2011. Comunidade de Macambira: de \'negros da Macambira\' à Associação Quilombola

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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA

COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA Edmundo Marcelo Mendes Pereira*

RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO

*

Professor Adjunto de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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EQUIPE DE TRABALHO: Edmundo Pereira Coordenador da pesquisa e responsável pelo Relatório Professor do Depto. de Antropologia – CCHLA/UFRN Ângela Torresan Documentarista Professora PRODOC do Depto. de Antropologia – CCHLA/UFRN Jociara Nóbrega Aluna Bolsista Eloi Magalhães Augusto Nascimento Alunos voluntários

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. P.127 ETNOGRAFIA, HISTORIOGRAFIA E PRODUÇÃO DIALÓGICA DE CONHECIMENTO ................ P.132 DE “NEGROS”, “ESCRAVOS”

“HOMENS LIVRES”: FORMAÇÃO ÉTNICA EM UM CAMPO INTERSOCIETÁRIO EM TRANSFORMAÇÃO (SÉCULOS XIX-XX) .......................................... P.145. E

I. OCUPAÇÃO DO “SÍTIO MACAMBIRA” E FORMAÇÃO DA DESCENDÊNCIA DE

LÁZARO PEREIRA DE ARAÚJO CURRAIS NOVOS DA FAZENDA TOTORÓ (SÉCULOS XVIII-XIX) ....................................... P.149 “SÍTIO MACAMBIRA”, “TERRA DOS LÁZAROS” ................................................................. P.164 “DOCUMENTOS DO TEMPO DE DOM PEDRO” ....................................................................P.170 “Marco testemunhado”, Taperas, Casas de Farinha, Cemitério e Frutais ......... p.186 INVENTÁRIO NO 110, 1872: LÁZARO MARIA DE ARAÚJO ................................................ P. 191

II. “TRONCOS VELHOS”: TERRITÓRIOS DE PARENTESCO, MEMÓRIA E POLÍTICA “TRONCOS VELHOS” ........................................................................................................ P. 210 CASAS, TERREIROS E ROÇADOS ........................................................................................P.217 Fins de Semana, Aniversários, Casamentos, Forrós, Missas e Festas de Padroeiro ..................................................................................................................................... p. 227

HISTÓRIAS DE VIDA, FAMÍLIA E TERRITORIALIZAÇÃO

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BURACO DE LAGOA ............................................................................................... P. 231 MACAMBIRA II E III ............................................................................................... P.238 CABEÇA DOS FERREIRA ......................................................................................... P. 243 CABEÇA DOS LUDOGÉRIO .......................................................................................P. 246 ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO ................................................................P. 247

III. PARECER CONCLUSIVO, ÁREA PROPOSTA E RECOMENDAÇÕES ......... p. 251

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... p. 253 ANEXOS Anexo 1. Documentos encontrados com Ana Amaro (1843-1877) Anexo 2. Inventário n.110, 1872 (Lázaro Maria de Araújo) Anexo 3. Certidão de Auto-reconhecimento Anexo 4. Estatuto social da Associação dos Quilombolas de Macambira

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INTRODUÇÃO Este relatório tem por objetivo apresentar, em termos básicos e de forma sucinta em sua especificidade socio-cultural e histórica, a Comunidade de Macambira,1 remanescente das comunidades dos quilombos, situada na Serra de Santana, e que hoje abarca territorialmente parte dos municípios de Lagoa Nova, Bodó e Santana dos Matos, fronteira entre o sertões do Seridó e do Vale do Açu, Rio Grande do Norte.2 Desde pelo menos o início do século XX, seus membros, de descendência negra, são conhecidos por seus vizinhos, em especial, no caso pesquisado, as populações “brancas” da cidades de Lagoa Nova, como “negros da Macambira”, expressão pejorativa a qual se agregam acepções como “sujos”, “bravos” e, em alguns casos, “feiticeiros”. Como mostraremos ao longo deste trabalho, tal denominação é exemplar do modo como tem sido as relações étnicas entre “brancos” e “negros” desde o período colonial, com o regime escravocrata dominante na região do Seridó, até meados do século XIX e as transformações nas lógicas de administração dos estoques de mão-de-obra com o crescente aparecimento de homens livres (em sua maioria ex-escravos). Em 29 de julho de 2005, a Comunidade obteve por parte da Fundação Cultural Palmares, Ministério da Cultura, da Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro, sua certidão de auto-reconhecimento como remanescente dos quilombos, o que lhe possibilitou abrir seu processo de “identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e delimitação das terras ocupadas”.3 Vale ressaltar que a ação do órgão estatal é desdobramento das demandas previstas pelo artigo 68, da Constituição Federal de 1988, do

1

Mais adiante, refletirei sobre o nome “comunidade de Macambira”, apresentando a origem do nome, bem como o sentido de pertencimento que o termo “comunidade” traduz localmente, a partir de sua morfologia social contemporânea, em especial da noção de família (tronco). 2 Agradecimentos: um trabalho dessa natureza, por seu caráter dialógico, depende do apoio de diversas agências e indivíduos. Agradeço especialmente aos membros das famílias dos Pereira Araújo (Macambira III e Buraco de Lagoa), dos Amaro (Buraco de Lagoa), dos Ferreira (Cabeça dos Ferreira) e dos Felipe (Macambira II). Em especial agradeço à Vilmário, Vitória, Rosilma, Rosa Ilma, Dona Maria, Gorete, Penha e Neuza por receberem em seu cotidiano, sempre atentos e prestativos em todas as etapas de trabalho. Agradeço também aos colegas do DAN/CCHLA/UFRN, em especial aos ligados ao Convênio Incra-DAN pela troca de idéias e estímulo ao trabalho, profs. Luiz Assunção, Julie Cavignac, Carlos Guilherme do Valle e Francisca Miller. Agradeço também a todo o corpo técnico e administrativo do Incra pelo apoio logístico ao longo da pesquisa. A Socorro, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lagoa Nova, ao prefeito de Lagoa Nova, pelo apoio dado no início do trabalho. 3 Vide ANEXO 3.

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ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), que confere “direitos territoriais” aos remanescentes de quilombos (O’Dwyer, 2002:13), ou seja, “a regulamentação de territórios sociais tradicionalmente ocupados, cujas origens remetem, em regra – não exclusivamente -, ao período da escravidão” (Arruti, 2006:26). Dois meses antes da certificação, em maio (01.05.2005), com fins a apresentar o pedido de autoreconhecimento à Fundação, membros da Comunidade organizados em torno da família Daniel (Pereira)4 haviam fundado a Associação dos Quilombolas da Macambira do Município de Lagoa Nova5, pré-requisito administrativo e jurídico para o pleito pela “autodeterminação”. Todo esse investimento, inserido em um processo de cerca de dez anos de demandas por reconhecimento identitário e de cidadania frente ao Estado, tem como uma de suas demandas sócio-econômicas centrais a regularização de sua situação fundiária e a ampliação de seu território atual, recuperando áreas anteriormente perdidas, ou por venda, ou por processos de conflito com grandes proprietários locais, em particular entre as décadas de 1930-1940, quando se cercaram as grandes propriedades na região. Além disso, evocando as prerrogativas centrais à Constituição Federal de 1988 (de elogio e salvaguarda da diversidade cultural), as mobilizações políticas implementadas pela Comunidade desde a passagem dos anos 1980-1990 tem objetivado fazer reconhecer (em especial frente à população regional por quem historicamente tem sido discriminada) seu direito à cidadania: o reconhecimento do valor e especificidade de sua origem socio-cultural, inscrita na memória social e nas relações cotidianas do grupo, patrimônios do grupo e da história geral do Seridó. O processo socio-histórico de formação da Comunidade (e da ocupação da Serra de Santana em termos gerais) dá conta de que o problema da terra é historicamente umas das questões centrais para o grupo – em especial ao longo do século XX -, ponto em torno do qual seus membros se organizaram tanto em termos reivindicatórios frente ao Estado (INCRA e SEARA); quanto, em seu extremo, em termos de ações efetivas de ocupação de área vizinha (área que anteriormente teria sido parte de seu território original) pertencente a um dos grandes proprietário da região (Ubirajara Lopes Galvão), em 1997, uma vez que estas seriam improdutivas e se agravara sobremaneira as condições de reprodução social do 4

Mais adiante tratarei da lógica de transmissão de nomes no que diz respeito a sobrenomes e primeiros nomes, o que, dado o uso generalizado de apelidos, como veremos, dificulta o trabalho historiográfico. 5 Vide ANEXO 4.

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grupo.6 A constituição formal da Associação Quilombola demandou, além de elaboração estatutária (estatuto social) e eleição de uma diretoria (diretoria, conselho consultivo e conselho fiscal) – como veremos, instaurando novos modelos de organização política -, uma primeira reconstrução da história social da Comunidade, a partir da qual (e em respeito à convenção 169 da OIT)7 assinada pelo Brasil, a Fundação Palmares fundamentaria sua certificação. Esta primeira versão, ponto inicial deste trabalho, abarca o período que vai de sua fundação em meados do século XIX, através da compra de algumas datas de terra por um mulato, alforriado (homem livre que na chã da Serra de Santana constituiria numerosa família), passando por sua descendência, de cujos intra e extra-casamentos se formariam os troncos velhos (as famílias mais antigas, tradicionais), de que os membros atuais descendem e a partir dos quais, até a atualidade, estes se organizam e se pensam como um grupo étnico (Weber, 1999:275; Barth, 2000:27-28). Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboração deste documento, para entender a formação socio-histórica da Comunidade, e em especial as características da negritude nela encontrada, é mister refazer também a formação do campo intersocietário mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu, a saber, a ocupação dos sertões setentrionais do Seridó pela produção pastoril, no caso em particular no entorno do açude do Totoró, local de fundação das primeiras fazendas que levariam a formação da cidade de Currais Novos (Lima, 1990). Isto não só por conta dos recursos teórico-metodológicos utilizados para pensar algumas das situações sociais (Gluckman, 1987; Oliveira, 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na Serra de Santana, mas também pela própria natureza do processo de formação sóciohistórico da Comunidade, no que pesam as relações que esta estabeleceu e estabelece com as demais comunidades da Serra e a população de cidades como Currais Novos, Lagoa Nova, Bodó e Santana dos Matos. 6

Voltaremos a esse ponto mais adiante, quando dermos conta dos acontecimento políticos e econômicos em que a Comunidade se viu envolvida nos anos 1990. 7

OIT (Organização Internacional do Trabalho), Convenção 169 de 07/06/1989. Em vigor em 5 de setembro de 1991. Aprovado pelo Congresso Nacional em 25/08/1993. Um dos princípios centrais subjacentes, que rege seus 44 artigos, é o de que um dos marcos essenciais de instauração do processo de reconhecimento étnico de um dado grupo baseie-se em sua “auto-identificação” enquanto tal.

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Para entender a formação e desenvolvimento da Comunidade de Macambira, de como esta apresenta e interpreta sua descendência negra, é necessário entender não só a história das famílias (Lévi, 2000; Oliveira, 2006) do lugar, mas também as feições do campo escravocrata local e o paulatino processo de alforriamento da mão-de-obra escrava ao longo do século XIX, em especial a partir de 1850, com o crescimento do contingente de homens livres que conformariam novas relações de trabalho e de acesso à terra. É do encontro de alguns dos negros forros que se formaram agregados familiares como Macambira, nas áreas marginais (em terras menos produtivas e de mais difícil acesso) aos epicentros de desenvolvimento regional como Currais Novos, Acari e Caicó. Estes contingentes de homens livres continuou, no entanto, inter-ligados a seus antigos patrões tanto pela reconfiguração – e não extinção - do modelo de dominação patriarcal (Weber,1999), passando do trabalho escravo ao da sobre-exploração do trabalho (quando ex-escravos passam a trabalhar como foreiros em terras alheias em sistemas de pagamento de uso com parte da produção); quanto por compadrio, que ao longo do período colonial marcou o tipo de relação de dominação da sociedade brasileira em formação (Freyre, 1933; Brügger, 2006).8 No caso de Macambira, sua formação advém do encontro de famílias negras ao redor das datas compradas por um ex-escravo, Lázaro, depois de forro, Lázaro Pereira de Araújo, possuidor de vasta área na qual um conjunto de famílias estabeleceria laços de casamento e compadrio, e que na chã da Serra foram aos poucos abrindo seus primeiros roçados próprios e constituindo descendência. Paulatinamente, na ampliação de suas redes de matrimônio, também travariam relações com colonos pobres, 9 complexificando o alcance do campo intersocietário com o qual formam alianças e as características da etnicidade (Cohen, 1974; Barth, 1969) nela encontrada na atualidade. Este processo, como veremos através das narrativas orais registradas e dos documentos de transmissão de terra encontrados (Capítulo 1), está intimamente relacionado com os fluxos de ocupação da Fazenda Totoró10 - em torno da qual se fundaria a cidade de Currais Novos -,

que

seguiriam em direção norte, ocupando a Serra de Santana, primeiro com o gado, depois 8

Voltaremos a esse ponto mais adiante. Há exceção, como veremos mais adiante, no caso da família Ferreira que há 3 gerações se relacionou com a família Assunção, família dentre as fundadoras do hoje município de Bodó. 10 Em especial, como veremos mais adiante, em torno da figura da matriarca Dona Adriana de Olanda de Vasconcelos e sua descendência (Medeiros, 1981 e 1983). 9

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com as gentes, expulsando os últimos caboclos (índios) habitantes de suas matas, ainda nas primeiras décadas do século XIX, assentando famílias, casas, roçados e casas de farinha, configurando, ao longo de um século e meio, o espaço sócio-cultural e fundiário de sua vasta chã. Voltaremos à formação dos primeiros currais e posterior ocupação da Serra no próximo capítulo. Antes, porém, seguindo a Instrução Normativa INCRA no 20, de 19 de setembro de 2005; e os preceitos de regem uma antropologia reflexiva (Clifford, 1998) ou, em termos sociológicos, uma sociologia do conhecimento (nos termos de Bourdieu, 1968), quando é procedimento metodológico fazer ressaltar em que medida as condições de produção da pesquisa (materiais e relacionais) condicionam os resultados alcançados, apresento:

(1) as condições de produção da pesquisa (trabalho de campo, pesquisa em cartórios e mapeamento bibliográfico); (2) os conceitos e estratégias teórico-metodológicas escolhidos para classificação e análise do material histórico e etnográfico reunido; (3) e a lógica de organização do relatório, tanto na forma e seqüência em que os dados sócio-históricos são apresentados, bem como do eixo central que alinhava as conclusões a que chega este trabalho, a reconstrução do processo de formação da negritude encontrada em Macambira em sua relação com o campo intersocietário regional.

Como pretendo demonstrar, ao contrário das imagens que o senso comum associa à noção de quilombo, ou do tipo de negritude que caracterizaria esses grupamentos de exescravos,11 no caso de Macambira, o que marca a formação sócio-cultural da comunidade negra, na contramão de noções como a de “isolamento” associada ao uso “frigorificado” do termo quilombos (Almeida, 2002; O’Dwyer, 2002), é justamente sua estreita relação política e econômica, de cunho clientelista, com as famílias “brancas” dos centros político-

11

Como de comunidade de fugidios, ou isolada do mundo dos “brancos”, algumas das imagens mais recorrentes utilizadas para descrever tais grupos sociais, noções pouco produtivas para o entendimento da complexidade dos quadros sócio-históricos que marcam cada uma das comunidade negras que no Brasil contemporâneo reivindicam direitos e cidadania.

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administrativos próximos que fundaram os primeiros currais, futuras cidades no sertão seridoense, em contexto colonial de dominação (Bonfil Batalla, 1972).

ETNOGRAFIA,

HISTORIOGRAFIA

E

PRODUÇÃO

DIALÓGICA

DE

CONHECIMENTO

O trabalho de campo desenvolvido na Comunidade de Macambira desdobrou-se entre fim de outubro de 2006 e maio de 2007, perfazendo um total de 11 idas a campo somando 40 dias de trabalho.12 Além do investimento etnográfico na Comunidade e em seu entorno, realizaram-se também levantamentos preliminares em cartórios e arquivo paroquial nas cidades de Acari, Caicó e Currais Novos.13 Por fim, realizou-se também a consulta ao acervo bibliográfico disponível nas bibliotecas Central e Setoriais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) sobre a formação sócio-histórica do Rio Grande do Norte (em particular a ocupação dos sertões do Seridó), dois dos principais acervos bibliográficos do Estado. A equipe de pesquisa básica era formada pelo antropólogo, e por Vilmário Cândido Pereira (34 anos) e Pedro Pereira (68 anos). 14 Em algumas ocasiões contou também com a Prof. Ângela Torresan (DAN/CCHLA/UFRN), documentarista, além de Jociara Nóbrega, Eloi Magalhães e Augusto Nascimento, assistentes de pesquisa (estudantes de Ciências Sociais, CCHLA/UFRN). 12

Especificamente: 20-22/09; 14-16, 24-26 e 28-30/10; 18-20,/11;09-11, 15-17/12; 10-12/02; 4-6/03; 1522/04; e 30/04-01/05. O trabalho rendeu um total de cerca de 24h de material gravado em áudio (em um total de 11 histórias de vida e de família); cerca de 14 hs em vídeo; croquis da área territorial ocupada ao longo do tempo pelo grupo; 8 documentos de posse, compra e venda de terra; e dois diários de pesquisa (de campo e de acervos documentais e bibliográficos). 13 No Acervo Paroquial da Paróquia de Nossa Senhora da Guia, em Acari, e nos 1os cartórios de Caicó e de Currais Novos. Agradecemos à gentileza e cuidados dos senhores Padre Raimundo Cervolo da Silva, Francisco Canindé Medeiros e José Lopes de Araújo, em Acari; Geraldo Barros de Medeiros Junior, em Caicó; e Wendell Javas de Macedo, em Currais Novos. Neste momento, em particular, a equipe de pesquisa era formada pela professora-PRODOC do DAN/PPGAS/CCHLA/UFRN Ângela Toressan e pela aluna do Curso de Ciências Sociais, assistente de pesquisa, Jociara Nóbrega, a quem também sou muito grato. 14 Note-se a idade de ambos. Este ponto merece destaque na medida em que a equipe era formada tanto pelo jovem presidente da Associação Quilombola local (conhecido pelo grupo por seu caráter empreendedor), o Vilma, e um dos especialistas da memória locais, também conhecido como Pedro de Chico, que desde o início das mobilizações dos anos 1990 tem estado junto ao grupo que têm reorganizado politicamente a Comunidade. Saliento ainda que todo o processo de construção da pesquisa e do conhecimento alcançado foi negociado com ambos os personagens, marcando o trabalho com o que Clifford (1998) chama de dialogia no processo etnográfico, ou “produção colaborativa”.

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Um dos primeiros problemas que deve se colocar o antropólogo na produção de um relatório desta natureza é o da relação entre o tempo disponível para pesquisa e produção de um perfil antropológico do grupo em questão, em particular em seu processo de territorialização (Oliveira, 1999);15 e as expectativas jurídico-administrativas do Estado e das comunidades em estudo frente às “respostas” que o trabalho antropológico deve oferecer, de caráter técnico, no tempo o mais curto possível. Neste sentido, um primeiro ponto a ressaltar é o de que, diante do tamanho da Comunidade de Macambira (em uma área atual na qual se distribuem cerca de 300 famílias, perfazendo um total estimado, aproximativo, de 240 casas em uma população de cerca de 1200 pessoas) e do pouco tempo disposto pelo órgão estatal contratante para sua realização, qual estratégia etnográfica adotar para traçar tal perfil? Necessariamente, o método adotado tem de ser qualitativo. Um dos primeiros trabalhos realizados, (que acabaria sendo o que requereria maior investimento ao longo de todo o processo de pesquisa), foi, por exemplo, o da sistematização de genealogias exemplares de algumas das principais famílias da Comunidade. Isto não só como um procedimento previsto para o tipo de pesquisa antropológica que uma comunidade como Macambira requer,16 mas por nelas estar depositado um dos eixos centrais através dos quais seus membros apresentavam-se como sendo um mesmo grupo étnico e a que recorre para apresentar parte de sua memória social. Este fato materializa-se na expressão corrente ouvida ao longo do trabalho nos quatro cantos de seu território, dentre todos os troncos visitados: “aqui é tudo uma família só”. A investigação material e simbólica dessa assertiva constatou que a Comunidade de Macambira atual articula uma extensa rede familiar, que vem sendo desenvolvida ao longo de 7-8 gerações, e que se distribui, atualmente, em cinco sub-territórios: Macambira II e III, Buraco de Lagoa, Cabeça dos Ferreira e Ludogério.17 Cada sub-território representa

15

Que em termos estritamente acadêmico-científicos, se fossemos seguir os padrões internacionais, significariam um trabalho de campo de no mínimo 12 meses. Neste sentido, ressalte-se, que os alcances de documento como este são apenas de um perfil básico do grupo, de sua morfologia social e formação sóciohistórica. 16 Um entendimento e descrição da morfologia familiar são centrais para a compreensão da organização social geral do grupo. No caso, como apresentarei mais adiante, a metodologia de trabalho utilizada reúne instrumentos e modos de trabalhar “clássicos” da Etnologia, bem como da literatura teórico-metodológica dedicada os estudos de etnicidade, além do modelo historiográfico proposto pela “nova história”. 17 Segundo membros da Família dos Daniel, Macambira I, habitada pelos Pinheiro e sua descendência, apesar do nome, não mantêm relações familiares com as demais família da Comunidade. Seu nome é recente

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o domínio de uma ou duas famílias principais, os troncos velhos em que hoje a Comunidade está articulada. Suas respectivas ocupações respondem pelo aumento geração a geração de novas áreas ocupadas, em geral no entorno de pais e avôs. Desses troncos velhos podemos citar como estando dentre as principais: os Daniel (Pereira Araújo), em Macambira III; os Severiano, Amaro, Araújo e Felipe em Buraco de Lagoa; os Firmino e Rodrigues em Macambira II; e os Ludogério no Cabeça dos Ludogério, e os Ferreira Cabeça dos Ferreira.

(antes se chamava Capivara), tendo sido dado por vereadores da Câmara de Lagoa Nova, por questões administrativas.

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Croqui: Fora de Escala. Mapa desenhado durante o processo de pesquisa (11/02), em especial para tomada de pontos com uso de GPS durante reconhecimento do território atual de Macambira. Serviu para uma série de outros fins, tanto para organização do trabalho, quanto como desenho que foi sendo preenchido ao longo do trabalho de campo.

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Diante da necessidade de ter de propor algum recorte no alcance da documentação de genealogias, e da pesquisa em termos gerais, e ao mesmo tempo partindo do que já havia sido feito em um primeiro mapeamento da rede de conhecedores (os “que sabem as histórias”) que fora acionado pela Associação Quilombola para apresentação do pedido de auto-reconhecimento à Fundação Cultural Palmares, figurou-se a primeira estratégia de pesquisa e um primeiro trabalho simbólico-morfológico a dar conta: a conformação das redes familiares em que se organiza hoje a Comunidade e o seu uso material e simbólico para corroborar, nos casos estudos, (a) versões históricas de sua fundação e formação, (b) configurações sociais e territoriais por que tem passado e (c) sentidos e sentimentos de pertencimento étnico de descendência negra. Neste ponto, cabe ressaltar também que tanto a normatividade proposta pelo INCRA, quanto os procedimentos antropológicos empregados pelo Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) sobre Terras de Quilombos propõe “incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que aspiram à vigência do direito atribuído pela Constituição Federal” (O’Dwyer, 2002:18), o que também, acrescente-se, está em consonância com a resolução 169 da OIT. Neste ponto, como enfatiza Almeida (2002:67), corroborando o proposto pelo GT da ABA, e pensando especialmente o caso das comunidades negras que na contemporaneidade se apresentam como quilombos em seu passado e presente de lutas: “O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento da ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações e práticas dos próprios agentes sociais que viveram e constituíram tais situações em meio a antagonismos e violências extremas”. No presente caso, devemos, portanto, dar conta de refletir sobre a natureza de uma historiografia (em um “escrever a história”) baseada em “memórias de velhos” (Bosi,1994) tendo como técnica central a constituição de histórias de vida. Além disso, precisamos também apresentar parte da estratégia etnográfico-historiográfica adotada de compor, em suas feições básicas, uma história da família em Macambira (Lévi, 2000; Oliveira, 2006) a partir de algumas histórias exemplares de membros de alguns de seus troncos. E ainda, não menos importante, e já apontando para o caráter dialógico (Clifford, 1998) do material ora apresentado, enfatizar que a rede articulada partiu e dependeu do trabalho de Vilmário Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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Cândido Pereira, o Vilma, presidente da Associação Quilombola local e aos que lhe são mais próximos, que articulou as primeiras gravações, quando então nos foram indicados novos senhores e senhoras especialistas, nesta ou naquela família, sobre certo período histórico em particular, sobre certo ramo de determinada família, ou sobre certa área específica do território em suas características ecológicas e de ocupação. Cabem portanto algumas considerações de ordem historiográfica. Para entender a natureza e positividade do material histórico ora apresentado, devemos refletir sobre os processos de constituição de uma memória social (Connerton, 1989; Tonkin, 1992), no que esta tem de produção contextual (Malinowski, 1935; Hymes, 1970; Goodwin & Duranti, 1992) e de ideológico-político posicionada (Bourdieu, 1968, 1998). Isto tendo por base narrativas orais transmitidas por uma rede de especialistas da memória (Le Goff, 2003) , reconhecidos pelo grupo como sendo portadores das memórias da origem, das famílias e da constituição e ocupação do território. Como apontam autores como Peirano (2006), Le Goff (2003), Vansina (1965), Thompson (1992) e Burke (1992, 1997), para as Ciências Sociais contemporâneas, e para a ciência da História em termos específicos, não se trata mais de desqualificar, hierarquizar ou legitimar certas fontes em detrimento de outras (no presente caso, na relação entre documento escrito versus documento oral), mas antes de entender os alcances e limites de uma historiografia que se baseie neste ou naquele, ou em ambos os tipos de fontes. Deste modo, reconhece-se também o caráter necessariamente interpretativo da reconstrução historiográfica. Assim como as sociedades mudam, os métodos historiográficos de apreensão e análise da mudança dessas sociedades também tem mudado. Além disso, hoje estamos mais cientes, depois das críticas e propostas feitas pela “micro-história” (Lévi, 2000), a “nova história” (Burke, 1992; Le Goff, 2003) ou pela “história dos anais” (Burke, 1997), de que enquanto projeto político-ideológico de certas classes (Le Goff, 2003), a constituição de uma história autorizada da formação da Nação (ou da Região) deixou de lado não só a contribuição dos elementos étnicos (“negros” e “indígenas”, para usar os termos mais generalizadores empregados), a não ser enquanto atores secundários; como não incorporou a historicidade específica desses grupos, que parte de suas formas narrativas e de transmissão locais de conhecimento, de como estes contam seu passado e seu protagonismo ao longo dos processos de transformação da sociedade em termos gerais. Essa historiografia dos “donos do poder” (como designa ao Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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patronato brasileiro Faoro, 1958), uma história do ponto de vista do patronato, produziu e vem produzindo, desde o período colonial, imagens e sentidos aos termos “negro” e “índio” (e seus desdobramentos como as noções de “quilombo” e de “tribo”) que, além de não darem conta da complexidade de situações de formação que estes grupos vêm sofrendo ao longo de décadas - e mesmo séculos -, mantiveram-se etnocêntricas, de caráter homogeneizador e hierárquico, não levando em consideração a extrema diversidade de situações socio-culturais em que estas populações são encontradas no Brasil, corroborando e sendo mais um dos instrumentos de dominação patriarcal (Weber, 1999) tanto material e simbólica desses grupos étnicos.18 Como o propõe Thompson (1992:138), em defesa de uma historiografia oral, a “hierarquia aceita de fontes” (que tende, em termos ascendentes, do oral para o escrito, e do presente para o passado), já não tem sustentação metodológica. Inclusive, em termos de controle da produção do dado histórico, p.e., a aplicação da técnica de história de vida pode ser muito mais escrutinada em termos de contextualização das condições de produção do conhecimento gerado do que, p.e., um documento de província do século XIX, produzido por membros de uma elite colonial em meio ao regime escravocrata. Resume o autor: “O que é importante é que muitas das perguntas que se devem fazer sobre os documentos – se podem ser falsificações, quem era seu autor, e com que finalidade social foram compostos – podem ser respondidas com muito mais confiabilidade em relação à evidência oral do que em relação a documentos, particularmente se aquela provier de um trabalho de campo do próprio historiador” (Thompson, 1992:139). Diante disto, recuperar positivamente uma historiografia de base oral para o presente caso (independente do conjunto documental escrito reunido), é tanto reconhecer o valor, a especificidade e o resultado historiográfico de narrativas como as compiladas neste trabalho, atribuindo-lhes o estatuto de documentos (Peirano, 2006); quanto atender às demandas cientificas e de direito constitucional e internacional contemporâneas, para as quais “os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produto de classificação externas, muitas vezes estigmatizantes” (Almeida, 2002:68). 18

A isto voltaremos mais adiante, à constituição dessa “imaginação histórica” (Comaroff &Comaroff, 1992), em especial através da noção de “negro”.

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Assim, as narrativas a partir das quais apresentamos o processo de formação sóciocultural da Comunidade de Macambira tanto nos impelem, em termos mais amplos, a repensar criticamente uma história do Rio Grande do Norte (vide, p.e., as reflexões e dados de Valle, 2006; Cavignac, 2006; Assunção, 2006; e Ratts, 1998); quanto dão conta de reconhecer e identificar as formas e conteúdos narrativos através dos quais a memória social do grupo se expressa e é constituída como uma contra-história (Clifford, 2003)19 frente às necessidades e estigmas que seus membros tem passado desde o fim da escravidão, por acesso à terra, às condições básicas para produção agro-pastoril, ao reconhecimento e valorização de sua descendência negra. Narrativas em que a violência e o conflito são lembrados – por vezes de forma dolorosa -20 para que sejam conhecidas as injustiças praticadas, para que estas não se repitam, para que se saiba contra o que a Comunidade tem lutado, física e simbolicamente. É, portanto, de dentro do quadro de relações sociais assimétricas em que estão historicamente inseridos que partem suas reivindicações e demandas por direitos. Do ponto de vista das Ciências Sociais, dentro de um projeto de produção de uma historiografia a partir do local, organizar minimamente de forma mais estruturada o conjunto de informações presente nessas histórias de velhos é também dar continuidade à constituição de uma história das “velhas famílias do Seridó” (Medeiros Filho, 1981),21 desta vez partindo de outros suportes da memória que não apenas a documentação cartorial e paroquial – nem sempre disponível -, e ampliando o espectro étnico dessa historicidade, complexificando e enriquecendo o entendimento sobre a formação socio-cultural dos sertões do Seridó em termos de diversidade cultural.

