(2011) Quando faltam palavras, quando as palavras são demais

June 13, 2017 | Autor: Lauro Baldini | Categoria: Análise do Discurso
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@abriel Leopoldillo dos S~ntos ;:Luiza K. Andrade Castello Branco

2011

Dados Internacionais de Cataloga~io na Publica~iio (CIP) Rodrigues, Eduardo Alves; Santos, Gabriel Leopoldino dos; Castello Branco, Luiza Katia Andrade (orgs.) Analise de discurso no Brasil: Pensando 0 impensado sempre. Vma homenagem a Eni Orlandi / Luiza Katia Andrade Castello Branco; Eduardo Alves Rodrigues; Gabriel Leopoldino dos Santos (orgs.) -- Campinas, Editora RG, 2011. Bibliografia. ISBN 978-85-61622-31-2 1. Linguistica - Teoria linguistica 2. Analise do discurso : comunica~ao : linguagem 3. Analise Semiintica 4. Texto comunic~ao escrita 5. Linguagem e Hist6ria 6. Vida urbanaAspectos sociais I. Titulo II. Autores III. Organizadores CDD -410 - 401.41 - 412 - 001.543 - 301.2 - 301.36 tndices para catalogo sistematico: 1. Lingillstica - Teoria lingiiistica 410 2. Analise do discurso : comunica~lio : Linguagem 401.41 3. Analise Semiintica 412 4. Texto - comunica¥ao escrita 001.543 5. Linguagem e Hist6ria 301.2 6. Vida urbana - Aspectos sociais 301.36

QUANDO FALTAM PALAVRAS, QUANDO AS PALAVRAS SAO DEMAIS ... LAURO JOSE SIQUEIRA BALDINI

Muita coisa importante falta nome G. Rosa, em Grande Sertao: Veredas Sim, niio preciso refletir, nem antes nem depois, que ela preste testemunho sobre minha velha historia e sobre 0 longo silencio que me deixou mudo, tanto que, agora, tudo silencio. E se um dia eu me calar, porque niio ha mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito. S. Beckett, em Malone Morre

e so abrir a boca para

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A tarefa de homenagear urn autor coloca problemas considemveis para a escrita. Entre a admira~iio servil e 0 jubilo laudat6rio ha urn esp~o dificil de trilhar, urn momento em que qualquer palavra pode ser demasiada, e em que todas as palavras parecem ser de menos. Em geral, a tarefa costuma desagradar tanto aquele que homenageia como aquele que e homenageado, e 0 mais importante de se dizer permanece como algo de irrealizado. Sempre resta a altemativa de permanecer em silencio, que difiro de permanecer no silencio, posta que este Ultimo procedimento implica 0 recuo frente ao dizer (mas niio aos sentidos, como se vera), enquanto 0 primeiro procura trabalhar 0 espa~o entre as palavras e aquilo que niio se diz. E nessa dire~iio que pretendo caminhar neste momento. Alem disso, no campo da pratica cientifica, e preciso levar em conta o que se homenageia em quem se homenageia. Para alem do espa~o plenamente valido do afeto, existe urn espa~o em que esta palavra toma outro sentido: 0 de como a presen~a de certo autor afeta 0 campo do saber, produzindo espa~os de cria~iio e de novas formas de pensamento. E tambem por ai que este texto se trilha. Por fim, resta considerar que, no caso presente, a homenagem nao e a palavra mais adequada. Que tenha sido urna autora, e niio urn autor, a abrir espa~o para se pensar 0 silencio, 0 continuo, 0 fluido e a incompletude nao me parece urna contingencia. 133

Publicado originalmente em 1992, e agraciado com 0 premio Jabuti de Ciencias Humanas em 1993, 0 livro As formas do silencio: no movimento dos sentidos coloca questoes centrais nao apenas para a Analise de Discurso, mas para as pr6prias ciencias da linguagem de maneira geral. Como pensar 0 silencio e manter seu estatuto, ou seja, como pensar o silencio evitando coloca-Io, todo, em palavras? Tarefa dificil, em que a trai9ao ao gesto te6rico inicial oscila no curto espa90 de um batimento entre pensar no silencio, pensar em silencio ... Como diz a autora, "toma-Io [0 silencio] como objeto de reflexao, e colocarmo-nos na rela9ao do dizivel com 0 indizivel, nos faz correr 0 risco mesmo de seus efeitos: o de nao saber caminhar entre 0 dizer e 0 nao-dizer"l. Esta obra, que agora, decorridos quase vinte anos de sua publica9ao, pode ser avaliada pelos efeitos que produziu no campo das ciencias humanas, seja na forma de teses, disserta90es, artigos, seja como organizadora de projetos de pesquisa originais, enfim, pelo imp acto que causou e ainda causa no campo das ciencias, ainda me parece prenhe de possibilidades nao completamente desenvolvidas. Se verdade, como dizia Michel Pecheux, que, no campo da semantica, a Linguistica (mesmo que nao 0 saiba) toca em questoes centrais para a Filosofia, esta obra de Eni Orlandi avan9a por esta vereda assumindo a radicalidade desse encontro entre questoes de significa9ao e questoes filos6ficas centrais. Sigamos as reflexoes da autora em sua abordagem inicial da questao do silencio em sua rela9ao com 0 sentido:

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Acredito que 0 mais importante e compreender que: I. Ha urn modo de estar no silencio que corresponde a urn modo de estar no sentido e, de certa maneira, as pr6prias palavras transpiram silencio. Ha silencio nas palavras; 2. 0 estudo do silenciamento (que ja nao e silencio, mas ''por em silencio") nos mostra que bA urn processo de p~ao de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensao do nao-dito absolutamente distinta daquela que se tern estudado sob a rubrica do "implicito".2 Ha aqui uma questao te6rico-metodol6gica central no tratamento do problema do silencio: a distin9ao entre 0 silencio enquanto tal, e 0 silencio enquanto silenciamento. Silencio nas palavras, silencio das palavras, silencio em palavras, esses diferentes modos de conceber 0 silencio sao cerzidos rigorosamente pela autora. Assim, de "resto" da linguagem, 0 silencio passa a ser pensado em suas diferentes dimensoes. Neste momento, 0 que nos interessa uma dimensao bastante peculiar explorada pela autora, dimensao esta que nos parece ainda passivel de muita explo~ao. Seguindo

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1 Orlandi, 1992, p. 11. 2Id.,p.12.

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os passos de Orlandi, pode-se dizer que "ha uma dimensao do silencio que remete ao carater de incompletude da linguagem: todo dizer uma rela~ao fundamental com 0 nao-dizer"3. E por esta rel~ao que a autora levada a pensar a "errancia dos sentidos", a ''vontade do urn" e 0 lugar do nonsense e do equivoco como 0 pr6prio cerne do ftmcionamento da linguagem. Jogo entre a indistinr;ao do silencio e 0 carater de corte da linguagem: "0 real da linguagem - 0 discreto, 0 urn - encontra sua contraparte no silencio"4. No entanto, em vez de pensar 0 silencio como subsmncia da linguagem, caminho que fatalmente nos leva ao fundamento filos6fico do inefavel e do mistico, a autora prossegue pela via mais ventilada da relar;ao entre as palavras e 0 silencio. Tanto nas palavras quanta no silencio ainda estamos no sentido, mas de modos (formas) diferentes, e nesse sentido que a teorizar;ao de Orlandi explora vias riquissimas para a compreensao do silencio como fundamento de todo dizer: "silencio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que 0 sentido sempre pode ser outro, ou ainda que aquilo que 0 mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do silencio nos levam a colocar que 0 silencio 'fundante"'5. Exploro aqui a ambiguidade da palavrafimdante, como aquilo que funda e como aquilo que da fundamento, sustentar;ao, apoiado nas reflexoes da autora que, justamente por esse modo de considerar 0 silencio, levada a repensar os pr6prios fundamentos da analise de discurso. Comentando 0 percurso desta disciplina, sobretudo pela teorizar;ao de Michel Pecheux (cujo ponto nodal reside na tentativa de compreender a relar;ao entre a materialidade da lingua e a materialidade da hist6ria), a autora nos conduz a urna reflexao sobre 0 silencio enquanto possibilidade significante: assim que podemos compreender 0 silencio ftmdador como 0 nao-dito que hist6ria, e que, dada a necessaria relar;ao do sentido com 0 imaginario, e tambem fun~ao da rel~ao (necessaria) de lingua e ideologia. 0 silencio trabalba enta~ essa necessidade"6. Aqui preciso ser cauteloso e seguir 0 raciocinio sutil da autora, sob risco de nao compreender 0 silencio a nao ser das maneiras ja estabelecidas historicamente nessa reflexao. Em primeiro lugar, a autora ira distinguir 0 silencio do nada e do vazio, do fora da hist6ria. Na sua concepr;ao, 0 silencio e, sempre, silencio significante. Sendo assim, ele tem uma "significancia pr6pria"?, e nao e complemento ou dejeto da linguagem, nem origem ou

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3 Orlandi, 1992, p. 12. 4Id.,p.13. 5 Id., p. 14. 6 Id., p. 23. 7 Id., ibid.

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sentido absoluto. Ele e, nas palavras da autora, "garantia do movimento dos sentidos"8. Mas que movimento e esse que 0 silencio garantiria? 0 que significa compreender 0 silencio como aquilo que permite 0 trabalho do sentido sobre 0 sentido, abrindo possibilidades para 0 sujeito? Nao me eximirei de seguir aqui as palavras da pr6pria autora:

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silencio nlio e, pois, em nossa perspectiva, 0 "tudo" da linguagem. Nem 0 ideal do lugar "outro", como nlio e tampouco 0 abismo dos sentidos. Ele e, sim, a possibilidade para 0 sujeito trabalhar sua contradiylio constitutiva, a que 0 situa na relaylio do ''urn'' com 0 "mUltiplo", a que aceita a reduplicaylio e 0 deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe da realidade significativa.9

A partir dessa consta~iio, a autora ira caminhar por distin~oes de relevancia te6rica indiscutlvel para aqueles que se pretendem no campo da analise de discurso, sobretudo pela distinyao entre 0 silencio fimdador e a politica do silencio. Com relayao a politica do silencio, a autora introduz ainda uma catego~iio que nos permite separar 0 silencio constitutivo (ao dizer, necessariamente apagamos outras palavras possiveis) e 0 silencio local, ligado a censura, a proibiyiio do dizer. Nao poder dizer para poder dizer, estarproibido de dizer, sao essas as dimens5es da ''politica do silencio". E aqui a autora introduz urn absoluto: estar no sentido com palavras e estar no sentido em silencio sao modos (formas) diferentes de produzir sentido.

