das diferentes tribos, que por sua vez ocuparam a localidade. De fato, a pouca informação que possuímos sobre os últimos aborígenes que se sabe terem existido nessa parte do sul de Minas é escassa ao 112 extremo.

Desde o momento em que entrou em contato com a arqueologia indígena brasileira, Hartt passou a buscar com bastante empenho referências que pudessem auxiliá-lo em suas pesquisas. Dos textos que publicou em vida, Notes on the manufacture of pottery among savage races,

113

também

concluído em seu último período no Brasil e já brevemente comentado no subcapítulo anterior, é o que melhor parece refletir a profundidade de sua pesquisa bibliográfica. Esse ambicioso artigo, assim como ocorrera com Evolution in ornament, aparece em mais de uma versão. No Rio de Janeiro, conforme já mencionado, é publicada a primeira versão, em inglês, em 1875. Lemos aqui uma nota do autor, explicando o seu problema de acesso à parte da bibliografia necessária ao artigo:

111

Cf. HARTT, Charles Frederick. On the ocurrence of face urns in Brazil. The American Naturalist, v. VI, p. 607-610, 1872. 112 HARTT, Charles Frederick. The Indian cemetery of the Gruta das Mumias, Southern Minas Geraes, Brazi. The American Naturalist, v. IX, n. 4, p. 205-217, April 1875. p. 217. 113 HARTT, Charles Frederick. Notes on the manufacture of pottery among savage races. Rio de Janeiro: The Office of the “South American Mail”, 1875.

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Esse artigo foi escrito no Rio, quase inteiramente a partir de notas manuscritas feitas antes de deixar os Estados Unidos. Eu pretendia referir largamente as obras de Tylor, Lubbock, Wilson, Jones e Rau, para com os quais estou em dívida, mas eles são no presente momento inacessíveis para mim. Devo afirmar que considerei muito pouco de segunda mão, tendo tido o trabalho, em quase todos os casos, de procurar e usar o documento original. Como esse artigo irá, em breve, aparecer em forma mais extensa como um capítulo de um livro sobre Antiguidades Brasileiras, espero ser capaz de remediar as 114 deficiências, neste momento inescapáveis.

O artigo será abreviado por Otis Tufton Mason (1838-1904), então um dos editores do The American Naturalist, para publicação nesse periódico em 1879. Vários trechos são cortados e as referências bibliográficas (Hartt consulta cerca de 80 obras) também são resumidas e, em algumas ocasiões, corrigidas. A tradução para o português que aparecerá nos Archivos do Museu Nacional, em 1885, como subcapítulo de uma publicação póstuma de Hartt, Contribuições para a etnologia do Vale do Amazonas, corresponde ao texto integral de 1875.115 Voltado à análise das técnicas usadas pelos ceramistas das “raças selvagens”, Hartt dá mais um passo em sua tentativa de compreender a evolução dos diferentes estágios de desenvolvimento cultural. Em busca de informações sobre a confecção da cerâmica entre povos “primitivos” contemporâneos ou antigos, lê muitos viajantes, tais quais Burney, Chardin, Cook, Debret, De Bry, Edwards, Herndon e Gibbon, Jenkins, Lery, Lyon, Smyte e Lowe, Schmidtmeyer, Staden, Wallace e naturalistas como Azara, Bates, Castelnau, D’Orbigny, Ewbank, Humboldt, Martius, Molina, Pöppig e Von Tschudi, além de manuais específicos sobre técnicas cerâmicas e textos de antropólogos e etnólogos. Os artigos de Hartt sobre temas arqueológicos, comentados até aqui, visavam em parte um público leigo, em parte um público especializado, intenção facilmente identificada pela observação da natureza dos periódicos 114

HARTT, Charles Frederick. Notes on the manufacture of pottery among savage races. Rio de Janeiro: The Office of the “South American Mail”, 1875. p.10. 115 HARTT, Charles Frederick. Apontamentos sobre o fabrico da louça de barro entre os selvagens. Archivos do Museu Nacional, v. VI, p. 63-94, 1885.

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em que foram publicados. É importante que destaquemos também a relevância das palestras de Hartt em seu trabalho de divulgação científica. Um dos temas que mais renderá palestras para o grande público e que despertará sua atenção será justamente o da ornamentação da cerâmica indigena, como veremos. São muitos os testemunhos do sucesso de Hartt como conferencista. O mesmo Simonds que descrevera sua despedida de Hartt em Ithaca, em 1874, deixou-nos uma vívida descrição do modo como Hartt preparava e apresentava suas concorridas conferências:

Como conferencista, o professor Hartt era claro, conciso e magnético. Ele era, além do mais, um artista e suas ideias eram frequentemente reforçadas pelo uso de quadro-negro e giz, pois ele desenhava pronta e rapidamente. Tenho comigo notas tomadas em suas conferências na primavera de 1873. Elas mostram que muitas de suas ilustrações eram desenhadas a partir de fontes locais e brasileiras – e que ele colocou em sua lição suas próprias observações e experiências. O plano do curso é admirável e tão bem adaptado às necessidades do estudante que poderia ser usado como base para instrução similar hoje. Suas conferências eram principalmente destinadas à cultura geral, sendo sua instrução mais avançada, na maior parte, confinada a seu laboratório. Lá os estudantes recebiam livros e espécimes e, depois de breves sugestões sobre como usá-los, eram deixados a trabalhar por si mesmos. Aquela agudeza de insight que o guiava, aquela qualidade tão essencial a um investigador original, ele esperava ver desenvolvida pela própria natureza da tarefa 116 empreendida.

