2013 - JORNADAS MERCOSUL: MEMÓRIA, AMBIENTE E PATRIMÔNIO

May 31, 2017 | Autor: Douglas Angeli | Categoria: Getúlio Vargas, Revista do Globo
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JORNADAS MERCOSUL: MEMÓRIA, AMBIENTE E PATRIMÔNIO

Judite Sanson de Bem Zilá Bernd Organizadoras

Canoas, 2013 Jornadas Mercosul: memória, ambiente e patrimônio ISBN: 978-85-89177-23-8

UNILASALLE Editora UnilaSalle

CIP - FICHA

APRESENTAÇÃO

A Memória, o Ambiente e o Patrimônio formam um tripé que afeta, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, o modo de ver e de conhecer um povo, uma comunidade, uma organização, uma família, enfim, o próprio ser que está inserido no meio em que vive e com o qual interage. No processo de busca da melhor compreensão do significado, da abrangência e do conhecimento acumulado e daquilo que necessita ser agregado, MERCOSUL: Memória, Ambiente e Patrimônio apresenta os resultados de ampla reflexão que reuniu pesquisadores do Brasil, Uruguai e Argentina. Foram discutidos, identificados e consolidados conhecimentos e procedimentos que possibilitam o uso e a aplicação dessas complexidades no dia a dia. As reflexões aqui apresentadas, as quais refletem uma fértil troca de informações e experiências, deverão contribuir para o desenvolvimento de ações e práticas que poderão vir a subsidiar políticas na perspectiva do MERCOSUL, voltadas para uma expansão de investimentos sustentáveis na área de abrangência da Memória, do Ambiente, do Patrimônio, da Educação Ambiental e do Turismo Cultural. A presente coletânea de artigos apresenta-se através de nove eixos temáticos: Turismo Cultural no Mercosul, Educação Ambiental, Museu e indústrias criativas como instrumento do patrimônio e do desenvolvimento, Proteção jurídica do ambiente e da saúde no Mercosul, Patrimônio Cultural, Tecnologia social, desenvolvimento e cidades inteligentes, Engenharia ambiental, pesquisa acadêmica e educação ambiental, Produção e usos da memória e gestão cultural. Tais eixos temáticos revelam os temas predominantes de três Programas de Mestrado do Unilasalle/Canoas: Mestrado Profissional em Memória Social e Bens Culturais e Mestrados Acadêmicos em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração e em Educação. Trazê-los aos leitores em forma de e-book incrementará a visibilidade dos mesmos para a comunidade profissional, acadêmica, social, empresarial e governamental como integrantes do sistema de troca de informações e experiências, contribuindo efetivamente para o desenvolvimento de ações e práticas que possam subsidiar políticas voltadas para uma expansão de investimentos sustentáveis na área de abrangência da Memória, do Ambiente e do Patrimônio.

Judite Sanson de Bem Zilá Bernd Organizadoras

Sumário Apresentação Judite Sanson de Bem e Zilá Bernd 1. TURISMO CULTURAL NO MERCOSUL 1.1 PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN...............................................................................................................................13 Aníbal Manavella - Universidad de Córdoba, Argentina 1.2 TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY. UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA.............................................................................................................................................31 Alejandro Gimenez - Ministério do Turismo e Desporto do Uruguai 2. EDUCAÇÃO AMBIENTAL 2.1 EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE................................................................................................................45 Paula Henning - PPGEA – FURG 2.2 URGÊNCIA ECOLÓGICA E AS CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE.............................53 Balduino Antônio Andreola - UNILASALLE 3. MUSEU E INDÚSTRIAS CRIATIVAS COMO INSTRUMENTO DO PATRIMÔNIO E DO DESENVOLVIMENTO 3.1 CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA, MÍDIA E HISTÓRIA...........................................................................................................................67 Éder dos Santos Carvalho e Simone Cardoso 3.2 PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS: ESTUDO DE CASO – O MUSEU HISTÓRICO MUNICIPAL DE DOIS IRMÃOS – RS...............77 Andréa Cogan 3.3 PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO........................................................................................................................83 Luciano Alfonso 3.4 CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICA DE INCENTIVO, CO-PRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL .................................................................................................................................97 Rosângela Fachel de Medeiros

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3.5 ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: ESTUDO DO CONSINOS NO PERÍODO DE 2000 A 2010...........................................................109 Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann 4. PROTEÇÃO JURÍDICA DO AMBIENTE E DA SAÚDE NO MERCOSUL 4.1 PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88 ....................................................................................................... 121 Yussef Daibert Salomão de Campos 4.2 O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS ................................................................................. 131 Arlindo Weber de Oliveira 5. PATRIMÔNIO CULTURAL 5.1 A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO ....................................... 139 Alexandre da Silva Borges, Helissa Renata Gründemann e Jean Baptista 5.2 NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE ................................................................................. 147 Fabian Filatow 5.3 O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI ............................................................ 159 Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho e Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira 5.4 COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL ......................................... 169 Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho e Delcimara Batista Caldas 5.5 ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL ..................................................... 181 Antônio Jorge Pantoja Gualberto 5.6 USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA – UMA DISCUSSÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PREFEITURAS MUNICIPAIS E O PATROCÍNIO À PRODUÇÃO DE HISTÓRIA LOCAL ........... 193 Sandra Cristina Donner 5.7 PROGRAMA DE EXTENSÃO EM DEFESA DO PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO – COMUNIDADES FURG ............................................................................................................................... 207 Helissa Renata Gründemann, Alexandre da Silva Borges e Jean Baptista

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5.8 PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/ MG .................................................................................................................................................. 217 Vanessa Regina Freitas da Silva e Carolina Goes Eloi 5.9 “O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURAL POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO ............................................................................. 225 Douglas Souza Angeli 5.10 MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL ...... 239 Cesar Augusto Ornellas Ramos 5.11 LIBROS Y EDITORIALES: REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL? .............................................................................................................................................. 251 Jenny González Muñoz 6. TECNOLOGIA SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E CIDADES INTELIGENTES 6.1 BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL ........................ 263 Silvia Adriana da Silva Soares e Rosa Maria Castilhos Fernandes 6.2 SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR .............. 269 João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro e Rosa Maria Castilhos Fernandes 6.3 TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO ............................................................................................... 277 Rosa Maria Castilhos Fernandes 6.4 UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA ........................................................................................................................................... 281 Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabello de Sousa 7. ENGENHARIA, PESQUISA ACADÊMICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 7. 1 AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS ......................................... 295 Geraldo José Rodrigues Alves e Saulo Padoin Chielle 7.2 PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS ...................................................................................... 305 Alexandra Fachinello

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7.3 A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO ........................................................................................ 327 Joel Luís Dumke, Patrícia Abel Balestrin e Nathália Stedile 7.4 A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ............................................ 337 Fernanda Piedade de Freitas e Maria Luiza Steiner Fleck 7.5 UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DE RIO GRANDE ............................................................. 349 Ângela Torma Pietro e Maria Ângela Mattar Yunes 7.6 CAAPÃO DAS CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO .... 357 Sérgio Augusto de Loreto Bordignon, Inga Ludmila Veitenheimer Mendes e Felipe Marcon Pezda 7.7 UM PRIMEIRO OLHAR À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS ....................................................................... 365 Cristiane Paim da Cunha e Rubens Müller Kautzmann 7.8 O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL: SUBSÍDIOS PARA AÇÕES DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ................................................................................................................................. 375 Carlos Gilberto Kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo 8. PRODUÇÃO E USOS DA MEMÓRIA 8.1 GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA .......................................................................................................................................... 387 Glauce Stumpf 8.2 O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL .............................................................................................................. 397 Ana Lígia Trindade, Patrícia Kayser Vargas Mangan e Nádia Maria Weber Santos 8.3 “BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE ............... 411 Vanessi Reis 8.4 MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVIDUAL NA REVISTA CARETA ........................................................................................................................................... 423 Cláudio de Sá Machado Júnior

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9. GESTÃO CULTURAL 9.1 AS COMUNIDADES DE PRÁTICA E A APRENDIZAGEM INFORMAL NA GESTÃO CULTURAL ................................................................................................................................... 437 Telmo Telles, Tamara Cecília Karawejczyk e Maria de Lourdes Borges 9.2 IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR .............................................................................................................................. 447 Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster e Flávio Régio Brambilla 9.3 GESTÃO EM ARQUEOLOGIA .............................................................................................. 457 Rafaela Nunes Ramos 9.4 NOÇÕES SOBRE GESTÃO DA CULTURA E DO MARKETING CULTURAL .................. 469 Flávio Régio Brambilla

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1. TURISMO CULTURAL NO MERCOSUL

JORNADAS MERCOSUL

PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN A. Aníbal Manavella*

Introducción El Patrimonio cultural es el conjunto de todos los bienes, materiales (tangibles) o inmateriales (intangibles), que, por su valor propio, deben ser considerados de interés relevante para la permanencia de la identidad y la cultura de un pueblo. Es la herencia propia del pasado, con la que un pueblo vive hoy, y que transmitimos a las generaciones futuras. El patrimonio en general, — del latín patrimonium: lo que se hereda —, incluye una pluralidad de bienes que en conjunto dan forma a la identidad de los pueblos. Es más que una reunión de objetos muebles e inmuebles, es un conjunto de bienes materiales e inmateriales de una comunidad con respecto a un territorio;1 no centra su objetivo principal en los objetos y su conservación, sino que se entiende como un recurso para el desarrollo, siendo su objetivo las personas y su calidad de vida. La Arq. Marina Waisman sostiene: “Para mí patrimonio es todo lo que puede ayudar a una comunidad a mantener su identidad. No necesita ser un gran monumento, puede ser una calle, un área… y preservación es mantener vivo a ese patrimonio, mantener ese difícil equilibrio entre la conservación y el cambio, que evite, por un lado el congelamiento de la ciudad, y por el otro, la destrucción de la identidad”. La ciudad está integrada por una variedad de hechos físicos que, sumados a la estructura humana, llamamos patrimonio, patrimonio general en su más amplia aplicación. Su función es materializar la historia de la comunidad, permitirle “figurarse las sucesivas imágenes”2 de su pasado. Toda esta masa de elementos es lo que heredamos de generación en generación. Cuando a mediados de Siglo XX el Hombre toma conciencia de la finitud de esos referentes materiales de la memoria de un pueblo, aquellos que si se destruían impedían “leer e interpretar” la historia de la humanidad, comienza a preocuparse por la salvaguarda de los mismos. En un primer momento, sólo se propone conservar aquellos de escala monumental, esos que, indudablemente, debían preservarse, por ejemplo, el Partenón griego, testigo fundamental del mundo occidental. ¿Pero qué sucede si sólo conservamos los monumentos y dejamos librado al azar aquellos bienes de escala doméstica? Quedarían siendo mudos testigos inconexos, incapaces de permitir interpretar una línea histórica. No representarían a la totalidad de la comunidad, sólo a una parte de ella. 1

ROMERO MORAGAS, C. Ponencia: “Patrimonio, Turismo y Desarrollo”. Bilbao. España. 1996

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Carta de Atenas, 1941 (adoptada por UNESCO)

PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN

En la segunda parte del Siglo XX, el Hombre supera el concepto de Patrimonio Cultural asociada a la de Monumento y reelabora otro: el de Bienes Culturales. Entendiendo a los mismos como creaciones del hombre que se traducen en obras y hechos sustentados por elementos materiales de diversas formas y escalas; y por elementos inmateriales sin forma real, que perduran a través de la tradición “Un bien cultural es un objeto que ha acumulado teoría, práctica, experiencia e investigación, en definitiva, es el resultado del conocimiento humano acumulado”, sostiene Ballart.3 Los Bienes Culturales pueden ser clasificados4 de la siguiente forma:

Como se puede observar en el cuadro anterior, del patrimonio cultural forman parte bienes inmuebles como fortalezas, castillos, templos, casas, plazas, conjuntos urbanos, obras rurales y otros lugares con valor para la historia, la arqueología, la paleontología y la ciencia en general. Los bienes muebles incluyen pinturas, esculturas o artesanías. Como bienes intangibles se consideran la literatura, la música, el folclore, el idioma, las costumbres y especialmente los saberes propios, como el conocimiento de la biodiversidad, la concepción del territorio o la medicina tradicional. De este modo, el patrimonio cultural está constituido por todos los bienes y valores culturales que son expresión de la nacionalidad o identidad de un pueblo, tales como la tradición, las costumbres y los hábitos, así como el conjunto de bienes inmateriales y materiales, muebles e inmuebles, que poseen un especial interés histórico, artístico, estético, plástico, arquitectónico, urbano, arqueológico, ambiental, ecológico, lingüístico, sonoro, musical, audiovisual, fílmico, científico, testimonial, documental, literario, bibliográfico, museológico, antropológico y las manifestaciones, los productos 3 4

BALLART, J. “El Patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso”. Ariel. Barcelona. 1997 Clasificación propuesta por el Instituto Colombiano de Cultura. Cuadro elaborado por la Arq. M. R. Medina. FAUD. UNC

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y las representaciones de la cultura popular. De este modo, la totalidad de las manifestaciones culturales de una comunidad están contempladas y, por lo tanto, merecen ser preservadas y protegidas. Ésta es la forma en la cual se puede lograr una dialéctica entre bienes culturales de diferentes escalas, todas ellas imprescindibles a la hora de conformar la identidad de una comunidad. Es decir que, antes de proponer acciones y normativas, se debe reflexionar sobre el tipo de patrimonio cultural que se posee y la intervención que le corresponde. Nuestro patrimonio cultural – el que define la escena artificial donde se desarrolla la vida de la ciudad –, no acaba en los bienes coloniales y en los edificios emblemáticos del siglo XIX, abarca además sectores carentes de monumentalidad, pero que constituyen gran parte de nuestro patrimonio urbano-arquitectónico, realidades urbanas del siglo XIX y las modernas realidades que renovaron cada ciudad a mediados del siglo XX y que hoy son historia; conjunto que carece de atención y de valoración como bien cultural; y que, en consecuencia, sufre intervenciones que alteran definitivamente su esencia. El Arq. Rodolfo GALLARDO avanzó hace algunas décadas al respecto, y expresó: “Siendo la arquitectura la respuesta a esas formas o modos de vida también es justo ampliar el concepto no solo atendiendo a aquellos edificios o palacios que son una reserva artística donde vivió la clase dirigente de alto status económico-social, sino también se insertan en la historia otras realidades sociales escalonadas en las clases medias o intermedias, y a la arquitectura urbana y rural que son memoria también de determinadas épocas, como el conventillo y el rancho o ejemplos de la arquitectura industrial o utilitaria”. Este patrimonio abarca lo monumental y lo doméstico, que en general no cuenta con características artísticas relevantes. Dado su función utilitaria y social masiva, representan la evolución de formas de hábitos de uso, constructivos, económicos, de gusto, de modelos, etc. Por su función original y, tal vez actual, la continuidad del uso de este tipo de patrimonio es corriente y lo protege en primera instancia de su pérdida total. El Turismo es una actividad que le puede otorgar continuidad y vitalidad a los Bienes de Interés Cultural, siendo una actividad que adquiere una importancia relevante en este juego entre Patrimonio Cultural, Desarrollo Sostenible y Desarrollo Sustentable. Se puede definir al turismo como un conjunto de acciones que una persona desarrolla mientras viaja y pernocta en un lugar distinto al de su lugar de residencia. El Turismo nacional e internacional sigue siendo uno de los medios más importantes para el intercambio cultural, ofreciendo una experiencia personal no sólo acerca de lo que pervive del pasado, sino de la vida actual y de otras sociedades. El Turismo es cada vez más apreciado como una fuerza positiva para la conservación de la Naturaleza y de la Cultura. El Turismo puede captar los aspectos económicos del Patrimonio y aprovecharlos para su conservación generando fondos, educando a la comunidad e influyendo en su política. Es un factor esencial para muchas economías nacionales y regionales y puede ser un importante factor de desarrollo cuando se gestiona adecuadamente. (Carta Internacional sobre Turismo Cultural, 1999).

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PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN

Dicho documento expresa en su Principio 1, que “Desde que el Turismo nacional e internacional se ha convertido en uno de los más importantes vehículos para el intercambio cultural, su conservación debería proporcionar oportunidades responsables y bien gestionadas a los integrantes de la comunidad anfitriona así como proporcionar a los visitantes la experimentación y comprensión inmediatas de la cultura y patrimonio de esa comunidad”. Y, si bien en su Principio 5 menciona que los beneficios deberían ser para la comunidad anfitriona, la gestión adecuada del turismo permitirá la sostenibilidad y sustentabilidad del patrimonio cultural. Por eso deben tomarse todas las medidas adecuadas para ello, con el objetivo de preservar las características del bien, para que no se pierda el objeto como un recurso atractivo al turismo, no sólo para quienes se benefician en la actualidad con los favores de dicha actividad, sino pensando, sobre todo, en las generaciones futuras, quienes tienen el derecho de conocerse y re-conocerse en ese patrimonio cultural, referente material de su propia identidad. La sosteniblidad o el desarrollo sostenible surgen en los ’70 denominándose como “eco-desarrollo” y fue perfeccionándose durante el transcurso de las últimas décadas del siglo pasado. Se basa, en la constatación, corroborada por otra parte por el sentido común, de que en la naturaleza nada crece indefinidamente, sino que, al alcanzar determinados umbrales máximos, en todo proceso se produce el colapso y la degradación y las componentes degradadas o fragmentadas pasan a formar parte de nuevos procesos de desarrollo.5 Asimismo, la Cumbre de la tierra de Río de Janeiro (1992), sostiene en su Principio 1, que “Los seres humanos constituyen el centro de las preocupaciones relacionadas con el desarrollo sostenible. Tienen derecho a una vida saludable y productiva en armonía con la naturaleza”; y en su Principio 4, que “Para alcanzar el desarrollo sostenible, la protección del medio ambiente debe ser parte del proceso de desarrollo y no puede ser considerado por separado.” De este modo, para preservar las características identitarias de un objeto considerado de valor patrimonial se deben arbitrar todas las normas necesarias para lograr ese objetivo, su permanencia, es decir, ser sostenible en el tiempo. Para ello, la sustentabilidad debe ser un elemento de alta significatividad. El desarrollo sustentable es considerado como el “desarrollo que satisface las necesidades del presente sin comprometer las capacidades que tienen las futuras generaciones para satisfacer sus propias necesidades” (Comisión Mundial para el Medio Ambiente y el Desarrollo, establecida por las Naciones Unidas, 1983). La sustentabilidad implica pensar el desarrollo económico en términos cualitativos y no sólo cuantitativos, estableciendo interrelaciones entre aspectos sociales, ambientales y económicos, en un campo cultural democrático y representativo, avanzando simultáneamente en estos ámbitos, sin que la preservación signifique detener el avance del progreso. Para ello, es importante diseñar un Plan de Gestión adecuado a cada objeto de valor patrimo5 http://extensionacademica.wordpress.com/2010/03/26/el-concepto-de-sustentabilidad-y-la-importancia-de-cuidar-el-medioambiente/ [en línea, consultado el 28/07/2012]

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nial, siempre teniendo en cuenta la importancia de preservar los valores de su entorno. La planificación y la gestión del patrimonio cultural y natural de un sitio – según lo que propone la Carta de Ename, Interpretación de lugares pertenecientes al patrimonio cultural ICOMOS, 2004–, deben “contribuir a la conservación perdurable de los lugares con valor patrimonial y potenciar la calidad de vida de las comunidad receptora de los visitantes”. Uno de los principales desafíos al cual se enfrenta quien diseña un Plan de Manejo de un Sitio Histórico, es lograr ese delicado equilibrio que permita preservar las características patrimoniales que le otorgan ese rango y, por otro lado, no interferir en el normal desarrollo del mismo. Se requiere de una política de planeamiento y gestión urbana que se responsabilice por la conservación de la autenticidad e integridad del sector. Es por ello, que en el momento de realizar el Plan de Manejo se debe convocar a todos los actores partícipes: propietarios; usuarios; inversores — en nuestro medio, muchas veces mal llamados “desarrollistas” —; arquitectos y planificadores urbanos; especialistas en la temática del patrimonio cultural; historiadores; sociólogos; antropólogos; abogados; y, por supuesto, a representantes de los diferentes estamentos gubernamentales. Una preocupación central de las intervenciones físicas y funcionales es realzar la calidad de vida y la eficiencia productiva, mejorando las condiciones de trabajo y de recreación, así como mediante la adaptación de los usos, no poner en riesgo los valores existentes, derivados éstos del carácter y el significado de la materia y de la forma urbana de naturaleza histórica. Ello significa no solamente mejorar los niveles técnicos, sino también una rehabilitación y un desarrollo contemporáneo del ambiente histórico, basado en un inventario adecuado y en la detección de sus valores, además, añadir expresiones culturales de alta calidad. Una de las herramientas imprescindibles para la protección de los bienes de valor históricocultural es la legislación. La misma aborda la problemática asignándole la importancia que dicho bien se merece y aporta aspectos pedagógicos, por lo que la difusión de la misma es imprescindible para lograr el objetivo. Si así no lo hiciere, sería totalmente ineficaz, es más, actuaría de manera contraproducente. Entre las organizaciones que se debe convocar de manera imperiosa para la gestión del patrimonio cultural, figuran las instituciones educativas, ya que es allí en donde se construyen conocimientos que pueden ser derivados hacia ese campo académico y es ahí en donde se reproducen prácticas culturales que pueden ser muy útiles a la hora de preservar el bien cultural, pudiéndose crear verdaderos “ejércitos” defensores del mismo. En el caso particular de Argentina, la ausencia de contenidos acerca del Patrimonio Cultural en su currícula formal puede ser una de las causas por las cuales se pierden, día a día, enorme cantidad de vestigios identitarios, sumado al hecho de una legislación flexible, permeable e ineficaz. Es sumamente necesario diseñar un proyecto curricular educativo que integren dichos contenidos como parte de la gestión cultural a la cual se alude.

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La Gestión urbanística en las áreas históricas tendrá que prestar la debida consideración a las escalas preexistentes, particularmente en lo relativo a los volúmenes y alturas de los edificios, minimizando los impactos directos en los elementos históricos importantes. La preservación de los sitios del Patrimonio Mundial supone también el diseño del espacio público: deberá prestarse especial atención a la funcionalidad, la escala, los materiales, la iluminación, el mobiliario urbano, la publicidad y la señalética y a la vegetación, por nombrar sólo unos pocos elementos. El planeamiento de la infraestructura urbana en zonas patrimoniales deberá incluir todo tipo de medidas de respeto al tejido histórico, a las edificaciones existentes y al contexto, así como mitigar los efectos negativos del tráfico vehicular y los estacionamientos. También la intervención en el interior de los objetos de valor patrimonial debe ser cuidadosa. La mutación de sus usos originales puede, en la mayoría de los casos, repercutir en las cualidades de los espacios públicos, también el vaciado interior de los volúmenes edificados no constituye un medio apropiado de intervención en sitios de valor cultural. El plan de manejo para un lugar cultural debe incluir lo que por otra parte llamamos plan de conservación, pero generalmente abarca otros aspectos del manejo del lugar que el plan de conservación no incluye, por ejemplo si fuera un área grande6. Los mismos autores sostienen que “manejo” en este contexto consiste en identificar el rango de opciones disponibles para cada lugar patrimonial de acuerdo con su significado estimado, hacer un balance de estas opciones respecto de otras consideraciones tales como la disponibilidad de fondos y recursos humanos y el posible conflicto con otros objetivos administrativos ya sea para el mismo territorio o para uno adyacente; y luego elegir las opciones más apropiadas y perseguirlas como una política de manejo. La identificación y adopción de tal proceso se denomina “planificación de manejo” y su elaboración por escrito “plan de manejo”. Mientras que la preservación es el aspecto principal en la administración de un lugar, el plan que se obtiene es generalmente llamado “plan de preservación”. De este modo, una planificación de manejo adecuada es la clave para una administración efectiva del lugar patrimonial, ya que sin esto no hará un inventario adecuado, una tasación, y cuando sea posible, la preservación del recurso. El manejo de recursos culturales es diferente al manejo de recursos naturales, ya que los recursos culturales se deterioran con el tiempo y no se regeneran por sí mismos como lo hacen la mayoría de los elementos de los sistemas naturales. Por lo tanto, la administración mediante la exclusión de usos incompatibles y la protección contra influencias dañinas externas, las cuales permitirían que un recurso natural viviera por sí mismo o se regenerara, no lograría necesariamente la preservación de una amplia cantidad de recursos culturales. El documento anteriormente citado presenta la siguiente etapabilización para el proceso de diseño de un Plan de manejo:

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PEARSON, M. SULLIVAN, S. Op. Cit.

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Todo Plan de Manejo debe partir de un diagnóstico exhaustivo del significado que posee el BIC para la comunidad. Entender el grado de conocimiento y valoración que hace una sociedad del mismo, permite armar un esquema previo de ese plan, diagramando líneas directrices en el mismo. Para la realización de este diagnóstico, como se lo mencionara anteriormente, debe incluirse las opiniones de todos los actores involucrados, sumado a las condicionantes legales y técnicas que afectan al sitio o al bien. El gestor tiene una responsabilidad clara de evaluar el significado de un lugar objetivamente. De la misma manera, existe una responsabilidad clara de tener en cuenta otras restricciones y consi19

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deraciones y hacer un balance entre el valor patrimonial y las necesidades de la sociedad. Mientras mayor sea el entendimiento del valor del lugar, mayores serán las posibilidades del gestor de encontrar razones convincentes para superar los problemas de administración para lograr la preservación. El ICOM sostiene que la política de preservación debe identificar la forma más apropiada para cuidar la estructura y el entorno de lugar teniendo en cuenta el significado y otras restricciones. A esta política se la conoce, en ocasiones, como política de administración, especialmente cuando no es posible o apropiada la preservación completa del lugar, o cuando la preservación es sólo uno de los tantos objetivos en una situación específica en el manejo de un lugar. Algunos sitios pueden poseer un alto grado de significancia, pero otros factores dominantes (restricciones) pueden hacer imposible su conservación porque, por ejemplo, pueden estar en medio de un terreno a utilizar de un valor abrumador. En esos casos será necesario especificar, en una política de administración, los métodos para minimizar los daños provocados al lugar, con su consecuente detrimento de valoración, y la forma en que se debe recuperar cualquier información relevante que pueda perderse. Independientemente de que se trate de un plan de manejo que posibilite la preservación total del BIC o no, deben presentarse las siguientes tres etapas: •

Evaluación de significado.



Desarrollo de políticas.



Implementación de una estrategia y prácticas específicas y apropiadas de administración.

En el caso específico de este trabajo, plan de manejo de usos, se sugiere que, sin importar el nivel de valoración que posea el sitio en cuestión, si en el mismo existe una propuesta de intervención en la cual se mutarán los usos preexistentes en pos de beneficios comunitarios de alta significatividad, la única solución es realizar un relevamiento pormenorizado de los componentes valiosos del lugar y gestionar un plan de recuperación y remoción de esos vestigios, se entiende, en el caso de sitios arqueológicos. Si bien sostienen, además, que en el caso de que el sitio posea un grado de valoración muy alto, esto debería frenar cualquier intento de mutación de usos. La selección de la opción u opciones adecuadas de administración dentro del proceso de planificación, (…) debe estar basada en factores tales como el objetivo de la dedicación y uso de la zona involucrada, el nivel apropiado de preservación implicado, basado en la evaluación de la importancia del lugar y la evaluación de otras restricciones, el grado y tipo de uso público, la posibilidad de arrendamiento u otros usos y los costos de preservación7. Diseñar un Plan de Manejo requiere que el gestor tenga un buen conocimiento de los esquemas de planificación municipal y el reglamento de desarrollo que opera en ese lugar, entendiendo que la herencia cultural no es solo el pasado, sino el presente que interactúa con ese pasado en un crecimiento continuo de tradición formativa, evitando desarrollar enfoques estereotipados del patrimonio de otras culturas. Cada elemento requiere un método diferente, pero el total de la estructura debe ser integrada para mantener el valor patrimonial del lugar. La administración de tales lugares debe estar basada en la comprensión y respeto por la propie7

PEARSON, M. SULLIVAN, S. Op. Cit.

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dad cultural que le pertenece a la comunidad y, una vez que eso esté establecido, por la preservación del lugar, evaluación de la demanda pública para tener acceso y control de visitas. Además, hay que entender que dicho plan no debe circunscribirse solamente al BIC, también su entorno es importante, pues la comprensión del valor histórico del paisaje cultural del conjunto es fundamental al diseñar la política de administración para el mismo, ya que, las decisiones relacionadas con el uso de la tierra son importantes para asegurar la permanente existencia de los elementos de ese paisaje. Los demás elementos significativos que el gestor debe considerar para diseñar la política de administración son: •

las circunstancias en general;



el tipo y severidad de restricciones;



la naturaleza de las oportunidades de administración que un lugar puede ofrecer.

Una vez más, el gestor sólo puede hacer esto efectivamente si se conoce el contexto de administración estatal o regional. Es decir, el gestor necesita saber no sólo la importancia total de ese lugar, sino también la política de administración regional relacionada a ese lugar. El gestor de un solo edificio patrimonial necesita conocer el contexto de la filosofía de preservación local o regional, la asistencia de financiación, los esquemas de planificación, y los lugares similares que son preservados, más allá de entender el contexto histórico y social del lugar. En teoría, es necesario también conocer la política del uso regional de la tierra, uso planificado de la tierra, la distribución de zonas y otras restricciones en el uso de la tierra. Esto es preciso para evaluar el rango de posibles alternativas para el futuro de la tierra en donde está ubicado. Por consiguiente, a veces es difícil diseñar una política de preservación o administración para un lugar determinado cuando falta la planificación patrimonial estatal o regional, debido a que no se tiene información ni una política contextual. Por lo tanto, la planificación estatal y regional son prioridades importantes en la preservación patrimonial.

La planificación del uso de la tierra local y regional le proporciona al gestor importantes herramientas potenciales y objetivos en la protección de lugares patrimoniales. En general, es posible en algunos estados dividir la tierra en zonas con valor patrimonial importante para que de este modo se reconozca su valor y se proteja el área de futuros usos inapropiados que dañen o no protejan la tierra. Por lo tanto, un área puede ser dividida para preservar paisajes o conservar la historia y aplicar las restricciones adecuadas para el uso de la tierra. También es posible, en un plan ambiental local, identificar zonas con valor patrimonial potencial (por ejemplo, en lugares donde todavía no se han realizado informes exhaustivos para localizar las áreas aborígenes), y requerir un mayor trabajo de identificación como parte de cualquier propuesta de desarrollo. De la misma manera, las organizaciones que administran tierras necesitan de una política abarcadora y de estrategias para la administración de patrimonios. La política debe esbozar la responsabi21

PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN

lidad sobre lugares patrimoniales, y debe identificar las oportunidades de preservación y necesidades de planificación, y las políticas y procedimientos para tratar temas y situaciones específicas8. Teniendo en cuenta lo anteriormente mencionado, se infiere que la persona que diseñe un Plan de Manejo debe identificar las políticas, prioridades y procedimientos para realizar una planificación efectiva de uso del suelo, tanto a nivel local, regional y nacional. Tal vez, no pueda tener injerencia en esos niveles, pero puede promover sus requerimientos, cuando lo crea necesario. La Dra. María Isabel Hernández Llosas9, plantea diez pasos para la realización de un Plan de Administración. En un primer momento, define al lugar patrimonial como un área o sitio específico, tal vez un área extensa como toda una región o un paisaje, o una pequeña área como una edificación particular, que es valorada por las personas por su importancia patrimonial en lo natural y/o en lo cultural. Manifiesta, además, que “protegemos el patrimonio porque estrecha los lazos de identidad personal de grupo, queremos transferirlo y porque representa una obligación legal, social, espiritual o ética”. A partir de esas definiciones, se propone una serie de interrogantes-pasos para diseñarlo: a) ¿Cuál es su lugar patrimonial? b) ¿Quiénes tienen interés en él? c) ¿Qué es lo que necesitas saber? d) ¿Por qué este lugar es importante? e) ¿Cuáles son los problemas? f) ¿Qué es lo que necesitas lograr? g) ¿Qué es lo que necesitas hacer? h) ¿Cuál es el plan? i) ¡Hazlo! j) ¡Revísalo! A partir de lo cual se comienza a ampliar los contenidos pertinentes a cada paso: Paso 1: ¿Cuál es su lugar patrimonial? Los lugares patrimoniales son importantes para diferentes personas de distinta manera. Pueden tener elementos históricos, indígenas o naturales que son significativos y les ayudará a quienes se involucran en el mismo a contar historias acerca de sus tierras y de sus personas. Describe las características claves y determina si su importancia patrimonial es natural, indígenas y/o histórica.

8

PEARSON, M. SULLIVAN, S. Op. Cit.

9

Citado por la Dra. Hernandez Llosas en el desarrollo de la Asignatura Diseño de Administración. Maestría Patrimonio Cultural Material. FFyH. FDyCS. UNC

22

A. Aníbal Manavella

Paso 2: ¿Quiénes tienen interés en él? Permite identificar a quiénes le preocupa el sitio y cuáles son los responsables del lugar. De esta manera, se asegura que las personas involucradas sean las correctas; ayuda a determinar la importancia del patrimonio y certifica que todos los temas de importancia serán considerados. En función de lo anteriormente mencionado, deriva una serie de preguntas que son significativas para diseñar el Plan: •

¿Quiénes tienen conocimiento sobre el sitio?



¿Quiénes son los dueños de la tierra y quiénes operan en el lugar?



¿Quiénes son los custodios y los cuidadores?



¿Quiénes guardan los registros y la información?



¿Quiénes serán afectados?

Paso 3: ¿Qué es lo que necesitas saber? En esta etapa se debe relevar la información básica sobre el sitio a gestionar, demarcando los límites del mismo y si posee alguna declaración de interés patrimonial. También es importante chequear si todos los aspectos de relevancia patrimonial han sido tenidos en cuenta y cuáles podrían ser los vacíos en este tipo de información, como así también, tomar notas acerca de toda información adicional necesaria a tener en cuenta. Paso 4: ¿Por qué este lugar es importante? Esta etapa permite entender la relevancia del lugar, su valor patrimonial a través de sus elementos significativos, de manera tal, de poder entender y conocer cuál es su importancia, para poder protegerlo. Tras lo cual, se debe redactar una declaración de significancia, que puede ser expresada mediante la exhibición de videos, canciones y/o manifestaciones artísticas. Paso 5: ¿Cuáles son los problemas que afectan al lugar? Se entienden los problemas hablando y consultando abiertamente con los actores involucrados e identificando prioridades. Deriva los siguientes cuestionamientos: •

¿Cuál es su condición?



¿Cuáles son las leyes que se aplican?



¿Cuáles son las amenazas y predisposiciones que lo afectarían?



¿Qué recursos están disponibles?

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PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN

En función de las cuales se podrían puntear los problemas-clave del sitio: •

Amenazas sobre la significación.



Las condiciones del lugar.



Arreglos actuales de manejo.



Otros problemas clave.

Paso 6: ¿Qué es lo que necesitas lograr? Lo que se quiere alcanzar, por lo general, está escrito como objetivos, preguntándose: •

¿Qué resultados se quieren alcanzar?



¿Cómo se quiere que el lugar esté conservado en el futuro?



¿Qué significado se quiere mantener?



¿Cuáles son las prioridades?

Paso 7: ¿Qué es lo que necesitas hacer? En este paso se propone desarrollar estrategias para mantener lo relevante del sitio —haz tanto como sea necesario y tan poco como sea posible—, entendiendo que cada lugar es único y que la buena administración consiste en encontrar soluciones creativas y apropiadas, entendiendo que a veces la mejor solución es no hacer nada. Plantear estrategias y acciones posibles, deriva de ciertos cuestionamientos a tener en cuenta: •

¿Cada uno de los objetivos cuenta con una estrategia?



¿Fueron cubiertos los aspectos más importantes?



¿De qué manera la estrategia protege lo más relevante?



¿En qué grado la implementación de determinada estrategia modifica las características del lugar?

Paso 8: ¿Cuál es el plan? Las respuestas a los primeros siete pasos dan los componentes claves del Plan de administración. El mismo debe incluir quién o quiénes son los responsables y de qué, cómo y cuándo será monitoreado su progreso o desarrollo y cuándo y cómo el plan deberá ser revisado. Se debe poner especial atención en que el mayor grado de interesados e intereses estén reflejados en los objetivos, que la estrategia esté reflejada también allí y determinar quién o quiénes serán los responsables de implementar el plan. Paso 9: Ejecución del plan Esta es la etapa en que se pone en marcha el plan, en la cual se deben realizar las acciones sistemáticamente de acuerdo al mismo y registrar su progreso. Se debe recordar que la administración de un proyecto requiere de un administrador de proyecto y que se debe mantener, a la gente involucrada, informada. 24

A. Aníbal Manavella

Paso 10: Revisión Todos los planes y proyectos requieren de una sistemática y regular revisión, para ello, el Plan debe especificar en qué momento realizarla. En el caso de se presenten alteraciones en las características del BIC con respecto al momento en el que se lo diseñó, el plan debe ser modificado. Registrar los resultados de las revisiones y las circunstancias por las cuales hay que alterarlo, es necesario. Este proceso de retroalimentación de los planes de administración o preservación se plantea, también, en el documento de Pearson y Sullivan y en la Carta de Burra. Este documento, adoptado por UNESCO en 1999, también plantea un proceso-circuito de diez pasos para diseñar y llevar a cabo el plan, si bien los define de manera un tanto distinta: 1. Identificación del sitio y asociaciones: asegurar el sitio y protegerlo. 2. Recopilación y registro de la información sobre el sitio suficiente para comprender la significación: documental, oral, física. 3. Evaluar la significación. 4. Preparar una declaración de significación. 5. Identificar las obligaciones que emanan de la significación. 6. Recopilación de información sobre otros factores que afectan el futuro del sitio: necesidades y recursos de propietario/administrador, factores externos, condición física. 7. Desarrollo de la política: identificar opciones, considerar las opciones y verificar su impacto sobre la significación. 8. Preparar la declaración de una política. 9. Administrar el sitio de acuerdo con la política: desarrollo de estrategias, implementación de estrategias mediante un plan de gestión, relevamiento del sitio antes de realizar cualquier cambio. 10. Monitoreo y revisión. A pesar de las sutiles diferencias que se pueden encontrar en los diversos documentos analizados, en casi todos los casos, los elementos principales deben ser incluidos cuando el gestor está preparando un plan para la administración de un patrimonio cultural. Estas discrepancias reflejan la realidad de la situación administrativa en la que se encuentran la mayoría de los gestores de lugares patrimoniales: el proceso de manejo está basado primero y principal en una obligación legal, la cual puede fomentar o desalentar las acciones de preservación. Generalmente, el trabajo principal del gestor es encontrar el modo de interpretar las restricciones legislativas para hacer posible la conservación de los valores culturales y naturales del BIC.

Conclusiones En síntesis, VALOR; PATRIMONIO CULTURAL; GESTION; TURISMO; SUSTENTABILIDAD; SOSTENIBLIDAD, son conceptos sumamente interrelacionados e interdependientes. 25

PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN

El valor del Patrimonio Cultural (PC) viene determinado por su función como representación de la memoria histórica; siendo, en muchos casos, el Patrimonio Arquitectónico la materialización de esa memoria. 10 Sin embargo, dentro de esta amplia definición se vislumbran diferentes matices. De este modo, tanto el pasado histórico como su concreción material tienen distintos valores, entre ellos11: -El Patrimonio como seña de identidad, como proceso de reconocimiento intergeneracional, dando sentido a la pertenencia de grupo, de comunidad; reconocida la comunidad en su patrimonio se presenta a los demás. -Como fuente de placer; el pasado y los objetos provenientes de aquel, en muchos casos, comportándose como “fetiches” del mundo moderno. -El Patrimonio como fuente de ingresos económicos, directos o indirectos; ya sea con la venta de antigüedades y entrada de museos o venta de libros, como así también por la creación de motivos o campañas de venta fundamentadas en recocidos símbolos del pasado, así, como por su capacidad por dinamizar, a través de proyectos de puesta en uso de ese Patrimonio, a partir de la creación .de infraestructuras como de puestos de trabajo. -El Patrimonio como recurso susceptible de ser científicamente investigado; de tal forma, que los beneficios que de este se deriven sean los puramente propedeúticos con relación al pasado; es decir, el pasado como algo modélico, examinando nuestro presente bajo el prisma del pasado. No obstante, tomar el patrimonio como un fin en sí mismo, es erróneo, pues en ese caso, se corre el riesgo de la pérdida de los valores que lo definen como tal. El mismo debe ser considerado como un medio, como un recurso, para llegar al conjunto de la sociedad, que al fin y al cabo es su depositaria. De igual forma, no se puede hacer referencia al PC, ni a su potencial, en cuanto a su funcionalidad o re-funcionalización se refiere, sin tener en cuenta los Campos Físico-Espacial y Socio-Cultural en los que éste se encuentra inserto, ya que el valor que los Bienes Culturales adquieran, no será un valor elegido al azar, sino el compendio de situaciones históricas y sociales reales. El derecho nos dice que un bien es tal cuando tiene valor y que el valor se mide en la aptitud que tiene dicho bien para satisfacer alguna necesidad del hombre. Una primera mirada a un bien patrimonial nos sugiere que estamos ante algo que tiene valor. Valor, en sentido de valía, es decir de percepción de cualidades estimables en una cosa, por la utilidad que manifiestan o por su aptitud para satisfacer necesidades o proporcionar bienestar.12No sólo son sus cualidades físicas objetivas y cuantificables las que prevalecerán –como superficie, terminaciones, instalaciones, etc.– sino las subjetivas que dependen de la percepción y de la conducta 10

CRIADO BOADO, F. El futuro de la Arqueología, ¿La Arqueología del Futuro?, en Trabajos de Prehistoria, 53, Nº.1, pp. 15- 35. Madrid. 1996

11 12

BALLART, Josep. El patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Ariel. Barcelona. 1997 BALLART, Josep. Op. Citada

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que el hombre desarrolle para con ese bien patrimonial construido –historia, significado, importancia, etc.– dependerá del marco socio cultural que modele la conducta del individuo y de la comunidad, la actitud que se tenga frente al objeto, la cual podrá variar entre el valor supremo y lo despreciable. Los bienes culturales que no tienen escala monumental, e incluso el que lo es, debe ser comparado entre dos o más cosas para establecer su valor, a los fines jurídicos. ¿Con qué se comparan nuestros bienes culturales para valorarlos? Generalmente con los europeos, arquitectura y urbanismo cuyo contexto y evolución, aunque tomados históricamente en forma modélica, siempre dejarán nuestra realidad en inferioridad de condiciones al no contar con ejemplos del siglo II d. C., ni catedrales góticas, ni viviendas del siglo XVIII cuyo barroco no admite discusiones acerca de sus valores históricos, artísticos y arquitectónicos. Apelamos a “falta” de estos valores, a agregarle a nuestros recursos culturales valores transferidos por la personalidad de aquella persona ilustre que los usó, o habitó, edificó o construyó, para ser o parecer.13 Un bien cultural histórico patrimonial tiene un valor ante todo referido a sus potencialidades como recurso para hacer presente el pasado. En sociedades de carácter inestable, la conciencia de cambio y paridad da lugar al “paradigma preservacionista posmoderno”.14 El pasado, que existe más allá de toda duda, da tranquilidad y seguridad a las personas, proporciona consuelo, frágil si sólo se apoya en la memoria humana, pero fortalecido cuando encuentra vestigios materiales que lo respalden. El pasado se erige entonces como una referencia inmune a las mutaciones que impone el presente, en el marco de identidad y la memoria colectiva, en el modelo probado a seguir. En las últimas décadas del Siglo XX, las naciones han demostrado un interés significativo por el patrimonio cultural, la preservación del mismo, pero también su desarrollo. Para ello, han tomado conciencia acerca de los beneficios que puede aportar la actividad turística, y el turismo sostenible ha cobrado importancia para la conservación de los valores patrimoniales y la relación con su territorio, teniendo en cuenta su valorización, gestión y promoción, de manera tal de diseñar un plan de gestión de los Bienes de Interés Cultural y Natural, con el objetivo de arribar a la valorización turística sostenible de dichos bienes. Persiguiendo este fin, es necesario recordar que para lograr el desarrollo sustentable es imprescindible convocar a todos los actores que tengan ingerencia para diseñar y gestionar el turismo, con el objetivo de hacer sostenible el Patrimonio Cultural. Por supuesto, que la legislación y el poder de policía también son necesarios para frenar y/o impedir el proceso de deterioro que pueden sufrir los bienes y espacios de valor patrimonial, cuyas intervenciones pudiesen obedecer a intereses individualistas y espurios.

13

NASELLI, César. Ideología de la preservación patrimonial: divagaciones subyacentes a un concepto. Sumarios 123

14

DELLAVEDOVA, D. MARICONDE, M. Posmodernidad y patrimonio: el monumento arquitectónico en Córdoba. Ediciones Eudecor. Córdoba. 1997

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PATRIMONIO Y TURISMO: IMPORTANCIA DE LA GESTIÓN PARA SU CONSERVACIÓN

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* Mgtr. Arq. A. Aníbal Manavella Institución: Centro de Estudios de Historia Urbana Argentina y Latinoamericana (CEHUALA); Facultad de Arquitectura, Urbanismo y Diseño; Universidad Nacional de Córdoba; Argentina

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TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA Alejandro Giménez Rodríguez*

Precisando los términos Para comenzar es muy importante precisar los términos. Por Turismo podemos entender el “Fenómeno social que consiste en el desplazamiento voluntario y temporal de individuos fuera de su lugar de residencia habitual, por un período superior a las 24 horas, generando interacciones con otros entornos sociales, económicos y culturales” (1). Por Cultura definimos un “Conjunto de los rasgos distintivos espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a una sociedad o a un grupo social. Además de las artes y las letras, la cultura abarca los modos de vida, las maneras de vivir juntos, los sistemas de valores, las tradiciones y las creencias” (2). Como síntesis, por Turismo Cultural entendemos “… las actividades orientadas a conocer, comprender y disfrutar del conjunto de rasgos y elementos distintivos de un pueblo/ grupo social concreto” (3). Procurando establecer las tipologías del Turismo Cultural, este concepto comprende: •

Asistencia a exposiciones/ eventos/ espectáculos culturales (teatro, cine, festivales de música, museos, centros culturales).



Recorridos/ visitas a monumentos y conjuntos patrimoniales/ históricos/ castillos/ iglesias/ conjuntos arquitectónicos.



Visitas a yacimientos arqueológicos/ paleontológicos.



Conocimiento/ Participación en actividades artísticas y expresiones culturales locales.



Asistencia y participación en fiestas locales y nacionales.



Visita a complejos industriales (refinerías, destilerías).

Aplicando estas tipologías, el concepto es sumamente abarcativo. Es Turismo Cultural una bienal de artes visuales, citando como ejemplo la que realiza el departamento de Salto (500 quilómetros al noroeste de Montevideo); un mega-recital, como el que el ex – beatle Paul Mc Cartney realizó en abril de 2012 en el Estadio Centenario de Montevideo; la asistencia a un museo o a un ciclo literario compuesto por varias conferencias, sobre todo los que se realizan en la temporada estival en alguno de nuestros principales centros balnearios. También la visita a la zona del ex- Frigorífico Anglo de Fray Bentos, a 300 quilómetros al

TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

noroeste de la capital del país, que contiene el Museo de la Revolución Industrial y las antiguas casas de los obreros y los jerarcas de la compañía inglesa que explotaba ese emprendimiento, y que ha sido presentada su candidatura como Patrimonio de la Humanidad ante la UNESCO. Asimismo, son Turismo Cultural la más de un centenar de fiestas tradicionales que se desarrollan anualmente en todo el territorio nacional, como la Fiesta de la Patria Gaucha, que tiene lugar en Tacuarembó, 400 quilómetros al noreste de Montevideo; o las de las comunidades de inmigrantes, como las que se realizan en Nueva Helvecia, una comunidad fundada por suizos a 120 quilómetros de Montevideo, hacia el oeste. Y también la Fiesta de la Nostalgia, que desde 1978 congrega a miles en la noche del 24 de agosto, vísperas del feriado por la Declaratoria de la Independencia Nacional, que se dan cita en reuniones bailables en las que la música es únicamente la de los años 60, 70, 80 y 90. También son expresiones de Turismo Cultural el único Patrimonio de la Humanidad- nominado en diciembre de 1995 -que tiene el Uruguay, la ciudad histórica de Colonia del Sacramento, 180 quilómetros al oeste de la capital uruguaya, frente al Río de la Plata y a Buenos Aires, capital argentina. En lo que se refiere a manifestaciones intangibles, los ritmos del Tango y el Candombe son Patrimonio Inmaterial de la Humanidad desde setiembre de 2009, presentada la postulación de ambas por Montevideo, y en el primer caso junto a Buenos Aires, constituyendo ambas (o intentando serlo) productos turístico culturales que hacen a nuestra identidad y que son atracción para quienes visitan nuestras tierras (4).

Zona de conflictos y encuentros Cuando a menudo encontramos un grupo de turistas en la puerta de un museo gestionado por el Ministerio de Educación y Cultura cerrado en la Ciudad Vieja de Montevideo, pese a que los folletos editados por el Ministerio de Turismo y Deporte dicen que ese día y a esa hora debe estar abierto, entramos en una zona de conflicto. La autoridad que dispone el horario de apertura del museo no coincide con la que dispone la publicación del folleto, y hasta dependen de distintos ministerios. El gestor del museo dirá que no tiene recursos humanos para abrirlo al público la mayor cantidad de días y horas como para que el visitante uruguayo y extranjero pueda recorrerlo. Al mismo tiempo quién brinda la información a través del folleto argumentará en su favor, ante la queja del turista, que los datos que allí aparecen son los brindados por la autoridad bajo la que esta el museo, deslindando responsabilidades por esa causa. Otra situación se produce en uno de los puntos turísticos más importantes del país y referencia mundial del Uruguay en el mundo: Punta del Este. En la Isla Gorriti, ubicada frente a nuestro principal balneario, pueden verse restos de cuatro baterías defensivas que datan de fines del siglo XVIII. Si bien hace unos años un equipo de arqueólogos de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación realizó un trabajo exhaustivo en el lugar, esos vestigios, cuya salvaguarda depende de la Intendencia de Maldonado, están en un vertiginoso estado de deterioro, pese a que en los veranos 32

Alejandro Giménez Rodríguez

funciona en la isla un emprendimiento gastronómico. Todos los años los informativos de televisión realizan un informe realzando las bondades de la zona, y en la mayoría de las ocasiones ni mencionan lo que podría ser un excelente producto de turismo histórico, como son las fortificaciones.. Estos dos ejemplos de conflictos y desencuentros entre turismo y cultura no son los únicos. A menudo ambas áreas parecen estar en permanente desavenencia. Desde el turismo suele verse el producto cultural como de segunda mano y elitista. Desde la cultura la visión del producto turístico tradicional es la de una expresión frívola y “light” alejada de los ámbitos académicos. En los últimos años, sobre todo a partir de la llegada en marzo de 2005 de las fuerzas de izquierda al gobierno uruguayo, han sido diversos y encomiables los intentos de articulación entre Turismo y Cultura, intentando superar las diferencias y buscando hacer confluir dos caminos que parecían estar muy alejados. En ese sentido, el autor de esta ponencia puede relatar la experiencia desde ambos lados del mostrador, ya que ocupó entre 2005 y 2010 el cargo de Coordinador de Museos del Ministerio de Educación y Cultura, y desde 2010 a la fecha se desempeña como Asesor Cultural en el Ministerio de Turismo y Deporte. La primera experiencia que merece destacarse es la de 2009, año que tuvo como consigna de ICOM (Consejo Internacional de Museos) la de “Museos y Turismo”. El 21 de mayo de ese año-en el marco del Día de los Museos -pudimos reunir a gestores de museos y operadores turísticos públicos y privados en torno a una misma mesa y hacer un diagnóstico de la situación. Aquel taller que llamamos “Museos uruguayos. Una mirada desde el Turismo”, tuvo una serie de opiniones muy interesantes de ambos lados, y conclusiones que resumimos (5):



Los museos uruguayos no tienen una estrategia de cara al turismo, debido a la falta de recursos humanos y económicos, más allá de acciones puntuales, como el trabajo que algunos realizan en la atención de visitantes arribados en cruceros, si bien se reconoce los problemas que hay para que los museos de gestión pública abran en esas ocasiones.



Se valora la importancia de elaborar un plan estratégico, como el diseñado por Osvaldo Lombardi en Argentina, apostando a “abrir cabezas” que en muchos casos están cerradas. Elaborar proyectos, aplicarlos y evaluar su retorno. Ir hacia la sponsorización y tomar real conciencia de país turístico, para lo que es fundamental la permanencia del turista, evitando que los museos cierren los fines de semana.



Hay que consolidar una verdadera gestión turística a nivel cultural.

Si bien aquella actividad puntual no tuvo una continuidad, los lazos quedaron extendidos para seguir conversando el tema y apuntar a la búsqueda de puntos de coincidencia entre ambas áreas. Dos años después, organizado por el Museo de la Casa de Gobierno de Presidencia de la República y el Ministerio de Turismo y Deporte, el 6º Encuentro Nacional de Profesionales de Museos 33

TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

tuvo como temática “Museos y Turismo, una necesaria alianza estratégica”.

El viejo edificio “Gral. José Artigas”, antigua sede del Poder Ejecutivo, frente a la Plaza Independencia, tuvo nada menos que 120 asistentes a esta jornada, desarrollada el 8 de junio de 2011, lo que mostró la avidez por discutir y reflexionar sobre estos temas. En la oportunidad se contó con ponentes de Montevideo y el Interior, conviviendo gestores culturales y turísticos públicos y privados, contando también con la presencia de Osvaldo Lombardi, ex director de Turismo de la ciudad de Buenos Aires y en ese momento asesor turístico del Museo Isaac Fernández Blanco de esa urbe. Las conclusiones fueron en esta ocasión mucho más concretas, denotando en la oportunidad un mayor nivel de claridad en los conceptos (6):



Se valora como muy importante la articulación de los agentes culturales con las cámaras empresariales y los operadores turísticos.



El producto turístico cultural debe contener patrimonio, actividades, infraestructura y servicios.



A los efectos de tener mediciones, se sugiere la creación de un observatorio de turismo cultural.



El producto turístico cultural puede ser un elemento que estimule el desarrollo local.



Debe verse el Museo desde el lugar turístico, como una alianza para llevar al turista hacia lo que le interesa ver.



Se debe tender a crear una red e intercambio de experiencias y realidades entre ambos sectores.



Debe procurarse por medio de la relación del turismo y los museos vencer la estacionalidad, impulsar la descentralización permanente y aumentar la capacidad de gestión.



Diversificar, especializar, y crear nuevas ofertas.



Generar corredores y circuitos turísticos (históricos, artísticos, literarios, gastronómicos, etc.).



Los museos son importantes en la cadena de valor turístico.



Los profesionales del turismo y los museos deben generar espacios comunes y explorar oportunidades, sin perder de vista que no todos los museos son turísticos.



Creación de un Fondo Nacional para proyectos turístico-culturales.



Ir hacia una coordinación permanente que permita llevar adelante proyectos autosustentables que revolucionen la oferta turística.

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Alejandro Giménez Rodríguez

Algunas articulaciones que veremos a continuación demuestran que estos pasos no han sido en vano, pese a la dificultad de generar institucionalidad en este tema. Es muy resaltable la tarea que está cumpliendo el Conglomerado de Turismo de Montevideo (Asociación Turística de Montevideo). Un Conglomerado es un conjunto de empresas que comparten un territorio y una cadena de valor, o cadenas conexas. Las empresas no compiten solas, lo hacen formando parte de una cadena en la que intervienen otros actores esto lleva a que parte de su capacidad de competir dependa de su habilidad para articular y cooperar. Trabaja desde octubre de 2008 en la articulación de la cadena de valor turística de Montevideo, como forma de mejorar la competitividad de las empresas y del Destino Montevideo en su conjunto. También reforzar la comunicación interna entre el Conglomerado y sus socios y fortalecer la comunicación e imagen externa del destino Descubrí Montevideo. El intercambio de información y las relaciones entre las empresas generan un entorno más propicio para la innovación, ayuda a identificar soluciones y a trasmitir el conocimiento (6).

¿Cómo se relaciona la Cultura con el Conglomerado de Turismo? •

La MOCE (Mesa de Oferta Cultural y Entretenimiento) es un sector integrante del Conglomerado, junto a otros como Hoteles, Restaurantes, Agencias de viaje, etc.), en una articulación horizontal (público-privado; público-público; privado-privado).



Integran la MOCE distintos subsectores: Museos y Salas de Exposiciones, Teatros, Bodegas, Diseño, Audiovisual, Salas de Espectáculos, Productores Teatrales, Música, Deporte, Juego, Carnaval, Guías de Turismo, Turismo Idiomático, Club de Tango, Turismo Familiar, Turismo Comunitario, Friendly Montevideo y Montevideo Oeste).



Objetivos- Promover la generación de productos turísticos, que permitan transformar a Montevideo en un destino turístico basado en una oferta cultural diversificada.

Quizás el producto más importante salido de la MOCE en 2011 fue la Guía de Museos de Montevideo, un catálogo de fichas de 30 museos, con los datos más requeridos por el turista (historia de la institución, horarios, temática) con una ficha por museo y un plano de ubicación por zonas, como para el armado de circuitos por parte del turista.

Otras instancias de articulación entre Turismo y Cultura, a nivel institucional: •

Tecnicatura Universitaria en Museología- Planteada por ICOM – Uruguay en el 2000, después de estar más de un lustro guardado el proyecto en un cajón, la iniciativa fue reflotada en 2006, y por fin instrumentada por la Universidad de la República (Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación) en setiembre de 2011, financiada por los ministerios de 35

TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

Turismo y Deporte (Minturd), de Educación y Cultura (MEC); y la Intendencia de Montevideo. En su primera generación superó los 700 estudiantes anotados, mostrándose la necesidad que existía por contar con ese tipo de carrera terciaria. •

Guía y seminario de Fiestas Tradicionales – Por un Convenio entre MEC, Minturd, y la Oficina de Planeamiento y Presupuesto (OPP) (7), se llevaron a cabo acciones tales como la realización del primer Seminario de Fiestas Tradicionales en mayo de 2011, con la presencia de más de 100 organizadores de ese tipo de eventos en todo el país, y la publicación de un Guía de Fiestas Uruguayas, de próxima aparición.



Museos en la Noche – Organizado por el MEC y auspiciado por el Minturd, este evento se realiza desde 2005 el segundo viernes de diciembre, y en el mismo casi un centenar de museos en todo el país abren sus puertas en horas de la noche, brindando espectáculos artísticos y propuestas académicas.

En la muy necesaria búsqueda de sinergias, sin bien aún persisten focos de resistencia de ambos lados que obstaculizan estas alianzas, también es cierto que de ambos sectores hay señales inequívocas del nacimiento de una conciencia de que la sobrevivencia de propuestas rentables a nivel cultural, ante el claro repliegue de los presupuestos públicos.

En conclusión: ¿ Por qué el Turismo debe apostar a la Cultura ? Para vencer la estacionalidad. Para generar un producto identitario. Para diversificar la oferta. ¿ Por qué la Cultura debe apostar al Turismo ? Para lograr la autosustentabilidad. Para integrar la agenda turística. Para obtener mayor difusión nacional e internacional.

“El Turismo puede captar los aspectos económicos del Patrimonio y aprovecharlos para su conservación generando fondos, educando a la comunidad e influyendo en su política. Es un factor esencial para muchas economías nacionales y regionales y puede ser un importante factor de desarrollo cuando se gestiona adecuadamente” (8).

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Alejandro Giménez Rodríguez

Un ejemplo de Turismo Cultural: visita histórico-turística “De Cubo a Cubo” Antecedentes Se trata de una visita guiada histórica – patrimonial - turística por restos de fortificaciones de Montevideo Colonial, que se inició en 2004 con 20-30 personas, y se transformó en un éxito de más de 200, entre sábado y domingo en el Día del Patrimonio 2011 y 2012. En 2010 la propuesta incorporó actores y candombe a la propuesta y hasta se hizo el recorrido en las ediciones 2010, 2011 y 2012 de Museos en la Noche. Al mismo tiempo el espacio cultural “Al pie de la Muralla, organizador de este recorrido, logró la apertura de nuevos sitios con restos de muralla, como el Predio del Banco de Seguros, hoy convertido en centro cultural “Muralla Abierta” (Museo de las Migraciones), y el del Consejo Educación Secundaria). Entre los objetivos de esta actividad, está el de transformar esta visita guiada en un producto turístico, sin perder el rigor histórico pero buscando la autosustentabilidad y la generación de ingresos, explotando la fascinación que produce el tema. Busca redescubrir la ciudad, resignificar la mirada (hacer visible lo cotidiano) y agudizar los sentidos. Si queremos ir hacia la creación de propuestas culturales que constituyan productos turísticos, es importante precisar algunos términos. En primer lugar, ¿que entendemos por producto y por producto turístico? “Producto es cualquier cosa que se puede ofrecer a un mercado para la atención, adquisición, el uso o el consumo para satisfacer a un deseo o una necesidad (…); cada componente o combinación de componentes del destino (turístico) (en cuanto a Producto Turístico Global) pueden concebirse como un Producto Turístico Específico en sí mismo. Este Producto Turístico incluye objetos físicos, servicios, sitios, organización e ideas” (9). Otro concepto de producto turístico se lo debemos al investigador argentino Gustavo Capecce, que dice que producto turístico “es una combinación de prestaciones e infraestructuras que los turistas consumen en pos del logro de algún beneficio, …”. Pero …“Para que existan productos, como primera medida necesitamos recursos. Pero para que los mismos se transformen en ofertas, junto con ellas resulta imprescindible que se visualicen sus atributos, existan la voluntad y capacidad de aprovecharlos, y además se detecte la voluntad y capacidad de consumirlos” (10).

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TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

Este producto turístico se compone de 12 estaciones: 1) Las Bóvedas. 2) Cubo del Norte (reconstrucción simbólica 3) Muralla entre el Baluarte de San Pascual y el Cubo del Norte y Contraescarpa del Baluarte de San Pascual (Predio “Muralla Abierta”). 4) Espacio Cultural “Al pie de la Muralla” 5) Portón de San Pedro (cruce de calles 25 de Mayo y Bartolomé Mitre) 6) Baluarte de San Luis (Local de ex empresa Lancer y Consejo de Educación Secundaria). 7) Puerta de la Ciudadela. 8) Baluarte de San Sebastián (Bartolomé Mitre y Buenos Aires) 9) Contraescarpa del Parque de Artillería (Reconquista y Juan Carlos Gómez). 10) Parque de Artillería (Plaza España). 11) Portón de San Juan (Plaza España). 38

Alejandro Giménez Rodríguez

12) Cubo del Sur (Rambla Sur).

Analizamos las potencialidades y problemas del producto histórico - turístico : Fortalezas: 1. Se trata de un recorrido guiado que se realiza desde hace ocho años, que ha sido planificado cuidadosamente y estudiado académicamente. 2. El interés que ha despertado en un grupo de gente que multiplica día a día la acción de “Al pie de la Muralla” en pos de la defensa y difusión de los restos de fortificaciones. 3. La fascinación que motiva un tema que si bien tiene mucho que ver con nuestro pasado colonial, no fue estudiado en profundidad y no ha sido objeto de explotación turística.

Debilidades: 1. La extensión del recorrido (ha durado hasta dos horas y media) lo que atenta contra la creación de un producto para turistas de poco tiempo en el destino. 2. La dificultad del cobro, sobre todo porque se ha mostrado como un recorrido en el que el público a menudo es cambiante. 3. Es una visita guiada al aire libre, por lo que está sujeta a las condiciones climáticas.

Oportunidades: 1. El momento que vive Montevideo como destino de primer nivel en la región y uno de los principales puertos cruceristas (119 desembarcos en temporada 2011-2012; 154.976 turistas desembarcados, con un gasto total de U$S 9.834.529) (11). 2. El auge en el mundo de los llamados “walkings tours” , del turismo de ciudad y de las rutas y circuitos patrimoniales. 3. Un Ministerio de Turismo que apoya la creación de nuevas ofertas turísticas, buscando vencer la estacionalidad (2.960.000 turistas en Uruguay en 2011: 58% argentinos, 15% brasileños y 1,5 % paraguayos) (12). 4. La aparición de otras iniciativas de rescate y resignificación de restos de fortificaciones, lo que facilitaría la creación del circuito temático.

Amenazas: 1. La inseguridad de algunas zonas de la Ciudad Vieja de Montevideo, que puede desestimu39

TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

lar la presencia de eventuales consumidores del producto. 2. La falta de limpieza de algunas de las calles que se atraviesa el recorrido. 3. La escasa experiencia de los gestores culturales uruguayos en lo que se refiere a la explotación de productos turísticos.

Entre las acciones para consolidar el producto se destacan: •

La asistencia a seminarios académicos y ferias de turismo en Uruguay y el exterior.



Buscar la presencia del mismo en prensa escrita, radial, televisiva y electrónica, así como en las redes sociales.



Procurar la coordinación con actores públicos, buscando el posicionamiento y la comercialización del producto, mediante visitas de sensibilización.



Coordinación con un producto gastronómico mediante descuentos en el almuerzo en un restaurant ubicado en el recorrido para quienes hayan realizado ese día la visita.



Facilitar la accesibilidad a través de vehículos eléctricos (segways) y lenguaje de señas para sordomudos.



Articulación con Policía Turística, siempre presente en las visitas, y con el Municipio “B” (en el cual se realiza el recorrido), para mantener la limpieza en las calles y espacios públicos a ser transitados.



El circuito “Montevideo fortificada” está por primera vez en el folleto publicado por el Ministerio de Turismo y Deporte que se entrega a los turistas que llegan a Montevideo en cruceros

Algunas reflexiones finales: •

Tenemos el convencimiento de que este es el momento para generar un producto turístico con este recurso que es la muralla de Montevideo, en el momento en que se consolida la acción del Conglomerado de Turismo de la capital del país.



Las dudas pasan acerca de cómo consolidar ese producto, cual es la mejor forma de comercializarlo y de qué manera captar al cliente.



Parece claro que se debe afirmar un recorrido de menor duración, con participación artística, propuesta gastronómica, menos detalles técnicos constructivos, y un relato que profundice en las características de la Montevideo amurallada, su vida y costumbres.



Debe irse hacia la creación de dos opciones de ruta: Una guiada y otra para que el turista 40

Alejandro Giménez Rodríguez

realice libremente, apoyado por señalética y folletería realizada por el Minturd y la Intendencia de Montevideo.

Para terminar, una frase que intenta ser una conclusión: “Los nuevos productos turísticos relacionados con la oferta cultural deben generar una experiencia en el visitante; para ello la autenticidad, la estética y la sustentabilidad pasan a ser valores insoslayables del objeto y su entorno”. (13) Osvaldo Lombardi (Coordinador de Turismo Cultural del Museo Isaac Fernández Blanco de Buenos Aires)

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TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

Citas Bibliográficas

1. Plan Nacional de Turismo Sostenible, Minturd - BID, basado en: De la Torre Padilla, FCE, 1980). 2. Declaración Universal sobre la Diversidad Cultural, UNESCO, 2001. 3. Definición del BID (Banco Interamericano de Desarrollo). 4. Resolución del Comité Intergubernamental de la Organización de las Nacionales Unidas para la Educación, Ciencia y la Cultura (Unesco), en reunión en Abu Dhabi, 30 de setiembre de 2009. 5. Conclusiones de Jornada Taller “Museos uruguayos. Una mirada desde el Turismo”, 21 de mayo de 2009, Ministerio de Educación y Cultura y Ministerio de Turismo y Deporte. 6. Declaración final de 6º Encuentro Nacional de Profesionales de Museos, “Museos y Turismo, una necesaria alianza estratégica”, 8 de junio de 2011, Museo de la Casa de Gobierno (Presidencia de la República) y Ministerio de Turismo y Deporte. 7. www.descubrimontevideo.uy 8. Carta Internacional sobre Turismo Cultural, ICOMOS, 1999. 9. “Manual de Productos Turísticos”. Programa de Mejora de la Competitividad de los Destinos Turísticos Estratégicos, Minturd BID, Montevideo, 2011. 10. “Turismo, la esencia del negocio”, Cencage Learning, Buenos Aires, 2008). 11. www.turismo.gub.uy/ estadisticas 12. www.turismo.gub.uy/ estadísticas

13. Documento “Mi visión”, Declaración final de 6º Encuentro Nacional de Profesionales de Museos, “Museos y Turismo, una necesaria alianza estratégica”, 8 de junio de 2011, Museo de la Casa de Gobierno (Presidencia de la República) y Ministerio de Turismo y Deporte.

* Prof. Alejandro Giménez Rodríguez (Ministerio Turismo y Deporte – Uruguay)

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2. EDUCAÇÃO AMBIENTAL

JORNADAS MERCOSUL

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE1 Paula Corrêa Henning*

Introdução O aquecimento global, o derretimento das geleiras, as toneladas de lixo produzidas por nós viraram moedas fortes e recorrentemente tratadas no interior da mídia. Ao percebermos na atualidade a crise ambiental que Guattari (1990) nos anunciava, podemos entender um dos porquês do discurso ambiental estar cada vez mais presente em nossas vidas. Não há dúvida que do início da década de 90 para cá começamos a sentir uma forte preocupação com o futuro do nosso planeta tanto por empresas governamentais e não-governamentais, como por parte da sociedade de uma forma geral. Com isso, a educação ambiental tomou força e vem se constituindo num campo de visibilidades diante da preocupante devastação do meio ambiente. Um dos espaços em que estes discursos circulam recorrentemente é a mídia, produzindo verdades e saberes acerca da crise vivida no século XXI. Podemos dizer que este espaço configura-se como uma importante Pedagogia Cultural (STEINBERG, 1997; STEINBERG e KINCHELOE, 2001) que vem ensinando nossos alunos a pensar sobre o meio ambiente, a natureza, o homem e a cultura em que estamos inseridos. Discursos midiáticos têm indicado maneiras de se comportar no meio ambiente, de experienciar a natureza, de consumir produtos, de desejar modos de vida e, com isso, vão gerenciando o cotidiano dos sujeitos nos tempos atuais. Frente a isso, é correto dizer que a mídia é um importante espaço de circulação e criação de novas aprendizagens. Nela não vimos apenas se exibir determinados gestos, informar notícias, mas se produzir formas de vida, constituindo o que é certo, legítimo e verdadeiro na experimentação do mundo, da natureza, do meio ambiente, da vida. Assim, é possível afirmar que ela – a mídia – é um outro lugar, além da escola, em que se ensinam e se fabricam aprendizagens. Com este aporte teórico, gostaríamos de pensar acerca da produtividade de alguns discursos midiáticos, capturando-nos para agirmos frente aos problemas sócio-ambientais. Nossa intenção é provocar o pensamento para uma ecosofia mental, procurando “antídotos para a uniformalização midiática e telemática” (GUATTARI, 1990, p.16). O presente estudo tem como objetivo analisar como a mídia ensina sobre Educação Ambiental, especialmente a partir de propagandas, filmes de animação, histórias em quadrinhos e revistas de ampla circulação nacional.

Meio Ambiente e Natureza nos estratos midiáticos A pesquisa ora apresentada se dá na interlocução potente entre o campo de saber da Educação Ambiental e os estudos da mídia como artefato cultural que vem ensinando e produzindo formas de existir e conviver no mundo contemporâneo. Para isso, colocamos sob exame alguns discursos que se 1

Pesquisa financiada pelo Programa Observatório da Educação/CAPES e Ciências Humanas/CNPq Brasil

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE

proliferam na Educação Ambiental. Direcionamos nosso olhar sobre algumas propagandas, de maneira especial, veiculadas no rádio, na televisão e na internet; sobre histórias em quadrinhos; sobre filmes de animação e sobre reportagens da Revista Veja que tratam especialmente do campo da Educação Ambiental. Pretendemos provocar o pensamento sobre tais discursos, entendendo-os atrelados as relações de saber-poder, no intuito de “preservar o meio ambiente”. De acordo com Fischer (1997), pode-se falar em um Dispositivo Pedagógico da Mídia, que se caracteriza como uma lógica produtora de sujeitos e sentidos, selecionando os discursos que terão visibilidade. Essa visibilidade, a princípio, reflete o mundo em que vivemos, e constitui o real. A verdade, assim, aparece como relação de poder e evidencia quem tem a primazia de elegê-la. E também de enunciá-la. Gomes ressalta que “enquanto mostram, as mídias disciplinam pela maneira de mostrar, enquanto mostram elas controlam pelo próprio mostrar” (2003, p. 77). Dessa maneira, os modos de vida que são sugeridos pelo discurso midiático atravessam os receptores, e ajudam a construir – e manter – o que Foucault chama de “corpos dóceis” (2002). Nesse sentido, as notícias não deixam de integrar um sistema, um funcionamento, um tipo de estratégia – a disciplinar. Por outro lado, ao escolher dar visibilidade a determinados fatos e não a outros, elas controlam. A mídia, então, pode ser vista como um processo de adestramento do sujeito, de acordo com os ideais da massa, de maneira permanente e contínua. É este, como diz Hara (2007), o primado da comunicação: minuto a minuto ela molda nossa subjetividade com os ideais da massa ao nos convidar a participar, ao nos persuadir a jogar. Vemos isso nos excertos das propagandas abaixo: O Nosso Planeta está ficando: cada vez mais poluído; cada vez mais quente. Mas com atitudes muito simples você pode ajudar a preservar o Meio Ambiente. Por exemplo: economizando energia; evitando o desperdício de água; separando o lixo e o óleo de cozinha usado para reciclagem; reduzindo o uso de veículos – dê carona para seus amigos! Não atirando fogo em matas e nos quintais ou fazendo suas compras no Modelo. Sim! Por que o Modelo apresenta a primeira sacola biodegradável de Mato-Grosso. Ela se decompõe com facilidade na natureza. Uma questão de atitude! Juntos podemos fazer mais pelo nosso planeta. (Propaganda Super-mercados Modelo, 2009) [grifos nossos] Consumo Consciente. Escolha hoje o mundo de amanhã. Cada brasileiro joga fora cerca de 880 sacolas plásticas por ano. Vamos juntos preservar o meio ambiente para cada um viver melhor. Use sacolas retornáveis. (Propaganda em banners da rede de supermercados Nacional, 2010) [grifo nosso]

Frente a isto, entendendo o quanto a mídia constitui modos de vida, olhamos para alguns discursos que ela produz e colocamo-nos a pensar sobre a fabricação de verdades no campo da Educação Ambiental. É por entender a mídia como ferramenta potente na constituição das subjetividades que olhamos para ela e a colocamos em exame. Para realização desse estudo pautamos nossa pesquisa no importante estudo realizado por Michel Foucault (2002a; 2004) ao longo de sua obra: a análise do discurso. Operando com alguns dos enunciados que circulam na atualidade sobre a Educação Ambiental, buscamos problematizar os ditos, examinando suas recorrências e descontinuidades. Nessa pesquisa não procuramos categorias previamente definidas. A partir do campo teórico colocamos luz e contorno à pesquisa agrupando as recorrências e as séries discursivas e também os acasos que rompem com as séries discursivas. Nesse sentido, não nos movimentamos numa vertente teórica que assume uma concepção inata 46

Paula Corrêa Henning

para Educação Ambiental, mas entendemos que essas concepções são fabricadas e produzidas pela contingência da história. Essa história vem sendo produzida pelos saberes, pelos sujeitos e, consequentemente, pelos enunciados do discurso da Educação Ambiental. Assim, percebemos que é de fundamental importância entender que contingência é essa e quais enunciados vêm sendo narrados nesse campo de saber, tendo como recorte as enunciações que circulam nas mídias. Como recorte empírico foram selecionados alguns estratos midiáticos que circulam/circularam especialmente a partir da última década (2000- 2012), já que há uma proliferação potente da crise ambiental que vivemos. Com isso selecionamos trinta propagandas veiculadas no rádio, na televisão e na internet; trinta histórias em quadrinhos da Editora Abril; Editora Globo; quatro filmes de animação da Walt Disney (Madagascar, 2005; Madagascar 2, 2008; Os Sem Floresta, 2006 e Wall.e, 2008) e vinte reportagens de capa da Revista Veja. A escolha desse material empírico não é sem razão. É por entendermos que tais artefatos pedagógicos e midiáticos são de ampla penetração na vida dos sujeitos contemporâneos, crianças, jovens e adultos que os escolhemos para colocá-los em exame. Pensando na crise ambiental vivida por cada um de nós, parece-nos necessário colocar luz nesses ditos e examinar os efeitos éticos e políticos que vem sendo desdobrados de discursos tão caros no cenário ambiental do século XXI. Com os materiais empíricos da investigação já é possível identificar três enunciados recorrentemente tratados no interior do discurso midiático de Educação Ambiental: 1- o terror e o medo pela perda do planeta; 2- uma necessária conscientização ambiental e 3- a beleza de uma natureza intocada. Neste momento, a pesquisa vem adensando as análises a partir desses três enunciados recorrentes nos materiais analíticos. Para este texto, apresentamos algumas análises sucintas do primeiro enunciado encontrado. Queremos deixar claro que analisar alguns discursos produzidos pelas mídias sobre Educação Ambiental não se vincula a criticar ou defender posição a respeito de tais anúncios midiáticos. Vincula-se, isso sim, a provocar o pensamento e pensar a Educação Ambiental para além da impregnação naturalista e romântica do “contato com a natureza” ou para além da “imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados” (GUATTARI, 1990, p.36). Aceitando o convite de Carvalho, perguntamo-nos: “quais expectativas e valores sócio-históricos estão contidos nessa construção sobre a natureza? Afinal, essa não e a única maneira de pensá-la, embora tenhamos de reconhecer que tal representação está fortemente inscrita em nosso ideário ambiental” (2008, p.35). Para nós, tal campo vincula-se também a estratégias de disciplina, segurança e controle da sociedade, eventualmente úteis e justificadas, já que os discursos de Educação Ambiental estão preocupados com o futuro de nosso planeta. Dessa forma os discursos “educam” para o controle minucioso da ação individual pela “autoconsciência” e, assim, tendem a regular o cotidiano, sob a ambivalente política da prevenção e do medo. O endereçamento de tais ditos não se veicula apenas para um sujeito, mas para o coletivo que deve, junto, se mobilizar para que ações individuais repercutam na transformação do meio ambiente. O campo de efetivação desse dispositivo intervém sobre a coletividade valendo-se do espírito da época, o compromisso com a suposta “liberdade” de vontade e de estilo de “cada um”. Assim, precisa-se estar constantemente prevendo, calculando, antecipando, medindo, colocando em operação os 47

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE

dispositivos que visam assegurar estrategicamente o bem-estar dessa massa de indivíduos, e para isso se conta com o engajamento de cada um. Mas não mais apenas o engajamento racional ou militante, e sim o engajamento individual sustentados pela aura de periculosidade e risco que as mídias ajudam a propagar. A natureza está agora cobrando a conta pelos excessos cometidos na atividade industrial, na ocupação humana dos últimos redutos selvagem e na interferência do homem na reprodução e no crescimento dos animais que domesticou. (2001, p. 93) [grifos nossos] Para onde vamos com nossas agressões ao Planeta? O pessimismo da resposta varia, mas há um consenso: a hora de agir é já. (2005, p. 84) [grifos nossos] Novas pesquisas científicas dissiparam a mínima dúvida de que o aumento repentino da temperatura planetária se deve à ação humana, com escassa contribuição de qualquer outra influência da natureza. Até os ecocéticos aceitam agora a idéia assustadora de que o tempo disponível para evitar a catástrofe global está perigosamente curto. (2006, p.139) [grifos nossos] A realidade do aquecimento global criou uma preocupação com o ambiente como nunca se viu: todo mundo quer fazer a sua parte para salvar o planeta (Veja, outubro de 2007, p. 87) [grifos nossos].

Na atualidade podemos dizer que os medos e pavores da vida urbana vêm tomando força e se constituindo cada vez mais rápido. Um desses medos parece ser aquele que envolve as questões planetárias da continuidade da vida humana na Terra. Diante de tanta devastação ambiental, aquecimento global, toneladas de lixo produzidos por nós a cada dia, e tantos outros exemplos que poderíamos citar, percebemos que a preocupação com o meio ambiente tornou-se questão central neste tempo que vivemos. Nesse sentido, não é a toa que vemos eclodir essa preocupação nas escolas, em Organizações Não-Governamentais, nas Redes de Supermercados, nos Bancos e, com toda potência, na mídia de forma geral. Os excertos acima evidenciam o quanto a mídia fabrica verdades e sentidos acerca da crise ambiental que vivemos. Para isso é necessário a chamada persuasiva a cada um e a todos, na busca pela salvação do planeta. Tais estratos dão condições de possibilidade para que o enunciado do terror e medo pela perda do planeta seja colocado em evidência na atualidade. Isso também é recorrentemente tratado no filme de animação Wall.e (2008), anunciando aos seus espectadores o que poderá ocorrer em nosso Planeta, caso não tenhamos cautela com os recursos naturais e com a forma de vida que vimos experimentando junto à natureza. Na trama, o mundo foi soterrado pelo lixo produzido e gerado pelo consumo exacerbado da humanidade. Sem alternativas, a empresa BNL, a única empresa do mundo, cria uma estação no espaço denominada de Axiom, na qual os humanos poderiam viver por um período de cinco anos, enquanto a limpeza da Terra fosse realizada e o mundo se tornasse novamente habitável. Máquinas identificadas como Wall.e (Levantadores de Carga para Alocação de Lixo - Classe “Terra”) não suportaram as condições precárias em que se encontrava o Planeta Terra e acabaram deixando de funcionar. Apenas, um único exemplar de Wall.e, permaneceu e continuou funcionando. Durante 700 anos ele trabalha sozinho, cumprindo a tarefa que foi programado para fazer. Num dia como tantos outros, chega dos céus uma nave e Wall.e recebe a visita de EVA (Examinadora de Vegetação Alienígena), uma nova

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Paula Corrêa Henning

espécie de robô, enviada ao Planeta para cumprir uma rápida missão de procurar exemplares de vegetais vivos, o que significaria que a vida se tornou sustentável novamente. A felicidade da personagem, porém, dura pouco e, quando EVA é chamada de volta à estação espacial Axiom, Wall.e agarra a nave que a transporta para segui-la. A planta, quando colocada no holo-detector, faz a nave localizar e ir a Terra. Mas os bots Auto, Geomis e robôs comissários da Axion, negam o procedimento de retorno a Terra por causa de uma diretriz recebida há quase 700 anos antes, enviada pelo presidente da BNL. Então, durante as aventuras ao longo do filme, inicia-se uma aventura de retorno a Terra. O que o filme evidencia é que em alguns anos podemos estar experimentando a vida de outras formas e em outros locais devido as nossas ações atuais com a natureza e o Planeta Terra. Nesse sentido, a potência dos enunciados que se apresentam nos filmes não está na veracidade ou não desses fatos, mas nos efeitos que o discurso da devastação ambiental produz, fazendo com nossas atitudes sejam revistas e redefinadas a favor do Planeta. “[...] o principal não é o medo do perigo, mas aquilo no qual esse medo pode se desdobrar, o que ele se torna” (BAUMAN, 2007, p.15). Os discursos midiáticos vão fabricando modos ecológicos de vida, nos persuadindo a jogar o jogo da preservação do planeta e da espécie humana. O que queremos colocar em evidência são os discursos de periculosidade e medo que muitas vezes a mídia ajuda a propagar, fazendo-nos crer que, caso não mudemos nossas atitudes com o meio ambiente, dificilmente teremos este mundo para viver ou pelo menos para viver dignamente... Não queremos com isso dizer que não devemos agir pensando no futuro. Talvez pensar nas ações por vir se torne fundamental para nossa vida na Terra. No entanto, a proposta de nossa pesquisa não se vincula a desqualificar aquelas ações que chamamos de “ecologicamente corretas”. De modo algum. O que gostaríamos é que nosso estudo suscitasse questões pouco problematizadas por nós: qual força e produtividade têm os discursos midiáticos que nos conduzem a ações diante do cenário contemporâneo? Valeria pensarmos em o quanto nossas ações docentes como professores podem contribuir para provocar o pensamento de nossos alunos, problematizando verdades instauradas no interior da mídia sobre a Educação Ambiental e a Crise Ambiental que vimos experienciando no Planeta Terra. Talvez Foucault (2002; 2008) nos ajude a entender os mecanismos de poder, tão evidente em algumas mídias, como uma ferramenta que fabrica verdades, produz sentidos e constitui modos de existir e conviver.

Alguns delineamentos finais Na tentativa de buscar uma maneira diferente de pensar os problemas ambientais e seus desdobramentos, Guattari (1990) nos sugere lançar nossos olhares para além dos desastres naturais, e então pensarmos em uma articulação ético-política, possível com uma comunicação e cooperação entre os três registros ecológicos: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade. O questionamento de ditas verdades “ecologicamente corretas” seria o primeiro passo para uma autonomia individual, mas ao mesmo tempo, necessariamente coletiva, ecológica, a fim de tornarmos agentes ativos na preservação do nosso planeta, pois cada vez mais, os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas (GUATTARI, 1990). Ao pensamos a partir de uma articulação ético-política estaríamos praticando uma forma de resistência, pois, enquanto houver relações de po49

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DISCURSOS MIDIÁTICOS: MODOS DE SER SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE

der há possibilidade de resistência. A resistência é combate entre o poder e a vontade de liberdade, segundo Foucault (1995). Resistência a quê? Resistência à massificação dos sujeitos; à imposição de modos de vida e de valores; à fabricação de subjetividades e às metanarrativas que impõem verdades. Diante disso, gostaríamos que nosso texto pudesse provocar outras discussões no campo da Educação Ambiental, entendendo-a como um importante instrumento de ação política na sociedade atual. Talvez ele pudesse agir como uma singela ferramenta para constituição de uma máquina de guerra (DELEUZE e GUATTARI, 2007), tornado-se uma possibilidade de resistência e criação ao olhar a Educação Ambiental para além do discurso do risco e da periculosidade por um lado e, do anacrônico e romântico naturalismo, de outro. Talvez pudéssemos, aceitando o convite de Guattari (1990), pensarmos na criação de uma ecosofia, produzindo espaços éticos e políticos para o campo da Educação Ambiental.

REFERÊNCIAS CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. 4ªed. São Paulo: Editora Cortez, 2008. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Paltôs Capitalismo e Esquizofrenia – vol V. 3ª reimpressão. São Paulo, 2007. FISCHER, Rosa Maria Bueno. O estatuto pedagógico da mídia: questões de análise. In.: Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 22, n. 2, dez. 1997. p. 59-80. FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Apêndice da 2ª edição. Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In.: DREYFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995. _________. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 25ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002. _________. A arqueologia do saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002a. _________. A ordem do discurso. 10ª ed. São Paulo, Edições Loyola, 2004. _________. Segurança, Território e População: curso no Collège de France (1977- HARA, Tony. Sociedade da Comunicação: controle e captura da singularidade. In.: Revista Aulas – Dossiê Foucault. São Paulo: Unicamp - Nº 3 dez 2006/ mar 2007. 1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. GOMES, Mayra Rodrigues. Poder no jornalismo. São Paulo: Edusp, 2003. GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990. STEINBERG, Shirley. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, 50

Paula Corrêa Henning

Luiz H., AZEVEDO, José C., SANTOS, Edmilson S. (Orgs.) Identidade Social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: SMED/RS, 1997. STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. (Orgs.) Cultura Infantil? A construção corporativa da infância. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

* Doutora em Educação. Professora do Instituto de Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental e do Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Subjetividade e Políticas de Formação.

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URGÊNCIA ECOLÓGICA E AS CONTRIBUIÇÕES DE FREIRE

Balduino A. Andreola*

A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico e libertador. (Paulo Freire)

Quando há cinco ou seis décadas surgiram, entre nós, os primeiros movimentos na defesa do verde, da natureza, a maioria talvez de nossa geração os via com um misto de estranheza e quase de compaixão, como se fossem idealistas românticos. Não nos dávamos conta, sequer, que muito antes deles, houvera, mais do que previsões, constatações muito sérias sobre a gravidade do problema ecológico. “Já o velho cacique Seattle, em sua carta ao presidente dos Estados Unidos, na qual se dirigia a ele, em 1854, como o “Grande Chefe Branco de Washington”, advertindo-o severamente nestes termos: “Contamina os vossos leitos, e uma noite morrereis, sufocados nos vossos próprios detritos”. Lembro aqui que eu citava em 1982 (ANDREOLA, 2010: p. 14), o grande cientista alemão Wernher Von Braun, falecido em 16 de junho de 1977 que deixou escrito, em seu testamento espiritual: As incríveis ambições humanas converterão, algum dia, o planeta Terra em um lugar desolado e inabitável. Por isso é preciso chegar-se a outros planetas virgens, nos quais a mão do homem não tenha deixado pousar todo o peso de sua destruição.

Dois eminentes pensadores do nosso tempo lançaram, em meados do século passado, advertências semelhantes, com relação às ameaças nucleares. Emmanuel Mounier (1962: p.356-357), após a tragédia de Hiroshima e as experiências nucleares de França nas ilhas Bikini, escreveu que a humanidade fora surpreendida por um poder único, ou seja, o poder de explodir o planeta. Segundo ele: Agora a humanidade como tal deverá escolher, e precisará, com certeza, de um esforço heróico para não escolher a facilidade, o suicídio. Pode-se dizer que sua maturidade começa neste momento.

Mounier morreu aos 45 anos, em 1950. Seu grande amigo e parceiro de lutas, Paul Ricouer, cujo centenário de nascimento ocorre neste ano de 2013, escreveu em 1955: Pode-se mesmo dizer que o perigo nuclear nos faz ainda um pouco mais conscientes dessa unidade da espécie humana, de vez que, pela primeira vez, podemos sentir-nos ameaçados em nosso corpo globalmente.

Este tom de “urgência” planetária, que marca as advertências das personalidades citadas, nós os encontramos nos escritos de muitos pensadores mais recentes. Limito-me a citar um, Leonardo Boff. Ele inicia seu livro “Saber Cuidar” (1997: p. 17) declarando que o mesmo “vem escrito a partir de uma perspectiva de urgência”. O mesmo teólogo prefaciou o livro “Teologia para outro mundo possível” (SUSIN- org., 2006), sob o título que por si só já nos interpele: “Duas utopias urgentes para o século XX”, e declarou: “Vivemos no olho de uma crise civilizacional, de proporções planetárias. Toda crise oferece a chance de transformação, bem como o risco de um fracasso desolador (BOFF, 2006: p.239).

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O livro prefaciado por Leonardo Boff reuniu as palestras do “Fórum Social Mundial para uma teologia da libertação global”, realizado no bojo do 3º Fórum Social Mundial, em 2003. Na palavra “urgência”, ou o tom de urgência extrema dos problemas apontados, o tema perpassa vários pronunciamentos daquele Fórum. A participação dos teólogos de libertação no Fórum Social Mundial me oportuniza o registro de que lá estiverem também representantes da pedagogia e da filosofia de libertação, bem como o Augusto Boal, com vários grupos de teatro do oprimido, e numerosos participantes dos movimentos de cultura popular. Isto para desmentir os que desatualizaram estes movimentos de libertação e os respectivos intelectuais orgânicos, como se tivessem ancorado ou se enclausurado nos debates e nas lutas da década de 60, enquanto estão na linha de frente, comprometidos com as novas formas de luta e as urgências dos termos mais urgentes que a realidade nos propõe. Frente às severas advertências e aos apelos quase que proféticos das personalidades citadas anteriormente, cabe perguntar-nos qual a contribuição de Freire para o problema ecológico, um dos mais graves embates da realidade. A pergunta me foi lançada, aliás, há uns quinze anos, pelo Prof. Sírio Velasco, da FURG. Naquela hora eu respondi que a pergunta dele estava me pegando totalmente de surpresa. Eu nunca havia lido Freire na ótica da ecologia. Daí por diante, em todas as minhas releituras de sua obra, ao preparar uma aula, uma palestra, ao escrever um artigo, eu ficava atento também a esta dimensão ecológica, e fiz muitas descobertas precisas, que lancei numa carta ao colega da FURG, que ele, por sua vez, lançou na internet. Retomando alguns daqueles achados e outros, que fui reunindo sucessivamente, procurarei trazer de novo Freire para este “simpósio” planetário, em defesa de nossa “Mãe Terra”. E faço-o até com exigência de resposta ao último grito veemente dele em defesa da vida, na sua “Terceira Carta Pedagógica”, que nos deixou inconclusa, sobre sua mesa de trabalho, incluída no seu primeiro livro póstumo, intitulado muito significativamente “Pedagogia da Indignação” (FREIRE, 2000: p.65-67). Seu grito de indignação e de protesto, provocado pelo assassinato do índio pataxó Galdino dos Santos, inicia com estas palavras: Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó, que dormia tranqüilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando [...] Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se no ambiente em que decresceram em lugar de crescer (FREIRE, 2000: p. 65-66).

Perante a enormidade do que aconteceu, Paulo expressa o sentimento de espanto que irrompe do fundo de seu corpo consciente e proclama: O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância. Se nada disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo (p. 66-67).

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Esta defesa da ética enquanto compromisso com a vida, não apenas a humana, mas aqui toda a riqueza de suas expressões, no mundo da natureza, se transforma, na derradeira “Carta Pedagógica” de Freire, numa proclamação da urgência extrema do problema ecológica, proclamação cuja importância me levou a colocá-la como epígrafe deste estudo. Logo adiante, na mesma “Carta”, ele declara: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. É surpreendente como Paulo Freire proclama, com o mesmo vigor dramático, nesta sua mensagem derradeira, as exigências da Ética, da Ecologia e da Educação. Nunca estes três temas apareceram, talvez, tão indissociáveis como nesta carta de Freire. Depois de citar o primeiro livro póstumo, nesta rápida revoada “ecológica” sobre a vasta obra de Freire, permito-me voltar aos dois primeiros livros dele, “Educação como Prática da Liberdade” e “Pedagogia do oprimido”. Embora estas duas obras não contenham referências explícitas à temática da ecologia, eu vejo nelas duas contribuições extremamente importantes para esta temática. Primeiramente, parece-me que nos cabe reconhecer um profundo sentido ecológico da pedagogia freireana de libertação. O sentido maior, com efeito, de toda a prolongada luta de Freire constitui-se num empreendimento sem trégua de denúncia e de luta contra todas as formas de opressão. Feita esta consideração, podemos perguntar-nos se uma das modalidades mais cruéis da opressão não consistiria, talvez, em invadir a casa do outro, pessoa ou povo, expulsá-lo de sua casa, arrasando-a. A pergunta que nos propomos significa dizer que a “Pedagogia do Oprimido” tem, com certeza, um sentido ecológico radical, frente à ameaça cada vez mais concreta e iminente de destruição da casa comum da humanidade, o Planeta Terra. Em “Educação como Prática da Liberdade”, o problema ecológico aparece relacionado com o tema da terra, mais especificamente, sob o ângulo do problema agrário, salientando o compromisso histórico de Paulo Freire com a Reforma Agrária. Isto significa também denúncia do latifúndio como uma das estruturas mais perversas de nossa história e, como tal, grande responsável pelas relações de dominação e opressão da maioria dos grupos subalternos no Brasil e na América Latina. A preocupação de Freire com esta problemática no Brasil perpassa muitas páginas do livro “Educação como prática da liberdade”, como também no outro livro seu, “Extensão ou Comunicação?”, no contexto da Reforma Agrária realizada no Chile durante o governo de Eduardo Frei. A citação destas dimensões da obra de Freire, num trabalho sobre ecologia, se justifica porque a propriedade ilimitada e concentradora da terra nas mãos de uma minoria gananciosa, comandada unicamente pela ética do mercado e da especulação, nos parece um dos fatores principais e mais iníquos na devastação da terra e da destruição do meio ambiente. Mas há outra dimensão importante deste engajamento de Freire na defesa da Terra, em favor da vida. Trata-se da sua solidariedade histórica com as lutas dos trabalhadores rurais e, em particular, aqui no Brasil, com o MST. No livro póstumo “Pedagogia da Indignação”, ele fala apaixonadamente da luta destemida dos Sem-Terra em várias passagens da Primeira e da Segunda Cartas Pedagógicas. Na Segunda Carta (p. 60-62), escreve: “O Movimento dos Sem Terra, tão ético e pedagógico quanto cheio de boniteza, não começou agora, nem há dez ou quinze, ou vinte anos”. 55

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Depois de referir-se às lutas dos Quilombos e das Ligas Camponesas, fala da combatividade do MST, e lembrando a grande marcha que realizaram até Brasília, tendo partido dos recantos mais longínquos de todo o Brasil, assim conclui a Carta: A eles e elas, sem-terra, a seu inconformismo, à sua determinação de ajudar a democratização deste país devemos mais do que às vezes podemos pensar. E que bom seria para ampliação e a consolidação de nossa democracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas se seguissem à sua. A marcha dos desempregados, dos injustiçados, dos que protestam contra a impunidade, dos que clamam contra a violência, contra a mentira e o desrespeito à coisa pública. A marcha dos sem-teto, dos sem-escola, dos sem-hospital, dos renegados. A marcha esperançosa dos que sabem que mudar é possível.

Neste momento histórico, em que o gesto do novo Papa emocionou o mundo, ao escolher que queria ser chamado Francisco, em homenagem ao “poverello” Francisco de Assis, autor do “Cântico Irmão Sol”, profeta e poeta do amor universal, não só a todos os seres humanos, mas também a todas as criaturas da natureza, sinto que não exagero ao ver uma sintonia profunda de Freire com este espírito ecológico franciscano de “respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas.” Inspirado nesta confissão de amor cósmico de Freire, ensaiarei uma revoada rápida sobre alguns outros de seus livros, pinçando, cá e lá, fragmentos ao menos de sua paixão pelas irmãs árvores. Nesta viagem prazerosamente ecológica com Freire, através do livro “Cartas à Guiné-Bissau”, vamos com ele para a África. Depois de lembrar que seu primeiro encontro com a África não se deu com a Guiné-Bissau, mas sim com a Tanzânia, ele observa: Faço esta referência para sublinhar quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava (Freire, 1978:13).

Justificando a sua sensação de volta, Freire proclama emocionado: Daquele momento em diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de mim. A cor do céu, o verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o cheiro da terra; as bananas, entre elas a minha bem-amada banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama rasteira; o gingar do corpo das gentes andando nas ruas; os corpos bailando e ao fazê-lo, “desenhando o mundo”, a presença, entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo, tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era mais africano do que pensava (Ib.: 13-14).

Falando daquele encontro, Freire o qualifica: “um reencontro comigo mesmo”. E referindo-se à Guiné-Bissau escreve: “Poderia dizer: quando ‘voltei’ à Guiné-Bissau”. Podemos dizer, com razão, que se trata de um “reencontro” profundamente ecológico. Paulo se sente “em casa” (oikos). Encontro/reencontro com os povos africanos, com as árvores, as frutas, a natureza exuberante, a terra, a cultura, com a Mãe África, filha primogênita da Mãe Terra. Estas lembranças de Freire nos levam a salientar uma presença extraordinária, quase que ontológica, poética e até mística, das árvores na vida e nos escritos de Paulo Freire voltando com ele da África para o Brasil. Bastaria lembrar o título do livro “À sombra desta mangueira”, e contemplar a 56

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figura patriarcal de Freire se deliciando daquela sombra, para entender o quanto às árvores eram suas amigas. Citemos o primeiro parágrafo daquele livro (p. 15): As árvores sempre me atraíram. As frondes arredondadas, a variedade do seu verde, a sombra aconchegante, o cheiro das flores, os frutos, a ondulação dos galhos, mais intensa ou menos intensa em função de sua resistência ao vento. As boas-vindas que suas sombras sempre dão a quem a elas chega, inclusive a passarinhos multicores e cantadores. A bichos, pacatos ou não, que nelas repousam.

As duas páginas iniciais, intituladas “Primeiras palavras”, são um verdadeiro poema às árvores. Quanto ao título, Freire justifica: “(...) é uma licença que me permito e com a qual sublinho a importância que teve na minha infância a sombra das árvores (...)”. Da p. 23 a 26 fala do quintal da sua infância. Daquele quintal, ele fala em muitas oportunidades. Na entrevista do Pasquim, assim o lembra: (...) vivíamos numa casa grande, com um quintal enorme, que na época dava para duas ruas, uma era a do Encanamento e a outra era a rua de São João. No meio das duas, o quintal ligando-as, era o meu mundo. Cheio de árvores, de bananeiras, cajueiros, fruta-pão, mangueiras. Eu aprendi a ler à sombra das árvores, o meu quadro negro era o chão, meu lápis um graveto de pau.

Uma aluna minha da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo escreveu, num trabalho sobre Freire, que o que mais a impressionara, em seus livros, ao falar tanto e tão lindamente das árvores, parecia nos estar convidando sempre para conversar, à sombra das árvores, no quintal de sua casa. Ela acrescentou que todos nós temos, talvez, saudade de algum quintal. Quem sabe se a nostalgia profunda do paraíso perdido. Depois de acompanhar Freire para seu “re-encontro” com a África, e em sua volta à “sombra” nordestina de mangueira, não poderíamos recusar seu convite para um vôo do qual nos fala em seu livro “Pedagogia da Esperança”, para bem mais longe, na sua turnê através da Austrália, Nova Zelândia, e de Papua-Nova Guiné, Freire descreve um extraordinário ritual com que foi recepcionado por uma comunidade indígena, nas ilhas Fuji, no Pacífico Sul, ritual que envolvia um “longo período de silêncio” por parte do homenageado. Ao relatar sua fala de agradecimento por aquela acolhida extraordinariamente amorosa, Freire escreve (p.185): Disse da alegria e da honra de ter podido falar depois de um longo período de silêncio. Minha fala, acrescentei, estava acrescida de um significado que antes não tinha. Era, no momento, disse, uma fala que se legitimava noutra cultura em que a comunhão não era apenas a de homens e de mulheres e de deuses e ancestrais mas também a comunhão com as diferentes expressões de vida. O universo da comunhão abrangia as árvores, os bichos, os pássaros, a terra mesma, os rios, os mares. A vida em plenitude.

A comunhão cósmica de Paulo com as árvores, com a natureza, com a terra, nos convida a um vôo para a Amazônia do profeta e mártir da ecologia Chico Mendes e da batalhadora Marina Silva. O professor Alberto Damasceno, da Universidade Federal do Pará, escreveu um depoimento breve, mas extraordinariamente rico para o livro “Paulo Freire: uma biobibliografia” (1996: 231-232). O título: “Paulo Freire, a Amazônia e o boto”. Freire se encantou com a narração da lenda relativa à força sedutora do boto, admirando na mesma não apenas o encanto poético, mas “uma determinada forma de ação cultural”. Fiel a seu compromisso com o diálogo, segundo o professor Damasceno, Freire “fala com o povo da Amazônia e aprende com este o saber da floresta; [...]” e discorre a respeito 57

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[...] do gosto pela liberdade de ser, de estar sendo, da liberdade de andar, da liberdade de parar, da liberdade de voltar, da liberdade de perguntar, da liberdade de sonhar, da liberdade de dizer não, da liberdade de farrear, da liberdade de aplaudir, da liberdade de achar bonita a lua que aparece, da liberdade de me banhar, da liberdade de acreditar ou não acreditar na potência e na força do boto.

O professor Damasceno confessa encantado: A cada palavra sobre a terra, as águas, os bichos, as plantas; sobre nossos gostos, cheiros e cores e, ainda, da gente do Norte e seus hábitos indígenas, ouvia-se de sua boca uma frase carregada de paixão pedagógica. Creio tratar-se de sua insistente crença na sabedoria popular e na necessidade imperiosa do diálogo com os oprimidos, para, daí Foi uma experiência e tanto ciceroneá-lo nesta viagem ao coração da Amazônia, produzir-se o verdadeiro conhecimento.

Nesta viagem ecológica com Freire através de seus livros e suas viagens, não poderia deixar de voltar com ele para casa, já que eco-logia (oikos-logo) é a palavra, a fala da casa. E esta volta é com o convite à leitura gostosa de um livro intitulado, “Cartas a Cristina”, no qual Paulo dedica longas páginas à sua prazerosa convivência com os rios, os córregos, as árvores e com a boniteza das cores e dos cantares dos pássaros, no período de sua vida que ele transcorreu em Jaboatão. A par das alegrias que aquele ambiente multicolorido lhe proporcionava, Paulo fala também de sua experiência da pobreza e da fome, bem como dos castigos da poluição e da morte a que eram submetidas as águas e os peixes da região. “Cartas a Cristina” é um livro autobiográfico, de reminiscências e confidências, escrito como “cartas” à sobrinha Cristina. Trata-se de um livro que merece uma nova leitura demorada e amorosa, na ótica da ecologia, tema poética e politicamente enfatizado em muitas de suas páginas. As reminiscências ecológicas e poéticas de Freire não significam saudosismo, em dissonância com seus engajamentos político-pedagógicos. Para percebê-lo basta lermos o que ele escreve ainda no livro “À sombra desta mangueira” (p. 26-27): Minha terra é boniteza de águas que se precipitam, de rios e praias, de vales e florestas, de bichos e aves. Quando penso nela, vejo o quanto ainda temos de caminhar, lutando para ultrapassar estruturas perversas de espoliação. Por isso, quando longe dela estive, dela a minha saudade jamais me reduziu a um choro triste, a uma lamentação desesperada. Pensava nela e nela penso como um espaço histórico, contraditório, que me exige como a qualquer outro decisão, tomada de posições, ruptura, opção.

Nesta mesma ótica dialética do encanto e da denúncia, quanto às andanças de Freire pelos caminhos da Guiné-Bissau, não podemos omitir a lembrança de um momento triste sob o ponto de vista ecológico. Depois de contar uma visita ao interior do país, ele escreve: Na volta a Bissau, olhando pela janela do helicóptero dirigido por pilotos soviéticos, junto aos quais dois jovens nacionais continuavam sua aprendizagem, via, lá embaixo, as frondes das árvores queimadas pelo napalm. Olhava atentamente, curiosamente. Nenhum animal. Uma ou outra ave maior voava calmamente. Lembrava-me do que nos dissera o Presidente Luiz Cabral, em nosso primeiro encontro, quando nos falava de diferentes instantes e aspectos da luta, com a mesma sobriedade com que o jovem diretor do Internato conversara com Elza e comigo. “Houve um momento, disse o Presidente, em que os animais da Guiné ‘pediram asilo’ aos países vizinhos. Somente os saguins permaneceram, refugiando-se nas zonas libertadas. Tinham horror aos ‘tugas’. Depois, coitados, passaram a temer-nos. É que nos vimos forçados a começar a

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comê-los. Espero que, em breve, os nossos animais retornem – concluiu o Presidente – convencidos de que já não há guerra”. Da janela do helicóptero olhava atentamente, curiosamente. Não havia ainda, pelo menos naquelas bandas do país, indícios daquele retorno... (Ib.: 38).

Esta paisagem de tristeza e desolação ecológica, resultado cruel do colonialismo e da guerra, me lembra o que escreveu Ladislau Dowbor ao prefaciar o livro “A sombra dessa mangueira” (p.10): Uma África devastada chora as suas últimas árvores, e vê seus solos desprotegidos, carregados pelos ventos e pelas chuvas torrenciais, enquanto o Ocidente que a devastou lhe recomenda cuidados ambientais. Mas temos cada dia melhores computadores, vídeo-cassetes, e discos laser.

A constatação melancólica do Presidente Luiz Cabral, de Paulo e Elza e do genro deles Ladislau Dowbor, nos mostram com evidência gritante que o problema ecológico não é apenas um problema de espaço físico ou geográfico, mas sim como espaço político, social e cultural, do qual muitos são expulsos, me transfere agora para outro livro dele intitulado “Extensão ou Comunicação?” Na p.41, lemos: Entre as várias características da teoria antidialógica da ação, nos deteremos em uma: a invasão cultural. Toda invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. Seu espaço histórico-cultural, que lhe dá sua visão de mundo, é o espaço de onde ele parte para penetrar outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos deste seu sistema de valores. O invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação.

A alusão de Freire à invasão cultural, enquanto invasão do espaço histórico-cultural do outro, nos leva a outros textos dele que se referem espaços devastados, depredados ou negados, onde os problemas ecológicos estão intimamente ligados a problemas de ordem política e social, que reclamam, por sua vez, decisões e ações com sentido pedagógico-político Em seu último livro publicado em vida, em 1997, intitulado “Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa”. Paulo Freire pergunta: Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia (FREIRE, 1997: p. 33).

Em continuidade, como no livro “Pedagogia da Indignação”, Freire associa os problemas ecológicos às exigências éticas e aos problemas éticos e sociais ou, mais explicitamente, aos problemas de discriminação de classe: Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? (p. 33-34).

No mesmo livro, Paulo Freire se refere ao espaço como elemento fundamental de uma educação condizente com a dignidade humana de todos os alunos. Assim escreve ele: 59

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Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras escolares, às mesas, às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à coisa pública. É incrível que não imaginemos a significação do “discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço (p. 49-50).

No capítulo 2º de “Pedagogia da Autonomia”, sob o título “Ensinar exige alegria e esperança”, Freire relata uma caminhada que realizou em Olinda com o professor Danilson Pinto, através de uma favela onde o ambiente não fala muito de alegria, e onde a esperança parece quase impossível. Ouçamos seu relato: Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência, ou negação, com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda e Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada (p. 82).

No livro “Extensão ou Comunicação?” Freire se refere a outro problema de espaço devastado, denunciado também por Ladislau Dowbor com relação à África. Trata-se da erosão. Concomitantemente com a discussão problemática da erosão e do reflorestamento, por exemplo, se faz indispensável a inserção crítica do camponês em sua realidade como uma totalidade. A discussão da erosão requer (em uma concepção problematizante, dialógica da educação e não antidialógica) que a erosão apareça ao camponês, em sua “visão de fundo”, como um problema real, como um “percebido destacado em si” em relação solidária com outros problemas. A erosão não é apenas um fenômeno natural, uma vez que a resposta a ele, como um desafio, é de ordem cultural (...).

Esta exigência de situar o problema ecológico interligado com outros problemas, numa visão de totalidade, é muito bem salientada pela Profª Christina Schachtner (1999: p.123-137), em sua conferência no Congresso Internacional Paulo Freire, na UNISINOS, em 1998. Esta estudiosa de Marburg (Alemanha) relatou iniciativas de vários grupos ou movimentos, sobretudo ligados à Agenda 21 da ONU, comprometidos em promover “um desenvolvimento social, ecológico e econômico que leve em conta a idéia de sustentabilidade”. Segundo ela, os elementos teóricos formulados por Freire, “determinam substancialmente o pensamento e a ação desse novo movimento sócio-ecológico”. Ela situa as mudanças exigidas na linha do que Freire denomina pela, sua urgência, “situações- limites”. Ao situar os problemas da ecologia na perspectiva das “situações-limites”, a professora Christina quer salientar a extrema gravidade dos mesmos, enquanto nos colocam frente à ameaça de uma iminente destruição total da vida em nosso Planeta. Nesta mesma linha de reflexão, podemos pensar a “Pedagogia do Oprimido” de Freire, enquanto projeto utópico de transformação, na ótica de uma “Pedagogia das grandes urgências planetárias”. (ANDREOLA, 2011: p. 313-330).

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Voltando ao tema do espaço, cabe dizer que Freire expressa, em toda a sua forma de existir e estar-no-mundo, e em toda a sua obra, uma comunhão cósmica com o espaço, com a terra, com o planeta, em todos os seus recantos. Numa longa entrevista com Claudius Ceccon e Miguel Paiva, para o Pasquim (1978, nº 462), falando de sua experiência nos mais variados espaços do exílio, Freire declara: (...) o que eu quero dizer é que sou, existencialmente, um bicho universal. Mas só sou porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem, enormemente, qualquer povo.

Na emoção desta viagem ecológica através da obra e da vida de Paulo Freire comungando com seu espírito franciscanamente poético, concluirei também com alguns versos ecológicos.

Grito de Mãe (colocar a cores) Eu sou a Mãe Terra.

Do ódio esquecidos,

Cansada de guerra.

Na casa reunidos.

De ódio e violência,

Sem medo e sem fome

A aparência

Que a muitos consome.

Não é mais aquela

Do imenso cansaço

Da Mãe grande e bela,

Dos longos caminhos,

Que Deus quis e fez.

Voltai meus filhinhos,

Pra muitos, em vez

Ao meu grande abraço.

De casa e jardim,

Anseio de novo

De mãe até o fim,

O amor de meu povo,

Sou vil propriedade.

Que encontre em mim

No campo ou cidade

A casa e o jardim

Vendida ou comprada,

A mãe que Deus quis

Ferida, estuprada,

Formosa e feliz,

A mãe já não sou,

A Mãe que Deus fez

E o filho de outrora,

Pra todos vocês. Porto Alegre, 3º Fórum Social Mundial, janeiro/2003

Meu dono de agora, Virou gigolô... Com passos incertos,

Balduino Antonio Andreola

De braços abertos, Tateando no escuro, Meus filhos procuro E os quero de volta, Da mesa em volta, 61

TURISMO CULTURAL EN EL URUGUAY: UNA COMPLEJA PERO NECESARIA ALIANZA

REFERÊNCIAS

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* Professor, Dr. Mestrado em Educação UNILASALLE.

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3. MUSEU E INDÚSTRIAS CRIATIVAS COMO INSTRUMENTO DO PATRIMÔNIO E DO DESENVOLVIMENTO

JORNADAS MERCOSUL

CENTRO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE – UMA RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA, MÍDIA E HISTÓRIA

Eder dos Santos Carvalho* Simone Cardoso**

Introdução – Análise, Origem e Evolução do Centro Histórico de Porto Alegre A modernização e o desenvolvimento das cidades durante o século XX ocasionou novas conexões econômicas e sociais na região de influência de grandes centros urbanos, ao mesmo tempo em que trouxe o abandono para as áreas centrais, portuárias e industriais. Como conseqüência desse abandono, tornou-se necessário repensar a construção e a renovação das cidades a partir da preservação cultural de seus patrimônios. Segundo Ortegosa (2009, pág. 02), A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde nossas lembranças se situam e, na medida em que as paisagens construídas fazem alusão a significados simbólicos, elas estão evocando narrativas relacionadas às nossas vidas. Assim, a maneira como interpretamos nossas experiências no espaço converte-se em nossa realidade e possibilita-nos dar significado ao nosso mundo físico. Com o passar do tempo, uma constelação de signos se estratificam na memória coletiva constituindo uma cidade análoga. Ainda segundo a mesma autora, citando Carvalho (2009, pág. 02): Como ilustra Maria Alice Rezende de Carvalho, “uma praça das grandes manifestações políticas, uma esquina boêmia, um ponto da praia com seu velho pier, um Café centenário, um edifício bisonho que parece ter resistido ao ímpeto destrutivo da moderna linguagem arquitetônica são os fundamentos dessa cidade análoga”, que se repõe insistentemente, mesmo que a cidade real se altere.

O centro histórico é um centro simbólico que alimenta a imaginação e a recordação do passado, através de seu acervo de imagem que mostra o olhar da história. Um centro histórico não é lugar de comemorar o que passou, ele é também o lugar das sensações instantâneas de agora. Ele não conta uma única história, mas muitas histórias. Ao se falar de um retorno ao centro como forma de resgatar o passado, não se pode esquecer também que esta intervenção significa readaptá-lo às novas funções da cidade contemporânea. As cidades surgem, crescem e se desenvolvem a partir de seus centros, onde está sua parte mais antiga. Porém, as urbes têm a propriedade de aumentar, de se densificar, de crescer de forma desmedida, e consequentemente, seus centros são os primeiros a sofrer estas transformações. Este crescimento das cidades leva a uma diluição do centro como coordenada espacial, fortalecendo a idéia de centro cívico, comercial e especialmente, de repositório de expressões físicas de experiências coletivas. Dessa forma, os centros urbanos sofrem os desgastes físicos intrínseco à passagem do tempo e ao uso social desses espaços, além de sofrer com as alterações de uso, que alteram e destroem a função original dos mesmos, e por fim, estas regiões centrais podem ser acometidas de uma perda de significado, de memória e de sentido histórico.

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Estudos sobre centros urbanos que buscam resgatar a história e a memória destes locais para a cidade, deparam-se hoje com a questão da especulação imobiliária e com processos de enriquecimento e empobrecimento presentes na sociedade atual. Já o turismo atua como um instrumento fomentador de valorização dos centros urbanos, desde que conte com atrações e infra-estrutura bem definidos. O turismo cultural em centros urbanos se sustenta em uma espécie de nostalgia do passado, uma expectativa de reencontro com as origens. Porém, para além dessas estratégias, impõem-se uma parte prática para ser definida. Faz-se necessário que além do olhar apurado do estudioso da cidade, se viabilize recursos financeiros, tanto do poder público como da iniciativa privada. Valorizar centros históricos requer um alto investimento, mas compensa. E esses investimentos necessitam de vontade política, de parcerias público-privadas e pessoas capacitadas para executar estas ações.

Origem e Evolução do Centro de Porto Alegre O centro de Porto Alegre sempre foi reconhecido por sua riqueza cultural, onde o pedestre mais atento depara-se com uma riqueza arquitetônica ímpar, onde vários estilos se manifestam, formando um conjunto rico e heterogêneo, abrangendo as mais variadas manifestações arquitetônicas. Monumentos neoclássicos, arquiteturas ecléticas e protomodernistas e as chamadas reminiscências de um passado colonial – casas baixas, de porta e janela e platibanda simples, construídas em lotes estreitos – configuram os diálogos, as memórias e as lembranças do local de fundação de Porto Alegre, local este que segundo Cuty (2007, pág. 2): “carrega a mais expressiva imagem externa desta cidade, ou seja, aquela que é percebida e comprada pelos que vêm de fora.” O povoamento do centro de Porto Alegre iniciou por volta de 1732, com a fixação de algumas famílias à beira do lago Guaíba. Em 1752 chegam ao local cerca de 60 famílias açorianas, juntandose mais tarde a uma nova leva de açorianos, fixando-se então junto ao porto, razão pela qual o local passou a ser conhecido como Porto dos Casais. No dia 26 de março de 1772, data oficial da fundação da cidade, foi elevada a Freguesia, sob o nome de Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais. No ano seguinte, é transformada pelo Governador Marcelino de Figueiredo em capital da Província. A partir de então, passou a assumir seu novo papel de capital, quando foram construídas obras como o Arsenal da Guerra, a primeira Igreja Matriz e o Palácio do Governador. Também nessa época começaram a tomar forma algumas das praças mais antigas de Porto Alegre, com a Praça XV, a Praça da Matriz e a Praça da Alfândega. Durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), o crescimento ficou estagnado, voltando a crescer após 1845, tendo iniciado nesse período a construção de aterros no litoral e a construção de equipamentos públicos, como fontes para abastecimento de água, o Teatro São Pedro, a ampliação do Mercado Público, consolidação da Santa Casa de Misericórdia e da Beneficência Portuguesa. Em seguida, quando Júlio de Castilhos assumiu o governo do estado (1891), com uma política orientada pelo positivismo, foi dada ênfase à modernização da cidade, que passou a ser vista como cartão de visitas do Rio Grande do Sul. Nessa onda de melhorias da infra-estrutura urbana, o centro recebeu muitos incentivos, ao mesmo tempo em que se desencadeava um intenso programa de obras para construção de prédios públicos imponentes.

