2013 Ficção e Mundos Possíveis na Teoria da Arte Contemporânea: o exemplo de Anne Cauquelin

June 30, 2017 | Autor: Daniela Kern | Categoria: Art Theory, Art Criticism
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Ficção e Mundos Possíveis na Teoria da Arte Contemporânea: o exemplo de Anne Cauquelin Daniela Pinheiro Machado Kern Doutora em Letras e Linguística (PUCRS) Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (UFRGS) [email protected]

Resumo A teoria dos mundos possíveis, primeiramente desenvolvida por Leibniz, em conjunto com seu conceito de mônada, irá ser retomada no pensamento filosófico do século XX, repercutindo, no meio literário, em teorias da ficção propostas por autores como Thomas Pavel (Fictional Worlds) e Lubomír Doležel (Heterocosmica: Fiction and Possible Worlds). O presente trabalho pretende analisar de que forma tal entendimento da ficção enquanto “criadora de mundos possíveis” está sendo incorporado agora em outro campo, o da teoria da arte contemporânea, como modo de lidar com a crescente importância das narrativas e dos meios digitais no cenário artístico atual. Para tanto, propõe-se aqui a análise da obra No ângulo dos mundos possíveis, da teórica de arte francesa Anne Cauquelin, a fim de estabelecer relações e diferenciações entre o conceito de ficção dos mundos possíveis por ela desenvolvido e aquele corrente na teoria da literatura contemporânea.

A filósofa, escritora e artista plástica francesa Anne Cauquelin, professora emérita da Universidade de Paris I e bastante lida no Brasil, vem, há muitos anos, dedicando-se à desafiadora tarefa de elaborar uma teoria geral da arte contemporânea. Como tantos de sua geração, Cauquelin tem imensa familiaridade com o pensamento fenomenológico de Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty, pensamento que, quando aplicado pela primeira vez às artes, ainda lidava com o pressuposto da existência de um objeto artístico que pudesse ser apreciado esteticamente. No entanto, pelo menos desde a década de 1960 o rumo das artes visuais mudou fortemente de direção, despertando uma inquietação no meio artístico que a própria Cauquelin, em vários momentos de sua obra, como veremos, faz questão de enfatizar. Em um livro pequeno, e nem por isso menos influente, intitulado Arte contemporânea: uma introdução (1992), Cauquelin já deixa entrever a preocupação que a levará, anos mais tarde, à exploração do conceito de ficção e da teoria dos mundos possíveis. Na tentativa de compreender esses novos horizontes artísticos marcados pela ausência dos objetos convencionais que até então figuravam na história da arte, horizontes que se configuram com o avanço da técnica e que se materializam na arte digital e na arte virtualizada por meio da Internet, Cauquelin

procura criar uma imagem poética que dê conta, metaforicamente, desse novo “mundo” que se abre: As auto-estradas da informação [...] permitem sonhar com uma Cidade das Artes Virtuais, onde cada um seria artista sem obstáculo de tempo nem de espaço, em resumo, quebrando o gelo das instituições rígidas e passando através do espelho, numa viagem sem fim pelas maravilhas da arte.1

Aquilo que Cauquelin primeiramente visualiza como uma “Cidade das Artes Virtuais”, esse novo mundo em que não há propriamente objetos a institucionalizar e musealizar, e sim infinitas práticas e proposições artísticas, tornará a ser perseguido em obras posteriores, mediante o recurso a uma série de conceitos que não necessariamente fazem parte do repertório fenomenológico corrente na crítica de arte francesa. Em Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea (2006), uma obra que retoma a teoria dos incorporais, formulada pelos estóicos, como um possível guia para a análise da arte contemporânea, Cauquelin aborda de modo mais contundente o conceito de ficção. Antes de mais nada, é importante frisar que as relações entre as teorias literárias e as artísticas enfrentaram uma série de turbulências desde a Modernidade. Em busca da identificação das especificidades das artes visuais, não foram poucos os artistas, críticos e teóricos de arte que passaram a rejeitar qualquer vínculo entre suas atividades e os conceitos de narração, representação ou ficção, associados primeiramente ao campo literário. O artista trabalharia com linhas, volumes, cores e matéria, e não com a narração de histórias ou a representação da realidade, função deixada à então nova técnica da fotografia. Ciente do senso comum que ainda circula no território das artes visuais, Cauquelin propõe, cautelosamente, uma volta à noção de ficção. Para tanto, primeiro apresenta uma definição de ficção comum e um tanto estereotipada. À ficção pertenceriam “imagens, imaginário, apresentação in absentia, verossímil e inverossímil, possíveis”, e também seriam características suas “a fantasia e a leveza”, de modo que, ainda segundo sua interpretação, “a atividade artística, que lança raízes no modo da ficção, viria aliviar o peso das realidades, em um jogo de distanciamento e de ilusões”.2 Não é essa a definição, no entanto, que interessa aqui à autora.