Hartt começou cedo sua carreira como palestrante. Rathbun, outro de seus ex-alunos, conta que logo após voltar aos Estados Unidos depois da Expedição Thayer ao Brasil, Hartt havia começado a lecionar e palestrar em diversos locais: No curto intervalo transcorrido entre a primeira e a segunda viagem, ele estava envolvido em ensino e em apresentação de conferências científicas na cidade de Nova York e arredores, no Cooper Institute, Pelham Priory e outros lugares, onde obteve muito sucesso e fez

116

SIMONDS, M. A. Professor Ch. Fred. Hartt. The American Geologist, p. 68-99, February, 1897. p. 72.

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muitos calorosos amigos que o ajudaram em sua segunda expedição 117 ao Brasil.

Em 14 de março de 1867 Hartt havia mesmo preparado um breve currículo, que mandou imprimir e fez circular entre as instituições de ensino novayorkinas, a fim de divulgar suas conferências e oferecer, assim, essa prestação de serviço:

Prof. C. Fred Hartt A. M. Antes vinculado ao Museu de Zoologia Comparada, de Cambridge, Mass. e um dos Naturalistas na Exploração do Brasil, sob o Prof. Agassiz, vem respeitosamente informar aos Diretores ou Proprietários de Instituições Educacionais em Nova York e na cercania, que ele fixou residência nessa cidade e está preparado para apresentar ciclos de conferências ou para dar lições em Zoologia e Geologia, ilustrando seus exercícios com numerosos espécimes de História Natural, e copiosos esboços em quadro-negro. Ele ficaria feliz de ser convidado a falar em qualquer escola e explicar seu método de ensino por meio de uma conferência introdutória sobre qualquer uma das matérias acima. Prof. Hartt tem a honra de portar credenciais de seu antigo preceptor, Prof. Agassiz, e se necessário, pode fornecer testemunhos de muitos outros distintos naturalistas, assim como de diretores de instituições 118 em que ele apresentou ciclos de conferências.

Hartt coloca ao final da circular seu endereço comercial, as salas da the New York Association for the Advancement of Science and Art, Cooper Institute. Sobre sua atuação no Cooper Institute teremos oportunidade de discorrer ainda neste subcapítulo. Já professor em Cornell, os dons de Hartt como conferencista são constantemente lembrados no periódico da instituição, Cornell Era. Na edição 117

RATHBUN, Richard. Sketch of the life and scientific work of Professor Charles Frederic Hartt. Proceedings of the Boston Society of Natural History, v. XIX, p. 338-364, 1878. p. 344. 118 HARTT, Charles Frederick. Printed Circular: Prof. C. Fred Hartt A. M. In: WRIGHT, Albert Hazen (Org.). Pre-Cornell and early Cornell II: letters to C. F. Hartt. Studies in History. N. 16. Ithaca: Cornell University, 1953. p. 58.

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de 19 de janeiro de 1870 elogia-se o sucesso da série de oito conferências sobre “A geografia física do Globo”, com destaque para os desenhos ilustrativos do próprio Hartt e para seu esforço consciente em evitar “o excesso de termos científicos e tecnicalidades”, cuidado que garante que suas explicações possam ser também compreendidas “por uma mente jovem ou não científica”.119 Em 17 de maio de 1872 outra nota sobre as conferências de Hartt é publicada, que não apenas ressalta a novidade dos temas de que trata, mas também o uso que faz da fotografia (Hartt seria o fundador, aliás, do primeiro laboratório fotográfico da universidade):120

A Irving Society fez uma boa coisa ao dar ao público a chance de escutar o Prof. Hartt sobre o Brasil. Ele está qualificado para falar sobre aquela parte do globo como poucos homens estão, e os impressionantes fatos que relata seriam inacreditáveis vindos de outra fonte. Que possa existir sobre a terra tais raças como as que ele descreve, tais indivíduos, cenários e animais é fascinante, assim como era até agora desconhecido para a maioria de seus ouvintes. As vistas estereoscópicas que ele apresenta são na maior parte de fotografias feitas por ele mesmo enquanto estava no Brasil, e como explicadas por ele, são divertidas e instrutivas. Ninguém deve deixar de assistir sua última conferência, que ocorre na noite da próxima 121 terça-feira.