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Esta aceleração do crescimento, que durou até meados da década de 30, renovou a paisagem urbana, sendo influenciada pela estética do ecletismo e pelos ideais do positivismo. Neste período, ergueram-se alguns dos mais significativos prédios públicos da capital, muitos carregados de simbolismos éticos, sociais e políticos, detalhes estes que se revelavam na decoração alegórica das fachadas. Com exemplos dessa arquitetura temos o Palácio Piratini, o Paço Municipal (Prefeitura), a Biblioteca Pública, o Banco da Província, Os Correios e Telégrafos e a Delegacia Fiscal; sendo que muitos desses prédios forma construídos por arquitetos e engenheiros de origem alemã. Na gestão do Prefeito Otávio Rocha, empreendeu-se uma reforma urbana, visando transformar a capital numa “nova Paris”. Para isto, foi prevista a construção de largas avenidas, bulevares e rótulas, mas para que essas obras fossem levadas adiante, vieram abaixo muitos casarões, especialmente na área central. Neste período surge o Viaduto Otávio Rocha, um dos marcos do centro de Porto Alegre. Os ideais positivistas influenciaram também o plano cultural, através da fundação de estabelecimentos que mostravam o interesse do governo pelas diversas áreas da vida social e intelectual do Estado Republicano, como o Arquivo Público, o Instituto Livre de Belas Artes, e o Museu Júlio de Castilhos, ao mesmo tempo em que se desenvolviam cada vez mais as atividades das primeiras faculdades, instaladas desde o século XIX. O centro de Porto Alegre atingiu o auge na década de 1950, quando já era densamente edificado e tinha a Rua da Praia como a principal rua da região central, transformada em zona de comércio elegante e atraindo a instalação de inúmeros cafés, confeitarias, cinemas e restaurantes. Tornou-se também o local preferido para manifestações políticas. Nas décadas seguintes, diante de uma abordagem tecnicista e moderna, desapareceram inúmeros edifícios antigos, empobrecendo a fisionomia do centro e levando a região ao declínio. A partir da década de 1960, camelôs “cegos” se instalam no centro, tomando conta das ruas centrais, gerando como conseqüência o fechamento de inúmeras lojas já estabelecidas. Outros fatores, nas décadas seguintes, contribuíram para desvalorizar a região, como o declínio do antigo distrito industrial, a elaboração de um novo padrão de zoneamento urbano, fazendo com que o centro perdesse muito de sua função residencial, a especulação imobiliária, o aumento da criminalidade e a descentralização de investimentos. Em 1981, é criada a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural, que inicia um processo de estudo e resgate dos bens culturais de propriedade do município, sistematizando dessa forma os tombamentos. Também se reconheceu a existência do “Centro Histórico” como um núcleo urbano de interesse social e cultural específico, tendo como marco importante desse reconhecimento a recuperação da Usina do Gasômetro, em 1991, desencadeando uma mudança na maneira como a população via o Centro Histórico. Recentemente, a prefeitura inaugurou um camelódromo com espaços alugados aos comerciantes. Dessa forma, a saída desses camelôs do coração do Centro Histórico propiciou a reorganização da Praça XV, juntamente com o restauro do seu famoso chalé. Outros programas, como o Programa de Arrendamento Residencial, o Programa Monumenta e o projeto Viva o Centro buscam alternativas de valorizar a região central.

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Estes projetos começam a dar resultados, como o aumento da população, retorno de investimentos e valorização dos imóveis. A elite cultural, que “consumiu avidamente” o centro na primeira metade do século XX, começa a retornar para o espaço onde mantêm as lembranças de sua memória, onde estão suas referências, como os antigos cafés, livrarias e confeitarias. Para esses novos moradores, o centro voltou a ficar elegante como no passado.

Centro de Porto Alegre – A Arquitetura, Mídia e a História como divulgação do Patrimônio Cultural O Patrimônio Histórico e a memória de uma cidade não se limitam apenas aos monumentos, mas também aos documentos, aos registros da história de uma sociedade e a sua divulgação através da mídia – rádio, TV, jornal e Internet. Os meios de comunicação, a divulgação da história de um lugar e a arquitetura tem a capacidade de contribuir para a reflexão e a discussão sobre a conservação do patrimônio e da memória das cidades. Na era da informação e da divulgação de todos os fatos que acontecem na cidade, o habitante tem consciência do que acontece com o lugar onde vive, e por conseqüência, consigo mesmo. Ao procurar preservar a identidade do lugar, o habitante preserva também a sua própria, através da conservação de monumentos históricos, artísticos e arquitetônicos relevantes. A arquitetura induz, através de materiais, técnicas e formas construtivas, a função, o uso e o valor do espaço, constituindo assim o suporte pelo qual a cidade se constrói como meio comunicativo, possibilitando sociabilidades e interações em constantes transformações. A técnica e a função da arquitetura constroem a cidade que se comunica através de imagens midiáticas. Aqui faz se necessário uma reflexão da relação entre Patrimônio Cultural e a memória coletiva. As lembranças coletivas de uma sociedade se dão através do contato e da interpretação do que vemos hoje acerca dos vestígios deixados pelo homem ao longo de sua existência. Esses vestígios seriam os chamados bens culturais e imateriais que compõem o Patrimônio Cultural. Dessa forma temos então o estabelecimento da relação entre a memória social e o Patrimônio Cultural. Os bens culturais têm o poder de evoca - lá e configuram-se como uma espécie de externalização dessa. Segundo Santiago (2007, pág. 25), os materiais remanescentes do passado, produto de um juízo de valores, que formariam o Patrimônio Cultural, são objetos potenciais de memória, onde essa pode se ancorar. De um modo geral, patrimônio e memória relacionam-se à medida que os bens culturais, que constituem esse patrimônio, configuram-se como suporte, externalizações, marcos ou pontos de apoio para ela. A memória, a partir da segunda metade do século XX, passa por um desenvolvimento que constitui uma verdadeira revolução, através do surgimento da memória eletrônica, trazendo consigo uma série de transformações de ordem teórico-metodológicas. Esses novos conceitos de memórias coletivas conduzem a uma história imediata onde a mídia aparece como novo fio condutor desta ordem, tornando-se essencial como meio de informação e registro do passado, apreendendo e transmitindo este passado de forma diferente do campo historiográfico. O envolvimento da imprensa na divulgação da memória e da preservação contribui para o 70

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entendimento das questões de salvaguarda do patrimônio. Dessa forma a atuação da mídia tem um papel importantíssimo como informante especializada sobre processos e formas de preservação do patrimônio e do legado da memória coletiva. A memória social, bem como a evolução da mídia, segundo Santiago (2007, pág. 32), configura-se através de cinco estágios, que são: 1) nas sociedades sem escrita; 2) na Pré-História à Antiguidade; 3) na Idade Média; 4) no Século XIX com a invenção da imprensa, e finalmente 5) com o desenvolvimento das mídias eletrônicas. Destas cinco fases de evolução, não cabe aqui detalhar cada uma delas, visto não ser este o objetivo deste artigo. Apenas a última fase merece uma análise mais pormenorizada, por ser este período de evolução da mídia presente até os dias atuais. Este período evolutivo, segundo Debray (1994), citado por Santiago (2007, pág. 32), é conhecido também por videosfera, onde o período aberto pela técnica do audiovisual, em que a transmissão analógica e digital dos dados, modelos e narrações, ocorre principalmente através da tela, quando então os limites de armazenagem de informação do livro impresso são ultrapassados pelos suportes audiovisuais, e como exemplo desse aparato temos o rádio, a TV, o telefone, o computador e a internet. Nesse período da videosfera consolidou-se também a atual noção de patrimônio cultural, através de um processo evolutivo que começou em meados do século XIX e culminou com as Cartas Patrimoniais, editadas ao longo do século XX. A videosfera levou ao surgimento de diversos modos de documentação do patrimônio cultural, ampliando dessa forma a bagagem cultural da sociedade acerca das lembranças coletivas. A memória coletiva, após se desenvolver em ambientes de comunicação caracterizados pela oralidade, escrita fonética e impressão gráfica, é influenciada hoje pela popularização das chamadas tecnologias da informação e comunicação, onde, segundo Santiago (2007, pág. 55), possuímos os melhores instrumentos de “ressureição” e da “viagem no tempo” à nossa disposição. Tais instrumentos permitem a armazenagem de qualquer tipo de documento por meio de sua digitalização, seja ele um documento oral, texto, imagem ou vídeo, sendo este documento acessível a qualquer pessoa em tempo real, através da internet. Para entendermos as potencialidades de salvaguarda e disponibilização de bens culturais, segundo Santiago (2007, pág. 55), é importante a análise de três fatores: a comunicação – modo de acessar o conteúdo referente ao patrimônio cultural e a memória através da mídia digital; a virtualização – modo de converter o conteúdo referente ao patrimônio cultural e por fim, os sistemas – modo de organizar a informação referente ao patrimônio cultural. A comunicação, no que se refere à digitalização e disponibilização de bens culturais, é compreendida de duas formas – a relação usuário-interface computacional, o modo como o conteúdo é apresentado ao usuário e a relação usuário-tecnologia informacionais, onde dá se o entendimento e o acesso do código pelo usuário. A virtualização relaciona-se à finalidade da tradução de um bem cultural para o ambiente virtual, facilitando e ampliando seu entendimento. Nesse ambiente virtual, tanto o patrimônio material quanto o imaterial, utilizam-se, além de textos, de uma série de recursos multimídia, como vídeo, áudio, modelagens tridimensionais, imagens, etc. Segundo Santiago (2007, pág. 73): “... nunca devemos perder o bem cultural concreto de vista, sem o qual a simulação vir-

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tual perderia seu significado, sua alma e seu referencial....”

Os sistemas de comunicação, dada a sua rápida evolução ao longo dos últimos anos, fazem com que cada vez mais documentos sejam transformados em dados, armazenados em complexas bases de sistemas de montagem da história. Porém, diante de uma quantidade excessiva de informação, o usuário dessas interfaces da mídia poderia interpretar equivocadamente as particularidades desse assunto, não dando a devida importância para fatos que necessitam de um olhar mais atento. Dessa forma, é necessário um pensar sistêmico, que garanta que as informações não apenas se acumulem nas bases de dados, mas que sejam organizadas de modo a contribuir para a construção do conhecimento. Diante desta análise, temos que o patrimônio cultural é traduzido ao ambiente virtual, onde suas informações são filtradas por um ator ⁄ observador, sendo estas informações organizadas em um mapa, ou seja, a passagem do bem do território (concreto), para o mapa ou sistema (virtual). (Santiago, 2007, pág. 88). Importante salientar a interface entre saberes e fazeres da educação patrimonial e da educação para a mídia. A primeira visa conscientizar os indivíduos da importância de seu repertório cultural local, e a segunda, no sentido de ajudar a compreender as novas codificações, imagens, sons, articulação entre o verbal, o visual e o escrito, bem como as articulações empresariais, comercias e políticas do complexo de comunicação. A mídia carrega um grande potencial educativo, de mobilização social, de suporte da memória e de divulgação cultural, que pode ser usado para proporcionar lazer, emocionar, envolver os sujeitos no sistema cultural que vivenciam diariamente em suas comunidades. Partindo das definições e dos conceitos anteriormente expostos, passamos a análise da divulgação do centro histórico de Porto Alegre na mídia impressa e na mídia digital. O chamado Centro Histórico de Porto Alegre se caracterizou, ao longo dos últimos anos, como uma identidade a ser vendida, um marco referencial na capital gaúcha. Essa identidade, para ser vista não somente pela população local, mas também para ser “exportada” como marco da cidade, necessita de divulgação, para que possa ser valorizada e atrair as pessoas para o local. Esta divulgação tem-se dado através de programas como o Monumenta, Cais do Porto, do Blog Centro Histórico de Porto Alegre (http://centrohistoricodeportoalegre.blogspot.com.br/) e também com o programa Viva o Centro, que leva as pessoas não só da comunidade, mas também de outros lugares do estado, do país e também do exterior, a visitar os principais monumentos e edificações do centro. Também há a divulgação em sites relacionados à preservação do patrimônio cultural das ações de preservação no local, além da divulgação destas mesmas ações em jornais da capital, além de exposições em museus. As ações do Monumenta, do IPHAN, o principal projeto de revitalização do centro, são divulgadas no site do programa (http://www.monumenta.gov.br/site/?page_id=205), e recentemente foi lançado um livro com as ações já realizadas pelo Monumenta. Este programa inicialmente elaborou um levantamento e interpretação do centro histórico, com um conjunto de ações visando democratizar o acesso ás informações históricas da cidade, contribuindo para a apropriação do patrimônio pelos visitantes e pela população local. Em seguida e este levantamento, começaram as obras de recuperação de prédios e praças da região central, hoje ainda com obras em andamento. Todavia, o Projeto Viva o Centro, um plano de governança solidária da área central da cidade, busca tornar o centro um bairro 72

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de oportunidades para todos, estruturado em três diretrizes básicas: qualificação do espaço urbano, valorização da imagem pública do Centro e fortalecimento de sua dinâmica funcional. O fascínio do Centro Histórico se constitui num espaço de encantamento, propiciando uma ponte entre o passado e o presente, despertando a população para a valorização de sua memória coletiva, aonde ações simbólicas nos conduzem para a magia de épocas não vividas, trazidas até nós através do elo entre a memória ancestral e o cotidiano atual. Dessa forma, os programas já citados anteriormente, que buscam revitalizar e valorizar o centro prevêem o uso da interpretação como ferramenta informativa. A interpretação é uma técnica de comunicação contemporânea, usada ao redor do mundo para apresentar centros históricos, edificações, espaços públicos, sítios arqueológicos e monumentos. Tem como objetivo tornar acessível aos diferentes tipos de visitantes, a historia, a cultura, o patrimônio material e imaterial, despertar o interesse em conhecer, explorar e refletir, por meio da evidenciação de detalhes, pistas, significados e relações. Num projeto interpretativo, podem ser utilizadas como suporte as mídias da museografia, de acordo com as peculiaridades de cada situação, organizando percursos, visitas guiadas, folhetos, ilustrações, sinalizações, livros, filmes, encenações e mídia eletrônica. Ações de divulgação na mídia dos projetos de revitalização da região central estimulam não só a valorização da memória coletiva, mas também a valorização dos imóveis, a volta das pessoas para as ruas, para as praças, investimentos em segurança, infraestrutura e equipamentos urbanos.

Conclusão O centro histórico de uma cidade é o local de encontro, da presença constante de diferentes grupos, habitantes ou em passagem; esses encontros, aliados a polifuncionalidade do local – habitação, comércio, serviços – faz desse local o coração da cidade. Valorizar e divulgar essas “peculiaridades” do local é tarefa de planejadores urbanos, conjuntamente com o poder público e a mídia. Os investimentos particulares nos centros priorizam o retorno econômico ou a valorização da imagem institucional, ocupando prédios públicos e restringindo o acesso a esses locais (Meneguello, pág. 4), enquanto os investimentos públicos criam representações falsas de hábitos comunitários. Hábitos e cenas interpretados para os olhos dos transeuntes, por atores que muitas vezes deslocam-se de grandes distâncias para atingir o centro, “fantasiados” de dançarinos de rua, artesãos, músicos, e com trajes típicos se deixam fotografar por visitantes. Segundo Meneguello (pág. 4), enquanto os passantes se divertem com essas interpretações, a outrora população local, que muito contribuiu para manter os aspectos arquitetônicos do local, é deixada à margem desses eventos. Experiências como percorrer, olhar, observar e ser observado é a forma que temos de apreender a cidade e assim reconhecermos a imagem interna que cada um de nós carrega de sua própria cidade. Cada habitante elenca um rol de lugares em sua memória e os projeta numa situação futura, e segundo Cuty (pág. 12), nesta mescla de colecionadores de “cidades internas” encontram-se os legisladores, planejadores e preservacionistas a fim de executar a difícil tarefa de ler tempos e filtrar espaços a serem preservados, e incluiríamos aqui também a mídia, com seu papel destacado em divulgar estes espaços para o habitante da cidade e para o turista. 73

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Intervenções pontuais e de preservação do patrimônio material e imaterial superpõem-se para formar a imagem da cidade, a imagem do bem cultural que vai ser “comprado e observado” pelo turista. Esta imagem á que torna a cidade legível, como acontece em Veneza, com suas pontes e canais, em Paris, com seus bulevares e em Barcelona, com as grelhas ortogonais do plano urbanístico de Cerdá, para citarmos alguns exemplos clássicos. Em Porto Alegre, o centro histórico revela a influência estrangeira no traçado de parques e na arquitetura monumental dos prédios públicos, registrando, dessa forma, o período de imigração alemã e italiana. E é esta imagem multicultural nos prédios e espaços públicos, que estimula a sociedade a um melhor entendimento na compreensão da origem da cidade.

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Eder dos Santos Carvalho / Simone Cardoso

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* Eder dos Santos Carvalho - Estudante de Arquitetura e Urbanismo - UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul – RS ** Simone Cardoso - Jornalista, DRT 15990, Prefeitura Municipal de Encruzilhada do Sul – Encruzilhada do Sul – RS

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PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS: ESTUDO DE CASO – O MUSEU HISTÓRICO MUNICIPAL DE DOIS IRMÃOS, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL Andréa Cogan *

Os museus há muito deixaram de ser considerados locais estagnados, destinados a guardar “coisas velhas”. Segundo Gonçalves (2005, p.8), o “campo de atuação da instituição museu renovouse no decorrer dos anos e tornou-se muito mais amplo, desenvolvendo, principalmente a partir da segunda metade do século XX, mecanismos de aproximação com a sociedade”. A relação entre os museus e as cidades nas quais estão instalados não obedece a regras, fórmulas ou preceitos. O tamanho da cidade, o número de habitantes, as opções de lazer e cultura, por um lado, e os museus e suas especificidades, por outro lado, estabelecem uma dinâmica que está constantemente mudando, de visitação e até mesmo de aceitação. (VALENTE, 2003). Isso ocorre porque, em sua quase totalidade, os museus foram criados por mecanismos alheios aos interesses das comunidades, as quais nem foram participes de suas concepções. À exceção dos museus comunitários e dos ecomuseus, nos quais a preservação da identidade coletiva é uma necessidade da própria comunidade, a prática da criação dos museus é muitas vezes dissociada do local no qual se inserem. Apesar de todos os problemas e descaminhos ainda enfrentados, os museus, independentemente de sua tipologia, não podem ser desprezados por aqueles que falam em preservação, em gestão, em globalização cultural, economia em museus e sustentabilidade. Para cada uma destas esferas, comuns aos dilemas contemporâneos, os museus têm implicações e responsabilidades muito definidas. No caso específico deste trabalho, o interesse pela temática de gestão, plano estratégico e museológico com sustentabilidade esteve sempre relacionado à missão institucional e fez com que centrássemos os estudos no Museu Histórico Municipal de Dois Irmãos (MHMDI) localizado no Rio Grande do Sul que, desde sua fundação, percebia a necessidade da valorização e resgate da cultura local. O MHMDI foi criado em 03 de junho de 1989, contemplando uma tipologia de museu histórico local, mantido pela Prefeitura Municipal, desde sua inauguração, trabalhando dentro de uma filosofia embasada nos princípios da Nova Museologia, realizando trabalhos convencionais a uma instituição do gênero. Para este trabalho, partiu-se da hipótese que o museu municipal da cidade de Dois Irmãos, como museu histórico em um contexto local podia proporcionar benefícios a todos os segmentos da sociedade em que está inserido, associados ao desenvolvimento de projetos educativos socioculturais. O grande desafio estava em propor estratégias para que o museu pudesse inserir a comunidade dentro dele e buscasse estabelecer mecanismos para que este efetivamente colaborasse para o desenvolvimento sócio cultural dessa comunidade.

PLANO MUSEOLÓGICO E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE PARA MUSEUS

Metodologia A metodologia envolveu, em um primeiro momento, revisão bibliográfica e outras fontes disponíveis (relatórios de atividades, visita ao museu, consulta ao Departamento Municipal de Cultura), direcionados para a conceituação e definição do papel histórico do Museu; identificação dos problemas e dificuldades de recursos, incluídos os financeiros, enfrentados pelo Museu e identificação de formas de sustentabilidade do Museu, compatível com a sua missão. Em um segundo momento, nos dedicamos à realização de diagnóstico e análise dos problemas e dificuldades enfrentados pelo MHMDI para o cumprimento da sua respectiva missão. E, num terceiro momento, resultou na proposição e organização de Plano Museológico e Estratégico para o MHMDI, tomando como orientação a Lei 11.904 de 2009 que instituiu o Estatuto dos Museus, mais especificamente, os artigos 44 a 47 - dedicados ao Plano Museológico - e a Portaria Normativa nº1/2006 do Ministério da Cultura, que dispõe sobre a elaboração do Plano Museológico dos Museus do IPHAN. Para um diagnostico museológico objetivo partimos do registro da realidade do MHMDI (aspectos internos e externos), abarcando indicadores de todas as áreas de funcionamento, institucional, espaço físico e instalações, acervo, segurança, atividades e público, realizamos uma análise DAFO (Debilidades, Ameaças, Fortalezas, Oportunidades), ou seja, analisamos os Pontos Fortes, Pontos Fracos, Oportunidades e Ameaças – sendo as questões organizadas em assuntos internos (fortalezas e debilidades) e externos (oportunidades e ameaças). (FERRELL, 2000). Sistematizadas e interpretadas, as informações consubstanciaram o diagnóstico da instituição, documento que evidenciou suas fragilidades e seus pontos fortes, embasando as demais etapas do Plano. O diagnóstico seguiu eixos ou roteiros específicos de análise que se articularam com os programas, dando sustentação aos projetos e ações dos programas constituídos no Plano Museológico1. Partimos da idéia da memória como construção e do museu como locus privilegiado de institucionalização destas memórias. Para tanto, o diagnóstico museológico realizado foi pensado como uma análise global e prospectiva da instituição. Nosso interesse era a instituição como um todo, portanto, este diagnóstico buscou contemplar diferentes aspectos que auxiliassem na construção do Plano Museológico e Estratégico do MHMDI de acordo com a sua realidade e a da comunidade envolvida. Para tanto tomamos como base o resultado das entrevistas, a partir da aplicação dos formulários específicos para cada categoria de entrevistado2. O diagnóstico da situação incluiu aspectos internos e externos ao museu. Foi necessário iniciar o diagnóstico interno procurando identificar quais pareciam ser os problemas básicos que o museu enfrentava. Procuramos para esta análise envolver o maior número possível de pessoas, ou seja, a equipe interna do MHMDI, principalmente. 1

Segundo o Art.3º da Portaria Normativa nº1/2006 do Ministério da Cultura, a elaboração do Plano Museológico baseiase em diagnóstico completo da instituição, levando em conta os pontos fortes e frágeis, as ameaças e oportunidades, os aspectos socioculturais, políticos, técnicos, administrativos e econômicos pertinentes à atuação do museu. 2 Foram realizadas 30 (trinta) entrevistas, no período dezembro de 2011 a janeiro de 2012, com empregados/ funcionários, colaboradores, direção, num total de 07 (sete) entrevistados, com moradores do município de Dois Irmãos e/ou eventualmente pessoas moradoras de municípios vizinhos, visitantes e representantes de diferentes segmentos da comunidade, num total de 10 (dez) entrevistados, e representantes do comércio/indústria da comunidade, num total de 13 (treze) entrevistados. Cada entrevistado preencheu, previamente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Unilasalle (Processo nº 11/065).

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A Construção do Plano Museológico e Estratégico para o MHMDI A DAFO mostrou-se como uma ferramenta analítica poderosa que em geral, possibilitou um exame minucioso quanto ao desempenho do museu na atualidade e o que ele será capaz de fazer no futuro (diagnóstico interno). Assim sendo, o diagnóstico, por princípio, não pode ser muito extenso, fizemos um esforço de síntese, sendo que todas estas informações subsidiaram a formulação de estratégias para o plano museológico. No caso do MHMDI, propusemos a implantação de um plano museológico com possibilidades de sustentabilidade, observando os resultados obtidos através do diagnóstico que serviu de base para a construção do Plano. O roteiro de diagnóstico tratou das seguintes questões: Institucional (dispositivos institucionais de organização e gestão, organograma, quadro funcional, dispositivos institucionais de administração e finanças), espaço físico e instalações, acervo (gestão e controle do acervo e armazenamento e conservação), segurança (recursos humanos e equipamentos e medidas de segurança), atividades, público e Técnica DAFO. O diagnóstico serviu como base para a estruturação do Projeto de Sustentabilidade Institucional e foi pensado com base nos princípios da sustentabilidade, ou seja, a criação de atividades que abrangessem aspectos culturais, sociais e econômicos, associados à missão do museu garantindo a dignidade e a manutenção do MHMDI. Para efeitos de enquadramento da reflexão sobre a aplicação do conceito de sustentabilidade para os museus e ainda sobre o papel destes para um desenvolvimento sustentável, quatro componentes ou pilares da sustentabilidade foram usados nesse trabalho. Essas quatro dimensões da sustentabilidade - a ecológica/ambiental, a social, a econômica e a cultural - foram de forma integrada e ativadas através da participação das pessoas - individualmente ou enquanto membros de uma comunidade. No caso do MHMDI, trabalhamos com um Projeto em que o museu pudesse checar se estava atingindo suas metas, seguindo sua missão e satisfazendo suas funções junto à sociedade/comunidade. O foco do MHMDI estaria em mostrar a história de Dois Irmãos, visando integrar a comunidade ao Museu com um trabalho de resgate da identidade cultural e da valorização da história dos imigrantes alemães, que a partir de 1825, chegaram à cidade. Assim, um questionamento sempre foi feito, voltado naturalmente à missão deste Museu: como abordar as questões sociais, econômicas, ambientais e culturais relacionadas com o tema da sustentabilidade de forma a contribuir para o esclarecimento e a educação do público que visita o Museu e da equipe responsável por sua gestão? Ao pensarmos um projeto sustentável, não poderíamos deixar de pensar nos pilares da sustentabilidade, isto é, “como conquistar público cativo, recursos financeiros de longo prazo e marca reconhecida.” (OLIVIERI e NATALE, 2010, p. 153). Falarmos de sustentabilidade para instituições museológicas é falarmos de uma racionalização da gestão que possibilite uma redução da ineficiência administrativa e do desperdício de recursos, contribuindo para a construção dessa sustentabilidade, fundamental para atravessar os momentos de boa fase econômica, mas particularmente os de crise. Entendemos aqui a sustentabilidade numa perspectiva não só financeira (econômica), mas integrada com outras dimensões de sustentabilidade como 79

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ecológica/ambiental, a social e a cultural - ancorada num modelo democrático de gestão. O primeiro passo foi pensar em profissionalizar a estrutura interna com capacidade e mandato para construir sustentabilidade. Mas para isto, a estrutura precisaria estar apta a responder ao novo contexto do setor museológico e gerar o real desenvolvimento institucional almejado pela instituição. Sabemos, que as estruturas internas de organizações culturais, como os museus, não se desenvolveram de forma favorável a sua sustentabilidade. As novas demandas que hoje aparecem, precisam ser lideradas por gestores de dentro da instituição que compreendem suas complexidades e potencialidades. Assim, a nossa proposta de instituição sustentável contem necessariamente a contribuição de três elementos fundamentais: ter um projeto de futuro, ter competência para realizá-lo e ter credibilidade para garanti-lo. Ter um projeto significava que a instituição deverá dispor de um plano estratégico, no qual seja explicitado o seu rumo futuro, através do estabelecimento de uma missão, objetivos e diretrizes claramente definidas e ajustadas às mudanças do ambiente externo. Ter competência significava que a instituição deverá construir, em seu ambiente interno, as condições indispensáveis à plena operacionalização de seu projeto institucional. Inclua-se, entre essas condições, não só o aperfeiçoamento de sua capacidade técnica (atividades-fins), como também a modernização de sua capacidade organizacional, administrativa e estrutural (atividades-meios). Ter credibilidade significa que a instituição deverá manter elevado seu nível de aceitação junto à principal clientela, aos parceiros e aos segmentos da sociedade, estes últimos beneficiários finais. Este comprometimento permitirá que esta credibilidade seja traduzida em apoio institucional e financeiro, que garanta a continuidade da execução das suas atividades. Pensamos a gestão do MHMDI encima de cinco campos de atuação e desenvolvimento: sociedade, serviços, recursos, pessoas e direção. A relação entre todos esses campos possibilitaria esclarecer a missão, os valores, a visão de futuro, as estratégias, os objetivos, as metas e os programas do Museu. Fica claro, portanto, que a missão do museu terá que ser revista periodicamente. Porque assim como a sociedade muda, as expectativas e condições das pessoas também mudam, interna e externamente. Não é necessário mudar permanentemente. Apenas rever-se e repensar-se de tempos em tempos para seguir adiante consciente da direção que está sendo tomada. Visando apresentar sugestões de melhorias para o MHMDI, na área de Gestão, procuramos elencar alguns aspectos a serem trabalhados pelo Projeto de Sustentabilidade Institucional. A gestão de pessoas, a satisfação do público, os redesenhos dos processos, a clareza da missão e perspectiva de futuro, o trabalho em equipe e compromisso coletivo, a criatividade e inovação e o aprimoramento contínuo. A gestão de pessoas no sentido de pensar em qualidade que o Museu oferecerá em seus serviços. Pensar no atendimento das necessidades e expectativas do público interno e externo. Só que é praticamente impossível, atender às expectativas do público externo sem satisfazer as necessidades do 80

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público interno. Segundo Barçante e Castro (1995, p. 20), “ao ouvir a voz do público interno, ou seja, dos funcionários, a empresa (no caso, o museu) estará tratando-o como um aliado e não só como um mero cumpridor de ordens, estará vendo que dele dependem os seus bons resultados.” (BARÇANTE e CASTRO, 1995). A satisfação do público no sentido de que somente os funcionários que são bem tratados dedicar-se-ão a esta tarefa, nada fácil, de conquistar o público externo. Os redesenhos dos processos no sentido de racionalizar os sistemas produtivos e administrativos; sensibilizar as pessoas para a mudança de postura e para que não haja a resistência às mudanças. A clareza da missão e perspectiva de futuro no sentido de que todos devem conhecer claramente a missão do museu; isto fará com que as prioridades sejam estabelecidas e cumpridas e que não se gastará tempo com trabalhos inócuos para a instituição. O trabalho em equipe e compromisso coletivo no sentido de que quando o museu se preocupa com o bem estar dos funcionários, o compromisso deles aumenta, bem como sua motivação para dar o melhor de si para o sucesso da instituição. A criatividade e inovação no sentido de que a área diretiva deverá prover algum programa que contemple a motivação, que influencie diretamente na capacidade de criação. O aprimoramento contínuo no sentido de que a área diretiva deverá propiciar as condições necessárias para capacitação e qualificação continuada do público interno do Museu. Nos museus públicos, em que a estabilidade no emprego, a mudança freqüente das lideranças, entre outras variáveis, podem afetar muito o desempenho das equipes, algumas práticas podem ser determinantes para implementar a motivação e o senso de equipe. Não se pode falar em motivação, sem se falar da teoria da “hierarquia das necessidades”, formulada por Abraham Maslow (1908-1970) psicólogo americano, considerando o pai do humanismo na psicologia. De acordo com esta teoria, o ser humano possui diversas necessidades que podem ser separadas em categorias hierarquizadas. Para motivar uma pessoa, você deve identificar qual é a categoria mais baixa na qual ela tem uma necessidade, e suprir esta necessidade antes de pensar em outras categorias mais altas. Com o objetivo de poder ser melhor entendido, acessível e prático a quem se destina – o próprio MHMDI e as instâncias administrativas ao qual encontra-se vinculado - a “Proposta do Plano Estratégico e Museológico para o MHMDI” foi organizado na forma de uma Manual eletrônico disponibilizado em DVD. Partimos para um Projeto que pensasse a sustentabilidade não só na questão econômica, mas as questões sociais, ambientais e culturais, levando em consideração alguns aspectos fundamentais como a valorização da dignidade humana, a promoção da cidadania, o cumprimento da função social, a valorização e preservação do patrimônio cultural e ambiental, a universalidade do acesso, o respeito, a valorização à diversidade cultural e o intercâmbio institucional. Acreditamos que com esse trabalho estamos contribuindo, efetivamente, para que dentro de uma nova perspectiva de atuação, o Museu possa alcançar um patamar sustentável com o estabeleci81

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mento de uma nova postura, por parte dos públicos interno e externo, postura esta predominantemente prudente do ponto de vista ecológico, igualitária do ponto de vista social, viável do ponto de vista econômico e plural do ponto de vista político-cultural.

REFERÊNCIAS BARÇANTE, Luiz Cesar, CASTRO, Guilherme Caldas de. Ouvindo a voz do cliente interno. Rio de Janeiro: Qualitymark Ed., 1995. FERRELL, O.C. Estratégia de marketing. São Paulo: Atlas, 2000. OLIVIERI, Cristiane, NATALE, Edson. Instituições Culturais. In: Guia brasileiro de produção cultural 2010-2011. São Paulo: Edições SESC, 2010. VALENTE, Maria Esther. A conquista do caráter público do museu. In: GOUVÊA, Guaraciara et al.(Orgs.). Educação e museu: a construção social do caráter educativo dos museus de ciência. Rio de Janeiro: Access, 2003.

* Socióloga. Mestre em Memória Social e Bens Culturais (Unilasalle). Especialista em Organização de Arquivos para Centros de Documentação e Pesquisa pela USP (1997). Especialista em Museologia e Patrimônio Cultural pela UFRGS. (2003). Professora do Curso Técnico de Guia de Turismo – Faculdades SENAC/RS.

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PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO Luciano Alfonso *

Introdução A partir da leitura do material jornalístico sobre a Fundação Iberê Camargo - FIC1 - buscamos verificar a preponderância da utilização do fenômeno da personalização, evidenciando-se o funcionamento de um discurso que cria efeitos de sentido mais amplos a partir da notoriedade. Desde logo é necessário esclarecer que alguns autores2 utilizam a palavra personificação para abordar questões semelhantes a que vamos discutir aqui. No entanto apostamos no uso do termo personalização por entendermos mais adequado ao sentido do que é investigado no trabalho, ou seja, a questão de personalizar o discurso jornalístico, representar por meio de uma pessoa, pessoalizar. Personificação poderia remeter a sentidos mais abstratos ou psicológicos. A verificação da utilização do fenômeno da personalização no discurso sobre a Fundação cria efeitos de sentido mais amplos a partir da notoriedade e se dá a partir de alguns pressupostos, quais sejam: 1) o jornalismo é uma esfera do discurso com gêneros, onde o modelo é o da credibilidade; 2) o jornalismo cultural é um lugar especializado de construção de sentidos sobre a arte; 3) o museu é um ambiente físico e simbólico de importantes significados sobre a contemporaneidade; 4) o discurso é o resultado de estratégias narrativas. Assim, considerando que o jornalismo é um discurso que constrói sentidos sobre a cultura e também que a personalização é uma estratégia discursiva recorrente no jornalismo cultural, buscamos responder que sentidos contemporâneos são construídos sobre arte e sobre museu por meio desta estratégia. Por algumas das características, principalmente àquelas ligadas a arquitetura, a museologia e a economia da cultura, a consolidação de um projeto como a nova sede da Fundação, inaugurada em 2008, pode ser vista como um marco cultural em qualquer parte do mundo. A intenção preponderante do projeto institucional no entanto é reverenciar e salvaguardar a obra de um dos maiores nomes da arte brasileira do século XX, de acordo com a crítica especializada3. Pertencente à geração de pintores que despontou nos anos 40 no Brasil, Iberê Camargo foi pintor, gravador e desenhista. Nasceu em 1914 na cidade gaúcha de Restinga Seca e morreu, em 1994, em Porto Alegre. Viveu durante décadas no Rio de Janeiro para onde foi continuar os estudos de pintura em 1942, tendo aulas com mestres como Guignard (de onde surge o grupo com o mesmo nome) e Goeldi, sempre buscando superar o academicismo. No final da década vai estudar na Europa por dois anos com nomes como André Lothe, De Chirico e Carlo Petrucci. Participou ao longo da carreira de 1

http://www.iberecamargo.org.br Johan Galtung e Mari Holmboe Ruge (1999) em capítulo do livro organizado por Nelson Traquina “Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias” e, também, na obra de Cristina Ponte (2005) “Para entender as notícias: Linhas de análise do discurso jornalístico”. 3 O crítico Ronaldo Brito em livro organizado por Lima (2005) reúne três textos publicados por ele na imprensa brasileira entre os anos de 1987 e 1994, onde contextualiza a importância de Iberê Camargo na arte brasileira. 2

PERSONALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MUSEU CONTEMPORÂNEO

exposições nacionais e internacionais, sem nunca estar diretamente filiado a movimentos estéticos. A Fundação Iberê Camargo era um projeto tanto do artista que deu nome à instituição cultural como de sua viúva, Maria Coussiart Camargo. A FIC foi criada em outubro de 1995, pouco mais de um ano após a morte de Iberê, tendo o apoio do empresário do ramo do aço e colecionador de arte Jorge Gerdau Johannpeter. Hoje a instituição, com a nova sede inaugurada em 30 de maio de 2008, projetada pelo arquiteto português Álvaro Siza – agraciada com o Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, além de mérito especial da Trienal de Design de Milão –, é uma referência arquitetônica internacional em termos de museu, sendo capa e tema de reportagens em diversos países. O projeto foi premiado já em sua concepção e mostrou-se inovador, sob o ponto de vista da tecnologia utilizada. Neste prédio estão mais de 4.000 obras de Iberê Camargo, das mais 7.000 que produziu. A instituição funciona também e, principalmente, como um espaço de exposição e reflexão de arte contemporânea, aberta a atividades com outros acervos e artistas. O projeto da nova sede tornou-se viável através de uma parceria público-privado com aspectos de ineditismo na história cultural brasileira, onde além de um terreno doado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul houve a união de sete patrocinadores centrais4 para bancar o investimento. Para este trabalho, definimos os primeiros sete meses de 2008 como recorte temporal para coleta do material empírico por tratar-se de um momento significativo que abrange o período anterior e posterior à inauguração da nova sede da Fundação Iberê Camargo.

Jornalismo versus fato cultural versus sociedade O cerne desta pesquisa reside na compreensão de que o jornalismo exerce uma importante mediação entre o fato cultural e a sociedade. O que se esboça aqui é uma análise do discurso que circula nos jornais sobre a Fundação Iberê Camargo, focada no entendimento das perspectivas projetadas pelo jornalismo sobre a realidade cultural contemporânea, a estética e o sistema artístico-cultural. O jornalismo emerge de dois princípios de legitimação: o reconhecimento pelos pares e o reconhecimento pela maioria. Além disso, assim como o campo literário ou o campo artístico, o campo jornalístico é o lugar de uma lógica específica (BOURDIEU, 2006). E é a partir da compreensão dos modos de produção jornalística, de suas lógicas temporais e de suas funções sociais (FRANCISCATO, 2005) que se pode caracterizar o jornalismo tanto como atividade profissional quanto como instituição. A notícia ou a informação continua a ser o principal produto do jornalismo e resultado da mediação jornalística ativa, seja de um acontecimento ou de um personagem não-ficcional. É preciso, então, entender “as notícias como uma ‘construção’ social, o resultado de inúmeras interações entre diversos agentes sociais” (TRAQUINA, 2005). Este raciocínio objetiva enfatizar que esta pesquisa está inscrita no paradigma construcionista, que entende as notícias como construções, narrativas, “estórias”. Nele, o jornalismo é visto como produtor de um conhecimento particular sobre os fatos do 4

Grupo Gerdau, Petrobras, RGE, Vonpar, Itaú, De Lage Landen e Instituto Camargo Correa e R$ 40 milhões investidos no projeto: R$ 24,3 milhões (60,8%) através de leis de incentivo federal e estadual, e R$ 15,7 milhões (39,2%) dos patrocinadores (ARRUDA, 2008, p. D1 e D2).

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mundo, mas também como lugar de reprodução dos conhecimentos gerados por outras instituições sociais. O jornalismo conecta uma multiplicidade de vozes, sentidos e códigos diferenciados, os quais fazem, fizeram ou passarão a fazer parte do horizonte cultural em que o mesmo se constitui (GADINI, 2007). É neste espaço de construção social da realidade que o discurso jornalístico circula e desempenha suas funções. Conectado ao mundo, o produto jornalístico materializa uma variedade enorme de fenômenos, desenhando um mapa do universo social de onde são recortados os acontecimentos noticiados pela mídia. Já o jornalismo cultural, segundo Golin (GOLIN, 2010), este recorte genérico de cultura que é apropriado pelo jornalismo em produtos e cadernos especializados ancora-se no uso cotidiano do vocábulo relacionado à educação, à ilustração e ao refinamento, assim como de aptidões estéticas e intelectuais, insere-se num quadro mais amplo, que compreende o campo jornalístico como complexo e pleno de significados no que diz respeito à produção, à circulação e ao consumo de bens simbólicos. Ciente de que o jornalismo alicerça e constrói a memória simbólica, o jornalismo cultural é o local fértil para que tudo aquilo que tenha prestígio, ou capital simbólico acumulado, conquiste maior possibilidade de se tornar visível no sistema cultural. Apesar de ser perceptível uma ligação direta com a agenda do mercado na produção textual do jornalismo cultural contemporâneo, existem outras lógicas para a circulação de notícias. Uma de suas características, de acordo com Faro (apud GOLIN, 2009), seria abrigar o trânsito pela avaliação e análise da produção simbólica capaz de garantir aos periódicos a legitimidade interpretativa, a defesa do ideário de determinadas escolas e correntes de pensamento, tangenciando a esfera acadêmica, um universo geralmente constituído por suplementos de jornais diários ou revistas especializadas, constituindo-se naquilo que Faro chama de “plataforma interpretadora”. A complexidade tanto do campo da cultura como do jornalístico – que trabalha predominantemente sob a dinâmica mercadológica – cada vez mais exige clareza sobre os elementos utilizados pelo jornalismo para atuar em cada situação em particular. Entre esses recursos, é de grande pertinência e importância no contexto deste trabalho o tratamento dos fatos culturais a partir do sujeito, a personalização, aspecto que ganhou força ainda maior na pós-modernidade por meio da abordagem de assuntos sob o viés da autoria. A personalização se soma a outros elementos, como a predominância nos últimos anos do uso de imagens, pois, como afirma Golin (2010, p. 199), “uma boa visualidade passa a ser critério de seleção estratégico na editoria de cultura”. O fenômeno de personalização, segundo Tuchman (2005), é essencial ao processo de noticiabilidade. É através da personalização que a mídia busca atrair o público, pois de acordo com a socióloga norte-americana, os editores acreditam que os leitores se interessam por pessoas específicas em lugares específicos, com papéis específicos ou associados a tópicos específicos. Isso significa que a mídia acaba estabelecendo uma espécie de enquadramento onde existem limites de um consenso e de uma coerência no mundo social. Outros autores, Galtung e Ruge (1999), afirmam que fatores culturais influenciam a transição dos acontecimentos para notícias. Entre eles está a percepção do acontecimento em termos pessoais, a ação de indivíduos específicos. Esta personalização é resultado de um idealismo cultural; da necessidade de significado e consequentemente de identificação; do fator-frequência de 85

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fixação de pessoas na mídia em relação às estruturas; e de dar uma cara a apresentação das notícias ao invés de um corpo de entrevistados sobre uma determinada instituição. Este discurso jornalístico contribui para organizar a vida coletiva. No ato de discurso5 o jornalismo ocupa um lugar privilegiado de produção e circulação de valores e sentidos, por ancorar-se na noção de credibilidade – em princípio, e na moldura dos diversos discursos midiáticos possíveis. O relato jornalístico é aquele que busca mais se aproximar da verdade dos fatos, ou, pelo menos, o que tem esta aproximação como ideal normativo. O jornalismo transforma-se, assim, em um poderoso ambiente de análise sobre a cultura.

Cultura e Museu na Contemporaneidade O momento histórico presente trouxe a necessidade de atenção especial às mediações entre economia e a cultura. Já não cabe à cultura apenas um papel de significação na vida social; ela agora está além do social, num mapa de interdependências e equilíbrios de poder no campo social, como especificamente entre os especialistas de bens simbólicos que atuam próximos a especialistas econômicos e políticos. E é nesta complexidade das relações estabelecidas no mundo atual que se deve compreender o momento histórico e cultural em que surge, em Porto Alegre, a Fundação Iberê Camargo. É um contexto com feições globalizantes, onde modos de produção e circulação da arte também passam por profundas transformações, entre as quais a construção de grandes equipamentos culturais. Harvey (2008), utilizando Roland Barthes6 numa reflexão sobre arquitetura e comunicação, aponta que a cidade deve ser encarada como uma forma discursiva e, consequentemente, como uma linguagem, que nos cobra uma atenção ao que nos está sendo dito. Isto porque “absorvemos essas mensagens em meio a todas as outras múltiplas distrações da vida urbana” (HARVEY, 2008, P. 70). Este raciocínio serve de ponto de partida para delimitar como se configura o campo da arquitetura e do projeto urbano, a partir do pós-modernismo, onde o museu é um dos espaços mais emblemáticos desta cultura contemporânea. O museu como templo da arte é um conceito burguês sacralizado com o modernismo. O museu sempre foi um acontecimento político, por mais neutra e apoliticamente que se comporte (BELTING, 2006). Vistos como paradigma das atividades culturais contemporâneas, os tipos de museus são hoje quase ilimitados, o que justificaria que o termo seja usado “indistintamente para elementos de um conjunto heterogêneo formado por milhares de instituições espalhadas pelo mundo todo, que possuem ou não acervos próprios” (LARA FILHO, 2006, p. 10). Outro aspecto levantado por Belting é a politização do museu que parte, hoje, de grupos de interesses que atuam internacionalmente sob o conceito de “intercâmbio cultural”, uma espécie de disputa pelo reconhecimento com base em conceitos curatoriais, na maioria das vezes estabelecidos pelos próprios grupos de interesses. Huyssen (1997) investiga esta mania pelos museus surgida nos anos 80, que acabou por 5 Resultado da combinação das circunstâncias em que se fala ou escreve com a maneira pela qual se fala, numa imbricação de condições extradiscursivas e de realizações intradiscursivas que produz sentido. In CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006. 6 Escritor, crítico literário, sociólogo e filósofo francês (1915-1980), Barthes foi um crítico dos conceitos teóricos complexos que circularam dentro dos centros educativos franceses na década de 50.

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recolocar este espaço institucional como de uma verdade canônica e de uma cultura de autoridade. Suas conclusões apontam para três modelos explicativos. O primeiro, centrado na cultura como compensação, num historicismo expansivo da cultura contemporânea, uma espécie de obsessão pelo passado, que tem no pensamento de Hermann Lübbe sua matriz explicativa. Segundo o autor, “a modernização é acompanhada pela atrofia de tradições válidas, pela perda da racionalidade e pela entropia das últimas experiências estáveis e reais” (HUYSSEN, 1997, p. 239). Neste sentido, o museu compensaria a perda de estabilidade. O segundo modelo, defendido pelos franceses Jean Baudrillard e Henri Pierre Jeudy , fundamenta que a explosão de museus é uma “tentativa da cultura contemporânea de preservar, controlar e dominar o real com o intuito de esconder o fato de que o real está em agonia devido à expansão da simulação” (HUYSSEN, 1997, p. 245). Já o terceiro modelo é mais sociológico e crítico, que defende o surgimento de um novo estágio do capitalismo consumista. Segundo esse modelo, a televisão teria despertado na sociedade um desejo irrealizável de experiência e de acontecimentos que a musealização parece suprir – uma materialidade do artefato exibido que se opõe à imagem sempre fugaz na tela. Sperling (2005), ao abordar a cultura contemporânea, ressalta que a arquitetura de performance – como denomina a arquitetura dos museus contemporâneos – é uma espécie de “resolução apaziguadora das tensões existentes entre as premissas da arquitetura moderna e as proposições formuladas pela arquitetura pós-moderna”. Uma arquitetura eficaz para a produção de pequenas narrativas para a reprodução do capital.

Personalização como Estratégia Discursiva O percurso metodológico desta pesquisa é bastante longo e começa muito antes da definição do recorte temporal do corpus e do método de análise deste corpus. Havia diversas possibilidades de estudo da personalização como recurso discursivo. No entanto, foi a figura de Álvaro Siza que possibilitou ir ao cerne do que queríamos debater: as relações entre jornalismo, cultura, arte e museu. A proeminência adquirida pela arquitetura – ela mesma tomada como arte – no mundo contemporâneo é incorporada ao jornalismo cultural de tal modo, que articula noções também contemporâneas sobre o que seja a arte e o que seja o museu. O jornalismo transforma-se, assim, em um poderoso ambiente de análise sobre a cultura. Trabalhando o jornalismo como linguagem fizemos a escolha metodológica da Análise de Discurso (AD). Não apenas porque é um método que permite trabalhar com os significados, mas especialmente porque ele se inscreve na mesma raiz paradigmática do interacionismo que norteia nossa compreensão sobre o jornalismo. Essa relação fica explícita em Mariani (1999): Se as notícias publicadas trazem na sua constituição textual traços histórico-sociais, e isso faz parte dos processos de significação, é porque linguagem e história se constituem mutuamente e os sentidos precisam ser pensados na sua historicidade. Os sentidos não estão presos ao texto nem emanam do sujeito que lê, ao contrário eles resultam de um processo de inter-ação texto/leitor.

Benetti (2008) enfatiza que os discursos e seus modos de produção podem ser uma maneira de perceber uma sociedade. No entanto, lembra que estes registros devem ser ponderados de acordo

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com as formas sociais e históricas que em determinada época ou situação os tornaram possíveis. Este parâmetro de análise inclui o jornalismo e o debate sobre o contexto em que é produzido. Para se pensar o jornalismo como um gênero discursivo, a autora aposta no conceito de contrato de comunicação, sistematizado por Charaudeau, a partir de cinco elementos essenciais que devem ser associados às regras do campo jornalístico. “O contrato de comunicação assenta-se sobre a compreensão dos elementos que constituem um quadro de referência, a moldura onde o discurso acontecerá”, explica Benetti (2008, p. 39). Sobre os elementos fundamentais são eles: [...] “quem diz e para quem”, “para quê se diz”, “o que se diz”, “em que condições se diz” e “como se diz”. Todos estes elementos se misturam em um conjunto que só é possível dividir sob o aspecto metódico, mas jamais processual. Para pensar o gênero jornalístico, é preciso considerar a totalidade desses elementos”.

O fato de o discurso ser construído de forma intersubjetiva – ele só existe em um espaço entre sujeitos – exige compreendê-lo como histórico e subordinado aos enquadramentos sociais e culturais. Este dizer e este interpretar são movimentos de construção de sentidos. Assim, na análise do discurso jornalístico é necessário perceber o texto como decorrente de um movimento de força exterior e anterior. Se, então, a notícia é entendida como um processo de construção de um acontecimento por meio da linguagem: Cabe ao jornalista/enunciador ir ao já acontecido para produzir a notícia, mediando, assim, os interesses sociais e construindo, pela enunciação, sentidos. Sentidos de vida, de trabalho, de conflito, de política; fazendo ideologia e mesclando temporalidades (BENETTI, 2008, p.10)

Berger (1996) faz uso das noções bourdianas de campo, capital e capital simbólico para demonstrar o poder do jornalismo enquanto discurso. É preciso reconhecer o capital simbólico deste campo, que tem “poder de fazer coisas com palavras”, segundo o próprio Bourdieu. Com a credibilidade como seu mais importante capital, o jornalismo detém privilegiadamente o capital simbólico na medida em que é da natureza deste campo fazer crer. Esta credibilidade provém da compreensão social de que o jornalismo é uma prática autorizada a narrar a realidade. Compreendido isto, se pode afirmar que a realidade é constituída por aquilo que se torna visível através da mídia. Esta função simbólica, com efeitos normativos, é praticada pela mídia como um todo e pelo discurso jornalístico em particular. De outra maneira, o que interessa, à Análise de Discurso, é compreender o funcionamento de um discurso, ou como este discurso significa. E é exatamente o que buscamos fazer aqui: mais do que simplesmente localizar os sentidos, desvendar uma estratégia discursiva. A estratégia discursiva, porém, não é evidente. Ela está recoberta pelos sentidos, e é preciso vasculhar o discurso para trazê-la à luz. Podemos ver uma estratégia por sua recorrência, pelo procedimento analítico que, em AD, denominamos paráfrase. A paráfrase é a reiteração do mesmo. Um sentido pode ser expresso por diferentes palavras em diferentes textos, pode ser enunciado por diferentes sujeitos e inscrito em diferentes temporalidades. Ainda assim, ele pode ser repetido, reiterado, reafirmado de forma incessante. É essa dispersão, ao longo de textos, termos e temporalidades, que constitui a densidade e a força de permanência deste sentido.

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Para este trabalho, mobilizamos dois conceitos importantes da AD: formações discursivas e paráfrase. Como mostraremos a leitura dos textos apontou que o personagem Siza ancora sentidos mais amplos sobre arte e sobre museu. Acreditamos que estas Formações Discursivas (FDs) podem ser encontradas em outros objetos empíricos que tratem do mesmo tema, por meio da personalização mobilizada por outro personagem. Foi a terceira seleção de textos que constituiu nosso corpus consolidado, que numeramos – para fins de sistematização do método – como Texto 1 a Texto 11. Trazemos, a seguir, os resultados da análise. Optamos por apresentá-los organizados segundo as formações discursivas predominantes, citando exemplos dos sentidos que localizamos. Assim, os trechos que ilustram o relato estão sempre indicados com o número do texto [T1, T2 etc.] que lhe corresponde e com o número da sequencia discursiva [SD1, SD2 etc.] que lhe conferimos no processo da análise. Por fim, salientamos com negrito as marcas discursivas que permitiam, em nossa leitura, a filiação daquela sequencia discursiva à formação discursiva em análise.

A Personalização cria sentidos sobre a Arte “Fazer época é impor sua marca”, diz Pierre Bourdieu (2006, p. 88), em certa altura do ensaio A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Lá, também, ele enfatiza que [...] as palavras, nomes de escolas ou de grupos, nomes próprios, só têm tanta importância porque eles fazem as coisas: como sinais distintivos, eles produzem a existência em um universo em que existir é diferir, “fazer-se um nome”, um nome próprio ou nome comum (a um grupo).

Este discurso desmistificado do pensador francês com relação aos campos sociais se mostra mais claro se compreendermos o processo histórico de constituição desta crença, como veremos a seguir. O entendimento deste universo é essencial para que as categorias elencadas do artista, do estrangeiro, do profissional e do humano, através da personalização em Siza, possam ser mais bem visualizadas. Essas quatro categorias são as formações discursivas hegemônicas, as formações que ancoram os sentidos mais gerais sobre arte no discurso jornalístico que estamos analisando. Inicialmente podemos demonstrar como se estrutura a formação discursiva do artista. Nos textos jornalísticos que analisamos os sentidos que consolidam esta formação mostram Siza como criador, genial, canônico, autoral e detentor de um estilo próprio. É possível observar como esses sentidos nos remetem a aspectos relacionados a um ideal romântico. Por outro lado, cada projeto do arquiteto-artista que é o Siza traz uma coisa particular, individual e escultórica que não se repete e nem se reinventa. [T3, SD39] A primeira obra de Siza no Brasil é um salto na internacionalização. A obra-prima, inesperada e jovem, é um museu em Porto Alegre. [T10, SD 96] Por entre os 1200 convidados para a inauguração da obra que arrancou em 2003, está Rômulo Afonso. O estudante de Arquitetura em São Paulo quis ver a obra “de um gênio”. “É único, é histórico. Siza Vieira está ao nível de Niemeyer, é um mito”, contou. [T10, SD102]

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Observamos também a construção do sentido do cânone, do produtor de um modelo de beleza arquitetônica ou valor artístico, aquele que detém uma autoridade, uma assinatura, como diz Bourdieu (2006, p. 28), que “não é outra coisa senão o poder, reconhecido a alguns, de mobilizar a energia simbólica produzida pelo funcionamento de todo o campo”. De fato, o edifício concebido por Álvaro Siza para a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, apresenta qualidades muito altas. Sutileza, sentido plástico dos interiores, silêncio que se associa à calma da formas, acabamento admirável, iluminação neutra, desenho cuidado de cada detalhe. [T4, SD41] La nueva sede de La Fundación Ibere Camargo pretende ser, según Siza, “casi una escultura del expresionismo, con luz, textura, mucho movimiento y con el espacio cuidadosamente explotado para enriquecer más el contacto con el trabajo del maestro”. 7 [T9 SD85]

A segunda formação discursiva que sobressai nos textos jornalísticos analisados é aquela que traz Siza a partir da identidade portuguesa ou como um arquiteto internacional. O estrangeiro. A imagem do estrangeiro ou do sujeito que transita entre várias nações, o internacional, já nos foi traçada principalmente pela literatura e, na contemporaneidade, em grande parte nos é formatada pelo jornalismo ou pelos meios de comunicação. A soma histórica desta identidade agregada a novas impressões oferecidas no dia-a-dia em cada cultura nos permite a reprodução de estereótipos sobre como é ser brasileiro, português, francês e assim por diante. No jornalismo, é comum que a origem de um personagem ajude a identificá-lo. No caso dos textos sobre a Fundação Iberê Camargo, porém, vemos a presença constante desta adjetivação, nem sempre necessária. É dentro desta perspectiva identitária que observamos os sentidos sobre o estrangeiro, como nos exemplos a seguir: Fundação dedicada a divulgar e preservar a obra do pintor brasileiro ganha sede em Porto Alegre, projetada pelo premiado arquiteto português Álvaro Siza. [T1, SD1] Percebemos, então, que era preciso buscar um arquiteto com experiência internacional na elaboração de um museu, com conhecimento da melhor tecnologia de preservação e exposição. [T2, SD15]

Também é possível pensar a identidade como uma relação social que, como diz Silva (2000), está sujeita a relações de poder e força: Vencedor do Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, é tido, já há algum tempo, como um grande projeto do português Álvaro Siza. [T2, SD19] A presença de um arquiteto internacional de prestígio como Álvaro Siza no meio brasileiro, muito fechado sobre si, é ruptura importante, estimulante e positiva. [T4, SD40]

Como parte da estratégia de personalização, uma formação discursiva hegemônica é a que constrói sentidos em torno da competência do profissional. Nessa formação, destaca-se a noção do arquiteto fartamente premiado. Vejamos, a seguir, como é perceptível, em sequencias discursivas, o sentido dado ao papel de 7

A nova sede da Fundação Iberê Camargo pretende ser, segundo Siza, “quase uma escultura do expressionismo, com luz, textura, muito movimento e com o espaço cuidadosamente explorado para enriquecer mais o contato com o trabalho do mestre”. [tradução nossa]

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Siza como arquiteto singular, distinto, muito acima da média dos profissionais do campo e capaz de idealizar projetos singulares: Avesso a exibicionismos tecnológicos e preocupado em dialogar com os diversos contextos nos quais as suas obras se implantam (as peculiaridades do terreno, a tradição construtiva local, a história), Siza é considerado o expoente destacado de uma corrente que se chamou de “regionalismo crítico”. Corrente de arquitetos empenhados em recuperar tradições culturais locais e idiossincráticas – normalmente artesanais -, ameaçadas de desaparecimento pelo impacto de uma globalização niveladora. Suas intervenções, portanto, são discretas e respeitosas. [T2, SD20] El arquitecto portugués Álvaro Siza es todo un referente.8 [T11, SD116]

A seguir, trazemos exemplos de sequencias discursivas que enaltecem as qualidades do profissional Álvaro Siza, algumas com sentidos específicos, como as que se referem à experiência como arquiteto de museus: Antes da primeira lista de arquitetos, uma pessoa do conselho da fundação sugeriu o nome do brasileiro Oscar Niemeyer, mas como diz Justo Werlang, mais de uma década atrás a idéia era chamar um profissional que tivesse experiência ampla com construções de museus, o que não ocorria na cena brasileira. [T1, SD5] O arquiteto português venceu a competição e recebeu total apoio da viúva do artista, a presidente de honra da Fundação Iberê Camargo, Maria Coussirat Camargo. Os projetos do Museu de Arte Contemporânea de Santiago de Compostela, na Espanha, e o Museu de Serralves no Porto, em Portugal, credenciaram-no para tal missão, mas ele releva jamais ter conhecido os trabalhos dos outros concorrentes da competição. [T3, SD31]

O desempenho profissional de Siza dá sentido ao reconhecimento de seus pares, assim como lhe confere um estilo peculiar, enaltecido e caracterizado nos textos jornalísticos, como no exemplo: Pero el concepto y la estética de la obra no solo respetan las bases del movimiento, también refleja la marca de Siza. Por ejemplo, la textura y la imagen dinámica se parecen a las del Museo Serralves em Oporto, y al Centro Gallego de Arte Contemporánea en Santiago de Compostela.9 [T9, SD86]

Além dos sentidos produzidos a partir do profissional Álvaro Siza, há outras características e fases da rotina de trabalho do arquiteto que estão presentes em praticamente todos os textos examinados, retratando-o positivamente. São peculiaridades que vão além da figura do arquiteto, chegando a algo mais essencial como indivíduo obsessivo, detalhista, minucioso e centralizador: Álvaro Siza cuidou de todos os detalhes do projeto, até mesmo desenhou o mobiliário da sede da Fundação Iberê Camargo. [T1, SD6] Outro motivo de “pânico” era a presença constante de Siza na construção, materializada no desenho de cada detalhe. “Ele traçou até os encaixes das pedras”, diz o engenheiro. Mas, como salienta Canal, a harmonia entre projeto e obra, entre equipe e projetista, entre cliente e executor acabou acontecendo. [T7, SD70]

Os textos também conferem exclusivamente a Siza todas as atividades de criação do novo prédio da FIC, construindo um discurso que relata praticamente todos os processos do projeto da 8

O arquiteto português Álvaro Siza é uma referência completa. [tradução nossa] Mas o conceito e estética da obra só respeitam as bases do movimento, também reflete a marca Siza. Por exemplo, textura e imagem dinâmica semelhante ao Museu de Serralves em Porto, e o Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Compostela. [tradução nossa] 9

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Fundação unicamente a partir do arquiteto, personalizado, como se pode observar nestas sequencias discursivas: Como a obra de Iberê Camargo é extensa e variada, Siza Vieira pensou em um espaço que possibilitasse mostras de diferentes abordagens. O arquiteto optou por flexibilidade de uso, sem diferenciar os ambientes destinados a exposições temporárias e permanentes. [T3, SD33] Seguindo o modelo do Guggenheim de Wright, Siza Vieira lançou mão de um sistema de rampas contínuas que percorre o volume de cima a baixo. [T3, SD35]

A última formação discursiva hegemônica que localizamos neste quadro em que a personalização serve de veículo de construção de sentidos para a arte, é a centralização na figura humana. O arquiteto é retratado como um sujeito de sua época, preocupado com questões que dizem respeito ao multiculturalismo, ao meio ambiente e, também, avesso à notoriedade, simples no jeito de ser e agir. O aspecto humano pode ser observado nas sequencias discursivas que seguem: A proposta de Siza respeitou a paisagem, conquistando gaúchos e agregados. [T3, SD34] Desde 1975 hasta hoy, sus proyectos se han mostrado en instituciones de arte del mundo entero y su trayectoria ha sido reconocida y premiada en numerosas ocasiones. En Porto Alegre, ciudad que acoge uno de sus últimos proyectos – la Fundação Iberê Camargo -, nos encontramos con el arquitecto portugués. Amable, conversador, con un discurso pausado y nada teorizante, mezcla crítica y amenidad, e inspira complicidad con sus palabras.10 [T8, SD 80]

A Personalização cria sentidos sobre o Museu Agora refletimos sobre a estratégia discursiva de personalização – novamente a partir da ancoragem em Siza – para criar sentidos não sobre o personagem, e sim sobre o museu. Percebe-se que a maioria das sequencias discursivas surge numa projeção do autor pela obra e vice-versa. O final do século XX marca o retorno do museu como instituição de uma verdade canônica e de uma cultura da autoridade. Esta aura que a arte traz consigo também tem sido levada em conta no planejamento de novos museus, principalmente daqueles edifícios assinados por grandes arquitetos. A chamada arquitetura de marca agrega autenticidade, singularidade e outras distinções. Assim, uma instituição cultural como a Fundação Iberê Camargo, idealizada por um arquiteto com a marca da distinção como Álvaro Siza, eleva o capital simbólico da sociedade porto-alegrense, do Estado e mesmo do país, além de aumentar marcos de distinção já existentes. Nossa análise localizou 15 sequencias discursivas sobre o museu. Duas formações podem ser percebidas mais claramente: a que cria sentidos sobre o museu-edifício como uma verdadeira obra de arte e a que vê ligações entre a edificação e o contexto social, numa dinâmica de organicidade. As seções a seguir apresentam estas formações. O espaço da arquitetura com frequência acaba tendo uma inter-relação com o da arte. 10

Desde 1975 até hoje, seus projetos têm sido mostrados em instituições de arte em todo o mundo e sua carreira tem sido reconhecida e premiada diversas vezes. Em Porto Alegre, uma cidade que hospeda um dos seus mais recentes projetos - a Fundação Iberê Camargo encontramos com o arquiteto português. Amável, conversador, com um discurso pausado e nada teorizante, mistura crítica e amenidade, e inspira cumplicidade com suas palavras. [tradução nossa]

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A intenção de desfrutar da experiência estética, a partir da arquitetura do museu, tão presente nas últimas décadas, pode ser percebida em sequencias discursivas a seguir: Na Avenida Padre Cacique, em Porto Alegre, às margens do Rio Guaíba, a sede é o primeiro projeto de Siza no Brasil. A geometria irregular marcante é desafiadora e ao mesmo tempo fluida, sua organização de planos e linhas curvas e angulares, exalam pitadas de diferentes influências: Frank Lloyd Wright, Mies Van der Rohe e Le Corbusier [T5, SD44]. Marco, fortaleza, passadiço, recipiente, mirante, máquina de contemplação e transformação, dispositivo de meditação e mediação, o museu de Siza vivifica a interação de cidade e geografia – enquanto reafirma o valor da tradição arquitetônica culta, com nada de saudade e carradas de caráter. Penhorada, a cidade já sorri [T7, SD74].

Outra característica observada em boa parte dos projetos de novos museus, mundo afora, é pensá-los a partir de um todo social ou da natureza em especial. A relação dialética com a natureza parte da ideia de que os edifícios influenciam profundamente as pessoas que neles residem ou trabalham, sendo o arquiteto um agente social que modela os indivíduos. Esta linha de pensamento ou atuação de Siza é perceptível em diversas sequencias discursivas analisadas, como algumas que listamos a seguir: O prédio se insere numa encosta exuberante, que não devia ser tocada pela construção. Há um diálogo entre a natureza e a construção, que se relacionam mas não se tocam [T1, SD11]. En su primera obra en Brasil, Siza construyó sobre una colina pero, en lugar de sacar más volúmenes sobre la montaña, ubicó parte del edificio bajo tierra11 [T9, SD90].

Considerações Finais Independentemente de qualquer julgamento já feito ou que venha a ocorrer sobre as qualidades da produção artística de Iberê, a universalidade almejada pelo artista vem se consolidando, principalmente através do jornalismo. Não apenas a partir de suas obras, mas muito através da emblemática edificação da nova sede da Fundação Iberê Camargo, projetada pelo arquiteto português Álvaro Siza, e do discurso jornalístico em torno dela. Não se trata apenas da concretização de um sonho do artista em preservar sua produção ou de mais um exemplo bem-sucedido de construção. Por diversos aspectos que levantamos neste trabalho, como valor simbólico, ineditismo e viabilidade econômica do projeto – e outros aqui não estudados – a viabilização de um edifício-museu dentro dos moldes idealizados por nosso mundo globalizado é vista como um acontecimento cultural ao sul do Equador. A partir desses pressupostos, a nossa proposta de análise se inseriu dentro do processo complexo de que é feita a vida urbana na sociedade da pós-modernidade e que a cada dia necessita de mais estudos na busca de interpretá-la melhor. No caso do projeto e edificação da nova sede da Fundação Iberê Camargo e no período que examinamos o fenômeno da personalização no jornalismo impresso, ela se dá, majoritariamente, sob a imagem de Siza. Um processo que nos fez refletir também sobre outros personagens envolvidos que 11

Em sua primeira obra no Brasil, Siza construiu sobre uma colina, mas em lugar de tirar mais volumes sobre a montanha, pôs parte do edifício embaixo da terra. [tradução nossa]

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foram deixados à margem ou esquecidos, como, por exemplo, outros arquitetos capazes de idealizar obra semelhante à de Siza, patrocinadores e seus interesses na FIC, assim como dar voz a outros representantes ligados a aspectos determinantes do novo equipamento cultural tanto da cidade de Porto Alegre, como do Brasil ou mesmo do sistema de arte como um todo. Personalizando o discurso jornalístico acabamos por ter uma opinião focada, uma espécie de porta-voz da fala sobre determinado tema. Trabalhando por meio da autoria, o jornalismo cultural une obra e artista como algo inseparável. Este discurso é seletivo nos fatos e organizador do pensamento social, por isto a tentativa foi de compreendê-lo no contexto histórico e a partir de enquadramentos sociais e culturais por que passa em nossos dias. Assim, entendemos que tornamos mais evidente que a realidade na maioria das situações é constituída por aquilo que se torna visível através da mídia ou destacado por ela. Ou seja, dando grande visibilidade a determinados fatos ou pessoas, o jornalismo se mostra como um elemento criador importante do campo cultural na contemporaneidade, embora se saiba que este perpassa outros campos da vida social. Através das análises realizadas concluímos que a personalização constrói formações discursivas predominantes sobre arte e museu. Sobre arte, quatro sentidos são destacados: o sentido do “artista” que consolida Siza como criador, genial, canônico, autoral e detentor de um estilo próprio, resultado de gestos individuais e solitários; “o estrangeiro”, uma identidade que permite a reprodução de estereótipos sobre como é ser português no caso do arquiteto, agregando valores positivos que passam pela supremacia cultural, numa visão eurocêntrica que provoca sedução, veneração e respeito; “o profissional”, sentido dado ao papel de Siza como de arquiteto distinto, muito acima da média dos profissionais do campo e capaz de idealizar projetos singulares; e “o humano”, onde Siza é retratado de maneira quase que inversa a todo o restante do discurso proposto, uma visão de um sujeito avesso à notoriedade, próximo a qualquer indivíduo. Chegamos também às formações discursivas hegemônicas a outros dois sentidos predominantes relacionados à imagem de museu: o museu como espaço, visto sob a ótica da arquitetura como uma “obra de arte”, uma experiência estética; e o museu “orgânico” , que estabelece sentidos de integração entre o ambiente e a arquitetura, numa visão mais humanizada e que leva em conta, por exemplo, conquistas tecnológicas. Constatadas estas formações discursivas hegemônicas é possível reafirmar que o jornalismo prefere cada vez mais, ao invés de abordar os acontecimentos como o resultado de determinadas forças sociais, utilizar-se da ideia da personalização. Se por um lado facilita o trabalho jornalístico no sentido prático de coleta e apresentação de uma notícia, por outro lado os argumentos referentes ao todo quase sempre se perdem. Na maioria dos casos uma interpretação mais estrutural da sociedade ou do tema acaba por não ocorrer.

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Luciano Alfonso *. Doutorando em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010).

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CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL.

Rosângela Fachel de Medeiros *

Ao falarmos em Cinemas do Mercosul estamos identificando as produções cinematográficas da região a partir do reconhecimento de um acordo geopolítico e econômico, o Tratado de Assunção, firmado em 1991, que criou o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL. Proposta de integração econômica entre os países do sul: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que tem como propósito “promover o desenvolvimento cientifico e tecnológico dos Estados Partes e de modernizar suas economias para ampliar a oferta e a qualidade dos bens de serviço disponíveis, a fim de melhorar as condições de vida de seus habitantes”.1 E ao declaramos a existência de Cinemas Mercosulinos estamos participando na instituição de uma auto-representação simbólica da região e na geração de um sentimento de pertencimento regional. Pois o cinema, enquanto constructo cultural, que se constitui na articulação entre o hollywoodiano (popular) e o artístico, o comercial e o cultural, o global e o local, o nacional e o transnacional, pode ser ao mesmo tempo ferramenta e resultado da integração econômica, política e cultural da região. E o desejo de desenvolver e promover a produção cinematográfica do Mercosul está arraigado a questões econômico-culturais que visam propiciar a estes cinemas condições de enfrentar a hegemonia hollywoodiana que domina as salas de exibição da região e que, por conseguinte, colonizam o imaginário dos espectadores mercosulinos. Neste contexto, são reconhecidos como Cinemas do Mercosul aqueles produzidos pelos países Membros: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela; e países Associados: Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Os cinemas mercosulinos abarcam então os cinemas nacionais e transnacionais da região e estão também abarcados no âmbito dos cinemas americanos, latino-americanos, sul-americanos e ibero-americanos. Estes cinemas articulam assim várias instâncias políticas, econômicas, culturais e identitárias (nacionais, regionais, lingüísticas) sendo por essência híbridos e transculturais.2 E esta autoafirmação mercosulina instaura uma nova condição identitária forjada a partir de um contexto econômico e político que reconstrói o local e esvaecesse as fronteiras nacionais, tornando-as espaços permeáveis e de convívio, que se expandem pelos territórios nacionais. As questões culturais estiveram por muito tempo à margem nas discussões mercosulinas apesar da existência de ações nessa direção. Já em 1992, foi criada a Reunião Especializada em Cultura para promover a difusão da cultura dos Estados Parte, a qual foi substituída, em 1995, pela Reunião de 1

Tratado de Assunção. Disponível em: . Acessado em 14 setembro 2012. 2 Sobre a questão da transculturação nos Cinemas do Mercosul proponho a leitura de meu artigo “A transculturação como estética dos Cinemas Latino-americanos”. MEDEIROS, Rosângela Fachel de. “A transculturação como estética dos Cinemas Latino-americanos”. In: Imagofagia. Nº. 6. Argentina, 2012. Disponível em: http://www.asaeca.org/imagofagia/ sitio/index.php?option=com_content&view=article&id=240%3Aa-transculturacao-como-estetica-dos-cinemas-latino-am ericanos&catid=48&Itemid=132>. Acessado em: 20 outubro 2012.

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Ministros e Responsáveis de Cultura. E, ainda em 1995, na reunião de Buenos Aires fez-se referencia pela primeira vez ao “MERCOSUL Cultural”, dando visibilidades à dimensão cultural dos processos de integração, mas ainda sem o objetivo de constituir uma identidade regional mercosulina. Em 1996, foi criado o Parlamento Cultural do MERCOSUL (PARCUM) com o objetivo de compatibilizar as legislações culturais dos países, visando a livre circulação de bens e serviços culturais, a proteção e difusão do patrimônio cultural, a promoção e consolidação das indústrias culturais e a implicação dos meios de comunicação para a difusão da cultura do MERCOSUL. Neste mesmo ano foi criado o “Selo MERCOSUL Cultural” e foi assinado o Protocolo de Integração Cultural do MERCOSUL com o intuito de que o processo de integração transcendesse o âmbito comercial, objetivando fomentar a criação de espaços culturais e priorizando às coproduções de ações culturais. Pois como diz o acordo: la cultura constituye un elemento primordial de los procesos de integración, y (…) la cooperación y el intercambio cultural generan nuevos fenómenos y realidades.3 Mas apesar destas propostas de cooperação no âmbito cultural poucas ações foram efetivamente implementadas. Em contrapartida, muitos agentes não-governamentais têm desenvolvido importantes projetos culturais que fomentam o conhecimento cultural mútuo e o diálogo de seus cidadãos, estreitando assim as relações entre os países vizinhos como, por exemplo: a Bienal do MERCOSUL (criada em 1997), a Rede das Mercocidades (criada em 1995), a Associação de Universidades do Grupo Montevidéu – AUGM (fundada em 1991), o Programa DocTv Iberoamérica (criado em 1998) e o Porto Alegre em Cena (criado em 1994). Percebe-se assim que muito da integração cultural do MERCOSUL decorre destas ações como destaca Escobar: En efecto, desde casi enseguida después de firmado el Tratado de Asunción en marzo de 1991, instituciones no gubernamentales de diferentes características, así como artistas e intelectuales, comenzaron a organizar, usando el membrete del MERCOSUR, tareas puntuales de intercambio cultural: exposiciones de arte, festivales y encuentros, debates, seminarios y publicaciones. Aunque realizadas al margen de un programa común que los vértebra en objetivos coordinados, estos quehaceres dispersos fueron entretejiendo redes e instalando circuitos que ocupaban el espacio semivacío asignado a la cultura y lo llenaban de ecos y de espesores. Superpuestas aquellas retículas e interconectados estos circuitos, ambos generan entramados que podrían sostener el peso de los proyectos oficiales y de enlazarlos con las expectativas civiles (ESCOBAR, 2006).4

E mesmo que relações econômicas sempre acarretem intercâmbios culturais, foi apenas no final dos anos 1990 que a cultura tornou-se objeto de discussão no Bloco, como destaca Octavio Getino: En la mayoría de los esquemas subregionales de integración, la dimensión cultural, aun que ella esté formalmente presente, se halla lejos de ocupar un lugar destacado en las agendas de negociación de los gobiernos, y las políticas culturales han provocado jerarquizado tradicionalmente sólo algunas expresiones artísticas o folklóricas (...) mientras han dejado casi siempre de lado las manifestaciones relacionadas con los medios de comunicación y las industrias culturales, es decir, con aquellos campos de la cultura que más han contribuido a la intercomunicación y al conocimiento de los

3

Protocolo de Integración Cultural del Mercosur. Disponível em: . Acessado em: 14 setembro 2012. 4 ESCOBAR, Ticio. “15 Años del Mercosur: el debe y el haber de lo cultural”. In: BARBOSA, Rubens António (org.). Mercosul quinze años. Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, 2007, págs. 1-15 2006. Disponível em: http:// www.memorial.sp.gov.br/memorial/outros/TextoMercosul-TicioEscobar.doc>. Acesso em: 24 junho 2007.

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diversos imaginarios colectivos (GETINO, 2005).5

Na primeira década de existência do Mercosul as questões relacionadas às produções audiovisuais estavam incluídas nas disposições gerais para as questões culturais. Mas a ideia de dar visibilidade aos Cinemas Mercosulinos e discutir as políticas para o desenvolvimento do setor na região já se faziam presentes e deram origem no Brasil ao Cinesul, em 1994, e ao Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM), uma combinação de festival e fórum, em 1997. E, dois anos após, em 1999, foi criado em Montevidéu o Mercocine, primeiro festival de cinema da região que teve apenas duas edições, mas que, de certa forma, teve sua proposta incorporada pelo Festival Internacional de Cinema de Punta del Este. No mesmo ano, o “Simpósio Cinema e Vídeo no Mercosul Cultural: a integração pela imagem” discutiu: a necessidade de regulamentação da livre circulação de bens e serviços voltados para o setor; a formação de um fundo para a realização de coproduções; a criação de incentivos à distribuição e o estímulo aos exibidores para a projeção dos filmes nascidos neste contexto. Em 2000, foi criada a Asociación de Productores Audiovisuales del Mercosur (APAM) e foi firmado o Acordo de Integração Cultural entre Argentina e Brasil. E a criação da Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) no Brasil, em 2001, deu novo impulso à produção regional, tendo como principais metas estimular a produção e outros elos da cadeia do setor audiovisual, atuando em duas vertentes: o fomento indireto (através das leis de incentivo fiscal) e o fomento direto (através de editais públicos).6 Em 2003, alicerçado nas ideias do Tratado de Assunção, do Protocolo de Ouro Preto, do Protocolo de Integración Cultural del Mercosur, do Protocolo de Montevideo sobre Comercio de Servicios e das Decisiones del Consejo del Mercado Común, o Grupo del Mercado Común (órgão executivo do Mercosul) criou a Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur (RECAM)7 para incentivar a integração das indústrias cinematográficas e audiovisuais da região a partir da constatação da importância de fortalecer o setor enquanto um instrumento capaz de propiciar a difusão do processo de integração regional: con la finalidad de analizar, desarrollar e implementar mecanismos destinados a promover la complementación e integración de dichas industrias en la región, la armonización de políticas públicas del sector, la promoción de la libre circulación de bienes y servicios cinematográficos en la región y la armonización de los aspectos legislativos.8

Norteada pelos princípios de reciprocidade, complementaridade e solidariedade, a RECAM almeja: adotar medidas concretas para a integração e complementação das indústrias cinematográficas e audiovisuais da região; reduzir as assimetrias que afetam o setor, impulsionando programas específicos que favoreçam os países de menor desenvolvimento na área; harmonizar as políticas públicas e os aspectos legislativos do setor; impulsionar a livre circulação de bens e serviços cinematográficos e audiovisuais; implementar políticas para a defesa da diversidade e da identidade cultural dos povos 5

GETINO, Octavio. Aproximación al mercado cinematográfco del Mercosur. Período 2002-2005. 2005. Disponível em: < http://www.recam.org/Estudios/mercado_intra_completo.doc>. Acesso em: 21 junho 2007. 6 Os incentivos mais significativos advêm da Lei do Audiovisual (Lei 8.698/93, modificado pela MP 2228/01), que permite às pessoas físicas e jurídicas investirem até 3% do Imposto de Renda como despesa dedutível, até um limite de R$3milhoes em cada projeto. Além disso, o Artigo 3 da Lei permite que distribuidores de filmes estrangeiros no Brasil invistam em projetos de filmes brasileiros autorizados até 70% do imposto retido na fonte devido, calculado nas remessas de royalties derivadas da distribuição de filmes estrangeiros. 7 Todos os documentos referentes à criação da RECAM, bem como aos acordos firmados através dela podem ser consultados no site: 8 Reunión Especializada de Autoridades cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur. Disponível em:< http://www. recam.org/_files/documents/gmc_resol_creacionrecam.pdf>. Acessado em: 155 setembro 2012.

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da região; trabalhar em favor da redistribuição do mercado cinematográfico que garanta condições de equidade para as produções nacionais e seu acesso ao mercado; garantir o direito do espectador a uma pluralidade de opções que incluam especialmente expressões culturais e audiovisuais do Mercosul. A Secretaria Técnica da RECAM está sediada no Edifício Mercosul na cidade de Montevidéu, Uruguai. São membros plenos da RECAM: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; são membros associados: Bolívia, Chile, Peru e Equador, e a Venezuela está em processo de adesão. Porém cada um dos países possui aporte próprio para seu funcionamento através de entidades nacionais que participam como autoridades da RECAM: no Brasil – ANCINE (Agência Nacional de Cinema); na Argentina – INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales); no Uruguai – ICAU (Instituto del Cine y el Audiovisual del Uruguay); na Venezuela – CNAC (Centro Nacional Autónomo de Cinematografía de Venezuela) e a Distribuidora Nacional de Cine Amazonia Films; na Bolívia – CONACINE (Consejo Nacional de Cine); no Chile – Consejo Nacional de Cultura y Artes; no Equador – CNCINE (Consejo Nacional de Cinematografía de Ecuador); no Paraguai a produção audiovisual está a cargo da Dirección de Industrias Culturales Secretaría Nacional de Cultura, uma vez que ao contrário dos demais países, o Paraguai ainda não possui um órgão específico para a questão. E para promover a circulação intra-regional dos filmes produzidos por países do Mercosul, a RECAM idealizou uma política de fomento à circulação de filmes mercosulinos não nacionais nos cinemas de países da região. Brasil e Argentina, por serem os maiores produtores cinematográficos da região e, por conseguinte, os mercados mais importantes, foram escolhidos para firmar o primeiro acordo de codistribuição da região em 2003. O acordo objetivava estimular, através de apoio financeiro e institucional, a difusão de obras cinematográficas brasileiras na Argentina e de obras argentinas no Brasil, contribuindo assim para a integração cultural entre os dois países. Os subsídios se destinavam a cobrir parte dos custos com cópias, legendagem e translado das cópias, bem como parte dos custos com promoção e divulgação. Cada um dos países ficava responsável pela seleção e indicação de possíveis filmes a serem distribuídos no país vizinho. No entanto, o acordo não funcionou da maneira esperada, tendo êxito no território brasileiro, mas não no território argentino. Problemas com a entrada das cópias, com os prazos de pagamentos e com o lançamento concomitante das obras na televisão fizeram com que os distribuidores de obras brasileiras desistissem de participar dessa iniciativa e a mesma fosse suspensa. Durante a III Reunião do RECAM, em 2004, foi criado o Observatorio Mercosur Audiovisual (OMA) com a finalidade de: obter, processar e disponibilizar dados e informações do audiovisual e do cinema do Mercosul; e contribuir com o desenvolvimento da produção e com a integração da indústria e da cultura audiovisual na região.9 Para superar a dificuldade de circulação das obras cinematográficas Mercosulinas não nacionais nas telas dos países da região e reconhecendo a importância da produção cinematográfica da região como instrumento de integração cultural e econômica foi criado, em 2006, o “Certificado de Obra Cinematográfica Mercosul”. Pois apesar do crescente desenvolvimento da indústria cinematográfica 9

Dirigido por Octavio Getino de 2004 a 2007, quando de sua renuncia, o OMA realizou uma série de estudos valiosos que são a única fonte de dados sistematizados sobre as indústrias audiovisuais dos países do MERCOSUL. Com a saída de Getino, o OMA foi absorvido pelo RECAM e posteriormente foi colocado sob a supervisão do ANCINE, mas sem retomar as atividades da época de Getino.

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da região há necessidade de impulsionar políticas regionais que favoreçam a comercialização intra e extra Mercosul. Para tanto, consideram-se obras cinematográficas Mercosulinas aquelas reconhecidas como nacionais pelas autoridades competentes de cada país e em conformidade com suas respectivas legislações para a área do audiovisual. Estas obras passam então a receber tratamento equivalente às obras nacionais nos Estados Partes, estando aptas a usufruir das políticas públicas de incentivo destes. Em 2007, foi criado pela RECAM o Foro de Competitividad del Sector Cinematográfico y Audiovisual del Mercosur, que teve sua primeira reunião em 2008, tendo como objetivo buscar soluções para os problemas de produção, distribuição, exibição e infra-estrutura. No âmbito da produção propôs-se incrementar as coproduções regionais e estimular o intercâmbio de experiências. Em relação à distribuição a ideia é promover a codistribuição através da associação de distribuidores independentes e da formação de consórcios regionais de distribuição para ampliar a difusão internacional. Quanto às dificuldades de exibição foi proposta a associação das cadeias de exibição cinematográfica nacionais da região facilitando o acesso aos diversos mercados nacionais, promovendo o enlace entre distribuidores independentes e exibidores do Mercosul e incentivando as emissoras e canais de televisão aberta à exibição de obras cinematográficas e audiovisuais Mercosulinas. Referente aos problemas de infra-estrutura pretende-se facilitar a circulação regional de obras em processo e integrar as nuvens tecnológicas digitais aos processos de produção, distribuição e exibição cinematográfica na região. Ainda em 2007, na reunião do CAACI foi assinado o Acuerdo Iberoamericano de Coproduccion Cinematográfica. E, em 2008, foi criado o Programa Mercosur Audiovisual a partir do convênio de financiamento estabelecido entre a Comunidade Européia e o Mercosul, o qual começou a vigorar em 2009, visando promover o acesso dos cidadãos da região a conteúdos próprios e, para tanto, foram estabelecidas uma série de ações destinadas a incrementar a indústria cinematográfica, visando facilitar a circulação intra-regional, fortalecer as capacitações técnicas e reduzir as assimetrias entre os cinemas nacionais da região. Também em 2009, um convênio entre o INCAA e Le Marché du Film do Festival de Cannes deu origem ao Ventana Sur,10 evento que promove a comercialização de filmes latino-americanos e luta contra o eterno problema da falta de distribuição comercial. Um aspecto decisivo para a busca por uma integração regional da produção cinematográfica é o fato de os Cinemas realizados nos países do Mercosul, assim como a maioria dos cinemas realizados fora do contexto hollywoodiano, não serem indústrias autossuficientes, tendo dificuldades para competir com as produções hollywoodianas no mercado internacional e, principalmente, em seus próprios mercados nacionais. Estes cinemas só se mantêm graças às políticas de incentivo e de financiamento, que podem advir de órgãos públicos, de acordos transnacionais ou de instituições supranacionais. Desta forma, unir forças num contexto regional a partir das políticas econômicas inauguradas pelo Mercosul é uma maneira de desenvolver não apenas uma indústria audiovisual, mas de promover a hegemonia cultural dos países da região frente ao poderio globalizante da indústria cinematográfica hollywoodiana. Mas mesmo antes da criação do Mercosul já havia tentativas de produzir um maior intercambio 10

Site oficial do Ventana Sur:

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entre as indústrias cinematográficas da América Latina.11 O desafio de criar um cinema latino-americano que consolidasse uma identidade própria no panorama internacional, que fosse esteticamente original e que confrontasse a homogeneização do fazer cinematográfico hollywoodiano eclodiu na década de 1960 e foi compartilhado por vários realizadores latino-americanos: Glauber Rocha (Brasil, 1939 – 1981), Fernando Solanas (Argentina, 1936), Fernando Birri (Argentina, 1925), Miguel Littín (Chile, 1942), Julio García Espinosa (Cuba, 1926), Tomás Gutiérrez Alea (Cuba, 1928 – 1996). E subjacente aos filmes, manifestos, ensaios e teorias lê-se na ação destes cineastas uma preocupação com os problemas intrínsecos à América Latina: as desigualdades sociais, o autoritarismo e a luta pela democracia. Estes realizadores criticavam a admiração exacerbada e o “respeito” desmedido ao modelo hollywoodiano e defendiam um posicionamento crítico tanto dos realizadores quanto dos espectadores.

Coproduções: o caminho dos Cinemas do Mercosul Atualmente o principal caminho para a sobrevivência e o desenvolvimento da produção cinematográfica no Mercosul é a realização de coproduções. A idéia de coprodução abrange toda a forma de participação financeira, criativa ou técnica envolvida na realização de um filme, podendo ser entre os setores públicos e privados de um mesmo país, ou entre produtoras de dois ou mais países. A coprodução tem sido a estratégia utilizada por quase todos os cinemas que tentam existir fora do contexto hollywoodiano e vem crescendo desde a década de 1990. Como observa Steve Solot: Desde principios de los años noventa han surgido en Iberoamérica innumerables programas gubernamentales basados diversos estímulos que rápidamente un importante papel en el fomento de la producción de contenidos audiovisuales, así como en la distribución, la exhibición y el desarrollo de proyectos. Junto con los tratados de coproducción internacionales, son herramientas vitales para alcanzar muchos de los objetivos de las políticas nacionales para promover la creación de industrias audiovisuales sostenibles y la formación de la cultura audiovisual, en el contexto audiovisual globalizado y digitalizado. (SOLOT, Steve. 2011, p. V)12

As coproduções resultantes da cooperação entre países unem forças para promover suas expressões culturais e favorecem principalmente aos países cujas indústrias cinematográficas ainda são incipientes, que podem assim ter acesso a recursos que de outra maneira não teriam. Uma vez que os filmes agraciados por acordos de coprodução estabelecidos entre dois países ou mais, se tornam obras “nacionais” nos territórios de seus coprodutores, estando assim credenciados a usufruir dos incentivos fiscais e de todos os apoios que visam promover a produção, a distribuição e a exibição de obras nacionais. A coprodução amplia assim as possibilidades financeiras e mercadológicas dos projetos cinematográficos e cria ligações e redes entre grupos de produtores e profissionais. Para Colin Hoskins e Stuart McFadyen a opção pela coproduções resulta de oito potenciais benefícios: Fusão de recursos financeiros; Acesso a incentivos e subsídios de governos estrangeiros; acesso ao mercado do parceiro; acesso ao mercado de países terceiros; aprender com o parceiro; redução de risco; Insumos 11

Como, por exemplo, o I Congreso de la Cinematografía Hispanoamericana realizado em 1931, o Primer Certamen Cinematográfico Hispanoamericano, em 1948, e a Unión Cinematográfica Hispanoamericana e o Convênio HispanoArgentino de Relaciones Cinematográficas de 1969. 12 SOLOT, Steve. “Introdução”. In: SOLOT, Steve (org.) Mecanismos Actuales de Financiación de Contenidos Audiovisuales en Latinoamérica. Rio de Janeiro: Editora LATC, 2011.

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mais baratos no país do parceiro; Locações estrangeiras desejadas.13 Além disso, conforme dados do Observatório Audiovisual Europeu, apresentados por Steve Solot, presidente do Centro Latinoamericano de Treinamento e Assessoria Audiovisual: 1) As coproduções “viajam” melhor que os filmes de nacionalidade única: em média, as coproduções são lançadas em duas vezes mais mercados. 77% das coproduções são lançadas em pelo menos um mercado não-doméstico comparado com 33% de filmes de nacionalidade única. 2) As coproduções faturam, em média, 2.78 vezes mais do que filmes de nacionalidade única. 3) Em termos de ingressos vendidos, os mercados internacionais são mais importantes para coproduções do que para filmes de nacionalidade única.  Ingressos de mercados internacionais para coproduções representam 41% do total, comparado com 15% para filmes de nacionalidade única.14

Em decorrência das várias vantagens advindas da realização de coproduções, em 1989, durante a primeira Conferencia de Autoridades Cinematográficas de Iberoamerica (CACI) 15, que começaria a vigorar em 1991, foi assinado o Acordo Latino-Americano de Coprodução Cinematográfica embasado na idéia de que a atividade cinematográfica deve contribuir para o desenvolvimento cultural da região e para a configuração e divulgação de sua identidade; e na consciência de que, para tanto, é necessário promover o desenvolvimento cinematográfico da região.16 No final deste mesmo ano foi assinado o Acuerdo para la Creación del Mercado Común Cinematográfico Latinoamericano17 com o objetivo de implantar um sistema multilateral de participação de espaços de exibição para obras cinematográficas certificadas como nacionais pelos países signatários. Como parte da política audiovisual da CAACI foi criado, em 1997, o Fondo Iberoamericano de Ayuda Ibermedia18 para estimular a promoção e a distribuição de filmes Ibero-americanos. Entre os objetivos do Ibermedia estão: financiar a coprodução de filmes ibero-americanos, buscando associarse às entidades nacionais de fomento à realização audiovisual; reforçar e estimular a produção e distribuição dos produtos audiovisuais nos países Ibero-americanos; fomentar a sua integração em redes supranacionais de empresas de distribuição Ibero-americanas e incrementar a promoção. Os projetos que solicitam o apoio do Fundo são pré-selecionados pela Unidad Técnica de Ibermedia, que os avalia 13

HOSKINS, Colin; McFADYEN, Stuart. “Canadian Participation in International Co-Productions and Co-Ventures in Television Programming”. Canadian Journal of Communication. Alberta, 1993, v. 18, n. 2. 14 SOLOT, Steve. “A onda das co-produções latino-americanas e os incentivos na América Latina”. Cinema Sem Fronteiras. Dez, 2010. Disponível em: . Acessado em: 22 setembro 2012. Todos os dados da pesquisa realizada pelo Observatório Audiovisual Europeu podem ser lidos no texto: KANZLER, Martin. “The circulation of European co-productions and entirely national films in Europe 2001 to 2007”. European Audiovisual Observatory. 2008. Disponível em: . Acessado em: 22 setembro 2012. 15 A CACI foi posteriormente rebatizada de Conferencia de Autoridades Audiovisuales y Cinematográficas de Iberoamerica (CAACI) e atualmente é formada por autoridades cinematográficas dos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Cuba, Chile, Espanha, México, Panamá, Peru, Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai, Venezuela e, como observadores, Canadá e Costa Rica. Site oficial do Conselho. Site oficial da CAACI: 16 Esse Acordo só foi promulgado pelo Brasil em 1998. 17 Países membros: Argentina, Brasil, Cuba, República Dominicana, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Peru e Venezuela 18 Sediado na Espanha, o Ibermedia tem como membros: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, Espanha, Guatemala, México, Panamá, Peru, Portugal, Porto Rico, Republica Dominicana, Uruguai e Venezuela. Site do Programa Ibermedia:

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quanto aos pré-requisitos técnicos, enviando aqueles que cumprem estas questões para a avaliação pelo Comité Intergubernamental, do qual participam um representante de cada um dos países da Conferência, responsável pela decisão de quais os projetos serão contemplados. Com certeza, a ação do Ibermedia é decisiva para o crescimento de projetos compartidos pelos países da região. Na edição do Festival de Gramado de 2011, cinco das seis películas estrangeiras em competição foram coproduzidas com a participação do programa Ibermedia: O casamento (El casamiento – 2011), coprodução Uruguai/Espanha, de Aldo Garay; Garcia – 2010, coprodução Colômbia/Brasil, de José Luis Rugeles; Jean Gentil – 2012, coprodução México/República Dominicana/Alemanha, de Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán; La lección de pintura – 2011, coprodução Chile/Espanha/México, de Pablo Perelman; e Medianeras – 2011, corpodução Argentina/ Espanha/Alemanha, de Gustavo Taretto. Assim, quando falamos em cinemas mercosulinos estamos falando em coprodução. Desde sua criação a RECAM promove a articulação entre os órgãos de fomento público à produção cinematográfica e audiovisual dos países da região para o investimento na coprodução, na codistribuição e na exibição cruzada. No entanto, há vinte e um anos da criação do Mercosul e há nove anos da criação da RECAM, a maior parte das coproduções realizadas por Brasil e Argentina, maiores produtores da região, tem como parceiros países ibéricos: no caso do Brasil, Portugal, e no caso da Argentina, Espanha. Sendo a maioria das coproduções realizada graças ao Ibermedia. Nestas duas décadas de existência do Mercosul, as indústrias cinematográficas da região se desenvolveram individualmente, principalmente na Argentina e no Brasil. E o fato de a Argentina e o Brasil possuírem indústrias cinematográficas mais consolidadas que nos demais países (que não podem pensar em produzir sem ser em coprodução) influencia na decisão de associação para a realização de coproduções. Por outro lado, a diferença na maneira de subsidiar as produções na Argentina e no Brasil acaba interferindo na realização de projetos conjuntos. Uma vez que enquanto na Argentina o financiamento provém de fundos públicos administrados pelo INCAA (que possui regras estritas para aprovar os projetos); no Brasil a maioria das produções cinematográficas é financiada por empresas privadas que podem deduzir esse valor de seus impostos. Pois, como bem analisa Hernán Galperín (1999)19, a maneira como os tratados de integração regional lidam com a indústria audiovisual e os resultados que obtêm estão condicionados a três fatores: a estrutura industrial de cada país, as políticas domésticas sobre o setor e as distâncias culturais existentes. Desta forma, as diferenças entre as políticas públicas de fomento à produção cinematográfica dos países envolvidos nas coproduções Mercosulinas ainda são uma dificuldade a ser enfrentada. No caso específico do Brasil, atualmente o ANCINE possui acordos bilaterais de coprodução e/ou Protocolos de Cooperação com: Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai e Venezuela, e, além disso, participa de acordos multilaterais que envolvem a região como: o Acordo para a Criação do Mercado Comum Cinematográfico Latino-americano; o Acordo Latino-Americano de Coprodução Cinematográfica e é também membro do programa Ibermedia.20 Aos poucos, o Brasil vem investindo em coproduções com seus vizinhos, um exemplo notório é O banheiro do Papa (El Baño del Papa – 2007), de Enrique Fernández e César Charlone, coprodução Brasil/Uruguai/França realizada com o apoio do Ibermedia. 19

GALPERIN, Hernán. “Cultural Industries policy in regional trade agreements: the case of NAFTA, the E.U. and MERCOSUR”. Media Culture & Society, London, n.5. 1999. p. 1-68. 20 Todos estes acordos estão disponíveis no site da ANCINE:

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Mas além da união de forças econômicas para o desenvolvimento das indústrias cinematográficas nacionais, as instituições que fomentam as coproduções Mercosulinas objetivam também a consolidação de uma integração cultural regional, que visa o fortalecimento da interação entre os cinemas nacionais da região, e a realização de filmes que sirvam como espelho e vitrine para as identidades culturais nacionais. Desta forma, para ter acesso aos benefícios advindos dos acordos de coprodução os projetos devem responder a editais, tendo de atender a pré-requisitos, que geralmente implicam a avaliação do projeto quanto a sua importância cultural e o cumprimento de cotas de participação artística e técnica de mão-de-obra nacional dos países coprodutores.21

Cinemas do Mercosul: uma utopia de integração? Apesar do Mercosul haver nascido por conjecturas comerciais, políticas e econômicas, o projeto cultural mercosulino vem aos poucos ganhando força, alicerçado em redes de trabalho intelectual que buscam resgatar as raízes comuns, estabelecendo pontes de relação entre os países e seus povos e a partir de então construindo novos elementos que congregam características comuns e individuais. Apropriando-nos da reflexão de Flavio Aguiar (2002) a respeito da América Latina, poderíamos dizer então que o MERCOSUL no âmbito cinematográfico ainda é, na verdade, um projeto, um “por-fazer”. Pois apesar dos vários intentos da RECAM e do crescente número de acordos de coprodução firmados pelos países do Mercosul, são poucos os resultados efetivos e contundentes na consolidação das indústrias cinematográficas nacionais da região, uma vez que as assimetrias ainda são enormes. E a real integração em favor da criação de uma indústria cinematográfica regional ainda parece algo distante e, por vezes, impossível. No artigo “La política audiovisual del Mercosur y la influencia del modelo europeu”,22 Carmina Crusafon faz uma revisão dos documentos do Mercosul e da RECAM através da qual ela aponta os principais eixos de ação da Política Audiovisual da região, que seriam: a criação de um mercado comum (circulação interna de filmes, certificado de obra cinematográfica do Mercosul, cota de tela, criação de um sistema regional de distribuição, acordo de codistribuição); a criação de um sistema de informação sobre o audiovisual no Mercosul (criação do Observatório Mercosul Audiovisual, estudos de legislação comparada, programa de redução de assimetrias); outras atuações culturais de cooperação internacional regional; e a cooperação com os países ibéricos (Espanha e Portugal) e com a União Européia. Conforme as questões pontuadas por Crusafon, sobre as quais discorremos também durante este artigo, podemos visualizar no centro das ações da RECAM o objetivo de criar um mercado comum para o audiovisual da região, identificando os obstáculos a serem transpostos e propondo ferramentas para isso, visando assim “proteger” a cultura da região e desenvolver suas indústrias do audiovisual. Neste sentido são crucias duas propostas da RECAM que, contudo, ainda não geraram projetos efetivos: a criação de fundos cooperativos para a produção cinematográfica e a cota de tela 21

Os acordos de coprodução em vigor no MERCOSUL podem ser consultados no site da RECAM no item Normativas:< http://www.recam.org/?do=downloads&idCategory=3d49900ff81237a0a0f3ed7def36a489> 22 CRUSAFON, Carmina. “La política audiovisual del Mercosur y la influencia del modelo europeu”. In: Cuadernos de Información. Nº 25. 2009, pp. 93-104. Disponível em: Acessado em: 27 junho 2012.

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CINEMAS DO MERCOSUL: POLÍTICAS DE INCENTIVO, COPRODUÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL

para a produção regional. O desejo de implementar um fundo regional para a produção fundamenta-se na grande assimetria entre as indústrias, mercados e políticas cinematográficas dos países da região. Enquanto Brasil e Argentina possuem órgãos específicos, respectivamente ANCINE e INCAA, e leis de regulamentação e fomento à indústria cinematográfica, o Paraguai e o Uruguai não contavam com instituições nem legislações específicas quando do início das atividades da RECAM. Assim, Paraguai e Uruguai, com indústrias cinematográficas incipientes, necessitam de apoio financeiro e junto à RECAM solicitam acesso aos fundos de Argentina e Brasil, que somados representam mais de 90% do total dos fundos da região. Na mesma situação estão os demais países associados ao Mercosul e à RECAM que tampouco possuem indústrias cinematográficas estruturadas. Mas sem o estabelecimento de um fundo regional, apesar das iniciativas e vontades políticas, o suporte financeiro para as indústrias menores no contexto mercosulino vem dos acordos de coprodução bilaterais entre os países da região e de acordos bi e multilaterais envolvendo países estrangeiros ao Mercosul. A cota de tela tem sido outra questão delicada, uma vez que os empresários da área de distribuição e de exibição consideram perniciosas e autoritárias as intervenções do estado. E para muitos a cota de tela não resolveria o verdadeiro problema que é a falta de interesse dos espectadores pelas obras nacionais e Mercosulinas. Além disso, os produtores não têm interesse em que as cotas de tela de seus países contemplem também produções de outros países do Mercosul. Conforme Líliana Mazure, atual presidente do INCAA, um dos motivos para os problemas de distribuição inter-regional é que os países da região se preocupam apenas com a sua realidade e com o seu cenário. Questão que já fora percebida por Galperín (1999), pois para ele a proximidade cultural existente na região daria ao Mercosul ótimas possibilidades de desenvolver uma política regional dirigida às indústrias culturais, não fosse a carência de vontade política para fazê-lo. Assim, as políticas cinematográficas seguem sendo patrimônios exclusivos dos países. E, desta forma, as decisões mais importantes referentes ao setor: regulamentação, financiamento da produção, cota de tela e as políticas para formação de público, são tomadas por cada um dos países e tendem a ser restritas a sua indústria nacional. E essa ação está arraigada à dificuldade de instalar um espaço regional como destinatário de políticas públicas. Pois como assinala Alejandro Grimson: […] incluso entre quienes tienen una visión muy positiva de la integración regional, los intereses y sentimientos nacionales predominan sobre los regionales (GRIMSON, 2007, p.585).23 Mas, apesar destas dificuldades, muitas das coproduções mercosulinas têm obtido reconhecimento da crítica em festivais internacionais. Além disso, os inúmeros festivais criados para prestigiar o cinema Latino-americano, de maioria mercosulino, ao redor do mundo corroboram o crescente prestígio internacional destes cinemas. No entanto, a presença e o destaque cada vez maior destes filmes em festivais não resultam em sua maior penetração nos mercados internacionais e nem tampouco em um maior reconhecimento nos mercados nacionais da região. Pois apesar das várias ações de incentivo à produção cinematográfica e da qualidade e quantidade crescente de obras realizadas, a circulação intra-regional dos filmes mercosulinos é quase insignificante. E quando são exibidas, mesmo no contexto dos filmes nacionais em seus respectivos países, estas obras em sua maioria estão relegadas 23

GRIMSON, Alejandro. Pasiones nacionales: política y cultura en Brasil y Argentina. Buenos Aires: EDHASA. 2007.

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Rosângela Fachel de Medeiros

às salas marginais ao circuito comercial e a poucos espectadores. O dinheiro advindo de políticas públicas de incentivo e de acordos de coprodução atravessa as fronteiras nacionais e torna viável a realização de coproduções cinematográficas, mas estas, infelizmente, não são assistidas pela maioria do público de seus países financiadores. Por outro lado, as coproduções mercosulinas enquanto resultantes de processos de globalização econômica, fluxo de bens materiais (equipamentos, técnicos, profissionais, artistas, dinheiro); e da mundialização cultural, fluxo de bens simbólicos (cultura, estética, narrativa), colocam em debate as fronteiras políticas, culturais, sociais e econômicas, dando origem ao ainda nebuloso território dos cinemas transnacionais, que tornam as fronteiras entre os cinemas nacionais permeáveis e movediças. O que nos leva a pensar em uma real integração cultural da região, ainda por vir, que vá além da união financeira e propicie um verdadeiro diálogo cultural, rearticulando e dando sentido às identidades mercosulinas destes cinemas. Pois, transpondo para o âmbito da produção cinematográfica da região a afirmação de Walter Salles de que “o cinema pode ajudar um país a se conhecer e também a se imaginar”,24 os Cinemas do Mercosul podem ajudar aos cidadãos mercosulinos e ao próprio Mercosul a se reconhecerem e, sobretudo, a se imaginarem, ajudando assim na consolidação de um verdadeiro sentido de cidadania mercosulina, o qual leve em conta a importância de defender a diversidade cultural dos povos da região.

* Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora do Grupo Cinemas Latino-americanos da Universidade Federal Fluminense (UFF).

24 Walter Salles em entrevista disponível em: < http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL42905-7086,00.html>. Acessado em: 7 agosto 2012.

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ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: ESTUDO DO CONSINOS NO PERÍODO DE 2000 A 2010 Judite Sanson de Bem * Nelci Maria Richter Giacomini ** Moisés Waismann ***

Introdução A economia da cultura estuda as relações entre as atividades culturais e as atividades produtivas de uma região, e seus reflexos sobre o emprego, geração de salários, lucros, prestação de serviços, produção de bens para exportação, entre outros. A criatividade, de acordo com diferentes autores, é um fator de melhoria e diferenciação entre diferentes produtos e regiões. Ela apresenta a capacidade para alavancar o desenvolvimento, tanto internamente a uma unidade produtiva como da comunidade local. A relação entre economia e cultura passou a ser entendida como uma realidade científica a partir dos anos de 1960 e o termo “indústrias criativas” emergiu na Austrália em 1994 e posteriormente, em 1997, quando o Reino Unido encomenda um trabalho com o objetivo de avaliar as atividades que possibilitariam melhorar o desempenho do produto interno do país. Através do Departamento de Cultura, Mídia e Desporto criou-se o Creative Industries Task Force. Os municípios do Coredes Vale do Rio dos Sinos - Consinos tem suas atividades concentradas na produção de químicos, petroquímicos, mas, sobretudo na indústria de calçados e todo o seu complexo. A região desempenhou durante os anos de 1980 e 90 um papel relevante na produção e exportação de calçados nacionalmente, destacando-se como principal pólo no país. A partir da década de 1990, com a entrada do calçado chinês e de outros países asiáticos, viu sua participação decair e aumentar os índices de desemprego e violência. O objetivo deste trabalho é estudar novas possibilidades de desempenho de atividades produtivas que alavanquem o desenvolvimento desta região. Com base nos dados do MTE/RAIS utilizou-se o número de vínculos e estabelecimentos, nas atividades criativas, entre 2000 e 2010.

Economia da Cultura e desenvolvimento: aspectos de uma mesma moeda Desde a década de 1960, mais precisamente em 1966, as relações entre cultura e desenvolvimento passaram a ser trabalhadas sobre um enfoque mais técnico, ou seja, embasado cientificamente, quando o trabalho de William Baumol e William Bowen intitulado “Performinhg arts: the economic dillemma” foi publicado. No entanto é somente a partir das décadas de 1980/90 que a economia da cultura e, por sua vez a importante da criatividade, passam a ser mais explorados. A economia da cultura, assim, “[...] refere-se ao uso da lógica econômica e de sua

ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

metodologia no campo cultural. A economia passa assim a ser instrumental, emprestando seus alicerces de planejamento, eficiência, eficácia, estudo do comportamento humano e dos agentes do mercado para reforçar a coerência e a consecução dos objetivos traçados pela política pública. ( REIS, 2007, p.06)

Para relevância deste novo campo de estudos e seus reflexos no desenvolvimento podem ser atribuídos à sua importância como gerador de investimentos, atração de empresas direta ou indiretamente relacionadas aos setores culturais, emprego de mão de obra e o aumento da qualificação desta, articulação ex-ante e ex-post entre setores culturais, renda, tributos e fluxos de exportações, entre ouros. Diferentes organismos internacionais, como a ONU, UNESCO e a UNCTAD, têm salientado a importância da cultura para o desenvolvimento econômico, entendendo que o acesso à cultura, nas suas diferentes facetas, é importante indicador para avaliar a qualidade de vida. Enxergamos cultura em toda a trama social. A cultura humana é tudo que resulta da ação humana, de suas interferências sobre o mundo; é tudo que torna visível o pensamento do homem sobre si mesmo e sobre o ambiente que o cerca.  Todas as nossas práticas sociais são diferentes formas de concretização da cultura de que fazemos parte.  Se estamos assistindo um show de música popular para milhares de pessoas, a tendência natural é imaginar que somente os artistas e suas canções fazem parte da cultura.  Mas a tecnologia que criou a aparelhagem de luz e de som também é cultura; as bebidas e lanches consumidos pelo público são produto da cultura; o sistema econômico de cobrança de ingressos e pagamento de cachês também é resultado de uma cultura; a tradição social do congraçamento coletivo em praça pública, igualmente é cultura; os meios de transporte usados pela equipe, a rede elétrica que alimenta o palco, o palco e a engenharia de sua estrutura; tudo isso faz de um simples show o produto de um tecido intrincado de diferentes culturas superpostas, que convivem invisivelmente na mesma sociedade. ( MINC, 2012)

Assim, cabe ao conjunto de atividades que englobam a cultura um papel preponderante no desenvolvimento regional. Entre os esforços para entender esta relação há trabalhos como o realizado pela FIRJAN (2008 e 2012), UNCTAD em 2008 que apresentam o raio de compreensão da idéia de cultura como cadeia produtiva e, portanto sugerem bases para o dimensionamento de sua ação. As atividades criativas apresentam uma ampla possibilidade de gerar efeitos multiplicadores na economia e estes podem ser vistos na forma de crescimento do PIB, da competitividade, mais e melhores empregos, desenvolvimento sustentável e inovação. That leads to the perception that the arts and culture are marginal in terms of economic contribution and should therefore be confined to the realms of public intervention. This may explain to a large extent the lack of statistical tools available to measure the contribution of the cultural sector to the economy whether at national or international level, in particular compared to other industry sectors. (EUROPE UNION, 2012, p.1)

A cultura e a produção de bens e serviços resultantes também impulsiona a coesão intra-regional e inter-regional dos povos a medida que pode ser considerada parte importante do capital humano. A economia criativa, além de ser um setor em franca expanção, observa-se que em alguns países cresce a um ritmo mais elevado do que os setores tradicionais, sobretudo nos empregos. Os setores envolvidos oferecem possibilidades diferentes, muitas vezes demandando pessoas altamente 110

Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann

qualificadas, o que acarreta em um crescimento, em termos de empregos, superiores a média da economia. No Brasil, um trabalho pioneiro foi desenvolvido pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN). A figura 1 apresenta os diferentes elos da cadeia da indústria criativa considerados no trabalho. Figura 1 – Elos da Cadeia das Indústrias Criativas

Fonte: FIRJAN, 2012

A abordagem adotada pelo trabalho da FIRJAN que norteou este artigo adotou uma visão de cadeia. Este detalhamento tornou-se viável a partir da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE 2.0). Neste sentido, de um universo de 673 classificações econômicas, identificaram-se 185 categorias associadas às atividades criativas, separadas pelas esferas de núcleo, atividades relacionadas e apoio.

As indústrias criativas no Consinos, estudo das vaiáveis estabelecimentos e emprego, como forma de desenvolvimento regional Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul – COREDES/RS tem como Marco Legal a Lei 10.283 de 17 de Outubro de 1994. Fazem parte do Consinos os municípios de: Araricá, Campo Bom, Canoas, Dois Irmãos, Estância Velha, Esteio, Ivoti, Nova Hartz, Nova Santa Rita, Novo Hamburgo, Portão, São Leopoldo,

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ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Sapiranga, Sapucaia do Sul. Sua disposição em relação ao RS está exposta na Figura 2. O Corede Vale do Rio dos Sinos tinha uma população total em 2010 de 1.290.491 habitantes, e uma área de 1.398,5 km². Figura 2 - Municípios do Consinos em 2008

Fonte: FEE, 2012

Os dados utilizados para análise das variáveis estabelecimentos e empregos foram obtidos da Relação Anual Informações Sociais (RAIS) disponível no Programa de Disseminação de Estatísticas do Trabalho (PDET) do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE/Brasil. Utilizou-se do método da estatística descritiva para processar as informações obtidas. Espera-se a partir da pesquisa aqui realizada oferecer estratégias competitivas para dinamizar os estabelecimentos e, por conseguinte os empregos Coredes do Vale do Rio dos Sinos no conjunto das atividades criativas. A tabela 1 apresenta os valores das variáveis estabelecimentos e empregos no período que se estende do ano 2000 até o ano de 2010 no Coredes Sinos para o conjunto da Cadeia da Indústria Criativa bem como individualmente nas atividades de Apoio, Núcleo e Relacionadas. O objetivo da tabela é visualizar o movimento das duas variáveis ao longo do tempo de forma comparada entre elas e também entre as atividades.

Tabela 1 – Quantidade de estabelecimentos e empregos nas atividades de Apoio, Núcleo, Relacionadas, e no Total da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos no período de 2000 a 2010.

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Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann

Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Apoio Est. 1.245 1.275 1.395 1.399 1.417 1.444 1.271 1.326 1.487 1.641 1.902

Núcleo

Emp. 12.610 14.249 17.295 19.589 24.742 17.658 15.502 16.186 18.925 18.055 25.046

Est. 1.895 1.995 2.337 2.423 2.462 2.477 1.009 1.016 955 1.063 1.144

Relacionada

Emp. 16.682 16.738 22.673 23.540 24.696 27.883 12.575 14.314 13.884 15.422 15.145

Est. 4.952 5.325 5.745 6.019 6.239 6.602 5.053 5.197 5.321 5.455 5.822

Emp. 82.534 88.639 95.604 89.053 96.627 89.315 80.046 78.588 73.560 76.413 83.267

Total Est.

Emp.

8.092 8.595 9.477 9.841 10.118 10.523 7.333 7.539 7.763 8.159 8.868

111.826 119.626 135.572 132.182 146.065 134.856 108.123 109.088 106.369 109.890 123.458

Fonte: Elaborado pelos autores

F.D.B: Bem, Giacomini (2012)

Na tabela 1 percebe-se que a quantidade de estabelecimentos e de empregos no total das atividades da Cadeia da Indústria Criativa apresenta movimentos diversos ao longo do período de estudo. A variável estabelecimentos cresce até o ano de 2005, quando apresenta um acréscimo de 30% em relação ao ano 2000, recuperando os valores do ano 2000 somente em 2009. A variável emprego cresce até 2004 quando atinge cerca de 31% a mais na quantidade de postos de trabalho, que no ano de 2000, e volta a se recuperar e ultrapassa o valor inicial da série em estudo somente em 2010. Quando o olhar passa às atividades de Apoio se percebe que a variável estabelecimentos apresenta crescimento em todo o período da análise, se comparado com o ano de 2000, chegando em 2010 com acréscimo de quase 50%. O mesmo ocorre com a variável emprego que chega em 2010 com quase o dobro no número de empregos. Analisando o Grupo de atividades Núcleo da Cadeia da Indústria Criativa observa-se que tanto a variável estabelecimentos quanto a variável empregos tem as suas quantidades reduzidas em termos absolutos no período em análise. A retração chega a 40% na quantidade de estabelecimentos e quase 10% na quantidade de empregos. Movimento diverso ocorre com o segmento da atividade Relacionada na Cadeia da Indústria Criativa, pois esta apresenta crescimento no período estudado nas variáveis estabelecimentos e empregos, apresentando nesta última um leve acréscimo. Nas figuras 3 e 4 são apresentadas as proporções das atividades de Apoio, Núcleo e Relacionada no total de empresas e empregos da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos nos anos de 2000 a 2010. A intenção dos gráficos é verificar a movimentação da proporção destas variáveis.

Figura 3 – Proporção das atividades de Apoio, Núcleo e Relacionada no total de empresas

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ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos nos anos de 2000 a 2010. Fonte: Elaborado pelos autores F.D.B: Bem, Giacomini (2012)

Na figura 3 percebe-se que as atividades de Apoio que no ano 2000 que tinham 15% na participação total de empresas alcança 21% no ano de 2010, um crescimento de 6 pontos percentuais. Já as atividades Núcleo passam de 23% para 13% no ano de 2010, uma redução de 10 pontos percentuais, e as atividades Relacionadas cresce de 61% para 66% no final do período em análise. A figura 4 mostra a proporção da variável emprego de cada elo da cadeia sobre o somatório destes elos. Na ilustração é possível visualizar que a força de trabalho nas atividades de Apoio passam de 11%, no ano 2000, para 20% em 2010, um acréscimo de 9 pontos percentuais. Na atividade Núcleo os empregos tem a sua participação relativa diminuída em 3 pontos percentuais, resultado da queda de 15% no ano 2000 para 12% no ano de 2010. Na atividade de Apoio ocorre o mesmo movimento, passando de 74% para 67% nos anos 2000 e 2010 respectivamente, uma redução na participação relativa de 7 pontos percentuais no período estudado.

Figura 4 – Proporção das atividades de Apoio, Núcleo e Relacionada no total de empregos da Cadeia da Indústria Criativa no Coredes Sinos nos anos de 2000 a 2010.

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Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann

Fonte: Elaborado pelos autores F.D.B: Bem, Giacomini (2012)

Para estimar, no período que se estende do ano 2000 até o ano 2010, a relação existente entre a variável emprego e a variável estabelecimentos foi utilizado o método dos mínimos quadrados ordinários (MQO). Tem-se como hipótese que a função básica de oferta de empregos seja demonstrada na equação (1): (1)

( Emp) t = β 0 + β1 ( Est ) t + ε d

Sendo a variável dependente (Emp) a quantidade de postos de trabalho nos setores de Apoio, Núcleo e Relacionada indústria criativa, bem como no seu conjunto e a variável independente (Est) números de estabelecimentos nos mesmos setores, no Coredes Vale do Rio dos Sinos. O valor estimado para o β1 de cada grupo de atividades ou elo da Cadeia da Indústria Criativa informa a quantidade de empregos que são criados, dado que surge uma empresa nova. E coeficiente de determinação (R²) calculado para cada relação estimada entre as variáveis empregos e empresas nas atividades da Cadeia informa o quanto da variação total é comum aos elementos que constituem os pares analisados, ou seja, o quanto da geração de empregos pode ser explicada pela variação da quantidade de empresas. Neste sentido analisando os dados obtidos para a atividade de Apoio, observou-se um β apoio = 14,784 e um de R² de 0,5296. Significa dizer que para cada nova empresa neste segmento abre-se 15 novos postos de trabalho, e o R² informa que somente 52,96% desta criação de empregos podem ser explicadas por esta nova empresa, os outros 57,04% devem ser buscados fora desta relação. Quando se observa as atividades núcleo os valores são β núcleo = 7,1108 e R² de 0,8329, ou seja, agora a expli115

ECONOMIA DA CULTURA COMO MEIO PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

cação sobe para 83,29%. Quando uma empresa desse segmento surge se abre 7 novas vagas de trabalho. Para a atividade Relacionada os parâmetros calculados foram um β relacionada = 9,1981 e um R² de 0,3991. Significa que para cada nova empresa 9 empregos são criados. Porém somente 39,91% desta relação é explicada pela nova empresa. Para o total da Cadeia da Indústria Criativa o βtotal calculado foi de 11,817 e o R² de 0,8861. Pode-se então afirmar que para cada nova empresa desta Cadeia são criados 11,82 novos postos de trabalho, e que segundo o coeficiente de determinação (R²) apurado, 88,61% é explicado somente por esta nova empresa.