***** Avancemos, com as palavras e os sn~ncios da autora Como se viu, ha uma dimensao politica do silencio que nao pode ser elidida e que vai muito alem dos trabalhos te6ricos que se dedicam a pensar 0 implicito, a elipse etc. Contudo, "para compreender a linguagem e preciso entender 0 silencio para alem de sua dimensao politica"lo. Hip6tese incomoda, como a pr6pria autora admite. Porem, como ja nos alertava Pecheux, e preciso suportar 0 que venha a ser pensadoll. Sabe-se bem que em Analise de Discurso se procura trabalhar com os mecanismos simb61ico-imaginarios de construyao do sentido, com a descriyao de montagens de identificayoes estabilizadas historicamente, 8 Orlandi, 1992, p. 23. 9 Id., ibid. 10Id.,p.31. 11Pecheux, 1978,p. 304.

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ao mesmo tempo em que se atenta para os mecanismos de furo, de falha nessa constitui~ao. Mas essa teoriza~ao nos conduz a compreender 0 real em a~ao em cada caso. Real da lingua, real do inconsciente, real da hist6ria, que confluem nesse complexo objeto te6rico chamado discurso. E e justamente neste ponto que a reflexao de Orlandi atinge uma regiao incomoda e original: se 0 silencio e significante, ou melhor, a materia significante por excelencia, como afirma ela, segue-se que 0 real dos processos de significa~ao e 0 silencio e, assim, "0 silencio e 0 real do discurso"12. silencio e, nessa perspectiva, 0 "avesso da estrutura", 0 exterior da linguagem, estruturante de qualquer estrutura, seja em que linguagem for. Por essa via, podemos compreender 0 silencio nos sentidos mobilizados na palavra "fundante", conforme explicitei mais acima. Fundayao, fundamento: "a linguagem supoe pois a transform3.9ao da materia significante por excelencia (silencio) em significados apreensiveis, verbalizaveis"13. Antes da politica propriamente dita, uma politica da censura. Corte, incisao, fenda no continuum do silencio, cicatriz da vida em p6lis. Cesura, no entanto, que pode ser desmesurada e fazer cair 0 silencio num lugar subaltemo, como em nossa sociedade alheia contempla~ao e a ataraxia, que "atulha 0 espa~o de sons e cria a ideia do silencio como vazio, como falta"14. Nao-representavel, 0 silencio nem por isso deixa de ser: "0 silencio nao fala. 0 silencio e. Ele significa. Ou melhor: no silencio,o sentido e"ls. A via aberta por Orlandi nos coloca questoes te6ricas que sao de dificil resposta e que exigem urna mudan~a de lugar para que possam, inclusive, ser pensadas. Por exemplo, como explicitar os processos de significa~ao postos em jogo pelo silencio sem traduzi-Io em palavras? o aparelho conceitual da analise de discurso permite pensar 0 silencio nessa dimensao constitutiva ou e preciso elaborar mecanismos te6ricos de apreensao de sua natureza significante? A distin~ao entre 0 "silencio fundador" e a "politica do silencio", no trabalho te6rico-analitico, pode ser discemivel? Como articular, se entendemos bern 0 espa~o aberto pela autora, urna forma de silencio em que 0 que esta em jogo e a rela~ao entre 0 urn e 0 multiplo, e urna forma de silencio em que este se liga mais diretamente hist6ria e ideologia? Como em toda grande obra, essas reflexoes de Orlandi sobre 0 silencio valem mais pelas questoes que permitem fazer que pelas respostas que cria. Unica maneira de se abrir 0 pensamento para 0 impensado, ainda.

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12 Orlandi, op. cit., p. 31. 13 Id., p. 35. 14 Id., p. 37. 15 Id, p. 33. Os italicos sao do original.

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Neste momento, urna pausa para urn silencio. Samuel Beckett. Vma maneira de (fazer) operar 0 silencio. Modo de estar em si1encio e estar no si1encio. De fato, embora a produ~ao de Beckett seja bastante intensa e percorra urna extensao temporal bastante considerave1, parece-me que se pode considerar que Beckett e 0 escritor do silencio. Explicamos: em toda a obra de Beckett, 0 que se pode depreender como trilha (se e que existe urna trilha), e urna busca pe10 fim das pa1avras, "urn passo em dire~ao ao silencio e ao fim da 10ucura"16.Ora, como pensar, como teorizar, como aprender com as pa1avras deste que nao as queria, ou melhor, que as utilizava para ver-se, urn dia ta1vez, livre de1as? Parece-me que aqui as contribui~6es de Orlandi podem ser muito uteis para entender 0 tipo de impasse em que se encontrava Beckett nessa re1a~ao entre dizer e ca1ar. Alem disso, este autor ir1and8s, cuja obra atravessa quase a totalidade do seculo XX, tern sido objeto das mais variadas interpre~6es e estudos, a partir de perspectivas te6ricas muito variadas. Conforme salienta Andrade (2001, p. 23), "como Beckett viveu e escreveu muito, ao 10ngo de urn extenso periodo, a resposta critica a sua obra acompanhou a substitui~iio de diversas tendencias, vertentes e modas academicas". Assim, a fortuna que se constituiu em tomo da obra do autor gravita em tomo dos mais variados procedimentos de compreensiio: desde a descri~ao estrutural dos procedimentos formais de cons~iio da narrativa beckettiana, passando pe1a desconstru~ao dos po10s em tomo dos quais a escrita de Beckett transita, ate a compreensiio dos mecanismos ret6ricos de constitui~iio da enunci~iio do narrador, parece niio haver posi~ te6rica que niio tenha se co10cado na obrig~iio de dizer algo a respeito da obra do autor. Tendo isso em vista, 0 primeiro passo na apro~ com a obra beckettiana e a exc1usiio: a escolha de certo vies e de certas perguntas fundamentais e 0 Unico modo de escapar da ten~ao totalizadora, cujo risco mais evidente e 0 de permanecer na superficie do texto beckettiano, sem avan~ para as quest6es mais gerais que animavam o esfo~o do autor ou, por outro 1ado,escorregar para a imi~iio desajeitada do pr6prio projeto criativo do autor. Ainda segundo Andrade (2001, p. 25), o desafio esta em escapar do canto de sereia de uma critica que sucumbe ao convite implicito da obra: tomar-se veiculo, estal;ao repetidora da complexa combinal;ao de vozes, privilegiada e autorizada porque dela originaria, limitando-se a tentativas canhestras de repor, em termos analiticos, essa reflexao fulica e radical sobre a natureza da arte, mais especificamente, da narrativa ocidental. Segundo nosso entendimento, trata-se, enta~, de desviar urn pouco os olhos, acalmar a tendencia a uma leitura totalizante e furiosamente 16 Beckett,Molloy, 2008[1951].

