(2011) SOBRE O CONCEITO DE FANTASIA IDEOLÓGICA

June 13, 2017 | Autor: Lauro Baldini | Categoria: Análise do Discurso
Share Embed


Descrição do Produto

SOBRE O CONCEITO DE FANTASIA IDEOLÓGICA Lauro José Siqueira BALDINI1

No trabalho que apresentei em nosso encontro anterior do GTDis2, procurei apresentar de maneira resumida alguns aspectos da pesquisa que venho desenvolvendo em torno da questão da ideologia e do funcionamento ideológico na sociedade contemporânea. Em síntese, eu partia de algumas formulações de Pêcheux que considero fundamentais para se pensar a relação entre a Análise de Discurso, a Psicanálise e o modo como opera o poder em nosso momento histórico. As formulações de Pêcheux que eu buscava enfatizar, e que retomo aqui, frisam que, com relação ao vínculo entre ideologia e inconsciente, há ainda um trabalho a fazer, dada a “hiante ausência de uma articulação teórica bem elaborada entre ideologia e inconsciente. (...) permitam-me apenas ressaltar que o traço comum a essas duas estruturas (...) é o fato de elas operarem ocultando sua própria existência, produzindo uma rede de verdades ‘subjetivas’ evidentes, com o ‘subjetivas’ significando, aqui, não que afetam o sujeito, mas em que o sujeito se constitui” (PÊCHEUX, 1975, p. 148). De fato, em outro texto, Pêcheux é mais explícito: “a ordem do inconsciente não coincide com a da ideologia, o recalque não se identifica nem com o assujeitamento nem com a repressão, mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem referência ao registro inconsciente” (PÊCHEUX, 1978, p. 301). Nessa direção, considero que Pêcheux nos indica aí uma direção de trabalho, um caminho a ser trilhado e que, nesse sentido, não basta mais afirmar que em nosso campo a ideologia e inconsciente estão materialmente ligados. É necessário o estabelecimento de um programa de estudo e de trabalho voltado a esse lugar epistemológico. Em suma, desenvolver uma reflexão em que a psicanálise não seja tomada como o sintoma de uma disciplina auxiliar. É preciso adentrar na onda que esse campo produz para, com autenticidade, poder navegar. É preciso, ainda, levar em conta o estatuto do inconsciente, tal como trabalhado por Freud ao longo de sua vida, em sua radicalidade de um sistema, e não apenas como uma entidade descritiva, onde se situa o que não está na consciência. Penso que é para esse lugar que a escrita de Pêcheux aponta.

1 2

Professor-adjunto do curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da UNIVÁS. Cf. “Discurso, ideologia, cinismo”, no volume anterior desta coleção.

Pareceu-me necessário, então, naquele momento, levar em conta o trabalho de alguns filósofos e psicanalistas, como por exemplo Kehl, Lebrun e Zizek, os quais, com as devidas diferenças, ressaltavam que estaríamos passando de uma formação social baseada no recalcamento (mecanismo de defesa estruturante da neurose) para uma baseada no desmentido fetichista (típico da estrutura clínica denominada perversa). Por essa via, estaríamos, consequentemente, imersos no cinismo como modo de socialização e construção de tipos ideais. A esse respeito, parece-me necessário fazer uma ressalva quanto ao caráter moralizante que tal constatação pode produzir. Para mim, e aqui sigo as palavras de Roudinesco, o único modo de compreender as modificações na subjetividade atual depende “de que se ponha na escuta [e, eu diria, na leitura] desses novos sofrimentos em vez de condená-los com um discurso de imprecações visando a restaurar o modelo de uma normatividade perdida”3. Além disso, como afirma Safatle (2010:102), é preciso compreender melhor as recorrentes afirmações, principalmente na literatura psicanalítica, de que o perverso foi alçado à condição de tipo ideal. Segundo o autor, “muitas vezes colocações dessa natureza são apenas versões modernizadas da crítica moral à sociedade contemporânea com seu pretendo hedonismo excessivo, sua recusa a aceitar a castração e a impossibilidade do gozo”. Deste mato não saem coelhos, mas padres e juízes. Em meu trabalho como analista de discurso, o que me interessa é compreender, conforme salienta Orlandi, como os discursos se produzem, se formulam e circulam. E, nesse sentido, creio que podemos falar em uma modificação que merece ser tratada teoricamente, já que estaríamos hoje diante de uma relação em que “o sujeito nunca adere a seu dito, já que ele nunca está totalmente lá onde fala, já que ele está só pela metade naquilo que diz. Tratase ainda de um discurso da derrisão, já que nenhuma asserção pode ser assumida sem ser rapidamente combinada com outra, que se torna seu duplo. O discurso transforma-se em um jogo, uma arte ou mesmo um domínio colocado sob o signo da onipotência aspirada pelo perverso”4. Como diz Safatle (2008:22) essa relação entre cinismo e perversão se orienta no sentido de que a perversão se caracteriza não por estar ligada a esta ou aquela prática sexual, mas por uma relação específica dos sujeitos com a lei social, “relação peculiar por basear-se em modos de seguir as injunções da lei, sem, com isso, produzir disposições de conduta normalmente conformes à lei”. É aqui que o laço se torna claro, pois há uma mudança no modo de funcionamento da sociedade (e das relações dos sujeitos com a discurso e a ideologia), na 3 4

