2013 - A mulher pelo avesso em O Homem (1887), de Aluísio Azevedo

June 14, 2017 | Autor: Jean Pierre Chauvin | Categoria: Literatura brasileira, Naturalismo, Aluísio Azevedo, O Homem
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[CHAUVIN, Jean Pierre. A mulher pelo avesso em O Homem (1887), de Aluísio Azevedo. In: AZEVEDO, Aluísio. O Homem. 2a ed. São Paulo: Martin Claret, 2013, pp. 7-14]

A mulher pelo avesso em O homem (1887), de Aluísio Azevedo Jean Pierre Chauvin1 O homem foi publicado seis anos depois de O mulato (1881) e três antes de O cortiço (1890). No entanto, situado entre duas das obras mais conhecidas de Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857 – 1913), é curioso o romance que não tenha recebido maior atenção por parte da crítica especializada, tendo em vista a inegável qualidade estética da narrativa e alguma audácia por parte do escritor em transpor os aspectos da histeria e das questões religiosas e familiares para o plano da ficção. Provavelmente, parte deste relativo silêncio em relação ao livro tenha origem na hipótese, sedimentada ao longo do século XX, de que o autor tivesse manifestado seu interesse em “viver de literatura” no Brasil, num tempo em que nosso público leitor não acumulava um efetivo contingente. A sugestão partiu de Lúcia Miguel Pereira, a partir da leitura que fez da carta que o romancista escrevera para um de seus amigos, pedindolhe emprego que permitisse continuar a escrever Casa de Pensão. (PEREIRA, ed. 1988, p. 140)2 Além disso, no plano da imprensa e das letras, haveria que se considerar que Aluísio competia com a já estabelecida obra de Machado de Assis e o êxito de Raul Pompéia - para mencionar dois escritores bastante populares nos periódicos da época. Nomes estes, talvez, a que os leitores estariam mais habituados, já que ofereciam uma narrativa mais afinada ao decoro e a discrição a que talvez o público, de mentalidade franco-lusitana, estivesse mais afeito. Para a criação e manutenção do gosto médio que perpassava nossa vida cultural, ao final do XIX, é preciso levar em conta o inquestionável papel da imprensa e dos 1

Pesquisador de Pós-Doutorado sobre a obra machadiana junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, sob a supervisão de Hélio de Seixas Guimarães (USP); professor universitário (Faculdade Diadema e Fatec São Caetano do Sul). Autor de O Alienista: a teoria dos contrastes em Machado de Assis (2005) e de O poder pelo avesso na literatura brasileira (Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto), publicado pela Annablume em 2013. Associado à União Brasileira de Escritores. 2

PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção (de 1870 a 1920): história da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. A carta a que a crítica aludira está na coletânea do próprio escritor maranhense: AZEVEDO, Aluísio. O touro negro (crônicas e epistolário). Rio de Janeiro: Briguiet & Cia., 1938, p. 158. [Volume XIV de suas Obras completas].

romances em folhetim, gênero popular e praticamente monopolizado pela prosa machadiana – sendo o escritor alçado à referência social, cultural e literária, já na década de 1880. Uma das primeiras impressões a respeito de O homem saíra torta e particularmente negativa. Germano Hasslocher retirava-lhe qualquer mérito estético, artístico ou técnico. As impressões eram disparadas por um experiente crítico, figura carimbada do jornal A Gazeta da Tarde - veículo bastante conhecido pela sociedade fluminense, no período: O autor precisava de uma histérica e achou que o mais fácil era inventá-la. Tomou uma base absoluta e lançou sua Magda pelo mundo, acreditando ter feito obra completa. E tanto é verdade o que digo que a histérica em questão não passa de um fantasma. (HASSLOCHER, 1888)3

Algumas consequências seriam nefastas, tendo em vista a recepção do romance, àquela altura. Afinal, “A leitura mais difundida no Brasil no final do século XIX era a dos jornais.” (MÉRIAN, 1988, p. 345)4. Desde a primeira hora, portanto, O homem seria distanciado da literatura e convertido numa espécie de experimento científico inverídico e inverossímil (como sugeriria José Veríssimo, vinte anos depois de seu lançamento). Logo se vê que a análise literária, a partir do enredo e das saborosa descrições de personagens e ambientes fora substituída pelo apressado ajuizamento moral do romancista, que concebera uma mulher bem nascida, jovem, bela e instruída, mas minada pela histeria. Possivelmente, a personalidade de Magdá, filha do poderoso e amoroso Conselheiro Pinto Marques, soasse como uma espécie de heroína romântica do avesso: concepção até certo ponto original, por obra do autor; mas cujo perfil genioso, pautado por violentos altos e baixos, teria chocado os leitores supostamente mais sóbrios, por aqui. Nesse sentido, e com orientação contrária, valeria a pena recordar algumas considerações do narrador que, em terceira pessoa, pinta a jovem Magdá com as tintas da máxima objetividade, sem perder de vista, contudo, o tocante dilaceramento da personagem: 3

HASSLOCHER, Germano. O homem de Aluísio Azevedo. Gazeta da Tarde. Rio de Janeiro, 12.9.1888.

