(2012) OS SENTIDOS TOMANDO CORPO

June 13, 2017 | Autor: Lauro Baldini | Categoria: Análise do Discurso, Psicanálise
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OS SENTIDOS TOMANDO CORPO Lauro José Siqueira BALDINI1 Levi LEONEL DE SOUZA2

A escrita na pele atinge o processo de constituição dos sentidos? Esta é a questão proposta por Eni Orlandi em seu artigo “À flor da pele: indivíduo e sociedade”. Ali, a autora faz uma pergunta que usaremos como fio condutor deste trabalho: “Se [a tatuagem] atinge [o processo de constituição dos sentidos]”, continua a autora, “estamos diante de uma falha no ritual ideológico e temos assim a possibilidade de um furo no modo de individualização do sujeito moderno. Se não, estamos apenas diante de mais uma variável da tecnologia da escrita”3. Retomando a distinção proposta por Orlandi em seus últimos trabalhos entre o processo de assujeitamento e o processo de individuação, isto é, entre a entrada do sujeito no simbólico via interpelação pela ideologia e o modo como o Estado irá individuar o sujeito através de seus aparelhos, acreditamos poder confirmar que a tatuagem constitui sentidos pela produção de furo no modo de individuação; ela é a prova de falhas no ritual de evocação do sujeito em indivíduo. Neste “duplo movimento da subjetividade”, a tatuagem é por si mesma um passo no processo; de fato algo veio antes – a discursivização da carne ao ponto de que esta não seja apenas uma superfície na qual se escreve, mas, sim, na qual se inscreve, se marca por ranhuras no sentido. Como ser falante, o homem não vive seu corpo como um organismo natural, mas como parte de sua subjetividade. Como salienta Andrieu:

ser um corpo natural é atualmente insuficiente para o ser humano. A identidade singular do corpo recebeu da natureza alimento na sua matéria para possibilidades de uma normatividade nova. (...) O corpo humano não é somente biológico, pois ele produz na cultura normas adaptadas ao vivido de seu vivente4.

Ou, ainda, Lacan:

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Doutor em Linguística, professor-adjunto do curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da UNIVÁS. 2 Mestre em Linguística, psicanalista. 3 Orlandi (2006:29). 4 Andrieu (2004a:342), apud Paveau (2010:33).

O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de lá situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações do grupo, entre cada um e todos os outros. E, ao mesmo tempo, ela tem [a tatuagem], de maneira evidente, uma função erótica, de que todos que abordaram sua realidade se aperceberam 5.

É nesse sentido que pensamos a matéria corporal neste trabalho, ou seja, como um lugar de passagem da carne (biológica) ao corpo (discursivo), ou, em outras palavras, do organismo ao corpo vivido como lugar de subjetivação. Pensar a tatuagem como um texto é pensá-la como lugar de um processo discursivo, como instância em que se pode observar a materialização da ideologia. Além disso, o corpo é texto inacabado, como todo enunciado, e a pele do corpo, que por si mesma já é um texto, na tatuagem acaba por receber inscrições na forma de uma segunda pele textual; um corpo que já é conformado, organizado como uma linguagem, parafraseando Lacan6, recebe uma cobertura cortical de texto. Camada que está longe de ser apenas superficial, como se o corpo fosse apenas mais uma superfície na qual se grava por tecnologias da escrita. Na verdade, por meio dessa escrita, o sujeito se inscreve em um discurso, é evocado em uma forma-sujeito e funciona como o sujeito de um discurso. Arcabouço de linguagem, o corpo, em sua errância pelos sentidos é também coberto por essa pele de texto – os gestos, trejeitos, as conformações, a vestimenta, os ornamentos e a inscrição textual. A letra inscrita na carne do sujeito se imiscui em sua pele, realiza seu corpo, conforma sua língua, enforma sua ideologia7. Conforme afirma Paveau (2010:6), a tatuagem já foi objeto de considerações pelas mais diversas ciências, como a medicina, a psicanálise, a antropologia e a filosofia. O que o trabalho de Orlandi já citado permite avançar nesse sentido é a consideração da tatuagem como inscrição não apenas na pele, mas num discurso. Nesse trabalho, o corpo se faz suporte de um discurso; a inscrição (marca) do significante no corpo, implicando que o corpo é efeito de significantes – o corpo é significado.