Roudinesco, (2006:76) Migeot, apud Safatle, op. cit., p. 167

medida em que não se trata mais do recalcamento funcionando como as normas de relação entre os sujeitos, mas sim de uma estruturação mais próxima da perversão e das leis do fetiche. Essa clivagem que o fetiche permite, essa capacidade de “abandonar e conservar simultaneamente uma crença”5, tem uma relação direta com o cinismo e a forma predominante do laço social pós-moderno, pois, segundo Lebrun, o autoerotismo e a instrumentalização do outro, pela via perversa, dava lugar à consideração da realidade da castração e, diríamos, ao recalque e o (des)conhecimento ideológico das relações de dominação próprias ao sistema produtivo de um capitalismo baseado na produção. No entanto, “essa obrigação, o laço social de ontem a suportava, e até mesmo a impunha, a tornava em todo caso presente em permanência, ao passo que a de hoje deixa-a como em suspenso”6. Hoje, o desmentido fetichista é um mecanismo que permite dizer sim e não ao mesmo tempo, “a saber bem que é preciso aceitar a perda, mas mesmo assim recusar a consentir nisso”7, fórmula que pode ser resumida no “sei bem, mas mesmo assim” e que pode ser extendida ao funcionamento cínico do discurso. Além disso, temos que levar em conta que o poder aprendeu a rir de si mesmo: “personagens de contos de fadas que não mais se reconhecem e criticam seus próprios papéis, propagandas que zombam da linguagem publicitária, celebridades e representantes políticos que se auto-ironizam em programas de televisão”8. Nessa via, não se trata de dizer que vivemos numa era pós-ideológica, mas que a ideologia, atualmente, está marcada por construções “sob a forma da ironia”. Esses movimentos indicam, ainda segundo o autor, que “a perversão tende a transformar-se em horizonte hegemônico de identificação e de constituição de tipos ideais em processos de socialização”, o que conviria exatamente para o modo “anômico e desterriteriolizado do capitalismo contemporâneo”9. No entanto, o funcionamento cínico do discurso não é um funcionamento em que a ideologia deixaria de operar. Como afirma Zizek (1989:313), é verdade que “já não podemos submeter o texto ideológico a uma ‘leitura sintomal’, confrontando-o com suas lacunas, com o que ele tem de reprimir para se organizar, para preservar sua coerência – a razão cínica leva antecipadamente em conta essa distância”. No entanto, o núcleo ideológico de toda formação social permanece intacto mesmo nesse caso, e, se é verdade que a crítica da ideologia 5

Lebrun, (2008:255). Idem, pg. 257. 7 Idem, ibidem. 8 Safatle, op. cit., pg. 101. 9 Idem, pg. 168. 6