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CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 159. CAUQUELIN, Anne. Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 188. 2

A retomada do conceito de ficção, para Cauquelin, é uma das alternativas para a compreensão da nova realidade da arte virtual. Não é à toa que ela chega a definir a ficção como a “capacidade de imaginar na ausência do objeto”. 3 Uma outra nuance do conceito de ficção que Cauquelin elabora está na associação com a ideia de afastamento, de distanciamento presentes na virtualização digital. Diante dessa nova realidade, cabe ao artista percorrer o “espaço que se estende entre realidade e ficção”, espaço que será percorrido também por seu público interagente, e que será caracterizado por uma mescla de “realidades vividas e ficção abstrata”.4 Esse espaço, o espaço digital, é, na verdade, uma “realidade fictícia”. Dito de outro modo, o ciberartista estabelece relações “não apenas entre os objetos que circulam no mundo artificial, entre sites e internautas, mas também entre realidade e ficção, entre vários modelos de mundo, entre artifício e natureza”.5 Está implicada aqui, bem entendido, a definição de ficção como conjunto de modelos e fórmulas abstratos não apreensíveis sensorialmente, esta sim propugnada pela autora. O conceito de ficção, agora associado à noção de mundos possíveis, irá aparecer com muito mais força em uma obra recente de Cauquelin, No ângulo dos mundos possíveis (2010). Cauquelin amplia aqui seu esforço de teorização do advento dos projetos digitais e virtuais na arte contemporânea, recorrendo dessa vez a uma importação, a da teoria dos mundos possíveis, desenvolvida e debatida no cenário intelectual anglo-saxão. Cauquelin, seguindo o exemplo de Deleuze, remonta às origens da definição do virtual, mediante o estudo da noção de potência em Aristóteles,6 para então passar àquele que é considerado o pai da teoria dos mundos possíveis, Leibniz. Segundo Cauquelin, “A virtualidade adentra nosso universo intelectual com os mundos possíveis de Leibniz”.7 Abramos aqui um parênteses para frisar que Deleuze já havia, na década de 1980, chamado a atenção da comunidade artística francesa para o pensamento de Leibniz através de sua obra A dobra: Leibniz e o Barroco (1984).8 Retornando à Cauquelin, logo o conceito de ficção voltará a ser trabalhado pela autora, que destaca,

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CAUQUELIN, Anne. Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 191. 4 CAUQUELIN, Anne. Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 193-194. 5 CAUQUELIN, Anne. Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 196. 6 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 59. Para uma comparação entre as conceituações de Aristóteles e Leibniz, cf. op. cit., p. 60. 7 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 59 8 Cf. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. 6. ed. Campinas: Papirus Editora, 2011.

em primeiro lugar, o modo como Aristóteles e Leibniz o valorizavam ao considerá-lo uma espécie de “via de escape do único mundo que realmente existe”. Tal via de escape nos ofereceria uma “pluralidade de pontos de vista”, aos quais não teríamos acesso através, simplesmente, de nossas experiências comuns.9 Ficção e mundos possíveis se associam, ainda que, para Lebniz, os mundos possíveis tenham realidade metafísica, como se pode ler na Monadologia: E assim como uma mesma cidade contemplada de diversos lados parece totalmente outra, e sendo como que multiplicada perspectivamente, o mesmo ocorre quando, devido à multiplicidade infinita de substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes que, entretanto, nada mais são do que as perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada Mônada.10

Cauquelin aproveita a passagem por Leibniz para enfatizar a estreita e muitas vezes ignorada relação entre a disciplina criada por Alexander Baumgarten, a Estética (disciplina que entra em crise, no campo das artes visuais, justamente com as mudanças que Cauquelin tenta ajudar a compreender), e a teoria dos mundos possíveis de Leibniz: Pode-se dizer que a estética é uma ciência dos acessos aos mundos possíveis. Ela tende a balizar, talhar e cultivar a passagem do possível para o real e do real para os possíveis, contribuindo assim para nos fazer compreender o mundo atual em sua totalidade, com sua ‘heterocosmicidade’, segundo o termo do próprio Baumgarten.11

