(2012) Video no limite: os ensaios audiovisuais de Jean-Luc Godard entre o cinema e a media art

June 1, 2017 | Autor: G. Machado Ramos ... | Categoria: Media Arts, Cinema, Jean-Luc Godard, Ensaio fílmico, Essay Film
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Vídeo no limite: os ensaios audiovisuais de Jean-Luc Godard entre o cinema e a media art Gabriela Machado Ramos de Almeida Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Resumen: O trabalho se propõe a analisar a série de ensaios em vídeo História(s) do Cinema, produzida por Jean-Luc Godard entre 1988 e 1998, com o objetivo de pensar os ensaios audiovisuais de Godard como obras localizadas entre o cinema e a media art. A análise se dará à luz das contribuições sobre media art, estética do vídeo e formas expressivas da contemporaneidade de autores como Philippe Dubois, Raymond Bellour, Arlindo Machado, André Parente, Kátia Maciel e Christine Mello, que vêm pensando o vídeo como um mecanismo relacional entre diferentes artes, produtor de um metadiscurso sobre o cinema e cuja potência se situa, no caso específico de Godard, sobretudo num efeito de “pensamento ao vivo” alcançado a partir da manipulação de imagens de arquivo e de colagens de materiais das mais diversas naturezas e origens. Ao situar História(s) do Cinema entre o cinema e a media art, pretende-se também trazer à discussão o teor idiossincrático da obra em sua essência: uma história do cinema e do século XX absolutamente personalística e autoral, contada por meio do vídeo e produzida para veiculação na televisão, que, assim, problematiza e canibaliza a imagem eletrônica em suas diversas manifestações. Tal perspectiva nos ajuda a refletir sobre certa produção audiovisual – aqui chamada de ensaio - em que o vídeo aparece como ambiente privilegiado de desconstrução, compartilhamento e contaminação entre diversas formas artísticas. Palabras clave: Ensaio audiovisual - estética do vídeo - media art - Jean-Luc Godard.

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Vídeo no limite: os ensaios audiovisuais de Jean-Luc Godard entre o cinema e a media art Em 1979, Jean-Luc Godard proferiu uma série de conferências no Conservatório de Arte Cinematográfica de Montreal, em que associava cinema e história, com a proposta de chegar a um roteiro para um possível conjunto de filmes chamado “Introdução a uma Verdadeira História do Cinema”. Destas conferências resultaram um livro homônimo, publicado em 1989, e os oito ensaios audiovisuais que compõem a série História(s) do Cinema, produzida entre 1988 e 1998 sob demanda da emisora de televisão francesa Canal+. Considerada a obra máxima de Godard e um dos produtos mais relevantes e experimentais já produzidos para veiculação em televisão, a série História(s) do Cinema é apontada também como ensaio audiovisual exemplar 1. O que interessa a este trabalho é problematizar o teor idiossincrático da obra em sua essência: uma história do cinema e do século XX absolutamente personalística e autoral, contada por meio do vídeo e produzida para exibição na TV, que, assim, problematiza e canibaliza a imagem eletrônica em suas diversas manifestações. A partir de um olhar sobre História(s) do Cinema, busca-se também situar o vídeo como locus privilegiado de desconstrução, compartilhamento e contaminação entre diversas formas artísticas, e discutir o modo como certas experiências audiovisuais acabam situando-se entre o cinema e a media art, tornando-se difícil pensá-las a partir de categorias excesivamente delimitadas. O que é História(s) do Cinema? Cinema? Televisão? Vídeo? Media Art? Um pouco de tudo? Faz sentido ainda pensar uma obra audiovisual como esta buscando localizar nela especificidades das estruturas estéticas de cada uma destas linguagens? É possível identificar na série o momento exato em que uma linguagem expressiva termina e outra começa, ou trata-se muito mais de um diálogo entre diferentes manifestações que tem como ponto de interlocução a imagem? A análise se dará à luz das contribuições sobre estética do vídeo, media art e formas expressivas da contemporaneidade de autores como Philippe Dubois, Raymond Bellour, Arlindo Machado, André Parente e Kátia Maciel. O vídeo aparece como um 1