não parece funcionar mais no caso do discurso cínico, já que este leva em conta antecipadamente suas próprias lacunas, não é verdadeiro que este esteja fora da ideologia. Para compreender essa diferença, sigamos o pensamento de Zizek. Para ele, são apressadas as afirmações de que estaríamos vivendo numa sociedade pósideológica. O discurso cínico mantém intacto o nível fundamental da ideologia, mas para entender esse processo, diz o autor que a distinção entre sintoma e fantasia precisa operar nas análises que fazemos. Zizek propõe, então, o conceito de fantasia ideológica. Fazendo uma “leitura política” do grafo do desejo de Lacan, o autor indica que na última formulação do grafo o nível de significação está abaixo do nível do gozo. Tendo isso em vista, o autor vê aí a necessidade de formular duas análises do discurso complementares: uma procuraria desconstruir o texto, evidenciando como um dado campo ideológico é totalizado pela intervenção de pontos de basta; outra procuraria ir além desse campo e buscaria extrair o núcleo do gozo, mostrando como, além do campo da significação, mas, ao mesmo tempo, dentro desse campo, uma ideologia implica um gozo pré-ideológico que a estrutura. Mas o que o autor entende por fantasia ideológica? Por razões de espaço, não podemos aqui nos estender pelo modo como autor retoma o conceito marxista de fetichismo da mercadoria para compreender a lógica do fetiche e suas implicações para uma teoria da ideologia. O que me parece importante ressaltar aqui é que Zizek relê a máxima marxista “eles não o sabem, mas o fazem”, fazendo com que o acento recaia no fazer, e não no saber. Assim, no funcionamento cínico do discurso, os sujeitos “sabem muito bem como as coisas realmente são, mas continuam a agir como se não soubessem”10. Longe de operar fora da ideologia, o discurso cínico opera numa “dupla ilusão”: esta dupla ilusão “consiste em passar por cima da ilusão que estrutura nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão desconsiderada e inconsciente é o que se pode chamar de fantasia ideológica”11. Parece-nos que, nesse ponto, Zizek reelabora o conceito althusseriano de ideologia, que insiste numa dissimetria entre a “representação” e a “realidade”, ao formular o conceito de fantasia ideológica, em que o que está em jogo não é o desconhecimento ou a representação falsa e imaginária da realidade. Assim, “o nível fundamental da ideologia, entretanto, não é de uma ilusão que mascare o verdadeiro estado de coisas, mas de uma fantasia (inconsciente) que estrutura nossa própria realidade social”12. Nesse sentido, a distância cínica é apenas

10

Zizek, op. cit, pg. 316. Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem. 11

um dos modos de permanecermos cegos, segundo Zizek, para o poder estruturante da fantasia ideológica, pois “mesmo que não levemos as coisas a sério, mesmo que mantenhamos uma distância irônica, continuaremos a fazê-las”13. E é aqui que a leitura do texto como sintoma apresenta seus limites, uma vez que nesse nível, não se trata de interpretar o sintoma para fazer perecer seu poder de fixação, mas sim de atravessar a fantasia, isto é, a tela fantasmática que nos abriga do núcleo traumático que estrutura nossa experiência viva de seres falantes. Essa tela mascara um núcleo traumático que seria interessante para a Análise de Discurso trabalhar, em sua relação: do lado da língua, a lógica do significante, o simbólico como instância puramente diferencial, sem substância; do lado da história, o antagonismo, uma divisão social traumática que não pode ser integrada à rede simbólica e, por fim, do lado do inconsciente, a falta de relação sexual. Não estaríamos, aqui, trabalhando, ao mesmo tempo, dentro e fora da ideologia, na medida em que “antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico, o sujeito ($) é captado pelo Outro através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (a), mediante o segredo supostamente oculto no Outro: $a – a fórmula lacaniana da fantasia”?14. Não estaríamos, nesse ponto, justamente no seio daquilo que estrutura a própria ideologia e, além disso, daquilo que estrutura a própria Análise de Discurso? Como diz Leite, o conceito de causa em psicanálise refere-se a algo que excede a cadeia simbólica, embora seja produzido por ela. Nas palavras da autora, “o sujeito tanto é determinado pela ordem simbólica, pelo significante, quanto pela sua relação a um objeto de gozo, um objeto libidinal. Essa relação entre um sujeito e um objeto causa de desejo é o que se conjuga na fantasia”15. A meu ver, para além do quadro estabelecido por Pêcheux para explicar as determinações sócio-históricas a que está submetido o sujeito do discurso, por exemplo, pelas vias da identificação, contra-identificação e des-identificação, deveríamos pensar no investimento libidinal que nos orienta para além (para aquém) da identificação ideológica: trata-se mais propriamente de um sacrifício:

Afirmo que nenhum sentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas, é capaz de dar conta desta ressurgência, pela qual se verifica que a oferenda, a deuses obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podem deixar de sucumbir, numa captura monstruosa. A ignorância, a indiferença, o desvio do olhar, podem explicar sob que véu ainda resta escondido esse mistério. Mas para quem quer que seja capaz de dirigir, para esse fenômeno, um olhar corajoso – e, ainda uma vez, certamente há poucos que não sucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifício significa que, no objeto de 13

Idem, ibidem. Idem, pg. 322. 15 Leite, 2005, pg. 81. 14

nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro que eu chamo aqui o Deus Obscuro. (LACAN, 1964, pg. 259).

