(2012) UMA LEITURA POLÍTICA DO DESEJO

June 13, 2017 | Autor: Lauro Baldini | Categoria: Análise do Discurso, Psicanálise
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UMA LEITURA POLÍTICA DO DESEJO LAURO JOSÉ SIQUEIRA BALDINI1 Universidade do Vale do Sapucaí Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 37550-000 – Pouso Alegre – MG [email protected]

Resumo. Pretendemos trazer à discussão o conceito do filósofo esloveno Slavoj Zizek de fantasia ideológica (1990, 1994). Fazendo uma “leitura política” do grafo do desejo de Lacan, o autor indica que na última formulação do gráfico o nível de significação está abaixo do nível do gozo. Tendo isso em vista, o autor vê aí a necessidade de extrair o núcleo do gozo, mostrando como, além do campo da significação, mas, ao mesmo tempo, dentro desse campo, uma ideologia implica um gozo pré-ideológico que a estrutura. Palavras-chave.Fantasia ideologica. Slavoj Zizek. Leitura política. Desejo. Lacan Abstract. We intend to bring into discussion the concept of ideological fantasy carved by the Slovenian philosopher Slavoj Zizek (1990, 1994). Making a "political reading" of Lacan's graph of desire, the author indicates that the significance level is below the level of enjoyment on the last formulation of the graph. In view of this, the author sees the need to extract the nucleus of enjoyment, showing how, beyond the realm of meaning, but at the same time within that field, an ideology implies a pre-ideological enjoyment that structures it. Keywords. Ideological fantasy. Slavoj Zizek. Political reading. Desire. Lacan Retomo neste trabalho aspectos da pesquisa que venho desenvolvendo sobre a relação entre a questão do assujeitamento ideológico, tal como este conceito é pensado a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux, e a entrada na linguagem e, por consequência, no simbólico, a partir da psicanálise lacaniana. Na verdade, procuro ensaiar aqui algumas reflexões iniciais sobre a relação entre o conceito de ideologia e o conceito de inconsciente. De fato, é o próprio Pêcheux (1975) quem atenta para o fato de que há uma homologia entre o funcionamento da ideologia e o funcionamento do inconsciente. Ambas as estruturas, segundo o autor, funcionariam ocultando seu próprio funcionamento, e é neste ponto que resulta sua eficácia: “(...) permitam-me apenas ressaltar que o traço comum a essas duas estruturas (...) é o fato de elas operarem ocultando sua própria existência, produzindo uma rede de verdades „subjetivas‟ evidentes, com o „subjetivas‟ significando, aqui, não que afetam o sujeito, mas em que o sujeito se constitui”2. No já conhecido texto de sua “retificação”3, Pêcheux é mais incisivo, e aponta corajosamente para a necessidade de se pensar a ideologia e o inconsciente de um modo mais programático: “a ordem do inconsciente não coincide com a da ideologia, o recalque não se identifica nem com o assujeitamento nem com a repressão, 1

Professor-adjunto do curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da UNIVÁS. Pêcheux, 1975, pg. 148, grifos do autor. 3 “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”, texto de 1978. 2