5

Lacan (1964:195). “(...) e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição” (Lacan, 1998:260). Grifo nosso. 7 Como não ver na pele, com seus vincos, manchas, texturas, marcas, um texto no qual lemos idade, sexo, saúde, cuidados pessoais, rugas de preocupação, mãos de trabalhador braçal ou intelectual etc? Ou ainda, com a crescente onda de negação do texto da pele, justamente a falta desses elementos, na forma de peles que não chegam nem mesmo a produzir vincos, como no caso do Botox? E, além disso, certas formas de uso da tatuagem que se configuram como narrativas em que se pode ler toda a trajetória de um sujeito neste caso, estamos pensando no filme “Senhores do Crime” (2007), de David Cronenberg, e em Amnésia (2000), dirigido por Christopher Nolan. Infelizmente, a discussão de tais questões ultrapassa o escopo deste trabalho. 6

Como já tentamos dizer, em outros momentos, retomando alguns conceitos de Lacan e Winnicott8, há, de um lado, um real do corpo que comparece ora como evento sensório desprovido de sentido, ora como elemento resistente à significação, uma resistência a toda tentativa de totalização. Entre a falta de sentido e o sentido demasiado, o corpo se move contraditoriamente nos espaços da vida social, ora marcando sua integração no corpo social, ora resistindo a essa integração pela via de uma singularidade. Referimos o leitor aqui a uma nota de rodapé encontrada em Pêcheux (1975), em que o autor comenta a impossibilidade de um assujeitamento perfeito pela via das falhas inerentes a todo ritual ideológico:

E se a gente se dissesse que nada tem muita importância, que basta se habituar a fazer os mesmos gestos de uma forma sempre idêntica, aspirando somente à perfeição plácida da máquina? Tentação da morte. Mas a vida se revolta e resiste. O organismo resiste. Algo, no corpo e na cabeça, se fortalece contra a repetição e o nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que pende inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um falso movimento, a ‘reconstrução’, o ‘escoamento’, a tática do posto; tudo o que faz com que, nesse irrisório quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de trabalho, haja ainda acontecimentos, mesmo minúsculos, que haja ainda um tempo, mesmo monstruosamente estirado. Esse desajeito, esse deslocamento supérfluo, essa aceleração súbita, essa solda fracassada, essa mão que retoma a vida que se liga. Tudo o que, em cada um dos homens da cadeia, urra silenciosamente: ‘Eu não sou uma máquina’!9

É de se notar que Pêcheux traz para ilustrar o ponto de resistência e revolta presentes em todo investimento ideológico uma narrativa em que isso se dá pela via do corpo. Além disso, quanto ao aspecto de sua constituição, é preciso levar em conta, conforme afirma a psicanálise, que inicialmente o bebê vive seu corpo como fragmentário, diluído na indistinção eu/outro. E este corpo é atravessado pela linguagem, pois estamos desde sempre imersos no mundo do discurso. Há de se tentar sentidos a tais acontecimentos da carne, uma vez que se trata de significantes que não significam nada, pois, ao que propomos, se há significado para um significante, este já está no mundo da ideologia, do discurso, algo posterior às possíveis datas das inscrições da letra. Se isto for sustentável, essas marcas deverão ser inscritas no corpo, num momento em que não há sujeito como resultado da interpelação pela ideologia, sendo assemânticas, talvez um tempo anterior à letra, um momento pré-simbólico, para além do simbólico. Neste sentido, seguindo com Lacan, a letra inscrita no corpo mata o real (o real do corpo) que havia antes da letra, antes das palavras, antes da linguagem, 8 9

Baldini (2010) e Leonel de Souza (2009). Linhart (1978 :14), apud Pêcheux (1978: 306/307).

delimitando apenas vestígios do real no corpo. Trazendo Winnicott, diríamos que o real é aquilo que o bebê vive sem experimentar, nos primórdios de sua existência, antes de elaborar imaginativamente os eventos físicos, para trazê-los ao domínio da ordem simbólica. Ao ser socializado, o corpo sofre inscrições da letra matando o real – os significantes inscritos na carne – tornando a carne um corpo. A inscrição da letra delineia os lugares de gozo e de prazer (Lacan), ou se dá a elaboração imaginativa (Winnicott) do impossível da carne – impossível, aqui, aquilo que não se detém, mas que também não se deixa escrever. Aqui devemos trazer as contribuições freudianas a respeito do recalque originário (urverdrängung) – momento e lugar em que Freud (1926, p. 2833 e seg.) o separa do recalque posterior (o recalque propriamente dito, verdrängung). Ele designa o processo como a “inscrição” de uma representação no inconsciente. O recalque originário estaria no começo das primeiras formações inconscientes e só pode ser explicado por um contrainvestimento – um mecanismo que não provém do supereu, mas, possivelmente, de experiências arcaicas muito intensas, porém sem significado. Contudo, é necessário trazer à tona as contribuições da Análise de Discurso, para compreendermos que a ideologia é inconsciente. Esse aprofundamento da questão ajuda a dar um passo que consiste em perceber que a letra, um significante assemântico, está na base do indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia, pois como afirma Pêcheux,