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compreensiva dos dilemas beckettianos e estar atentos ao impasse criado pela pr6pria constitui9ao dos textos de Beckett, na medida em que estes criam problemas para as categorias usuais de entendimento do fazer artistico e para a compreensao da subjetividade modema. Nesta via, e ainda preciso escolher urn lugar de observalj:ao, urn ponto desde onde se possa fitar urn aspecto especifico da obra do autor e coloca-10 em relalj:aoa urn ponto de vista te6rico e urna dimensao artistica que se mostra irredutivel a urna compreensao hermeneutica, pois nao se trata de compreender 0 sentido da obra beckettiana, mas de perceber os pr6prios impasses que esta cria com relalj:ao ao problema do sentido e da narrativa (na medida em que tais elementos configuram 0 que entendemos por subjetividade), nos limites hist6ricos em que se deu a construyao da obm. Nesse sentido, a categoria do silencio como fundador e uma ferramenta de compreensao bastante potente. Diante do espayo continuo de significancia do silencio, e necessario dizer "eu". Assumir-se enquanto sujeito do discurso, jogo complexo entre det~es hist6ricas e espayos de equivoco, identificalj:oes, contra-identificalj:oes e des-identificalj:oes, estreitas faixas de litoral entre 0 mar e a mata, interdiscurso e silencio. Como afirma Orlandi, "niio ha modo do sujeito e do sentido estarem fora da hist6ria, do ideol6gico, do efeito imaginario. Mas a tensao entre imagin{uio e real e atestada pelo modo como 0 silencio trabalha essa relalj:ao.No silencio ha ponto de possivel (do impossivel)"!7. Esses pontos de possivel (do impossivel) parecem ser 0 modo como 0 silencio opera na obra de Beckett, mais especificamente na sua trilogia romanesca!8, pelo menos. A titulo de ilustrayao, parece-nos adequado dizer que 0 panorama hist6rico por onde se estende a construlj:ao dos procedimentos artisticos de Beckett tem relayao com, por urn lado, a indagayao nietzschiana sobre os "habitos gramaticais", em que e questionada a "certeza imediata" produzida por urna afirmayao simples como "eu penso": se decomponho 0 processo que esta expresso na proposiyao "eu penso", obtenho urna serle de afirmayoes temera.rias, cuja fundamentayao e dificil, talvez impossivel- por exemplo, que sou eu que pensa, que tern de haver necessariamente urn algo que pensa, que pensar e atividade e efeito de urn ser que e pensado como causa, que existe urn "eu", e finalmente que ja esta estabelecido 0 que designar como pensar - que eu sei 0 que e pensar.19

17 Orlandi,1992, p. 168. 18

Compostapor Molloy e Malone

Morre,

ambosde 1951, e 0

inomintivel,

de 1953.

19 Nietzsche,1886, p. 16.

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E, por outro lado, 0 surgimento da psicamllise e 0 questionamento do carater sintetico e centralizador do "eu" por Freud, como 0 proprio conceito de "lsso" ilustra ao questionar a certeza cartesiana: [Freud) est! seguro de que wn pensamenlo esta Ill, pensamenlo que

e inconsciente, 0 que quer dizer que se revela como ausente. E a este lugar que ele chama, wna vez que lida com outros, 0 eu pense pelo qual vai revelar-se 0 sujeito.Em suma, Freud esta segura de que esse pensamenlo esta ill completamentesozinho de todo 0 seu eu sou, se assim podemos dizer,- a menos que, este e 0 salto, alguem pense em seu lugar.2O Portanto, a obra de Beckett, embora variada e extensa, concentra suas questoes ao procurar expressar artisticamente urn dilema semelhante ao encontrado por Freud e Nietzsche e ao qual ambos os autores responderam de forma diferenciada: quem diz? No caso de Beckett, talvez se possa dizer que 0 ponto de ataque e a centralidade da figura do narrador (afinal, quem narra?) e 0 catiter tradicional da narrativa (afinal, 0 que e narrar?). Esta e, digamos, a economia que orienta a obra de Beckett, sem no entanto constituir sistema, pois urn sistema supoe quadros gerais de orientayao aplicaveis a urn procedimento, enquanto que a escrita beckettiana se assemelha mais a tentativas cada vez mais malogradas de girar em tomo dessas perguntas fundamentais21• Dai (isto e, da concen~ao exclusiva na questiio do narrador e da ~ao), tambem, a pobreza tipica de suas personagens, sem tempo ou disposi~ao para as quesroes pragmaticas da vida22• Resumindo, poderiamos dizer que a obra beckettiana se orienta em torno do "quem" e do "dizer", ou, em outras palavras, na rel~ entre sujeito e linguagem, ou, mais especificamente e buscando justamente explorar as possibilidades aberta:spela reflexao de Orlandi, na passagem entre silencio e dizer. Nesta passagem, a questiio da lingua materna parece de fundamental importancia para Beckett, na forma de urn impedimento a ser atravessado: EstAse tomando mais e mais dificil, ate sem sentido, para mim, escrever nwn ingles oficial. E, mais e mais, minha pr6pria lingua me parece como wn veu que precisa ser rasgado para chegar as coisas (ou ao Nada) por tras dele. Gramatica e Estilo. Para mim, eles parecem ter se tornado tao irrelevantes quanta 0 traje de banho vitoriano 20 Lacan, 1964, p. 39. 21 "Niiopossover vestigiode qualquersistemaem parte alguma",respondeuBeckett a IsraelShenker,indagadose seu sistemaera a ausenciade sistema.cf Andrade,2001,