Cauquelin propõe que talvez o que tenha restado, no senso comum do campo teórico das artes visuais, da relação estreita entre a Estética de Baumgarten e os mundos possíveis de Leibniz seja a desgastada imagem “a arte abre um mundo”. 12 Cauquelin, a partir desse ponto do texto, usará tal clichê como pedra de toque e tratará de atualizá-lo, indagando se, ao invés de abrir um mundo, a arte não abriria mundos diversos, “uma pluralidade de mundos sobrepostos ou emaranhados”.13 Cauquelin já deixa entrever que, ao contrário de Deleuze, não irá apresentar uma releitura profundamente pessoal 9

CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 69-70 e p. 71. 10 LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 141. 11 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 69-70 e p. 73. O conceito de heterocosmicidade terá, de resto, importância central em DOLEZEL, Lubomir. Heterocósmica: ficción y mundos posibles. Madrid: Arco/Libros, 1999. Já sobre as relações possíveis entre a teoria de Leibniz, a Estética de Baumgarten e a releitura leibniziana empreendida por Deleuze cf. KAISER, Barbara. On aesthetics, aisthetics and sensation – reading Baumgarten with Leibniz with Deleuze. Esttetica: Tijdschrift voor Kuns em Filosofie, Amsterdam, 2011. Disponível em: http://www.estheticatijdschrift.nl/magazine/2011/artikelen/aesthetics-aisthetics-and-sensation%E2%80%93-reading-baumgarten-leibniz-deleuze. Acesso em: 01 jan. 2013. 12 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 83. 13 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 84.

dos mundos possíveis de Leibniz. O que ela se propõe a fazer é discutir a tradição de pensamento anglo-saxão que enfrenta sérias resistências na França. Daí a necessidade de lançar luz sobre a própria existência de tais resistências: “...introduzir outro tipo de discurso é tido como superficial, pragmático e ‘anglo-saxão’”.14 Mas Cauquelin adota previdentemente, como estratégia, não discutir as versões anglo-saxônicas da teoria dos mundos possíveis sem antes rememorar a noção de abertura de mundo no pensamento de Heidegger e de Merleau-Ponty, ou seja, sem antes retomar as concepções fenomenológicas bem aceitas na França. A autora conclui essa retomada da ideia de mundo como leitmotiv em Merleau-Ponty,15 por exemplo, a ideia de que “Dentro e pelas obras é que o mundo se tornaria visível”,16 comparando então a imagem fenomenológica da obra como abertura para o mundo, uma abertura vertical ou mesmo um salto, com a dos mundos como extensão propostos por filósofos analíticos e semiólogos, sobretudo (mas não somente) no cenário intelectual anglo-saxônico.17 A concepção de abertura de mundos, na visão de Cauquelin, permaneceu diferente em essência nas duas tradições de pensamento: “O tema da abertura, embora tão pregnante, não conduziu aos mundos plurais, e a arte abriu tão somente seu próprio aprofundamento em forma de mundo. Não há nenhum exterior, nenhum escape além da essência da arte”.18 Cauquelin não deixa de apontar o fundo religioso perceptível em tal concepção fenomenológica de mundo, a pressuposição de uma “metafísica da arte”, que prevalece nos textos da crítica de arte francesa, em sua opinião.19 Agora cada vez mais próxima das teorias atuais dos mundos possíveis, Cauquelin passa rapidamente por Nelson Goodman e por Umberto Eco. Ambos se vinculam de um modo ou outro a essas teorias, ainda que Cauquelin não explore em profundidade esse aspecto. Goodman, por exemplo, em Ways of worldmaking, deixa claro o seu relativismo radical quando renuncia a qualquer especulação sobre a origem ou a natureza dos mundos possíveis:

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CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 85. CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 87. 16 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 90-91. 17 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 95. 18 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 98. 19 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 99. 15

... but the search for a universal or necessary beginning is best left to theology. My interest here is rather with the processes involved in building a world out of others.20