4

MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857 – 1913). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; Brasília: INL, 1988.

(...) de dia para dia, a pobre moça tornara-se mais melancólica, mais insociável, mais amiga de estar só. Era preciso fazer milagres para distraí-la um segundo; era preciso de cada vez inventar um novo engodo para obter que ela comesse alguma coisa. Estava já muito magra, muito pálida, com grandes olheiras cor de saudade” (Capítulo I)

Nas linhas seguintes, Aluísio Azevedo habilmente casa a personalidade instável de Magdá à variedade de estilos dos móveis no interior da propriedade da família Pinto Marques, no Botafogo: “A mobília era toda variada; não havia trastes semelhantes; tanto se encontravam móveis do último gosto, como peças antigas, de clássicos estilos consagrados pelo tempo.” O principal motivo para o atroz sofrimento da filha do Conselheiro estava na desilusão amorosa provocada pelo impossível casamento com Fernando, afilhado de seu pai - por motivos que o leitor descobrirá em seguida, neste saboroso e denso romance. Como se percebe, o narrador não se limita a descrições superficiais de figuras e ambientes, mas revela exatidão ao revelar a personalidade irritadiça e convulsa de Magdá, cuja imagem múltipla e fragmentada nos chega muitas vezes pelas palavras das demais personagens, como a religiosa tia Camila e o ácido doutor Lobão. Para este antigo médico da família, o rígido e caricato Lobão: “- (...) não convém que esta menina deixe o casamento para muito tarde. Noto-lhe uma perigosa exaltação nervosa que, uma vez agravada, por interessar-lhe os órgãos encefálicos e degenrar em histeria...” (Capítulo III). Apesar da severa configuração da jovem protagonista, a oscilar entre o plano da consciência e da demência em sua sofrida trajetória, o livro foi pouco compreendido, quando não praticamente ignorado pela crítica imediatamente posterior. Infelizmente, essa situação perdurou mais ou menos do mesmo modo, durante bom tempo. No início do século XIX, o já mencionado José Veríssimo – autêntico bastião de nossa primeira crítica oitocentista - reconheceu o caráter científico do romance, relativizando-lhe, no entanto, a qualidade estética. Para o crítico, sabidamente contrário ao Naturalismo francês - escola irradiada para Portugal por intermédio de Eça de Queirós: Os seus assuntos prediletos, o seu objeto, os seus temas, os seus processos, a sua estética, tudo nele estava ao alcance de toda a gente, que se deliciava com se dar artes de entender literatura discutindo de

livros que traziam todas as vulgaridades da vida ordinária e se lhe compraziam na descrição minudenciosa. (VERÍSSIMO, ed. 1963, p. 260)5

Afora o teor algo absolutista que se percebe no discurso de Veríssimo, já nos anos de 1950 foi a vez da renomada pesquisadora Lúcia Miguel Pereira desqualificar o valor da obra, reservando uma leitura praticamente exclusivista de O cortiço, em detrimento dos demais romances de Azevedo: (...) a obra de Aluízio Azevedo não realizou inteiramente a vocação de seu autor. (...) só ficaram O cortiço, O mulato e Casa de Pensão, sendo que destes apenas o primeiro é realmente um grande livro. Os outros, mesmo aqueles que fez caprichadamente como O homem, O coruja, Filomena Borges e O livro de uma sogra, são hoje, a bem dizer, ilegíveis. Mas O cortiço basta para lhe assegurar a posição de primeiro plano na nossa literatura. (PEREIRA, p. 141-142)

Na década de 1970, Antonio Candido terá sido um dos primeiros a reconhecer a qualidade estética e a pertinência dos temas aportados por Aluísio Azevedo. Candido reafirmava a importância de O cortiço, em importante e bem fundamento paralelo com O Germinal, de Émile Zola - sabida referência do romancista maranhense e dos naturalistas luso-brasileiros, de um modo geral. Em certa medida, valeriam para O homem, as impressões de Antonio Candido a respeito de O cortiço: Aluísio não apenas se afasta desse gosto pelo aspecto saudável das funções fisiológicas, mas altera a relação ‘função fisiológicamanifestação individual’, incluindo um mediador entre ambas, o mesmo que dirige o relacionamento geral das personagens: a natureza física. (MELLO E SOUZA, ed. 2004, p. 126)6

Em meio a uma recepção de idas e vindas, o ano de 1977 marcou o momento em que José Guilherme Merquior realçou o tom moralista da crítica nacional antecessora, dedicando apenas meio parágrafo ao romance: obra marcada, em sua opinião por um “determinismo levado ao absurdo (...) em que a sensualidade ninfomaníaca de Magda – outra marionete, irrealíssimo feixe de instintos – criou o modelo da galeria feminina da novelística naturalista” (MERQUIOR, 1996, p. 158-159).7 5

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VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. 4ª ed. Brasília: Editora da UNB, 1963.