anexos,p. 187. 22 "MinhaspersonagensIlio ternnada",diz Beckettna mesmaentrevista,questionado se nliose interessavapelomodocomosuaspersonagensganhavama vida... 140

ou a imperturbabilidade do verdadeiro cavalheiro. Vma mascara. Tomara que chegue 0 tempo, grayas a Deus que em certas rodas ja chegou, em que a linguagem e mais eficientemente empregada quando mal empregada.23 Dificuldade de escrita, gramatica e estilo como trajes de banho ... Enfim, toda a questao do omamento ja aparece aqui para Beckett como urn impedimento para se chegar a algo. E, do mesmo modo, ja aparece aqui tambem a proposta de metodo para se evitar todo e qualquer subterfUgio decorativo: 0 mau emprego da lingua como paradigma estetico e etico de atravessamento de toda figurayao. Ora, esse mau emprego conduz a certo modo de escrita, 0 modo de escrita que Beckett ira cada vez mais propor como altemativa a crise da narrativa no seculo XX: Como nao podemos elirninar a linguagem de urna vez por todas, devemos pelo menos nao deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgra9a. Cavar nela urn buraco atras do outro, ate aquilo que esta a espreita por trlis - seja isto alguma coisa ou nada - comece a atravessar; nao consigo irnaginar urn objetivo mais elevado para urn escritor hoje.24

E claro que se podem ver certos ecos do programa de James Joyce em Beckett, mas 0 metoda difere radicalmente: enquanto aquele alcanya a liquidayao da lingua pela via de uma exuberancia que coloca 0 leitor numa posiyao em que este nao pode mais apelar aos estratos da lingua ou mesmo a diferenya entre linguas para se confortar com 0 sentido, Beckett procede pela via daquele que se pode chamar de "pauperizayao". Certo modo de estar na linguagem que recusa todo omamento e todo exercicio de estilo, para que algo possa ser dito - ou 0 nada. Para Beckett, estava claro que essa proposta nao se coadunava com a de Joyce: "Com urn programa destes, na minha opiniao, 0 trabalho mais recente de Joyce nao tern absolutamente nada aver. Nele, parece tratar-se mais de urna questao de apoteose da palavra".2s Esse "ataque as palavras em nome da beleza''26,esse modo de usar as palavras contra elas mesmas, essa literatura da despalavra27,sao mesmo 0 negativo do esforyo joyceano e representam, de fata, urn work in regress. Sem 23 Carta Alema. In: Andrade, op. cit., anexos, p. 169. 24 Id., ibid. 25 Id" p. 170. 26 Id., ibid. 27 A expressao e de Beckett.

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pretender validar 0 modo como Beckett compreende a obra de Joyce, parece-me importante salientar alguns aspectos dessa compreensao, na medida em que iluminam 0 pr6prio percurso que 0 autor ve em seu trilhar. Em primeiro lugar, para Beckett, Joyce e urn supremo manipulador, que coloca as palavras para trabalhar em seu limite maximo, urn artista da onisciencia e da oniporencia. Como diz Zizek (2009), "esta conquista de Joyce simultaneamente sinaliza seu limite, 0 limite que pressionou Beckett a romper com ele. Se ja houve urn escritor ken6tico, urn escritor do total autoesvaziamento da subjetividade, da sua redu¥oo a uma diferen~a minima, este escritor e Beckett''28. Contrapondo-se a Joyce, Beckett ve a si mesmo como nao-senhor de seu material, tendo que lidar com a impotencia e a ignorancia: Niioacho que a impoWnciatenha sido exploradano passado. Parecehaver urn tipode axiomaesteticode que a expressiioe realiza¥iio- deve ser uma reali.za¥iio.Moo modestoterreno de exploTa¥iioe toda aquela zona do ser que tern sido constantemente negligenciada pelos artistas como algo inutilizavel- como algo incompativelcom a arte por defini¥iio.29 Definindo-se como urn uncanner, urn "nao-podedor", Beckett ira explorar 0 campo da impotencia, ou seja, do fracasso, nao s6 como jogo formal na relaCj:aocom a lingua e a constru~ao de procedimentos narrativos, mas tambem como eixo tematico de seus trabalhos, que circulam pela miseria e pela solidao, na figura de vagabundos sem nenhuma posse, nem a de si mesmos. E ainda na "Carta Alema" que Beckett lamenta que a literatura esteja, em sua relaCj:aocom as outras artes, atrasada e perdida em questoes ja ha muito superadas por outros procedimentos artisticos: Ou sera que a literatura, solitana, deve permanecer atrasada em seus velhos caminhos pregui¥osos que ha tanto tempo foram abandonados pela musica e pela pintura? Ha alguma coisa paralisantemente sagrada na natureza viciosa da palavra que nao se encontra nos elementos das outras artes?30 De fato, como aponta Safatle, "a critica a mimesis (...) ja havia sido operada pela musica em meados do seculo XIX"3!. Parece-nos que e essa defasagem que des orienta Beckett, em busca de uma nova escrita, 28 A tradu~ao

e minha.