Considerações Finais A região do Consinos é considerada o berço da imigração alemã no RS e distingui-se, nacionalmente, até os anos de 1990, por ser o principal pólo coureiro-calçadista brasileiro. Seus 14 municípios apresentam diferentes estágios de desenvolvimento e esta dinâmica pode ser verificada na urbanização, na composição da população, do produto interno bruto, entre outros, variáveis estas que não foram motivo deste trabalho. No entanto quando se trata de desenvolvimento regional, envolvendo os diferentes elos da indústria criativa, percebe-se que há discrepâncias de acordo com a ótica de análise neste estudo. Percebeu-se no conjunto da Cadeia da Indústria Criativa para cada nova empresa são criados mais de 11 postos de trabalho, e que estes novos postos de trabalhos são 88,61% explicados pela criação desta nova empresa. Mas esta informação por si só não indica que um investimento em novas unidades produtivas em qualquer das atividades ou elos da Cadeia não representa este retorno de empregos. No caso das atividades de Apoio são criados quase 15 empregos, contudo apenas 52,96% destes novos empregos são explicados por esta nova empresa, quando se observam as atividades Núcleo são criados apenas 7 empregos quando comparado com as atividades de Apoio, porém 83,29% desta variação pode ser explicada por esta nova empresa. Já nas atividades Relacionadas abrem-se 9 empregos para cada nova empresa porém somente 39,91% da criação destes novos empregos podem ser explicados por esta novo estabelecimento. Desta forma verifica-se a importância dos investimentos nas atividades Núcleo da Cadeia da Indústria Criativa, pois se percebe que ocorre uma maior resultado na criação de empregos com o surgimento de novas empresas. Conclui-se que o desenvolvimento regional do Consinos requer um planejamento de médio a longo prazo se o mesmo desejar modificar sua inserção nos diferentes ramos de atividades criativas núcleo, pois além de ser as menos representativas no atual estágio de desenvolvimento da região, no mundo são aquelas que maiores remunerações realizam. Assim as diferentes possibilidades de 116

Judite Sanson de Bem, Nelci Maria Richter Giacomini, Moisés Waismann

ocupação dos capitais disponíveis, do conhecimento, da criatividade, inovações e as competências tecnológicas, presentes na economia traduzem a possibilidade deste outro leque de atividades.

REFERÊNCIAS BEM, Judite Sanson de (Coord); GIACOMINI, Nelci Maria Richter. Avaliação das áreas homogêneas e dos impactos econômicos da cultura e das indústrias culturais: estudo do COREDE do Vale do Rio dos Sinos – Consinos no período de 2000 até 2011. Canoas: UNILASALLE, 2012. 91f BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (MTE). Bases Estatísticas RAIS / CAGED Acesso Online. Disponível em: . Acesso em: jan. 2012 BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA ( MINC). Economia da Cultura para a América Latina. http://www.cultura.gov.br/ Acessado em jan. 2013 EUROPE UNION - EU. The Economy of Culture in Europe- Executive Summary: European Comission. Disponível em: Acessado em: dez.2011. FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – FIRJAN. A cadeia da Indústria Criativa no Brasil. nº 2, Maio 2008. (Estudos para o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro). Disponível em: http://www.firjan.org.br/main.jsp?lumItemId=2C908CE9215B0DC40121737B1C8107C1&lumPageId=2C908CE9215B0DC40121793770A2082A. Acessado em: jan. 2012. REIS, Ana Clara Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. São Paulo: Manole, 2007. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Creative Economy. Report 2008. Geneva; New York: UNCTAD; UNDP, 2008, p. 9-16. Disponível em: http:// www.unctad.org/Templates/WebFlyer.asp?intItemID=5109&lang=1. Acessado em: Nov. 2011.

* Doutora em História pela PUCRS. Coordenadora Curso Economia e prof. Mestrado em Memória e Bens Culturais do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Rio Grande do Sul; BRASIL **Mestre em Economia pela UFRGS, Profª Titular e Pesquisadora do IEPE/UFRGS–(Aposentada da UFRGS), Profª de Economia do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Rio Grande do Sul; BRASIL *** Economista, Doutor em Educação pela UNISINOS. Pesquisador do Observatório Unilasalle: Trabalho, Gestão e Políticas Públicas. Professor do Curso de Ciências Econômicas do Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Rio Grande do Sul; BRASIL 117

4. PROTEÇÃO JURÍDICA DO AMBIENTE E DA SAÚDE NO MERCOSUL

JORNADAS MERCOSUL

PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88

Yussef Daibert Salomão de Campos*

A Constituição brasileira de 1988 é um marco jurídico e político da recente história nacional. Conhecida como a “Constituição Cidadã”, a Carta Política de 1988 nasceu em um momento em que o país se desvencilhou de mais de duas décadas de dominação autoritária, instituída pelo golpe militar de 1964, passando a sonhar com dias iluminados pelos faróis da democracia. Mas o processo de desenvolvimento e criação da nova carta magna brasileira não foi simples e sumário: arrolou-se durante quase dois anos de debates, disputas e conflitos políticos na elaboração das novas diretrizes constitucionais. Diversos temas foram discutidos de forma exaustiva, como a forma de inserção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão e da inclusão de novos instrumentos jurídicos de proteção de bens difusos e coletivos. Entre esses temas destaca-se o patrimônio cultural e a forma elástica com a qual a lei maior buscou trata-lo, introduzindo inovações jurídicas (como o registro do patrimônio cultural imaterial) ao lado de formas tradicionais de preservação (tombamento do patrimônio material). Todavia, indagamos: quais foram os atores, sociais e políticos, envolvidos no processo de elaboração das determinações constitucionais de preservação do patrimônio cultural? Quais os movimentos sociais foram marcantes nesse momento constituinte, nos anos de 1987 e 1988? Como se efetivou a preservação do patrimônio cultural imaterial como novidade jurídica no Brasil? De onde nasceram as reivindicações de tutela dos sítios remanescentes de quilombos? Qual a intenção de enumeração de instrumentos jurídicos de preservação previstos no §1º do artigo 216 (inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação)? Com a aplicação e efetivação do artigo constitucional citado, outros valores da Carta Política serão efetivados (cidadania e a dignidade da pessoa humana; redução das desigualdades sociais; o direito de qualquer cidadão de propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público)? Será que a lei, em sentido amplo, pode funcionar como um instrumento de criação e manutenção de identidades sociais? Vale apontar que o processo constituinte “foi palco de grandes conflitos de interesse e de opinião que haviam permanecido latentes, irresolutos ou agravados, durante os anos da repressão” (PILATTI1, 2008, p.01). Nesse palco se enfrentaram progressistas, marcados por segmentos da resistência democrática ao regime ditatorial, e conservadores, representados por expressões que apoiaram o golpe militar de 1964 (PILATTI, 2008). A partir da ideia de que o documento é um vestígio (BLOCH2, 2001), a Constituição pode ser interpretada não como um dado rígido, mas como um material a ser interrogado e interpretado, através da análise de sua elaboração e do estudo sobre seus atores, políticos e sociais. Observar-se que o patrimônio cultural é uma seara formada por uma miríade de identidades (POULOT3, 2009), minada por campos de conflitos e interesses econômicos, políticos e simbólicos, inerentes ao próprio patrimônio (CANCLINI4, 1994; LOWENTHAL5, 1998; 2005). Tais identidades, que constituem o campo patrimonial, são constituídas por sentimentos de coesão protonacional (HOBSBAWM6, 2008.), que, em conjunto, fundamentam o surgimento de comunidades imaginadas (HALL7, 2006; ANDERSON8,

PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A GÊNESE JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONSTITUINTE DE 1987/88

2008). Essas construções conceituais pautam a construção das apresentações do presente trabalho, mostrando como a Constituição de 1988 permitiu a fortificação de uma identidade nacional, através de diretrizes nascidas de elaborações políticas e sociais. Determina o artigo 216 da Constituição de 1988 que constituem patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL9, 1988)”. Afirma ainda que ficam “tombados os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (§ 5º). Mas que identidade é essa? Hobsbawm aponta que: [...] não há conexão lógica entre o corpo de cidadãos de um Estado territorial, por uma parte, e a identificação de uma nação em bases linguísticas, étnicas ou em outras com características que permitam o reconhecimento coletivo do pertencimento de grupo (HOBSBAWM, 2008, p.32).

A produção do passado apresenta-se como legitimador das políticas públicas apresentadas pelo Estado, que visa suprir essa falta de conexão lógica. O patrimônio cultural, como expressão política da memória, é fruto para uma série de debates e altercações. Seja sua preservação apontada como reconhecimento de direitos humanos (HARDING10, 2005), passando pelas reivindicações por repatriações de objetos da cultura material (ZIMMERMAN11, 2005; FERREIRA12, 2008.) ou, ainda, pelas discussões sobre qual a identidade de um fóssil humano (LIPPERT13, 2005) e até nomeando-o como legitimador de posse de terra (GEARY14, 2005), as discussões perpassam a identidade social e cultural, assim como a construção de um passado em comum. A identidade é designada como legitimadora da preservação e/ou destruição patrimonial, sendo distante o pensamento de que a equalização entre patrimônio e identidade seja uma justificativa generalizadora (LOWENTHAL, 2005, p.393). Ferreira aponta que o patrimônio cultural “é capaz de mediar relações políticas e sociais, de fortalecer hierarquias e poderes, legitimando-os por meio de testemunhos materiais que lhes dão sustentação” (FERREIRA, 2008, p.38). Mas é preciso salientar que conceitos como patrimônio e identidade não são construções naturais, e sim categorias discursivas construídas. De acordo com Tilley, são criações recentes, influenciadas pela globalização, advindas das novas relações imperiais (TILLEY15, 2006, p.09). O patrimônio manipula identidades, que são, como produtos da modernidade, alcançadas e não mais atribuídas, afirma o mesmo autor. O declínio do significado de Estado-nação, que tinha nos monumentos públicos (e no patrimônio cultural material em geral) uma metonímia sua (TILLEY, 2006, p.23), possibilitou o (res) surgimento de outras formas de identidades coletivas, sejam étnicas, religiosas, etc. (TILLEY, 2006, p.11), que buscam seu reconhecimento, entre outros modos, através da salvaguarda de seus patrimônios culturais. Sobre a apropriação do patrimônio e sua relação com a identidade coletiva, Canclini estabeleceu que: Se é verdade que o patrimônio serve para unificar as nações, as desigualdades na sua formação e apropriação exigem que o estude, também, como espaço de luta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos (CANCLINI, 1994, p.93).

As práticas patrimoniais visam restaurar o passado no presente para projetar possibilidades em um futuro desejável (TILLEY, 2006, p.14), realizadas por agentes e atores do presente, à guisa de suas 122

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necessidades (WEISS16, 2007, p.571; LOWENTHAL, 2005, p.396), seja através das políticas públicas, seja através da elaboração de uma carta constitucional. O uso da lei pode ser visto como meio de construção de identidades e memórias, a partir de conflitos de poder, conflitos sobre qual identidade reconhecer e qual passado construir. A identidade coletiva é edificada e as nações inventadas. Mas não só as nações são imaginadas. As coletividades inseridas nessas nações são igualmente imaginadas. Para Anderson “qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada” (ANDERSON, 2008, p.33), sendo que, em alguns casos, “já há sinais inequívocos de que as pessoas começam a se identificar com alguma coisa que ultrapassa as fronteiras nacionais” (ELIAS17, 1994, p.189). A formulação de uma identidade em comum objetiva, primordialmente, a unidade e o sentimento de pertença de um grupo, com espectros políticos de dominação, já que a identidade traduz-se em jogo de poder (HALL, 2006). Esse sentimento de pertença a uma nação (ou qualquer outra forma de comunidade imaginada) é definido por Hobsbawm como “protonacionalismo popular” ou “coesão protonacional”, explicado da seguinte forma: A nação moderna é uma ‘comunidade imaginada’, na útil frase de Benedict Anderson, e não há dúvida de que pode preencher o vazio emocional causado pelo declínio ou desintegração, ou a inexistência de redes de relações ou comunidades humanas reais; mas o problema permanece na questão de por que as pessoas, tendo perdido suas comunidades reais, desejam imaginar esse tipo particular de substituição. Uma das razões pode ser a de que, em muitas partes do mundo, os Estados e os movimentos nacionais podem mobilizar certas variantes do sentimento de vínculo coletivo já existente e podem operar potencialmente, dessa forma, na escala macropolítica que se ajustaria às nações e aos Estados modernos. Chamo tais laços de “protonacionais” (HOBSBAWM, 2008, p.63).

Não será redundante afirmar que o patrimônio (como representação da identidade) é, portanto, um campo de disputas; e essas se apresentam nas dicotomias ‘memória e esquecimento’, ‘preservação e destruição’, ‘identidade e diferença’, visto que as práticas políticas patrimoniais se apropriam de objetos patrimonializáveis em detrimento de outros. O patrimônio cultural é uma seara de batalhas: “o conflito é endêmico ao patrimônio” (LOWENTHAL, 1998, p.234.); o patrimônio é “espaço de disputa econômica, política e simbólica” (CANCLINI, 1994, p.100.). Vale apontar o uso da identidade na formação de comunidades imaginadas. Anderson, ao analisar a colonização do Sudeste Asiático por países como Inglaterra, por exemplo, enumerou algumas ferramentas de unificação dessas comunidades e do sentimento de pertença, como a língua, o hino (“cantar a Marselhesa [...] oferece a oportunidade do uníssono, da realização física em eco da comunidade imaginada”) e a bandeira, entre outros que propiciaram também a formação dos Estados-nação (ANDERSON, 2008, p.203). Acrescentou três instituições de poder que seriam fundamentais para que as colônias se moldassem às comunidade imaginadas pelos Estados coloniais: os censos, os mapas e os museus. Seriam através deles que o Estado moldava e vislumbrava seu domínio: a natureza dos indivíduos por ele governados, os limites da área colonizada e a legitimidade da fundação de seu Império. Essa leitura pode ser feita tanto na ação de Estados coloniais tardios como na formação de identidades nacionais de países independentes. Por meio dos censos o Estado colonial categorizava identidades locais, através de “funda123

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mentos” raciais ou religiosos, por exemplo. “Mapeados de cima”, conforme determina Anderson, os dominados eram rastreados e classificados com objetivos claros: determinar quem realmente poderia ser tributado e recrutado pelo exército; organizar novas burocracias do sistema educacional, jurídico, de saúde pública, política de imigração, etc. Os mapas, por sua vez, delimitaram fronteiras e estabeleceram limites que comprovaram a existência de uma comunidade imaginada em um determinado espaço territorial. Já os museus criam um passado em comum, formando laços entre identidades coletivas. O museu e a arqueologia, que podem ser vistos, segundo Anderson, como agenciadores do patrimônio cultural, atuam como legitimadores do poder estabelecido e como depositários de heranças em comum. O autor aponta a ingerência desses três instrumentos na criação de comunidades imaginadas da seguinte maneira: Assim, mutuamente interligados, censo, mapa e museu iluminam o estilo de pensamento do Estado colonial tardio em relação aos seus domínios. A “urdidura” desse pensamento era uma grade classificatória totalizante que podia ser aplicada com uma flexibilidade ilimitada a qualquer coisa sob o controle real ou apenas visual do Estado: povos, regiões, línguas, objetos produzidos, monumentos, e assim por diante. O efeito dessa grade era sempre poder dizer que tal coisa era isso e não aquilo, que fazia parte disso e não daquilo. Essa coisa qualquer era delimitada, determinada e, portanto, em princípio enumerável (ANDERSON, 2008, p.253).

De forma breve vimos como censo, mapa e museu podem contribuir para a construção de uma comunidade imaginada e, portanto, de uma de uma identidade coletiva. Tenhamos em mente o objeto desse trabalho: o patrimônio cultural é uma representação da identidade social; logo, é um campo que permite ser usado como construtor de uma comunidade imaginada, não só por meio de museus ou artefatos arqueológicos, mas através de todas as categorias subjacentes ao seu conceito, entre eles, o patrimônio cultural. Mas será a lei18 capaz de ser instrumento estatal tal qual o censo, o mapa e o museus? Partamos para a lei como instituição de poder. O Estado se utiliza da lei tanto para erigir um sentimento de identidade nacional como para permitir o fortalecimento de identidades locais. No artigo 216 de sua lei maior o constituinte brasileiro, através de seu poder parlamentar, tratou de definir quais são os bens culturais que são “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, enumerando-os, em seus incisos, através das categorias patrimônio material e imaterial. E em seu parágrafo 5º determina que “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (BRASIL, 1988). Este é um exemplo esclarecedor de artigo de lei que determina um passado em comum, criando uma coesão imaginada entre os cidadãos brasileiros. Mas a forma de elaboração e os agentes (sociais e políticos) responsáveis por tal diretriz constitucional continua desconhecida ou inexplorada. Dessa forma, a lei (seja através da Constituição ou das leis a ela dependentes), assim como o censo, o mapa e o museu, atua de forma a criar uma ligação virtual entre aqueles que são classificados em etnias ou raças, que convivem em um território previamente traçado e que compartilham de um passado em comum. É o Estado que manipula essas etnias, esse território e esse passado. E o faz através da lei.

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O patrimônio cultural se apresenta assim: como um campo de disputas de identidades, manipuladas pelo poder político, que tem, como seu braço direito, a norma jurídica. A legislação permite a aplicação de práticas públicas de preservação que refletem exigências de reconhecimentos de determinadas identidades em detrimento de outras. Conforme Poulot, o patrimônio é um “caleidoscópio de identidades” (POULOT, 2009, p.32). E as identidades representadas nas mais diversas manifestações culturais no Brasil buscam reconhecimento: é o embate político que tem, de um lado, a memória, a identidade e a preservação, e de outro, o esquecimento, a diferença e a destruição. Através da ação legiferante, o Estado cria massas de grupos identificáveis entre si, ao determinar mecanismos de gestão de patrimônios culturais que representaram coletividades que não podem se (re) conhecer pelo simples contato individual. Elege os patrimônios a serem preservados e dita como tais bens culturais, ao serem geridos e promovidos nos ditames da lei, refletirão e atenderão às necessidades daqueles que reivindicam um lugar ao sol. Vemos, então, que as eleições feitas sobre o que se deve preservar (logo o que se deve esquecer) são marcadas por disputas políticas e sociais, simbolizadoras de conflitos entre identidades coletivas diversas e representantes de comunidades imaginárias distintas, sejam elas locais ou globais. São as identidades espelhadas nas nuances material e imaterial do patrimônio cultural brasileiro que o apontam como área de disputas e reivindicações por reconhecimento, que resultam em elaboração de normas (como o artigo 216) bem como em políticas públicas de preservação e salvaguarda. E o patrimônio cultural, como referência, como suporte da memória coletiva, como um “quadro social da memória” (HALBWACHS19, 2006) é, conforme afirma Rosário, “perpetuação da cultura” (ROSÁRIO20, 2002), de “valores”, de “expressões máximas do pensamento e do sentimento humano coletivos”; que “a memória nos identifica como indivíduos e como coletividade”. Enfim, a referência cultural pode ser observada a partir dos diversos domínios da vida social, aos quais são atribuídos sentidos e valores de importância diferenciada e que, por isso, constituem marcos e referências de identidade para determinado grupo social. Michael Pollak apregoou que Memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (grifei) (POLLAK21, 1992, p.204).

Porém, como os constituintes de 1987-88 se apropriaram de conceitos como “cultura”, “memória” e “identidade” na elaboração do artigo 216? Artigo esse que se mostra complexo e dinâmico, sendo reiteradamente regulamentado por leis infraconstitucionais, como o decreto 3551 de 2000, que institui o registro como instrumento de preservação do patrimônio imaterial. É preciso investigar: como as diretrizes de políticas públicas patrimoniais chegaram ao corpo constitucional, se não pela disputa e o conflito? Mas quem eram os combatentes e os combatidos? Se o patrimônio cultural é a expressão política da memória, quais grupos se fizeram representar no artigo 216 da Constituição e como atuaram para serem reconhecidos nas elaborações constituintes de 198788? Como indício de reivindicações sociais reconhecidas pelo poder público, podemos apresentar o tombamento do Terreiro Casa Branca, em Salvador, visto que é o primeiro bem religioso não católico preservado pelo Estado. Mesmo sendo o tombamento um instrumento jurídico datado de 1937, somente em 1986 (ano justamente posto entre o fim da ditatura militar e o início da Constituinte) foi 125

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homologado o tombamento do terreiro. Mas essas vozes se fizeram ecoar no processo constituinte dos anos seguintes ao tombamento feito em esfera federal? Em suma: deve ser objeto de pesquisa, como é desse pesquisador, a investigação das reivindicações sociais e dos confrontos de interesse que perpassaram a elaboração do artigo 216 da Constituição Federal de 1988, assim como identificar os agentes políticos que imprimiram na carta política as vozes daqueles que queriam ver arroladas suas expressões culturais como pontos de referência da identidade e da memória nacional. Devemos inquirir se a memória como campo de conflitos (POLLAK22, 1989) se aplica ao momento de construção de normas constituintes relativas ao campo patrimonial, sendo este a expressão política da memória social. E, ainda, mostrar se os interesses populares puderam ou não ser escamoteados no processo constituinte; quem cedeu e quem exigiu que se cedesse; o que foi lembrado e o que foi esquecido. A escassez de obras e trabalhos em torno da Constituinte de 1987-88, no que tange ao patrimônio cultural, se apresenta como indício da necessidade de pesquisa e inquirição sobre o tema que mais salta aos olhos. Não existe um trabalho organizado e direcionado ao momento de elaboração constitucional de diretrizes voltadas ao patrimônio cultural. Os mais diversos profissionais que se apropriam do patrimônio cultural como objeto de estudo utilizam, diuturnamente, da Constituição como ponto de apoio jurídico em suas investigações em torno do tema. Mas inexiste pesquisa aprofundada que responda à seguinte questão: quais foram as vozes responsáveis pela elaboração do artigo constitucional que define o patrimônio cultural e dita regras acerca de sua promoção e preservação? Quais foram os agentes políticos que levaram tais reivindicações para as pautas de discussão da Assembleia Constituinte? Como se deu a construção política do texto do artigo 216? Quais foram as reivindicações, atendidas ou não, nesse processo? E quem reivindicou? O processo constituinte deve ser observado como um processo dialético entre forças opostas, representadas, em 1987-88, por progressistas e conservadores. Esse ponto de vista é notado a partir da leitura de Pilatti (PILATTI, 2008), que desenvolveu um trabalho de extrema relevância, pois apresenta um verdadeiro fluxograma das atividades constituintes e da organização das comissões e subcomissões da Assembleia de 1987-88, o que permite identificar os congressistas envolvidos em cada uma dessas áreas de atuação. Porém não há aprofundamento no desenvolvimento das normas de preservação do patrimônio cultural, passando esse à margem da obra, até por não ser esse o objeto de trabalho do autor, assim como em Bonavides e Andrade23 e em Coelho24. A presença de atores sociais na constituinte de 1987-88 certamente atesta a vocação cidadã da Carta Constitucional de 1988. Mas a identificação precisa desses membros, assim como o apontamento dos constituintes que integraram, principalmente, a “Subcomissão da educação, cultura e esportes” (integrante da “Comissão da família, da educação, cultura e esportes, da ciência e tecnologia e da comunicação”, presidida esta por Florestan Fernandes), se faz primordial para a compreensão da elaboração do artigo constitucional 216. Um indício da disputa é que a subcomissão em questão dispunha de 25 titulares, entre conservadores (PFL, PDS, PTB, PL e parte do PMDB) e progressistas (PDT, PT e parte do PMDB), sendo que o PMDB contava com 13 representantes (entre conservadores e progressistas) e o então PFL com 7; e PL, PTB e PDS com um cada; enquanto PDT e PT só contavam com um cada partido. Porém, o desenho final da Constituição não reflete exatamente simplesmente a aritmética da assimetria entre conservadores e progressistas. Algo de qualitativamente significativo 126

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aconteceu no processo, resultando em um texto progressista (artigo 216), o que pode apontar, por um lado uma maior participação popular, e por outro uma maior habilidade daqueles grupos sociais que participaram, direta ou indiretamente, da discussão. Cabe ainda inquirir a participação de técnicos e consultores na redação do artigo constitucional em voga. Reconhecemos a relevância do tema contido no referido artigo; é preciso que se identifique o processo de edificação das normas e diretrizes. Conforme afirma Olender: Faz-se necessário (...) fortalecer aquele passado que se esvai, que se transforma, paulatina ou rapidamente, em ruínas, e que constitui a densidade de nossas memórias coletivas – realizadas cotidianamente nos comportamentos e nos diversos graus e dimensões das manifestações culturais de nossas famílias, grupos e classes sociais. Memórias que são aliadas importantes e, mesmo, fundamentais na nossa luta cotidiana de afirmação e reafirmação da vida social e da recuperação ou desenvolvimento de suas qualidades. Densidade esta que, por sua vez, (...) constitui o tenso, necessário e complexo quebra-cabeças de nossas manifestações culturais (OLENDER25, 1995, p.145).

A construção da identidade de uma nação passa, necessariamente, pela invenção de seu patrimônio cultural. E que esse processo de invenção se mostra conflitivo, ao se enumerar bens para preservação, assim como relegar outros ao esquecimento. Os grupos sociais e políticos envolvidos na articulação do artigo 216 certamente abordaram, cada um ao seu modo, a necessidade de se reconhecer as mais diversas miríades de expressões culturais, sejam elas materiais ou intangíveis. Mas é preciso que os identifiquemos para que entendamos o texto final promulgado em outubro de 1988. O texto de sugestões apresentadas pelos cidadãos brasileiros à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, entre março de 1986 e julho de 1987, com vistas à elaboração do novo texto constitucional, apresenta-se como um sinal de reivindicações populares. No documento “A Constituição Desejada”, podem ser identificados grupos que buscaram seu reconhecimento no texto constitucional, em especial no artigo 216. Textos integrais dos anteprojetos, dos substitutivos e dos projetos de constituição que tramitaram durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 são potenciais indicadores de grupos políticos envolvidos, assim como a íntegra das atas de reunião da subcomissão responsável pela elaboração do artigo 216, qual seja, “Subcomissão da educação, cultura e esportes”. Muito mais que respostas, encontramos nessa breve exposição problemas. Problemas esses que surgem nas elucubrações de todo aquele que investiga a memória coletiva e a identidade social, através de sua expressão política: o patrimônio cultural. “Como conceitos, tais quais ‘referência cultural’, ‘identidade nacional’ e ‘memória’, são apropriados no momento de confecção de um artigo constitucional como o artigo 216?” e “por quem são apropriados?” são perguntas que não podem continuar sem respostas. Mas esse alvo não é simples de ser atingido. Requer pesquisa e estudo. E os resultados dessa busca o autor desse texto se compromete a apresentar em suas investigações doravante.

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REFERÊNCIAS (Endnotes) 1 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 334p, 2008. 2

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

3 POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. Séculos XVIII – XXI. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. 4 CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do IPHAN. Brasília: IPHAN, nº 23, 1994, p. 94-115. 5

LOWENTHAL, David. El pasado es un país extraño. Madrid: Ediciones Akal, 1998.

__________. Why Sanctions Seldom Work: Reflections on Cultural Property Nationalism. International Journal of Cultural Property, (12): 393-423, 2005. 6

HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismos desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

7 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. Ed. – Rio de Janeiro: DP&A,

8 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 9 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/. Acesso em: ago. 2011. 10 HARDING, Sarah. Bonnischsen v. United States: Time, Place and the Search for Identity. International Journal of Cultural Property, (12): 249-263, 2005. 11 ZIMMERMAN, Larry J. Public Heritage, a Desire for a “White” History for America, and Some Impacts of the Kennewick Man/Ancient One Decision. International Journal of Cultural Property, (12): 265-274, 2005. 12 FERREIRA, Lúcio Menezes. Patrimônio, pós-colonialismo e repatriação. In: Ponta de lança: revista eletrônica de história, memória e cultura. Ano I, nº2, 2008. p. 37-62. 13 LIPPERT, Dorothy. Remembering Humanity: How to Include Human Values in a Scientific Endeavor. International Journal of Cultural Property, (12): 275-280, 2005. 14 GEARY, Patrick J.. O mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, Editora do Brasil, 2005. 15 TILLEY, Christopher. Identity, Place, Landscape and Heritage. Journal of Material Culture, (11): 1/2, 7-32, 2006. 16 WEISS, L. Heritage-Making and Political Identity. Journal of Social Archaeology, (7): 3, 413-431, 2007. 17

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. SP: Zahar, 1994.

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18 Um esclarecimento deve ser feito. O termo Lei é aqui usado em seu sentido amplo, como “regra ou conjunto ordenado de regras” oriundas do Estado (REALE, 2006). Como toda classificação taxonômica temos a lei em sentido amplo (ato normativo) e as suas espécies, como leis complementares, ordinárias, decreto, etc. 19 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. – São Paulo: Centauro, 2006. 20 ROSÁRIO, Claudia Cerqueira. O lugar mítico da memória. Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Ano 01, número 01, 2002 - ISSN 1676-2924. Disponível em: www.unirio. br/morpheusonline/Cláudia_Rosario.htm. Acesso em jul. 2008. 21 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 22 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 23 BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal: Paz e Terra, 1989. 24 COELHO, João G. L. A nova constituição: avaliação do texto e comentários. Rio de Janeiro: Ed. Renavan, 1991. 25 OLENDER, Marcos. Arquitetura, História e Vida. Revista Locus-UFJF, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 143-152, 1995.

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O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS

Arlindo Weber de Oliveira *

INTRODUÇÃO No mundo globalizado em que vivemos e de constantes transformações socioeconômicas e políticas, as mutações interferem diretamente no ato de consumir da sociedade. É comum muitas famílias não disporem te tempo para acompanhar as atividades realizadas pelos filhos. Várias são as desculpas, busca por emprego melhor, salário melhor, aquisição de um patrimônio melhor do que recebeu para poder deixar para os filhos e por ai vai. São várias as justificativas. Muitas dessas famílias não dispõem se quer de tempo para acompanhar e conversar com seus filhos sobre assuntos importantes. Quando criança e adolescente, muitas dúvidas surgirão e se a criança ou adolescente não estiver assistida pela fala de um adulto, muitos irão ingressar na adolescência com respostas oriundas de desconhecidos ou através de meios de comunicação. Seguindo nesse contexto, é o momento onde as drogas aparecem como resposta e solução para vários problemas existentes. É a porta de acesso para um mundo de tristeza e dor, tanto para o dependente quanto para a família que pertence. Nos dias atuais, as escolas estão enfrentando uma série de problemas com relação ao comportamento das crianças e dos adolescentes pertencentes a essas instituições. Sabemos que muitas mudanças, sejam elas biológicas ou psicossociais, são pertinentes da fase dos alunos que se encaixam nas turmas atendidas pelo programa PROERD ( Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência) realizado no município de São Leopoldo/RS. Tais mudanças alteram o comportamento o comportamento do indivíduo, vindo este a sofrer uma série de transformações e gerando alterações significativas. Partindo do contexto social onde as crianças e jovens, na sua maioria, passam a maior parte do tempo com seus pares na escola do que com os seus pais ou responsáveis, esses sujeitos irão se desenvolver buscando nos amigos do grupo, referências para a formação da sua identidade. Para Oliveira, 2007, (p.21-29): Assim, dada a ausência de um senso de identidade bem delineado, um ego frágil pode levar ao menos a duas consequências:(1) o adolescente preenche a lacuna deixada pela fragmentação do senso da identidade com imagens idealizadas que ele captura do outro, individual ou grupal, de maneira acrítica; (2) ele compensa a baixa auto-estima decorrente da crise de identidade com a adoção de comportamentos narcisistas, fúteis ou de risco.

Com a possibilidade de trabalhar em escolas com turmas de contextos sociais distintos, o PROERD vem participando e colaborando do crescimento, e porque não dizer, da formação da identidade desses sujeitos abrangidos pelo programa. Os assuntos abordados viabilizam, através de práticas interdisciplinares, a realização da escuta ativa, o trabalho em equipe, o gerenciamento de classe e

O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS

principalmente a busca pela reflexão a partir de uma decisão de forma consciente. O objetivo é trabalhar com a prevenção e redução do uso indevido de drogas e também a violência entre os estudantes, procurando reconhecer e identificar o perigo que as drogas causam, os tipos de pressão que poderão influenciá-los. Paralelo a isso, procura-se fortalecer a cultura da paz, do diálogo, contribuindo para uma sociedade mais feliz e por uma sociedade democrática de direito.

O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS Segundo o Manual de Facilitação, O PROERD (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), é uma versão brasileira do programa norte-americano Drug Abuse Resistence – D.A.R.E., surgido em 1983. No Brasil, o programa foi implantado em 1992 e hoje conta com 03 cursos: PROERD para 5º e 7º anos do ensino fundamental e Curso PROERD para Pais. O programa possui como material didático o Livro do Estudante, o Livro dos Pais e o Manual do Instrutor auxiliando os respectivos cursandos e os Policiais PROERD no desenvolvimento das lições. O programa consiste em uma ação conjunta entre o Policial Militar devidamente capacitado, chamado Policial PROERD, professores, especialistas, estudantes, pais e comunidade, no sentido de prevenir e reduzir o uso indevido de drogas e a violência entre estudantes, bem como ajudar os estudantes a reconhecerem as pressões e a influência diária para usarem drogas e praticarem a violência, e a resistirem a elas. De acordo com o Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito só será realmente possível com a participação de todos. A escola tem o papel de instruir, orientar e formar crianças e jovens a viver e trabalhar em um mundo diversificado e em constante mudança. No entanto, a escola por si só não está conseguindo atender as adversidades existentes. Para Roble, 2008( p.63): Uma escola que não se importa com oque acontece na vida do aluno é aquela para a qual o estudante é apenas um número, criando um ambiente em que a educação é vista unicamente como uma obrigação a cumprir. No entanto, sabemos que a educação deve ser o grande projeto de vida das crianças e jovens, uma espécie de aglutinador de suas vivências, para que variadas experiências possam ser objetos de reflexão e diálogo. Essa é uma importante dimensão da educação em seu sentido mais amplo e uma tarefa importante para a escola.

De acordo com o Manual de Facilitação PROERD 2008, na metodologia proposta pelo PROERD, o instrutor faz a mediação das discussões dos grupos, corrigindo equívocos com novos questionamentos aos alunos, buscando que eles, em interação com seus pares, encontrem a solução. O instrutor instiga e estimula os alunos para construírem juntos, um novo conhecimento, valorizando e colocando em primeiro plano as discussões das alunos nas atividades realizadas em equipe. O Instrutor passa a ser um facilitador da construção coletiva do conhecimento, um mediador da aprendizagem. A família, por sua vez, tem papel importantíssimo nesse processo. As motivações individuais de consumo, estão relacionadas com a personalidade do indivíduo, sua história de vida e, portanto, seu

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contexto familiar. A importância da família para o desenvolvimento do indivíduo é fundamental para a sua formação. O que se observa, diante de um mundo globalizado, é a ausência da família em vários aspectos. As famílias estão sofrendo alterações ao longo dos tempos. É comum nos dias atuais, por exemplo, famílias não conseguirem mais realizar uma refeição diária em conjunto. Isso revela que as famílias não estão conseguindo gerenciar e controlar suas tarefas diárias. Segundo Magnani ( 2009, p.37), os pais devem ter em mente que é preciso deixar claro para seus filhos quais são as regras sociais e como elas devem ser seguidas, além de explicitar quais serão as consequências caso elas não sejam respeitadas. Evidentemente que não está se afirmando que cada lar deve se tornar um local de disciplina e vigilância, tal como um “quartel”, mas é essencial que todos os membros de uma mesma família, que dividem o mesmo lar, saibam quais são as regras a serem respeitadas para que se tenha harmonia no ambiente doméstico. Além disso, é a partir da vida em família que o adolescente percebe como deve se portar diante dos outros de sua comunidade.

ÍNDICES DE VIOLÊNCIA Segundo a OMS, os índices de violência estão crescendo de forma preocupante no Brasil. Cidades da região metropolitana de Porto Alegre, entre elas São Leopoldo, estão entre as mais violentas do Estado do Rio Grande do Sul. Os jovens são as principais vítimas dessa realidade, aparecendo em destaque nas estatísticas sobre violência, desemprego, gravidez indesejada, falta de acesso as atividades culturais, entre outros indicadores. Pesquisas comprovam que as drogas são uma das principais causas desses problemas, podendo ser passíveis de prevenção. A partir desse momento é que se busca, de maneira interdisciplinar, com a participação da família, da escola e da polícia buscar estratégias para a prevenção e o combate ao uso de drogas. No município de São Leopoldo/RS, essa parceria vem sendo feita desde o ano de 2000, tendo como alunos formados até o presente momento, mais 14.000 jovens. O uso de tal ferramenta como traz o tema do artigo, veio para somar e colaborar com a formação de crianças e adolescentes do município. A inserção do programa nas escolas do município, sejam elas municipais, estaduais ou particulares, é cada vez mais requisitada. Para tentar entender os motivos que levam as crianças que frequentam as escolas cadastradas no programa PROERD, a experimentar bebida alcoólica ou cigarro, bem como entender se já sofreram violência física ou psicológica por causa das drogas, foi realizada uma pesquisa quantitativa com 310 sujeitos entrevistados. Os sujeitos entrevistados, foram os alunos do 5º ano que participaram do PROERD no 1º semestre do ano de 2012 das escolas contempladas com o programa no município de São Leopoldo/RS. O questionário foi elaborado pela equipe de instrutores do PROERD de São Leopoldo, contendo 07 questões sobre o uso de substâncias psicoativas conforme anexo. Os resultados mostraram que 32% das crianças já fizeram uso de bebida alcoólica pelo menos uma vez e 18% mais de uma vez. Segundo os entrevistados, os motivos são, por ordem, curiosidade (55%), alguém mais velho em casa faz uso (39%) e a pressão dos amigos (6%). Mostrou também, que 5% das crianças já sofreram violência física, 5% violência psicológica e 16% já sofreram as duas. Além disso, 24% dessas crianças e adolescentes já viram alguém da família sofrer agressão física e/ 133

O PROERD COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO NO COMBATE AO USO DE DROGAS NO MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS

ou psicológica. Diante da pesquisa realizada com os alunos do PROERD, do 5º ano, das escolas abrangidas, do município de São Leopoldo/RS, fica claro a participação das famílias como sendo, na grande maioria dos casos, as responsáveis pela iniciação e consentimento no consumo de drogas lícitas. Práticas como permitir que crianças e adolescentes bebam em festas de finais de ano ou aniversários, comprovam os resultados. Além disso, várias crianças afirmaram, durante as aulas, que são responsáveis pela compra de bebida e cigarros para integrantes de suas famílias. Alguns autores relatam que o consumo de álcool por adolescentes são “ritos de passagem” sinalizando o ingresso no mundo adulto. O álcool causa no adolescente uma série de consequências, interferindo tanto na aprendizagem quanto no desempenho das atividades escolares. O organismo e o corpo estão em desenvolvimento e o consumo precoce afetando o rendimento escolar. Estudos relacionados ao cigarro, comprovaram que existem mais de 4.700 substâncias tóxicas na fumaça do cigarro e que o cigarro é a causa mais comum de câncer de pulmão. Outro fato observado nas respostas, foi com relação aos motivos pela busca das drogas: a curiosidade é o atrativo dos jovens. Saber qual é a sensação, qual é o “barato” que dá quando se faz uso de cigarro ou de álcool. Chama a atenção o segundo motivo. O fato de alguém mais velho fazer uso, faz com que muitos jovens experimentam a partir do momento em que estão vendo alguém da sua família ingerir álcool ou fumar cigarro. Muitas crianças relataram que percebem que após o uso, seja de cigarro ou bebida alcoólica, seus pais ficam mais “alegres,” e relacionam essa “felicidade” ao uso de drogas. Ficou evidente que acontecem muitos atos de violência física e/ou psicológica por causa das drogas e que muitas dessas ações são presenciadas pelos sujeitos da pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas dez lições que o programa apresenta e nas respostas obtidas através do questionário aplicado com os sujeitos, o PROERD exerce um importante papel de prevenção, uma vez que proporciona a criança e ao adolescente uma série de informações necessárias, ajudando a reconhecer os perigos que as drogas causam, reduzir o uso indevido de substâncias lícitas e ilícitas, bem como auxiliar na escolha da decisão saudável de maneira confiante. O programa permite que os alunos, através de um modelo de tomada de decisão, possam definir o problema ou oportunidade quando este surgir, posterior analisar, pensando nas diferentes opções (pós e contras) e depois atuar tomando uma decisão. Após feita a escolha os alunos avaliam se a escolha foi boa ou não. Portanto, tal ferramenta vem tendo destaque pelas ações e resultados que vem obtendo. O fortalecimento de uma cultura de paz e a construção de uma sociedade mais feliz precisa da participação e o empenho de todos juntos (escola, família e polícia).

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REFERÊNCIAS CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988. MAGNANI, Aline Iris Gil Parra. Intervenção e Aprendizagem: Adolescência. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009. Manual de Facilitação PROERD, 3ª edição. 2008. OLIVEIRA, Maria Cláudia Santos Lopes. Vínculos imaginários. Mente e Cérebro. São Paulo: v.2, p.2129, 2007. Série: O olhar adolescente: Os incríveis anos de transição para a idade adulta. OMS. Violência. Disponível em: < http://www.who.int/topics/violence/es/>. Acesso em: 19 jun. 2012. ROBLE, Odilon. Escola e Sociedade. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008.

* Mestrando em Memória Social e Bens Culturais ( UNILASALLE), Pós-Graduado em Educação e Sociedade pela UNICID e Graduado em Geografia – Licenciatura Plena - pela UNILASALLE. É Policial Militar ,Instrutor/Professor do PROERD ( Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência.) em Escolas Públicas e Privadas no Município de São Leopoldo/RS.

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5. PATRIMÔNIO CULTURAL

JORNADAS MERCOSUL

A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO

Alexandre da Silva Borges * Helissa Renata Gründemann ** Jean Baptista ***

Considerações iniciais e as proposições para o Patrimônio Imaterial O seguinte artigo tem por objetivo apresentar alguns dos patrimônios imateriais da comunidade de Povo Novo (3º distrito de Rio Grande – RS) e, para tanto, tecer uma breve discussão acerca do conceito de Patrimônio Imaterial. Por conseguinte, abordaremos um pouco da história da localidade, para entendermos como se dá esta formação patrimonial. Esta comunidade, por ser distante do centro de sua cidade, Rio Grande, e por sua ruralidade, acabou por tecer uma identidade própria. Obviamente tal fato é comum no território brasileiro graças suas longas distâncias e por sua variada colonização. Pensando de modo mais amplo e geral, podemos notar que a cultura brasileira representa-se num grande mosaico, o qual tem suas diferenças e contornos derivados por diversos motivos: de cunho étnico-racial, regional, devido ao clima, território, entre outros fatores decisivos para sua formação. No final do século XIX, cientistas sociais voltaram-se seus estudos para o conceito de brasilidade. Isso se deu pela necessidade de entendermos o que constituiu e o que constitui nossa identidade. Tais cientistas se depararam com a seguinte realidade: (...) grande heterogeneidade de traços culturais ligados à variedade dos grupos étnicos que coexistiam no espaço nacional que se distribuíam diversamente conforme as camadas sociais. Os traços culturais não configuravam de modo algum um conjunto harmonioso que uniria os habitantes, comungando nas mesmas visões do mundo e da sociedade, nas mesmas formas de orientar seus comportamentos. Complexos culturais aborígenes, outros de origem européia, outros ainda de origem africana coexistiam. (QUEIROZ, 1989, p.1)

Essa discussão é muito atual e presente em nosso cotidiano, quando nos deparamos com fatores comuns em nossa sociedade, os quais apontam suas diversas características na forma de ser – seja na música brasileira, tão variada quanto as suas danças; o sotaque que se diferencia de sul a norte deste país, a vasta gastronomia, etc. No entanto, estes “cacos”, espalhados pelo território brasileiro, unemse de forma aleatória, mas com devido sentido e explicação histórica, formando distintos quadros da sociedade brasileira. Uma forma de se analisar estes “mosaicos” e seus “cacos”, e assim compreende-los, se dá na observação da construção do patrimônio, neste caso local. O patrimônio tem seu sentido e fundamento com as constâncias, tradições, através dos tempos. Como diria Ulpiano Bezerra de Menezes, na abertura da ANPUH-RS de 2012 na Universidade Federal do Rio Grande, a “identidade é o que permanece na mudança”. Acreditamos que esta identidade representa-se no processo de elencar e escolher seu patrimônio.

A CULTURA E O PATRIMÔNIO IMATERIAL DE POVO NOVO

Sabemos que, com o avanço tecnológico, como a internet e os canais midiáticos, o processo de dialética entre culturas se dá em maior intensidade, a troca de saberes. Para muitos, este evento pode significar uma perturbação na manutenção de práticas tradicionais ainda vivas em nossa sociedade. Numa discussão sobre “multiculturalismo e educação intercultural”, Leunice Martins de Oliveira conclui que “os indivíduos co-existem num espaço-tempo dado, em que não apenas se mesclam, mas se colocam numa situação em que o pensar e o agir de uns e outros trazem à tona as zonas conflitivas da relação com a diferença cultural” (OLIVEIRA, 2008, p. 61). Mas então, o quê é o Patrimônio Imaterial? Com o artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Cultural Imaterial explica-se que patrimônio cultural imaterial é entendido como: [As] práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (UNESCO, 2003 apud CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.11).

Para entendermos melhor sobre este conceito vamos decorrer sobre sua origem e sentido. O Patrimônio Imaterial nasce no campo cultural, predisposto a dar visibilidade aos aspectos ímpares e intangíveis de comunidades diversas, dentro de um contexto de transformações no mundo contemporâneo, visando agir contra as desigualdades e intolerâncias. Se antes “patrimônio” era considerado como só as edificações, enfim, os aspectos materiais que o homem construiu e com os quais teceu laços de significado, agora com o conceito de imaterialidade do patrimônio começa-se a pensar que estes laços não dependem de algo físico, e que os aspectos culturais imateriais são tão importantes quanto os materiais na formação e manutenção da identidade dos grupos humanos. Em escala mundial, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura) desde sua criação, após a II Guerra Mundial, caracteriza-se pela defesa da diversidade cultural. De maneira geral, as bases das ações entre as nações relativas ao Patrimônio Imaterial estão no documento da UNESCO “Recomendações sobre a Salvaguarda do Folclore e da Cultura Popular” (1989), e na instituição do programa de “Proclamação das Obras-primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade” (1997). Porém, foi em apenas em 2003 que a UNESCO organizou a já mencionada “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” em Paris, que de fato incentivava seus países-membros à criarem de políticas públicas específicas para a salvaguarda de seus Patrimônios Imateriais. Consequentemente, desde este documento, nota-se um crescimento na predisposição à salvaguarda destes patrimônios descortinados, com o interesse e “fomento ao diálogo intercultural e à criatividade humana” (CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.7), através de políticas públicas no intuito de fortalecer a diversidade cultural. Podemos dizer que, no Brasil, esta discussão e interesse já são muito antigos, iniciando na década de 1930 quando Mario de Andrade pensa e trabalha num amplo e detalhado tema acerca do manejo do patrimônio cultural, que de fato colaborou para as primeiras diretrizes para o então denominado SPHAN (atual IPHAN). Já em 1988, a Constituição Brasileira, conforme seu artigo 216, diz: 140

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“constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Deixa claro também que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Assim, para apoiar estas definições, o IPHAN, antecipando a própria Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da UNESCO, estabeleceu pelo Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000, os Instrumentos de Identificação e de Preservação dos Bens Culturais Nacionais, elegendo o Inventário Nacional de Referências Culturais como um conjunto teórico-metodológico para se evidenciar as manifestações de distintos grupos, suas dificuldades para manter a prática e os planejamentos para evitar que a prática desapareça. Para o IPHAN, como descrito neste decreto, e em consonância com a Constituição Brasileira e a legislação internacional, o patrimônio imaterial forma-se e define-se pelos “saberes, os ofícios, as festas, os rituais, as expressões artísticas e lúdicas, que, integrados à vida dos diferentes grupos sociais, configuram-se como referências identitárias”, merecendo, assim como os patrimônios materiais (edificações) serem preservados.

Metodologia Como base metodológica, utilizamos a pesquisa-ação. Por vezes considerada como uma “metodologia de ação” e não só como uma metodologia de pesquisa, seu objetivo primeiro é a ação social, a mudança efetiva de uma situação específica (DIONNE, 2007, p.34-35). Esta metodologia surgiu com a constatação cada vez mais evidente dos pesquisadores das Ciências Humanas dos limites da pesquisa científica tradicional em relação aos problemas cruciais da nossa sociedade (BARBIER, 2006, p.19-20). Jean Dubost define pesquisa-ação como uma “ação deliberada visando a uma mudança no mundo real, [...] englobada por um projeto mais geral e submetendo-se a certas disciplinas para obter efeitos de conhecimento ou de sentido” (DUBOST, 1987, apud BARBIER, 2006, p. 36). René Barbier também explicita: Se por muito tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e prever os fenômenos, impondo ao pesquisador ser um observador neutro e objetivo, a pesquisa-ação adota um encaminhamento oposto pela sua finalidade: servir de instrumento de mudança social. Ela está mais interessada no conhecimento prático do que no conhecimento teórico. Os membros de um grupo estão em melhores condições de conhecer sua realidade do que as pessoas que não pertencem ao grupo. A mudança na pesquisa clássica, quando há lugar para isso, é um processo concebido de cima para baixo. (2006, p.53).

Assim, percebemos que a pesquisa-ação pode ser muito útil em projetos que visam agir na sociedade em prol de uma melhoria, assim como em uma abordagem que leva em conta a realidade da comunidade em questão e de suas problemáticas, buscando auxiliar na resolução de demandas. Tendo isto em vista, as abordagens entre os participantes do Programa e os membros da comunidade sempre são feitas de igual para igual, sem nenhum tipo de hierarquização de saberes. As ações então são variadas, desde conversas com os moradores para melhor identificar determinadas situações e demandas; realização de Rodas de Memória; documentação e registro audiovisual, mediante

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permissão dos interessados, dos aspectos relevantes para determinado objetivo; entre outras que acabam sendo específicas de cada caso, pois aparecem com as demandas de cada comunidade.

Um breve histórico de Povo Novo O turbulento contexto de surgimento de Povo Novo se dá com a invasão espanhola no Rio Grande de São Pedro. Por este fato, muitos dos portugueses que ali viviam (habitando e protegendo a fronteira da colônia) não permaneceram, fugindo para o interior, mais precisamente para a atual Ilha da Torotama. Consequentemente ocorre o inchaço populacional da ilha, levando então à formação de um novo povoado, Pueblo Nuevo del Torotama. A participação de Povo Novo para a sustentação do Rio Grande foi importantíssima, já que em Torotama e Povo Novo os terrenos eram cultivados e, como chácaras, “permaneceram responsáveis pela produção agrícola da Freguesia, que respondia pelo abastecimento do mercado local” (QUEIROZ, 1987, p. 141). O distrito surge como Freguesia de Povo Novo apenas em 1846, quando o mesmo é elevado à Paróquia (Lei nº 35 da Assembléia Provincial de 06/05/1846). No entanto, o local já era habitado muito anteriormente por açorianos, já que em 1777 é edificada uma casa para a celebração de missas – prova de habitação. Não deveremos esquecer que, muito antes disso, já havia a presença indígena na região, a qual é comprovada pelos materiais arqueológicos encontrados em Povo Novo. O município de Rio Grande é formado por cinco distritos e um sub-distrito. Estes distritos estão afastados do centro e, por conseqüência, acabam por não incorporar a identidade riograndina da mesma forma que a região central, dois destes distritos são ilhas, o que dificulta uma maior interação. Um fator considerável e consequente é a negligência da administração municipal, a qual “dá as costas”, graças à “conveniente” distância, servindo-se desta realidade como justificativa para o seu desinteresse. Povo Novo está localizado a 40 km de distância de seu município e a 20 km da cidade de Pelotas. Logo, a ligação do pongondó1 é mais intensa com esta última, principalmente quando falamos em comércio, educação, saúde e lazer. Basicamente, o pongondó gasta em Pelotas, gerando lucros, não à sua cidade, mas sim à cidade vizinha. Decorrente destas características, o distrito também não se sente representado por Rio Grande, gerando a iniciativa local de se emancipar – ação esta sem êxito. Povo Novo, uma comunidade que vive entre a ruralidade e o caótico “progresso” de sua cidade a qual não discuti medidas administrativas que geram impactos à localidade, como as obras e suas conseqüências (caso da duplicação da BR-392). Hoje em dia, Povo Novo é conhecido como terra açoriana, no entanto, é claro que também é formado por negros e, antes mesmo de sua fundação, por indígenas que aqui permaneciam. Essa mistura étnico-racial possibilitou a diversidade cultural que o pongondó (habitante de Povo Novo) desfruta. No entanto, podemos dizer que esta é uma visão microscópica da configuração típica de nosso país: uma mistura de raças, cores e sabores, os quais tecem esta trama chamada de diversidade cultural ou, 1

Este conceito é cunhado, segundo moradores, pelos espanhóis que ali passavam no período de formação de Povo Novo (contexto de muita vulnerabilidade e miséria), os quais diziam “yo pongo dó”: afirmando que tinham pena da tal situação marginalizada. Com isso, fica ao morador, habitante nascido ou não de Povo Novo, esta designação: pongodó. No entanto, existem variâncias como: pogondó e pongondó, este último mais utilizado.

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como dizem os portugueses, esta caldeirada2.

Figura 1: Demarcação do território que compreende Povo Novo.

O Patrimônio Imaterial de Povo Novo Como vimos, Povo Novo é ligado e formado pela composição de valores da cultura luso-açoriana, e por tal fato, tem-se no distrito um sem número de manifestações típicas dessa origem. Citamos como exemplo os Ternos de Santos, prática ainda viva na comunidade que consiste em um festejo religioso em comemoração aos santos dos meses de junho e julho. Precisamente, os grupos (ternos) realizam um trajeto e, de casa em casa, tocam músicas típicas de tal festejo, levando mensagens de amizade e paz. Para trazermos como exemplo uma característica cultural de outra etnia, temos como uma prática, tipicamente africana, o enrestar (trançar), modo de fazer as résteas (tranças) de cebola e/ou alho, importante atividade para a economia local; o enrestar é antecedido por outra prática, que é o corte de junco (planta aquática que serve para enrestar), o junco é retirado de seu habitat, sendo cortado, logo após, o mesmo passa por um processo de prensa – o qual é feito por dois rolos, ou é batido por um “macete”, após é posto ao sol para secar e vendido à quilo. O junco será comprado, geralmente, por “banqueiros” (vendedores que utilizam bancas, às margens da BR-392, estes comerciantes vendem frutas, verduras, legumes, etc.. Como podemos notar, há um entrelaçamento em todos estes aspectos: culturais, econômicos, sociais, etc. A venda em bancas é peculiar em Povo Novo, logo, também tomamo-la como um fazer típico local. A relação que Povo Novo tem com a cultural de matriz africana é marcante, no entanto negli

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Em Portugal é comum a utilização da expressão caldeirada, caldeira étnica, que designa a variada formação da cultura e identidade deste país, utilizada pelos portugueses para designar a mistura étnico-racial da formação lusa.

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genciada. Hoje, com os estudos da historiadora Treyce Ellen Goulart3, conhecemos uma comunidade, familiar, localizada no Arraial de Povo Novo, que vive em condições idênticas a comunidades remanescentes de quilombo. A família Amaral descende de negros que atuaram no processo de escravização da localidade, mais precisamente, atuaram como escravos da família Mendonça. Estas relações de subordinação e desapropriação de mantiveram até a atualidade. A matriz africana está presente, também, na religiosidade pongondó. No distrito, apenas uma casa de Umbanda permanece em atividade, aberta ao público externo: o Centro Espírita Umbandista Seguidores do Pai Sete Flechas das Matas. Relacionada à religiosidade estão as benzeduras, as quais também fazem parte do leque patrimonial de Povo Novo, práticas que sobrevivem com os mais idosos, fazendo parte do cotidiano pongondó, da mesma forma que os saberes da utilização de ervas para a cura de doenças, uma “medicina alternativa”. Vinculado à cultura indígena está a utilização de ervas e frutos naturais, como medicina alternativa, para a cura de doenças. Muitas das vezes, tal prática não é valorizada e conceituada como típica da cultura indígena; o assado da tainha em taquara (peixe de água salgada, ou “saloba”) é outra característica das práticas tradicionais indígenas. Devido ao antigo percurso dos nativos, como os Kaingang, pela costa do Rio Grande do Sul (a península da Lagoa dos Patos), em busca de alimentos, sementes, etc., relacionamos o assado em estaca (cana, taquara) como uma gastronômica, indígena (pelo seu modo prático e pelo material utilizado). Hoje em dia este modo de fazer, o assado da tainha, tornou-se gastronomia típica da cidade de Rio Grande, atraindo turistas de todos os lugares, concentrando grande público, principalmente na Festa do Mar e a Festa do Peixe; e o deslocamento dos indígenas, de Iraí (norte do estado) até Rio Grande, se dá com o intuito de venda do seu artesanato.

Considerações Finais Acima, elencamos alguns dos patrimônios imateriais de Povo Novo. O que trazemos como preocupação é, justamente, a permanência destes fatores culturais na comunidade. Notamos, como ameaça, o avanço do “progresso” da cidade que pouco volta os olhos para o seu distrito, o qual sofre com as consequências das ações administrativas, as quais buscam a dinamização e melhoramento das condições de acesso ao Super Porto. A duplicação da BR-392 é um exemplo: tanto o patrimônio ambiental da região, quanto o patrimônio edificado, está padecendo pelas “grandiosas” obras da bandeira do progresso. Um dos maiores banhados da região (o banhado 25) foi terraplanado para a construção da outra via, ocorrendo o desmatamento de árvores e sua drenagem. O antigo prédio da Escola Estadual de Ensino Médio Alfredo Ferreira Rodrigues, está prestes a ser demolido para a construção de um viaduto. Lembramos aqui do valor “simbólico” destes patrimônios: o prédio a ser demolido é uma referência da comunidade, sendo que todos os que passam pela BR identificam Povo Novo pela escola. Para o pongondó a escola é um símbolo que representa aquele lugar. Sem falarmos dos inúmeros desalojamentos 3

Treyce Ellen Goulart é historiadora, formada pela Universidade Federal do Rio Grande e coordenadora do Programa de Extensão Comunidades FURG (ComuF). Atua junto à comunidades quilombolas do município de Rio Grande: Quilombo dos Macanudos (situado na Vila da Quinta – RG) e o quilombo (ainda em processo de reconhecimento) da família Amaral, localizado no Arraial, em Povo Novo.

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ocorridos e o fechamento das “bancas”, prática econômica típica de Povo Novo (que já citamos). Os impactos da duplicação serão mais intensos, obviamente, para os que usufruíam da BR não duplicada para a venda de “quitandas”. Sendo assim, sem bancas não haverá quem fará as résteas de cebola e alho. Sem o profissional que enrresta, não haverá comprador de junco. Consequentemente, não haverá porque continuar com a prática do corte de junco; acarretando o desaparecimento dos vários “cacos” do mosaico patrimonial, enunciado no início de nosso texto, a cultura pongondó se esmaece, se perde ou – para alguns – se “muta”. Portanto, acreditamos que não apenas o patrimônio material lidará com as consequências do caótico “progresso”, mas também o imaterial. Pelo viés cultural as condições de marginalidade do distrito oferecem um estado de “proteção”. A resistência do patrimônio pongondó se dá, além de outras formas, principalmente pelo seu relativo isolamento, considerando a distância que o distrito possui de sua cidade. No entanto, a preocupação que temos, relativa à permanência das práticas tradicionais de Povo Novo, se dirigem à inexistência de ações de salvaguarda neste campo. Logo, nosso trabalho como historiadores extensionistas nesta comunidade está sendo o levantamento patrimonial e, por relatos orais, o registro da história e da diversidade cultural pongondó.

REFERÊNCIAS BARBIER, René. A Pesquisa-Ação. Brasília: Liber Livro Editora, 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil – Legislação e Políticas Estaduais. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008. DIONNE, Hugues. A Pesquisa-Ação para o Desenvolvimento Local. Brasília: Líber Livro Editora, 2007. IPHAN. Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Agosto/2000. OLIVEIRA, Leunice Martins de. Multiculturalismo e educação intercultural. In: La Salle: Revista de Educação, Ciência e Cultura / Centro Universitário La Salle. – v. 1, n. 1 (outono/1996). Canoas: Centro Editorial La Salle, 1996. QUEIROZ, Maria Bertuline. A Vila do Rio Grande de São Pedro 1737 – 1822. Rio Grande: FURG, 1987. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil. In: Tempo Social - Rev. Sociologia da USP. São Paulo: 1. sem 1989.

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Alexandre da Silva Borges * Graduando de História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande - FURG e Bolsista do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu) Helissa Renata Gründemann ** Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, graduanda de História Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG e Bolsista do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu) Prof. Dr. Jean Baptista *** Orientador e Coordenador do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu)

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NOS CAMINHOS DO SANTO MONGE

Fabian Filatow *

Introdução O presente artigo tem como objetivo efetuar uma análise sobre as representações do sagrado atribuídas ao santo monge João Maria. Personagem que obteve significativo destaque junto a diferentes comunidades da região sul do Brasil, tendo iniciado no século XIX e existente até a atualidade. Sua representação esteve identificada com a ocorrência de movimentos sociais ocorridos na primeira metade do século XX, como por exemplo, Monges do Pinheirinho (Encantado, RS – 1902); Guerra do Contestado (1912 – 1916) e Monges Barbudos (Soledade, RS – 1935 –1938). Ainda hoje é possível identificarmos sua presença no imaginário religioso popular, principalmente em localidades da região sul do país, nas quais podemos identificar a existência de devotos deste santo popular. O estudo tanto da origem história deste personagem quanto da construção da representação do sagrado que lhe foi atribuída, contribuiu para uma melhor compreensão da cultura popular na região sul do Brasil. Os espaços do sagrado, os quais foram e que ainda são identificadas com a figura do santo monge, como as fontes d’água, contribuem para a sacralização do espaço e sendo assim, para a confirmação da santidade do santo monge ao longo do tempo e do espaço. Estes espaços permanecem até hoje como locais identificados com o santo monge, confirmando seus dons taumaturgos. Temos ainda os conhecimentos sobre o uso das ervas, com fins medicinais, as quais operariam verdadeiras curas, também estes saberes populares contribuíram para a construção da imagem do santo, conhecimento este que dialogava com os saberes das comunidades nas quais a representação do santo monge obteve acolhida. Assim sendo, o estudo sobre o santo monge contribui para uma melhor compreensão das representações do sagrado e das visões de mundo que estiveram presentes e que contribuíram para a formação de identidade nos movimentos sociais aos quais nos referidos acima. Almejando atingir os objetivos propostos, faz-se necessário explicitarmos os instrumentos teóricos que nos orientaram neste estudo, tais como santidade, representação, cultura, o que faremos em seguida. Segundo Rudolf Otto, a santidade é uma qualidade que adquirem certas pessoas, coisas, lugares, animais, ações e acontecimento em virtude de seu contato com um poder misterioso, sobrenatural. O autor ressalta ainda o caráter ambíguo do conceito santoral, que significa, ao mesmo tempo, uma ruptura e uma ligação. Para Otto, a santidade implica, por um lado, um rompimento com os elementos profanos do mundo, e, por outro, o estabelecimento de elos com o divino. (OTTO, 1985) Associado a concepção de santidade, temos a noção de santo. Ser santo está condicionado a

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ser visto e tratado como tal, ser aceito por uma determinada cultura, ou grupo social como santo. Para André Vauchez, “só se pode ser santo em função dos outros e pelos outros” (VAUCHEZ, 1987, p. 290.), ou seja, na medida em que se é aceito, reconhecido e tratado como santo por outras pessoas, podemos compreender a noção de santo como uma relação de alteridade. Ou seja, tanto a santidade quanto o ser santo está atrelado ao grupo que o concebe como tal, o indivíduo, lugar ou objeto se torna merecedor da qualidade de santidade ou de santo através dos outros, não havendo uma relação de imposição externa, mas um reconhecimento a partir da cultura do grupo que o qualifica, caso ocorrido com a representação de João Maria, transformado em santo monge, sendo agraciado com a qualidade de santidade e de santo, pois obteve uma identificação com a cultura nas regiões onde é cultuado. Ao longo do tempo a presença do santo monge permaneceu viva no sul do Brasil. Esta permanência pode ser explicada pela representação do sagrado. Segundo o historiador Roger Chartier, representações “são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990. p. 17). Neste sentido, devemos compreendê-las presentes também no sagrado compondo os movimentos sociais destacados neste estudo, fazendo-se necessário relacionar o signo visível e o seu referente por ele significado. Assim, estaremos utilizando o conceito de representação no sentido de representar algo ausente, ou seja, ‘algo que está no lugar de’. As representações se forjam inseridas numa cultura, estando a ela relacionada. Segundo Cliford Geertz, cultura é “[...] um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”. (GEERTZ, 1978. p. 103). Podemos assim definir que as representações do sagrado se encontram relacionadas com a realidade social dos sujeitos que compuseram os movimentos citados, as quais estavam inseridas na sua cultura, sendo uma forma de sua expressão. Analisar as representações do sagrado possibilita compreender melhor a cultura dos sujeitos que compuseram os movimentos sociais destacados no início deste trabalho. Possibilita igualmente compreender um dos elementos que pode ter contribuído para a formação de uma identidade alicerçada numa concepção religiosa, numa concepção de sagrado. Casos que são mais evidentes em movimentos como do Contestado e dos Monges Barbudos, que tiveram na figura do santo monge a sua formação sócio-religiosa. Neste sentido, Duglas Teixeira Monteiro, estudando o movimento do Contestado, apresentou uma análise da representação do monge frente à do padre. A pedagogia dos sujeitos reconhecidos como monges se encontrava em sintonia com a cultura dos caboclos, desenvolvendo suas ações e pregações a partir desta cultura, ou seja, criando uma identificação com a cultura dos caboclos. Monteiro apresentou a função do monge da seguinte maneira: Em contraste com o padre - porta-voz de uma instituição estranha - que, saindo de sua sede paroquial, situada numa vila ou cidade, também percorria o sertão, o monge vivia no sertão. [...] Ao contrário do padre, esses estranhos se deixavam assimilar. Conquanto vivessem uma vida apertada e cultivassem hábitos mais ou menos ascéticos, passavam a fazer parte integrante da vida social sertaneja, como se fossem uma florescência natural da religião católica rústica. Representava o monge, desse modo, um papel equivalente ao do padre, mas estava a serviço e era a expressão da autonomia do mundo religioso

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rústico. (MONTEIRO, 1974. p. 81).

Assim sendo, a figurada do santo monge conquistou sua posição de destaque junto à comunidade porque legitimava e dava sentido às práticas religiosas das mesmas, bem como às visões de mundo dos caboclos. Além disso, movia-se com destreza junto as suas necessidades, quando havia doença, prescrevia receitas com plantas e ervas conhecidas pela população na lida diária com a terra, bem como orações e ritos que operavam “milagres”. Enfim, os monges valorizavam a tradição oral da cultura cabocla, tanto para a transmissão quanto para a sobrevivência dessas narrativas, inserindo-se nesta cultura lograram se perpetuar ao longo do tempo. A recepção dos ensinamentos do monge passa por essas interpretações das práticas com dimensões simbólicas, como os rituais de batismo e de curas que eram realizadas junto às fontes sagradas. Elas possibilitavam a sacralização do espaço, contribuindo para a permanência do monge, através das representações, tornando-os lugares de memória, memória do sagrado, memória da cultura cabocla, cultura de resistência.

Os caminhos do santo monge na historiografia A produção historiográfica sobre a presença dos monges no sul Brasil já é de longa data. Inicialmente temos que o estudo destes personagens nomeados monges esteve associado com o estudo da Guerra do Contestado principalmente. Nas primeiras décadas do século XX a historiografia foi dominada inicialmente por militares e políticos tendo divulgação também na imprensa. De maneira geral, estas produções identificaram o movimento do Contestado, e demais movimentos ocorridos no campo, como oriundos do fanatismo e das crendices populares típica dos caboclos, estas historiografias acusavam os camponeses de ignorantes, declarando que estes se deixaram conduzir pelo fanatismo religioso, muitos destes liderados e divulgados pelos monges. Temos assim, uma produção historiográfica que visava negar a existência tanto da cultura quanto do grupo social camponês. Ao longo da década de 1960, a Guerra do Contestado vivenciou um período de redescobertas e foi retomada a discussão sobre os movimentos sociais camponeses. Destacamos aqui dois trabalhos de referência deste período, o primeiro produzido por Maurício Vinhas de Queiróz em 1960 e o segundo elaborado por Duglas Teixeira Monteiro no ano de 1974. Nesta fase, as pesquisas buscaram compreender o religioso inserido no campo cultural caboclo, distanciando-se das concepções que os identificavam como resultados da ignorância ou do fanatismo. Nestes trabalhos as figuras do monge João Maria e José Maria receberam atenção e estudos qualificados, relacionando-os com a realidade social dos camponeses1. A historiografia produziu diversas obras sobre os monges, especialmente João Maria. Trabalhos que confirmam a necessidade de realizarmos pesquisas sobre o assunto, pois ainda persistem questões relevantes a serem discutidas. Dentre as obras que se dedicaram a estudo e interpretação do santo monge, temos o livro produzido por Oswaldo Rodrigues Cabral em 1960, o qual foi intitulado

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A historiografia sobre a Guerra do Contestado é vasta e oriunda de diversas áreas do conhecimento. Não temos a pretensão de esgotar esta discussão neste momento, apenas pretendemos indicar alguns momentos significativos para contextualizar os estudos sobre os monges.

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João Maria: interpretação da Campanha do Contestado2. Na referida obra, o autor buscou compreender o movimento do Contestado através da história deste personagem. Na década de 1990, tivemos dois trabalhos que também se dedicaram ao estudo da trajetória do monge. Em 1992, Célio Alves de Oliveira produziu a pesquisa que foi intitulada A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus na região do Contestado, Santa Catarina, na qual buscou analisar a origem do mito João Maria e o significado da sua reelaboração no ideário religioso regional. Destacou que o mito não poderia ser pensado como um dado neutro, fora do contexto sócio-cultural e religioso, este mito, segundo o autor, contribuiu para a construção da identidade regional. Ainda na década de 1990, mais precisamente no ano de 1995, José Fraga Fachel publicou seu livro intitulado Monge João Maria: recusa dos excluídos. Estudo que teve como objetivo pesquisar a origem do monge João Maria e seus desdobramentos nos diferentes movimentos sociais nos quais sua representação este associada. Ao longo do ano de 2007 foram produzidos dois novos tendo novamente a figura do monge João Maria como centro da pesquisa. O primeiro foi produzido por Cesar Hamilton Brito Goes, na sua tese de doutorado em Sociologia, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo o trabalho como título Nos caminhos do Santo Monge: religião, sociabilidade e lutas sociais no sul do Brasil. A pesquisa abordou a formação religiosa dos grupos populares do sul do Brasil, destacando principalmente os caboclos. Analisou a formação da identidade dos grupos e formação social através da devoção ao santo monge ou São João Maria. O segundo trabalho realizado em 2007 foi produzido por Tânia Welter, a tese de seu doutoramento em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina, a qual foi intitulada O profeta são João Maria continua encantando no meio do povo. A pesquisa analisou os discursos a respeito de João Maria em Santa Catarina, destacando que estes foram construídos pelos devotos a partir da sua cultura histórica. Este discurso é que deu legitimidade a figura de João Maria. Em 2012, Alexandre de Oliveira Karsburg defendeu sua tese de doutorado em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua pesquisa dedicou-se ao estudo do primeiro monge, trabalho este que está intitulada O eremita do Novo Mundo: a trajetória de um peregrino italiano na América do século XIX. Pesquisa esta que contribuiu significativamente para uma melhor compreensão do personagem histórico Giovanni Maria de Agostini, reconstruindo sua trajetória tanto no território brasileiro como nos demais países da América ao longo do século XIX. Enfim, esta breve revisão historiográfica nos possibilita evidenciar o interesse existente sobre estes personagens intitulados monges e que estiveram atrelados aos movimentos sociais camponeses no passado e que na atualidade ainda estão presentes no campo do sagrado das populações do Brasil meridional. A presença deste santo se efetiva pelas representações do sagrado. A seguir, nos dedicaremos ao estudo destas representações.

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CABRAL, Oswaldo Rodrigues. João Maria: interpretação da Campanha do Contestado. São Paulo: Nacional, 1960. A segunda edição, revisada foi publicada em 1974, com o título A Campanha do Contestado, pela Editora Lunardelli.

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O santo monge e as representações do sagrado Na localidade de Sorocaba se realizavam as feiras e em consequência desta atividade econômico-comercial que movimentava o transporte de animais e erva-mate, principalmente, construiu-se o itinerário dos tropeiros, ligando os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. Inserido neste contexto sócio-econômico, onde se cruzavam camponeses, peões, tropeiros e operários, temos referência a presença do monge João Maria d’Agostinho3, que do alto do Araçoiaba, atraía inúmeros visitantes. Uns por curiosidade, outros em busca de lenitivos espirituais ou materiais para seus males. Da Pedra Santa ou Pedra do Monge, como ficou conhecida, corria uma fonte de água límpida e que passou a ser considerada como milagrosa. (FACHEL, 1995, p. 16 -18). Podemos perceber a sacralização do espaço, ou seja, da relação do monge com a natureza nasce à água tida como sagrada, o que será um fator aglutinador dos diversos monges que existiram no sul do Brasil. Podemos perceber que a relação natureza e o sagrado como sendo uma constante nos demais personagens que assumiram o papel de santo monge. Também percebemos a fonte de água, outro lugar do sagrado que servirá para a preservação e confirmação da presença do santo monge nas diferentes regiões dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente. No trabalho produzido por Oswaldo Cabral temos a descrição física de João Maria. Segundo o autor este monge “(...) vestia um hábito, [...] tinha cabelos compridos e a barba longa. Dormia sobre uma tábua e alimentava-se de frutos, [...]. Às vezes, na calada das noites, em sua gruta, entoava a plenos pulmões os seus salmos e as suas orações [...]”. (CABRAL, 1960. p. 108-109). Podemos indicar que tanto a vestimenta quando os hábitos contribuíram para a construção da qualidade de santidade e consequentemente de santo deste personagem pelos sujeitos que com ele conviveram ou que tiveram contato, direta ou indiretamente. Outro ponto que merece destaque na trajetória de construção deste personagem em santo monge está atrelado ao dito poder de cura. Segundo relatos diversos o santo monge realizava curas. Estas estavam associadas a fontes de água as quais teriam sido criadas pelo próprio monge e seriam portadoras de faculdades curativas. No município de Soledade, interior do Rio Grande do Sul, localidade onde ocorreu o movimento dos Monges Barbudos, encontramos o relato do senhor Sebastião Firmino Nunes, morador daquele município que mencionou a existência da fonte de água sagrada e que a mesma teria origem da vontade do santo monge. Olha, isto aqui é dos tempos mais agudos, isto é, dos tempos mais antigos, quase no início do mundo. Meu avô contava muita coisa. Meu pai, que hoje teria 105 anos, contava que o “padre santo” fez nascer a fonte. [...] O monge parou para descansar. Plantou uma cruz de madeira aí mesmo. Olha, tem ainda o sinal. Aqui os demônios perderam ele. Perderam o rastro, como se diz. Quando sentiu sede, não tendo água, levantou a mão e disse: ‘Esse lugar é abençoado; dará água para mim tomar; o doente será curado e vai as almas salvar’. Todos que se virem perdidos ou perseguidos se salvam com esta água. Daí estourou a vertente, brotou água pura. (VERDI, 1987. p. 205-206).

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A grafia segue a utilizada pelos autores em suas referidas obras.

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Na continuidade do seu relato, o senhor Sebastião Nunes lembra outro milagre também atribuído à fonte sagrada, o caso de dona Elísia Pereira que sofria de uma doença que cobria o corpo todo de chagas e que estava quase cega, “não havia remédio que a curasse. Um dia sua irmã [de Sebastião] levou a enferma até a fonte. Lá lavou o corpo e o rosto da doente. Ficou limpinha. Viveu muitos anos. Ainda enxergava bem, quando morreu aos 115 anos”. (VERDI, 1987. p. 206). No que foi descrito acima, podemos identificar que as fontes de água se encontram no lugar do santo monge, elas servem tanto para confirmar sua presença quanto seu poder taumaturgo, ou seja, estes lugares do sagrado o representam em sua ausência. O espaço sagrado torna-se assim uma maneira de expressar a cultura através da religiosidade e legitimar sua existência através do tempo. Chamamos a atenção para a presença do tempo nas citações destacadas acima. Assim como o santo monge também suas curas estão associadas a um longo tempo, no caso do relato do senhor Sebastião Nunes a longa vida da pessoa que recebeu a cura da fonte sagrada também demonstra a santidade do monge. As representações do sagrado contribuem para a permanência de João Maria, o santo monge. A seguir, analisaremos um caso específico em Soledade, no qual poderemos perceber a permanência do sagrado através da natureza e das representações do santo monge.

Nos caminhos do santo monge e o espaço do sagrado: estudo de caso Nesta última etapa deste estudo, gostaríamos de realizar um breve exercício de análise de um caso específico de devoção ao santo monge João Maria na atualidade. A seguir apresentaremos algumas imagens da localidade de São Tomé, no município de Soledade – RS, nas quais visualizaremos uma construção do espaço sagrado, destacando as representações do sagrado. Numa percepção geral temos o local composto pelos símbolos do sagrado, ou seja, temos a fonte de água, a cruz e no interior da capela a foto do santo monge João Maria.

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Figura 1. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor

Podemos perceber na inscrição feita na cruz a frase “Água do Santo Monge, graça alcançada, DIDI F.F.”. A representação do santo monge ainda permanece na localidade por fazer parte da cultura.

A cruz serve como símbolo para marcar o lugar sagrado da graça alcançada. Figura 2. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor

Na imagem 2, apresentada acima, podemos visualizar a existência de um capitel, com o objetivo de proteger os símbolos do sagrado depositados no seu interior. Nas imagens número 3 e 4, logo a baixo, podemos perceber o interior deste santuário em destaque, no qual estão depositados os diferentes símbolos do sagrado, crucifixo, a imagem de Nossa Senhora e um quadro do santo monge João Maria, que foi, segundo a inscrição na cruz analisada acima, o motivador da construção deste espaço do sagrado.

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Figura 3. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor

Figura 4. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor (Ampliação da imagem interna, quadro do santo monge)

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Na última imagem selecionada deste estudo de caso, destacamos a Fonte d’Água. Como apresentado ao longo do trabalho, a figura do santo monge está diretamente relacionada à Fonte d’Água. Em todos os momentos e lugares que fizeram referência a este personagem na qualidade de santo temos a presença deste símbolo sagrado. A fonte representa o santo monge na sua ausência, em diferentes tempos e espaços.

Figura 5. Foto: Adriana França (2011) - Arquivo do autor

Acreditamos ser fundamental a preservação destes lugares como parte do patrimônio imaterial. Sendo necessário um mapeamento destes ao longo das regiões que tiveram e mantém a devoção ao santo monge, destacadamente nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Pois a preservação destes locais contribuiu para manutenção da expressão cultural das comunidades caboclas e camponesas.

Considerações finais Como fechamento deste trabalho, o qual nos levou a refletir sobre a figura do santo monge e sua relação com os movimentos sociais, salientamos que ainda há possibilidades de pesquisas e questionamentos a serem realizadas neste campo do conhecimento que possibilita o diálogo do social, do político, do religioso e do cultural. Na permanência da devoção ao santo monge e a manutenção dos lugares do sagrado, com as fontes de água, as orações, os ensinamentos sobre o manuseio das ervas medicinais, todas estas relacionadas com a figura do monge nos permitem destacar esta prática religiosa como prática cultural, transmitida ao longo do tempo e por gerações. Mais ainda, podemos identificar esta permanência como uma resistência frente ao combate que lhe foi movida quando da ocorrência da Guerra do Contestado e da repressão imposta ao movimento dos Monges Barbudos. Estes movimentos foram duramente reprimidos, cada um no seu tempo e no seu contexto político e social, porém destacamos que ambos tiveram seus sujeitos identificados pelos grupos repressores como caboclos ignorantes e fanatizados, como despossuídos de cultura, os quais necessitavam ser integrados ao projeto modernizante imposto ao país.

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Neste sentido, a trajetória do santo monge bem como o corpus sagrado a ele atribuído nos possibilita dar maior visibilidade a um grupo social que por longo período na história brasileira teve sua cultura subjugada, negada, silenciada, a cultura cabocla. Para compreendermos as permanências desta cultura ao longo do tempo se faz necessário analisarmos as diversas formas de expressão religiosa no seu contexto sócio-político bem como a relevância da representação do santo monge no interior destas comunidades. Caso contrário iremos dar continuidade ao muro cultural construído ao longo do tempo, no qual percebemos uma imposição da visão do litoral sobre o interior, onde o litoral é percebido como modelo de civilização, modernidade e progresso. Ao interior ficaram impostas as noções como atraso e ignorância, visões estas perceptíveis na historiografia produzida ao longo do século XX sobre os movimentos sociais camponeses. Estas noções marcaram profundamente as concepções sobre as populações caboclas ao longo do último século.

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* Fabian Filatow Mestre em História (UFRGS) - Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Bolsista CAPES.

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O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI

Delcimara Batista Caldas * Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho ** Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira ***

Introdução O pensamento científico até o final do século XIX foi marcado por um paradigma denominado positivista, que concebe a ciência como dona da verdade, separando sujeito e objeto do conhecimento. Este pensamento influenciou as diversas áreas do conhecimento, entre elas educação. No século XX, porém, houve significativas mudanças no pensamento científico. Tais mudanças ocorreram porque as soluções e/ou explicações propostas pelo paradigma positivista já não conseguiam responder aos problemas que se apresentavam na sociedade contemporânea. Nessa perspectiva, grandes cientistas foram responsáveis pela ruptura com o pensamento cartesiano-newtoniano, podendo-se citar Einstein e sua Teoria da Relatividade, Heisenberg com Princípio da Incerteza, Niels Bohr com a Lei da Complementaridade e Prigogine e seu conceito de Estruturas Dissipativas (MORAES, 2010). A partir de então, surge uma nova forma de pensar ciência enquanto proposta de interpretação. Nesta nova visão, o conhecimento científico é construído, desconstruído e reconstruído pelo sujeito histórico que está interconectado com o seu objeto do conhecimento e ambos estão imbricados em uma realidade dinâmica, mutável, ou seja, um todo relacionado, onde se insere este estudo sobre a paisagem, o qual visa relacionar o conhecimento formal com os saberes advindos da sociedade. Neste sentido, objetivando contextualizar o conhecimento formal e o empírico, este estudo visa relacionar paisagem, toadas de bumba-meu-boi e as disciplinas abordadas em sala de aula, mostrando que é possível trabalhar-se a partir de um novo paradigma, ou seja, buscando estabelecer uma relação direta com o ambiente em que vivem os discentes. Vale ressaltar que, assim como a língua, a cultura popular está em constante mutação dentro das suas formas de manifestação, quer seja pela mudança promovida pela forma como ela é transmitida a outras gerações, quer seja pela pouca interferência da escola na vida dos alunos (FAZENDA, 1996). Nesta perspectiva, observando-se a necessidade de aperfeiçoar uma metodologia para o trabalho docente nas séries iniciais, este artigo enseja um estudo sobre paisagem, na perspectiva real de entrelaçar as principais disciplinas abordadas em sala de aula, a partir da análise de algumas toadas de conhecidos nomes da cultura maranhense.

O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI

Para tanto, é necessário entender primeiramente o que significa o estudo de paisagem e qual a relação que pode ser feita entre ele e o conteúdo que se almeja em alcançar em sala, fugindo dos velhos métodos tradicionais que, muitas vezes afastam o aluno do professor e da escola. Ressalta-se, portanto, que é bastante eficaz no contexto do ensino e da aprendizagem promover a aproximação do estudante do ambiente onde o mesmo se insere, pois assim pode-se atender melhor às suas expectativas e ainda colocá-lo em contato com a cultura e com os demais conhecimentos, sem deixa-lo à margem do processo, em uma posição de pouca relevância, como muitas vezes ainda ocorre.

O que é o estudo de paisagem? A paisagem é uma parte perceptível ao observador, na qual é descrita uma série de fatores visíveis e invisíveis, além de interações realizadas em momentos simultâneos, onde se vai considerar a busca do todo e não apenas um aspecto isolado. Assim, Passos (1998) diz que a paisagem é percebida e descrita a partir de formas, as quais são resultantes de dados do meio ambiente natural ou que ainda podem representar consequências de modificação, alteração do homem, onde este possa imprimir sua marca neste espaço. A combinação da natureza com elementos sociais resulta em traço comum da paisagem. Assim, a cada alteração sofrida pelo ambiente, representa uma alteração sofrida pelo homem em sua crescente busca pela superação e pelo desejo de satisfazer necessidades. (SANTOS, 1986). No sentido de contextualizar o estudo realizado, pode-se dizer que a aprendizagem efetiva dos discentes perpassa por múltiplas habilidades que dificilmente são exploradas e, com um trabalho diferenciado, a partir do entendimento do que é paisagem e da sua relação direta com as toadas aqui apresentadas e de tantas outras existentes na história do bumba-meu-boi, o conhecimento passa a ter um significado especial em sala de aula, pois as relações extrapolam o usual.

O conhecimento transdisciplinar na sala de aula, a partir do estudo de paisagem nas toadas de bumba-meu-boi O Maranhão é um dos estados brasileiros com maior diversidade de sons e ritmos. Sua música é materializada principalmente nas manifestações folclóricas, que vivificam-se no meio do povo durante todo o ano, seja no carnaval, no período junino onde o bumba meu boi, o tambor de crioula, o lelê e o cacuriá embalam corpos frenéticos seja em homenagens aos santos católicos ou apenas como folguedos populares, herança dos antepassados maranhenses. Com tanta diversidade cultural, é inadmissível que a escola enquanto espaço onde se entrelaçam saberes formais e informais não aproveite os conhecimentos populares em prol da construção e reconstrução de conhecimentos essenciais para a formação de um senso crítico e participativo, essenciais para o exercício da cidadania. Assim, pensando no sentido de se contribuir com a melhoria do processo de ensino e de apren160

Delcimara Batista Caldas, Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho, Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira

dizagem, apresentam-se algumas das toadas escolhidas para a composição deste trabalho. Vale, porém, destacar os autores Moraes e Batalloso Navas (2010) quando dizem que há necessidade de se acreditar na mudança da educação, principalmente diante de tantas dificuldades enfrentadas por todos os que nela exercem sua atividade profissional. A adaptação a uma nova cultura de trabalho requer profunda revista na forma de ensinar e de aprender.

As toadas do bumba meu boi As toadas são os cânticos entoados no bumba meu boi. Expressam os modos de sentir e vivenciar o mundo que rodeia os amos ou cantadores, como são conhecidos os que compõem ou cantam uma toada. As toadas podem falar do cotidiano, de contextos políticos, de amor, de amizade ou mesmo como forma de atingir adversários reais ou imaginários, observando-se que há nesse contexto, uma relação com o trovadorismo português, nos séculos V e VI. Enaltecem ainda, os lugares onde vivem, os costumes e também se constituem como forma de construção de identidades. Nesse sentido, as toadas que são gêneros textuais de bastante relevância para a análise e interpretação de textos são uma estratégia de resistência e preservação cultural, razão pela qual ilustram este trabalho sobre o estudo de paisagem, buscando uma interdisciplinaridade entre a Língua Portuguesa e outras áreas de conhecimento. Maranhão, meu tesouro, meu torrão Fiz esta toada, pra ti Maranhão Maranhão, meu tesouro, meu torrão Eu fiz esta toada, pra ti Maranhão Terra do babaçu Que a natureza cultiva Esta palmeira nativa É que me dá inspiração Na praia dos lençóis Tem um touro encantado E o reinado Do rei Sebastião Sereia canta na proa Na mata o guriatã Terra da pirunga doce E tem a gostosa pitombatã E todo ano, a grande festa da Jussara No mês de Outubro no Maracanã

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O CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR NA SALA DE AULA, A PARTIR DO ESTUDO DE PAISAGEM NAS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI

No mês de Junho tem o bumba-meu-boi Que é festejado em louvor à São João O amo canta e balança o maracá A matraca e pandeiro É quem faz tremer o chão Esta herança foi deixada por nossos avós Hoje cultivada por nós Pra compor tua história, Maranhão ! Acredita-se que todo maranhense, seja pequeno, ou adulto já ouviu essa toada de bumba meu boi, seja na voz marcante da cantora maranhense Alcione, reconhecida nacionalmente, pela sua voz e talento musical, seja na expressiva voz do Guriatã, Humberto de Maracanã. A toada carrega consigo a representação da identidade de um povo, pois a mesma descreve lugares, a fauna, a flora e o cotidiano de um povo e de um lugar chamado Maranhão. O poeta dá uma aula de Geografia do Maranhão, salientando os aspectos sociais, geográficos e históricos do estado, que fica localizado no extremo norte do Brasil, na região nordeste. Verifica-se que o cantador inicia a toada evocando seu estado, para que os ouvintes o identifiquem. Ele afirma ainda seu apreço ao dizer que o Maranhão é seu tesouro, seu torrão, ratificando a importância do estado para sua vida em: “Maranhão, meu tesouro, meu torrão. Fiz esta toada pra ti Maranhão”. Em “Terra do babaçu, que a natureza cultiva. Esta palmeira nativa que me dá inspiração”, o autor faz alusão aos babaçuais, que caracterizam a flora maranhense e já evocada em “Canção do Exílio”, do poeta Gonçalves Dias. Os versos que dizem “Na praia dos lençóis tem um touro encantado e o reinado do Rei Sebastião” verifica-se que o autor chama a atenção para a Praia dos Lençóis, que considerada uma das belezas naturais do mundo. Faz alusão ainda a uma das muitas lendas maranhenses, que diz que o rei Sebastião1, vive sob as areias dos lençóis maranhenses, aparecendo em noites de lua cheia, sob a forma de um touro negro, com uma estrela2 na testa. Contam que no dia em que alguém conseguir acertar a estrela do touro negro, o reino submerso emergirá em toda sua plenitude. Essa lenda se relaciona com a lenda da serpente encantada, na Ilha de São Luís, que conta que sob a cidade há uma serpente adormecida, que se despertada, dará um abraço na cidade, fazendo-a desaparecer sob as águas do Atlântico. Nos versos “Sereia canta na proa, na mata o Guriatã, terra da pirunga doce e tem a gostosa pitombatã. E todo o ano, a grande festa da Jussara, no mês de outubro, no Maracanã”, verifica-se que o poeta alude ainda a uma divindade dos mares e da religião de matriz africana e indígena, a sereia. No texto a sereia canta na proa da embarcação, o que pode se constituir um perigo para o pescador, em razão da proximidade, pois uma lenda conta que o cantar da sereia encanta o pescador causando-lhe

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Segundo a história, o Rei português D. Sebastião foi morto em combate com os mouros. Mancha, pinta branca.

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a morte. O poeta alude ainda a uma festa do calendário maranhense, a Festa da Juçara, que ocorre durante todo o mês de outubro em uma comunidade da periferia ludovicense, conhecida por Maracanã, enfatizando as frutas da região, tais como a pitomba. Verifica-se aí, uma contextualização com datas e lugares, além de lendas maranhenses, que possibilitam um estudo da paisagem, de forma interdisciplinar, situando a língua portuguesa, a história, a geografia, além dos temas transversais Pluralidade Cultural e Meio Ambiente. Em “No mês de Junho tem o bumba meu boi, que é festejado em louvor a São João. O amo canta e balança o maracá. A matraca e pandeiro É quem faz tremer o chão”. Os versos chamam a atenção para o período onde o bumba meu boi alcança seu auge no estado: o mês de junho. Ele descreve ainda o papel do amo ou cantador, que canta e balança (toca) seu maracá, que é um instrumento percussivo muito usado no bumba meu boi, assim como o pandeiro e a matraca, os quais na toada fazem o chão tremer a partir de seus sons. A toada é finalizada com os versos “Esta herança foi deixada por nossos avós, hoje cultivada por nós, pra compor tua história, Maranhão!” Observa-se que há uma ênfase em colocar o boi e todas as belezas naturais e lendas enquanto heranças dos antepassados do cantador, assim como de mostrar que as novas gerações se preocupam em preservar os valores herdados. Assim sendo, em um mundo onde se tem muitos recursos didáticos e no qual o mapa não perdeu sua utilidade em sala de aula; pelo contrário, ganhou uma roupagem mais dinâmica nos aplicativos que existem nos dias hodiernos, disponíveis na web, fazer uma leitura de paisagem não se tendo uma figura, mas uma letra de música é pode fazer o processo inverso, ou seja, a partir do texto escrito escrever, ou melhor, reescrever, tendo como contexto a realidade, o cotidiano, o espaço, onde é valorizada a experiência empírica. Para se conseguir atingir esses objetivos, necessita-se perpassar por pelo menos dois atores do processo de ensinar e aprender, o professor e o aluno. Nele, cada um tem seu papel definido como temos descrito por Schäffer (1998, p. 91), O papel do professor, planejando com atenção a leitura da paisagem e sensibilizando o grupo para o exercício, permite aprofundar o trabalho e qualificar os resultados. Com frequência afirma-se que não é possível promover um aluno leitor sem que haja um professor leitor. Também, para que haja um aluno leitor de paisagem, é indispensável que o professor consiga fazer essa leitura, ultrapassando, no seu planejamento, o objetivo da mera retratação do que ali é oferecido como visível.

Fica bem definido que por esse processo, o qual envolve professor e aluno, passa por diversas áreas: o ler e o escrever que perpassam as aulas de português; o ler os mapas contextualiza o ensino de geografia; os fatos ocorridos em um determinado espaço, em tempos mais remotos estimulam e referendam o ensino da história. SCHÄFFER (1998) afirma que, na geografia, ler exige conhecimento e interpretação do espaço geográfico e, na escrita, a representação deste espaço. Atualmente, estudos diversos, como os de WAGNER e MIKESELL (2003), entre outros discorrem acerca do estudo da paisagem. A publicação dos PCN culminou com o alavancamento desse 163

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estudo, pois insere o aluno em seu ambiente, ou seja, o bairro, a cidade, o estado onde vive e até mesmo a escola onde estuda, trazendo pra perto do discente esses espaços. Verifica-se desse modo que o estudo da paisagem possibilita, entre outros aspectos, a visitação de lugares como recurso no auxílio da aprendizagem, que é uma prática que acompanha o ensino de geografia desde seu adentramento no universo escolar. SCHÄFFER (1998, p. 91) possibilita um vislumbrar de matizes no contexto do ensino e da aprendizagem de diferentes componentes curriculares ao analisar os Parâmetros Curriculares Nacionais, no que os mesmo fomentam nas aulas das escolas: O conceito de paisagem como um recorte visível do espaço geográfico é ao mesmo tempo, importante recurso pedagógico. Ler a paisagem na perspectiva dos procedimentos tradicionais significa observar e descrever (relatar) o maior número de elementos presentes. É relatar, tornando estático aquele momento, naquele lugar, ler a paisagem, na perspectiva da construção de um conhecimento mais significativo voltado à construção de um conhecimento mais significativo e voltado à construção da identidade do sujeito, parte da definição prévia dos objetos desta leitura.

Há ainda outra composição de Humberto que fala das vinte e sete aldeias que formavam a Ilha do Maranhão, que na toada chama a capital do estado de Upaon-Açu, um dos primeiros nomes da Ilha de são Luís. UPAON-AÇU Upaon-Açu é São Luís presente Tinha vinte e sete aldeias Hoje em alguns povoados moram os seus descendentes Inhauma, TaimTendá, Mojó Cumbique, Uarapirâ Juçatuba, Iguain, Tajipuru Araçagi, Miritiua, Turu e Maracanã Arapapaí, Mapaúra, Itapicuraìba Tibiri, Mocajutuba, Itapera,Pinandiba Parnauaçu e Maioba, Pindaí, Ubatuba e Vinhais Panaquatira e Igaraú As aldeias da Ilha foram dos Tupinambás Juniparã era uma aldeia Lugar dos índios chamada hoje pelo povão Japiaçu foi o seu Morubixaba E de todas as aldeias da ilha do Maranhão Assim como na música “Maranhão meu tesouro meu torrão”, pode-se trabalhar na toada Upaon-Açu, outras matérias de forma conjunta e interdisciplinar potencializando o aprendizado tanto do aluno como do professor, com relação a isso Barbosa (2005, p. 74) assevera: Como a competência implica uma visão cultural e também um posicionamento político do educador, considero que a interdisciplinaridade poderá caminhar naturalmente na

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prática pedagógica, realizando-se de forma plena quanto às finalidades cognitivas e de produção do conhecimento que se propõe.

Assim como nas aulas de geografia, as de história podem ajudar os alunos de forma geral a descobrir sua identidade a partir deste estudo de paisagem, refletindo de forma coletiva sobre suas origens, possibilitando que os mesmos sejam conduzidos a lugares onde nunca estiveram e que alguns só conhecem por nome e outros porque moram nele, mas sequer sabem o porquê do nome do bairro. A partir do trabalho com a toada Upaon-Açu, pode-se ter uma ideia ampla de como a Ilha de São Luís mudou com o passar dos anos sugerindo-se aos alunos um estudo mais aprofundado sobre os nomes dos bairros, por exemplo. Pode-se ainda, solicitar aos estudantes, a identificação dos lugares que conheçam, assim como também, dos lugares onde residem, fazendo assim um trabalho de campo, onde serão trabalhados os limites geográficos, a origem dos nomes. Outra atividade que pode ser realizada é a entrevista de campo, ou seja, os estudantes entrevistam seus avós e outros familiares ou vizinhos, resgatando informações que possivelmente jamais serão encontradas em livros. Assevera-se que o conhecimento ligado só a livros didáticos muitas vezes, amarra as possibilidades de os alunos crescerem independentemente. Veja o que diz Seffner (1998): O livro didático é, muitas vezes, a única leitura histórica que o aluno tem à disposição. Se ficarmos apenas nele, as possibilidades de discussão e troca de idéias se empobrecem muito. A leitura do livro didático deve ser estimulada, mas não como sendo a única fonte de explicação histórica. Nesse sentido, é bom trabalhar com diferentes livros didáticos, percebendo as diversas modalidades de construção de cada episódio histórico, e consultando também, acerca do mesmo episódio, as enciclopédias, os dicionários (históricos ou não) e os atlas históricos. (SEFFNER, 1998, p. 113).

O fato de o livro didático constituir-se muitas vezes, o único recurso do qual dispõe professores e alunos na abordagem dos conteúdos, faz com que o estudante seja cerceado em seu direito de construir novos conhecimentos, razão porque é fundamental que a escola esteja atenta, no sentido de estimular um olhar para além dos recursos que dispõe, lançando mão dos saberes populares na abordagem dos saberes formais.

Considerações Finais A construção de conhecimentos é assunto bastante importante no contexto da sala de aula, que faz com que educadores e estudiosos venham ao longo dos tempos, empreendam meios no sentido de fazer com que haja sucesso em sua consecução. Para facilitar o alcance do objetivo na sala de aula verifica-se que na maioria das vezes, o conhecimento é fragmentado, dividido em disciplinas e matérias, sem preocupação com a integração entre elas. Ainda que muitos avanços tenham sido observados no contexto do que é ensinado e aprendido na escola o conhecimento continua sendo repassado da mesma forma para diferentes alunos em diferentes realidades, cabendo tão somente a preocupação com a fixação do conteúdo e com o cumpri165

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mento do currículo estabelecido. Esse processo educativo é concebido como via de mão única, produzindo indivíduos incapazes de se conhecerem como protagonistas de sua própria história (MORAES; BATALLOSO NAVAS, 2010). Entre as estratégias efetivadas no sentido de impingir significado no âmbito da construção de conhecimentos está o uso dos saberes oriundos do povo, entre eles, da cultura popular. O estudo acerca da paisagem ao entrelaçar-se com o bumba meu boi possibilita ao educando a construção significativa de saberes, constituindo-se elemento importante no âmbito de uma metodologia cujas bases são os aspectos da vida dos educandos, superando-se o tradicionalismo que ainda impera no processo de ensinar e aprender. Este estudo teve, pois, enquanto pretensão mostrar que é possível associar conhecimentos diversos, oriundos do cotidiano, possibilitando ao aluno a aprender a partir do ambiente em que está inserido e da cultura da qual faz parte, cabendo, para tanto, apenas uma dose de criatividade e sabedoria, pela escola e seus educadores.

REFERÊNCIAS AZEVEDO NETO, A. Bumba-meu-boi no Maranhão. 2.ed. São Luís: Alumar, 1983. 86p, il.

BARBOSA, Derly. A competência do educador popular e a interdisciplinaridade do conhecimento. In. FAZENDA, Ivani C. Arantes.[org.]. Práticas interdisciplinares FAZENDA, Ivani Catarina Alves et al. (Org.). Práticas Interdisciplinares na escola. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1996. Maringá, 1998. MORAES, Maria Cândida; BATALLOSO NAVAS, Juan Miguel. Complexidade: fundamentos teóricos e implicações educacionais. Ecotransd: 2010. na escola. São Paulo: Cortez, 2005, p. 65-77. PASSOS, Messias Modesto dos. Biogeografia e paisagem. 1998. Dissertação (Mestrado) - Programa de Mestrado em Geografia, Universidade Estadual de Maringá, REIS, J.R.S. dos. Bumba-meu-boi, o maior espetáculo popular do Maranhão. 3.ed. São Luís: LITHOGRAF, 2000. SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1986. SCHÄFFER, Neiva Otero. Ler a paisagem, o mapa o livro... Escrever nas linguagens da geografia. In: NEVES, Iara Conceição (org.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1998, p 87 – 103. 166

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SEFFNER, Fernando. Leitura e escrita na história. In: NEVES, Iara Conceição (org.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1998, 107 – 120. WAGNER, P.L.; MIKESELL, M.W. Os temas da geografia cultural. In: CORRÊA, R.L; ROSENDAHL, Z. (Org.). Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, 27-61.

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Mestra em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Professora da Faculdade Atenas Maranhense – FAMA e Pitágoras São Luís. **

Professor da rede pública Estadual e Municipal de ensino do Maranhão e Mestrando em educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB) ***

Professora do Curso de Linguagens e Códigos, Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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COMPLEXO CULTURAL BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO: EXPRESSÃO CULTURAL AFRODESCENDENTE E PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho * Delcimara Batista Caldas **

BUMBA-BOI: origem Em 1840, surge o primeiro escrito, em Recife, sobre a brincadeira bumba-meu-boi. A intenção era criar um sermão que chamasse a atenção da sociedade sobre a figura do sacerdote no evento (LOPES GAMA, 1996). A segunda ocorrência deu-se em 1859, em Manaus, quando Avé-Lallémant descreve uma dança do boi com um pajé, introduzido em festa que homenageava São Pedro e São Paulo. Vale lembrar que, nessa época, a figura do padre não mais fazia parte da dança. O folguedo ganhou muitos nomes no Brasil, devido às variações de região para região. Assim, no Amazonas e no Pará é Boi-Bumbá; no Rio Grande do Norte, Boi Calemba; na Paraíba, Cavalo Marinho; no Rio de Janeiro, Boi Pintadinho; no Espírito Santos, Bumba de Reis ou Reis de Boi; em Santa Catarina, Boi de Mamão; e, no Maranhão, Bumba-Meu-Boi. Além disso, também ocorre em diferentes épocas, dependendo da região: Norte, acontece no período junino; Nordeste, ciclo natalino; Sudeste, destacando o Rio de Janeiro, durante o Carnaval (CAVALCANTI, 2011). A origem do Bumba-Meu-Boi é datada por muitos estudiosos como sendo do século XVIII, resultado de crítica à situação social dos negros e dos índios. Ressalta ainda a fragilidade do homem e a força de um boi a partir de elementos da comédia, do drama, da sátira e da tragédia. A união de elementos da cultura européia, da africana e da indígena só poderia resultar em uma dança tão instigante e envolvente como esta. Resgata aspectos religiosos, pois sua origem enseja o trabalho desenvolvido pelos jesuítas que encenavam peças na luta contra o paganismo. Eles usavam o bumba-meu-boi para evangelizar os negros, os indígenas e os próprios portugueses. A dança possui o seguinte enredo: um fazendeiro rico tinha um boi muito bonito e mimoso e que sabia dançar. Um trabalhador da fazenda, de nome Pai Chico, rouba o boi para satisfazer o desejo de sua esposa grávida, comer a língua desse boi. Quando o fazendeiro sente falta do boi, envia seis empregados para procurá-lo e o encontram doente. Os pajés são chamados e curam-no. O fazendeiro descobre que Pai Chico foi o responsável e o perdoa, celebrando a saúde do boi (CABRAL, 2011). Segundo Silvio Essinger (2011), o bumba-boi surgiu no Nordeste, nas últimas décadas do século XVIII. Naquele período, a criação de gado era realizada por meio da mão-de-obra escrava. Logo, os cativos, a partir da mistura de suas tradições africanas às dos senhores (como as touradas espanholas), criaram danças que tematizavam as relações de poder e certo cunho religioso. Na maioria das vezes, eles eram repreendidos.

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O BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO EM SOTAQUES No Maranhão o bumba-boi é diversificado na forma de se apresentar. Têm-se alguns tipos (sotaques) oriundos de várias partes do Estado, todos possuem sua história e suas características próprias dependendo da região-origem. No período junino, o bumba-boi em seu plano ritual é constituído de quatro etapas, que são: Ensaio, batizado, brincadas, e morte. Os ensaios compreendem do período logo após o carnaval, que compreende os meses de abril e maio, já o batizado acontece no mês de junho, que é o momento que o boi ganha um novo couro, as toadas são renovadas bem como algumas das roupas do ano anterior, logo após o batizado vem o período das brincadas, que é o momento de mostrar no mês inteiro o fruto do empenho de uma comunidade inteira, é o momento que o vou vai vadiar nos terreiros do Maranhão e do Mundo, visto que alguns grupos recebem convites para se apresentarem fora do estado e em outros países, por fim, vem o período da morte, que é o final de um ciclo que começou em abril e se encerra entre os meses de agosto e setembro, eventualmente alguns bois morrem nos meses posteriores, completando assim, um ritual secular que é considerados por muitos uma obrigação a São João, São Pedro e São Marçal. Como já foi mencionado o bumba boi no estado do Maranhão foi dividido em categorias que pretendiam organizar as mesmas são chamadas de sotaque as quais se conhecerá a seguir: Sotaque de matraca - é o mais popular, pois é o que as pessoas conseguem interagir de forma mais ativa com matracas facilitando sua integração a percussão da brincadeira. O instrumento que dá nome ao sotaque é composto por dois pequenos pedaços de madeira, o que motiva os fãs de cada boi a engrossarem a massa sonora de cada “Batalhão”. Além das matracas, são usados pandeirões e tambores-onça (uma espécie de cuíca com som mais grave). Na frente do grupo fica o cordão de rajados, caboclos de fitas, índias, vaqueiros e caboclos de pena. O sotaque de Matraca também é chamado de Ilha por ter sua origem na ilha de São Luís, tendo como grupos principais os bumba-bois da Maioba, Maracanã, Madre Deus, Ribamar, Pindoba entre outros. Sotaque de Zabumba - Ritmo original do bumba-meu-boi, este sotaque marca a forte presença africana na festa. Pandeirinhos, maracás e tantãs, além das zabumbas, dão ritmo para os brincantes. No vestuário destacam-se golas e saiotas de veludo preto bordado e chapéus com fitas coloridas. O sotaque de Zabumba é hoje o que menos cresce no Estado, diz-se que o sotaque nasceu na região da cidade de Guimarães e os brincantes do bumba-boi de Guimarães dizem que o sotaque é chamado de Guimarães tocado na Zabumba, é dos ritmos o que tem mais pegada de ritmo afrodescendente. Dentre os grupos, podemos ressaltar: o de Guimarães, da Fé em Deus, da Liberdade. Sotaque de Orquestra - Ao incorporar outras influências musicais, o bumba-meu-boi ganha neste sotaque o acompanhamento de diversos instrumentos de sopro e cordas, como o saxofone, clarinete e banjo. Peitilhos (coletes) e saiotes de veludo com miçangas e canutilhos são alguns dos detalhes nas roupas dos brincantes. Diz-se que o sotaque nasceu de um encontro de pessoas de um grupo de sotaque de zabumba com alguns músicos nos entornos da cidade de Rosário. Os grupos mais famosos são os de Axixá, de Morros, de Nina Rodrigues. Com o passar dos anos esse se tornou o sotaque com o maior número de grupos no Estado do Maranhão devido ao forte apelo visual, pelo bailado e pelo

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ritmo acelerado da orquestra. Sotaque da Baixada - Embalado por matracas e pandeiros pequenos, um dos destaques deste sotaque é o personagem Cazumbá, uma mistura de homem e bicho que, vestido com uma bata comprida, máscara de madeira e de chocalho na mão, diverte os brincantes e o público. Outros usam um chapéu de vaqueiro com penas de ema. Este sotaque é também conhecido como sotaque de Pindaré, por ter no Boi de Pindaré seu maior representante; grupo onde cantou por muitos anos até a sua morte, o cantador Cochinho, autor de várias belas toadas. Para esse sotaque,como maiores representantes têm-se: o próprio boi de Pindaré, o boi de Viana e de São João Batista. Sotaque Costa de Mão –Esse sotaque é marcado pelo uso de zabumbas, caixas, pandeiros e maracás, embora tenha uma batucada parecida com o sotaque de zabumba, seu ritmo é mais suave e seu andamento é mais cadenciado (IPHAN, 2011). Típico da região de Cururupu, cidade que fica na baixada do estado do Maranhão, ganhou este nome devido a uns pequenos pandeiros tocados com as costas da mão. Caixas e maracás completam o conjunto percussivo. Além de roupa em veludo bordado, os brincantes usam chapéus em forma de cogumelo, com fitas coloridas e grinaldas de flores.

O bumba-meu-boi e a Religião Além desses sotaques que foram mencionados, vê-se no Maranhão uma grande ligação do bumba-boi com a religião de onde se tem também os bois chamados de bois de mina. Essas brincadeiras surgem a partir de promessas feitas a encantados, havendo essa estreita relação por ter a semelhança do bumba-meu-boi com a lenda de Dom Sebastião. Sobre essas promessas REIS (2001, p. 61) nos diz que O Bumba foi para a Mina devido à promessa (comprometimento) de entidades com São João e São Pedro: é bem diversificado: alguns caboclos forçam o aparelho (cavalo) a saírem pelas ruas acompanhando os grupos tradicionais de Bumba. [...] Outros, por seu turno, realizam suas festas em particular, nas residências, em sítios emprestados ou mesmo em terreiros organizados.[...]Entidades existem que fazem os seus bois formados com garotos; outras, com os próprios irmãos e, assim, sucessivamente. O que de fato desejam é uma brincadeira de Bumba, a fim de cumprir a promessa empenhada e, naturalmente, dançarem. [...] De uma maneira ou de outra, obedecem ao mesmo roteiro do grupo tradicional, isto é, constando de batizado, ensaio- redondo (ou geral), festas, ladainhas e finalmente, a “morte” com o mourão, mesa de doce e comidas dos mais exóticos sabores.

Alguns grupos de bumba-meu-boi são organizados para pagar promessa, essas promessas consistem em pessoas que tem entes enfermos e nesse caso prometem a um dos santos de junho que caso seja concedida a graça da cura, a pessoa decide organizar um boi, por um determinado tempo ou por tempo indefinido, ou como eles costumam dizer: “até que eu tenha força nas mãos e nos pés”. Dessa forma, fica constituída a promessa, e o boi é colocado na rua, alguns brincantes ainda fazem sacrifícios nos dias de santo, como São Pedro e São Marçal, onde acendem fogueiras, entram de joelhos em capelas, dentre outras coisas buscando, assim, renovar a promessa com o santo.

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Em outros casos os bois são constituídos pela tradição do local, e assim é passado de pai para filho. Já o boi de Encantado, a própria entidade pede um boi, e nos terreiros são organizados os bois para que sejam, assim, instrumento em prol de uma ou várias entidades de terreiros de Umbanda, de Mina e de Pajelança. No Maranhão esse sincretismo religioso é muito forte, é o momento em que o sagrado e o profano se encontram, elementos de várias religiões interagindo harmoniosamente, fruto da junção das três raças que compõem a população Maranhense, o negro, o índio e o branco, essa união é bem representada nas brincadeiras. Alguns bois são batizados, ou recebem suas bênçãos na igreja, onde o padre dá a benção ao boi e aos brincantes, e logo em seguida a mesma brincadeira é levada a um terreiro para receber a benção do pai de santo, que muitas vezes tem a função do pajé indígena que abençoa o boi e seus brincantes para que nada de mal lhes aconteça na temporada inteira, que começa exatamente com o ritual do batizado e se estende pelas brincadas e acaba no ritual da morte. Além desses elementos das três raças, o Bumba-boi recebe influencia de outras lendas que enriquecem ainda mais a maior manifestação popular do estado do Maranhão, uma delas é a Lenda do Rei Sebastião. Ferretti (2011) diz que a crença em um rei encantado que virá para salvar seu povo essa crença está presente em várias regiões, podendo ser considerada uma das manifestações do messianismo. No Maranhão a crença do sebastianismo é muito forte e difundida, a mesma tem como fundo histórico a lenda do Rei Sebastião que desapareceu em batalha na África contra os Mouros, e segundo a lenda, reencarnou em um boi negro que anda por cima das dunas na ilha dos lenções no município de Cururupu. No Maranhão, essa crença foi tão forte no passado que O padre Antônio Vieira foi processado pelo tribunal de inquisição, mas foi absolvido, anos mais tarde, pelo Papa como se pode ver a seguir. O sebastianismo possui manifestações e peculiaridades em diferentes regiões do Brasil. Uma de suas fontes de difusão foram os jesuítas. [...] em 1656, ao falecer D. João IV, o padre Antônio Vieira pregou na matriz do Maranhão, que D. João estava morto, mas haveria de ressuscitar. Diz que este sermão se perdeu como alguns outros feitos de improviso, mas suas ideias permaneceram, sendo responsável, inclusive, por Vieira ter sido processado pelo Tribunal do Santo Ofício por ter defendido as profecias de Bandarra, ter pregado a volta de D. João IV e previsto o advento do Quinto Império. O Padre Antônio Vieira, que viveu durante vários anos no Maranhão, foi condenado pela Inquisição em 1667, mas, em 1675, foi absolvido pelo Papa. (FERRETTI, 2011, p.2).

Cadabumba-boi tem seu estilo e forma peculiar de brincar, e suas toadas têm as diversas temáticas, as mais comuns são para Jesus, para Deus, para o Sol, para a Lua além de para algumas entidades da encantaria, como podemos ver na toada de Humberto do Boi de Matraca, intitulada Reis na encantaria. Salve os terreiros que o pai oxalá mandou/Turquia, Casa das Minasea Casa de Nagô. Viva Deus! Viva as Rainhas e os Reis da Encantaria! Rei Badé, Rei Verequete/ O Rei

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da Alexandria. Rei Guajá, Rei Surrupira, Rei Dom Luís, Rei Dom João./Rei dos feiticeiros, dos Exus e Rei Leão. Rei Oxossi, Rei Xangô, Rei Camungá, Rei Xapanã e Barão Rei de Guaré. Protejam o Boi do Maracanã, Rei da Bandeira, o Rei da Maresia, Rei de Itabaiana, salve o Rei da Bahia./E os Reis que eu não falei em verso, falo no meu coração. Salve o Rei dos Índios. Salve o Rei Sebastião.(Bumba-meu boi de Maracanã, sotaque de matraca)

O boi de orquestra traz consigo grandes toadas dentre elas pode-se mencionar uma das mais bonitas de todos os tempos, toada essa que mais jovens e mais velhos se lembram; Bela mocidade é uma toada que carrega todo o sentimento bucólico retratando as belezas do Maranhão, Bela mocidade diz assim: Quando eu me lembro,/Da minha bela mocidade./Eu tinha tudo a vontade,/Brincando no boi de Axixá./Eu ficava com você,/Naquela praia ensolarada,/E a tua pele bronzeada,/Eu começava a contemplar./Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelos,/E eu ficava com ciúme do perfume ele tirar./Mas quando o banzeiro quebrava,/Teu lindo rosto molhava,/E a gente se rolava na areia do mar./Morena veja como é tão bonito/Quando a lua vem surgindo /E começa a clarear o mar/É quando eu me lembro/Dos tempos passados /Eu era o seu namorado/E vivia a contemplar/Naquela praia tão linda /Noite e dia a clarear,/O vento soprava forte/Querendo o teu lindo cabelo açoitar./Naquela praia tão linda /Noite e dia a clarear,/O vento soprava forte/ Querendo o teu lindo cabelo açoitar./Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelos,/E eu ficava com ciúme do perfume ele tirar./Mas quando o banzeiro quebrava,/Teu lindo rosto molhava,/E a gente se rolava na areia do mar.(Bumba-meu-boi de Axixá, sotaque de orquestra).

Pode-se destacar no Boi de Pindaréa toada Novilho Brasileiro, toada essa imortalizada na voz do cantador Coxinho que foi cantador do Boi de Pindaré por muitos anos até sua morte.Essa toada é hoje o hino do São João do Maranhão, tendo de ser tocada na abertura de todos os arraiais do Maranhão antes de começarem as apresentações da noite. A toada diz: Lá vem meu boi urrando,/subindo o vaquejador,/deu um urro na porteira,/meu vaqueiro se espantou,/o gado da fazenda/com isso se levantou./Urrou, urrou, urrou, urrou/meu novilho brasileiro/que a natureza criou/Boa noite meu povo/Que vieram aqui me ver/Com essa brincadeira/Trazendo grande prazer/Salve grandes e pequenos/Este é meu dever/Saí pra cantar boi bonito pro povo ver/São João mandou/Que é pra mim fazer/Que é de minha obrigação/Eu amostrar meu saber/Urrou, urrou, urrou, urrou/meu novilho brasileiro/que a natureza criou/Viva Jesus de Nazaré/E a Virgem da Conceição/Viva o Boi de Pindaré/Com todo seu batalhão/São Pedro e São Marçal/E meu senhor São João/Viva as armadas de guerra/Viva o chefe da nação/São Cosme e São Damião/Urrou, urrou, urrou, urrou/meu novilho brasileiro/que a natureza criou.(Bumba-meu-boi de Pindaré, sotaque daBaixada).

No sotaque de Zabumba, pode-se destacar uma toada que, onde é apresentada, emociona: a toada Força da promessa do Boi de Leonardo é uma toada que, com seu ritmo cadenciado no começo e depois intensificado pelo toque dos tamboritos e da batida estridente da zabumba, deixa os brincantes e a assistência em transe nos terreiros no período das festas Juninas. A toada mensagem Divina no som da zabumba faz com que ecoe a mensagem aos brincantes. Sistença que tá na bancada /Levanta que meu boi chegou /O terreiro tava triste/Nesse momento se alegrou /Porque /Recebemo uma mensagem /Lá de cima que Jesus

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mandou.(Bumba-meu-boi da Liberdade, sotaque de Zabumba).

Os bois de terreiro também têm suas todas, as mesmas são ditas por brincantes em transe como nesses bois também se vê a presença da cura como é demonstrado por em: Em alguns terreiros, o Rei Sebastião se incorpora nos devotos na forma de um touro, chamado de boi Turino e a pessoa que o recebe dança ajoelhada, com as mãos ciscando o chão e bufando como um touro. Geralmente este transe dura pouco tempo, como se ver em São Luís, no terreiro de Margarida Motta e na cura de dona Raimundinha, a qual se comentará a seguir. No terreiro de Santa Luzia, de dona Benedita, no Bairro da Aurora, assiste-se a uma visita do grupo de bumba-meu-boi Boizinho Encantado, que possui muitas músicas relacionadas a Dom Sebastião.FERRETTI(2011, p.7).