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mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem referência ao registro inconsciente”4. Em muitos momentos, Pêcheux trata justamente de refletir sobre essa relação, apontando para uma espécie de “jogo” entre a produção das evidências (que se dá sob o domínio da interpelação) e o non-sens do inconsciente, que justamente atravessa e fratura as evidências construídas. Ainda seguindo Pêcheux, podemos afirmar que “o non-sens do inconsciente, em que a interpelação encontra onde se agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu produto, porque o tempo da produção e o do produto não são sucessivos como para o mito platônico, mas estão inscritos na simultaneidade de um batimento, de uma „pulsação‟ pela qual o non-sens inconsciente não pára de voltar no sujeito e no sentido que nele pretende se instalar”5. Pulsação, portanto, entre um sentido que se instala e a ruptura desse mesmo sentido. Lacan, em seu seminário de 19646, apontava para essa mesma questão em sua própria definição das manifestações do inconsciente: “tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela”7, demonstrando, assim, que o inconsciente se manifesta como “o que vacila num corte do sujeito”8. E, neste ponto, precisamos enfatizar que não se trata de manifestação das “profundezas” do ser humano, de conteúdos mentais expulsos da consciência, mas sim levar em conta que “o inconsciente freudiano nada tem a ver com as formas ditas do inconsciente que o precederam”9, já que este inconsciente, o freudiano (que é o inconsciente que interessa a Pêcheux), “não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante”10, mas sim uma estrutura de linguagem. É por isso que a muito repetida definição lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem encontra na linguística seu modelo de funcionamento: “a linguística, cujo modelo é o jogo combinatório operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva – é esta estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente”11. Homologia entre o funcionamento da linguagem e o do inconsciente, homologia entre inconsciente e ideologia, pontos de contato entre a interpelação e a “outra cena”, a do inconsciente... Tudo isso nos indica de maneira enfática a necessidade de se pensar a ideologia, o inconsciente e a linguagem no caminho aberto por Pêcheux, ou seja, retomando a figura essencial dos nomes de Freud, Marx e Saussure. Evidentemente, não se trata de deixar um campo ser recoberto pelos outros, nem de construir uma metateoria que suplantaria o esforço teórico de tais pensadores numa conjunção descuidada, mas de trabalhar na fímbria de cada espaço aberto por eles na relação uns com os outros, de estar atento às similitudes, mas também, e sobretudo, às diferenças. Parece-me que foi esse o esforço de Pêcheux na constituição da análise do discurso, esforço que nos exige a fidelidade de radicalizá-lo. Mas, como? O próprio Pêcheux nos dá indicações nesse sentido, quando comenta que as formações do inconsciente atestam para algo da impossibilidade do assujeitamento perfeito: “por esse viés, não estaria a série analítica sonho-lapso-ato falho-Witz encontrando obliquamente aqui algo que infecta constantemente a ideologia dominante no próprio interior das práticas em

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Pêcheux, 1978, pg. 301. Idem, pg. 300. 6 Lacan, 1964, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 7 Idem, pg. 30. 8 Idem, pg. 32. 9 Idem, pg. 29. 10 Idem, ibidem. 11 Idem, pg. 26. 5

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que ela tende a se realizar?”12. Assim, essa “série analítica” teria algo a ver com a irrupção, no próprio funcionamento da ideologia, de algo de outra ordem, da irrupção de uma “outra cena” na cena ideológica, como diz Pêcheux: “o lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica), bem que poderiam ter alguma coisa de muito preciso a ver com esse ponto sempre-já aí, essa origem não-detectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidia de alguma coisa „de uma outra ordem‟, vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio”13. É interessante notar que essa origem não detectável da revolta é relacionada com a detecção do aparecimento das formações do inconsciente como aquilo que põe obstáculo ao sucesso da interpelação. No entanto, como ressalta o autor, não se trata agora de “retraçar a vitória do lapso e do ato „falho‟ na interpelação ideológica não supõe que se faça agora do inconsciente a fonte da ideologia dominada”14 (o que, a meu ver, seria simplesmente retomar a forma romântica do inconsciente), mas, sim, nos levar a admitir que a luta de classes e a divisão do sujeito pela linguagem devem ser pensadas ao mesmo tempo. Ou, nas palavras de Pêcheux: “a especificidade dessas duas „descobertas‟ impede de fundi-las sob qualquer teoria que seja, mesmo sob uma teoria da revolta. Mas a constatação do preço pago por esse impedimento obriga a admitir que elas têm, politicamente, algo a ver uma com a outra”15. Parece-me que as ressalvas de Pêcheux à sua própria formulação do conceito de interpelação nos permitem pensar numa distinção que pode ser feita. De um lado, “a seqüência discursiva se vê atravessada, por um lado, pela heterogeneidade discursiva, confundindo os limites entre o sujeito e o Outro, afirmando o primado do interdiscurso e a constituição imaginária do Eu enunciador”16. Por outro lado, “a sequência discursiva se vê atravessada pelo real do inconsciente, provocando efeitos de ruptura que não podemos remeter diretamente à presença do Outro no discurso mas, sim, à Outra cena na qual supomos o sujeito do inconsciente, ali mesmo onde o sujeito se divide e se torna estranho à sua própria apresentação discursiva”17. Para mim, trata-se de dois momentos que devem ser pensados em sua relação: na interpelação, lidamos com um processo de identificação, e há, ainda, à alienação ao significante que caracteriza o surgimento do sujeito do inconsciente. Nesse sentido, penso que a interpelação deve ser considerada em sua relação com a constituição daquilo que Lacan denomina “fantasia fundamental”, figura que condensa a resposta do sujeito ao enigma do desejo do outro: “Que queres?”. Para Lacan, o sujeito tanto é determinado pela ordem simbólica quanto por sua relação a um objeto de gozo, e este par se conjuga na fantasia. A causa daquilo que falha, portanto, é vista por Lacan na relação entre sujeito do significante e objeto de gozo. -x-