Para Goodman os mundos são construções humanas e intencionais. Mundos envolvem representações, logo, eleição e costume: “Se a representação é uma questão de escolha e a correcção uma questão de informação, o realismo é uma questão de hábito”.21 Já Umberto Eco se engajou criticamente na discussão sobre os mundos possíveis sobretudo em Lector in Fabula, de 1979 (ainda que Cauquelin conceda maior atenção ao seu Obra aberta, de 1962, obra de grande circulação na área das artes visuais). Eco ali também ataca o argumento de que mundos possíveis (culturais) pudessem ter substancialidade, defendido por semioticistas como Volli: O que interessa a uma semiótica textual é a representação estrutural dessas possibilidades, e não a trabalhosa indagação que Volli [...] faz quando pergunta se ele existe em todos os mundos que espera, imagina ou sonha, ou só naquele em que afirma existir. [...]. Um mundo cultural é mobiliado, mas nem por isso é substantivo. Dizer que se pode descrever esse mundo pleno em termos de indivíduospropriedade, isso significa afirmar que ele se atribui alguma substancialidade.22

Voltando ao raciocínio de Cauquelin, o terreno agora está preparado para o que ela chama de abordagem extensionalista dos mundos possíveis. Ainda mantendo os paralelos com o horizonte fenomenológico, Cauquelin introduz mais algumas características desse extensionalismo: Ao se distanciar de uma metafísica da arte, a versão extensionalista coloca os problemas de perspectivas e horizontes de maneira mais concreta, e segundo um espectro mais amplo: com efeito, a pintura (Merleau-Ponty com Cézanne) e a poesia (Heidegger com Hölderlin) já não são as principais figuras convocadas: [...] a identidade das obras, ao invés de ser colocada de saída como um tema autêntico dependendo de uma revelação da verdade, torna-se sujeita a controvérsias.23

Deixando para trás Heidegger e Merleau-Ponty, remando contra a corrente fenomenológica da teoria da arte francesa, Cauquelin mergulha nas teorias sobre 20

GOODMAN, Nelson. Ways of worldmaking. Indianápolis, Indiana: Hackett Publishing, 1978. p. 7. GOODMAN, Nelson. Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006. p. 68. 22 ECO, Umberto. Lector in Fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 107. 23 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 117. 21

mundos possíveis desenvolvidas entre as décadas de 1960 e 1980 pelos filósofos Saul Kripke (considerado o primeiro a resgatar tal teoria de Leibniz na filosofia), Jaako Hintikka e, em especial, David Lewis.24 Em suas próprias palavras, trata-se de “abandonar as zonas obscuras da ontologia” em prol de “uma visão pragmática da obra”.25 Entre os autores recém citados, sem dúvida a preferência de Cauquelin vai para David Lewis. Logo no começo de sua obra magna sobre o tema, On the Plurality of Worlds (1986), Lewis anuncia o que chama de realismo modal, a ideia de que vivemos em um mundo que é “but one world among many”. Segundo ele “There are so many other worlds, in fact, that absolutely every way that world could possibly be is a way that some world is”.26 Diferentemente de Goodman, Lewis não acredita que façamos mundos: We make languages and concepts and descriptions and imaginary representations that apply to worlds. We make stipulations that select some worlds rather than others for our attention. Some of us even make assertions to the effect that other worlds exist. But none of these things we make are the worlds themselves.27

Todos esses mundos possíveis, apresentada por Lewis em termos que não são metafísico-religiosos, Cauquelin interpreta como sendo “acobertados pela ficção”, mundos que envolvem “o núcleo duro da realidade” e que equivaleriam aos “mundos artificiais elaborados pela técnica”.28 Esta última aproximação entre mundos possíveis acessados pela ficção e os ambientes tecnológicos virtuais, cada vez mais presentes também na arte contemporânea, pode ser percebida aqui como uma apropriação eminentemente metafórica do conceito, que talvez passe longe das intenções iniciais de Lewis, por exemplo. Cauquelin equivale com muita facilidade conceitos com especificidades próprias, como os de mundos possíveis ou alternos e de ficção – alguns teóricos contemporâneos da literatura, como Pavel, Dolezel e Ronen, são mais cuidadosos nas definições de tais termos. Assim procedendo, Cauquelin se enquadra em alguns momentos de sua argumentação em uma prática que marca parte da transferência de conceitos entre áreas distintas das chamadas Humanidades: o uso poético e

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CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 120. CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 121. 26 LEWIS, David K. On the Plurality of Worlds. Oxford: Blackwell, 1986. p. 2. 27 LEWIS, David K. On the Plurality of Worlds. Oxford: Blackwell, 1986. p. 3. 28 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 166. 25

metafórico de termos descolados de contexto e não adequadamente testados nos novos campos em que são implantados. Outro ponto que merece destaque é o fato de Cauquelin se ocupar em tornar palatável a teoria dos mundos possíveis de Lewis a um público mais amplo, prevendo em vários momentos os argumentos contrários e insistindo na existência (ainda que não na atualidade) desses mundos: Percebe-se que não faltam argumentos contra a hipótese da realidade desses mundos. Lewis refuta-os palmo a palmo e ponto por ponto: É, todavia, de outra maneira, por um outro viés, que essa hipótese é útil e defensável. Há que encontra-la, ao que me parece, numa prática da contraparte.29