[...] o non-sens do inconsciente, em que a interpelação encontra onde se agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu produto, porque o tempo da produção e o do produto não são sucessivos como para o mito platônico, mas estão inscritos na simultaneidade de um batimento, de uma ‘pulsação’ pela qual o non-sens do inconsciente não para de voltar no sujeito e no sentido que nele se pretende instalar10

Desse modo, Pêcheux passa a pensar a interpelação como um ritual com falhas, retorno do nonsense no sentido, o inconsciente como “a causa que determina o sujeito exatamente onde o efeito de interpelação o captura”11. Assim, a letra seria a marca do ideológico na forma de significantes que erigem o corpo marcando a carne. Essas marcas florescem numa estética da forma física, do vestuário e de signos inscritos/escritos sob/sobre a pele. O corpo traz em suas fímbrias 10 11

Pêcheux (1978:300), grifos do autor. Idem, ibidem.

(através de entrâncias, folículos, membros e em toda a extensão da pele, as arranhaduras, rasgos, perfurações, queimaduras, mutilações, cortes, distensões, enrugamento da compleição, engordamento, pinturas, barbeamento, depilação, coloração da pele, pintura das unhas, estriamento da pele, invasão por objetos e agulhas) vestígios da inscrição da ideologia e da entrada do sujeito na polis. Tais empreendimentos de marcação do corpo são balizamentos das trilhas da vida social, códigos da vida cultural, ciframento das formações discursivas do sujeito. São as marcas da inscrição da letra no corpo; significantes relacionados entre si pela cola do sentido e inscritos no corpo, dando vida à ideologia. O corpo, a própria presença viva do sujeito se torna palco do drama social, da vida sígnica, da encarnação semântica – resultado da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia é o organismo tornado signo pela inscrição do significante. Se em certos momentos o corpo é furado para significar, noutros é marcado à flor da pele, na forma de tatuagens, por exemplo. E é este o modo de inscrever a letra no corpo que nos tomará os últimos instantes deste trabalho. De todas as impressões, no sentido de inscrições e escrituras no corpo, determinadas pela ciosidade social, nos deteremos naquelas feitas diretamente no corpo, sem esquecer que a vestimenta, por exemplo, que num sentido bastante profundo e amplo tem as características da letra inscrita no corpo, inscrevendo-lhe significantes do mesmo modo que qualquer outra intervenção o faz. Um corpo vestido é um corpo inscrito numa ordem qualquer, ideológica por definição, fundando-se numa cadeia de significantes cujos elos remetem-se um ao outro, indefinidamente, reforçando os nós do tecido ideológico. Embora a noção de corpo se apresente, devido ao efeito ideológico, como transparente, inequívoca, evidente, na verdade o corpo é de difícil definição, demonstrando sua opacidade, sua gritante ambiguidade; são sentidos que se sobrepõem, mesclam-se, refundem-se. O corpo já teve, por exemplo, os sentidos de máquina, instrumento da alma, túmulo da alma, mecanismo, organismo, só para citar alguns deles. Contemporaneamente, os sentidos de corpo se alargaram a ponto de, como fica claro neste texto, aparecer um sentido discursivo de corpo, onde corpo e sujeito se confundem, se opõem, se excluem, mas sem que se faça, com isso, desaparecer os sentidos precedentes. Mais exatamente, nos vimos na contingência de aceitar uma