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Pêcheux, 1978, pg. 301. Idem, ibidem. 14 Idem, ibidem. 15 Idem, pg. 302. 16 Carvalho, 2008, pg. 249. 17 Idem, pg. 249-250. 13

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Nesta segunda parte do texto, dando prosseguimento às questões que Pêcheux nos coloca, faremos uma breve leitura do modo como Slajov Zizek propõe o conceito de fantasia ideológica como uma maneira de pensar essas relações entre ideologia e inconsciente. Fazendo uma “leitura política” do grafo do desejo de Lacan, o autor indica que na última formulação do grafo o nível de significação está abaixo do nível do gozo. Tendo isso em vista, o autor vê aí a necessidade de formular duas análises do discurso complementares: uma procuraria desconstruir o texto, evidenciando como um dado campo ideológico é totalizado pela intervenção de pontos de basta, pontos de “identifixação”18; outra procuraria ir além desse campo e buscaria extrair o núcleo do gozo, mostrando como, além do campo da significação, mas, ao mesmo tempo, dentro desse campo, uma ideologia implica um gozo pré-ideológico que a estrutura. Mas o que o autor entende por fantasia ideológica? Por razões de espaço, não podemos aqui nos estender pelo modo como autor retoma o conceito marxista de fetichismo da mercadoria para compreender a lógica do fetiche e suas implicações para uma teoria da ideologia. O que me parece importante ressaltar aqui é que Zizek relê a máxima marxista “eles não o sabem, mas o fazem”, fazendo com que o acento recaia no fazer, e não no saber. Assim, no funcionamento cínico do discurso 19, os sujeitos “sabem muito bem como as coisas realmente são, mas continuam a agir como se não soubessem”20. Longe de operar fora da ideologia, o discurso cínico opera numa “dupla ilusão”: esta dupla ilusão “consiste em passar por cima da ilusão que estrutura nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão desconsiderada e inconsciente é o que se pode chamar de fantasia ideológica”21. Parece-nos que, nesse ponto, Zizek reelabora o conceito althusseriano de ideologia, ao formular o conceito de fantasia ideológica, em que o que está em jogo não é o desconhecimento ou a representação falsa e/ou imaginária da realidade. Assim, “o nível fundamental da ideologia, entretanto, não é de uma ilusão que mascare o verdadeiro estado de coisas, mas de uma fantasia (inconsciente) que estrutura nossa própria realidade social”22. Nesse sentido, a distância cínica é apenas um dos modos de permanecermos cegos, segundo Zizek, para o poder estruturante da fantasia ideológica, pois “mesmo que não levemos as coisas a sério, mesmo que mantenhamos uma distância irônica, continuaremos a fazê-las”23. E é aqui que, para Zizek, a leitura do texto como sintoma apresenta seus limites, uma vez que nesse nível, não se trata de interpretar o sintoma para fazer perecer seu poder de fixação, mas sim de atravessar a fantasia, isto é, a tela fantasmática que nos abriga do núcleo traumático que estrutura nossa experiência viva de seres falantes. Essa tela mascara um núcleo traumático que seria interessante para a Análise de Discurso trabalhar, em sua relação: do lado da língua, a lógica do significante, o simbólico como instância puramente diferencial, sem substância; do lado da história, a luta de classes, uma divisão social traumática que não pode ser integrada à rede simbólica e, por fim, do lado do inconsciente, a impossibilidade da relação sexual.