MELLO E SOUZA, Antonio Candido de. O discurso e a cidade. 3ª ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

As breves, mas incisivas e duras palavras de Merquior, certamente contribuíram para uma visão francamente pejorativa da obra - relegada ao nível inferior -, distante que o romance estaria das categorias de verossimilhança e verdade, segundo os critérios sistematizados por Aristóteles, quatro séculos antes de Cristo. De todo modo, ainda que aceitássemos a suposta falta de verossimilhança na composição da personagem principal, o moralismo anacrônico compromete o ofício do crítico. Por essa razão, o manual de José Guilherme Merquior poderia ser visto como emblemático, já que cristaliza a leitura depreciativa do romance. A exemplo de outros leitores supostamente gabaritados, ele parece ter reiterado e disseminado a aparente confusão entre análise literária e julgamento meramente subjetivo. Dito de outro modo, o crítico responsabilizava o escritor maranhense pelo pioneirismo nada elogioso de dar vida a mulheres lascivas no plano literário. Segundo este viés tradicional e redutor, a composição de personagens consideradas imorais refletir-se-ia em outros escritores, inclusive, cujas obras foram escritas posteriormente a O homem. Desde Merquior, passou-se a incluir o nome de Júlio Ribeiro (autor de A carne - publicado em 1888, ano seguinte ao do romance protagonizado por Magdá e Fernando) entre os responsáveis pela criação de figuras luxuriosas, indecorosas e de maus costumes. Apenas tardiamente, um século depois do lançamento de O homem, alguns estudiosos passaram a dedicar maior quantidade de páginas, utilizando critérios menos subjetivos na apreciação do romance. Foi o caso de Temístocles Linhares, que elogiava em Aluísio a crueza da linguagem e a temática menos pudica que aquela praticada em seu tempo: Em Aluísio não havia essa espécie de falso pudor comum a muitos romancistas, demasiado exigentes diante da vida cotidiana, das brigas miúdas de portugueses e brasileiros, das intrigas entre as lavadeiras, das rixas travadas pelos trabalhadores. Ele não temia nem evitava a vulgaridade natural daquelas vidas e de seus problemas, sob a impressão de que ela lhe pudesse acarretar outra vulgaridade: a do espírito. (LINHARES, 1987, p. 190)8

De modo ainda mais curioso, foi graças a um atento leitor estrangeiro que o nome de Aluísio Azevedo passou a ser percebido de novas formas, por aqui. Refiro-me 7

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira - I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 8

LINHARES, Temístocles. História crítica do romance brasileiro: 1728 – 1981. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987.

à monumental biografia escrita pelo professor e pesquisador da Universidade de Haute Bretagne, Jean-Yves Mérian, já mencionado neste prefácio. Seu estudo, baseado em farta documentação obtida no Maranhão, foi escrito durante a década de 1970. A pesquisa resultou em uma notável tese de doutorado, publicada no Brasil em 1988. No capítulo dedicado a O homem, o crítico afirmaria a seu respeito: Este romance, que tem como tema a vida de Magda, uma moça histérica, poderia ter recebido o título de ‘A mulher’; porém a escolha do título não deixa de ter significado: o que cria o problema é a ausência de homem. Todo o mal vem daí. (MÉRIAN, 1988, p. 542)

Devemos ao pesquisador francês as primeiras e mais bem fundamentadas páginas relativas à biobibliografia do romancista, dramaturgo e jornalista maranhense, que viera ainda jovem para a então capital da corte, reunir-se ao seu irmão mais velho, Artur Azevedo – ele, igualmente jornalista, a exemplo de Aluísio, e acumulando composições literárias como comediógrafo e autor de contos muito populares na segunda metade do século XIX. Que não haja dúvida quanto à qualidade intrínseca das páginas que se lerão a seguir. Aluísio Azevedo revela-se de outro modo, para além dos manuais de literatura, nos vinte e um capítulos de O homem. Neste romance, os episódios também revelam o percurso de uma das personalidades mais marcantes de nossa literatura: dividida pelo duplo sentimento em relação a Fernando; cindida pelos valores tidos por habituais, numa época em que a emancipação feminina estava consideravelmente longe de ser concebida, e mais longe ainda de acontecer. Não se trata de um enredo vincado pela abordagem exclusivista da histeria; mas de uma composição corajosa e original de nossas letras, em que a figura feminina passava a primeiro plano, tomando as duras rédeas de seu próprio destino: de maneira muito peculiar, claro esteja. Que este breve ensaio seja um convite à leitura, ou melhor, à compreensão do tormento de Magdá - criatura ímpar e nada óbvia, que parece ser uma figura complexa capaz de escapar até mesmo da dimensão literária em que está inserida. De certo modo, Aluísio de Azevedo mostra que determinadas personalidades não cabem na ótica reducionista do que venha a ser chamado de romance naturalista. Sigamos em sua companhia.

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