Ponto de vista partilhado, por exemplo, por Arlindo Machado e Antonio Weinrichter, sendo possível afirmar que grande parte dos estudos sobre o filme-ensaio, mesmo quando não se dedicam especificamente a Jean-Luc Godard ou à sua série, referem-se a História(s) do Cinema como uma espécie de “cânone” (note-se que, de um total de 11 artigos sobre o ensaísmo no cinema que estão reunidos no livro La Forma que Piensa. Tentativas em Torno del Cine-Ensayo, organizado por Weinrichter, apenas 4 não mencionam a obra). 2

mecanismo relacional entre diferentes artes, produtor de um metadiscurso sobre o cinema e cuja potência se situa, no caso específico de Godard, sobretudo num efeito de “pensamento ao vivo” alcançado a partir da manipulação de imagens de arquivo e de colagens de materiais das mais diversas naturezas e origens. Um cinema impuro? Cada um à sua maneira, diversos autores vêm se ocupando de uma questão que parece inquietá-los: uma certa “crise” da imagem e a valorização de um cinema que se quer impuro, que vale-se de todas as demais artes e cujo valor se localiza justamente na forma

como

processa

metalinguisticamente

inúmeras

referências,

enquanto

simultaneamente pensa o próprio fazer-cinema. Raymond Bellour formula o conceito de “entre-imagens” para referir-se a um outro tempo da imagem em que entramos com o vídeo e tudo o que ele implica (1997, p.15), tomando como preocupação central os cruzamentos entre o cinema e as imagens eletrônicas. Bellour baseia a sua discussão sobretudo em dois nomes principais e suas obras, Thierry Kunztel e Godard. Philippe Dubois, em seus escritos mais recentes, vem se ocupando de um “efeito-cinema” na arte contemporânea e também do cinema de exposição. Para o autor, o “efeito-cinema” vem se revelando há pelo menos vinte anos nos níveis institucional, artístico e teórico (2009, p. 181). Ao expor obras implicando o cinema, a arte contemporânea colocaria em xeque as identidades de cada uma destas expressões e tornaria habituais as misturas, “semeando a dúvida e a inquietação acerca da questão da ‘natureza’ dos fenômenos que acompanhamos.” (Ibidem, p. 182). Segundo Dubois, Um dos pontos centrais do problema é este: o que vemos nas exposições (ainda) é ‘cinema’? Foi o cinema que “migrou” (Païni, 2001), como se diz, abandonando suas salas escuras por outras mais luminosas de museu – por que, com que propósito? Ou o cinema foi renegado, deturpado, transformado, metamorfoseado – em quê? Haveria um “para além” ou um “depois” do cinema, como se este não existisse mais? (...) Cinema de exposição? Pós-cinema? Outro Cinema? Terceiro cinema? Pouco importam os rótulos. É evidente que a questão posta é justamente a da identidade ou natureza “do cinema”, uma natureza, portanto, suposta, que se descobre e se revela hipotética (lá onde ela se acreditaria segura de si, sólida em sua particularidade); uma natureza que se sente hoje questionada, relativizada, abalada, transformada, quem sabe traída, para não dizer em via de desaparecimento (o cinema, “vanishing art”?). (Ibidem, p. 182-183). 3