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Devo essa expressão a Eni Orlandi. Não iremos retomar essa discussão aqui, mas apontamos para o fato de que Zizek formula a necessidade de se pensar que o funcionamento discursivo, contemporaneamente, se dá sob uma forma cínica, retomando os trabalhos de Peter Sloterdijk, notamente a “Crítica da razão cínica”, de 1983. 20 Zizek, 1989, pg. 316. 21 Idem, ibidem. 22 Idem, ibidem. 23 Idem, ibidem. 19

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Não estaríamos, aqui, trabalhando, ao mesmo tempo, dentro e fora da ideologia, na medida em que “antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico, o sujeito ($) é captado pelo Outro através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (a), mediante o segredo supostamente oculto no Outro: $a – a fórmula lacaniana da fantasia”?24. Não estaríamos, nesse ponto, justamente no seio daquilo que estrutura a própria ideologia e, além disso, daquilo que estrutura a própria Análise de Discurso? Como diz Leite (2005), o conceito de causa em psicanálise refere-se a algo que excede a Cadeia simbólica, embora seja produzido por ela. Nas palavras da autora, “o sujeito tanto é determinado pela ordem simbólica, pelo significante, quanto pela sua relação a um objeto de gozo, um objeto libidinal. Essa relação entre um sujeito e um objeto causa de desejo é o que se conjuga na fantasia”. Na fantasia, aprendemos como desejar. Diante do enigma insustentável do desejo do outro, a fantasia aparece como uma resposta que possibilita ao ser falante estruturar e coordenar seu desejo. É por isso que Lacan atribui à fantasia o caráter de “tela”, de anteparo que protege contra o abismo do desejo do Outro, ao constituir uma cena na qual o sujeito pode se orientar para além de uma pura submissão ao vazio do desejo do Outro. A meu ver, para além do quadro estabelecido por Pêcheux para explicar as determinações sócio-históricas a que está submetido o sujeito do discurso, por exemplo, pelas vias da identificação, contra-identificação e des-identificação, deveríamos pensar no investimento libidinal que nos orienta para além (para aquém) da identificação ideológica: trata-se mais propriamente de um sacrifício: Afirmo que nenhum sentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas, é capaz de dar conta desta ressurgência, pela qual se verifica que a oferenda, a deuses obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podem deixar de sucumbir, numa captura monstruosa. A ignorância, a indiferença, o desvio do olhar, podem explicar sob que véu ainda resta escondido esse mistério. Mas para quem quer que seja capaz de dirigir, para esse fenômeno, um olhar corajoso – e, ainda uma vez, certamente há poucos que não sucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro que eu chamo aqui o Deus Obscuro. (LACAN, 1964, pg. 259).

Nesse sentido, o cínico não estaria fora da ideologia, mas integralmente submetido a ela, já que, apesar de denunciar toda normatização, no mesmo movimento se entrega a esse Deus obscuro, o qual denuncia e segue como fiel fanático, na tentativa de elidir a figura da castração. É isso que Zizek procura conceituar com o conceito de fantasia ideológica, quando, por exemplo, distingue o Judeu como sintoma e o Judeu como elemento da fantasia. Para Zizek, no nível fundamental do antissemitismo, o Judeu encarna, como um sintoma, a impossibilidade de existência da sociedade, uma vez que é associado a uma força que corrói e corrompe o tecido social sadio. No entanto, essa explicação sintomática não basta para compreender o fascínio exercido pelo Judeu no antissemitismo: é preciso ver o lugar que este ocupa na “fantasia ideológica”: diante da impossibilidade da existência da sociedade como um todo orgânico e organizado, o Judeu funciona como um fetiche que ao mesmo tempo “desmente e encarna a impossibilidade estrutural da sociedade”25, como diz o autor. Para o nazismo, a sociedade não existe porque o Judeu desagrega o tecido social, e precisa portanto ser elimina24 25

Idem, ibidem. Zizek, 1992, pg. 124.