19

Segundo Clifford (2003), uma história produzida em contexto de dominação colonial para se contrapor à versão hegemônica. 20 Esse tipo de memória, como o coloca Thompson (1992:190), está sujeita ao esquecimento: “acima de tudo, consciente ou inconsciente, o mais provável é que memórias que são abandonadas, ou positivamente perigosas, sejam tranqüilamente enterradas”. 21 Recuperando parte da historiografia dedicada ao Seridó, em especial ressaltando a praticamente ausência dos elementos negros e indígenas nessa produção, Macedo (2005:151) comenta sobre o trabalho de Olavo de Medeiros Filho que, apesar do “mérito do trabalho de fôlego do autor em arquivos da região e da sistematização e transcrição de muitos documentos”, ao final, “o fortalecimento das origens brancas das estirpes seridoenses é bastante claro”, sendo a descendência de suas “principais famílias” de “patriarcas de origem ou descendência lusitana”.

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Dentre as técnicas historiográficas disponíveis, optou-se pela “coletânea de narrativas”, 22 com vias a formar, como já enfatizado, uma “história da vida familiar” (Thompson, 1992:303). Lévi (2000:99-100), exercitando reconstruir o campo de relações fundiárias entre famílias de certa região da Itália, no século XVI, propõe a constituição de “núcleos parentais” a partir dos quais se pode vislumbrar as “estratégias das famílias”, tanto na constituição do “regime de parceria” entre patriarcas, quanto nos processos de arrendamento da terra. Esta metodologia, propomos, pode também ser aplicada ao uso de fontes orais. Partindo dessas premissas, procurou-se identificar os núcleos parentais centrais ao redor dos quais a Comunidade se organiza. Dentro deles, entrevistar o indivíduo ou casal que dentre os mais velhos de um dado tronco é reconhecido como, nos termos locais, “aquele que sabe as histórias dos antigos”. Tendo como eixo a construção de uma história de vida, as entrevistas foram semi-estruturadas, tendo uma “seqüência de tópicos” (Thompson, 1992:262) básica que se iniciava com a genealogia do entrevistado - de forma a alcançar o máximo de profundidade -; passando pelas transformações nos modos de sociabilidade e dos usos e percepções do território desde a infância dos sujeitos aos dias atuais (que nos levava em média à primeiras décadas do século XX); além de inventariar informações sobre a ocupação dos sertões de Currais Novos e da Serra de Santana no século XIX, em especial do “sítio Macambira”. O trabalho teve também dois momentos distintos:

(1) em um primeiro momento, houve pouca interferência do pesquisador no ritmo das entrevistas. Estas foram conduzidas por Vilmário Pereira, tendo nós antes combinado os tópicos centrais de que trataríamos. Neste primeiro momento, tanto o investigador ainda estava se familiarizando com a história e a narratividade do lugar, quanto se desenhava uma oportunidade para acompanhar os próprios atores no exercício de re-memorar. No caso, de constituir uma memória social (a partir da historicidade local) que desse conta de mostrar a longevidade de ocupação do território, para o grupo base inalienável de seus direitos; e o fato de conformarem um grupo minimamente coeso e discreto, baseado na extensa articulação entre famílias (abarcando 5 sub-áreas), e distinto do entorno, baseado em sua

22

“Uma vez que pode ser que nenhuma delas seja, isoladamente, ao rica e completa como narrativa única

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descendência negra, no caso em particular de um ex-escravo das grandes famílias de Currais Novos provavelmente alforriado na década de 1840-1850.

(2) na segunda fase de entrevistas, já com uma base historiográfica consolidada (uma primeira versão que se delineava), e tendo em vista o curto prazo de pesquisa, estas passaram a ser menos fluidas, mais pontuadas e sistemáticas, e com maior investimento em certos pontos. Neste momento, a condução principal das entrevistas foi feita pelo pesquisador, mediando as expectativas de transmissão da versão produzida pelo grupo - as ênfases que este dava, os eventos que escolhia -, com as demandas das instruções normativas do órgão de regulação fundiária. Desse investimento, gerou-se o seguinte material e mapeamento familiar dos especialistas da memória dentro de alguns dos troncos velhos:23

Nome 1

Família (tronco) Santos

4

Maria Luciana dos Santos (Bahia) Manoel José de Araújo (Manoel Araújo de Julieta) Manoel e Severino Daniel Pereira Pereira (Manoel e Severino Daniel) Severo Ferreira Ferreira

5

José Ferreira

Ferreira

6

Maria Firmino dos Santos e Francisco Rodrigues de Araújo Pedro Francisco dos Santos (Herculano) e família Pedro Daniel Pereira (Pedro de Chico) Jordão Apolinário de Araújo

Firmino e Araújo Santos

2 3

7 8 9

10 Salvino Ferreira da Silva

Pereira Araújo Ferreira

Local e data

Tempo total

Macambira III, 14.10.06 Buraco de Lagoa, 28.10.06 e 19.04.07 Macambira III, 28.10.06 Cabeça dos Ferreira, 09.12.06 Macambira II, 10.12.06 Ludogério, 04.03.07

1h00’

Ludogério, 04.03.07

1h00’’

Macambira III, 16.04.07 Buraco de Lagoa, 17.04.07 Grotas do Açu,

1h30’

4h00’ 1h30’ 2h00’ 1h30’ 2h00’

2h00’ 2h00’

23

Todas as entrevistas forma realizadas nas casas dos entrevistados, a partir das quais, ao longo das entrevistas, se buscou fazer um histórico da ocupação da área ao redor da casa, em geral, cercada de outras casas de parentes em variados graus. Isto porque a ocupação total da área hoje é conseqüência das ocupações locais, na medida do crescimento das famílias, estas expandindo as demais casas e roçados no entorno das casas dos casais mais velhos.

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11 Manoel José Felipe da Silva (Manoel Felipe) 12 Tuca Amaro

Felipe

13 Quirino Daniel Pereira

Pereira

14 Joaquim Daniel Pereira

Pereira

Amaro

17.04.07 Macambira II, 18.04.07 Buraco de Lagoa, 19.04.07 Macambira III, 30.04.07 Macambira III, 16.04.07

1h00’ 1h00’ 2h00’ 1h00’

Do entrecruzamento dos eixos e eventos narrativos identificados como centrais pelos informantes, e também pela análise dos discursos por estes produzidos, constituiu-se a versão apresentada neste trabalho que dá conta da fundação, ocupação territorial e desenvolvimento familiar da comunidade de Macambira (temas dos próximos capítulos). Esta tendo à família Pereira, os Daniel, como principal articuladora das mobilizações políticas locais e da memória social apresentada.24 Além disso, desse entrecruzamento também se desenha um perfil genealógico que nos leva a uma descendência comum entre a maioria dos entrevistados25 de – 4 gerações, até Lázaro Pereira de Araújo, e a uma rede de matrimônios que vai se formando e que tem no casamento entre primos (cruzados ou paralelos) uma de suas características centrais a partir da quarta geração.26 Um outro eixo de pesquisa documental desenvolvido, em função dos materiais que foram sendo compilados nas narrativas orais reunidas, foi o que levou a procurar possíveis registros de Lázaro, a semente de toda a Macambira, em cartórios e arquivos paroquiais nas cidades do entorno para que apontavam as narrativas compiladas (Currais Novos, Acari e Caicó). Além disso, quando do início do trabalho, na primeira reunião com a Comunidade para apresentar a pesquisa que seria feita (21.09.06), comentou-se sobre certos “documentos antigos”, “do tempo de D. Pedro” (ou “documentos de D. Pedro”) que

24

De fato, em Buraco de Lagoa, p.e., do ponto de vista dos Severiano, diz-se que a Macambira original, o lugar onde tudo começou é a área hoje conhecida como Macambira III, especialmente povoada pelos Daniel desde pelo menos o início do século XX. 25 Quando não, de todo modo se conhecia o nome de Lázaro Pereira de Araújo. De fato, como veremos, um dos nomes utilizados também por seus vizinhos para se referirem à comunidade é a de “terras dos Lázaros”. 26 A título de exemplo, ainda que este tema seja mais desenvolvido no capítulo 2, Manoel José de Araújo, crescido em Buraco de Lagoa, e Joaquim Daniel Pereira, crescido em Macambira, são parentes, ainda que pouco se relacionem de fato, uma vez que seus bisavós são filhos de dois dos filhos relembrados de Lázaro Pereira de Araújo, Ana de Lázaro e Francisco Lázaro, respectivamente.

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comprovavam a posse da terra da Comunidade.27 Estes estariam de posse de Ana Amaro, em Buraco de Lagoa, que os herdara de seu marido, que os herdada de seu pai, o velho Amaro, que por sua vez os teria recebido das mãos de Francisco Lázaro de Araújo, filho de Lázaro Pereira de Araújo. O conjunto de 8 documentos encontrados,28 alguns datando ainda da década de 1840, outros já cópias dos documentos do século XIX feitas na década de 1930 em cartório de Currais Novos, dava conta de uma fascinante história de compra e venda de terras, entre os anos 1856 e 1877, no qual não só se desenhava o perfil territorial de Macambira (com a aquisição e venda de áreas de terra); como também revelava um campo intersocietário em que os senhores dos currais de Currais Novos aparecem travando relações com Lázaro Pereira de Araújo, a ele vendendo terra, ou servindo de testemunha nos processos de compra e venda. Isto configura um campo escravocrata em que, ainda que tenhamos coletado relatos de violência extremada em alguns casos, a lógica de dominação parece ter sido essencialmente clientelista (Landé, 1977) com troca de favores e apadrinhamentos, o que bem se adapta ao modo como, p.e., Elíseo Galvão, o último grande “coronel” que aparece nas narrativas de Macambira, seja lembrado com alguém que sempre visitava a Comunidade “montado em seu burrinho”, oferecendo presentes, instigando a venda de terras e, ao final, cercando inclusive áreas que não havia comprado, com promessas de futura devolução. A estes pontos voltaremos mais adiante. Por hora, organizemos os documentos encontrados:

Documento Ano

27 28

1

1843

2

1856

3

1856

4

1858

5

1858

6

1859

7

1870

8

1877

A grande maioria dos membros da comunidade não tem a situação territorial regularizada. Vide ANEXO 1. Alguns destes já se encontravam em péssimo estado de conservação.

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Para que se tenha uma dimensão de até onde ia a área original de Macambira, hoje bastante modificada, o documentos de 1856 (3) atesta que esta tinha em sua fronteira sul, a data do Totoró, ao norte as Grotas do Açu, a leste a data da Areia, e a oeste, a data da Catunda. Localmente, entre os mais velhos, usa-se a expressão “de um cipó a outro”, que na prática significa que a primeira área do antigo “sítio Macambira” vinha desde as grotas do Açu até as grotas do Seridó, de um extremo ao outro da chã, no eixo norte-sul. Na contemporaneidade, esta é a área que vai de Buraco de Lagoa até as cabeças de Macambira III, Ludogério e Cabeça dos Ferreira. Parte das áreas ao norte e à leste, já não pertencem ao grupo, tendo sido ou vendidas ou simplesmente cercadas à revelia de seus donos por Elíseo Galvão (por volta dos anos 1930-1940). Por fim, ressaltamos, mais uma vez, que os dados apresentados neste trabalho, que se pretendem elementares e introdutórios, tem como eixo as narrativas dos sujeitos eleitos pela comunidade como porta-vozes de sua história, articuladas com os documentos cartoriais encontrados e a literatura compilada que dá conta da ocupação pastoril do Seridó (Lima, 1990; Dantas, 1992; Lamartine, 2005; Macedo, 2005; Macedo, 2005; Medeiros Filho, 1981, 1984). Desta forma, se pretende apresentar os processos de territorialização (Oliveira, 1999) historicamente presentes na área a partir das dinâmicas de família, bem como as bases a partir da qual o grupo se pensa enquanto unidade étnica autônoma e diferenciada de seus vizinhos “brancos”, a que os membros da Comunidade chamam de “morenos”.

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DE “NEGROS”, “ESCRAVOS” E “HOMENS LIVRES”: FORMAÇÃO ÉTNICA EM UM CAMPO INTERSOCIETÁRIO EM TRANSFORMAÇÃO (SÉCULOS XIX-XX)

Para entender as raízes dos padrões de relação étnica locais (Barth, 1966, 1969) entre “brancos” e “negros” na Serra de Santana, de quais processos incidem sobre a formalização de padrões que se estabelecem entre “brancos” e “negros” na região estudada, assim como a formação da etnicidade encontrada hoje na Comunidade de Macambira, precisamos voltar ao século XIX, às feições da sociedade escravocrata pastoril dominante local, e de como nesta, a partir da década de 1850, apareceriam “homens livres”, que contribuiriam para a formação sócio-cultural de novas comunidades no entorno de Currais Novos, no caso em especial na chã da Serra de Santana. Sabemos que as situações quilombolas encontradas no Rio Grande do Norte (Assunção, 1994, 2006; Cavignac, 2006; e Valle, 2006), e nas demais regiões do Brasil (O’Dwyer, 2002;

Arruti, 2006; Almeida, 2006; Boaventura, 1996, 2004), nos levam

necessariamente a fazer uma revisão crítica tanto das historiografias locais e nacionais, conforme levantado na sessão anterior, quanto dos significados que noções como “negro”, “escravo”e “homens livres” ganharam ao longo do tempo, e a partir de que situações concretas. Sabemos, p.e., diante da historiografia que tem sido editada nos últimos anos, que em lugares como o Rio de Janeiro (Castro, 1997), Minas Gerais (Brügger, 2006), Bahia (Fraga Filho, 2006) e São Paulo (Franco, 1997; Slenes, 1997; Luna & Klein, 2005), que não só a passagem de uma lógica escravocrata para uma lógica capitalista não se deu de maneira uníssona e homogênea, como os movimentos de aquisição de liberdade e posterior re-organização social de mocambos, senzalas e comunidades rurais negras também foi marcada por diversidade, por projetos coletivos que tanto levaram grupos a se fecharem em termos de aliança e casamento, quanto outros, ao contrário, a fazerem uso das redes clientelistas existentes desde a escravidão, souberam dela tomar partido, adquirindo terras, sobrenome e alguma autonomia. No caso do Seridó, ao longo da pesquisa, ainda que raro, houve casos de negros que ascenderam, adquirindo alguma notoriedade, e conseguiram, em datas adquiridas de terra, constituir família e descendência, como é o caso do personagem, quase mítico, que funda Macambira, Lázaro Pereira de Araújo, ou o de Feliciano da Rocha, de renome conhecido e cuja descendência ainda é encontrada em Acari (Dantas, 1992). Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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Para além dos usos de termos “frigorificados” e homogeneizadores com que a categoria quilombo tende a ser manejada no senso comum (Almeida, 200), que estratégia adotar para recuperar a noção em sua positividade, refletindo a realidade situacional com a qual o pesquisador está se defrontando? Mais uma vez, precisamos voltar ao que nos dizem e como agem os atores sociais dos grupos com que trabalhamos, bem como à formação do campo intersocietário local. Um primeiro ponto a ressaltar é o de que, como nos lembram autores como White (1994), Said (1990), Gruzinski (2003), Torodov (1988) e Bonfil Batalla (1972), termos como “negro”, ou “índio”, e seus corolários “tribo” e “quilombo”, são categorias constituídas em contextos coloniais, na maioria das vezes com tendência homogeneizadora (quer dizer, não levando em consideração as especificidades sócioculturais locais), de fato parte do instrumental da conquista. Como o propõe Valle (1999), nas relações étnicas, “eles” e “nós”, “brancos” e “índios”, no caso “brancos” e “negros”, também expõe suas diferenças e demandas nas disputas do campo semântico da etnicidade, onde o termo “negro” pode tanto expressar repúdio e violência, quanto “herança”, “descendência”, “patrimônio”. No caso específico de Macambira, p.e., pouco importa sabermos se estamos diante de estoques de negros sudaneses ou angolas. Como o coloca Barth (2000), ao pensar o caráter contrastivo da constituição de fronteiras identitárias, mais do que procurarmos sinais diacríticos de uma suposta africanidade que balizaria uma negritude “autêntica”, temos que entender os arranjos que o grupo tomou para continuar enquanto tal, minimamente coeso e autônomo. Dito de outro modo, tomando a situação colonial (Batalla, 1972) em que estão inseridos os ex-escravos que aos poucos conquistam sua alforria no século XIX, quais “negros” era possível ser? Ou ainda, salientando o caráter etnográfico da pesquisa: que negritude encontramos em Macambira? Mais do que ligada a rituais de possessão ou batuques, esta se constitui no próprio exercício cotidiano de resistir às adversidade materiais e simbólicas – que como veremos foram muitas – a que tem sido expostos ao longo de mais de 100 anos. De fato, se em alguma medida, no contexto desta demanda territorial, a negritude pudesse eventualmente ser questionada, seu direito em definir-se como quilombola, lembrese que quem primeiro demarcou fronteiras étnicas foi o preconceito, foi a população “branca” do entorno, preconceito materializado na expressão “negros da Macambira”. Independente disso, em especial no capítulo 1, serão apresentadas as bases da etnicidade de Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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Macambira. Apresentaremos a ocupação curraleira na região de Currais Novos de modo a compor em seu perfil básico o campo intersocietário local, em diálogo com o qual a etnicidade de Macambira se conformará, muitas vezes de forma crítica, como resposta à dominação patrimonial (Weber,1999) a que até pouco tempo ainda era exposta. No capítulo 2, damos conta da constituição de um desenho sócio-cultural básico da Comunidade, com ênfase em seu processo de mobilização política das últimas duas décadas. Pro fim, algumas considerações e recomendações finais.

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I. OCUPAÇÃO DO “SÍTIO MACAMBIRA” E FORMAÇÃO DA DESCENDÊNCIA DE LÁZARO PEREIRA DE ARAUJO (SÉCULOS XIX-XX)

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CURRAIS NOVOS DA FAZENDA TOTORÓ (SÉCULOS XVIII-XIX)

“Percorrendo a extensa zona dos nossos sertões, onde os costumes ainda se ressentem do culto do passado, vemos a cada passo lembrados homens antigos, que já se foram, mas permanecem na memória das gerações novas que os não esquecem, conforme foi boa ou má a sua conduta no tempo em que viveram” (Dantas, 1941:5).

Em Homens de Outr’ora, de Manoel Dantas (2001[1941]), “clássico” da historiografia do Seridó, somos apresentados a alguns desses “homens antigos” que povoaram esses sertões desde especialmente o século XVIII, povoamentos dos quais se formaram cidades como Caicó, Acari e Currais Novos, tendo a pecuária e a escravatura como eixos de produção material e simbólica da vida social. De fato, o trabalho de Dantas se insere em uma já consistente historiografia da formação desses sertões, com foco, saliente-se, na “família branca” (vide, p.e., Lamartine, 2005; Medeiros, 1981, 1983; Lima, 1990 [1937]; Othon, 1970; Augusto, 2002 [1940]).29 É de se notar, no entanto, que o problema da escravidão pouco aparece nesta bibliografia, bem como a relevância, e mesmo presença, do elemento negro para a formação cultural da região. Quando aparece, sempre residual, ou é simplesmente negada; ou é colocada como algo “brando” e “amistoso” - o castigo sendo excepcional -; ou é celebrado o seu fim, a ação abolicionista sendo apresentada como marcante na região. Dantas (2001:25), p.e., corrobora a visão de que “a escravidão não deixou traços no Rio Grande do Norte”. Lima (1990:189) apresenta não só o envolvimento de membros da elite de Currais Novos no processo abolicionista de 1888, mas “o alvoroço e o enthusiasmo pela campanha”. E, por fim, em termos gerais, em uma historiografia geral do Rio Grande do Norte, em Medeiros (1980:101 apud Ratts, 1998) encontramos sentenciado:

29

Trata-se de uma história construída do ponto de vista dos “coronéis” (Lamartine, 2005), das “figuras salientes” (Lima, 1990), das “velhas famílias” (Medeiros, 1983).

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“são raros os negros com raízes tradicionais no Rio Grande do Norte, descendentes em linhas retas de antigos escravos. A contribuição da raça negra para a formação da etnia no Rio Grande do Norte foi mínima”. Além da necessidade de reconhecimento do quadro teórico-analítico e político através do qual tem se escrito a história do Seridó - o que em parte explica essa ausência (vide Macedo, 2005; Valle, 2006) -, é de se fazer notar a pouca base de dados empíricos dessa historiografia: não ultrapassa os limites sociais da família patriarcal pastorilescravagista do Seridó dos séculos XVIII e XIX; e trabalha com fontes secundárias (p.e. inventários e certidões), ou com fragmentos do que se classifica como “tradição” (Lima, 1990:185), documentos orais, apresentados sem maiores preocupações com a explicitação das metodologias utilizadas para sua produção. Do ponto de vista da Serra de Santana, da trajetória da Comunidade de Macambira, formada pelos arranjos sobretudo entre famílias negras que foram se alforriando em meados do século XIX, a história compilada neste trabalho30 põe em questão e complexifica parte da historiografia geral do Seridó, não só salientando a considerável presença negra na região,31 mas também revelando os esquemas ideológico-políticos que operam por trás do apagamento da escravidão como realidade evidente e determinante na formação da região. Além disso, a trajetória de fundação e formação da Comunidade de Macambira também revela, para o século XIX, não a abolição da assimetria étnica presente do regime escravocrata, mas sua adaptação para um regime de dominação de feição patrão-cliente (Wolf, 2003:108-111), com presença de compadrio como lógica de familiarização patronal e o arrendamento (com foros de 30-50% da produção total por safra) como modelo de exploração do trabalho. A esse sistema de produção, baseado na super-exploração do trabalho, passou a se chamar na grande História da Nação (nos termos de Anderson, 1989) de “trabalho livre” (Libby & Furtado, 2006). Ao menos, as relações de trabalho em que encontramos os membros da Comunidade de Macambira historicamente envolvidos, em sua maioria vivendo de arrendamento em terras alheias, em termos micro-lógicos, inscrevem-se dentro 30

Que se soma a trabalhos recentes produzidos em outras comunidades negras do Estado. Vide, p.e., Assunção, 2006; Cavignac, 2006; Ratts, 1998; e Valle, 2006. 31 Para citar 3 das comunidades negras existentes no entorno da cidade de Currais Novos, temos a Comunidade dos Negros do Riacho e a Comunidade de Queimadas (Queiroz, 2002), e a de Macambira, já na Serra.

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da grande categoria representada pela noção “trabalho livre”, mais de cunho ideológiconacionalista, do que propriamente uma realidade na acepção ampla do termo. Nos termos de Batalha (2006:97), autor inserido no movimento contemporânea na “nova história” em repensar criticamente e com maior documentação a oposição consagrada na historiografia brasileira, entre “trabalho escravo” e “trabalho livre”: “parece evidente que a abolição da escravidão não assegurou o fim da coerção extra-econômica no trabalho”. De fato, analisa (idem), que “se a coerção extra-econômica é uma manifestação mais visível da limitação à liberdade no período pós-escravidão, está longe de ser a única”. Ressalte-se, mais uma vez, em termos simbólicos, que o primeiro movimento de demarcação de fronteiras étnicas entre “brancos” e “negros”, de instituição dessa categorização, no caso em particular entre a população de Lagoa Nova e a de Macambira, é dado pela comunidade “branca” (nos termos de Gluckman, 1987), quando estigmatiza historicamente os membros da comunidade negra próxima cerca de 10 quilômetros, através da expressão “negros da Macambira”, de cunho pejorativo, a que se ligam as concepções de “bravos”, “pobres”, “feios”, “sujos” e”feiticeiros”.32 A expressão ilustra bem a argumentação crítica de French (2006:75), de que a abolição do escravismo em 1888 não assegurou o fim da coerção, dado seu “vasto repertório de medidas repressivas”, com especial “prevalência de formas extra-econômicas de coerção”.33 Cruzando os dados mais recentes recolhidos pela nova história (Libby & Furtado, 2006) com o exame dos pressupostos ideológico-econômicos das representações produzidas pela historiografia nacionalista do início da República,34 French (2006:79) aponta mais continuidades do que descontinuidades no antes e pós-1888 - nos “limites nebulosos entre o livre e o não-livre” -, que se aproximam sobremaneira da sociedade seridoense da virada dos séculos XIX-XX: “(...) os legados da escravidão africana incluem noções bem estabelecidas sobre o exercício legitimado da autoridade, hierarquias de status profundamente arraigadas e modelos de governança que mantiveram sua influência mesmo após o seu fim”.

32

Queiroz (2002), em seu trabalho sobre “preconceito racial” na Cidade Currais Novos, apresenta dados demonstram a atualidade do estigma relacionado à negritude. 33 Batalha (apud French, 2006:75) neste ponto se pergunta, para o contexto urbano de fins do século XIX: “o quanto livre estavam os trabalhadores urbanos após a abolição do escravismo?”. 34 De onde herdados a versão oficial de nossa formação histórica.

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Em suma, resume criticamente French (idem), mais do que descontinuidades, a passagem dos séculos XIX-XX é marcada pela permanência, em suas feições básicas, da “cultura autoritária e paternalista das classes dominantes”. Do ponto de vista do entendimento dos processos que incidem (Barth, 1966, 1969) sobre a formação do agregado familiar que daria início à Comunidade de Macambira na segunda metade do século XIX, é preciso considerar resumidamente, de início, as feições desse campo de relações interétnicas dentro do qual se funda a fazenda Totoró, em fins do século XVIII e a futura expansão de sua vacaria para a chã da serraria ao norte, extremo norte da Serra da Borborema, que receberia o nome da padroeira da gente que primeiro ocupou a região: Nossa Senhora Sant’Anna. Deste modo, para chegarmos à descendência de Lázaro Pereira de Araújo, e para entender o quadro de relações dentro do qual o negro forro estava inserido, e com o qual soube negociar adquirindo datas de terra, precisamos apresentar a criação dos primeiros currais em torno da data do Totoró pela família Lopes Galvão (Lima, 1990; Augusto, 2002, Medeiros, 1981, 1983; Lamartine, 2005). Macedo (2005) resenha e posiciona os trabalhos dedicados à produção de uma história do Seridó, à sua “invenção” enquanto espaço físico e simbólico. A conquista do oeste nordestino, resume, “fez-se percorrendo duas vias: pelos sertões de dentro e pelos sertões de fora” (:33). Por esta última, pelos caminhos abertos poucas décadas antes pelas frentes que aniquilaram as últimas resistências indígenas organizadas naqueles sertões (vide Puntoni, 2002; Medeiros, 1981:9), chegaram de Pernambuco e da Paraíba frentes de colonização, tendo o gado como epicentro do modelo econômico e sócio-cultural em fins do século XVII.35 Como nos lembra o autor (Macedo, 2005:35), “a conquista do sertão não foi pacífica”. Ao que acrescentaríamos, nem o foi a sua colonização. Por esses caminhos chegaria, na segunda metade do século XVIII, a frente que povoaria o Seridó setentrional, “num recôncavo da Serra de Santana, na bifurcação dos rios Maximoré e Totoró” (Lamartine, 2005:85). “Ao que parece”, compila Lima (1990:185), “a primeira exploração do território deste município foi feita, conforme a tradição, no anno de 1755, pelo coronel Cypriano Lopes Galvão, natural de Iguarassú, casado com D. Adriana de Hollanda Vasconcellos, ambos de Pernambuco, o qual tendo 35

Motivo pelo qual muitas vezes se chamou a esse período, em especial entre os século XVIII-XIX, de “ciclo do gado”, “ciclo do couro”, e mesmo “civilização do gado”.

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obtido a data do “Totoro”, dali viera com sua família situar-se na sua data e fundar uma fazenda de criar gados”. Cypriano Lopes Galvão foi o primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria da Ribeira do Seridó (Medeiros, 1981:369). Medeiros (1983:88) nos lembra que dentro do regime hierárquico e militarizado da governança das capitanias, em que o cargo político confundia-se com o militar, o Regime de Cavalaria compunha sua 3a linha, a das “ordenanças”. “Tais tropas”, salienta o autor (idem), “quando instaladas nos arraiais, ficavam sob comando de um coronel”. Este, portanto, do alto da sede da Fazenda Totoró, no Pico do Totoró (Medeiros, 1983:99), ocupava funções administrativas e militares frente àqueles sertões. A titulação militar seria transmitida a seus filhos, em especial aos filhos primogênitos, só que em grau cada vez mais baixo (como, p.e., capitão-mór e sargentomór). Seriam 14 filhos (Augusto, 2002; Medeiros, 1981), entre homens e mulheres, que ao longo do século XVIII, assim como seus descendentes, arrendaram progressivamente novas datas de terra36, a exemplo da área contígua à Fazenda em que erigiram novos currais, pelo que a requereram e batizaram de data de Currais Novos (Lamartine, 2005:86). Com seu falecimento, em março de 1764, pouco depois de iniciado o processo de ocupação dos baixios da Serra de Santana, casa-se por segunda vez sua mulher, Adriana de Holanda de Vasconcelos, com o “rico fazendeiro” Félix Gomes Pequeno (Medeiros, 1981:369). Nesse mesmo ano de 1764, em abril, a viúva recebe: “duas sesmarias de três léguas por uma, da forma da lei. Na primeira, o domínio confinava com o sítio de criar gado no Totoró e era na Serra que ela descobrira, por intermédio dos escravos, huma serra de plantar rossa, sem água corrente nem vertente, inútil para pastorícia. Na outra, teve sobras nessa Serra que corre uma parte para o Açu e outra para o Seridó” (Medeiros, 1981:369). Nesta última sesmaria, a matriarca e sua família constituiram terras de plantar, em especial mandioca (mas também milho e feijão), e as primeiras casas de farinha da região. Em seu inventário (1793), encontramos as seguintes datas contíguas na Serra de Santana (antes “Serra Negra” ou “Serra Azul”) como “bens de raiz” (Medeiros, 1983:175-176):

36

“Sesmarias” (Medeiros, 1983).

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(1) “Uma data de terras de plantar lavouras, na serra chamada Santana, com o título de antiguidade Serra Negra ou Serra Azul, cuja data a houvera a defunta mulher dele inventariante, da sesmaria da Cidade do Rio Grande do Norte, que compreendem em si três léguas de comprido e uma légua de largo, já cultivada e situada, que fazem suas extremas, com a parte do poente com o Coronel, digo, Tenente Coronel Jerônimo Cabral de Oliveira,e, pelo nascente, com terras do mesmo monte, pelo norte com terras do Capitão Domingos Jorge e do Sargento-mór Matias Fernandes de Sá, e, pelo sul, com terras do dito Totoró de Cima, do mesmo monte. Declaro que esta data acima dita, assim confrontada, a houveram por título de compra, que dela fizeram por escritura pública, a Antônio Tavares da Silva, morador que foi na Vila da Princesa....................................................................................................... 600$000”. (2) “Uma data de terras de plantar lavoura, na Serra Santa Ana, algum dia denominada Serra Negra ou Serra Azul, que tem de comprimento três léguas, e uma légua de largura, cujas terras houveram por título de Data de Sesmaria, passado por um dos Capitães-Mor e Governador da Cidade de Natal do Rio Grande do Norte, que fazem suas extremas, pelo poente, com terras de plantar,do mesmo monte, e, pelo nascente, com terras de criar do Capitão Baltazar Soares da Silva, do sitio denominado Curralinho, e com terras de Miguel Alves de Souza, no sítio denominado Bodó, e, pelo sul, com terras de criar do Capitão-Mor Cipriano Lopes Galvão, do sítio Areia e São Bento, e terras de criar do Tenente-Coronel Afonso José Albuquerque, dos sítios denominados Santo Antônio e Maxinaré.......................................................................................................600$000”.