Uma das toadas desses bois de mina, apresentar-se-á abaixo, já que na mina os rituais são bem secretos e muitas delas são inéditas: Vaqueiro, vai buscar Meu Boi/ Vaqueiro, vai buscar Meu Boi, /Trazendo logo/ A vara de ferrão. / Eu só te peço, / Meu vaqueiro, amigo /que não me fere/ O nosso coração. / Morena, Saia no Terreiro/ Morena, saia no terreiro, / Olha para o tempo (bis) / E veja que eu já vou. / Faço que vou, / Mas eu fico aqui mesmo, / na minha eira, / Que tenho meu valor. REIS (2000, p 63)

OS ELEMENTOS PERSONAGENS DO AUTO No auto do bumba-boi não pode faltar o que se chamam as toadas de cativeiro, como um dos amos de um tradicionalíssimo boi de São Luís chama aquelas todas, que sempre são tocadas, e não podem faltar em uma apresentação, como: o guarnicê, o lá vai, o chegou, o urro, a despedida. Essas toadas compõem no tempo do São João as apresentações do auto resumido do bumba-boi por conta das apresentações terem obrigatoriamente de durar cerca de uma hora pela grande quantidade de grupos que têm de se apresentar nos terreiros dos bairros onde se tem arraiais. Os personagens desses autos são: Dono da Fazenda - é senhor dono da fazenda. Usa a roupa mais rica e um apito para coordenar a festa. É o responsável pela organização do Batalhão e, em alguns casos, é também o cantador. Pai Francisco - vaqueiro, veste-se com roupas mais simples. Seu papel durante a brincadeira é provocar risos na plateia. Cada boi pode ter vários deste personagem. Mãe Catirina - mulher de Pai Francisco. Normalmente representada por um homem vestido de mulher. Índias - mulheres cobertas por penas no peito, mãos e pernas. Miolo - brincante responsável pelas evoluções e coreografias do boi. Vaqueiros - empregados da fazenda. Usam roupas de veludo e chapéus de pena com longas fitas coloridas. Mutuca - para não deixarem os brincantes dormirem durante as maratonas de apresentação dos bois,

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os mutucas são responsáveis pela distribuição de cachaça a todos. Caboclo de fita” - brincantes enfeitados com chapéus de fita coloridos e que se misturam aos vaqueiros durante a festa. Caboclo de pena - homens cobertos por penas e com um grande chapéu ou cocá que também é feito de penas, representando os homens da tribo nos rituais. O auto foi recontado por TEIXEIRA apud MARQUES(1999, 105-107) dessa forma, Depois de conferir o gado pelas capoeiras e ver que faltava o novilho de estimação do amo, o vaqueiro chega na fazenda preocupado e matutando a sorte de tal atrapalho. AMO - Rumbora, desembucha vaqueiro. Isso é cara? VAQUEIRO - É aquele touro novo, meu amo. Sumiu! Acho que foi furto... AMO - O quê? Quem foi o filho de égua que me traiu? VAQUEIRO - Siô! Num sei não. AMO - Vai atrás desse boi, vaqueiro! Quero ele aqui, inda hoje, junto com o chifrudo do ladrão, sendo é tu que vai entrar no relho. O vaqueiro vai e volta sem encontrar o touro bonito, nem tampouco o lalau. VAQUEIRO - Meu amo, só tem um jeito. É chamar as índias², que elas conhecem bem o mato e não se avecham com cobra de duas cabeças. AMO - As capetas-de-pena? Vai buscar! No clarão da lua, as índias, já sabedoras do acontecido, partem armadas de arco e flecha. Atravessam rios e morros cantando para afastar a caipora, sem nada encontrar. VAQUEIRO - Nem boi, nem cabra, meu amo. AMO - Ah! Hoje eu viro o diabo pelo avesso, mas amarro o rabo desse mequetrefe no pau do chiqueiro! VAQUEIRO - Amo! Dei uma volta no miolo e encontrei outro buraco. Conheço um marido e uma mulher que podem dar uma resposta para essa teima. É o Pai Francisco e a Mãe Catirina, dois mutucas de asa... Sabem de tudo! AMO - Intonce. Manda chamar! Chega o Nego Chico desconfiado que nem tralhoto, querendo assuntar e desassuntando. Cara lavada, mas não é besta. CHICO - Patrão, como vai a família? Tá gorda, hem? Mas, pro que lhe pergunte ...

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AMO - Não tem que perguntar. O Sinhô é que vai me dizer se viu um touro assim, assim, que sumiu do campo sem deixar nem rastro de cocô. NEGO CHICO - Não vi, não. Juro! VAQUEIRO - Ora! Sei num sei. Só sei que Mãe Catirinatava com uma vontade doida de comer língua de boi. Desejo de mulher prenha, meu amo! AMO - Ah, então tá explicado... Mãe Catirina vendo tudo perdido, assoa o nariz e reza o terço, mas não se faz de rogada. Com o bucho no pescoço, mascando fumo, bota um pé na frente e outro atrás. CATIRINA - Não é fio, meu amo. É barriga d’água! Oia como sacode... É, num é, Chico? CHICO - Verdade, é o fato! AMO - Nem choro, nem pagamento. Pensa que me engana? Quero meu boi de volta, igualzinho como nasceu, senão o cacete come! CATIRINA - Vige Maria! Chico e Catirina saem correndo, de mãos dadas, já sentindo o couro arder. Resolvem então roubar numa fazenda vizinha, um novilho parecido com o touro do amo, a quem entregam a prenda. No terreiro do patrão todo mundo cerca o novilho para ouvir o seu urro.AMO - Quero ver se esse boi tem culhão CATIRINA - Vige Maria. E não é que o boi urrou bonito?”

PROCESSO DE PATRIMONIZAÇÃO Antes da abordagem acerca do título recebido pelo Bumba-Boi do Maranhão de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, vale ressaltar alguns conceitos básicos implicados a essa nova condição. A palavra Patrimônio vem do grego pater e significa pai. Ela se relaciona a tudo que é deixado como legado, transmitido de pai para filho. Com as inovações e mudanças sociais, esse termo passou a representar um conjunto de bens materiais, relacionados intimamente com a identidade, a cultura ou o passado de um povo (ALVES, 2011). Alves (2011) declara ainda que o conceito de último de patrimônio está associado à Revolução Francesa que exacerbava a necessidade de se eleger monumentos que refutassem o passado, a qual deveria estar ligada à noção de melhoria, evolução e progresso. Recentemente, a definição de patrimônio relaciona-se a duas categorias distintas: material e imaterial. O material envolve as construções, obeliscos, esculturas, acervos documentais, museológicos e de belas artes; já o imaterial pressupõe regiões, paisagens, comidas, bebidas típicas, danças,

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manifestações religiosas e festividades tradicionais. Para Alves (2011), a necessidade de preservação desses patrimônios envolve uma preocupação em democratizar os saberes e fortalecer a noção de cidadania, além de favorecer o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Já que se aborda o termo cultura no conceito de patrimônio, é importante resgatar o que assevera a Unesco (1989) sobre cultura tradicional e popular: A cultura tradicional e popular é um conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, as línguas, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, o artesanato, a arquitetura e outras artes(UNESCO, 1989).

Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan (2011), patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, recriado constantemente devido ao ambiente, interação com a natureza e com a história. Equivale às representações, práticas, expressões, conhecimentos, técnicas, instrumentos, objetos, artefatos reconhecidos pelos integrantes dos grupos sociais como representação maior da cultura. Na lista de bens imateriais brasileiros estãoa festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a Feira de Caruaru, o Frevo, a capoeira, o modo artesanal de fazer Queijo de Minas e as matrizes do Samba no Rio de Janeiro. (IPHAN, 2011).

Patrimônio cultural imaterial do Brasil O bumba-boi do Maranhão recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O projeto foi apresentado ao Iphan em 2008, tendo como relator Luiz Phelipe Andrés, conselheiro Integrante da Câmara Imaterial. O registro foi concedido pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural dia 30 de agosto de 2011, no Iphan, Brasília. O Conselho Consultivo do Iphan é formado por vinte e dois conselheiros de instituições como Ministério do Turismo, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sociedade de Arqueologia Brasileira, Ministério da Educação, Sociedade Brasileira de Antropologia e Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e da sociedade civil, pelo presidente, Luiz Fernando de Almeidae por especialistas de diversas áreas, como cultura, turismo, arquitetura e arqueologia. Segundo a historiadora Zelinda Lima, o bumba-meu-boi representa uma tradição de mais de duzentos anos, alvo de proibições da polícia do século XIX e atualmente recebe o maior reconhecimento de todos: principal manifestação cultural popular do Maranhão. Ressalta-se ainda que a brincadeira é de suma importância na coesão da sociedade maranhense, na construção da identidade do povo maranhense e nas relações sociais que ela estabelece e isso dentro de uma cadeia produtiva.

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Considerações finais Percebe-se a necessidade, diante do exposto, de fazer com que a sociedade conheça um pouco mais de sua cultura, principalmente o Bumba-Boi do Maranhão, hoje Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Esse projeto aprovado pelo Iphan só veio endossar a ideia de que as relações culturais constituem a gênese das relações entre os povos. Favorece a divulgação de produções de um povo e atua como agente modificador de uma sociedade. A dança, tida por muitos como apenas brincadeira de passar tempo, mostra seu verdadeiro papel social. Espera-se, contudo que as autoridades não se deem por satisfeitas com esse capítulo da história, mas que invistam em outros bens imateriais. Resgatar valores é acima de tudo preservar a identidade de um povo, seus aspectos tradicionais responsáveis pelas prováveis modificações do pensar e agir de outras gerações, das vindouras.

REFERÊNCIAS ALVES, Elder Patrick Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um Universalismo global. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2011. AZEVEDO NETO, A. Bumba-meu-boi no Maranhão. 2.ed. São Luís: Alumar, 1983. 86p, il. CABRAL, Gabriela. Bumba-meu-boi. Disponível em: < www.brasilescola.com/folclore/bumbameuboi> Acesso em: 20 jul. 2011. CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Matracas que desafiam o tempo: é o bumba – meu – boi do Maranhão. São Luis: EDUFMA, 1995. CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Ouro, 1949. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. CAO Boi-Bumbá de Parintins, Amazonas: breve história e etnografia da festa. Disponível em: < www.brasilescola.com/folclore/bumbameuboi>. Acesso em: 20 jul. 2011. ESSINGER, Sílvio. Bumba-meu-boi. Disponível em: < www.brasilescola.com/folclore/bumbameuboi>. Acesso em: 27 jul. 2011. FERRETTI, Sergio F. Encantaria Maranhense de Dom Sebastião, Congresso Europa das Nacionalidades: Mitos de Origens, discursos Modernos e Pós-Modernos – Universidade de Aveiro, Portugal 2011. IPHAN (Maranhão). Bumba-meu-boi som e movimento. São Luís: Imprima Soluções Gráficas, 2011. 252 p. (1). 178

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MARQUES, Francisca Ester de Sá. Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do bumbameu-boi. São Luís: Imprensa Universitária, 1999. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1988. REIS, J.R.S. dos. Bumba-meu-boi, o maior espetáculo popular do Maranhão. 3.ed. São Luís: LITHOGRAF, 2000. UNESCO. Recomendação Sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989). Paris.

* Professor da rede pública Estadual e Municipal do Maranhão, Mestrando em Educação pela Universidade Católica de Brasília - UCB e pesquisador da Cátedra UNESCO de Juventude, Educação e Sociedade da UCB e do grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA. ** Mestra em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Professora da Faculdade Atenas Maranhense – FAMA e Pitágoras São Luís.

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ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL Antônio Jorge Pantoja Gualberto1

APRESENTAÇÃO Este artigo é resultado de uma investigação realizada em uma Carpintaria Naval na Cidade de Vigia, conhecida por Estaleiro Esperança, localizado no Bairro de Arapiranga. A escolha do lócus investigativo reside na importância histórica e geográfica desse município, que se constituíram como base na formação cultural da sociedade vigiense contemporânea. Verificou-se que os saberes que circulam neste estaleiro foram construídos historicamente, que através da rememoração de práticas passadas e concomitantemente da verbalização das mesmas, acontece o repasse de saberes que envolvem a carpintaria, entre a geração mais velha para a mais nova. Destacamos a “Cultura de Conversa” 2, segundo Oliveira (2007, p. 51) como constituidora dessa tessitura cultural observada dentro do estaleiro, pois o ato de conversar também é o de educar, e se há educação, há circulação de saberes entre as pessoas que estão envolvidas na arte do saber-fazer uma embarcação. Consideramos que essas relações educacionais se transformaram e ainda se transformam constantemente em “situações de aprendizagens” (BRANDÃO, 2007, p.18), onde o observar e o escutar se constituem como a primeira fase do aprendizado, que obedece a uma relação sócio-histórica construída pelos membros dessa comunidade ribeirinha em seu devido Tempo Histórico.

ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ Vigia de Nazaré é um município localizado na Mesorregião do Nordeste Paraense, e Microrregião do Salgado, banhada pelo Rio Guajará-Mirim. Esse rio exerceu no passado colonial, como uma importante via de acesso marítimo que além de ligar Vigia a Belém, capital do Grão-Pará, servia com ponto estratégico para a vigilância da região contra corsários estrangeiros (franceses, ingleses e holandeses), ou como posto alfandegário. A cidade tem localização privilegiada, pois está próxima a desembocadura de duas grandes bacias Hidrográficas do Brasil, a Bacia Amazônica e a Araguaia-Tocantins; e perto do Litoral Oceânico, ou seja, faz parte de uma região que é rica em “fauna ictiológica marítima” (VERISSÍMO, 1895, p. 05). Essa riqueza transformou a região de Vigia em um grande pólo pesqueiro de expressão nacional na atualidade. 1

Mestre em Educação em 2009 pela Universidade do Estado do Pará com a defesa da Dissertação intitulada “Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval Ribeirinho da Amazônia”; Especialista em Educação em 2007 pela Universidade do Estado do Pará com a defesa da Monografia intitulada “A Educação Neoliberal e suas Repercussões no Ensino Superior”; Bacharelado e Licenciado em História em 1995 pela Universidade Federal do Pará. E-mail: jorge_ [email protected] 2 Transmissão oral de saberes a partir do acúmulo das experiências sociais construídas historicamente, dentro de uma relação de solidariedade entre os membros da comunidade ribeirinha envolvida.

ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

Se a cultura da sociedade vigiense está alicerçada na pesca, um dos fatores para essa tradição cultural está na posição geográfica onde se estruturou historicamente esse município. Veríssimo (1895) já destacava em finais do século XIX essa riqueza marítima, quando cita a geografia da região e o pescado que nela abunda, afirmando que “[...] A costa chamada da Vigia e a fronteira, a leste de Marajó, entre Soure e o Cabo Maguari, são o principal campo das pescarias de tainhas e na Contracosta, a da gurijuba” (VERÍSSIMO, 1895, p. 61). Na atualidade, outro fator que destacamos, está na produção de embarcações, principalmente para a pesca, que tem suas origens desde tempos coloniais, as quais eram construídas e utilizadas para a catequese e para patrulhamento local.

ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICO DE VIGIA DE NAZARÉ Visitar a cidade de Vigia no primeiro decênio do século XXI caminhando por suas ruas estreitas, passando próximo aos prédios públicos como o Trem de Guerra, “casa quartel do tempo da Cabanagem” (LOUREIRO, 1987, p.57) e das diversas igrejas construídas na época da colonização no século XVIII, como a Igreja da Madre de Deus, descrita pela antropóloga Loureiro, como: [...] Talvez, a única no Brasil, munida de vinte e duas colunas laterais, de origem toscana. (LOUREIRO, 1987, p.52), é vivenciar um passado em tempo presente. A Igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazaré é outro monumento histórico desta cidade que tem um “estilo Barroco” (Ibidem) e a Capela do Senhor dos Passos, “construída em pedras superpostas e sem reboco, causa profunda impressão de primitivismo e originalidade” (Ibidem). Ambas construídas no século XVIII abrigaram e serviram ao longo desses séculos, como locais de grandes debates religiosos, políticos e administrativos entre os membros da sociedade vigiense. Saindo da Capela do Senhor dos Passos indo no sentido norte da cidade, chegando até as margens do Rio Guajará-Mirim, é sentir a nostalgia de um passado em tempo presente, pois assim os colonizadores utilizaram essa via marítima para monitorar a entrada de embarcações estrangeiras que ameaçassem a capital do Grão-Pará e a Amazônia. Ocorreu também o ir e vir dos missionários Jesuítas que se locomoviam em pequenas embarcações para catequese dos indígenas tanto na Ilha do Marajó, quanto nos sertões da Amazônia. A origem desse município data do primeiro decênio do século XVII, provém de um núcleo missionário chamado pelos Tupinambá de Uritá3, lá ergueu-se as bases da cidade de Vigia. De localização geográfica estratégica para a vigilância da região contra as invasões estrangeiras, Vigia se constituiu como parte integrante de um mega projeto da Coroa Portuguesa para a conquista da Amazônia, que ao utilizarem o rio que banha a cidade, o Rio Guajará-Mirim, o transformou em corredor principal para as embarcações nativas, mestiças ou lusitanas, para o deslocamento de pessoas que se dirigissem a Belém do Grão-Pará, ou seguindo rumo ao Rio Tocantins ou Rio Pará, até chegar ao Amazonas. Em tempos atuais, esse rio ainda exerce grande importância econômica para a sociedade vigiense, apesar das estradas rodoviárias que se constituírem nesse primeiro quartel do século XXI

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Palavra de origem língua Tupi-Guarani, cujo seu significado é cesto de pedra (Uru = cesto, Itá = pedra).

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como o meio principal de transporte de carga ou de passageiros. O ir e vir de pequenas, médias e grandes embarcações amazônicas no rio Guajará-Mirim, vindas do Marajó ou da Zona Costeira persistem, ratificando a base economia do município, que desde sua origem estava voltada para a pesca e produção de barcos. Esse frenesi de embarcações em frente da Cidade de Vigia faz-nos aflorar as reminiscências desse passado cujas embarcações foram fundamentais para a conquista do Vale Amazônico, seja pela Catequese ou por busca das “Drogas do Sertão”. Prado Júnior (1992) em sua obra “Formação do Brasil Contemporâneo” comenta a importância dessas vias marítimas para os colonos na conquista da Amazônia, quando diz: [...] para as distâncias enormes que cobrem seus trajetos, contados por centenas e centenas de léguas, de que meios de transporte e condução dispunham os colonos? É para a navegação, particularmente à fluvial, que estavam melhor aparelhados (PRADO JÚNIOR, 1992, p. 258).

Na orla marítima desse rio, no passado, eram as Ubá4, Igarité5 e Vigilengas6 cruzando o Guajará-Mirim; hoje, são as embarcações a motor, que transitam por essa mesma via fluvial marítima rumo a desembocadura do Rio Tocantins até ao Delta do Amazonas, contornando a Ilha do Marajó, em busca de espécies de peixes como a gurijuba e a pescada amarela; outras trafegam a grande avenida marítima deste rio para entrarem em “ruas e travessas”, ou seja, nos furos e igarapés, no sentido de descerem esse rio rumo à Boca da Laura7, para chegarem a Baía do Sol (Ilha de Mosqueiro) até alcançar o Furo do Maguari (Ilha de Outeiro), passando por Icoaraci, seguindo para Belém, para descarregar e verificar o peso do pescado e comercializá-lo, em seguida fazem o mesmo trajeto para o retorno. Chegar dessas viagens e fazer uma limpeza geral ou um reparo na embarcação na orla do rio Guajará-Mirim se constitui, no passado e no presente, uma prática comum entre os pescadores com seus barcos. É comum ouvir em tempos atuais o barulho de motosserras, serrotes, martelos, além das conversas e gargalhadas. É nesse local que muitos diálogos que envolvem política, economia, religião e saberes acerca da pesca, do ritmo das águas e da carpintaria naval são verbalizados entre os atores envolvidos nesse segmento social de Vigia. Esse movimento verificado transforma a orla do Rio Guajará-Mirim em uma oficina náutica a céu aberto e porque não dizermos numa Escola Técnica a céu aberto! Lá o conteúdo principal se desenvolve a partir da observação, da gesticulação, da verbalização e do repasse de saberes de gerações passadas às gerações mais novas sobre a arte de se construir uma embarcação, que a partir da Cultura de Conversa (OLIVEIRA, 2007, p.51) constrói-se uma relação educacional autônoma de ensino-aprendizagem entre os sujeitos envolvidos no ofício da carpintaria. Quando me refiro que esse espaço é um “Liceu natural a céu aberto”, chamo assim, por não ter muros e delimitações espaciais, nem regras institucionais de uma escola regular. Nesse sentido, compartilho com a ideia de Brandão sobre escola e/ou espaço escolar, quando diz: 4 5 6 7

Nome indígena de canoa feita de um Tronco só de árvore. Nome indígena de canoa grande feita de um tronco só de árvore. Embarcação mestiça originária da fusão de saberes da carpintaria naval entre portugueses e nativos. Nome dado pelos pescadores locais para o final do rio Guajará-Mirim.

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Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante [...] Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo (BRANDÃO, 2007, p.9).

É nesse ambiente que alguns mestres carpinteiros repassam seus saberes, a exemplo do mestre Albo, carpinteiro natural da Cidade de Bragança, que ao expor sua experiência aos curiosos que estão por lá, seja para fazer reparos e limpezas em embarcações, contribuem de certa forma para um aprendizado àqueles que observam, constituindo-se assim como um dos “educadores” dessas “escolas”. Assim é o cotidiano de muitos trabalhadores que estão envolvidos na arte da carpintaria naval em Vigia na atualidade, como a de outros “educadores” que se constituíram como sujeitos desta pesquisa, mestre Dorival Dantas (pai), Jaci Dantas (filho), Juraci Dantas (filho) e Ubiraci Dantas (filho), que além de frequentarem esse “Liceu natural a céu aberto”, frequentam também outra “Escola sem muros” – o Estaleiro Esperança.

ESTALEIRO ESPERANÇA: LICEU DE ARTES E DE OFÍCIOS DE CARPINTARIA NAVAL EM VIGIA Atualmente a cidade de Vigia possui três estaleiros de carpintaria naval em atividades de construção e restaurações de embarcações. O Estaleiro Esperança é um deles, foi o lócus desta pesquisa. Localizado no Rio Açaí (braço do rio Guajará-Mirim), de propriedade dos irmãos e mestres da carpintaria naval: Zuzinha, Joaquim e Marivaldo, filhos e herdeiros do ofício da carpintaria naval do mestre Zuza - já falecido. Nesse estaleiro se faz presente também outros mestres da arte de construir embarcações, mesmo não sendo proprietários, mas que compõem a mão-de-obra qualificada no desenvolvimento do ofício da carpintaria naval, a exemplo, de mestre Bolero e Mineirinho. Outro exemplo que encontramos que desenvolve as atividades da carpintaria naval é o Senhor Jaci. Mestre Jaci, de 35 anos de idade, também é herdeiro de conhecimentos desse ofício que foram repassados de geração a geração. Contudo a herança dos saberes da carpintaria naval deste jovem mestre é oriunda de outra base familiar ligada à construção de barcos, a do mestre Dorival Dantas. Com 65 anos de idade e 52 anos de profissão, Dorival Dantas se constitui como um arquivo vivo de um passado ligado aos saberes seculares da carpintaria naval na Amazônia. Saberes esses que ao atravessarem décadas foram construídos, reconstruídos e aprimorados, numa alusão descrita por Paulo Freire em que somos seres “inacabados” (FREIRE, 2001, p. 55). Essa busca constante pelo aprimoramento de seus conhecimentos na carpintaria naval nunca findou, atravessou décadas em constante aperfeiçoamento, chegando a sua segunda geração com seus filhos Jaci, Juraci e Ubiraci, que por estarem na qualidade de “seres do aprendizado, logo, da educação” (BRANDÃO, 2002, p.25), dão continuidade naquilo que lhe fora ensinado nas “escolas sem muros”, constituindo-se assim num “movimento longo, complexo, nunca completamente acabado” (CHARLOT, 2007, p. 53), que é condição natural do ser humano para sua sobrevivência, de sua cultura e de sua espécie. Essas “escolas” surgiram dentro de um longo processo histórico de ocupação portuguesa na 184

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Amazônia. Começou com os Aldeamentos Missionários Católicos implantados na região no Período da Colonização (XVII), numa longa conivência com os nativos. Esse encontro das duas culturas proporcionou a incorporação gradativa dos saberes indígenas ligados à carpintaria naval, que somados aos ensinamentos missionários tiveram um papel fundamental para a transformação das ubá e igarité em barcos de tábuas. Esse novo transporte atendeu as demandas comerciais oriundas da extração das “drogas do sertão” e da catequese. O resultado dessa prática educativa utilizada pelos Jesuítas foi a formação de muitos aldeados para o ofício da carpintaria naval, entre outros ofícios. No entanto a utilização dessa mão-de-obra indígena qualificada ganhou impulso na segunda metade do século XVIII, com a criação da Companhia de Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, no governo de Marques de Pombal, em decorrência das riquezas naturais da Amazônia a exemplo do cacau que se internacionalizou. Para isso, a necessidade de construção de embarcações que propiciassem mais segurança, velocidade e capacidade de carga, levou a administração portuguesa na Amazônia a providenciar a vinda de muitos mestres carpinteiros para a Região Amazônica, sobretudo para a capital do Grão Pará. Cruz (1973), ao citar em sua obra um documento oficial enviado em 1733 pelo Governador e Capitão General do Estado do Maranhão e Grão Pará ao Rei Dom João V, menciona a ordem de construir um estaleiro em Belém que viesse a atender às necessidades do reino português. Em 1761, o governador da Província Manoel Bernardo de Melo e Castro “escolheu a RIBEIRA e praia do HOSPÍCIO DE SÃO BOAVENTURA” (CRUZ, 1973, P.229), - hoje Arsenal da Marinha para a construção do primeiro estaleiro no norte do Brasil, para isso “mandou levantar o telheiro e as oficinas para a construção naval. De Lisboa vieram os operários especializados para a RIBEIRA DAS NAUS” (Ibidem). Para que o estaleiro funcionasse regularmente, sem falta do material indispensável à sua finalidade, estabeleceu-se o sistema de “cortes de madeira de construção náutica nos rios Acará e Caraparú” (BAENA apud CRUZ, p. 330). O resultado dessas medidas adotadas pelo governador Manoel Bernardo de Castro foi à construção de 22 embarcações sendo: “04 fragatas; 03 charruas; 03 bergantins; 12 chalupas artilhadas – e muitas embarcações de baixo bordo para a navegação interna da capitania” (Ibidem, 1973, p. 330). E para essa grande empreitada foi necessário o emprego da mão-de-obra indígena que totalizou aproximadamente: 2000 mil operários índios empregados no corte, na condução e no embarque das madeiras, e na construção dos ditos vasos da Real Armada, nas disposições da defesa da cidade, nas embarcações armadas e nas expedidas a diversas diligências (CRUZ, 1973, p. 330).

A vinda de diversas categorias de profissionais da Europa, ligados a carpintaria naval somada aos trabalhadores indígenas e mestiços, fez de Belém um pólo convergente e irradiador de saberes na fabricação de embarcações. Esses saberes foram sendo memorizados e transmitidos de geração em geração entre os amazônidas. O mestiço, então, levou esses conhecimentos para suas cidades de origem, transformando as margens de rios e igarapés, e/ou nos quintais de suas casas, em seu ambiente de trabalho ligado a carpintaria naval, o que denominamos de “escolas sem muros”.

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Esses ambientes, atualmente chamados de estaleiros, são como liceus8, não em uma concepção institucional formal que cumpre uma carga horária pré-estabelecida, na garantia de certificação e reconhecimento estatal do estudante, mas porque nesse local existe o ensino-aprendizagem. E por existir ensino-aprendizagem técnico entre aqueles que estão envolvidos no ofício de construir uma embarcação e “situações pedagógicas interpessoais, familiares e comunitárias” (BRANDÃO, 2007, p. 20), consideramos o Estaleiro Esperança como umas “Escolas sem muros”, que abriga cotidianamente diversas pessoas e suas devidas categorias profissionais, sejam mestres carpinteiros, calafetes, aprendizes e curiosos. Entre aprendizes e curiosos, observamos presença constante de crianças e adolescentes neste local. Talvez o fator das visitas constantes desses meninos reside na curiosidade na confecção dos barcos, pois a arte na construção de um, requer a colocação de peça por peça para compor a obra maior. Esses procedimentos assemelham-se a um brinquedo lúdico, um jogo de montar. Nesse sentido, poderemos assim dizer que o Estaleiro Esperança é uma “escola de portas abertas” que atrai qualquer pessoa, entre criança, jovens e adultos. Entretanto, para os mestres carpinteiros, a preocupação é clara quanto à utilização de mão-de-obra infantil, pois eles sabem sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que é uma lei que proíbe qualquer tipo de trabalho infantil. Esse Estatuto gera desconfiança e insegurança entre os mestres que temem receber processos por terem adolescentes trabalhando no estaleiro, embora a mesma abra concessão aos aprendizes, pois no Capítulo V do Estatuto em seu Artigo de nº 679especifica de forma clara a regulamentação da utilização da mão-de-obra aprendiz. Outro fator alegado pelos mestres carpinteiros, entre eles Joaquim, Dorival e Jaci, para a não utilização desses jovens, está ligado à segurança, pois existem muitos equipamentos elétricos, que em qualquer erro no manuseio pode-se perder a mão, o braço ou até mesmo a vida. Temem em machucar esses jovens. Apesar das restrições acima, isso não impede a presença espontânea de crianças e adolescentes no Estaleiro Esperança. E mesmo que elas não façam parte como aprendizes no trabalho de construção de barcos, no momento que elas param e observam os mestres Joaquim, Zuzinha, Bolero, Mineirinho e Jaci, construindo ou fazendo reparação de barcos, de certa forma elas estão aguçando sua curiosidade sobre aquele ofício. Essa situação já se constitui como “situações de aprendizagens” (BRANDÃO, 2007, p.18), pois a observação se constitui como um dos princípios básicos de um aprendizado. Em diversos momentos e dias diferentes, o espiar constante das crianças nos gestos e ações dos mestres carpinteiros na construção de um barco, vai se constituindo em reflexões acerca das peças confeccionas e acopladas. E por mais desinteressados que sejam o observar dos garotos, neste momento, eles estão recebendo cargas de conhecimentos num simples olhar, pois: “A criança vê, entende, imita e aprende com sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa” (ibidem). E por terem 8

Liceu: Estabelecimento de ensino secundário e/ou profissional (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2000, p. 426). Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não governamental, é vedado trabalho: I - noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e às cinco horas do dia seguinte; II - perigoso, insalubre ou penoso; III - realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; IV - realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola (ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente). 9

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uma mente bastante criativa e imaginativa, essas crianças vão aplicar alguns desses conhecimentos em situações bem propícias de seu meio infantil - a construção de brinquedos - seja um simples barquinho de papel de miriti ou cortiça. A mesma curiosidade dessas crianças atuais foi a de diversos mestres no passado quando crianças, mas estes foram muito além de um simples ouvir ou do observar, mesmo porque seu tempo histórico era outro. A relação entre a necessidade material da comunidade e as dificuldades naturais da região, onde o transporte marítimo fluvial era de extrema necessidade, permitiram-lhes a ingressar com muita naturalidade nesse ofício. Uma vez munidos com um único instrumento – “a faquinha amolada” – construíram suas primeiras embarcações feitas de miriti ou cortiça e, gradativamente, passaram a confeccionar embarcações a serviço de suas comunidades. Foi na brincadeira de criança de construir barcos de miriti, que o Sr. Dorival Dantas em seus dez anos exercitou sua potencialidade cognitiva, sua sociabilidade ao interagir com o meio ambiente, sua sensibilidade ao perceber as dificuldades materiais e seus anseios e de sua comunidade, tudo isso desenvolvido através da “Cultura de Conversa”, pois o ouvir e observar foram o ponto de partida para o despertar cognitivo. O conjunto dessa cognição serviu como potencializador de um tipo de aprendizado autônomo desenvolvido e aprimorado em sua fase adulta. As necessidades materiais de sua comunidade o levaram precocemente a mudanças de compreensão de mundo onde vivia. Seu Dorival ainda criança sai de um estágio natural de sua ludicidade, em que arte de fazer barquinhos de miriti expressava seu sentimento infantil, para um estágio de responsabilidade que desse solução às necessidades materiais – a falta de embarcações para transportar sua comunidade. Esse desafio fez a inocência ceder lugar a responsabilidade, e segundo Huizinga (2007, p. 225) “quando a arte se torna autoconsciente, isto é, consciente de sua própria grandeza, ela se arrisca a perder uma parte de sua eterna inocência infantil”. Na busca de se resolver em parte às necessidades básicas de sua comunidade, fez do Sr. Dorival, ainda criança, sujeito e objeto de seu próprio aprendizado, que “através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro” (BRANDÃO, 2007, p. 25) fez torná-lo de forma precoce um mestre nos saberes da arte de fazer embarcações. Ao ser indagado sobre onde aprendeu o ofício da carpintaria naval, ele responde que “trouxe isso de nascença”. Esta vocação que o Sr. Dorival o atribui nada mais foi o conhecimento adquirido através de sua relação com o “mundo humano pré-existente [...] o mundo das relações sociais” (CHARLOT, 2007, p. 52), desenvolvendo assim uma prática autônoma de aprendizado, mediada pela dialética vivenciada em seu cotidiano. Ressalta-se que a primeira forma manifestada para a socialização de seus saberes da carpintaria se desenvolveu a partir da confecção de seus brinquedos - barquinhos de miriti e de cortiça - e como toda e qualquer criança desta idade, qualquer objeto transformado ganha vida. No caso do Sr. Dorival, morador da Ilha Pompé,10 esse objeto confeccionado tinha nome – embarcação – mesmo porque era o meio de transporte principal dessa região, e o que mais vai ser observado por ele quando criança nessa época são as embarcações que faziam costumeiramente o transporte de cargas e de pessoas entre uma 10

Pequena Ilha localizada próximo ao município de Chaves, no Arquipélago do Marajó.

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ilha e a outra. E como somos “seres da natureza alçados ao mundo da cultura que nós próprios criamos” (BRANDÃO, 2002, p. 18). As canoas e barcos de características amazônicas, meio de transporte essencial no cotidiano dos moradores da Ilha Pompé, serviram como arquétipos de seus primeiros brinquedos e barcos de transporte e pesca feitos de cortiça11 e, sobretudo de miriti12, árvores encontrada às margens dos rios e igarapés no Marajó, cujos galhos por serem esponjosos e de fácil manuseio ganhavam formas e vida nas mãos e na imaginação do Sr. Dorival quando criança. Em uma das entrevistas concedidas pelo mestre Dorival no dia 12.04.2009, perguntou-se a ele sobre o princípio de todo esse conhecimento no âmbito da carpintaria naval. Como resposta disse: Eu aprendi a fazer barcos, foi só eu começar a fazer aqueles barquinhos de miriti e de cortiça – a cortiça é uma árvore que tem a raiz dela é mole, e eu pegava aquela raiz e eu desenhava tudinho e fazia do jeito que dava na minha cabeça. Eu nunca tinha visto isso, navio, assim, coisa no estaleiro. Nada! Eu só via passar uma barca dessa qualquer, mas eu desenhava igual.

Dessa sua narrativa, constata-se que o primeiro momento na aquisição dos conhecimentos no ofício da carpintaria naval foi a observação das barcas que passavam e atracavam em Pompé. O segundo momento foi a curiosidade de querer saber qual a forma dada às peças de madeira que faziam parte de uma embarcação e o terceiro momento provavelmente de sua cognição foram as perguntas relacionadas às peças constituidoras de uma embarcação: Como são moldadas? De que forma se encaixam? Qual o tipo de madeira mais adequada para dá forma e leveza de um barco? Qual o melhor posicionamento do mastro para dar o equilíbrio ao objeto? Esses questionamentos levaram o Mestre Dorival a passar “por etapas sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-habilidade” (BRANDÃO, 2007, p.23). As respostas a esses atos cognitivos, que eram alimentados pela curiosidade acerca dos conhecimentos técnicos no querer saber fazer uma embarcação, começam a materializar quando ele passa a confeccionar seus brinquedos de miriti ou de cortiça, ganhando reconhecimento de sua comunidade. Mestre Dorival recorda que utilizava uma “faquinha bem amolada” para cortar e modelar o miriti para a fabricação de seus brinquedos. Quando indagado de onde partiam as ideias, ele responde: Era eu que fazia e ninguém dizia como era pra mim fazer, e eu não gostava que ninguém me desse ideia, porque eu tenho uma ideia que eu era tão coisa que eu não queria que ninguém me desse opinião pra mim poder fazer como dava da minha cabeça.

A habilidade demonstrada por Dorival na confecção de barcos de miriti e de cortiça em seus momentos de lazer despertou em seu Neném (seu pai), a confiabilidade em seu filho, e provavelmente o desejo de seu pai em resolver em parte o problema de transporte que muito dificultava a vida de sua família naquela época. E ao observar a habilidade de seu filho quando confeccionava seus brinquedos perguntou: “Meu filho será que tu não faz uma embarcação, uma de madeira?” O Sr. Dorival respondeu: “Papai se tiver as ferramentas eu faço”.

11 Quercus Súber, nome científico desse tipo de árvore que compõem a família dos carvalhos, muito encontrado em Portugal e na Zona Mediterrânea. 12 Mauritia flexuosa, nome científico desse tipo de palmeira encontrada nas várzeas da Amazônia.

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O processo de “socialização” 13 conforme Brandão (2007, p. 23) de seu auto-aprendizado junto à comunidade ocorreu quando seu pai passou a fornecer as ferramentas e material para o fabrico de uma embarcação. Ele recorda que as ferramentas eram: “Plaina de serra, mas não era elétrica, na época não tinha nada elétrico. Era enxó, serrote, compasso, grampos”. Eram equipamentos usados, dados por um tio e seu padrinho. Comenta ainda que apesar de serem “velhas”, foram de muita serventia para o início do ofício de carpinteiro naval. Foi nessa perspectiva que amadurecem precocemente as habilidades do Sr. Dorival no âmbito da carpintaria naval. A autonomia confiada de pai para filho na arte de confeccionar uma embarcação constituiu-se como um dos princípios básicos de um tipo educação que perdura até a segunda geração do mestre Dorival, na figura de seus filhos: Jaci, Juraci e Ubiraci. Os princípios de autonomia e pragmatismo foram encontrados nas ações do Sr. Dorival desde o desafio proposto pelo seu pai, quando lhe confiou à construção da primeira embarcação chamada “Foi Deus”. Esta foi resultado da ludicidade praticada na confecção de seus barquinhos de brinquedos feitos de miriti e cortiça. Muitos estudos científicos que abordam sobre a ludicidade apontam que toda criança aprende brincando, e “o que mais caracteriza a ludicidade é a experiência de plenitude que ela possibilita a quem vivencia em seus atos” (LUCKESI, 1998, p.25). Sua criatividade foi aprimorada a partir das técnicas adquiridas em sua prática cotidiana e aplicada na construção de embarcações, que ao trocar a “faquinha amolada” que dava sentido e arte no galho de miriti por novas ferramentas como a enxó, a plaina, o martelo e o serrote, além de passar a dar outros significados na arte de fazer um barco. Isso serviu como o primeiro e único teste para o reconhecimento de seu pai e da comunidade da Ilha Pompé de sua capacidade na construção de embarcações. Nessa perspectiva, seu Dorival comentou que as peças que compuseram esta primeira obra significativa para a comunidade da Ilha Pompé já não foram mais de miriti ou cortiça, mas das madeiras como a maúba e jataúba, que foram trabalhadas manualmente com as novas ferramentas, pois na época, nada era elétrico. Como ele mesmo diz: “Até para parelhar a madeira, tinha que cortar com enxó, aí tirava a grossura dela, a grossura que vai ficar, dobrava ela, depois disso eu passava a plaina pra ela ficar lisa, não ficar aquele zinco da enxó”. O mestre sustenta que a maúba e a jataúba eram o tipo ideal de madeira para a confecção de embarcações, pois tinham qualidades como a de resistir mais ao tempo e de manejo para curva-lá. Em sua sabedoria, afirma que outros tipos requerem a aplicação do maçarico para o aquecimento da madeira e dobrá-la, além da utilização do “sargento” 14 que ajuda a “disciplinar” a madeira no encaixe da peça. Foi nesse jogo de montar que a embarcação “Foi Deus” se constituiu como a primeira de muitos outros barcos, provavelmente trabalhada por ele com amor, dedicação, ou seja, repleta de ludicidade.

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A socialização realiza em sua esfera as necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como “seus” e para existirem dentro dela (BRANDÃO, 2007, p. 23). 14 Instrumento utilizado para apertar, comprimir ou ajustar uma peça a outra.

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Quando perguntado sobre essa embarcação, ele responde: “Ah, eu fiquei emocionado porque não acreditava em mim mesmo!”. Ao ser indagado sobre a reação de seu pai ao ver a “Foi Deus”, responde: “Meu pai ficou muito satisfeito. Não tinha igual. Eu fez o barco. Eu calafetei. Eu pintei e aparelhei!”. Portanto, apesar de seu Dorival na época ser uma criança, ele honrou o compromisso com seu pai e com sua comunidade, conferindo-lhe respeito e reconhecimento como o pequeno-grande mestre da Ilha Pompé. O historiador Huizinga (2007) ao fazer referências do fator lúdico existente nas ações humanas, cita que nas artes plásticas: Verificamos nas artes plásticas a existência de um certo sentido lúdico, inseparável de todas as formas de decoração, isto é, vimos que a função lúdica se verifica especialmente quando o espírito e a mão se movem livremente. E ela se afirma sobretudo na obra-prima expressamente encomendada, o tour de force, a prova palpável da habilidade do artista (HUIZINGA, 2007, p. 223).

Observa-se também que a construção de uma embarcação é como as artes plásticas, pois o corpo e a alma do mestre estão em harmonia desde o princípio até a arte final, porque a construção de um barco não se isenta de paixões humanas, como também de convenções pré-estabelecidas, pois é uma obra de arte carregada de jogos (dedicação, sentimento, competição, concorrência, prazo) e tensões (negociação do preço na prestação do serviço, contratação de operários do setor e pagamento dos mesmos). Essas relações Sócio-Históricas que ocorreram nas comunidades ribeirinhas em seu passado e ocorrem no presente, o sujeito desde sua infância é estimulado pela vivência a apropriar-se de conhecimentos construídos pela geração mais velha, que se transformam ao longo do tempo em saberes que vão identificar culturalmente a categoria de carpinteiros navais da Amazônia. Esses saberes se fazem presente nos diversos campos do conhecimento na atualidade, como no campo da Filosofia - quando se trata da ética profissional no cumprimento no que foi firmado no ato de fazer uma embarcação ou da não exploração do trabalho infantil; no campo da Matemática - na confecção das peças com seus pesos e medidas, calculadas a partir da vivência adquirida de gerações passadas; no campo da Geometria - através da formas na composição de peças que vão “amarrar” melhor a embarcação; no campo da Física - quando se trata do equilíbrio da embarcação e da dilatação das peças; no campo da Química, na composição do “tempero” para a calafetagem da embarcação; no campo da Administração, Economia e Contabilidade no que se refere a compra do material, na contratação de pessoal e no cumprimento do tempo estabelecido para a entrega .da embarcação; no campo da Educação - no ato de ensinar com base na autonomia do sujeito e da avaliação, seja para o ingresso de um aprendiz no ofício, ou da própria obra a ser confeccionada, onde a observação e o diálogo se constitui como elemento fundamental em toda etapa educativa e no campo da História no ato de rememorar o passado. É a partir dessa dialética e da relação desenvolvida entre o dono da encomenda e o mestre carpinteiro e seus ajudantes, seja na ribeira do Guajará-Mirim ou no Estaleiro Esperança, que os saberes nunca deixaram de circular, passando a constituir-se como um Patrimônio Cultural Imaterial da 190

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Região Amazônica, pois esses ambientes são locais de circulação de sabres, seja em conhecimentos e técnicas ou em artefatos, mantendo assim uma Tradição Cultural construída historicamente, o Barco Mestiço da Amazônia. Hoje, aos 66 anos de idade, e de muita contribuição no setor da carpintaria naval, Mestre Dorival Dantas ingressou seu pedido de aposentadoria junto ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), deixando a herança cultural dos saberes na construção de barcos mestiços para sua segunda geração, com seus filhos Jaci, Juraci e Ubiraci, e por estarem na qualidade de “seres do aprendizado, logo, da educação” (BRANDÃO, 2002, p.25), dão continuidade naquilo que lhe fora ensinado, e repassando para as gerações mais novas, constituindo-se assim num “movimento longo, complexo, nunca completamente acabado” (CHARLOT, 2007, p. 53), que é condição natural do ser humano para a sua sobrevivência de sua cultura e de sua espécie.

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ESTALEIROS NAVAIS RIBEIRINHOS DA AMAZÔNIA: EMBARCAÇÕES, EDUCAÇÃO E SABERES CULTURAIS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. A Amazônia no Século XXI: Novas Formas de Desenvolvimento. 1 ed. Belém: Empório do Livro, 2009. ________. Inventário Cultural e Turístico do Salgado. 2 ed. Belém: Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1987. LUCKESI, Cipriano Carlos. Desenvolvimento dos estados de consciência e ludicidade: interfaces da educação. Caderno de Pesquisa – Núcleo de Filosofia e História da Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, UFBA, vol. 2, nº 1, 1998, pg. 09-25. Disponível em:. Acesso em: 14.03.2009. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Cartografia de Saberes: representações sobre a cultura amazônica em práticas de educação popular/Org. de Ivanilde Apoluceno de Oliveira e Tânia Regina Lobato dos Santos, Belém: EDUEPA, 2007. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 22 ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. SEPOF/DIEP. Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. Disponível em . Acesso em: 13.03.2009. VERÍSSIMO, José. A Pesca na Amazônia. Belém: Ed. Da Universidade Federal do Pará, 1970. XIMENES, Joaquina Barata Teixeira. (org.) Embarcações, homens e rios na Amazônia. Belém: UFPA, 1992.

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USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA – UMA DISCUSSÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PREFEITURAS MUNICIPAIS E O PATROCÍNIO À PRODUÇÃO DE HISTÓRIA LOCAL.

Sandra Cristina Donner *

Se “fazer História” é fruto de uma intricada rede, podemos sempre perguntar quem a escreveu e porque foram elaboradas tais questões. Por que este objeto e não outro? Por que este corte temporal e não o anterior ou o seguinte? Por que esta biografia e não aquela? Essa perspectiva abre a possibilidade de pensarmos a produção histórica no seu contexto e sua relação com as demandas da sociedade que a produziu. Pois, segundo Certeau: Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da ‘realidade’ da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada ‘enquanto atividade humana’, ‘enquanto prática’ (CERTEU, 1982, PP. 66)

No Rio Grande do Sul existem múltiplas operações em História, uma delas é encontrada em trabalhos de história municipal e local. Cerca de metade destes livros foram editados pelas Prefeituras e Secretarias Municipais de Cultura e Educação. Outros foram promovidos por grupos de intelectuais e historiadores, sob a forma de seminários, com participação de cronistas e jornalistas locais e posteriormente publicados. O objeto deste estudo são os livros editados a partir de simpósios e seminários de História local, especialmente na coleção Marcas do Tempo, publicados pela EST Editora, e promovido por diversas prefeituras municipais, a partir de um evento chamado: Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte. Nos trabalhos de História Municipal, as administrações públicas colocam os seus conceitos sobre o que é História ao incentivarem estas publicações. Sabemos que, dentre as diversas obras solicitando incentivos, sempre existe uma escolha sobre os projetos que serão patrocinados. Junto às comunidades, uma nova configuração sobre sua identidade acaba sendo forjada por esse material. Isso ocorre especialmente nos seminários ou simpósios de História Local. Pois ao “se lerem” os moradores apropriam-se dessas informações e elaboram suas próprias representações sobre esse passado em comum. As publicações patrocinadas pelas prefeituras, os simpósios e os congressos que originaram estes textos proporcionaram uma valorização da memória. Nos prefácios, escritos pelos secretários de cultura, prefeitos e organizadores, aparece como destaque a presença da comunidade seja de forma espontânea, pelo público, seja de forma obrigatória, os alunos das escolas municipais. Por isso, além da discussão sobre qual memória foi construída através destes eventos e livros, é preciso observar qual o papel dos historiadores acadêmicos que participaram legitimando, ou não, essa memória que aflorou sem sistematização ou reflexão. Pois sabemos que Memória e História estão longe de serem sinônimos, todavia, são tratadas como semelhantes nestes trabalhos.

USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA

Sendo assim, o objeto deste trabalho é analisar, através dos prefácios e textos publicados na abertura dos livros, quais conceitos sobre História aparecem na fala destas autoridades municipais e avaliar como a promoção da História Municipal pode ser apropriada por estas administrações. A reflexão sobre estas questões ainda está em andamento, sendo parte de um projeto de doutorado em História, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentro da linha de pesquisa de História e Representação.

História e Memória As questões sobre Memória e Identidade têm sido valorizadas nas últimas décadas. Todavia, no início do século XX, na obra de Maurice Halbwachs, esse tema já havia entrado em pauta. Em seu trabalho sobre memória individual e memória coletiva, esse sociólogo apresentou sua teoria indicando como ocorria a formação de ambas, e, também a relação entre memória coletiva e a História. Ele colocou a elaboração da memória coletiva como uma produção do grupo/comunidade, que só faz sentido pela sua interação com os membros: “Toda a memória coletiva tem por suporte um grupo limitado no espaço e no tempo.” (HALBSWACHS, 1990, pp. 86) por isso, essa necessidade de abdicação da memória individual, diluída na memória coletiva, já que a primeira passaria para o último plano. Segundo Halbwachs1, a memória coletiva é construída enquanto estamos em contato com os grupos sociais nos quais estamos inseridos. Sendo assim, nossa memória “concorda” com a dos outros desde que haja pontos de contato entre as lembranças e estas possam ser construídas sobre um fundamento comum: Não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que essa reconstrução se opera a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte da mesma comunidade. (HALBSWACHS, 1990, pp. 35)

Paul Ricoeur dedicou uma parte de sua obra: A memória, a história, o esquecimento, a refletir sobre Halbwachs, mas foi além. Ele apresentou as diversas condições a que foi submetida a memória: memória e a imaginação, os usos e abusos da memória, e sua contrapartida, o esquecimento. Pois, se as pessoas utilizam sua memória de maneira subjetiva, ou seja, às vezes as lembranças nos arrebatam, e eventualmente é necessário esquecer e realizar o luto dando um tratamento “racional” à memória, o historiador tem o dever de, ao trabalhar com as fontes, desvelar a memória manipulada: Nesse nível aparente, a memória imposta está armada por uma história ela mesma ‘autorizada’, a história oficial, a história aprendida e celebrada publicamente. De fato, uma memória exercida é, no plano institucional , uma memória ensinada; a memorização forçada encontra-se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum. O fechamento da narrativa é assim posto a serviço do fechamento identitário da comunidade. História ensinada, história aprendida, mas também história celebrada. À memorização 1

Acompanhamos o debate sobre os conceitos propostos por Halbwachs no artigo de Regina Weber!Elenita Malta Pereira!!. Halbwachs e a Memória: Contribuições à História Cultural. Todavia, por questões de espaço, não entraremos nesta discussão ao longo deste projeto.

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forçada somam-se as comemorações convencionadas. Um pacto temível se estabelece assim entre rememoração, memorização e comemoração. (RICCEUR , 2007, pg. 98).

Essa memória forjada dentro dos grupos sociais é entendida por Michel Pollak como promotora de um sentimento de identidade, este, visto superficialmente, como a construção de sua própria representação, de como a pessoa vê a si mesma e de como pretende ser vista pelo grupo. Para a construção de identidade, três elementos seriam fundamentais: a unidade física, a continuidade no tempo e o sentimento de coerência (POLLAK, 1992, pp. 205). Esses elementos citados podem ser promovidos pela valorização desta ou daquela memória do grupo. Para Pomian (2007), a memória coletiva costuma ser preservada por um grupo de indivíduos especializado em memória e em quem o “povo” confia, mas ela se realiza e se projeta em ritos e festividades onde participam todos. Esses memorialistas, promotores dos livros de História local e dos eventos de história são, geralmente, pessoas da própria cidade, ou antigos moradores que mesmo vivendo em outros lugares, buscam essa filiação simbólica a fim de legitimar o seu lugar de fala. A importância da memória como constituinte de identidade reside nas referências que a comunidade toma sobre o seu local e sobre sua posição frente ao outro. Justamente por esse caráter negociável, que a construção das memórias coletivas deve ser sempre questionada pela História. Isso nos leva a discussão sobre o papel do Historiador, e sua representação na sociedade. Segundo Ricoeur: (...) Uma coisa é um romance, mesmo realista; outra coisa, um livro de história. Distinguem-se pela natureza do pacto implícito ocorrido entre o escritor e seu leitor. Embora formulado, este pacto estrutura expectativas diferentes, por parte do leitor e promessas diferentes por parte do autor. (...) Ao abrir um livro de história, o leitor espera entrar, sob a conduta de um devorador de arquivos, num mundo de acontecimentos que ocorreram realmente. (RICCEUR , 2007, pp. 274).

Quanto às falas dos encontros que foram posteriormente publicadas, a temática dos artigos remete à fundação e colonização das cidades, muito pouco é mencionado sobre o passado recente. Em todos os trabalhos a questão da identidade calcada em uma trajetória comum aparece, ou de forma subliminar, ou conclamando os leitores como parte deste grupo, elaborando laços identitários. Segundo Diehl, “Tempo como força de corrosão, espaço como lócus da experiência da rememorização e o movimento como estrutura simbólica da cultura são os elementos constituidores da(s) memória(s) e da(s) identidades(s).”(2002, pp. 114) Além dos livros, os eventos promoveram uma efervescência nos municípios, os participantes sentiam-se chamados a mostrar suas memórias sobre a região quebrando a rotina do local: Com extensa programação desde a inauguração do busto do Coronel Niederauer na localidade de Itaquí, fazendo-se presentes dois batalhões do Exército vindos de Santa Maria, palestrantes relatando fatos e esclarecimentos sobre a nossa história, comunidade, alunos buscando com mais interesse descobrir e redescobrir a origem de seus antepassados, realizou-se em 1999 o I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS e Raízes de Terra de Areia II.(1998, pp. 12) Simpósio Marcas do Tempo, em Terra de Areia

Existe um “pacto” entre o leitor e o historiador, em que este se propõe a apresentar

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reconstruções aproximadas do que foi um dia real, são as exigências e expectativas colocadas nos escritos de História. Esse compromisso leva a perguntar: quais usos podem ser feitos do passado, se a memória é um elemento de produção coletiva, a História, é uma produção datada e com intencionalidades conscientes ou não?

Cultura Histórica: O conceito de Cultura Histórica, embora seja relativamente novo como categoria interpretativa, já foi observado por vários pensadores. Passou pelas reflexões de Nietzsche nas suas Considerações Extemporâneas: Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemorativos religiosos ou guerreiros, é propriamente um tal “efeito em si”: é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que está guardado como um amuleto no coração dos empreendedores, e não a conexão verdadeiramente histórica de causas e efeitos que, completamente conhecida, só provaria que nunca sairá de novo um resultado exatamente igual no jogo de dados do futuro e do acaso. (1996, pp. 61)

Claro que o filósofo não pretendia elaborar um conceito ao escrever suas reflexões, mas este texto tornou-se muito importante pois vários historiadores passaram a analisar a forma como a História é produzida em cima das denúncias de Nietzsche sobre a onda comemoracionista. Também encontramos estas discussões sobre memória e tempo na obra de Ricceur (2007); pelas questões sobre as definições e construção da idéia contemporânea de História, na obra de Koselleck (2006), e, no Brasil, encontra-se presente na obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães e Astor Antônio Diehl. Como é necessário delimitar esse conceito, será utilizada a proposta de Guimarães e Diehl, ainda que de forma provisória. A maioria dos historiadores citados anteriormente apresenta a noção atual de História como fruto do Iluminismo e da construção do Estado Nação. Sendo assim, a História como saber disciplinado, ou domesticado, como diria Elias (1993), é uma parte do “processo civilizatório”. Segundo Guimarães: Forjada a partir da experiência revolucionária de 1789, essa cultura histórica problematizaria de forma cada vez mais intensa a relação entre o passado e presente, agora definitivamente separados por uma experiência radical de ruptura. A integração do passado a partir de categorias como a de desenvolvimento e progresso poderia assegurar ao presente um sentido e um ponto de ancoragem, indicando, no mesmo movimento os caminhos do futuro. (GUIMARÃES, 2006, pg. 11)

Em sua análise sobre as construções historiográficas, Guimarães coloca que toda a produção de discursos sobre o passado possui uma historicidade, que é fruto dos lugares, do contexto e dos autores que a produziram. Todavia, é uma tendência silenciar sobre esse processo, e aceita-lo como natural. A “versão” vencedora acaba por impor-se sem sofrer questionamentos. Essa ideia de História, surgida no período oitocentista, conecta o passado com o futuro, como

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se neste passado, o futuro já estivesse sinalizado e os acontecimentos do momento fossem o óbvio desfecho de todo um movimento anterior: Ao construir o passado como projeção do presente e desejo de futuro, a história é capaz de disciplinar este passado segundo os sentidos importantes para o presente em construção, conjurando incertezas e dúvidas próprias de um mundo vivendo em meio ao turbilhão de mudanças que parecem inviabilizar uma referência ao passado nos termos de uma busca de comparações com o presente, como forma de extrair soluções para a ação no mundo. (GUIMARÃES, 2000, pg. 26.)

Essa sensação de permanência do passado no presente é um indicativo de que uma das funções do processo histórico é construir identidades que se relacionam em uma vivência política e social. Isso fica claro quando pensamos na história disciplina escolar ou na que é promovida pelas administrações públicas. Essa afirmação se materializa na escolha dos elementos celebrativos que virão à luz e dos eventos e monumentos do passado que constituirão a memória e a história continuamente relembrada, ou ruminada, uma Cultura Histórica, como acusava Nietzsche: Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante aquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas de ruminação e ruminação sempre repetida. Portanto, é possível viver quase sem lembrar e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. (1996, pp. 65)

Neste texto o autor critica as práticas celebrativas cheias de ufanismo e otimismo conectando um passado glorioso com um futuro que não pode lhe deixar nada a dever. Mas, diferente da ruminação tediosa, os elementos mudam a cada geração que repensa seu passado e o comemora. Essa onda comemorativa do passado, que aparece de maneira muito concreta nos eventos do Projeto Marcas do Tempo, estudada para esse projeto de doutoramento, pode ser explicada por duas vias. Astor Dihel (2002, pp. 101) indica que o ato de rememorar leva a uma repoetização do passado, criando uma nova estética deste passado e, por sua vez, resignificando as identidades sociais presentes no grupo que celebra. Participar da comemoração dos aniversários de emancipação, da chegada dos imigrantes, as datas nacionais, todos esses eventos levam a chancela do órgão promotor, em geral, as secretarias de cultura e desporto e as prefeituras. Sabemos que, sobretudo nas pequenas comunidades, estes eventos são marcos importantes no calendário pessoal, portanto, ligar-se a um trabalho bem feito é um passaporte seguro para a memória da cidade, pelo menos durante algum tempo.

Usos da História: Nos últimos anos do século XX ocorreu uma valorização da História junto ao público, na mídia, nas publicações, os temas históricos ocupam espaços novos. Nas discussões políticas os historiadores também foram chamados a interferir. No Brasil essas questões ainda não ocupam o espaço dado a elas na Europa, mas encontramos insinuações desse processo, por exemplo, nas leis para inclusão de conteúdos específicos da História nos currículos (o caso da obrigatoriedade de ensino da história

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e cultura africanas pelas disciplinas de história, literatura e artes) por lei federal, ou nas áreas desapropriadas por serem regiões de quilombolas. Sobre estas relações entre a História e o seu uso para legitimar posições políticas, Hartog e Revel, organizaram um livro com as recentes questões sobre esse tema. Em sua introdução eles indicam três elementos que devem ser considerados: o primeiro apresenta a necessidade de reflexão sobre os debates abertos pela história recente, pois eles causam impactos políticos culturais tais como: conflitos internacionais, guerras civis, processos de legitimação e de deslegitimação de regimes autoritários, etc. O segundo elemento está relacionado com um alcance tanto historiográfico como público que ocorre pela deformação da História por motivos nacionalistas, isso gera a necessidade de construir uma imagem de nação que soe coerente, gratificante, enraizada ou voltada ou para o futuro, ou para a tradição. A terceira contribuição indica o risco do uso dos métodos e das formas propostas das sistematizações ou das classificações históricas que, voluntariamente ou não, coincidem com as imagens das estruturas políticas e sociais dominantes ou reforçam sua legitimidade, em particular no estudo dos fenômenos históricos de longa duração. (HARTOG e REVEL, 2001, pg. 8.) Esse renovado interesse pelo passado, segundo os autores, está diretamente relacionado com as ondas de comemoração que iniciaram com o bicentenário da Revolução Francesa, as datas relativas a fatos da I e II Guerra Mundiais e as questões de perseguidos políticos, nos casos de regimes autoritários, mas principalmente, judeus, ciganos, e outras minorias que sofreram com o regime nazista. Hoje na França, na Itália e na Espanha, a história não é mais pensada nos programas escolares como um instrumento de compreensão da formação, aprofundado na longa duração das realidades nacionais e nas mudanças complexas do mundo. Ao contrário está tratando do senso comum histórico, marcado pelo factual e pelo tempo curto, transformou a idéia de que os fatos recentes são, por definição, mais importantes do que aqueles do passado. E por isso ganham mais espaço na grade curricular (é o caso também do Brasil onde o último ano é dedicado exclusivamente ao século XX): “Cela a engendré um élargissement du contemporain, et une schématisation, une simplification du passe plus éloigné: l’histoire a été transformée em nouvelles.”(HARTOG, 2001, pp.30)2. Por fim, o uso político da História mais presente no Brasil, está ligado às comemorações, mas também, pode ser encontrado no prestígio alcançado pelas prefeituras ao patrocinarem livros sobre história da região, e de como colocavam-se (nos prefácios, ou artigos) como “guardiões” dessa memória que estava por ser perdida. Através do trabalho de Torres podemos compreender o fenômeno que ocorre próximo a nós: Dans tous ces cas de figure, l’historie occupe le centre du débat politique et sert à justifier les opinions et les actions les plus diverses. Mais, même là où ne se manifstent pas ces próblèmes, l’histoire renforce aujourd’hui ses liens avec la politique. Lescommémorations qui se succèdent à la demande des institutions ou des gouvernements en sount un exemple pattent. Cela

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Livre tradução: “Isso levou à expansão contemporaneidade, e um mapeamento, uma simplificação do passado mais distante: a história foi transformada em literatura.”

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est également illustré par l’invention d’historiens influents dans les médias quand il s’agit de traiter d’affaires de politique intérieure ou internationale et d’orienter l’opinion dans ces domaines. Nous pourrions même evoquer ici les stragégies politiques, plus ou moins dissimulées, d’un certain type de livres et de revues historiques de vulgarisation, de même que les mémoires qui ontproliferé ces derniéres jusqu’a devenir des objets de consommation de masse. Tous ces exemples se recontrent également en Espagne, à commencer, bien entendu par le fievré des commémorations (HARTOG e REVEL, 2007, pp, 132)3

Beatriz Sarlo (2005), observa que essa História massiva, possui em si um principio organizador simples, que reduz o número de hipóteses sobre o passado e simplifica a História para torná-la própria para o consumo: La historia de circulación masiva, en cambio es sensible a las estrategias con que el presente vuelve funcional el asalto del pasado y considera que es completamente legítimo ponerlo en evidencia . Si no encuentra respuesta en la esfera pública actual, ha fracasado y carece completamente de interés. La modalidad no académica (aunque sea un historiador de formación académica quien la practique) escucha los sentidos comunes del presente, atiende las creencias de su público y se orienta en función de ellas. (SARLO, 2005, pg. 14 e 15)

Esse “consumo” da História passa por um enquadramento da memória aos interesses do órgão promotor do estudo, da sociedade onde está inserido, do contexto político e social. Claro que não estamos falando de um maniqueísmo fácil, mas sim, de uma culminância de interesses em torno de determinado tema histórico. Pollak sugere o estudo da memória coletiva em relação a sua função, como uma forma de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais: “A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também suas oposições irredutíveis.” (POLLAk, 1989, pg. 9). Sendo assim, a História Local figura como um desses elementos de “coesão” da sociedade e, por isso, um alvo deste enquadramento de memória, passível de ser utilizado pelos órgãos públicos. Essa sensação de permanência do passado no presente, através da relação entre uso político e memória, é um indicativo de que uma das funções do processo histórico é construir identidades que se relacionam em uma vivência política e social. Essa afirmação se materializa na escolha dos elementos celebrativos que virão à luz e dos eventos e monumentos do passado que constituirão a memória e a história continuamente relembrada, ou ruminada, como acusava Nietzsche Uma Cultura Histórica. Mas, diferente da ruminação tediosa, os elementos mudam a cada geração que repensa seu passado e o comemora. Segundo Guimarães(2000), a Cultura Histórica é uma cultura da lembrança, um processo de mapeamento das construções sobre história promovidas pelas sociedades e que fogem ao controle acadêmico, ou seja, as comemorações, a história vulgarizada, a história simplificada ou massiva.

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Livre tradução: “Em todos esses casos, a história ocupa o centro do debate político e é usada para justificar as opiniões e ações mais diversas. Mesmo onde esses problemas não se manifestam, a história sempre reforça as suas ligações com a política. As comemoraçoes que se sucedem, a pedido de instituições ou governos sao um exemplo patente. Esto também é ilustrado pela intervençao de historiadores influentes na mídia quando se trata de lidar com questões de política interna e da opinião pública internacional e orienta as opinioes nessas áreas. Poderíamos tambem citar as estrategias politicas, mais ou menos ocultas, de um certo tipo de livros históricos e extensão revistas, bem como memórias recentes que tornam-se objetos de consumo de massa. Todos esses exemplos são também recorrentes na Espanha, começando naturalmente pela febre de comemorações “

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“Projeto” Marcas do Tempo e o uso da História pelas prefeituras O Projeto Marcas do Tempo encontra-se entre aspas no título porque não é um projeto propriamente dito, e sim, um movimento que organizou vários simpósios sobre a história da imigração alemã no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Entre 1998 e 2006 foram realizados quatro Simpósios Sobre Imigração Alemã no Litoral Norte nos municípios de Terra de Areia (1998), Torres (2001), Três Cachoeiras (2004) e Arroio do Sal (2006). Eles foram organizados pela historiadora Nilsa Huyer Ely, que, ao indicar sua biografia, apresentava-se como professora e historiadora, embora não seja graduada. Todavia, ela trabalhou na equipe de outro projeto, encabeçado pela Drª Vera Lucia Maciel Barroso, e já havia participado do comitê de outros encontros na região do Litoral Norte. Estes eventos foram elaborados a partir do Projeto Raízes, uma série de seminários sobre os municípios que se desligaram de Santo Antônio da Patrulha, compondo uma rede de “municípiosfilhos” e “municípios-netos” desta cidade. Estes encontros foram promovidos pela historiadora Vera Lucia Maciel Barroso, junto as comunidades. O Projeto Raízes era apresentado às prefeituras municipais que utilizaram, na maioria dos casos, as datas de emancipação, para apresentarem um seminário sobre a história da cidade. Este movimento foi pioneiro na região, tanto que, alguns autores do projeto “Marcas do Tempo” fazem referência ao interesse na História local que foi suscitado por esse primeiro evento. Os Simpósios sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS seguiram o mesmo caminho. O mote era a comemoração de emancipação, no caso de Terra de Areia (comemorava-se 12 anos de emancipação), ou s centenários, como no evento de Torres, que foi realizado em comemoração aos 175 anos de imigração alemã para a região, e em Três Cachoeiras, que foi lembrado, simultaneamente, os 180 anos de imigração alemã para o Brasil, e os 178 anos de imigração para a região. Os textos apresentados nos simpósios foram compilados em livros e publicados nos anos seguintes, todos pela EST Edições, e têm como organizadora Nilza Huyer Ely. Os autores/palestrantes, dividem-se em historiadores acadêmicos como Martin Dreher, Eloísa Helena Capovila, Marcos Antônio Witt, Telmo Lauro Muller, Vera Lúcia Maciel Barroso entre outros. Além dos historiadores, a maioria dos artigos foi escrita por memorialistas ou amadores, que, ao citarem as credenciais dos autores, estes são denominados “profissão” e historiador, por exemplo: há um pároco e historiador ( Pe. Rizzieri Frederico Delai), tabelião e historiador (Cláudio Leal Domingos), etc. Também há os que se autodenominam apenas “pesquisadores” sem apresentar sua formação. Outras falas são de professores, biólogos, padres, advogados, e, inclusive, artigos curtos escritos por estudantes de escolas municipais da região. Em todos os livros a primeira parte é composta de uma apresentação pela organizadora, e depois prefácios de autoridades municipais expondo sobre a importância do evento para a cidade, de como este trabalho reflete uma postura da administração municipal, e, sobretudo, apresentando a importância do mesmo para a preservação de uma “memória” ou de uma “história” que se encontra perdida:

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Ao apresentarmos Terra de Areia-Marcas do Tempo, I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS e Raízes de Terra de Areia II, devemos registrar que esta obra só se tornou real graças à visão da administração pública municipal de Terra de Areia, na pessoa de seu prefeito Dr. Generi Máximo Lippert que, com perseverança e através da cultura, persegue um futuro promissor para sua comunidade. (Terra de AreiaMarcas do Tempo, pp. 11) A população de Torres, orgulhosa de sua bela natureza e ambiente acolhedor, está motivada pelas mesmas perguntas, quando parte dos munícipes é descendente de imigrantes do século XIX. E não é por menos, que historiadores com a visão lúcida de Nilsa Huyer Ely, filha do antigo distrito de Guananazes, pertencente então ao Município de Torres e hoje parte integrante do município de Três Forquilhas, terra da imigração alemã ao lado da antiga Colônia de São Pedro, apoiada pelo secretário municipal de Turismo, Esporte e Cultura, Dr. Alexandre Turatti de Rose e pela dirigente municipal de Cultura, professora Terezinha C. de Borba Quadros, na dinâmica gestão do Prefeito Dr. José Batista da Silva Milanez entenderam a importância do anseio popular e organizaram, com o patrocínio da Prefeitura Municipal de Torres, o II Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS, programado para os dias 30 de agosto a 1º de setembro de 2001. (Torres- Marcas do Tempo, contracapa) Foi pensando nos jovens do nosso município que abraçamos a realização do III Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte, proposto pela sua idealizadora, a incansável historiadora Nilza Huyer Ely. (...) Sabemos que somos transitórios nesta vida, mas o que deixamos registrado por escrito, será lembrado pelas gerações que nos sucederam, as quais saberão o quanto valorizamos a cultura e o esforço que empreendemos na realização deste Simpósio. (Torres - Marcas do Tempo, prefácio)

Como estão exemplificadas nos relatos acima, as prefeituras realizam um uso político desta história através da imagem dos imigrantes, pioneiros, que ocuparam a região. A necessidade de memória, alicerçada nos primeiros colonizadores, neste caso, constitui-se em uma verdade forjada, já que, havia um núcleo populacional já estabelecido nestes povoados antes da chegada dos alemães. A retomada das epopéias de imigração, através dos eventos públicos não é um fenômeno exclusivo do Rio Grande do Sul, ou do Brasil. Encontramos reflexões sobre isso na descrição dos usos da história francesa, e podemos traçar paralelos: A esse respeito, pode-se dizer que existem na França verdadeiras ‘políticas públicas de memória’, isto é, formas de gestão públicas do passado que tentam levar em conta essa necessidade de história e de contribuir, às vezes de maneira muito voluntarista, para a formação de um imaginário do passado. Essas políticas manifestam-se sob várias formas. (ROUSSO, 1997, pp. 10)

Os espaços de manifestação desta memória retomada/recolocadas pelos órgãos públicos são as comemorações e as políticas de patrimonialização. As comemorações com motivos históricos pretendem unir os moradores através da partilha desta memória coletiva. Ao reviver as narrativas dos antigos moradores, eles sentem-se incluídos no grupo, reforçam os laços de pertencimento. Para o poder público, é interessante estar ligado a promoção desta memória. O passado é visto, então dentro de um presente constante, e os administradores, então, sempre estiveram ali, é um passado para ser consumido:

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Isso significa que vivemos em sociedades que parecem, de um lado ter perdido o ‘sentido’ da história, em sua acepção tradicional, entendido como um movimento contínuo e linear do progresso. Vivemos, assim, no presente, até mesmo na instantaneidade. Mas, por um lado, as referencias ao passado, à história, são cada vez mais frequentes no discurso comum, tanto quanto no político. A demanda social da história nunca esteve tão forte, a memória – ou seja, a presença do passado – nunca foi parte tão integrante da atualidade cotidiana: é particularmente claro na França, com tudo o que diz respeito às lembranças da última guerra. (ROUSSO, 1997, PP. 16)

É mais confortável hoje pensar no passado do que no futuro, isso seria uma das razões, para a atual vontade de memória pelos órgãos públicos e do interesse comercial da mídia: Questões cruciais da cultura contemporânea estão precisamente localizadas no limiar entre a memória dramática e a mídia comercial. É muito fácil argumentar que os eventos de entretenimento e os espetáculos das sociedades contemporâneas midiatizadas existem apenas para proporcionar alívio ao corpo político e social angustiado por profundas memórias de atos de violência e genocídio perpetrados em seu nome, ou que eles são montados apenas para reprimir tais memórias. É também muito fácil sugerir que os espectros do passado que assombram as sociedades modernas, com uma força nunca antes conhecida, articulam realmente, pela via do deslocamento, um crescente medo do futuro, num tempo em que a crença no progresso da modernidade está profundamente abalada. (HUYSSEN, 2000, pp. 20)

Nestas obras, confunde-se história com memória. Como já foi debatido anteriormente, a história entra em cena tomando o lugar do a memória. Mas, para estas administrações, o grande objetivo, expresso de forma clara nos prefácios e capítulos de abertura, é tornar-se memória, apropriando-se do aval da história: Vivemos naqueles dia momentos inesquecíveis pela qualidade dos palestrantes que aqui se apresentaram com temas envolventes, despertando nosso interesse pela história da nossa região. (...) Aos que vieram comunicar ou ouvir relatos de famílias, resgatando as raízes e valorizando seus antepassados. Resta-me afirmar que sem dúvida foi um dos acontecimentos marcantes que jamais sairá de nossa memória; devendo servir de modelo às administrações que vem nos sucedendo. Sabemos que as crianças daquela época, alunos que participaram empolgados com pesquisas, danças e momentos culturais, hoje são cidadão atuantes e influentes na política social do município podendo com suas ações mudar os rumos, baseados na educação e experiência que vivenciaram. Deli dos Reis Medeiros, secretária de educação de Terra de Areia durante o I Simpósio. (Dom Pedro de Alcântara - Marcas do Tempo, 2010, pp. 35) O Prefeito Municipal de Torres, Dr. José Batista Milanez, que foi um grande apoiador da Cultura, juntamente com o Secretário Municipal de Turismo, Cultura e Desporto, Sr. Alexandre Turatti de Rose, respaldaram a realização deste evento, com muita dedicação, contribuindo para o resgate de nossa história lá no pretérito, sendo, na realidade, uma demonstração de eterna gratidão a estes pioneiros. Terezinha de Borba Quadros, diretora da APAE Torres (Dom Pedro de Alcântara - Marcas do Tempo, 2010, pp. 36) É sabido que as prefeituras dispõem de poucos recursos na área da Cultura, o que

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dificulta muito a realização de eventos nesta área. Quando assumimos este compromisso, sabíamos que a verba da cultura seria exclusivamente disponibilizada para o livro, e que todos os recursos usados durante os 3 dias do Simpósio deveriam ser buscados na comunidade através do patrocínio junto às empresas através da boa vontade e permanente dedicação do Prefeito Pedro Lumertz. Clarice Scheffer Borges, exsecretária de educação do município de Três Cachoeiras (Dom Pedro de Alcântara - Marcas do Tempo, 2010, pp. 38)

Como fica claro nos exemplos acima, ligar o seu nome à promoção da “história” dos municípios é uma estratégia política largamente utilizada na França, nos governos estaduais e até mesmo nas pequenas cidades. Talvez nestas, a força do registro em livro, da sua divulgação nas escolas, na participação da comunidade nos eventos pode colocar estas pessoas como “guardiões” da história local. Este pequeno artigo não pretendeu dar conta de todas as discussões, elas ainda estão em andamento nas pesquisas do projeto de doutoramento, sendo o próximo passo analisar como a memória vira história nestas comunidades e o seu papel nos usos da História.

Livros Marcas do Tempo: I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS- Terra de Areia Marcas do Tempo (2000). Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre. II Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS- Torres Marcas do Tempo (2003), Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre. III Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte- Três Cachoeiras Marcas do Tempo (2004) Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre. IV Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte- Arroio do Sal Marcas do Tempo (2006). Organizado por Nilza Huyer Ely. EST Editora, Porto Alegre. V Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte- Dom Pedro de Alcântara Marcas do Tempo (2010). Organizado por Nilza Huyer Ely, EST Editora, Porto Alegre.

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USOS POLÍTICOS DA HISTÓRIA

REFERÊNCIAS

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Doutoranda em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Helissa Renata Gründemann* Alexandre da Silva Borges** Prof. Dr. Jean Baptista***

Considerações iniciais A cidade de Rio Grande, localizada ao extremo sul do Rio Grande do Sul, foi a primeira do Estado e possui inúmeras riquezas culturais, muitas vezes menosprezadas. Aqui não citamos apenas os prédios históricos, que ela possui em abundância, mas principalmente os patrimônios periféricos, historicamente escanteados por não representarem a elite local, que logicamente apenas desejou registrar e salvaguardar sua própria memória e história. Nos últimos anos, a cidade portuária vem passando por um intenso investimento econômico relacionado ao polo naval. Entretanto, este chamado “progresso” por muitas vezes acaba causando mais mal-estar e dificuldades para a população do que de fato melhoria nas condições de vida no município. Vemos isto pela falta de planejamento urbano, que a cada dia demonstra que não suporta o crescimento populacional exacerbado; pela poluição crescente nas lagoas do entorno, assim como na própria área urbana, etc. Um exemplo é a obra de duplicação da BR-392 onde, em Povo Novo, o podemos observar o desmatamento, o desalojamento e a destruição de prédios históricos e característicos do distrito (símbolos da localidade). O descaso com as situações de vulnerabilidade encontradas nos distritos do município são evidentes há longa data1. Assim, tendo em vista esta situação, surge no segundo semestre de 2010, as primeiras ações que, posteriormente, geraram o Programa de Extensão COMUF, uma reunião de projetos, tendo como bolsistas alunos do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande, em parceria com os movimentos sociais e as comunidades envolvidas. O Programa tem como objetivo a defesa do patrimônio comunitário e distrital, assim como o registro de suas histórias, para que estas possam ser também conhecidas pelos moradores e, principalmente, alunos do município. Isto se dará pela geração de material didático, com base nas pesquisas e ações realizadas pelos projetos. O Programa se institucionaliza, então, em 2011, concorre ao edital PROEXT e ganha a verba de R$ 150.000 reais para ser aplicada neste ano de 2012. Assim, no presente artigo iremos abordar de forma mais profunda as ações que estão sendo realizadas neste ano.

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O município de Rio Grande é divido entre 5 distritos: o 1º é a própria Cidade de Rio Grande, tendo como subdistrito o Balneário Cassino; o 2º tem como sede a Ilha dos Marinheiros; o 3º tem como sede Povo Novo; o 4º tem como sede o Taim; e o 5º tem como sede a Vila da Quinta.

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Aporte teórico-metodológico O Programa COMUF parte da percepção de que faz parte do papel social das Universidades Federais, já que estas utilizam para sua sobrevivência o dinheiro dos contribuintes, que elas desenvolvam projetos que de alguma forma contribuam para uma melhoria social. Assim, acreditamos que extensão universitária pode auxiliar neste objetivo, pois valorizando o que há fora da Universidade, e não considerando que todo “o conhecimento” está restrito apenas dentro dos muros universitários, podemos de fato cumprir nosso papel social. Como historiadores, acreditamos que possuímos importante função, pois podemos colaborar na valorização de histórias e memórias que ao longo do tempo vem sendo negadas e menosprezadas. Como explana Boaventura Sousa de Santos, o objetivo principal é se emancipar e responder de forma efetiva às demandas sociais, mudando de rumo uma história que até agora foi de exclusão de vários grupos sociais e seus saberes justamente por parte da universidade (SANTOS, 2008, p.51). Conforme Boaventura dos Santos (2008, p.13-14)), a universidade em fins do século XX viuse apreendida por três crises: a institucional, a da hegemonia e a de legitimidade, fenômenos oriundos da crise que a própria ideia de Estado passou a experimentar a partir da intensificação do capitalismo neoliberal. Descapitalizada mediante a redução do financiamento público, sofrendo o impacto da vinculação da produção intelectual com a lógica capitalista e pressionada pela era da comunicação, a universidade viu seu propósito descaracterizar-se mediante a mercantilização: o mercado, sim, passara a ser o responsável pelo andamento do processo de educação, então entendida como um produto. Críticas sociais passaram a permitir que não apenas a academia criticasse a universidade, como convencionalmente o fazia, mas também a sociedade passasse a fazer críticas contundentes sobre a universidade, provocando um conhecimento pluriversitário responsável pela cobrança de outra relação universidade-comunidade. A própria ideia de nação e de ciência, antes a cabo da universidade, passa a estar comprometida. Em termos de Boaventura dos Santos, uma “reforma criativa, democrática e emancipatória”, proporia “uma globalização alternativa”, “solidária” e “contra-hegêmonica” acompanhada de uma “democratização radical do bem público universitário”, onde novas redes, novas pedagogias e novos processos de construção de conhecimento podem compor alternativas à crise contemporânea. Ao assumir o pacto social, a lógica de pesquisa e extensão da universidade sofrem profundas alterações. Trata-se de se questionar a extensão mediante o propósito de pesquisa-ação atenta às demandas sociais. Em busca da superação da crise mediante uma nova instituição e uma nova legitimidade pós-colonial, é importante ressaltar o papel da extensão universitária que nos últimos anos vem ganhando destaque e concretizando o papel social das Universidades. Em relação a isto, Santos afirma: A área de extensão vai ter no futuro próximo um significado muito especial. [...] a reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às actividades de extensão (com implicações no curriculum e nas carreiras dos docentes) e concebê-las de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades uma participação activa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural. (SANTOS, 2008, p.66-67).

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Com o mesmo intuito, o COMUF propõe a união de dois importantes conceitos para a luta emancipatória e a radicalização da democracia: o de educação não-formal e o de Patrimônio Imaterial. Devidamente regulamentados, condizentes com as orientações da UNESCO e do Ministério da Educação do Brasil, a educação não-formal junto ao conceito de patrimônio imaterial oferece o acesso das comunidades ao interior da universidade, uma nova postura dos universitários quando entre as comunidades e uma alternativa na conquista dos direitos cidadãos. Ao reduzir as escalas hierárquicas dos saberes, reconhecendo os saberes das comunidades como motores de todas as ações universitárias, a educação não-formal e o conceito de patrimônio imaterial (junto com sua legislação), possibilitam o aproveitamento da ideia de geração de ações patrimoniais (inventários, registros, ações civis, políticas de salvaguarda) como pesquisa-ação. Ou seja: não se trata de conceber a educação como algo a ser passado, como corre o risco de uma percepção recorrente de educação patrimonial, e o patrimônio como algo a ser fossilizado, como se incorre quando se possui apenas a perspectiva histórica e conservacionista dos bens, mas, sim, entende-se tanto a educação quanto o patrimônio como algo a ser vivido em um propósito solidário, criativo e político. Seguindo os princípios da educação não-formal, entende-se esta como atividades ou programas organizados fora do sistema regular de ensino mas que não precisa excluí-lo: pelo contrário, pode transformá-lo quando destinado ao aprimoramento das competências de todos os envolvidos no que diz respeito ao fortalecimento da cidadania. Como resultado, conforme Maria da Glória Gohn (2006, p. 33), a própria ideia de avaliação e de fins da educação são redimensionados: não se espera respostas exatas como poderia ocorrer na educação formal, mas, sobretudo, a geração de uma consciência de organização sobre o trato com o outro, meios para se articular em prol de um sentimento de identidade e de rejeitar preconceitos mediante o desejo de luta “para ser reconhecidos como iguais (enquanto seres humanos) dentro de suas diferenças (raciais, étnicas, religiosas, culturais, etc)”. Enfim, a educação não-formal “forma o indivíduo para a vida e suas adversidades (e não apenas capacitação para entrar no mercado de trabalho)” (Gohn, 2006, p. 33). Por seus fins e campos de ação, a educação não-formal se relaciona diretamente com o conceito de Patrimônio Imaterial. Conforme Cavalcanti e Fonseca (2008, p. 11-12), o conceito de Patrimônio Imaterial no Brasil, orientando pelo artigo 2° da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003), e pelo posterior Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, “compreende o Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro como os saberes, os ofícios, as festas, os rituais, as expressões artísticas e lúdicas, que, integrados à vida dos diferentes grupos sociais, configuram-se como referências identitárias na visão dos próprios grupos que as praticam”. Por meio da Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, ainda segundo as autoras, o patrimônio é acrescido do caráter dinâmico, processual, dado que rompe com cobranças puristas sob as comunidades e se assenta na compreensão de cultura com direito à transformação. Tal aspecto possibilitou a inserção dos povos indígenas contemporâneos, tidos até então como empobrecidos ou aculturados, assim como as demais sociedades tradicionais que compõem o Brasil. Em consonância, a Constituição Brasileira de 1988, conforme seu artigo 216, diz: “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou

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em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Deixa claro também que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. No seu primeiro parágrafo, o artigo apoia o caráter pluricultural das políticas públicas: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares e indígenas e afro-brasileiras...”. Tratava-se, de fato, como veio a ser consagrado pela Emenda Constitucional n° 48, de 2005, inciso IV, da “democratização do acesso aos bens de cultura”. Estes dados constitucionais constituem a principal base legal de todas as ações do COMUF. Para apoiar estas definições, o IPHAN estabeleceu pelo Decreto n° 3551, de 2000, os Instrumentos de Identificação e de Preservação dos Bens Culturais Nacionais, complementando, assim críticas brechas deixadas pela Constituição de 88, elegendo o Inventário Nacional de Referências Culturais como um conjunto teórico-metodológico para se evidenciar as manifestações de distintos grupos, suas dificuldades para manter a prática e os planejamentos para evitar que a prática desapareça. O IPHAN também propôs em 2000 que o Estado estimulasse uma política de produção de inventários em nível nacional, compartilhando a tarefa de identificação e salvaguarda dos bens com toda a nação. Trata-se do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, amplo setor de convênios com instituições, onde as universidades federais destacam-se como agentes considerados prioritários. Fomentos em larga escala para sustentar projetos de no mínimo três anos passaram a se tornar uma prática estimulada pela autarquia. A questão negra e indígena passou a integrar os projetos de salvaguarda nacional desde a instalação do Decreto n° 3551. A recomendação do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial é a de que essas produções venham a alcançar a sociedade civil como um todo, agindo de forma imediata no processo educacional. Tal recomendação visa atender demandas abertas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1997, que pregam que a Pluralidade Cultural da sociedade brasileira deve ser incluída como um dos eixos transversais do ensino nacional. Outro documento que é base do Programa é a Declaração de Durban, composta na III Conferência Mundial contra Racismo e Discriminação da ONU, em Durban, África do Sul. Este documento fortalece a necessidade de uma reflexão pluricultural das políticas de Estado e de ensino, determinando a instalação de ações afirmativas entre os países associados. Somado à pressão dos movimentos sociais de indígenas e de afrodescendentes, o Estado sancionou a lei 10.639 em 2003, incluindo na Constituição a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, lei, esta, alterada em 2008 pela inclusão da obrigatoriedade do ensino de história indígena. Como base metodológica, utilizamos também a pesquisa-ação. Por vezes considerada como uma “metodologia de ação” e não só como uma metodologia de pesquisa, seu objetivo primeiro é a ação social, a mudança efetiva de uma situação específica (DIONNE, 2007, p.34-35). Esta metodologia surgiu com a constatação cada vez mais evidente dos pesquisadores das Ciências Humanas dos limites da pesquisa científica tradicional em relação aos problemas cruciais da nossa sociedade (BARBIER, 2006, p.19-20). Jean Dubost define pesquisa-ação como uma “ação deliberada visando a uma mudança no mundo real, [...] englobada por um projeto mais geral e submetendo-se a certas disciplinas para obter efeitos de conhecimento ou de sentido” (DUBOST, 1987, apud BARBIER, 2006, p. 36). René Barbier também explicita:

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Se por muito tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e prever os fenômenos, impondo ao pesquisador ser um observador neutro e objetivo, a pesquisa-ação adota um encaminhamento oposto pela sua finalidade: servir de instrumento de mudança social. Ela está mais interessada no conhecimento prático do que no conhecimento teórico. Os membros de um grupo estão em melhores condições de conhecer sua realidade do que as pessoas que não pertencem ao grupo. A mudança na pesquisa clássica, quando há lugar para isso, é um processo concebido de cima para baixo. (2006, p.53).

Assim, percebemos que a pesquisa-ação pode ser muito útil em projetos que visam agir na sociedade em prol de uma melhoria, assim como em uma abordagem que leva em conta a realidade da comunidade em questão e de suas problemáticas, buscando auxiliar na resolução de demandas. Tendo isto em vista, as abordagens entre os participantes do Programa e os membros da comunidade sempre são feitas de igual para igual, sem nenhum tipo de hierarquização de saberes. As ações então são variadas, desde conversas com os moradores para melhor identificar determinadas situações e demandas; realização de Rodas de Memória; documentação e registro audiovisual, mediante permissão dos interessados, dos aspectos relevantes para determinado objetivo; entre outras que acabam sendo específicas de cada caso, pois aparecem com as demandas de cada comunidade.

Os projetos do COMUF O COMUF se divide basicamente em 4 projetos gerais: 1) Quilombolas Somos Nós A partir das demandas apresentadas pelos quilombolas da região, o projeto pretende dimensionar as memórias deste grupo, sobre a existência de quilombos na região. Sobretudo, a partir de rodas de memória com moradores que se declaram descendentes dos quilombos, procura-se fornecer uma crítica à sociedade do distrito que se concebe luso-açoriana, assim como fornecer subsídios que superem o espaço de esquecimento da história afro-brasileira na região. Com a atividade as demandas apresentadas pela comunidade estão sendo atendidas, tais como: a realização de mostras e simpósios nas localidades assim como levantamento e inventários dos membros quilombolas remanescentes e, sobretudo, a reunião da documentação necessária para regulamentação de suas terras, luta empreendida por movimentos sociais que buscam apoio da universidade. No ano de 2012, a partir de pesquisa documental e oral as atividades se concentraram na reunião de subsídios para o processo de certificação das duas comunidades de remanescentes de quilombos junto a Fundação Palmares, e na produção de material didático; assim como a luta para implementação de vagas específicas para quilombolas na Universidade Federal do Rio Grande; e no apoio à criação do Coletivo de Estudantes Negras e Negros da Universidade, nomeado “Macanudos” em homenagem a uma das comunidades quilombolas da região, cuja família possui este apelido. 2) Kaingangs no Cassino A cada ano, famílias Kaingang deslocam-se de Iraí até a praia do Cassino em busca da venda de seu artesanato, a principal fonte de renda indígena contemporânea. Não se trata, contudo, de um 211

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simples deslocamento comercial, mas sim de uma prática histórica fundamental para a manutenção de caros saberes indígenas. Entretanto, o que encontram longe está de corresponder às principais necessidades do grupo. Uma profunda aversão da comunidade local, manifesta em distintas situações de agressões verbais, boicote comercial, acusações jurídicas (seriam camelôs ilegais e exploradores do trabalho infantil, conforme relatos de comerciantes), entre outras formas de constrangimento e discriminação, afeta a venda de artesanato que não chega a proporcionar os resultados necessários para atender à população. Assim, são objetivos do projeto colaborar para assegurar a vinda dos Kaingangs todo o verão para o Cassino, pois é da venda de artesanato no verão que eles tiram sua renda anual, assim como fomentar ações e discussões que inibam o preconceito, e garantam seu bem-estar durante a sua estadia. No ano de 2012, através de pesquisa documental e oral, o trabalho que vem sendo realizado se concentrou em ações de registro e salvaguarda da presença Jê na cidade e na elaboração de material didático sobre esta temática, a ser distribuído nas escolas do município. Também há o apoio aos estudantes indígenas da Universidade Federal do Rio Grande, que participam ativamente do projeto, contribuindo e divulgando suas demandas, como por exemplo a construção de uma Casa de Estudante Indígena. 3) Memória e Resistência LGBT A partir de reuniões abertas ao público para criação da disciplina História da Homofobia na graduação em História em 2010, gerou-se uma série de ações em combate à homofobia no campus da FURG e nas escolas da região. A ação do dia 28 de junho de 2011, realizada pelo COMUF, teve o objetivo de integração e de promoção da diversidade que procurou, além de contar um pouco da história do movimento LGBT, fazer uma reflexão sobre o evento “Stonewall” e construir coletivamente a primeira bandeira da diversidade da FURG. A bandeira foi estendida no Centro de Convivência, de onde dois dias depois desapareceu. Outras ações do projeto foram ações contra homofobia dentro e fora da Universidade; apoio ao Coletivo LGBT “Camaleão”; realização de palestras e oficinas em escolas sobre diversidade afetiva. Em 2012, as ações se concentram na pesquisa documental e oral em relação à comunidade LGBT, resultando no mapeamento de casos de homofobia no município; ações pró-respeito à homoafetividade e a produção de material didático. 4) Saberes e Fazeres Este grande projeto está subdivido em três frentes de ação: a) Terreiras (projeto em construção) Com o intuito de proteção e fomento das práticas culturais de matriz afro-brasileira, de modo a salvaguardar o patrimônio negro da região, surge o interesse em trabalhar com as comunidades tradicionais de terreiros dos distritos de Rio Grande, as terreiras. Lembramos que estes espaços de religiosidade sofrem grande preconceito, devido suas origens. No entanto, devem ser reconhecidos como espaços de memória e resistência negra, vindo a ser um patrimônio cultural. Neste ano, desenvolvemos ações junto à última terreira aberta de Povo Novo (3º distrito de Rio Grande), o C. E. U. Seguidores 212

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do Pai Sete Flechas das Matas. Com o objetivo de atender suas demandas, capacitamos os seus membros para a elaboração de um estatuto, necessidade da casa, para a geração do CNPJ (que resultaria na isenção de imposto e possibilidade de participação em editais pró-cultura, memória e patrimônio). O registro da história das terreiras dos distritos riograndinos também é objetivo deste projeto, que ainda está em construção. Para tanto, foi produzido um documentário (vídeo) de uma das atividades da terreira de Povo Novo, a Procissão de Ogum Guerreiro e conversas com os caciques (líderes espirituais) da casa, os senhores Jorge Pintanel e Adriano Borges. Com a mesma intenção, contatamos a única terreira da Ilha da Torotama, localizada em Rio Grande, com o nome de Centro Espírita Reino de Yemanjá. b) O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal Este projeto tem por objetivo a salvaguarda do modo de fazer Jurupiga, uma bebida artesanal à base de uva produzida na Ilha dos Marinheiros, 2º distrito de Rio Grande. Sabemos que a Jurupiga é uma herança portuguesa de nosso município. Esta bebida, assim como o vinho e o suco de uva, foi produzida em abundância desde a metade do século XIX à metade do século XX. Devido às enchentes ocorridas na década de 1940, que devastaram o cultivo de uva na Ilha, foi instaurada uma praga especialmente prejudicial às videiras. Também, a chegada dos imigrantes alemães e italianos na Serra gaúcha e sua crescente produção de vinho e formação de associações, causou um declínio da produção de vinho e jurupiga na Ilha. No início do século XXI, então, nos deparamos com apenas uma família que ainda produzia a bebida em maior escala e para comercialização, assim como voltou a cultivar a uva, barateando o custo da produção pois não precisa importar a fruta de outras cidades. Entrando em contato com esta família, composta por Hermes da Silva Dias e Rosângela Maria da Costa Dias e seus dois filhos Gabriel e Samuel, descobrimos que estes estavam passando por uma situação jurídica que colocava em risco a continuidade de seu sustento. Foram intimados pelo Ministério da Agricultura a se enquadrarem nas normas de produção de bebida alcoólica industrial, o que significa taxas altíssimas que não são compatíveis com uma produção artesanal e familiar. Sabendo disto, através de pesquisa oral e documental pudemos perceber que a bebida é uma referência cultural da localidade, que vem passando de geração em geração e se encaixa na definição de Patrimônio Imaterial. Assim, com a legislação patrimonial e a Constituição Federal em mãos, que garantem que é papel da população como também do Estado velar pela continuidade destes bens culturais imateriais, buscamos junto a Prefeitura a possibilidade de um registro como patrimônio cultural imaterial para a bebida, que a salvaguardasse enquanto um modo de fazer artesanal, impedindo que haja cobranças de taxações que não condizem com sua natureza. Assim, estas ações e reuniões com o poder público resultaram, em dezembro de 2010, na lei municipal de número 6.972/2010 (ver Anexo) que salvaguarda, enquanto Patrimônio Cultural Imaterial, o modo artesanal de fazer Jurupiga, se tornando um importante passo para a defesa desta produção em risco. Em relação às ações de 2012, o projeto realizou uma Roda de Memória com a colaboração dos produtores de Jurupiga Hermes e Rosângela Dias. Estiveram presentes 14 produtores e seus familiares e 10 estudantes do curso de História, que juntos conheceram um pouco mais do primeiro patrimônio imaterial da cidade. A Roda possibilitou a troca de saberes entre os produtores de Jurupiga da Ilha, 213

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que contaram suas memórias em relação à produção desde a sua infância, e fortaleceu o registro do modo de fazer, pois reunindo as informações obtidas na Roda foi possível detalhar as especificidades e as mudanças que houveram com o tempo no preparo da bebida. Também a partir disto, será gerado material didático sobre a história da Ilha dos Marinheiros e da produção de Jurupiga à ser distribuído nas escolas municipais. c) Vivências com a terra Este projeto visa propiciar a integração de saberes comunitários relacionados com à terra e aqueles produzidos pelas reflexões históricas, geográficas e sociais da Academia. Nesse sentido, procura propor uma alternativa didática para as comunidades rurais, de forma que se some a questões relativas à identidade e memória social da região. O grupo que se dedica a esta atividade ainda tem alcançado resultados significativos na mobilização da equipe e conexão com as escolas da região, bem como na geração de hortas comunitárias. Em 2012 as ações se concentraram na produção de horta na E.M.E.F. Professor Jayme Gomes Monteiro, articulando o processo do plantio e colheita com o conteúdo de História, buscando ampliar os muros da sala de aula a partir de outras vivências. O produto final deste Programa serão os Dossiês “Nosso Patrimônio”, que visam reunir todas as pesquisas e resultados obtidos nos projetos, contando histórias e registrando memórias excluídas da “História Oficial” da cidade, e que serão distribuídos nas escolas municipais.

Considerações Finais: Concluindo, as atividades do Programa de Extensão Comunidades - FURG (COMUF), que acabamos de expor, são realizadas por meio da interação da academia, os movimentos sociais, o poder público e as comunidades. Desta forma, buscamos o atendimento das demandas comunitárias de nossa região, as quais surgem meio a este intercâmbio, sendo assim repletas de sentido real e dotadas de um caráter legítimo. É importante ressaltar que nosso entendimento sobre as ações realizadas pelo grupo não são de “ajuda” ou auxílio às comunidades, mas sim capacitação e formação conjunta. Como conseqüência, temos uma troca mútua de saberes e fazeres, onde apreendemos muita mais com as comunidades do que elas conosco. Da mesma forma, as ações desenvolvidas vão de encontro às diretrizes dos Direitos Humanos e à proteção do Patrimônio Cultural destas comunidades em situação de vulnerabilidade, que até então vem sofrendo com o preconceito e a exclusão social. Isso resulta na visibilidade e fortalecimento das identidades destes grupos. Essas ações referem-se à salvaguarda dos bens patrimoniais, temos como exemplo o caso da Jurupiga, da Ilha dos Marinheiros. Consequentemente, estas ações geram a capacitação e a auto-gestão patrimonial das comunidades, por meio da memória social e a museologia comunitária. O Programa COMUF, novamente, foi aprovado no edital do PROEXT e, sendo assim, seguirá a desenvolver suas ações em 2013. Outros novos projetos serão inclusos no programa: abarcando, por exemplo, a comunidade cigana e as comunidades de terreira. No entanto, muitos projetos encerraram 214

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suas atividades, com êxito: devido ao alcance dos objetivos planejados. Citamos como exemplo o projeto O modo de fazer Jurupiga: inventário, registro e salvaguarda de uma produção artesanal, o qual encerrou suas atividades com o registro de salvaguarda (lei municipal 6.972/2010) e a roda de memória com os produtores desta bebida, onde foram reunidas e trocadas informações sobre o modo de fazer, artesanal. Outro resultado, satisfatório, foi a geração das vagas específicas, da mesma forma para os indígenas (onde é aplicada uma prova diferenciada) para quilombolas. A demanda surgiu a partir de pesquisas do projeto Quilombolas Somos Nós, onde constatou-se que o caráter de vulnerabilidade da comunidade quilombola se destaca meio a comunidade negra em geral. A partir da geração de um relatório que especifica tais características e sua apresentação à Pró-reitoria de Graduação em agosto de 2012, a proposta das vagas quilombolas foram aprovadas: cinco vagas, para membros oriundos de comunidades remanescentes de quilombo da península deste estado. Assim sendo, percebemos que as atividades realizadas no Programa tiveram efetivas ações em prol do reforço às identidades de grupos, até então excluídos, valorizando a história, a cultura, a memória e o patrimônio comunitário desta região, fortalecendo o pertencimento e a cidadania.

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*Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG, graduanda de História Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG ** Graduando de História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande - FURG *** Coordenador do Programa de Extensão COMUF (PROEXT-2012/MEC/SESu)

ANEXO

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PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG

Vanessa Regina Freitas da Silva * Carolina Goes Eloi **

Introdução Divinópolis é um município localizado no centro-oeste de Minas Gerais, distante 120 km da capital, Belo Horizonte. Contando com 213 mil habitantes aproximadamente, completou 100 anos de emancipação no dia 1º de junho de 2012. O importante marco temporal inspirou a elaboração de diretrizes para as intervenções de restauro do prédio da Estação Ferroviária do município. A memória do lugar, representada pelo prédio da estação valoriza a importância que o período do “ápice ferroviário” teve para o desenvolvimento divinopolitano, principalmente nas décadas de 50 e 60. Nesse período a estrada de ferro contribuiu para projetar Divinópolis no cenário nacional, como centro emanador de decisões políticas e como pólo regional aglutinador de comércio e indústrias. Por esse motivo enfatiza-se o valor da ação de restauração para o bem edificado. O projeto tem como objetivos valorizar e preservar os bens históricos culturais ferroviários; readequar a ocupação atual da edificação de modo a oferecer espaços diversificados para apropriação e fruição dos usuários; indicar as intenções do governo federal e do governo estadual mineiro para a revitalização da linha férrea para o transporte de passageiros entre Divinópolis e Belo Horizonte.

Restauração como ação de preservação do patrimônio arquitetônico Edificações que fazem parte do acervo cultural de um município, consideradas exemplares do patrimônio arquitetônico do lugar, devem sofrer intervenções visando a preservação de suas características. Segundo (COSTA, 2008), “preservação” é o processo de tomada de consciência do valor de um bem cultural. Implica observação, sensibilização, critérios de escolha, análise e decisão. E para preservar existem caminhos a seguir, resumidamente através da conservação e da restauração. A “conservação” é o conjunto de procedimentos técnicos adotados para garantir a integridade física do objeto o mais próximo possível do estado original, uma ação permanente; enquanto “restauração” é o conjunto de procedimentos técnicos científicos usados para recuperar objetos danificados, uma ação excepcional. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/PHAN, o estado de conservação não pode ser confundido com o estado de preservação, pois o primeiro refere-se ao seu grau de integridade físico-material, enquanto o segundo está relacionado à manutenção das características originais; independente do período em que foi construído (IPHAN, 2001). Assim, ações de conservação podem ser igualadas às ações de manutenção, pois é como a edificação se apresenta quanto às con-

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dições de habitabilidade, limpeza, segurança estrutural, etc. Enquanto as ações de preservação visam a manutenção de aspectos da composição arquitetônica de uma construção, os quais a caracterizem como pertencente à uma época ou estilo. E a restauração surge como uma possibilidade de reverter problemas de conservação e de preservação. A “Carta de Burra”, carta patrimonial elaborada na Austrália, de 1980, surgiu como norteadora dos conceitos e parâmetros a serem utilizados nas intervenções arquitetônicas ainda hoje utilizadas. Nesse documento, “conservação”, “manutenção” e “preservação” são termos definidos que corroboram as demais definições apresentadas anteriormente: - o termo conservação designará os cuidados a serem dispensados a um bem para preservar-lhe as características que apresentem uma significação cultural. De acordo com as circunstâncias, a conservação implicará ou não a preservação ou a restauração, além da manutenção; ela poderá, igualmente, compreender obras mínimas de reconstrução ou adaptação que atendam às necessidades e exigências práticas. - o termo manutenção designará a proteção contínua da substância, do conteúdo e do entorno de um bem e não deve ser confundido com o termo reparação. A reparação implica a restauração e a reconstrução, e assim será considerada. - a preservação será a manutenção no estado da substância de um bem e a desaceleração do processo pelo qual ele se degrada. - a restauração será o restabelecimento da substância de um bem em um estado anterior conhecido. (CURY, 2004, p. 247-248)

Anos antes, em 1964, a “Carta de Veneza” afirma que “conservação e restauração dos monumentos constituem uma disciplina que reclama a colaboração de todas as ciências e técnicas que possa contribuir para o estudo e a salvaguarda do patrimônio monumental” (CURY, 2004, p.92). E ambas as ações “visam a salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico” (CURY, 2004, p.92). Aponta ainda, em seus artigos 4º ao 8º, que a conservação exige manutenção permanente e é favorecida pela utilização do bem para fins sociais úteis. Esta utilização não deve alterar a disposição ou a decoração dos edifícios e apenas dentro destes limites que as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes poderão ser admitidas. A conservação de um monumento implica manter o seu entorno proporcionado e conservado não devendo ser permitidas quaisquer novas construções, demolições ou modificações que possam alterar as relações volumétricas e cromáticas. Tem-se ainda a “Carta do Restauro” de 1972, elaborada na Itália, e que promove definições importantes como “salvaguarda” e “restauração”: Artigo 4º - Entende-se por salvaguarda qualquer medida de conservação que não implique a intervenção direta sobre a obra; entende-se por restauração qualquer intervenção destinada a manter em funcionamento, a facilitar a leitura e a transmitir integralmente ao futuro as obras e os objetos definidos nos artigos precedentes. (CURY, 2004, p.148)

O documento proíbe remoções ou demolições que apaguem a trajetória da obra através do tempo, a menos que sejam elementos inseridos que alteraram valores históricos da obra ou que a falsificaram. E ainda valoriza as medidas de caráter preventivo que evitam outras posteriores mais profundas. O projeto de restauração realizado considerou os aspectos e discussões sobre esse tipo de intervenção, conforme visto a seguir.

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Vanessa Regina Freitas da Silva, Carolina Goes Eloi

A estação ferroviária: referência na paisagem e relação com memória do lugar O prédio da Estação Ferroviária de Divinópolis compõe o acervo arquitetônico e histórico da cidade, sendo considerado patrimônio municipal pelas suas qualidades formais e a sua grande importância para a história da economia e cultura regional. No ano de 1916 o prédio foi construído, ocupando uma área de aproximadamente 320 m². Representou um símbolo máximo da modernidade naquele momento, revolucionou as noções de tempo e de espaço, fazendo com que ocorresse a aproximação mais rápida entre as pessoas e fazendo uma ligação mais rápida entre os diferentes lugares. Qualquer estação ferroviária da época tinha o crucial significado de porta da cidade, era um cartão postal que deveria impressionar o visitante e orgulhar o cidadão. Os bens edificados simbolizam como a sociedade viveu como referenciais de um lugar. Segundo a “Recomendação de Paris” de 1968 os bens culturais são “o produto e o testemunho das diferentes tradições e realizações intelectuais do passado e constituem, portanto, um elemento essencial da personalidade dos povos” (CURY, 2004, p.123). E afirma ainda que “é indispensável preservá-los, na medida do possível e, de acordo com sua importância histórica e artística, valorizá-los de modo que os povos se compenetrem de sua significação e de sua mensagem e, assim, fortaleçam a consciência de sua própria dignidade” (CURY, 2004, p.123). As lembranças se relacionam aos lugares e aos objetos que os compõem, confirmando que a memória coletiva representa a estreita relação de um grupo (ou grupos) com o espaço. As imagens espaciais desempenham um papel na memória coletiva e todo lugar recebe as marcas de todas as ações dos grupos existentes: A capacidade de lembrar é determinada, não pela aderência de um indivíduo a um determinado espaço, mas pela aderência do grupo do qual ele faz parte àquele mesmo espaço: um espaço em que se habitou, um espaço em que se trabalhou, um espaço em que se viveu. Um espaço, enfim, que foi compartilhado por uma coletividade durante um certo tempo, seja ele a residência familiar, a vizinhança, o bairro o local de trabalho. (ABREU, 1998, p. 84).

É esse destaque dado ao lugar que importa como referência para a memória coletiva, denominada aqui especificamente como memória do lugar ou, ainda, memória da cidade. A memória da cidade pode ser definida como “o estoque de lembranças que estão eternizadas na paisagem ou nos registros de um determinado lugar, lembranças essas que são agora objetos de reapropriação por parte da sociedade” (ABREU, 1998, p. 89). Assim fica claro que “as lembranças se apóiam nas pedras da cidade” (BOSI, 2004, p.71), quando os lugares ajudam a contar a história de vida dos habitantes: “a cidade, como a história de vida, é sempre a possibilidade desses trajetos que são nossos percursos, destino, trajetória da alma” (BOSI, 2004, p.75). São os aspectos culturais locais que diferenciam os lugares; e, invariavelmente, é através do patrimônio edificado que se indicam aspectos de singularidade. A busca dessa individualidade se apóia no passado perpetuado no patrimônio edificado e reafirmado pela memória coletiva: O passado é uma das dimensões mais importantes da singularidade. Materializado na paisagem, preservado em “instituições de memória” ou ainda vivo na cultura e no cotidiano dos lugares, não é de se estranhar, então, que seja ele que vem dando suporte mais sólido a essa procura da diferença. (ABREU, 1998, p.79)

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Nesse contexto, a memória do lugar ajuda a fortalecer a singularidade através das expressões arquitetônicas do passado que constituem o patrimônio edificado preservado.

Proposta de intervenção na estação ferroviária Com o fim do transporte ferroviário de passageiros, a Estação Ferroviária de Divinópolis foi entrando num processo de degradação. Houve um período sem ocupação, quando o prédio transformou-se involuntariamente em moradia de mendigos, menores e usuários de drogas que inclusive o utilizavam como banheiro. Ainda hoje é possível observar espaços residuais com mato alto que atrai animais peçonhentos devido ao mato alto nos trilhos. Atualmente o prédio (FIGURA 01) é ocupado pela Academia de Letras de Divinópolis, com exposição de livros e realização de reuniões e assembleias; o MUNDI (Movimento Unificado Negro de Divinópolis) que realiza manifestações da cultura negra; e pelo Ateliê do Artesanato, que além de incentivar o aprendizado possui uma loja cujos rendimentos são destinados para as próprias artesãs. Esses usos favorecem a manutenção do bem quando bem direcionados e cuidadosos com os espaços ocupados (FIGURA 02). A fachada frontal apresenta expressão plástica e compositiva que se destaca no conjunto urbano (FIGURA 03 A e B). Vale ressaltar que, apesar da recente pintura da parte exterior frontal, o prédio encontra-se em estado precário de conservação das alvenarias, pisos e esquadrias principalmente. A avaliação geral do bem foi possível com a realização de um laudo de estado de conservação; fundamental para colocar em prática as intenções projetuais1. De um modo geral, percebe-se que a edificação reflete a ausência de uma proposta de utilização permanente, que garanta a sua visibilidade no cenário das atividades histórico-culturais locais e a manutenção de forma continuada. Na proposta de intervenção foi mantida a Academia Divinopolitana de Letras com aumento de espaços relacionados a essa temática como espaços de leitura, ambiente para contação de histórias e sala de reuniões dos membros e para lançamento de livros. Também manteve-se os ambientes relacionados ao Artesanato (local de produção e venda), articulando-os de modo a valorizar a prática artesanal. Foram incorporados novos espaços como: o Memorial do Ferroviário para expor artefatos e peças que fizeram parte da história da estação e da ferrovia em Divinópolis; espaço para informações sobre eventos e atividades culturais que ocorrerem na cidade; lanchonete; um jardim lateral; adaptação dos banheiros para acessibilidade universal; além das estruturas relacionadas à estação ferroviária propriamente dita, como bilheteria e administração. Outra intervenção importante foi a retirada de um volume lateral de banheiros incorporado à construção de maneira precária e 1

O laudo elaborado segue a metodologia utilizada para trabalhos relacionados à Lei n.º 13.803/2000 do estado de Minas Gerais referente à distribuição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços/ICMS - critério do patrimônio cultural. Essa metodologia está de acordo com a deliberação normativa do Conselho Curador do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico/IEPHA-MG n.º 01/2005. O laudo elaborado apontou as questões mais problemáticas visíveis sobre todos os aspectos da construção: estrutura, alvenaria, cobertura, revestimentos, vão e vedações, pisos, forros, elementos externos integrados, instalações elétricas, hidráulicas e de segurança. Formou-se um quadro geral do estado de conservação do bem, visando à restauração do mesmo. Tanto o laudo elaborado quanto as intervenções de restauro propostas para eliminação de patologias estão apresentados detalhadamente no TCC como exemplificação das atribuições do profissional arquiteto urbanista. No artigo apresentado procurou-se resumir as questões de intervenção do projeto quanto à modificação dos espaços e usos.

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descaracterizante (FIGURAS 04 a 07). Essencialmente o projeto elaborado propõe a retomada da função original do bem – estação ferroviária – e a reformulação dos espaços internos, com novas funções, aproveitando melhor os ambientes e criando mecanismos para atender de forma mais efetiva os anseios e as necessidades da comunidade. Devolve à cidade uma edificação reabilitada como um símbolo mais integrado e atraente, especialmente como objeto de memória. E a revitalização da linha férrea contribui para o entendimento de que há a possibilidade de retomar um tipo de transporte sustentável e eficiente. Valoriza-se, portanto, a estrada de ferro e a edificação como referenciais sobre a memória do lugar. O trabalho elaborado demonstra reflexão sobre um bem cultural da cidade e a proposição de soluções reais, funcionais e possíveis para a reinserção do patrimônio no cotidiano do lugar.

REFERÊNCIAS

ABREU, Maurício de Almeida. Sobre a memória das cidades. Revista da faculdade de Letras – Geografia I. Porto, vol. XIV, p.77-97, 1998. BOSI. Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial. 2004. 219p. COSTA, Heloísa Helena Fernandes Gonçalves da. Atribuição de valor ao patrimônio material e imaterial: afinal, com qual patrimônio nos preocupamos? In: CARVALHO, C. S. de; GRANATO, M; BEZERRA, R. Z; BENCHETRIT, S. F. (orgs.). Um Olhar Contemporâneo sobre a Preservação do Patrimônio Cultural Material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008, p.119-129. CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. 407p. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Departamento de Identificação e Documentação. Inventário Nacional de Bens Imóveis – Sítios Urbanos Tombados: manual de preenchimento, versão 2001. Brasília. SILVA, Vanessa Regina Freitas da. Patrimônio, Memória e Mercadoria: uma reconstrução arquitetônica em Ouro Preto, Minas Gerais. Dissertação Mestrado Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel. 2011.

*Arquiteta Urbanista pela UFMG; Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel/RS Docente na Faculdade Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho/MG ** Arquiteta Urbanista pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho/MG

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PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG

Imagens FIGURA 01 – Fachada Frontal do prédio da Estação Ferroviária de Divinópolis.

Foto: acervo pessoal Carolina de Goes Eloi, junho/2012.

FIGURA 02 – planta atual (hachura indicando espaços ociosos). Fonte: levantamento e digitalização – Carolina de Goes Eloi, junho, 2012.

FIGURA 03 A e B – Inserção urbana.

Foto: acervo pessoal Carolina de Goes Eloi, junho/2012

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Vanessa Regina Freitas da Silva, Carolina Goes Eloi

FIGURA 04 – planta proposta

Fonte: levantamento e digitalização – Carolina de Goes Eloi, junho, 2012

FIGURA 05 – Aspecto frontal do projeto.

Fonte: Visada em 3D Trabalho de Conclusão de Curso de Carolina de Goes Eloi, junho/2012

FIGURA 06 – Implantação do bem.

Fonte: Visada em 3D Trabalho de Conclusão de Curso de Carolina de Goes Eloi, junho/2012

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PROJETO DE RESTAURAÇÃO DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE DIVINÓPOLIS/MG

FIGURA 07 A e B – Detalhes intervenção externa (jardim).

Fonte: Visadas em 3D Trabalho de Conclusão de Curso de Carolina de Goes Eloi, junho/2012

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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO

Douglas Souza Angeli *

INTRODUÇÃO Gaúcho de São Borja, Getúlio Dorneles Vargas chegou à Presidência da República através da Revolução de 1930, permanecendo no cargo até ser deposto em 1945. Em 1950, eleito pelo voto direto, assumiria o posto para um mandato que seria abruptamente interrompido pelo seu suicídio em 24 de agosto de 1954. Entretanto, a letra fria de um resumo biográfico é incapaz de abarcar toda a complexidade desse processo político, tampouco de satisfazer a necessidade de compreensão desse mito da história política brasileira. Segundo o jornalista Flávio Tavares, Getúlio Vargas foi “o homem mais poderoso do Brasil, amado por muitos milhões e odiado por outros milhões – e por isso, mais poderoso ainda, pois foi capaz de se apoderar do amor e do rancor dos demais” (2004, p. 51). O presente artigo intenciona compreender uma das muitas formas pelas quais Vargas e seus aliados se apoderaram desse “amor”: o uso de imagens que, ao longo do tempo, foram capazes de produzir uma memória social em torno da figura do ex-ditador. Para tal, selecionamos as fotografias publicadas na Revista do Globo em 25 de novembro de 1950, logo após as eleições de 1950 – razão pela qual o título da reportagem de capa dessa edição é “O descanso do vencedor”1. Para interpretar tais imagens, optamos por trazer um breve resumo do contexto político em que a revista publicou-as, apresentando, na sequência, a descrição das fotos e da própria reportagem, destacando em seguida o aporte teórico que consideramos fundamental para preceder a leitura das mesmas.

GETÚLIO VARGAS: IMAGEM CONSTRUÍDA As eleições de 1950 marcaram o retorno de Getúlio Vargas à presidência da República, após cinco anos de afastamento. O período anterior, entre 1930 e 1945, foi composto de fases distintas: a primeira, da Revolução de 30 à Constituição de 1934, foi o governo provisório; a segunda foi o governo constitucional, que durou até o Golpe de 1937; a terceira é a fase ditatorial, o chamado Estado Novo, encerrado com a deposição de Vargas em 19452. Angela de Castro Gomes e Maria Celina D’Araújo afirmam, em Getulismo e Trabalhismo, que Vargas demonstrava-se um hábil político desde o início de sua carreira. No entanto, salientam que sua “imagem popular” seria firmada gradativamente, se consolidando somente durante o Estado Novo (1989, p. 06). Durante a ditadura varguista, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) soube 1

O DESCANSO do vencedor: uma reportagem em cores com Getúlio. Revista do Globo. N.º 522. 25 nov. 1950. P. 45-48. A ERA Vargas: dos anos 20 a 1945. CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/ dossies/AEraVargas1/apresentacao. Acesso: 12/08/2012; 17h28min. 2

“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO

utilizar, com fins de propaganda política, os novos meios de comunicação, como o rádio e cinema, sendo também responsável pela “organização de rituais totalitários de culto à personalidade do ditador” (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 258). Embora o Estado Novo, em alguns aspectos, seja similar aos regimes totalitários europeus, Maria Helena Rolim Capelato ressalta que a propaganda estadonovista (de modelo nazifascista), apresentou características particulares e produziu efeitos distintos das congêneres europeias: A propaganda política desencadeia uma luta de forças simbólicas, que visa ao reforço da dominação, ao consentimento em relação ao poder e à interiorização das normas e valores impostos através das mensagens propagandistas. No entanto, como esclarecem De Certeau e Chartier, a incorporação da dominação pelo receptor não exclui a possibilidade de desvios. A eficácia das mensagens depende dos códigos de afetividade, costumes e elementos histórico-culturais dos receptores. Por isso, o efeito não é unívoco (2003, p. 202-203).