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do. Assim, o Judeu funciona como objeto de gozo na medida em que encarna de maneira positiva uma tela protetora contra o fato de que a razão de não existir a sociedade se deve a um antagonismo estrutural que não pode ser elidido, ou seja, a Luta de Classes. Como diz Lacan, o que é excluído do simbólico retorna no real, neste caso, retorna no real como obra do Judeu. É o que Zizek salienta quando afirma: “o Judeu é, para o fascismo, o meio de levar em conta, de fazer uma imagem de sua própria impossibilidade (...) Por isso, não é suficiente designar o projeto totalitário como impossível, utópico e desejoso de estabelecer uma sociedade totalmente transparente e homogênea: o problema é que, de certa maneira, a ideologia totalitária sabe disso, reconhece-o de antemão: na figura do Judeu, ela inclui esse saber em sua construção. Toda ideologia fascista se estrutura como uma luta contra o elemento que ocupa o lugar impossibilidade imamente do próprio projeto fascista: o Judeu é apenas uma encarnação fetichista de uma certa barreira fundamental”26. É a isso, esse mecanismo de a ideologia levar em conta antecipadamente sua própria falha, que Zizek chama de Fantasia ideológica. Como diz Carvalho (2008), “a fantasia designa, na álgebra lacaniana, o obstáculo do „sonho ideológico‟, o ponto impossível em que o sujeito não cede de seu gozo, do qual o marxista o pensa privado pela usurpação da mais-valia. O que Marx forclui, e que retorna tanto nas contradições do totalitarismo quanto do “socialismo real” é, portanto, a dimensão impossível da „fantasia ideológica de um gozo regulamentado e finalmente dominado‟ (ŽIŽEK 1991, p. 156).”27. No entanto, não seria a formulação da “fantasia ideológica” proposta por Zizek mais um meio de negar o esforço de Pêcheux de pensar a relação entre ideologia e inconsciente sem recobrimento de uma coisa pela outra? O conceito formulado por Zizek não encarnaria, ele também, a barreira fundamental entre ideologia e inconsciente, estruturas, como disse, Pêcheux, que devem ser pensadas como relacionadas, mas sem a fantasia impossível de um conceito de que viesse a fundi-las numa teoria única lacano-marxista? O enigma segue nos colocando a trabalhar... Não deveríamos investir numa leitura política do desejo, mas não no sentido de usar Lacan para o que falta a Marx, nem vice-versa? A “hiante ausência” mencionada por Pêcheux parece apontar para este caminho, em que a falta é assim mantida, como falta que orienta nosso desejo, inclusive o teórico...

Referências CARVALHO, F. Z. F. (2008) O sujeito no discurso: Pêcheux e Lacan. Tese de Doutorado, UFMG, 2008. LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2ª edição, 1996. LEITE, N. V. A. (2005) “Só há causa daquilo que falha”. In: Estudos da língua(gem), n. 1, junho 2005. MARIANI, B. S. C. (2010) “Textos e conceitos fundadores em Michel Pêcheux: uma retomada em Althusser e Lacan”. In: Alfa, v. 54. ORLANDI, E. P. (2007) “O sujeito discursivo contemporâneo: um exemplo”. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C. Análise de discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz. 26 27

Idem, ibidem. Carvalho, 2008, pg. 221.

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PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e Discurso – Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. _________. (1978) “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”. In: Semântica e Discurso – Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. _________. (1982) “O mecanismo do desconhecimento ideológico”. In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. _________. (1983) O discurso – estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2008. PLON, M. (2005) “Análise do discurso (de Michel Pêcheux) vs análise do inconsciente”. In: INDURSKY, F., FERREIRA, M. C. L. (orgs.) Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz. ZIZEK, S. (1989) “Como Marx inventou o sintoma?”. In: In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. _________. (1992) Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. São Paulo: Zahar.

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