O carisma de Hartt junto aos alunos de Cornell, e o estilo de suas palestras será mais uma vez lembrado no momento em que sua morte é comunicada nas páginas do periódico: Não se pode ter nenhum testemunho melhor da grande estima em que ele era tido tanto como um hábil professor quanto como um homem amável e compreensivo do que as usualmente grandes turmas que sempre assistiam a suas conferências, e e as ouviam 122 com atenção absorta e inabalável.

Não imaginemos, contudo, após todas essas passagens extraídas de Cornell Era, que Hartt tenha confinado sua carreira de conferencista às

119 120

121 122

The Lectures of Professor Hartt. Cornell Era, v. II, n. 15, January 19, 1870. p. 115. Cf. O Professor Hartt. O Novo Mundo, Abril, 1878, p. 74. Professor Hartt’s Lectures. Cornell Era, v. IV, n. 27, May 17, 1872, p. 424. Obituary – Charles Frederick Hartt. Cornell Era, March 22, 1878. p. 6.

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paredes da universidade. Hartt continuou a palestrar nos mais variados locais depois de se tornar professor em Cornell. Havia as comunicações apresentadas em sociedades científicas, como a que proferiu em 21 de abril de 1873, na Geological Section do Lyceum of Natural History de Nova York. Na ocasião, além dos achados geológicos e paleontológicos, fez menção, por exemplo, a suas pesquisas sobre as antiguidades brasileiras, e traçou relações entre a cerâmica indígena do país e a encontrada no Perú e na América Central123 – temos provavelmente aqui o germe de seu artigo de 1875, Notes on the manufacture, há pouco comentado. Conforme já apontado no subcapítulo 3.1, Hartt fazia transitar os mesmos temas em ambientes diferentes – foi assim também que comunicou seu trabalho sobre a evolução do ornamento em Albany (1873) e prosseguiu divulgando sua teoria em outras oportunidades, tanto em Nova York como em Boston e Syracuse. 124 Uma delas, e uma das que teve maior repercussão, foi sua conferência Evolution in ornament no Cooper Union Free Course for the People, de acordo com nota publicada no New York Times de 14 de fevereiro: A próxima conferência no Cooper Union Free Course for the People irá ocorrer esta noite, na Great Hall às 20h, com o Prof. Charles F. 125 Hartt, de Cornell University, sobre a “Evolução no ornamento”.

Vimos há pouco que Hartt possuía vínculos com a Cooper Union desde a década de 1860. Criada pelo filantropo e industrialista Peter Cooper (17911883), filho de trabalhador, um self-made man que fez fortuna com os telégrafos e com as estradas de ferro, abriu suas portas em 1859. Cooper, que possuía apenas um ano de educação formal, criou a instituição para oferecer amplas oportunidades de estudo aos trabalhadores desassistidos. Uma característica central da instituição (que continua a funcionar até hoje) é a oferta de bolsas de estudo integrais a todos os seus alunos. Outra característica inovadora é o modo como foi construído o prédio que a abriga. O arquiteto que a concebeu, Frederick A. Petersen, com o apoio de Cooper, que 123

Proceedings of the Lyceum of Natural History in the City of New York. Series I (april 4, 1874 to December 4, 1871); Series II (January 6, 1873, to June 1, 1874). New York: Published by the Society, 1874. p. 15-16. 124 Cf. RATHBUN, Richard. Sketch of the life and scientific work of Professor Charles Frederic Hartt. Proceedings of the Boston Society of Natural History, v. XIX, p. 338-364, 1878. p. 347. 125 City and suburban news. The New York Times, February 14 1874.

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desejava valorizar produtos americanos, recorreu a novos materiais, como terracota e, sobretudo, ferro.126

Fig. 5. Edward A. Sargent, prédio da Cooper Union, Nova York, 1871. Lápis e aquarela sobre papel. Fonte: Collection of the Cooper Union Library.

O pioneirismo se fez sentir, igualmente, na abertura de oportunidades à estudantes mulheres. A instituição, dotada de uma biblioteca e de uma grande sala de conferências, o Great Hall, aberta em 1858, um ano antes do restante do prédio, logo se tornou um centro para o debate de ideias liberais em Nova York. Foi no Great Hall que Abraham Lincoln pronunciou o discurso que decidiu sua eleição como presidente dos Estados Unidos, em 1860, o famoso "Right Makes Might".127 No mesmo auditório de 900 lugares foram divulgadas, ainda nos tempos de Hartt, campanhas em prol dos direitos trabalhistas e do movimento sufragista feminino.128 A Cooper Institution oferecia cursos voltados à formação de artistas, engenheiros e arquitetos. O norte da América, desde a Guerra da Secessão, vivia um período de expansão nas artes, e a Cooper Institution é um dos 126

Cf. SHOCKLEY, Jay; TUNICK, Susan. The Cooper Union Building and Architectural Terra Cotta. Winterthur Portfolio, v. 39, n. 4, p. 207-228, Winter 2004. p. 215. 127 Cf. SCHWARTZ, Barry. Review: Harold Holzer. Lincoln at Cooper Union: The Speech that Made Abraham Lincoln President. The American Historical Review, v. 110, n. 3, p. 796, June 2005. 128 Cf. The Great Hall. Disponível em: http://cooper.edu/about-us/history/The Great Hall. Acesso em: 20 Jul. 2011.