Entrevistaa IsraelShenker.cf AnexosdeAndrade,2001, p. 186. 30 CartaAlema,In:Andrade,op. cit., anexos,pp. 169. 31 Safatle,2006, p. 163-164.

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desfeita dos compromissos com a representa~ao e a figura~ao. Nesse sentido, talvez seja interessante trayar urn paralelo entre 0 esgotamento do sistema tonal na musica e a crise da narrativa, para que possamos compreender sob que condiyoes opera 0 des10camento produzido por Beckett com relayao a construyao da narrativa. Seguindo a reflexao de Safatle, podemos dizer com e1eque "a forma musical chega a aurora do seculo :xx com urn problema de fimdo'>32.0 problema a que se refere 0 autor e 0 esgotamento das possibilidades propostas pelo sistema tonal, problema este que nao era meramente uma questao de exaustao formal de uma tecnica, ja que se pode dizer que os criterios que norteiam a organiza~ musical sao criterios de racionalizayao de certo material sonoro; pois bern, como lembra 0 autor, "0 que nos demonstra que 0 esgotamento de urn sistema musical de orga.nizayao, como 0 tonalismo, e, na verdade, 0 esgotamento de toda uma figura ordenadora da razao''33. Sem entrar nos detalhes da reflexao de Safatle, que orienta sua reflexao no sentido de entender a figura de John Cage no interior desse panorama de esgotamento de urna racionalidade, 0 que nos parece importante salientar e que a crise e os impasses que alimentam 0 modernismo na arte nao sao apenas fiuto de urna exaustao formal, mas sim de urn processo de subjetivafQ,o, que parece nao fazer mais senti do. E por ai, segundo 0 autor, que se pode compreender a busca da "dissoluyao do eu" na perspectiva musical de John Cage. Ora, no caso de Beckett, estamos diante de urn problema semelhanteo Conforme Andrade (2001, p. 30), M dois processos que marcam a evoluyao de Beckett como romancista: por urn lado, urn abandono da representar;:aorealista do mundo, cameteristica dos romances que continuavam na tradir;:ao do modelo frances do seculo XIX, enraizadona triadeBalzac,Flauberte Stendhal. Por outro 1000, uma recusa absoluta da concepyaodo romanceenquanto movimento,ayaoque se alimentade personagensa baterem-secontracircunstanciasexterioresadversas,abandonadaem nome da encenayiiointeriorizadadeste conflitoem personagensimobilizadase ensimesmadas. Esse abandono e essa recusa, por parte de Beckett, parece-me semelhante aquele de John Cage, no sentido de que operam deslocando a centralidade do eu e do movimento como operadores centrais da forma artistica e, portanto, trazendo de modo peculiar a rela9ao com 0 silencio fundador como operadores centrais de seus procedimentos esteticos. Romem condenado a significar, Beckett, enquanto autor, busca uma medida possivel entre estar em silencio e estar nas palavras, que vai no 32 Idem, p. 173. 33 Idem, Ibidem.

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sentido do que Orlandi chama de silencio que "atravessa as palavras", na forma de urna falha nessa relayilo que encontra sua possibilidade nurn ato que atesta sua pr6pria impossibilidade: [...] ser artista e falhar, como ninguem mais ousou falhar, que 0 fracasso e 0 seu mundo e que recuar diante dele e deser~iio, artesanato e habilidade, prendas domesticas, vida. [...] Sei que tudo que e preciso agora, para conduzir este assunto horrivel a urna conclusao aceitavel, e fazer desta submissao, desta adrnissao, desta fidelidade ao fracasso, uma nova ocasiiio, urn novo termo da rela~ao, de cujo ate, incapaz de agir, obrigado a agir, ele gem, urn ate expressivo, mesmo que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade.34 No caso de sua trilogia romanesca, estamos diante da solidilo, da incomunicabilidade, da hesita~ao infindilvel, da duvida incessante (nao ao modo cartesiano, em que a duvida met6dica conduz a certeza, mas nurn processo em que a duvida simplesmente produz urna fala que nilo cessa de hesitar diante de si mesma). Em Molloy, 0 narrador esta no quarto de sua mae, mas nilo sabe como foi parar naquele lugar, e a narrativa se compoe a partir dai. Na segunda parte do romance, escrita por Moran, urn sujeito encarregado em "ocupar-se de Molloy", a narrativa come~a de maneira mais ordenada e regular, para se encaminhar lentamente para a mesma confusilo que vemos na parte escrita pelo personagem-titulo. Em Malone Morre, por sua vez, trata-se ai tambern de urn personagem confinado, morrendo, nilo se sabe muito bern onde, reduzido a contar sua pr6pria hist6ria, bern ao estilo beckettiano da duvida, da hesita~ilo, da confusilo. Nilo ha paisagens, nem tramas complexas, ha vidas que se desfazem e se constroem no fio da palavra. Pensando a linguagem como 0 faz Orlandi, isto e, como "passagem incessante das palavras ao silencio e do silencio as palavras"35, como espa~o em que 0 sujeito encontra espa~os de movimenta~ilo em que possa trabalhar sua contradiyilo constitutiva, podemos compreender 0 paradoxo em que se encontram os narradores beckettianos, hesitantes entre dizer e calar. Molloy formula a questiio fundamental de maneira fulminante: "nilo querer dizer, nilo saber 0 que se quer dizer, nilo poder dizer 0 que se acredita que se quer dizer, e sempre dizer ou quase, isto e que e importante nao perder de vista, no calor da reda~ao"36. Em meio