Dentro dos limites materiais desta investigação, não foi possível pesquisar – se possível o for – os limites exatos a que se referem ambas as datas mencionadas. As dificuldades de tal tarefa se dão não só pela “precisão” agrimensora do século XIX e as relações de poder que muitas vezes incidiam nos registros cartoriais, mas também pela destruição da maioria dos “marcos testemunhados” que demarcavam “linhas” de terra, desde Currais Novos, subindo pela Serra nas primeiras décadas do século XX.37 Nos termos de Salvino Ferreira,38 quando passa, então, a ser “terra cercada”. Segundo Manoel de Julieta, dos Severiano,39 uma dessas datas ficava para leste da Serra de Santana, onde hoje se encontra Lagoa Nova, e a outra seria a em que hoje se encontra a grande Macambira. Neste ponto, a trajetória da família “branca” senhorial dos Lopes Galvão incide sobre a da “família negra”, uma vez que serão justamente partes de uma dessas datas que Lázaro de 37

Em especial, no contexto dos conflitos por delimitação de fronteiras entre 1930-1940, quando os grandes proprietários locais passam a cercar áreas que consideram como sendo de sua propriedade 38 Grotas do Açu, 17.04.07. 39 Buraco de Lagoa, 19.04.07.

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Araújo comprará e a partir das quais erigirá roçados, casas de farinha e descendência. Como veremos mais adiante, as datas de terra ocupadas pela Comunidade desde a década de 1850, advêm de transações comerciais com os herdeiros de Dona Adriana, dessas referidas “sobras nessa Serra que corre uma parte para o Açu e outra para o Seridó” (Medeiros, 1981:369). Além disso, é possível que Lázaro de Araújo tenha sido escravo de um dos filhos de Dona Adriana de Vasconcelos. Nos inventários e listas de nomes de “escravos” consultados (de Acari e Currais Novos), o nome “Lázaro” é raro, sua única ocorrência se dando no inventário de Félix Gomes Pequeno (2o), filho do segundo casamento com Dona Adriana. Sobre esta senhora, que da viuvez de seus três casamentos constituiria vasto patrimônio, administrando ao longo de quase um século gerações de membros da grande família Lopes Galvão, ressaltamos ainda o que da história oral local compila Queiroz (2002:77): da “doação e divisão de sua terra para os pobres”. E ainda: a “possibilidade de que Adriana de Holanda de Vasconcelos tenha presenteado, ou seja, concedido, ainda em vida, parte de suas terras aos seus escravos, numa época dominada pelo sistema escravista” (idem). Isto talvez ajude a explicar, considerando-se o regime de assimetria étnica vigente, o modo como décadas depois seus herdeiros estariam negociando com o “negro” forro Lázaro de Araújo. Junte-se a isso, em se considerando que após 1850 já era possível negociar terras (Silva, 1996) e que o negócio do gado já não era tão rentável, a necessidade destes herdeiros em dinamizar seus capitais. Se atentarmos para o conjunto de bens inventariados por algumas das famílias “brancas” fundadoras de centros de povoamento e expansão entre os séculos XVIII e XIX como Currais Novos (Medeiros, 1983), nos damos conta também de que se tratava de uma sociedade de poucas e circunscritas posses para o exercício da vida cotidiana, basicamente, datas de terra e cabeças de gado , transmitidos por herança de pais para filhos, e alguns poucos utensílios, ferramentas e mobiliário. Enquanto empresa econômica, tendo sido encontrado o “sítio de criar gados”, o criatório exigia “um pequeno contingente de homens livres pobres e escravos” (Macedo, 2005:40). Primeiro, era preciso encontrar um “sítio”, ou um “saco”, termos referidos à área de “aguada certa”, na qual “o seu descobridor introduzia os seus gados, levantando um rancho e uma caiçara, primeiros estágios de uso da terra”, de forma a que se convertesse, ao atingir produtividade, em uma “fazenda” (Medeiros, Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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1983:10). Como vimos, dada a centralidade de papéis assumida por um personagem como Cypriano Galvão, o centro político-administrativo do Seridó do Currais Novos dos séculos XVIII-XIX é a casa do senhor, é a casa da Fazenda Totoró.40 Nela se darão, p.e., todas as transações de terra de Lázaro de Araújo junto a herdeiros de Dona Adriana, bem como de vendedores que já as tinham comprado anteriormente de membros da família Galvão. No Totoró se farão as transações, no Totoró elas serão registradas. Os papéis administrativos não assumidos pelo patriarca da família, como os cargos de juízes, o serão por outros membros da família ou de família com quem tenham aliança. Ressalte-se ainda, que dadas as condições em que os registros de terra eram feitos em meados do século XIX (como veremos mais adiante), não ser de estranhar que boa parte das testemunhas dos documentos de terra encontrados em Macambira serem da família Galvão. Deste modo, no regime político do Seridó do século XIX, regime que receberá com “entusiasmo”, nos termos de Lima (1990), a abolição e a República, a família patriarcal administra em termos gerais, a família julga, registra, testemunha. Para nos aproximarmos mais detidamente da organização social do Seridó do século XIX, recuperamos rapidamente o exercício de Medeiros (1983:27) em seu exercício de “reconstituir a vida nas fazendas seridoenses naqueles tempos remotos” a partir dos inventários de bens de alguns dos representantes de algumas das principais famílias da região, objetivando reconstituir em suas feições sócio-históricas básicas o mundo social em que em meados do século, já avançado o processo de alforria na região, se formou a Comunidade de Macambira. Nos inventários de bens dos séculos XVIII e XIX, às casas chama-se de “moradas de casas”. Nestes, predominam as “casas térreas, de taipa, cobertas de telhas” (Medeiros, 1983:53). Casas como as da sede da Fazenda Totoró, já utilizavam tijolos em suas construções, como aponta a seguinte passagem, do inventário (1814) do Capitão-mór Cipriano Lopes Galvão, filho de Cypriano Galvão (idem): “uma morada de casas com frente de tijolo”. A descrição de Medeiros (1983:55) da organização interna básica dessas casas (com sala de frente, corredor no meio que leva a dois cômodos laterais chegando ao final à sala-de-trás), muito se assemelha a algumas das casas encontradas em Macambira, como revermos mais adiante. 40

Estrutura semelhante é apresentada por Freyre (1987) para o caso de Pernambuco.

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“Anexo à morada”, aponta Medeiros (1983:55), “havia a senzala e outros cômodos”. Apesar do efeito de pouca relevância produzido pela literatura dedicada à ocupação do Seridó das contribuições e presenças negras na sociedade e cultura regional, dados da Vila do Acari dão conta de que entre 1754-1875 “o número de cativos oscilava de uma a trinta e duas peças” por amo ou senhor (Macedo, 2005:45). Medeiros (1983:31) assim resume a situação:

“Os fazendeiros, dedicados exclusivamente à criação, possuíam uma menor quantidade de escravos. Os que, além da pecuária, também exploravam atividades agrícolas, possuíam-nos em maior escala, em uma média de dezoito escravos, em suas terras”. Em termos de valores por unidade, 41 acompanhamos, do período de 1773 – 1866, um progressivo aumento nos preços pagos pela mão-de-obra, diretamente proporcional ao processo crescente de alforriamento que desde as primeiras décadas do século XIX já estava em curso na região. Os preços máximos pagos por homens, p.e. variaram de 90$000 (noventa mil réis) em 1773, passando por 450$000, em 1847, e chegando até 1:200$000 em 1866. Esses números censitários e a presença que eles revelam devem ser pensados em relação ao quadro geral sócio-cultural da região (no caso que abarca o entorno dos municípios de Currais Novos e Lagoa Nova), e não isoladamente, apenas como números inexpressivos em termos estritamente quantitativos. Se recuperamos a passagem “célebre” de Cascudo (1984:44), em que este coloca que, na ocupação do sertão, “era desnecessária grande cópia de escravos”, razão pela qual sentencia que “o negro foi-nos uma constante, mas não uma determinante econômica”, devemos, em certa medida, concordar com o intelectual potiguar. Mas seria necessário acrescentar, como vimos nos parágrafos precedentes, que esta feição não caracterizava apenas à população negra: era desnecessária grande cópia populacional em termos gerais para o gado enquanto empreendimento econômico nos sertões de “terra livre”. Toda e qualquer “empresa” no Seridó entre os séculos XVIII-XIX, é pequena em termos administrativos e operacionais, de estrutura familiar, de feição muitas vezes nuclear. Isto explica, inclusive, por que a relação de dominação encontrada da região é de tipo patrimonial (Weber, 1999), articulada ao nível 41

Por peça, terminologia da época.

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diádico, das relações pessoalizadas, já que a coerção em forma mais sistemática (com capatazes, capitães do mato e sistemáticas de controle da produção e do castigo) requeria investimentos sustentáveis só com empreendimentos de alto vulto, o que não era o caso da vacaria do sertão.42 Portanto, tudo era pouco no Seridó dos séculos XVIII e XIX: as gentes, as casas, os móveis, os bens pessoais, o regime alimentar, a água, os luxos de prata e ouro (vide Medeiros, 1983), tudo, exceto a terra - reunida na grande propriedade -, o gado e a mandioca. Neste sentido, considerado em sua proporcionalidade, tudo é determinante, ainda que condicionado, no entanto, pelo quadro geral dentro do qual as relações sociais eram travadas: o da segregação com base raciológica (“raça negra”) 43 e da escravidão como modelo econômico. Ao tratar da análise de um contexto pluri-étnico específico, bem mais complexo que o representado pelos membros da Comunidade de Macambira em sua relação com as comunidades vizinhas e a cidade de Lagoa Nova, Leach (1996:71) enfatiza o pouco rendimento analítico, bem como a “ficcionalização” a que são submetidos os diversos grupos sociais e sistemas políticos em negociação, quando pensamos a cada um isoladamente e fechado em si, tentando apreender-lhe as feições supostamente essenciais. É preciso pensar a interação entre os componentes étnicos do sistema para entender a especificidade de cada um, bem como os nortes possíveis de negociação para o empreendimento de projetos individuais (Leach, 1995:71). Além disso, alerta ainda (idem), não se pode esperar da vida em sociedade um “sistema em equilíbrio”, ainda mais em contexto de assimetria e dominação de um dos grupos étnicos sobre os demais. Ao final, “a situação real é na maioria dos casos cheia de incongruências” (idem). Assim como o contexto sócio-cultural da Serra de Santana, também a situação etnografada pelo antropólogo inglês apresentava bastante mistura social e cultural entre os diversos grupos em relação, além da possibilidade, prevista dentro da organização geral do 42

Análise proposta por Benedito Souza Filho (comunicação pessoal) a partir do caso maranhense durante a X Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (2007). 43 Que associava – e que em alguns casos ainda associa – características culturais com características fisiológicas. Deste modo, p.e., a “raça branca” teria propensão a ser mais inteligente, pelo que preparada para o mando, ao passo que a “raça negra”, inferior, seria apta ao trabalho pesado, por sua constituição física, e pouco desenvolvimento intelectual, o que desde a antropologia da virada do século XIX-XX já foi cientificamente desqualificado e criticado por ser apenas reflexo de ideologias de dominação (vide Boas, 2004; Lévi-Strauss, 1970).

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sistema social regional, enfatize-se, de mudar de “identidade” de acordo a vinculação social em questão (p.e. de descendência, religião, ou etnia). Como então encontrar - diante da mistura socio-cultural e da variação dos parâmetros de pertencimento e vinculação identitária - os eixos a partir dos quais os grupos se separam, demarcam uns frente aos outros suas singularidades e circunscrições? Mais adiante, trataremos de como os membros da Comunidade operam essa diferenciação. Por hora, seguimos a proposta de Leach (1996), e procuramos entender a família “branca” e a família “negra”, por mais que haja variações internas em cada uma, como constituindo, no contexto da interação – mesmo que conflituosa -, um mesmo sistema regional.

44

Ao compararmos, em termos básicos, p.e., a

formação de cada um dos modelos ideais, entendendo a cada uma como conformando um sistema ou tendência de parentesco e familiarização (Comerford, 2003:41), e apesar das muitas semelhanças, 45 podemos dizer, ao acompanharmos o quadro matrimonial da família Galvão ao longo do século XVIII (Medeiros, 1981:369-384), que nos deparamos com uma lógica que poderíamos sem problemas classificar como de tendência endogâmica, muito por força das circunstâncias, muito como resposta ao regime segregacionista (idealmente de não mistura), com prevalência de casamentos entre primos, dos dois lados, com a presença de avunculado. Para além do centro familiar, também se estabelece relação com famílias “de fora” (mas do mesmo segmento social, enfatize-se) da vizinha Acari, em especial com a descendência de Thomaz de Araújo Pereira, patriarca de outra das “velhas famílias” (Medeiros, 1981) fundadoras dos povoados dos sertões do Seridó. Lembre-se ainda que em regime de segregação, por mais “amistosa” que a literatura regional enfatize ter sido o processo escravagista seridoense, raros eram os casamentos interétnicos entre “negros” e “brancos”.46 Como veremos na sessão seguinte, para Macambira, a tendência inicial é exogâmica, é de mistura, idealmente, seja “branco” ou “negro”. Posteriormente, com o estreitamento do campo matrimonial possível, no quadro da intensificação da segregação

44

Nos termos de Gluckman (1987), uma mesma “Comunidade”. Tais como a possibilidade de bi-lateralidade de descendência (com tendência à linha paterna, no entanto, mas em muitos casos a linha materna, representada pelo seu sobrenome por parte do pai da mãe, é passada para as filhas); e a grande variabilidade na lógica onomástica de nomeação e transmissão de sobrenome. Parte da explicação talvez passe pelo fato de em ambas encontrarmos um mesmo substrato socio-cultural cristão que marca a formação brasileira em sentido geral (vide Velho, 1995). 46 O que não significa que não houvesse relações sexuais entre membros dos grupos. 45

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étnico-racial, adquire paulatinamente tendência endogâmica, de forma que a maioria dos casamentos registrados na Comunidade se dá entre primos a partir das geração 3-4. Será essa sociedade patriarcal, pastoril e escravocrata que alcançará a Serra de Santana, expulsando os últimos “caboclos” (índios) nela habitantes em finais do século XVIII. Será a partir dela, no jogo da conquista paulatina por autonomia socio-cultural, política e econômica, que se formará a família “negra” encontrada na região, no caso em particular de Macambira, constituída, ao longo de mais de um século, em termos de comunidade, em redes familiares de matrimônio e aliança circunscritas a um grande território que ao longo do século XX foi sendo desmembrado, (1) pelo próprio crescimento interno das famílias, (2) por vendas ou (3) pelo cercamento indevido de grandes proprietários vizinhos, território (“sítio” na acepção local) que receberia o nome de “Macambira”. Sobre a ocupação da Serra, na historiografia seridoense compilada, encontramos em Alves (1986:137-138) interessante versão de fundação, em texto intitulado “origem do nome Lagoa Nova”. Em 1777, durante mais uma longa seca, marca ecológica da região, Dona Adriana, Adriana de Holanda de Vasconcelos, já viúva de Cypriano Galvão e Félix Pequeno, “notou que, no Totoró, passava sempre uma porção de marrecas, vindas do lado da Serra Azul, que depois foi chamada de Serra de Santana; na parte da tarde, marrecas voltavam na mesma direção”. Mandou então dois de seus filhos seguirem as marrecas, suspeitando que elas tivessem encontrado água. Neste momento, no sentido norte, conhecia-se até o riacho da Areia. “Logo que conseguiram subir a Serra”, conta Alves (idem), “notaram que o clima mudava, bem como a vegetação, o emaranhado de cipós de diversos tipos”. Esse trecho de subida da Serra de Santana é conhecido localmente como as grotas, e justamente uma de suas características ecológicas ressaltadas ao longo do trabalho, que vira também signo de territorialidade para definição de fronteiras entre domínios, é a presença marcante de “cipó preto”. É nessa subida também, enfatiza Manoel de Julieta, que se encontram muitas macambiras (bromelia laciniosa). Em um fim de tarde, os irmãos Galvão teriam visto as marrecas pousando no local onde encontraram uma lagoa, batizada de “Lagoa Nova” (1986:138). O relato do autor seridoense torna-se bastante interessante - apesar dos limites confusos apresentados para a data de terra requerida por Dona Adriana -, motivo pelo qual nele nos estenderemos um pouco mais: Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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“Encontram também bastante gado, em torno da lagoa, arrancharam-se (...) e ficaram dois dia verificando gado que descia para beber (...). Voltaram e trouxeram as boas novas a Dona Adriana que ficou muito feliz, mandou fazer um curral perto da lagoa, bem como abriu caminho para descer com o gado, verificou também que as terras estavam devolutas, foi a Natal e requereu a Sesmaria de Lagoa Nova, que ficou assim delimitada: pelo poente com a própria Dona Adriana, pelo norte com terras de criar do capitão Baltazar Soares da Silva, no sítio Curralinho e Miguel Alves de Souza, no sítio denominado Bodó, pelo nascente com terras de Félix Gomes Pequeno, pelo norte com terras do Capitão Mor Galvão nos sítios Areia e São Bento e com terras do Tenente Coronel Afonso José Albuquerque, nos Sítios Santo António e Maxinaré. A data foi requerida e despachada com três léguas de comprimento e uma de largura (...)” (Alves, 1986:138). Do ponto de vista de Macambira, as referências mais antigas encontradas sobre o imóvel ou lugar assim denominado, em termos de documentação escrita e bibliográfica, estão: (1) nas escrituras de transmissão de terra encontradas na Comunidade (entre 18561859), em que aparece como “sítio Macambira” ou “Serra da Macambira”; (2) e no inventário de Lázaro de Araújo (1872).47 Na literatura compilada, encontramos referência ao “logar” no trabalho de Lima (1990[1940]:196), junto a “Buraco de Lagoa” e “Alagoa Nova”, além de referência à “casa de farinha do Lazaros”, que seria um dos marcos de limite do município de Currais Novos com a Serra de Santana. Sobre a origem do nome da Comunidade, narra Manoel de Julieta, de Buraco de Lagoa:48 “Homem, botaram esse nome por Macambira por que lá, lá em Currais Velhos, encontraram uns pés de Macambira. Mas do município pra lá, num sabe. Pra cá não. Mas pra lá, pr’aquelas matas encontram uns pés de Macambira”. É no relato de Manoel de Julieta que vamos também encontrar versão com bastantes eixos correlatos com a compilada por Alves (1986), mas desta vez dando conta da origem do nome “Buraco de Lagoa”, e de uma maior complexidade do quadro étnico do período colonial seridoense. Em toda a Serra, duas são as principais fontes de água, duas lagoas, desde o século XIX conhecidas como Lagoa Nova e Buraco de Lagoa. 49

47

Temas das próximas seções. Buraco de Lagoa, 28.10.06. 49 Que assim o foram até o ano de 2006, com a chegada da adutora vinda do vale do Açu, que hoje abastece toda a Serra com água para consumo humano. 48

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“Foi por causa dessa lagoa. Quando foi, quando foi arrematada essa terra. Isso aqui era uma mata. Isso aqui não tinha nada não. Tinha gado né, aí chegaram e soltaram na serra. Num tinha arame, num tinha nada. Aí tinha essa aguada aí, mas ninguém conhecia. Chegavam aqui e não conheciam. Aí pelo, aí pelo... Aí quando foi um dia, os vaqueiros andando pelo mato, aí acharam a trilha do gado, aquela lama que era da lagoa. Aí apareceu um caboclo, aí apareceu um caboclo e disse: “a pois, a pois é água que tem aqui no nascente. Aqui no nascente tem duas lagoas. Tem uma aí, e tem outra mais na frente”. Quando chegaram, aí disse que era a beleza maior do mundo, que tinha passarinho, que o gado tava bem aí. Quando acharam chamaram de Lagoa do Mato. Aí quando meu bisavô chegou, num sabe, a família começou a crescer e aí começaram a chamar de Buraco de Lagoa, Buraco de Lagoa... Até o dia de hoje. Aí o cabra saiu pra lagoa nova, no rumo dessa daqui. Inté encontrar a lagoa lá. Aí lá botaram o nome de Lagoa Nova”. Apesar da presença indígena (“cabocla”) comparecer no relato do patriarca dos Severiano, de Buraco de Lagoa, e nos relatos de Salvino Ferreira, do Cabeça dos Ferreira, na forma de casamentos no passado, excepcionais, com “caboclas” que habitavam as grotas do Açu e que teriam sido pegas a “casco de cavalo”, o conteúdo étnico indígena é residual no conjunto total das narrativas compiladas. Em Buraco de Lagoa, Manoel de Julieta conta ainda existir a tapera, toda de barro, do último caboclo que habitou a Serra.50 Além da complexidade étnica da versão, observamos também no conjunto de narrativas compiladas uma inversão de protagonismo, que comparada a historiografia das “velhas famílias” (Medeiros, 19821), quando o foco de onde parte a versão é o da família “negra”, em particular da família Severiano, que apresenta através de seu atual patriarca, a memória social que alcançou transmitir entre gerações, oralmente, memória que dá conta da origem das famílias do lugar (de seus troncos velhos), de personagens em particular, de lugares e edificações, todos índices do conhecimento que o grupo dispõe do território (material e simbolicamente), e de seu histórico de ocupação humana e re-configuração fundiária (migrações, ampliações de terreiros, vendas e desapropriações), temas sobre os quais nos debruçaremos mais adiante.

50

Buraco de Lagoa, 28.10.06.

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Localização aproximada da Comunidade de Macambira: 6o 05’05.04” S / 36o 33’07.31” (Fonte: Google Earth Plus )

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“SÍTIO MACAMBIRA”, “TERRA DOS LÁZAROS”

Um dos termos por que é nomeada a área na chã da Serra de Santana que hoje abrange os sub-territórios de Macambira II e III, Cabeça do Ferreira, Ludogero e Buraco de Lagoa, é o de “terra dos Lázaros”, expressão que vêm desde o século XIX, já de pouco uso, encontrada entre os mais velhos da Comunidade e de seu entorno.

51

Coincidentemente,

Nestor Lima (1990:183), em uma de suas pesquisas durante a década de 1930 no Seridó, para formação de subsídios a uma história dos municípios desse sertão,52 aponta que o limite do município de Currais Novos com a Serra de Santana, de “nordeste e norte”, começa da “casa de farinha de Antonio Ernesto, no “Guedes”, em direção ao nascente, até encontrar a casa de farinha dos Lázaros”. Como veremos nesta parte do trabalho, é recorrente no material compilado em Macambira e em seu entorno, tanto a nomeação geral à famílias, quanto a territórios, com o uso do primeiro nome de algum patriarca, de algum cabeça de família. Deste modo, temos, como exemplo na atualidade, as famílias que respondem pelos nomes de Daniel e Manoel Severiano - de sobrenomes Pereira/Araújo e Do Ó/Araújo, respectivamente -, primeiros nomes de antepassados que por conta do lugar que ocupam nas histórias de família, passam a designar troncos inteiros, bem como áreas territoriais. A força desse uso é tão ativa, que chega a comparecer em documentação cartorial recente, como em certidão expedida pelo Primeiro Ofício de Nota de Santana do Matos (20.08.01), em que ao delimitar as fronteiras da área atualmente chamada de “Cabeço da Macambira”, ao sul, nomeia a área que vai de Macambira III, até Buraco de Lagoa, passando por Macambia II, como sendo a dos “Danieis e Manoel Severiano”.53 Como vimos na parte anterior deste relatório, a ocupação da chã da Serra de Santana vêm desde o final do século XVIII, intensificando-se em especial a partir da década de 1850. Tanto na história oral da Comunidade, quanto na documentação cartorial encontrada,

51

Manoel de Julieta (Buraco de Lagoa, 28.10.06) fez também uso da expressão “chão dos Lázaros”. O autor pesquisou tanto em arquivos quanto compilando elementos da história oral local. 53 Parte do processo “Proposta de Desapropriação do Imóvel Fazenda Macambira/RN”, n. 71205, n. de identificação 54330.001722/2001-68 (p. 02). 52

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confirmamos que os primeiros negros forros (e em poucos casos, fugidoss)54 que ocuparam na Serra o “sítio Macambira” migraram para a área em especial na segunda metade do século XIX, o que conforma praticamente 150 anos de ocupação, traduzida na formação de redes de parentescos extensa e complexa (que nos leva para além dos limites físicos da Comunidade), na paulatina formação de terreiros para moradia e na ampliação de habitações, de roçados e de estoques de maniva,55 e de casas de farinha. 56 No que podemos chamar de uma história de fundação de Macambira, tanto oral, quanto cartorial, encontramos com o personagem Lázaro, Lázaro Pereira de Araújo, descrito como “moreno” ou “mulato”, de estatura baixa, que apesar de possuir datas de terra na Serra de Santana, morava em Santana do Matos, “na Cruz”. Na maioria das vezes, é descrito com um “ex-escravo” que “comprou datas de terra dos herdeiros de Dona Adriana”.57 Um primeiro ponto a ressaltar é a recorrência de sua presença nas versões orais compiladas dentre os troncos familiares registrados,58 de ser o “primeiro que chegou”, “aquele que fundou”, a “semente” de todos os “troncos velhos” da Comunidade, eixo parental central em torno do qual todos se apresentam como sendo “tudo uma família só”, Lázaro Pereira de Araújo. Como disse Manoel Felipe (Manoel José

54

Mais adiante, quando nos debruçarmos sobre os troncos velhos, veremos o caso de Daniel, fugido da escravidão de Ceará-Mirim, que se casaria com uma as filhas de Lázaro Pereira de Araújo; e de José do Ó, patriarca dos Severiano. 55 Semente de macaxeira, conseguida a partir do tronco da própria planta, dos melhores exemplares conseguidos. 56 Em certas áreas da Macambira encontramos taperas de ocupações anteriores do território no início do século XX. 57 Apenas na versão de Manoel de Julieta (Manoel José de Araújo), de Buraco de Lagoa, Lázaro aparece como alguém “rico”, como “homem trabalhador que conseguiu ter umas posses”, “trabalhador economizador”. Não teria sido um “ex-escravo”, mas era “livre”: “Dizia o meu avô que o pai dele, não tinha sido escravo não. Foi uma família que não teve escravidão, foi ele”. Nesta mesma versão de fundação de Manoel de Julieta, um outro personagem, do qual trataremos mais adiante, aparece, no entanto, como “fugido”, como “ex-escravo”, que é José do Ó, de quem também é descendente. Como veremos mais adiante, tal versão deve ser contextualizada no quadro geral em que Manoel de Julieta apresenta a formação de Macambira, de origem “nobre”, fugindo de apresentar um passado de sofrimento e escravidão, bem como perfazendo uma versão que se contrapõe em termos ideológicos políticos à versão dos Daniel, com quem tem desavenças familiares. Além disso, os dados encontrados no Inventário n.110 do 1o Cartório de Currais Novos, corroboram uma origem simples de Lázaro de Araújo, bem como a inserção em um quadro de relações clientelistas com parte da descendência das famílias Galvão e Lopes Pequeno. Voltaremos a alguns desses pontos. 58 Nos poucos casos em que isto não aconteceu, chegamos no entanto à geração dos filhos de Lázaro de Araújo, dentre os quais destaca-se, como veremos, Francisco, que passaria a ser chamado de Francisco Lázaro.

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Felipe)59 - patriarca dos Felipe, atualmente residindo em Macambira II -, apesar das poucas lembranças que tem do período genealógico anterior a seus avôs, apontando para a origem em comum e para os intra-casamentos constitutivos da Comunidade: “Aqui tudo é de Lázaro, uma família só. Era gente de fora, gente que veio daqui, outros de acolá. Mas contavam os antigos do Lázaro, que era tudo família dos Lázaros”.

Na descrição de Manoel de Julieta (Manoel José de Araújo)60, quando trata da fundação da rede familiar da qual faz parte, quando apresenta uma versão histórica do ponto de vista dos Severiano enquanto família, e de Buraco de Lagoa enquanto território, também salienta que todos os seus habitantes, todos os seus troncos, descendem de “Lázaro Pereira de Araújo”, conhecido também como “Lázaro de Maria”, já que, explica, “esse povo todo tinha apelido”.61 Corroborando a máxima de que “aqui é tudo uma família só”, assevera: “Aqui nesse meio de mundo, para onde você corre, é tudo uma coisa só. Tudo de Lázaro, tudo de Lázaro. Que foi o primeiro que chegou aqui. O primeiro que criou família, né. Aí casaram-se os homens, os homens casaram com outra família. As mulheres casaram com outro povo, e vão criando família, vão criando família, família casando com outra família e lá se vai, viu. Pois é. A família de Lázaro, era só Lázaro, quando ele chegou. Hoje em dia, a família de Lázaro tá misturada com Pinheiro, com Rodrigues. Com Felipe, com Firmino, que são os mesmos Passarinho. É um familião”.

Partindo inicialmente das narrativas locais, dos eventos e personagens que no somatório das versões compiladas decanta-se como eixos centrais para os quais voltam-se as narrativas dos especialistas da memória do grupo, algumas questões se colocaram. Neste momento do trabalho, tratamos então da fundação de Macambira, enquanto “sítio”, isto é, enquanto território material e simbólico (enquanto terra para morar e plantar e enquanto lugar de memória e identidade familiar e étnica); e enquanto “comunidade”, enquanto descendência comum e rede matrimonial constituída a partir de Lázaro de Araújo e de seus 59

Macambira II, casa de Manoel Felipe, 18.04.07. Família (tronco): Felipes, Silva. Como veremos mais adiante, os Felipe foram expulsos de onde originalmente habitavam, atualmente Macambira, por gente da família Pinheiro a mando do finado Cel. Bezerra, de Currais Novos. 60 Buraco de Lagoa, casa de Manoel de Julieta, 28.10.06. Família (tronco): Severianos, Araújo e do Ò. 61 Sobre uma certa lógica de nomeação e transmissão de nomes a indivíduos e famílias, trataremos mais adiante. No caso em particular, de após o primeiro nome, acrescentar o primeiro nome do cônjuge ou do pai ou da mãe.