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símbolos desse novo cenário, juntamente com outras instituições, tais como a National Academy of Design, cujo novo prédio, em Nova York, construído em estilo gótico veneziano e inaugurado em 1865, fazia clara referência ao estilo propugnado por Ruskin nos livros As pedras de Veneza e As Sete Lâmpadas da Arquitetura. Críticos como Tuckerman, é bem verdade, apontam as limitações do contexto artístico americano, tal como configurado na época. Tuckerman critica em especial o que entendia como a excessiva dependência da arte americana com relação ao mercado – para ele, o artista americano era demasiado propenso a repetir temas e técnicas a fim de garantir seu conforto financeiro.129

Um artigo intitulado The art-schools of New York (1878), de

William C. Brownell, o futuro editor de Edith Warton, ilumina outro ângulo desse cenário, o modo como questões estéticas eram apreciadas pelo público americano: O período que estamos atravessando agora pode ser descrito como uma espécie de despertar intelectual em pequena escala. Em questões estéticas, certamente parece haver evidência disso. Há dez anos atrás pouca atenção era dada à estética por parte do que é conhecido como grande público. O grande público tinha sua atenção completamente ocupada por matérias bastante distintas e mesmo hostis aos assuntos estéticos – a eleição de presidentes [...], a resolução da questão da escravidão, a resolução da questão do Gênesis e da Geologia, o controle do algo singular interesse no liceu [...] relativo a tudo o que diz respeito ao universo político e ético, da abstinência alcoólica à questão da mulher [...]. Mas o público não 130 pensava muito a respeito da arte.

Hartt ocupa uma posição curiosa no cenário pintado por Brownell: realizava palestras sobre ciências, mas também sobre artes, e artes consideradas exóticas, como a ornamentada cerâmica marajoara. A questão 129

“De fato, toda a relação da arte com o público mudou nos últimos dez anos: seus produtos são uma commodity mais familiar; a construção de estúdios, vernissages, leilões de produções especiais, a influência da imprensa, as constantes exposições, e a popularidade de alguns pintores estrangeiros e nativos, para não falar da multiplicação de cópias [...], o aumento das viagens assegurando intercâmbio de produtos artísticos – essas e muitas outras circunstâncias aumentaram grandemente a importância mercantil e social da arte” (TUCKERMANM, Henry. Book of the artists: american artist life. Apud BJELAJAC, David. American art: a cultural history. 2. ed. New York: Prentice Hall Press, 2004. p. 241). 130 BROWNELL, William C. The art-schools of New York. Scribner's Monthly, an illustrated magazine for the people, v. 16, Issue 6, p. 761-781, October 1878. p. 761-762.

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da mulher também o ocupava, afinal, já dera aulas em uma escola para mulheres, o Vassar College, e se casara com uma professora e cientista amadora, Lucy Cornelia Lynde. Além disso, em vários de seus artigos menciona algo sobre a posição das mulheres como artistas nas sociedades indígenas, que apresenta como melhores artistas, diaga-se de passagem, do que muitas das alunas da Cooper Union, pelo menos conforme a dura análise, mais uma vez, de Brownell: “Dez ou doze restam, nunca mais do que isso, e destas a maioria pouco faz ao longo do ano para merecer a instrução que recebem – não mais do que dois ou três, de fato, parecem prometer se tornar futuras Rosa Bonheurs”.131

Fig. 6. Alcovas de antiguidades. School of Design for Women, Cooper Union. Professor: Wyatt Baton. desenho: Francis Lathrop. Fonte: BROWNELL, William C. The art-schools of New York.

131

BROWNELL, William C. The art-schools of New York. Scribner's Monthly, an illustrated magazine for the people, v. 16, Issue 6, p. 761-781, October 1878. p. 771.

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Fig. 7. Aula de retrato. School of Design for Women, Cooper Union. Professor: Wyatt Baton. Desenho: Francis Lathrop. Fonte: BROWNELL, William C. The art-schools of New York.