34 Andrade, 2001. Anexos, p. 181. 0 itAlico e nosso.

35 Orlandi, 2002, p. 72. 36 Beckett, Molloy, 2008 [1951]

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aos "insondaveis abismos de silencio"37, Beckett se encontra, enquanto autor, no mesmo lugar em que todos n6s, enquanto sujeitos falantes: numa rela~ao particular com 0 silencio, que pode tomar as mais variadas fonnas enos atingir com afetos tambem multiplos. Como salienta Orlandi, a escrita "pennite que se signifique em silencio"38, movendo-se em meio aos movimentos identitarios. Essa rela~ao com 0 silencio, portanto, crucial para que se possa romper com 0 ja-dito e dizer( -se) de outro modo, ressignificando a si mesmo e as palavras. Talvez venha dessa compreensao a afinnar;ao caustica de Beckett: "sei que ha pessoas, pessoas sensatas e inteligentes, para quem nao faz falta 0 silencio. Nao posso senao conc1uir que sao orelhas de pau"39. Em 0 Inominavel, tais caracteristicas do narrador beckettiano chegam ao seu limite. Agora, nao sabemos nem mesmo 0 nome do protagonista, de onde vern, para onde vai, e nem mesmo ele parece saber disso. 0 protagonista de 0 Inominizvel se assemelha, de certo modo, a Sisifo, mas, em vez de conduzir uma rocha ao topo da montanha, conduzido pela linguagern, para, ao chegar ao topo, espantar-se com a descoberta de que esta MO lhe proveu da minima certeza, e entao tudo recom~a novamente. Esse narrador que se narra sem saber de que fala se parece em muito com a altemativa que Beckett diz ser a do artista contemporaneo: "a expressao de que nao ha nada para expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma for~a para expressar, nenhurn desejo de expressar, junto com a obriga~ao de expressar"40. Passagem incessante do silencio as palavras, das palavras ao silencio ... Dizer, embora sem amparo, sem saber, dizer apenas. Nas palavras do narrador sem nome de OInominavel: "Procurei por todo lado. E todas essas perguntas que fa~o a mim mesmo. Nao por curiosidade. Nao posso calar-me. Nao preciso de saber nada sobre mim. Aqui, tudo e claro. Nao, nem tudo claro. Mas 0 discurso tern de ser feito"41. Esse "ter que dizer", essa obriga~ao de expressar, no entanto, nao conduz 0 leitor a urna experiencia de observa~ao de urn sentido sendo construido no pr6prio ate de narra~ao. E Leminski quem aponta em Beckett "urna certa erosao e anula~ao do significado"42. Assim que 0 leitor se coloca confortavelmente no lugar do sentido, podem-se esperar frequentemente expressoes do tipo "ou nao e nada dis so" , "quem sabe",

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37 Beckett em Andrade, 2001,Anexos,

p. 169.

38 Orlandi, op. cit., p. 85. 39 Beckett em Andrade, 2001, Anexos, p. 169. 40 Idem, p. 175. 41 Beckett, 0 Inominavel, 2009 [1953]. 42 No anexo

a edi~ao brasi1eira

de Malone Morre (2004[1951]).

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enfim, marc adores que se nao destroem 0 sentido do que estava sendo tecido, pelo menos 0 tornam puido, fragmentado. Ha urn proverbio latino que Beckett mais de urna vez citou: "nee teeum nee sine te". Nem contigo, nem sem ti, talvez nos mostrando que, para os protagonistas dos romances de sua trilogia, e impossivel viver na linguagem, como tambem e impossivel viver fora dela. Tal conclusao poderia conduzir ao silencio permanente, ao estoicismo de que nada ha para se fazer, mas tanto Beckett como seus personagens prosseguem, lutam com as palavras, tentam atravessar alga, continuar ... Ainda, passagem incessante. o narrador marcha, sem saber para onde, mas sabendo que e preciso marchar. Essa passagem, pois M marcha, M travessia, M urn instante entre urn ponto de partida e 0 fun da partida, e 0 que marca a trilogia que comentamos aqui. Como outros ja disseram, Beckett usa a palavra para tentar inutilmente se desfazer dela, uma Literatura da Despalavra: "00 fun de minha obm nao M nada a nao ser 0 p6 - 0 nomeavel. No Ultimo livro - 0 Inominavel- M uma desinte~ao completa. Nada de '00', nada de 'ter', nada de 'ser'. Nada de nominativo, nada de acusativo, nada de verba. Nao M meio de ir adiante''43.E, no entanto, Beckett vai adiante, assim como seus personagens. ''Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor" e 0 que nos diz Beckett em suas obras, frase simples mas que revela nisso mesmo sua proftmda ~o: nao e que pelas falhas chegaremos 00 sucesso, mas que nos esforcemos em falhar carla vez melhor. Em carla urn dos personagens dos romances que mencionamos aqui, falha-se, fala-se, e, a cada vez, foi possivel ir urn pouco mais adiante, prosseguir. Falhar carla vez melhor, falar carlavez melhor, sabendo que nunca se sarra do impasse, falar, entao silenciar, de urna vez por todas, mas ainda nao, M ainda urna palavra a ser dita... Temos entao em Beckett, "0 desejo de esgotar as possibilidades formais da fala"44,mas nao em direyao a urna utopia da totalidade. Em Beckett, de fato, 0 que encontramos e a busca de urn momento, urn ponto, urna passagem entre palavra e silencio que e hom6loga ao que diz Orlandi sobre a resistencia irredutivel da palavra a qualquer fechamento, urn momento que "as segura que nenhurna utopia expressiva se curnpra sem que desabe, ao mesmo tempo, 0 mundo de linguagem no qual ela ambiciona ter-se realizado. Ai esta 0 acontecimento da palavra em perpetuo desdobramento: palavras que se desenvolvem em palavras indefinidamente. Nao precis amos pois ser seus guardiaes, nem proteger sua abertura"45. 43 Beckett em Andrade, op. cit., Anexos, p. 186. 44 L. Jenny, citado por Orlandi, 1992, p. 170. Nessa passagem, Jenny nio esta se re-