simultaneidade de sentidos de corpo que se sobredeterminam, fazendo efeitos uns nos outros12. Cremos, também, que o que se diz da linguagem pode ser aproximado do dizer sobre o corpo: há sistema e há sentidos. Do sistema (a carne, sua anatomia, fisiologia e biologia) podemos fazer metáfora (o corpo, seu discurso, suas expressões). Devido ao quanto é especial essa relação entre carne, corpo e sujeito, um se torna metáfora do outro, sem recobrir todos os seus sentidos mais exercidos. O corpo nos parece um lugar privilegiado da formulação dos sentidos, e, parafraseando Orlandi, achamos plausível dizer que ele é o campo onde “a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra (e se esconde)”13. Formulação de sentidos é o ato mesmo de “dar corpo aos sentidos”14 ao simbólico, ao histórico, num momento e território chamado corpo que é onde se dá o discurso na forma “do olhar, do trejeito, da tomada do corpo pela significação”15. “Os sentidos tomando corpo” lembram, com sua evidência material, a inelidível presença do corpo, no entanto, não se pode dizer que há transparência de seus sentidos, tal como na opacidade da linguagem. “O corpo do sujeito e o corpo da linguagem atravessados de discursividade, isto é, de efeitos desse confronto”16 do simbólico com o político, tornando o corpo opaco à investigação. Se o mesmo que se diz da linguagem pode-se dizer do corpo, quase sem ressalvas, podemos estender a consideração ao discurso. O corpo é não só um suporte material do discurso, mas talvez o mais importante de todos. E mesmo deveríamos pensar em considerá-lo, como vimos tentando fazer, apesar dos percalços de ordem teórica, como o próprio lugar do discurso. Com isso, queremos dizer que discurso é sujeito e sujeito é corpo; não um corpo completo, unívoco, mas, pelo contrário, um corpo de ambiguidades, ou, para ser mais próximo do que queremos enunciar, um corpo de contradições, tal como sujeito e discurso, ou o discurso do sujeito. Então passemos a considerar a tatuagem nos termos em que Orlandi já nos traduziu, e, pelo menos dentro dessa perspectiva que nos impusemos, verificar se isso

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Embora este trabalho não vise fazer um inventário dos sentidos de corpo que se sobrepõem, podemos sem grande esforço ver o corpo sendo evocado por sentidos de máquina ou mecanismo, nas pesquisas neuro-anatômicas e ao mesmo tempo com o sentido de instrumento da alma no catolicismo carismático em que o corpo que canta é ferramenta de um discurso religioso específico. 13 Orlandi (2001:9). 14 Idem, ibidem. 15 Idem, ibidem. 16 Idem, pg. 10.

pode nos ajudar a compreender a passagem da carne ao corpo, a discursivização da carne em corpo, bem como a ideia de que se pode falar em corpo-discursivo...

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Para surgir uma tal questão (a de que escrita na pele atinge o processo de constituição dos sentidos), o status do corpo, segundo nossa trajetória até aqui, deveria ser o de um corpo discursivo – não um corpo qualquer, mas um corpo talhado pelas inscrições da linguagem, e muito comumente, pelas escrituras na pele. Para que seja possível Orlandi se perguntar sobre se a tatuagem poderia movimentar o trabalho ideológico a ponto de um esgarçamento em sua malha simbólica, é porque a autora leva em conta o discursivo do corpo, propondo que a escrita na pele é uma inscrição subjetiva, na extensão e profundidade da constituição de sentido. Senão, vejamos: a escrita na pele, para ser apenas mais uma variante na tecnologia escrita, deveria ser vista como qualquer outro meio para escrever: a folha de papel, o outdoor, a parede, o filme etc.; um meio inanimado entre meios inanimados. Bastante diferentes da pele, que se nos aparece como vivente, não mera cobertura de um objeto. Entretanto, mesmo fazendo essa diferenciação entre meios inanimados e a pele animada, não podemos fugir ao efeito ideológico, linguístico-histórico, por excelência. Se, por exemplo, escolhemos o papel para escrever, ainda assim estamos no terreno da constituição de sentidos. Não se pode dizer que o termo “mais uma variável da tecnologia” coloca a questão em termos de mera tecnologia, o que não se pode afirmar, uma vez que a própria escolha do meio já é efeito ideológico e possui eficácia simbólica. Essa camada cortical de pele usada para base material de um texto certamente sofre os efeitos do peso simbólico de ser já corpo discursivo; desse modo nada há de inocente na escolha desse modo de escrever a subjetividade. Neste ponto, precisamente, devemos dizer que o corpo é discurso, antes mesmo da tatuagem. Sua escolha para inscrição da tatuagem já encerra o trabalho ideológico, o inconsciente, e com isso, a tatuagem (o ato de se deixar tatuar), só significa na medida em que se dá no corpo. Fora do corpo não há tatuagem; o desenho, antes de ser impregnado na pele, possui vida apenas por empréstimo da imaginação. Imagina-se o desenho na pele, transcendendo-o da pele-papel em direção à pele do sujeito – um sujeito fragmentado, coberto de escritas na carne que marcam sua entrada no campo do simbólico e da cultura: ornamentos, cicatrizes, tatuagens sem palavras, textos tatuados,