Na noite do dia 14 de fevereiro de 1874, portanto, Hartt estava em um grande auditório, ocupado por um público leigo, em uma das instituições mais progressistas de Nova York, e que iria no futuro criar o primeiro museu americano dedicado às artes decorativas,132 pronto a falar sobre a ornamentação da cerâmica marajoara, uma palestra que estava apresentando também em outros locais.133 Ao contrário de várias das outras palestras de Hartt, cujo conteúdo e repercussão não foram devidamente documentados, no caso desta podemos contar com um registro, relativamente minucioso,

132

“O Cooper Union Museum não é alheio à mudança dos cânones de gosto seja no design, seja no princípio educacional. Desde sua abertura oficial em 1897, ele permaneceu o único museu no país preocupado com as artes decorativas mundiais. Seus fundadores estabeleceram-no como um museu que serve ao designer, ao artesão , ao estudante. Eles haviam visto e admirado as coleções do South Kensington Museum, em Londres, e do Musée des Arts Décoratifs, em Paris, e acreditavam fortemente que uma coleção similar de artes decorativas seria útil para a elevação dos padrões de design e execução em seu próprio país” (KALLOP, Edward. The Cooper Union Museum. Art Journal, v. 23, v. 2, p. 117-120, Winter, 1963-1964. p. 118). 133 Simonds, por exemplo, registra a conferência Evolution in Ornament proferida por Hartt na Natural History Society, em 1874: “Mais ou menos nessa época ele realizou uma conferência diante da Natural History Society, uma das mais conhecidas organizações de estudantes, sobre a ‘Evolução no ornamento’. Essa conferência extremamente interessante foi repetida em outros lugares, e, em uma forma elaborada, foi finalmente publicada na Popular Science Monthly de janeiro de1875” (SIMONDS, M. A. Professor Ch. Fred. Hartt. The American Geologist, p. 68-99, February, 1897. p. 81-82).

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publicado no Appletons’ Journal, uma espécie de transcrição da fala de Hartt, citada entre aspas, que reproduzimos abaixo, na íntegra:

O homem, quando cobre vários objetos com linhas e figuras ou cores, com a finalidade de proporcionar prazer a si mesmo, irá usar as mesmas combinações simples, e aquelas certas formas irão se tornar persistentes. Aquelas formas que são verdadeiras e belas irão perdurar, e aquelas que não o são irão decair; pois há uma certa luta pela existência no ornamento, uma lei de sobrevivência do mais belo e apto a agradar. No crescimento da arte selvagem, constatamos que seus ornamentos são feitos de linhas retas. Aquelas nações mais avançadas fazem círculos ou aproximações de círculos e espirais firmemente enrolados. O friso grego cresceu deste modo. Como a linha reta é agradável ao olho, duas linhas retas, próximas o bastante, são um pouco mais agradáveis. Quando esse passo foi dado, então é feita a tentativa de tornar essa forma mais agradável ao se adicionar algo entre elas. Em primeiro lugar, linhas retas são desenhadas de uma a outra, fazendo um ornamento do tipo escada. Como próximo passo, as linhas são desenhadas pela metade, primeiro de um lado, então do outro. Isso dá um tipo de ritmo que é agradável. Se desenhada para o centro, uma pode ser conectada a outra por meio de uma linha horizontal, e então você tem a mais simples forma de friso grego. Algum gênio, ao desenhar isso apressadamente, arredondou os cantos, e assim levou a uma verdadeira espiral circular. Então a linha curva que conecta as espirais foi considerada tão agradável que o artista a enfatizou, e deixou de fora a maior parte da espiral, e essa forma é encontrada por todo o mundo. Mas agora uma grande quantidade de espaço não utilizado foi deixada, e pequenos ornamentos triangulares foram colocados entre as curvas, às vezes com um pequeno ponto entre eles. Esse pequeno triângulo se difundiu em uma variedade de formas, como na China, onde foi moldado no formato de uma folha. Assim cresceu o ornamento, simplesmente na tentativa de agradar o olho por meio de belas linhas. Quando cresceu de modo a começar a se parecer com uma folha, uma folha foi substituída por ele, e assim formas de folha, fruto e 134 animal começaram a ser usadas.

É interessante observar, após já havermos feito o cotejamento de todas as versões impressas desse trabalho no subcapítulo anterior, como Hartt condensa a sua “épica” descrição da transformação compositiva do ornamento ao longo de seu processo evolutivo, recorrendo à comparação com gregos e etruscos, e colocando, como bom ruskiniano, representações mais realistas de elementos da natureza no topo dessa escala. Em sua narrativa as retas se tornam personagens, e mudanças decisivas, como a introdução de linhas 134

Art. The Water-Color Exhibition. Third Notice. Appleton’s journal: a magazine of general literature, v. 11, Issue 259, p. 316-317, 7 Mar 1874. p. 317.

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arredondadas nos motivos ornamentais, são atribuídas a um personagem anônimo que age sem intenção (“algum gênio”), despindo assim o texto de um caráter demasiado técnico e o aproximando, em estrutura, de um formato narrativo dominado pelo grande público a que se destinava, claramente reforçando o que seu ex-aluno Simond já havia comentado sobre suas habilidades didáticas. Ainda com relação a essas habilidades, outro ex-aluno, aliás – e agora abriremos aqui um pequeno partêntese, pois não é nossa intenção nos alongarmos sobre a atuação de Hartt como palestrante no Brasil, o que exigiria um outro tipo de pesquisa documental -, Orville Derby, que após a morte de Hartt irá continuar no Brasil para dar prosseguimento às pesquisas por ele iniciadas, deixa-nos um revelador registro sobre o impacto de tais palestras de divulgação científica junto ao público brasileiro:

Alguns desses resultados foram anunciados há não muito tempo atrás em uma conferência […] apresentada pelo Prof. Hartt diante do Imperador e de uma seleta audiência, em seu usual estilo alegre, não obstante a dificuldade de falar em uma língua estrangeira. As conferências científicas populares são de fato uma inovação aqui, mas parecem estar prestes a se tornar uma instituição, como nos Estados Unidos, na medida em que várias conferências ocorreram 135 aqui nos últimos tempos, e com sucesso.