Como diz Carvalho (2008:221), a fantasia, no interior da álgebra lacaniana, indica precisamente o momento em que o sujeito não cede de seu gozo. E, se é possível pensar num conceito tal como o de fantasia ideológica, tal como o propõe Zizek, isso se deve ao fato de que justamente no cerne do funcionamento ideológico estaríamos diante de um ganho de gozo por parte do sujeito, momento objetal em que se pode encontrar justamente o testemunho da presença do Deus Obscuro... No entanto, conforme salienta Plon (2005), o conceito de gozo nunca fez parte do quadro epistemológico proposto por Pêcheux. Correlato, também o conceito de objeto a (que Lacan julgava ser sua única invenção) também está ausente da teorização pechêutiana. No entanto, creio que seja possível pensar na constituição do sujeito levando em conta essas diferentes vertentes, desde que se evite o risco de uma totalização, em que uma das teorias inevitavelmente cobriria a outra. Se temos, de um lado, a interpelação ideológica, a entrada do sujeito no campo do funcionamento social mais geral, há também a submissão ao significante, às leis da linguagem, operando o surgimento do sujeito do desejo, no qual paira a relação tertre gozo e prazer via constituição de um objeto de desejo. Assim, parece-me que a leitura política que Zizek faz da teoria lacaniana pode ser compreendida em dois momentos: o primeiro, a meu ver mais fecundo, em que se reconhece a necessidade de abrigar sobre uma teoria social as considerações freudianas sobre o fetichismo e a clivagem do eu buscando compreender o cinismo como modo predominante de ordenação das formas de vida em nossa sociedade; o segundo, a meu ver menos fecundo, é aquele em que Zizek erige o conceito de fantasia ideológica, em que, como disse, a leitura althusseriana da ideologia pode ser ampliada para poder introduzir a questão do desejo, mas em que, no entanto, o que parece estar em jogo é apenas um “modo social” de trabalhar com o conceito psicanalítico de fantasia, esquecendo-se de que não se pode buscar uma articulação entre o materialismo histórico e a psicanálise simplesmente agregando formas “sociais” de entender certos conceitos psicanalíticos. Nesse sentido, vejamos como Zizek coloca em prática seu conceito na compreensão do fenômeno do antissemitismo. Comforme vimos, para Zizek, o cínico não estaria fora da ideologia, mas integralmente submetido a ela, já que, apesar de denunciar toda normatização, no mesmo movimento se entrega a esse Deus obscuro, o qual denuncia e segue como fiel fanático, na tentativa de elidir a figura da castração. É isso que Zizek procura conceituar com o conceito de fantasia ideológica, quando, por exemplo, distingue o Judeu como sintoma e o

Judeu como elemento da fantasia. Para Zizek, no nível fundamental do antissemitismo, o Judeu encarna, como um sintoma, a impossibilidade de existência da sociedade, uma vez que é associado a uma força que corrói e corrompe o tecido social sadio. No entanto, essa explicação sintomática não basta para compreender o fascínio exercido pelo Judeu no antissemitismo: é preciso ver o lugar que este ocupa na “fantasia ideológica”: diante da impossibilidade da existência da sociedade como um todo orgânico e organizado, o Judeu funciona como um fetiche que ao mesmo tempo “desmente e encarna a impossibilidade estrutural da sociedade”, como diz o autor. Para o nazismo, a sociedade não existe porque o Judeu desagrega o tecido social, e precisa portanto ser eliminado. Assim, o Judeu funciona como objeto de gozo na medida em que encarna de maneira positiva uma tela protetora contra o fato de que a razão de não existir a sociedade se deve a um antagonismo estrutural que não pode ser elidido, ou seja, a Luta de Classes. Como diz Lacan, o que é excluído do simbólico retorna no real, neste caso, retorna no real como obra do Judeu. É o que Zizek salienta quando afirma: “o Judeu é, para o fascismo, o meio de levar em conta, de fazer uma imagem de sua própria impossibilidade (...) Por isso, não é suficiente designar o projeto totalitário como impossível, utópico e desejoso de estabelecer uma sociedade totalmente transparente e homogênea: o problema é que, de certa maneira, a ideologia totalitária sabe disso, reconhece-o de antemão: na figura do Judeu, ela inclui esse saber em sua construção. Toda ideologia fascista se estrutura como uma luta contra o elemento que ocupa o lugar impossibilidade imamente do próprio projeto fascista: o Judeu é apenas uma encarnação fetichista de uma certa barreira fundamental”. É a isso, esse mecanismo de a ideologia levar em conta antecipadamente sua própria falha, que Zizek chama de Fantasia ideológica. Desse modo, “a imagem ideológica do ‘judeu’ é investida de nosso desejo inconsciente, com o modo como construímos essa imagem para fugir de um certo impasse de nosso desejo”16. Além disso, ainda segundo Zizek, é precisamente neste ponto, em que as teorizações sobre a ideologia derivadas do marxismo falham em não levar em conta o aspecto do desejo (ou melhor, dos impasses do desejo) presente em toda ideologia. Aqui, o autor se apoia no próprio trabalho de Lacan quando este procura extrair as consequências de se pensar a maisvalia de um ponto de vista psicanalítico, constituindo aquilo que Lacan designou como “maisgozar”. Para Zizek, a homologia que pode ser lida aqui consiste no fato de que há um paradoxo que marca o “mais-gozar”: “não se trata de um excedente que simplesmente se ligue a um gozo ‘normal’, ‘fundamental’, porque o gozo como tal só emerge nesse excedente, é constitu-