etc17. Ainda que nos atenhamos ao que a tatuagem significa para aquele que se deixa escrever na pele, e que este porventura não possa avalizar/avaliar em/com seu corpo o que pode significar “tatuagem”, de fato há um discurso que o atravessa, uma ideologia que dispõe de seu corpo, para todos os efeitos. Mesmo que suponhamos a tatuagem como produto fashion, no sentido de moda passageira, ainda assim a tatuagem constrói sentidos, usando uma pele discursiva. Se “meio” corresponde a “tecnologia escrita”, então a tecnologia escrita, por si mesma, já é interpretação e só de escolher o meio já se constitui sentidos. Não havendo uma mera tecnologia escrita parece que nos resta admitir que o corpo (a pele) não pode ser apenas suporte tecnológico de uma escrita. Uma vez que se tatua, marca-se o sujeito, mesmo que seja só para expor sua fragmentação de sujeito histórico-ideológico de mercado e individuado pelo Estado, cujo corpo é investido de sentidos. O corpo não pode ser considerado mera tecnologia escrita, assim como não se pode separar meio e mensagem desabando na distinção forma e conteúdo, o que é só mais uma dicotomia idealista. Escolher o meio em que se produz a escrita será, sempre, escolher a partir do sujeito ideológico e inconsciente, constituindo, já, interpretação, e, por conseguinte, constituindo sentidos. O mesmo se dá com a impossibilidade de separar o discurso de sua circulação ou os saberes das instituições que os sustentam. O corpo discursivo é consequência dos sentidos praticados entre sujeitos; sua heterogeneidade discursiva – vinda da memória do dizer e das condições de produção dos sentidos, faz com que as inscrições na pele sejam um modo de historicizar os embates pelo sentido que se dão em suas entranhas. O texto no/do corpo obedece às circunstâncias de enunciação específicas e dos efeitos de caos à flor da pele podemos entrever as regularidades e os deslizamentos do dizer. Retomando Paveau, podemos afirmar que também no corpo a história se inscreve no sujeito, para além de qualquer intencionalidade consciente. Na verdade, trata-se de uma dimensão de memória na qual o sujeito se marca/é marcado:

É preciso correlativamente sublinhar a forte dimensão memorial da tatuagem, o que se aproxima de um lugar de memória epidérmica que conserva a lembrança dos seres amados, dos acontecimentos da vida (puberdade, maternidade, casamento etc.), as batalhas livres (para alguns soldados, um corpo-estandarte se orna com o nome das 17

Remetemos o leitor ao excelente trabalho de Paveau (2010), que retoma em detalhe os diferentes tipos de inscrição na pele. No caso deste artigo, que busca transitar pela questão da tatuagem de forma mais genérica, não nos pareceu importante elaborar essas distinções.

vitórias), os sofrimentos sofridos (a tatuagem dos campos de concentração e prisão, à vocação “prática” para o tatuador, foi dotada pela história de uma função memorial, algumas vezes militante, para o tatuado), mas também de detalhes práticos como o grupo sangüíneo (hábito do SS e ainda de alguns exércitos contemporâneos). Deste ponto de vista, a democratização recente da tatuagem em nossas sociedades é sem dúvida um indicador que não deve ser negligenciado da construção das identidades e da gestão das memórias pessoais e coletivas. 18