Hartt, como se sabe, proferiu também no Rio de Janeiro sua conferência sobre a evolução do ornamento, e as alterações que nela julgou necessário fazer foram comentadas no subcapítulo 3.1. Podemos rastrear, no entanto, com maior facilidade agora, a repercussão na imprensa que obteve a publicação dessa bem-sucedida conferência na Popular Science Monthly, em março de 1875. Na edição de março da Harper’s, por exemplo, pode-se ler o que segue:

135

Correspondence. Brazil Rio de Janeiro, Jan. 24,1876. Cornell Era, p. 155-156, March 3, 1876. p. 156.

60

O Professor Hartt contribui com um artigo ilustrado em um recente número da Popular Science Monthly, que é apenas o precursor de um tratado mais extenso, em que ele, de modo muito engenhoso, traça o crescimento da ideia de ornamento, e relata a ocorrência de formas semelhantes nos mais remotos lugares, e entre povos de civilizações muito diferentes, a partir de princípios fundados na estrutura do olho. Ele faz referência, de modo mais especial, à cerâmica que descobriu durante sua última excurção à América do Sul, chamando a atenção para a surpreendente semelhança entre os desenhos delas e aqueles 136 dos vasos gregos e etruscos.

Nas menções à palestra e aos artigos de Hartt sobre a evolução do ornamento que localizamos mais de uma vez foi destacada a originalidade dessa teoria, dessa associação entre a nova teoria da evolução darwiniana e o estudo do ornamento – no trecho recém-citado, por exemplo, Hartt é elogiado justamente por “do modo mais engenhoso, traçar o crescimento da ideia de ornamento”.

Além

do

mapeamento

dessas

referências

na

imprensa,

acreditamos que seja possível indicar alguns dos desdobramentos posteriores da teoria proposta por Hartt, ainda que, a partir de agora, tenhamos de nos movimentar no terreno das possibilidades e das conjecturas. Repercussões mais imediatas do artigo de Hartt, por exemplo, parecem perceptíveis nos textos de Grant Allen, escritor e um dos principais divulgadores do darwinismo nos Estados Unidos. Allen publicou em 1877, em Londres, apenas dois anos após o aparecimento do artigo de Hartt na Popular Science Monthly, seu primeiro livro, intitulado Physiological aesthetics. Tal livro foi lido e comentado por Alfred Wallace, que coincidentemente também resenhara o primeiro livro de Hartt, Geology and Physical Geography of Brazil. Allen, como Hartt, era canadense. Sua formação, no entanto, foi bastante diversa: viveu com a família nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, e concluiu os estudos em Oxford. No início da década de 1870, com problemas financeiros e com a esposa bastante doente, obtém uma posição em um colégio para alunos negros, na Jamaica, o Queen’s College. Já nessa época Allen se tornara ardoroso defensor das teorias evolucionistas, e manterá por 136

Editor’s Scientific Record. Harper’s New Monthly Magazine, v. 50, n. 298, March 1875. p. 604.

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muitos anos laços de amizade com Herbert Spencer. Antes de passarmos à análise de alguns argumentos esse primeiro livro de Allen, que guardam estreita semelhança com aqueles apresentados por Hartt em Evolution of ornament, convém nos perguntarmos se há algum indício que nos permita inferir que Allen tenha, de fato, lido tal artigo de Hartt. Quer se trate de outra coincidência ou não, Allen se tornou colaborador da Popular Science Monthly no mesmo ano em que Hartt publicara nas páginas da revista seu artigo, em 1875. Se o artigo de Hartt saiu em março, o poema de Allen, dedicado a Spencer, saiu em setembro.137 Allen colaboraria com a revista ainda por muitos anos, e não nos parece improvável que tenha lido o artigo de Hartt, tanto mais quando temos em conta as semelhanças estruturais que passaremos a elencar agora. No Prefácio a Physiological Aesthetics, Allen pretende esclarecer o que Ruskin, em Modern Painters, considerava um mistério, o por quê de gostarmos de algumas cores e não de outras, de alguns sabores e não de outros. 138 À Ruskin Allen irá contrapor Darwin, Spencer, Bain, Helmholtz, Kolliker e Berstein, a elite científica que em seus dias ocupava-se dos estudos sobre a percepção humana.139 O livro de Allen é dividido em capítulos como Prazer e Dor, A diferença da estética, Os sentidos inferiores, Toque, Audição, Visão, A intervenção do intelecto, As artes imitativas e Poesia. O que nos interessa aqui é o sétimo, Visão. Neste capítulo, chama a atenção o modo como Allen, à semelhança de Hartt, associa o prazer visual com o conforto muscular do olho: Todas essas variedades de prazer e sofrimento visual dependem inteiramente da fadiga ou do estímulo normal do nervo óptico. Mas há também outra ordem de fenômenos emocionais conectados à visão,que dependem antes dos vários músculos e corpos contráteis que regulam a direção e a convergência dos olhos, ou o foco dos 140 órgãos para a visão próxima ou distante.