No clássico A invenção do trabalhismo, Angela de Castro Gomes ressalta que a figura de Getúlio Vargas enquanto mito foi construída em um tempo não muito longo e que coincide com o período do Estado Novo. Citando as falas que o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes Filho, difundia via Hora do Brasil nas quintas-feiras durante dez minutos, a autora destaca: “Vargas era citado de forma contundente. A simples menção de seu nome como o chefe do Estado Novo, ao longo de semanas e semanas, seria suficiente para criar uma memória” (GOMES, 2005, p. 219). Além dessa memória (ou memórias), o Estado Novo pode ser considerado também o fundador de uma nova cultura política. Conforme ressaltaram Mary Del Priore e Renato Venâncio, o fim do Estado Novo sugeria que as antigas oligarquias teriam chances de retornar ao comando político do Estado brasileiro: Mas isso só na aparência, pois o Brasil dos anos 1940 era profundamente diferente daquele que havia existido durante a Primeira República. [...] Em consequência das reformas educacionais e da incorporação do voto feminino, os índices de participação eleitoral, em declínio desde fins do Império – quando os analfabetos foram excluídos de votar, aumentam sensivelmente. Por volta de 1945, além de mais numerosos do que nunca, os eleitores brasileiros apresentam um perfil cada vez mais urbano (2010, p. 262).

Essa mudança no eleitorado implicou, consequentemente, na alteração profunda do perfil dos candidatos. Com votantes cada vez menos sujeitos aos coronéis, pertencer à elite agrária já não era pré-requisito fundamental para os candidatos, que passavam a depender “do próprio carisma, da representatividade junto aos trabalhadores ou de uma máquina clientelista capaz de conceder favores e empregos” (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 262-263). Por esta e outras razões, a candidatura de Getúlio Vargas em 1950 tem como principal característica o caráter personalista, ao afirmar sua condição de independência frente aos interesses políticos organizados. Apresentando-se nesse formato, Vargas colocou-se como “defensor daqueles que, por suas condições precárias de vida, não haviam conseguido ainda se fazer representar nem merecer a atenção quer das agremiações políticas, quer do poder estabelecido” (GOMES; D’ARAÚJO, 1989, p. 54). Nota-se aí, uma das formas pelas quais o indivíduo é “atingido no coração pelo poder público”:

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“quando é atingido na sua imagem de si, na relação que tem consigo mesmo enquanto obedece ao Estado ou à sociedade” (VEYNE, 1987, p. 10). Todos esses fatores, somados à comoção popular após o suicídio presidencial de 1954, fizeram de Vargas um mito da política brasileira. Ao tratar dos partidos políticos, Serge Berstein ressaltou que sua doutrina não está sempre explícita e sim presente por meio de referências implícitas, expressandose em lembranças históricas comuns, heróis consagrados, documentos fundamentais, símbolos, bandeiras, comemorações, vocabulário decodificado, gestos e ritos (1996, p. 87-90). A imagem de Vargas enquanto herói consagrado foi sendo transmitida ao longo do tempo especialmente pelos trabalhistas, como no caso do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em Canoas/RS: O diretório do bairro Niterói chamava-se “Getúlio Vargas”. Não por acaso, um dos pontos da proposta de orientação da campanha eleitoral de 1963 incluía uma reunião com candidatos e presidentes dos diretórios para lançar a campanha em 24 de agosto. Tais gestuais ritualísticos fazem sentido aos correligionários. Dessa forma, não é difícil imaginar que, em meio a uma reunião do diretório municipal do PTB, uma citação à memória de Getúlio Vargas deflagrasse um frenesi nos trabalhistas (ANGELI; COLLING, 2011, p. 06-07).

Essa imagem construída de Getúlio Vargas nos faz recordar a citação de José Murilo de Carvalho com relação à criação de outro mito: Tiradentes, no livro A formação das almas. Carvalho destaca os heróis enquanto símbolos poderosos e fulcros de identificação coletiva: “são, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos” (1990, p. 55).

UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO Sereno Chaise descreveu, em seu diário político, momentos do casamento de Leonel Brizola e Neusa Goulart, ocorrido em 1º de março de 1950. A cerimônia foi realizada na Fazenda Iguaraçá, em São Borja/RS. O relato de Chaise destaca um pedido de Jango Goulart antes de dormir (por volta de quatro horas da manhã): “Eu vou deitar e daqui uma hora e meia tu me chamas”. E continua: Às cinco e meia chamei o Jango. Ele se levantou, lavou o rosto e disse: “Vamos?”. Respondi: “Vamos!”. Eu só não estava sabendo aonde. Foi quando embarcamos no Lodstar. [...] Decolamos com as luzes do avião acesas porque era noite ainda. Estavam saindo os primeiros raios de sol. Aí eu disse: “Jango, aonde estamos indo?”. Ele respondeu: “Buscar o Doutor Getúlio” (KLÖCKNER, 2007, p. 28).

E na sequência, Getúlio Vargas e seu cenário despontam na narrativa: “Coxilhas verdes, tudo de grama. [...] Chegamos ao local, a porta da casa se abre, aparece o doutor Getúlio, de pijama listrado. [...] Convidou-nos a entrar e tomar café. A mesa tinha charque, feijão mexido, mandioca” (KLÖCKNER, 2007, p. 28). A cena descrita por Sereno Chaise serve como rastro do que seria estar na presença de Getúlio Vargas enquanto este descansava (e articulava os próximos passos) em sua fazenda, aguardando o momento de retornar à capital federal como Presidente da República. O cenário é quase o mesmo que nos proporciona a Revista do Globo editava alguns dias após a vitória de Vargas nas urnas. A matéria tem chamada e foto que monopolizaram a capa daquela edição: “O descanso do vencedor: uma repor227

“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO

tagem em cores com Getúlio”. A foto da capa [figura 1] dá o tom de toda a reportagem: O presidente eleito, sorridente, usando óculos de grau e um lenço azul em volta do pescoço que entrava blusão adentro. Sem terno, sem gravata, sem cartola: o ex-ditador usava uma bombacha clara. A imagem produzida pela revista conduz o pensamento à ideia de informalidade: Vargas está abraçado a uma menina que timidamente sorri, com seu pequeno blusão que se sobrepõe ao vestido. Trata-se de Adelaide, de sete anos, neta do deputado Batista Luzardo (dono da fazenda São Pedro, em Uruguaiana/RS, onde Vargas era um ilustre hóspede)3.

Figura 2 - Getúlio Vargas toma chimarrão com aliados políticos (p. 45). 3

A MENINA da capa. Revista do Globo. N.º 522. 25 nov. 1950. P. 01.

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Apesar de o título mencionar o termo descanso e as fotos mostrarem Getúlio Vargas em momentos de lazer, a reportagem faz questão de alertar: “descanso em termos, porque num só domingo o próximo Presidente da República recebeu exatamente 400 pessoas, das quais 160 vindas do Rio e 96 de São Paulo” (p. 45). A imagem principal dessa página [figura 2] é Getúlio tomando chimarrão juntamente com outros três homens igualmente vestidos de bombacha e lenço gaúcho. A legenda é: “O chimarrão, a palestra e o ar puro repousam o candidato Getúlio e temperam o presidente Vargas” (p. 45). Na mesma página há uma descrição de Getúlio: “de bombachas em marrom discreto, botas de cano curto, e blusa cinzenta, com a pele queimada de sol e fisionomia serena, era um simples hóspede” (p. 45). Há uma breve narrativa sobre a cavalgada do presidente [figura 3]: Às 7 da manhã monta a cavalo, um simples zaino de pelo arrepiado, e sai a parar rodeio, como um peão ou a correr como um bom cavaleiro. Volta cansado e satisfeito. [...] E em todos os seus passos é fielmente seguido por um cão malhado, vindo não se sabe de onde, que se roça carinhoso em suas botas e lhe sugere esta observação ouvida por nós: “Coitado! Também aderiu à última hora” (p. 45).

O mencionado cão adesista foi destacado em uma das fotos da página 46, onde novamente aparecem Getúlio e a menina Adelaide [figura 4]. A reportagem enfatiza que na fazenda de São Pedro, o presidente tinha à sua disposição “uma planície para galopar, um rio para navegar e um torre onde pensar no melhor destino para 50 milhões de brasileiros”. Outra imagem que se destaca é a de Vargas na varanda da casa, de bombacha clara, lenço no pescoço e charuto na mão. À sua frente, um homem negro4 de chapéu olha para o presidente com um sorriso largo [imagem 5].

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Muito provavelmente trata-se do famoso Gregório Fortunato. 229

“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO

Figura 5 - Getúlio “fuma em paz o seu charuto” (p. 46).

Um corredor de árvores frondosas serve de cenário para a imagem que domina a página 47 [imagem 6]. Nela, o ditador do Estado Novo, então presidente eleito pelo voto direto, aparece com um grupo de crianças, todos de braços dados: são meninas e meninos de cores e tamanhos diferentes. A terceira menina (que parece ser Adelaide) mantém uma perna à frente da outra e o corpo levemente arqueado para o lado, indicando que caminhava jogando o corpo de um lado ao outro. Vargas, no centro, demonstra uma expressão alegre, de mãos dadas a terceira e quarta crianças (da esquerda para a direita). O quinto menino, de macacão azul parece pular, dando um sinal da alegria proporcionada 230

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pela brincadeira de posar para fotos. É, aliás, nessa página que consta o registro do autor das fotografias: Antônio Ronek.

Figura 6 - Getúlio Vargas: “um amável companheiro para as belas tardes campestres” (p. 47).

A legenda da foto acima descrita diz muito sobre a intencionalidade da foto: “A garotada da fazenda, pretos e brancos, encontra no próximo presidente da República mais um amável companheiro para as belas tardes campestres, e esta é realmente a hora em que o vencedor descansa” (p. 47). A última foto preenche completamente a página 48: É Getúlio Vargas, com o mesmo traje típico de antes, excetuando-se a adição de um chapéu, montado em um cavalo negro [imagem 7]. Não há legenda e nem faz falta, posto que sintetiza as páginas anteriores: O “vencedor” que descansa é um “simples hóspede” montado num “simples zaino”. Porém, sua “fisionomia serena”, indica a certeza de ser “um bom cavaleiro” quando está com as rédeas na mão.

Figura 7 - Presidente Vargas a cavalo (p. 48).

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“O DESCANSO DO VENCEDOR”: MEMÓRIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA EM UMA REPORTAGEM EM CORES COM GETÚLIO

Sobre a Revista do Globo há um aspecto importante a ser mencionado. Vargas já havia sido capa do periódico gaúcho em novembro de 1938, meses após a implantação do Estado Novo. Quem nos traz essa informação é Cláudio de Sá Machado Junior, no livro Imagens da sociedade Porto-Alegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). Segundo ele, “a proximidade de Getúlio Vargas com a Revista do Globo data desde sua fundação” e “sua imagem foi algo constante nas páginas do periódico” (2009, p. 76). A edição de novembro de 1950 fornece mais um indício dessa proximidade. E mais uma vez, Vargas estava com as rédeas na mão.

APORTE TEÓRICO PARA A LEITURA DAS IMAGENS Diante das fotografias da reportagem “O descanso do vencedor”, e considerando a potencialidade das mesmas para a pesquisa histórica, selecionamos alguns subitens que julgamos importantes para a interpretação dessas imagens em consonância com os pressupostos teóricos da História Cultural. a) Fontes históricas: A história não é uma área do conhecimento onde tudo pode ser dito ao sabor da livre interpretação, pois a atividade do historiador tem métodos que a legitimam. Para José Carlos Reis, a história é o conhecimento “cientificamente conduzido” do passado humano – problematizante, hipotético, comunicável, técnico, documentado, e que pretende obter a verdade de seu objeto através da investigação, da interrogação e do controle das fontes (REIS, 2003, p. 101). Na abordagem de Sandra Jatahy Pesavento, os historiadores de hoje têm consciência de que, embora sua meta seja chegar à verdade, o máximo que poderão atingir será sempre a construção de “versões possíveis, plausíveis, aproximativas daquilo que teria ocorrido” (2008, p. 18). Ao mesmo tempo, é o método que garante meios de controle e verificação do conhecimento, permitindo fazer da história uma ficção controlada (PESAVENTO, 2004, p. 68-69). Ao destacar o trabalho dos historiadores nos arquivos após a queda do Muro de Berlim, Étienne François convidava à percepção de que “os arquivos não falam a verdade por si só”, mas devem ser submetidos a uma crítica exigente das fontes (1998, p. 157). Segundo esse historiador francês, existem quatro exigências para o trabalho em arquivos: a crítica das fontes (quem constitui? Em que condições? Para quê? O que expressam? O que dizem, o que não dizem?); a interrogação das fontes; a consciência de que as fontes não dizem tudo, e portanto é necessário o cruzamento com outros tipos de fontes; e um trabalho ético (1998, p. 157-159). Defendendo a crítica das fontes, Jacques Le Goff ressalta que “nenhum documento é inocente. [...] Todo documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado” (2003, p. 110). Nessa ótica, o documento “não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder” (LE GOFF, 2003, p. 535-536). Ainda, segundo Jean Boutier e Dominique Julia, na Nova História todo documento é útil para o historiador (1998, p. 36). Assim, a questão das fontes históricas é central no debate historiográfico e, independentemente do tipo de documento utilizado, a mudança mais significativa está nas perguntas que o historiador faz, pois como nos alerta Étienne François, as fontes só falam quando as interrogamos (1998, p. 158). 232

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b) Fotografia e História: Para Boris Kossoy, no livro Fotografia e História, a fotografia enquanto documento deve ser articulada com outras fontes históricas, possibilitando a busca de pistas sobre a atuação do fotógrafo e de suas intenções. Para além da “verdade iconográfica”, o autor nos convida a considerar que o significado mais profundo da imagem não está necessariamente explícito. Kossoy nos diz que “o vestígio da vida cristalizado na imagem fotográfica passa a ter sentido no momento em que se tenha conhecimento e se compreendam os elos da cadeia de fatos ausentes da imagem” (1989, p. 80). Embora a fotografia tenha trazido a possibilidade da fixação de uma imagem, registrando um personagem ou evento, é preciso estar atento ao fato de que a fotografia não é neutra, pois “traduz sempre um significado, do ponto de vista do fotógrafo ou do ponto de vista da mídia que veicula a imagem” (FERREIRA; FRANCO, 2009, p. 121). c) História Cultural e imagens: Em História e História Cultural, Sandra Pesavento destaca o fato de as imagens terem valor documental, mas não mimético, posto que são representações do mundo elaboradas para serem vistas: “toda a imagem se dá a ver, todo o texto se dá a ler” (2004, p. 84-85). As imagens são simbólicas e, portanto, portadoras de significados para além daquilo que é mostrado (PESAVENTO, 2008, p. 99). Dessa forma, “a imagem é sempre uma construção, uma interpretação, uma recriação do real” (idem, p. 103). Conforme enfatizado por Pesavento, as imagens suportam em si tensões, e a primeira delas é o fato de se situarem entre mímeses e o fictio; a segunda tensão diz respeito ao que é exibido enquanto forma, composição, figura e cor, e os silêncios e lacunas que ela possui; há também a tensão entre o todo que proporciona a visão do conjunto e o detalhe que carrega as sutilezas; e ainda a tensão entre o subjetivo e o social: a imagem não somente é produzida, mas há também sua recepção, leitura e consumo (2008, p. 106-107). Sandra Pesavento salienta que a imagem é uma narrativa que conta e explica algo e, assim, toda a imagem “suportaria uma mensagem discursiva” (2008, p. 108). Segundo ela, o que os historiadores querem com relação às imagens é o seu valor de texto, permitindo a leitura e, dessa forma, o acesso aos traços visíveis do passado (idem, p. 113). Citando Paul Ricoeur, Pesavento traça aproximações entre a hermenêutica da leitura e a leitura das imagens, em três etapas: 1) Fase da pré-figuração, na qual as perguntas formuladas buscam dar conta de uma contextualização, delimitando a historicidade do processo criativo; 2) Fase da configuração, na qual se buscaria o “tema (o quê) e o ‘como’ do objeto, assim como o seu ‘porquê’”. É o momento da delimitação e análise dos “elementos da trama, da ação, dos personagens, dos materiais empregados”; 3) Fase da refiguração, momento em que o leitor remete-se a outros textos e imagens, quando ocorre a atribuição de significados ao texto ou imagem (2008, p. 114-115). d) Representações: Sandra Pesavento ressalta que indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade, e que as representações são matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora, coesiva e explicativa do real (2004, p. 39). Assim, representar é estar no lugar de, é presentificação de um ausente; substituição que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença (idem, p. 40). Para ela, “a força da representa233

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ção se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social” (ibidem, p. 41). A historiadora também destaca que os historiadores se apropriaram do conceito de representações, sendo elas a chave para a análise desse fenômeno presente em todas as culturas ao longo do tempo: “os homens elaboram ideias sobre o real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre essa realidade” (2008, p. 13). As representações derivam de outro conceito, o de imaginário, que alude ao “sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (2004, p. 43). e) Memória Social: Maurice Halbwachs constatou, na primeira metade do século XX, a dimensão social da memória, até então associada ao campo psicológico. Há nessa constatação uma inspiração na Sociologia de Emille Durkheim, que considerava a participação no grupo social como determinante no processo de reconstrução das lembranças (Félix, 2004, p. 40-41). Halbwachs também enfatizou as diferenças entre a memória e a história: “a memória liga-se à lembrança das vivências e esta só existe quando laços afetivos criam o pertencimento ao grupo, e ainda os mantém no presente” (idem, p. 42). Loiva Otero Félix destaca a importância das lembranças: “constituídas nas relações sociais, são mantidas nos diversos grupos de referência e também nos espaços sociais da família, do trabalho, do lazer, da religiosidade” (ibidem, p. 42-43). Michel Pollak destacou a memória enquanto constituidora do “sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo” (1992, p. 204). Para ele, são elementos constitutivos da memória: os acontecimentos vividos pessoalmente ou pelo grupo; os lugares; e os personagens. Quanto aos últimos, salienta que podem tratar-se de “personagens realmente encontradas no decorrer da vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se transformaram quase que em conhecidas” (idem, p. 201). f) Cultura Política: Sobre a expressão cultura política, Ricardo de Aguiar Pacheco, citando Giaccomo Sani, menciona o seu uso para designar o “conjunto de atitudes, normas, crenças, mais ou menos largamente partilhados pelos membros de uma certa unidade social e tendo como objetivo o fenômeno político” (2008, p. 174). Para Pacheco, a noção de cultura política tem sido uma ferramenta teórica importante para os historiadores que buscam identificar o modo como os diferentes grupos sociais percebem o processo político no qual estão inseridos (idem, p. 174). A historiadora Angela de Castro Gomes também destacou a utilização do conceito pelos historiadores. Segundo ela, a cultura política permite interpretações sobre o comportamento político dos atores (individuais e coletivos), “privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências, suas sensibilidades” (2005, p. 30). E Pacheco ressalta que a política é uma “rede de sentidos”, razão pela qual “entender o campo político passa por rastrear, nos indícios deixados pelo passado, os significados atribuídos às representações e práticas sociais” (2008, p. 172).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: “UM AMÁVEL COMPANHEIRO PARA AS BELAS TARDES CAMPESTRES” Nesse artigo, buscamos apresentar uma fonte histórica em potencial que pode nos ajudar na compreensão do getulismo enquanto fenômeno político. Trata-se da reportagem em cores com Getúlio Vargas, publicada pela Revista do Globo poucos dias após as eleições de 1950. Angela de Castro Gomes e Maria Celina D’Araújo destacam o getulismo como um “movimento de opinião pública favorável, e até mítico, à figura de Getúlio Vargas” (1989, p. 08). E como tal fenômeno baseava-se nos sentimentos populares perante a imagem do líder trabalhista, a veiculação de imagens (como as da edição da revista citada nesse artigo) é elemento fundamental na construção simbólica do getulismo e também do trabalhismo. Sendo que o historiador necessita de fontes para produzir versões plausíveis e possíveis do passado, o presente artigo não teve a pretensão de analisar tais imagens de forma irrefragável, mas sim apresentá-lo e propor instrumentos teóricos que possibilitem a sua interpretação. Primeiramente, o elemento que mais chama a atenção é a característica geral das fotografias da reportagem: não são poses formais como a de um político que trabalha em um escritório ou que discursa em uma tribuna, mas sim o registro (produzido) de momentos informais do presidente Vargas enquanto este “descansava” em uma fazenda de Uruguaiana/RS. Considerando a afirmação de Kossoy, o trabalho do historiador com relação às imagens deve considerar a importância dos “fatos ausentes da imagem” (1989, p. 80). Da mesma forma, Sandra Pesavento, remetendo à hermenêutica de Paul Ricoeur, nos chama à atenção para as etapas da leitura das imagens, já que “toda a imagem se dá a ver, todo o texto se dá a ler” (2004, p. 84-85). E os primeiros aspectos que devemos considerar para a interpretação dessas fotografias de Vargas é a construção da figura mítica em torno do presidente e o contexto de uma eleição em que o carisma passava a contar de forma significativa para a legitimação dos atores no exercício político. Há nessas imagens, que traduzem representações e tomam parte da construção simbólica de um imaginário político, diversos elementos que colaboram para o entendimento da cultura política e da produção de sentidos promovida pelo getulismo. Os efeitos de tais imagens na memória social só podem ser apreendidos com um posterior desdobramento desse artigo, pois seria necessária uma pesquisa em outras fontes que sejam capazes de indicá-los. Entretanto, a historiografia já nos indica que a construção de uma memória social sobre Getúlio Vargas passa pelas representações do líder enquanto ser que teria ultrapassado os limites da política institucional, tornando-se uma espécie de herói mítico capaz de provocar o amor e ódio citado por Flávio Tavarez (2004, p. 51). A imagem que parece ter ficado gravada na memória social (e não estamos classificando em termos de verdade ou mentira) não é a do ditador, mas a do líder que, trajando bombachas e segurando as rédeas, era capaz de conduzir o governo do país com o mesmo carisma que o tornava um “amável companheiro para as belas tardes campestres”.

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* Graduado em História pelo Centro Universitário La Salle – Unilasalle. Professor do Instituto Estadual de Educação Dr. Carlos Chagas, Canoas, RS. E-mail: [email protected].

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MEMÓRIAS E AUSÊNCIAS NAS VEREDAS DO PASSADO: A ESTRADA DE MANGARATIBA A SÃO JOÃO DO PRÍNCIPE COMO MONUMENTO HISTÓRICO-AMBIENTAL

Cesar Augusto Ornellas Ramos *

O que é um monumento? No contexto da trajetória das sociedades humanas, uma das preocupações mais presentes é a produção de marcas, de indícios de sua passagem pelo mundo, símbolos legados à posteridade. Dentre as várias manifestações de cunho simbólico, podemos ressaltar os monumentos como as mais perceptíveis, em virtude de sua concretude. Artefato cultural, sinal sensível, vestígio das ações humanas, os monumentos são portadores de discursos, de mensagens elaboradas no âmbito das interações sociais ao longo da História. Segundo Peter Burke, originalmente os monumentos foram concebidos para perpetuar a memória dos “grandes feitos”, geralmente políticos e/ou militares, não apenas para as futuras gerações, mas também e, sobretudo, para a reafirmação do discurso hegemônico (BURKE, 1991, p.17) Considerando os monumentos como patrimônio cultural, podemos destacar que os mesmos contribuem para a formação de identidades, cristalizando-as no espaço. Com base nas considerações de Ulpiano Bezerra de Menezes, as identidades estão condicionadas à legitimidade social: A identidade, quer pessoal, quer social, é sempre socialmente atribuída, socialmente mantida e também só se transforma socialmente. Isto é, não se pode ser humano por si, por representação própria: os valores, significações, papéis que me atribuo, necessitam de legitimidade social, de confirmação por parte de meus semelhantes. (MENEZES, 1984, p.33)

Numa concepção tradicional, os monumentos são artefatos criados para a apreciação pública, em logradouros, destinados à ostentação simbólica e à reafirmação de fundamentos ideológicos. Dessa forma, a memória dos acontecimentos históricos e a evocação de personalidades, de “vultos históricos”, são os temas preferenciais de tais obras. Imortalizar em pedra e cal, mármore e bronze, no coração das cidades, recortes, versões construídas sobre a realidade. Assim sendo, considerando os monumentos como obras que concretizam identidades e ponderando que um dos elementos fundamentais das identidades é a memória (MENEZES, 1984, p.33), podemos argumentar que esta última oscila entre a seletividade e a indução, tanto no plano individual como na esfera coletiva. Nesta perspectiva, podemos ressaltar pois que a visão positivista acerca dos monumentos, calcada no “culto ao passado”, como modelo de valores, representa uma prática oposta a concepção histórica, sendo esta última um processo dinâmico. Ainda de acordo com Ulpiano Bezerra de Menezes:

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Exilar a memória no passado é deixar de entendê-la como força viva do presente (...). Em outras palavras: a memória gira em torno de um dado básico do fenômeno humano, a mudança. Se não houver memória, a mudança será sempre um fator de alienação e desagregação. (MENEZES, 1984, p.34)

Observando os monumentos ainda pela ótica tradicional, podemos ressaltar que os mesmos delimitam espaços, possuindo compromisso com a posteridade. Segundo Roberto Da Matta, tudo o que se refere ao poder político, no contexto da sociedade brasileira, é “ conotado como duradouro e eterno, marcado pelos monumentos e palácios” (DA MATTA, 1984, p.08). Dessa forma, os monumentos imortalizam , via de regra, alianças simbólicas entre o “intérprete e a massa”, ambos sujeitos ao legado das determinações do passado e ao sistema de valores, partes integrantes de uma totalidade interdependente. Por outro lado, interpretando as propostas de Jacques Le Goff, podemos transcender o conceito clássico de monumento, tomado não apenas como um artefato cultural, mas também como documento histórico, como fonte a ser decifrada, analisada de acordo com parâmetros metodológicos definidos. Com isto, a perspectiva memorialística, base da construção de identidades, passa por um processo de requalificação, notadamente através da análise crítica documental. De acordo com Le Goff: A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual e coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje. (...) Mas a memória coletiva não é somente uma conquista, é também um instrumento de poder. (LE GOFF, 1996, p.476)

Ao lado da questão da singularidade, tão cara a uma visão tradicional dos monumentos, temos a noção de representatividade das ambiências históricas e das paisagens, naturais e alteradas pela ação antrópica, ampliando de forma significativa o conceito de monumento. Na presente concepção, não apenas as estátuas em praça pública, os palácios e as igrejas seriam considerados como monumentos, mas também os conjuntos arquitetônicos e os complexos paisagísticos naturais. Por exemplo, no contexto do patrimônio cultural do Estado do Rio de Janeiro, em termos coloniais, podemos assinalar, no litoral sul fluminense, o conjunto arquitetônico do centro histórico de Paraty1, como altamente significativo para a compreensão da ambiência histórica de uma vila mercantil do século XVIII. O traçado urbanístico setecentista mesclado ao casario da primeira metade do século XIX, o posicionamento das igrejas, suas relações com o Rio Perequê-açu e com a enseada de Paraty, fazem do referido conjunto paisagístico uma referência. Envolvendo a mesma região, temos o Parque Nacional da Serra da Bocaina2, extensa unidade de conservação ambiental, domínio privilegiado da floresta tropical atlântica. As matas locais, outrora atravessadas por peabirus3 abertos por indígenas, também foram rasgadas, em princípios do século XVIII, pelo Caminho Velho4, itinerário de tropeiros, trecho integrante da Estrada Real, via de penetração em áreas paulistas e mineiras, em tempos de exploração aurífera. 1

Antiga Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty, fundada em 28 de fevereiro de 1667. Unidade de conservação criada pelo Decreto nº 68.172 de 04 de fevereiro de 1971, situada entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo, com área total de 134 mil hectares. 3 Trilhas antigas abertas na mata por comunidades indígenas, com a finalidade de estabelecer vias de acesso a regiões de caça ou ainda ligar aldeias, tendo sido largamente aproveitadas pelos colonizadores. 4 Antigo caminho de escoamento do ouro oriundo das Minas Gerais, aberto por volta de 1701, ligando Paraty ao interior do “Sertão do Rio das Velhas”, cercanias de Vila Rica, atual Ouro Preto-MG 2

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Considerando o exemplo acima, podemos enfatizar que tanto o conjunto arquitetônico e urbanístico de Paraty como a Serra da Bocaina, com seus caminhos e veredas coloniais, em plena Mata Atlântica, representam referências monumentais, notadamente pela ambiência paisagística evidenciada. Segundo Benedito de Toledo: O monumento não se pode desligar da paisagem, urbana ou natural, que o rodeia.(...) Existem paisagens, lugares, sítios e monumentos cuja conservação não pode levar-se a cabo independentemente de um conteúdo espiritual próprio ou de um contexto imaterial firmemente ligado aos mesmos. Por outras palavras: tal como uma paisagem pode materializar a lembrança de um acontecimento, o bairro antigo de uma cidade, para conservar todo o seu interesse cultural, não pode entender-se desligado de certas características ambientais e vivenciais. (TOLEDO, 1984, p.29)

Ao compreenderemos tal ponto de vista, estaremos relativizando o primado dos monumentos como registros de efemérides, nos quadros de uma História oficial e personalista. Convém ressaltar que tal maneira de pensar não se trata de uma postura iconoclasta, mas sim de uma perspectiva de análise histórica que valoriza a produção da cultura material de forma ampla, e não apenas a “parte” destacada de um “todo” repleto de contradições e possibilidades. Entretanto, um ponto estratégico a considerar consiste na percepção das paisagens urbanas e naturais como monumentos, dotados de trajetórias e códigos próprios. As paisagens são dinâmicas, transformam-se pelas interferências humanas e através de processos naturais. O que interessa aos historiadores é identificar, estudar e compreender a “genealogia” das paisagens, contribuindo para sua preservação. Segundo David Lowenthal: “as relíquias tangíveis sobrevivem em forma de acidentes da natureza e artefatos humanos. A consciência de tais relíquias envolve o conhecimento adquirido através da memória e da História.”(LOWENTHAL, 1985, p.238) A educação do olhar sobre a cidade e sobre a natureza consiste no esforço de contestar a afirmação de que “sempre foi assim”, rótulo homogeneizante que, aliado à apologia do “novo”, muito tem contribuído para a descaracterização de monumentos, tanto de artefatos culturais como de paisagens naturais. As transformações são inexoráveis, variando de ritmo e intensidade, de acordo com elementos contextuais e conjunturais; contudo, o que consideramos essencial é a necessidade de rastrear suas histórias, interpretando-as.

Monumentos como evocações: índices de memória Considerando esta noção mais ampla de monumento, que incorpora os conjuntos arquitetônicos e as paisagens naturais, bem como suas respectivas ambiências, podemos argumentar sobre os monumentos como evocações, como verdadeiros índices de memória. Via de regra, os monumentos nos remetem ao período histórico no qual foram erguidos e/ou percebidos, estabelecendo conexões entre o observador e as representações de uma determinada época. As evocações são múltiplas, variando de acordo com as formas de percepção dos monumentos, no decorrer das gerações. Em termos de exemplificação, no âmbito do patrimônio histórico fluminense, podemos mencionar a Fortaleza de Santa Cruz da Barra, fortificação de origem colonial, erguida na entrada da Baía de Guanabara, em sua margem oriental, no atual Município de Niterói. Originalmente uma pequena 241

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bateria construída por Villegagnon, em 1555, durante a presença francesa na região, em virtude da fundação da França Antártica5, a fortaleza em questão foi lentamente ampliada e aperfeiçoada, ao longo de mais de três séculos, até sua última forma, definida por ocasião das obras de 1870. Base de apoio fundamental para a defesa do Rio de Janeiro durante os períodos colonial e imperial, a referida fortificação foi citada em inúmeros relatos de viajantes como sendo inexpugnável. Ao longe, sua silhueta na longínqua barra, evocava diferentes percepções em distintas épocas: cenário de combates contra corsários e piratas; calabouço para presos políticos; referência de regozijo público através das salvas de canhões (pelo nascimento de príncipes, casamentos imperiais, etc.); última edificação a ser vista pelos navegantes que velejavam no rumo do vasto oceano. Nesta perspectiva, tomando-se os monumentos como evocações, como índices, como “janelas” para a compreensão de determinadas realidades históricas, podemos destacar que os mesmos são recortes, fragmentos. De acordo com Jacques Le Goff: O que sobrevive não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado, os historiadores. (LE GOFF, 1996, p.535)

Assim sendo, podemos observar que os monumentos, tanto os resultantes do trabalho humano, como os definidos à partir das paisagens naturais, constituem a fixação de recortes, pontos de vista, gestados e consolidados no interior de estruturas ideológicas, egressos de relações sociais, políticas e culturais, datadas historicamente. Os monumentos são caminhos de acesso ao imaginário de uma época, testemunhas físicas e determinadas maneiras de ver o mundo e a trajetória das sociedades humanas. Monumentos são formas de concretizar modelos, diante da passagem inexorável do tempo. Entretanto, como já mencionamos, os mesmos foram produzidos/percebidos num contexto de classe, revelando olhares e juízos de valor característicos de determinados segmentos sociais, projetados ou não, numa esfera mais abrangente. Segundo as ponderações de Pierre Bourdieu: A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios da hierarquização: as frações dominantes, cujo poder se assenta no capital econômico, tem em vista impor a legitimidade de sua dominação, quer por meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores. (BOURDIEU, 2001, p.12)

Contudo, apesar de identificarmos a hegemonia das elites dominantes, no âmbito da produção simbólica referente aos chamados monumentos, digamos, mais comuns (estátuas e ermas em praça pública, por exemplo), com o objetivo de reafirmar discursos de classe, não estamos limitados aos mesmos, visto que temos como referência os monumentos como evocações de ideias e concepções oriundas do trabalho humano, bem como das percepções sobre o mundo natural (ARENDT, 2001, p.19). Assim sendo, buscamos relativizar as concepções elitistas acerca dos monumentos, valorizando as interpretações do conjunto das sociedades acerca dos mesmos “índices” de memória. Os monumentos como documentos, detentores de gênese específica, porém, passíveis de múltiplas decodificações.

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Colônia francesa estabelecida na Baía de Guanabara em 1555, com o patrocínio do Almirante Gaspar de Coligny, calvinista, sob o comando de Nicolas Durand de Villegagnon. A fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na mesma região, em 1º de março de 1565, fez parte da estratégia portuguesa voltada para a expulsão definitiva dos franceses, o que de fato ocorreu em 1567. Ver: LERY, Jean de. História de uma viagem feita à terra do Brasil também chamada América [1579].

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Como ilustração das reflexões acima, voltemos ao caso de Paraty. De vila tropeira seiscentista à porto estratégico para o escoamento do ouro das Minas Gerais até 1720; de entreposto cafeeiro em meados do século XIX à “cidade morta”6 em fins do Oitocentos, redescoberta pelo turismo após a abertura da Rodovia Rio-Santos, na década de 1970. Enfim, Paraty atravessou diversas fases socioeconômicas e políticas, momentos de prosperidade e decadência, desenvolvimento e imobilismo. Abandono e revitalização. Tais fases deixaram marcas nas pedras polidas de suas ruas, em seus becos floridos, nas fachadas de suas casas (da humilde “porta-e-janela” até os sobrados abastados), nos campanários de suas igrejas, entre o verde do mar e o da Serra da Bocaina. Paraty foi tombada como patrimônio histórico e artístico nacional em 1958. Dessa forma, “tornou-se” monumento, inscrito em livros de tombo, notadamente pela singularidade de seu conjunto arquitetônico remanescente do período colonial.

Diante do exemplo supra citado, um questionamento essencial deve ser aqui posicionado: Paraty “tornou-se”, de fato, monumento à partir de seu tombamento por instituições oficiais, no contexto dos parâmetros de um discurso de preservação do patrimônio histórico, atrelado à política de reafirmação do estado nacional,através do resgate das “raízes” brasileiras,ou a mesma vila colonial já era considerada veneranda, “monumental”, aos olhos dos caiçaras e tropeiros dos séculos XVIII e XIX ? Justamente sobre tal indagação podemos refletir acerca das relações entre singularidade e ambiência monumental, enfatizando que os monumentos, enquanto evocações, não estariam circunscritos ao domínio das elites letradas ou ao universo da “história de bronze” do Estado. Traçados urbanísticos, conjuntos arquitetônicos, vias de comunicação, por exemplo, estão na esfera da execução e da percepção coletiva dos espaços, sugerindo diversas possibilidades de interpretação, recortando a realidade de acordo com parâmetros e concepções historicamente datadas. Em síntese, a noção de monumento está atrelada a ideia de posteridade (LIMA,1986, p.271), de imortalidade, possibilitando por vezes conexões entre as dimensões do “como era” e do “como foi lembrado”, sentido, transmitido ou omitido no cotidiano das relações humanas.

A Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe: traço de união entre a dimensão histórica e o patrimônio ambiental Ao percorrermos os caminhos remanescentes de outras épocas, nos deparamos com vestígios do passado. Tais indícios podem ser objetivos como edificações, preservadas ou arruinadas, subjetivos, conservados na lembrança dos habitantes, ou ainda, mesclados aos novos usos, inseridos em novos contextos, adquirindo novos significados. O viajante que esteja hoje na cidade de Mangaratiba, litoral sul fluminense, e deseje atravessar a Serra do Piloto, na direção da cidade de Rio Claro, rumo ao Vale do Paraíba, percorrerá invariavelmente a RJ-149, rodovia estadual recentemente asfaltada. Entretanto, a viagem em questão deve ser realizada de modo atento a paisagem, a começar pela própria rodovia, pois suas características e contornos evocam a sua remota origem: a Estrada de Mangaratiba

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Expressão que designa uma vila de comércio, outrora próspera, relegada à decadência econômica e social. Ver: LOBATO, José Bento Monteiro. Cidades mortas [1918] São Paulo: Brasiliense, 1997.

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a São João do Príncipe, uma das primeiras estradas de rodagem do Império do Brasil, construída entre 1843-1857. Em termos históricos, a referida região foi uma área marcada por múltiplas ocupações. Originalmente habitada por nativos, notadamente pelos tupinambá, o território do litoral sul e do Médio Paraíba foi sendo efetivamente colonizado à partir da primeira metade do século XVIII, inicialmente pela abertura de fazendas policultoras e, posteriormente, pela implantação da cafeicultura, em fins do século XVIII e princípios do século XIX. Vila pioneira no cenário da expansão das lavouras de café na direção do Vale do Paraíba, São João Marcos ou São João do Príncipe7 foi um relevante núcleo urbano, fundado em 1739, tornandose responsável pelo escoamento das safras através de veredas de tropeiros que cruzavam a Serra do Piloto8, demandando os portos litorâneos, tais como Mangaratiba9, Ariró, Jerumirim e Mambucaba. O café descia a serra em lombo de mulas cargueiras, por dias e dias, em longas e perigosas viagens, percorrendo caminhos abertos sobre trilhas indígenas (peabirus) ou rumos assinalados na mata pelos próprios tropeiros, seguindo roteiros mantidos pelo uso e pela tradição. Segundo Monsenhor Pizarro10: A cana doce, mandioca, milho, arroz, legumes e café são ordinariamente os objetos da cultura do país, cujas terras pródigas em suas produções, pagam com exuberância os trabalhosos desvelos dos agricultores. Em todo o distrito da Freguesia [de São João Marcos] criam os fazendeiros muitas varas de porcos e as carnes desses animais, cevados à milho, se preparam perfeitamente, podo-as em conserva para o sustento das famílias, além da porção destinada para o comércio. Os efeitos do país se conduzem à Cidade [do Rio de Janeiro] por caminho de terra firme. (PIZARRO, 1820, p. 205)

Um dos relatos mais antigos sobre a existência de um caminho trafegável na região de São João Marcos nos foi legado pelo Barão Ludwig von Eschwege11, em 1810, denunciando as péssimas condições de conservação dos velhos caminhos de tropeiros, bem como nos apresentando uma das primeiras descrições do povoado de São João Marcos, pouco antes do mesmo ter sido elevado à categoria de Vila: O arraial de São João Marcos é pequeno e o número de casas mal chega a 100, mas mesmo assim querem elevá-lo à categoria de vila. Como lá não havia hospedaria, fui para a casa que me indicaram, onde fui servido alternadamente pelo ajudante do regimento que lá residia e por um capitão. Como aqui se une a estrada principal, que vai de São Paulo ao Rio de Janeiro, por ela voltei a esta última cidade. Mesmo tratando-se da estrada principal, nada mais é do que uma miserável trilha gasta, que quase se torna intransitável após as chuvas fortes. (ESCHWEGE, 1818, p. 202)

Redutos de poderosas oligarquias de cafeicultores, em meados do século XIX as regiões 7

Povoado criado em 1739, na região do Médio Paraíba, com a denominação de São João Marcos, elevado à condição de vila, por Alvará de 21 de fevereiro de 1811, com o nome de São João do Príncipe, em homenagem ao Príncipe Regente D.João, então futuro Rei de Portugal (D.João VI) 8 Trecho da Serra do Mar, na região centro sul fluminense, divisor de águas com o Vale do Paraíba. A denominação da serra é muito antiga e se refere ao ofício de piloto, cosmógrafo que integrava a tripulação dos navios, sendo responsável pela determinação dos rumos. Em terra os pilotos atuavam como agrimensores. 9 Antigo aldeamento indígena, fundado pelos jesuítas em 1688, no litoral sul, com o nome de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, elevado à condição de vila em 11 de novembro de 1831. 10

Monsenhor José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), bacharel em Cânones, clérigo visitador, autor da obra “Memórias históricas do Rio de Janeiro” [1820] 11 Barão Wilhelm Ludwig Von Eschwege (1777-1855), geólogo germânico, autor de várias obras, dentre elas “Jornal do Brasil” (1811-1817), pioneiro da metalurgia na América portuguesa.

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de Mangaratiba e de São João do Príncipe eram politicamente chefiadas pela família Sousa Breves, cujo representante mais famoso foi o comendador Joaquim José de Sousa Breves (1804-1889), denominado “Rei do Café”, senhor de inúmeras propriedades rurais e de centenas de escravos negros. Segundo Alberto Ribeiro Lamego12, a família Sousa Breves possuía mais de vinte fazendas e, de acordo com a tradição, o viajante poderia transitar da fronteira com a Província de Minas Gerais até a restinga da Marambaia13 sem sair dos domínios territoriais da família supra citada. Com o fim do período regencial (1831-1840) e a consolidação da monarquia constitucional no Império do Brasil, notadamente após a coroação do Imperador D. Pedro II, em 1840, o ambiente político favoreceu a implantação de projetos no sentido de contribuir para o desenvolvimento econômico, com ênfase para a produção de matérias-primas e gêneros primários, no contexto da tradição agrícola brasileira oitocentista. Uma das maiores preocupações do Governo Imperial e dos Presidentes de Províncias era a ruptura do isolamento das áreas produtivas em relação aos núcleos consumidores e/ou exportadores de gêneros, notadamente através da implantação de estradas gerais, muitas delas aproveitando antigos caminhos coloniais. Com o incremento da lavoura cafeeira na região do Médio Paraíba, por volta de 1843, durante a gestão de João Caldas Viana como Presidente da Província do Rio de Janeiro (1843-1844), foi pela primeira vez apresentada uma proposta de construção de uma estrada de rodagem para carroças e carruagens, ligando Mangaratiba a São João do Príncipe. Tal projeto era apoiado pelos Sousa Breves e seus aliados, pois tinha por finalidade viabilizar o escoamento mais eficiente da produção de café e outros gêneros oriunda de fazendas existentes nas cercanias de São João do Príncipe, buscando atingir inclusive a região de Barra Mansa. Assim sendo, em 30 de dezembro de 1843, o empreiteiro Bernardino José de Almeida arrematou o contrato para a execução das obras da Estrada de Mangaratiba, obrigando-se a concluir os trabalhos no prazo máximo de dois anos.14 Segundo relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho [Visconde de Sepetiba], encaminhado à Assembleia Provincial em 1º de março de 1846, as condições da antiga vereda entre a Vila de São João do Príncipe e o “lugar do Piloto” não eram das melhores: Tendo ultimamente muitos cidadãos negociantes estabelecidos no lugar do Saco, termo de Mangaratiba, representado o péssimo estado em que se achava, em consequência das muitas águas, a parte da estrada que vai desde o lugar do Piloto, em São João do Príncipe, até esta vila, a ponto de terem perdido muitos animais e sofrido prejuízos na exportação de seus gêneros, encarreguei em data de 13 de janeiro último ao cidadão Joaquim José de Sousa Breves os reparos necessários nesta parte da estrada.15 (SOUZA, COUTINHO, 1853, p.27)

Após inúmeras interrupções nas obras da estrada, em consequência de problemas técnicos e questões de natureza administrativa, bem como em virtude do falecimento do empreiteiro Bernardino José de Almeida, o então Presidente da Província do Rio de Janeiro, Luís Antônio Barbosa, 12

LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a serra. Setores da evolução fluminense, v. 04. 3ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. p. 56 Uma das maiores restingas fluminenses, integrando o território de três municípios: Rio de Janeiro, Itaguaí e Mangaratiba, com cerca de 42 km de praias, sendo um dos elementos definidores da Baía de Sepetiba. Atualmente mais de dois terços da restinga é administrada pelo Exército, sendo área destinada a exercícios militares. Em sua porção noroeste existe uma comunidade remanescente de quilombos. 14 Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho). Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1853. p. 24 15 ____________________________.(Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho). Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1853. p. 27 13

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encaminhou providências para o atendimento do clamor dos fazendeiros e negociantes de São João do Príncipe: autorizou a fundação de uma empresa, a Companhia da Estrada de Mangaratiba, firmando o contrato da mesma em 26 de fevereiro de 1855, sendo diretor da firma o desembargador Joaquim José Pacheco. Tal empresa tinha como objetivo retomar a construção da estrada em pauta, ligando Mangaratiba a Rio Claro16, com prolongamento até Pouso Seco e Barra Mansa, de acordo com seu projeto original. Além da retomada das obras, a referida companhia se comprometia em oferecer um serviço de transporte de cargas e passageiros, mantendo para tanto linhas regulares de carroças e diligências. O contrato em questão, respaldado na Lei Provincial nº 724, de 25 de outubro de 1854, apresentava rígidas condições, revelando a importância estratégica do caminho rodoviário em construção. Por exemplo, a cobrança de multa se a empresa não cumprisse o cronograma de obras: 2ª condição – O empresário fica sujeito a uma multa de quatro contos de réis, imposta pelo Governo Provincial, em favor dos cofres da Província, se dentro de seis meses, contados da data do presente contrato, a companhia não se achar incorporada e não se houver dado começo às obras da primeira seção da estrada, que é a de Mangaratiba à Vila de São João do Príncipe.17 (BARBOSA, 1856, p.11)

O diretor da Companhia da Estrada de Mangaratiba, desembargador Joaquim José Pacheco, de acordo com as disposições contratuais, estava se comprometendo a construir uma estrada de rodagem dentro dos mais modernos padrões técnicos da época, conforme a 14ª condição do contrato: A estrada para se achar conforme o disposto no artigo primeiro, deverá ter, pelo menos, 32 palmos de largura [7,04 m], além das valetas e sua declividade longitudinal não poderá exceder de um em vinte palmos, a exceção de certas distâncias, que não excedam a 80 braças [176 m], nas quais poderá, em atenção as dificuldades do terreno, elevar-se a declividade até um em dezesseis (...) e o leito da estrada, em toda a largura, será calçado pelo sistema de Mac-Adam, como atualmente executado na estrada normal de Petrópolis.18 (BARBOSA, 1856, p.11)

Ao longo das gestões de Luís Antônio Barbosa (1853-1857) e de Antônio Nicolau Tolentino (1857-1858), a frente da presidência da Província fluminense, as obras da Estrada de Mangaratiba prosseguiram, apesar dos grandes percalços, tendo sido inaugurada pelo Imperador D. Pedro II em 13 de julho de 1857. Entretanto, o trecho concluído compreendeu apenas a 1ª seção do projeto original, entre o cais de Mangaratiba e a Vila de São João do Príncipe, tendo aproximadamente 4 léguas e ½ de extensão [29,7 km]. A 2ª seção, que ligaria esta última vila a Rio Claro e daí chegaria a Barra Mansa, apesar de iniciada, permaneceu inconclusa. De acordo com o relatório do engenheiro-chefe da Estrada de Mangaratiba, E.B. Webb, datado de 02 de maio de 1857, apesar dos trabalhos de construção da 1ª seção terem quase atingido a sua fase final, as dificuldades com o terreno e a falta de madeira causavam atrasos consideráveis às obras: Um dos armazéns na Vila de São João do Príncipe está pronto e o outro devia estar acabado, porém, as demoras efetuadas pelos embaraços a respeito do terreno tem atrasado tudo. Hoje este armazém está em progresso. Nesta divisão a estrada sobe até a altura de 2.314 palmos [509,8 m] acima do nível do mar, e então desce até a Vila de São João do Príncipe, onde a altura é de 1.939 palmos [426,58 m] (...) Diariamente 16

Atual Rodovia RJ-149, recentemente asfaltada em grande parte de seu percurso, com exceção dos trechos de interesse histórico, nos quais o revestimento oitocentista foi parcialmente preservado. 17 Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Luís Antônio Barbosa). Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1856. p. 11 18 __________ (Luís Antônio Barbosa). Niterói: Typographia de Amaral & Irmão, 1856. p. 14

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por toda a extensão da estrada, andam carroças sem obstáculos. Há pedras deitadas para o capeamento ou macadam que falta, mas a estrada é tão larga (38 palmos, com os esgotos) que a passagem está livre. Não tem passado o Ribeirão das Lages carros ou carroças cheios, por falta de madeira.19 (TOLENTINO, 1857, p.04)

Durante a finalização das obras da 1ª seção da estrada, uma demanda judicial contribuiu para o atraso ainda maior das mesmas, pois a viúva de Bernardino José de Almeida, que em 1843 era o empreiteiro responsável pelas obras da referida estrada, questionou os direitos e os trabalhos técnicos da Companhia da Estrada de Mangaratiba, visto que o contrato com o falecido Bernardino não havia sido revogado e a viúva em questão prosseguia com as obras da estrada, num trecho oposto as obras da Companhia, esperando receber indenização do Governo Provincial. As contendas se prolongaram, ao lado de denúncias que resultaram no declínio da credibilidade da empresa dirigida por Joaquim José Pacheco. O contrato pendente com a viúva de Bernardino Almeida foi revogado pelo Governo da Província do Rio de Janeiro, em 30 de março de 1856, ficando a Companhia responsável pelo pagamento da indenização. As obras da 2ª seção foram paralisadas. A estrada foi hipotecada como garantia para o pagamento de dívidas da empresa construtora, em atendimento aos protestos de seus acionistas. No trecho concluído e aberto ao tráfego de carruagens, seges, carroças e diligências, as reclamações eram muitas. De acordo com as impressões de Luís Alves Leite de Oliveira Belo, Presidente da Província do Rio de Janeiro (1861-1863), os usuários da Estrada de Mangaratiba manifestavam frequentes insatisfações, seja pelo excesso de tarifas , seja pela insuficiência de viaturas para o transporte de gêneros: Muitas queixas, porém, se tem levantado contra o modo por que é cobrada a taxa fixada (...) Queixam-se os negociantes de Mangaratiba e os fazendeiros de serra acima de que a companhia, possuindo vinte carros unicamente, não pode transportar todos os seus gêneros; e que são obrigados a fazer seguir suas tropas ainda para Mangaratiba; que as taxas neste caso são custosas e pesadas. Porque se cobra 10 réis por arroba [15 kg] e mais a taxa dos animais; que menos oneroso lhes é procurar, ainda que mais longínquos, os portos de Jurumirim e Itaguaí; que de mais a mais arbitrariamente se marca taxa pelos gêneros de importação.20 (BELO, 1861, p. 112-113)

Convém ressaltar que o declínio e posterior abandono da Estrada de Mangaratiba, na década de 1860, ocorreu ao mesmo tempo em que os trilhos da Estrada de Ferro D.Pedro II chegavam a Barra do Piraí, por volta de 1864. Por ligar diretamente o Vale do Paraíba ao Rio de Janeiro, tal ferrovia representou um importante fator de impulsão da cafeicultura, visto que os carregamentos e o escoamento das safras passaram a ser efetuados de maneira mais rápida e economicamente menos onerosa. Um dos relatos mais detalhados sobre a Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe foi redigido em 1876, pelo então Bispo do Rio de Janeiro, D.Pedro Maria de Lacerda21, durante uma de suas visitas pastorais ao sul da Província do Rio de Janeiro. Além das impressões acerca do estado geral das freguesias visitadas, os escritos do bispo são ricos em descrições das características naturais, paisagísticas e, principalmente, de cunho social. Partindo de Mangaratiba, a cavalo, o clérigo fez sua 19 WEBB, E.B. Exposição sobre o estado dos trabalhos da Estrada de Mangaratiba, apresentada ao Exmº Sr. Presidente da Província do Rio de Janeiro, pelo engenheiro chefe da mesma. São João do Príncipe, 02 de maio de 1857. IN: Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Antônio Nicolau Tolentino). Niterói: Typographia de Amaral & Irmão, 1857. Anexos. p. 04 20 Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Luís Alves Leite de Oliveira Belo). Niterói: Typographia de Amaral & Irmão, 1861. p. 112-113 21

D.Pedro Maria de Lacerda (1830-1890), Conde de Santa Fé, Bispo do Rio de Janeiro de 1868 a 1890.

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ascensão à Serra do Piloto, no rumo da então Vila de São João do Príncipe, registrando de forma pormenorizada o que via pelo caminho, num momento em que a estrada em pauta já se encontrava em declínio, relegada ao atendimento das demandas locais. Concluída a planície, começamos a subir a serra [do Piloto] e encontramos umas 6 ou 8 carroças que levavam carga para a Vila de São João do Príncipe. Esta estrada é a melhor que conheço no Brasil, depois da União e Indústria; é larga e de suave declive; podem por ela subir e descer seges, mas na atualidade carece de reparos em algumas partes. (...) É diferente da antiga e velha, por onde subiu Monsenhor Pizarro, que tanto se queixou dela, como li em um seu manuscrito. (LACERDA apud LEMOS, 1987, p.349)

Considerando as formas de transporte de cargas e passageiros existentes na então Província do Rio de Janeiro, no decorrer de meados do século XIX, encontraremos a antiga tradição dos tropeiros que conduziam suas tropas de mulas pelos caminhos e veredas, estabelecendo, por vezes, conexões com trapiches e embarcadouros fluviais ou marítimos. Ao lado de tal sistema, herança do período colonial, vamos encontrar a implantação de estradas de rodagem, notadamente para o trânsito de carroças, carruagens, seges e diligências. Somente a partir da década de 1860 a malha ferroviária começou a ganhar relevância no contexto imperial brasileiro, principalmente após os empreendimentos de Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), Barão e Visconde de Mauá, responsável pela construção das primeiras estradas de ferro no Brasil. A Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe foi a concretização, por um período efêmero, de um determinado modelo de sistema viário em terras fluminenses. Anterior a implantação das ferrovias e buscando retificar antigos caminhos coloniais, o modelo em pauta simbolizou o poder do baronato do café, pois a estrada foi construída por influência das famílias Almeida Portugal e Souza Breves, grandes proprietárias rurais escravistas, pioneiros da cafeicultura na região, no contexto oitocentista. Segundo Maria de Fátima Gouvêa: O trabalho de construção enfrentou várias adversidades, fazendo com que a estrada alcançasse apenas o município de São João do príncipe, uma distância de apenas 30 km [de Mangaratiba]. Apesar disso, a estrada, parcialmente construída, trouxe um considerável grau de recuperação econômica para a região de Mangaratiba. Entretanto, esse quadro teve curta duração, pois a chegada da Estrada de Ferro D.Pedro II ao Vale do Paraíba estabeleceu uma completa reorientação do tráfego em direção aos meios de transporte mais eficientes, deixando o porto de Mangaratiba numa dramática posição. (GOUVÊA, 2008, p.52)

A referida estrada atravessa atualmente uma parte significativa do Parque Estadual Cunhambebe , importante unidade de conservação ambiental no território fluminense. A área na qual foi implantado o parque em questão, abrangendo porções dos municípios de Itaguaí, Mangaratiba, Rio Claro e Angra dos Reis, apresenta um relevante conjunto de características ambientais e históricas de grande representatividade. Em termos da biodiversidade, o Cunhambebe estabelece ligações entre o Parque Nacional da Serra da Bocaina e a Terra Indígena do Bracuí, contribuindo para a preservação de espécies da flora e da fauna, através da manutenção da diversidade genética no âmbito das mesmas. 22

Apesar de ter sido asfaltada em grande parte, a antiga estrada imperial ainda conserva trechos 22

Unidade de conservação fluminense criada pelo Decreto Estadual nº 41.358 de 13 de junho de 2008, possuindo cerca de 38 mil hectares, nos quais ainda existem expressivas áreas remanescentes da Mata Atlântica, sobretudo, a partir da cota 100 m acima do nível do mar. A denominação foi uma homenagem ao cacique tupinambá Cunhambebe, líder da Confederação dos Tamoios (1560)

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originais, sobretudo nas cercanias das ruínas da Vila de São João do Príncipe, atualmente integrantes do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos23, inaugurado em 2011, em terras da Light S.A., revelando um grande potencial para o desenvolvimento de projetos de educação patrimonial e ambiental. Ambos os parques, por suas características peculiares, apresentam condições favoráveis ao resgate da função social dos monumentos, sejam históricos ou naturais, compreendidos não apenas como marcos de identidade, mas, sobretudo como núcleos difusores de conhecimento, cultura e bem estar para o conjunto da sociedade. Em suma, no artigo em questão procuramos refletir sobre a relevância da preservação de sítios históricos, integrados às unidades de conservação ambiental, exemplificada pelos esforços de pesquisa em torno da Estrada de Mangaratiba a São João do Príncipe, antiga trilha de tropeiros, incorporada em parte ao traçado da estrada provincial, em meados do século XIX. Desde a criação do Parque Estadual Cunhambebe, em 2008, tanto o INEA (Instituto Estadual do Meio Ambiente), como instituições privadas dedicadas a implantação de projetos de conservação ambiental, vem articulando ações no sentido de transformar a referida via numa “estrada parque”, dotada de sinalização especial e de infraestrutura adequada para a recepção de visitantes, bem como para a realização de pesquisas científicas voltadas principalmente para o estudos históricos, antropológicos, geológicos, da flora e da fauna, além de iniciativas relevantes no campo da educação ambiental / patrimonial.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Monsenhor José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820 AREDNT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Lisboa: Relógio d’Água, 2001 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Thomaz. 4ª ed. Lisboa: Difel, 2001. BURKE, Peter. A Escola dos Analles (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. 3ª ed. Trad. Nilo Odália. São Paulo: UNESP, 1991 DA MATTA, Roberto. Casa, rua e outro mundo: reflexões sobre o espaço e a sociedade. IN: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 19. Rio de Janeiro: IPHAN, 1984 ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Jornal do Brasil, 1811-1817. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 LAMEGO, Alberto Ribeiro.O homem e a serra. Setores da evolução fluminense, v. 04. 3ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. 23

Parque histórico-ambiental, com 930 mil m², criado em 09 de junho de 2011, no Município de Rio Claro-RJ, nas cercanias da represa de Ribeirão das Lages, área da antiga Vila de São João do Príncipe, demolida em 1941. Importante conjunto de sítios arqueológicos, com relevância histórica e ambiental.

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LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996 LEMOS, D. Jerônimo de. OSB. D.Pedro Maria de Lacerda: último Bispo dório de Janeiro no Império (1868-1890). Rio de Janeiro: Edições Lúmen Christi, 1987 LIMA, Luís Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986 LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge Universitary Press, 1985 MENEZES, Ulpiano Bezerra de. Identidade cultural e arqueologia. IN: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 20. Rio de Janeiro: IPHAN, 1984 TOLEDO, Benedito Lima de. Bem cultural e identidade cultural. IN: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 20. Rio de Janeiro: IPHAN, 1984 RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Aureliano de Sousa e Oliveira) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1853 RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Luís Antônio Barbosa) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1856 RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Antônio Nicolau Tolentino) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1857 RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.(Luís Alves Leite de Oliveira Belo) Niterói: Tipografia de Amaral & Irmão, 1861

* Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense-UFF. Professor pesquisador do Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro (Unilasalle), em Niterói-RJ. Coordenador do Laboratório de História do Brasil e do Laboratório de Estudos do Patrimônio Cultural – LEPAC.

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LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?

Jenny González Muñoz *

Introducción El término cultura describe el “cultivo” de algo material o inmaterial, lo cual tiene que ver con la capacidad creadora y la consecuente necesidad de labrar, ejercitar, preservar, en concordancia con los avatares y circunstancias del tiempo y el espacio. Etimológicamente alude al cultivo de la tierra, así como al cultivo de las artes, porque el intelecto sólo dará frutos intelectuales y aun espirituales, sólo si se cultiva apropiadamente. La cultura como conocimiento refiere igualmente a un conjunto de saberes más o menos estructurados en diversos soportes y que se atesoran por cuanto constituyen un acervo para una determinada sociedad. (CRUZ, 2007, p. 99)

La cultura es catalogada como una serie de conocimientos que han nacido desde la creación intelectual que se genera desde el propio sentir (de allí lo espiritual) en franca conjunción con un engranaje social que la cataloga, la sostiene, la ve como suya, por cuanto en ella radica su proceso hacia la concreción de la identidad nacional, regional e incluso local. Desde el punto de vista antropológico la cultura es vista como un contexto social en el que se manifiestan acontecimientos a través de signos y símbolos (Geertz, 1992), teniendo en cuenta que éstos obedecen al entorno, contexto y temporalidad de los pueblos involucrados en el proceso cultural. Kroeber y Kluckhohn (1952 apud BARTOLOMÉ 2006), definen la cultura como “pautas de comportamientos, explícitas o implícitas, adquiridas o transmitidas mediante símbolos” (p. 90), estos “símbolos”, pueden ser incluso objetos tales como construcciones arquitectónicas, esculturas, cerámica, entre otros. En tanto, Bartolomé (2006) acota que: (…) la tradicional concepción antropológica de la cultura de comienzos del siglo XX, que la entiende como el conjunto de técnicas e ideaciones que nuestra especie ha desarrollado para adaptarse al medio ambiente y que reemplazan o tienden a reemplazar el determinismo biológico de los instintos. Es decir que la cultura es la naturaleza del hombre y base de su potencial adaptativo. (p. 90)

Según el citado investigador la necesidad de adaptación del ser humano es lo que lo ha llevado a utilizar una serie de “técnicas e ideaciones” que le ayudan en ese proceso, maximizando sus capacidades tanto individuales como sociales. La cultura, entonces, se convierte en una especie de tabla de salvación que el mismo ser humano crea para preservar su existencia en el mundo. Estas “técnicas e ideaciones”, incluyen, por supuesto, las manifestaciones que tienen que ver tanto con lo netamente espiritual (lo llamado inmaterial), es decir, mitos, ritos, ceremonias, como con lo material, construcciones y creación de herramientas e instrumentos de carácter utilitario o no, lo cual engloba a

LIBROS Y EDITORIALES: ¿REGISTRO Y DOCUMENTACIÓN DE LA CULTURA INMATERIAL?

los símbolos y signos de los que habla Clifford Geertz. Desde el punto de vista de la Historia, la cultura va de la mano con el arte y la conservación de los bienes patrimoniales, entendiendo por estos no solamente aquellos relacionados con procesos artísticos, sino también los que se manifiestan a través de la naturaleza aprehendida por el hombre como agregado imprescindible en el desarrollo de su vida. Así, el patrimonio se convierte en un garante que hace perdurar en el tiempo la huella de las diferentes formas culturales que ha ido creando el ser humano, lo cual lo lleva, sin lugar a dudas, a un acercamiento a los cambios y evoluciones que han sostenido las diferentes sociedades. En los textos recogidos por la UNESCO emanados de las conclusiones de la Conferencia Mundial sobre las Políticas Culturales (México, 1982), de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo (1995) y de la Conferencia Intergubernamental sobre Políticas Culturales para el Desarrollo (Estocolmo, 1998), se considera a la cultura como: la unión de rasgos distintivos espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a una sociedad o un grupo social y engloba tanto las artes como las letras, los modos de vida, las facetas de la vida incluso, los sistemas de valores, las tradiciones y las creencias. (UNESCO, 2001, p. 4).

De esto se puede inferir que cultura es todo aquello que hace el ser humano, incluso en sus momentos más íntimos. Es un condicionante social del hombre y su hechura según sus necesidades como ser social, por ello se desenvuelve y evoluciona de distintas maneras. Pero más allá de esto, los procesos culturales son institucionalizados siendo objeto de normatizaciones, entrando a escena la concepción de patrimonio, en este sentido, el grupo de investigadores que colaboran en los textos de la Revista Amanecer en Los Andes, editada por la Comisión de Desarrollo y Medio Ambiente de América Latina y El Caribe (1997) devela: (…) si la cultura es el conjunto de las formas de comportamiento de los pueblos, el patrimonio cultural debe entenderse más allá del arte (...) es la capacidad de transformar y administrar recursos y medios; las tendencias ancestrales en la selección de los asentamientos y las redes de articulación económica; el conocimiento empírico y las ciencias acumuladas en el manejo de plantas curativas o alimenticias o en el uso de recursos construidos y la evocación colectiva en el trabajo y la distribución. (p. 63).

Dicha normatización no quiere decir que vise estatizar las manifestaciones de los pueblos, pero si busca una organización que, como dice la cita anterior, va más allá del mero hecho artístico. En lo que se refiere concretamente al patrimonio cultural como tal, éste ha sido catalogado como material o inmaterial, aunque evidentemente ya es harto conocido que intentar hacer un distanciamiento rígido de ambas categorías sería una tarea imposible, aparte de peligrosa, puesto que uno se complementa con el otro, “la clasificación del patrimonio cultural en material e inmaterial no es tajante, pues uno y otro se entrelazan” (GALLART, 2008, p. 10,) aun así, a la hora de hacer procesos de registro y documentación dicha diferenciación es necesaria, tal como se verá más adelante.

Registro y documentación del patrimonio cultural inmaterial: juegos de distancias Las propias características de la cultura inmaterial, al englobar ceremonias, música, rituales, 252

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sistemas de creencia, mitos, leyendas, danzas, entre otras cuestiones que están íntimamente relacionadas con la simbología, en el trabajo de registro y documentación, obliga a observar y entender dichas manifestaciones desde perspectivas distintas a la cultura material. En el ámbito internacional durante las últimas décadas del siglo XX con extensión a lo que va del XXI, instituciones tanto gubernamentales como no gubernamentales han venido haciendo un esfuerzo para maximizar los instrumentos en este respecto, pues a partir de ello se desarrolla también un trabajo necesario de salvaguarda, cónsono con lo establecido en la Convención para la salvaguarda del patrimonio cultural inmaterial (Paris, 2003) y las normativas pertinentes de acuerdo a las necesidades y características de cada nación, como es el caso de Venezuela con la existencia de la Ley de Protección y defensa del Patrimonio Cultural (1993). Cuando se habla de patrimonio cultural se hace referencia al acervo de elementos tanto materiales como inmateriales, que conforman la identidad de un pueblo, puesto que sus miembros se apropian de ellos construyendo una suerte de cofradía en la que el sentido de pertenencia está presente en todos los momentos de la vida y de la muerte1, tal las emergencias políticas, económicas, sociales de la contemporaneidad, pero también en aquellas que conforman los trazos históricos heredados de los antepasados, o las que se sitúan por medio de las simbologías religiosas, creencias, rituales, y demás. Esos elementos que cada sociedad considera suyos los toma más aun cuando se enfrenta a adversidades (BONFIL, 1999) como desastres naturales, guerras, migraciones masivas de desplazados; como aconteció en la época de la instauración de la esclavitud de la mano de obra africana en tierras de América cuando los esclavizados se aferraron a su cultura inmaterial para sostener su propia identidad cultural; en la contemporaneidad, los pueblos desplazados, por ejemplo, hacen lo propio llevando sus costumbres, tradiciones, vestimentas, música, creencias, ceremonias, a los nuevos espacios donde comienzan a hacer vida. De esta manera, se van conformando otras formas de memoria y de llevar a cabo las diversas manifestaciones de la cultura inmaterial, de allí la importancia, tanto de la declaratoria de patrimonio como de un registro y una documentación pertinentes puesto que la característica de dichos procesos culturales está en continuo dinamismo. Así el proceso de patrimonialización es trascendental pues responde a una demanda social de memoria (GIMÉNEZ MONTIEL 2007 apud ARIZPE 2008), ya que las incesantes transformaciones pueden traer como consecuencia la desvirtualización de lo tradicional, llegando a ser olvidado o suplantado. Siendo el patrimonio cultural los bienes que una sociedad produce y define conscientemente (IPC, 2001) se debe entender, entonces, que no conforma la totalidad de las creaciones sociales, a pesar de la existencia de diversos tipos de patrimonios relacionados con la cultura, entre los que se cuenta los arqueológicos, muebles, y lo que se ha llamado “patrimonio vivo” que es: el conjunto de manifestaciones humanas, tales como las tradiciones, costumbres, vivencias, folklore, ritos, creencias, música, vestido, calzado, tecnología, tesoros humanos vivos, lenguas, entre otros. Este es el término manejado por la ley venezolana y por el Instituto de Patrimonio Cultural, la UNESCO lo llama patrimonio inmaterial. (IPC, 2001, p. 8)

Cabe destacar que dicha denominación obedece a la condición dinámica y no a las personas físicas vivas que tanto lo producen como la portan, e incluso a aquellas que han sido detectadas patrimonio formando parte del inventario regional y/o nacional. Tomando en cuenta lo dicho, y añadiendo que el patrimonio cultural en si es “sólo una selección valorizada de la misma [la cultura] que funge 253

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como simbolizador privilegiado de sus valores más entrañables y emblemáticos” (ARIZPE, 2008, p. 28), se hace más importante aun registros y documentación cónsonos con las características nombradas. En este sentido, la experiencia venezolana es interesante porque se vincula al trabajo realizado por el Instituto de Patrimonio Cultural (IPC) y el Centro de la Diversidad Cultural (CEDIVER), ambos pertenecientes al Ministerio del Poder Popular para la Cultura, instituciones que tienen a su cargo velar por el patrimonio cultural. Entre sus objetivos el IPC lleva a cabo Registro General del Patrimonio Cultural del país, acotado a su vez en la Ley de Protección y Defensa del Patrimonio Cultural y su Reglamento (2005), teniendo por objeto la “identificación de todo aquello que es característico y significativo para la identidad cultural de los venezolanos, en correspondencia a sus valores artísticos, históricos, plásticos, ambientales, arqueológicos, paleontológicos o sociales”. (p. 49) En este punto es interesante el inventario que se ha realizado de los diversos tipos de patrimonio publicados en 336 cuadernos, fuente de los resultados del censo patrimonial 2004-2007, elaborado por empadronadores focalizados por municipios en cada una de las entidades federales del país. Por su parte, el CEDIVER en su oficina de Gestión de Colecciones, realiza el archivo, registro y documentación del patrimonio cultural inmaterial contenido en sus compilaciones fotográficas, audiovisuales, bibliográficas, etnográficas, correspondientes a 28 países de América Latina y El Caribe. (GONZÁLEZ-MUÑOZ, 2012)2 La existencia de instrumentos de registro de patrimonios como el instructivo que regula el Registro General del Patrimonio Cultural venezolano y los bienes que lo integran, incluido en la citada Ley de Protección y Defensa del Patrimonio Cultural3 y las herramientas tecnológicas, también de documentación, de CEDIVER constituyen avances significativos, incluso aunque pudieran aun tener sus fallas4, en los trabajos que apuntan a la salvaguarda de las diversas manifestaciones de la cultura inmaterial. No obstante, a raíz de las rupturas de paradigmas cada día más crecientes en las diferentes áreas del conocimiento humano, la incorporación de otras alternativas de registro y documentación se alzan como propuestas de mayor alcance a nivel global, tal es el caso del libro y las editoriales.

El libro como herramienta de registro del patrimonio cultural inmaterial En el año 1974 el intelectual uruguayo Ángel Rama y el político y escritor venezolano José Ramón Medina, crean la editorial Biblioteca Ayacucho5, teniendo como objetivo principal la publicación de clásicos latinoamericanos y caribeños para difundir las obras más relevantes en diversas áreas del conocimiento político, social, filosófico, artístico, literario. La editorial nace con un libro de suma importancia para la transformación política de parte de América: Doctrina del Libertador, de Simón Bolívar, abriendo así las puertas a una nueva manera de ver la integración latinoamericana pensada por los héroes libertarios. Luego, la Colección Clásica comienza un proceso de inclusión de textos que van desde la literatura indígena prehispánica hasta los tratados políticos de temáticas en boga en el siglo XXI. En el discurso pronunciado por Ernesto Sábato en el acto de instalación del “Encuentro de Escritores e Investigadores de la Cultura Latinoamericana”, celebrado en Caracas el 18 de noviembre de 1975 con motivo de la puesta en marcha de la Biblioteca Ayacucho, editado bajo el nombre “Libros y liberación” e incluido en la parte preliminar del Catálogo 1974-20076 de Biblioteca Ayacucho, 254

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el escritor argentino, hablando del rol que ha tenido el quehacer literario a lo largo de los diferentes procesos históricos de la cultura occidental, plantea: No sólo la obra de liberación política y social ha de provenir de los libros, sino que, a mi juicio, la salvación del hombre puede provenir de nuestra literatura de ficción. No porque yo quiera sobrevalorar el oficio a que estoy condenado, sino porque las literaturas latinoamericanas, como en otro tiempo fue la rusa y luego la norteamericana, son, en sus más grandes expresiones, literaturas de salvación, ya que tratan del hombre y su destino, del sentido o sin sentido de su existencia, de la esperanza y de la muerte. Grandes y permanentes temas metafísicos que hacen la salvación de la criatura humana. (p. 13)

Esas palabras del autor de Sobre héroes y tumbas (número 117 de la Colección Clásica de Biblioteca Ayacucho), describen el verdadero papel del libro un cúmulo de conocimientos que se puede hacer presente de diversas maneras y abarcar cantidad de contextos, y en esa “salvación” del ser humano se traduce en la conservación de su historia, en registrar su memoria colectiva y social, lo cual es parte de la cultura inmaterial, logrando en el libro una herramienta significativa. Dice Borges en la Biblioteca de Babel: Cuando proclamó que la Biblioteca abarcaba todos los libros, la primera impresión fue de extravagante felicidad. Todos los hombres se sintieron señores de un tesoro exacto intacto y secreto. No había problema personal o mundial cuya elocuente solución no existiera en algún hexágono. El universo estaba justificado, el universo bruscamente usurpó las dimensiones ilimitadas de la esperanza. (BORGES, 2004, p. 124)

El caso de Biblioteca Ayacucho ilustra de manera clara cómo teniendo al libro como soporte, las diversas temáticas focalizadas en textos específicos son registradas, asimismo el pensamiento de los autores, la situación del momento, los saberes de los pueblos, el contexto, permitiendo a los lectores e investigadores hacer un arqueo de datos de las manifestaciones del patrimonio cultural inmaterial desde México hasta Argentina, pasando por naciones del Caribe como Cuba, Puerto Rico, República Dominicana y Haití, por medio de lo registrado no solo en los textos de los autores como tal, sino en los trabajos preliminares, estudios comparativos, cronologías, presentados. Para registrar el patrimonio cultural inmaterial, además de la utilización obligatoria de las fichas, se precisa incluir un análisis de contenido cualitativo desde el punto de vista de la valorización social de la expresión cultural, Además las tareas de registro de patrimonio deben estar sustentadas en un proceso investigativo y analítico, constituyendo un registro capacitado para ser conservado en el tiempo, más allá de la tradición oral, pero de no haber dicho trabajo de documentación, el libro mismo pasaría de ser una potencial herramienta de registro y documentación para convertirse en un mero objeto de colección. Como ejemplo se puede tomar el libro Literatura maya, número 57 de la Colección Clásica de la citada editorial. Este tomo compone un verdadero registro de la tradición oral de dicho pueblo ancestral ya que recoge textos como el Popol Vuh, el Chilam Balam de Chimayel, Rabinal Achí, las Historias de los Xpantzay, documentándolos por medio de análisis preliminares. Siendo las artes escénicas uno de los componentes de la cultura inmaterial, se puede leer lo siguiente: Entre los mayas de Yucatán había también espectáculos teatrales, con cierto predominio del ademán sobre la palabra, y estrechamente ligados a la música, a juzgar por lo que de ellos nos dicen los cronistas e historiadores. Fray Diego de Landa, a quien

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cita Lopez de Cogolludo en su Historia de Yucatán, afirma que Chinchén Itzá “tenía delante la escalera del Norte, algo aparte, dos teatros de cantería pequeños de cuatro escaleras y enlosados por arriba, en que dicen representaban las farsas y comedias para solaz del pueblo”. (GARZA, 1992 p. 292)

La información precedente está hecha con la finalidad de ubicar al lector en el tema para, o bien ampliar sus conocimientos o explicar lo desconocido, no obstante, constituye una forma de documentar los textos mayas recopilados y publicados en el libro. Más delante se lee: La obra que aparece a continuación, se representó periódicamente, a lo largo de los tres siglos que duró el dominio de España en esta parte del continente americano. Posiblemente las autoridades eclesiástica y civil – que no desterraron por completo esta clase de espectáculos, en Mesoamérica – permitieron, y aun estimularon, esas representaciones. Algunas de ellas formaban parte de las diversiones públicas, y se repetían anualmente, el día del santo patrono, en la festividad de cada lugar se conservaron esas tradiciones. (Ibidem, p. 293)

Cita que devela una parte de la historia del pueblo maya en materia de artes escénicas, enriqueciendo el carácter documental del texto preliminar que, como se acotó no está concebido con la intención de hacer dicho trabajo, pero indudablemente es una herramienta excelente que, combinada con el hecho de editar el Rabinal Achí, se transforma en una forma de registro y documentación del patrimonio cultural inmaterial de dicho pueblo ancestral, instaurado en sus mitos y leyendas. Bien es sabido que los cronistas se Indias se dieron a la tarea de registrar por medio de sus escritos, los acontecimientos históricos de los pueblos indígenas, constituyéndose sus documentos fuentes para investigaciones sobre las culturas precolombinas, mas aun en lo que respecta a civilizaciones que sostuvieron sus bases culturales en la tradición netamente oral. Los textos de Huamán Poma de Ayala, Pedro de Cieza de León, el Inca Garcilaso de la Vega, per se ya constituyen un registro, de manera que la incorporación de análisis contemporáneos sustentados a partir de las nuevas terminologías y la apertura hacia el diálogo intercultural, son de vital importancia para ampliar las perspectivas de documentación respecto a la etnohistoria de los pueblos indígenas, tanto precolombinos como los que están presentes en la contemporaneidad, ya que tanto ellos como la diversidad de idiomas originarios, han sido elevados a calidad de patrimonio cultural inmaterial7. En este sentido, el rol de las editoriales como casas que hacen posible la edición de libros, debe abocarse a la tarea no sólo de dar a conocer obras o autores nuevos o reafirmar la importancia de los grandes clásicos, sino de incentivar la concepción hermenéutica hacia la variedad de elementos que se constituyen en la emergencia de los tiempos del siglo XXI. Teniendo en cuenta que el concepto de patrimonio históricamente estuvo vinculado con aquello que ha sido transmitido o entregado generación tras generación, una herencia colectiva cuando se habla de la humanidad, por ende afín con el pasado, con un legado que formaba parte de la identidad de los sectores a los que pertenecía, su valor tendió a ser focalizado en aquellas cuestiones materiales o inmateriales que forman parte de lo que ya no existe, dejando de lado los factores sociales, económicos, políticos y demás, que constituyen el presente, lo cual le dio una valorización diferente. (…) la idea de patrimonio se asocia a cosa de valor y al mismo tiempo comprendemos que este valor sirve para establecer algún tipo de vínculo entre individuos, es decir, que genera un nexo entre transmisor y receptor, podemos resumir diciendo, al menos, que patrimonio es un activo valioso que trascurre del pasado al futuro relacio-

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nando a las generaciones. (BALLART; TRESSERAS, 2007, p. 12)

Partiendo de lo citado, dicho vínculo que forma un nexo transmisor – receptor equivale a rol del libro frente al lector, pues es perentorio que el texto no sólo se presente para dar un conocimiento o servir de factor de “distracción”, su función debe ser despertar interrogantes en quien lo lee, crear una visión analítica en el lector, construir un lector cómplice, capaz de indagar en otros textos y otros autores (CORTÁZAR, 2005)8, acto que se le desarrolla individualmente multiplicándose a otros lectores y, evidentemente activa la característica valorativa del patrimonio estudiado realizando una suerte de ritualización del texto al traerlo al presente con una visión de futuro, no sólo desde el punto de vista de la proyección, sino como otra herencia generacional con miras a consecutivos procesos de conservación y salvaguarda. El rol del libro en su vinculación obviamente con la lectura, ha sido significativo como soporte del pensamiento como conocimiento y como ficción del ser humano, pasando por diversos procesos de transformación, como todo lo que tiene que ver con lo social, aun y cuando en la contemporaneidad se hayan levantado discusiones sobre la posible desaparición del libro en su versión física de tinta y papel. La incursión precisamente de las nuevas tecnologías producto tanto de la creatividad como de las diferentes necesidades de las sociedades, han dado al libro como soporte otra visión de alcance, su llamada virtualidad, al estar presentado por medio de los sistemas tecnológicos brinda la posibilidad de un mayor alcance en una suerte de maximización de lo masivo, pues viaja rápidamente por medio de la red, se minimiza en el espacio real en instrumentos como el CD, Tablet, así como tantos otros que pueden almacenar inclusive más de 300 libros en máquinas de tamaños y manejos bastante cómodos, todo lo cual acrecienta cada vez más la importancia de considerar al libro de estudio, de análisis, como herramienta de intereses para ser tomada en cuenta a la hora de documentar la diversidad de manifestaciones de la cultura inmaterial que los pueblos, con sus infinitos saberes, han conservado a lo largo de los tiempos, posibilitando la comprensión de las mismas lo cual conlleva a la instauración progresivamente del conocimiento y la profundización investigativa, puntos de partida para la tolerancia y respeto de la cultura del “otro” (TODOROV, 2008)9 y orgullo de la propia. Al tener develados satisfactoriamente dichos valores se llega a la autoconstitución y autoreconocimiento, bases importantes para la consciencia sobre la identidad cultural, fundamental para el desarrollo de los pueblos en vía a una verdadera integración latinoamericana.

A modo de epílogo La Recomendación sobre la salvaguardia de la cultura tradicional y popular, París 1989, habla de ella como un conjunto de creaciones producidas por las comunidades luego de haber sido heredadas por medio de un proceso de tradición oral, a partir de lo cual dichas comunidades encuentran las expresiones de su identidad cultural. Posteriormente, la UNESCO comienza a promover entre sus Estados miembros, la investigación, con la finalidad de elaborar inventarios, “crear sistemas de identificación y registro (acopio, indización, transcripción) o mejorar los ya existentes por medio de manuales, guías de recopilación, catálogos modelos, etc.” (CONSEJO NACIONAL DE LAS CULTURAS Y DE LAS ARTES, 2009, p. 11), ya que se entiende la necesidad de salvaguardar dichas manifestaciones, ahora llamadas de la cultura inmaterial, para las futuras generaciones. Muchos desde 257

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ese entonces han sido los mecanismos y las herramientas utilizadas para registrar las expresiones, detectadas o no como patrimoniales, tanto de la cultura material como de la inmaterial, no obstante, aún se adolece de una documentación abocada exclusivamente a esta última, puesto que ella precisa de tratamientos hechos a base de una investigación propensa a análisis, reflexiones e interpretaciones fundamentadas en los papeles de trabajo de aquellos que hicieron los registros bien sea fotográficos, audiovisuales, etc., quienes generalmente son especialistas o harto conocedores en el área. Con la incursión cada vez mayor de editoriales tanto públicas como privadas, se hace interesante ver al libro también como una herramienta que permite tanto registrar parte del patrimonio cultural inmaterial, es decir, los saberes de los pueblos, mitos, ritos, leyendas, música, danzas, tradiciones, como documentarlas al incluir estudios analíticos e incluso comparativos, para traerlas al presente y de ese modo abrir campos de debate, apoyando la tesis de Cortázar sobre el lector cómplice, en lo que se ha llamado acá una ritualización del patrimonio cultural. Concretamente en Venezuela, el trabajo desplegado por la editorial Biblioteca Ayacucho (actualmente adscrita al Ministerio del Poder Popular para la Cultura) desde hace 37 años al, tanto publicar obras que son parte de dicho patrimonio fundamentado en la tradición oral y el pensamiento de las diversas culturas latinoamericanas y algunas de caribeñas, como proporcionar al lector prólogos, cronologías y estudios comparados que las documentan, se levanta como una novedosa forma de salvaguardar la herencia devenida de las distintas épocas que han contribuido a la formación, instauración y transformación de la América Latina.

REFERÊNCIAS ARIZPE, Lourdes. Los debates internacionales en torno al patrimonio cultural inmaterial. IN: María Antonieta, GALLART (org.) Cuaderno de trabajo 1. Patrimonio Cultural Inmaterial. México: Consejo Nacional para la cultura y las Artes, 2008. BALLART, Josep; TRESSERAS, Jordi. Gestión del patrimonio cultural. Barcelona: Ariel, 2007. BARTOLOMÉ, Miguel Ángel. Procesos Interculturales. Antropología política del pluralismo cultural en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006. BONFIL, Guillermo. Pensar nuestra cultura. México: Alianza, 1999. BORGES, Jorge Luis. Ficciones-El Aleph- El Informe de Brodie. 2° edic. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2004. CONSEJO NACIONAL DE LAS CULTURAS Y LAS ARTES. Registrar la memoria. El Patrimonio Cultural Inmaterial en Chile. Santiago: CONSEJO NACIONAL DE LAS CULTURAS Y LAS ARTES, 2009. CRUZ, José. Una representación simbólica de Doña Bárbara. En Literatura y Cultura. Caracas: IPASME, 2007 GALLART, María Antonieta. Cuaderno de trabajo 1. Patrimonio Cultural Inmaterial. México: Consejo Nacional para la cultura y las Artes, 2008

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GARCÍA, Enrique; IGLESIAS, Eduardo; ZUMBADO, Fernando. Amanecer en Los Andes. Lima: CAFPNUD, 1997. GARZA, Mercedes de la (Comp.). Literatura Maya. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1992. GEERTZ, Clifford. Conocimiento local. Barcelona: Paidós, 1994. INSTITUTO DE PATRIMONIO CULTURAL. Patrimonio al alcance de todos. Caracas: CONAC, 2001. Ministerio del poder popular para la Cultura. (2005). Ley de Protección y Defensa del Patrimonio Cultural y su Reglamento. Disponible: http://www.ipc.gob.ve/images/stories/ley/leypatrimonio SÁBATO, Ernesto. Discurso al “Encuentro de Escritores e Investigadores de la Cultura latinoamericana” Catálogo 1974-2007. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2007. Disponible en: . Acceso en: 14 nov. 2011. UNESCO. Declaración Universal de la UNESCO sobre la Diversidad Cultural. (31ª reunión de la Conferencia General de la UNESCO). (2001, Noviembre 2). Paris, Noviembre, 2001.

Notas: (1) Se refiere, por ejemplo, a las numerosas culturas indígenas que tienen ritualizaciones en torno a la muerte tal puede ser la wayúu, de Venezuela y Colombia. O aquellas más contemporáneas tal el caso de México y la celebración del Día de los Muertos y la incorporación de la carcancha de manera prácticamente cotidiana. (2) Para mayor información leer GONZÁLEZ MUÑOZ, Jenny. How to registrer memory? Documentation, recording, archiving and preservation of intangiblecultural heritage in Venezuela. IN ZANCHETI, Silvio Mendes; SIMILÄ, Katriina (org.). Measuring heritage. Conservation performance. Olina & Rome: CECI & ICCROM, 2012, pp. 53-58. (3) Providencia Administrativa N° 012/05. Caracas, 30 de junio de 2005. Capítulo 1 “Del registro general del patrimonio cultural”. (4) Dichas fallas tienen que ver con la documentación que acompaña al registro de diversos patrimonios inmateriales, concretamente encontradas por la autora del presente ensayo, en catálogos del IPC, donde personas solo son registradas con su nombre, oficio y una brevísima reseña que no indica de modo alguno la causa por la cual son consideradas patrimonio vivo; lo propio se ha señalado con la colección fotográfica de los países del ALBA, perteneciente a CEDIVER, que fue levantada por la autora en un trabajo de documentación utilizando las herramientas tecnológicas de la institución, pero dándoles el carácter de cultura inmaterial a los registros, ya que el archivo fotográfico solo tenía informaciones técnicas, descartando el carácter simbólico de las ceremonias, danzas, procesiones, rituales, y demás. Para mayor información se sugiere consultar el artículo GONZALEZ-MUÑOZ, Jenny. How to resgistrer memory? Documentation, recording, archiving and preservation of intangible cultural heritage in Venezuela. IN: ZANCHETI, Silvio Mendes; SIMILÄ, Katriina (org.) Measuring Heritage. Conservation performance. Olinda & Rome: CECI & ICCROM, 2012, pp. 53-58. (5) En honor a la Batalla de Ayacucho, hecho cumbre en la historiografía venezolana. Sus antecedentes se instalan en el contacto existente entre Ángel Rama y la obra del escritor Rufino Blanco Bombona, quien en 1924, en ocasión del primer centenario de dicha batalla, incluyó en su editorial una colección que tituló “Biblioteca Ayacucho”, para editar solo temas de Historia. 259

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(6) Disponible en línea en www.bibliotecayacucho.gob.ve (7) Lo propio se puede acotar sobre temáticas relacionadas con las diferentes manifestaciones populares de los pueblos afroamericanos, sobre todo en los casos de Cuba, República Dominicana y Brasil. (8) La tesis de Julio Cortázar explicitada en Rayuela, mediante sus famosas morellianas, en la que expresa que dicha novela está escrita para un lector que se haga cómplice del escritor y no para un lector-hembra que sólo se conforme con leer y no vaya más allá, no busque, no haga una indagación. Para Cortázar, el propósito de la literatura es transmitir, pero precisa de un trabajo en conjunto con el lector, quien debe rebatir e interpretar, en fin, ser hermenéutico. Dice Morelli, respeto a la novela: “no engaña al lector, no lo monta a caballo sobre cualquier emoción o cualquier intención, sino que le da algo así como una arcilla significativa, un comienzo de modelado, con huellas de algo que quizá sea colectivo, humano y no individual. Mejor, le da como una fachada, con puertas y ventanas detrás de las cuales se está operando un misterio que el lector cómplice deberá buscar (de allí la complicidad) y quizá no encontrará (de ahí el compadecimiento). Lo que el autor de esta novela haya logrado para si mismo se repetirá (agigantándose, quizá, y eso sería maravilloso) en el lector cómplice. En cuanto al lector-hembra, se quedará con la fachada y ya se sabe que las hay muy bonitas, muy trompe l’oeil, y que delante de ellas se pueden seguir representando satisfactoriamente las comedias y las tragedias del bonnête homme”. (CORTÁZAR, Julio. Rayuela. 2° edic. Caracas: Biblioteca Ayacucho. 2005, p. 454). (9) Tzvetan Todorov, al referirse a los sucesos acaecidos con los pueblos originarios del Abya Yala (término de origen karibe-kuna, aceptado actualmente por pueblos indígenas latinoamericanos para referirse a la territorialidad que va desde México hasta la Patagonia, y que puede ser traducido como “continente en expansión”) a partir de la llegada de Cristóbal Colón en el siglo XV, hace una serie de análisis sobre dichas problemáticas, una de ellas se relaciona con la visión de los colonizadores y más específicamente del propio Colón cuando se encuentra frente a los llamados indígenas, donde la identificación se confunde con el asimilacionismo y es por ello que los ve iguales, no como una horizontalidad que se devela ante él, sino como idénticos entre si, es decir, los convierte en una especie de objetos, de allí las consecuentes relaciones con “sin alma”, “sin inteligencia”, “salvajes”, y demás. En este caso, el respeto a la cultura del otro, del que no se conoce por ser diferente es lo que establece la identidad, o sea, de la identidad nace de la diferencia, pues es solo posible conocerse cuando se acepta que existen otros diferentes. Se recomienda leer TODOROV, Tzvetan. La conquista de América. El problema del otro. 2° edic. México: Siglo XXI. 2008.

Jenny González Muñoz * Dra. Cultura Latinoamericana y del Caribe- Instituto Pedagógico de Caracas – Universidad Pedagógica Experimental Libertador - Venezuela Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural – Universidade Federal de Pelotas –Brasil

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6. TECNOLOGIA SOCIAL, DESENVOLVIMENTO E CIDADES INTELIGENTES

JORNADAS MERCOSUL

BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Silvia Adriana da Silva Soares* Rosa Maria Castilhos Fernandes**

INTRODUÇÃO É por meio de atividades como o brincar que as crianças aprendem novos conhecimentos e como elas realmente são. A partir de determinadas situações aprendem novas habilidades e experimentam diferentes vivencias. Além das brincadeiras, o brinquedo é considerado um complemento imprescindível na formação da criança e, portanto parte dos processos pedagógicos da educação infantil. No Brasil, os aspetos legais que tratam do entendimento em torno da atenção educativa às crianças foi alterado, pois a compreensão sobre a educação infantil é aquela oferecida por instituições de ensino e que visa o desenvolvimento integral da criança na faixa etária dos zero aos cinco anos de idade, constituindo-se na primeira etapa da educação básica. Nessa perspectiva, as necessidades de cuidar/educar articulam-se, rompendo com a concepção anterior, focada apenas no cuidar. Desse modo, as legislações brasileiras vêm acompanhando o avanço do debate em torno dos benefícios da educação infantil ao desenvolvimento da criança. A Constituição Federal de 1988 reconhece, no seu artigo 6º, a educação como um dos direitos sociais, como pode-se observar no artigo 208 que garante o “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (BRASIL, 1988, p. 138). Neste contexto normativo, destaca-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8. 069/90 de 13 de julho de 1990), que no art. 16, sobre o direito à liberdade compreende, entre outros, de acordo com o inciso IV- “brincar, praticar esportes e divertir-se” faz parte do desenvolvimento infantil. Associar este direito de brincar com o direito à educação infantil, nos remete a reflexão sobre a importância do papel dos educadores, no sentido de desencadearem projetos pedagógicos que reconheçam o brincar como um instrumento que contribui para o desenvolvimento integral da criança. Para tratar sobre a temática, este artigo está estruturado em duas partes: na primeira faz-se uma reflexão teórica sobre o brincar e sua importância na construção do conhecimento para o desenvolvimento infantil; na segunda, discorremos sobre a experiência pedagógica vivenciada no Projeto “Brincando, Construindo e Vivendo” que foi desenvolvido numa escola de educação infantil, com uma turma de pré-escola I, no município de Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, as crianças tinham de 04 e 05 anos de idade.

O Brincar: uma categoria teórica no âmbito pedagógico Inicialmente é preciso reconhecer que o lúdico exerce papel importante na vida das crianças

BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

sendo possível reunir o brincar e o educar, desmistificando o papel do brincar, que não é apenas um mero passatempo, mas sim um valioso recurso pedagógico na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças. A brincadeira é algo que pertence à criança, através do brincar experimenta, organiza-se, regula-se, constrói normas para si e para o outro. Ela cria e recria, a cada nova brincadeira, o mundo que a cerca. O brincar é uma forma de linguagem que a criança usa para compreender e interagir consigo, com outro e com o mundo que a cerca. A criação de uma situação imaginária não é algo gratuito na vida da criança; pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação em relação às restrições situacionais. Para Buscaglia, a criança aprende, captando as habilidades pelos dedos das mãos e dos pés, para dentro de si. Absorvendo hábitos e atitudes dos que a rodeiam, empurrando e puxando o seu próprio mundo. Assim a criança aprende, mais por experiência do que por erro, mais por prazer do que pelo sofrimento, mais pela experiência do que pela sugestão e a dissertação, e mais por sugestão do que por direção. Também aprende pela afeição, pelo amor, pela paciência, pela compreensão, por pertencer, por fazer e por ser. (BUSCAGLIA, apud, MOLFETT, 1998, p. 165).

Com a forma lúdica de brincar com o corpo ou com os materiais que estão ao seu alcance, à criança, ainda bebê, tem a possibilidade de pegar, bater, sugar, agarrar, e é através do outro, pela sua voz, seu gesto, seu toque, sua palavra ou canção que o bebê será estimulado a perceber, descobrir e conhecer de forma prazerosa o mundo que o rodeia. Se a criança for ajudada de modo conveniente, ela irá desenvolver a linguagem, o andar e o equilíbrio. Tanto é verdade que, através das mãos estabelecemos relações com meio externo, adquirindo e manuseando elementos dispostos no ambiente que nos despertam interesse, o movimento também contribui para o desenvolvimento psíquico e intelectual. Isso vem ao encontro da idéia da educadora: O ritmo do movimento faz parte do indivíduo, é uma característica inata. (MONTESSORI, 1965, p. 106).

Os jogos e brincadeiras vão possibilitando às crianças a experiência de buscar coerência e lógica nas suas ações, elas passam a pensar sobre suas ações nas brincadeiras, sobre o que falam e sentem, não só para que os outros possam compreendê-las, mas também para que continuem participando da brincadeira. A criança nos primeiros anos de vida faz aquisições importantes desenvolvendo diferentes comportamentos do mais simples aos mais complexos como diferenciação e construção do seu eu, desenvolvimento da autonomia, da socialização, da coordenação motora, entre outros. A interação com os adultos, com outras crianças e o brincar contribuirão para o processo de socialização, ajudando-a a perceber os papéis familiares e sociais e as diferenças de gênero, a compreender e aceitar regras, a controlar sua agressividade, a discernir entre fantasia e realidade, a cooperar, a competir e compartilhar, dentre outras habilidades para o convivo social (CONANDA, 2006, p. 26).

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No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil encontramos a seguinte concepção sobre brincar: Brincar é uma das atividades fundamentais para o desenvolvimento da identidade e da autonomia. O fato da criança, desde muito cedo, poder se comunicar por gestos, sons e mais tarde representar determinado papel na brincadeira faz com que ela desenvolva sua imaginação. Nas brincadeiras, as crianças podem desenvolver algumas capacidades importantes, tais como atenção, a imitação, a memória, a imaginação. Amadurecem também algumas capacidades de socialização por meio da interação e da utilização e experimentação de regras e papéis sociais. (BRASIL, 1998, p. 21).

Brincando a criança experimenta, descobre, inventa, exercita, enfim o brincar auxilia no desenvolvimento de todas as aprendizagens. O brincar estimula a curiosidade, a iniciativa e a autoconfiança, pode proporcionar o desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da concentração. Brincar e indispensável para a saúde física, mental e intelectual da criança. É uma arte um dom natural que, quando bem cultivado contribuirá para a eficácia e o equilíbrio tanto no presente quanto no futuro da criança. Através de jogos e brincadeiras simples como: pular corda, jogar amarelinha, jogar bola, brincar de roda, de pega-pega, virar cambalhota, cantar músicas, caçada ao tesouro, contação de histórias, confecção de bijuterias, confecção de jogos. Como já foi falado, são brincadeiras simples, mas que podem incidir na evolução das crianças em suas aprendizagens. Assim é importante ressaltar que a criança a partir do momento que começa a frequentar outros contextos sociais além da família, como na educação infantil, por exemplo, a criança tem seus referenciais sociais e culturais ampliados. É, então, “nesse período que ela constrói novos relacionamentos e é influenciada por novos estímulos: educadores, companheiros da mesma idade, livros, brinquedos, brincadeiras e mídia” (CONANDA, 2006). Desse modo, os educadores da educação infantil, estão desafiados a reinventar brincadeiras cotidianamente, neste processo de formação das crianças.

O relato de uma experiência: o projeto “brincando, construindo e vivendo” Nesta parte do texto publicizamos a experiência pedagógica vivenciada no Projeto “Brincando, Construindo e Vivendo”. Este projeto teve como objetivo oportunizar, através de brincadeiras, o desenvolvimento dos sentidos, adquirir habilidades para usar as mãos, reconhecendo objetos e suas características, texturas, formas, tamanhos, cores e sons; favorecer a conscientização para a necessidade de aprender com atividades que desafiem suas potencialidades; despertar nos alunos o interesse pela brincadeira, pois é através dela que a criança entra em contato com o ambiente, relaciona-se com o outro, desenvolve o seu físico, a sua cognição, captando habilidades e absorvendo hábitos e atitudes, tornando-se ativa, autoconfiante e curiosa. Uma das primeiras atividades realizadas com as crianças foi a contação da história dos “Três porquinhos”, de Bia Villela. Para contá-la levamos um avental de feltro e confeccionamos os personagens da história. Eles gostaram tanto da novidade que tivemos que contar mais duas vezes a mesma história. Depois trabalhamos com eles a reconstrução da história com diversos materiais como: tecido,

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jornal, folhas de papel coloridas, tesoura, giz de cera, cartolina. Com o exercício de pintar, recortar e colar, foi possível observar a concentração, a motricidade fina ao trabalharem na construção dos seus personagens e cenários, e se conseguiam interpretar a história, através da reprodução, visando à criatividade e coerência dos fatos. A partir da história dos “Três porquinhos”, (Bolinha, Quadrado e Triângulo) começamos a trabalhar com as crianças formas geométricas, quantidade e algumas cores. Introduzimos o tema, promovendo um passeio pelos corredores e pátio da escola para que as crianças observassem a presença das várias formas geométricas no prédio, nas salas, nos móveis da escola. Conversamos com a turma sobre as diversas formas de objetos que encontramos no dia-a-dia no supermercado, na farmácia e até em nossa própria casa, como latas de refrigerantes, embalagens de creme dental, o prato que usamos para comer, etc. No pátio montamos com eles um circuito com as formas geométricas pelas quais tinham que passar por dentro de círculos, triângulos, quadrados e também outros obstáculos, como colchonetes para virar cambalhotas, trilhas que tinham que percorrer em cima de uma corda em linhas retas e curvas e obstáculos para saltos. Em sala de aula, confeccionamos com o auxílio deles um jogo de bingo e um dominó com formas geométricas. Depois que o jogo ficou pronto e começamos a jogar foi muito divertido, pois nunca tinham jogado dominó. No jogo do Bingo, conforme eram sorteadas as formas geométricas, as quantidades e as cores eles marcavam direitinho, mas logo levantavam a cartela e se abanavam, colocavam na boca e já não sabiam mais o que tinham marcado anteriormente. Apesar disto tudo pudemos notar que alguns, quando querem, sabem seguir regras e levam muito a sério a brincadeira, sabendo aproveitar as oportunidades para irem além do que já sabem. Ao longo do desenvolvimento do projeto notamos que na sala de aula das crianças não havia nada que pudesse identificar cada um deles, então resolvemos confeccionar um cartaz com seus nomes. Conversamos com eles e explicamos que ali estavam escritos os seus nomes e ao lado do nome, cada um, junto com a professora, colaria a sua foto, para que conhecessem como era escrito o próprio nome e assim começassem a fazer distinção entre desenho e escrita. O cartaz depois de pronto ficou fixado na parede. No outro dia levamos crachás com os nomes das crianças escritos e espalhamos sobre uma mesinha, onde eles tinham que comparar os nomes dos crachás com o nome ao lado da sua foto e pegar o crachá com o seu nome. No terceiro dia que estávamos fazendo esta brincadeira todos já conseguiam identificar corretamente o seu nome. Outra atividade proposta foi a da caixa temática montada por nós e que demos o nome de “Brinquemonte”. Foi formado um semicírculo pelos alunos e a professora no centro manuseava a caixa temática, estimulando a imaginação das crianças, propondo que cada uma fosse até lá mexer na caixa. A partir desse momento começamos a questionar as crianças sobre o que será que havia dentro da caixa. Após todos mexerem na caixa, e após já terem dado várias sugestões possíveis do que poderia existir dentro da mesma, então abrimos para os alunos verem o conteúdo da caixa e continuamos a instigá-los sobre o que fazer com o material encontrado. Depois de muitas sugestões, propomos a eles que confeccionassem uma pulseira para ser dada de presente à mamãe, pois estávamos perto do dia das mães. Eles adoraram a idéia de eles mesmos poderem fazer um presente para suas mamães e realmente se dedicaram e se empenharam na confecção de um presente bem lindo. Foram trabalhadas outras atividades como: caçada ao tesouro, onde escondemos no pátio uma

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caixa com várias guloseimas e íamos dando pistas para as crianças procurarem. Primeiro em círculo, sentados todos no chão, começamos a questioná-los: alguém conhece a história de Peter Pan? Já ouviram falar do Capitão Gancho? Alguns responderam que não, outros responderam que sim. Então começamos a contar uma história: “Era uma vez, um pirata muito famoso chamado Capitão Gancho. Ele era um pirata que conseguiu uma grande fortuna, ele gostava de guardar a sua fortuna em baús de madeira.” Um dia ele resolveu enterrar suas riquezas.... e vocês sabem onde ele resolveu esconder o seu tesouro? Aqui na escola! Onde será que ele escondeu o tesouro? Será que foi na pracinha? No pátio? Mas foi aqui na escola! O que vocês acham de a gente procurar este tesouro? Também fizemos massinha de modelar caseira, com farinha, água, sal, óleo e corante comestível, a qual todos ajudaram a fabricar para depois brincar. Brincamos de jogar amarelinha, jogar boliche, pulamos corda, brincamos de roda, de casinha e cantamos. Eles ainda fizeram um cartão de cartolina em tamanho A4, todo pintado com tinta guache e enfeitaram com gliter em pó brilhoso. A mensagem que foi colocada dentro do cartão eles mesmos recortaram e colaram, o cartão foi dado de presente para mamãe junto com a bijuteria (pulseira) que já tinham feito. Foram feitas muitas atividades nas quais as crianças tinham que produzir e colaborar na construção das brincadeiras, mas percebemos que gostavam muito do que estavam fazendo e se divertiram muito também. As atividades desenvolvidas foram avaliadas durante todo o processo de ensino-aprendizagem, a cada dia percorrido. Levou-se em conta a participação, o trabalho em grupo, o interesse, a criatividade, a desinibição, o gosto pela leitura. Se eles conseguiram estabelecer relações entre a realidade e a prática, se houve desenvolvimento na evolução da motricidade, se conseguiram incluir novas expressões corporais em seu repertório. Por meio da observação e de registros avaliamos se houve avanços significativos no desenvolvimento das crianças e na construção de novos conhecimentos. Ao longo do desenvolvimento do projeto surgiram muitas dúvidas sobre a forma como trabalhar, se as brincadeiras e atividades propostas seriam boas, se realmente seriam atingidos os objetivos. Por isto, no decorrer do desenvolvimento do projeto os ajustes da versão inicial, foram fundamentais para que os objetivos fossem alcançados.

Reflexões finais A experiência relatada neste artigo demonstra o quanto é possível por meio da brincadeira, proporcionar a construção do conhecimento e incidir no desenvolvimento infantil de forma saudável. Além disto, brincar é um direito de toda criança e cada vez mais a educação infantil precisa planejar as atividades a serem desenvolvidas neste ciclo de vida. No momento da brincadeira as crianças se apropriam dos elementos da realidade e dão a eles novos sentidos e novos significados. Brincando a criança experimenta, descobre, inventa, exercita, enfim o brincar auxilia no desenvolvimento de aprendizagens. O brincar estimula a curiosidade, a iniciativa e a autoconfiança, pode proporcionar o desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da concentração. Brincar e indispensável para a saúde física, mental e intelectual da criança.

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BRINCAR: UM DIREITO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

REFERÊNCIAS BRASIL, MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular para Educação Infantil. Brasília: MEC SEF, 1998. BUSCAGLIA, Leo. Vivendo, amando, aprendendo. 22. ed. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 1998. Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes-Conanda. Plano Nacional de Promoção, Proteção e defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, 2006. MONTESSORI, Maria. A Descoberta da Criança. São Paulo: Flaboyant, 1965. PIAGET, Jean. Para onde vai à educação? Rio de Janeiro, Olympio – Unesco, 1973. PROJETO educação infantil. Brincar facilita o aprender. Disponível em: http://www.scribd.com/ doc/6883655/Projeto-Educacao-Infantil: Acesso em 18 de março de 2010. SOARES, Silvia Adriana da Silva. Projeto Brincando, Construindo e Vivendo. Curso de Pedagogia, disciplina de Estagio Supervisionado II. Canoas: Unilasalle, 2010. ZABALA, Antoni. A avaliação. In ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre. Atmed, 1998.

* Graduada em Pedagogia pelo Unilasalle (2011). Atua como secretária do Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário La Salle. ** Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987), mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998) e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) com estágio de doutorado sanduíche no Instituto de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/ Portugal. Professora e Pesquisadora do Mestrado de Memória Social e Bens Culturais da UNILASALLE e Docente colaboradora do Mestrado de Educação da UNILASALLE.

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SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR João Bosco Torres Santos * Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro ** Rosa Maria Castilhos Fernandes ***

INTRODUÇÃO O Brasil é um país de contrastes. Apresenta-se como um dos maiores produtores de alimentos do mundo e, em contrapartida, também registra um alto nível de insegurança alimentar e desperdício de alimentos. Assim, muitos estudiosos consideram que o país necessita um programa contra o desperdício e a favor da segurança alimentar, envolvendo os governos federais, estaduais e municipais, as empresas e a sociedade em geral, na busca de alternativas para o enfrentamento desta questão social. Abordar o tema segurança alimentar, significa considerar que se trata de uma temática bastante ampla, pois envolve vários aspectos, que vão desde a promoção de novos comportamentos alimentares e saudáveis, até a questão da vigilância sanitária. Com o objetivo de estimular a mudança nas práticas de consumo e nos hábitos alimentares dos estudantes, de seus familiares e da comunidade, contribuindo, consequentemente, com o desenvolvimento da política de segurança alimentar nacional, propõe-se a realização de um Projeto de Educação Alimentar em Escolas Municipais da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Trata-se de um projeto social que pode ser realizado por meio de parcerias entre a Secretaria Municipal de Educação, instituições educacionais públicas e privadas e a sociedade civil de um determinado município. O processo poderá ser desenvolvido em três etapas, iniciando com um ciclo de palestras para a comunidade escolar (alunos, professores, entre outros), seguido de uma oficina destinada as merendeiras e compradores dos alimentos para as escolas do município e os familiares dos estudantes e por último, uma mostra de educação alimentar para toda a comunidade escolar e seus convidados. O artigo está sistematizado em duas partes: a primeira contextualiza a temática no cenário brasileiro e discorre sinteticamente sobre os avanços no campo da segurança alimentar; a segunda, apresenta uma proposta de um projeto social denominado: “Projeto de Educação Alimentar”, que pode ser desenvolvido em escolas de diferentes municípios do Estado.

Segurança Alimentar e Desenvolvimento O Brasil, segundo Araujo, Rizzo e Zambon (2011), é um dos maiores produtores de grãos, carnes, frutas, hortaliças e condimentos, tendo uma agricultura forte o suficiente para atender as necessidades internas. Em termos de exportação de alimentos, é a quarta maior potência do mundo. No entanto, outras duas questões contemporâneas, observadas no cotidiano, intrigam os autores deste artigo: a insegurança alimentar do povo brasileiro e o desperdício de alimentos. A política de segurança alimentar para o Brasil, por meio do Programa Fome Zero, difere

SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR

o termo “fome” do conceito de “segurança alimentar e nutricional”. Para o Programa, enquanto a “fome” se refere à sensação corriqueira de vazio no estômago, um problema social ligado à pobreza e às calamidades como a seca, a “segurança alimentar” é empregada no sentido de proporcionar a todos os cidadãos e cidadãs o acesso a uma alimentação: digna (alguém que revira latas de lixo para obter comida pode não ser subnutrido, mas não tem segurança alimentar), com regularidade (uma pessoa que depende de doações ocasionais para matar a fome não tem segurança alimentar), qualidade (um office-boy que todos os dias almoça um cachorro-quente na rua não passa fome mas não tem segurança alimentar) e quantidade (uma família que não tem dinheiro para comprar comida para todos os seus membros, também não tem segurança alimentar). Segundo dados do IBGE, por meio do estudo de segurança alimentar realizado em 2009, pelo menos 11,2 milhões de brasileiros estavam sujeitos a não comer por falta de recursos financeiros. Segundo dados do Programa Fome Zero, a fome e a insegurança alimentar, no Brasil, não são causadas pela falta de alimentos e sim pela falta de dinheiro para comprá-los. Nesse sentido, apresentam dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura afirmando que o Brasil tem uma disponibilidade de alimentos que equivale a 2960 kcal/dia por pessoa muito acima do mínimo recomendado de 1900 kcal/dia. Por outro lado, uma em cada dez pessoas ingere menos de 1650 kcal/dia, em média. Outro dado, da organização não governamental Instituto Cidadania, estimou a população em situação de insegurança alimentar em 44 milhões de pessoas em 1999 e, em 2001, de 46 milhões. Já o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) chegou a um total de 57 milhões de pessoas pobres em 1999, utilizando como referência a linha de pobreza baseada na renda total per capita. Assim, o Programa Fome Zero foi instituído no sentido de combater a fome e garantir a segurança alimentar e nutricional da população, atacando as causas estruturais da pobreza. Outra relevante iniciativa, no Brasil, é a criação do Programa Bolsa Família (PBF) que é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País. O PBF integra o Plano Brasil Sem Miséria (BSM), que tem como foco de atuação os 16 milhões de brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70 mensais, e está baseado na garantia de renda, inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos (MDS, 2012). Na esteira deste marco legal, no campo da segurança alimentar, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN- Lei nº11.346 de 15 de setembro de 2006), cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. De acordo com a LOSAN cabe ao poder público assegurá-lo, avançando na institucionalização de uma política de segurança alimentar e nutricional. As ações, que vêm sendo implementadas em diferentes territórios do país pelo do MDS, têm por objetivo garantir aos cidadãos em insegurança alimentar e nutricional o acesso aos alimentos e à água em quantidade, qualidade e regularidade suficientes, desenvolvendo, para tanto, iniciativas estruturantes e emergenciais por meio de programas e projetos de apoio à produção, distribuição e consumo de alimentos (MDS, 2012). Tratar sobre segurança alimentar, nos remete a discussão sobre o desperdício dos alimentos. Estudos apontam que dos alimentos que os brasileiros compram, 1/3 vão para o lixo (ARAUJO, RIZZO E ZAMBON,2011). Talvez a riqueza do país em termos de produção alimentícia, como dita no início do texto, faça com que os cidadãos não percebam a prática do desperdício cotidiano. Assim, o Brasil é reconhecido como um dos países que mais desperdiçam alimentos no planeta. Nesse sentido, 270

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três pesquisas realizadas pela Fundação Getúlio Vargas, EMBRAPA e Instituto Akatu reforçam essa linha de raciocínio: a Fundação Getúlio Vargas aponta que o índice de desperdício de alimentos no Brasil pode chegar a 26,3 milhões de toneladas por ano; A EMBRAPA destaca que 14 milhões de toneladas de frutas, hortaliças e grãos vão para o lixo todos os anos e o Instituto Akatu afirma que são desperdiçados 22 milhões de toneladas por ano, o que seria suficiente para alimentar 30 milhões de pessoas, aproximadamente, gerando um desperdício de R$ 4 bilhões por ano (ARAUJO, RIZZO E ZAMBON, 2011). Diante deste cenário quais seriam, então, as causas de tanto desperdício de alimento no Brasil? Os motivos para tamanho desperdício, antes que os alimentos cheguem às mãos do consumidor, são os mais variados, e isso se deve à complexidade do mercado e da cadeia produtiva. Segundo Araujo, Rizzo e Zambon (2011) fatores como: calor em excesso, falta de umidade, manuseio inadequado, embalagens inapropriadas, transporte e desqualificação para o reaproveitamento e processamento dos alimentos, são evidenciados. Nesse sentido, citam um exemplo recente, acontecido na região sul do Estado de Minas Gerais, onde foi presenciada uma cena, em que toneladas de batatas eram descartadas no lixo ou viravam ração para o gado. O motivo, segundo a Associação dos Bataticultores do Sul de Minas Gerais, é que a região produz, em média, 320 mil toneladas de batata/ano e, em 2011, serão produzidos de 360 mil a 380 mil toneladas, o que ocasiona a queda dos preços. Os autores dizem, ainda, que além do esquema de produção, distribuição e comercialização, também, ocorre muito desperdício por parte dos consumidores. Nas 10 principais capitais do país, cada habitante desperdiça 37 quilos de alimentos por ano, ou seja, 2 quilos a mais do que se consome. Acrescentaríamos também neste contexto, a falta de interesse político e os jogos do mercado para garantir a lógica do consumo, o que reforça os ideários competitivos de uma sociedade que busca o crescimento econômico em detrimento do desenvolvimento social. Ao contrário desta lógica, a implementação histórica com projetos de desenvolvimento tem demonstrado que a capacidade de auto-organização local, a riqueza do capital social, a participação cidadã e o sentimento de apropriação do processo pela comunidade são elementos vitais em sua consolidação (DAWBOR, 2008). “O desenvolvimento não é, meramente, um conjunto de projetos voltados ao crescimento econômico. É uma dinâmica cultural e política que transforma a vida social” (DAWBOR, 2008, p.5). É com base neste entendimento que acreditamos em um modelo de desenvolvimento que ocorra por meio da implementação de um conjunto de políticas, programas e projetos sociais que possam impactar a realidade, por meio do qual o poder público, com a participação da sociedade civil organizada, desenvolvam ações com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada.

A Segurança alimentar no âmbito escolar: uma proposta de projeto Os estudos em torno da temática segurança alimentar apontam que o Brasil necessita de um conjunto de programas contra o desperdício, envolvendo os governos federais, estaduais e municipais, as empresas e a sociedade na construção de projetos que incidam não somente na mudança da cultura e dos hábitos alimentares, como também na melhoria das condições de vida da população. Uma das alternativas está em realizar campanhas de conscientização familiar e no âmbito educacional, que priorize o aprendizado em adquirir, manipular e consumir alimentos de maneira adequada e, também, 271

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investir em infraestrutura, melhorando a produção, distribuição e comercialização dos alimentos. Em diferentes cidades da região metropolitana de Porto Alegre, essa realidade não é diferente. Cotidianamente, nas feiras livres, que acontecem nos bairros da cidade, ou nos próprios mercados municipais, nos domicílios particulares, nos restaurantes, e por que não dizer nas escolas, pode-se observar o desperdício de alimentos, o que sugere que a população ainda desconhece as consequências dessa prática e a própria política de segurança alimentar nacional que vem sendo implementada pelo Governo Federal. Para construção desta proposta de projeto, toma-se como referência a reflexão sobre a importância da segurança alimentar no âmbito escolar com o intuito de provocar cada vez mais este debate nas escolas do país. Com esta intenção surge, como resultado de um processo de formação sobre elaboração e monitoramento de Projetos Sociais, a ideia de desenvolver um Projeto de Educação Alimentar, com o intuito de contribuir com a política de segurança alimentar nacional e local, fomentando bons hábitos entre os membros da comunidade escolar, com ênfase em três pontos: aquisição consciente dos alimentos, a manipulação e reaproveitamento dos alimentos e hábitos alimentares favoráveis à saúde e bem-estar. Projetos sociais possuem uma estrutura de planejamento com definição de objetivos, metas, cronograma, previsão de recursos e indicadores de avaliação, bem como, instrumentos para o monitoramento e avaliação, que são fundamentais para incidir em diferentes realidades. No caso desta proposta, consideram-se as escolas como espaços democráticos que permitem a educação integral aqui entendida como sendo aquela que “visa à formação e o desenvolvimento humano global” (ANTUNES; PADILHA, 2010, p. 24). A compreensão de uma escola integral e cidadã prepara pessoas para que no seu processo de humanização, tenham acesso a um repertório sócio cultural que as prepare para o diálogo, para conviver com a diferença, com a ética e com valores sustentáveis. Entretanto, esta não é uma tarefa somente dos educadores, mas de diferentes atores sociais e profissões. Por exemplo: “ uma merendeira que mostra aos alunos de onde vêm os alimentos, o tempo que leva para preparar e como ela faz “(ANTUNES; PADILHA, 2010, p. 24) podem incidir nas mudanças de atitudes dos alunos de uma escola, visando à segurança alimentar. Acredita-se que projetos sociais que tratem da segurança alimentar, se constituem em ações que possam ser o princípio de uma mudança coletiva que se estenda além dos muros da instituição escolar, abraçando as famílias e as comunidades dos municípios. Neste sentido, o Projeto Educação Alimentar em Escolas Municipais tem como objetivo geral: estimular a mudança nas práticas de consumo e nos hábitos alimentares dos estudantes, de seus familiares e de outros membros da comunidade das escolas municipais da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS, contribuindo com o desenvolvimento da política de segurança alimentar nacional. Como objetivos específicos: refletir com a comunidade escolar sobre a importância de uma política de segurança alimentar, cadeia produtiva e uso consciente dos alimentos; melhorar a qualidade da merenda escolar e da alimentação familiar dos estudantes; demonstrar, de forma prática e reflexiva, por meio de uma Mostra de Educação Alimentar, a viabilidade de se realizar uma aquisição, reaproveitamento e consumo alimentar adequado, bem como os resultados alcançados com essa prática no cotidiano. Considera-se que da população beneficiada (direta e indireta): podem fazer parte a comunidade de um 272

João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro, Rosa Maria Castilhos Fernandes

Município, merendeiras, alunos, professores, familiares e outros atores sociais. A ideia do Projeto de Educação Alimentar é de cunho sócio educacional e sua operacionalização pode se dar em três etapas, a saber: período de sensibilização da comunidade escolar, um período de realização das ações e um período final de edição de material e elaboração de relatório. O período de sensibilização da comunidade escolar tem como objetivo despertar a atenção às temáticas propostas e estimular a participação de todos (das merendeiras, professores, estudantes e de seus familiares) no projeto. Será realizado por meio de cartazes informativos, murais e exposição de vídeos sobre o desperdício alimentar, sobre a prática de alimentação saudável e política de segurança alimentar, a ser exibido nos intervalos das aulas. Esta etapa prevê a realização de três palestras interdisciplinares com a comunidade escolar (alunos e seus responsáveis, merendeiras e demais interessados), ambas abordando os três eixos temáticos, a saber: Alimentação saudável: Segurança alimentar e cadeia produtiva de alimentos; Alimentação saudável: aquisição, conservação, manipulação e reaproveitamento dos alimentos no cotidiano; Alimentação saudável: hábitos alimentares favoráveis à saúde e ao bem-estar. O período de realização constará de três etapas: ciclo de palestras, oficinas e mostra de educação alimentar. Essas etapas estão relacionadas, pois, o objetivo de uma é subsidiar a outra, promovendo ao final uma mudança no comportamento da comunidade acadêmica de Canoas, no que se refere às práticas conscientes de aquisição, conservação e consumo de alimentos, favorecendo a saúde e o bem-estar. Nessa etapa, podem ser desenvolvidas duas ações paralelas: as merendeiras do colégio e os responsáveis pelos estudantes participarão de uma oficina focando a orientação sobre a aquisição, manipulação, reaproveitamento e produção de alimentação favorável à saúde e bem-estar, a partir de um cardápio voltado para a perspectiva de segurança alimentar; já os estudantes realizarão pesquisas e elaborarão um painel para ser exposto na Mostra de Educação Alimentar. Na 3ª etapa, como culminância do projeto, propõe-se a realização de uma Mostra de Educação Alimentar, com o objetivo de demonstrar a viabilidade de se realizar uma aquisição, reaproveitamento e consumo alimentar adequado, bem como os resultados alcançados com essa prática. Os estudantes poderão expor seus painéis temáticos e os responsáveis dos estudantes e as merendeiras elaborarão uma refeição para todos os participantes. Os parceiros do projeto de Educação Alimentar contribuirão disponibilizando profissionais e recursos materiais para a realização das palestras, oficinas e mostra. Entre os profissionais que podem envolver-se com as ações destacam-se: nutricionistas, profissional de educação física, engenheiro de alimentos, assistente social e gastrônomo.