16

Zizek, 1989, pg. 320.

tivamente um ‘excesso’”17. Para ele, o funcionamento do mais-gozar é semelhante ao funcionamento do mais-valia, na medida em que ambos os conceitos designam o ponto de um sistema em que este funciona constituindo seu próprio excesso. Assim, nem na mais-valia nem no mais-gozar haveria um funcionamento harmônico, “normal”; em ambos os casos, o caráter excessivo está presente como constitutivo. Como salienta Zizek, “é essa, pois,a homologia entre mais-valia – a ‘causa’ que aciona o processo de produção capitalista – e o mais-gozar, objeto-causa do desejo”18. Aqui, o Judeu funciona perfeitamente como elemento ideológico, pois um excesso inerente ao próprio funcionamento (social, do desejo) é atribuído a uma força maléfica que nos impede de obter um gozo sadio. No entanto, esse conceito de fantasia ideológica não parece fazer a coisa funcionar demais, não casa muito bem Althusser e Lacan, e, portanto, não deveria nos fazer desconfiar de seu potencial excessivamente explicativo? Além disso, a própria designação “fantasia ideológica” não faz funcionar um sentido em que a um conceito psicanalítico (fantasia) é agregado um conceito marxista (ideologia), iludindo-nos de que bastaria adicionar um campo ao outro para se obter uma compreensão geral do funcionamento social? Ora, em Althusser, trata-se de explicar e compreender o fenômeno pelos quais os sujeitos se reconhecem no Sujeito e a si mesmos como sujeitos, e é a isto que o autor reserva a nomeação “ideologia”. Estamos, assim, no campo da identificação e em seu valor de amálgama dos laços sociais. Em Lacan, e deixo em aberto se se trata de movimentos sucessivos ou simultâneos, a questão é o enigma do desejo do outro, que coloca o vivente numa posição de absoluta dependência de um enigma insondável. Com a fantasia, tal enigma encontra uma resposta em que o sujeito, como sujeito desejante, pode se constituir. Antes de qualquer identificação possível, a captura pelo Outro via um objeto causa de desejo. Esta é a distinção que o próprio Zizek procura estabelecer. E é também esta distinção que parece ser elidida com o conceito proposto pelo autor. Neste ponto, parece-me que vale para Zizek a crítica em forma de anedota com que Pêcheux abre seu último livro: Vocês conhecem a história daquele velho teórico/erudito/marxista que queria fabricar sua biblioteca sozinho? para naqueles longínquos tempos em que os marxistas pensavam poder construir tudo por si mesmos: a economia, a história, a filosofia, a psicologia, a lingüística, a literatura, a sociologia, a arte... e as bibliotecas. As dificuldades com a confusão entre parafuso, rosca e porca. [...] assim, o velho marxista tinha absoluta convicção de estar equipado de parafusos celibatários marxistas, 17 18

Idem, pg. 329, grifos do autor. Idem, pg. 330.

quando na verdade não dispunha senão de roscas... sem porcas. [...] hoje o marxismo procura casar-se ou contrair relações extraconjugais...19