137

Cf. ALLEN, Grant. To Herbert Spencer. Popular Science Monthly, v. 7, p. 628, Sept. 1875. Cf. ALLEN, Grant. Physiological Aesthetics. New York: Appleton, 1877. p. VII. 139 Para uma análise mais detida da leitura que Allen faz de Ruskin, Cf. SMITH, Jonathan. Charles Darwin and Victorian visual culture. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2009. p. 175-177. 140 ALLEN, op. cit., p. 150. 138

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O argumento do conforto muscular retornará em outros momentos do texto de Allen, como quando analisa o que é preferível para a visão humana, linhas retas ou curvas. Uma diferença notável entre as abordagens de Allen e Hartt pode ser observada, aliás, justamente no modo como ambos valorizam a linha reta. Para Hartt, é mais fácil para o olho humano acompanhar a linha reta. Já para Allen, leitor de William Hogarth, que detestava linhas retas e era um apaixonado defensor das linhas sinuosas, as retas são mais cansativas para o olho, enquanto as curvas, “sendo coincidentes com as voltas naturais dos órgãos, são percebidas facilmente e sem esforço”.141 A preocupação com esse tipo de argumento por parte de Allen também pode reforçar a hipótese de que tenha lido Hartt. Em 1880, Allen publica na revista Mind outro texto que trata de evolução estética, o artigo Aesthetic evolution in man. Aqui ele volta a alfinetar Ruskin, ao criticar os especialistas em belas artes que buscam os princípios da beleza apenas entre as “classes mais cultivadas”. Allen defende, pelo contrário, que o amor à beleza é universal e está ao alcance de todos: “Centenas de milhares, que permaneceriam impassíveis diante de um torso cinzelado por Fídias, podem amar e admirar ‘menor flor que desabroche’, com algo não totalmente diferente das emoções felizes de um Wordsworth” .142 Por conseguinte, também Allen, como Hartt, procura reconhecer nos “selvagens” a capacidade de apreciar o belo, assim como se mostra intrigado por seu aparente desinteresse pela representação mimética das belezas naturais (algo que, como já vimos, é o eco de Ruskin em Hartt e em Allen): Até onde posso saber, não há selvagens tão atrasados que não possam discriminar entre índias graciosas ou desinteressantes, entre homens bonitos e feios. Nossas próprias crianças parecem, para mim, fazer a distinção entre suas companheiras em uma idade muito precoce. E em ambos os casos, estou satisfeito por seus julgamentos no geral concorda com o nosso próprio. Mas não parece provável que o homem primitivo preste muita atenção no ambiente cênico, na beleza orgânica como um todo, e ainda mais amplamente da beleza nas flores, frutos, borboletas e conchas. Ainda assim há uma ligação óbvia, um simples passo por meio do qual o nascente sentimento

141 142

ALLEN, Grant. Physiological Aesthetics. New York: Appleton, 1877. p. 170. ALLEN, Grant. Aesthetic Evolution in Man. Mind, v. 5, n. 20, p. 445-464, Oct., 1880. p. 446.

63

estético pode facilmente passar de um estágio para o outro. Essa 143 ligação nos é dada no amor à decoração pessoal […].

Allen é generoso a ponto de conceder a existência de sentimento estético entre aqueles povos que eram considerados os mais atrasados em termos civilizacionais, como os Botocudos, estudados por Hartt, e os aborígenes australianos.144 O amor ao ornamento entre os índios deveria, na opinião de Allen, ser estimulado pelos missionários, e não o contrário, pois apenas assim poderia ser aproveitado como o “primeiro passo rumo ao progresso estético, e o único possível elemento civilizador em suas, de outro modo, vidas puramente animais”.145 Em outras passagens do texto Allen volta a criticar Ruskin, como quando elogia a novidade das excursões turísticas, amargamente rejeitadas por Ruskin em Modern Painters, como sendo aliadas no incremento da percepção da beleza natural junto às massas: “Aquelas estradas de ferro que o Sr. Ruskin tão cordialmente despreza provavelmente fizeram mil vezes mais pela promoção do amor à beleza da natureza do que a mais eloquente palavra pintada que jamais tenha sido traçada por sua própria astuta e graciosa mão”.146 Physiological Aesthetics, o primeiro livro de Allen, comentado há pouco, foi um retumbante fracasso de vendas. O impacto que causou na época da publicação foi mínimo – não nos esqueçamos de que Allen divulgava a ciência, mas não era ele mesmo um cientista, capaz de comprovar as próprias teses com experimentos. James Sully (1842-1923), um real cientista, o psicólogo inglês que resenhou esse livro, leva tais características em consideração. Sully tinha interesse pela psicologia experimental, e contribuiu para difundir especialmente a psicologia alemã no ambiente de fala inglesa. Em 1876, ele já se posiciona entre os defensores de uma visão científica da arte, e indica uma metodologia adequada para essa nova concepção:

143

ALLEN, Grant. Aesthetic Evolution in Man. Mind, v. 5, n. 20, p. 445-464, Oct., 1880. p. 451. Ibidem, p. 452-453. 145 Ibidem, p. 453. 146 Ibidem, p. 463. 144

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Ao nos depararmos com essas objeções naturais à visão científica da arte, fomos levados, por assim dizer, à conclusão de que o único verdadeiro método disponível para lidar cientificamente com os problemas da arte é o método psicológico. Com isso quero me referir não apenas ao estudo das operações mentais por auto-reflexão individual, mas também às novas investigações sobre as leis do desenvolvimento mental na raça, e das ações recíprocas de muitas 147 mentes no organismo social.

Muito antes de Gombrich, Sully propõe, portanto, uma psicologia da arte, algo que Hartt já havia principiado a esboçar também em sua teoria sobre a evolução do ornamento. Em sua resenha de Physiological Aesthetics, publicada em 1877,148 Sully critica o desconhecimento de autores fundamentais por parte de Allen, a excessiva ênfase que dá ao olho na percepção estética, em detrimento de outros sentidos, e o modo amador como trata das sensações visuais, baseado mais em imaginação literária do que em conhecimento técnico. Ao contrário de Allen, Sully conhece profundamente as teorias da percepção criadas na Alemanha. Prova disso é que em 1878 publicaria, mais uma vez na Mind, um artigo em duas partes, intitulado The Question of Visual Perception in Germany,149 no qual, além de retomar a importância do estudo da movimentação muscular do olho para a percepção, tema de estudos de Hering, discorre bastante sobre as diferenças entre os nativistas (Hering) e os empiristas (Helmholtz e Wundt), e sobre vários outros temas que Hartt, por exemplo, não chega a abordar em sua teoria, tais como a percepção das cores, o funcionamento da visão monocular, em contraste com a binocular, e a percepção da profundidade. Podemos propor, a esta altura, algumas conclusões parciais a propósito do contato da teoria de Hartt com a psicologia experimental alemã. Hartt, como já vimos, lia fluentemente alemão e deve ter tido contato com algumas teorias de cientistas alemães relativas à percepção. Para sua análise 147

SULLY, James. Art and Psychology. Mind, v. 1, n. 4, p. 467-478, Oct. 1876. p. 471. SULLY, James. Critical Notices: Physiological Aesthetics, by Grant Allen. Mind, v. 2, n. 7 p. 387-392, Jul., 1877. 149 Cf. SULLY, James. The Question of Visual Perception in Germany I. Mind, v. 3, n. 9, p. 123. Jan. 1878, e SULLY, James. The Question of Visual Perception in Germany II. Mind, v. 3, n. 10, p. 167-195. Apr. 1878. 148

65

do movimento do olho aplicado à observação do ornamento uma fonte óbvia, de resto citada por Sully, seria Die Lehre vom Binocularen Sehen (1868),150 de Ewald Hering; os desenhos do movimento ocular apresentados por Hering e por Hartt são, no entanto, completamente distintos – Hartt parece ter criado os próprios desenhos e esquemas, o que é reforçado por seu hábito de criar esses recursos didáticos para conferências e seminários. Quaisquer que sejam as fontes a que tenha recorrido, fato é que Hartt estava inteirado das pesquisas de ponta realizadas em sua época nos campos da psicologia e da fisiologia da visão. Hartt sem dúvida, pela data de seus escritos (Allen e Sully, independentemente e terem ou não tido acesso direto ou indireto à teoria de Hartt, começam a publicar suas teorias científicas sobre a arte depois dele), coloca-se entre os pioneiros na pesquisa de hipóteses científicas, baseadas sobretudo na biologia darwinista e na psicologia experimental, que pretendam explicar o que leva o homem a criar obras de arte, e como interage, nos planos físico e psicológico, com elas. Dificilmente poderíamos dizer que as ideias de Hartt tiveram herdeiros diretos, capazes de reconhecê-las como “ancestrais”. Por outro lado, não seria exagero indicar Hartt como um dos muitos pais de um conjunto de ideias sobre percepção da arte que continuaram a circular e a se desdobrar ao longo do século XIX, algumas até nossos dias.

150

HERING, Ewald. Die Lehre vom Binocularen Sehen. Leipzig: Verlag von Wilhelm Engelmann, 1868.

66

REFERÊNCIAS:

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68

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