O realismo modal de Lewis é uma solução tentadora para o já tão alardeado pluralismo do cenário artístico contemporâneo, e Cauquelin chega a afirmar que “o realismo modal é a melhor teoria possível para pensar aquilo que se relaciona à arte”.30 Essa defesa é reforçada nas páginas finais de No ângulo dos mundos possíveis: Devemos a David Lewis uma hipótese que satisfaz inúmeras interrogações a esse respeito. Segundo ele, se considerarmos a realidade dos mundos alternos como uma ‘hipótese útil’, conseguiremos aceitar a realidade dos outros mundos e, quem sabe, contrariamente à intuição comum, acreditar neles.31

Os mundos possíveis de Lewis aportam ao campo da arte contemporânea, para Cauquelin, um relativismo ontológico saudável.32 Por outro lado, não deixa de ser curioso observar que alguns dos argumentos admirados por Cauquelin em Lewis estão justamente entre os mais criticados por estudiosos da literatura que pesquisam contemporaneamente o tema. Pavel insiste no extremismo do realismo modal de Lewis,33 e Ruth Ronen o acusa de “extravagância ontológica”.34 A teoria dos mundos possíveis, como Cauquelin bem percebeu, se por um lado permite o entendimento da ficção não como uma propriedade textual ou como um

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CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 250. CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 125. 31 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 242. 32 CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 260-261: 33 PAVEL, Thomas G. Fictional Worlds. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 1986. p. 49. 34 RONEN, Ruth. Possible worlds in literary theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 22. Merece destaque ainda o modo como Ronen contrasta, na p. 24, as posições de Lewis e Goodman: “Lewis sees all worlds as equally real and concrete (although he distinguishes between genres of worlds); Goodman sees all worlds as versions subject to radical relativism”. 30

“fenômeno excepcional isolado”,35 mas como uma “estructura ‘emergente’, de orden superior, el mundo ficcional”,36 como terreno comum às artes visuais, à literatura e à história,37 que favorece a atenção à diversidade de perspectivas tão característica do momento contemporâneo, por outro lado demanda atenção e cuidado redobrados em sua complexa adaptação às diferentes áreas, pois, como insiste Ronen, “the connection between fictionality and the philosophical concept of possible worlds is far from selfevident”.38

Referências CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CAUQUELIN, Anne. Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes, 2011. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. 6. ed. Campinas: Papirus Editora, 2011. DOLEZEL, Lubomir. Heterocósmica: ficción y mundos posibles. Madrid: Arco/Libros, 1999. DOLEZEL, Lubomir. Possible worlds of fiction and history: the Postmodern Stage. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2010. ECO, Umberto. Lector in Fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. GOODMAN, Nelson. Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006. GOODMAN, Nelson. Ways of worldmaking. Indianápolis, Indiana: Hackett Publishing, 1978.

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RONEN, Ruth. Possible worlds in literary theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 7. DOLEZEL, Lubomir. Heterocósmica: ficción y mundos posibles. Madrid: Arco/Libros, 1999. p. 34. 37 Cf. DOLEZEL, Lubomir. Possible worlds of fiction and history: the Postmodern Stage. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2010. Na p. 33 ele propõe uma distinção entre mundos históricos e ficcionais, apresentando neste ponto leitura mais nuançada do que a de Cauquelin: “Fictional worlds are imaginary alternates of the actual world […]; historical worlds are cognitive models of the actual past”. 38 RONEN, Ruth. Possible worlds in literary theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 17. 36

KAISER, Barbara. On aesthetics, aisthetics and sensation – reading Baumgarten with Leibniz with Deleuze. Esttetica: Tijdschrift voor Kuns em Filosofie, Amsterdam, 2011. Disponível em: http://www.estheticatijdschrift.nl/magazine/2011/artikelen/aestheticsaisthetics-and-sensation-%E2%80%93-reading-baumgarten-leibniz-deleuze. Acesso em: 01 jan. 2013. LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. LEWIS, David K. On the Plurality of Worlds. Oxford: Blackwell, 1986. PAVEL, Thomas G. Fictional Worlds. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 1986. RONEN, Ruth. Possible worlds in literary theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

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