Embora o sujeito possa construir imaginariamente para si uma intenção específica para essas marcas (e aqui não se faz necessário distinguir entre a marcação voluntária e a coercitiva), o que importa é que a tatuagem se insere na cadeia discursiva dos sentidos, produzindo efeitos de memória que vão além de uma individualidade e se configuram como espaços de interpretação socialmente construídos. A circulação dos corpos e suas escrituras se dão em conjunturas bastante demarcadas, sem, com isso, cristalizá-las, e as inscrições tem como objetivo balizar estas demarcações invisíveis e ambíguas. O corpo discursivo o é heterogeneamente discursivo, e por ser linguagem se define pelo atravessamento de discursos outros, mantendo-se entre os diferentes sentidos dados à sua linguagem as relações de contradição, de dominação, de confronto, de aliança e/ou de complementação. Nas inscrições na pele se faz furo no ideológico exatamente pela multivocidade do discurso do corpo: o discurso do Outro se mostra no corpo do sujeito, por meio de um texto préconstruído aquém e além. São textualizações do corpo que se apresentam como novas, mas guardam, por sua multiplicidade discursiva, um fator de incorporação de novos elementos, fazendo com que o sujeito veja algo no exterior. Heterogeneidade e préconstruído são essenciais para que se compreenda a possibilidade de que a vivência do/no corpo possa vir a ser experiência subjetiva. Se, de fato, as inscrições na pele fazem furo no simbólico, o fazem na e a partir da formação discursiva, que é a presença, no corpo, de uma certa escrita que anuncia uma certa formação ideológica, engajando língua e discurso, num conjunto mais ou menos regular de posições-sujeitos, de posições de classe, em conflito com outras corporeidades. Essa fonte de sentidos é definida a partir do Interdiscurso – vozes discursivas outras ecoando nos sentidos de um certo corpo, a partir de dentro de sua própria pele, penetrando-a; é a alteridade dentro do mesmo corpo, tornando-o

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Paveau (2010:33).

heterogêneo. Mas também faz furo pelo quanto de carne escapa do discursivo e a tatuagem pode bem ser um desses modos de tentar dar conta do real. A necessidade de discursivizar o real, pelo pavor ao seu advento, ao invés de tapar o furo o expõe. O resultado é que o sujeito entra no mundo simbólico por esse confronto – tentando fechar todos os buracos de sua edificação entra em contato com sua singularidade. Aqui, a singularidade do corpo do sujeito, versus a homogeneização do corpo pelo político, feita pela ideologia do Estado – que quer uma resposta ao investimento econômico no corpo do sujeito – resulta em resistência e insistência do sujeito. Esta será, entre outras formas, marcada na pele. Também, como se diz do discurso, as formações imaginárias estão presentes no corpo e são a resultante de antecipações das relações de força, trocas e conflitos econômicos entre classes que os sujeitos fazem do discurso dos outros sujeitos, destes com as posições que ocupam no espaço social e do já-dito. E que se diga: trata-se de posições na formação social que se dão pelas localizações espaciais dos corpos dos sujeitos. O corpo define o lugar do sujeito no espaço social – algo radicalmente material.

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Tendo à disposição as considerações feitas ao longo do texto e as observações acima, que imbricam o corpo e o discurso, voltemos à tatuagem e a aproximemos de alguns outros modos de simbolização. Acreditamos poder relacionar o que se diz da tatuagem ao que se diz do totem, do talismã e do amuleto. Nos parece que essa articulação pode continuar o que Orlandi nos diz, quando afirma que o corpo do sujeito é atado ao da cidade. Em primeiro olhar, retomando o trabalho de Paveau, é preciso considerar as tatuagens de um modo diferente do modo como eles vem sendo consideradas nas ciências humanas em geral. Para a autora, as tatuagens (escritas ou desenhadas) são vistas como “escrituras corporais, grafemas na pele que constituem ao mesmo tempo um discurso do corpo e um discurso sobre o corpo”19. A isto a autora tem reservado o nome de corpografese. Além disso, para a autora, a tatuagem confunde consideravelmente o circuito da produção discursiva, por duas razões: em primeiro

19

Idem, pg. 6/7.

lugar, “ela redistribui os papéis da enunciação linguageira, dado que ela opera um rompimento enunciativo do par locutor-inter-locutor e dos parâmetros espacial e temporal mesmo em uma versão renovada da teoria enunciativa (como a abordagem em termos de co-enunciação), no qual ela é móvel e eventualmente clandestina (tatuagens escondidas) e no qual ela mobiliza um contexto mais amplo que aquele da simples interação”20. Depois, e correlativamente, a tatuagem coloca em questão os fundamentos da teoria da enunciação:

primeiro o sujeito da enunciação que, bem longe de ser a instância benvenistiana individual e compreendida na teoria standard, se constitui mais de seu anonimato, de sua divisão e de difrações de suas inscrições; e em seguida o receptor ou enunciatário, que supõe “receber” o enunciado e construir o sentido por essa mesma recepção 21.