Reflexões finais Para finalizar, é importante destacar que a implementação de um projeto requer a participação de todos os atores sociais envolvidos e beneficiados com as ações propostas. Requer a clareza das metas a serem atingidas e dos indicadores quantitativos e qualitativos que constituirão a moldura de monitoramento e avaliação do Projeto. No entanto, a intenção com este artigo, foi a de socializar a 273

SEGURANÇA ALIMENTAR: UM PROJETO SOCIAL NO ÂMBITO ESCOLAR

ideia, como forma de disseminação do conhecimento para que possa ser reaplicado e implementado de acordo com as especificidades locais. Portanto, esse artigo apresentou parte de um Projeto que foca a temática segurança alimentar e que reconhece a importância do direito de todas as pessoas ao acesso regular e permanente a uma alimentação saudável, ou seja, a alimentos de qualidade nutricional e higiênico-sanitária adequadas e em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais (CONSEA, 2007) Nesse cenário, a falta de planejamento que ocasiona a compra excessiva de alimentos, o armazenamento inapropriado e o reaproveitamento dos alimentos, são os principais fatores que incidem nesse desperdício. Assim, de modo geral, tais questões nos levam a considerar que as duas principais causas da insegurança alimentar do brasileiro são: a falta de dinheiro para alimentar-se e o desperdício de alimentos. Por isto, é preciso que cada vez mais sejam reinventadas iniciativas de práticas alimentares promotoras de saúde, respeitando a diversidade cultural e social, econômica e ambientalmente sustentável; e também, iniciativas que combatam a vulnerabilidade alimentar como a fome, a obesidade, as doenças associadas à má alimentação e ao consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudicial à saúde (CONSEA, 2007).

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ângela; PADILHA, Paulo Roberto. Educação Cidadã, Educação Integral: fundamentos e práticas. São Paulo: Ed.L. 2010. ARAUJO, Camila Brunassi de; RIZZO, Marçal Rogério; ZAMBON, Marcela Machado. Desperdício de alimentos no Brasil. Jornal O Paraná. Cascavel/PR – 2011. Nº 10.586 - Ano 35 – página A2. Disponível em: h•p://www.ar•gos.com/ar•gos/sociais/economia/desperdicio-de-alimentos-no-brasil 17542/ar•go/. CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CONSEA). III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: por um desenvolvimento sustentável com soberania e segurança alimentar e nutricional – Documento Base, 2007. Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2009. DOWBOR, Ladislau; VANNUCHI, Paulo; POCHMANN, Márcio; CACCIABAVA, Silvio; BRANCO, Pedro Paulo Martone; PAULA, Juarez de. Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local. Nota para a edição de 2008. São Paulo, outubro de 2008. Disponível no site: dowbor.org/09dlfinalnovaedica63p. doc.Acesso em agosto de 2012.

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João Bosco Torres Santos, Miguel Ângelo Ribeiro de Ribeiro, Rosa Maria Castilhos Fernandes

– 175. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME – MDS. Segurança alimentar. Disponível em: h•p://www.mds.gov.br/segurancaalimentar. Acesso em agosto de 2012. POLÍTICA DE SEGURANÇA ALIMENTAR PARA O BRASIL – FOME ZERO. Disponível em: www. fomezero.gov.br/download/Seguranca_Alimentar.pdf h•p://www.mds.gov.br/segurancaalimentar. Acesso em agosto de 2012. SANTOS, João Bosco Torres; RIBEIRO, Miguel Angelo Ribeiro de; RODRIGUES, Carla. Projeto Educação Alimentar. Trabalho Final apresentado na oficina de Elaboração, Monitoramento e Avaliação de projetos Sociais. Mestrado de Memória Social e Bens culturais. Centro Universitário La Salle. Canoas, julho de 2012.

* Graduado em Educação Física, licenciatura plena, pela Universidade Federal de Sergipe (1997). Especialista em Estudos Contemporâneos em Dança pela Universidade Federal de Bahia (2004) e em Artes-Educação pela Faculdade São Luiz de França (2006). Mestrando do PG em Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle- Canoas/RS. ** Graduado em Comunicação Social pela UFRGS (1978), com habilitação em Relações Públicas, Publicidade e Propaganda. É Relações Publicas da UFRGS. Mestrando do PG em Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle-Canoas/RS. *** Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987), mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998) e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) com estágio de doutorado sanduíche no Instituto de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/Portugal.  Professora e Pesquisadora do Mestrado de Memória Social e Bens Culturais da UNILASALLE e Docente colaboradora do Mestrado de Educação da UNILASALLE

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TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO

Rosa Maria Castilhos Fernandes *

Introdução Tratar sobre tecnologia social (TS) significa reconhecer a existência no cenário brasileiro de um conjunto de técnicas, processos e metodologias de intervenção social, deflagradas por diferentes atores sociais, e que vêm incidindo na melhoria das condições de vida da população e na realidade local em que vivem. Em que pesem os avanços sobre a produção em torno da temática, que se propõe neste artigo, ainda se faz necessário deflagrar processos investigativos que possibilitem o conhecimento das experiências de TS e, principalmente, reconhecer a interface das mesmas com o desenvolvimento local sustentável. Diferentes TSs desenvolvidas e que já foram reaplicadas em todo o Brasil, têm demonstrado o quanto é possível, promover a inclusão social de trabalhadores, de zonas rurais ou urbanas, de sujeitos de diferentes ciclos de vida, de famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco social, que de forma coletiva vivenciam experiências que incidem não somente nas suas condições de vida, transformando a si mesmos, como transformando o cenário socioeconômico da comunidade em que vivem e do país, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável. Assim, é este cenário que nos mobiliza para não somente desvelar as experiências de tecnologia social que estão sendo desenvolvidas na região metropolitana do Rio Grande do Sul, composta por 32 municípios, como para captar a percepção dos atores sociais envolvidos com essas tecnologias, no que diz respeito as melhorias das condições de vida e, sobretudo, a incidência no desenvolvimento local. Para tanto, a pesquisa, que em parte é socializada neste artigo, denominada: “Tecnologia Social na Região Metropolitana de Porto Alegre: um estudo para o desenvolvimento local sustentável” tem como objetivo geral identificar as experiências de tecnologia social desenvolvidas na região metropolitana de Porto Alegre, para desvelar a percepção dos atores sociais envolvidos, visando a difusão e reaplicação das mesmas, incidindo no desenvolvimento local sustentável da região. Com base nesse escopo, este artigo trata, de forma sintetizada, sobre os aspectos teóricos que subsidiam a reflexão sobre Tecnologia Social e desenvolvimento, sobre os caminhos metodológicos da investigação que vêm sendo percorridos e socializam os resultados parciais da pesquisa desencadeada.

Contextualização da temática: Tecnologia Social e Desenvolvimento Os atores fundamentais dos processos de desenvolvimento das TSs no cenário brasileiro são: os movimentos sociais, as cooperativas populares, as organizações não-governamentais, as instituições

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públicas de investigação, as divisões governamentais, entre outros em menor escala, que inovam fomentando iniciativas de inclusão e transformação social. Tais experiências, como: os empreendimentos econômicos solidários, os projetos de geração de renda, de bioenergia, de agricultura sustentável, de segurança alimentar, de reciclagem de resíduos e todas aquelas que dinamizam o desenvolvimento dos territórios de maneira integrada e equilibrada (DAWBOR, 2008), se constituem em exemplos de tecnologias sociais, que vêm sendo implementadas em diferentes territórios do país. Neste contexto, é preciso reconhecer que as organizações da sociedade civil, têm deixado marcas no processo histórico do debate acerca da tecnologia social e do papel da ciência, tecnologia e inovação para a inclusão social, para o desenvolvimento sustentável e o enfrentamento da desigualdade social no Brasil. Paralelo às iniciativas de inclusão e desenvolvimento social, pautada na agenda brasileira, está o poder público que vem tomando decisões para erradicar a miséria e reduzir a pobreza, ainda que tardiamente, vem implementando políticas de incorporação da grande massa de excluídos do desenvolvimento nacional. Por isto, a importância de olhar para o conjunto de ações que brotam da própria iniciativa local, definindo mecanismos para estimulá-la, ou ainda, para reduzir os entraves que a bloqueiam. Geralmente as TS têm uma dimensão local, pois são aplicadas às pessoas, famílias, associações, cooperativas, citando estas como exemplo, o que a princípio pode ser considerado uma vantagem, mas há também, uma dificuldade para que sejam vistas em termos de um projeto nacional ou de políticas públicas. Nesta perspectiva, a Tecnologia Social – TS têm emergido no cenário brasileiro como um movimento que se caracteriza pela capacidade criativa e organizativa de segmentos da população em gerar alternativas para suprir as suas necessidades e/ou demandas sociais (MACIEL; FERNANDES, 2010). Considera-se TS: “produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social” (RTS, 2009). É importante ressaltar que as experiências de tecnologia social, mais do que a capacidade de implementar soluções para determinados problemas, podem ser vistas como métodos e técnicas que permitam impulsionar processos de empoderamento das representações coletivas da cidadania para habilitá-las a disputar, nos espaços públicos, as alternativas de desenvolvimento que se originam das experiências invadoras e que se orientem pela defesa dos interesses das maiorias e pela distribuição de renda (BAVA, 2004, p. 1 16).

Erradicar a miséria e reduzir a pobreza, é uma importante decisão política pautada na agenda brasileira e que vem suscitando debates acerca dos mecanismos e das políticas de erradicação da pobreza em uma realidade social, que ainda experimenta a gravidade das mazelas provocadas pela desigualdade social, responsável pela exclusão de parte significativa da população brasileira. Apesar dos avanços no campo das políticas públicas e a constituição de fundos públicos vivenciados nos últimos anos no Brasil, em especial as políticas de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família, ainda visualizam-se índices que colocam o Brasil em destaque no ranking da desigualdade social. Diante dessas questões, a defesa das Tecnologias Sociais se apresenta, também, como uma estratégia promissora para superar os limites não somente do atual modelo e padrão de Ciência e Tecnologia no país, mas como uma resposta mais sintonizada com as demandas da sociedade, por um modelo de desenvolvimento social sustentável que tenha centralidade no processo de inclusão social e que seja capaz de erradicar a miséria e reduzir a pobreza, tendo como atores principais a própria 278

Rosa Maria Castilhos Fernandes

sociedade (MACIEL; FERNANDES, 2011).

Processo Metodológico da Pesquisa Esta pesquisa, de natureza qualitativa e quantitativa, utiliza como referencial epistemológico, o método dialético crítico de investigação. Numa primeira etapa da pesquisa será realizada uma investigação exploratória nos bancos de dados/WEB, em bases oficiais com registros de TS, como as experiências de TS incubadas pelas Instituições de Ensino Superior -IES e que estejam em desenvolvimento na região metropolitana de POA/ RS. O processo de identificação das experiências TS se dará por meio do acesso aos bancos virtuais e produções específicas que contém TS sistematizadas. As TSs serão agrupadas por temáticas (por exemplo: alimentação, saúde, recursos hídricos, renda, habitação, educação, reciclagem de resíduos, meio-ambiente, entre outras) e sistematizadas em um espaço virtual onde conterão informações tais como: temática, local, histórico, objetivo da TS, reaplicação, atores sociais, cenário inicial, entre outros A definição da moldura amostral, dependerá das TS mapeadas e suas respectivas temáticas sendo a partir de então, definidas as unidades de análise. Para cada temática mapeada será selecionada uma TS, cujo critério se baseará no maior tempo de implementação e desenvolvimento da TS, o que consistirá na segunda etapa da coleta dos dados. Esta etapa, se realizará por meio de entrevistas abertas com os atores sociais envolvidos com as experiências de tecnologia social. Serão feitos os contatos (por email, telefone, correio ou visita no local) com os atores responsáveis pelo desenvolvimento da TS para esclarecê-los e sensibilizá-los a participarem do processo de investigação. A definição do sujeito que participará da entrevista, será feita pelos próprios atores sociais envolvidos com a TS. O termo de consentimento livre e esclarecido, com informações do pesquisador sobre os objetivos da pesquisa e a garantia de sigilo sobre a fonte de informação, consentimento por escrito e autorizado, será assinado antes de iniciar a entrevista. O processo de tratamento estatístico dos dados e a análise das informações, é a terceira etapa da investigação. Por meio da análise de conteúdo, será possível destacar as partes das narrativas de acordo com os objetivos e questões norteadoras da pesquisa. Entre os resultados parciais, destacam-se até o momento: predominam entre os municípios da região metropolitana que desenvolvem TS: Porto Alegre, Alvorada, Canoas, Cachoeirinha, Eldorado do Sul, Gravataí, Sapiranga, Sapucaia do Sul, Araricá, São Leopoldo, Campo Bom, Novo Hamburgo, Estância Velha, Nova Santa Rita e Esteio; entre as temáticas destacam-se: educação, meio ambiente, geração de renda, alimentação, energia, recursos hídricos, reciclagem de resíduos sólidos. Até o mês de julho de 2012 foram mapeadas 29 TS.

Conclusão Com base no que foi possível trilhar até aqui, a investigação aponta a existência de um conjunto de TS que vem sendo desenvolvidas na região metropolitana de Porto Alegre e que podem ser disseminadas e incorporadas como políticas públicas nos municípios da região.

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TECNOLOGIA SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE: OS CAMINHOS DE UMA INVESTIGAÇÃO

Além disto, pode-se concluir que entre as principias contribuições e relevância deste estudo, destaca-se: o reconhecimento da interface existente entre as experiências de tecnologia social e as políticas públicas, o que significa avançar na história da democratização do conhecimento, da ciência, da tecnologia e da inovação social; a possibilidade de considerar a tecnologia social como uma dimensão “estratégica” que poderá contribuir com a promoção do desenvolvimento sustentável e no combate às desigualdades sociais e exclusões que ainda marcam profundamente a sociedade brasileira; a produção de conhecimento na perspectiva interdisciplinar; a contribuição com a difusão das tecnologias sociais uma vez que as mesmas são identificadas e ao serem sistematizadas, é possível a sua reaplicação em diferentes comunidades da região metropolitana, incluindo aquelas que apresentam indicadores de vulnerabilidade social; a importância do estudo sobre a percepção dos atores sociais envolvidos com o desenvolvimento de TS, pois são estes os sujeitos que podem desvelar o significado da TS na melhoria de suas condições de vida; a criação de um especo virtual com informações, para potencialização do trabalho desenvolvido no Tecnosocial da Unilasalle; a discussão que emergirá do processo investigatório sobre as relações entre ciência, tecnologia, inovação e sociedade, principalmente, quando se trata de articular essas questões com o desenvolvimento local e com a possibilidade de inserção da Tecnologia Social na agenda das políticas públicas no Brasil.

REFERÊNCIAS BAVA, Silvio Caccia. Tecnologia social e desenvolvimento local. In: Tecnologia Social: uma estratégia para o desenvolvimento. Fundação Banco do Brasil: Rio de Janeiro: 2004. DOWBOR, Ladislau; VANNUCHI, Paulo; POCHMANN, Márcio; CACCIABAVA, Silvio; BRANCO, Pedro Paulo Martone; PAULA, Juarez de. Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local. Nota para a edição de 2008. São Paulo, outubro de 2008. Disponível no site: dowbor.org/09dlfinalnovaedica63p.doc. Acesso em agosto de 2012. Rede de Tecnologias Sociais- RTS. Conceito de Tecnologias Sociais. Disponível em: http://www.rts.org. br/rts/tecnologia-social. Consultado 25 de Fev de 2010. MACIEL, Ana Lúcia Suárez;  FERNANDES, Rosa Maria Castilhos. Tecnologias sociais: interface com as políticas públicas e o Serviço Social. Serviço Social e Sociedade. [online]. 2011, n.105, pp. 146-165. ISSN 0101-6628. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010166282011000100009&lng=pt&nrm=iso. Acesso em agosto de 2012.

* Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1987), mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998) e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) com estágio de doutorado sanduíche no Instituto de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/Portugal.  Professora e Pesquisadora do Mestrado de Memória Social e Bens Culturais da UNILASALLE e Docente colaboradora do Mestrado de Educação da UNILASALLE. 280

UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA

Rodrigo Barcelos da Silva* Pablo Marcel Parada** Patrícia Kayser Vargas Mangan*** Abraham Lincoln Rabelo de Sousa****

Introdução O conceito Cidades Inteligentes1 – (CI) surgiu na década de 90 com o objetivo de incentivar a definição de novas políticas de planejamento urbano. Uma cidade inteligente tem o foco no uso racional de qualquer recurso existente contando com envolvimento colaborativo entre a população das cidades e seus respectivos governos O termo Cidade Inteligente possui várias definições na literatura científica especializada. Entretanto, todas as definições convergem para o sentido do uso da Tecnologia da Informação e Comunicação – (TIC) no tratamento de problemas urbanos. A ideia geral é usar toda a inovação tecnológica existente em prol da sociedade via produtos e serviços que agreguem valor ao cidadão e proporcionem melhorias na qualidade de vida. Entre 2002 a 2005, grandes empresas de tecnologia se interessaram por cidades inteligentes, sendo algumas delas CaldWell1 , Cisco2 , IBM3 e Simens4 . Através do uso da informação as cidades esperam criar uma visão, prover inovação, gerar oportunidades de emprego e aumentar a qualidade de vida da população. (Harrison e Donnelly, 2011). O conceito cidade inteligente pode ser dividido em subáreas conforme ilustrado na figura abaixo. Figura 1. Uma visão simplificada do modelo urbano

Fonte: Theory of Smart Cities adaptado de (Harrison e Donnelly, 2011))

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Do inglês Smart Cities.

UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA

No ambiente natural temos o foco na topografia, recursos naturais, geologia e entre outros recursos que envolvem o meio ambiente. A infraestrutura tem como foco auxiliar em construções de rodovias, utilização da terra, construções entre outros recursos que envolvem a infraestrutura. A camada de recursos representa os materiais que se originam e depois retornam ao ambiente natural, após passar por alguns processos de refinação e recomposição. Em serviços há os subitens relacionados a abastecimento de energia, abastecimento de água, transporte público e entre outros relacionados a esse tipo subárea. Na camada sociocultural são enfatizadas as pessoas, a cultura, comercio, política. Ou seja, temos as pessoas dos centros urbanos colaborando e trocando informações entre elas. Essa informação pode ser processada por outros sistemas e de certa forma auxiliar na tomada de decisão de uma determinada situação dentro da cidade. (Naphade, Banavar, et al., 2011). O foco deste trabalho esta relacionado aos sistemas socioculturais apresentados na (Figura 1).

Problema e objetivos O problema de pesquisa explorado por esse estudo está relacionado à necessidade de investigação sobre os recursos requeridos para o desenvolvimento de uma infraestrutura arquitetural que apoie o desenvolvimento de aplicações que suportem o conceito de cidades inteligentes com foco na camada sociocultural. Assim, vislumbram-se algumas questões de pesquisa: a) Quais os requisitos básicos? b) Quais os componentes de software podem ser utilizados? c) Como esses componentes se relacionam/cooperam para a execução da aplicação? d) Qual estilo arquitetural o sistema deve ser utilizado? Desta forma, o objetivo principal deste trabalho é projetar e desenvolver essa infraestrutura arquitetural para servir como ambiente laboratorial de desenvolvimento de aplicações móveis, com foco no aspecto sociocultural da área de cidades Inteligentes. Em seguida, aplicar essa arquitetura no desenvolvimento de uma aplicação piloto, i.e. um sistema de notificações, visando à avaliação da viabilidade técnica e a observação das suas potencialidades e limitações. Como objetivo especifico desta arquitetura, destacam-se: agregar diferentes serviços que serão responsáveis pelo processamento dos dados; e a possibilidade de gerenciar informações. A Figura 2 ilustra o cenário onde aplicação do cliente vai requisitar determinada informação, que será encaminhada para um serviço intermediador e ela vai requisitar o processamento de um determinado serviço. Após o processamento, o serviço retorna a informação solicitada para o serviço intermediário e ele envia ao cliente.

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Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa

Figura 2. Processo de execução Fonte: Autoria própria

Justificativa Para isso, vislumbra-se a criação de uma arquitetura de controle de serviços que possibilite a centralização da informação; o acesso facilitado; a agregação de serviços conforme a necessidade; e que seja uma ferramenta rápida e confiável. Além disso, espera-se remover a responsabilidade da aplicação cliente de processar os dados, enviado-os a um Web Service5 ou para alguma base dados aonde um sistema específico. Levando em consideração que o estudo de caso será uma aplicação para dispositivos móveis, uma arquitetura capaz de remover a responsabilidade do processamento e armazenamento da informação se torna um estudo importante a ser realizado.

Bases teóricas Segundo (Naphade, Banavar, et al., 2011), atualmente, as cidades enfrentam muitos problemas infraestruturais resultantes do crescimento urbano, que se refletem com um aumento da procura por recursos como água, energia, transporte, saúde, educação e segurança. As cidades veem buscando cada vez mais a TIC para apoiar estratégias sustentáveis, de forma que melhorem a gestão de sua infraestrutura e recursos para atender melhor a população. Além de existir essas áreas que foram descritas anteriormente dentro do conceito de cidades inteligentes temos uma iniciativa voltada para indústrias, segundo (Bakici, Almirall, & Wareham, 2012) em um estudo de caso na cidade de Barcelona na Espanha foi definido uma subárea chamada Smart Disctrict, que possui o objetivo de incentivar a colaboração entre as indústrias e o desenvolvimento urbano. Porém, quando podemos dizer que uma cidade é inteligente? Conforme (Caragliu, Bo, & Nijkamp, 2009), uma cidade será inteligente a partir do momento que sua população aprender a adaptar e a inovar. Elas precisam ser capazes de usar a tecnologia em seu benéfico e deixar a mão de obra do trabalhador mais qualificada. De acordo com (Sie, Hol., & Chia, 2011), existem duas maneiras de prover uma cidade inteligente: as cidades emergentes; e as cidades remodeladas. As cidades emergentes sãos as que têm 283

UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA

o foco na sustentabilidade, não havendo desperdícios. Já o conceito de cidades remodeladas é mais aplicado a países desenvolvidos que focam a infraestrutura urbana por meio da utilização de sensores e tecnologias inteligentes, visando aperfeiçoar o consumo de recursos naturais e melhorar a qualidade de vida da população. Levando em consideração o envolvimento da população dentro do conceito em estudo, existe a importância da colaboração, que deve ser estimulada. Isso envolve permitir a participação ativa da população em todo o processo. Seja pela notificação de eventos ou correção/atualização de informações. Conforme (Kirwan, 2011), com os problemas urbanos que estão ocorrendo atualmente, há a possibilidade de fazer com que a haja colaboração entre a sociedade para auxiliar na solução dos problemas que estão ocorrendo e também abrir novos caminhos para o conhecimento. Ainda sobre a importância da participação dos cidadãos, Naphade, Banavar, et al. (2011) relata que em Dubuque, 50% dos custos associados a consertos de vazamentos de água em domicílios são feitos por usuários, que os relatam e acompanham os reparos. Seu feedback perspicaz sobre o consumo de água aumentou a conservação em 10%. Da mesma forma, Seul está usando sua conectividade com a internet em toda a cidade com objetivo de incentivar o uso do transporte público, fornecendo informações on-line para os condutores sobre os descontos de seguro, custo reduzido de estacionamento e redução de impostos para aqueles que deixam seus carros em casa um dia útil por semana. No desenvolvimento de sistemas dentro das cidades inteligentes Harrison e Donnelly (2011) defendem que é importante envolver e se preocupar com as pessoas que se beneficiarão do novo serviço, focando nos aspectos relacionados à atratividade e o acesso, visando que a população desperte o interesse em utilizar determinada ferramenta o serviço tecnológico a ser disponibilizado. Além disso, Rotti e Torensend (2011) enfatizam que adotar uma visão de baixo para cima, uma visão partindo do público alvo e onde o contexto são as pessoas, seria fundamental para o desenvolvimento de uma cidade inteligente.

Trabalhos Relacionados Analisando as necessidades, neste trabalho, é utilizado o conceito SOA como base arquitetural, que segundo (Ali, 2012) é um conjunto flexível de princípios de projeto usados durante as fases de desenvolvimento de sistemas. A implantação de uma arquitetura baseada em SOA irá fornecer um conjunto integrado de serviços que podem ser usados dentro de áreas negócios que tem seus domínios diferentes. Já em relação à aplicação piloto, necessária para avaliar a arquitetura escolhida, temos como base de inspiração o sistema Cambridge iReports6. Ele tem como objetivo notificar defeitos nas estradas, através de um dispositivo móvel, onde é possível reportar ao um setor responsável uma depressão que você localizou na rodovia e que esta prejudicando o trânsito dos automóveis, por exemplo. Como segundo trabalho relacionado, tem uma aplicação de origem Italiana chamda de Eureka!7, essa aplicação foi desenvolvida para ser apresentada no evento Apps4Italy8. A aplicação tem como objetivo apresentar dados da qualidade de vida em uma determinada posição geográfica. Trata-se de um aplicativo gratuito e aberto para ser usados em dispositivos móveis, e utiliza o sistema operacional Android9. 284

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Desenvolvimento/modelo Esta seção apresenta uma descrição do problema, o cenário, a solução onde vai envolver a arquitetura e o estudo de caso.

Solução Criar uma aplicação piloto análoga ao Cambridge iReports, que tem o objetivo de reportar defeitos nas estradas, entretanto a aplicação de notificação desde trabalho vai possibilitar ao frequentador da universidade reportar sugestões e defeitos nos recursos oferecidos pela instituição de ensino. Desta forma, a comunidade acadêmica pode sugerir melhorias ou informar a falha de algum recurso oferecido como um ar-condicionado com defeito. Com esse tipo de sistema pode ser visto as necessidades dos frequentadores da universidade e possibilita melhorar o ambiente dentro de um contexto colaborativo.

Arquitetura Em primeiro momento, foi questionado o que vamos precisar para criar uma arquitetura para ser utilizada pelo sistema de notificação. Desta forma, foram levantados alguns questionamentos: a) Como será gerenciada a informação fornecida pelo usuário? b) Será necessário disponibilizar para diferentes plataformas, como iOS10, Android? c) Quais os recursos podem ser utilizados? d) Aplicações que não estão relacionadas à plataforma mobile utilizarão o recurso da arquitetura? Para criar essa arquitetura é utilizado um estilo de arquitetura chamada SOA. Uma plataforma deste tipo possui uma composição de diferentes tecnologias. Assim, podemos ter três tipos de serviços dentro deste conceito, um serviço solicitante, um serviço provedor e um intermediador. A (Figura 3) ilustra esses três conceitos onde: a) Serviço solicitante: é a entidade que basicamente exige algum trabalho operacional realizado por outro serviço, onde é realizada uma busca através de listas de descrições dos serviços prestados pelo intermediador de serviço. Também é responsável pela ligação dos serviços após a sua descoberta. b) Serviço provedor: é a entidade que tem acesso a outros serviços, também é responsável pela criação de serviços e de suas publicações no corretor de serviços. c) Serviço intermediador: tem a informação sobre todos os serviços registrados dentro do ESB, os mesmos responsáveis pelo redirecionamento de requisições para o solicitante do serviço correspondente e provedor.

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UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA

Figura 3. Uma visão dos serviços SOA Fonte: Adaptado de (Ali, 2012)

No presente projeto foi direcionado o foco para um ESB que por sua vez é um middleware11, i.e. um mediador entre software e outras aplicações e aplicações chaves. (Ali, 2012)

Serviço intermediador Segundo o site da Red Hat12, o ESB nos possibilita a implementação de uma arquitetura orientada a serviços, como fornecedor desta plataforma temos um servidor de código aberto chamado jBoss do Java EE, hoje pertencente a Red Hat. Essa arquitetura de software fornece serviços fundamentais para arquiteturas complexas através de mecanismos de mensagens orientados a eventos e baseada em padrões. (Ali, 2012) Atualmente temos outras empresas que oferecem o serviço intermediador sendo duas delas, a IBM com o WebShere ESB (IBM, 2012) e a Oracle com o OSB (ORACLE, 2012). No presente trabalho é utilizada a disponibilização da Red Hat por ter uma versão Open Source13. Com a utilização do Enterprise service bus conforme Ali e Red Hat (2012) temos os seguintes benefícios para aplicações que utilizaram a arquitetura: a) fornecer conectividade de sistemas; b) Encaminhamento ou roteamento inteligente. Isto pode ser encaminhamento conteúdo de base via uma mensagem de um sistema para o outro com base no seu conteúdo; c) Segurança e confiabilidade; d) Monitoramento de serviços de gestão e registros de logs; e) Conectividade com outros modelos de serviços. Segundo Ali (2012), o objetivo principal deste sistema, é a interoperabilidade. Usado para integrar diferentes plataformas e linguagens, abaixo uma figura ilustrativa da estrutura típica de um ESB em um ambiente SOA. 286

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Tendo definido um serviço intermediador, que no presente projeto ele não possui a responsabilidade de realizar regras de negócio, pois como se trata de um intermediador, o seu papel é somente realizar o intermédio entre plataformas. Com isso surge a necessidade de criar um serviço para realizar as regras de negócio estabelecidas pelas funcionalidades que serão criadas, devido a isso foi analisada a possibilidade de criar serviços web.

Figura 4. Uma visão sobre ESB Fonte: Adaptado de (Ali, 2012)

Serviço web Analisando a possibilidade de criar um ou mais serviços web, que segundo (Castillo, Bernier, e. tal., 2011) temos duas abordagens principais REST e SOAP. Em sua pesquisa o autor comenta que o ideal para quando temos baixa largura de banda e pouco recurso é usar a abordagem REST. Temos também que segundo (DiMaggio, Dimaggio, e tal., 2011) o modelo SOAP também é suportado pelo servidor de aplicação jBoss, logo se for necessário criar um serviço web com esse modelo será suportado. Envolvendo a utilização da tecnologia para dispositivos moveis, onde (Hamad, Saad, & Abed, 2010) relata que o melhor serviço web para ser utilizado por este tipo de dispositivo seria o RESTful, que por sua vez são aplicações web construídas sobre a abordagem REST. Em sua pesquisa o autor realizou testes usando as duas abordagens descritas, onde foi coletado o tamanho da mensagem e o tempo de resposta, foi realizado operações de concatenação de strings e adicionado números do tipo float em arrays. Abaixo duas tabelas ilustrando o resultado dos testes realizados, que com base nos mesmos usaremos o modelo REST.

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Tabela 1. Teste com tamanho da mensagem em serviços web REST e SOAP Fonte: Adaptado de (Hamad, Saad, & Abed, 2010)

Tabela 2. Teste com tempo de execução em serviços web REST e SOAP Fonte: Adaptado de (Hamad, Saad, & Abed, 2010)

Repositório de dados No desenvolvendo da aplicação piloto temos a necessidade de criar um local para armazenar os dados das movimentações realizadas no sistema, nesse caso foi estudada a possibilidade de usar o servidor de banco de dados MySQL, que segundo (Site sobre Mysql, 2012) possui uma licença livre e atende as necessidade da aplicação piloto. Em primeiro momento não existe a necessidade de trabalhar com um servidor de banco de dados mais robusto que o MySQL, pois não vai existir muitos serviços solicitando transações para o banco de dados. Caso precise de troca ou adicionar algum outro servidor de repositório de dados o jBoss, servidor de aplicação, oferece a funcionalidade de criar datasources14 para realizar as conexões. Desta forma em caso de uma troca é só alterar os parâmetros de conexão, quando o serviço precisar utilizar o banco de dados vai utilizar o que está configurado no datasource (Site sobre Jboss, 2012)

Considerações finais Em relação á área cidades inteligentes, podemos dizer que possibilita muitos trabalhos e pesquisas dentro deste conceito e que há uma grande possibilidade destes trabalhos e pesquisas agregarem valor dentro das cidades, resolvendo problemas que antes não eram vistos ou não existiam. Na construção da arquitetura foi utilizado um notebook Dell modelo D630, com 4Gb 288

Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa

de memória e um processador core 2 duo em um sistema operacional Ubuntu 12.10. Quando realizado a inicialização dos servidores de aplicação foi possível notar que eles utilizam bastante os recursos de hardware, caso a arquitetura for utilizada em ambiente real, por exemplo, em uma cidade seria de boa utilidade usar clusters15 para ter um melhor desempenho. Envolvendo a utilização do ESB, temos algumas empresas que já utilizam esse modelo de serviço e foram considerados casos de sucesso, conforme (REDHAT, 2012) a Ampersand16 no México utiliza o ESB oferecido pela Red Hat. Segundo (ORACLE, 2012) a Telenet17 da Bélgica ela utiliza uma solução da Oracle o OSB e temos também a empresa Humana S.A18 do Equador que utiliza a solução disponibilizada pela IBM o WebSphere ESB (IBM, 2012). A arquitetura desenvolvida é escalável, desta forma é possível agregar outros serviços conforme a necessidade e abre a possibilidade de desenvolvimentos de trabalhos futuros. Com a utilização do ESB podemos utilizar outros modelos de serviços além dos que foram citados. Levando em consideração a aplicação piloto, a mesma teve um bom funcionamento com arquitetura. Já relação da utilização da posição geográfica fornecida pelo dispositivo mobile, temos que cada dispositivo vai ter a sua margem de erro na coleta da longitude e latitude, vale ressaltar que em ambientes fechados não foi coletada a posição geográfica pelo GPS, o dispositivo acabou utilizando a conexão 3G do celular. Considerado isso, possuir uma boa conexão do celular com a internet via 3G, pode garantir uma comunicação estável e a posição pode ser mais precisa.

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UMA PROPOSTA ARQUITETURAL PARA SISTEMAS DE NOTIFICAÇÃO COLABORATIVA

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(Endnotes) 1

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2

Cisco http://www.cisco.com/web/strategy/smart_connected_communities.html

3

IBM http://www-03.ibm.com/innovation/us/thesmartercity/index_flash.html

4

Simens http://www.siemens.com/sustainable-city/sustainable-city.html

5

http://www.w3schools.com/webservices/ws_intro.asp

6 Cambridge iReports: Sistema utilizado a universidade de Cambridge. http://www.cambridgema.gov/iReport 7

Aplicação Eureka!: http://eurekatheapp.wordpress.com/progetto/

8

É uma competição que envolve cidades da União Europeia http://www.appsforitaly.org/en/

9 Sistema operacional utilizado em dispositivos móveis http://developer.android.com/guide/basics/what-is-android.html 10

iOS: Plataforma utilizada pela Apple. https://developer.apple.com/technologies/ios/

11 Middleware: É o neologismo criado para designar camadas de software que não constituem diretamente aplicações, mas que facilitam o uso de ambientes ricos em tecnologia da informação. A camada de middleware concentra serviços como identificação, autenticação, autorização, diretórios, certificados digitais e outras ferramentas para segurança - http://www.rnp.br/noticias/2006/not-060926. html 12

http://www.redhat.com/products/jbossenterprisemiddleware/application-platform 290

Rodrigo Barcelos da Silva, Pablo Marcel Parada, Patrícia Kayser Vargas Mangan, Abraham Lincoln Rabelo de Sousa

13

Open Source: Não possui fins lucrativos

14

Datasource: http://docs.oracle.com/javase/6/docs/api/javax/sql/DataSource.html

15

Cluster: http://technet.microsoft.com/en-us/library/cc785197(v=ws.10).aspx

16

Ampersand: http://www.ampersand.com/

17

Telenet: www.telenet.be

18

Humane S.A: www.humana.com.ec

* Rodrigo Barcelos da Silva Bacharel em Ciência da Computação - (Unilasalle) ** Pablo Marcel Parada Graduando em Ciência da Computação (Unilasalle) *** Patrícia Kayser Vargas Mangan Doutora em Computação pela UFRJ **** Abraham Lincoln Rabelo de Sousa Mestre em Ciência da Computação pela UFRGS

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7. ENGENHARIA, PESQUISA ACADÊMICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL

AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS

Geraldo José Rodrigues Alves * Saulo Padoin Chielle **

Introdução O ruído afeta o bem-estar físico e mental das pessoas, sendo que, diariamente, milhares de cidadãos são expostos a ele, assim como o habitante das grandes cidades vive imerso numa atmosfera de ruídos, mesmo durante o sono, com os quais parece estar acostumado, como, tráfego, buzinas, alarmes contra roubos, escapamentos, motores envenenados, algazarras, entre outros. (SOUZA, ARINELSON, 2005). A World Health Organization (WHO, 2003) recomenda que em áreas residenciais o nível de ruído não ultrapasse o nível sonoro equivalente Leq 55 dB(A). Em adição, estipula que o nível sonoro de até Leq 50 dB(A) pode perturbar, mas o organismo se adapta facilmente a ele. A partir de 55 dB(A) pode haver a ocorrência de estresse leve, acompanhado de desconforto. O nível de Leq 70 dB(A) é tido como o nível de desgaste do organismo, aumentando os riscos de infarto, derrame cerebral, infecções, hipertensão arterial e outras patologias. Ao nível sonoro equivalente de Leq 80 dB(A) ocorrem a liberação de endorfinas, causando sensação de prazer momentâneo e níveis sonoros da ordem de Leq 100 dB(A) podem levar a danos e ou perda da acuidade auditiva. No Brasil, há legislações e normas focadas a medições e exposição ao ruído referente a atividades ocupacionais, bem como avaliação de ruído em áreas habitadas, levando-se em consideração as emissões referentes a estabelecimentos ou em habitações. Com a presença cada vez maior de veículos automotores nas rodovias e estradas brasileiras, há uma percepção do aumento dos níveis de ruído gerado nos grandes centros urbanos devido a movimentação de veículos. Muitas cidades brasileiras possuem rodovias de grande trafego de veículos automotores que cruzam áreas centrais de municípios. Um desses motivos é devido a falta de planejamento desses municípios que permitiu que as áreas urbanas fossem crescendo desordenadamente prejudicando tanto a mobilidade urbana, quanto a qualidade de vida das pessoas que convivem com rodovias de grande nas áreas centrais do município. Na cidade de Canoas/RS esse fato é bem evidenciado, onde a BR 116 umas das principais rodovias de acesso a Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, cruza a área central do município havendo uma movimentação de pessoas e veículos movimentando-se pela própria cidade bem como utilizando a rodovia para acesso a outros municípios. Próximo à rodovia BR 116, no trecho localizado no município de Canoas/RS, há várias paradas de ônibus, com apenas uma cobertura de proteção contra chuvas leves. Nestas paradas não há proteção

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contras chuvas intensas, ventanias, frio, ruídos e vibrações. Dessa forma, este trabalho visa medir e avaliar os impactos gerados pelo ruído gerado pelo fluxo de veículos automotores durante os horários de pico. Este estudo visa ser um subsídio para a tomada de decisão de qual tipo de projeto de paradas de ônibus deve ser utilizado próximo às rodovias, visando a melhoria da qualidade de vida dos usuários de transporte coletivo.

Ruído ambiental Ruído é uma palavra derivada do latim rugitu que significa estrondo. Acusticamente é constituído por várias ondas sonoras com relação de amplitude e fase distribuídas anarquicamente, provocando uma sensação desagradável, diferente da música (ALMEIDA et al. 2000). Segundo Hassal (1979), ruído é definido como som indesejável. O ruído ambiental é aquele que se percebe ou que se origina em locais públicos, sendo um ruído que causa efeitos coletivos e que interfere na qualidade ambiental de um lugar (COLLADOS, 1998). O ouvido é o órgão coletor dos estímulos externos, transformando as vibrações sonoras em impulsos sonoros para o cérebro. É, sem dúvida, a estrutura mecânica mais sensível do corpo humano, pois detecta quantidades mínimas de energia. Para fins de estudo, o ouvido é dividido em três partes: ouvido externo, ouvido médio e ouvido interno. O ouvido externo compõe-se do pavilhão auditivo (orelha), do canal auditivo e do tímpano (FERNANDES, JOÃO CANDIDO, 2002). Sabe-se que entre os gregos, em torno do ano 600 a.C., os Sybaristas proibiam trabalho em metal que exigisse o uso do martelo e também a criação de galos dentro dos limites da cidade, pelo ruído provocado. O som, em termos físicos, é a sensação devida às flutuações de pequena escala da pressão do ar em torno da pressão atmosférica média local (SCHULTZ, 1982). Na realidade, qualquer meio elástico pode propagar o som, mas a propagação no ar é a mais importante no escopo do presente trabalho. Dependendo da natureza do som, essas flutuações podem ou não seguir padrões repetitivos. Através delas, energia é transmitida pelo meio gasoso, líquido ou sólido pelo qual o som se propaga, a partir da fonte sonora (HASSAL E ZAVERI, 1979).

Medição de Ruído Ambiental Segundo Quadros (2004) para a medição de pressão sonora utiliza-se números muito grandes, tornando os cálculos trabalhosos e indesejáveis. O ouvido humano não responde linearmente, mas logaritmamente a uma dada excitação. Por este motivo decidiu-se expressar grandezas acústicas (e, por conseguinte, grandezas vibratórias) como uma razão logarítmica de um valor medido em relação a um valor de referência. Isto reduz os números a proporções mais manuseáveis e a unidade resultante chamada Bell (em homenagem a Alexander Graham Bell) é definida como o logaritmo de base 10 da razão de suas grandezas acústicas “potência, intensidade” ou duas grandezas representativas de uma 296

Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle

vibração “deslocamento, velocidade, aceleração”. Esta unidade foi considerada ainda muito grande, quando de sua aplicação prática, sendo que então finalmente adotou-se o decibel (1/10 * Bell) como unidade medida. Segundo Fernandes (2002) o dobro de um numero qualquer é o valor deste multiplicado por dois (exemplo, 85 o dobro é 170). Na escala em decibel o dobro é a soma logarítmica de 3 dB. Então, se em um decibelímetro eu obtiver 85 dB, seu dobro é 88 dB e não 170 dB em função da escala logarítmica. Nível equivalente de pressão sonora, Leq, é um nível constante que equivale, em termos de energia acústica, aos níveis variáveis do ruído, durante o período de medição, é definido um valor único, chamado nível equivalente de pressão sonora, Leq, que é o nível sonoro médio integrado durante um intervalo de tempo. É dado em dB, e é expresso por: Figura 1: Leq.

Fonte: Fernandes, 2002

Onde: - T = (t2 – t1) = tempo total de medição, - p(t) = pressão sonora instantânea, - p0 = pressão de referência (2.10-5 N/m2). Utiliza-se também o anexo da ABNT-NBR 10.151 que apresenta um método alternativo para o cálculo do nível de pressão sonora equivalente, Leq, quando o medidor de nível de pressão sonora não dispõe dessa função, como é este caso, portanto, o nível de pressão sonora equivalente, LAeq, em dB(A), deve ser calculado pela expressão:

Figura 2 – LAeq.

Fonte: ABNT – NBR 10.151

O nível equivalente é representado então por um valor constante que durante o mesmo tempo T resultaria na mesma energia acústica produzida pelos valores instantâneos variáveis de pressão sonora. Portanto, um nível equivalente Leq tem o mesmo potencial de lesão auditiva que um nível variável considerado no mesmo intervalo de tempo. Os critérios para lesão permitem essa equivalência até aproximadamente 115 dB(A) de nível máximo, a partir do qual podem ocorrer lesões com exposição de curta duração. (QUADROS, 2004).

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AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA POLUIÇÃO SONORA SOBRE OS USUÁRIOS DE TRANSPORTE COLETIVO NA BR 116 NO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS

Transporte público O serviço público de transporte coletivo teve início em 1661 com o francês Blase Pascal. O transporte era feito em carruagens de oito lugares com tração animal, seguindo itinerário, horário e preço estabelecido antecipadamente. (VICASA, 2012). Foi no início do século XX que surgiu primeiro veículo automotor no mundo e foi fabricado pelo alemão Karl Benz. Era um triciclo com motor de quatro tempo refrigerado a água. Após, o Sr. Benz criou também o primeiro ônibus a gasolina, que começou a operar no ano de 1895. (VICASA, 2012). No ano de 1995, a população brasileira era de 152 milhões de pessoas, e aproximadamente 120 milhões (79%) de pessoas, nesta época, moravam em áreas urbanas. A urbanização da população foi contínua e no ano 2000 esta proporção passou dos 80% e no ano 2000 atingiu 90% em 2010. (VICASA, 2012). O transporte de mercadorias por caminhões e de pessoas por ônibus dominaram o mercado nacional feito por meio das rodovias em áreas rurais e urbanas. No âmbito nacional, estima-se que 96,2% dos passageiros-km são processados em rodovias, 1,81% em ferrovias e metrôs e o restante por hidrovias e meios aéreos. Em relação às cargas, 63,7% das toneladas-km são transportadas em rodovias, 20,7% em ferrovias, 11,5% em hidrovias e o restante por gasodutos/oleodutos, ou meios aéreos. (GEIPOT, 1997). Consequentemente, o transporte rodoviário é responsável pela maior parte da energia consumida no transporte geral, sendo o óleo diesel o combustível principal. Em relação às questões institucionais, tanto as ferrovias quanto as rodovias federais estão sendo transferidas para os governos estaduais ou estão sendo privatizadas. Grandes investimentos estão projetados para construir hidrovias, para servir o Mercosul na região sul e os mercados Asiático e Europeu nas regiões norte/nordeste. (GEIPOT, 1997). Nas áreas urbanas, o ônibus a diesel é a forma dominante de transporte. Estima-se que haja em operação cerca de 95.000 ônibus, transportando 50 milhões de passageiros por dia. (ANFAVEA, 1997). Em 1996, havia 726 composições, 195 carros e 61 locomotivas em operação. Nas cidades de renda média mais alta, como no sudeste sul do país, o automóvel particular atende grande parte das viagens motorizadas (50% delas, no caso da Região Metropolitana de São Paulo). (CMSP, 1997). A indústria automotiva nacional é composta por várias empresas multinacionais, que produzem atualmente 1,8 milhões de veículos por ano. Os automóveis correspondem a mais de 80% da produção. (ANFAVEA, 1997).

Sistema de transporte em Canoas Segundo (VICASA, 2012) no início do século XX, mais precisamente no ano 1908 é foi disponibilizado no Rio de Janeiro o primeiro serviço regular de ônibus a gasolina no Brasil. E no ano de 298

Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle

1918 foi criado o serviço de carros elétricos movidos a bateria, vindo dos EUA que operaram durante 10 anos. Após os “Bondes com tração animal e Bonde Elétrico” chegou em Porto Alegre o primeiro ônibus, um Chevrolet Pavão comprado em 1926 por um empresário local, onde mais tarde fundaria o que hoje conhecemos por “Central S/A” de São Leopoldo. A história da SOCAL, Sociedade de Ônibus Canoense Ltda. Fundada em 15 de dezembro de 1947, começa tendo como objetivo realizar o transporte coletivo de passageiros entre Canoas e Porto Alegre, nas linhas intermunicipais e urbanas. Os veículos utilizados para o transporte de passageiros eram importados, das marcas Chevrolet, movidos a gasolina e os Volvos, Bussing à diesel com carrocerias de madeiras. A ideia de apostar no transporte de passageiros foi fortalecida em 1965, quando foram adquiridas cotas de outras empresas de ônibus, tais como a Sociedade de Ônibus Canoense Ltda., Sociedade de Ônibus Chácara Barreto Ltda., Sociedade Ônibus Rio Branco. (VICASA, 2012, p. 1).

No anos de 1981, a empresa Vicasa inovou e incorporou outras empresas de ônibus conforme demonstra a citação acima e esta incorporação resultou na Viação Canoense S/A – VICASA em 1965. A empresa seguiu atuando no ramo de transportes públicos nos municípios de Cachoeirinha - Porto Alegre, parte do município de Gravataí - Porto Alegre, Gravataí - Canoas e Cachoeirinha – Canoas. “Ao longo dos anos, os serviços foram sendo aprimorados com a modernização da frota, investimentos em recursos humanos, procurando valorizar e aperfeiçoar o trabalho e as ações de 1.600 colaboradores que operam na frota, hoje com 400 ônibus”. (VICASA, 2012. p. 2).

Materiais e Métodos Para realização do estudo utilizou-se os seguintes equipamentos para medições de ruídos: a. Decibelimetro Instrutherm modelo DEC-470 número de série 479685, com data e número do último certificado de calibração datado e numerado respectivamente em 06 de fevereiro de 2012 – 28780/12, homologado pelo Inmetro órgão certificador de aparelhos para esta finalidade; este equipamento possui as seguintes funções: o Resposta Rápida (FAST) e Lenta (Slow); o Função LEQ para o último minuto; o Função PEAK HOLD: Congela o valor máximo encontrado (pico); o Microfone de eletreto condensado de ½ polegadas; o Faixa de frequência: 31,5 Hz a 8 kHZ. b. GPS Garmin foi utilizado para georreferenciar as paradas de ônibus. O GPS tem a seguintes características: eTrex Legend GPS de março de 2001 Número de serie 190-00205-02. c. Régua de madeira de 1,20 metros conforme ABNT NBR 10151 foi utilizada com a finalidade de posicionar o decelibelímetro e como forma de apoio no momento dos monitoramentos. Os monitoramentos foram realizados nos dias 12, 13, 14, 15, 16, 19 e 20 de março de 2012, durante 20 minutos (tempo médio de espera no município de Canoas/RS. Como referênciade monitoramento foi observado a ABNT-NBR 10.151 e a Norma Regulamentadora - NR 15 sendo que os dados coletados seguem a utilização do critério da NHO - Norma de Higiene Ocupacional, com os medidores dentro das condições de umidade, pressão e temperatura 299

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especificadas pelos fabricantes

Resultados e Discussões Por meio dos monitoramentos realizados constata-se que os valores ultrapassaram o limite máximo de exposição utilizando como base a Norma Regulamentadora 15 – NR15 (determina limites de ruído que um trabalhador poderá está exposto por dia), porém é uma referência, pois a norma é adequada para trabalhadores em avaliação laboral. Utilizando a ABNT-NBR 10.151 (norma que fixa níveis de ruído que são prejudiciais a saúde e ao sossego público) verificamos que os limites também são extrapolados devido a NBR ser mais restritiva que a NR 15. Nas figuras a seguir pode se verificar os níveis de ruído por parada de ônibus considerando limites de ruído da NBR 10151 (cor azul) e NR 15 (cor vermelha). Gráfico 1 - Comparativo NBR X NR parada 1

Gráfico 2 - Comparativo NBR X NR parada 2

Fonte: Autoria própria, 2012.

Fonte: Autoria própria, 2012.

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Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle

Gráfico 3 – Comparativo NBR X NR parada 3

Gráfico 4 – Comparativo NBR X NR parada 4

Fonte: Autoria própria, 2012

Fonte: Autoria própria, 2012

Gráfico 5 – Comparativo NBR X NR parada 5

Gráfico 6 – Comparativo NBR X NR parada 6

Fonte: Autoria própria, 2012

Fonte: Autoria própria, 2012

A Norma Regulamentadora 15 é a referência de analise de limites de ruído que determinada a quantidade de ruído a que um trabalhador poderá ficar exposto por dia, porém, para este estudo, é uma referência, pois a mesma é adequada para trabalhadores em avaliação laboral. Utilizando a ABNT-NBR 10.151 verificou-se que os limites também são extrapolados devido a NBR ser mais restritiva que a NR 15. A NBR 10151 é o Amparo Legal correto, por tratar de conforto acústico em áreas urbanas, porém na NBR 10.151 não faz citação de rodovias, portanto tivemos de realizar um enquadramento para adequarmos o monitoramento.

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As paradas da Rodoviária e do Centro Comercial (parada 2 e 5) respectivamente demonstraram serem as que possuem os maiores valores de ruído onde em caso de priorização de ações deveriam ser as primeiras a sofrerem alguma ação de atenuação dos ruídos. A Lei municipal n°4328 do município de Canoas que trata da poluição sonora tem como base as ABNT-NBR 10.151, portanto os limites também são ultrapassados conforme esta normativa.

Conclusões O monitoramento diário de 20 minutos nas paradas da BR 116 em Canoas comprova que as paradas de ônibus são locais insalubres conforme adequação legal. Um estudo técnico na busca de soluções eficientes que protejam adequadamente a população pode ser construído com atitude prevencionista e com conhecimento do problema estudado. A posição das seis paradas de ônibus estudadas sugere que a solução viável tecnicamente e economicamente é virar as proteções que atualmente estão nas paradas, ou seja, invertendo as proteções poderemos ter resultados quanto a atenuação dos ruídos sobre os usuários de ônibus. Como no município de Canoas não existe programas de prevenção a dose de ruído, há somente atitudes curativas, a população esta sujeita a desenvolver doenças relacionadas a dose de ruído e medidas simples podem minimizar esta exposição. O estudo demonstra que para as concepções de projeto de paradas de ônibus deve ser considerado o fluxo de pessoas e veículos automotores, estabelecendo paradas com proteção adequada em área de grande fluxo. O tema é de suma importância para projetos de novas paradas, pois devemos primar pela prevenção a exposição ao ruído que pode ocasionar malefícios à população em formas de diversos tipos de doenças assim como modificações posteriores podem ser mais onerosas.

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Geraldo José Rodrigues Alves, Saulo Padoin Chielle

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PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS

Alexsandra Fachinello*

O patrimônio ambiental adquire no século XXI relevância social, uma vez que a compreensão de meio ambiente associa natureza e ser humano. Sendo assim, o desafio consiste em promover a conservação de áreas naturais com a participação da população local, compreendendo-a como parte do espaço e da história destas áreas denominadas de patrimônio ambiental. O conhecimento dos espaços ambientais representados por matas e outros ecossistemas presentes em áreas urbanas é imprescindível para a gestão dos mesmos e para o processo de tomada de decisões. Menegat e Almeida (2004) enfatizam que quanto mais informações sobre o ambiente local estejam disponíveis aos cidadãos em centros de saberes locais, situados em associações de moradores, escolas, instituições públicas, etc., melhor. Chauí (2003, p.47) propõe a distinção entre natureza e cultura e define a natureza como “realidade físico-química e biológica [...]. Em outros termos, a Natureza é a ordem e a conexão universal e necessária entre as coisas, expressas em leis naturais”, ou seja, natureza excluiria a vontade e a intervenção humana. No entanto, a concepção que temos sobre o conceito de natureza também é cultural. Meio ambiente, natureza e cultura são conceitos que se cruzam e trazem consigo, mesmo que indiretamente, a relação entre o homem e o espaço em que vive. A partir desta perspectiva é compreendido o patrimônio ambiental: a natureza tomada como patrimônio nacional, portanto é fruto de uma construção histórica e compreendida a partir das concepções ideológicas. As comunidades que vivem em áreas passíveis de serem consideradas como patrimônio ambiental têm importante papel no processo de conservação. Machado e Braga (2010, p.19) colocam que ao poder público, às instituições de ensino e às organizações da sociedade civil cabe a responsabilidade de trabalhar a questão do patrimônio junto à comunidade: Cabe aos gestores públicos, às instituições de ensino e às organizações da sociedade civil em cada cidade conceber programas e estratégias que estimulem a reflexão sobre o sentido e a importância do patrimônio, abrindo caminho para que a comunidade reconheça a preservação como uma aliada da promoção de melhores relações sociais, melhores condições de vida e caminho para um desenvolvimento mais justo e equilibrado.

A difusão do conhecimento sobre a história do lugar, sobre sua importância social e ambiental e a compreensão da legislação são fatores que viabilizam as iniciativas preservacionistas. Conforme Leff (2005, p.126): “A questão ambiental emerge novos valores e novos princípios que levam à reorganização social e da produção para a reapropriação da natureza e da cultura”. Para o autor existe urgência de cidadania como novo projeto social.

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A preservação do patrimônio ambiental contribui para construção da cidadania e para a formação da identidade, pois estabelece ligação entre passado e presente através do resgate da memória social. Em Canoas, a relação entre a comunidade e o meio ambiente é descrita por Mayer (2009), que apresenta em seu livro “Memória Ambiental de Canoas”, uma descrição e análise de um questionário aplicado entre moradores da cidade acerca da percepção dos habitantes sobre o meio ambiente. Entre os resultados apresentados pelo autor, encontra-se a pequena atuação do poder público municipal, que limita-se à promoção de eventos esporádicos, e à baixa consciência crítica da comunidade nos assuntos relacionados ao meio ambiente. Segundo Mayer (op.cit., p.123), “todos concordam que é muito baixa a consciência crítica e a participação da comunidade.” Neste item, o autor destaca o desconhecimento da população sobre a origem da água que abastece a cidade e o destino do esgoto coletado. Além disso, o autor também questionou a visão dos habitantes sobre a atuação de entidades ambientalistas e descreve que houve unanimidade entre os entrevistados que as Organizações Não-Governamentais (ONGs) e entidades ambientalistas apresentam fraca atuação e com baixa presença na mídia. O processo de urbanização de Canoas produziu áreas naturais fragmentadas e na grande maioria das vezes, cercadas por áreas impermeabilizadas. O Plano Diretor Urbano e Ambiental de Canoas (PDUA), Lei n. 5.341/08, estabelece as áreas de ocorrência de patrimônio natural da cidade, chamadas no documento de Zonas Especiais de Interesse do Ambiente Natural. O manejo das áreas naturais remanescentes deve pautar-se em uma descrição detalhada: apresentar localização, observar as características naturais como tipo de ecossistema, recursos hídricos, identificação de espécies da flora e da fauna e destacar as espécies ameaçadas. Além disso, as características sociais, culturais e históricas também são importantes para o planejamento do manejo das áreas naturais. Estudos em ecologia e manejo dos recursos naturais são capazes de gerar diretrizes e propor estratégias para a conservação (SIMIQUELI e FONTOURA, 2007). Para fins de análise deste estudo foram selecionadas três áreas: os dois Parques Naturais, neste estudo identificados como Parque Natural 1 e Parque Natural 2 e um Parque Urbano, o Parque Municipal Getúlio Vargas. A partir do levantamento realizado durante saídas a campo e a análise de registros escritos e fotográficos, a seguir serão apresentadas uma descrição do estado de conservação e recomendações de manejo para as áreas estudadas. Parque Natural 1: a mata O Parque Natural 1 possui uma área aproximada de 242.000 m2, localizado entre os bairros Cinco Colônias e Mato Grande e apresenta os seguintes limites:ao norte a Rua das Araras, a leste a Rua dos Pessegueiros e ao sul uma área verde particular, que no PDUA consta como Zona residencial. A área caracteriza-se por uma mata nativa de aspecto exuberante e bem conservada, um ambiente com poucos sinais de degradação. 306

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Este Parque Natural encontra-se próximo a áreas residenciais, sendo sua mata cortada pelos trilhos do trem de carga (Fig.1), que limita a divisa entre os bairros Cinco Colônias e Mato Grande. Figura 1 - Trilhos do trem, Parque Natural, Canoas, RS

Foto: Sérgio Bordignon, setembro de 2011.

Os trilhos do trem servem de referência para os moradores, especialmente os do bairro Mato Grande, uma vez que os mesmos cortam o bairro em mais de um local. De acordo com Penna (2003), a população tem suas próprias noções para delimitar o bairro e os trilhos do trem aparecem nestas descrições. No Parque Natural 1, o acesso é livre e apresenta em uma de suas extremidades, na esquina da Rua das Araras com a Rua dos Pessegueiros, no Bairro Cinco Colônias, um espaço com equipamentos de lazer: cancha de bocha, brinquedos infantis e um gramado com traves para jogos de futebol. O acesso ao local, por meio de transporte público, é feito por linha de ônibus. Para visitantes que se deslocam com veículos próprios, a única opção de estacionamento é a via pública. Apesar de abrigar um espaço de lazer, na área não existem banheiros públicos e acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, sendo de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Canoas a manutenção desta área. A sinalização é outro aspecto precário. Não existem placas indicando o local e nem placas informativas que indiquem se tratar de um Parque Natural. Portanto, as pessoas que circulam pelo local não têm acesso a informações mínimas de identificação da área e de instruções e cuidados quanto ao seu uso. Esta mata apresenta uma grande biodiversidade. Entre as espécies nativas foram identificadas: açoita-cavalo (Luehea divaricata Mart. & Zucc.), aroeira-braba (Lithraea brasiliensis March.), chalchal (Allophylus edulis (A. St.-Hil., Cambess. & A. Juss.) Radlk.), chá-de-bugre (Casearia sylvestris 307

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Sw.), camboatá-branco (Matayba elaeagnoides Radlk.), camboatá-vermelho (Cupania vernalis Cambess.), corticeira-da-serra (Erythrina falcata Benth.), jerivá (Syagrus romanzoffiana (Cham.) Glassm.) e a timbaúva (Enterolobium contortisiliquum (Vell.) Morong), árvore símbolo de Canoas. A timbaúva é uma árvore usada para a construção de canoas. Esta característica tornou-a símbolo da cidade, pois de acordo com registros históricos uma das possibilidades para origem do nome do município era a construção de canoas com a madeira extraída dos capões existentes na cidade. Conforme Backes e Irgang (2002), a timbaúva apresenta troncos curtos e largos e pode atingir até 40 metros de altura. É uma espécie pioneira de rápido crescimento em formações secundárias e regenera-se naturalmente bem em capoeiras. Um diferencial da área estudada é a presença de espécies da Floresta Ombrófila Densa1. Na área são encontradas espécies nativas da Mata Atlântica como, por exemplo, o jerivá e a figueira-dafolha-miúda (Ficus cestrifolia Schott)2 (Fig.2). Figura 2 - Jerivá na mata do Parque Natural 1, Canoas, RS

Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.

Na figura 2, o jerivá desponta no centro e em primeiro plano aparece a figueira-da-folha-miúda. As espécies da Floresta Ombrófila Densa propagaram-se através da “Porta de Torres” até o limite fitogeográfico austral próximo ao paralelo 30º (BRACK et al., 1998). Segundo os autores, os morros graníticos do extremo nordeste do Escudo Uruguaio Sul-rio-grandense atuam como uma barreira climática para as espécies de origem tropical.

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A presença das espécies da Mata Atlântica na composição florística da mata demonstra a diversidade ecológica e a importância da conservação deste ambiente. Outra espécie importante encontrada no parque foi a Celosia grandifolia Moq., erva conhecida popularmente pelo nome de bredo-do-mato (Fig.3). Figura 3 - Celosia grandifolia, espécie ameaçada de extinção no RS, presente no Parque natural 1, Canoas, RS

Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.

Esta espécie encontra-se na lista das espécies da flora nativa ameaçadas de extinção no Estado do Rio Grande do Sul na categoria “em perigo”, conforme a Decreto Estadual n. 42.099 publicada em 01/01/20033. Segundo Vasconcellos (1982), é uma espécie raríssima encontrada no interior de matas pluviais muito úmidas da Depressão Central, Litoral e Encosta do Nordeste. Conforme levantamento cartográfico, cedido por Lisandro Rezende Cazuza4, é possível observar a redução da área de mata nativa na região comparando-se os mapas de 1978 e 2011(Fig.4). A mata foi divida em duas áreas: a área 1, denominada pelo autor de Mata Nativa, na porção norte dos trilhos do trem onde o Departamento de Controle Ambiental de Canoas realizou um levantamento de espécies nativas e a área 2, denominada de Mata Grande, na porção ao sul dos trilhos do trem, onde situa-se a maior extensão da mata.

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Figura 4 – Mapas de identificação da área do Parque Natural 1 nos anos de 1978 e 2011 Mata 1978

Fonte: Adaptada da foto aérea (11 – Fx 08-1:20-315) retirada em 1978: Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler- RS. Elaboração do mapa: Lisandro Rezende Cazuza.

Mata 2011

Fonte: Adaptação de imagem retirada do Google Earth 2011. Elaboração do mapa: Lisandro Rezende Cazuza.

Apesar de se tratar de uma área verde urbana, identificada pelo PDUA como Parque Natural; portanto, destinadas à conservação e preservação permanente, os sinais de degradação já são perceptíveis. Nas bordas da mata registra-se a presença de aterros, um de menor proporção da borda junto a Rua das Araras (Fig.5) e outro maior na borda oposta no Bairro Mato Grande e descarte de lixo (Fig.6).

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Figura 5 - Aterro na área do Parque Natural, junto a Rua das Araras, Canoas, RS

Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.

Figura 6 - Descarte de lixo no Parque Natural 1, Canoas, RS

Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.

Durante a visita ao Parque Natural, conversou-se informalmente com alguns moradores que relataram estarem preocupados com a segurança e preservação da área. De acordo com uma moradora,

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algumas pessoas frequentam a mata para beber, usar drogas e até mesmo para atos sexuais, o que está despertando preocupação da vizinhança. Ao caminhar pela mata, visualizam-se garrafas de bebidas descartadas, sacolas plásticas e embalagens de alimentos. Esta moradora também relatou que há aproximadamente 20 anos, os moradores da redondeza costumavam reunir a sombra da mata para tomar chimarrão e jogar bola. Frente às atuais condições em que se encontra o Parque Natural1, faz-se necessário um planejamento urgente para este espaço urbano natural e imediata implantação, evitando que tal fragmento de mata nativa venha a sofrer uma rápida e irreversível degradação. Tal planejamento deve buscar compatibilizar a manutenção de sua integralidade ecológica e seu uso como um espaço sócio-cultural-educativo, equilibrando a conservação dos recursos naturais e o atendimento da comunidade através de atividades de lazer e cultura. Os Parques em áreas urbanas, como no presente caso, normalmente destinados a funcionarem com áreas de recreação, podem e devem ser vistos como áreas privilegiadas da cidade se tiverem sua função ecológica devidamente planejada. Há vários exemplos que comprovam isto, podendo ser citado um próximo de Canoas e bastante recente: o Parque Germânia em Porto Alegre. Este Parque, totalmente cercado, possui aproximadamente 14,5 hectares, sendo parte desta área destina ao público – composta por quadras esportivas, playground e infraestrutura de lazer – e áreas isoladas, sem acesso ao público, destinada à preservação da mata nativa. Diante de suas características e fragilidades diagnosticadas, para esta área recomenda-se: Todo o planejamento, com base nas recomendações que seguem, tenha a participação da comunidade, especialmente aquela que se encontra residindo no entorno do Parque. •

Conferir identidade

O nome é um importante elemento de identidade, portanto para que a população da cidade o identifique pelo nome e o reconheça como um local importante de Canoas, um local de conservação da natureza. Para tanto, é importante que a comunidade participe na escolha de seu nome, se aproprie deste espaço. •

Cercamento da área; presença de seguranças e horários de acesso

O cercamento do Parque, a presença de segurança e horários de acesso se mostram como procedimentos desejáveis, inclusive já manifestados por alguns moradores locais. Tais procedimentos garantiriam a segurança dos visitantes, o uso adequado de seus equipamentos e a manutenção e integridade da área e sua biodiversidade. •

Tombamento do Parque como Patrimônio Natural de Canoas

O tombamento de áreas naturais visa preservar espaços, que entre outras características, apresentem relevância histórica, paisagística e científica. Portanto, o Parque Natural enquadra-se nesta 312

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condição, pois como já descrito anteriormente, a área possui significativo valor ecológico pelas espécies encontradas no local e também importância histórica para Canoas, por ser um fragmento da paisagem pretérita da cidade. O instituto do tombamento foi criado em 1937 através do Decreto Lei 25/37, é um mecanismo jurídico que estabelece, segundo Martins e Rocco (2009, p.26) “[...] limitação administrativa a bens móveis e imóveis, em benefício do interesse público, devido ao seu valor cultural ou ambiental.” Dessa forma, o tombamento implica em restrições de uso a fim de garantir a proteção da área tombada. •

Construção de um espaço (“Centro de Visitantes”) que abrigue a administração do Parque, uma área de recepção, pequeno auditório e um Museu associado ao desenvolvimento de atividades de educação ambiental e patrimonial

A promoção permanente de atividades de educação ambiental e patrimonial, como oficinas, minicursos e exposições de fotografias, trabalhos científicos e escolares sobre o ambiente natural de Canoas se justificam pela necessidade de desenvolver a consciência ecológica e a valorização das áreas naturais remanescentes da cidade junto à comunidade através do estímulo a práticas sustentáveis. Além disso, o PDUA, no art. 58, dispõe sobre a Estratégia de Qualificação Ambiental como “ações que visam a qualidade de vida através da proteção dos ecossistemas e do ambiente construído” e no 59 define objetivos específicos da Estratégia de Qualificação Ambiental, destacando as alíneas II e V que abordam a valorização do Patrimônio Ambiental e a educação ambiental. Numa análise preliminar, esse espaço poderia ser construído na borda do Parque no cruzamento da Rua das Araras e dos Pessegueiros, pois nesta parte do Parque, a mata já foi removida e já existem construções de equipamentos de lazer. Como instrumento importante para o Planejamento e efetiva implantação do Parque, se faz necessário propor um estudo que privilegie uma área de acesso ao público e uma área de acesso restrito destinada à preservação da biodiversidade e desenvolvimento de pesquisa através de convênios com Instituições de ensino superior, especialmente aquelas do município. •

Zoneamento do Parque

A realização de estudo detalhado que indique o zoneamento do Parque Natural 1 delimitando as áreas de Preservação Permanente da Biodiversidade e de Uso Sustentável. Este zoneamento é fundamental para a administração do Parque, uma vez que este deve ser um instrumento balizador das definições das atividades a serem desenvolvidas e locais de ocorrência. O zoneamento possibilitará a criação de infraestrutura para a realização de trilhas ecológicas orientadas e autoexplicativas. Ao longo das trilhas, os visitantes poderão observar e conhecer características da flora e da fauna de Canoas, compreender e disseminar informações acerca da importância do Parque para a cidade.

Parque Natural 2: o banhado O Parque Natural 2 caracteriza-se por uma área de banhado de 400.000 m2 aproximadamente, 313

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localizado no Bairro Mato Grande entre a zona de produção agrícola5 de Canoas e a zona residencial do bairro. Seus limites são ao sul a Rua João Wobeto, ao norte uma área verde descrita no PDUA como Zona de Interesse Institucional, a oeste a Estrada Dona Maria Isabel e a leste uma área residencial do Bairro Mato Grande. A exemplo Parque Natural 1, este também tem acesso sem restrições. Para visitar o local, as alternativas são o ônibus e veículo próprio, com estacionamento apenas nas vias públicas. A infraestrutura é muito precária. Não existem placas de sinalização indicando acessos e nem mesmo, a informação que trata-se de um parque. Também não há construções, nem equipamentos de lazer. A paisagem do Parque é de uma grande várzea com predomínio de gramíneas e com maricazais nas bordas, características típicas de banhados. No centro da área, destaca-se na paisagem, a presença de um açude. A área do Parque é conhecida popularmente como “Barreirão”. De acordo com Neinam (1989), os banhados são ambientes alagados, encontrados de norte a sul do Rio Grande do Sul e são importantes, uma vez que são fornecedores de nitrogênio para a atmosfera. Outra característica destas áreas é a riqueza da biodiversidade, especialmente peixes e aves. Os banhados desempenham funções importantes como controle de inundações, carga e descarga de água subterrânea, proteção contra erosão, filtro natural de substâncias poluidoras, retenção de sedimentos e manutenção da diversidade biológica6. No parque foram identificados espécies da flora e da fauna. Da flora, destacam-se os maricás, corticeiras-do-banhado (Erythrina crista-galli L.) (Fig.7), gramíneas e juncos. Figura 7 - Erythrina crista-galli, Parque Natural, Canoas, RS

Foto: Jairo Luís Candido, julho de 2011.

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A Erythrina crista-galli, conhecida popularmente por corticeira-do-banhado é uma árvore retorcida, de flores róseo-vermelhas. É bastante característica em ambientes úmido, como banhados, beira de rios e lagos (BACKES e IRGANG, 2002). A corticeira-do-banhado é uma espécie protegida pelo Código Florestal Estadual, Lei n. 9.519/92, portanto imune ao corte. Os maricás são abundantes na área do Parque. De acordo com Backes e Irgang (2002), os maricazais são muito comuns em terras baixas alagáveis e várzeas. Elas são pioneiras e podem ser usadas para a recuperação de ambientes degradados, especialmente para a recuperação de áreas de antigos arrozais. Quanto à fauna, foram avistadas garças-brancas-pequenas (Egretta thula Molina), maçaricoda-cara-pelada e maçarico-da-cara-preta (Fig.8). Figura 8 - Maçarico-da-cara-pelada (Phimosus infuscatus) Parque Natural 2, Canoas, RS

Foto: Jairo Luís Candido, julho de 2011.

A descrição da paisagem e da biodiversidade também aparecem nos relatos dos moradores do bairro Mato Grande transcritos por Penna (2003, p.39): Outra brincadeira era proporcionada pelo “barreirão”, conforme explica Regina Shein dos Santos: “Barreirão” é uma represa, como um açude. Existe ainda. [...] Ele secava, tinha época que nem sempre tinha água. Até jogar futebol eles jogavam nessa área. De vez em quando tinha água e quando isso acontecia, os guris tomavam banho e pescavam.

Nesse relato, a autora traz à tona as lembranças dos moradores do barreirão como um espaço de lazer. Penna (2003), também apresenta relatos de que na área ocorriam caçadas. Entre os animais descritos aparecem marreca, marrecão e galinhola. 315

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A forte pressão do crescimento urbano do bairro mudou os hábitos dos moradores e a paisagem local. O Parque Natural 2 também está sofrendo impactos, fruto destas mudanças. O avanço das construções de residências populares e descarte de lixo são alguns dos problemas encontrados na área. (Fig.9). Figura 9 - Construções e lixo na vizinhança do Parque Natural 2, Canoas, RS

Foto: Jairo Luís Candido, julho de 2011.

Os próprios moradores observam as mudanças e os impactos ambientais presentes nesta área. Penna (2003, p.39): Ligada a essa lembrança é o relato de Dioclécio Bitencourt: “Naquela época pescava uma barbaridade no banhado. Hoje está cheio de casas, pra lá do barreirão. É conhecido como banhado do Mato Grande. Quando dava uma chuvarada boa, a água ficava mais de metro de altura. Tinha peixe que era uma barbaridade, mas depois, com esse negócio dos venenos de granja, acabaram com tudo [...].

Durante a saída a campo também foi encontrado descarte de material eletroeletrônico nas dependências do Parque . Este lixo era composto principalmente por monitores de computadores, mas também foram identificados pneus, lonas plásticas, garrafas plásticas e restos de móveis. O Parque Natural 2, por ser área de banhado, é protegido pelo Código Florestal, Lei n. 4.771/65 e pela Resolução n. 303 de 2002 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) como Área de Preservação Permanente (APP). As áreas de APP, por imposição legal, são espaços de intocabilidade que devem ser conservadas para manter a biodiversidade, o fluxo gênico, bem como o bem estar do homem; portanto são espaços territoriais especialmente protegidos. Conforme Silva (2010, p.233): São áreas geográficas públicas ou privadas (porção do território nacional) dotadas de atributos ambientais que requeiram sua sujeição, pela lei, a um regime jurídico de

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interesse público que implique sua relativa imodificabilidade e sua utilização sustentada, tendo em vista a preservação e a proteção da integridade de amostras de toda a diversidade de ecossistemas, a proteção ao processo evolutivo das espécies, a preservação e proteção dos recursos naturais.

No conceito acima é possível destacar dois aspectos: a preocupação com a sustentabilidade que aparece na descrição “utilização sustentada” e a preocupação com a preservação da biodiversidade encontrada na proteção dos ecossistemas e dos processos evolutivos as espécies. No entanto, esse Parque Natural de Canoas encontra-se em situação de vulnerabilidade, pois como descrito anteriormente já apresenta sinais visíveis de degradação. O Parque Natural 2, conhecido na cidade como Banhado do Mato Grande ou como Barreirão localizado no bairro Mato Grande, constitui-se de uma área de banhado, portanto, pela legislação vigente é definida como Área de Preservação Permanente (APP). Dentro desse contexto, o manejo da área deve ser mais restritivo. Para este Parque Natural de Canoas, recomenda-se: •

Conferir identidade ao Parque.

Os mesmos motivos que justificam a importância de um nome para a área do Parque Natural 1, se aplicam para este caso. É necessário que a população identifique a área, a reconheça e a valorize. O fato da comunidade local a denominar popularmente por Barreirão, já demonstra que no bairro, o local é reconhecido, mas para sua preservação é fundamental que a comunidade se identifique e reconheça a importância deste Parque. •

Cercamento do Parque

É de suma importância para conter o avanço do crescimento urbano sobre a área. O número de casas e condomínios populares cresce de forma acelerada em seus arredores e a tendência e de continuar crescendo em função da construção da BR 448, a Rodovia do Parque, que passará muito próximo do local. Além disso, o cercamento também auxiliaria na contenção dos descartes de lixo que estão ocorrendo nos limites do Parque Natural 2, propiciando a restauração das condições ambientais, assim como a manutenção da biodiversidade, representada pela fauna e flora características deste ambiente. •

Construção de um Plano de Manejo detalhado

O plano de manejo é um instrumento que orienta a gestão de áreas naturais, especialmente as Unidades de Conservação e define objetivos de manejo com vistas à conservação. Por ser o “Barreirão” uma área de banhado, um ecossistema muito importante para a cidade e ao mesmo tempo sob forte pressão da ação antrópica, recomenda-se um plano de manejo a fim de garantir uso adequado da área e a conservação de sua biodiversidade. •

Incentivo ao desenvolvimento de pesquisas científicas

O desenvolvimento de novos conhecimentos é de suma importância para a conservação dos espaços naturais e sua biodiversidade. O Parque Natural 2 é um local de grande diversidade biológica, portanto com grande potencial para o desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas do conhecimento e, sendo assim, de produção de novos saberes e aporte de conhecimento para uma manutenção adequada. 317

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Atividades voltadas para a Educação Ambiental e Patrimonial;

As atividades de educação ambiental e patrimonial são promotoras de criticidade e de desenvolvimento de atitudes sustentáveis. Dentre as atividades, sugere-se visitações guiadas voltadas para escolas e universidades com fins de conscientização da importância da preservação da área. •

Criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral

Os banhados são ambientes importantes para o equilíbrio ecológico e a manutenção da biodiversidade e, além disso, como já referido, enquadram-se como APP. Portanto, necessitam de proteção integral. Antes do estabelecimento de Uma Unidade de Conservação é importante que seja desenvolvido todo um estudo ambiental que fundamente tal encaminhamento. A proposição de criação de uma UC nesta área está pautada no art. 63, inciso V, alínea b do PDUA que determina dentro do Programa de Qualificação Natural “Criação de Unidades de Conservação: Parque Getúlio Vargas e Parque do Mato Grande”. A área do “Barreirão” encontra-se fragilizada diante dos impactos antrópicos que vem sofrendo. Além disso, a área representa um remanescente no município de Canoas desse tipo de ecossistema comum na paisagem pretérita e, ainda hoje, fundamental para o equilíbrio ecológico na cidade. Primack e Rodrigues (2001, p.239) afirmam que: “o manejo de áreas alagadiças é uma questão particularmente crítica.” Segundo os autores, a manutenção das áreas alagadiças é fundamental para a preservação de espécies de aves, peixes, anfíbios, plantas aquáticas entre outras, porém elas “disputam” a água com outros projetos, como irrigação, por exemplo, o que pode afetar o nível e a qualidade se suas águas.



Parque Municipal Getúlio Vargas

O Parque Municipal Getúlio Vargas, conhecido como Capão do Corvo, possui uma área de aproximadamente 277.000 m2 localizado no Bairro Marechal Rondon entre as Ruas Dona Rafaela, ao sul, e a Rua Irmão Francisco Bagatini, a oeste. Na divisa ao norte, encontra-se a área do Sesi e a leste uma área verde. O PDUA de Canoas o define como Zona Especial de Interesse do Ambiente Natural inserido na classificação Parque Urbano, portanto é um espaço destinado ao lazer, ao esporte e à educação, mas com fins ecológicos. Dentre os Parques Urbanos da cidade, o Capão do Corvo encontra-se entre os mais frequentados pela população. Especialmente nos fins de semana, o número de pessoas que circulam no parque e usufrui de sua infraestrutura é muito grande. O Capão do Corvo tem acesso gratuito, sem nenhuma restrição aos visitantes. Existem linhas de ônibus que passam em frente ao parque e aos visitantes que optam pelo veículo particular, existe um pequeno estacionamento gratuito nas suas dependências.

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No Capão do Corvo existe uma grande quantidade de instalações: rampas de acesso para portadores de necessidades especiais, sanitários, placas de sinalização e informativas. Além disso, o parque dispõe de quadras esportivas, pista para caminhadas, brinquedos infantis, área com churrasqueiras e espaços para programas educativos como uma biblioteca e o relógio biológico. Dentro do parque também encontram-se as instalações da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e o Zoológico Municipal. As placas de sinalização e informações são pontos que merecem destaque. Há placas indicando o acesso ao mesmo, na Avenida Getúlio Vargas (umas das principais vias da cidade) e na Rua Dona Rafaela onde este se localiza. Dentro do parque, existem placas indicando os equipamentos (quadras, pista, área de churrasqueiras, etc.) e também há placas informativas que alertam os visitantes sobre cuidados necessários ao circularem pelo zoológico, atenção com a presença de animais silvestres e com as condições de profundidade e qualidade da água do lago. O Parque é conhecido por ser um espaço verde da cidade. A vegetação ocupa uma parte significativa da área. Durante a saída a campo foram identificadas espécies nativas e exóticas. Nas margens do lago que existe no interior do parque, a vegetação nativa (Fig.10) é composta predominantemente por Maricás. No entanto, também é possível identificar espécies exóticas como fórmio ou linho-da-nova-zelândia (Phormium tenax Forst.). Figura 10 - Vegetação das margens do lago, Parque Getúlio Vargas, Canoas, RS.

Foto: Sérgio Bordignon, setembro de 2011.

Dentro do lago, a vegetação aquática que se destaca é a alface-d’água (Pistia stratioides L.), macrófita flutuante livre que se multiplica e pode produzir eutrofização das águas. Nas áreas mais afastadas do lago, a vegetação é de maior porte, árvores nativas como açoita319

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cavalo, chal-chal, aroeira-vermelha (Schinus terebinthifolia Raddi) e capororoca (Myrsine guianensis (Aubl.) Kuntze) são encontradas. Com apoio da Prefeitura Municipal e outras instituições públicas e privadas, se desenvolveu na cidade um programa de educação ambiental intitulado “Canoas que te quero verde”. Uma das ações realizadas por este programa foi a identificação de várias árvores presentes no Capão do Corvo. Nas árvores foram colocadas placas com o nome popular e científico das espécies e a família a qual pertence. O intuito da campanha era despertar a atenção da população para a importância da arborização urbana. Entre as árvores nativas se fazem presente espécies exóticas, com destaque para a presença de eucalipto, árvore do gênero Eucalyptus , originária da Austrália e Indonésia. Os eucaliptos foram introduzidos na área há muitos anos, provavelmente pelos quilombolas que moravam na vizinhança, como já descrito anteriormente. Hoje, eles fazem parte da história e da paisagem do Capão do Corvo. O Parque Getúlio Vargas, apesar de sua infraestrutura não aproveita todas as suas potencialidades. Os visitantes que chegam ao Capão do Corvo têm várias opções de lazer e prática esportiva. No entanto, a sua função educativa com fins ecológicos deixa a desejar. Um exemplo é o descaso com o Relógio Biológico do Corpo Humano. A manutenção dos equipamentos deixa a desejar, perdendo em muito dos casos a sua função. O Relógio Biológico do Corpo Humano é um recanto do parque que possui um canteiro circular onde estão cultivadas plantas com fins medicinais. No centro do canteiro, há uma placa ilustrada explicando como funciona o relógio biológico (Fig.19) e nos canteiros, pequenas plaquinhas informam o nome científico e popular da planta, uma ilustração e a indicação de para quais órgãos humanos a planta tem função medicinal. Figura 11 - Relógio Biológico do Corpo Humano localizado em área do Parque Capão do Corvo, Canoas, RS

Foto: Alexsandra Fachinello, setembro de 2011.

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No entanto, o Relógio Biológico apresenta sinais de ausência de cuidados. Ele está cheio de folhas secas, as placas com as informações sobre as plantas estão fora de local, cravadas em canteiros onde outras ervas estão plantadas. Neste caso, inclusive, acaba fornecendo informações equivocadas. A importância do Parque para a cidade é destacada por Avancini e Aguilar (2009, p. 157): O Capão do Corvo, hoje parte do Parque Getúlio Vargas, é um dos muitos capões de mato que verdejam sobre as coxilhas canoenses, situadas entre três tributários do Guaíba: o rio Caí, o Sinos e o Gravataí. É uma zona de muitos pântanos que se inundavam por ocasião das enchentes, e de arroios como o Araçá, o das Garças, o Arroio Sapucaia e o Arroio da Brigadeira cujos nomes contam um pouco da história da ocupação desse espaço.

Além de ser um espaço hoje destinado ao lazer e à educação, o Capão do Corvo é também importante local de conservação da natureza, um recanto que remete à história da cidade, à antiga paisagem e às transformações vividas por ela. O Parque Getúlio Vargas apresenta características bem distintas dos Parques Naturais 1 e 2. Trata-se de um Parque Urbano, uma mancha verde rodeada de espaços construídos. A infraestrutura disponível para lazer e esportes em ambiente altamente arborizado, com renascentes de mata nativa são as principais marcas do conhecido Capão do Corvo. Outra característica importante do Parque é o grande fluxo de pessoas que o frequentam. Moradores de diferentes bairros da cidade usufruem de seus equipamentos e espaços. Dessa forma, para o Parque Getúlio Vargas, recomenda-se: •

Retirada da vegetação exótica aquática e das margens

O controle quanto à proliferação da vegetação aquática, retirando o excesso da mesma impedindo sua proliferação e consequente processo de eutrofização das águas do lago presente no interior do Parque. As macrófitas retiradas podem ser utilizadas como adubo natural no ajardinamento do próprio Parque e praças da cidade. •

Restauração e manutenção de espaços

O Relógio Biológico é um equipamento que deve ser restaurado e mantido em condições de uso, caso contrário deve ser interditado ou retirado. Atividades envolvendo conhecimentos sobre plantas medicinais e hortas ecológicas são algumas das alternativas que poderiam ser trabalhadas neste local. •

Reformar do espaço ocupado pela Biblioteca João Palma da Silva dentro do Parque

O espaço ocupado pela Biblioteca Municipal dentro do Parque é subutilizado. Neste local poderiam ocorrer oficinas de educação ambiental e patrimonial, exposições de fotos, de trabalhos científicos e artísticos que envolvam Canoas.

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PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS



Criação de roteiros/trilhas educativas

As trilhas podem ser tratadas como caminho de descoberta do Parque e da Cidade. Ao longo destas trilhas poderiam ser dispostos painéis informativos sobre a história do Capão do Corvo e sua paisagem. Identificar espécies da flora nativa presente no parque e a descrição de sua importância ecológica. •

Aproveitamento da grande circulação de pessoas no parque e criação de um espaço de divulgação

O Capão do Corvo, como já referido, é um dos parques de maior circulação de pessoas da cidade. O poder público municipal poderia aproveitar deste fato e organizar um espaço de divulgação de materiais informativos da cidade: Folders educativos e informativos sobre meio ambiente e cultura, materiais de divulgação dos diferentes espaços da cidade como os parques naturais, praças, pontos de cultura, museus e monumentos, também os eventos e cursos educativos poderiam encontrar no Parque um local de difusão. Enfim, um centro de informações de Canoas para canoenses e não canoenses que queiram desvendar os bens culturais da cidade. As propostas recomendadas para as três áreas de ambientes naturais remanescentes de Canoas visam o reconhecimento destas como patrimônio ambiental da cidade e a importância da conservação através de ações articuladas com as áreas de educação patrimonial, meio ambiente, biodiversidade e sustentabilidade. Por fim, cabe destacar que a administração do patrimônio ambiental de uma forma que garanta a conservação da biodiversidade e permita o uso sustentável dos ambientes naturais remanescentes em áreas urbanas depende de princípios ecológicos, não apenas para solucionar ou prevenir problemas ambientais, mas, principalmente, para instruir os pensamentos e as políticas públicas.

Notas 1-

Floresta Ombrófila Densa: caracterizada pela presença de árvores de grande e médio portes, além de lianas (cipós) e epífitas em abundância. Estende-se pela costa litorânea desde o Nordeste até o extremo Sul. Sua ocorrência está ligada ao clima tropical quente e úmido, sem período seco, com chuvas bem distribuídas ao longo do ano (excepcionalmente 60 dias de umidade escassa) e temperatura médias variando entre 22° C e 25° C. (CAMPANALI, e SCHAFFER, 2010, p.62). 2

- De acordo com Sobral et al. 2006, Ficus cestrifolia é nome atual para esta espécie anteriormente denominada como F. organensis (Miq.) Miq. 3-

RIO GRANDE DO SUL. Decreto Estadual 42.099/2003. Disponível em: Acesso em: 01 nov. 2011. 4

- Estudante do curso de Geografia do Unilasalle que participa de pesquisa sobre o bairro Harmonia, Canoas/RS.

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5

- A Zona de Produção Agrícola de Canoas situa-se nas proximidades do Rio dos Sinos, numa área às margens da Rodovia BR 448, chamada de Rodovia do Parque (em construção). Nessa área cultivamse, principalmente hortaliças e arroz. 6

- ZOOBOTANICA RS. Banhados: ecossistemas ameaçados. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2011. 7

- “Art. 33 - Fica proibido, em todo o território do Estado, o corte de: I - espécies nativas de figueiras do gênero Ficus e de corticeiras do gênero Erythrina.” RIO GRANDE DO SUL. Lei n. 9.519/92. Código Florestal do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2011. 8

- BRASIL. Lei n. 4771/65. Código Florestal Brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 01 jan. 2011 9

- O Código Florestal, Lei n. 4771/65 define o que são Áreas de Preservação Permanente, posteriormente a Resolução n. 303/2002 apresenta com detalhes suas definições e limites (Skorupa, 2003) SKORUPA, Ladislau Araújo. Áreas de Preservação Permanente e Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: Acesso em: 15 nov. 2011. 10

- O texto da Lei escreve Parque do Mato Grande, porém não explicita qual dos dois Parques Naturais é o referido, uma vez que ambos os Parques localizam no mesmo bairro. No entanto, o chamado “Barreirão” está totalmente inserido no Bairro Mato Grande, enquanto que o outro Parque possui uma parte de sua área neste bairro e outra porção no bairro vizinho. 11

- Eutrofização é um processo de degradação que ocorre em reservatórios de água naturais e artificiais quando a presença excessiva de nutrientes que limitam a atividade biológica do ecossistema. 12

- O gênero Eucalyptus compreende grande número de espécies com características comuns, conhecidas como eucalipto. No Brasil o eucalipto foi introduzido no século XIX com objetivos de ornamentação e quebra-vento, devido o seu rápido crescimento. Nos dias de hoje, o eucalipto é cultivado, principalmente, para fins comerciais. PEREIRA, José Carlos Duarte et al. Características da madeira de algumas espécies de eucalipto plantadas no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2011.

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PATRIMÔNIO AMBIENTAL EM CANOAS, RS: DIAGNÓSTICO DE CONSERVAÇÃO E PROPOSTAS DE USO SUSTENTÁVEIS

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* Licenciada em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Geografia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em Memória Social e Bens Culturais pelo Centro Universitário La Salle/Canoas. Professora de Geografia do Ensino Médio do Colégio Monteiro Lobato, Porto Alegre, RS.

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A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO

Joel Luis Dumke * Patrícia Abel Balestrin** Nathália Stedile***

Para começo de conversa Discorrer sobre um empreendimento de economia solidária que tem como trabalho a separação de materiais da coleta seletiva da cidade de Canoas/RS apresenta-se como um desafio de vida, uma vez que a pesquisa aqui apresentada não se resume a uma inserção no campo da reciclagem, mas antes se caracteriza como um acompanhamento do empreendimento social realizado durante o ano de 2011. A pesquisa-ação teve como propósito fazer uma aproximação com o grupo e analisar os modos de organização coletiva do empreendimento enquanto espaço de trabalho, de geração de renda e de transformação social. A questão norteadora da pesquisa foi: como proporcionar melhoria nas condições de vida e de trabalho em um empreendimento de economia solidária? Trata-se de uma pesquisa de ordem social que ocorreu ao longo do ano de 2011 com o propósito de perceber quais os sentimentos dos empreendedores enquanto cooperados de um coletivo social de reciclagem no que diz respeito aos modos de trabalho e de vida na cooperativa. Por se tratar de uma pesquisa participante, o artigo apresenta falas dos trabalhadores da cooperativa acerca do seu dia a dia e analisa como se dá a sustentabilidade do empreendimento social. A pesquisa justifica-se pela necessidade de criação e implementação de tecnologias sociais que visem à melhoria nas condições de vida de segmentos populacionais que foram historicamente excluídos. Para tanto, iniciou-se um processo dialógico com os/as integrantes da cooperativa definindo com eles/as o espaço de atuação do Tecnosocial/Unilasalle. Foram realizadas visitas e assessorias técnicas, ao longo de 2011, onde se buscou debater as demandas do grupo priorizando a participação popular nas tomadas de decisão. Acredita-se que os processos de construção democrática relacionados ao trabalho e à história de vida dos/as cooperados/as partem do princípio da criação de novas relações e da necessidade de assumir novas experiências individuais e coletivas como quem age no mundo, assume compromisso e transforma a realidade. Aposta-se na força da experiência conforme Bondía (2002, p. 26) a define: “É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação.” Pretende-se, a seguir, mapear o campo de pesquisa e observar o objetivo social da cooperativa no que diz respeito aos princípios do trabalho coletivo e da gestão democrática do grupo.

A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO

Contextualizando o campo de pesquisa A Coopermag – Cooperativa de Coleta Seletiva e Reciclagem União Faz a Força de Canoas – é um dos empreendimentos vinculados ao Tecnosocial/Unilasalle cujo objetivo principal é o desenvolvimento de projetos e a difusão de tecnologias sociais. Uma de suas linhas de atuação é o trabalho com esses grupos de economia solidária, através da Incubadora de Empreendimentos Solidários do Tecnosocial/Unilasalle. A Coopermag é uma cooperativa de reciclagem formada por empreendedores/as sociais do bairro Mato Grande, da cidade de Canoas/RS. O grupo é formado por 23 pessoas, das quais 17 são mulheres. A cooperativa participa do projeto Sujeitos em Ação: geração de renda e cidadania, desenvolvido pelo Tecnosocial/Unilasalle, apoiado pelo Centro de Assistência Social La Salle Niterói, pelo Colégio La Salle/Canoas, pela Empresa Sinergia e Consultoria Junior e pela Incubadora de Empreendimentos Solidários do Tecnosocial/Unilasalle. O trabalho da cooperativa está voltado à triagem e classificação de materiais da coleta seletiva, da qual o grupo se aproximou em vista da construção de um projeto de sustentabilidade para a continuação dos trabalhos no galpão de reciclagem. Quando perguntada sobre o nascimento da cooperativa, a coordenadora do empreendimento relata: Pesquisador – A cooperativa nasceu quando? Coordenadora – Não faz muito tempo. Nasceu em julho desse ano [2011]. A associação vai fazer 11 anos. Desde 2002 tem a associação. Pesquisador – Me conta por que era associação e virou cooperativa? Coordenadora – O contrato da prefeitura exigiu que fosse cooperativa.

A mudança de Associação para Cooperativa acontece no momento de instabilidade do grupo que busca construir um projeto de vida mais sólido e consistente para o empreendimento – um projeto que resista aos terremotos contemporâneos do mundo do trabalho. A conquista de um contrato de prestação de serviços de coleta seletiva com a prefeitura do município de Canoas mostrou-se como um eixo estratégico para manter o galpão em funcionamento, no momento em que era possível a mudança da denominação jurídica de associação para cooperativa. Consolidado o empreendimento cooperativo, o projeto de sustentabilidade ganha corpo e se apresenta como espaço de troca e construção de novos conhecimentos dentro e fora da cooperativa. Uma mudança de valores e novas conquistas foram mostrando, aos poucos, que o trabalho no empreendimento estava progredindo no sentido do fortalecimento da renda dos cooperados, o que despertou o interesse de uma das cooperadas que fala sobre o crescimento do grupo: Antes, bem antes de eu entrar na cooperativa, eram partilhas iguais, assim como está sendo agora, mas só dava R$ 100,00 por quinzena, daí eu não entrei. Depois começaram por produção, cada um ganhava o que fazia, daí a gente pesava. Daí se ganhava um pouco melhor. Mas aí terminaram porque tava dando muita briga. [...]. Aí terminaram e começaram partilhas iguais de novo. Mas agora a gente ta ganhando melhor.

Atualmente, a renda per capita dos trabalhadores da Coopermag mantém-se estável, girando entre duzentos e setenta e cinco reais e trezentos e cinquenta reais a quinzena, dependendo da quantidade de materiais vendidos durante o mês. O crescimento da renda se deve, também, ao fortaleci328

Joel Luis Dumke, Patrícia Abel Balestrin, Nathália Stedile

mento do grupo enquanto empreendimento de economia solidária. O contrato de prestação de serviços ao município de Canoas tem significativa importância na produção de trabalho e geração de renda, mas nada disso teria sido possível sem o compromisso dos associados em prestar o serviço enquanto coletivo de trabalhadores reconhecidos como cooperativa de economia solidária. O envolvimento do grupo e as amostras de suas ações aparecem na prática do dia a dia no galpão de reciclagem onde os trabalhadores se “reconhecem” como empreendedores sociais e donos do empreendimento, suplantando as velhas relações entre patrões e empregados.

Princípios do cooperativismo: por uma prática reflexiva A partir desta pesquisa, percebe-se que a Coopermag vem ganhando espaço na comunidade onde está inserida, mostrando que o trabalho cooperativo popular solidário está crescendo como resposta aos mecanismos de desordem econômica. Perpassa nesse momento a ênfase na construção das identidades individuais e coletivas que se constroem também nas relações do trabalho. Percebe-se que os cooperados avançam na construção de suas relações de trabalho quando vêem que a economia solidária também é espaço de construção de vida, como reforça a coordenadora do empreendimento quando relata que a cooperativa enquanto espaço de geração de trabalho e renda oferece oportunidades aqueles que são excluídos pelo mercado capitalista e encontram na reciclagem uma alternativa ao desemprego. Nas palavras de Veronese (2011) o projeto de trabalho do cooperativismo apresenta uma importante ponte entre a esfera econômica e a esfera social, se apresentando como projeto viável na medida em que se é convidado a pensar nas condições e nos meios de trabalho do capitalismo na sociedade contemporânea. Inclusive, na fala da coordenadora da Coopermag, é possível pensar em projeto de vida ligado ao modo cooperativo de trabalho. No empreendimento, todos se colocam como proprietários da cooperativa e assim procuram ampliar a renda e, consequentemente, a qualidade de vida. No entanto, segundo a coordenadora do empreendimento, isso depende da ajuda de todos por se tratar de um processo que deve ser pensado em conjunto e construído como projeto de futuro para o grupo. Temos condições de melhorar muito. Se nos tivéssemos coisas adequadas como uma esteira e uma prensa, porque nossa prensa está em estado precário não tendo como prensar toda hora, porque ela para. Ela tá com problemas. Se tivéssemos uma prensa e uma esteira melhor nós poderíamos produzir bem mais e aumentar a renda. Hoje nós temos uma renda que dá pra sustentar a família porque a gente não ganha tão pouco. Ganhamos R$ 500,00 até R$ 700,00 por mês. É um valor bom, mas a gente tem condições de ganhar muito mais. Temos que pensar pra frente. Temos o objetivo de crescer, mas não se quer crescer sozinha. Meu pensamento desde que eu entrei – eu nunca pensei em estar no lugar que estou hoje – mas sempre pensei em ter um bom salário pra mim e pras minhas colegas.

O empreendimento trabalha um projeto de sustentabilidade ligado ao mundo do trabalho enquanto espaço de economia solidária e melhoria de qualidade de vida do coletivo. Para isso, não deixa de lado a vivência de sonhos e os espaços das relações humanas que podem ser percebidos na fala acima quando a coordenadora afirma que seu objetivo não é crescer sozinha, mas construir uma boa renda para ela e para suas colegas.

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A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO

Nessa direção, Santos (2005) escreve que o cooperativismo surgiu como alternativa perante as ramadas exclusões provocadas pelo capitalismo tendo como princípios teóricos e vivenciais a associação econômica entre iguais. Dessa forma, entende-se que as práticas cooperativas contemporâneas são tão antigas quanto o mecanismo capitalista industrial. O mesmo autor explica que “as primeiras cooperativas sugiram por volta de 1826, na Inglaterra, como reação a pauperização provocada pela conversão maciça de camponeses pequenos produtores em trabalhadores das fábricas pioneiras do capitalismo industrial” (SANTOS, 2005, p. 33). Para tanto, foi em 1844, na Inglaterra, que surgiram as primeiras cooperativas que hoje são compreendidas como modelo contemporâneo – as cooperativas de consumidores de Rochdale – cujo objetivo foi a busca de alternativa aos baixos salários da época e em oposição à miséria produzida pelas penosas condições de trabalho. Santos (2005, p. 33) acrescenta que: Desde as suas origens, no século XIX, o pensamento associativista e a prática cooperativa desenvolveram-se como alternativas tanto ao individualismo liberal quanto ao socialismo centralizado. Como teoria social, o associativismo é baseado em dois postulados: por um lado, a defesa de uma economia de mercado baseada nos princípios não capitalistas de cooperação e mutualidade e, por outro, a crítica ao Estado centralizado e a preferência por formas de organização políticas pluralistas e federalistas que deram um papel central a sociedade civil.

Embora a raiz do cooperativismo esteja centrada nos princípios não capitalistas, frequentemente podem ser encontrados empreendimentos denominados de cooperativas que têm como princípios objetivos econômicos, desconhecendo os valores e princípios do cooperativismo verdadeiro. O que afinal é cooperação e cooperativismo? Não seria necessário retomar essas concepções em profundidade, uma vez que são facilmente distorcidas ou mesmo capturadas pela lógica capitalista? Marx (1998, p. 378), adiantado em seu tempo, entendia por cooperação “a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos”. Para Marx (1998), a força de trabalho social tem sua origem na cooperação, pois quando se trabalha cooperativamente, desfaz-se o trabalhador em sua individualidade, e se cria um novo homem e se desenvolve a capacidade de sua espécie, a de trabalhar coletivamente. Dessa forma, com base em Marx (1998), compreende-se o trabalho na Coopermag como um movimento cooperativo, em que todos trabalham juntos, caracterizando um movimento autônomo, no qual os sujeitos constroem a sua história, as pessoas são proprietárias de sua força de trabalho e a vendem, não mais individualmente, mas de maneira coletiva e cooperativa. A força de trabalho social dignifica o homem e o constrói como sujeito e agente histórico, dono do negócio onde atua. No cooperativismo, não existe a divisão entre patrão e empregado. Todos são coparticipantes de um empreendimento, de um coletivo: modelo de trabalho que pode ser encontrado já no início da civilização humana, nos povos de caçadores os quais, coletivamente, se organizavam para caçar. Evidencia-se que muitas cooperativas alcançam seus objetivos econômicos, mas não se diferenciam das empresas por não conseguirem praticar a doutrina cooperativa. O primeiro passo, talvez, seria compreender a raiz do cooperativismo e ultrapassar aspectos formais da constituição de uma 330

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cooperativa. Para tanto, faz-se necessário que a razão do cooperativismo seja traduzida em ações, valores e atitudes, todas construídas coletivamente entre os associados de maneira clara e concisa no regimento e estatuto. A raiz cooperativista propõe um agir coletivo, um trabalho conjunto com foco no mesmo objetivo pressupondo a formação do ser humano como um sujeito integral, consciente do exercício de seus direitos e deveres, desenvolvendo também uma mentalidade mais coletiva, humana e solidária, conforme a narra em seu artigo 4º a Lei nº 5764, de 16/12/1971. Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características: I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços; II - variabilidade do capital social representado por quotas-partes; III - limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais; IV - inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade; V - singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade; VI - quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital; VII - retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral; VIII - indivisibilidade dos fundos de Reserva e de Assistência Técnica Educacional e Social; IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social; X - prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa; XI - área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços.

De acordo com Santos (2005, p. 33-34), o cooperativismo inspira-se, enquanto prática econômica, nos princípios da autonomia, democracia participativa, igualdade, equidade e solidariedade. Dessa forma, formam “um conjunto de sete princípios que tem guiado o funcionamento das cooperativas de todo o mundo desde que a sua versão inicial foi enunciada pelos primeiros cooperados contemporâneos, os pioneiros de Rochdale”. [...] o vínculo aberto e voluntário — as cooperativas estão sempre abertas a novos membros —; o controle democrático por parte dos membros — as decisões fundamentais são tomadas pelos cooperados de acordo com o princípio “um membro, um voto”, ou seja, independentemente das contribuições de capital feitas por cada membro ou a sua função na cooperativa —; a participação econômica dos membros — tanto como proprietários solidários da cooperativa quanto como participantes eventuais nas decisões sobre a distribuição de proveitos —; a autonomia e a independência em relação ao Estado e a outras organizações; o compromisso com a educação dos membros da cooperativa — para lhes facultar uma participação efetiva —; a cooperação

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entre cooperativas através de organizações locais, nacionais e mundiais; e a contribuição para o desenvolvimento da comunidade em que está localizada a cooperativa (SANTOS, 2005, p. 34).

Os princípios de empreendimentos cooperativos enunciados por Santos (2005) foram elucidados em 1995, no Congresso em Manchester, quando a Aliança Cooperativa Internacional difundiu os sete princípios que regem o funcionamento de qualquer cooperativa no mundo, assim apresentado: Adesão voluntária e livre: significa que podem se associar às cooperativas todos aqueles que tenham condições de usufruir de seus serviços e que queiram assumir as responsabilidades de um associado, sem discriminação de gênero, social, racial, política ou religiosa. Controle democrático pelos membros: ou seja, todos os cooperados têm participação direta e ativa na tomada de decisões. A cooperativa é administrada conforme a vontade dos associados, sendo eles que definem as prioridades do empreendimento e elegem os diretores com igualdade de voto. As decisões são tomadas em assembléia, órgão supremo da cooperativa. Participação econômica dos associados: significa que todos os cooperados têm conhecimento, controle democrático e igual contribuição ao capital por meio de compra de quotas-partes, assim como os cooperados podem usufruir de benefícios oferecidos pela cooperativa por meio do fundo de reservas e de outras iniciativas aprovadas pelo corpo de cooperados. Autonomia e independência: entende-se que a cooperativa é um espaço formado por pessoas que se unem voluntariamente em torno de um objetivo comum, atender as suas necessidades em três áreas: social, cultural e econômica. Para tanto, elas mesmas controlam o funcionamento do empreendimento e sua organização. Quando da captação de auxílios externos devem ser asseguradas a autonomia e o controle democrático dos empreendimentos por seus cooperados. Educação, treinamento e informação: espaço que busca contribuir com base de conhecimentos com os quais possam se alimentar o corpo de cooperados e de funcionários da cooperativa, em especial aos mais jovens. Cooperação entre cooperativas: trabalho em conjunto e/ou a interação dos empreendimentos, em redes locais, regionais, nacionais ou internacionais, fortalece a missão do movimento cooperativo e busca fortalecer os empreendimentos e atender os cooperados de maneira mais efetiva. Preocupação com a comunidade: os cooperados precisam criar e executar políticas de vigor com o intuito de contribuir para o desenvolvimento sustentável de suas respectivas comunidades. Os princípios cooperativos são percebidos na Coopermag como modos de vida e de relação com o outro, nos quais aparecem valores fundamentais de cooperativismo com características de um empreendimento coletivo que vai além dos quesitos legais, como é apresentado por Maia (2009, p. 67): A Declaração de Identidade Cooperativa (ACI, 1998) destaca os seguintes valores fundamentais das cooperativas: a ajuda mútua, a responsabilidade, a democracia, a igualdade, a equidade e a solidariedade. Vê-se, portanto, a crença de seus membros nos valores éticos de honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação com os outros. Assim, a autenticidade do empreendimento cooperativo vai além dos requisitos

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legais. Requer o exercício do direito, da validação dos valores e princípios cooperativos no seu dia a dia.

Dentro dos princípios apresentados, cabe salientar que a Coopermag pode ser entendida como um empreendimento que compreende o ser humano e o tem “no coletivo, como seu objetivo e, portanto, sua lógica não é guiada pelo lucro, mas pelo benefício que pode proporcionar aos seus cooperados. [...]. Tal princípio inclui a sustentabilidade ao preservar o meio ambiente, a natureza e o homem do presente” (MAIA, 2009, p. 67-68). O cooperativismo proposto e considerado, aqui, como autêntico é parte da economia solidária, pois os trabalhadores detêm igualitária e democraticamente a posse e o controle do empreendimento entre outros requisitos. Eles vêem, na autogestão, a tentativa e a possibilidade concreta de identificar seus problemas e limites para, coletivamente, enfrentarem os conflitos no interior das comunidades com a perspectiva transformadora, somando esforços diante de barreiras externas. (MAIA, 2009, p. 102)

Cabe salientar que essas características da nova identidade da Coopermag são apresentadas a partir dos novos modos de pensar a gestão e os diferentes meios de produção, por sua vez, ligados ao espírito da economia solidária. Acredita-se que existem quatro razões para tal evento, todas ligadas ao fator econômico, político e social. A primeira razão apresenta-se como um novo olhar para os modos de trabalho construindo espíritos e valores não capitalistas. De acordo com Santos (2005, p. 36), “o cooperativismo considera que o mercado promove um dos seus valores centrais, a autonomia das iniciativas coletivas e os objetivos de descentralização e eficiência econômica que não são acolhidos pelos sistemas econômicos centralizados”. Face à comprovada inviabilidade e indesejabilidade das economias centralizadas, as cooperativas surgem como alternativas de produção factíveis e plausíveis, a partir de uma perspectiva progressista, porque estão organizadas de acordo com princípios e estruturas não capitalistas e, ao mesmo tempo, operam em uma economia de mercado. (2005, p. 36)

Em segundo lugar, acredita-se que as cooperativas contemporâneas dispõem de potenciais para responder com seriedade e competência aos desafios do mercado. Acredita-se nisso por duas razões: primeira, porque os empreendimentos dos trabalhadores-proprietários tendem a ser mais produtivos, pois os trabalhadores-donos dedicam seu tempo trabalhando sabendo que estão se beneficiando diretamente com o crescimento do empreendimento. Segunda, porque se compreende com Bauman (2007) que o mercado é fragmentado. É nesse espaço que as cooperativas de trabalho se inscrevem, ou seja, um canal no qual as cooperativas encontram espaço e acolhem pessoas que adotam a ideia e os princípios de solidariedade. É um espaço que está sempre em mudança, em transição – assim também se compreende as cooperativas – espaço flexível às alterações, mundo democrático de diálogo e de participação composta por uma rede de cooperação social e econômica. A terceira característica cooperativa é que todos são proprietários do empreendimento, o que difunde as cooperativas em propriedades de economia social igualitária de direitos e deveres. Essa característica, junto com todas as outras, vislumbra o desenvolvimento econômico e diminui a de333

A SUSTENTABILIDADE DE UM EMPREENDIMENTO SOLIDÁRIO: DESAFIOS DO COOPERATIVISMO CONTEMPORÂNEO

sigualdade social. E, como quarta característica, entende-se que, além dos benefícios econômicos, os trabalhadores geram, também, um amplo espaço de democracia participativa dentro do âmbito econômico e político. Compartilha-se da ideia de Santos (2005) levando em consideração que as quatro características por ele apresentadas se mostram como eixo fundante para o que se pode chamar de empreendimentos contemporâneos. Longe da ideia de ser uma vista como uma gaiola de ferro, o trabalho cooperativo precisa ser visto e compreendido como novo/outro espaço onde as relações sociais de trabalho são construídas, onde pessoas lutam contra a desordem do capitalismo e procuram construir relações sociais de trabalho em uma sociedade flexível, onde as relações de vida e de trabalho se cruzam constantemente e constroem em conjunto diferentes modos líquidos de viver. (BAUMAN, 2003) O cooperativismo contemporâneo torna-se um ponto de resistência em meio às insistentes formas capitalísticas de viver e de se ver capturado por desejos e sonhos quase sempre impossíveis de serem realizados. A experiência aqui relatada demonstra a possibilidade concreta de realização de um sonho coletivo que passa pela vivência da solidariedade, do respeito, da autonomia. Nessa mesma direção, Freire (2010, p. 59) argumenta que “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.” Dessa forma, é preciso constantemente se perguntar sobre a qualidade das relações estabelecidas nos empreendimentos cooperativos e os desafios que se colocam para esses grupos que subvertem a lógica dominante no mundo do trabalho.

Para finalizar, sem fechar O artigo compreende o cooperativismo contemporâneo como processo educativo no qual os trabalhadores se inserem em um contexto cujos modos de trabalho e de geração de renda superam os modos capitalistas de produção e exploração de mão de obra. Compreendido dessa forma, o cooperativismo é um processo de formação humana no qual a dimensão educativa se faz dimensão transformadora por meio do movimento político que acontece nos espaços das relações coletivas. O desafio que acompanha o processo de formação humana na Coopermag acontece por meio das relações sociais, culturais e históricas. Dessa forma, este estudo compreende que o cotidiano cooperativista vivido na Coopermag se configura como espaço popular democrático construído na práxis e no desafio diário de formar um coletivo com princípios democráticos e de consciência solidária. Trata-se da configuração de um espaço que se constitui no desafio da formação de um coletivo sólido e da geração de novas/outras formas de re/integração no campo da geração de trabalho e de renda, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida e a construção de projetos de futuro, além de processos de novas/outras aprendizagens e de educação integral. Quando se fala de cooperativismo e de cooperação, não se fala de um processo natural, mas se acredita em algo que foge às mãos do capitalismo e dos diferentes modos de exploração de mão de obra. O processo é educativo e se apóia nos pilares do cooperativismo e nos modos de viver economia solidária em espaços capazes de criar alternativas de vida e modos de viver que fortalecem e re/criam vínculos familiares e comunitários. 334

Joel Luis Dumke, Patrícia Abel Balestrin, Nathália Stedile

No entanto, acredita-se que a economia solidária ainda se encontra em estágio embrionário, de modo que muitos não percebem o sentido vivo desse tipo de experiência. Mesmo assim, já dá sentido à vida de inúmeras pessoas constituindo-se numa alternativa coletiva, às vezes necessária, de superar a crise social e o desmantelamento do trabalho formal.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmundt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. _____. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002. BRASIL. Lei 5764, de 16 de Dezembro de 1971. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2012. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 42ª reimpressão. São Paulo: Paz e Terra, 2010. MAIA, Denise Maria. A dimensão educativa da cooperativa popular. Tese (Doutorado em Educação). 2009. 197f. Faculdade de Educação da UFMG, 2009. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1998. SANTOS, Boaventura de [org.]. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. VERONESE, Marília Veríssimo. Psicologia social e economia solidária. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008.

* Joel Luis Dumke - Mestre em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário UNILASALLE. Professor e Coordenador de Projetos Sociais na Cooperativa dos Educadores COOPSE, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. ** Patrícia Abel Balestrin - Professora do Curso de Psicologia da UNISINOS. Pesquisadora do GEERGE - Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da UFRGS e professora colaboradora do Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde (EducaSaúde) da Faculdade de Educação/UFRGS. ***

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A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Fernanda Piedade de Freitas* Maria Luiza Steiner Fleck**

Introdução O presente trabalho visa demonstrar que o é de grande pertinência abordar a leitura na educação de jovens e adultos como tema, uma vez que a competência leitora é fundamental a ser desenvolvida com alunos em geral, especialmente com os alunos de EJA, que já estão tentando recuperar lacunas em sua formação. Abordar a temática da leitura é acreditar que a prática do ato de ler é um exercício de cidadania sendo perceptível que muitos alunos da EJA não têm o hábito de ler porque não são desafiados a isso em sala de aula, nem contemplados nas bibliotecas. Estudaremos os tipos de leitura e a que se pretende desenvolver nesse segmento específico, apoiadas em Paulo Freire e outros autors específicos da área de língua e linguagem.