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filhos. Como vimos na parte anterior, o nome Macambira, e provavelmente seu entendimento como “sítio”,62 deve vir desde o tempo em que a área ainda fazia parte das datas de Adriana de Holanda de Vasconcelos. Sobre sua compra dos descendentes de “Dona Adriana”, e sua ocupação por negros forros a partir de meados do século XIX, um primeiro ponto a ressaltar é o da excepcionalidade do caso de Lázaro Pereira de Araújo, no Currais Novos de meados do século XIX, e do Seridó em termos gerais. Essa excepcionalidade em relação ao lugar que ocupou na passagem do regime escravocrata para o de “trabalho livre” vigente, em suas feições locais, e ao processo crescente de alforriamento que se acelera na segunda metade desse século. No entanto, ressaltemos, não se trata de caso isolado.63 Temos então um “ex-escravo”, “mulato”, que alcança bens materiais e simbólicos, naquele momento praticamente intangíveis para alguém de sua condição: tem sobrenome, tem datas de terra. Isto significa que pode constituir família, mais do que isso, pode constituir também a sua descendência, descendência consangüínea e de afinidade que ocupará paulatinamente e herdará suas propriedades na Serra de Santana. Isto significa também, que em meio ao regime que ainda era escravocrata em suas feições essenciais, em que “liberdade” não significa muito mais do que trabalho por arrendamento em terras dos antigos patrões,64 o “sítio Macambira” passa a ser um local para onde libertos, pobres e fugidos podem recorrer, para consolidar matrimônio, para conquistar 62

Como nos lembra Olavo de Medeiros (1983:11), reconstituindo parte da lógica material e simbólica dos sertões do Seridó dentre os séculos XVIII-XIX: “A esse local, com aguada certa, permitindo a fixação do binômio homem-boi, dava-se na linguagem usada na época, a denominação de sítio. Lendo-se os requerimentos de concessões de terras da nossa fase colonial, nos deparamos com inúmeras referências ao significado dado à expressão sítio: “descobriu um sítio de terras de criar gados em um saco”, “no referido sertão há um sítio devoluto”. Empresta-se, pois, à palavra sítio, o seu sentido geográfico”. 63 Em nossas investidas em pesquisa cartorial e paroquial em Acari, no Arquivo Paroquial, em Caicó, em seu 1o Cartórios, e em Currais Novos, também em seu 1o Cartório, anotamos histórias de “negros” que se tornaram afamados por que “constituíram descendência” e adquiram “datas de terra”. Em Acari, p.e, apontese o caso famoso do “negro Feliciano da Rocha”, que ficou “rico”. Tanto que comparece nas compilações feitas por Dantas (1992) e Medeiros (1981) de parte das famílias “brancas” fundadoras dos currais do Seridó e seus “ilustres” personagens. No caso de Feliciano, segundo versão compilada em Acari, após ajudar um fazendeiro vindo da Paraíba de passagem pelo lugar, ainda no século XIX, ganharia deste montante de dinheiro que permitiria a compra de grandes porções de terra. Até os dias atuais se encontraria sua descendência. Além disso, note-se também que alguns dos casos anotados noticiam possíveis “filhos com negras” de personagens eminentes da elite local, bem como de relações de compadrio entre senhores e escravos e ex-escravos, como veremos, que é o caso de Macambira. 64 Como nos lembra French (2006:81), discutindo, dentro de uma história do trabalho no século XIX, a dicotomia “trabalho livre” versus “trabalho escravo”, uma das opções de trabalho para os “libertos”, desprovidos de terra para plantar, é o trabalho nos “agregados”: “Como uma classe para a qual muitos exescravos migraram, os agregados viviam em terras controladas por proprietários de escravos e funcionavam como parte integrante da clientela desses proprietários”.

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alguma autonomia abrindo roçados para consumo próprio, quem sabe para posterior produção de algumas “cuias de farinha”. Tomando a posição social do “negro”65 no século XIX,66 lembre-se que constituir descendência e propriedade é constituir dignidade – e em última instância, humanidade -, é constituir alguma autonomia, é ser reconhecido como homem trabalhador, homem de larga família, valores centrais na sociedade patriarcal do Seridó daquele período, e mesmo até a atualidade. Mas tratemos destes dois pontos: a propriedade de terra e a aquisição de sobrenome. Como vimos, do ponto de vista da história oral, Lázaro Pereira de Araújo, que a memória social local não deu conta de guardar com quem se casou, se alforria e chega à Serra de Santana dono de terras, de datas adquiridas dos herdeiros de Dona Adriana. Segundo Manoel de Julieta,67 este, de fato, viveu em Santana do Matos, já nos baixios da Serra de Santana com os sertões do Açu, onde tinha também pequena propriedade. Seus filhos, que a memória do patriarca de Buraco de Lagoa conta em 12, é que viveram na chã da Serra de Santana, nela constituído o início da rede familiar encontrada hoje na Comunidade. Como é comum na onomástica encontrada na Comunidade, e mesmo no entorno de um modo geral, encontramos o mesmo personagem sendo conhecido por vários nomes. No caso de Lázaro, encontramos inclusive inversão de sobrenomes. Assim, temos: Lázaro, Lázaro Pereira de Araújo, Lázaro Araújo Pereira, e por fim, a tomar pelo uso atual de nomes, Lázaro de Maria, ou Lázaro Maria, que era seu “apelido”. Como explica Manoel de Julieta, “esse povo antigo todo tinha apelido”. O que naquele momento traia a suspeita de que, apesar de não se conhecer o nome de sua mulher, esta poderia se chamar Maria, o que explicaria o “apelido”. Mas na trajetória traçada pela memória social constituída ao longo do processo de pesquisa, o ponto central que notabiliza o personagem é o fato de, em meados de um século XIX que ia deixando para trás o escravagismo dos séculos anteriores, ter comprado parcelas de terra.

Continua Manoel de Julieta sua composição do

personagem: 65

Categoria que para o contexto local pode abranger todas as demais e estratos que representam, como “mulato” e “moreno”, ou “escravo” e “liberto”. 66 Para uma breve, mas instrutiva, análise histórica e contemporânea em Currais Novos e seu entorno do quadro das relações interétnicas, calçadas em critérios de “raça” para demarcar fronteiras e justificar longevas relações e lógicas do poder, vide Queiroz (2002). 67 Buraco de Lagoa, casa de Manoel de Julieta, 28.10.06.

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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA “Foi o primeiro comprador de terra de Dona Adriana quando os herdeiros começaram a vender propriedade dela. Foi o primeiro homem que comprou terra aqui. Primeiro, comprou de Manoel Vitorino. Aí, ele comprou outra parte a João Rodrigues. Aí começou a comprar, depois em Santana do Matos”.68

Ao longo dos registros da memória social do grupo, não nos foi possível precisar melhor as condições de compra de terras, bem como onde exatamente, sob que limites, se localizavam estas terras. Também não encontramos informações sobre quem seriam esses personagens Manoel Vitorino e João Rodrigues, nem na história oral local, nem na literatura dedicada à formação familiar seridoense (Medeiros, 1981 e 1983). Sabemos que a disposição atual da Comunidade, em se contando seus 5 sub-territórios (Macambira II e III, Buraco de Lagoa, Cabeça dos Ferreira e Ludogério), vai desde Buraco de Lagoa, no extremos sul da Serra de Santana, até seu extremo norte, no Cabeça dos Ferreira, todos se considerando uma mesma família, uma mesma comunidade, sem desconsiderar, no entanto, as autonomias de cada tronco.. Além disso, expressão recorrente encontrada em toda a área, sendo usada pelos mais velhos ao descrever o território “antigo” da Macambira, esta iria “de um cipó preto ao outro”, que significa dizer, de uma extrema a outra da chã da Serra, no eixo sul-norte. O cipó preto (nome popular para rama da espécie da família Araceae) é encontrado justamente na área limite entre a chã da Serra e os sertões (ou cerrados, termo também utilizado) do Açu e do Seridó, nas áreas geograficamente chamadas de “grotas”. Como assevera Salvino Ferreira da Silva, dos Ferreira, do Cabeça dos Ferreira: “Meu filho, no sertão, não contém mais o cipó preto. Essa rama. Ele só nasce na chã. Isso aqui não é o final dessa chã? Daqui pra baixo, não tem cipó preto. Daqui pra cima já é chã. Ele só nasce na chã. Os mais velho dizia, e eu creio que seja. Essas escrituras antiga era a marca de um cipó preto a outro. Da cabeça de um 69 cerrado a outro”.

As “escrituras” de que fala Salvino Ferreira tratam de possíveis documentos de propriedade (escrituras), ou de lógicas fundiárias vigentes no tempo de seus avôs e dos que primeiro ocuparam a Serra? Diante do material ora reunido, parece que ambas as assertivas estão corretas. O trabalho de campo em Macambira, no percurso por todas as suas 5 subáreas e conseqüentes troncos velhos visitados, no trabalho de re-constituição sócio68 69

Buraco de Lagoa, casa de Manoel de Julieta, 28.10.06. Grotas do Açu, 17.04.07. Família (tronco): Ferreira.

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histórica da fundação e ocupação da área, traria surpresas. Lembramos que seguindo a Instrução Normativa no. 20 de 19 de setembro de 2005, que corrobora os preceitos da resolução 169 da OIT, o trabalho centra-se especialmente na história oral e na percepção e lógica territorial do grupo. No entanto, um conjunto rico e significativo de documentos cartoriais foi também encontrado, todos do século XIX: um conjunto de 8 escrituras de compra, venda e permuta de terras (de 1843 a 1877); e um inventário e partilha de bens (1872). Estes corroboram a versão geral compilada na oralidade de que de que Lázaro Pereira de Araújo (ou Lázaro Araújo Pereira) comprou datas de terra na Serra de Santana, que constituiu descendência e deixou de herança para seus filhos partes iguais do “sítio Macambira”, filhos estes de que descendem as atuais famílias que co-habitam na área e há gerações estabelecem relações matrimoniais e de cooperação. Ao mesmo tempo, escrituras e inventário trazem também novas informações e questionamentos, complexificando o desenho da rede de relações que unia os “negros da Macambira” com seus antigos senhores em sua demanda por reconhecimento e autonomia.

“Documentos do tempo de Dom Pedro” Concomitante ao processo de compilar e organizar narrativas para uma reconstituição sócio-histórica da formação da Comunidade, fomos informados de certo “documento de terra”, “documento do tempo de Dom Pedro”,70 que era guardado pelos Amaro, mais um dos troncos velhos de Macambira, cujos descendentes atualmente vivem em Buraco de Lagoa. Este seria o único “documento de propriedade de terra” de toda a área, dizia-se, que comprovaria a antiguidade da ocupação da área, bem como seus limites originais. Apesar de poucos terem visto tal “documento”, anualmente, aqueles que podem, ajudam os Amaro a pagar o IPTR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural) que abrange as áreas de parte de Buraco de Lagoa, desde a Estrado do Comércio, até 70

Os trabalhos no interior do estado do RN, na fronteira entre antropologia e história, têm se deparado com um conjunto diverso de documentos de registros, não só de arquivos paroquiais e de cartório, mas cópias autenticadas por um tabelião ou notário (publicas-formas), ou mesmo em alguns casos originais, à bico de pena,já bem desgastados com o tempo. Para as situações quilombolas do estado, vide p.e., o trabalho de Valle (2006). Não só aparecem também para o caso da Comunidade de Acauã, documentos “do tempo de Dom Pedro”, como estes também ganham especial significação simbólica, corroborando não só os direitos de posse, uso e transmissão do grupo, mas também atestando longevidade no território, antiguidade de uso das chãs e grotas, descendência larga e ramificada. Vide também Boaventura (2004).

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Macambira II e III, no sentido sul-norte.71 Encontramos sob guarda de Tuca Amaro, já que sua mãe, Ana Amaro, já estava de idade avançada, 8 documentos de terras (de dois tipos: escrituras de compra, venda e permuta e uma declaração), alguns ainda originais do século XIX com cópias autenticadas (“publicas-formas”) realizadas no Cartório de Currais Novos na passagem dos anos 1920-1930, outros apenas cópias. Estes documentos foram deixados sob responsabilidade de Luiz Amaro, pai de Tuca, por Francisco Lázaro de Araújo, filho do “velho Lázaro”, que do pai os herdara. O que nos dizem estes documentos? Quais “terras” estes efetivamente representam, e em quais quadros intersocietários e de poder patriarcal e administrativo tais documentos foram engendrados? Por fim, como podemos organizá-los e qual rendimento seu exame pode trazer para os propósitos deste relatório? Apresento uma classificação cronológica do material, que por si só já é bastante reveladora, base do quadro sinótico abaixo. Para os propósitos deste trabalho, os documentos que mais nos interessam são os que vão de 1856 a 1859, estes seguramente referidos a Lázaro Pereira de Araújo, ou Lázaro Araújo Pereira, quando este compra datas de terra, dentre essas a do “sítio Macambira”. Destes, podemos ainda estabelecer mais uma classificação, e agrupá-los em um conjunto de 5 documentos ao longo de 3 anos: 1856 (2), 1858 (2) e 1859 (1), por se tratarem de fato de três transações de terra, de compra de datas, perfazendo um total de 103 braças de “boca” (aproximadamente 206 metros) somando 140$000 (cento e quarenta mil réis).72 Complexificando a versão oral encontrada em Macambira, Lázaro Pereira de Araújo não as compra só dos herdeiros diretos de “Dona Adriana”, mas também já de compradores que haviam feito negócio com membros das famílias Galvão e Lopes Pequeno, que

71

Note-se que neste temos apenas os dados de área total do imóvel rural, de 120 hectares. Este valor não parece traduzir o tamanho real da área. Sabemos que é comum, como demonstraram levantamentos recentes feitos pela ação conjunta da SEARA/RN e do INCRA/RN na região da Serra de Santana, os valores declarados para cobrança de impostos não condizerem com a realidade concreta das áreas ocupadas, tanto para mais, quanto para menos. Em alguns casos, as áreas declaradas podem chegar ao dobro em termos de realidade local. 72 O que não é muito, se consideramos que um escravo novo, trabalhador, valia pelo menos, a preços do Seridó, o dobro dessa quantia. Ou que, no inventário de “Dona Adriana” (Medeiros, 1983:176), só a “morada de casas térreas de taipa, sem bom feitio, sita na Serra de plantar denominada Santa Ana” foi estimada, em fins do século XVIII, em 55$000 (cinqüenta e cinco mil réis).

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continuavam habitando o entorno da fazenda Totoró.73 Como fica evidente na documentação encontrada, as datas da Serra de Santana, por vezes chamada de “Serra da Macambira”, ao final e ao cabo, faziam limite com as datas em que já ia se dividindo ao ritmo do crescimento das descendências a data do Totoró, primeira sesmaria dessa região do Seridó meridional, como vimos, adquirida pelo casal Cipriano Lopes Galvão e Adriana Vasconcelos de Holanda. Diante disso, que informações encontramos nessas “escrituras” que nos possam ajudar a entender como se deram essas compras, quem foram os envolvidos, dentro de quais expedientes administrativos? Em suma, que quadro intersocietário era esse, em contexto de assimetria étnica, em que um ex-escravo, recém forro, se dirige à fazenda de seus ex-proprietários para adquirir, a preços módicos, datas na chã da Serraria ao norte das terras senhoriais, ainda por desbravar, “tudo mato”, ainda habitava por “caboclos”?74

73

O que já demonstra que, apesar da promulgação da Lei de Terras ter sido em 1850, já haviam um encadeamento de compras e vendas de terras, complexificando a organização fundiária local. 74 Mais adiante, quando apresentarmos parte do depoimento de Salvino Ferreira, retomaremos o tema dos “caboclos” tanto em sentido histórico (histórias de encontros, casamentos e achados de fragmentos de grandes potes de barro), como simbólico na constituição da etnicidade encontrada na Comunidade, em especial na parte da família de Salvino Ferreira.

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DECLARAÇÃO E ESCRITURAS DE COMPRA, VENDA, E PERMUTA (1843 – 1877)75 Tipo 1

Escritura particular

Cadeia Sucessória

Valor

03.08.1843, São Bento77 (original)

Herança Leonardo Teixeira,

60$000

07.08.1930, Currais Novos78 (cópia)

Vendido a José Pereira Campos Capim

Data e local

do

sogro Pinheiro

Tamanho e Limites76 49 braças

Testemunhas Francisco Ignácio Galpão,

“com toda a largura que houver Joaquim Lopes na chã da mesma Galvão, Serra” Manoel da S. Evangelista

A rogo de Anna Joaquina da Conceição, Manoel da Silva Evangelista, Francisco Ignácio Galvão, Joaquim Lopes Galvão,

2

Escritura particular

20.04.1856, Totoró79 (original)

Comprado de Francisco Lopes Galvão, vendido para Lázaro Pereira de Araújo

80$000

08.08. 1930, Currais Novos Comprado de Antonio (cópia) Garcia do Amaral e sua

56 braças

Francisco Lourenço G.,

“pegará do nascente para o Felipe de (...), poente com 56 braças de largura e Santiago e do norte pra sul Laurentino

75

Em ANEXO, cópia dos originais, fac-símile e transcrita. Na maior parte dos casos, medida da “boca da terra”, com légua e meia de fundo. 77 Assinado por: José Freitas Galvão. 78 Cópia assinada pelo tabelião Tristão de Barros. 79 Assinando: Francisco Lourenço Freiry 76

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Manoel da Silva Evangelista Antonio Ignácio de Amara, Meiquilina Rozoluia Freire

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mulher Leiquiluia Razolina Freire80

pegará da Estrada do comércio até para a parte do Açu”

Américo (...), Francisco Lopes Galvão, José Felipe Santiago, João Laurentino Américo Freitas81

3

Declaração 19.08.1856, Vila do Acari82 (original)

56 braças -

-

Herança de Francisco Lopes Galvão e Anna Joquina de Vasconcelos,

40$000

10.06.1927, Currais Novos83 (cópia)

4

Escritura

15.08.1858, Totoró84 (original)

“com os fundos que achar, ao nascente com a Data da Areia, pelo poente coma data da Cacunda, pelo sul com a Data do Totoró, e pelo norte com terras do Açu” 34 braças Bartholomeu Lopes Galvão, “pegará da data, digo, da parte sul e Manoel Roiz.,

80

Ainda: tendo como COLLECTOR: nome ilegível. E ainda: COLLECTOR: Alexandre Francisco de Araújo, pagamento de Lázaro Pereira de Araújo em Santana do Matos, 24.08.1856 82 Assinando Bonifácio Francisco de Barros Pinto. Conferido por Vigário Thomaz Pereira de Araújo. 83 Cópia assinada pelo Tabelião Salustiano Ameliano de Medeiros. 84 Assinado por Francisco Lopes Galvão e Rufina Rozalnia Freire. 81

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-

-

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Vendida a Francisco Lourença Freire,

5

6

Escritura

Escritura

08.08.1930, Currais Novos (cópia)85 06.09.1858, Compra ao cunhado e Totoró mano Francisco Lopes 86 (original) Galvão por Francisco Lourenço Freire, 07.08.1930, Currais Novos Vendido a Lázaro 87 (cópia) Pereira de Araújo

01.11.1859, Comprado de José Sant. do Matos Pereira Capim, (original)88 Vendido a Lázaro 08.09.1930, Pereira Araújo Currais Novos (cópia)89

40$000

20$000

para o norte com o Gonçalo que over, e ao PinheiroGalvão nascente tirará 34 braças e meia para o poente” 34 braças e meia Bartolomeu Lopes Galvão, “pegará da Estrada do Comércio para Joaquim Lopes parte do Assu com Pequeno, que se achar e largura trinta e Bento Lopes quatro braças e Pequeno meia (havia uma entrelinha em tinta diferente: “digo trinta e cinco braças”)” 13 braças Antonio Lourenço d’Almeida, “compreendem a largura da chan” Francisco Ely G.

Bartholomeu Lopes Galvão

Manoel Elias d’Alencar, Carlota Umbelina do Amor Divino, João Mendes de Souza Guarim

85

Assina o tabelião Tristão de Barros. Assinado por Francisco Lourenço Freire. 87 Assinado pelo tabelião Tristão Barros. 88 Assinado: Va. Constitucional de Santana do Matos 89 Assinado pelo tabelião Tristão Barros. 86

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Anna Joaquina de Vasconcelos,

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7

8

Escritura de permuta, escritura pública

Escritura particular

07.11.1870, Totoró (original)90

Terras de plantar da data Serra de Santana, herança de mãe e sogra Anna Alexandrina de Vasconcelos,

08.08.1930, Currais Novos (cópia)91 Permutando por terras de criar da data Totoró, “com meia légua para o porente pegando do espinhaço da linha do comprimento com nosso pai e sogro Joaquim Lopes Pequeno” 05.09.1877 Herança de sogra e mãe ? Dona Maria Luis de Olanda, 07.08.1930, Currais Vendido ao Sr. Antonio 92 Novos Roiz da Cruz

_

18 braças

Bartholomeu Lopes Galvão,

“do meio da dicta Serra até as grutas Manoel Antonio do Assu” de Maria

26$000

26 braças

Gonçallo Pinheiro G.

Manoel Pinheiro Antonio Garcia do de Maria, Amaral e

“pegando da Estrada do Engenho q. vai para Buraco de Alagoa, de rumo direto para as grutas do Assu”

90

Assinado por Luiz Garcia Galvão. Por rogo, assinado por Gonçallo Pinheiro G. Assinado pelo tabelião Tristão Barros. 92 Assinado pelo tabelião Tristão Barros. 91

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Joanna Maria da Conceição,

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Olintho (...) Gau. Meiquilina Rozalina de Maria, Freire, Miguel Pinheiro Gonçallo Teixeira Galvão

Pinheiro

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DOCUMENTOS 2-3 (1856) O primeiro conjunto de documentos selecionado é do ano de 1856. Temos uma “escritura particular”, datada de 20 de abril, e de uma “declaração”, de 19 de agosto. Curioso notar os locais em que ambos foram assinados: o primeiro, na Fazenda Totoró, o segundo, na Vila do Acari. Tratam da mesma compra de terra, a maior feita por Lázaro Araújo, medindo 56 braças “de boca” (aproximadamente 112 metros), ao custo de 80$000 (oitenta mil réis). A apresentação de sua cadeia sucessória nos informa que fora antes comprada a Francisco Lopes Galvão,93 neto de “Dona Adriana”, por Antonio Garcia Amaral. 94 No primeiro documento, aparece tendo como limites “do nascente para o poente” (de leste para oeste), e do sul para o norte, abarcando da Estrada do Comércio “para a parte do Açu”. Segundo a história oral local, dado que aparece corroborado nos documentos encontrados, quando se inicia o comércio de compra e venda de terras na região, como sabemos a partir da regulamentação da lei no 601 de 1850, a chamada de “Lei de Terras” (Silva, 1996), mantém-se a lógica vigente no regime sesmeiro de se medir em “braças” 95 a “boca” da área em questão, no caso no eixo leste-oeste, a partir do qual se consideraria que de fundo, ou de “quadro”, esta abarcaria toda a extensão da chã da Serra, que segundo a documentação do século XIX, e a percepção local, chega à “légua” ou “légua e meia”, de acordo com o trecho em questão.96 Como contou Salvino Ferreira:97 “Os mais velho dizia, e eu creio que seja. Essas escrituras antiga era a marca de um cipó preto ao outro. Da cabeça de um cerrado ao outro”.

Todos os documentos encontrados respeitam a mesma lógica de medição, delimitação e registro. A “declaração” tirada quatro meses depois, é mais precisa quanto aos limites da data, e inclui desta vez toda a extensão da chã, não só a partir da Estrada do Comércio: 93

Filho de Cipriano Lopes Galvão (o 2o) com Vicência Lins de Vasconcelos (Medeiros, 1981:373). Seria o mesmo Coronel Antonio Garcia Amaral, bisneto de Antonio Garcia de Sá, da Fazenda do Quimporó, ribeira do Seridó (Medeiros, 1981:295)? 95 Medeiros (1983:301) apresenta duas equivalências para a medida “braça” no Brasil imperial: 8 palmos craveiros, equivalendo a 1,76 metros; ou, em sendo “braça craveira”, 10 palmos craveiros, equivalendo a 2,2, metros. Localmente, por braça se entendia a medida de 2 metros. Localmente, a medida equivalia a 10 palmos. 96 Padrão de medida também herdado do período sesmeiro, que equivale aproximadamente a seis quilômetros. Medeiros (1983:301), fixa a medida em 6.600 metros. 97 Grotas do Açu, 17.04.07. 94

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“com os fundo que achar, ao nascente com a Data da Areia, pelo poente com a Data da Cacunda, pelo sul com a Data do Totoró, e pelo norte com terras do Açu”. Essa informação impressiona pelo tamanho da área delimitada, se comparada com a área ocupada pela Macambira na atualidade. Vejamos. Retomando os dados encontrados no inventário de “Dona “Adriana”, esta arrenda duas datas contíguas na Serra de Santana, final da década de 1780, cada uma medindo “três léguas de comprido e uma légua de largo” (Medeiros, 1983:175-16), o que equivale a cerca 8400 braças ou 18,5 quilômetros de “boca”.

98

Esta

mesma informação é corroborada pela história oral compilada em Macambira, desta vez através do depoimento de Severo Ferreira, cabeça dos Ferreira: 99

“Veio uma pernambucana demarcando terra, porque esse Lázaro de Araújo diz que tinha comprado uma data de terra. O senhor sabe o que é uma data? Nesse tempo se falava em 3 légua em quadro,100 e o velho Tota Assunção, tio dessa minha mulher, comprou outra data do Seridó. Essa aqui é da Macambira, essa data aqui. Diz que é 3 légua. Eu não sei. Nesse tempo se falava em data, em braça, em parte de terra. Hoje só se fala em propriedade, em hectare, né. Nesse tempo se falava em data, em mil cova, em braça. Só se media terra por braça, hoje é metro.”

Alves (1986:137-138), historiador autodidata seridoense, afirma tratar-se uma dessas datas, a de leste, a da “Sesmaria de Lagoa Nova”.101 Como propus anteriormente, a área comprada por Lázaro Pereira de Araújo deve fazer parte das “três léguas e meia” da data de oeste da grande proprietária do Totoró. Segundo a história oral compilada em Macambira, a “data da Macambira”, deveria ter uma de suas divisas, uma de suas “linhas”, justo na divisa com a “Sesmaria de Lagoa Nova”. Seguindo os limites do segundo documento de 1856, temos à leste, ao nascente, a “data da areia”. Localmente, esta seria a área hoje conhecida como de Geraldo Dantas, na altura do entroncamento em que a Estrada do Comércio se transforma em asfalto e segue para Lagoa Nova (leste), ou para Currais Novos (sul). Teria sido próximo a este local, inclusive, aos pés de “um grande umbuzeiro”, 98

Tomando como padrão de medida o que apresenta Medeiros (1983:301) como sendo vigente na época: 1 braça = 2,2 metros; 1 légua = 3 milhas = 5280 metros aproximadamente. 99 Cabeça dos Ferreira, casa de Severo, 09.12.06. 100 Como veremos mais adiante, alguns desses termos e modos de mensuração seguem em uso dentre os mais velhos. Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 03.07), quando fazíamos levantamento econômico em seu roçado, usou a expressão “todo esse quadro aí”, quando se referiu à extensão de sua área total de uso. 101 Na parte anterior deste trabalho, apresentamos o por quê do nome “Lagoa Nova” e versão compilada pelo autor para a ocupação da Serra de Santana, antiga Serra Azul.

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que ficava o cemitério em que os membros da comunidade enterravam e se despediam de seus mortos, antes de passar a fazê-lo em Lagoa Nova.102 De fato, compilando informações conseguidas em Macambira III e no Cabeça dos Ferreira, este antigo cemitério, “hoje em baixo do asfalto”,103 seria uma das ocupações humanas que considerariam como marcando os limites de leste da “antiga Macambira”. Fica, no entanto, a incerteza dos limites exatos em que ficavam essas primeiras 56 braças de terra compradas, já que no inventário de “Dona Adriana”, na apresentação de suas datas e seus respectivos donatários vizinhos, encontramos a Data da Areia já em “terras de criar”, nos sertões a sul fronteiriços à Serra, tendo como donatário Cipriano Lopes Galvão, o segundo (Medeiros, 1983:175-176).104 Por outro lado, sabemos por Lima (1990:186), que o “sargento mór”, filho da grande proprietária foi grande empreendedor dos negócios deixados pelo pai, ampliando o negócio pastoril, e ampliando seus domínios territoriais, continuando a “criar gados e a desbravar terras”:

“(...) comprou a Antonio Holanda Cavalcanti os sítios “Areia de Baixo” e “São Bento”, e pediu terras de sobras contestantes com as de sua mãe, d. Adriana de Holanda, com três legoas de comprido por uma de largo, ficando dentro dessa terras uma ponta de Serra que chamam ‘Cascavel’”. 105 Sabemos que o nome Serra de Santana dá conta da extensão total dessa ponta nordeste da grande cadeia da Borborema, que foi recebendo ao longo dos séculos XVIIIXIX, alguns nomes (Serra Negra, Serra Azul) até se consolidar o atual, e que internamente pode ser pensada em sub-regiões, que podem receber novos nomes. Sabemos também que nem todos os nomes por que a Serra e sua sub-áreas vem sendo chamadas desde o início da ocupação de seu entorno, ficou guardado na memória social. Nesse sentido, seria essa “ponta de Serra” mencionada parte da Data da Areia, no caso Areia de Baixo? Teriam sido essas terras parte das herdadas por seu filho Francisco Lopes Galvão, que as negociaria décadas depois? 102

Por vezes, após longos cortejos ao som de excelências, que podiam atravessar quilômetros (Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07). 103 Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira), casa de Pedro, Macambira III, 19.04.07. 104 Filho do primeiro casamento de “Dona Adriana”. 105 Data de Semaria, em 12 de junho de 1787 concedida pelos governadores interinos José Barbosa de Gouvêa e Francisco Machado de Oliveira Barros. Livro 6 do Instituto Histórico, pág. 147, sob n.542 (Lima, 1990:186).