ferindo a Beckett, mas aquilo que amea~a totalidade. 45 Orlandi, op. cit., p. 170.

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0

momento discursivo, isto

e, as utopias

de

Esses impasses que podem ser observados na trilogia de Beckett, embora tenham sua especificidade ao se darem no quadro geral de urn programa estetico, estao muito pertos de nossos impasses em nossas rela~oes com os sentidos, com as palavras, e, sobretudo, com 0 silencio. Como bem mostra Orlandi, lugar nem sempre tranquilo entre 0 de mais e 0 de menos, ja que a) 0 silencio, na constituiyao do sujeito, rompe com a absolutizayao narcisica do eu que, esta, seria a asfixia do sujeito ja que 0 apagamento e necessario para sua constituiyao [...] b) 0 silencio, na constituiyaodo sentido, e que impede 0 non sense pelo muito cheio, produzindo 0 espayOem que se move a materialidade significante (0 niio-dito necessario para 0 ditO)46. Para terminar, gostaria de trazer 0 trecho final de 0 Inomimivel, pois me parece haver algo aqui que sintetiza 0 dist6rbio e 0 dilema dos narradores-protagonistas-narrados da trilogia de Beckett (C/. Andrade, 2001, p.l46): [...] talvez me tenham levado ate 0 umbral de minha hist6ria, ante a porta que se abre para minha hist6ria, isso me espantaria, se ela se abre, serei eu, sera 0 siH~ncio,ai onde estou, niio sei, niio 0 saberei nunca, no silencio nao se sabe, e preciso continuar, nao posso continuar, vou continuar. Talvez seja possivel dizer que 0 problema todo reside na rel~ao entre "nao posso continuar, vou continuar". 0 que houve entre urn e outro enunciado? Temos, em primeiro lugar, urn "eu" que esta certo de nao poder continuar, urna afirma~ao de impossibilidade. Nao se trata de urn "nao querer continuar", de urn ''nao sentir necessidade de continuar", mas de urna constatac;ao de uma rocha que impede 0 prosseguimento. Nesse sentido, a frase seguinte e inevitavelmente contradit6ria, seja ela qual for, urna vez que ela e, em si mesma, urna continuac;ao, urna negac;aoda pr6pria impossibilidade referida anteriormente. Ainda, esta frase diz ''vou continuar", isto e, continua-se pelo proprio ato de dizer ''vou continuar", algo e realizado no pr6prio ato da enunci~ao mais do que na expressao do enunciado. Assim, a orac;aofinal, ao contradizer a ora~ao anterior abre urn espa~o de divisao no sujeito. No esp~o entre 0 primeiro "eu" e 0 segundo, urna decisao foi tomada, algo da ordem de urn ato aconteceu. Mas DaOestamos no mvel de urn "querer e poder", de urna vontade que suplanta a impossibilidade, de urna intencionalidade, e sim de urna hiancia que se abre na pr6pria consta46 Orlandi, 1992, p. 51. 0 itlllico

e cia autora. 147

~ao do nao poder continuar, que, ao ser elito,possibilita que algo se remexa, se altere, no pr6prio sujeito que 0 disse, e que agora se ve dizendo: ''vou continuar". Para onde? 0 lugar de sempre, 0 jogo de sempre, 0 "silencio como constitutivo da significCl¥aoem movimento"47. Mas at 0 livro acaba. Entre 0 eu que constata a impossibilidade e 0 eu que prossegue mesmo diante dessa mesma impossibilidade ha um espa~o, um espa~o em que algo se compreende, um espa~o entre silencio e linguagem, 0 silendo como "dobra": "ponto de inversao possivel [...] onde 0 discurso se desdobra em 'outras' palavras"48. Disse Beckett certa vez: "0 Inomimivel colocou-me numa situa~ao da qual nao consigo me desvencilhar"49. Mais do que urn impedimento ligado a urn procedimento artistico, este impasse nao 0 de todos n6s, como a obra de Orlandi comentada aqui explora? Dele nao podemos nos desvencilhar, mas podemos aceitar que 0 silencio opere em n6s ... ate a pr6xima palavra. Como fazia Beckett. E 0 que farei agora.

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0 silencio

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48 Orlandi, 1992, p. 163. 49 Beckett em Andrade, 2001, Anexos, p. 187.

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