A discussão proposta por Dubois engloba não apenas o questionamento acerca de uma natureza maculada do cinema a partir do contato com a arte (e atribuída sobretudo à videoarte e ao cinema experimental, os grandes responsáveis pela conexão entre os dois universos), mas também às questões dos dispositivos cinematográfico e artístico e da fruição espectatorial. Ainda que, num primeiro momento, a abordagem de Dubois se dê à luz de Bordieu, buscando mostrar que o entrecruzamento entre arte e cinema não se restringe ao plano estético e deve ser considerado também a partir do ponto de vista da legitimação simbólica de cada um dos dois campos, a preocupação central do autor é tentar identificar os pontos-chave deste diálogo e os mecanismos que propiciaram o contato. Dubois questiona: “Nessas transferências e deserções, nessas migrações e nesses cruzamentos, quem do cinema ou da arte contemporânea ganha e quem perde? E quem ganha ou perde o quê?” (Ibidem, p. 183). Entre autores brasileiros, é possível destacar as contribuições de Arlindo Machado, de um lado, e André Parente e Kátia Maciel, do outro. Enquanto Machado ocupa-se de pensar a imagem eletrônica e a media art sob o ponto de vista das poéticas tecnológicas e da Comunicação, André Parente e Kátia Maciel alinham-se mais às perspectivas de Bellour e Dubois no sentido de pensar o cinema em sua intersecção com a arte. Maciel cria o conceito de “transcinemas” para referir-se a “(...) formas híbridas entre a experiência das artes visuais e do cinema na criação de um espaço para o envolvimento sensorial do espectador.” (2009, p. 17), enquanto Parente aponta variações e rupturas na “forma cinema”, sobretudo os aspectos conceituais, históricos e técnicos do dispositivo cinematográfico, e uma mudança de olhar do ponto de vista teórico: a imagem é tomada não mais como objeto, mas como acontecimento (Ibidem, p. 23). Estas transformações no dispositivo cinematográfico teriam sido mais visíveis, segundo Parente, em cinco momentos fortes: “cinema do dispositivo, cinema experimental, arte do vídeo, cinema expandido2 e cinema interativo” (Ibidem, p. 25). As perspectivas de Parente e Maciel se alinham ao pensar uma experiência contemporânea de cinema que é necessariamente imersiva, que não se completa sem que o espectador

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Conceito formulado por Gene Youngblood no clássico livro Expanded cinema, publicado em 1970. André Parente busca ampliar a noção de cinema expandido segundo Youngblood, caracterizando-o a partir de duas vertentes: “as instalações que reiventam a sala de cinema em outros espaços e as instalações que radicalizam processos de hibridização entre diferentes mídias. Enquanto o cinema experimental se restringe a experimentações com o cinema e a videoarte se notabiliza pelo uso da imagem eletrônica, o cinema expandido é o cinema ampliado, o cinema ambiental, o cinema hibridizado.” (2009, p. 41) 4

esteja incluso na obra, num tipo de demanda fruitiva muito distinta daquela associada mais comumente ao dispositivo do cinema (sala escura, tela, projeção). Já Arlindo Machado, no livro Arte e mídia (2007), centra o debate no modo como o uso criativo do vídeo a partir dos anos de 1960, com a videoarte, reiventou a maneira de lidar com uma tecnologia. Para ele, as obras realmente fundantes da media art (ou artemídia, como prefere o autor3) são aquelas que subvertem o uso primeiro do meio, que o reinventam e fazem dele um uso não-convencional, fora das probabilidades inicialmente previstas e programadas. Machado imbui a artemídia de um potencial político e ideológico, ao afirmar que um dos papéis mais relevantes da arte numa sociedade tecnocrática seja “a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas.” (2007, p. 14). Para o autor, O desafio atual da artemídia não está, portanto, na mera apologia ingênua das atuais possibilidades de criação: a artemídia deve, pelo contrário, traçar uma diferença nítida entre o que é, de um lado, a produção industrial de estímulos agradáveis para as mídias de massa e, de outro, a busca de uma ética e uma estética para a era eletrônica.” (Ibidem, p. 16-17)

Arlindo Machado considera a artemídia um dos mais poderosos instrumentos críticos que podem ser utilizados a serviço da reflexão sobre a constituição e a organização das sociedades contemporâneas, justamente por representar uma “metalinguagem da sociedade midiática” e ser produzida no interior dos modelos econômicos vigentes. “A arte sempre foi produzida com os meios do seu tempo (2004)”, ele afirma, e a artemídia possibilitaria o exercício da crítica aos modelos vigentes de normatização e controle sociais no interior da própria mídia, e não apenas nos “guetos acadêmicos ou nos espaços tradicionais da arte” (2007, p. 17). Assim, certas experiências dentro da cultura audiovisual contemporânea operariam como metáforas epistemológicas:

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Arlindo Machado define artemídia do seguinte modo como as “(...) experiências de diálogo, colaboração, e intervenção crítica nos meios de comunicação de massa. Mas, por extensão, abrange também quaisquer experiências artísticas que utilizem os recursos tecnológicos recentemente desenvolvidos, sobretudo nos campos da eletrônica, da informática e da engenharia biológica (...). Neste sentido, ‘artemídia’ engloba e extrapola expressões anteriores como ‘arte e tecnologia’, ‘artes eletrônicas’, ‘arte-comunicação’, ‘poéticas tecnológicas’ etc.” (2007, p. 7-8). 5

Se for possível reduzir a uma palavra o projeto estético e semiótico que está pressuposto em grande parte da produção audiovisual mais recente, podemos dizer que se trata de uma procura sem tréguas dessa multiplicidade que exprime o modo de conhecimento do homem contemporáneo. (Ibidem, p. 73).

Durante muito tempo, o olhar acerca das poéticas tecnológicas se deu sempre na busca pelas especificidades e características distintivas dos novos meios (sobretudo no caso do vídeo), e não pelo diálogo entre os meios ditos tradicionais e aqueles emergentes. Explorar o que fosse único e próprio do vídeo talvez tenha sido um modo de afirmá-lo como forma expressiva legítima e não tão devedora do cinema ou da televisão, mas impediu também enxergar zonas de interseção entre linguagens e práticas compartilhadas – e neste sentido as contribuições recentes de autores como os que já foram citados aqui vêm suprindo esta “demanda” por uma perspectiva em que os meios não sejam excludentes entre si. E o movimento pernamente de expansão dos “núcleos duros” dos meios, segundo Arlindo Machado, acaba por ampliar também as interseções entre eles no âmbito estético (Ibidem, p. 65). A respeito de “História(s) do Cinema “ Ao falar em aproximações e cruzamentos, e não em distinções, Machado acaba descrevendo práticas típicas da artemídia que são bastante semelhantes àquelas associadas ao modo formativo de Godard na série que tomamos como objeto de análise, História(s) do Cinema: Cada plano agora é um híbrido, em que já não se pode mais determinar a natureza de cada um dos seus elementos constitutivos, tamanha é a mistura, a sobreposição, o empilhamento de procedimentos diversos, sejam eles antigos ou modernos, sofisticados ou elementares, tecnológicos ou artesanais. O próprio conceito de ‘plano’, importado do cinema tradicional, releva-se cada vez mais inadequado para descrever o processo organizativo das imagens, pois em geral há uma infinidade de ‘planos’ dentro de cada tela, encavalados, superpostos, recortados uns dentro dos outros. Não só as origens são diferentes, mas essas imagens estão ainda migrando o tempo todo de um meio a outro, de uma natureza a outra (pictórica, fotoquímica, eletrônica, digital), a ponto de este trânsito permanente se tornar sua característica mais marcante. Muitos materiais utilizados, inclusive, são reciclagens de imagens em circulação nos meios de massa, cujas origens já se perderam”. (Ibidem, p. 70).