Neste “swing” epistemológico, penso que o importante é permanecer numa posição em que a incompletude seja reconhecida, isto é, em que se saiba que não há “teoria geral” do mundo, em que não se pode simplesmente supor que ao colocar lado a lado Marx, Freud e Saussure encontraremos um modo de compreender o social e a nós mesmos de forma totalizante, mas que uma tomada de posição é possível e, aqui, retomamos Pêcheux: “[...] construir procedimentos (modos de interrogação de dados e formas de raciocínio) capazes de abordar explicitamente o fato linguístico do equívoco como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico”20. É esta abertura do simbólico que permite tanto o surgimento da ideologia quanto da fantasia, sem o qual nós seríamos apenas seres de comunicação. Mas é também a pulsão, em seu sentido freudiano, que nos desnaturaliza e faz surgir o desejo, o qual aponta para um mais-além no qual nos constituímos. Entre significante e objeto de desejo, objeto causa de desejo, falta um nome que permitiria unificar o campo do discurso e o campo da psicanálise. E aqui, como diz Carvalho21, mais do que enfatizar as palavras, é preciso enfatizar os pontos, pois como disse Pêcheux no colóquio Materialidades Discursivas: “Há um real da língua. Há um real da história. Há um real do inconsciente”. Nesta “tripla asserção”, nenhuma vírgula, apenas pontos, que funcionam como pontos que ligam e, ao mesmo tempo, separam diferentes campos. Um (des)ligamento. Um desligamento que não é um abandono, mas o investimento em algo novo, em que não se abandonam as posições construídas pela análise do discurso em suas relações com a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise (o simbólico como espaço do equívoco, o sujeito do inconsciente como algo da ordem de uma pulsação, a ideologia como o campo da contradição), mas que nos orienta para uma seara sem nome, sertão, travessia. Como diria Pêcheux, ele, ainda: intervir filosoficamente obriga a tomar partido: eu tomo partido pelo fogo de um trabalho crítico, que, muito provavelmente, acabará por destruir a cidadela da ‘Tríplice Aliança’ como tal, embora haja, ao mesmo tempo, a possibilidade de que, por essa via, algo novo venha a nascer – contra o fogo incinerador que só produz fumaça.22

19

Pêcheux, 1983, pg. 17. Idem, pg. 51. 21 As mutações do discurso do mestre, texto apresentado no ENELIN 2011, na Univás (Pouso Alegre). 22 Pêcheux, 1978, pg. 294. 20

REFERÊNCIAS CARVALHO, F. Z. F. (2008) O sujeito no discurso: Pêcheux e Lacan. Tese de Doutorado, UFMG, 2008. KEHL, M. R., BUCCI, E. (2005) Videologias. São Paulo: Boitempo. LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2ª edição, 1996. LEBRUN, J. P. (2008) A perversão comum. Rio de Janeiro: Campo Matêmico. LEITE, N. V. A. (2005) “Só há causa daquilo que falha”. In: Estudos da língua(gem), n. 1, junho 2005. MARIANI, B. S. C., MAGALHÃES, B. (2011) “Eu quero ser feliz: o sujeito, seus desejos e a ideologia”. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C., MITTMANN, S.Memória e história na/da análise do discurso. Campinas: Mercado de Letras, 2011. MARIANI, B. S. C. (2009) “Sujeitos e discursos contemporâneos”. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C., MITTMANN, S. O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras. São Carlos: Claraluz. __________. (2010) “Textos e conceitos fundadores em Michel Pêcheux: uma retomada em Althusser e Lacan”. In: Alfa, v. 54. ORLANDI, E. P. (2007) “O sujeito discursivo contemporâneo: um exemplo”. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C. Análise de discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz. __________. (2009) “Historicidade, indivíduo e sociedade: o sujeito na contemporaneidade”. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C., MITTMANN, S. O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras. São Carlos: Claraluz. PLON, M. (2005) “Análise do discurso (de Michel Pêcheux) vs análise do inconsciente”. In: INDURSKY, F., FERREIRA, M. C. L. (orgs.) Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz. PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e Discurso – Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. __________. (1978) “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”. In: Semântica e Discurso – Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. __________. (1982) “O mecanismo do desconhecimento ideológico”. In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. __________. (1983) O discurso – estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2008. ROUDINESCO, E. (2006) A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

SAFATLE, V. (2008) Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo. __________. (2010) Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ZIZEK, S. (1989) “Como Marx inventou o sintoma?”. In: In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. __________. (1992) Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. São Paulo: Zahar.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.