Pensamos que a tatuagem visa marcar de modo indelével a pertença a um grupo, fazendo a própria pele funcionar como as ranhuras de um totem, tanto no sentido de reconhecimento a um certo segmento da formação social, quanto no sentido de marcar limites, defendendo a subjetividade contra o caráter inominável do Real. O corpo funciona como totem e amuleto ao mesmo tempo. Dito de modo mais preciso ainda, o tatuado totemiza-se, demarcando seus limites, mas também “sendo” e veiculando sua “mensagem”. A demarcação é feita também de fora para dentro: o tatuado espera ser reconhecido, mas também respeitado, temido, pois suas marcas são uma espécie de sortilégio contra o sem-sentido e o aleatório. A aventura do sinal marcado na pele tem a ver com a domesticação do sentido, por meio de uma linguagem cifrada onde os sujeitos “inscrevem a escrita”22 tornando o próprio corpo um totem – um emblema de si mesmo. É uma trama engenhosamente tecida entre fazer o próprio corpo funcionar como um protetor do indivíduo, mas também de o próprio eu ser protegido por si mesmo. Essa fusão de propósitos embaralha a ideia de um corpo a pensar e um corpo a viver como um “eu sou”. A distinção entre o sujeito que objetifica e o sujeito como objeto. Essa experiência nos revela um modo de existência “ambíguo”: se nos aplicamos a entender o corpo como uma seriação de acontecimentos em terceira pessoa (por exemplo, como “visão”, “mobilidade”, “sexualidade”) acabaremos por vivenciar a desconcertante experiência de que essas funções não estão ligadas entre si e com o mundo externo por 20

Idem, pg. 7. Idem, ibidem. 22 Orlandi (2001:204). 21

uma relação de causalidade, mas estão todas fundidas e confundidas num único espaço – o espaço discursivo. Trata-se do que para a ideologia é a “visão”, “mobilidade” etc. Temos assim um corpo que funciona como espaço discursivo. Na perspectiva discursiva, o corpo tem o sentido de conjunto de significações vividas, e não como uma realidade material no sentido estrito; a percepção do corpo e através do corpo não é uma recepção passiva da experiência a partir de um ponto de vista “interior” à cabeça, mas uma relação ativa e viva do movimento e da consciência do espaço. Diríamos, para usar um termo de Lacan, uma relação entre sujeito e corpo, assintótica23, não coincidente. Ou seja, uma relação entre o sujeito e seu corpo, que faz efeitos, mas não se recobrem e nem consistem numa unidade construída de uma vez por todas da qual o “eu” seria o depósito. Nesse sentido, Pêcheux formula duas conclusões que nos parecem orientadoras e fundamentais: “se, na história da humanidade, a revolta é contemporânea à extorsão do sobre-trabalho é porque a luta de classes é o motor dessa história”24, e, ainda segundo Pêcheux: “e se, em outro plano, a revolta é contemporânea à linguagem, é porque sua própria possibilidade se sustenta na existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico”25. Nesse jogo entre sentido e non-sens, a tatuagem também se organiza contraditoriamente, marcando na pele tanto o sentido quanto a falta de sentido. Contudo, parece que há um contingente expressivo de indivíduos marcando sua pele num formato “da moda”. Mesmo a tatuagem, que interpretamos como protetora (talismã) e sinaliza pertencimento, acaba por sofrer corrosão pela força das implicações do sujeito de mercado, individuado pelo Estado. O que ao invés de invalidar as asserções acima, apenas confirma a linguagem da tatuagem e seu discurso. Sua linguagem pictórica é um folículo recobrindo o discurso estofado pelo datado (inconsciente) e uma tentativa de reunir os estilhaços do sujeito. Podemos colocar o que dissemos em uma dicotomia: Escrita no corpo versus inscrição no corpo – fazendo da própria carne um talismã. Escrever na pele, pensando-se como proprietário do argumento e evidência do sentido de uma tatuagem; enquanto que evocamos a inscrição como um acontecimento