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História(s) do Cinema é exemplar de um tipo de produção audiovisual marcado por uma forte inflexão ensaística, que pensa o cinema a partir da apropriação de materiais advindos das mais diversas manifestações artísticas, como o vídeo, as artes visuais, a pintura, a música e a própria literatura. À maneira dos autores nos quais este trabalho se baseia, a busca aqui não se dá no intuito de localizar especificidades na linguagem do cinema ou do vídeo com o intuito de diferenciá-los ou colocá-los em oposição, mas sim de pensar cinema e vídeo em uma relação de complementariedade (como, aliás, parece ter se dado desde sempre esta relação na própria trajetória de Godard como cineasta). Arlindo Machado (1997, p. 204) nota que Godard e Antonioni, justamente os dois cineastas que levaram mais longe o diálogo entre o cinema e os meios eletrônicos, foram os que fugiram de definições reducionistas a respeito do fim do cinema em suas respostas à apocalíptica questão de Win Wenders no filme Quarto 666 (Room 666, 1982). Para o autor, a verdadeira questão seria a possibilidade de reinvenção do cinema a partir da incorporação dos meios eletrônicos – exatamente o que Godard e Antonioni alcançaram com as obras híbridas que passaram a produzir incorporando o uso criativo e autoral do vídeo não como mero suporte de registro, mas como escritura, como linguagem e estética próprias e passíveis de serem incorporadas pelo cinema, e também como mecanismo relacional entre o cinema, o próprio vídeo e as demais artes. Muito antes de se debruçar sobre a monumental realização de História(s) do Cinema, Godard já havia realizado uma série de experiências em vídeo, com destaque para a sequência de ensaios-fílmicos produzidos durante a década de 1970: Ici et ailleurs (1974), Numéro deux (1975) e Comment ça va (1976). Se o trânsito de Godard entre o vídeo e o cinema pareceu sempre tão natural, é possível que seja por que ele não coloca os dois meios em oposição, não transforma as diferenças entre eles numa “questão”, num “problema”.4 De certa maneira, o diálogo do cinema com o vídeo na obra de cineastas como Godard dá continuidade “a um conjunto de atitudes conceituais,

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Neste sentido, Dubois diz que “O universo de Godard constitui menos uma sucessão de períodos espalhados por rupturas radicais do que um bloco singularmente sólido e profundamente coerente, espécie de matéria geral flutuante, cujos estados não passam de ângulos de visão diferentes e sempre articulados em torno das mesmas lancinantes questões.” (2004, p. 261). Ou seja, mais do que por momentos estanques, a obra de Godard é marcada por certa coerência e uma espécie de fidelidade a determinados temas e questionamentos que, em maior ou menor escala, se apresentam sempre recorrentes em seus filmes. 7

técnicas e estéticas que remontam às experiências não-narrativas ou não-figurativas de René Clair e Dziga Vertov no início do século (...)” (MACHADO, 1997, p. 212).5 A prática de colagens de Godard é definida por Philippe Dubois como um processo de análise, decomposição e recomposição que ao longo da trajetória do cineasta vai se tornando maciça e sistemática. Nos anos de 1970, se manifestou por meio da série de ensaios fílmicos já mencionada e continuou com os video-roteiros Six fois deux (1976) e France/tour/détour/deux/enfants (1978), nos quais Godard desenvolveria figuras de escrita videográfica às quais voltaria posteriormente em novos video-roteiros, como Scenario du film passion (1982) e também em outras filmes (as sobreimpressões, a câmera lenta e a música na imagem etc). As experiências foram tomando corpo de forma cada vez mais radical, culminando com obras audiovisuais que provavelmente chegam o seu ápice com História(s) do Cinema, e em que, renunciando quase que completamente à representação, para Godard “já não havia diegese, narrativa com personagens, universo ficcional, representação e nem mesmo cinema – mas apenas a letra de tudo isso: era a política radical da tábula rasa.” (DUBOIS, 2004, 278). O vídeo aparece não como uma “evolução” na produção de Godard, mas como mais um meio expressivo incorporado ao repertório de materiais sensíveis que estão à sua disposição e dos quais ele lança mão na realização das duas obras. A série História(s) do Cinema é idiossincrática por natureza: uma história do cinema absolutamente personalística e autoral, contada por meio do vídeo e produzida para veiculação na televisão. Uma videoescrita, talvez, em lugar de uma cinescrita; o vídeo que reflete e inscreve o cinema: “uma videoescrita que incorpora o texto, a pintura, a música, a história, a filosofia e o cinema inteiro (...) algo que se abre diante de nós e é da ordem do abismo.” (Ibidem, p. 284). Não por acaso, a máquina de escrever aparece como metáfora do instrumento do qual Godard se vale para contar as história(s) do cinema, sinalizando que para uma escrita desta natureza não mais é a câmera a sua ferramenta elementar e indispensável.6 5