Momentos históricos da EJA Ao tratarmos do assunto sobre a educação de jovens e adultos, nos remetemos às propostas de Paulo Freire. Elas revolucionaram o conceito dessa modalidade de ensino. Em 1958, no Congresso Nacional de Educação de Adultos, Paulo Freire apresentou as suas propostas e defendeu o relatório A Educação de Adultos e as Populações Marginais. No relatório a proposta era que fosse incentivada a colaboração, a participação, a preocupação e a responsabilidade social e política com a educação de adultos. Desde os tempos do Brasil colonial, a educação não era considerada, pelas classes dominantes, importante para povo. A possibilidade de proporcionar educação e aquisição de conhecimento às pessoas que não tinham prestígio perante a sociedade não era uma ideia atraente ao topo da pirâmide social. Nesse período, havia apenas uma parte hierárquica interessada em oferecer instrução: a Igreja. Claro, com uma proposta que lhe era conveniente, a Igreja educava conforme a sua doutrina e, assim, obtinha mais seguidores, mais fiéis. Durante o Império existiam escolas noturnas para a educação de adultos. Foi no período Republicano que começaram as manifestações públicas, como, por exemplo, campanhas em prol da regulamentação desse ensino por meio do sistema de educação regular. Os políticos diziam-se preocupados com a educação, seus discursos não passavam de uma farsa, falavam e prometiam muito, concretizavam pouco. Situação semelhante à que vivemos nos atuais dias. Na década de trinta, o processo de industrialização e crescimento urbano exigiu um aumento

A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

da escolarização e, com isso, a ampliação do ensino para jovens e adultos. Em meados dos anos quarenta, surgiram diversas propostas políticas pedagógicas como o Fundo Nacional de Ensino Primário (FNEP) e o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; tais propostas incentivaram e realizaram estudos sobre a educação de jovens e adultos. Ainda nos anos quarenta, apareceram as primeiras obras direcionadas para o ensino supletivo, uma modalidade educativa que tem como objetivo suprir ciclos não concluídos pelas pessoas que não tiveram acesso ao ensino durante a idade considerada adequada. As obras foram lançadas pela CEAA – Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos e apresentavam uma preocupação com a elaboração do material didático. Foram realizados dois eventos fundamentais para a EJA: O 1º Congresso Nacional de Educação de Adultos, em 1947 e o Seminário Interamericano de Educação de Adultos em 1949, ressaltando que o ensino supletivo teve como meta minimizar a porcentagem nos índices da população analfabeta. Durante a ditadura militar, numa tentativa de suavizar as tensões sociais, surgem as campanhas A Cruzada ABC e o MOBRAL. Elas prosseguiram com o movimento de alfabetização de adultos. A Cruzada ABC – Cruzada de Ação Básica Cristã, era composta por protestantes conservadores e seus líderes eram, em grande parte, missionários. A Cruzada contestava e combatia os movimentos de educação que utilizavam o método político-pedagógico, particularmente o “Sistema Paulo Freire”, que foi adotado pelo governo Goulart, em 1963. Com o golpe de 1964, a Cruzada ABC apresentava boa relação com o governo dos militares. Posta em prática, a Cruzada ABC tinha como base a missão dos seus protestantes: “Cruzada é a palavra do dia no Brasil. Nós da Igreja Evangélica estamos engajados em grandes cruzadas para o evangelismo, alfabetização e o desenvolvimento do homem de acordo como Deus deseja que seja.” (IBIDEM) Padres católicos e prefeituras eram os principais colaboradores da Cruzada. Para que os alunos fossem assíduos; distribuíam, quinzenalmente, alimentos. Com o avanço na alfabetização em algumas regiões, além do apoio dos protestantes, a Cruzada ABC ganhou apoio dos católicos. O MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização deu continuação às campanhas de educação de jovens e adultos, mas sua proposta era totalmente diferente das anteriores. A principal preocupação do MOBRAL foi ensinar seus alunos a ler e escrever, sem nenhum outro foco para o exercício de cidadania aos homens. Para o MOBRAL, aprender a ler e escrever eram suficientes para a formação do caráter humano e para obter-se melhores condições de vida, deixando de lado outros valores que são essenciais para o desenvolvimento do ser humano ao longo da vida, tanto no lado pessoal como para o profissional. A proposta de ensino do MOBRAL atendeu à educação de acordo com os interesses políticos, inclusive justificavam, ao povo, as atitudes tomadas no período da ditadura militar. A Pedagogia teve um considerável crescimento e, assim, o assunto educação de jovens e adultos ganhou mais notoriedade. Mesmo assim, as exclusões sociais e culturais continuaram e até aumentaram. Há tempos o governo realiza projetos na tentativa de alcançar uma educação inclusiva. 338

Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck

No Art. 4, inciso VIII da LDB, é determinado como um direito e um dever do governo e da sociedade uma educação escolar regular para jovens e adultos. “oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola”. E, também, no Art. 37, a EJA é considerada como uma modalidade de ensino indispensável. “A educação de jovens e adultos será destinada aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria”. Em 15 de dezembro de 1967, a Lei 5.379, que instituiu o MOBRAL, referia-se à “educação continuada de adolescentes e adultos”. E foi por meio do MOBRAL que foram criados e implantados alguns programas de educação, como o Plano de Educação Continuada para Adolescentes e Adultos, o Programa de Educação Integrada, o Programa Cultural e o Programa de Profissionalização. O MOBRAL, extinto em 1985, foi substituído pela Fundação EDUCAR. A educação de jovens e adultos teve as suas atividades expandidas e, em 1988, o ensino fundamental tornou-se obrigatório e gratuito, garantido por constituição. A Fundação EDUCAR foi extinta pelo governo do presidente da época (1990), Fernando Collor de Mello. Para obtermos uma EJA de qualidade é necessário um conhecimento prévio dos alunos, bem como o envolvimento deles com as famílias e a sociedade que os circunda. Vale lembrar que a educação é um compromisso de todos e a qualidade do ensino não depende apenas do professor; não podemos colocá-lo como mero transmissor de conhecimento, como também não podemos classificar o aluno como mero aprendiz. Para alcançarmos a qualidade e a eficácia na educação, professor e aluno devem realizar trocas diárias onde ambos ensinam e aprendem juntos. É o que conhecemos como a construção do conhecimento. Um fator que tornaria a EJA mais atraente seria a possibilidade de integrar a educação de jovens e adultos com o ensino profissionalizante. Os alunos, além de formados, sairiam qualificados, com uma profissão, tornando-os mais preparados para o mercado de trabalho. Isto ampliaria a visão e a perspectiva de um mundo novo e mais amplo para o educando. Em busca da qualidade para a EJA, o governo cria metas e normas, mas não estabelece uma política eficiente de incentivos financeiros para melhorar a qualidade na educação. Necessidades básicas não são atingidas, como, por exemplo, condições físicas no ambiente da sala de aula, materiais didáticos adequados, acesso dos alunos às tecnologias, às bibliotecas e à cultura. A qualidade e a eficácia na EJA não podem ser vistas para fins estatísticos, mas para o desenvolvimento e exercício da cidadania, preparando os alunos para a vida e tornando-os pessoas capacitadas. O acesso ao mundo letrado é um percurso a ser desbravado e descoberto. Uma educação para jovens e adultos necessita ser multicultural, pois integra o conhecimento com as diversas culturas. Por esse motivo, é essencial que o educador conheça o meio em que está inserido o seu educando. Ao conhecer a realidade dos seus alunos, o professor tem mais propriedade para pensar e repensar os conteúdos e qual a melhor forma de planejar as suas aulas, sendo possível atender à qualidade que desejamos alcançar na educação de jovens e adultos. 339

A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Cabe, também, ao professor unir a teoria à prática, expandindo as possibilidades e ampliando a visão de mundo dos alunos, fazendo com que isso desperte o interesse deles e motive-os, estimulando a autoestima dos jovens e adultos. Assim, os próprios alunos percebem o quão capazes são de aprender, de adquirir o conhecimento e aplicá-lo em suas vidas. A EJA tem contribuído, também, para o aumento da produtividade brasileira. Aos poucos, podemos reverter o quadro atual que não coloca o Brasil na lista dos países desenvolvidos. É preciso que todos estejam conscientes e atentos, cada vez mais, sobre a necessidade no desenvolvimento e crescimento intelectual dos jovens e adultos para que possamos produzir mais e participar da acirrada disputa internacional do setor econômico. Devemos ver a educação de jovens e adultos como um exercício de cidadania, como um pré-requisito básico para a inserção, de quem não teve oportunidade de estudo, na sociedade. É a prova do desenvolvimento democrático, da igualdade entre os sexos e é fator fundamental para a constituição de um mundo onde a violência dá lugar ao diálogo e à paz. A EJA é o método que serve de base para que os educadores entendam e vençam as barreiras que dificultam o aprender a pensar dos seus educandos. O ensino pode ser promovido por meio de exemplos do cotidiano dos alunos, para que se identifiquem e tenham mais facilidade em compreender o conteúdo e até em discernir atos de cidadania. Após serem apresentadas situações ocorridas, notícias, manchetes de jornal, problemas, pode-se um debate em sala de aula, em que a possível solução é encontrada pelos alunos após a troca de ideias e opiniões. O educador deve auxiliar nos debates e, em todas as aulas, os alunos devem realizar uma atividade avaliativa, já que na EJA não existem testes nem provas. Além de ajudar nos debates, o educador pode estimular os alunos a pensarem e a refletirem. Nas conversas e nos trabalhos em grupo, os alunos devem ser incentivados a trocar conhecimentos, compartilhar experiências e, assim, exercerem a solidariedade ao se depararem com problemas vividos semelhantes aos seus. Muitas vezes os alunos encontram uma forma de “consolo” e esperança na sala de aula. Acreditamos que abordar questões sociais é a melhor maneira de fazer com que os alunos se envolvam, participem, tenham mais interesse, vontade de participar e cada vez mais exerçam o seu papel de cidadão. O professor da Educação de Jovens e Adultos é uma peça fundamental para o retorno e permanência dos alunos à modalidade de ensino EJA. Ele deve ter competências para identificar o perfil e verificar qual é o potencial de cada aluno e analisar a turma como um todo. Normalmente, os alunos enxergam seu professor como um exemplo a ser seguido e como uma inspiração para irem em frente e superarem os obstáculos como a própria vergonha, a insegurança, o preconceito, a discriminação por serem alunos da EJA e muitas outras questões que presenciam em suas casa e que enfrentam na rua. Os professores da EJA têm o compromisso de acreditar na capacidade de seus alunos, enfim, de acreditar no ser humano. A qualidade na Educação de jovens e Adultos está relacionada, diretamente, 340

Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck

com a preparação e a capacitação dos professores que atuam nesse segmento de ensino. Ao nos perguntarmos em qual modalidade de ensino a EJA está inserida, não podemos prender o foco somente nisso, mas, também, sobre qual o lugar da EJA no painel da educação e qual o perfil dos seus alunos. Por onde começar? Essa pergunta é a chave para descobrirmos quem é, de fato, este público de jovens e adultos. Um perfil de alunos que não podemos esquecer e, que será tratado no texto, são os alunos trabalhadores. Eles vivenciam as mais diversas situações no seu dia a dia e, ao chegarem à aula, muitas vezes tiveram um dia saturado, pesado e corrido. Por esse fato, necessitamos centralizar toda a nossa atenção e paciência no trabalho com eles, fazendo com que fatores externos não possam atrapalhar ou dificultar o ensino, como, por exemplo, problemas pessoais, desestruturações emocionais, drogas ou dificuldades financeiras. Tudo o que possa interferir deve ficar fora da sala de aula para que no ambiente, durante a aula, os alunos trabalhadores sejam priorizados e, assim, possam ter a sensação de que são privilegiados por estarem presentes, como sujeitos atuantes no mundo dos estudos. Precisamos descobrir o que a escola significa para esses alunos e também para os alunos mais velhos que retornam à escola, depois de alguns anos e, que, sofreram experiências que os fizeram desistir dos estudos, por vontade própria ou não, ou até simplesmente fatores que possam ter provocado sentimentos e a infeliz realidade de exclusão social. Os jovens e adultos que voltam a estudar, fora da sua época, retornam e buscam a educação com a esperança de obter um futuro melhor com possibilidades de crescimento pessoal e profissional. O trabalho é o fator predominante, na vida dos alunos trabalhadores, como o responsável pela evasão escolar e também pelo retorno à sala de aula. Para muitos alunos trabalhadores, voltar à escola é elevar a sua autoestima, é a retomada de um sonho interrompido e a esperança de uma vida melhor. Esses alunos procuram fazer parte de uma sociedade que está cada vez mais exigente.

A leitura A leitura é extremamente importante para que o homem se insira na sociedade e para que obtenha o conhecimento de mundo que o ato de ler pode proporcionar. Deveríamos ver a leitura como um hábito na vida de todas as pessoas, um hábito constante. Ela abrange diversos aspectos para que seja realizada com a devida eficácia que desejamos alcançar. Ler é muito mais do que uma decodificação de letras, pois ao ler interagimos com o texto, nos envolvemos ao ponto de relacionarmos o texto com o nosso conhecimento, relacionamos o que o autor escreve com o nosso cotidiano e também reconhecemos aspectos que estão inseridos no contexto das nossas vidas. Ao ler um livro, realizamos diversas releituras e, às vezes, sem que percebamos, reescrevemos o que acabamos de ler ao nosso modo, como seres atuantes e chegamos a comparar as ideias do autor com as nossas ideias, e com os acontecimentos que nos cercam. Passamos a ter opinião e propriedade 341

A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

para falar sobre diferentes assuntos e isso faz com que tenhamos um momento de leitura prazeroso e repleto de dinamismo. Construímos percepções cognitivas que exigem um processo de atuação no qual estão ligadas, diretamente, as nossas relações sociais e afetivas. Com a leitura desenvolvemos nossa capacidade intelectual, ampliamos os nossos conhecimentos sobre os mais variados assuntos, progredimos e nos tornamos mais capacitados para termos uma postura crítica diante do novo mundo que se abre aos nossos olhos, nos encanta e nos deixa maravilhados. Com a prática da leitura enriquecemos o nosso vocabulário, o ato de ler pode ser considerado como uma das atividades que mais agregam valor e bagagem cultural para a nossa vida. Por meio dela conhecemos culturas diferentes, países, lugares jamais vistos, pensamentos, fatos históricos, vivemos romances, descobrimos novas ideias entre outras coisas que passam a fazer parte da nossa vida durante esse mágico momento de interação. As primeiras concepções de leitura limitavam-se à capacidade de decodificação do texto, onde a única habilidade necessária era a decodificar as palavras, depois as frases e os parágrafos. O texto era entendido como uma estrutura com vida própria, não passava de um pretexto para que a gramática fosse ensinada aos alunos. O sentido do texto era dependente da sua forma e só era diferenciado pelo sentido conotativo ou denotativo, literal ou metafórico e em subjetivo e objetivo, dessa maneira o aluno leitor sofria exclusão, cabendo-lhe atuar como ser passivo no ato de ler. Como consequência, esse modelo de leitura não foi suficiente para diversos fenômenos, dentro do processo de compreensão textual, fossem explicados, como a interpretação do uso de metáforas, a ligação ideológica do texto com algumas lacunas de coesão e a possibilidade de diversas interpretações possíveis para um único texto. Para que consigamos desenvolver o hábito de ler em nossos alunos de uma maneira efetiva, é necessário que conheçamos as características de cada leitor, elas possuem destaque na prática da leitura. Por este motivo, é de suma importância conhecermos o perfil do nosso aluno leitor com quem trabalharemos na formação do hábito de ler. O ato de ler é mais presente no nosso cotidiano, mais do que podemos imaginar. Exercemos essa competência em simples tarefas do nosso dia a dia, como por exemplo, ao ler a bula de um remédio, a receita de um bolo ou um cartão de aniversário. A leitura faz com que exerçamos nosso papel ativo como cidadãos atualizados e instruídos, inseridos no meio social, compondo a nossa sociedade. Vale lembrar que as pessoas que possuem o hábito de ler são as que têm menor dificuldade para escrever e também são as que escrevem melhor, apresentando um vocabulário mais amplo e conseguindo interpretar o que leem com clareza, transmitindo a mensagem com facilidade ao escolher o uso das palavras. Tudo o que aprendemos e assimilamos durante a leitura torna-se parte de nós, é um bem precioso que ninguém poderá tirar ao longo de nossas vidas. O hábito da leitura deve ser iniciado desde cedo, quando apenas conseguimos realizar a leitura de figuras e de objetos ao nosso redor. É fundamental que sejamos cercados de livros em casa e essa atitude deve partir de nossos pais ou responsáveis. Eles são os nossos primeiros incentivadores no mundo da leitura, em fazer com que busquemos nas atitudes e costumes deles a inspiração necessária para que o ato de ler seja despertado em nós. “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí 342

Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck

que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. (FREIRE, 2001, p.11). Ao refletirmos sobre o livro do autor “A Importância do Ato de Ler”, compreendemos que a leitura acontece, primeiramente, num processo de internalização do exterior, no momento em que realizamos a leitura do mundo ao nosso redor e depois realizamos a leitura da palavra. A ideia de Paulo Freire é a de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. “É preciso que quem sabe, saiba sobre tudo que ninguém sabe tudo e que ninguém tudo ignora” (FREIRE, 2006, p. 38). A leitura não significa decorar e não está mecanicamente ligada ao ato de memorizar textos, tampouco significa devorar livros. O segredo está no ler de forma que nos faça pensar e reconhecer seu conteúdo dentro da realidade em que vivemos. O ato de ler deve acontecer de forma engajada, entrando no texto, compreendendo e, aos poucos, criamos o hábito da leitura e conseguimos, por meio de nossa prática, escrever um texto, reescrevê-lo e até transformá-lo em outras produções tão interessantes quanto às obras que lemos. O incentivo à leitura acontece quando um pai, ao ler o jornal, pega seu filho no colo e continua a leitura de maneira acolhedora com a criança, fazendo com que ela sinta esse momento como familiar e o repita mais vezes. Uma criança diante de tantas letras fica encantada e seus olhos enchem de brilho. A família tem um papel fundamental na formação do hábito da leitura. O hábito de ler também é estimulado quando os pais ou próximos contam histórias para seus filhos, com essa atitude os pais realizam o contato e aproximação dos filhos com o maravilhoso mundo dos livros. Sandroni e Machado afirmam que “o hábito da leitura deve começar cedo, sendo sugerida em casa, na família e principalmente pelos pais, que são os seus primeiros incentivadores” (SANDRONI; MACHADO, 1986, p. 12). A escola tem o papel fundamental, depois da família, na continuação e estímulo do hábito de ler. Na escola, todos devem ter acesso à biblioteca, à leitura dos livros; é direito assegurado pela lei 12.244 que todos devem ter contato direto e contínuo com os diversos tipos de leitura e toda escola deve ter um espaço adequado e um bibliotecário atuando em cada uma delas. Quando isso não acontece, os alunos estão sendo privados dos seus direitos como cidadãos, sofrendo desigualdade social, sentem-se sem prestígio por não terem as habilidades necessárias de leitura e de escrita e, também, pelo desempenho não atingido, consequência que a falta de leitura causa. Lembrando que um hábito só é hábito quando é praticado constantemente, com certa frequência. Quando deixamos de praticar a leitura, ela deixa de se tornar um hábito. E também não podemos nos esquecer das pessoas que nem sequer foram iniciadas ou incentivadas à leitura, pois o hábito de ler não pode acontecer sem que o ato em si nunca tenha sido praticado anteriormente. Ler é pensar, refletir, concordar e discordar, reler, imaginar, viver e criar. O aluno que não vem de casa estimulado à leitura, tem mais dificuldade durante os estudos. Normalmente, esses alunos foram aqueles que a família não se importava com o exercício da prática do ato de ler. Quem lê, aprende muito mais e de um modo melhor. Quando a leitura não é trabalhada, ela torna-se um trabalho cansativo.

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A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Cabe aos professores ensinar seus alunos que é preciso ler para aprender e para crescer na vida, tanto profissionalmente como pessoalmente. Os alunos precisam adquirir o hábito de ler, realizá-lo e gostar de realizar para que, assim, tomem gosto pela leitura e venham a repetir mais vezes, pois a partir disto a leitura significará para eles uma proposta interessante e uma conquista independente. Dessa maneira, auxiliaremos os alunos a serem capazes de desenvolver a sua opinião própria. Além de aprenderam mais, terão compreensão das inúmeras possibilidades que a leitura proporciona, das viagens que, por meio dela, realizamos e mais entendimento sobre o mundo da imaginação, da literatura, de tudo que é possível no ato de ler. Conforme Foucambert: “[...] no dia a dia da sala de aula, o professor poderá mostrar que ler é uma das chaves para entrar em outros mundos: reais ou imaginários, possíveis ou impossíveis” (FOUCAMBERT, 1994, p.27). Um dos principais objetivos dos professores e da escola em si é propiciar a formação de leitores que sejam aptos e capazes de pensar e formular questionamentos a cerca do que está lendo como de outros assuntos. A leitura tem como consequência a ampliação da comunicação, da expressão e da vontade de seguir lendo e aprendendo. Mais importante do que saber ler é saber identificar o que se lê e compreender também. Entender o que o autor quis dizer, qual a mensagem que o livro nos transmitiu, o que essa leitura significou para nós, o que aprendemos e o que encontramos de semelhante e diferente relacionando o livro com a nossa história, com a realidade vivida por cada um de nós. Existem diversos tipos de leitura e é importante que saibamos tirar proveito das características que cada uma tem a nos oferecer. A leitura silenciosa é o tipo de leitura que os nossos alunos realizam no dia a dia, ao lerem jornais, gibis e revistas. Ela é exercida em silêncio e é uma leitura mais breve do que os outros tipos. A leitura oral é o oposto da silenciosa por ser mais vagarosa e mais difícil pelo fato de nos preocuparmos em ler corretamente. Alguns alunos exercem uma boa leitura silenciosa e se retraem na leitura oral por estarem sujeitos a ler algo de forma errada diante dos colegas. Na leitura informativa o aluno busca informações sobre determinados assuntos. Ela é importante por guiar e instruir o aluno durante o ato de ler. Quando realizamos uma leitura com o objetivo de encontrarmos descontração e obtermos satisfação e prazer no ato de ler, estamos realizando a leitura recreativa. A leitura analítica tem um nível mais alto de dificuldade, pois nos exige pensamento e reflexão sobre as ideias do autor, sobre a transmissão da mensagem do livro e refletir, de maneira crítica, avaliando as palavras e frases do autor e a nossa opinião sobre elas. Todo professor deve ter conhecimento/noção sobre cada uma dessas leituras para fazer com que seus alunos consigam obter o desenvolvimento esperado sobre a compreensão das leituras que venham a realizar. O interessante é trabalhar todos os tipos de leitura com os alunos, fazendo-os identificar a leitura no dia a dia deles e a despertar o interesse pelos outros tipos de leitura. O ato de ler deve ser um momento rico, pois é uma das maiores formas de instrução do homem. Ao pesquisar sobre leitura, encontramos muitos trabalhos, artigos, publicações e livros voltados para a educação de crianças; raros foram os que abordavam a leitura voltada para a educação de jovens e adultos, nível em que a maior parte dos alunos é constituído de pessoas mais velhas, normalmente, 344

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trabalhadores com uma extensa jornada de trabalho. E esse é o público que tomamos como foco no trabalho e nas sugestões de práticas em sala de aula que serão apresentadas no próximo capítulo. Claro, existe um novo perfil de alunos na EJA, um perfil mais jovem. Os alunos mais jovens que procuram o ensino por meio da educação de jovens e adultos são os que abandonaram a escola regular há algum tempo e são incentivados (ou obrigados) a buscarem o estudo por terem conseguido um emprego que lhes exige a formação completa. Os alunos da educação de jovens e adultos precisam interagir com o meio em que vivem e não serem considerados apenas como pessoas que não possuem conhecimento. Observando a maior parte dos alunos da EJA, notamos que essas pessoas realizam a sua leitura de mundo conforme podem e de acordo com a sua interação no meio social. Esse perfil de aluno não foi estimulado à leitura durante o período em que deveria ter acontecido. Então, partindo disso, podemos pressupor que trabalhar a leitura com a educação de jovens e adultos é um trabalho que requer muita dedicação, paciência, disposição e amor pelo que faz lidar com o ser humano é sempre um aprendizado. Como professores, não podemos exigir excelentes interpretações e um grande desenvolvimento e assimilação de conteúdo de pessoas que, talvez, nem saibam o que essas atividades significam. “É preciso recuperar em nossas vidas (aqueles que perderam, ou nunca tiveram) a leitura como uma atividade de múltiplas funções [...]” (FOUCAMBERT, 1994, p. 28). A leitura não é somente realizada com o que está escrito; efetuamos também diversos tipos de leitura. Toda imagem é texto também; ao ver uma imagem interpretamos e conseguimos ter percepções sobre sentimentos, aparências e sensações. O mesmo acontece com uma pintura, uma escultura, um olhar, um gesto, um movimento e até mesmo com placas e/ou símbolos de trânsito. A leitura acontece antes de aprendermos a ler e muitas pessoas não se dão conta disso. Para transmitirmos aos alunos a importância do ato de ler, é preciso que nós professores tenhamos o gosto e o hábito da leitura. É necessário estarmos seriamente comprometidos com o nosso trabalho, cumprindo o nosso papel como profissionais organizados, com planos de aula bem elaborados e caminhar com os nossos alunos até a descoberta dos incontáveis mundos que existem dentro da leitura. Para que isso aconteça, o ato de ler deve e merece ganhar a ênfase necessária na EJA, é essencial o acesso à biblioteca, aos livros e, assim, conduziremos os alunos à compreensão da importância que a leitura tem na vida de todos nós e as transformações que vivemos durante o seu exercício. É inadmissível que alunos da EJA do turno da noite, por exemplo, não tenham acesso à leitura na escola por não haver nenhuma bibliotecária disponível para atendê-los na biblioteca. Os alunos sentem-se excluídos pelo fato da escola não se preocupar em montar uma escala para que, ao menos, eles tenham acesso aos livros uma vez na semana. Muitos alunos não têm o hábito de ler por não terem acesso ao mundo dos livros, por não terem condições financeiras de comprar o livro e, na escola, onde isso deveria ocorrer, não acontece. Do que adianta incentivar o hábito da leitura se os alunos não puderem ter acesso aos livros? O ato de ler deles se restringirá a um tipo de leitura e não irão desenvolver a capacidade de ler sobre diferentes assuntos e gêneros textuais, a leitura será mecânica e os alunos terão uma enorme dificuldade quando se depara345

A LEITURA NA EJA: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

rem com um tipo de leitura diferente da que estão acostumados a ler, muitos acharão o assunto chato, a leitura difícil e muito demorada. É preciso fazer valer os direitos dos alunos sobre o acesso à leitura. No desenvolvimento da leitura, o professor é a peça chave para que o exercício dessa atividade seja realizado com êxito. Precisamos quebrar o paradigma de que o ato de ler é um processo mecânico, mas um processo que envolve o contexto da história de vida que os alunos tiveram e têm e, que, está relacionado ao modo como eles interagiram com seus próximos e com o mundo ao seu redor. Ao realizarmos a prática da leitura em sala de aula, devemos, então, considerar os conhecimentos prévios dos nossos alunos para que possamos compreendê-los em aspectos fundamentais, como, por exemplo, fatores emocionais e estrutura familiar. Assim pensaremos sobre como realizar o nosso trabalho da melhor maneira possível. O leitor assimila e formula a palavra escrita mediante as descobertas que realiza ao longo de sua vida. Ele conseguirá relacionar as palavras com as experiências vividas e, assim, conseguirá obter melhor compreensão sobre elas e de um modo mais fácil, isso facilitará o seu convívio em sociedade e ele terá mais êxito em suas relações sociais.

Conclusão Com a realização deste estudo, podemos concluir que a leitura é uma necessidade básica para o amadurecimento e desenvolvimento de todas as pessoas. Por meio dela conhecemos um novo mundo e reconhecemos aspectos fundamentais que caracterizam o ato de ler. Este estudo foi motivado a partir de um conjunto de dificuldades observadas quando da reaÉ fato que lização das práticas de leitura na modalidade Educação de Jovens e Adultos – EJA. a leitura tem o papel fundamental de acrescentar conhecimentos e, assim, fazer com que as pessoas cresçam e interajam com o meio social em que vivem. Quem lê, além de se expressar melhor, também é mais bem entendido pelo outro, tem o seu vocabulário reestruturado. É quase que uma relação de causa e consequência estabelecida entre o ato de ler e saber.

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Fernanda Piedade de Freitas, Maria Luiza Steiner Fleck

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UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE

Angela Torma Pietro * Maria Angela Mattar Yunes **

Introdução A violência sexual é uma modalidade de violência que pode deixar marcas profundas no desenvolvimento da criança e do (a) adolescente vitimizado (a). É um problema social que envolve uma complexidade teórica e metodológica, tanto do ponto de vista cientifico quanto legal (AZEVEDO & GUERRA, 1995a e 1995b; COHEN, 1993; GUERRA, 1998; GROSMAN & MESTERMAN, 1998); também por tratar-se de um aspecto que ainda permanece oculto no seio familiar (AZEVEDO & GUERRA, 1989, 1995a e 1995b; FALEIROS, 2005; COHEN, 1993; GUERRA, 1998). Neste sentido, o profissional necessita refletir sobre as suas causas e inter-relações dentro de uma perspectiva sistêmica de múltiplos contextos. Assim, estudar o contexto sócio-ecológico-ambiental das “portas de entrada” desta modalidade de violência é questão primordial para entender a origem e as causas desse fenômeno. Além disso, se faz necessário refletir sobre o caminho após a denúncia que pode ser tão ou mais árduo que o precedente a ela. Primeiramente, ressalta-se a necessidade de conhecimento do fenômeno pelos profissionais envolvidos nas ações direcionadas aos casos de abuso, com foco no atendimento à vítima, buscando também um atendimento interdisciplinar para que o número de danos e traumas não sejam maximizados. Aos profissionais envolvidos será preciso abarcar conhecimentos que vão além de sua formação, indo de encontro à realidade da problemática que esse irá enfrentar. Assim, o presente trabalho tem como objetivo mapear as instituições e o trabalho dos profissionais que atendem a criança, adolescente, as famílias vítimas de abuso sexual, e dos profissionais responsáveis pelo processo legal de culpabilização do abusador, buscando compreender o atendimento em rede no municio do Rio Grande. Foi idealizado com base teórica na bioecologia de desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner (1979-1996) e corresponde à linha de pesquisa de educação não formal e informal do Programa de Pós Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande – FURG (Rio Grande-RS).

As instituições ligadas à questão do abuso sexual contra crianças e adolescentes Após a denúncia e/ou notificação de um caso de abuso sexual se faz necessária uma intervenção legal e de proteção à criança e ao adolescente, fazendo com que esta transite por inúmeros microssistemas pertencentes a rede de atendimento. Na maioria delas a criança e/ou adolescente é obrigado a relatar a situação que vivenciou fazendo com que a mesma reviva a violência, o que pode levar a uma “revitimização da vítima” na tentativa de se punir o abusador. Nesse sentido, uma visão sistêmica desta modalidade de violência permite um trabalho em rede, onde todos os profissionais envolvidos

UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE

tenham como objetivo a proteção integral a vítima através de um trabalho dialógico e compromissado. O que mais preocupa nos casos de abuso sexual é que em geral as vítimas convivem muito frequentemente com as situações de risco. A situação de risco neste caso é compreendida pelo conjunto de eventos negativos presentes na vida da pessoa em desenvolvimento que aumentam a probabilidade de apresentar problemas físicos, sociais e emocionais (YUNES; SZYMANSKI, 2005; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004). No caso da violência intrafamiliar, as pessoas não precisam sair de casa elas presenciam diariamente, em seu ambiente familiar, os atos violentos e hostis que, certamente, agem contra a sua natureza e têm influência deletéria em seu desenvolvimento (KOLLER; DI ANTONI, 2004, p. 294).

Estratégias de proteção ao abuso sexual Para contrapor-se aos mecanismos de risco que esta grave questão suscita, é preciso gerar fatores de proteção que transformem esta situação. Se a família é responsável por expor a criança à violência, cabe aos demais microssistemas que formam a rede de atendimento social, por exemplo, a escola, atuar de forma protetiva para impedir que o abuso perdure. Neste entendimento a abordagem bioecológica apresenta o suporte teórico e metodológico através dos pressupostos conceituais do modelo Bioecológico de desenvolvimento humano (BRONFENBRENNER, 1979-1996; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrener (1979-1996) tem sido uma referência para a compreensão das complexidades do tema abuso sexual, pois não privilegia apenas as propriedades dos contextos, mas estuda os processos proximais, as interações das pessoas em desenvolvimento em seus ambientes (BRONFENBRENNER, 1979-1996; YUNES; MIRANDA; CUELLO, 2004). Foi a atualização do modelo ecológico em bioecológico (BRONFENBRENNER, 1996; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998) que trouxe para discussão as características das pessoas e os processos proximais primários, definidos como interações dinâmicas progressivamente mais complexas entre organismos e contextos. Portanto, a compreensão sistêmica das questões desenvolvimentais se dão a partir de 4 (quatro) dimensões inter-relacionadas: a pessoa, os processos, o tempo e o contexto (BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). Focar a pessoa significa estudar o conjunto de aspectos de personalidade do indivíduo, a sua capacidade de explorar o ambiente, estruturando e reestruturando-o (KOLLER, 1998). Neste trabalho, as pessoas são: as crianças e adolescentes vítimizados que precisam ser protegidos e os abusadores, os familiares, os profissionais e demais implicados de vários sistemas que também precisam ser cuidados e ainda os pesquisadores. Os processos referem-se aos motores do desenvolvimento humano, os vínculos entre os contextos e as pessoas, os processos de interações, suas atividades diárias e papéis experimentados. O tempo refere-se ao cotidiano das pessoas, suas histórias de vida, suas experiências e o momento histórico pesquisado. O contexto, no qual vive a criança vítima de abuso sexual (e qualquer outra criança) compreende uma variedade de espaços, desde a família, escola, vizinhança até a mais ampla conjuntura social. Estes ambientes são concebidos por Bronfenbrenner (1979-1996) como uma série de estruturas encaixadas uma dentro das outras da seguinte forma: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. Um microssistema é definido como “um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais experenciados pela pessoa em desenvolvimento num dado 350

Angela Torma Pietro, Maria Angela Mattar Yunes

ambiente com características físicas e materiais específicas” (BRONFENBRENNER, 1996, p.18). Portanto, refere-se ao ambiente que o indivíduo estabelece relações face-a-face assumindo papéis e interagindo pessoalmente. A família, a escola e a instituição são exemplos de microssistemas. O mesossistema refere-se ao conjunto de relações entre dois ou mais microssistemas nos quais a pessoa em desenvolvimento participa de maneira ativa (as relações família-escola, por exemplo). O exossistema compreende aquelas estruturas sociais formais e informais que, mesmo que não contenham a pessoa em desenvolvimento, influenciam e delimitam o que acontece no ambiente mais próximo (a família extensa, as condições e as experiências de trabalho dos adultos e da família, as amizades, a vizinhança). E por último, o macrossistema é o sistema mais distante do indivíduo, e inclui os valores culturais, as crenças, as situações e acontecimentos históricos que definem a comunidade onde os outros três sistemas estão inseridos e que podem afetá-los (estereótipos e preconceitos de determinadas sociedades, períodos de grave situação econômica dos países, a globalização).

Metodologia Para este estudo foram organizadas diferentes estratégias de pesquisa, tendo em vista o número de participantes envolvidos. Desta forma, optou-se por realizar uma pesquisa quanti-qualitativa, sendo estas imprescindíveis para a compreensão do fenômeno a ser estudado. A inserção ecológica (Cecconello & Koller, 2003) foi usada em todas as fases de coleta de dados, tanto nas instituições como em qualquer outro contexto pesquisado: os pesquisadores usaram o diário de campo, visitas sistemáticas e permanência com observações por tempo planejado e em turnos alternados nos contextos pesquisados. A metodologia da inserção ecológica propõe um olhar cuidadoso, dirigido para as pessoas, para os processos, para os contextos em questão e o tempo, a partir das concepções teóricas da abordagem bioecológica de Bronfenbrenner (1979/1996, 2005). Aplicação dos Instrumentos: a) Aplicação de Questionário estruturado visa traçar o perfil das instituições que serão pesquisadas. Este instrumento foi criado com o objetivo de buscar os dados gerais da instituição e do serviço que a mesma desenvolve. Para o emprego do instrumento foi construída uma lista preliminar das instituições que atendem a criança e/ou adolescente, famílias e abusadores no município; b) Coleta de dados históricos e sociais das instituições. Com o intuito de fazer um resgate histórico e social das instituições estudadas será feita através de uma pesquisa de campo. Serão pesquisadas atas de fundação, relatórios, jornais locais e históricos disponibilizados pelas instituições. Considerando que todos estes documentos tem fácil acesso ao público não apresentará qualquer dificuldade para a obtenção dos dados; c) aplicação de Questionário semi-estruturado que busca fazer um diagnóstico sócio-ecológico ambiental do atendimento à criança e ao adolescente, vítima de abuso sexual, das famílias e do abusador. Este instrumento busca delinear todos os passos executados pela instituição durante o atendimento, bem como a compreensão destes profissionais acerca do tema. A partir da análise deste instrumento será possível perceber quais são as interlocuções existentes entre as instituições e como se dá o fluxo do atendimento. E principalmente, será possível avaliar as dificuldades e problemas existentes que podem causar ou potencializar a revitimização da vítima. Foram elaborados dois modelos: Modelo A - foi aplicado no contexto escolar com o diretor, com o coordenador pedagógico e com um professor; Modelo B – foi aplicado aos profissionais, somente nos postos 351

UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE

de saúde e hospitais com mais de um representante do local por ex.: atendente, enfermeiro e médico pediatra. Nas demais foi aplicado com o diretor ou coordenador da instituição. Com a análise dos dados obtidos através da aplicação dos instrumentos acima, foi possível construir um Programa de Intervenção Psicoeducacional junto aos profissionais com vistas a construir estratégias de prevenção nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes com vistas a facilitar a formação de uma rede de atendimento eficaz e protetiva que tenha como prioridade a criança e o adolescente vitimizado. O trabalho de pesquisa foi desenvolvido com os profissionais que atuam junto à rede intersetorial da cidade de Rio Grande, RS, tendo por base os locais pelos quais se sabe que são enviadas a criança, a família e o abusador por ocasião de uma denúncia ou notificação. São eles: Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, Juizado da Infância e da Juventude, Vara Criminal, Promotoria da Infância e da Juventude, Promotoria Criminal, CREAS, Escola e a família das vítimas. Um levantamento preliminar mostrou que estas somam 194 instituições envolvidas: 11 (onze) instituições do setor de cidadania e assistência social; 8 (oito) organizações não governamentais, 9 (nove) Postos da Polícia Civil, 11 (onze) instituições governamentais, 31 (trinta e um) Postos de Saúde; 53 (cinqüenta e quatro) escolas municipais urbanas e rurais; 18 (dezoito) escolas de educação infantil; 31 (trinta e um) escolas estaduais e 22 (vinte e duas) escolas particulares. Participarão da coleta de dados: duas bolsistas CNPq, 13 bolsistas permanências da FURG e 1 doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da FURG. Considerando os objetivos do estudo e o atendimento das instituições envolvidas foram convidados para responder o questionário três profissionais de cada uma das instituições pertencentes a rede de atendimento, destas participaram de forma efetiva 422 profissionais. Como critérios de inclusão dos participantes da pesquisa optou-se pela antiguidade e pelo desejo em participar da pesquisa. Como critérios de exclusão considerou-se todos que não estão de acordo com os critérios de inclusão apresentados, bem como a indisponibilidade em participar do estudo. Para análise dos dados qualitativos obtidos foram utilizados os princípios da grounded-theory (Glaser & Strauss, 1967, Strauss & Corbin, 1990). A grounded-theory foi cogitada, neste caso, por oferecer condições de descoberta de uma teoria a partir dos dados coletados (Yunes, 2001a; Yunes & Szymanski, 2005). O pesquisador que faz uso da grounded-theory tem possibilidade de organizar uma grande quantidade de dados qualitativos, neste caso obtidos a partir dos relatos, em códigos, subcategorias e categorias. O rigor dos procedimentos desta forma de análise possibilita uma certa “descontaminação” das idéias teóricas e hipóteses previamente elaboradas para a realização do seu estudo. É uma abordagem particularmente válida para campos de pesquisa pouco conhecidos. O software NVIVO foi utilizado para organizar e implementar a qualidade das análises quantitativas e qualitativas.

Resultados Os 422 profissionais foram classificados nas seguintes áreas de atuação: Educação (256), garantia dos direitos (11), assistência social (18), saúde (96), jurídica (3) e segurança Pública (26), Entidades de Acolhimento Institucional (12). 352

Angela Torma Pietro, Maria Angela Mattar Yunes

O estudo preliminar sobre o atendimento à criança e/ou adolescente vitimizado, da família e dos agentes responsáveis pelo processo legal de culpabilização do abusador realizado no município de Rio Grande indicou a existência de serviços que atuam de forma multidisciplinar, mas com pouca ou nenhuma interlocução. Os primeiros contatos já apontaram para a dificuldade dos profissionais em compreender esta modalidade de violência, bem como entender a necessidade e o funcionamento de uma rede de proteção para a criança e/ou adolescente vitimizado. Alguns segmentos sequer conhecem as instituições que atendem as vitimas e muito menos a sua responsabilidade enquanto educador social diante de uma situação de violência, seja: física, psicológica, negligência ou sexual. O trabalho em rede, principalmente aquele que visa proteção deve ter um caráter inter/transdisciplinar. Sabe-se que este último, só se dá num plano ideal, mas é possível se tivermos como meta buscarmos medidas protetivas eficazes. O trabalho multidisciplinar – fragmentado expõe a criança e/ ou adolescente vitimizado a situações de risco podendo levar a grave situação de revitimização. Não podemos deixar de pensar num trabalho a médio e a longo prazo com toda a família, tendo em vista a complexidade desta modalidade de violência. Não é recomendável agir de forma imediatista, e a busca da garantia dos direitos fundamentais da criança e/ou adolescente, dentre eles o direito a convivência familiar e comunitária é prioritária principalmente em casos onde as relações familiares apresentarem condições de reorganização. Não podemos ainda, deixar de avaliar as condições da própria família extensa como forma de proteção evitando a todo custo a retirada abrupta da criança e/ou adolescente vitimizado e a ida para um abrigo. Estas seriam medidas de proteção seguramente adequadas em muitos casos. Uma rede de proteção só pode ser pensada a partir da articulação e do diálogo sistemático entre os diversos profissionais que atuam nestas situações, bem como com o conhecimento profundo do fenômeno. É preciso ter em mente que tanto a criança e/ou adolescente vitimizado merecem mais que aplicações de protocolos de atendimento, mas merecem um atendimento acolhedor, digno e protetivo. Para isso, o profissional necessita conhecer seu papel, atuar eticamente, sem negligenciar etapas. Conhecer todos os serviços disponíveis, poder contar com o apoio de outros profissionais, maior capacitação sobre o tema são medidas necessárias para a criação de uma rede de proteção. Buscar preservar a criança e/ou adolescente vitimizado a todo custo e um acompanhamento dos casos são essenciais para compreender as diversas manifestações desta modalidade de violência. Os profissionais de todas as áreas: saúde, educação e legal são importantes e só um trabalho que tenha como foco a proteção a criança e o adolescente, de forma dialógica e articulada é capaz de formar uma rede de proteção. Cumpre ressaltar, a carência de estudos científicos sobre a formação de uma rede de proteção, pois os estudos sobre atuações multidisciplinares e preocupações com melhorias nos atendimentos, não apresentam uma visão ecológica e sistêmica do fenômeno. Tal constatação advem de atuações práticas, empíricas do nosso grupo de pesquisa a qual pretendemos trazer para o campo da ciência.

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UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE

Considerações finais No processo de mapeamento foi possível perceber a falta de interlocução entre as instituições envolvidas, o que denota a importância de uma visão ecológica que promova a proteção à vítima. Percebe-se que o caminho após a denúncia pode ser tanto quanto ou mais árduo que o precedente a ela. Por este motivo, o conhecimento do tema pelos profissionais envolvidos e a precocidade e prioridade no atendimento à vítima, são questões primordiais para que o número de danos e de traumas não seja ainda maior. O que se vê, na maioria dos casos, é uma preocupação em provar os “verdadeiros culpados”, o que faz com que tal prioridade exponha ainda mais a criança ou o adolescente a condições de risco. Algumas vezes, os riscos vividos no ambiente familiar se repetem na situação pós-denuncia e seus encaminhamentos. Tendo em vista que uma vez realizada a denúncia e iniciado o inquérito, quem deve proteger a criança e o adolescente é a Sociedade/Estado. Assim, os desdobramentos dos atendimentos devem ser realizados de forma realmente efetiva, com a absoluta garantia dos direitos fundamentais das pessoas implicadas. De todas as considerações apresentadas neste texto, fica transparente a necessidade de preparo, formação, capacitação e empoderamento de uma rede intersetorial que fale a mesma “linguagem”, e que tenha claro os seus objetivos comuns de proteção e de desenvolvimento das pessoas envolvidas em casos de abuso sexual. O funcionamento e o atendimento tecido por uma rede de profissionais habilitados é a solução mais exequível e justa para prevenir que crianças e adolescentes sejam revitimizados e banidos de seus direitos de amar, brincar e aprender em todo e qualquer contexto. A proposta apresentada está longe de ser a solução final para este problema social de tamanha abrangência e complexidade. Entretanto, é uma alternativa para promover mudanças, ou pelo menos desestabilizar estruturas enraizadas que muitas vezes não se dão conta da abrangência das suas atuações no desenvolvimento da criança e/ou adolescente vitimizado. As instituições envolvidas não podem mais furtar-se às suas responsabilidades sociais de propiciar proteção não apenas às crianças e adolescentes, mas também às famílias e ao próprio abusador. Só assim, será possível buscar estratégias de prevenção tendo a formação de uma rede como apoio afetivo e social e preparada para interagir com seu público de maneira humana e respeitosa.

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UM ESTUDO SOBRE A ECOLOGIA DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE

*Historiadora, Advogada, Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Membro do Centro de Referência e Apoio a família (CRAF/ FURG), colaboradora do Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas em Situação de Rua (CEP-Rua) e do Núcleo de Estudos e Atenção às Famílias (NEAF) da FURG. Presidente da Corregedoria do Conselho Tutelar do município de Rio Grande.

**Psicóloga. Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande, Professora no Mestrado em Educação do Unilasalle, docente Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da FURG e docente colaboradora no curso de Especialização em Saúde Comunitária na UFRGS.

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CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO.

Sérgio Augusto de Loreto Bordignon * Inga Ludmila Veitenheimer-Mendes ** Felipe Marcon Pezda ***

Introdução O Caapão das Canoas, remanescente de vegetação nativa do atual município de Canoas, encontra-se mantido junto ao Campus do Centro Universitário La Salle - UNILASALLE, desde a chegada e instalação dos irmãos Lassalistas no Rio Grande do Sul, em Canoas, no início do século XX. Tal remanescente, denominado pela comunidade acadêmica de Túnel verde, foi designado em 1999, pelo Irmão Alberto Knob, como “uma relíquia do Caapão das Canoas”. Knob, em 1999, apresenta uma listagem da composição florística presente no Caapão das Canoas, que corresponde a uma área de mais ou menos meio hectare e apresenta a forma aproximada de um quadrado. Com o objetivo de preservar e promover a divulgação do patrimônio ambiental, representada pelo Caapão das Canoas, busca-se reavaliar a atual situação deste resquício de mata urbana, tomando por base o levantamento realizado por Knob (1999). O trabalho de reavaliação abrange o período de abril de 2010 a julho de 2012, quando se procedeu ao levantamento da flora vascular - dos diferentes extratos (arbóreo, arbustivo e herbáceo) além das plantas trepadeiras e epífitas - através do Método do Caminhamento conforme Filgueiras et. al., (2004) e que consiste em percorrer a área anotando todas a espécies encontradas. Como resultado parcial do levantamento registra-se espécies da flora ameaçadas de extinção presentes no Caapão das Canoas, conforme a lista das espécies da flora ameaçadas – RS (Decreto Estadual nº 42.099, de 31/12/2002). Para efeito do Decreto 42.099 de 31/12/2002, consideram-se as seguintes categorias de ameaças: 1. provavelmente extinto (PE): um táxon é considerado provavelmente extinto quando, após exaustivos levantamentos, em habitats conhecidos e potenciais ao longo de sua área original de ocorrência, não é encontrado nenhum indivíduo; 2. criticamente em perigo (CR): um táxon está criticamente em perigo quando corre um risco extremamente alto de extinção em um futuro imediato;

CAAPÃO DAS CANOAS, CANOAS, RS: ESPÉCIES DA FLORA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO

3. em perigo (EN): um táxon está em perigo quando não está criticamente em perigo, mas corre um risco muito alto de extinção em futuro próximo; 4. vulnerável (VU): um táxon é considerado vulnerável quando não está criticamente em perigo , mas corre um grande risco de extinção em médio prazo.

Espécies da flora ameaçadas presentes no Caapão das Canoas Até o momento foram registradas na área do Caapão das Canoas (Figura 1): 177 espécies da flora, das quais 134 são nativas (autóctones da Floresta Estacional Semidecidual), 44 introduzidas de forma intencional (plantadas) ou espontânea (dispersão por animais ou vento), destas 11 são nativas da Flora Brasileira e que ocorrem originalmente em outras formações florestais do Rio Grande do Sul ou de outros Estados do Brasil e 33 são espécies exóticas (originárias de outros países e/ou continentes).

Figura 1 - “Caapão das Canoas”, Unilasalle, Canoas, Rio Grande do Sul. (Foto: Sérgio Bordignon)

Dentre estes resultados, merece destaque o registro das seguintes espécies relacionadas na lista da flora ameaçada de extinção no Rio Grande do Sul (Decreto Estadual nº 42.099, de 31/12/2002): AMARANTHACEAE Celosia grandifolia Moq. (EN) Esta espécie herbácea, conhecida popularmente como bredo-do-mato, registrada por Knob (1999), não foi encontrada, até o momento, no atual levantamento florístico. Trata-se e espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (SENNA, 2012). Cabe destacar que no Rio Grande do Sul esta espécie ocorre na Depressão Central, Litoral e Encosta do Nordeste no interior de matas pluviais muito úmidas, sendo raríssima (VASCONCELLOS, 1982).

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Sérgio Augusto de Loreto Bordignon, Inga Ludmila Veitenheimer-Mendes, Felipe Marcon Pezda

Gomphrena vaga Mart. (VU) – Figura 2 Trata-se de trepadeira, registrada durante o presente levantamento, não tendo sido inventariada por Knob (1999). Espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Amazônia, a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica (SENNA, 2012). No Rio Grande do Sul G. vaga ocorre em quase todas as regiões do Estado, exceto no Alto Uruguai, Campanha, Encosta do Sudeste e Serra do Sudeste (MARCHIORETTO et. al., 2008), habitando bordas de mato, clareiras e matos abertos, sendo pouco frequente (VASCONCELLOS, 1982).

Figura 2 – Gomphrena vaga Mart. A) hábito, B) face inferior de uma folha e inflorescências. (Fotos: Sérgio Bordignon)

BROMELIACEAE Tillandsia geminiflora Brogniart (VU) – Figura 3 Epífita, conhecida popularmente como cravo-do-mato, gravatazinho ou bromélia, registrada por Knob (1999), teve seu registro confirmado no atual inventário. Trata-se de espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica (FORZZA et. al., 2012).

Figura 3 – Tillandsia geminiflora Brogniart. A) hábito, B) detalhe das flores. (Fotos: Sérgio Bordignon)

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Tillandsia usneoides (L.) L. (VU) – Figura 4 Epífita conhecida popularmente como barba-de-pau, barba-de-velho ou camambaia, registrada por Knob (1999), teve seu registro confirmado no atual inventário. Trata-se de espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica (FORZZA et al., 2012).

Figura 4 – Tillandsia usneoides (L.) L. (Fotos: Sérgio Bordignon)

Vriesea gigantea Gaudich (VU) – Figura 5 Epífita conhecida vulgarmente como gravatá ou bromélia, não foi registrada por Knob (1999). Outra espécie do gênero, V. friburguenseis Mez, mencionada pelo referido autor, não foi encontrada no atual inventário. Vriesea gigantea é espécie nativa, endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (FORZZA et al., 2012).

Figura 5 - Vriesea gigantea Gaudich. (Foto: Sérgio Bordignon.)

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CELASTRACEAE Maytenus glaucescens Reissek (VU) – Figura 6 Espécie arbórea, conhecida popularmente como coração-de-bugre, não foi registrada por Knob (1999). Outra espécie de Maytenus, M. cassiniformis Reissek, mencionada por Knob (1999), também conhecida pelo mesmo nome popular, não foi encontrada no atual inventário. Foram encontrados 12 exemplares de M. glaucescens com mais de 1,5m de altura sendo que apenas um exemplar, uma árvore com porte de aproximadamente 15m de altura, já foi encontrado com frutos maduros no mês de novembro. Trata-se de espécie nativa, porém não endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (LOMBARDI et al., 2012). No Rio Grande do Sul cresce na floresta do Alto Uruguai e na Depressão Central (SOBRAL et al., 2006).

Figura 6 - Maytenus glaucescens Reissek. A) hábito B) ramo vegetativo C) frutos e sementes. (Fotos: Sérgio Bordignon).

ORCHIDACEAE Cattleya intermedia Graham (VU) – Figura 7 Epífita conhecida popularmente como orquídea-catléia, registrada por Knob (1999) e confirmada presença também neste inventário. Espécie nativa, endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a: Mata Atlântica (BARROS et al., 2012). No Rio Grande do Sul ocorre nas regiões: Depressão Central, Encosta do Sudeste, Encosta Inferior do Nordeste e Litoral; habitando principalmente matas paludosas do bioma Mata Atlântica, em altitudes moderadas a baixas (BUZATTO et al., 2010).

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Figura 7 - Cattleya intermedia Graham. (Foto: Sérgio Bordignon)

Cattleya tigrina A. Rich.(VU) – Figura 8 Epífita conhecida apenas como orquídea, não tendo sido registrada por Knob (1999). Espécie nativa, endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (BARROS et al., 2012). No Rio Grande do Sul é encontrada na Depressão Central, Encosta Inferior do Nordeste e Litoral; habitando altitudes moderadas (BUZATTO et al., 2010).

Figura 8- Cattleya tigrina A.Rich. (Foto:Sérgio Bordignon)

SIMAROUBACEAE Picrasma crenata (Vellozo) Engler (VU) – Figura 9 Árvore denominada popularmente como pau-amargo, quina ou quineira, registrada por Knob (1999) e no atual inventário através de um único exemplar. Espécie nativa, porém não é endêmica do Brasil, tendo como domínio fitogeográfico a Mata Atlântica (PIRANI & THOMAS, 2012)

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No Rio Grande do Sul ocorre na floresta do Alto Uruguai e na Depressão Central (SOBRAL et al., 2006).

Figura 9 - Picrasma crenata (Vellozo) Engler. A) ramo florífero B) detalhe das flores. (Fotos: Sérgio Bordignon)

Considerações finais Knob (1999) considera C. grandifolia, T. geminiflora, T. usneoides, C. intermedia e P. crenata, como sendo espécies originais da composição florística da vegetação primitiva do atual município de Canoas. Sendo que atualmente não mais há registros de C. grandifolia para a área do Caapão das Canoas, relacionada para o Rio Grande do Sul como espécie EN e considerada como raríssima por Vasconcellos (1982). Recentemente essa espécie foi encontrada em um fragmento de Floresta Estacional Semidecidual, situada entre os bairros Cinco Colônias e Mato Grande, área que consta no Plano Diretor Urbano e Ambiental de Canoas (PDUA) como Parque Natural (FACHINELLO, 2011). O papel das listas de espécies ameaçadas quer em nível internacional, nacional e local - como no presente caso – é o de levar este conhecimento e alertar aos tomadores de decisão e o público em geral sobre a necessidade de evitar a crescente destruição dos habitats e consequente dilapidação do patrimônio genético. A preservação e o correto manejo de áreas verdes nativas é um dever de Estado e do próprio cidadão e, de modo muito especial, quando nestas áreas encontram-se espécies ameaçadas, é fundamental que sejam identificadas e levadas ao conhecimento da comunidade onde se encontram inseridas – só se preserva e se valoriza quando se conhece.

REFERÊNCIAS BARROS, F. de,  VINHOS, F.,  RODRIGUES, V.T.,  BARBERENA, F.F.V.A.,  FRAGA, C.N.,  PESSOA, E.M.  2012.  Orchidaceae  in  Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB011338; FBO11345). Consultado em agosto de 2012. BUZATTO, C.R.; FERREIRA, P.P.A.; WELKER, C.A.D.; SEGER, G.D. dos S.; HERTZOG, A.; SINGER, R.B. 2010. O gênero Cattleya Lindl. (Orchidaceae: Laeliinae) no Rio Grande do Sul, Brasil. In: Flora Ilustrada do Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Biociencias, Porto Alegre, v. 8, n. 4, p. 388-398. 363

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FACHINELLO, A. 2011. O patrimônio ambiental em Canoas, Rio Grande do Sul: avaliação da conservação e recomendações de uso de áreas naturais remanescentes. 2011. 117f. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Bens Culturais) – Unilasalle, Canoas, 2011. FILGUEIRAS, T.S.; NOGUEIRA, P.E.; BROCHADO, A.L. & GUALA II, G.F. 1994. Caminhamento – Um Método Expedito para Levantamentos Florísticos Qualitativos. In: Cadernos de Geociências, IBGE. FORZZA, R.C., COSTA, A., SIQUEIRA FILHO, J.A., MARTINELLIi, G., MONTEIRO, R.F., SANTOSSILVA, F., SARAIVA, D. P., PAIXÃO-SOUZA, B. 2012. Bromeliaceae in Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB006376; FB006412; FB006472). Consultado em agosto de 2012. KNOB, A. Uma relíquia do Caapão das Canoas. Revista de Educação, Ciência e Cultura, v.4, n.1, p.7-21, 1999. Lista de Espécies da Flora do Brasil 2012 in http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012. Consulta em agosto de 2012. LOMBARDI, J.A., GROPPO, M., BIRAL, L. 2012. Celastraceae in Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB006760). Consultado em agosto de 2012. MARCHIORETTO, M.S., AZEVEDO, F., JOSENDE, M.V.F. & SCHNORR, D.M. 2008. Biogeografia da família Amaranthaceae no Rio Grande do Sul. Pesquisa, ser. Botânica, n. 59, p. 171-190. PIRANI, J.R.,  THOMAS, W.W.  2012.  Simaroubaceae  in  Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB001301). Consultado em agosto de 2012. SENNA, L. 2012. Celosia in Lista de Espécies da Flora do Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (http://floradobrasil.jbrj.gov.br/2012/FB004307;FB004317).Consultado em agosto de 2012. SOBRAL, M., JARENKOW, J.A., BRACK, P., IRGANG, B.E., LAROCCA, J., RODRIGUES, R.S. 2006. Flora arbórea e arborescente do Rio Grande do Sul, Brasil. São Carlos: RiMa . VASCONCELLOS, J.M.O. 1982. Estudo taxonômico sobre Amaranthaceae no Rio Grande do Sul, Brasil. Dissertação (Mestrado em Botânica). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 277p.

* Biólogo, Doutor em Ciências Farmacêuticas; professor e orientador no Programa de Mestrado em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração e na graduação em Ciências Biológicas do Centro Universitário La Salle. ** Bióloga e Museóloga, Doutora em Ciências; Vice-Presidente do Conselho Regional de Museologia 3ª Região; professora aposentada pela UFRGS. *** Biólogo, Graduado em Ciências Biológicas-bacharelado (Unilasalle).

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UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS

Cristiane Paim da Cunha * Rubens Müller Kautzmann **

Introdução O presente trabalho pretende apresentar a situação de segurança e saúde do trabalho encontrada na atividade de serrarias no município gaúcho de Cerro Grande do Sul, realizado por equipe da FUNDACENTRO e trabalhado como pesquisa de mestrado por Da Cunha (2011). A Atividade de Serraria e a SST A atividade de serraria no município gaúcho de Cerro Grande do Sul, possivelmente não é diferente de outras tantas atividades de alto risco disseminadas pelo Brasil, operadas por micro e pequenos empresários, caracterizadas pela pouca formação no ramo e alta informalidade nas relações comerciais e de trabalho. As serrarias estudadas estão inseridas na cadeia produtiva da silvicultura do eucalipto, na etapa de beneficiadoras das toras não aproveitadas para o beneficiamento industrial e, portanto, assumindo função importante na gestão de rejeitos ou inservíveis deste segmento. De acordo com a Norma Regulamentadora nº 9 (NR 9), as serrarias estudadas enquadram-se no grau de risco 3, Classificação de Risco que tem no grau 4 o maior nível de risco. Este grau compreende as tipologias de riscos físicos, químicos biológicos, ergométricos e de acidentes. A atividade do desdobre de toras em tábuas tem como principais riscos aqueles que envolvem a operação de serragem feito no equipamento de serra fita ou circulares, classificadas como simples, duplas ou múltiplas (YUBA, 2001). Para a avaliação dos riscos a Segurança e Saúde do Trabalhador (SST) de qualquer empresa ou segmento empresarial se deve considerar o contexto social e cultural em que está inserida. Para Carvalho (2006) as pequenas empresas, fundamentalmente as empresas familiares, são influenciadas por valores culturais brasileiros, como o forte respeito pela autoridade, relacionado à estrutura patriarcal da família, e o personalismo, relacionado a uma sociedade rural extremamente coletivista. Estes valores são ainda mais realçados quando se observa a tendência brasileira à informalidade, pacifismo e cordialidade. Assim, as pequenas empresas criadas por empreendedores sem grande formação profissional sugerem uma gestão paternalista, informal, com aversão aos riscos de captação de recursos financeiros e preferência a um crescimento lento. Lodi apud Machado (2006) acrescenta que as pequenas empresas evitam qualquer tipo de formalidade, rigidez e profissionalismo, utilizando muito mais a lealdade pessoal e o comprometimento através de laços afetivos, ao que, se acrescenta as relações de submissão do empregado e de dominação do empregador.

UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS

Contexto de Estudo A atuação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE - RS) na região em 2008 resultou, inicialmente, na interdição de 8 empresas e posteriormente, com acompanhamento da FUNDACENTRO, as 28 serrarias que operavam nos municípios de Cerro Grande do Sul receberam notificação coletiva. A partir da Notificação Coletiva, coube a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho – FUNDACENTRO, empreender ações visando a melhora das condições de SST e com isto o desenvolvimento sustentável, do segmento de serraria na região. A FUNDACENTRO é entidade vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego com a missão de produzir e difundir conhecimentos que contribuam para a promoção da segurança e saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras. As ações realizadas no período de 2009 a 2011 compreenderam: reuniões com empresários e trabalhadores, palestras de esclarecimento e instrução sobre SST e visitas de orientação e avaliação técnica, quando se aplicou instrumentos de análise e questionários visando através do seu diagnóstico e avaliação da situação e percepção das condições de SST fundamentar ações e atuações no sentido de qualificar e promover o desenvolvimento do segmento, seus gestores e trabalhadores. O trabalho apresenta a situação do aspecto de segurança e saúde do trabalhador no contexto de um segmento econômico, de importância regional, que serve a um propósito e etapa da cadeia produtiva da madeira para a construção civil. Neste contexto, conhecer o cenário cultural e social do empreendimento fará compreender melhor os resultados da avaliação de risco em seu três níveis básicos: identificar os perigos; estimar o risco de cada perigo (a probabilidade e a gravidade do dano) e decidir se o risco é tolerável (referência xx). A necessidade deste “primeiro olhar” busca permitir que a avaliação dos riscos da atividade seja conduzida a uma abordagem participativa, oportunizando o envolvimento administradores e trabalhadores no processo de avaliação em SST. O trabalho apresenta o diagnóstico do ambiente laboral que acompanhou a avaliação da segurança e saúde do trabalho (SST) na atividade de serraria no Município de Cerro Grande do Sul, no Estado do Rio Grande do Sul.

Metodologia A intenção do trabalho em avaliar a saúde e segurança do trabalhador nas serrarias de Cerro Grande do Sul, buscou realizá-la a partir de um enfoque sistêmico, conhecendo a situação deste segmento dentro de sua cadeia produtiva e do ambiente onde se localiza, para melhor compreender os aspectos da SST e sua capacidade de adoção de medidas de gestão a esta atividade. Peres (2005), citando Wiedmann, mostra que o ponto de partida de qualquer estudo de percepção de riscos é o quanto difere a interpretação de uma pessoa “leiga” – entendida aqui como aquela 366

Cristiane Paim da Cunha, Rubens Müller Kautzmann

que não adquiriu conhecimentos específicos sobre o objeto em questão, ao longo se sua trajetória de vida – para um determinado perigo, da interpretação do mesmo por parte de um perito. O levantamento e ações realizadas na região de estudo foram de cinco visitas no período de 2009 a 2011, compreendendo atividades educativas e de orientação direta às empresas, inspeções técnicas e aplicação de questionários de avaliação da SST e percepção de riscos, realizadas pela FUNDACENTRO. De um universo de 28 serrarias localizadas no município de Cerro Grande do Sul, 5 foram escolhidas como representativas deste segmento segundo entendimento consensual da equipe da FUNDACENTRO, além dos aspectos de logística e oportunidade de encontrar a serraria operando no momento da vistoria. Em dois momentos, janeiro de 2009 e janeiro de 2011, através de questionários, foram avaliados os seguintes parâmetros de SST: regularização de funcionários, aproveitamento/destinação de resíduos, proteção contra incêndio, EPI (equipamento de proteção individual), EPC (equipamento de proteção coletiva), instalações ordem e limpeza, sinalização, áreas de vivência, condições do maquinário e manutenção preventiva.

Discussão dos resultados Segmento Econômico Entre as 5 serrarias pesquisadas a empresa mais jovem tinha 7 anos enquanto as outras quatro empresas amostradas (80%) estão no mercado há mais de 10 anos, o que confere a característica de empresas estáveis no seu segmento segundo Betim (2007) apud Silva, 2007, que considera a mortalidade maior de empresas se dá até 5 anos. Relatos de proprietários referem a troca da atividade de olaria para a serraria, em função de dificuldades de atendimento à legislação vigente, logística para escoamento da produção bastante precária e baixo preço de mercado. O segmento da cadeia da produção de tabuas na Região de Cerro Grande do Sul esta apresentado na Figura 1.

Figura 1 – Fluxograma da geração de tabuas a partir de madeira redirecionada pela indústria. (Arte: Priscila Suzuki, 2011)

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UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS

O produto (tábuas) é de acabamento grosseiro, destinado a empresas de construção civil, localizadas no litoral norte do estado e para empresas localizadas no entorno do município. Duas empresas fornecem também matéria-prima para a confecção de embalagens tipo pallets. A matéria-prima utilizada é composta preferencialmente de madeira de eucalipto, proveniente do excedente de uma grande indústria produtora de celulose localizada em um município nas proximidades e de matas da região. As toras recebem um primeiro beneficiamento de descasque ou desgalhamento na origem, o que facilita a manipulação das mesmas nas serrarias. O parâmetro econômico observado na pesquisa foi a relação de vínculo de emprego. Em 2009 a relação encontrada era precária e algo informal. Este aspecto se reflete também na ausência da presença de registros de inspeção do trabalho e de treinamentos externos ao trabalhador. Todos os trabalhadores ao serem questionados, relataram ter aprendido a profissão dentro da própria serraria, iniciando na atividade como ajudantes. Os empresários argumentaram que não oferecem cursos sobre SST aos seus funcionários, por estes terem altos custos ou por não terem conhecimento de órgãos que ministrem cursos voltados ao seu segmento. Todavia, demonstraram interesse em oferecê-los, se os cursos fossem gratuitos e não interferissem no horário normal de expediente, sugerindo que os mesmos fossem realizados durante os finais de semana. Em 2011 a situação da relação do trabalho evoluiu com a regularização dos contratos de trabalho e observação dos direitos do trabalhador.

O ambiente de Segurança do Trabalho A primeira etapa das operações nas serrarias é o recebimento e descarregada (Figura 2). Em duas das cinco serrarias estudadas, esta operação é realizada com auxílio de equipamento (guindaste). Nota-se, no entanto, que ainda ocorre o rolamento das torras de madeira realizadas manualmente, exigindo um grande esforço físico dos trabalhadores, podendo acarretar doenças do sistema ósseo e muscular e, em casos extremos levar à invalidez dos mesmos, além dos riscos de acidentes. Os trabalhadores também não dispunham de equipamentos de proteção individual adequados, como luvas, aventais, óculos, protetores auditivos e calçados, ficando sujeitos à ocorrência de acidentes, como esmagamentos, cortes e ataque de animais peçonhentos, bastante comuns nestes ambientes.

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Figura 2 – Recebimento e descarga das toras de madeira em serraria em Cerro Grande do Sul.

O passo seguinte é preparar as toras para serem serradas. Muitas vezes, nesta etapa, é necessário o auxílio de moto-serra, com o propósito de deixar as toras mais uniformes para serem serradas, retirando das mesmas, galhos e folhas remanescentes ou nós aparentes possibilitando um maior rendimento na operação de serra e também prolongando a vida útil da própria serra-fita. A serra fita, onde ocorre a operação de desdobro das toras, ou seja a produção de tábuas, é o principal equipamento da serraria (Figura 3).

Figura 3 – A foto mostra a etapa de serragem e serra fita e as condições de exposição da serra e atmosfera com poeria em serraria em Cerro Grande do Sul.

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UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS

Nota-se na Figura 3 a ausência de proteção na serra-fita. Além de ser necessária a instalação de um equipamento de proteção coletiva de enclausuramento da serra-fita, é de fundamental importância a utilização de equipamentos de proteção individual, pois a lâmina possui pontas cortantes nos dentes, o que pode gerar faíscas que podem causar danos irreversíveis à visão do operador. Sem a proteção e enclausuramento ocorre também a maior emissão de particulados e poeira e adicionando o risco à saúde dos operários. Nesta etapa do processo é gerada a maior quantidade de resíduos. A estimativa feita indicou que 60% do material serrado é descartado na forma de costaneiras ou serragem. Nenhum tipo de reaproveitamento ou reciclagem é realizado. As tábuas serradas são colocadas manualmente em pilhas depositadas no pátio, de onde seguem para o consumidor final. A segurança nas operações foi avaliada através dos parâmetros de proteção contra incêndio, EPI (equipamento de proteção individual), EPC (equipamento de proteção coletiva), condições do maquinário e manutenção preventiva. Em 2009 todas as serrarias apresentaram para estes quesitos pontuações de inexistente a ruim. Já em 2011 houve uma melhora com destaque ao fornecimento de EPIs e introdução de EPCs.

Condições de saúde e higiene A Figura 4 mostra a área física e as edificações, compostas por galpões de madeira, com aproximadamente 250 m², com telhado de telhas de argila ou cimento amianto, com as laterais abertas, piso de terra sem revestimento e pé direito com aproximadamente 3 metros de altura.

Figura 4 – Panorama das estruturas e galpões de serragem em serraria em Cerro Grande do Sul.

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O ambiente de trabalho aberto recebe a ventilação e iluminação natural, este último auxiliado com lâmpadas fluorescentes e incandescentes Apesar da Portaria 3.214, do Ministério do Trabalho, através da Norma Regulamentadora - NR 24 estabelecer que as instalações sanitárias devem ser submetidas ao processo permanente de higienização, para que sejam mantidas limpas e desprovidas de quaisquer odores durante toda a jornada de trabalho, nas serrarias visitadas as condições sanitárias/higiênicas são bastante precárias. Em 80% das serrarias haviam banheiros para seus trabalhadores. Uma serraria não dispunha de instalações sanitárias para uso dos funcionários. Nas que tinham sanitários, 75% das serrarias não atendia às recomendações previstas em norma, como mostra a Figura 5.

Figura 5 – A foto mostra a condição de instalações e higiene de sanitário de serraria em Cerro Grande do Sul.

Os sanitários dispunham de lavatórios, porém não eram fornecidas toalhas para a secagem das mãos. Mesmo assim, os trabalhadores consideram as condições sanitárias adequadas, constatando-se a falta de noções sobre higiene por parte de trabalhadores e empresários. A falta de limpeza e organização verificadas nos estabelecimentos acompanhados, somadas à carência e precariedade das instalações sanitárias, favorecem o aparecimento de cobras, escorpiões, aranhas, dentre outros, nos locais de trabalho. A presença destes animais é uma ameaça à saúde dos trabalhadores, uma vez que estes são peçonhentos e podem ser vetores de outras doenças. A condição de saúde e higiene, apesar de estar ligada também ao uso de EPIs e EPCs obteve a avaliação através dos parâmetros de instalações ordem e limpeza, sinalização e áreas de vivência. Em 2009 a avaliação média destes quesitos foi de regular a inexistente. Na média esta condição evoluiu em 2011 porém em função das melhorias introduzidas por duas das cinco serrarias. Estas duas 371

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empresas atingiram avaliações de muito bom a bom, enquanto as demais não promoveram melhorias. Como exemplo a Figura 6 mostra a nova condição de sanitário da mesma empresa retratada na Figura 5.

Figura 5 – Nova situação das instalações sanitárias em serraria em Cerro Grande do Sul.

Condições de Risco na SST Quanto ao aspecto ergonômico nas serrarias estudadas verificou-se que muitas tarefas são realizadas através de operações manuais, em sua maioria, tarefas de empilhamento e de transferência de local de objetos pesados. O tamanho e forma das toras, tábuas e equipamentos utilizados nas serrarias, dificultam essa operação. Sendo assim, as tarefas que submetem o trabalhador a esforços repetitivos ou carregamento de peso, com excesso de exigência muscular, podem, com o tempo, desenvolver no trabalhador problemas de coluna e doenças devido a estes esforços. O principal risco físico é o ruído, embora não tenham sido realizadas avaliações quantitativas de exposição ao ruído. Os questionários mostraram que o trabalhador tem a percepção do risco a saúde devido ao ruido. Nos trabalhos de carregamento e estocagem a exposição ao calor com frequência é um risco a saúde. Além do estresse psicológico, devido ao desconforto provocado pelo calor, podem ocorrer também problemas fisiológicos como a desidratação, câimbras de calor, exaustão e choque térmico que podem levar a morte. Embora o tamanho das partículas emanadas do processo produtivo nas serrarias estudadas seja considerado grande, e não apresentando risco de comprometimento pulmonar, pode causar danos aos 372

Cristiane Paim da Cunha, Rubens Müller Kautzmann

órgãos externos do corpo. A ventilação ou exaustão adequados e o uso pelos funcionários dos equipamentos de proteção individual protegem contra este risco. Substâncias químicas tóxicas provenientes do pó da madeira, uma vez em suspensão no ar, podem também facilmente penetrar no organismo pela respiração, vencendo as barreiras naturais das vias respiratórias e chegando a atingir as partes mais profundas do pulmão. Os riscos de acidentes são representados pela exposição a perigos existentes em instalações, máquinas e equipamentos. Nos locais visitados, estes ficaram evidentes no arranjo físico inadequado, máquinas e equipamentos sem proteção e sem manutenção, ferramentas manuais defeituosas, iluminação e instalações elétricas inadequadas, riscos de incêndios e explosões e contato com animais peçonhentos. Nas serrarias visitadas, o arranjo físico inadequado foi rapidamente identificado pela dificuldade da passagem (fluxo) de materiais e pessoas, proximidade de máquinas e equipamentos e acúmulo de materiais desnecessários à atividade pelo caminho. Foram verificados nos estabelecimentos visitados, a falta de instalações elétricas adequadas, não sendo observado o cumprimento de normas de segurança (NR 10) para este item, como por exemplo, falta de aterramento de equipamentos e ferramentas elétricas. Os acidentes com eletricidade podem ser provocados por contato direto (tocar a fiação elétrica) e indireto (contato com superfícies energizadas) provocando choque elétrico, queimaduras, incêndio e até a morte, situação esta que já aconteceu na região em uma serraria que não faz parte das selecionadas para este estudo. A pesquisa avaliou também a percepção de empresários e trabalhadores ao risco em SST. No entendimento dos empresários o trabalho é seguro, já os trabalhadores tiveram opiniões conflitantes, o que demonstra a baixa conscientização sobre a questão. A percepção conflitante foi demonstrada quando estes reconhecem alguns riscos, especialmente o ruído e a falta de segurança das instalações elétricas. Outro aspecto importante é a condicionante cultural a percepção de riscos, que fica explicitada ao observar as informações fornecidas sobre acidentes de trabalho. Um empresário e um trabalhador relataram a ocorrência de cortes e ou arranhões e, no entanto, sequer consideram a ocorrência destes como acidentes. Neste caso, identifica-se uma distorção do entendimento do conceito de acidente do trabalho, já que pequenos acidentes, não são percebidos como indicativos de condições inseguras que contêm a probabilidade de gerarem acidentes graves. Em relação ao meio ambiente, tanto os empresários como trabalhadores foram categóricos em afirmar que suas atividades não possuem impacto significativo. Nenhum dos entrevistados reportou queixas oriundas da comunidade relacionadas às atividades desenvolvidas pelas empresas. O parâmetro de aproveitamento de resíduos foi avaliado. Em 2009 duas empresas já aproveitavam os resíduos como lenha. Em 2011 este parâmetro foi atendido por quatro serrarias.

Considerações A análise do segmento de serrarias em Cerro Grande do Sul através das suas características de SST permite avaliar a sustentabilidade desta atividade empresarial. 373

UM primeiro olhar À SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA ATIVIDADE DE SERRARIA EM CERRO GRANDE DO SUL - RS

A existência de 28 serrarias em um pequeno município, como é o caso, por si só revela a importância de maior atenção a este segmento econômico. O conhecimento revelado mostra ser uma atividade apêndice na cadeia produtiva, predisposição a informalidade nas relações de trabalho, e possivelmente comercial e baixo nível técnico e de formação. A Notificação Coletiva recebida do órgão de fiscalização do trabalho e a presença da FUNDACENTRO tiveram efeito positivo na adoção de medidas de regularização da relação de emprego e aspectos de segurança e saúde do trabalho. Acredita-se que esta mudança de postura imprime também uma melhora na gestão e sustentabilidade do empreendimento. A pesquisa mostra ainda a necessidade de conhecer a percepção do risco do trabalhador e empresário, como condição básica as ações de educação, no sentido de conscientizar e alterar paradigmas da cultura local sobre os riscos e alertas de SST.

REFERÊNCIAS ABRAF. Anuário Estatístico da ABRAF 2010: ano base 2009. Brasília, 2010 Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul – FEE-RS DA CUNHA, C. P. Avaliação da Segurança e Saúde do Trabalho (SST) na Atividade de Serraria no Município de Cerro Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração), Centro Universitário La Salle, Unilsalle, Canoas, 2011. CARVALHO, C. E.; MACHADO, D. D. P. N. Traços culturais de pequenas empresas do setor madeireiro. Revista Gestão e Regionalidade, nº 65, set-dez: 2006. PERES, F. ROZEMBERG, B.; DE LUCCA, S.R. Percepção de riscos no trabalho rural em uma região agrícola do Estado do Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(6):1836-1844, nov-dez, 2005. YUBA, A. N. Cadeia produtiva de madeira serrada de eucalipto para produção sustentável de habitações. Dissertação (Mestrado em Engenharia), Escola de Engenharia, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, UFRGS. Porto Alegre, 2001

* Msc. Engenheira de Segurança. Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho. FUNDACENTRO/CERS ** Prof. Doutor, Engenheiro de Minas. PPG Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração

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O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL: SUBSÍDIOS PARA AÇÕES DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Carlos Gilberto kisiolar Machado * Rubens Muller Kautzmann ** Luciano Scarello Azeredo ***

Introdução A abordagem da gestão mineral sobre distritos mineiros não é nova. O Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) tem trabalhado nesta perspectiva, em todo Brasil. Na década de 1990, o DNPM patrocinou o Programa Nacional de Estudos de Distritos Mineiros, com o objetivo de fomentar e subsidiar ações de governo e da iniciativa privada na exploração e produção de bens minerais e águas subterrâneas. No Rio Grande do Sul, Santos et al, (1998), delimitaram 15 distritos mineros, segundo a tipologia de jazimento e o perfil das atividades de mineração, ou seja: quais os tipos de bens minerais existentes e se estes encontram-se em fase de pesquisa do jazimentos e/ou em produção dos bens minerais. A atividade de mineração está na base de inúmeras cadeias produtivas, as quais operam dentro do modelo de desenvolvimento econômico atual, que segundo DIAS (2006) visa unicamente o lucro dentro da lógica de produção-consumo sempre crescente. Neste momento se faz necessário encontrar e adotar processos educativos que rompam com o atual modelo de desenvolvimento econômico (MDE). Tratar a Educação Ambiental (EA) a partir de princípios somente éticos, somente educativos, somente científicos, é dar continuidade ao que existe (ALMEIDA; KAUTZMANN, 2012). Para DIAS (2006) a Educação Ambiental (EA) envolve a relação sistêmica entre seus objetivos e a realidade social, econômica, política, cultural, ecológica e de ciência e tecnologia, onde se dará a atividade de EA. Segundo o mesmo autor, entende-se a necessidade primeira da compreensão da realidade do sistema onde a ação de EA será promovida, que no presente estudo, é a atividade de extração de pedra de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata. Portanto, este trabalho objetiva ter uma visão do segmento de mineração e do contexto do Distrito Mineiro de Nova Prata a partir de dados obtidos nas informações do Relatório Anual de Lavra (RAL) de 2010, que possam nortear o planejamento de ações de Educação Ambiental para este sistema produtivo e ambiental.

Metodologia Para conhecer o segmento estudado, duas abordagem foram realizadas. A primeira consistiu

O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL

em reunir informações de trabalhos que integram conhecimentos de geologia, mineração e meio ambiente que permitam contextualizar a atividade de produção de pedra de talhe. A segunda abordagem visou realizar uma análise estatística do segmento produtivo desta pedra, afim de analisar uma informações sobre impactos ambientais causados pela sua exploração, e quais medidas são aplicadas para minimizar estes impactos, através de uma amostra aleatória de um banco de dados fornecidos pelas empresas mineradoras, disponíveis no DNPM contidos no Relatório Anual de Lavra de 2010. Todas as informações foram coletadas por técnicos do DNPM e tratadas neste trabalho sem a identificação da pessoa jurídica. O RAL compreende as informações prestadas pelos mineradores referentes a atividade de extração mineral, tais como: produtividade, custos, preços de vendas, licenças para exploração, tipos de impactos ambientais causados e medidas aplicadas. O setor mineiro da região de Nova Prata (RS) aos poucos foi se organizando través do Sindicato da Indústria de Extração de Pedreiras de Nova Prata – SIEPNP, que, em 2010, reuniu neste Distrito Mineiro aproximadamente 300 mineradoras cadastradas. A quantidade de 36 mineradoras pesquisadas foi definida pela equação (1). Considerando-se o tamanho da população em 300 empresas, média proporcional de 15% das observações que não aplicam nenhum tipo de medida para minimizar os impacto ambientais, com erro estimado para esta média em 10% , e um limite de confiança de 90% (probabilidade esperada para média proporcional da população). Equação (1) : Número de elementos da Amostra.

(Martins,Gilberto de Andrade, 2008). Através desta amostra, os dados brutos coletados são organizados em tabelas e gráficos para 376

Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo

melhor visualização e compreensão do comportamento das variáveis observadas. Destes serão calculadas, medidas estatísticas de proporção referentes aos impactos ambientais e suas medidas, inseridas na planilha Excel, para análise e conclusões dos dados.

Levantamento da região O Distrito Mineiro de Nova Prata – RS A região em estudo está compreendida pelos distritos de Nova Prata, Nova Bassano e Serafina Correia e foi classificada como Distrito Mineiro de Nova Prata (Santos et al., 1998). Este distrito engloba os municípios de Vila Flores, Paraí, Casca e Protásio Álves, como principais, reunindo em sua maioria, microempresas. A Figura 1 apresenta a carta do município de Nova Prata onde está colorida a zona potencial para a extração de lajes de basalto, já excluídas as zonas de APPs: dos cursos de água e nascentes, topos de morros e inclinações acima de 45%, conforme o ex-código florestal (Portela, 1998 ; Araújo, 2009). Figura 1. Mapa do Zoneamento da extração de basalto no Distrito Mineiro de Nova Prata – RS.

A mineração da pedra de talhe ocorre em estratos tabulares ou lajes (diaclases horizontais) nos derrames de rochas vulcânicas, de composição ácida, descritas como riolitos e riodacitos, facilmente extraídos e talhados em uma diversidade de produtos para a construção civil, conforme figuras 2 , 3 e 4. A figura 2, mostra o perfil da lavra de basalto de onde extraí-se a pedra de Talhe (Toscan,Kautzmann,2005)

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O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL

Figura 2: Perfil da Lavra de Basalto

Figura 3 : Lavra das estruturas do tipo disjunções tabulares horizontais, na forma de lajes de “basalto” de granulação fina e cor cinza claro (Basalto Carijó).

A figura 4, mostra o produto final da pedra de talhe aplicada em várias atividades da Construção Civil.- Unilasalle (Gilberto Kisiolar-2012) Figura 4: Piso e estrutura decorativa em pedra de talhe.

Fonte (autoria própria)

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Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo

Esta rocha designada genericamente como basalto é minerada desde a década 1940 (DILDA apud KAUTZMANN, 2009), como alternativa de trabalho aos agricultores nos períodos de entre safras. A atividade de mineração tomou impulso na década de 1980, quando empresas, de micro e pequeno porte, foram criadas e os primeiros títulos de mineração obtidos para atender a demanda por um produto barato e de alta resistência. Ao final desta década, os locais de mineração já eram conhecidos, através do cadastramento e regularização realizados pelo DNPM/1ºDS, e comercializados no Estado do RS. Nesta época, estruturou-se o atual Sindicato da Indústria da extração de Pedreiras de Nova Prata – SIEPNP, o qual reúne atualmente 262 empresas de mineração.

Discussão das informações do RAL-2010 A amostra de estudo reúnem os RALs de 36 mineradoras em 12 municípios, escolhidas por amostragem aleatória, no Distrito Mineiro de Nova Prata, e estão apresentados na Tabela 1. Tabela 1 - Base amostral de RALs consultados do Distrito Mineiro de Nova Prata.

MUNICÍPIOS Casca Guabijú Ipê Marau Nova Bassano Nova Prata Paraí Protásio Alves São Domingos do Sul Serafina Corrêa Veranópolis Vila Flores TOTAL

Nº MINERADORAS 2 1 1 1 1 12 5 2 5 2 2 2 36

A pesquisa apresenta aspectos pertinentes a Educação Ambiental envolvendo a extração de basalto para pedra de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata analisando informações contidas nos RALs, tais como: registro dos tipos de impactos ambientais e investimentos realizados em meio ambiente. A percepção dos mineradores aos impactos ambientais causados pela extração da pedra de talhe é apresentado na Tabela 2 e visualizado na Figura 5. Os registros contemplam 91 observações.

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O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL

Tabela 2 - Percepção pelos mineradores dos impactos ambientais causados pela extração de pedra de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata – RS

Impactos Ambientais Visual Erosão Sucatas Deslizamento Ruído Ar TOTAL

Nº de Empresas 36 22 12 7 10 4 91

% Impactos 40% 24% 13% 8% 11% 4% 100%

Ao todo foram seis (6) os impactos ambientais destacados pelos mineradores. Destes o impacto Visual foi o mais citado, impacto que significa o desconforto humano ao ver a pedreira. Na figura 5, observa-se que os impactos ambientais de maior expressão lembrados foram o Visual (com 40%) e de Erosão (somando 24% das observações). Em contrapartida tem-se pouca expressão sobre os impactos de deslizamento, ruído e poluição do ar, impactos que envolvem riscos e dano à saúde e segurança do trabalhador. Figura 5. – Percepção de impactos ambientais informado nos RALs (DNPM,2011) pelos mineradores de Pedra de Talhe no Distrito Minero de Nova Prata – RS

Para minimizar os efeitos dos impactos causados pelos mineradores, na extração da pedra de talhe, as empresas informam em quais impactos ambientais serão realizados os investimentos. A Tabela 3 e a Figura 6 registram as medidas tomadas para mitigar os impactos ambientais, na mesma amostra de 36 mineradoras, atingindo um total de 56 observações. Pode-se observar que as medidas aplicadas para minimizar os impactos ambientais foram exatamente naquelas em que eles demonstraram a maior percepção, na recuperação da vegetação das áreas degradadas e na contensão da erosão através de taludes estruturados com pedras, argila ou 380

Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo

vegetação. Entretanto 16% das observações não apresentaram nenhuma medida aplicada para minimizar os impactos ambientais causados pela sua exploração e comercialização da pedra. Tabela 3 - Medidas adotadas para minimizar os impactos ambientais causados pela extração de pedra de talhe no Distrito Mineiro de Nova Prata-RS

Medidas Vegetação Contensão da Erosão Redução dos ruídos Redução da poluição do Ar Controle das Sucatas Contensão Deslizamentos Nenhuma medida adotada TOTAL

Observações 16 14 9 5 2 1 9 56

% Medidas 29% 25% 16% 9% 4% 2% 16% 100%

Na tabela 4 e na figura 7, registram-se o número de empresas que investiram ou não, financeiramente em Medidas para recuperação da área explorada pela mineração. Tabela 4. Investimentos aplicados em medidas aos impactos ambientais

INVESTIMENTOS AOS IMPACTOS AMBIENTAIS Investimentos Nenhum Investimento Totais

Nº Empresas 27 9 36

% Empresas 75% 25% 100%

Os dados coletados são de informações não confirmadas sobre a efetividade das medidas para minimização dos impactos ambientais gerados pelas mineradoras. 381

O SEGMENTO DE MINERAÇÃO DE PEDRA DE TALHE NO DISTRITO MINEIRO DE NOVA PRATA - RIO GRANDE DO SUL

Observa-se que 75% das empresas pesquisadas realizaram investimentos em medidas para minimizar os efeitos da exploração da pedra, como a recuperação da vegetação, contensão da erosão, redução dos ruídos e poluição do ar, controle das sucatas e deslizamentos, sendo eles de pequena ou grande expressão.

Considerações finais Pela percepção dos mineradores, constatamos que, 75% das empresas mineradoras levantadas nesta amostra aplicaram investimentos em máquinas, equipamentos ou técnicas para minimizar os impactos ambientais. Observou-se também que grande parte das medidas adotadas foram em recuperação da vegetação das áreas desmatadas ou degradadas, no controle da erosão, através de taludes estruturados com pedras, argila e vegetação. Mas sobre os impactos apresentados como poluição do ar, ruídos, deslizamentos, que são prejudiciais à saúde e trazem riscos ao trabalhador, pouco foi informado. Chega-se a conclusão que há a necessidade de realizar um trabalho de inserção em Educação Ambiental nas mineradoras existentes no Distrito Mineiro de Nova Prata-RS de conscientização e gestão desta atividade.

REFERÊNCIAS Araújo, A. B. B.; Hasenack, H.; Rotert, A.; Kautzmann, R. M. Mapeamento de Potencialidade Ambiental da Extrão de Basalto em Nova Prata – RS. In: VII Simpósio Internacional de Qualidade Ambiental. ABES-RS, Porto Alegre, 2010. (CD ROM) 382

Carlos Gilberto kisiolar Machado, Rubens Muller Kautzmann, Luciano Scarello Azeredo

DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral: Cadastro Mineiro. Disponível em www. dnpm.gov.br/. Acessado em abril de 2012. Santos, E.L., Maciel, L.A.C., Filho, J.A.Z. Distritos Mineiros do Estado do Rio Grande do Sul, Distrito Mineiro de Nova Prata, 1o Distrito – DNPM, p. 13-14, Porto Alegre, 1998. Dias, Genebaldo Freire. Educação ambiental: princípios e práticas. São Paulo: Gaia, 2006. Martins, Gilberto de Andrade, Estatística Geral e Aplicada – Editora Atlas-2008 Kautzmann, R.M., Sabedot, S., Bastos, A.B.; Flores, S.S. Análise Diagnóstica da Extração de Basalto em Nova Prata – RS: Metodologia Informatizada para o Levantamento de Aspectos Ambientais. Anais da III Semana Científica do Unilasalle, CD ROM, 2007. Kautzmann, R.M. Toscan, L., Sabedot, S. O rejeito da mineração de basalto no nordeste do Estado do Rio Grande do Sul: diagnóstico do problema. REM – Revista Escola de Minas, v. 60, n. 4, p.657-662, 2007. Alegre, 1998. PORTELA, L. C. Mapa Geológico Simplificado, Projeto Basalto Ornamental, DNPM, Porto Alegre, 1989. Toscan, L., Rejeitos de Basalto: Uma primeira abordagem. Estudo de Caso: Extração de Basalto no Município de Nova Prata – RS. Dissertação de Mestrado, Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, Canoas, 2005. Toscan, L., Kautzmann, R.M., Diagnóstico da Mineração de Basalto e seu Rejeito, no Município de Nova Prata RS; 1. Estudo Setorial. Congresso Internacional em Planejamento e Gestão Ambiental, Brasília, 2005.

* Carlos Gilberto Kisiolar Machado - Mestrando em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração ** Rubens Muller Kautzmann - Prof. Doutor, Engenheiro de Minas. PPG Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração *** Luciano Scarello Azeredo -

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8. PRODUÇÃO E USO DA MEMÓRIA

GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA

Glauce Stumpf*

Este artigo é uma parte do trabalho de conclusão de curso de História Licenciatura1 no qual foram analisadas as representações da imprensa brasileira sobre o governo militar argentino. Para tanto foram selecionadas matérias jornalísticas publicadas acerca da administração da Junta Militar – Marinha, Exército e Aeronáutica – que governou a Argentina (1976-1983) durante o ano de 1982, ou seja, no ano em que iniciou a transição política na Argentina, de ditadura militar para democracia – uma vez que as eleições ocorreram em 1983.

Teoria e Metodologia Para poder trabalhar com os jornais é necessário acercar-se de diversos fatores imprescindíveis. De acordo com a historiadora Capelato (1988, p.15), a grande imprensa possui interesses que vão muito além de informar seus leitores. Possui interesses políticos e, por ser uma empresa, visa o lucro. Para alcançá-lo, cada jornal identifica o seu público para que possa atraí-lo ao seu produto e faz investimentos que possibilitem melhorar a qualidade e aumentar o número de exemplares. Além disso, constitui uma rede especializada em informação, com profissionais preparados e um aparato tecnológico muito desenvolvido. Porém, o lucro não é o único objetivo. A imprensa possui uma voz política atuante, que, por mais que tente manter-se neutra, constrói imagens (tanto positivas como negativas, dependendo de seus interesses) sobre determinados fatos. Essas imagens tendem a levar o leitor a tomar posição sobre assuntos que a empresa acredita serem relevantes e que estão imbuídos de objetivos políticos. Reforçando essa percepção, Berger (2003) pode nos auxiliar: “a posição negada em nome do princípio liberal do jornalismo – a imparcialidade – é que confirma a que veio a imprensa. É consenso sabê-la arauto da perspectiva histórica da burguesia e, assim, sustentação do capitalismo” (p.41). Ou seja, mesmo quando a imprensa procura manter-se neutra, ela se posiciona. Mesmo ao tentar se isentar, mostrando os dois lados de uma revolta ou manifestação, por exemplo, ela manifesta sua posição. Pode ser por meio dos detalhes técnicos do jornalismo, ou por meio do uso de termos no discurso. A forma do texto pode falar por si só, e o jornal utiliza muito este recurso. A preocupação com a estética é muito valorizada nos periódicos, para destacar reportagens as quais desejam dar ênfase. Mas, o conteúdo também se destaca, trazendo as vozes do jornal. Essa união entre o conteúdo (a construção de um vocabulário jornalístico, sua procura por objetividade), com a estética do jornal (os enunciados selecionados, todos os detalhes técnicos) constrói representações do real pela empresa jornalística que conduz o leitor, fazendo “parte de um grande campo de luta política” (BIAGI, 2001, p.19).

GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA

Essa pesquisa está embasada no conceito de representações, que é bastante complexo, estando, até hoje, em debate entre os historiadores. Conforme Chartier (1990) as representações “traduzem as suas posições e interesses objectivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostaria que fosse” (p.19). Sob essa perspectiva, as relações sociais estão envolvidas pelas representações que temos da realidade e são elas que forjam, muitas vezes, os acontecimentos. Partindo desse embasamento teórico e metodológico, a escolha do periódico foi baseada na importância do jornal Zero Hora2, que a partir da década de 1980, é o jornal mais lido do Rio Grande do Sul (BERGER, 2003, p. 59), e, por entender que as matérias publicadas nos diversos órgãos da grande imprensa são muito semelhantes, pois, na época estudada, eram compradas de agências de notícias nacionais e internacionais que as vendiam a muitos periódicos, optamos apenas por um jornal.

A Argentina A Argentina passou por muitas ditaduras na segunda metade do século XX. A última ditadura militar (1976-1983) vivida pelos argentinos deixou marcas fortes na população, tanto em relação à violência utilizada pelo governo despótico quanto à má administração, responsável pelo caos político e econômico que o país enfrentou no fim de 1983. Foram oito anos que afundaram a Argentina em uma crise econômica e social grave. O governo militar perdeu a credibilidade com a derrota da Guerra das Malvinas, porém não abandou a cena política de forma simples. Passou por uma fase de divergências internas até as eleições de 1983.

No Brasil Dois fatos aproximam os governos do Brasil e da Argentina: ambos viviam sob governos de ditaduras militares, pelo menos em parte da década de 1970 e vivenciaram, na década de 1980, o retorno à democracia. Porém, diferentemente da Argentina, a transição à democracia brasileira (em 31 de março de 1964, o Brasil teve o golpe militar, ficando no poder por mais de 20 anos) foi longa, tendo passado por várias etapas. De maneira geral, considera-se que ocorreu entre os anos de 1974 e 1985, período que corresponde ao último governo militar, presídio pelo general João Baptista Figueiredo. O objetivo desse último governo foi dar “a continuidade e a conclusão do processo de redemocratização, encerrando o ciclo militar” (VIZENTINI, 2005, p. 62).

As matérias As matérias jornalísticas relativas ao governo da Junta Militar no ano de 1982 retrataram, em sua grande maioria, o caos administrativo e a falta de coesão interna do mesmo. A ausência de unidade no grupo militar foi-nos apresentada em várias matérias, algumas até contraditórias entre si. As publicadas entre o início do mês de agosto até o final do ano de 1982 divulgavam a divergência entre 388

Glauce Stumpf

os membros da Junta Militar em relação ao retorno à democracia. Algumas matérias falavam sobre a vontade do governo de ficar no poder, já outras, que o exército estaria comprometido em realizar as eleições em 1984 e deixar a política. A cada dia, uma nova posição era trazida, demonstrando esta confusão que se introduzira no governo argentino. Se analisarmos apenas algumas manchetes do início do mês de agosto, verificaremos o conflito existente no interior da Junta, aspecto que o jornal fazia questão de mostrar ao leitor: “Argentina: Dozo exige partido dos militares” (ZH, “Mundo”3, 04/08/1982, p. 16), “Divergências sérias no comando militar” (ZH, “mundo”, 05/08/1982, p. 19), “Exército e Marinha negam golpe” (ZH, “mundo”, 07/08/1982, p.16), “Dozo fala. E aumenta a tensão na Argentina” (ZH, “Mundo”, 10/08/1982, p.16). Interessante ressaltar estes quatro títulos que foram publicados em um intervalo de seis dias apenas. A quantidade de matérias publicadas no periódico foi grande, praticamente diária, neste mês. Ao analisar duas dessas matérias com mais acuidade, teremos ainda mais evidente o conflito interno que a Junta vivenciava. Na primeira notícia4, do dia 04 de agosto, fomos informados de que os militares não haviam desistido por completo de se manterem no poder. Mesmo que, já definida a transição rápida para a democracia, desejaram formar um partido político e eleger-se, como exposto na fala de Lami Dozo (Comandante em Chefe da Força Aérea): “‘é conveniente despojar-se de toda hipocrisia e confessar que queremos e buscamos (os militares) a continuidade do processo para mais além das próximas eleições’”. Porém, após esclarecer o título da matéria, o jornal trouxe testemunhos contrários a este desejo. Ao colocar estas falas, conduz o leitor a concluir que não há espaço para uma vitória nas eleições de algum tipo de partido composto por militares. A fala de um dirigente centralista pode nos servir de exemplo: [...] o dirigente centralista Pablo Gonçalves Borgez, disse que “é quase incrível que a esta altura dos acontecimentos, e depois de seis anos inqualificáveis de Governo militar, ainda se pretenda que tamanho processo de catástrofe se prolongue no tempo. Os militares estão empenhados em terminar com a República”, acrescentou. (grifos nossos).

As palavras de Pablo Gonçalves Borgez foram inseridas no contexto da notícia, expressando o que parecia ser a voz da população argentina, uma voz ressoante e uníssona, que demonstrava a consciência democrática argentina ao não aceitar mais o governo dos militares e que caracterizava a ditadura militar de “seis anos inqualificáveis” de um “processo de catástrofe”. Já, a manchete do dia 07 de agosto de 1982, sob o título: “Exército e Marinha da Argentina negam golpe”, contradiz a afirmação de Lami Dozo, quando informa que membros das Forças Armadas desejavam retirar-se do poder: “[...] o general Nicolaides(Comandante em Chefe das Forças Armadas) qualificou os boatos de um iminente golpe de estado como ‘uma barbaridade’ e afirmou que as Forças Armadas não mudarão ‘uma posição já estabelecida claramente’ – a de retornar o governo aos civis” (ZH, “Mundo”, 07/08/1982, p.16). Na ocasião, as falas dos militares foram agressivas contra o pronunciamento de Lami Dozo (publicado na notícia do dia 04/08/1982), de tal maneira que “o porta-voz da Marinha qualificou de ‘extemporâneas e inconvenientes’ as declarações do brigadeiro (Dozo) [...]”. Apesar das declarações do general Nicolaides, a possibilidade um golpe militar permaneceu 389

GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA

sendo explorada nas matérias jornalísticas do ZH como forma de enfatizar o caos interno da Junta, intensificando, assim, a construção de uma imagem negativa em relação ao governo militar. Muitas matérias publicadas pelo jornal ZH reproduziam trechos ou informações publicados em jornais argentinos. Com isso, buscavam demonstrar como o país se percebia diante desses conflitos das facções da Junta militar. Em 16 de agosto de 1982, a manchete: “Jornal denuncia ameaça de golpe na Argentina” (ZH, “Mundo”, p. 16) serve-nos de exemplo. O jornal argentino referido foi o La Prensa, qualificado pelo periódico como “conservador”. A notícia comentou que o jornal argentino publicara uma matéria sobre a possibilidade de um golpe militar. Expôs a repercussão do assunto no país: Enquanto isso, os rumores de um golpe mais ou menos palaciano e mais ou menos eminente não deixaram de circular nos maios políticos e nas redações dos jornais, como conseqüência de aparentes divergências entre as três forças armadas, depois da promessa do regime militar de convocar as eleições em 1984.

Finalizando a notícia, foi resumido o contexto vivenciado pelos argentinos no período, representado como bastante negativo. Para isso, fez uso dos termos “conspirações”, “ataque”, “incerteza”, “ebulição”, “brutal” e “desequilíbrio”, como veremos no excerto abaixo: Neste clima de conspirações e desmentidos, a cúpula do governo suporta o ataque dos partidos políticos, a incerteza sobre os resultados das medidas de uma economia impulsionada pelo dirigismo, as pressões do exterior para acelerar a democratização, a ebulição sindical e os movimentos de protestos pelo brutal desequilíbrio entre preços e salários (grifos nossos) (ZH, “Mundo”, 16/08/1982, p. 16).

Outro aspecto que pudemos verificar neste trecho foi que a exigência do retorno à democracia não se limitava ao desejo da população argentina, mas existiam, também, “pressões do exterior” que impulsionavam o país a estabelecer um regime democrático. Os EUA estimularam o retorno à democracia nos países latino-americanos. O governo Reagan, apesar de não reforçar diretamente essa política, também se interessava em por fim ao desgaste de apoiar governos impopulares e que resistiam à adoção dos preceitos do neo-liberalismo na economia (VIZENTINI, 2000). O jornal expôs diferentes visões acerca da Junta Militar nas diversas matérias recolhidas. Entretanto, demonstrou sua posição, ao dar mais destaque a algumas delas. A notícia do dia 24 de agosto de 1982, sob a manchete: “Três inseguras opções que sobram para o futuro” (ZH, “Mundo”, 24/08/1982, p. 17) serve de exemplo. No parágrafo inicial, percebemos a falta de coesão do governo militar: Na Argentina “há vários golpes de estado em marcha”, afirmou o ministro da Economia, Jose Dagnino Pastore, enquanto que seu colega do Interior, Llamil Reston, assegurava que o Governo militar é forte e não cairá “com um sopro”, segundo declarações conhecidas ontem em Buenos Aires.

No trecho acima, cada ministro demonstrou uma posição diferente frente ao Governo militar. Mas, o jornal, no restante da matéria, aprofundou apenas o discurso que o ministro da Economia 390

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realizou para os dirigentes da União Industrial Argentina (UIA). Para ele, restavam “três opções à Argentina”. A primeira era recorrer a “um novo golpe militar, que se sabe como e onde começa, mas não se sabe como e onde termina”. A segunda era a eleição a qualquer custo, independente de problemas econômicos e sociais. “A terceira opção, que é válida para mim” – acrescentou o ministro, segundo os empresários – “é que todos os setores façam um trabalho de conscientização para que a saída eleitoral seja alcançada com uma Nação mais ou menos sólida. Para o próximo Governo deve-se deixar uma República estável, com o funcionamento de todas as instituições”, acrescentou.

Em meio a tanta instabilidade do governo militar, uma notícia publicada em 04 de setembro de 1982 informou a existência de uma reconciliação entre as Forças aérea e exército, sob o título: “Recomposição da junta na Argentina” (ZH, “Mundo”, 04/09/1982, p. 19). Como as três Forças militares que compunham a Junta estavam em constante atrito, essa notícia narrou sucintamente o que, a princípio, poderíamos tomar como algo positivo. Porém, após comentar o fato, surge outro assunto que é colocado sob estas palavras: “Enquanto isso, o país continua a atravessar uma das piores crises econômicas de sua história, que provoca tensas reações sociais”. Ao usar a expressão “enquanto isso” o jornal levava o leitor a pensar que não adiantaria uma relativa melhora no entendimento entre as forças armadas, pois a crise era crônica, a realidade argentina precisaria de uma efetiva melhora. Segundo a notícia, a Junta estava resolvendo problemas internos, “enquanto” o país estava imerso em um contexto de crise econômica e social sem soluções aparentes. De um modo geral, foi por meio da inserção de falas/discursos de personagens da oposição nas matérias publicadas que o jornal criticou a postura do presidente e de toda a Junta Militar. Os personagens da ditadura foram apresentados como vilões, sendo acusados e tratados com repúdio. Poderemos compreender melhor quando analisamos as imagens contidas nas matérias jornalísticas. Foram poucas as matérias analisadas com ilustrações, sempre que apareciam eram em preto e branco e, geralmente, em tamanhos pequenos – em relação ao conteúdo escrito.

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GOVERNO MILITAR ARGENTINO: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM GOVERNO EM QUEDA

Figura 1 - Galtiéri, feliz com o que fez nas Malvinas. Zero Hora, Porto Alegre, 16/09/1982. Mundo, p. 16.

Geralmente, eram fotos de rostos de militares, com feições sérias, até mesmo uma em que aparece o ex-presidente Galtiéri sorridente (figura 1), o seu semblante é sombrio. Todos os militares que apareceram nas fotografias estão uniformizados e em posição ereta, sempre denotando extrema seriedade. Figura 2 – Argentina: Dozo exige partido dos militares. Zero Hora, Porto Alegre, 04/08/1982. Mundo, p. 16.

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A figura número 2 mostra o busto de Lami Dozo, Comandante em Chefe da Força Aérea. Seus olhos são pretos, a foto ficou muito escura, deixando seus traços confusos. A fotografia do jornal na década de 1980 ainda não possuía os requintes conhecidos hoje, mas era possível fazer fotos com uma qualidade superior a que utilizaram para ilustrar essa matéria. As figuras 3 e 4 já possuem uma melhor qualidade, mas ainda focam apenas na parte superior do militar. Figura 3 – Volta À democracia é uma conquista dos militares? Zero Hora, Porto Alegre, 11/08/1982. Mundo, p. 16.

Figura 4 - Bignone anuncia normas para organização dos partidos. Zero Hora, Porto Alegre, 27/08/1982. Mundo, p. 16.

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Na figura 5, onde dois homens conversam, sendo que um deles era Martinez de Hoz (Ministro da Economia de 1976 até 1981), o padrão segue o mesmo. A foto captou a imagem da cintura para cima de ambos, com semblantes preocupados. Figura 5 - MARTINEZ, Oscar. Um confronto que traz escândalos à rua todos os dias. Zero Hora, Porto Alegre, 03/10/1982. Mundo, p. 24.

Podemos inferir que as imagens reforçaram a imagem negativa construída pelo jornal em relação à Junta Militar argentina.

Conclusão Durante o ano de 1982, após a Guerra das Malvinas, a Junta Militar argentina não conseguiu manter-se estabelecida no poder, sendo assim ocorreu a passagem para a devolução do poder para o povo, ou seja, o retorno à democracia na Argentina. No Brasil, o mesmo ocorria, porém, de maneira muito mais gradual, ou seja, no mesmo ano o Brasil “vendia” a imagem de país democrático, pois já havia a abertura democrática no país. Sendo assim, a imprensa fazia a sua parte de voz do país, e o jornal Zero Hora cumpria sua tarefa. Tudo o que remetia a ditadura militar era associado a algo negativo e, por mais que mostrassem notícias amenas ou até com possibilidades de melhora, havia alguma referência às brutalidades e à violência da mesma. A ditadura não era mais tolerável. O jornal ZH se posicionou, às vezes de forma bem explícita, contrário ao governo militar e a favor do retorno à democracia. Vemos, portanto, que a questão militar foi construída de forma negativa, trabalhando-a como a antítese da democracia. Um regime que não deveria mais perdurar e foi enfatizado a sua construção por meio de matérias que priorizaram os fatos polêmicos, como as facções existentes na Junta durante o governo militar, ressaltando a realidade conturbada que a Argentina vivenciava nesses anos.

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REFERÊNCIAS Fontes primárias Argentina: Dozo exige partido dos militares. Zero Hora, Porto Alegre, 04/08/1982. Mundo, p. 16. Bignone anuncia normas para organização dos partidos. Zero Hora, Porto Alegre, 27/08/1982. Mundo, p. 16. Divergências sérias no comando militar. Zero Hora, Porto Alegre, 05/08/1982. Mundo, p. 19. Dozo fala. E aumenta a tensão na Argentina. Zero Hora, Porto Alegre, 10/08/1982. Mundo, p. 16. Exército e Marinha da Argentina negam golpe. Zero Hora, Porto Alegre, 07/08/1982. Mundo, p. 16. Galtiéri, feliz com o que fez nas Malvinas. Zero Hora, Porto Alegre, 16/09/1982. Mundo, p. 16. Jornal denuncia ameaça de golpe na Argentina. Zero Hora, Porto Alegre, 16/08/1982. Mundo, p. 16. MARTINEZ, Oscar. Um confronto que traz escândalos à rua todos os dias. Zero Hora, Porto Alegre, 03/10/1982. Mundo, p. 24. Recomposição da junta na Argentina. Zero Hora, Porto Alegre, 04/09/1982. Mundo, p. 19. Três inseguras opções que sobram para o futuro. Zero Hora, Porto Alegre, 24/08/1982. Mundo, p. 17. Volta À democracia é uma conquista dos militares? Zero Hora, Porto Alegre, 11/08/1982. Mundo, p. 16.

Bibliografia CAPELATO, Maria H. R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Editora Contexto, EDUSP, 1988. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, S.A., 1990. BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Editora Sulina. 1980 BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. BIAGI, Orivaldo Leme. O imaginário e as Guerras da Imprensa. Estudo das coberturas realizadas pela imprensa brasileira da Guerra da Coréia (1950-1953) e da Guerra do Vietnã na sua chamada fase americana. Campinas, 2001. Disponível em: HTTP://www1.capes.gov.br/teses/pt/1996_mest_unicamp_ Orivaldo_Leme_Biagi.pdf Acesso em: 20 de set. 2009. FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (18502002). São Paulo: Ed. 34, 2004. MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006. VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do século XX. 2ª Ed. Porto Alegre: Novo Século, 2000. VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relações internacionais do Brasil: De Vargas a Lula. 2 Ed. Sãos Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.

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(Endnotes) 1

Como requisito básico para o término da graduação em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos – realizei um trabalho de conclusão que analisava as representações sobre a redemocratização argentina e a consolidação do primeiro governo democraticamente eleito no jornal Zero Hora, abrangendo cinco anos do periódico. Intitulado “Representações sobre a redemocratização argentina e o governo de Alfonsín no jornal Zero Hora (1982-1989)” apresentado em novembro de 2009, orientado pela professora Heloísa Joichms Reichel.

O jornal teve origem no jornal Última Hora, fechado pela censura em 1964. Em 4 de maio de 1964, os novos administradores modificaram a linha editorial e o nome do periódico para Zero Hora. Sua trajetória é marcada por um alinhamento com a política no poder, principalmente pelo fato de que a sua criação coincidiu com a instalação da ditadura militar no Brasil, que intensificou a repressão à imprensa. 2

As matérias jornalísticas do caderno mundo, de 1982 a 1984, não especificavam individualmente, por matéria, qual agência a havia fornecido. Tanto que, bem acima do caderno, juntamente com o nome “Mundo”, estava escrito: “Serviços das agencias UPI, AP e AFP, radiofotos UPI”. Posteriormente, a partir do final de 1984, é que o jornal especificou a fonte de cada matéria, colocando, no fim de cada uma, a agência, ou em raras ocasiões o jornalista/correspondente, que havia escrito a matéria. As matérias eram compradas das agências internacionais: UPI – United Press Internacional, agência norteamericana; AP – Associed Press, norteamericna e AFP – Agence France Presse, francesa. 3

Definimos notícia de acordo com o conceito de Melo (1985). Para o autor, notícia é o “relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social” (p. 49). Faz parte do jornalismo informativo, descrevendo o fato sucintamente.

4

* Graduada em História Licenciatura pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos – cursando especialização em História do Rio Grande do Sul pela mesma universidade. Trabalha atualmente como professora de séries iniciais na E.M.E.B. Alberto Santos Dumont.

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O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL

Ana Ligia Trindade * Patricia Kayser Vargas Mangan ** Nádia Maria Weber Santos ***

INTRODUÇÃO Preservar é um dos conceitos relacionados à memória, e remete à idéia de proteção, cuidado, respeito. Preservar não é apenas guardar algo, mas também fazer levantamentos, cadastramentos, inventários, registros, etc. A preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural é necessária, pois esse patrimônio é o testemunho vivo da herança cultural de gerações passadas que exerce papel fundamental no momento presente e se projeta para o futuro, transmitindo às gerações por vir as referências de um tempo e de um espaço singulares, que jamais serão revividos, mas revisitados, criando a consciência da inter comunicabilidade da história. Compreendendo a memória social, artística e cultural é que se pode perceber e controlar o processo de evolução a que está inevitavelmente exposto o saber e o saber fazer de um povo. Quando se preserva legalmente e na prática o patrimônio cultural, conserva-se a memória do que fomos e do que somos: a identidade da nação. Patrimônio, etimologicamente, significa “herança paterna”- na verdade, a riqueza comum que nós herdamos como cidadãos, e que se vai transmitindo de geração a geração (FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO, 2011). As artes cênicas, como patrimônio intangível, a imaterialidade é relativa, pois para existir uma prática, esta se materializa de diversas formas. O que permite também realizar formas diversas de registro material (documental, sonoro, visual, audiovisual, narrativo). E pelo aspecto transitório e mutante, pode-se registrar, ao longo dos tempos, rupturas e permanências (FONSECA, 2003). Meneses aborda também o papel da tecnologia na informatização da vida e multiplicação dos registros eletrônicos diante dos quais se transformam as relações mnemônicas para “um progressivo processo de externalização da memória” (MENESES, 1999, p. 15). Sugere a inserção de novas possibilidades e campos de investigação, aproveitando o acesso às novas tecnologias ao favorecer pesquisas relacionadas a práticas sociais de memória: “quando se muda a ênfase da forma ou conteúdo físico para a ‘operação’.” (MENESES, 1999, p. 23). Pelas ferramentas diversas de registro, como indica o autor, pode-se abrir assim espaço para pesquisas do corpo, da performance ou da narrativa oral. Vale neste momento lembrar a característica forte e importante das artes cênicas: a tradição oral.

O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL

Arte e Memória Na comunidade que trabalha com arte contemporânea, é quase unânime a idéia de que a arte trata, antes de qualquer outra coisa, de si mesma. Raramente pensamos nas conseqüências disso para o conceito e a prática de uma herança cultural. Se a arte trata da arte, a obra de arte fala, ao mesmo tempo, de toda a história cultural, de toda a sua genealogia, e também, da maneira como se insere nesta história cultural. Isso pode parecer simples se pensamos em termos de um quadro, uma edificação, um livro, uma sinfonia, um filme. Torna-se problema quando chegamos a um espetáculo cênico, uma execução musical, uma recitação, uma performance coreográfica (AVELLAR, 2007). Qual seria a diferença na relação entre essas duas categorias de obras e a herança cultural? Segundo Avellar (2007), em relação à primeira, fica evidente que as próprias obras iluminam qualquer registro sobre elas. A construção teórica sobre um determinado quadro e seu pintor, o estudo de um movimento cinematográfico, ou a história da dramaturgia ocidental, giram em torno de objetos concretos e contemporâneos: o próprio quadro, a cópia do filme, o conjunto de peças de teatro. Em relação à segunda categoria, conforme Avellar, como temos obras que desaparecem no próprio ato de sua criação, podemos contar apenas com seu registro em outro meio, e com a memória dos que as presenciaram. Desta forma a dança como arte cênica é efêmera, isto é, no momento em que ela se realiza ela também se desfaz, só ficando presente na memória de quem teve a oportunidade de presenciá-la, portanto sua preservação depende da memória oral. A História Oral, por sua vez, caracteriza-se como metodologia interdisciplinar de pesquisa basicamente apoiada na Memória (TARGINO, 2008). E a Memória “é sempre uma reconstrução, evocando um passado visto pela perspectiva do presente e marcado pelo social, presente a questão da memória individual e da memória coletiva” (HALBWACHS, 1990), justamente porque, “a testemunha reconstrói o passado à sua maneira e em função do presente ao relatar a sua percepção do que vivenciou no passado” (THOMPSON, 1992). Esse processo possibilita resgatar repensar e reconstruir o passado sob um olhar atualizado, cuja peculiaridade “decorre de toda uma postura com relação à história e às configurações sócio-culturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu” (ALBERTI, 2004, p. 23). Vale salientar, também, que a história oral não se limita à possibilidade de apenas comparar ou desmentir idéias e acontecimentos estabelecidos. Trata-se, sobretudo, do registro de como uma pessoa analisa sua experiência, o que seleciona e como ordena as ênfases, as pausas (silêncios) e os esquecimentos, informações que poderão transformar-se em elementos de análise (TARGINO, 2008).

Memória Social no Ciberespaço O conceito de memória social, segundo Gondar (2005): (...) não pode ser formulado em moldes clássicos, sob uma forma simples, imóvel, unívoca. Pensamos, ao contrário, que se trata de um conceito complexo, inacabado, em permanente processo de construção.

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Nesse sentido, cabe a delimitação por “quadros sociais da memória”, noção formulada pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs, que pensava a memória como um fenômeno construído coletivamente e sujeito a transformações constantes. Para Halbwachs (1990), um pioneiro na análise dos aspectos sociais da memória, (...) a memória coletiva é aquela que envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas, permanece apoiada em uma história vivida por indivíduos no grupo ou nos grupos sociais a que pertence.

As memórias individuais ao penetrarem nas memórias coletivas, sofrem mudanças, porque são recolocadas em um conjunto mais amplo. Dessa forma, a memória coletiva, para sobreviver, deveria ser reconstruída em um fundamento comum e concordando permanentemente com a memória dos demais indivíduos, com apoio nos pontos de contato entre uma e as outras. O afastamento ou a discordância entre esses pontos comuns originam, por sua vez, o esquecimento. Em resumo, significa dizer que a memória coletiva é uma corrente do pensamento contínuo que reteria do passado somente aquilo que permanecesse vivo na consciência do grupo (TARGINO, 2008). Le Goff (1996, p. 426), por sua vez, ao considerar que a memória coletiva é constituída por lembranças e esquecimentos, admite estar a mesma, a mercê de manipulações exercidas por diferentes classes e grupos, sempre em disputas pela dominação do que deve ser lembrado e esquecido. Então, passa a Memória a revestir-se como objeto e instrumento de poder a ser conquistado e, portanto objeto e instrumento também de disputas, entre os diferentes grupos ou classes. Nesse sentido, Pollak (1989) afirma que o processo de construção da memória coletiva seria uma forma de manutenção da coesão de grupos e instituições e, também que isto só vem a reforçar sentimentos de pertença e fronteiras sociais entre distintos grupos, dentro da sociedade, reforçando por sua vez, a presença de memórias transmitidas de maneira informal. (...) a memória gira em torno de um dado básico do fenômeno humano, a mudança. Se não houver memória, a mudança será sempre fator de alienação e desagregação, pois inexistiria uma plataforma de referência e cada ato seria uma reação mecânica, uma resposta nova e solitária a cada momento, um mergulho do passado esvaziado para o vazio do futuro. É a memória que funciona como instrumento (...) de identidade, conservação e desenvolvimento que torna legível os acontecimentos. (MENESES, 1984, p. 34)

A questão da memória social vem emergindo como muito importante na cibercultura, com a multiplicação de projetos sobre memórias locais, museus virtuais e mídias locativas. Hoje, através de buscas na web, pode-se encontrar um grande número de sites que mostram as mais diversas formas com que a história e a memória social se partilham. Nesses ambientes digitais memoriais estão se organizando. E neles a sociedade se coloca diante de um novo modelo, o das possibilidades de também ajudar na criação de informações de memória. Esse processo mostra a possibilidade do compartilhamento de dados histórico-pessoais e histórico-coletivos que valorizam a memória social, aquela que muda em cada período o espírito do tempo que a molda (OLIVEIRA, 2009). A proposição de um estudo envolvendo o conceito de cibercultura, obrigatoriamente deve passar por uma reflexão inicial sobre o que é a cultura. Assim, não há uma única definição correta para definir o termo já que “a compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana” (LARAIA, 1986, p. 63). Cabe também ressaltar ainda o seguinte trecho transcrito de Laraia (1986, p.60), que trata da adaptabilidade da cultura: 399

O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL

A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura. É neste domínio que usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se ramificam.