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Neste ponto, fica claro que uma re-construção histórica dos limites e localizações precisas de certas áreas na região no século XIX deixa muitas lacunas, não só pelo fato de que o período de 1850-1854 marca uma transição administrativa de Estado,106 quando praticamente se passa a formalização dos processos de registro da transmissão de terras (no caso, por herança, permuta ou compra e venda); mas também pela grande dinâmica dos processos de herança, compra e venda, permuta, posse, cercamento e expulsão de áreas ao longo dos últimos 150 anos na Serra de Santana. Haja vista, no caso em questão, que apenas 6 anos após a regulamentação da lei no 601, vemos Lázaro de Araújo, não comprando terras diretamente dos “herdeiros de Dona Adriana”, mas já de um primeiro conjunto de compradores. Por fim, um último desafio a ressaltar, para o pesquisador na reconstrução de cadeias sucessórias e dos limites de áreas ao longo do tempo está no fato de que, apesar do incremento nos registros de terras, os mecanismos de transmissão local continuam, na Macambira, praticamente orais, em um jurismo “apalavrado” – como colocou Pedro de Chico107. Esse mecanismo é eficiente, reconhecido e memorado pelas partes em acordo e os cabeças de alguns dos troncos velhos (quando há dúvidas sobre fronteiras),108 mas de fronteiras e medidas nem sempre rígidas, por vezes cambiáveis ao ritmo do próprio processo de ocupação humana que as dinamiza, amplia, retrai, o que dificulta o trabalho do pesquisador de ciências sociais, do administrador governamental e não-governamental, e dos demais atores do campo quilombola, a traçar perfiz estáticos e discretos de comunidades em seus processos de formação.109

DOCUMENTOS 3-4 (1858) Um segundo conjunto de documentos é datado de 1858. Ambos “escrituras”, a primeira, datada de 15 de agosto, a segunda, de 06 de setembro. Mais uma vez, tratam de 106

De fato, estamos justamente assistindo ao Estado brasileiro em formação. Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07. 108 Ao longo da pesquisa, foi comum encontrarmos um entrevistado refazendo partes de histórias de família ou aquisição ou perda de territórios vizinhos. Inclusive, como veremos mais adiante, a parte que se refere ao sub-território Cabeça do Ludogério é composta por fragmentos compilados em diversas áreas da Macambira, já que o patriarca da família se encontrava muito velho e acamado, não havendo no grupo quem soubesse com precisão a história da família e da terra. 109 Na parte IV, desenvolverei melhor as marcações de limites territoriais e os “marcos” que lhes servem de referência. 107

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uma mesma compra de terra, desta vez de 34 braças (aproximadamente 68 metros),110 ao custo de 40$000 (quarenta mil réis). Desta vez, com um intervalo de um mês, ambas são assinadas e testemunhadas no Totoró. A apresentação de sua cadeia sucessória nos informa de mais uma compra a Francisco Lopes Galvão por Francisco Lourenço Freire, que na data a vendia a Lázaro de Araújo. Seus limites são vagamente apresentados, pegando “da parte sul e para o norte com o que houver, e ao nascente, tirará 34 braças para o poente”. Não sabemos se são contíguas às 56 braças anteriormente compradas, o que, no entanto, não deve ser descartado, em sendo ambas as áreas de um mesmo herdeiro de “Dona Adriana”. Ressalte-se ainda que em ambas as transações de terra, de 1856-58, o corpo testemunhal é formado especialmente por membros da família Galvão, representados por algumas de suas gerações, dentre os quais destacamos o próprio Francisco Lopes Galvão, e sua esposa Anna Joaquina da Conceição.

DOCUMENTOS 5 (1859) Fechando esse primeiro conjunto, documento de 1859, outra “escritura”, de 01 de novembro de 1859. Compra: 13 braças (aproximadamente 26 metros) ao custo de 20$000 (vinte mil réis). Limites incertos: “compreendem a largura da chã”. Cadeia sucessória: comprado de José Pereira Capim. Somos então remetidos ao mais antigo dos documentos encontrados, de 1843.111 Nesse, já havíamos nos deparado com o personagem José Pereira Capim, comprando área de seu sogro Leonardo Pinheiro Teixeira, de 49 braças ao custo de 60$000. As 13 braças compradas por Lázaro podem ser desse montante. Fica a questão de por que o documento que deveria pertencer a José Capim se encontrava de posse de Lázaro de Araújo. Desta vez, temos o registro do documento em Santana do Matos, sertão do Açu, testemunhado e a rogo por um conjunto de personagens cujos sobrenomes remetem a rede familiar distinta da encontrada nas “escrituras” de 1856-58.112 110

De fato, os dois documentos de contradizem, entre 34 braças e 34 braças e meia. Vide originais transcritos na integra em anexo. 111 Período de transição na organização fundaria do Império, uma vez que já não se estava sob o regime de Sesmarias - abolido em 1822 (Silva, 1996:73) -, mas no entanto não se tinha ainda formulado um novo regime administrativo da terra. 112 Por fim, temos ainda dois documentos, de 1870 (07.11) e 1877 (05.09), de difícil interpretação diante das informações que as condições de pesquisa possibilitaram alcançar. Podem já ser transações efetuadas pelos

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Voltando à questão: o que podemos aprender com esses documentos do campo intersocietário do Seridó do século XIX? São mais um testemunho da antiguidade da ocupação negra na área que já foi conhecida como “sítio Macambira” e que hoje vai se conformando no “Quilombo Macambira”, bem como reconhecerem os direitos de propriedade territorial aos membros da Comunidade, descendentes de forros que na Serra de Santana se reuniram a partir da segunda metade do século XIX. Ademais, através desses documentos podemos vislumbrar o campo de relações sociais que ia se estabelecendo na transição do “trabalho escravo” para o “trabalho livre”, na organização fundiária das “terras de plantar” e das “terras de criar” que ia se complexificando. Em termos esquemáticos, podemos pensar por um lado em demandas de autonomia, ainda que relativa, por parte de Lázaro Pereira de Araújo, forro; por outro, em um patronato, que por mais “cordial” que possa ter sido em sua escravocracia,113 continua tendo a administração de estoques de mãode-obra como um problema, e a hierarquização social e cultural baseada em preceitos raciais como norte ético-moral. 114 Em sua maioria, temos “escrituras”, assinadas por aqueles que vendem as datas, reconhecendo a venda (“vendemos como de fato a vendida temos”), o pagamento (“plena e geral quitação de paga”) e a posse (“que é sua e fica sendo para si e seus herdeiros”) a seu comprador. Em praticamente todos, encontramos além da medição da área, seus limites (ainda que na maioria das vezes vagos) e seu valor; também sua cadeia sucessória, junto com seu conjunto de testemunhas e aqueles por estas representados (“a rogo de”); e, nem sempre, o reconhecimento de algum representante legal, alguém que certifica ao documento

filhos de Lázaro Pereira de Araújo. Ambas tratam de áreas na Serra de Santana. A primeira é muito interessante, dado que se trata de uma “permuta”, de área medindo 18 braças (“do meio da dita Serra até o Açu), entre “terras de plantar” e “terras de criar”, ou seja, de terras da Serra de Santana por terras do sertão do Totoró. A segunda, trata de compra de 26 braças, ao valor de 26$000, “pegando da Estrada do Engenho que vai para Buraco de Lagoa, rumo direto para as grutas do Assu”. 113 Na acepção de que é marca a pessoalidade, a ênfase nas relações diádicas, com que se travavam as relações sociais, inclusive as de dominação. Caso exemplar são as relações de compadrio entre “senhores” e “escravos” no Brasil colonial (Brügger, 2006). 114 De fato, se seguimos as análises de Queiroz (2002), ainda que em escopos básicos, veremos que as distinções de tipo racial continuam operantes no senso comum de Currais Novos, justificando hierarquia social, quando membros das comunidades negras do Riacho e de Queimadas são vistas com marcada diferenciação e reserva étnica. Mesmo quando não é depreciativo, o conjunto de noções e imagens associados à negritude é hierárquico, chegando a ser tutelar. Durante a pesquisa em campo, em visita à prefeitura de Lagoa Nova, referindo-se aos “negros da Macambira”, após ouvir com interesse sobre a pesquisa que estávamos fazendo, uma funcionária, “branca” argumentou, desfazendo a fama de que estes seriam “bravos”: “Não mexendo com eles, eles são muito carinhosos”.

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em questão o valor de título de transmissão de bens, nos casos encontrados, vigário, agente collector, e juiz de órfãos. Sabemos que o início da década de 1850, período em que Lázaro deve ter se alforriado,115 trás acontecimentos em âmbito nacional e regional que conformam um novo cenário político, administrativo e fundiário. O ano de 1854 é particularmente interessante, e nos explica, em parte, por que dois anos depois (documento 3), Lázaro de Araújo empreenderia viagem à “Vila do Acary” e pediria a seu Vigário, Thomaz Pereira de Araújo,116 que fizesse publicar que possuía terras na Serra de Santana, fazendo uso dos “artigos 93 a 100”, que se referem ao Decreto 1318 de 1854, que regulamenta a lei n o 601.117 Em termos nacionais:

“Depois de um longo período de posses, em 1850 o Governo Imperial promulgou a Lei n. 601 de 18 de setembro a qual foi considerada pelo Poder Público, a primeira tentativa em solucionar os problemas fundiários relacionados com a ocupação da terra no Brasil. Nesta reconhecia a posse daqueles que tivessem, na ocasião, cultura efetiva e moradia habitual sobre a mesma. O Decreto 1318 de 1854 que regulamentava a Lei anterior, obrigava a todos os "possuidores de terra", com qualquer título, registrar suas terras através de declarações feitas ao respectivo Vigário da Paróquia, que as conferia e registrava no Arquivo Paroquial, surgindo, desta forma, o primeiro Cadastro Declaratório regulamentado no Brasil. Neste período, os arquivos dos registros das terras eram administrados pela igreja que posteriormente encaminhava ao registro imobiliário” (Salgado et all., 2000). Localmente, no mesmo ano de 1854, Currais Novos passa a “Districto de Paz”, pela resolução provincial no 301 de 06 de setembro (Lima, 1990:187), o que faz do Totoró e seu entorno, em especial da Fazenda Currais Novos, epicentro administrativo (para além do econômico que já tinha), ou melhor, lhe atribui mais essa função de comando e centralidade: legislar, administrar e reportar à capital da Província. Os documentos encontrados são expressão e índice desse momento sócio-histórico nessa região do Seridó, de mudanças na sociedade (aumento da população de “libertos” e Lei no 581, “Eusébio de Queirós”), nas lógicas de trabalho (“trabalho escravo” para “trabalho livre”), no mercado de terras (Lei no 601, “Lei de Terras”), e na administração pública (“Cadastro Declaratório” e

115

Voltaremos a essa hipótese mais adiante. De descendência dos fundadores da Vila, do primeiro Thomaz Pereira de Araújo (Medeiros, 1981). 117 Ao final, anexo, vide o texto integral do documento 3 (1856). 116

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criação do “Distrito de Paz”). Exemplificam os quadros hierárquicos em que se davam as relações sociais, as distâncias sociais e físicas, em especial em um campo intersocietário que não era mais apenas de “senhores” e “escravos”, mas em que crescia o número de “libertos” que almejavam, dentre os bens que podiam almejar, os “bens de raiz”: parcelas de datas, de algumas dezenas de braças, para levantar moradias e abrir roçados e casas de farinha, para constituir descendência e alguma autonomia. Seguindo as proposta de Lévi (2000:45), para o caso dos documentos encontrados, seria revelador fazer uma “reconstrução das vicissitudes biográficas de cada habitante”118 do Currais Novos e seu entorno do século XIX que de alguma forma esteja referidos às datas da Serra de Santana, e aos processos de parcelamento em herança, compra e venda que envolvam o personagem Lázaro Pereira de Araújo em contexto de assimetria étnica. Espera-se que tal investimento, em termos de investigação histórica continue seu curso em futuros investimentos. Por hora, para os propósitos deste trabalho, evidenciamos apenas que a maior parte as transações aconteceram na fazenda Totoró, em presença quase que exclusiva de alguns representantes da família Galvão e famílias com quem estes tinham relação, em arrogo ou em seu testemunho. Por essa altura, a rede familiar iniciada pelo “Coronel Cipriano” e “Dona Adriana”, bem como o parcelamento das datas que esta foi conformando no conjunto de fazendas existentes entre o açude Totoró e a Serra de Santana, já se complexificara bastante. No caso em particular, ressaltamos a centralidade do casal Francisco Lopes Galvão (falecido em 1851), herdeiro de Cipriano Lopes Galvão 2o, e Ana Joaquina de Vasconcelos, sua prima e mulher, que após a morte do marido, venderia parcelas de suas datas. Por mais que pensemos que por uma questão de funcionalidade, quer dizer, de poupança em investimento em viagem, e de capacidade de escrita, Lázaro de Araújo não pudesse levar alguns dos seus como testemunhas; isso somado ao fato que uma vez que a celebração da compra e venda entre as partes se dava no Totoró, familiares presentes servissem como testemunhas,119 a assimetria do quadro de relações se impõe, por mais que Lima (1990:189) nos informe do “alvoroço e enthusiasmo” locais pela campanha 118

A que Fraga (2006:23), pensando o caso do Recôncavo baiano do século XIX, chama de “’ligação nominativa1 entre séries de documentais diversas – matrículas e listas de escravos anexas aos inventários post-mortem, assentos de batismo, casamentos e registros cartoriais”. 119 Ainda que, como vimos, no conjunto de arrogos, muitos dos Galvão não fossem letrados.

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abolicionista de 1888. De sua análise de processos judiciais, envolvendo os estados da Bahia e do Rio Grande, com a prisão de traficantes negreiros tendo como testemunhas “africanos” que seriam vendidos, após a primeira lei de proibição do tráfico (1831), Rodrigues (2000:199) assevera que apesar de um escravo ter a “possibilidade de arrolar testemunhas a seu favor”, na prática, “a demanda judicial se dava em condições de enorme desigualdade”. Note-se também que apesar do valor legal de tais documentos consagrados no Totoró seguramente tinham, Lázaro de Araújo, em 1856 vai à Acari publicá-los. Em 1858 por duas vezes registra mesma compra e venda, e em 1859, vai a Santana do Matos, norte da Serra de Santana. Para os casos de Acari e Santana do Matos, enfatize-se se tratarem de lugares de anterioridade como centros de registro paroquial. Seguindo as constatações analíticas de Rodrigues (2000:199), se comparado a outros casos, de negros forros que no Brasil de bem antes de 1888 já estavam constituindo família e adquirindo pequenas propriedade no quadro mais amplo de transformações sócioeconômico e políticas e implementação de direitos e deveres, o de Lázaro Pereira de Araújo é mais um em que: “Apesar da discrepância notória entre as partes, a arena judicial tinha rituais que precisavam ser cumpridos e em meio aos quais os escravos e africanos livres conseguiriam, por vezes, alcançar seus objetivos”.

“Marco Testemunhado”, Taperas, Casas de Farinha, Frutais e Cemitério Le Goff (2003:526), refletindo sobre os diversos tipos de “marcos” que nos servem como referencia histórica, como suporte da memória, propõe, de maneira ampla que: “monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”. Ao que acrescentamos, dependendo da historicidade em questão, pode se converter em antigos umbuzeiros, poços, cacimbas, casa de farinha ou taperas. Ao longo do trabalho de campo, enquanto conciliávamos o trabalho de composição de histórias de vida e de famílias com outras atividades, percorremos também a área atualmente ocupada pela Comunidade (incluindo-se Macambira II e III, Buraco de Lagoa, Cabeça do Ludogério e Cabeça dos Ferreira), buscando realizar croquis básicos com uso de GPS de navegação e de desenhos Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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produzidos por membros do grupo. Quando fomos procurá-lo para marcar uma entrevista, Salvino Ferreira contou que seu pai, José Ferreira da Silva, sabia de marcos de terra, “marcos testemunhados”, do tempo em que a terra era “demarcada”, do “tempo dos antigos”, “do início dessa Serra”. Nossa busca pelo passado, pelas origens da Comunidade, sua história de fundação e desenvolvimento, mobilizara em especial os mais velhos, que nos procuravam para contar novas histórias lembradas, para sugerir pessoas que deveriam ser procuradas. No dia em que fomos entrevistá-lo, nas grotas do Açu, extremo norte da Macambira, havia encontrado o marco, que era “tesmemunhado”. Ficava na mata de capoeira a oeste da área dos Ferreira, em pequena vereda que acompanha, bordeando, a fronteira entre a chã e as grotas que a separam do sertão: de pedra, 3 palmos aproximadamente de altura, por 1 palmo de largura, acompanhado de duas pedras menores, de alguns centímetros, para fora da terra, uma de cada lado, no eixo leste-oeste. Quando chegamos no local,120 Salvino contou:121 “De primeiro, os mais velhos diziam que marco testemunhado é a terra que tem testemunha. Essas pedras, uma de lado e uma do outro. É a mesma coisa: “me diga uma coisa, naquela história que o senhor está contando, tem testemunha”? Esse marco, do jeito que está aqui, ele está testemunhado, ele está no meio. A terra do outro tempo, a que se chama terra demarcada, é a que tem a pedra, a que tem marco. Foi meu pai que ensinou pra eu falar um dia.”

E: E cada extrema da Macambira tem um marco desses? S: Meu filho, se essa terra vêm demarcada daqui [apontando para sul], vou contar o que os mais velhos contam. Que essas terras demarcadas, elas vêm de uma cabeça de cipó preto a outra. Do jeito que ela esta aí, ela vem de cento a cento, agora, do jeito que ela está aí ela pode bater lá no Açu. Olhe, vou lhe dizer, o que meu pai contava de primeiro, que os mais velhos dizia. Você mora em Currais Novos, por acaso, de Currais Novos a Santana do Matos. Olhe, se vier de lá, vem direto demarcado de lá. Esse é por que só tem esse daí, mas ele não chega à distância de 500 um para o outro. Agora também pode ser na base de 50 metros, 100 metros um para o outro. Só que essa carreira da pedra ela, vem direta [desenhando no chão]. Se esse daqui é o lume da terra, é a metade. De primeiro era assim. E aqui pra lá do lume, pode ser outro proprietário. Ali de onde nós vemos, tinha um marco de terra só que eles tiraram, os proprietários mesmo quando compraram.”

120 121

UTM: 0769119/93311098. Grotas do Açu, 17.04.2007 (DVD).

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N

Santana do Matos

Serra de Santana

* * - - - - - - -* - - - - - * *

(lume da terra)

Currais Novos S

Croqui: Esboço de desenho feito por Salvino, explicando o caminho seguido pelos marcos, demarcando fronteiras entre áreas em “linhas” que podiam ter seus começos ainda nos sertões de Currais Novos.

Salvino Ferreira conta de quando seu pai lhe alertara para os “marcos testemunhados” encontrados na grotas, durante jornada de caça (Grotas do Açu, 17.04.07).

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Além do “marco testemunhado”, outros lugares de memória foram apresentados pela Comunidade como índices de seu conhecimento e intimidade com o território ocupado por seus antepassados desde o século XIX: taperas, como as encontradas na área da Cabeça da Macambira;122 casas de farinha, como a apontada por Jordão Apolinário 123 no extremo sul de Buraco de Lagoa, casa ainda do tempo dos filhos de Lázaro de Araújo; frutais, como o pé de pinha apresenta do por Joaquim Daniel124 que marcava o local onde se erigira a casa onde cresceu;125 e por fim, o cemitério antigo que existira no caminho para Lagoa Nova, hoje soterrado pelo asfalto, próximo ao entroncamento que leva à capital do município.126

122

Registramos as seguintes localizações de 3 dessas taperas: UTM 0770722/9329764; UTM 0770459/93299332; UTM 0770225/9329226. 123 Buraco de Lagoa, 17.04.07. 124 Macambira II, 16.04.07. 125 Localização aproximada do pe´de pinha: UTM 0770459/9328892 126 Segundo Pedro de Chico (Macambira III, 16.04.07) e Jordão Apolinário (Buraco de Lagoa, 17.04.07).

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Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira) e Joaquim Daniel Pereira, procurando sinais de antiga tapera (Cabeça da Macambira, 16.04.07).

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INVENTÁRIO NO 110, 1872: LÁZARO MARIA DE ARAÚJO Como colocamos anteriormente, no perfil que a história oral, somada aos documentos de terra encontrados, iam figurando de Lázaro Pereira de Araújo, dois pontos destacamos: trata-se de um ex-escravo (1) que está comprando parcelas de terra, constituindo patrimônio; (2) e que tem sobrenome. Na maioria da documentação do período escravocrata brasileiro que manuseamos, não só do Seridó, mas de outras região do Brasil, um dado que salta aos olhos é tratar-se de gente re-batizada com nomes “cristão”, e só com primeiros nomes. Nas listas de alforriados, raros são os sobrenomes. Sabemos pela relação de escravos que encontramos inventariados (Medeiros, 1981; Assunção, 1988), além, p.e., dos diversos nomes de escravos que comparecem com algum protagonismo em uma história da escravidão no Brasil (Moura, 2004), que esta é uma história de primeiros nomes.127 A Aquisição de sobrenome podia significar o uso do sobrenome do “dono”, por estima ou reconhecimento (mais raro, significando conseqüentemente aquisição de algum status social), ou como mais um “ferro”, simbólico, de propriedade. Neste sentido, adquirir um sobrenome faz parte dos bens a serem conquistados com a liberdade. Se atentamos, p.e., aos nomes da descendência de Lázaro de Araújo, a maioria deste, especialmente os das mulheres, são nomes de santos, como “da Conceição”, “de Jesus” e “do Amor Divino”, muito recorrentes dentre os nomes de “libertos”. Este fato levava a perguntar de onde viria o sobrenome de Lázaro: ele o teria simplesmente escolhido (o que não era incomum)? Ele o teria herdado de algum senhor, por reconhecimento, ou simplesmente para demarcar domínio e pertencimento? Um primeiro ponto a ressaltar é o de que, para um mundo das proporções do Seridó, o sobrenome “Pereira Araújo” ou “Araújo Pereira”, aponta para uma certa família, descendente de Thomaz Araújo Pereira, fundador da atual Acari (Medeiros, 1981; Lima, 1990). Quer dizer, dificilmente, simplesmente por uma escolha individual, se passaria a portar tal sobrenome. Isto implicaria algum nível de relacionamento com os membros da família. Dito de outro modo: o problema não é apenas ter sobrenome, mas sobrenome notório. Teria sido Lázaro de Araújo escravo de algum dos Thomaz Araújo? Além disso, note-se ainda que seu primeiro 127

Como as histórias de Gonçalo (Dantas, 2006:253), Catherina (Paiva, 2001:34), Antonio (Moura, 2006:44) ou Anastácia (Idem:35).

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nome, “Lázaro”, também era incomum, de fato o único de todas as listas com nomes de escravos do Seridó a que tivemos acesso. De todo modo, como nos lembra Augusto (2002[1940]) dada a antiguidade da presença da família de Thomaz Araújo Pereira no Seridó, o sobrenome Araújo se difunde sobremaneira, para além das fronteiras da parentela fundadora de Acari. Augusto chega a enfatizar tratar-se da família “que mais proliferou” naqueles sertões (idem:17): “não é exagero affirmar que raro será o seridoense que não tenha sangue de Araújo”, motivo pelo qual o sobrenome Araújo (sem relação necessária com a família do grande proprietário) se difundiria pela região em todos os espectros sociais. Diante disto, buscando outros subsídios historiográficos, ainda que de maneira preliminar, se visitou o Acervo Paroquial de Acari, o Primeiro Cartório de Caicó, e o Primeiro Cartório de Currais Novos. Objetivava-se encontrar algum tipo de registro de Lázaro de Araújo como escritura, carta de liberdade ou certidão de casamento. Apesar do pouco tempo disponível para tal pesquisa, que por si só, dada a organização de alguns desses acervos documentais, e os poucos dados que se tinha sobre a origem do personagem “Lázaro”, demandaria bastante tempo, encontramos em um levantamento da população escrava de Currais Novos entre o período de 1788-1888 presentes em inventários do período (Assunção, 1988) dois dados que chamaram a atenção: 1. Primeiro, no inventário no 40 de 1845, de Félix Gomes Pequeno (2o), filho do segundo casamento de “Dona Adriana”, dentre os “Escravos” que este deixava, encontramos um “mulato”, de 44 anos, de nome Lázaro, valendo 400$000 (quatrocentos mil réis), quantia alta para um escravo (cuja média era de 250$000), ainda mais em se considerando sua idade, já avançada para um escravo. Além disso, por seu valor, muito provavelmente deveria ser alguém com aptidões especiais, que trabalhava na casa. Seria esse Lázaro o mesmo que em 1856 estaria comprando parcelas de terra, depois de ter trabalhado para os herdeiros de “Dona Adriana”? É possível, a se tomar a estreiteza física e social do Seridó do século XIX e a raridade do nome Lázaro. Por fim, esse escravo Lázaro é deixado para Thomaz Lopes Pequeno, filho do finado. Sabemos que o inventário de Lopes Pequeno é de 1858, no 38. Até onde foi possível ler o documento, já bastante deteriorado, não encontramos referência ao “mulato” Lázaro, o que pode significar que por esta época este Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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já seria forro. De todo modo, fica em aberto, para futuras investigações cartoriais, a identidade de origem de Lázaro Pereira de Araújo.

Fragmento do Inventário no 3, 1858: “Declarou mais a inventariante haver no casal hum mulato de nome Lázaro de idade de quarenta, e quatro annos, que os (...) acharão valer quatrocentos mil réis”.

2. Segundo, encontramos referência, no ano de 1872, ao inventário no 110, de “Lázaro Maria de Araújo”. Dada a pouca recorrência do nome, mais à coincidência de sobrenome, “Araújo” e de apelido fundidos, “Lázaro de Maria”, investigou-se o documento, confirmando ser ele do “fundador” da Macambira, quem comprou terras no sítio cujo nome já vinha desde antes, desde o início da ocupação da Serra pela vacaria de “Dona Adriana”, e que nela constituiu família:

“Defunto Lázaro Maria de Araújo, Viúvo de Maria Joaquina da Conceição (...) por que foi no sítio Macambira, deste (...) do Acary” (26.11.1872)

Documento fascinante, redigido pelo escrivão Manoel Victoriano da Silva Santos,128 em casa do Capitão Manoel Lopes Araújo, juiz de órfãos, na Vila do Acari. Note-se que apesar do falecimento de Lázaro Araújo ter se dado no “sítio Macambira”, onde estariam os bens a serem contabilizados e repartidos entre seus herdeiros, seu inventário é escrito em Acari, para onde se encaminharia seu inventariante. Seu valor documental não só corrobora parte da história oral local e trás novas informações, mas configura o último ato de Lázaro de Araújo em uma trajetória de mediação das relações com o patronato local 128

e a assimetria do campo intersocietário, tendo como nortes

Seria por acaso o tal “Manoel Vitorino” de que falava Manoel de Julieta (28.10.06)?

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autonomia material e simbólica e reconhecimento como “homem livre”. Segundo Paiva (2001:24) - no quadro dos trabalhos recentes em história social sobre o processo escravagista e a constituição e organização de homens “libertos” -, essa busca não só de meios materiais para reprodução social do grupo, mas de dignidade, de reconhecimento de identidade, é o que explica por que, apesar de suas poucas posses, alguns dos “libertos” que ganharam ou compraram suas alforrias, preocuparam-se em constituir inventários pósmorte, mais um momento de aquisição simbólica de alforria, de representatividade. Apesar de conformarem, enfatiza, “os titulares da menor porção documental investigada”, de poucos bens apresentados,129 nestes inventários ex-escravos “protagonizam histórias”, histórias essas “esclarecedoras sobre a sociedade setecentista colonial” (idem). Na história oral local, segundo Manoel de Julieta,130 Lázaro teria tido 12 filhos. Destes, se lembrava dos nomes de suas bisavôs “Ana de Lázaro” e “Joana Braz”, e de “Francisco Lázaro”. Dentre todo o material compilado, o nome de Francisco Lázaro é recorrente, filho de Lázaro de Araújo, provavelmente seu filho mais velho, que aparece inclusive como o inventariante de seu pai em 1872. À cada um destes “herdeiros”, deixara, igualmente, “5 braças de terra”: “Essa terra de Lázaro foi partida, foi partida, e minha avô herdou 5 braças de terra. Seu avô também 5 braças. E os outro tudo 5 braças de terra que ele comprou. Todos os filhos herdaram 5 braças cada um. Num herdaram mais que 5 braças. Fosse homem, quer fosse mulher. Herdaram 5 braças cada um. Terra aqui, e terra na Cruz, em Santana do Mato.

E: O tamanho todo qual era? MJ: Era 3000 braças de terra, pegando duma cabeça a outra. Você comprava 30, 40 braças de terra, ía de um cabeça a outra. Da divisa pra lá, eles pagavam para Santana do Matos, da divisa pra cá, para Currais Novos. Não pagava toda pra cá não. Antes disso era Acari. E da divisa pra lá, no Açu. Era muito né, ía na cidade de Açu para pagar um impostinho. Quem tinha animais, ía de animais, quem não tinha, ía de pés mesmo. Era um sacrifício.

E: Os filhos de Lázaro foram tendo filhos? Aí como dividi, dá pro filho, só dá pro filho? MJ: Dá pro filho, e pra filha, igual.

129 130

Com exceção da transmissão de propriedades de terra. Casa de Manoel de Julieta, Buraco de Lagoa, 28.10.06.

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Inventário de difícil leitura ainda que muito bem preservado. Capa: “Inventariado: Lázaro Maria de Araújo. Inventariante: Francisco de Paula de Araújo”

E o que nos apresenta seu inventário de 43 páginas à bico de pena? Quantos filhos teve? Que “bens de raiz”? Como os repartiu? De início, temos pouca informação a respeito de sua origem, de quem era filho, quais seriam suas feições. O que se nos apresenta é a identificação nominal do falecido, viúvo de Maria Joaquina da Conceição, que deixara expresso que quando falecesse que “sem perda de tempo notificasse a seo filho Francisco de Paula Araújo”, que aparece então como inventariante. Seguindo uma lógica de nomeação operante até os dias de hoje, em que o primeiro nome de um antepassado pode virar um segundo nome de um filho, neto, e assim sucessivamente, “Francisco Lázaro”, ou “Francisco de Lázaro”, é nomeação com que a memória social guardou o personagem Francisco de Paula Araújo, que como vimos, na década de 1920-1930, passaria para seu

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filho, Luiz Amaro, a salvaguarda do conjunto de “escrituras” herdadas de seu pai, Lázaro de Araújo. Apesar da dificuldade na leitura do documento,131 apresentamos, para os fins desse relatório, algumas de suas partes constituintes, do total inventariado de 1:141$700 (um milhão, cento e quarenta e um mil e setecentos réis), de forma a apresentar: (1) seus herdeiros; (2) o conjuntos de bens de Lázaro de Araújo, em especial seus “bens de raiz’; (3) e o modo como esses serão repartidos por seus herdeiros. 1. “Títulos de Herdeiros”132 Em 1872, Lázaro de Araújo tinha treze filhos, dos quais um falecera. Todos casados, exceto dois filhos, 21 e 22 anos. São eles:

Herdeiros

Cônjuges

1 Francisco de Paula Araújo

Laurentina Maria da Conceição

2 Alexandre José de Araújo

Anna Francisca de Jesus

3 Manoel Antonio de Araújo

Bartholira Maria da Conceição

4 José Francisco de Araújo

Maria Romana das Flores

5 Joaquim Lázaro de Araújo

Josefa Maria da Conceição

6 Herminigildo Pereira de Araújo

Anna Divina do Espírito Santo

7 Raimundo Pereira de Araújo

(solteiro, 22 anos)

8 Anna Bernarda de Jesus

José do Ó dos Santos

9 Maria Joaquina de Jesus

Manoel Felipe da Silva

10 Alexandrina Maria da Conceição

Manoel Damião dos Santos

11 Joanna Maria da Conceição

Venâncio José dos Santos

12 Bartholomeu Pereira de Araújo

(solteiro, 21 anos)

13 Ricarda Maria do Amor Divino

-

(falecida)133

131

Em anexo, transcrição completa de algumas das partes em que se compõe o inventário. Manteve-se os termos legais e a grafia de época. 133 Ricarda deixava sete filhos. 132

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Repare-se que apenas os homens recebem o sobrenome “Pereira Araújo”, lógica que encontraremos repedida nas futuras gerações, enquanto as mulheres recebem nomes critãos.