Ou seja, é muito mais natural a incorporação do vídeo por cineastas associados às vanguardas do que àqueles mais ligados à tradição cinematográfica de matriz griffithiana. 6 A enunciação escrita nos filmes de Godard é bem anterior a História(s) do Cinema e mesmo às obras anteriores realizadas em vídeo. Ao mesmo tempo em que o vídeo se torna o suporte através do qual Godard passará a incorporar simultaneamente texto, pintura, música, história, filosofia e o próprio cinema, como nos diz Dubois, já em seus filmes realizados durante a década de 1960 os enunciados escritos aparecem e são relevantes, narrativa e plasticamente. A título de exemplo é possível citar os cartões postais de Tempo de Guerra (1963); os manuscritos do personagem protagonista, Pierrot, em O Demônio das Onze Horas (1965), e os escritos no quadro negro e nas paredes em A chinesa (1967). Neste mesmo livro que serviu como uma das referências para este trabalho, Cinema, Vídeo, Godard (2004), Dubois apresenta um levantamento abrangente do uso das palavras no enunciado fílmico na obra de Godard no capítulo “Jean-Luc Godard e a parte maldita da escrita”. 8

O fundamental para Godard não é ter feito um filme (ou preparar um) no sentido tradicional, com habituais etapas separadas e sucessivas. O fundamental é estar sempre fazendo um, esteja ele ou não em filmagem ou montagem. Fazer um filme, para Godard, é algo extensivo e total, é ser e viver, é estar sempre conectado às imagens, é ver e pensar ao mesmo tempo. ‘Escrever’ é tudo isso: conceber e receber. Assim utilizado, o vídeo se torna uma extensão da própria concepção da escrita. Ver, Pensar, Escrever não mais se distinguem, e tudo passa pelo vídeo. Eis que o vídeo como estado (um ‘estado da matéria’, um ‘estado do pensamento’, um ‘estado do ser’) corresponde tão bem ao modo mesmo de existência do cineasta. Eis por que Godard vive cotidianamente com o vídeo, como se este fosse sua própria respiração. (Ibidem, p. 282-283)

Esta noção do vídeo como “estado” à qual se refere Philippe Dubois diz respeito à ideia amplamente disseminada do vídeo como processo, não como produto, como imagem que não pode ser desvinculada do dispositivo para/por meio do qual foi concebida – e aí reside a característica ensaística de boa parte da produção audiovisual contemporânea que busca inscrever nas próprias obras reflexões sobre a sua produção ou sobre o momento do cinema e do vídeo. Enquanto nas narrativas cinematográficas mais tradicionais é apresentado ao apreciador um filme fechado, uma história com começo, meio e fim a ser apreciada a partir do seu conteúdo e forma, de um dado agenciamento dos materiais fílmicos como o objetivo de alcançar efeitos pré-determinados7, nas obras de caráter ensaístico o apreciador é convidado a participar de outro jogo: é cúmplice do realizador num processo em que ele mesmo [o realizador] não parece tão preocupado com os efeitos, em que oferece questões muito mais do que respostas, um jogo aberto à real possibilidade de ganhar ou perder. A impressão de realidade do cinema seria substituída por uma vertigem, a imagem em si oferecida como experiência. Trataria-se, assim, mais de um modo de pensar do que uma possibilidade de narrar (MACHADO, 2004). 8 O vídeo seria, por excelência, o locus da inquietação de um cineasta como Godard, que produz por meio 7