“Mas o ponto importante é que essa forma [imagem corporal especular] situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá assintoticamente sua discordância de sua própria realidade” (Lacan, 1998:98). O grifo é nosso. 24 Pêcheux (1978:302). 25 Idem, ibidem. 23

imbricado na escrita que fura a pele e constitui o subjetivo. A inscrição da letra no corpo, afetando a distância entre corpo e letra, traçando na pele “o traço sagrado da letra”26, fechando o corpo com sentidos ocultos aos outros, fazendo do corpo um amuleto da sorte; do destino, por conseguinte. São manifestações significantes nesta maneira peculiar de circulação de sentidos; o corpo inscrito está no espaço entre o sujeito e o mundo, o mundo entre o corpo inscrito e o sujeito, tornando-o tocável por uma “tribo” e intocável pelos demais; e o corpo inscrito entre o mundo e o sujeito, meio onde “se textualiza e circula afetado pela existência de significantes”27. Usando as tatuagens como pontuações que visam o olhar do outro, empreendem um trabalho de construção de fronteiras, de cercas, que tanto protegem quanto aprisionam, nesse deslize constante do significante. Rabiscam suas letras dentro da carne na tentativa de conter o significante, de dar conta de um “transbordamento de um excesso de linguagem o tempo todo visível sobre o sujeito, que passou à necessidade de um excesso de marcas visíveis em si mesmo”28. O corpo textualizado na forma de “corpo-que-interpreta”29 busca conjurar o descontorno, o equívoco, o deslize de sentidos, o ambíguo; um corpo talismânico contra o retorno da letra (do real) e seus demônios. Inscrever textos no corpo afeta sua linguagem; agora o corpo totemizado, (diga-se também, objetalizado) como uma figa, pode reivindicar sua independência, tentando desesperadamente a substancialização. O sujeito tem a ilusão de poder dispor do sujeito-corpo como um objeto que desata males feitos e desrazões, como tão bem fazia Dom Quixote de La Mancha em sua caminhada resoluta pela justiça. A textualização do corpo funciona como um mapa dos descaminhos do sujeito frente a tudo poder ser dito e ter de dizer apenas algumas palavras. Ou ainda, de seu corpo poder significar tudo, porém acabar não significando mais do que pode significar. A tatuagem pode ser uma dessas buscas de jogar com o sentido e o non-sens, o assujeitamento e a revolta, a individuação e a resistência. Se a tatuagem é uma escritura de si na forma de inscrição, o indivíduo ao se tatuar, busca a diferença, ser sujeito de si mesmo, uma autoria de si, contra todas as tecnologias que o ameaçam de pasteurização, essa assinatura de si na própria pele é uma marca visível de processos de subjetivação, que atinge o processo de constituição dos sentidos. 26

Orlandi (2001:204) Orlandi (2001:207). 28 Idem, ibidem. 29 Idem, ibidem. 27

Se corpo e cidade podem ser aproximados ao ponto de virem a ser um corpocidade, isso só é possível porque território e carne foram politizados, individualizados e, finalmente, alocados pelos poderes sociais vigentes. Se isso em certo modo torna impossível o vislumbre de carne e chão, ao deslocarmos a visada para uma carne e terra teóricos, podemos evoluir uma série de questões exiladas, outras desterritorializadas e outras ainda pedindo um pedaço de chão para a sobrevivência. A constituição da carne em corpo talvez possua seu correlato (ou se poderia andar um pouco mais nessa aproximação) na constituição de terra em polis. Resta saber quanto mais se pode aproximar um sentido do outro; corpo e cidade estão atados, nos diz Orlandi, formando, em sua materialidade, cultura, economia e história um corpo urbano. Os sentidos de urbano e sujeito formam os horizontes do corpo; os sentidos de carne e terra formam as fronteiras da cidade. Finalizando esse percurso por algumas trilhas de sentidos praticados pelo corpo tatuado já podemos responder com segurança à pergunta que abriu nosso texto. O texto do corpo impõe básculas, deslizes e conformações não só ao processo de constituição, mas também aos de formulação e circulação dos sentidos. A tatuagem, como uma escrita de si na pele, faz furo nos modos de individuação do sujeito pelo poder e, também, nos processos de identificação ideológica. Como emblema de si, como totem grupal ou como amuleto, o corpo tatuado ultrapassa em complexidade as outras tecnologias escritas, aparecendo como o lugar cuja superfície e profundidade tanto o sujeito quanto a ideologia buscam colonizar. Textualizar a pele acaba por se tornar uma prática de si, uma cura, ou uma conjuração dos males do assujeitamento, uma vez que é terreno de disputa pelo Estado, pelo mercado e pelo capital, restando ao sujeito resistir. A tatuagem bem pode ser esta peça de resistência, ainda que sempre a ponto de ser sitiada, habitando ou criando falhas nos rituais de assujeitamento. Estrangeiro que vaga entre o privado e o político, uma vez tatuado, o corpo se torna uma cidadela do sujeito ou o lugar de uma submissão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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