2. “Móveis” e “Semoventes”

Tomando como índices de condições sócio-econômicas os bens “móveis” e “semoventes” de Lázaro de Araújo, encontramos com uma vida simples, vida de “homem livre” em regime ainda escravocrata, de poucos utensílios e bens materiais, uma égua, uma vaca e dois potros. Discriminamos alguns desses bens à título de exemplo:

“Moveis” Uma imagem de Christo Uma imagem da Conceição Uma Imagem de Santa Luzia Um oratório velho de flandre Um par de esporas velhas de latão Espingarda espotela em bom uso Duas paz de terra Duas enchadas 3 machados Ferro e signal Um ferro Uma navalha Bacia pequena Uma lima em mal estado Dois bancos velhos Duas jarras Um jogo de malhas Uma sella quebrada Um tamborete Chapéu do chille Armário de madeira Par de botas Chapéu velho Um bule de louça Oito casai de xícaras e pires Oito pratos brancos (...) Valor total declarado

Valor declarado 4$000 6$000 6$000 2$000 1$000 6$000 2$000 1$000 3$000 2$000 1$000 1$000 1$000 $320 1$000 2$000 6$000 8$000 1$000 6$000 1$000 3$500 $500 $500 $800 1$600 (...) 144$860

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“Semoventes”

Valor declarado

uma egoa velha castanha

20$000

Um potro

46$000

Um potrinho

16$000

Uma vaca parida

35$000

Valor total declarado

117$000

3. “Bens de raiz”

Por fim, reencontramos o conjunto de bens, topo da escala de valores, razão material inclusive que justificaria a execução de um inventário de partilha de bens, a tomar pelos demais conjuntos de bens que o falecido deixava: “bens de raiz”, parcelas de terra, casas de morada, ranchos e casas de farinha. Se no final da década de 1850, Lázaro de Araújo compra três parcelas de terra, em um total de 103 braças de terra somando 140$000, no início da década de 1870, seu patrimônio aumentara, assim como valorizara bastante o preço da braça de terra na Serra.134 Curioso notar que no que diz respeito à terra, contabilizam-se quatro áreas, três na Serra de Santana e uma no sertão do Seridó, no Trangóla, totalizando 48 braças (mais uma parte indefinida) de “terras de plantar” e 66 braças de “terras de criar”, no valor, somadas todas as benfeitorias, de 790$400.

134

A primeira área citada, p.e., no inventário, é avaliada pelo inventariante como valendo 13$000 cada braça.

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BENS DE RAIZ (1872):

Cadeia Sucessória “compra a Felix Manoel de Maria e sua mulher Francisca Adelina dos Amor Divino”

Valor 105$000

2

-

12$480

“huma parte de terra de dose mil quatrocentos oitenta e cinco reis no mesmo sítio dacta e na mesma communhão com os mesmos fundos havidos por nomeação de sua finada mãe, mulher do finado, Maria Joaquina de Jesus, no Inventário que se procede na Villa de Santa Anna do Mattos pelo Juiz de Órfãos da cidade do Assú, sendo o Escrivão deste feito, João Baptista de Oliveria Monteiro”

3

-

13$000

13 braças,

1

Tamanho e Limites 35 braças, “na dacta da Serra de Santa Anna mais trinta e cinco braças de terra de frente com legoa e meia de fundo no sitio Macambira”

“treze braças de comprido com os fundos, digo, de treze mil reis no sitio Velho na dacta referida da Serra de Santa Anna de plantação, com os mesmos fundos” 4

“compras a Luís Garcia Galvão e Teresa Maria de Jesus com das Escripturas”

198$000

66 braças, “terra de arcas com meia legoa de fundo para a parte do poente no sitio Trangolla deste Termo na Dacta do Totoró”

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Relembrando a lógica de comprar da década de 1850, e agora retomando o documento 7, de 1870, será que Lázaro de Araújo já vinha em processo de permuta de “terras de plantar” por “terras de criar”, de modo que utilizou boa parte de suas braças da Serra na troca por braças no sertão? Se assim o foi, encontramos o ex-escravo já descendo a Serra, tornando-se proprietário de terras para gado, terras mais valorizadas naquele então. Mais uma vez, salientamos, difícil saber a localização de áreas com precisão, bem como sua cadeia sucessória.

4. “Partilha” e “Encerramento” Como havia contado Manoel de Julieta,135 “tudo foi dividido por igual”, conforme atesta o “termo de determinação da partilha” do inventário: “tantas partes iguais quantas forem os filhos do finado”, não exatamente em partes de 5 braças, mas no caso do “sítio Macambira”, em partes entre 5-7 braças, além de algumas benfeitorias, como moradias e casas de farinha. Também foram divididas as partes do “sítio Velho”136 e do “Trangola”. 137

Herdeiros e heranças 1 Francisco de Paula Araújo    

“sua legoa terra de setenta e nove mil, novecentos e quinse reis (79$915)”; “mais cinco braças de terra do sítio Macambira a trez mil reis a braça (15$000)”; “mais uma parte de terra no sítio Velho no valor de trez mil e quatrocentos reis (3$400)”; "casa de taipa com haviamento de farinha trez mil reis (3$000)”.

2 Alexandre José de Araújo   

“sua parte de terra no sitio Macambira, dois mil reis (2$000)”; “mais sua casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis na mesma terra, dois mil reis (2$000)”; “mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a

135

Buraco de Lagoa, 28.10.07. A região atualmente conhecida como sítio Velho fica a sudoeste de Macambira apenas alguns quilômetros. 137 “Trangola” continua nomeando “comunidade” perto do açude Totoró, nos baixios do sertão do Seridó próximos à Serra. 136

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 

braça, vinte e um mil reis (21$000)”; “mais no rancho (...) com telhas de cem mil reis, no mesmo sitio, vinte mil reis (20$000)”. “mais sua parte de terra de vinte cinco mil do sitio Velho, dois mil reis (2$000)”.

3 Manoel Antonio de Araújo      

“mais sete braças de terra no sitio Macambira a trez mil reis a braça, vinte e um mil reis (21$000)”; “mais parte de terra de dose mil e quatro centos reis no mesmo sitio, dois mil reis (2$000)”; “mais sua casa de taipa com haviamento de farinha na mesma terra, de dosentos mil reis, quinse mil reis (15$000)”; “parte de terra do sitio Velho, de vinte e cinco mil reis, trez mil reis (13$000)”; “mais seis braças de terra no sito Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça, desoito mil reis (18$000)”; “mais no rancho coberto com telhas com cercado assude arrombado de cem mil reis no mesmo sitio, trez mil reis (13$000)”.

4 José Francisco de Araújo     

“mais parte de terra de dose mil e quatro centos reis no sitio Macambira dois mil reis (2$000)” “(...) casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis no mesmo sitio, dez mil reis (10$000)”; “mais parte de (...) cinco mil reis do mesmo sitio, mil oitocentos reis (1$800)”; “mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça, vinte e um mil reis (21$000)”; “mais rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio de um mil reis, nove mil reis (9$000)”.

5 Joaquim Lázaro de Araújo  

“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no sito Macambira, mil reis (1$000)”; “mais (...) casa de vivenda do mesmo sitio de cento e cincoenta mil reis de trinta e cinco mil reis (35$000)”;

6 Herminigildo Pereira de Araújo  

“mais trez braças no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça nove mil reis (9$000)” “mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio de um mil reis, vinte mil reis (20$000)”;

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   

“mais trez braças de terra no sitio Macambira a trez mil reis a braça, nove mil reis (9$000)”; “mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no mesmo sitio, vinte mil reis (20$000)”; “mais (...) parte de terra de vinte cinco mil reis do sitio Velho trez mil reis (3$000)”; “mais (...) parte de terra de dose mil e quatro centos do sitio Macambira, dois mil reis (2$000)”.

7 Raimundo Pereira de Araújo    

“mais trez braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça nove mil reis, quarenta e oito mil reis (48$000)”; “mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado de (...) mil reis no mesmo sitio quatro mil reis (4$000)”; “mais (...) parte de vinte e cinco mil reis do sitio Velho quatro mil e novecentos reis (4$900)”; “mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no sito Macambira quarenta e oito mil reis (48$000)”.

8 Anna Bernarda de Jesus       

“passe lhe na parte de terra de vinte e cinco mil reis do sitio Velho, trez mil reis (3$000)”; “mais na parte de dose e quatro centos reis do mesmo sitio dois mil reis (2$000)”; “mais cinco braças de terra no sitio Macambira a trez mil reis a braça, quinse mil reis (15$000)”; “mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha do dosentos mil reis na mesma terra, trese mil reis (13$000)”; “mais um quarto de taipa pegado na mesma casa, dose mil reis (12$000)”; “mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça vinte e um mil reis (21$000)”; “mais seo rancho coberto com telhas cercado, assude arrombado, de um mil reis no mesmo sitio, quatorse mil reis (14$000)”.

9 Maria Joaquina de Jesus    

“mais (...) na parte de terra de vinte e cinco mil reis no sitio Velho, dois mil reis (2$000)”; “mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis no sitio Macambira desesseis mil reis (16$000)”; “mais dez braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça trinta mil reis (30$000)”; “mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio, trese mil reis (13$000)”.

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10 Alexandrina Maria da Conceição  

“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis no sitio Macambira, mil reis (1$000)”; “mais (...) casa de taipa de morada do mesmo sitio de cento e cincoenta mil reis (150$000)”.

11 Joanna Maria da Conceição    

“mais parte de terra de dose mil e quatrocentos reis do sítio Macambira, dois mil e quatro centos reis (2$400)”; “mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no mesmo sitio quarenta e sete mil reis (47$000)”; “mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça vinte um mil reis (21$000)”; “mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio de um mil reis, trez mil reis (3$000)”.

12 Bartholomeu Pereira de Araújo   

“mais desesseis braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça (48$000)”; “mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio de cem mil reis no mesmo sitio a quantia de quatro mil reis (4$000)”; “mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no sitio Macambira, desessete mil reis (16$000)”.

13 Ricarda Maria do Amor Divino (falecida)138

Dentre das informações e perspectivas de análise que o inventário de Lázaro Pereira de Araújo oferece, nos parece importante enfatizar, em termos básicos: (1) primeiro, que estamos diante dos personagens que de fato iniciaram a ocupação do “sítio Macambira”, seus “herdeiros”, que contraíram matrimônio e foram ocupando as terras do pai, abrindo os primeiros roçados, investigando as grotas, encontrando-se com os últimos caboclos da Serra, andando quilômetros atrás de água, mudando-se e prestando serviço por arrendamento em anos de seca; segundo, que estamos diante da primeira partilha do sítio Macambira, do início de seu processo de parcelamento interno, de paulatina negociação 138

No caso de Ricarda, cada um de seus filhos recebeu 2 braças de terra e pequena quantia em réis.

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entre indivíduos e entre famílias por ocupação de novas áreas e delimitação de fronteiras, até o esgotamento contemporâneo, em que muitos “só tem o seu chão de casa”. Cabe-nos agora, recuperar alguns pontos antes de entrarmos nas descendências, ao menos em parte das descendências, dos filhos de Lázaro e Maria Joaquina. As datas da Serra de Santana, duas datas, cada uma “três léguas de largo com uma légua de fundo” foram adquiridas (arrendadas) por Adriana Holanda Vasconcelos no final da década de 1770, em torno do ano de 1777, ano de grande seca (“a seca dos três setes”) quando foram encontradas fontes de água na chã da Serra, uma “lagoa nova”. A divisão de suas datas se dará por seus herdeiros, filhos e netos, de seus três casamentos. A partir de 1850, com a “Lei de terras”, parte dessas datas, uma poucas dezenas de braças, da chã da Serra de Santana, será negociada por seu neto, Francisco Lopes Galvão (e esposa) que as vende a membros da rede de parentela e aliança da família. Poucos anos depois, em 1856, estas estarão sendo vendidas a um ex-escravo, que em especial no sítio Macambira constituirá família. Seus filhos se casarão com gente que também está buscando seu lugar no Seridó em transformação da segunda metade do século XIX. O crescimento dessas famílias, e a rede de intra-casamentos que advirá nas gerações seguintes, com o concomitante crescimento de moradias, terreiros e roçados, dará à área as feições que tem hoje em termos de disposição espacial (parcelamento e formação de sub-áreas), bem como das lógicas de ocupação, demarcação de limites e transmissão de uso dessas “terras de plantar”. Por mais que não nos tenha sido possível, e de fato temos dúvida de que o seja, estabelecer com precisão cartográfica os limites de todas as áreas enumeradas nestes documentos, parece claro que o total de datas que pertenceu aos Pereira de Araújo é bem maior do que os que compartem hoje.139 Também está claro que, no cruzamento de dados da história oral local, dos documentos encontrados, e de autores regionais, por mais que haja contradições e novas questões se abram a cada novo dado encontrado, que a ocupação da Serra de Santana por ex-escravos, em torno do “sítio Macambira”, vêm desde a passagem das décadas 1850-1860, em especial através, de início, dos investimentos pessoais de um “mulato”, recém “homem livre”, e sua capacidade de administração econômica e de relações pessoais no escravagismo tardio do sertão das últimas décadas do século XIX. 139

Retomaremos este ponto mais adiante.

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DESCENDÊNCIA DE LÁZARO PEREIRA DE ARAÚJO E MARIA JOAQUINA DA CONCEIÇÃO:

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II. “TRONCOS VELHOS”: TERRITÓRIOS DE PARENTESCO, MEMÓRIA E POLÍTICA

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INTRODUÇÃO Como vem demonstrado alguns dos autores que tem trabalhado com os fenômenos de ordem étnica (Barth, 1969; Cohen, 1974), muitas são as “lições”, para a Ciência e para a Sociedade, que se podem tirar dos processos de etnicidade.140 A principal talvez seja a constatação do caráter dialógico e transitório das construções identitárias (no caso estudado por este relatório, contrastivo, “branco” e “negro”). Dentre os desafios encontrados, após gerações de cientistas sociais terem trabalhado com desenhos fechados, homogêneos, estáticos e essencializadores de “cultura” e “sociedade”, desenhos que se espraiaram, atente-se, para além das fronteiras das disciplinas científicas e hoje estão fortemente arraigados no senso comum. Nesse sentido, e exacerbado em contextos de assimetria, mais do que essência ou caráter de um dado grupo humano, os repertórios da cultura, da morfologia social e da história passam a ser entendidos como variáveis acionadas em resposta a situações sociais específicas (Gluckman, 1987) em contextos de interação (Barth, 1969, 2000), em defesa do reconhecimento e autonomia de identidades, territórios, modos de produção e destinos. Nos termos de Barth (1969:14): “as categorias étnicas oferecem um recipiente organizacional que pode receber conteúdo em diferentes quantidades e formas nos diversos sistemas socioculturais”. Neste sentido, junto à força e direção dados pelos paradigmas e cosmovisões locais, como nos lembra Cohen (1974:ix), não raro, justamente por estar na raiz das escolhas de indivíduos ou grupos, comumente em contexto de desigualdade de poderes, o fenômeno étnico pode ser marcado por “ambigüidade, variedade de forma, escopo e intensidade”, o que muitas vezes dificulta seu entendimento e compreensão, e mesmo sua legitimação, de acordo com a arena política em questão. Vale lembrar, no entanto, que depois de trabalhos como os de Asad (1973), Said (1996), e Todorov (1988), estamos mais cientes de que certas concepções do que seja “cultura” e “sociedade”, que não as entendem de forma dinâmica e em transformação, que não lhes atribuem alguma racionalidade e autonomia, estiveram, e em certos casos ainda estão,

140

Em alguns casos chamados de “etnogênese”. Saliente-se que estes tem crescido exponencialmente nas últimas duas décadas, tratando-se na atualidade de um fenômeno social de ordem planetária em que grupos sociais reorganizam-se passando a reivindicar especificidades identitárias – ao que Almeida (2002) tem chamado de “novas etnias” -, maiormente em situações de dominação histórica e assimetria em contextos nacionais e pós-coloniais. Para alguns exemplos vindo da Oceania, vide, p.e., Linnekin & Poyer (1990).

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atreladas a projetos coloniais e nacionais de dominação entre etnias e entre classes sociais. Nos termos de Taussig (1989), fazem parte da “fraseologia da conquista” que no processo de dominação, no caso em seu viés simbólico, atribui ao “outro” inferioridade em todos os seus corolários (violência, indolência, primitividade, irracionalidade, fetichismo religioso e falta de higiene), o que em termos ideológicos justifica a submissão e a escravização. Dentre as variáveis, portanto, que podem ser acionadas para demarcar diferença frente ao “outro”, bem como pertencimento frente ao “mesmo”, temos, p.e., os fundamentos biológicos (“somos do mesmo sangue”), o compartilhamento de “valores culturais fundamentais”, ou a conformação de um “campo de comunicação e interação comum” (Barth, 1969:10-11). De todo modo, pertencer a um grupo étnico é, centralmente, “estar classificado em termos de sua identidade mais básica e geral” (idem). Dentre esses eixos classificatórios, sem dúvida, a “determinação da origem” está dentre os mais recorrentes (Barth, 1969:13), ao que a Comunidade de Macambira não é exceção. Para o caso de Macambira, ao longo de toda a compilação de histórias de vida e ocupação da área, dois fatos foram ressaltados pelos membros do grupo, em diversos contextos de sociabilidade, como centros simbólicos de sua etnicidade e unidade de grupo, no caso em particular, de sua negritude: (1) primeiro, sua origem, descendente de um “ex-escravo”, “mulato”, que “comprou datas de terra dos herdeiros de Dona Adriana”, tema da parte anterior; (2) segundo, o fato de todos conformarem “uma família só”, família marcada por “uma mistura medonha”. Sobre este segundo eixo nos deteremos nesta parte do trabalho, apresentando a Comunidade de Macambira em termos de sua constituição morfológica em redes de cooperação e matrimônio entre núcleos parentais, tendo como eixo central de sociabilidade a casa. Como pretendo demonstrar, ao longo das 4-5 gerações que se seguirão aos filhos de Lázaro de Araújo, vemos se constituir uma lógica de formação de núcleos parentais e parentelas mais baseada na afinidade, do que na consangüinidade. Além de dar conta da família como eixo da organização social do grupo, apresentaremos também dados sobre algumas das formas de sociabilidade encontradas, bem como os processos e lógicas de ocupação territorial que explicam tanto sua conformação contemporânea, bem como de onde partem suas demandas territoriais. Ao final, podemos pensar a organização da grande Macambira como composta, em termos territoriais e de eixos centrais de relacionamento, como constituída em território de parentesco (Almeida, 2006; Comerford, 2003). Neste, Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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encontramos versões de formação familiar, de ocupação de novos terreiros e roçados, de relações com outras famílias e o entorno da Serra e de Curais Novos, a que poderíamos chamar de territórios de memória, uma vez que a partir de cada um deles se produziu uma história local e relacional que alinha uma primeira história geral da Comunidade.

“TRONCOS VELHOS” “Esse tronco tem muita rama”. (Manoel de Julieta, Buraco de Lagoa, 28.10.06)

Em especial dentre os mais velhos da Comunidade, encontra-se articulado em torno da idéia de que “é tudo uma família só” um conjunto de termos e noções que participam da organização social (material e simbólica) do grupo, e que nos últimos 3 anos tem sido também articulado nas disputas por reconhecimento de direitos no campo semântico da etnicidade local (Valle,1999).141 Neste caso, tendo como centro simbólico a noção de família e alguns de seus corolários, a Comunidade se apresenta em suas feições básicas e primeiras em termos de: semente, troncos, e mais raro, ramas,e em termos generalizadores, comunidade. Ao se referirem ao “velho Lázaro”, este seria a semente, o “início de tudo”, o “fundador dessa família”, “aquele que chegou só”. Os troncos constituem-se em parentelas de núcleos familiares organizados ao redor de algum núcleo familiar central, em geral ocupando a maior parte de alguma das sub-áreas da grande Macambira (vide mapa abaixo). Historicamente, como vimos, decorrem dos desdobramentos dos casamentos contraídos pelos filhos de Lázaro e Maria Joaquina com “gente de fora”. Inclusive, é a esse ponto que se volta quando se justifica a mistura que marca a Comunidade, “mistura medonha”. Ao contrário da família “branca”, como vimos, mais fechada em seu círculo de alianças matrimoniais, a família constituída em Macambira (em todas as suas ramas) era aberta à relações matrimoniais com outros segmentos étnicos e de classe. Por essa razão, no contexto da alta concentração de terras de plantar e criar sob posse da família patriarcal, 141

Por “campo semântico da etnicidade”, Valle (1999:302) propõe especial atenção às “estruturas de significação e as formações simbólicas” cuja “reprodução se fazia por meio de ideologias, de um senso comum, de “histórias” e de tradições”. Nesse sentido, no jogo das enunciações, um conjunto de significantes, de acordo com a situação, pode atingir ampla polisemântica, sendo compartilhado não só pelos membros da Comunidade, mas pelo entorno, para discriminar a especificidade de cada grupo no campo intersocietário (no caso, “negros” e “brancos”, ou nos termos locais, “negros” e “morenos”), bem como das relações entre os mesmos.

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seria lugar de reunião possível dos segmentos sociais que iam se organizando no Seridó pós-escravagista e republicano com os quais as classes dominantes travavam pouca relação. Cerca de duas gerações depois, diante do contexto de assimetria étnica em que estavam inseridos,142 e do estreitamento dos espaços físicos e simbólicos de interação entre “negros” e “brancos”, gerariam uma rede de intra-casamento, na qual o casamento entre primos (em especial ao longo das gerações 3-4) chega a ser praticamente uma regra, de tão recorrente, havendo também um caso isolado de avunculado. Neste ponto, cabe salientar, considerando o sertão em termos sócio-culturais mais amplos, estarmos bem próximo ao modelo apresentado por Woortmann (1995) para o “sítio nordestino” enquanto unidade de produção social material e simbólica. Também aqui encontramos “uma comunidade local, de certa forma corporativa, conjugando a territorialidade com o parentesco, e endogâmica”, com sucessão, saliente-se, de tendência patrilinear (Woortmann, 1995:75). Mas como vimos, dado o histórico dos padrões de relacionamento que norteiam as ações de “brancos” e “negros” no Seridó dos séculos XIXXX, não podemos deixar de considerar o regime de segregação material e simbólica vigente como condicionante do espectro possível de redes matrimoniais passíveis de serem articuladas. Deste modo, a situação étnica, não tanto o étnico em si, mas os processos que sobre esse incidem, marca de especificidade o parentesco e a familiarização encontrados em Macambira. Deste modo, salientamos que apesar da tendência geral dentre as famílias visitadas, em termos de alianças matrimoniais, ser bastante aberta, pelo que poderíamos sem problemas classificá-la como exogâmica, dados os constrangimentos materiais e simbólicos que impedem uma maior mobilidade socio-espacial de seus membros, impondolhes a horizontalidade mais que a verticalidade, esta tem se articulado, em especial na segunda metade do século XX, em termos endogâmicos. De fato, mais do que comportar-se como uma “linhagem”, parece que estamos diante do que Wolf (apud Woortman, 1995:53) classifica como grupos de descendência de “coalizões multilineares”, em termos verticais e horizontais. Mais do que um grupo de descendência “mantido através do tempo”, e a pesar

142

Provavelmente, deve vir da virada dos século XIX-XX, a denominação, de caráter etnocêntrico, “negros da Macambira”, que encontramos em uso em especial na cidade de Lagoa Nova. Expressão correlata em seu caráter pejorativo e etnicamente hierárquico é encontrada em uso na Cida de Currais Novos, de “negros do Riacho” (Queiroz, 2002).

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de comportar essa característica morfológica, se comporta mais como um “grupo de descendência político” (idem). Em termos de padrão morfológico e de organização política e de administração de relações vicinais, o material encontrado em Macambira se assemelha ao descrito por Thomas & Znaniecki (1974:87), trabalhando a partir de dados de um campesinato de perfil étnico, em que mais do que uma “árvore genalógica”, “família” seria “um grupo social que engloba consangüíneos e afins até um certo limite”, enfatizando em suas análises seu caráter “estritamente social, concreto, de grupo vivente”. Deste modo, a ênfase relacional recair, mais do que na consangüinidade, na afinidade. Não se quer aqui, obviamente, reduzir toda a riqueza e afetividade do cotidiano social de uma comunidade como Macambira a esquemas puramente racionais e materiais, mas antes sublinhar o que nos pareceu, apesar de todas as redes de solidariedade e proximidades físicas, ser uma marca organizacional da Comunidade: a autonomia e independência de cada núcleo familiar, que em geral conforma um núcleo residencial e um investimento médio, se houver terra, 2-5 hectares de plantio variado. Deste modo, o esquema interpretativo proposto por Thomas & Znaniecki (1974:88-89) deve trazer rendimento para entender a natureza das relações familiares em Macambira: família seria uma “pluralidade de núcleos parentais”, hierarquicamente distintos, que se relacionam entre si gravitando entorno de um ou mais casais centrais, mais velhos, onde se encontram os “cabeças” de família (“os que sabem”, portadores do conhecimento advindo com a “experiência”; os que partilharão por igual a terra que igual repartida receberam). Como veremos a seguir, esse esboço gravitacional reflete-se também nas ocupações de terreiros, construção de casas e abertura de roçados. No caso de Macambira, a tendência geral a patrilinearidade, no entanto, não impede que em alguns casos as filhas recebam o sobrenome da mãe. Além disso, a variabilidade na lógica de nomeação e transmissão de sobrenomes pode ainda articular-se por outros padrões que não a descendência, tais como: a notoriedade que algum membro da família pode ter tido, pelo que seu primeiro nome passa a ser um segundo nome (p.e. Daniel, Luciano e Felipe); o apelido que algum membro da família pode ter tido, por acontecimento ou habilidade, passa a ser o nome pelo qual a família é conhecida (p.e. os Passarinho e os Peba); nomes religiosos, em especial para as filhas, funcionando como sobrenomes (p.e.Conceição, Do Amor Divino; de Jesus) além de, muito comuns nos relatos Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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genealógicos compilados, inversões na ordem em que são apresentados os sobrenomes paternos e maternos. Por fim, encontramos o caso ainda de Herculano, de Cabeça do Ludogério, patriarca dos Herculanos, e que no entanto chama-se Pedro Francisco dos Santos, tendo por iniciativa própria mudado o próprio nome. O termo rama, de uso mais raro, serve como sinônimo de troncos quando se considera a Lázaro o tronco central. Por fim, o termo comunidade, de uso recente, a partir especialmente do final da década de 1990, quando o grupo se organiza politicamente para se apresentar formalmente frente ao Estado e demais agências locais, é pouco utilizado do dia a dia para se auto-referenciar ou referenciar o grupo do qual se faz parte. Prevalece o nome familiar como referência de filiação e pertencimento. Por vezes, o nome do pai ou da mãe também é utlizado (p.e. “Pedro de Chico”, “Manoel de Julieta”, “Lázaro de Maria”). Seu uso se dá em contexto intersocietário, no quadro das relações interétnicas em que estão inseridos, referindo-se ao somatório de todos os troncos, vinculados pela origem comum em Lázaro, bem como ao território comum, “Macambira”, que passa também a nomear em sentido geral todas as suas sub-áreas: Macambira II e III, Buraco de Lagoa, Cabeça dos Ludogério e Cabeça dos Ferreira. De fato, algumas dessas designações são recentes, da década de 1990, quando Lagoa Nova torna-se município e a sua zona rural passa a ser escrutinada e desmembrada, conseqüentemente, e em alguns casos, renomeada, para fins de administração de Estado. A maior parte dos relatos compilados dentre os “especialistas da memória” (Le Goff (2003) de cada um dos principais troncos registrados, produz imagens nítidas do passado até aproximadamente as décadas de 1930, produzindo a descrição de uma Macambira, do “sítio Macambira”, ainda pouco ocupada (“era tudo mato”), organizada espacialmente em alguns poucos conglomerados de casas, distantes uns dos outros. De fato, podemos dizer que praticamente só existiam dois grandes conglomerados de casas, cada um constituindo uma grande parentela. Ao norte, onde hoje se nomeia por é Macambira II e III, a família Pereira, que viria ser conhecida como Daniel; e ao sul, em Buraco de Lagoa, em especial a área entre a Estrada do Comércio e as grotas para o Seridó, a família dos Araújo e do Ó, que passaria a ser conhecida como Severiano (vide mapa abaixo). Ambas famílias também são exemplares da dinâmica de ocupação da área, ao redor de um ou dois casais mais velhos, no entorno de cujos terreiros abririam-se novos terreiros, Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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casas e pequenos roçados de subsistência. Desde a fundação da Comunidade, vive-se do roçado. Eventualmente, da roça (plantio de mandioca) se produzia algumas “cuias” 143 de farinha. A distância entre esses pequenos conglomerados podia variar de centenas de metros a quilômetros (uma vez que de uma ponta a outra da Serra, a área chega a sete quilômetros), atravessados por caminhos vicinais estreitos (“naquele tempo não tinha estrada não, era tudo veredazinha”). Estas áreas de habitação já iam sendo conhecidas por nomes gerais, maiormente designando o nome ou sobrenome de algum patriarca destacado na história de família local ou alguma benfeitoria (“terras dos Daniel”, “terras dos Manoel Severiano”, “Umbuzeiro dos Rodrigues”). Essas veredas se transformariam em caminhos largos, muitos dos quais conformam as “linhas” em que a Comunidade se organiza e pensa espacialmente na atualidade. O processo de nomeação das áreas pelas famílias também participa e é índice da delimitação de fronteiras territoriais que ao longo dos processos de ocupação serão progressivamente negociadas e definidas. Como explicou Pedro de Chico:144 “Eles, cada um canto, é uma família. Daí eles botam um nome. Aqui no Sítio São Francisco. Aqui no São Francisco é quase essa mesma linha de terra daqui, mas o nome é outro. É assim que divide as famílias. Tem família que tem um nome diferente, eles botam também o nome diferente. Ali no sítio São Francisco é os dos Santos, mas eles quiseram botar São Francisco.” Apesar de conformarem e articularem em algumas ocasiões suas redes de pertencimento e cooperação, na maior parte das vezes prevalece grande autonomia entre núcleos familiares, especialmente em seu cotidiano de trabalho e intimidade, o que prevalece até os dias de hoje, apesar do inevitável estreitamento físico (“as casas tudo colada umas nas outras”). Note-se, p.e., que na Comunidade, historicamente, raro é o chamado trabalho de mutirão, excepcional e só em casos de muita precisão (em geral por incapacidade física) por parte de um parente ou compadre. Diante do material compilado com os especialistas da memória de alguns dos troncos visitados, ao longo de suas 5 sub-áreas, podemos elencar duas delas como sendo as mais 143

Até as primeiras décadas do século XX, o termo “cuia” era utilizado como padrão de medida da produção de farinha, bem como símbolo de já algum incremento na produção, de algum destaque social em um mundo cuja produção é basicamente de subsistência. 144 Pedro Daniel Pereira, 16.04.07, Macambira III.