Que vão operar com maior ou menor sucesso a depender de inúmeras variáveis, como o repertório, a enciclopédia e as disposições anímicas da instância de fruição, mas que de um modo geral a instância de produção busca instituir de antemão. 8 A citação refere-se ao texto de apresentação do livro de Philippe Dubois, em que Arlindo Machado diz ainda: “O pensador de agora já não se senta mais à sua escrivaninha, diante de seus livros, para dar forma a seu pensamento, mas constrói suas idéias manejando instrumentos novos – a câmera, a ilha de edição, o computador -, invocando ainda outros suportes de pensamento: sua coleção de fotos, filmes, vídeos, discos – sua midioteca, enfim. Essa espécie de “cena inaugural” do pensamento audiovisual contemporâneo reaparece novamente em História(s) do Cinema (...)” (p. 19). 9

do vídeo um metadiscurso sobre o cinema. Mais do que uma obra fechada, História(s) do Cinema se apresenta como fluxo de ideias – por isso o seu caráter de pensamento ao vivo. Este mesmo vídeo opera como mecanismo relacional e também como ambiente de desconstrução, contaminação e compartilhamento; circunscreve, por meio das centenas de citações e referências oferecidas por Godard, várias manifestações artísticas, sobretudo a pintura, a música, a literatura e o próprio cinema. (...) no calor da hora, ele experimenta o pensamento visual instantâneo, o olhar reflexivo, a escrita pela imagem; ele manipula, inscreve, escruta, combina, recomeça, apaga, acrescenta, rumina, precisa, desloca. Tudo sem fio. Extraordinária impressão de assistir como que “ao vivo”, pelas e nas imagens, aos movimentos mesmos de um pensamento em ação. O grande lance é sempre o do ‘direto’: eu vejo ao mesmo tempo em que faço. Em vídeo (e, segundo Godard, só em vídeo), ver é pensar e pensar é ver. (DUBOIS, 2004, p. 282).

Godard leva sua experiência a tal extremo e nela se faz presente de tal modo (não apenas como instância autoral, mas também fisicamente) que História(s) do Cinema acaba aproximando-se da performance. Segundo Alain Badiou – e Philippe Dubois é partidário desta premissa - a relação entre Godard e a sua matéria prima produtiva é intensa de tal modo que parece impossível dissociá-los: a concepção da imagem em Godard guardaria algo de espiritual. A história do cinema que Godard busca contar não é nada explícita, se conta nas referências, no subtexto, nas entrelinhas, nas associações, numa espécie de fluxo de consciência que foi transposto à montagem do filme e para o qual não importam possíveis relações causais entre as imagens e muito menos uma ordem temporal que se estabeleça entre elas, mas sim o fluxo da composição total. Esta sensação de fluxo confere a História(s) do Cinema um caráter de obra ao mesmo tempo aberta e sólida, fragmentada e una, o que certamente se deve ao uso do vídeo como meio expressivo para a sua composição e à forma como Godard manipula o vídeo com rigor, apesar da liberdade expressiva que fica explícita. História(s) do Cinema seria, a seu modo, um exemplar da discussão acerca das formas expressivas audiovisuais contemporâneas, caracterizadas pela hibridização e pela dificuldade – para não dizer impossibilidade – de analisá-las a partir de um ponto de vista único (do cinema, da televisão ou do vídeo). Ciente das diferenças ontológicas entre a imagem cinematográfica e a imagem videográfica, Godard desde cedo se valeu 10

do vídeo para pensar não as implicações técnicas das limitações da imagem em vídeo para a representação realista em oposição ao cinema (tão devedor da fotografia neste sentido), mas sim para pensar as questões que dizem respeito especificamente ao vídeo como meio expressivo autônomo que conquistou também a sua independência em relação às outras artes, mesmo mantendo com elas uma relação tão próxima e tantas vezes indissociável.

Bibliografia: BELLOUR, Rayamond. Entre-imagens: Foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ______. Um “efeito-cinema” na arte contemporânea. In: COSTA, Luiz Cláudio (org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 179-216. MACHADO, Arlindo. Arte e mídia: aproximações e distinções. Revista e-compós, n. 1, 2004. Disponível em http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/15/16 (Acesso em 15/03/12). ______. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. MACIEL, Kátia. Transcinemas. In: ______. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 13-20. PARENTE, André. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Kátia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 23-47. WEINRICHTER, Antonio (org.). La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo. Coleción Punto de Vista, Pamplona: Fondo de publicaciones del Gobierno de Navarra, 2007.

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