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antigas, exemplares enquanto processo de constituição de parentela e ocupação territorial, bem como epicentros da memorial social local, da trajetória histórica do tronco a que se pertence e aos demais troncos que há um século se relacionam: Buraco de Lagoa e Macambira III, respectivamente os troncos dos Daniel e dos Severiano. De fato, são os dois conglomerados de núcleos parentais que descendem diretamente de Lázaro Pereira de Araújo. Os Daniel descendem de Francisco Lázaro (Francisco de Paula Araújo); enquanto que os Severiano, descendem dos casamentos de duas filhas do “velho Lázaro”, Anna e Joana. Desses casamentos que fundam a descendência de Buraco de Lagoa, ressalte-se a presença de José do Ó, negro forro afamado, lembrado por alguns dos troncos velhos, e mesmo do entorno na Serra e em Currais Novos. Os Daniel ocupam a metade norte da atual Macambira, que tem como “linha central” a fronteira com terras atualmente de Ivanilson Araújo (Cabeça da Macambira), ao longo da qual residem e trabalham alguns dos irmãos e primos Daniel, bem como suas respectivas descendências. Os Severiano, a “cabeça” sul da Macambira, a parte de Buraco de Lagoa que vai da Estrada do Comércio até as grotas com o Seridó. Comparativamente, como veremos mais adiante, ambos passam por processos sócio-culturais e de ocupação e aproveitamento do território muito semelhantes, cada um em um extremo da área. Apesar do parentesco e das semelhanças nas trajetórias de família, a memória social de cada tronco relata pouco convívio desde o “tempo dos antigos”, acirrado na contemporaneidade por discussões por uso e marcação de limites de terra, e pela não participação dos Severiano no movimento liderado e organizado pelos Daniel de constituição de Associação Quilombola e reivindicação de direitos especiais por sua descendência negra. Apesar disso, em termos gerais, em ambos os núcleos familiares, compilou-se material rico e complexo não só sobre ambos os troncos, mas sobre a ocupação e os intra-casamentos entre troncos na área em termos gerais, bem como da própria ocupação da Serra de Santana. Dentre as demais áreas, todas contíguas, enfatize-se, que na atualidade são pensadas como conformando a grande Macambira, a “Comunidade da Macambira”, temos ainda: no extremo nordeste, o “Cabeça do Ferreira”, pequena área ocupada pela família Ferreira desde o final do século XIX; a leste, nos limites com a área ocupada pelo grupo desde 1997 (Cabeçada Macambira), antiga área de ocupação dos Daniel, está o “Cabeça do Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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Ludogério”, ocupação mais recente, dos anos 1950, onde antes se encontravam os Genuíno, de ocupação antiga na Serra, que vende suas terras para os Ludogério; e por fim, as áreas hoje conhecidas como “Macambira II” e a parte norte de “Buraco de Lagoa”. Podemos dizer, que se comparadas ao histórico de ocupação exercido pelos Daniel e pelos Severiano, e mesmo dos Ferreira, podemos dizer que estas serão ocupadas depois, Macambira II, por gente dos Rodrigues e Firmino. Em Buraco de Lagoa, por fim, encontramos um novo ramo dos Araújo, também descendente de Francisco Lázaro, bem como a parentela dos Amaro, também Araújo, também com descendência, e compadrio, ligando-os a Francisco Lázaro. Os Amaro, anteriormente, ocupavam as áreas hoje de propriedade de Ivanilson Araújo, dentro das quais inclusive, encontram-se as taperas de suas antigas moradias.

Croqui: No eixo norte-sul, representado em termos básicos, a constituição em sub-áreas da grande Macambira, de uma grota a outra, com seus respectivos grupos familiares principais (troncos velhos). Assinalamos também o principal caminho de acesso (“linha”) a cada um de seus territórios constitutivos.

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CASAS, TERREIROS E ROÇADOS CASA E TERREIRO A casa é o centro da rede de relações que articula a grande Macambira (entendida em suas 5 sub-áreas). Para além das casas de morada, poucos lugares havia de sociabilidade cotidiana na atualidade, à exceção de 4 pequenos mercados – em geral, estabelecimentoa contíguos à casa da família - que vendem alguns poucos produtos e onde os homens se reúnem para consumir aguardente nos fins de semana, muitas vezes com os rádios dos estabelecimentos ou dos carros de algum dos clientes em volume alto. Do levantamento preliminar realizado, contabilizou-se, somadas as 5 sub-áreas, um total de cerca de 300 casas, parte destas fechadas (ou por abandona, ou por migração temporária por conta de trabalho sazonal em outros Estados). Muito poucas são hoje as “casas de taipa”, a grande maioria em forma de tapera, algumas ainda utilizadas como cozinhas fora de casa, feição arquitetônica marcante no sertão dos séculos XVIII-XIX (Medeiros, 1983), marcantes até as primeiras décadas do século XX. Na atualidade, a grande maioria é feita de alvenaria, processo de construção que se acelera a partir da década de 1980, tanto pela baixa dos custos do material utilizado, quanto pelo incremento de ações de Estado municipais e estaduais incidindo na região. Podemos classificá-las em dois modelos básicos, que ao final acabam também marcando pertencimento a distintos grupos de idade. Dentre alguns dos moradores mais velhos, que em geral habitam casas construídas há algumas décadas, como a casa de Pedro de Chico e Dona Nenê, dos Daniel, é comum encontrar-se a disposição dos cômodos de acordo com os dados que nos apresentam os inventários e antigas casas do Seridó colonial e imperial: sala de entrada com corredor central, que dá para dois cômodos, um em cada lateral, chegando ao fim em mais uma pequena sala. No caso da casa de Pedro e Nenê, esta era dividida em uma pequena casa e uma pequena cozinha. Além disso, outro ponto marcante, em que a arquitetura da casa e a organização social do grupo de cruzavam, no caso nas relações de gênero, era a de que, nos termos de Medeiros (1983:55), marca da família sertaneja em Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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termos bastante generalizáveis: “pela tradição antiga do sertão, o marido mandava, da porta-do-meio para frente; a esposa, da porta-do-meio para trás”. No caso de casais mais novos, como Vilmário e Vitória, a organização interna do espaço já variava bastante. Se comparada com outras casas novas, de casais na faixa dos 30-40 anos, em termos de arquitetura, o que centralmente se modifica é o corredor central como eixo da organização da casa. Alem disso, praticamente na se encontram mais cozinhas do lado de fora das casas. Durante a semana, é comum ser visitado em casa por parentes, vizinhos mais próximos e compadres, muitas vezes já pela manhã bem cedo (por volta das 7:00 hs.), uma vez que a vida em geral começa cedo na Comunidade. No caso de Vilmário, por conta da posição política que ocupa, estas eram cotidianas. Nos fins de semana, estas visitas se intensificam ampliando redes de relações (pessoais, familiares, de amizade e, em menor número, comerciais) 145 podendo demandar mais e maiores deslocamentos. Neste ponto, nos parece também muito produtiva para o presente caso, a estratégia adotada por Marcelin (1996) para pensar a organização e relação entre famílias negras no Recôncavo baiano, incluisve por que se propõe também ser um exame crítico dos mecanismos de essencialização de grupos sociais (via parentesco) a que chama de “invenção da família afro-americana”. Seguindo o que lhe contavam seu informantes, para os quais a noção de “casa” era central, elege-o como “categoria cultural a fim de dar conta da produção da família e do parentesco” (Marcelin, 1996:18). Nesta perspectiva, a casa passa a ser entendida como “um momento de um processo complexo de invenção e reinvenção da família, da amizade, da vizinhança e da iniciação da conjugalidade” (idem: 102). No caso de Macambira, pensar a partir da casa como lugar e situação por excelência onde se dão as relações sociais inter e extra-familiares, é tanto constatação de ordem morfológica social (em termos de histórico de ocupação e organização social) quanto artifício analítico para apresentar o modo como a Comunidade se organiza e pensa. Vejamos. A ocupação do território do “sítio Macambira”, seguindo o que nos conta a história oral local, só se incrementaria, alcançando suas feições atuais, apenas na década de 1940. 145

Na casa de Vilmário e Vitória, em particular, um dos locais – junto à casa de Pedro de Chico – em que se articula a mobilização política iniciada no final da década de 1990, atual sede da Associação Quilombola, era ainda marcada por visitas de sindicalistas, funcionários da prefeitura e do governo federal, membros de Ongs e,com a implementação do trabalho de elaboração do relatório antropológico, de representantes da universidade.

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Tomemos como exemplo, sua ocupação norte. De suas lembranças da década de 1930, Joaquim Daniel146 traça o seguinte quadro: “Era pouca gente, era pouca gente que tinha nesse lugar aqui. A morada era tudo longe uma da outra. Agora é que é pertinho tudo uma da outra. Quando me entendi de gente alcancei a morada do Cabeça dos Ferreira acolá, um velho que chamava Genuíno que mora ali embaixo [apontando para oeste]. Era Genuíno, Paulo Genuíno. Por isso que se chama ali o “barreiro de Paulo”. E quem a gente alcançou ali era Chico Genuíno. Era filho do velho Paulo.E tinha o velho Antonio, Antonio Luciano, parece, daquele lado [apontando para oeste]”. Os relatos compilados dão conta de um mesmo desenho para as décadas de 19301940, como vimos, de poucas moradas, de distância entre vizinhos, de paulatina formação de territórios de parentesco, através da construção de novas moradias e ocupação de novas áreas de plantio, sempre ao redor de um ou mais casais mais velhos, patriarcas de um dado tronco. Além disso, somos capazes de refazer em parte essas primeiras ocupações. No relato de Joaquim Daniel, ficamos sabendo da “morada” dos Ferreira, no Cabeça dos Ferreira, ao nordeste; a dos Genuíno, que então ocupavam a área à oeste que viria a ser o Cabeça dos Ludogério; e por fim, à leste, a de Antonio Velho.

Croqui: ocupação da parte norte da Macambira na década de 1930 (Joaquim Daniel, 16.04.07)

146

Joaquim Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07.

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Vejamos o desenho que faz Pedro de Chico. 147 De sua infância, na década de 1940, apresenta o seguinte relato, já incorporando o casamento de um de seus primos, Manoel Daniel, filho de João Daniel, irmão de Joaquim Daniel: “No sul, tinha Mané Carneiro. Pro poente, Chico Genuíno, filho de Paulo Genuíno, onde eram os Ludogério. Era os mais perto que tinha, pro senhor ver! Paulo Genuíno, o primeiro que chegou nos Ludogério. Ali só existia essa casa aí. Meus primos casados, tinha. Mané Daniel, tinha casinha bem ali perto do pai dele. Mané Daniel é filho de João Daniel. Mané Carneiro é de nossa família. É de Veia Zéfa. Agora, tinha casa mais longe.”

Croqui: ocupação da parte norte da Macambira na década de 1940 (Pedro de Chico, 16.04.07). De fato, conforme já apontado, ao longo do trabalho de compilação de material para constituição de uma historiografia da ocupação da Macambira, nos deparamos com eventos e personagens que davam conta não só da trajetória de certas famílias, mas da ocupação da Macambira em termos gerais. Assim, p.e., dentre os Ferreira, em conversa com Severo Ferreira, ouvimos que “quem primeiro eu vi falar que chegou aqui foi os tal dos do Ó. Lá no Buraco Lagoa”, dado que, como veremos, será corroborado por Manoel de Julieta (Manoel José de Araújo) ao contar sua descendência. Para os propósitos deste trabalhos, diante dos limites 147

Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07.

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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA impostos pela natureza de produção desta peça documental, em que não foi possível aprofundar certas facetas sociais e históricas da formação da Comunidade, objetivamos apenas demonstrar, primeiro, que com os recursos oferecidos pela memória social local é possível fazer um desenho das primeiras ocupações da Macambira, suas famílias e locais originais de moradia e plantio, com bastante precisão. Segundo, corroborar mais uma vez a antiguidade da ocupação e uso da área, bem como seu amplo conhecimento por parte dos membros da Comunidade. Por fim, retomando a narrativa de Pedro de Chico, apresentamos agora exemplo do processo de ampliação de terreiros ao redor da casa de um núcleo parental central. Note-se que na década de 1940, não havia outras casas no entorno da de seu pai, Manoel Francisco Pereira. Vejamos agora a área atualmente ocupada por sua parentela, no centro da qual, pero de onde fora a casa de seu pai, construiu sua casa, amais antiga:

Croqui: ocupação do entorno da casa de Pedro de Chico ao longo dos últimos 20 anos, ocupado por filhos, genros e noras. Repare-se que à essa área já se chama de Macambira III.

Podemos considerar ambos os processos apresentados, como exemplares das lógicas de ocupação da grande Macambira, em especial nos último cinqüenta anos. Da década de 1930-1940, infância da maioria dos entrevistados, em que se contavam facilmente o número de casas e se conhecia pelo nome todos os seus moradores, à atualidade, com toda a área tomada, maiormente por casas e seus respectivos terreiros somando cerca de 300 Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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unidades residenciais ao longo de suas 5 sub-áreas. Boa parte de Macambira III, p.e.. que já foi ocupada por roçados, hoje praticamente é toda ocupada por moradias e terreiros. Partindo das lógicas de família, esta ocupação se dá basicamente pela ampliação de moradias e terreiros no entorno das casas de pais e avôs, como no caso de Pedro de Chico. O mesmo processo, aqui representado por Macambira III, pelos Daniel, se deu entorno de Severo Ferreira, do Cabeças dos Ferreira, Manoel de Julieta, Jordão Apolinário e a parentela dos Amaro, em Buraco de Lagoa, e de Herculano, no Cabeça dos Ludogério. Tal qual o caso relatado por Thomas & Znaniecki (idem), para além dos vínculos familiares relacionados a “ancestrais comuns”, como Lázaro de Araújo, ou identidades étnicas compartilhadas, como a de “negros da Macambira”, 148 ou “quilombolas da Macambira”, impõem-se sempre como eixos de negociação centrais “as bases econômicas da continuidade familiar”, as “terras ancestrais”. De início, aqueles que tinham condições de abrir roçados, o fizeram. Isto por que, como ficou claro nos relatos compilados, de fato, o acesso à terra só passaria a ser um problema crítico apenas na década de 1980, quando não se consegue mais arrendar em terras do entorno. Além da falta da água, e das dificuldades de acesso e estocagem da mesma, o principal problema para abertura dos primeiros roçados, problema que perduraria até a década de 1950, seria a falta de sementes, no caso, da maniva, para plantio de mandioca. A partir da década de 1950, inclusive com o incremento agrícola dos baixios do sertão (uma vez que historicamente estas sempre foram “terras de criar”), aumentou a oferta de maniva, o que possibilitou tanto a estabilidade, quanto o aumento da produção de mandioca. Até então, conforme já enfatizado, muitas vezes, apesar da possuir-se terra, tinha-se de trabalhar por arrendamento em terras alheias, pagando de 30 a 50% da produção pelo uso. Se tomarmos como exemplo da ocupação sul da grande Macambira, perfazendo em termos básicos os extremos na área, de um cipó preto ao outro (de uma grota a outra), desta vez trazendo a versão de ocupação da área atualmente chamada de Buraco de Lagoa, encontraremos o mesmo padrão traçado anteriormente para o caso dos Daniel. Nesta, a família mais antiga a ocupar os entornos de uma das duas lagoas existente na chã da Serra de Santana (a outra sendo a em que hoje se encontra a cidade sede do município de Lagoa

148

Que paulatinamente vai ganhando conotação positiva, passando a fazer parte dos termos de autoidentificação utilizados em contextos de relações interétnicas.

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Nova), é a dos Severianos. Junto com os Daniel, como já salientado, podemos considerá-la com dentre as descendentes diretas de Lázaro de Araújo e de seus filhos. Neste caso em particular, como veremos mais adiante, do casamento de uma das filhas de Lázaro com José do Ó. Por fim, salientamos que algumas das parcelas em que se dividem as 5 sub-áreas, a minoria de fato, é cercada. O total de casas contabilizado até o fechamento deste relatório era de 240, cada uma praticamente representando uma unidade familiar, a grande maioria ocupando as áreas de Macambira II, III e Buraco de Lagoa .

ROÇADO Atualmente, a parcela de área utilizada para plantio pode variar de meio hectare a 5-6 hectares. O modelo de produção ideal almejado pelos membros da Comunidade - razão pela qual pleiteiam além da regularização da área que ocupam e da que ocuparam em 1997, duas áreas improdutivas contíguas à Macambira,149 - é de 10 hectares por núcleo familiar, de forma que um casal e seu filho dêem conta de cultivar a metade desse montante, a outra metade ficando como reserva, até que a utilizada precise descansar. Deste modo, tanto se atende a demanda de subsistência, quanto se alcança um excedente a ser comercializado. Posto em prática este modelo, ao trabalhador rural caberia, em ano de bom trabalho e boa chuva, rendimento na ordem de R$ 2.000,00-R$ 3.000,00 por safra (em torno de ano e meio, ara dois anos de trabalho). Apesar do cadastramento levado a cabo pelo INCRA na Comunidade não ter ainda chegado ao seu fim (faltando nesta data apenas 30% de casas por serem visitadas), é de se notar que a noção de “renda mensal”, item do formulário de cadastramento, pouco sentido faz. Exceto aqueles que atualmente recebem aposentos, ou participam de programas do governo federal como bolsa família e fome zero, nenhum dos entrevistados soube responder a quesito. Estimamos, com enfatizado ainda não se tendo fechado os cálculos do cadastramento por unidade doméstica, que pelo menos 15% das famílias da Comunidade vivem em situação de alta pobreza, possuindo área ínfima para

149

Apresentadas ao final deste trabalho.

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plantar (por vezes vivendo de arrendamento), e não participando de nenhum dos programas de governo. A área total utilizada em um roçado é chamada de “quadro”, bem como a medida, para o caso da macaxeira, p.e., de uso para plantio é de “mil covas”, ou um hectare, o que significa que se plantará mil pés de roça, com a distância de um metro entre cada um. Praticamente todas as casas tem pequenos roçados próximos. As famílias tem roçados grandes (de no máximo 5 hectares), estão plantado na área ocupada em 1997, área em que membros de todas as 5 sub-áreas da Macambira têm seus roçados. O calendário agrícola básico se inicia no mês de junho, com a “derrubada”: Atividade “derrubada” “ajeitando o terreno” (“riscando a terra”) 1as chuvas Plantio (roça) Plantio (feijão de moita) Plantio (feijão grande) Plantio (milho)

Período Junho Outubro novembro Dezembro Dezembro-janeiro Abril Maio Maio

Na divisão por gênero dos trabalhos do roçado, homens trabalham na risca e na limpa do terreno, enquanto mulheres semeiam e colhem, tarefa que por vezes pode ser feita por homens. Os produtos são sobretudo: mandioca, feijão, fava, milho. Dentro dos roçados, e nos terreiros das casas, encontramos também cajueiros (também ao longo de alguns roçados) e pés de pinha, e em menor quantidade, umbuzeiros. A produção de um núcleo familiar, de “gente trabalhadora”, em ano de “chuva criadeira”, 150 chega a 10 sacos (de 60 kg.) de fava, 20 sacos (60 kg.) de milho, 15 sacos (60 kg.) de feijão, e até 12.000 quilos de mandioca, que equivalem, se processados, a 6.000 quilos de farinha. Além disso, em meio aos roçados, plantam também frutais: um pé de pinha pode gerar até 300 pinhas, e um pé de caju, um saco de castanha por safra. Em um ano, ano e meio, de bom trabalho e chuva, a 150

Expressão recorrente para ano em que chove, não só em abundância, mas no período certo. Este ano, p.e., devido ao atraso das chuvas de outubro, os cajueiros deram muito pouco.

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renda anual adquirida por um produtor pode chegar – de acordo ainda com as oscilações dos mercados - a cerca de R$ 2000,00. A maior parte da produção é vendida na feira de sábado de Lagoa Nova. A água, problema central, histórico, era buscada em Buraco de Lagoa, fonte utilizada por todos da Macambira e de seu entorno, o que perdurou até o ano de 2005. Desde 2006, a Comunidade é assistida por 4 poços de abastecimento, parte da grande adutora construída pelo governo do Estado desde o vale do Açu, e que atravessa a Serra de Santana. Até os anos 1930, ainda tinham problemas de maniva, de falta de sementes para plantio em algumas safras, motivo pelo qual, junto às constantes secas, tinham, apesar de possuírem terra, de trabalhar por arrendamento (de meia ou terça) em terras, muitas vezes, de descendentes dos antigos senhores de seus antepassados. Segundo Pedro de Chico 151, a situação só se regularizaria e a maniva já seria franca (farta), “quando também no sertão já se plantava muita roça, a partir da década de 1940”.

Poço de Buraco de Lagoa. Deste o último ano, vêm sendo bem menos utilizado. 151

Macambira III, 16.04.07.

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Além do uso da terra para plantio, e da pequena criação de galinhas e porcos, nas matas de capoeira ainda existente, bem como nas grotas que fazem fronteira da chã com o sertão, áreas de passagem, é possível caçar pequenos pássaros, roedores, tatus, tejos e, mais raro, veados. Roçados e grotas, para além da casa, são também lugares de transmissão de conhecimento (nos termos de Barth, 1975, 1987), continuidade dos saberes e moralidade aprendidos na casa, mas agora desdobrados em um conjunto de habilidades materiais e simbólicas localmente chamadas pelos mais velhos de “experiência”, “coisa que vêm dos antigos”. Neste ponto, saliente-se, ainda que não tenha sido possível especializar mais os dados reunidos, a presença de um amplo conhecimento das técnicas agrícolas (preparo do solo, escolha das sementes, derrubada, plantio, limpeza, colheita), bem como de conhecimento ecológico em termos gerais (classificações de botânica e de fauna, bem como de reconhecimento meteorológico – tipos de chuvas e provável sazonalidade, e territorial), e, por fim, de ordem mágico-religiosa, em especial entre os mais velhos, abarcando orações (p.e. penitências para chegada de chuva), entidades (p.e. florzinha),152 e uso de sonhos como instrumento premonitório. Neste último ponto, como veremos mais adiante, em especial se houver presença indígena na constituição da família. Em suma, esse conhecimento transmitido e acumulado ao longo de gerações (“herança material”, nos termos de Lévi, 2000), expressa, para além do recorrido histórico apresentado anteriormente, intimidade material e simbólica com o território da grande Macambira e dos recursos de que dispõe. Afinal, ao fim, também nos roçados e grotas estende-se a transmissão de valores morais e de uso sustentável de dos recursos naturais. Quando morre um pai ou uma mãe, se estes têm terras, está é dividida em comunhão de bens por seus herdeiros. Como propõe Thomas & Znaniecki (1974: 89), mais do que herdar a propriedade de uma terra, esta propriedade é “comunal”, já que será dever do herdeiro cuidar bem de seu patrimônio de forma que seus descendentes também façam uso produtivo das mesmas áreas.

152

Conhecida no sertão também com “comadre florzinha”.

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Pedro de Chico explica que embaixo de certos tocos no roçado, criam-se cupinzeiros. Quando se aproxima o tempo das chuvas, estes ganham asas e ficam mais gordos (Macambira III, 07.07).

FINS DE SEMANA, FORRÓS, ANIVERSÁRIOS, CASAMENTOS, MISSAS FESTAS DE PADROEIRO

E

Do ponto de vista da sociabilidade, ressaltamos a centralidade da casa em termos relacionais cotidianos, bem como os roçados e grotas em termos econômicos, simbólico e ético-morais. Neste ponto, damos conta de outros momentos de socialização entre indivíduos e famílias, momento que vão desde a acentuação das dinâmicas semanais no fim de semana, momento de “fazer visita” a alguém, até momentos de maior integração como casamentos, forrós, missas e festas de padroeiro. Como colocado anteriormente, considerando-se a pouca mobilidade, ou ao menos a restrição material e simbólica à mesma, que marca socio-economicamente a Comunidade, nos fins de semana, intensificam-se as visitas à vizinhos e parentes. Em geral, sábado pela manhã, aqueles que tem algum excedente para vender, ou que precisam comprar algo, dirigem-se para a feira de Lagoa Nova, entreposto comercial que o sábado inter-relaciona os moradores da pequena cidade e as comunidades agrícolas do entorno da Serra. De tarde, adentrando pela noite, intensifica-se o trânsito de carros e motos (em especial motos) pelas “linhas” da Comunidade, que em geral é bem pouco, praticamente ser resumindo a caminhão que leva e trás as crianças da escola, e pequenas caminhonetes de vendedores Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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ambulantes. Situação comum é encontrar, do lado de fora da casa, homens e mulheres ouvindo música alto e conversando animadamente, muitas vezes consumindo aguardente e comendo algo, o que pode entrar noite à dentro. De tarde, parte dos homens reúne-se em torno do campo de futebol, entre Buraco de Lagoa e Macambira III, para jogar, na maior parte das vezes uniformizados. Sábado é dia também privilegiado para festas de aniversário (de todas as idades) e forrós. As mais comuns são as de adultos. Outro evento comum, praticamente mensal, é o forró. Anunciado na rádio AM de Lagoa Nova (assim como os casamentos e outras festas e encontros), tanto tem função econômica, quanto de sociabilidade. Do ponto de vista de quem o organiza, é maneira de investir algum recurso disponível de forma a faze-lo render. Constrói-se um pequeno cercado, dentro do qual, em geral da caçamba de um pequeno caminhão, um dos muitos grupos de forró contratáveis na região toca em volume altíssimo, enquanto vende-se bebida e ingressos são vendidos na entrada, com diferenciação de preços por gênero, os homens sempre pagando, as mulheres obtendo descontos ou mesmo entrando de graça. Momentos como esse, em se considerando como se tem salientado a pouca mobilidade e os poucos momentos de socialização em sentido mais amplo, tornam-se ... para o início de namoros,que na maioria das vezes se tornam casamentos. Os casamentos são sem dúvida o maior investimento material e simbólico da família, muita vezes de toda uma parentela, frente à Comunidade e seu entorno. Nos casos presenciados, ao longo dos anos 2006-2007, o maior investimento coube à família da noiva. Dependendo da família, pode ser celebrado com muita fartura. É momento em que a carne de boi, p.e., nem sempre presente na alimentação cotidiana, mais regada à carne de frango e de porco, é oferecida com fartura. O último casamento realizado na Comunidade, no mês de junho, em Buraco de Lagoa, que requereu economia familiar durante alguns meses, ficou falado pela quantidade de carne que foi servida, em especial a de bode que de tanta, e de não ser muito apreciada pela Comunidade, foi levada por convidados para alimentar seus cachorros. É nos casamentos também, uma vez que serve como catalizador para o enconro de amigos e parentes que muitas vezes ficam longo períodos sem se verem, que se compõe compadrios e que se acertam novos matrimônios, ou mesmo, mais um momento em que pode se iniciar um namoro ou noivado.

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Por fim, na religiosidade encontramos mais um momento exemplar de socialização, em como de pertencimento. A grande maioria da Comunidade é de católicos, boa parte de praticantes. Poucos são os casos membros de igrejas neo-pentecostais, ao havendo nenhuma igreja na área. Do mesmo modo, com muita discrição, resumindo-se a práticas a individuais, temos também a presença da jurema. De início, tema velado, tocado com muita descrição e crítica, foi se tornando mais aberto, ao ponto de se elencar uma lista de pouco mais de 15 pessoas praticantes ou conhecedoras da prática mágico-religiosa. No ojo dessa abertura, alguns dos entrevistados contaram histórias, do “tempo dos antepassados”, de avôs e avós que invultavam, tornando-se invisíveis, muita rápidos, ou mesmo transfigurando-se em animais. Lembre-se, como colocado anteriormente, que os membros da comunidade negra eram também conhecidos pelo entorno “branco” como sendo “feiticeiros”. Além disso, muito comum, encontramos também, tanto em senhoras idosas, quanto em senhoras de meia idade, a prática da cura, da reza como instrumento terapêutica contra um conjunto de males fisiológicos, psicológicos e espirituais. Dependendo da rezadeira, este conhecimento pode ficar bem densa e específico, tanto em termos de classificação de perturbações, bem como de terapêuticas específicas para cada quadro diagnóstico. As grandes missas – já que podem haver cultos organizados por pequenos grupos (como no caso das novenas) – ocorrem sazonalmente, de acordo com a disponibilidade do pároco de Lagoa Nova, do tempo que este leva para dar a volta por todas as comunidades rurais do município de Lagoa. Em geral, acontece a cada mês e meio, dois meses. A última foi celebrada no final do mês de outubro, organizada e recebida por Dona Fátima – professora e liderança católica local – no terreiro de sua casa. Como na maioria das vezes, o pároco aproveitou para realizar batizados e casamentos mais rápidos. Por fim, a celebração de padroeiros (com p.e.São Francisco, Sant’Ana e Santa Luzia) pode assumir a forma desde pequenas novenas, até procissões e grandes missas na Igreja de Lagoa Nova, momento dentre os raros em que os membros da Comunidade interagem, em grande escala, com a população de Lagoa Nova.

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Pedro de Chico de Dona Nenê apresentam o conjunto de santos emoldurados e pendurados na parede, junto a seu retrato de casamento. Uma de suas filhas, reza criança da comunidade (Macambira III).

HISTÓRIAS DE VIDA, FAMÍLIA E TERRITORIALIZAÇÃO Por fim, apresentamos dados bem elementares sobre as trajetórias de formação de cada família, personificadas através das trajetórias de vida de alguns de seus membros, no caso em particular daqueles que como vimos enfatizando são reconhecidos localmente como “conhecedores” da historiografia local, historiografia de perfil oral, transmitida fragmentariamente entre gerações, desde a segunda metade do século XIX. Ainda que provisoriamente, objetivamos tocar o sentido morfológico (material e simbólico) da expressão “é tudo uma família só”, que se articula e se explica:

(1) tanto em termos de consangüinidade, como veremos, com descendência direta de alguns dos troncos de três dos filhos de Lázaro de Araújo e Maria Joaquina: “Ana de Lázaro” (Anna Bernarda de Jesus), “Alexandre Lázaro” (Alexandre José de Araújo) e, o Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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que mais comparece na memória local, por vezes confundido com seu pai, “Francisco Lázaro”;

(2) quanto em termos de afinidade, em especial nas relações de casamento das que podemos neste ponto confirmar como sendo as duas principais parentelas da Comunidade, os Severiano (Araújo) e os Daniel ( Pereira), com as famílias Ferreira, Ludogério, Rodrigues e Felipe, ao longo do século XX.

BURACO DE LAGOA, FAMÍLIAS SEVERIANO, AMARO, FELIPE E ARAÚJO A família conhecida como os Severiano, tem como seu patriarca Manoel José de Araújo, mais conhecido como Manoel de Julieta, por conta de sua mãe se chamar Julieta Maria da Conceição. Como já apontado anteriormente, os Severiano estão dentre os troncos fundadores da grande Macambira, uma vez que descendem do casamento de uma das filhas de Lázaro de Araújo, que aparece nesta versão como “Ana de Lázaro”, que se casa com José do Ó, “negro” afamado no entorno da Serra de Santana e de Currais Novos, em especial por contenda com o coronel João Antônio, de Santana dos Matos. Este fato é tão conhecido, que aparece compilado por Othon Filho (1970:130), que apresenta a desavença desse “negro-homem” com o coronel, e de como após ser humilhado ao reclamar certa dívida de “comboio de farinha” ao magistrado, termina louco. O primeiro nome “Severiano” passará a ocupar o lugar de sobrenome, sobrepondo-se ao de Araújo, a partir do momento em que o atual patriarca de Buraco de Lagoa nomeia alguns de seus filhos com o segundo nome “Severiano”, homenagem a seu avô paterno Severiano Pereira de Araújo. Ressalte-se ainda que, ao final, exceto os Felipe, todos as famílias consultadas são Araújo, de forma que eleger o nome Severiano, ainda que em homenagem à seu avô, é também marcar diferença dentre os Araújo, como com seu primo Jordão Araújo, com quem se desentendeu, faz poucos anos, em juízo, por conta de limites entre as terras de ambos. Desde a geração de José do Ó, a família vem expandindo a ocupação em parte da área de Buraco de Lagoa. Atualmente, após a passagem de parte de suas terras, com o falecimento de sua esposa Josefa de Medeiros, como herança para seus filhos, a situação fundiária familiar é delicada, uma vez que para cada núcleo familiar que se reuniria no Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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entorno de sua casa, restaram apenas dois hectares por unidade para erigir casa e terreiro. Por conseguinte, alguns de seus filhos, apesar da não adesão do patriarca ao processo iniciado pela Associação Quilombola, fazem uso das áreas ocupadas em 1997, bem como outros conseguem ainda arrendar pequenas parcelas em terra alheia. É com Manoel de Julieta,153 (seguramente dentre os especialistas da memória local o que com mais detalhes guardou as histórias de fundação e ocupação da Serra de Santana transmitidas por seus antepassados), em suas narrativas, que encontramos também o entrecruzar de todos os troncos da grande Macambira através da complexa e extensa rede de intra-casamentos, todos alinhavados pela figura de Lázaro Pereira de Araújo e seus filhos:154

“Vilmário: Sabe quantos filhos esse avô do senhor teve [Lázaro de Araújo]? Manoel de Julieta: Bastante. Homem, tem um bocado. É muita gente. Veja você que a minha avó chamava Aninha, filha de Lázaro. Seu bisavô chamava.. Francisco Lázaro de Araújo. Tinha... o velho Manoel Passarinho, tinha o irmão de minha mãe, que se chamava Luciano. Tinha o pai desse povo do Cabeça. O pai dos Ferreira. Tinha.... a vó de Mané Birro... Você conhece Mané Birro? Vilmário: D’acolá? Manoel de Julieta: Sim. Vilmário: ih, é? Manoel de Julieta: Mas por que não? Tinha o pai de Ana Peba, que era casada com o compadre Ciro Machado. Que chamam ele Peba por quê?... Aí criou-se a família Peba. Hoje em dia é um familião também. Vilmário: E o pessoal aqui de Mané José? Manoel de Julieta: Esse povo é Felipe. Vilmário: Os Felipe faz parte dessa família também? Manoel de Julieta: Faz parte também dessa família que vem de Lázaro. Vilmário: E esses dos Santos, não? Manoel de Julieta: Também a mesma coisa. Aqui nesse meio de mundo pra onde você corre, é tudo uma coisa só. Tudo de Lázaro, tudo de Lázaro, que foi o 153 154

Buraco de Lagoa, 28.01.06. Buraco de Lagoa, 28.01.06.

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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA primeiro que chegou aqui. O primeiro que criou família, né. Aí casaram-se os homens, os homens casaram com outra família. As mulheres casaram com outro povo, e vão criando família, vão criando família, família casando com outra família e lá se vai, viu. Pois é. A família de Lázaro, era só Lázaro. Hoje em dia, a família de Lázaro tá misturado com Pinheiro, Rodrigues. Com Felipe, com Firmino. É um familião. Os Firmino vem do Fernando Passarinho. Fernando Passarinho era irmão da minha avô”.

Manoel José de Araújo, Manoel de Julieta (Buraco de Lagoa, 19.04.06)

Através de Manoel de Julieta, ficamos também sabendo que a família conhecida como os Amaro, também Araújo, descende de um outro dos filhos de Lázaro de Araújo, seu filho mais velho, que a memória oral local guardou como “Francisco Lázaro”. “Esse velho Amaro”, conta o patriarca, “o pai dos Amaro, era filho de Francisco Lázaro”. Não é por acaso então - uma vez que Francisco de Paula Araújo foi o inventariante de Lázaro de Araújo, tendo guardado suas escrituras de terra (os tais “documentos do tempo de Dom Pedro”) -, que na atualidade estas estão sob a guarda de Ana Amaro, esposa do falecido Luiz Amaro de Araújo. De fato, estas escrituras estavam sob a guarda de Tuca Amaro (Maria Amaro de Araújo), filha do “velho” Luiz e de Ana Amaro (Ana Ferreira dos Santos, dos Ferreira). Por conta disso, cabe a Tuca arrecadar o pagamento anual do IPTR da área, que consta como sendo de 120 hectares e abarca parte de Buraco de Lagoa (à exceção da

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parte que cabe aos Severiano), e Macambira II e III. Já segundo Joaquim Daniel Pereira 155, “o documento de Ana Amaro pega Macambira II, III e Cabeça dos Ferreira, só que lá eles se preocuparam em fazer documento, se preocuparam em pagar o imposto e aqui continuou com tio Amaro [Luiz Amaro]”.156

Tuca Amaro (Maria Amaro Araújo) em sua casa, e com seu boi alemão, com que risca roçado e usa para transporte pesado (Buraco de Lagoa, 19.04.07).

Primo de Manoel de Julieta, Jordão Apolinário de Araújo, descende de outro filho de Lázaro de Araújo. Desta vez, é Alexandre “Lázaro” de Araújo. Joaquim Daniel, ao se referir a antigos moradores na região, se refere aos “Alexandres” 157 como habitando o entorno onde hoje está a família de Jordão. Em torno de si de formou também pequena parentela, de ocupação significativa em Buraco de Lagoa. De fato, até aqui, podemos dizer que os Severiano ocupam a área sul de Buraco de Lagoa, os Amaro a área norte contígua à Estrada do Comércio, seguidos em seguida pela parentela de Jordão Apolinário. Por fim, praticamente fechando a ocupação de Buraco de Lagoa, do trecho da sub-área que faz parte do território que a Comunidade quer ver regularizado, temos a família dos Felipe. Apesar da insistência de Manoel de Julieta em que os Felipe também descendiam de Lázaro de Araújo, caso excepcional, a memória genealógica de Manoel José Felipe da Silva era muito curta, não sendo possível reconstituir por sua descendência o elo que liga os Felipe com a família extensa dos “Lázaros”, mas por aliança (afinidade), dada a reconhecida antiguidade de sua ocupação na Serra, e na Macambira em especial. De todo 155

Macambira III, 16.04.07. Severo Ferreira (Cabeça dos Ferreira, 09.12.06) também confirma esta informação quando, ao recuperar a história da ocupação da área enfatiza: “Essa aqui é a data da Macambira, diz que é de 3 léguas”. 157 Buraco de Lagoa, 16.04.07. 156

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modo, sabemos que a família dos Felipe habitava originalmente a área chamada de “sítio velho”, que no inventário de Lazáro de Araújo (1872) aparece como uma de suas propriedades partilhadas em herança por alguns de seus filhos. Na década de 1950, os Felipe seriam expulsos do sítio por membros da família Pinheiro, segundo as narativas compiladas, a mando do coronel José Bezerra. Para além de todas essas lacunas, também o velho patriarca dos Felipe nos apresenta a versão corroborada em todos os troncos e áreas da Comunidade: “Aqui, tudo é de Lázaro, uma família só”.158

Jordão Apolinário de Araújo. Reunião em Macambira III, 06.07.

Manoel José Felipe, Buraco de Lagoa, 18.04.07.

158

Buraco de Lagoa, 18.04.07.

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Gráfico genealógico: Manoel José de Araújo (apelido: Manoel de Julieta).

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Gráfico genealógico: Maria Amaro Araújo (apelido: Tuca Amaro)

Gráfico genealógico: Jordão Apolinário de Araújo.

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Gráfico genealógico de Manoel José Felipe (apelido: Manoel Felipe)

MACAMBIRA II E III, FAMÍLIAS DANIEL E RODRIGUES De acordo com as narrativas de Manoel de Julieta,159 o local historicamente conhecido como “Macambira”, a “verdadeira”, encontrava-se na “linha” em torno da qual hoje encontram-se a maioria dos núcleos familiares dos Daniel, modo como atualmente é conhecida a extensa parentela dos Pereira. Estes também descendem de “Francisco Lázaro”, como sabemos, filho mais velhos de Lázaro de Araújo. No caso dos irmãos Joaquim, Severino, Manoel e Quirino, todos entrevistados, filhos de João Daniel e Maria Joana da Conceição, o fundo genealógico que alcançam é o da geração dos filhos de Lázaro e Maria Joaquina,e não desse primeiro casal. Segundo Severino e Manoel Daniel, 160 durante uma das muitas secas mais graves ocorridas na Serra, seus pais resolvem tentar a vida por alguns anos para os lados de Santana do Matos. “Mamãe Joana”,contam, era da “raça dos Ferreira”, do Cabeça dos 159 160

Buraco de Lagoa, 19.04.07. Manoel Daniel Pereira e Severino Daniel Pereira. Macambira III, 28.10.06.

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Ferreira, informação confirmada por Quirino Daniel. 161 Repetindo a máxima encontrada em toda a Macambira, enfatizam sobre a relação entre a área da Macambira e a Cabeça dos Ferreira: “Daqui pro Cabeça, é uma misturada só”.162 Quando voltaram do período no sertão, os Daniel ocuparam inicialmente a área onde hoje está Macambira II. Neste ponto, reencontramos o pé de pinha centenário mencionado na parte I deste trabalho. Enfatiza Manoel Daniel: 163 “Tem o pé de pinha ali, papai comprou a casa que tinha ali de finado Antonio Roberto quando nós chegamos. Esse pé de pinha ainda tá vivo, acho que ele têm mais de cem anos!”

Com o crescimento dos treze irmãos e a constituição de seus respectivos núcleos familiares, os Pereira foram progressivamente ocupando áreas para oeste, na “linha” onde hoje se encontram. Não há consenso entre os irmãos Daniel a respeito de qual dentre os muitos antepassados com o nome Daniel teria sido aquele que por conta da notoriedade que alcançara, passara a nomear toda a família (com ocorrido com a parentela de Manoel de Julieta). A área que passaria a ser conhecida como Macambira II seria progressivamente ocupada pelos Firmino e Rodrigues, estes últimos em especial após a venda de parte de suas terras na década de 1940 (1943) à Elíseo Galvão. Nos termos de Joaquim Daniel, 164 os Firmino 165 eram conhecidos por serem “bem animados”: “às vezes havia revolução por lá!”. Ressalte-se que será na geração dos irmãos Daniel que se intensificará o casamento entre primos, dado o crescimento populacional das famílias, bem como o estreitamente do campo de relações possíveis diante da segregação materializada na expressão, que também deve ter se difundido a partir desta geração, de “negros da Macambira”. Uma outra rama dos Daniel é representada pela família de Pedro de Chico, Pedro Daniel Pereira, primo de Quirino, Severino, Manoel e Joaquim. A trajetória de Pedro é bem parecida com as dos demais parentes próximos, uma vez que dadas as grandes secas dos anos 1940, sua família migra para o sertão procurando terra para viver de arrendamento por 161

Macambira III, 30.04.07. Macambira III, 28.10.06. 163 Macambira III, 28.10.06. 164 Macambira III, 16.04.07. 165 Que segundo Manoel de Julieta “são os mesmo Passarinho” (Buraco de Lagoa, 28.10.06) 162

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algum tempo. Também descende de Francisco Lázaro de Araújo. Como a maioria dos primos, também se casou com uma prima, Maria das Neves Felipe.

Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira), trabalhando em seu roçado (Cabeça da Macambira, 07.07)

Joaquim Daniel Pereira apresenta o pé de pinha ao redor do qual seu núcleo familiar de criação residiu na volta para Macambira, passadas as secas da década de 1940.

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Gráfico genealógico: Joaquim, Severino, Quirino e Manoel Daniel Pereira.

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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA

Gráfico genealógico: Pedro Daniel Pereira (apelido: Pedro de Chico)

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CABEÇA DOS FERREIRA, FAMÍLIA FERREIRA Como vimos, “mamãe Joana” casada com um dos finados patriarcas dos Daniel, pai dos irmãos Quirino, Joaquim, Manoel e Severino, descende da família Ferreira. Segundo Severo Ferreira,166 da parte de sua parentela, quem primeiro chega em terras da Macambira, na virada dos séculos XIX-XX, é José Ferreira dos Santos, seu avô, quem “tomava conta daqui”. Revela que no inicio, a área era conhecida como “Cabeça da Macambira”, com o crescimento da família passando a ser conhecida pelo sobrenome da parentela nela habitante. Mais uma vez, comum em sua geração e nas duas seguintes, casa-se com uma prima, “prima legítima”, que tinha parte com as “famílias brancas” do Curralinho, com parte dos Assunção. Uma semana após gravação de entrevista com o patriarca dos Ferreira, este falece, em dezembro de 2006.

Vilmário Pereira e Dona Maria Miranda, viúva de Severo Ferreira, assistindo a filmagem realizada na semana anterior ao seu falecimento (Cabeça dos Ferreira, 03.07)

Outro membro da família Ferreira consultado, primo de Severo, também apontado como “conhecedor das histórias”, mas também exímio conhecedor da ecologia da Serra, em especial das grotas, foi Salvino Ferreira. Neste ponto, como já colocado anteriormente, o elemento étnico presente em Macambira ganha contornos de indianidade, dada a presença “cabocla”, indígena, na descendência de Salvino. Como enfatiza o ancião: “rapaz, meu pai 166

Cabeça dos Ferreira, 09.12.07.

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dizia que minha avô era tapuia, índia braba”.167 Por este motivo, inclusive, os membros da Comunidade explicam seu profundo conhecimento das matas (em especial das grotas), bem como atribuem à sua rama da família o conhecimento específico da caça e tudo que esta implica materialmente e simbolicamente. Neste sentido, é conhecido como mateiro experiente, “capaz de achar rasto em pedra”. Como explica: “Meu pai era mateiro. Trabalho dele era muito pouco. O Negócio dele era caçar. Que as coisas eram difíceis naquele tempo. Chover, chovia muito pouco. Ele cuidou da família com caça do mato.” Em termos residenciais, sempre viveu junto com sua família, por conta de suas habilidade, perto das grotas, onde ao final se criou. O relato de sua infância está dentre os em que se explicita maior dificuldade e pobreza, para além de todo o relatado sobre falta de água e perspectiva na Serra ao longo do século XX: “meu filho, nós não tinha roupa. Quando vinha alguém, nós se escondia no mato. Só tinha uma roupa que usava quem ia pra cidade”. Seu núcleo familiar soma-se às famílias que ocuparam em 1997 a Cabeça da Macambira, utilizando com alguns de seus filhos cerca de dez hectares.

Salvino Ferreira. À esquerda, Quirino Daniel Pereira. Durante reunião em Macambira III, 07.07.

167

Grotas do Açu, 17.04.07.

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Gráfico genealógico: Severo Ferreira.

Gráfico genealógico: Salvino Ferreira.

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CABEÇA DO LUDOGÉRIO, FAMÍLIAS LUDOGÉRIO E HERCULANO Por fim, sobre a área de ocupação mais recente, o Cabeça do Ludogério, pouco se conseguiu averiguar sobre a história de ocupação local uma vez que seu patriarca, Herculano, de fato Pedro Francisco dos Santos, se encontra bem acamado, não havendo outro membro da família capaz de compilar as narrativas de origem familiar. Em conversas dentre outros troncos, ficamos sabendo que os Ludogério (Luiz Ludogério) chegam na pequena área hoje chamada de Cabeça dos Ludogério, no início da década de 1950, família negra vinda do Trangola, região no sopé da Serra de Santana, sertão do Seridó, onde, lembre-se, Lázaro de Araújo teve propriedades. Compram aos herdeiros de Paulo Genuíno 168 as terras herdadas de seu pai. Por esta mesma época, chega também na área, vindo do Sítio São Francisco (contíguo à Macambira), Herculano, dos Santos, família negra também antiga na região. Segundo a versão compilada, os casamentos realizados na área se dão todos entre gente de Ludogério com gente de Herculano. Apesar de não termos conseguido mapear em profundidade a genealogia da área, segundo Quirino Daniel Pereira, 169 a parte de Herculano, dos Santos, deve fazer parte “dessa mesma família”, uma vez que, quando menino: “a gente pedia a benção deles, né, eles deviam de ser tios da gente”. Independente desse fato, boa parte dos membros da família Herculano também fazem uso de terras da área ocupada em 1997 (Cabeça da Macambira), motivo pelo qual, além da afinidade entre famílias, fazem parta de Associação Quilombola local.

168 169

Que “chegara nos idos de 1880 na chã da Serra” (Severo Ferreira, Cabeça dos Ferreira, 09.12.06). Macambira III, 30.04.07.

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ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO A década de 1980 pode ser considerada como a mais dramática para a Comunidade, uma vez que além de não ter mais áreas suficientes para plantar no que sobrara de seu antigo território, desfigurado desde a década de 1940, seus membros também já não conseguiam áreas para trabalhar por arrendamento. Além disso, nessa mesma década, com o desmatamento das áreas próximas às grotas do Açu, a caça tornou-se escassa. O ano de 1987 marca o ápice dessa década de pobreza e insuficiente apoio estatal, quando em meados do ano, sem ter mais o que comer, “nem roça se tinha”, membros da Comunidade invadem a feira de sábado de Lagoa Nova, roubando o que podem de comida. Segundo Vilmário Pereira, “a polícia não fez nada, só com quem roubou outra coisa sem ser comida”. Além disso, salienta, “não houve represaria depois. Em geral, quando acontece algum problema mais grave, a polícia entre na Comunidade e se dirige à casa de algum procurado ou por algum chamado”. De fato, podemos dizer que o final da década de 1980 marca o início das primeiras mobilizações políticas empreendidas pela Comunidade, em geral em torno da família Daniel, personificado nas figuras de Vilmário e Pedro de Chico e suas redes de apoio e suporte. Dez anos depois, já tendo o sindicalismo rural se tornado um agente político e de politização na Serra, membros da Comunidade resolvem ocupar terras improdutivas contíguas às áreas Macambira II e III, no móvel denominado de Cabeça da Macambira, cujo dono da época era Ubirajara Galvão, contando com apoio da entidade. Além disso, lembra Pedro de Chico, os noticiários de televisão traziam notícias das ações de movimentos sociais como o MST (Movimento dos Sem-Terra), que os inspiravam. Do ponto de vista da Comunidade, tal ação se legitimava com base em dois pontos: (1) primeiro, a necessidade urgente de terra para plantio; (2) segundo, ao recuperarem a história do território da Macambira, em especial o período das décadas de 1940-1950, reportam-se às ações de dois “coronéis” com quem detinham relações: Elísio Galvão, de Santana do Matos, e José Bezerra, de Currais Novos. As lembranças reunidas com relação a José Bezerra, apesar de pouco falado, como vimos, já foram bem expressas por Manoel Felipe, no que tange à violência física de suas ações. Segundo os relatos compilados para o primeiro desses “coronéis”, Elíseo Galvão Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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(figura histórica na região, que atualmente dá nome à rodovia que liga Curais Novos à Serra de Santana), na década de 1940, entre 1942-43, segundo a memória de Quirino Pereira,170 este compra algumas parcelas de terra de alguns dos herdeiros dos herdeiros de Lázaro de Araújo, no entorno da área conhecida localmente como “Umbuzeiro dos Rodrigues”, à sudoeste da grande Macambira. Dados do cartórios de Santana do Matos, dão conta de que essa área pertencera à Francisco Rodrigues, patriarca dos Rodrigues (INCRA, 2001). A partir daí, compraria outras parcelas. Quando iniciou o cercamento das terras recémcompradas, segundo a Comunidade, cercou áreas que de fato não havia comprado, áreas que seriam contestadas, mas que seriam cercadas com a promessa de retirada de cercas, assim que a Comunidade precisasse das áreas. Dentre as áreas que não conseguiu cercar, dada a insistência com que a tal se negou, motivo pelo qual ficaria afamado na região, está a do “finado” Antonio Velho. Corroborando a antiguidade da ocupação de famílias antigas (troncos velhos) na área ocupada, membros da Comunidade iam anotando as taperas encontradas, ao passo que exercitavam a busca, dentre os repertórios históricos conhecidos por cada tronco, dos antigos moradores de cada lugar. De fato, se comparamos o modelo de dominação implementado por ambos proprietários, Elísio Galvão faziam mais uso de relações clientelistas, algumas baseadas no compadrio, bem como no fato de contratar trabalhadores da Serra para sua Fazenda Bonfim, em Santana do Matos, para exercer sua influência. Já as ações apresentadas por José Bezerra, levam ao estremo a segmentação e diferenciação étnica e de classe, quando simplesmente manda expulsar a família Felipe de suas terras de direito. Ainda que tais eventos peçam recuperações bem mais meticulosas e com comparação de fontes do que nos é possível escrutinar neste trabalho, cabe no entanto ressaltar que os eventos aqui resumidamente relatados envolvendo ambos os grandes proprietários que entre as décadas de 1940-1950 puseram-se a cercar suas propriedades, aparecem com freqüência e em com muitos eixos de recorrência ao longo das versões de ocupação da grande Macambira compiladas dentre os especialistas da memória. Retomemos o ano de 1997. Os primeiros meses da ocupação da área Cabeça da Macambira foram tensos, com freqüentes expulsões por parte da polícia, seguida de posterior re-ocupação da Comunidade, bem como ameaças de morte a um dos líderes políticos locais, Vilmário Pereira, atual presidente da Associação Quilombola local. O 170

Macambira III, 30.04.07.

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sindicato rural de Lagoa Nova apoiava com suporte técnico as ações, em especial juridicamente. Passado esse período, não havendo mais o retorno de agentes do Estado ou do proprietário, a área vai sendo progressivamente ocupada (hoje está praticamente tomada). Através do sindicado rural de Lagoa Nova, a Comunidade solicita ao INCRA,em 2001, abertura de processo para desapropriação do imóvel Cabeça da Macambira, que desde 2006 tem como proprietário Ivanilson Araújo. Tal processo duraria praticamente 5 anos, ao final sendo sustado tendo em vista - apesar da Comunidade habitar a área com sucesso, apesar de todos os problemas, desde meados do século XIX - que “o aqüífero subterrâneo apresenta baixo potencial para exploração, tendo em vista as baixas vazões encontradas nas mediações”. 171 Nesta década também, viveriam as experiências do cooperativismo. Por conta da inexperiência da Comunidade nesse tipo de organização político-administrativa, bem como da falta de honestidade dos mediadores externos a tal processo organizativo e de investimento, a experiência seria um fracasso, boa parte ficando endividada junto a Banco do Brasil. Por fim, no ano de 2005, chegam na Serra de Santana, mais uma vez através do sindicato rural de Lagoa Nova, informações sobre novo caminho jurídico-administrativo possível a ser tentado pela Comunidade em suas reivindicações fundiárias, dado o perfil étnico distintivo que esta apresentava, notório localmente, de comunidade “negra”, com passado que a ligava à escravidão do Seridó do século XIX. Apesar de todo o historicamente sofrido por sua descendência “negra”, membros da Comunidade, em número crescente, passam a assumir publicamente sua condição descendentes de exescravos. Deste modo, em 2005, em 01 de maio, o mesmo grupo articulado que desde 1997 iniciara sua organização política, com a promoção da ocupação da Cabeça da Macambira, que vinha se organizando e conscientizando politicamente, funda a Associação dos Quilombolas da Macambira do Município de Lagoa Nova. Conforme já apresentado no início deste relatório, em posse da ata de fundação da Associação, a Comunidade pleiteia junto à Fundação Cultural Palmares sua certidão de “auto-reconhecimento” como comunidade remanescente de quilombo.

171

“Relatório agronômico de fiscalização no âmbito do Programa Nacional de Reforma Agrária do Imóvel: Macambira” (2002).

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O associativismo, enquanto forma de gestão política é uma novidade que tem desafiado a Comunidade. Deste modo, apesar da marcada autonomia, como vimos, entre núcleos familiares e parentelas, em especial no trabalho agrícola, progressivamente, os processos de decisão têm se tornado mais coletivos através de reuniões periódicas entre membros de famílias e sub-áreas e a atual presidência da Associação. Já ao final da elaboração deste relatório (outubro de 2007), representantes de algumas sub-áreas, junto com a presidência, aventaram a possibilidade de cada uma dessas sub-áreas, já que ao final representam praticamente uma parentela, organizar-se internamente, de forma a chegar nas grandes assembléias com posições já formuladas e refletidas. Deste modo, parece que assistimos aos processos de autonomia em curso desdobrando a organização associativa, ao mesmo tempo em que este serve à otimização dos usos dos novos modelos políticos e de gestão que o processo quilombola tem trazido para a Comunidade de Macambira.

Reunião da Associação Quilombola, casa de farinha em construção, Macambira III, 07.07.

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III. PARECER CONCLUSIVO E RECOMENDAÇÕES

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A Comunidade remanescente de quilombola de Macambira organiza-se em uma rede extensa de famílias nucleares e parentelas que há pelo menos cinco gerações ocupam parte da chã da Serra de Santana, de uma grota à outra, de um cipó preto ao outro. Suas famílias têm sua vida material e simbólica estreitamente relacionada aos trabalhos agrícolas e da pequena criação. Como buscamos demonstrar ao longo deste trabalho, a etnicidade encontrada em Macambira pode ser entendida dentro de 3 pilares básicos: (1) por um lado se organiza e se pensa dentro de uma lógica familiar, marcada nas últimas três gerações especialmente por intra-casamentos, tendo a Lázaro Pereira de Araújo, ex-escravo, como “fundador”, semente de todos os troncos velhos; (2) por outro, constantemente aciona e refigura sua memória social, através da qual tanto performa um protagonismo negado pelo historiografia geral do Seridó, quanto tem garantida sua origem, sua descendência de um homem livre, símbolo de autonomia e resistência; (3) e por fim, o próprio contexto colonial dos sertões escravagistas pastoris do Seridó, que em suas clivagens e assimetrias demanda do grupo estratégias materiais e simbólicas para se manter minimamente coeso e autônomo dando continuidade à sua reprodução sócio-cultural. Diante da história oral compilada (entendida agora como patrimônio), do conjunto de documentos encontrados, e da trajetória negra exemplar que a Comunidade de Macambira representa para o Seridó e para a complexificação da história do Brasil em termos gerais; diante das necessidades materiais e simbólicas para a continuidade sóciocultural do grupo, recomendamos:

(1) tanto a regularização do território atual ocupado pela Comunidade (abrangendo as áreas conhecidas como Macambira II e III, Cabeça dos Ferreira, Cabeça do Ludogério e parte de Buraco de Lagoa – com exceção da área dos Severiano);

(2) quanto a aquisição das áreas que a Comunidade aponta como tendo sido suas (perdidas por venda ou cercamento forçado) e das quais dependem para sua continuidade social e cultural, motivo pelo qual, inclusive, desde 1997, ocupam uma das áreas que agora pleiteiam: ao norte, abarcando áreas atualmente reconhecidas como sendo de propriedade de Ivanilson Araújo, o imóvel de nome “Cabeça da Macambira”, bem como sua extensão, a porção de mata de capoeira que faz divisa ao sul com a dita “Cabeça da Macambira”, e a Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./jun. 2011.

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leste com a área do Cabeça dos Ferreira, com a área de Manoel Pinheiro dos Santos, de Ubirajara Galvão. À leste, propõe-se a aquisição da área abarcando a propriedades de Letícia Maria Galvão, imóvel de nome “Fazenda Baixa Grande”. Ainda à leste, à área contígua ao imóvel “Cabeça da Macambira”, também de propriedade de Ivanilson Araújo, incluindo-se nessa a parte que circunscreve também as grotas do Açu. Segundo estimativas da Associação Quilombola, estas áreas devem chegar a um montante aproximado de 1.500 hectares, podendo atender, em termos de modelo ideal local, a pelo menos 150 famílias. Saliente-se ainda que os imóveis de seus vizinhos à leste (Antonio Velho e José Ciziano da Silva), por conta das boas relações com a comunidade, relações históricas, não estão sendo pleiteados, bem como outros possíveis imóveis contíguos ao território da grande Macambira. Diante do ritmo de crescimento progressivo da Comunidade nas últimas décadas, a necessidade de terras para cultivo é preeminente (motivo inclusive do aumento progressivo de processos migratórios para cidades como Mossoró e Natal, e mesmo para outros Estados). Isto proporcionaria não só a melhoria da qualidade de vida (material e simbólica) de cada família, mas com a implementação de processos cooperativos e associativos como os que têm sido levados a cabo no contexto das mobilizações quilombolas, poder-se-ia ainda alcançar excedente de produção para venda nas feiras das cidades do entorno. Além disso, incrementar a redução do abandono da área – em geral por homens - em busca de melhores condições, bem como o regresso daqueles que saíram e vivem subempregados em áreas urbanas.

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ANEXOS Anexo 1. Documentos encontrados com Ana Amaro (1843-1877) Anexo 2. Inventário n.110, 1872 (Lázaro Maria de Araújo) Anexo 3. Certidão de Auto-reconhecimento Anexo 4. Estatuto social da Associação dos Quilombolas de Macambira

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