Neste contexto, cabe ressaltar que “as tecnologias são produtos da ação humana, historicamente construídos, expressando relações sociais das quais dependem, mas que também são influenciadas por eles.” (OLIVEIRA, 2001, p. 101) O termo cibercultura é relativamente novo, o conceito remonta à introdução e popularização de tecnologias computacionais de informação e comunicação, em particular da Internet e da Web que dão origem ao chamado ciberespaço. Um aspecto importante da cibercultura é que as interações no ciberespaço vêm evoluindo e convergindo para ferramentas que permitem organizar redes sociais na internet. As redes sociais se organizam no espaço virtual, fazendo das características de des-terroritorialização (LEMOS, 2008) e des-temporalização da informação cibernética (WEISSBERG, 2004) causa e consequência do processo de padronização e esvaziamento conceitual do saber na cibercultura. Não há uma cultura “geral e original”, mas diversidades e biodiversidades culturais, reais e atuais. Dos historiadores que buscaram ferramentas numa informática puramente binária, à ascensão de uma cibercultura que, além de democratizar a informação sobre a própria história, possibilita aos cidadãos tecerem redes que alimentam a construção de plataformas virtuais que “guardam” e compartilham memórias sociais. Quando falamos em tecnologia, devemos pensar no ciberespaço como um caminho fundamental para isso hoje, desde que possa ser democratizado o seu uso. Os meios se somam. A preservação de sons, imagens e textos permite que essa relação seja mais rica, mais compartilhada. Desde que quem produz a informação possa se reconhecer no que está lá, de alguma maneira. Isso permite a criação de vínculos. As tecnologias permitem que a sociedade consiga se perceber ao ver sua história retratada. Quanto mais as pessoas tiverem suas experiências partilhadas, mais se garante a preservação da memória histórica (OLIVEIRA, 2009). A passagem acelerada do patrimônio cultural para o território do ciberespaço, com a criação dos museus virtuais, das bibliotecas digitais e dos documentos eletrônicos (de arquivo) implicou a mudança das mídias tradicionais para mídias digitais, o que resultou numa convergência que passa a ser a do objeto informacional (DODEBEI, 2011).

As Tecnologias e as Intervenções Urbanas Segundo Lemos (2004), a cada época da história da humanidade corresponde uma cultura técnica particular, e pode-se perceber que a forma técnica da cultura contemporânea é produto de uma sinergia entre o tecnológico e o social. A percepção das mudanças tanto globais quanto locais são muito importantes e passam pela compreensão do conceito de cibercultura (LÉVY, 2000) (LEMOS, 2004) (RÜDIGER, 2007). O termo cibercultura é relativamente novo, o conceito remonta à introdução e popularização de tecnologias computacionais de informação e comunicação, em particular da Internet e da Web que dão origem ao chamado ciberespaço. Lévy (2000, p.123) sustenta a tese que “a emergência do ciberespaço é fruto de um verdadeiro movimento social, com seu grupo líder (a juventude metropolitana escolarizada), suas palavras de ordem (interconexão, criação de comunidades virtuais, inteligência coletiva) e suas aspirações coerentes.” 400

Ana Ligia Trindade, Patricia Kayser Vargas Mangan, Nádia Maria Weber Santos

Um aspecto importante da cibercultura é que as interações no ciberespaço vêm evoluindo e convergindo para ferramentas que permitem organizar redes sociais na internet. As redes sociais se organizam no espaço virtual, fazendo das características de des-territorialização (LEMOS, 2008) e des-temporalização da informação cibernética (WEISSBERG, 2004) causa e consequência do processo de padronização e esvaziamento conceitual do saber na cibercultura. Não há uma cultura “geral e original”, mas diversidades e biodiversidades culturais, reais e atuais. Dois fenômenos observados na sociedade contemporânea, no contexto de cibercultura e que estão inter-relacionados, são a popularização das Redes Sociais na Internet e os fenômenos de mobilização urbanos instantâneos denominados flashmobs. Como objetos de estudo mostram-se fontes ricas em informações e com potenciais de transformação social. Assistimos assim, na era da cibercultura, o experimento de novas formas de interação que, particularmente no episódio das flashmobs, se apropriam de iniciativas artísticas com a finalidade de ocupar um espaço físico urbano. As tecnologias móveis, também chamadas nômades, estão cada vez mais presentes no cotidiano do homem contemporâneo, e, ao passo de sua popularização, pensar as implicações dessa mobilidade torna-se necessário. Lemos (2004) acredita que novas práticas do espaço urbano surgem na interface entre mobilidade, espaço físico e ciberespaço. Para Souza, Torres e Jambeiro (2005), uma das características do espaço urbano contemporâneo é a velocidade de circulação. O aumento dessa velocidade transformou os espaços urbanos - antes locais de interações sociais - em lugares de processos, ou não-lugares (AUGÉ, 1994), onde as interações sociais cedem espaço ao fluxo contínuo de pessoas. Atualmente, as tecnologias nômades de comunicação trazem as relações sociais para os espaços físicos. Os encontros não precisam mais acontecer em hora e locais pré determinados, eles ocorrem nos lugares de fluxo, nos espaços de deslocamento e o celular serve como um localizador, conectando as pessoas virtual e fisicamente. Ocorre a reinvenção dos espaços urbanos como ambientes multiusuários e, as cidades, que já haviam se transformado em lugares de processos, agora se apresentam como espaços híbridos. (SILVA, 2004, p.165) Uma das conseqüências sócio-culturais da emergência da cultura móvel é a atual transição do espaço virtual para o espaço híbrido. Silva (2004) define espaço híbrido como sendo a mistura ou desaparecimento das bordas entre espaços físicos e virtuais. Essa mistura acontece através de interações feitas por meio de mídias móveis nos espaços físicos, sendo, portanto, a influência da virtualidade no mundo físico e a fisicalidade influenciando o mundo virtual. Segundo Silva (2004), os espaços híbridos são nômades, gerados pela mobilidade contínua dos sujeitos, usuários de tecnologias móveis de comunicação, conectados à Internet e a outros usuários. Pampanelli (2004) afirma que o nomadismo telemático se originou através da massificação do uso do telefone celular e de movimentos sociais como os Flash Mobs e Smart Mobs - mobilizações relâmpagos cuja principal característica é a reunião de pessoas em espaços físicos determinados em prol de causas semelhantes. Para Pampanelli, os primeiros são destinados ao entretenimento, já os segundos, são de cunho político-social. 401

O FENÔMENO “FLASH MOB” COMO FERRAMENTA DE CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA ARTÍSTICO-CULTURAL

Entretanto vamos encontrar autores que discordam de Pampanelli, afirmando que os Flashmobs são efetivamente uma ferramenta de intervenção urbana pública que também são utilizados para promoção de ações culturais, responsabilidade social, mobilização pública, de conscientização política e social a cerca de temas de preservação ambiental, ações contra racismo, inclusão social, preservação cultural e/ou patrimonial e de aproximação das artes do grande público, democratização do acesso de diferentes camadas da população à produção artística.

Flashmob: ferramenta de intervenção urbana Uma das ferramentas da intervenção urbana é a chamada flashmob que na tradução literal para o português significa “multidão espontânea”. “Flashmob” é a abreviação de “flash mobilization”, que significa mobilização rápida, relâmpago. Trata-se de uma aglomeração instantânea de pessoas em um local público para realizar uma ação previamente organizada. Para efeitos de impacto, a dispersão geralmente é feita com a mesma instantaneidade (MOLON et. al., 2010). O uso do termo flashmob data de aproximadamente 1800, porém não da maneira como o conhecemos hoje. O termo foi usado para descrever um grupo de prisioneiras da Tasmânia baseado no termo flash language para o jargão que estas prisioneiras utilizavam. A revolta de 300 delas (por volta de 1844) culminou numa rebelião na qual, de repente, viraram de costas para o reverendo local, governador e primeira dama, levantaram as roupas, mostrando as partes íntimas simultaneamente, fazendo um barulho muito alto com as mãos. Ainda nesta época o termo australiano flashmob foi usado para designar um segmento da sociedade, e não um evento, não demonstrando nenhuma outra similaridade com o termo moderno ou os eventos descritos por ele. Hoje os flashmobs são ações pontuais, efêmeras e informais. Estas ações mesclam dois espaços distintos entre si, o espaço virtual e o espaço urbano. Todo flashmob inicia por um processo de comunicação em massa, onde um líder convida os interessados a se juntarem sempre em grupo, em um determinado local do espaço urbano e em prol de um só objetivo. Caracteriza-se por uma performance em grupo, com movimentos pré-coreografados, e depois do tempo previamente estabelecido, todos se dissipam ao sinal do líder. Todas as ações seguem um plano, ou melhor, um roteiro com etapas a serem concretizadas por todos (RIOFM, 2008). O primeiro flashmob (com seu conceito atual) que se tem notícia aconteceu em 2003, cerca de 100 pessoas entraram repentinamente em uma loja em Manhattan e ficaram em volta de um tapete específico. Outra manifestação dessas aconteceu na Central Station, importante estação ferroviária de NY. Uma multidão se aglomerou, aplaudiram por 15 segundos e repentinamente sumiram tão rapidamente quanto entraram. Os flashmobs têm a característica (pelo menos numa fase história inicial) de ter um tempo de duração curto. Os eventos costumam durar o suficiente para que haja ali no espaço urbano uma mudança, uma quebra, a interrupção da rotina. A necessidade do encontro presencial faz com que uma multidão se reúne e realize apenas algumas ações “aparentemente” banais, lúdicas, instantâneas e muitas vezes até engraçadas durante aqueles poucos minutos e, na sequência, se dispersa no espaço da 402

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cidade, mais ou menos como se nada tivesse acontecido, e “aparentemente” sem um objetivo direto (SOUZA, 2010). São performances que não estão atreladas às cerimônias comuns do dia-a-dia, mas sim a “eventos inesperados que nos obrigam a uma mudança de comportamento e de reavaliação de padrões prévios com vistas a enfrentar circunstâncias imprevistas e insólitas” (GLUSBERG, 2005 apud SOUZA, 2010. Por ter como característica forte o efêmero, o informal e a rapidez na execução, muitas vezes o objetivo original da ação fica disperso. Comemorações de datas específicas, inauguração de espaços culturais, conscientização político-social de temas de proteção ambiental, patrimonial, ou de animais, ações contra racismos, reivindicações, protestos, divulgação e democratização da arte e, até mesmo, de marketing e comércio, podem ser objetivos destas ações de intervenção urbana. Rheingold, um dos primeiros a defender que o mundo virtual teria impacto imediato no mundo real, considerado a fonte inspiradora dessas iniciativas, nos diz que: Flashmobs são meios de entretenimento organizados por si mesmo. Como milhões de pessoas que jogam games on-line, flash-mobbers estão criando ativamente sua própria diversão de maneira criativa ao invés de apenas comprar uma ficha, ficar na fila, e passivamente experimentar o “entretenimento enlatado” que lhes é vendido. Mais importante: eles estão aprendendo como usar a Internet e a comunicação móvel para organizar ações coletivas (RHEINGOLD, 2003).

Sudbrack e Borges (2008) comentam que o método de intervenção nas redes sociais permite a construção de estratégias importantes para tratar do impacto que o flashmob causa nos diversos atores sociais que dele participam e dos que nele o observam. Para os referidos autores, nessas redes é possível inventar suas formas e rituais próprios de encontro, estabelecendo uma identidade comum, na medida em que os encontros virtuais se tornam frequentes e rotineiros, construindo-se, com isso, vínculos criadores de um sistema de crenças e de regras capaz de despertar para as iniciativas individuais e novas formas de organização. Neste ponto, as trocas de experiências, conhecimentos e ações conjuntas e/ou coletivas e integradas na busca de soluções enriquecem a memória de uma rede social através da divulgação do flashmob. Os flashmobs assumem o papel de criar novos tipos de interação e ocupação dos espaços urbanos, através do uso de mídias tecnológicas que permitem novas formas de comunicação e informação. Em comum, todos esses exemplos incluem um grupo de pessoas reunidas em um local público, que são previamente informadas sobre a ação nas redes sociais na Internet. Segundo Pampanelli (2004) esses eventos servem como um interessante exemplo para a avaliação dos impactos sócio-culturais e das utilizações sociais das tecnologias móveis. O caráter portátil do novo meio e seu uso social fez com que o homem inventasse diferentes formas de interação de se “estar junto” na contemporaneidade. O surgimento de fenômenos como o Flashmob vem demonstrar o impacto que uma determinada tecnologia pode causar na sociedade. Certamente, o telefone celular foi decisivo para a constituição desta nova conjuntura em que explodem ativismos políticos e Flashmobs. Estes episódios que eclodem no mundo físico demonstram que a materialidade do telefone móvel altera nosso comportamento social, cria novos sentidos e novas formas de nos organizarmos na sociedade. (PAMPANELLI, 2004, p. 8-9)

A necessidade de uma diferente compreensão do espaço (que a “tradicional”) também se torna evidente quando nos vinculamos às reflexões de Massey (1984) sobre os lugares em termos de redes, movimentos e interação. Castells (1998) descreve o espaço neste contexto como sendo, cada vez mais, expresso através de “fluxos”, ao invés de “lugar” físico. Um fenômeno importante pode ser 403

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identificado aqui, como Pachenkov e Voronkova enunciam em sua observação sobre a estetização e a mobilidade no contexto do espaço público urbano: Provavelmente, os encontros de numerosos cidadãos para discussão de interesses públicos nas praças da cidade especialmente projetadas para este fim estão ultrapassados? Provavelmente flashmob ou performances momentâneas poderiam ser consideradas formas espaciais mais convenientes dos encontros públicos nas cidades contemporâneas? Apenas porque podem ocorrer em qualquer local da cidade, porque são mais móveis e flexíveis - isso não os faz menos públicos (PACHENKOV; VORONKOVA, 2010, p.2).

Práticas contemporâneas de agregação social estão usando as tecnologias móveis para ações que reúnem muitas pessoas, as vezes multidões, que realizam um ato em conjunto e rapidamente se dispersam. Essas práticas podem ter finalidades artísticas, como uma performance, ou ter um objetivo mais engajado, de cunho político-ativista. Esse conjunto de práticas trata-se simplesmente do uso de tecnologias móveis para formar multidões ou massas com objetivo de ação no espaço público das cidades (CARMO, 2007).

Arte e Tecnologia: o fenômeno flashmob dance Diante das transformações que a cultura móvel vem trazendo para a sociedade, cabe ressaltar que essas mudanças influenciam nas manifestações culturais, tanto de entretenimento quanto artísticas. Essa influência transforma a maneira de criar, de receber e de interagir com produtos artísticos contemporâneos, especialmente desenvolvidos sob um ponto de vista estético baseado na personificação e no movimento dos sujeitos. Ao mesmo tempo em que é instaurada a cultura da mobilidade, o homem concebe uma nova maneira de fazer e entender sua cultura através dos jogos e da arte (CARMO, 2007). A profusão de mídias e a sua onipresença na vida social e individual dos sujeitos não deixam escapar de suas influências nenhum campo de produção de linguagem, menos ainda a arte, pois, segundo Barros e Santaella (2002), os artistas são sempre os primeiros a se apropriarem dos meios técnicos, colocando-os a serviço de sua criatividade e explorando novas formas de sensibilidade e percepção. O fenômeno aplicado á arte da dança - flashmob dance - é a aglomeração de pessoas que se encontram em local público para realizar uma coreografia previamente combinada em redes sociais. Para as artes cênicas, eventos semelhantes não são novidades. Sempre foi comum encontrarmos uma performance cênica qualquer em meio à um passeio no parque, ruas, centros urbanos, etc. A mescla entre as artes e a internet, através de redes sociais, é que certamente é a novidade. E a dança se apropriou do contexto dos flashmobs para as ações denominadas flashmob dance.

Memória Virtual das Intervenções Urbanas de Arte As ações intervencionistas são voláteis, rápidas, não duradouras e efêmeras. Isto torna difícil coletar informações e material das ruas onde acontecem estas intervenções. Por outro lado, na internet, 404

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neste espaço virtual, os grupos intervencionistas encontram um local propício para guardar as imagens e idéias ocorridas em suas ações no espaço urbano, é uma fuga da efemeridade. Ali, eles alcançam um público maior e ganham, muitas vezes, até adeptos em outras cidades (MAZETTI, 2006). Em relação à memória digital virtual, podemos trabalhar um aspecto bastante contemporâneo da discussão sobre memória. As tecnologias digitais têm transformado a maneira de lembrar. Essa nova maneira não substitui a forma convencional e natural de relembrar o passado, apenas acrescenta a essa “memória natural” as ferramentas tecnológicas, que se pode considerar como “memória artificial” (BERWANGER, 2010), as quais contribuem para a ampliação da capacidade de lembrança. Quanto à utilização dessas ferramentas tecnológicas, pode acontecer tanto no âmbito individual como no âmbito coletivo. Essas memórias auxiliares (DODEBEI; GOUVEIA, 2008) funcionariam como compensação a essa dinâmica da memória individual que não pode abrir mão do esquecimento. De uma memória apenas individual, passamos a nos valer de uma memória coletiva enriquecida com pontos de vista diversos sobre um mesmo fato social (LISBOA, 2011). Ribeiro (2004) menciona que “a presença das novas tecnologias da informação não implica num mundo inteiramente novo”. O que se tem agora é a possibilidade de aproximar a sociedade em tempo real, e de conseguir visitar o passado através das informações condensadas no universo cibernético, com o mais fácil acesso já visto. Com o advento da Internet e da Web, as memórias documentárias passaram a estar disponíveis em ambiente virtual, compartilhando e socializando o conhecimento na rede mundial de computadores, denominado pelo filósofo francês Pierre Lévy como ciberespaço. Lévy (2000) considera que o ciberespaço é o “principal canal de comunicação e suporte da memória da humanidade” quando todas as informações estivessem digitalizadas e acessíveis através das redes de comunicação. A Internet está transformando a vida social dos indivíduos, pois cada pessoa pode se tornar produtor e emissor de informações novas, podendo reorganizá-las de acordo com seu interesse e vontade. E a “informação certamente se encontra fisicamente situada em algum lugar, em determinado suporte, mas ela também está virtualmente presente em cada ponto da rede onde seja pedida”. (LÉVY, 2000, p. 48). Essas informações se renovam virtualmente, incluindo as pessoas que integram esse mundo virtual. Assim, o ciberespaço representa uma nova forma de comunicação e de preservação da memória, multiplicador de informações na atual sociedade tecnológica (BLANK, 2011). O mundo virtual, com o uso de novos dispositivos de informática, permite criar novas formas de disseminação e preservação do conhecimento já consolidado. Dessa forma, não é um mundo distinto e desconectado da realidade atual. Para Pimenta (2001), quando uma informação é difundida virtualmente, ela se “desterritorializa”, pois o “hipertexto exige um suporte físico, mas não possui de fato um lugar.” Essa informação encontra-se disponível para acesso coletivo ou individual da sociedade no mundo virtual, em qualquer parte do território mundial. O mesmo entendimento é apresentado pelos autores Monteiro, Carelli e Pickler (2008, p. 120), para os quais o ciberespaço “é uma nova forma e/ou função de representação, organização do conhecimento e memória.” Como “espaço de produção [...] ele permite que todos possam ser autores/produtores, em razão da plasticidade virtual, que desterritorializa os signos, o tempo todo e ao mesmo tempo.” 405

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Assim, as práticas de intervenção urbana de arte que são, por natureza, efêmeras, encontram na internet um local propício para guardar as imagens e idéias ocorridas em suas ações no espaço urbano, fugindo da efemeridade, divulgando a um público mais amplo e construindo sua memória virtual. A diversidade das manifestações de grupos de intervenção urbana no espaço virtual demonstra a amplitude de interesses e objetivos destes grupos engajados nestas ações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Já consideradas ferramenta de intervenção urbana, as flashmobs criam tipos inéditos de interação e ocupação dos espaços urbanos, através do auxílio de mídias digitais e tecnológicas que permitem novas formas de comunicação e informação. O flashmob é um movimento que se cria no ciberespaço, se materializa em um contato pessoal e ao se dissipar acaba retornando ao ciberespaço principalmente a partir de registros em blogs, twitters e vídeos. Em outras palavras, um flashmob surge pela organização virtual na forma de interação em rede social na Internet e se perpetua também no virtual, mas só tem sua razão de ser pela sua ação/intervenção no plano físico/presencial. Constituído habitualmente deste formato de organização virtual, performance presencial e registro virtual, as ações de flashmob tem caminhado rapidamente para se tornarem uma valiosa ferramenta de memória virtual da arte.

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Ana Ligia Trindade* – Graduação em Biblioteconomia e Documentação pela UFRGS, Especialização em Dança pela PUCRS e Mestre em Memória Social e Bens Culturais pelo UniLaSalle. Bibliotecária responsável pelo Setor de Recursos Online de Informação da Biblioteca Martinho Lutero da ULBRA e Diretora Artística, coreógrafa, bailarina e professora de ballet do Espaço Cultural ArtMobile e ArtMobile Dance Cia. Patricia Kayser Vargas Mangan** - Graduação em Ciências da Computação pela UFRGS, Mestra em Ciências da Computação pela UFRGS, Doutora em Engenharia de Sistemas e Computação pela COPPE/Sistema de Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Centro Universitário La Salle na graduação, especialização e pós-graduação stricto sensu. Professora orientadora do Curso de Mestrado Profissional em Memória Social e Bens Culturais, pertencendo a linha de Linguagens e Cultura do UniLaSalle. Nádia Maria Weber Santos ***- Graduação em Medicina pela PUCRS e em Enfermagem pela UFRGS, Mestra em História pela UFRGS e Doutora em História pela UFRGS (2005). Possui Título de Especialista em Psiquiatria pela ABP. Atualmente professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do UniLaSalle.

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“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE

Vanessi Reis*

Os estúdios fotográficos de Porto Alegre A produção fotográfica em Porto Alegre perpassa séculos. Conforme Possamai1, a fotografia mantinha lugar assegurado na Cidade desde a segunda metade do século XIX. A maioria dos retratistas estrangeiros que viajavam pelo interior do Rio Grande do Sul tirando fotografias não deixava de passar antes por Porto Alegre2. Um dos primeiros a se estabelecer na cidade, como fotógrafo profissional, teria sido o italiano Luiz Terragno3. No final do século XIX, poderiam ser identificados aproximadamente vinte fotógrafos, entre os quais se destacavam cinco estúdios fotográficos, cujos proprietários eram o espanhol João Antonio Iglesias, os italianos Irmãos Ferrari, o italiano Virgílio Calegari, o alemão Otto Schönwald e Innocencio Barbeitos4.

Otto Schönwald nasceu na Prússia, e veio ao Brasil em 1888 instalando-se como fotógrafo na cidade de São Leopoldo. Posteriormente veio a Porto Alegre onde se estabeleceu com atelier “Photographia Otto” na Rua Ramiro Barcelos esquina com Rua Vasco da Gama. Otto faleceu em 15.10.1941 nesta capital. Dele é a imagem panorâmica da sequência, composta de nove fotografias, no ano de 1900. As imagens que compõe o panorama foram doadas à UFRGS por sua família, e hoje formam parte da coleção “Porto Alegre à vol d´Oiseau“5, sobre o Bom Fim, do Acervo do Museu da Universidade. A datação das fotos é estimada, pela já existência do prédio da Escola de Engenharia neste período. Conforme equipe do Museu, a coleção foi analisada no Projeto “Memorial: Porto Alegre e a

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Universidade” (1990), coordenado pela professora Sandra Pesavento, que dizia: “acredita-se que, para obter as fotos, ele deva ter feito um giro aproximado de quase 360º sobre si mesmo (...)”. Esta tentativa de foto tipo panorâmica, que faz referência aos Dioramas, por falta de recursos técnicos à época de sua execução, foi executada numa época em que não havia máquinas teleobjetivas e, portanto, a construção de uma foto abrangente só era possível com uma sequência de fotos com sobreposição dos limites dos recortes laterais. Era obtida com uma sequência sobreposta de fotos que, acopladas uma à outra, constituiriam o que se denominou “Porto Alegre à vol d´Oiseau”. Estas imagens teriam sido captadas do “alto” de uma colina na Rua da Independência (Av. Independência), antigo caminho que levava até o bairro Moinhos de Vento. Nesta sequência, é possível ver da Avenida Independência até a beira do Guaíba e do Centro até os Campos do Bom Fim (Bairro Bom Fim e Redenção). Conforme narração da equipe do Museu, a professora e pesquisadora Sandra Pesavento supunha, no projeto, que as fotos teriam sido feitas com a função de registrar um momento de grandes modificações na cidade, o final do século XIX, quando os processos de modernização urbana, higienização, estetização, moralização e branqueamento da cidade estavam em curso. Baseada nas reformas urbanas galopantes pelos territórios coloniais, em busca de um reconhecimento, modernidade e progresso, desejáveis neste tempo, a professora concluiu que estas imagens viriam a suprir o desejo de visibilidade e imortalidade deste momento. Entretanto, conforme informação obtida com a família do fotógrafo, ele simplesmente intentava registrar a imagem (vista) tida do atelier do fotógrafo, pela janela de seu estúdio.

Da questão controversa, sustenta-se que o desejo deste registro intente, no mínimo, resguardar, em seu instante infinito, o registro de uma realidade que em breve seria alterada pelas novas, grandes e muitas reformas previstas com o avanço da urbanização. E o registro da área baixia e excluída do bairro Bom Fim, da Várzea e do bairro Cidade Baixa (registrado ao fundo), teria sido feita pelo alto, no ponto de maior cota em que se podia registrar seu conjunto. Também com a intenção de registro de uma etapa temporal de desenvolvimento da cidade, aparece o trabalho feito pelos estúdios dos Irmãos Ferrari e de Virgílio Calegari. Eram italianos e radicaram-se em Porto Alegre, no final do século XIX, onde passaram a dedicar-se ao ofício da fotografia. Esses estúdios fotográficos acabaram competindo

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entre si, não apenas por terem sua localização no centro da cidade, mas também pela qualidade esmerada de seus trabalhos6.

O estúdio dos Ferrari foi fundado em 1871, levando muitos anos para firmar-se entre os porto-alegrenses. Raphael Ferrari, proprietário do estúdio, ao se aposentar, foi sucedido no ofício pelos seus filhos Carlos e Jacintho, criando o estúdio Ferrari & Irmão. Tornaram-se bastante conhecidos quando, em 1889, lançaram uma coleção de vistas de Porto Alegre e arredores sobre cartão, em tamanho aproximado de 24 cm x 30 cm. A coleção de vistas dos Irmãos Ferrari ganhou grande aceitação entre o público, tornando o talento de seus autores de tal forma reconhecido que, em 1892, o Governo Federal lhes encomendou fotografias urbanas para a Exposição Colombiana. Os Ferrari também trabalhavam com outros temas. No entanto, muito da ascensão dos irmãos deveu-se à realização e à ampla comercialização de suas vistas urbanas, que não apenas difundiram sua arte, mas também a Porto Alegre fin-de-siècle.

As imagens apresentadas são formadas por sequências de três fotos, obtidas com bastante distância da área central, registradas a partir de uma das ilhas que formam o conjunto que defronta POA pelo Delta do Jacuí. Mediante ampliação, é possível obter informações tanto da área central e urbana da cidade, quando da região sul – área rural e menos povoada, que caracterizava a Cidade Baixa. Além desta, os irmãos Ferrari também produziram um conjunto de vistas da região sobre solo continental, com fotografias mais detalhadas, também obtidas para este mesmo álbum. Virgílio Calegari aprendera seu métier no final do século XIX com outro fotógrafo radicado na cidade, o espanhol João Antonio Iglesias. Quando os Ferrari eram já bastante conhecidos por suas vistas urbanas, Calegari montava seu primeiro atelier, em 1893, localizado na Rua do Arroio, de onde se transferiu, após três anos, para a Rua dos Andradas. Calegari destacou-se como o fotógrafo das autoridades locais, realizando o retrato de figuras políticas proeminentes da sociedade porto-alegrense. Apesar de ter sido reconhecido como exímio retratista, Virgílio Calegari também realizou muitas vistas de Porto Alegre, vindo, inclusive, a reunir algumas delas em um álbum fotográfico, publicado no início do século XX.

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“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE

No conjunto Panorâmico de fotos de Calegari, a zona sul não é totalmente apresentada na imagem, sofrendo um recorte à parte da ponta mais próxima à cadeira. A margem sul, é omitida, e a cidade apresenta-se de maneira mais próxima, com identificação da unidade nas edificações que recobriam o território citadino. No caso álbuns produzidos pelos dois últimos ateliers descritos, suas execuções intentavam transpor para a representação visual os aspectos urbanos que também obedeciam a um ideal de progresso almejado pelas elites e pelos republicanos no poder. Divulgação ou propaganda política, dos feitos de cada período, para demonstração dos avanços obtidos durante as administrações, eram os primeiros registros da Cidade Baixa existentes em fotografia.

A “Baixa Cidade” Porto Alegre consolidou-se uma cidade com características físicas singulares. Iniciou seu povoamento na parte peninsular de uma extensa costa que margeia o Rio Guaíba, projetando-se na península no sentido leste - oeste, sobre o grande espigão que conforma o sítio. Este fator físico foi determinante na ocupação como uma grande barreira a ser transposta para o desenvolvimento urbano local. Ele isolava os lados da península (norte e sul), dificultando o deslocamento e a comunicação entre estas duas faces de suas encostas, porém, protegia o litoral norte dos ventos fortes que vinham do sul. Assim, acabou por configurar um porto natural naquela face. As embarcações que vinham do sul contornavam a costa para atracar seus navios em margem de maior profundidade e mais protegida dos ventos. O viajante Saint Hilaire, em sua passagem por Porto Alegre em 1820/1821, já deixara seus registros sobre a diferenciação da colina como aspecto claramente “antagônico” na cidade. Divisa-se então a cidade e segue-se pelo alto de uma colina, que tem a forma de um istmo, na direção de um lago (Lagoa dos Patos), sobre o qual está situada a cidade. À esquerda da colina, aquém da cidade, existe um vale largo e pouco profundo, coberto de pastos baixos idênticos aos demais dos arredores desta localidade. À direita da colina, entre ela e o lago, estendem-se terrenos baixos, semeados de casas de campo e de plantações de mandioca e cana-de-açúcar. 7

Pela proteção do frio e forte vento vindo do sul, os açorianos, que iniciaram o povoamento da cidade, instalaram-se nesta área, próximos à água, para facilitar-lhes o acesso e o abastecimento às moradias pela proximidade ao porto - área de embarque e desembarque de mercadorias, explorando a oferta de serviços e a alta socialização local. 414

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Ao sul do espigão, a área, por questões geográficas, tinha terrenos de baixa cota e alagadiços: tanto pela proximidade com o riacho quanto pela proximidade do rio, que, por várias vezes, deixou a área submersa. Esta zona, por suas características especiais, acabou por se desenvolver tardiamente, conforme pode ser lido em comentário de cronista: Até meados do século passado, era conhecida como Cidade Baixa, nesta capital, aquela região ao sul da colina da Matriz, e abrangia toda essa zona entre as proximidades do Gasômetro, a Rua do Arvoredo, as propriedades da Baronesa do Gravataí – o seu famoso arraial – e ia até a Olaria, na margem do Riachinho, limitando-se, em seu extremo, lá na lomba da Independência, invocada também como Praça do Portão. Era uma vasta região, onde havia a outra parte da cidade, lá no alto polvilhada de residências e já recortada de ruas e becos, que o oficialismo consagrara como zona urbana da cidade. E não faz muito tempo, pois quem tiver a oportunidade de contemplar uma fotografia ainda de 1870, dessa região da nossa pacata cidadezinha, verá não só o que acima afirmo, mas uma profunda identidade com a designação de Cidade Baixa, para esse recanto de Porto Alegre, timidamente povoado nestes últimos cem anos – era a zona do Riacho!8

As Posturas Policiais9 aprovadas pelo Conselho Geral da Província, em 10 de fevereiro de 1831, estabelecia, em seu primeiro capítulo, a determinação dos “novos limites urbanos” que incluíam a região do Centro da Cidade (zona urbana) e a área referente à “Baixa Cidade”. O “Centro Urbano”, na época, correspondia à área limitada pelas Ruas Bento Martins, Duque de Caxias e Marechal Floriano, e também era definida nesta lei. A área fora deste limite era considerada rural e, apesar de ser considerada incluída no limite oficial da Cidade, no seu imaginário era tratada como área “fora da Cidade”, ou pior: o Centro Urbano era considerado “Cidade” e o cinturão externo a ele, que o circundava, não fazia parte dela. Esta parte excluída era a Cidade “baixa” ou “Baixa Cidade”: Limita-se esta cidade de Porto Alegre, pela rua travessa, que vai do Caminho Novo (atual Voluntários da Pátria) aos primeiros moinhos de vento que são hoje pertencentes a Antônio Martins Barbosa até o meio da largura da estrada imediata (atual Avenida Independência) e desta, em linha reta, até a embocadura da Rua da Olaria (atual Lima e Silva) pela frente da chácara do Sargento-Mor João Luiz Teixeira, e da mesma embocadura em linha reta até o riacho, segundo por ele até a sua embocadura. 10

A partir da metade do século XIX, a Cidade começa a sofrer novas transformações. Em 1893 estes limites são atualizados, para controlar o desenvolvimento social e este foi um dos elementos que legitimou as intenções e sentimentos da época: toda a pobreza e sujeira da Cidade deveriam ser despachadas à face sul, sendo que imundícies deveriam ser atiradas às margens do rio na desembocadura do riacho. Para esta mesma área foram transferidas as lavadeiras da escadaria da alfândega (que ali “quaravam” as roupas) visto que não seria de “bom tom” expor as intimidades à entrada da cidade (no porto). Além disso, o matadouro também deveria manter-se em área afastada do núcleo urbano a liberar seus detritos. Também há considerações em relações aos “cubos”, que deveriam ser atirados à água, longe da área do porto e “cartão de visitas” da cidade.

A Cidade em “alta” No período entre 1870 e 1890, a política passa por uma efervescência com o enfrentamento 415

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entre republicanos e os partidos do Império11. Júlio de Castilhos assumiria com uma nova visão de cidade, vida e sociedade, imprimindo nova paisagem urbana e visualidade da capital. A nova Cidade necessitaria de divulgação dos seus feitos, de seu crescimento e também de um registro de seu estado atual. Nesta época, é contratado Virgílio Calegari para confeccionar um conjunto de vistas urbanas da Cidade, que mostrava seu desenvolvimento até o início do século XX. A Cidade começa a crescer e se desenvolver. Conforme Célia Ferraz, em estudos de evolução urbana, desde a fundação da Cidade até 1914, ela teria crescido o equivalente a dez vezes o seu povoamento inicial, área equivalente a atualmente considerada como seu centro Histórico12. De 1890 a 1924, a urbe se desenvolve. Surgem as indústrias, e as chaminés invadem a paisagem urbana. Ao longo da estrada de ferro, o bairro Navegantes se consolida como bairro fabril, exigindo providências de trato urbanístico específico, que exigiriam estratégias de zoneamento urbano sugeridos no plano de 1914, mas que só seriam, efetivamente, implantadas em sua revisão, no Plano de 1954, com a criação de uma zona oficialmente industrial – muito baseada nos Modelos do Pré-Urbanismo Progressista, que defendia que cada função da cidade deveria ocupar uma área especializada da mesma, de Robert Owen e Victor Considérant.13 A cidade faz uso de seu espaço urbano. O que era, até então considerado como seu limite urbano, estava restrito à área delimitada pelas determinações das Posturas Policiais, como já descrito anteriormente. Ao ar livre, as famílias se divertiam, durante o dia. Surgiam as primeiras cafeterias e cafés, com os quais a sociedade dividiria seus momentos de lazer e confraternização em família. Já na parte mais “sombria” das práticas sociais e urbanas, destacava-se a frequência, masculina, em boates, bailes, tavernas e lupanares. Na Cidade Baixa havia grande quantidade de lugares, e aos quais estudos apontam preocupação social e ações policiais de controle à violência. Segue fato narrado sobre o local. Ontem, às 8hs da noite, houve grande desordem na Rua da Margem, em uns casebres, entre as ruas da Figueira e Avahy. Foi o caso que Carlota, Maria Chica, Maria de Norberto e Lucia, todas de má vida, moradoras do Beco do Céu foram em companhia de dois praças à casa da Rua do Vintém, nº 6, agredir à Felipa Maria Luiza, que recebeu um golpe de navalha.14

A Cidade Baixa fotografada pelo “alto” nos Álbuns de Vistas da Cidade. A Cidade tinha uma expectativa de Modernidade e de imagem sobre si mesma de muita prosperidade. O sonho da República e os reflexos de seus novos e nobres ideais deveriam estar refletidos numa Cidade Saneada, Moderna e Bela. Não à toa, após assumir a governança da Cidade, Júlio de Castilhos inicia uma nova administração com grandes mudanças. Grandes obras que trazem a imponência do positivismo somada aos ares de desenvolvimento. O desejo de fazer-se atualizada pode ser refletido nas imagens capturadas pelos Irmãos Ferrari, 416

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no álbum de fotos que contemplava várias áreas da cidade, demonstrando suas diferentes belezas e peculiaridades. A cidade “alta”, da elite e bem frequentada, geralmente era fotografada por baixo, de maneira a ampliar, verticalizar, monumentalizar e valorizar edificações, espaços urbanos e detalhes de intervenção urbana, que agregavam qualificação aos espaços públicos, aptos a receber a “alta” sociedade, que ansiava pelos espaços de vivência, convivência e exposição, onde ver e ser visto fazia parte das práticas sociais, visando futuros casamentos ou mesmo a exposição em revistas de variedades. Este tipo de configuração, recorte e fotográfico eram amplamente utilizados nos álbuns fotográficos, comemorativos da Cidade e que promoviam as ações urbanas e arquitetônicas ocorridas nela, como trata Charles Monteiro em análise sobre a história da Cidade através das imagens.15 Já à cidade “baixa”, restavam os menos favorecidos, econômica e socialmente. Esta começava a aparecer em registros do que passava a ser entendido e reconhecido como Cidade. Até então, sequer pertencia a seu limite urbano, e agora aparecia em álbuns fotográficos comemorativos sobre a evolução de Porto Alegre. Em relação às fotos já apresentadas, se verifica que na foto de Otto Schönwald, a área total que configurava o espaço então conhecido como “Baixa Cidade”, e que abrangia regiões hoje pertencentes a uma parte do bairro Bom Fim, ao Parque Farroupilha e ao atual bairro Cidade Baixa, estava totalmente contemplada, valorizando esta área, como já descrito, por resguardar, no instantâneo da fotografa, a sua imagem anterior à esperada e futura urbanização prestes a avançar sobre aquele território. E também, para valorizar aquele espaço que, até então havia sido desprezado, e que naquele momento demonstrava grande potencial para o avanço da urbanização e do social sobre áreas ociosas da cidade. A área pertencente ao Bairro Cidade Baixa é representada de maneira desprivilegiada, ao ser acumulado, pelo recorte fotográfico, a uma concentração de casario ao fundo do enquadramento. Já nas fotos dos Irmãos Ferrari e de Virgílio Calegari, a área da “Baixa Cidade” era reapresentada somente em parte, e por um enquadramento que não a privilegiava, pois enfocava as partes centrais da urbe com seu casario, apresentando à direita da fotografia, em perspectiva acumulada, toda a elipse que configurava a orla sul num pequeno trecho de praia após a Ponta da Cadeira e Usina Termoelétrica à Volta do Gasômetro. Entretanto, da série produzida desta região pelos Irmãos Ferrari (a seguir) é possível verificar um levantamento e registro mais detalhado e privilegiado da área. As imagens são registradas do alto, porém de uma distância em que se permite ver o “grão” da malha urbana: o lote e seu casario, assim como identificar a morfologia que configurava a área, e reconhecer a tipologia arquitetônica, em alvenaria de tijolos com cobertura de telhas de barro (sendo os tijolos e telhas obtidos, em grande parte, das olarias locais – pelo baixo custo e pela facilidade de deslocamento, além destas serem contemporâneas à substituição dos antigos casarios de madeira pelas primeiras edificações em alvenaria, conforme Franco16 ). Também permitem ver o já grande adensamento edilício, e, portanto, populacional, mostrando o avanço da Cidade pelos campos antes reconhecidos como área rural da cidade, que se estendia em direção ao interior do continente, orientado pelos caminhos que uniam os centros aos arraiais e centros 417

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urbanos mais próximos.

As imagens registram e apresentam a área “baixa” da Cidade. Baixa em relação à cota geográfica, enfatizada pelo recorte fotográfico das imagens produzidas. O olhar acima do nível das edificações, das ruas, das quadras, dos quarteirões e do bairro, demonstra uma visão abrangente e indiferenciada, que unia toda esta região baixa e que enfatizava sua característica “baixa” enquanto referente a vários adjetivos, que geralmente denegriam a imagem local, embasados na fama e imagem mental construída socialmente sobre o local, de uma maneira muito sutil, perceptível, por comparação em 418

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relação às demais fotografias do álbum, referentes à área da “alta” Cidade, na qual esta é representada com fotografias ao nível do observador, ou abaixo deste, para enfatizar, valorizar e ampliar (monumentalizar) os objetos retratados.

Considerações Finais A própria fotografia, resultado de um processo físico-químico é fruto da industrialização, que naquele momento era necessária e desejável. E podia reproduzir, para comunicação, divulgação, “comprovação” das modernidades enfrentadas pela cidade em seu novo momento. Sua demanda, enquanto retrato, registro de estado e de identificação, é recurso imprescindível para a perpetuação dos fatos alcançados. Ela retém a memória, gravada em seu instante com raios de luz sobre papel e produtos químicos. Por poder ser interpretada em si, a foto exige que sejam feitas indagações. Os motivos que me motivaram a escrever este artigo foram, ao selecionar uma série de fotos dos fotógrafos em questão sobre a Porto Alegre do final do século XIX, era a de verificar a recorrência no recorte e determinação dos fotográficos, de enquadramentos da Cidade Baixa sob um ângulo bastante superior ao seu nível geográfico. Nesse sentido, ao observar as imagens pertencentes ao álbum, a recorrência de elementos das fotografias referentes ao seu recorte fotográfico, chama a atenção por fortalecer uma imagem que demarca claramente questões (mensagens) que são enviadas ao seu fruidor, e que são referentes a valores e questões sociais e econômicas, não constantes diretamente no tema nem nos objetos das fotos. Conforme as categorias de Ulpiano de Menezes17, o “visual” da foto determina o lugar da fotografia. A imagem icônica da Cidade Baixa enquanto um lugar desocupado, de casas pequenas, de acentuada enseada da orla sobre o continente, elíptica, com uma praia ao sul da costa, mantém a imagem do “visível” de uma área da cidade desprestigiada, por suas condições físicas: a baixa cota, com as inundações frequentes, tanto do rio quanto do Riachinho que a cortava, a quantidade de mosquitos narrada em periódicos, a umidade deste terreno argiloso (onde se instalaram as olarias da cidade), mais os frios e fortes ventos vindos do sul castigavam a encosta e a planície ao sul do espigão de granito que consolidaria a Rua Duque de Caxias. A visão dos fotógrafos, em alinhamento perfeito à desejada visão da encomenda por órgãos públicos ou por políticos – homens públicos e de projeção - para a divulgação desta imagem da cidade atendia a necessidade de fortalecer o centro urbano, consolidado, como verdadeiro espaço social, “autorizado” por um discurso subliminar à imagem. Procurando não ignorar a possibilidade de outra leitura, aponto para a imagem da Paisagem enquanto “Patrimônio”, um espaço verde, belo, que, enquadrado em moldura elegante, daria o status de abastada à família que o apresentasse como “posse”. A Cidade Baixa era apresentada como um grande campo a ser descoberto pela Modernidade e 419

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o desbravamento de suas terras pouco propícias para a instalação de sociedade mais refinada, demonstraria o poder do Estado enquanto potência de avanço sobre terras inóspitas e que poderia proporcionar, a uma nova classe econômica que se formava – a dos trabalhadores industriais – a competência de proporcionar-lhe moradia a custos possíveis de serem alcançados. E as imagens encomendadas ou não, para este fim, acabaram por reforçar esta ideia, a partir dos conceitos e dos fotográficos utilizados pelos fotógrafos em suas apreensões.

REFERÊNCIAS ALVES, H. R. A fotografia em Porto Alegre: o século XIX. In: ACHUTTI, Eduardo Robinson (Org.). Ensaios (sobre o) fotográfico. Porto Alegre: Unidade, 1998. p. 9-21.  CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo: ed. Perspectiva, 2003. DAMASCENO, A.  Artes plásticas no Rio Grande do Sul (1755-1900): contribuição para o estudo do processo cultural sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1971. FRANCO, Sérgio da Costa. Gente e espaços de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 2000. 155 p. KOSSOY, B. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (18331910). São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2002 a. MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Rumo a uma história visual. In: Martins, J. S.; ECKERT, C., NOVAES, S.C. (orgs.). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 33-56. PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Memória Porto Alegre: espaços e vivências.  – 2º Ed. – Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1991. 135 p. PESAVENTO, Sandra Jatahy (coord.). O espetáculo da rua. 2º ed. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1996. 95 p. PORTO ALEGRE. Câmara Municipal. Posturas Policiais. Porto Alegre, Tip. Do Comércio, 1847. p.1. apud MACEDO, Francisco Riopardense de. Porto Alegre: história e vida da cidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1973. p.73. SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas de minha cidade. 2. ed. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1979. p.207. SANTOS, A. R. O gabinete do Dr. Calegari: considerações sobre um bem-sucedido fabricante de imagens. In: ACHUTTI, Eduardo Robinson (Org.). Ensaios (sobre o) fotográfico. Porto Alegre: Unidade, 1998. p. 23-35.  SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. Universidade de São Paulo, 1974.

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Internet: POSSAMAI, Zita Rosane. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922 e 1935). n. mus. paul.  vol.14  no.1  São Paulo  Jan./June  2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S010147142006000100009  MONTEIRO, Charles. Construindo a história da cidade através de imagens. In: PESAVENTO, Sandra j.; ROSSINI, Miriam.; SANTOS, Nádia M. W. Narrativas, Imagens e Práticas Sociais. Percursos em História Cultural: Pesquisas Recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 9-49. Link: http://ebooks.pucrs. br/edipucrs/fotografia.pdf

(Endnotes) 1 POSSAMAI, Zita Rosane. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922 e 1935). n. mus. paul. vol.14 no.1 São Paulo Jan./June 2006. 2 ALVES, 1998 apud POSSAMAI, Zita Rosane. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922 e 1935). n. mus. paul. vol.14 no.1 São Paulo Jan./June 2006. 3

DAMASCENO, 1974 ; KOSSOY, 2002a apud POSSAMAI, 2006.

4

SANTOS, 1998 apud POSSAMAI, 2006.

5

Tradução: “Porto Alegre em linha reta”.

6

DAMASCENO, 1971 apud POSSAMAI, 2006.

7 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. Universidade de São Paulo, 1974. 8 SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas de minha cidade. 2. ed. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1979. p.207. 9 As “Posturas Policiais” eram um código que orientava o saneamento, controlava a abertura e fechamento de comércio e estipulava os locais e a intensidade para o castigo dos escravos, dentre outras determinações. 10 PORTO ALEGRE. Câmara Municipal. Posturas Policiais. Porto Alegre, Tip. Do Comércio, 1847. p.1. apud MACEDO, Francisco Riopardense de. Porto Alegre: história e vida da cidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1973. p.73. 11 PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. – 2º Ed. – Porto alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1991. p.55 12 PESAVENTO, Sandra Jatahy (coord). O espetáculo da rua. 2º ed. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1996. p. 60 13

CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo: ed. Perspectiva, 2003. P. 64 e 80.

14 Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 22/5/1895, nº 47, p. 2 apud PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. – 2º Ed. – Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1991, p.66. 421

“BAIXA CIDADE” PELO “ALTO”, ENTRE 1870 E 1900, EM PORTO ALEGRE

15 Monteiro, Charles. Construindo a história da cidade através de imagens. In: PESAVENTO, Sandra j.; ROSSINI, Miriam.; SANTOS, Nádia M. W. Narrativas, Imagens e Práticas Sociais. Percursos em História Cultural: Pesquisas Recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 9-49. 16 FRANCO, Sérgio da Costa. Gente e espaços de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000. 155 p. 17 MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Rumo a uma história visual. In: Martins, J. S.; ECKERT, C., NOVAES, S.C. (orgs.). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p.35.

* Mestranda Programa de Pós-Graduação em História – PUCRS

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MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

Cláudio de Sá Machado Júnior *

Abordar o tema da modernidade é uma tarefa árdua e inconclusiva. A própria definição do termo, que se diferencia de modernismo e modernização, abarca um saber filosófico mais que centenário, no qual muitos intelectuais debruçaram-se com competência disseminando ideias e fazendo escolas. Neste sentido, um estudo sobre o tema da modernidade sugere, como uma ação coerente, um recorte de pesquisa específico. A opção para o presente trabalho foi a de buscar aspectos referentes à modernidade carioca através de elementos constitutivos do conteúdo da revista semanal Careta, especificamente aqueles publicados nos três primeiros meses do ano de 1920 (edições 602 a 614). Antecede, portanto, em praticamente dois anos, o marco construído pelos intelectuais modernistas, buscando indícios de que o espírito da modernidade brasileira foi concebido em um período anterior. Não é a intenção abordar os primórdios da modernidade no Brasil, mas sim apontar para momentos específicos, a partir de período pré-determinado, em que ela foi alimentada, vinculada e absorvida pela sociedade através da imprensa periódica. Compreende-se a revista Careta como um dos possíveis e variados meios para se chegar à formação de um dito pensamento moderno brasileiro, com raízes bem cariocas, e seu espírito cosmopolita. Os conteúdos da revista abrangem uma diversidade de textos, fotografias, propagandas e caricaturas, e refletem a influência de ideais modernos de comportamento e consumo de parte da sociedade naquele momento. Portanto, com fins de organizar o presente conteúdo escrito, serão abordadas questões referentes ao protagonismo da revista Careta como instrumento de disseminação destes costumes modernos, seus conteúdos de forma sumária e a constituição de uma cultura material representativa de elementos modernos simbólicos, além do crescimento de um caráter individualista dos sujeitos sociais.

Imprensa periódica protagonista Segundo Renato Ortiz (1989, p. 28), as estatísticas da década de 1920 registram um índice que alcança a marca de 75% a respeito da população brasileira considerada analfabeta. Neste período, apesar da existência desta significativa parcela de iletrados na sociedade, as publicações ilustradas se multiplicaram e ganharam, gradativamente, importante espaço para a constituição de uma cultura moderna essencialmente urbana. Nelas, as camadas privilegiadas encontraram espaços para orientação crítica e auto-representação de imagens e ideias que correspondessem aos seus anseios. Antes de tudo, as revistas também se constituíram como empresas mercantis, cujo principal meio de sobrevivência provinha dos lucros obtidos com a publicidade e com a venda de seu produto final impresso. As transformações tecnológicas ocorridas nos meios de comunicação, aponta Mônica Pimenta

MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

Velloso (1996, p. 23), abarcaram um processo maior que caracterizou o fenômeno amplo da modernidade brasileira. Os indivíduos que usufruíam destes bens, ou mesmo aqueles atingidos indiretamente, tiveram que se adaptar aos novos modos de vida urbana que se implementavam nas metrópoles, com rapidez vertiginosa. Logo, novos comportamentos e até mesmo novas linguagens surgiram em meio ao forte processo imigratório, ao corrente influxo de capital e à alocação territorial por parte de uma parcela social composta por um número significativo de ex-escravos e seus descendentes. As imagens análogas do Rio de Janeiro moderno contrastavam com a ocupação das regiões centrais da cidade por uma elite, com a permissão do termo, que se desejava europeizada, em contraponto a uma maioria pobre, que habitava afastada, em regiões periféricas. A comunicação propiciada pelas revistas ilustradas demonstrava uma realidade à parte, um fragmento do todo social. Sua potencialidade sobrepôs às demais situações existentes, erigindo-se como um dos instrumentos principais de circulação de imagens, textos e ideias representativas de uma simbologia moderna. Em geral, os processos de comunicação, segundo Adriano Duarte Rodrigues (1990, p. 26), são ritos que atravessam uma experiência da sociedade, seja ela individual ou coletiva. Estes processos estariam ainda relacionados à visibilidade e à teatralidade da vida pública, além de estarem imbricados num jogo de reconhecimento mútuo. O cotidiano dos indivíduos nos centros urbanos – e neste caso específico, no Rio de Janeiro – passou por transformações desde o momento em que encontrou os primeiros obstáculos proporcionados pela modernização da cidade: adaptaram-se gestos, condutas, mentalidades, modos de comer, modos de vestir e usos dos automóveis, como alguns exemplos. E as revistas, de certa forma, acompanham estas transformações, tanto transpondo para dentro de suas páginas imagens como informando sobre os últimos costumes àqueles que ainda não vivenciaram tal experiência. Como foi possível constatar em outro estudo (MACHADO JÚNIOR, 2006b), percebe-se que, no caso da Careta, muitas vezes os consumidores das revistas foram aqueles cujas imagens se constituíram em uma das temáticas visuais do periódico. A publicidade, o media e a moda são terrenos em que se aperfeiçoa a nova lógica significante para, daí, extravasar ao domínio político, econômico, religioso e escolar. O que destes campos sociais modernos se retira é uma pura forma discursiva cortada de qualquer referencialidade concreta. (RODRIGUES, 1990, p. 61)

Mas falamos de uma modernidade que parte da realidade para as revistas ilustradas ou das revistas ilustradas para a realidade? Distante de uma visão dicotômica e simplória, pode-se apontar para as duas proposições como possibilidades factíveis a partir da modernidade difundida pela imprensa carioca, especialmente no que toca as revistas ilustradas. Tanto os sujeitos puderam reproduzir os elementos veiculados às páginas da Careta, quanto os fotógrafos, caricaturistas e cronistas puderam apreender fragmentos representativos que identificaram modelos comportamentais seguidos por sua sociedade. No caso das imagens fotográficas, quando cruzadas com as demais realidades marginalizadas da época, percebe-se nitidamente o interesse pela escolha da circulação de representações de espaços e pessoas específicas, em detrimento de outras. Conforme o questionamento de Aracy Amaral (1994, p. 89), não seria este avesso da modernidade também um elemento constitutivo da mesma? De uma maneira geral, a realidade proposta por revistas da época, como a Careta, não tinha como interesse degradar a imagem de uma cidade civiliza424

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da, mas, mesmo assim, não impediu que se fossem assumidas posturas críticas com relação aos novos emblemas da modernidade. As crônicas de Lima Barreto, por exemplo, encontradas frequentemente nas edições de 1920, atestam tal afirmação. Ou no caso das caricaturas de natureza satírica e críticosocial, com destaque para a produção de J. Carlos, buscava-se através do humor a reflexão e o alívio das tensões sociais. Entre a fantasia da realidade e o real propriamente dito, a revista Careta afirmouse como um importante veículo de circulação não somente de imagens, mas também de ideias. Seu longo período de existência, tendo a primeira edição lançada em 1908 e a última em 1960, atesta de certa forma esta representatividade. Do período que interessa ao presente artigo, os três primeiros meses de 1920, é possível encontrar algumas referências sobre a questão de como poderia se pensar a modernidade em relação ao seu tempo. Myrian Sepúlveda dos Santos (2000, p. 87) destaca que a questão do tempo, inserido em um processo de dinamização urbana e de transformações no campo tecnológico, conforme ocorreu com o campo das comunicações, refere-se a uma das características do pensamento moderno. A perspectiva de um devir prestigioso, que sempre está por chegar, permeia o editorial da revista, denominado Looping the Loop. Em 3 de janeiro de 1920, sem referência a autoria, mas indicialmente atribuía ao seu diretor Jorge Schmidt, saudava-se a chegada do novo ano, afirmando-se que “nenhum país há no mundo que ofereça maiores perspectivas de um futuro radiante do que o nosso” (CARETA, 3/1/1920), admitindo também que “sem ilusão, no entanto, ninguém vence” (Ibid.). Seria preciso, portanto, acreditar nos sonhos, na utopia, para alcançar os objetivos maiores da sociedade, uma vez que a realidade apresentava-se, segundo a percepção destes, como propícia ao desenvolvimento da nação. Vale lembrar, segundo os argumentos defendidos por Daniel Pécaut (1990), que a década de 1920 caracterizou-se como um período de busca da afirmação dos intelectuais como atores sociais, sendo seus argumentos inter-relacionados com os interesses do Estado, perpassando uma lógica de discurso nacionalista. Assim, é possível verificar um comportamento por vezes ambíguo da revista Careta em relação ao Estado, ora postando-se de forma crítica, ora engendrando uma imagem construída em prol deste, conforme pode ser constatado através da análise da revista (MACHADO JÚNIOR, 2006a). Seja como for, o papel protagonista da revista Careta como instrumento de divulgação de ideais modernos é, de certa forma, inegável.

Modernidade carioca e cultura material Podemos considerar que a cultura de consumo e a modernidade carioca eram elementos imbricados. Assim, faz sentido que o presente artigo traga alguns elementos representativos desta cultural material publicizada na revista Careta, representativa de simbologias concernentes ao que procurou se denominar como modernidade. Gestada em um período de ascensão capitalista, e uma vez voltada para um público de situação financeira privilegiada, a revista inseriu-se em uma época em que o consumo, segundo as palavras de Nicolau Sevcenko (2003, p. 40), havia se tornado uma verdadeira febre na cidade do Rio de Janeiro. Percebia-se a busca constante da clientela e direcionava-se sempre às novidades e aos últimos apelos da moda. Uma moda efêmera, diga-se de passagem, mas ao mesmo tempo relacionada às qualidades de uma beleza tradicional e imutável, conforme os pressupostos argumentados por Walter Benjamin (1975). 425

MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

A modernidade carioca representada pela moda foi à permanência do transitório e à dúvida sobre as consequências de um devir que sempre se apresentava como promissor. A partir de uma perspectiva calcada nos estudos sobre as formas de socialibilidade, elaborada por Georg Simmel (1986, p. 750), a difusão da moda significou a nivelação e a acentuação de uma determinada classe frente às demais, sendo ao mesmo tempo instrumento de identificação e diferenciação entre seus componentes. Seja sob a forma direta, através da publicação de propagandas, ou sob a forma indireta, fotografias ou crônicas que relacionam os sujeitos aos produtos e/ou símbolos da modernidade, a revista em si, na sua materialidade, também foi um produto de consumo, atenuando cada vez mais a necessidade da inserção da sociedade nesta lógica do capitalismo, excluindo quem dela não pudesse fazer parte. Nas imagens a seguir, retiradas de duas edições de janeiro de 1920 (cf. figuras 1 e 2), tanto a propaganda quanto a fotografia social são destinadas ao público feminino. Na primeira, a representação de um dos muitos produtos para o consumo do gênero, exemplo de uma embrionária submissão da mulher para com a necessidade da manutenção de uma beleza constante, inserindo-a gradativamente no mercado de consumo moderno. Na segunda imagem, o passeio sincronizado de anônimas senhoras por um dos bairros centrais da cidade atesta a similaridade entre o que foi comercialmente publicizado e algumas das últimas tendências da época, referente aos costumes vestuários e registradas pelas lentes de uma fotografia conotada pelo termo “instantânea”. Os usos dos chapéus, dos gestos, dos espaços de circulação constituíram-se em elementos de uma modernidade que se deseja construir numa cidade com confusas tradições culturais como o Rio de Janeiro da época.

Figuras 1 e 2 – Produtos de consumo da teoria e na prática: a publicidade e a fotografia

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Cláudio de Sá Machado Júnior

CARETA, Rio de Janeiro, n. 6061, 31/01/1920; n. 612, 13/03/19202

A busca pelo novo, pela aparência e pela representação do moderno, acompanharam o ritmo da cidade, a qual sofria significativas transformações tanto em sua estrutura física quanto na sua organização política de poder, vivenciando o auge dos devaneios e desilusões de um regime republicano em crise. As fotografias e as propagandas vinculadas à revista Careta espelhavam e induziam concomitantemente expressões ritualizadas dos sujeitos, fornecendo aparatos para a manutenção de um cotidiano imaginado que encontrava nas ruas da urbe ou nos salões de convívio social, por exemplo, espaços apropriados para a espetacularização da vida pública. Um segundo exemplo extraído de mais duas edições da revista Careta, de março de 1920 (cf. figuras 3 e 4), apresenta como objeto representativo da modernidade carioca o automóvel. À esquerda, o objeto em si, límpido pelos pressupostos de um objetivo maior de relação mercantil, visando o lucro por parte de quem vende e a aquisição de um status social por parte de quem compra. Ao lado, umas das consequências trágicas deste instrumento prático e simbólico: um estrago propiciado pelo progresso, conforme os termos utilizados por Alain Touraine (1994, p. 213). Satirizada pela caricatura e reveladora da necessidade de adaptação dos sujeitos aos novos modos de agir impostos pelas inovações tecnológicas, a charge trata de um atropelamento que contrasta a importância da própria vida com a valoração atribuída aos objetos símbolos da modernidade.

Figuras 3 e 4 – O automóvel como signo da modernidade e o humor negro a seu respeito

CARETA, Rio de Janeiro, n. 6143, 27/3/1920; n. 613, 20/3/19204

O diálogo estabelecido sucede a percepção visual do enredo, na qual um personagem indaga se houve ou não morte, enquanto o outro responde que sim, mas abrindo o escapamento obter-se-ia o direito a uma das outras três descargas do automóvel. A latente preocupação com o objeto de consumo sobrepõe-se aos cuidados do sujeito quanto à própria vida humana. Uma das características emblemáticas desta representação da modernidade carioca é a subordinação da vida, tanto individual quanto coletiva, às dimensões de uma razão econômica voltada para a supervalorização dos bens de consumo. Quase todas as sociedades são penetradas por novas formas de produção, de consumo e de comunicação. O elogio da pureza e da autenticidade é cada vez mais artificial e,

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MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

mesmo quando os dirigentes lançam anátemas contra a penetração da economia no mercado, as populações são atraídas por ela (...). (TOURAINE, 1994, p. 213-214)

Muitos outros exemplos de símbolos de consumo da modernidade no Rio de Janeiro podem ser extraídos das páginas da revista Careta, como os hábitos de frequentar o cinema, usos do telefone, de produtos para higiene pessoal, usufruto de remédios medicinais com resultados promissores, registros visuais sobre aeroplanos e de roupas femininas e demais acessórios (cf. figuras 5 e 6). Enfim, encontrava-se uma gama de possibilidades materiais que emergiam como emblemas de um novo modo de viver nas grandes metrópoles. As revistas constituíram-se também em bens de consumo, de certa forma, passageiros, pois diferentemente dos livros, não eram objetos que dispunham de uma materialidade apropriada para se guardar em um local para um posterior fácil acesso, tal qual uma estante. As revistas não eram menos efêmeras, todavia, que os jornais de circulação diária.

Figuras 5 e 6 – Os objetos de consumo caracterizaram-se como elementos extensivos da vida moderna CARETA, Rio de Janeiro, n. 6095, 21/2/1920; n. 613, 20/3/19206

Viver a modernidade carioca remetia não somente a uma experiência de consumo carioca, mas a uma experiência de incorporação de hábitos e produtos oriundos essencialmente das culturas francesa e anglo-saxã, que fazia com que o cosmopolitismo do Rio de Janeiro se alimentasse do cosmopolitismo de Paris e de Londres. Gradativamente os Estados Unidos começavam a conquistar esse espaço de influência cultural. O desenvolvimento dos meios tecnológicos propiciou uma revolução no design das revistas ilustradas da época, as quais se apropriaram muito bem das imagens e dos recursos gráficos disponíveis para seduzir os leitores e difundir, pelas mais diversas maneiras, o âmago de seu conteúdo, equilibrando-se entre a mensagem que desejou reproduzir e a reprodução daquilo que pôde 428

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ser economicamente rentável. Nesta trama comunicacional da modernidade, o sujeito adquiriu novas feições, tanto no modo de se auto-representar como na forma de agir em seu cotidiano.

Individualidade e representação social A modernidade carioca caracterizou-se, de certa forma, pela valorização do prazer do sujeito, um conjunto de ações centradas que beneficiaram o indivíduo e lhe proporcionaram determinado destaque entre os seus próximos. Neste sentido, conforme a proposta de Alain Touraine (1994, p. 220221), uma vez que o indivíduo passou a ser o protagonista da história, deixou de ser sujeito e passou a ser ator social. A nova significação do seu eu relaciona-se ao tortuoso processo da individualidade, o qual imbricou tanto as funções cotidianas concernentes ao âmbito privado quando ao exercício e visibilidade das funções públicas. Na dinâmica da psicologia moderna, percebeu-se o sobressalto do seu Id, todavia, sem anular por completo as ações oriundas de sua racionalidade. A vida social foi, segundo a concepção de Adriano Duarte Rodrigues (1990, p. 59), uma espécie de investimento do indivíduo para com relação ao presente, estando cada vez mais calcado numa concepção prática e utilitária de viver. Uma ideia de supervalorização do indivíduo, portanto, afirma a superioridade da iniciativa privada sobre o que é de domínio público. Como foi mencionado anteriormente em outras palavras, o privado não deixa de complementar a composição do público, mas a inter-relação contrária faz-se impossível de acontecer. A experiência da modernidade carioca fazia-se sentir em seu cotidiano, mas restringindo-se a grupos específicos. A noção de liberdade social, portanto, deve ser completamente relativizada. O mundo moderno é, ao contrário, cada vez mais ocupado pela referência a um sujeito que está libertado, isto é, que coloca como princípio do bem o controle que o indivíduo exerce sobre suas ações e sua situação e que lhe permite conceber e sentir seus comportamentos como componentes da história pessoal de vida, conceber a si mesmo como ator. (TOURAINE, 1994, p. 219-220)

Conforme destaca Myriam Lins de Barros (1987, p. 17), o assunto da individualidade entre as sociedades das grandes metrópoles foi tratado com destreza por Georg Simmel (1986). Para o sociólogo, a liberdade individual e as relações sócio-econômicas agem numa ação mútua. Em cada indivíduo existe uma parcela, um tanto invariável, entre o ser individual e o ser social, um privado e um público, o qual se torna possível devido às proporções que se estabelecem em uma trama ampla de relações engendradas no espaço urbano. Ou seja, quanto menor for o círculo urbano a que o indivíduo pertence, menores serão as chances dele alcançar um status pleno de sua individualidade. Em uma cidade como o Rio de Janeiro, uma das mais populosas da época e com significativo recebimento de imigrantes nacionais e estrangeiros, o fator do anonimato assume um efeito cada vez mais significativo. Contudo, adaptando a proposta simmeriana, no caso da sociedade ser reduzida a um grupo específico, como os frequentadores de determinados clubes, ou de um determinado grupo literário, por exemplo, seriam menores as chances para o desenvolvimento de uma individualidade plena? No caso da revista Careta, o indivíduo dificilmente esteve sozinho. E, no caso das fotografias sociais, as representações foram na sua grande maioria representativa de grupos. Não meramente um ser individual ou um ser coletivo, mas sim um indivíduo composto pelas duas partes, variando de grau conforme a 429

MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

visibilidade de sua imagem, indeterminada e exclusiva, e a posição por ele ocupada nas categorias estabelecidas pela regras sociais. Assim, conforme enfatiza Isabel Lustosa (1993, p. 71-72), o moderno é construído também dentro da rede informal do cotidiano. São as relações do dia-a-dia que suscitam nos indivíduos o sentimento da modernidade. Neste caso, falamos de uma modernidade concernente ao sentimento vivido na década de 1920 por alguns segmentos sociais. Faz-se por necessário destacar que as diferenças da individualidade também podem ser abordadas a partir da questão da sexualidade. De um modo geral, a representação da individualidade como um todo abrange um grupo mais amplo, engendrando uma interpretação mais complexa da sociedade, mas a questão da posição social da mulher também é algo que merece ser referenciado, principalmente no que condiz às conotações da revista Careta. Alain Touraine (1994, p. 235) observa a importância dos movimentos feministas no início do século XX, o qual um grupo de mulheres, em prol da modernidade, reivindicou o reconhecimento de sua identidade, em respeito às diferenças discriminatórias entre ambos os sexos. No entanto, os espaços ocupados pela imagem feminina na revista Careta eram específicos e restritos. A imagem da mulher vinculada ao mundo do trabalho ainda caracterizava-se como um fator distante de ser representado pela fotografia. Quando acontecia, representava-se indiretamente. Aproximava-se mais aos conceitos de beleza, ociosidade e entretenimento (cf. figuras 7 e 8).

Figuras 7 e 8 – Representações femininas presentes na fotografia e na charge

CARETA, Rio de Janeiro, n. 6137, 20/3/1920; n. 607, 7/2/19208

Em duas colunas da edição da Careta de 17 de janeiro de 1920, encontramos algumas referências sobre esta busca de emancipação da mulher considerada moderna da sociedade carioca. No artigo denominado O Trabalho Noturno das Mulheres, o pseudônimo Dierre Effe aborda o constrangedor interesse da inserção do “sexo frágil”, de acordo com os termos adotados, no mercado de trabalho em período não diurno. Abordou o autor que coube aos homens, detentores da razão, o reconhecimento da capacidade de produção das mulheres, empregando-as no ofício único que lhes seria mais adequado, ou seja, as responsabilidades do âmbito doméstico. Em Páginas da Cidade, a autoria de Garcia Margiocco, em tom irônico, também demonstra certa resistência quanto ao papel que as mulheres buscam em oposição ao confinamento de suas liberdades individuais. 430

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É forçoso, no entanto, que o homem honesto ganhe a rua e corra à oficina, ao jornal, ao atelier, à fábrica, porque os pequenos que ficaram em casa pedem pão e a cara esposa, que é um tipo bem acabado da mulher moderna, anda fora de casa também, desde pela manhã, visto que, fazendo parte de uma Liga em prol da emancipação feminina, teve de ir pregar as suas idéias num bairro afastado e cedo saíra em cumprimento de sua missão sagrada... (CARETA, 17/1/1920)

O espaço urbano, local por excelência da efetivação das vontades individualistas, foi palco para a complexa intriga que envolve os movimentos humanos de uma sociedade. A competência do indivíduo, assim como as funções que este assumiu dentro de seu círculo, determinou a sua participação social prática, definindo-o como sujeito ou ator das ações coletivas. A identidade individual foi, portanto, dependente de uma identidade coletiva. À revista Careta, como veículo de circulação de ideias e empresa com necessidades e fins econômicos, coube o papel de apreender estas representações sociais das mais diversas formas, retornando ao público enfocado o consumo da imagem criada para ele próprio. O processo da individualidade, portanto, foi concomitante ao processo da modernidade carioca, sendo o primeiro constituinte das partes mais complexas do segundo.

Considerações finais Traçar uma modernidade carioca foi uma tarefa um tanto arriscada. O ideal, talvez, seria adotar o termo modernidades, no plural do substantivo. A realidade do Rio de Janeiro da década de 1920 foi complexa e ampla, uma vez que estão acontecendo muitas coisas ao mesmo tempo. Na cidade, as relações sociais se estabelecem de forma culturalmente violenta, de acordo com os interesses daqueles que detém parcela significativa do capital. A grande população marginalizada foi afastada das regiões centrais e alocada nas periferias, preferindo por muitas vezes a moradia em morros, devido ao fato de sua proximidade com relação ao âmago de serviços proporcionados pela urbe. Até mesmo o carnaval que se desejava nas ruas era aquele da versão europeia, privilegiando pierrôs, colombinas e arlequins em detrimento das fantasias preferidas de índio e de cobra-viva, conforme enfatiza Nicolau Sevcenko (2003, p. 47). No campo político, além do embrião que formaria o primeiro partido comunista do Brasil, o governo encaminhava-se a sucessivos momentos de estado de sítio, enfrentando as primeiras manifestações operárias e os primeiros movimentos rebeldes oriundos das forças armadas. No âmbito internacional, caracterizava-se por um período entre-guerras, uma paz armada que, simultaneamente à formação de uma belle époque e uma posterior crise mundial financeira, desencadearia na formação dos estados fascistas e, consequentemente na Segunda Grande Guerra. A modernidade brasileira era principalmente aquela do café, onde a fonte de rendimento estava no campo, mas os padrões de comportamento modelavam-se nas sociabilidades da cidade. Foi nesta realidade de fortes agitações sociais e de influxo de capital nos grandes centros urbanos que as revistas ilustradas tiveram a oportunidade de se proliferar. Em si símbolos da modernidade, inúmeros outros exemplos vinculavam às suas páginas como representativos de um novo modo de viver que se constituía em meio aos costumes sociais. Mesmo posta em circulação em uma época com significativos índices de analfabetismo, as revistas tiveram um importante papel como veículo de circulação de ideias, visuais ou textuais, e criação de imagens de uma camada populacional privilegiada. 431

MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

É justamente nestas qualificações que se enquadra a revista Careta. Analisados três meses de publicações, concernentes ao primeiro quarto do ano de 1920, este artigo buscou alguns elementos significativos para a constituição de uma chamada modernidade carioca, considerando o papel protagônico do periódico frente ao seu público leitor, assim como as funções de sua publicidade, manifestada de forma direta ou indiretamente, desembocando na questão da individualidade e da supervalorização do sujeito. Adaptando as palavras de Alain Touraine (1994, p. 222), a subjetivação do indivíduo define-se pela relação deste com seu comportamento individual e suas funções públicas, sendo esta construída tanto pela trama das intrigas sociais quanto pelas agências de socialização. Assim, a revista Careta desponta como um instrumento de intervenção social, norteadora de padrões convergentes com os princípios modernos e, respectivamente, fonte de criação para o imaginário da sociedade de sua época.

REFERÊNCIAS Periódico CARETA. Rio de Janeiro, n. 602 a 614, jan. a mar. de 1920. Acervo da Biblioteca Nacional Digital do Brasil. Disponível em . Acesso em 5/8/2012.

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Cláudio de Sá Machado Júnior

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990. RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da comunicação: questão comunicacional e formas de sociabilidade. Lisboa: Presença, 1990. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Teoria da memória, teoria da modernidade. In: AVRITZER, Leonardo; DOMINGUES, José Maurício (org.). Teoria social e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 84-105. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SIMMEL, Georg. Sociología: estudios sobre las formas de socialización. Vol. 2. Madrid: Alianza Editorial, 1986. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

(Endnotes) 1 Texto: “Beleza da cútis, colorir a cútis. Ianop/Rougil. O Ianop dá formosura encantadora. O Ianop dá graça e atrativos fascinadores. O Ianop conserva a cútis fina, macia e lisa, com alvura incomparável. O Ianop produz sobre a cútis sensação agradável. O Ianop substitui vantajosamente o pó de arroz. O Ianop é para a cútis o que o orvalho é para as flores. O Rougil dá à cútis cor, que pode variar do tênue rosa ao encarnado vivo. O Rougil dá à cútis cor fixa, bela, soberba, igual à natural. O Rougil rara preciosidade para colorir as unhas, é um primor para a coloração dos lábios. O Rougil, pelo seu perfume, é usado em banhos, obtendo-se então duplo resultado, o de perfumar a cútis, e o de darlhe a cor rósea, cor de saúde, e conseguintemente sensação de bem estar. O Rougil, como o Ianop, é suave, delicado, inofensivo e de confecção esmerada. O Rougil substitui vantajosamente os rouges e o carmim. O Rougil rejuvenesce a cútis e dá à fisionomia atrativos e encantos que deslumbram como os da aurora. O Ianop e o Rougil, os preciosos e supremos fatores da arte de agradar, atrair e triunfar acham-se à venda nas casas Bazin, Círio, Perfumaria Nunes e principais perfumarias como em casa dos depositários: Araújo Freitas & Cia. - Ourives, 88 - Rio de Janeiro”. 2

Legenda: “Instantâneo”.

3

Cabeçalho: “O moderno automóvel elétrico”.

4 Texto: “Honras fúnebres. – Morreu? – Morreu sim senhor. Pode abrir o escapamento. Ele tem direito a três descargas”. 5 Texto: “Ao 1.º Barateiro. Exposição permanente e sempre up to date das mais notáveis criações da moda parisiense. Vestidos para passeio e grande toilette. É escusado procurar igual pelo mesmo preço; Ao 1.º Barateiro. Avenida Rio Branco, 100”. 6 Texto: “Fornecedores da Casa Real da Inglaterra by Royal Appointment. Edifício próprio. Casa fundada em 1810. Mappin & Webb. Grande casa inglesa. Joalharia fina, prataria, marroquinaria, prata princesa. Carteiras de couro finíssimo como marroquim e phoca. Relógios de prata, ouro e platina com pulseiras extensível ou de couro. Rico serviço de prata para manicure. 100, Ouvidor, 100 – Rio de Janeiro. São Paulo, Buenos Aires, Londres, etc.”. 433

MODERNIDADE DE REVISTA E REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA REVISTA CARETA

7

Legenda: “Grupo de convidados tirado em frente à Fábrica do Depurativo Indígena”.

8

Texto: “Carnaval. Um modelo ao sabor da época”.

* Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado Institucional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

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9. GESTÃO CULTURAL

AS COMUNIDADES DE PRÁTICA E A APRENDIZAGEM INFORMAL NA GESTÃO CULTURAL

Telmo Telles * Tamara Cecilia Karawejczyk ** Maria de Lourdes Borges ***

Introdução Ao tratar do fenômeno da aprendizagem organizacional, Weick (1991) advoga que, em muitos casos, a sua ocorrência segue caminhos não tradicionais ou planejados e que o sistema criado pelas organizações para fornecer as mesmas respostas, no caso das rotinas organizacionais, acaba por perpetuar o que foi aprendido no passado, não respondendo pelas aprendizagens atuais ou futuras. Neste sentido, pode-se dizer que no que tange ao fenômeno da aprendizagem organizacional, existe além da abordagem formal, que é por sinal a mais corriqueira encontrada na literatura, há também uma informal, que recai sobre as relações interpessoais, à gestão das equipes, à interação e à comunidade (GROAT, 1997). Porém, ao invés de tratar destes temas de forma não relacionadas, Malcolm et. al. (2003) sugere que existem elementos de aprendizagem formal em situações informais e elementos de informalidade em situações formais, sendo estes dois conceitos intrinsecamente relacionados. Neste sentido, Groat (1997) considera que o relacionamento entre grupos de pessoas, em situações de informalidade, dentro da estrutura organizacional pode acontecer, através de uma rede de trabalho ou de uma rede social, estabelecida dentro da própria organização, que Dixon (1997) chama de “entradas”, ou seja, espaços informais no qual é possível à organização aprender. Para este estudo, acredita-se que o estudo da aprendizagem organizacional prescinde tanto de práticas formais quanto de práticas informais, coletivas ou individuais para o desenvolvimento de processos de mudança organizacional e consequentemente à busca de melhores resultados organizacionais, na gestão cultural. O conjunto de reflexões sobre as perspectivas atuais para a gestão cultural nos remete a um entendimento dos mais variados aspectos, ou seja, o das politicas públicas, a transparência na gestão dos recursos ou na gestão das organizações culturais. Desde a década de 80 do século passado em que foram criadas instituições públicas de fomento e gestão da cultura, esta temática tem chamado à atenção de profissionais e pesquisadores da área. Neste sentido, o campo da gestão cultural é complexo e multidisciplinar, exigindo conhecimentos da área técnica de atuação cultural e elementos de gestão. Villas-Boas (2005) já esclarecia que pensar em gestão cultural faz-se necessário avançar na discussão do que é mesmo gerenciar espaços e projetos culturais, onde a velha formula do processo administrativo (planejar, organizar, dirigir e controlar) necessita de novas aproximações para um novo tipo de sociedade. A busca da construção de uma identidade para o gestor cultural, insere o mesmo, além da inser-

AS COMUNIDADES DE PRÁTICA E A APRENDIZAGEM INFORMAL NA GESTÃO CULTURAL

ção dos processos formais de aprendizagem é importante também analisar como ocorrem os processos informais, sabendo da demanda atual por profissionais com competências relacionais e complexas, ou seja, flexibilidade, visão sistêmica, pensamento estratégico, liderança, entre outras. Assim, somente na prática formal de aprendizagem aconteceria o processo educativo do gestor cultural? Os processos atuais de mobilidade profissional e trajetórias de formação para toda a vida desencadeiam a necessidade de revisão dos processos formais de ensino-aprendizagem, neste sentido, a aprendizagem também pode ser vista como uma prática situada (ELKJAER, 2001; LAVE e WENGER, 1991), onde a noção central é aprender enquanto se trabalha ou no próprio local de trabalho (BROWN e DUGUID, 1991), ocorrendo não somente nos momentos formais de trabalho, mas também nos espaços informais e sociais que se estabelecem na organização, como horários de café, almoços, exposições, corredores, etc. Wenger (1996) coloca que uma das perspectivas da aprendizagem é que ela não pode ser separada da ação e deve estar engajada em algum tipo de prática, fundamentalmente social, por que os seres humanos são seres sociais, vivendo dentro de contextos sociais e que também experienciam seus processos de aprendizagem através do compartilhamento de significados, sobre si, sobre o mundo e sobre os outros, onde as práticas de trabalho podem ser vistas como construções sociais. Desta forma, acredita-se nas possibilidades de interação entre a aprendizagem formal e informal, sendo um dos pontos-chave da contribuição deste ensaio, ou seja, explorar as contribuições da aprendizagem informal e das comunidades de prática para a gestão cultural. Em um estudo realizado em nove organizações do sul do Brasil, Bitencourt e Souza (2003) estudam práticas formais e informais de aprendizagem organizacional. As autoras concluem que nos casos analisados, as práticas formais servem de pano de fundo para as práticas informais, ou seja, as práticas informais inserem-se, geralmente, em um contexto formal e que deve haver uma complementaridade dos traços de formalidade e informalidade das aprendizagens ocorridas. Flach e Antonello (2010) destacam que a aprendizagem informal é um tema importante nos estudos organizacionais, porém pouco estudado, observando que existe uma tendência a separar a aprendizagem formal da informal. No presente ensaio teórico optou-se por considerar as contribuições da literatura sobre aprendizagem informal e comunidades de prática para a gestão cultural, aqui entendida como os espaços da arte e da cultura que necessitam serem gerenciados. Desta maneira, procurou compreender as noções de aprendizagem, aprendizagem informal e incidental, para posteriormente avançar no entendimento das comunidades de prática para as organizações culturais.

As Contribuições da Aprendizagem Informal e Incidental para o processo de aprendizagem Tomando o conceito de Ferreira (1993, p.39), aprender é: “1. tomar conhecimento de; 2. tomar conhecimento de algo retê-lo na memória, graças ao estudo, observação, experiência, etc.” Robbins (1998, p.45) define aprendizagem como “qualquer mudança relativamente permanente no comporta438

Telmo Telles, Tamara Cecilia Karawejczyk, Maria de Lourdes Borges

mento que ocorre como resultado de experiência”. No seu sentido mais amplo, aprender relaciona-se tanto com o processo cognitivo interno dos indivíduos, como o sentido de obter informação ou conhecimento sobre algo, com mudança de comportamento. Simon (1991) afirma que a aprendizagem tem lugar dentro da cabeça das pessoas e as organizações aprendem por dois caminhos, pela aprendizagem dos seus membros ou pela integração de novos membros na organização, com novos conhecimentos. a forma como os indivíduos respondem e realizam a variedade de funções que desempenham no dia-a-dia, também é um fator preponderante no processo de aprendizagem. É sabido que existem diferenças em porque as pessoas aprendem e desempenham as mesmas tarefas de forma diferente, mesmo tendo recebido as mesmas orientações e treinamento para tal (STREUFERT e NOGAMI, 1989). Hayes e Allinson (1998) reconhecem que existe a possibilidade das pessoas apresentarem diferentes formas quanto à sua habilidade em reconhecer situações novas e oferecer respostas às mesmas, sendo que isto pode ser determinado pelo estilo cognitivo dos indivíduos. As situações de trabalho diferem por demandas com relação ao processamento das informações pelos indivíduos. Enquanto alguns preferem trabalhar com situações em que há bastante tempo para pensar sobre as informações obtidas, outros preferem trabalhar em situações em que precisam supor mais a respeito dos fatos (HAYES e ALLINSON, 1998). Neste sentido as situações enfrentadas pelos indivíduos combinados com seu estilo cognitivo podem determinar como os indivíduos aprendem. Malcolm et. al. (2003) em uma investigação sobre o uso dos termos formal, informal e não formal de aprendizagem, concluem que não é possível realizar uma separação muito clara entre o que seria uma aprendizagem formal e uma aprendizagem informal, sugerindo que atributos de formalidade/ informalidade estão presentes em todas as situações de aprendizagem, porém o inter-relacionamento entre os atributos formais e informais variam conforme a situação organizacional analisada. As conclusões que estes autores chegam é que não é possível dizer que a aprendizagem é a mesma em todas as situações, por que há diferença entre o que se aprende no trabalho e o que se aprende em instituições de ensino. Em segundo lugar, não há uma impropriedade de usar os termos aprendizagem formal e aprendizagem informal; porém, é importante especificar os propósitos e usos destes termos. Para este estudo, não se afirma que um tipo de aprendizagem é superior ao outro, porém eles são complementares na análise do fenômeno da aprendizagem. De acordo com Marsick e Watkins (1997, p.295) uma definição para a aprendizagem informal seria “aquela que poderá ocorrer em instituições de ensino, mas não é baseadas em atividades de sala de aula ou estruturadas e o controle da aprendizagem está na mão dos aprendizes”. Este tipo de aprendizagem não certifica ou acredita uma pessoa (BROOKSFIELD, 1986), mas é uma dimensão importante no processo de aprendizagem dos indivíduos e das organizações, pois também compreende o processo reflexivo como um componente importante da aprendizagem organizacional (KOLB, 1984). Laiken (2003) ao estudar organizações canadenses, constata que, apesar da centralidade dos processos de aprendizagem estejam ainda em ambientes formais de sala de aula, é importante compreender também os ambientes informais de aprendizagem, dos locais de trabalho que são importantes para a compreensão do processo de aprendizagem como um todo. O que estes autores colocam é que a aprendizagem informal acontece fora de programas estruturados e formais de educação gerencial e 439

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mesmo assim é um tipo de aprendizagem válida, apesar de algumas vezes estar relegado a ser parte do trabalho ou um mecanismo de propriedade do próprio trabalho (BOUND e MIDDLETON, 2003). Dixon (1997) sugere a metáfora da porta de entrada para designar espaços informais de aprendizagem. Esta autora coloca que ao invés de espaços individuais privados ou de salas públicas que estocam o conhecimento organizacional, as portas de entrada são locais onde os significados coletivos são realizados, construídos através do diálogo entre os membros da organização. Os encontros nos corredores, no café ou até no almoço podem ser espaços em que a aprendizagem informal ocorra em uma organização, sendo estes espaços locais possíveis de aprendizado, pois haverá um fluxo livre de ideias e as pessoas podem se tornar iguais, livres por um momento da hierarquia. Brooksfield (1986) chama esta porta de entrada de redes informais de aprendizagem. Na literatura sobre o assunto, é possível encontrar a noção de aprendizagem incidental atrelada a de aprendizagem informal. Aprendizagem incidental é denominada como não intencional ou natural (BURGOYNE e HODGSON, 1983) e geralmente ocorre como resultado de outras atividades que ocorrem no local de trabalho ou em programas de treinamento de adultos. Brooksfield (1986) ao analisar programas de desenvolvimento de adultos, comenta que as ações não planejadas que ocorrem nestes cursos, ou seja, a aprendizagem incidental, geralmente é relegada a um segundo plano, quando são avaliados os resultados destes mesmos programas, como se este tipo de aprendizagem não tivesse um valor real. Mealman (1993) ao estudar a aprendizagem incidental em programas de desenvolvimento de adultos, constatou que certos tipos de atividades estimulam a aprendizagem incidental, tais como, atividades de pequenos grupos, as discussões conduzidas pelo facilitador, o compartilhamento de informações e conhecimentos entre os membros, o desenvolvimento de habilidades de aprender a aprender. Este tipo de aprendizagem não é baseado em um processo reflexivo de aprendizagem, porque o aprendiz geralmente aprende fazendo e uma das dificuldades de validar os esforços deste tipo de aprendizagem é que como ele não é planejado, geralmente acontece através da ação ou do produto de outras atividades (CAHOON, 1995). Porém Marsick e Watkins (1997) questionam esta premissa, porque mesmo acontecendo acidentalmente, este tipo de aprendizagem deve levar os aprendizes a analisar suas interpretações sobre as situações em que estão aprendendo, incluindo um processo reflexivo sobre suas ações no trabalho.

Comunidades de Prática: o desenvolvimento de redes colaborativas de aprendizagem Complementando os conceitos desenvolvidos até o momento, as práticas da aprendizagem informal e incidental acontecem, principalmente, através de interconexões e teias de participação que os membros da organização vivenciam no mundo social. As experiências de aprendizagem, como práticas compartilhadas, são muitas vezes sustentadas através de comunidades de prática e/ ou redes informais de aprendizagem (WENGER, 1996; BROOKFIELD, 1986; LAVE e WENGER, 1991; BROWN e DUGUID, 1991, 2001; BOUND e MIDDLETON, 2003).

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Estes conceitos respondem de modo efetivo a toda construção conceitual sobre a gestão cultural, onde a improvisação e o inesperado acham lugar num espaço relacionado com arte e cultura, onde o aprender seja sobre a gestão de uma obra de arte ou sobre um espetáculo, sai da esfera do formal e passa também pela informal. Por outro lado, a profissionalização da gestão cultural, através da busca de uma identidade contemporânea para os profissionais que atuam na mesma, reforça a ideia de novas formas de aprender a ser um melhor profissional nesta área. Na literatura (LAVE e WENGER, 1991; WENGER, 1996, 2004; BROWN e DUGUID, 1991, 2001) o processo de construção social de conhecimento e aprendizagem insere-se no conceito de comunidades de prática, que seria qualquer grupo social em que os membros compartilham um engajamento mútuo, negociando empreendimentos conjuntos e desenvolvendo um repertório compartilhado de significados sobre sua prática (MACHLES, 2003). Estes compartilhamentos de aprendizagem e conhecimento podem sugerir estudos de micro níveis das comunidades, promovendo valiosas iluminações para o entendimento sobre o processo de transferências de conhecimentos deste micro nível para o macro nível organizacional, no que diz respeito à aprendizagem (RICHTER, 1998). Estas práticas de trabalho como construções sociais, foram nomeadas em um estudo realizado por Orr de práticas canônicas e práticas não canônicas (BROWN e DUGUID, 1991). As práticas canônicas são aquelas relacionadas com as práticas esposadas, formalizadas e sancionadas pelos sistemas hierárquicos e formais da organização, que se encontram nos manuais e descrições de cargos; enquanto as práticas não canônicas seriam aquelas práticas usadas pelos membros organizacionais como situadas, contingentes e geralmente improvisadas, que surgem do dia-a-dia do trabalho praticado. Estes tipos de práticas, muitas vezes encontram-se localizados em espaços como comunidades de práticas ou também através de redes informais de aprendizagem, proporcionando espaços de aprendizado e participação para os membros organizacionais. Estes espaços informais produzem muitas vezes a prática de se contar histórias que, através da estrutura destas narrações sobre situações semelhantes vivenciadas pelos “práticos”, há uma procura em diagnosticar problemas e buscar novos insights e soluções, que não estavam prescritas nas normas e procedimentos oficializados pela organização. Como diz Brown e Duguid (1991, p.44) “uma história, uma vez possuída por uma comunidade pode ser usada e modificada e em seções similares ser usada para diagnosticar novos e instigantes problemas”. Neste sentido, o processo de procurar soluções para problemas organizacionais através de práticas não canônicas, geralmente envolve por parte dos membros da organização um processo de construção social do conhecimento. Brown e Duguid (2001) tomam as comunidades de prática como unidade de análise para a compreensão de como o conhecimento é criado e transferido por toda a organização, sugerindo que se o conhecimento ficar somente na comunidade e não gerar uma dinâmica para a ação organizacional terá apenas retórica. Com o intuito de legitimar o processo destas comunidades de prática, Lave e Wenger (1991) trazem o conceito de Participação Periférica Legítima (PPL), como uma forma de suportar os processos de aprendizagem. Este conceito coloca o processo participativo1 como uma prática de aprendiza1

Entende-se, aqui, participação como um ato e processo político (SIQUEIRA e BAETA, 1984; BALLALAI, 1985; DEMO, 1996) e, sua efetivação ocorre, na medida em que é conquistada e ocupa espaços de poder. Neste processo a participação efetiva e real deverá ser construída e não considerada como uma dádiva ou presente, pois desta forma, não a reduzimos à tutela ou ao assistencialismo.

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AS COMUNIDADES DE PRÁTICA E A APRENDIZAGEM INFORMAL NA GESTÃO CULTURAL

gem, onde o conhecimento tácito e a aprendizagem informal ganham espaço, ocorrendo avanços no processo de aprendizagem, seja na dimensão individual, seja na dimensão coletiva. Por isto, as comunidades de prática geralmente emergem na vida organizacional (BROWN e DUGUID, 1991), muitas vezes através de teias de interação que vão acontecendo no ambiente (BROWN e DUGUID, 2001). Por outro lado, complementando a noção de redes de práticas, uma rede informal de aprendizagem parte do pressuposto de que os adultos aprendem através de vários contextos (BROOKFIELD, 1986) e que a experiência da aprendizagem é fortemente influenciada pela natureza do trabalho realizado e pelo fluxo das operações na qual os trabalhadores operam (BOYD e MIDDLETON, 2003). Uma rede informal de aprendizagem organizacional “reúnem grupos com o mesmo nível de ”status“ que se agregam para trocar informações, ideias, habilidades e conhecimentos” (BROOKFIELD, 1986, p.151). Com o auxílio de seus pares, os membros das redes resolvem problemas, criam novas formas de práticas e novas formas de conhecimento. Na rede informal, quando surge uma dificuldade, os membros organizacionais consultam os experts sobre o problema ou a dificuldade, além de acessar fontes documentais ou a intranet. Além disto, a rede informal de aprendizagem também é acessada quando se negocia aspectos menos tangíveis sobre o trabalho e os superiores imediatos são menos consultados do que os pares que formam a rede. Para o reconhecimento de uma comunidade de prática, Brown (1992) e Wenger (1998) desenvolvem um conjunto de características descritivas sobre o que ela é: •

Informal, por que operam no dia-a-dia organizacional, sustentadas por um relacionamento mútuo entre os participantes, que poderá ser harmônico ou conflituoso, em que os participantes são considerados iguais, sem distinções hierárquicas;



Onde há espaço para a improvisação, com ausência de pautas estruturadas de reunião sendo que as interações e conversas são uma continuação do processo anteriormente estabelecido, fluindo as informações e conhecimentos na comunidade;



Os participantes constroem sua identidade enquanto comunidade, criando um senso de comunidade e compartilhando significados sobre o ambiente, através da narração de histórias, compartilhamento de conhecimento tácito e se divertindo em participar desta comunidade.

Boud e Middleton(2003) ainda colocam que um aspecto fundamental da aprendizagem é o que se aprende com os outros nos locais de trabalho; porém, muito do que se tem feito nas organizações está mais relacionado com redes informais de aprendizagem do que propriamente com a proposta de comunidade de prática. Wenger e Snyder (2001) também percebem as comunidades de prática, os grupos de trabalho formais, as equipes e as redes informais de aprendizagem como abordagens diferentes, apesar de complementares, no que tange ao processo de aprendizagem. Para este trabalho, além de se adotar as definições de comunidades de prática, também serve de orientação teórica a proposta de redes informais de aprendizagem. Para o reconhecimento de uma comunidade de prática, Brown (1992) e Wenger (1998) desenvolvem um conjunto de características descritivas sobre o que ela é: 442

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Informal, por que operam no dia-a-dia organizacional, sustentadas por um relacionamento mútuo entre os participantes, que poderá ser harmônico ou conflituoso, em que os participantes são considerados iguais, sem distinções hierárquicas;



Onde há espaço para a improvisação, com ausência de pautas estruturadas de reunião sendo que as interações e conversas são uma continuação do processo anteriormente estabelecido, fluindo as informações e conhecimentos na comunidade;



Os participantes constroem sua identidade enquanto comunidade, criando um senso de comunidade e compartilhando significados sobre o ambiente, através da narração de histórias, compartilhamento de conhecimento tácito e se divertindo em participar desta comunidade.

Genericamente, rede pode ser definida como um conjunto de nós interconectados (CASTELLS, 2000). Esta definição pode ser utilizada em várias áreas do conhecimento organizacional, envolvendo uma ampla gama de arranjos cooperativos. Para este estudo, toma-se a noção de rede produzida pela emergência do conhecimento local de um grupo particular de experts sobre um determinado assunto, no qual Brown e Duguid (2001) chamam de redes de práticas, por que ao utilizarem o termo rede, estes autores querem sugerir que o relacionamento em torno dos membros que compõe a rede é muito mais solto do que o tipo de relacionamento que compõem uma comunidade de prática, por que existe a possibilidade de numa rede virtual as pessoas não se conhecerem pessoalmente e nem saberem uns dos outros, porém, mesmo assim estão compartilhando significados e conhecimentos.

Considerações Finais. Este artigo procurou discutir a importância da inserção de fenômenos, como a aprendizagem informal, incidental e as comunidades de prática para a gestão cultural. Mesmo salientando que estes tipos de aprendizagem são importantes para a construção de práticas de trabalho e inovação na gestão, não devem ser considerados como um fim em si mesmo, porque um tipo de aprendizagem está imbricado dentro do outro. A complexidade da contemporaneidade, se por um lado, afeta os elementos para uma gestão eficaz, por outro, contribui também para a construção de novas formas de aprendizagem, principalmente com o advento de uma sociedade em rede, conectada.A revisão teórica realizada até o momento, deixa explicita a importância da capacidade de aprender das organizações e dos indivíduos como um ativo importante para sua sustentabilidade (SALGADO e ESPÍNDOLA, 1996; TSANG, 1997; TERRA, 2000; BASTOS et al, 2002). Ademais, novas tendências em gestão desencadeiam novos formatos organizacionais e adoção de princípios gerenciais que deem conta desta nova situação, demandando para gestores e trabalhadores uma disposição à aprendizagem, desaprendizagem e reaprendizagem continuas. Villas-Boas (2005) acredita que ainda não se pode dizer que gestor cultural é uma nova profissão instituída no cenário brasileiro, porém é uma carreira emergente. Trabalhar neste ramo, a produção e gestão dos espaços culturais, requer além de competências técnicas e comportamentais, uma dose de improvisação, junto com uma abordagem critica e reflexiva. 443

AS COMUNIDADES DE PRÁTICA E A APRENDIZAGEM INFORMAL NA GESTÃO CULTURAL

Por fim, com base nas contribuições da literatura sobre estes temas, propõem-se algumas considerações para estudos sobre aprendizagem e gestão cultural: (a) Tanto a aprendizagem formal quanto a informal estão interconectadas no dia-a-dia da gestão cultural; (b) Devotar maior valor e atenção às pequenas aprendizagens que acontecem diariamente nas organizações culturais, uma vez que elas podem se tornar o gatilho para novas formas de atuar; (c) Empregar esforços para a valorização e fomento da aprendizagem formal e informal, pois as situações que envolvem a gestão de eventos culturais incluem estes dois atributos, através de um processo momentâneo mais intenso de aprendizagem informal, que em um segundo momento pode gerar um novo procedimento incorporado na manutenção preventiva de cada organização, promovendo a gestão do conhecimento; (d) Os processos micro organizacionais (relações entre indivíduos e organização), são balizados pelo processo de construção de sentidos sobre o que representa o processo de aprendizagem sobre a gestão cultural. Estas construções de sentido devem ocorrer em espaços formais, mas principalmente nos informais, ou seja, nas salas de exposições, nos corredores das organizações, nos bate papos regados à cafezinhos; (e) O contexto social, histórico e cultural da organização, interfere no processo de aprendizagem na dimensão individual, sendo que as práticas de trabalho também são vistas como construções sociais da realidade organizacional. A constituição arquitetônica do local, as obras de arte que abriga a formação dos seus gestores, contribui para que seja ampliada a perspectiva da gestão; (f) interação social, formal e/ou informal, do aprendiz com os outros, contribui para o seu processo de aprendizagem. Aqui a comunidade de prática ou rede informal de aprendizagem deveria ser um espaço melhor compreendido e utilizado para o avanço dos modelos de gestão utilizados; Como sugestões para pesquisas sobre aprendizagem formal e informal nas organizações culturais apontam-se as seguintes questões: como ocorrem as formas comumente de aprendizagem nas organizações culturais? Onde e como ocorre a formação de comunidades de prática na área cultural? Quais fatores e elementos facilitadores e dificultadores para a incorporação das práticas formais e informais de aprendizagem para o gestor cultural? Como a adoção de elementos e processos de aprendizagem formal e informal podem desenvolver novas competências gerenciais?

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Telmo Telles * Tamara Cecilia Karawejczyk ** Maria de Lourdes Borges ***

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IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster * Flávio Régio Brambilla **

Introdução Para se manter sustentável no mercado, as organizações necessitam compreender e avaliar as necessidades e as expectativas dos consumidores; mas é fundamental também, compreender os aspectos que influenciam o seu comportamento de consumo para que de forma contundente haja uma compreensão dos reais motivos que agem no momento de decisão de compra. Nesse sentido, Giglio (2002) indica que o consumidor efetua suas compras de acordo com as etapas que influenciam o comportamento do consumidor, destacando o produto de acordo com suas próprias expectativas e nem sempre os benefícios que este produto possa oferecer. Quando se menciona as etapas que influenciam o processo de compra, tem-se: fatores culturais, sociais, pessoais e psicológicos (KOTLER, 1998). Tendo este artigo o objetivo de refletir acerca da influência da cultura no comportamento de compra do consumidor, a discussão aqui proposta se centrará apenas no fator cultural do processo de decisão de compra do consumidor. Desta forma, é fundamental falar acerca do conceito de cultura, o que para Santos (1994, p.7), cultura “diz respeito às maneiras de conceber e organizar a vida social e seus aspectos materiais, o modo de produzir para garantir a sobrevivência e o modo de ver o mundo”. Esse olhar que é legitimado e validado por meio da cultura de um povo é agente de ação no processo de decisão de compra dos consumidores; entender essa esse olhar, essa forma de perceber e agir numa sociedade pode levar as organizações a adequarem tanto seus produtos quanto serviços, de forma a empreitar estratégias focadas e voltadas ao público-alvo, com um risco muito menor nas tomadas de decisão. Isto porque a empresa passa a conhecer amplamente os seus clientes. Este artigo está estruturado da seguinte forma: neste primeiro capítulo, tem-se a Introdução, a qual apresenta o objetivo do trabalho e sua temática; no segundo capítulo tem-se o referencial teórico discorrendo acerca do comportamento do consumidor, o conceito de cultura e aculturação. No terceiro capítulo tem-se a metodologia, ou seja, a classificação da pesquisa de acordo com o propósito do trabalho. Por sim, tem-se a conclusão seguida das referências.

Referencial Teórico Comportamento do Consumidor e suas origens Os registros históricos revelam que há 150 anos foram desenvolvidas, por Marx, as primeiras teorias relacionadas à essência da posse, evidenciando assim o interesse pelo estudo sobre o comportamento do consumidor (GIGLIO, 2002). No século XX, os primeiros estudos sobre este tema

IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

foram realizados nos Estados Unidos em 1950, sendo que, nesta época, os focos das áreas de pesquisa perpassavam por bases em determinantes psicológicos, sociais e da tomada de decisão por parte do consumidor. Nas décadas entre 1960 e 1980 outras linhas de pesquisa foram investigadas como os estudos de lealdade à marca, utilização do método de experimentos, comportamento de compra familiar, rituais e simbolismo e o impacto da religião no comportamento de compra do consumidor (PINTO e LARA, 2007). Contudo uma maior preferência por pesquisas qualitativas inicia-se na década de 1980 e na década seguinte ocorre o desenvolvimento do marketing de relacionamento no qual as discussões mais relevantes são no âmbito de atitudes dos consumidores, relações pessoais, tendências de comportamento bem como outros fatores sócio-culturais e ambientais. Mas é somente na década de 2000 que as pesquisas voltadas as experiências sensoriais, afetivas, cognitivas, físicas e sociais ganham maior destaque (PINTO e LARA, 2007). O estudo de comportamento do consumidor pode ser definido segundo Engel, Blackwell e Miniard (2005), como sendo a atividade com que as pessoas se ocupam quando obtém, consomem e dispõem de produtos e serviços, mas também pode ser definido como um campo de estudo que foca nas atividades do consumidor. Buscar entender e conhecer mais profundamente o consumidor bem como identificar como é o seu comportamento de compra, é um processo complexo e difícil por se tratar de uma variedade de fatores multifacetados. Os pesquisadores ávidos por uma síntese que represente a realidade utilizam os chamados modelos de estrutura simplificada apresentados por autores da área (KARSAKLIAN, 2000). Nesse sentido, na busca de entender como se comportam os consumidores antes, durante e depois da compra, foram desenvolvidos e incessantemente estudados pelos profissionais de marketing, alguns modelos que procuram organizar a complexidade de variáveis de compra e consumo em algumas etapas como os modelos de Nicosia, Howard-Sheth, Engel, Kollat e Blackwell (GIGLIO, 2002). Em um estudo crítico realizado por Goldsteinn e Almeida (2000) referente os modelos acima citados, incluindo, ainda, o modelo de Sheth-Newman-Gross, foram apresentados e analisados os chamados modelos integrativos – explicativos, pois possuem o objetivo de descobrirem as razões que levam os consumidores a tomarem uma decisão entendendo o seu raciocínio e, de forma geral, explicarem o consumo como um processo de tomada de decisão que leva em consideração várias etapas e suas relações. Concluíram, Goldsteinn e Almeida (2000), que estes modelos, na sua maioria, não oferecem forte predição, mas contribuem para a compreensão ao processo de tomada de decisão do consumidor. Dos modelos mencionados, o de Engel, Blackwell e Miniard, (2005) é o mais conhecido e foi baseado na premissa de que para fazer escolhas, o consumidor percorre algumas etapas e que segundo os autores são: a) Reconhecimento da necessidade: ocorre quando o indivíduo sente a diferença entre o que perceber ser o ideal versus o estado atual das coisas. Os consumidores compram quando acreditam que a habilidade do produto em solucionar problemas vale mais que o custo de comprá-lo; b) Busca de informações: uma vez que ocorre o reconhecimento da necessidade, os consumi448

Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster, Flávio Régio Brambilla

dores começam a buscar informações e soluções para satisfazer as suas necessidades não atendidas. A busca pode ser interna, recuperando o conhecimento na memória ou, talvez nas tendências genéticas, ou ela pode ser externa, coletando informações entre os pares, familiares e no mercado; c) Avaliação de alternativa pré-compra: neste estágio, os consumidores buscam resposta para questões como “Quais são as minhas opções?” e “Qual é a melhor entre elas?” quando comparam contrastam e selecionam a partir de vários produtos ou serviços; d) Compra: depois de se decidir sobre a compra, os consumidores passam por duas fases. Na primeira eles escolhem um vendedor em vez de outro (ou qualquer outra forma de varejo como catálogos). A segunda fase envolve escolhas dentro da loja influenciadas pelo vendedor, pelas vitrines, meios eletrônicos e propagandas no ponto-de-venda; e) Consumo: feito a compra e tomada a posse do produto, o consumo pode ocorrer tanto imediatamente como num momento posterior; f) Avaliação pós-consumo: o consumidor experimenta a sensação de satisfação ou insatisfação. A satisfação ocorre quando a performance percebida confirma ou ultrapassa as expectativas dos consumidores; quando experiências e performance frustram expectativas, a insatisfação ocorre. As emoções desempenham papel na avaliação de um produto ou transação; g) Descarte: é o último estágio no modelo do processo de decisão do consumidor. Os consumidores têm várias opções, incluindo descarte completo, reciclagem ou revenda. De acordo com o modelo de Engel, Blackwell e Miniard, (2005), a escolha de como, o que e quando consumir inicia antes mesmo do ato da compra sendo que, as experiências anteriores, as emoções e as informações de amigos ou parentes irão influenciar o consumidor neste processo de escolhas (GIGLIO, 2002). Portanto, observa-se que aspectos tanto internos como externos ao consumidor irão agir influenciando sua decisão de compra. As influências que afetam o processo de compra foram catalogadas em quatro principais: culturais, sociais, pessoais e psicológicos, mas os fatores culturais são os que exercem a mais ampla e profunda influência sobre os consumidores (KOTLER e KELLER, 2006). Como já mencionado na Introdução, este artigo não discutirá aspectos sociais, pessoais e psicológicos; o foco centra-se no aspecto cultural, o qual abarca elementos tangíveis e intangíveis que direta ou indiretamente levam o consumidor a assumir determinados comportamentos que culminam na decisão de compra dos produtos e/ou serviços. A seguir se discute sobre as o aspecto cultural como agente de ação no processo de decisão de compra.

Influências da cultura processo de decisão do consumidor De acordo com Engel, Blackwell e Miniard (2005), a cultura afeta a forma como os consumidores avaliam o seu padrão de vida, a maneira como eles buscam informações, a avaliação quanto o preço versus qualidade, o estilo de negociar e a forma como eles descartam seus produtos. Portanto, o consumidor ao tomar uma decisão recebe influências por diversos fatores determinantes: as diferenças 449

IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

individuais, as influências ambientais e os processos psicológicos. A cultura encontra-se dentro das influências ambientais e refere-se a um conjunto de valores, artefatos, ideias e outros símbolos significativos que auxiliam na comunicação, na interpretação e na validação destes indivíduos como pertencentes de uma sociedade, sendo assim, elementos abstratos e materiais fazem parte dela como, por exemplo, símbolos que pode ser o de um país, como é o caso do Carnaval símbolo da cultura brasileira (ENGEL, BLACKWELL e MINIARD, 2005; HOFSTEDE, 1991 apud GIRALD e IKEDA, 2007). Pelo fato da cultura exercer influência sobre as respostas do grupo ao seu ambiente, muitas áreas buscam defini-la. A antropologia define a cultura como sendo um padrão de pensar, sentir e reagir de um conjunto de pessoas que é adquirido e transmitido por símbolos representativos das idéias e dos valores grupais. Apesar de muitos autores conceituarem cultura de formas diferentes, existe uma concordância entre eles de que no centro da cultura estão os valores e são eles que, freqüentemente, definem e distinguem uma cultura da outra, portanto, os valores pessoais e estilo de vida são variáveis importantes que influenciam as decisões de compra dos consumidores (HOFSTEDE 1991 apud GIRALD e IKEDA, 2007,; SILVEIRA, KEISERMAN, CASTILHOS e GAVRONSKI, 2006; ANÃNÃ e NIQUE, 2008). Analisar os efeitos dos valores humanos no comportamento de consumo significa explorar as variáveis mais intrínsecas de uma pessoa. Estes, bem como o estilo de vida são variáveis importantes que revelam o modo como as pessoas se apresentam para si e para os demais, mas podem também serem assumidos de forma distinta conforme o seu contexto sociocultural (GOUVEA, 2003; TORRES e PAIVA, 2007). Muitos estudos sobre a temática da cultura têm sido utilizados por acadêmicos e estudiosos de diversas áreas do conhecimento e apesar da sua importância existem preocupações em relação ao rigor das investigações nesta área de pesquisa. Além do já mencionado, estudar a cultura é fundamental para auxiliar as empresas nacionais e as internacionais a identificarem novos consumidores bem como ganharem vantagem competitiva perante a concorrência, visto que ela atua nas fronteiras do comportamento humano, com implicações no modo como os produtos/serviços são consumidos nacionalmente e internacionalmente (TORRES e PAIVA, 2007; DUNNING, 1997 apud LENARTOWICZ e ROTH, 1999). A cultura se expressa por meio dos objetos materiais, possessões, idéias e atitudes assim como os padrões de comportamento que podem ser regulares ou não (RARO, apud 1994 DATO-ON, 2000). Tratando-se de características culturais entre países, Torres e Paiva (2007) investigaram o Brasil e Austrália e dentre as descobertas, destacou-se que existe uma correlação da cultura com o comportamento do consumidor. Os resultados revelaram que os brasileiros são muito mais coletivistas do que os Australianos que por sua vez são mais individualistas. A reação de clientes de diferentes culturas em relação às situações da recuperação da falha do serviço foi estudada por Matos e Rodrigo, (2008), os quais realizaram uma comparação entre Brasil e França. Uma das diferenças entre os países foi que o Word-of-mouth dos brasileiros era mais dependente de seu nível de satisfação do que os franceses. Uma razão possível é que os brasileiros por serem mais coletivistas são mais inibidos para acoplar um processo de reclamação formal do que os franceses que são mais individualistas e mostraram propensão maior em queixar-se.

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As pesquisas realizadas entre Brasil-Austrália e Brasil-França, certamente indicam que diferentes padrões culturais afetam o comportamento de compra, refletindo no perfil de consumo, na escolha dos atributos elegíveis pelos consumidores, na intenção e nos hábitos de compra (DE MOOJI apud TORRES e PAIVA, 2007). Em razão dos valores culturais serem a base do comportamento das pessoas é que, empresas que preconizam o seu crescimento no mercado global, devem entender profundamente da cultura e das suas influências. Entretanto, torna-se importante observar, analisar e avaliar as diferenças culturais, de forma a adequar seus produtos e serviços a partir dos padrões de comportamento dos consumidores em cada país (TORRES; PAIVA, 2007). Sobretudo, a influência da cultura, através dos valores pessoais, afeta também a avaliação dos consumidores sobre produtos estrangeiros. A imagem que estes consumidores possuem dos países de origem em relação os produtos desejados devem ser analisados pelos profissionais de marketing (GIRALD; IKEDA, 2007) Portanto, antes de uma empresa prospectar-se num mercado culturalmente diferente é importante que seja observado o contexto cultural, analisar os relacionamentos, os códigos de comunicação, a linguagem, os hábitos de compra, de consumo e de negociação, bem como todos os envolvidos no processo de decisão de compra (KARSAKLIAN, 2000). Lenartowicz e Roth (1999) compartilham desta assertiva e indicam que compreender a natureza e as influências da cultura é fundamental para negócios internacionais e ressaltam que os progressos na compreensão de influências culturais serão prejudicados se o campo de pesquisa continuar a equiparar simplesmente cultura com as fronteiras nacionais. Segundo Cleveland e Laroche (2007) a globalização está oportunizando a interação entre cultura e mercado. As empresas globais necessitam de produtos e marcas globais e para tanto precisam conhecer as mais profundas influências que agem no comportamento do consumidor. A interação da cultura relacionada ao comportamento dos consumidores foi estudada sob várias perspectivas sendo que nas últimas décadas surgiram duas maneiras de investigar (CARK, apud1990DATO-ON 2000): a) Abordagem empírica, a qual examina a validade das teorias atuais do comportamento do consumidor e o que se conhece quando aplicados a outras culturas; e b) Abordagem interpretativa, a qual se tenta traduzir as razões e os sentidos do consumidor em outras culturas.

Pesquisas apontam, segundo Dato-on (2000), que a mudança de uma cultura para outra, interfere nos padrões de consumo das pessoas e argumenta que as forças poderosas das tecnologias, transporte e comunicações impulsionam o mundo de tal maneira que não existe nenhuma cultura verdadeiramente isolada hoje em dia. Isso nos leva a pensar que mesmo em países distintos, os consumidores podem ser, de alguma forma, acessados ou melhor influenciados a adquirir produtos e serviços de outros países. Com a globalização e a tecnologia da informação não tivemos apenas os limítrofes fronteiriços físicos extinguidos, mas uma abertura completa ao acesso de todo e qualquer mercado do mundo seja físico ou virtual, desvendando formas diferentes de comportamento, produtos e serviços inovadores, enfim uma gama extensa de informações acerca dos países. Isso de alguma forma pode nos levar a aculturarmos e, consequentemente, alterar padrões de compra, perfis de consumo e intenção de compra. Portanto, se falará sobre aculturação a seguir.

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IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

Aculturação O processo de mudança cultural envolve duas dimensões diferentes, a primeira dimensão da aculturação inclui aprendizagem dos padrões culturais da sociedade que ingressa, pois a aculturação pode envolver mudanças nos padrões de comportamento tais como a linguagem falada, a culinária típica da região, a forma como os consumidores compram produtos e serviços.A segunda dimensão chamada de identificação étnica que é o fato de manter a identidade étnica da cultura nativa. (LAROCHE et al., 1996 apud; DATO-ON, 2000; WALLENDORF e REILLY 1983). De acordo com os estudos de Dato-on (2000), quando as pessoas se deslocam de uma cultura para a outra podem ocorrer alterações no seu estilo de vida mas também na esfera educacional e profissional. A aculturação mostra as mudanças nas atitudes, valores ou comportamento dos membros de um único grupo cultural na medida em que eles vão adotando o padrão de outro grupo da cultura do país que o recebeu. A cultura do consumidor reflete o componente do processo total de aculturação relacionado com comportamentos, valores ou atitudes de consumo relevantes (LEE 1989 apud DATO-ON 2000). Schiffman, Dillon e Ngumah (1986) discorrem que em termos genéricos o processo social pelo qual mudanças culturais e sociais acontecem através de contatos pessoais entre povos que pertencem a diferentes culturas é chamado de aculturação. Entretanto, referindo-se aos estudos de comportamento de consumidor, a aculturação poderia ser vista como um processo através do qual os indivíduos originários de uma cultura adquirem ou obtém através de uma exposição direta os valores relevantes em relação ao consumo, ou as crenças e costumes ou hábitos de uma cultura de outro país. Conforme Perry (2008) a aculturação ocorre quando uma pessoa incorpora elementos de outra cultura na sua cultura nativa. O estudo da aculturação é focalizado, principalmente, no campo da antropologia, no entanto, contribuições significativas também são encontradas em outras disciplinas das ciências sociais como a psicologia e sociologia (PAÑALOZA, 1994). Embora a aculturação tenha sido definida sob diferentes perspectivas em várias disciplinas, (OLMEDO 1979 apud OWNBEY e HORRIDGE, 1997), os valores, ideologias, crenças e atitudes, parecem ser componentes universais e importantes bem como as características comportamentais e cognitivas tais como a linguagem, costumes e práticas (CUELLAR, HARRIS e JASSO apud OWNBEY e HORRIDGE, 1997). Phinney apud Cleveland e Laroche, 2007 sustenta que o fortalecimento de uma cultura requer o enfraquecimento da outra. Gordon (1964) e Berry (1980) apud Panãloza (1994), conceitualizaram a assimilação de uma cultura como uma das maneiras da aculturação. Outro desenvolvimento no estudo da aculturação foi o reconhecimento de que ela acontece simultaneamente no nível do indivíduo e do grupo mostrando assim que as diferenças individuais em relação às motivações e às experiências tornam-se questões tão importantes quanto as diferenças em relação às circunstâncias do grupo cultural (BERRY, 1980 apud PANÃLOZA, 1994 ) Dato-on (2000) em seu estudo tratou da revisão da literatura referente à aculturação e consumo, tendo como os temas mais pesquisados até o ano de 1999 os seguintes: a) Estudos gerais sobre cultura e marketing; b) A influência do grupo e da família, influências e características inovadoras; c) A etnicidade e a própria identidade; d) A realidade de consumo e a exposição à mídia massiva; e) Significado cultural dos bens de consumo e o simbolismo; f) Transição da identidade e a reestruturação dos papeis; g) A interpretação das diferenças culturais e indícios externos (Cross-cultural); h) Comunicação e consumo; i) Materialismo; e j) Assimilação e Aculturação. 452

Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster, Flávio Régio Brambilla

O interesse por estudos de aculturação vem aumentando na medida em que a globalização, de certa forma, força uma mudança no cenário cultural global. Procurar entender o comportamento do consumidor sob a ótica de uma segmentação internacional, através de uma perspectiva econômica, social, cultural e outros elementos do ambiente do marketing foi o objetivo da pesquisa realizada por Cleveland e Laroche (2007). Observa-se que mediante a tendência da expansão de mercado que objetivam as organizações, as questões culturais devem ser foco de análise a avaliação, pois vão influenciar nos resultados gerais da empresa, ou seja, na performance que esta terá. Trata-se de um desafio em função de se lidar com elementos muitas vezes subjetivos e abstratos, mas para analisar a cultura deve-se perpassar por estes aspectos.

Metodologia Tendo o objetivo de refletir acerca da influência da cultura no comportamento de compra do consumidor, este estudo classifica-se como um estudo bibliográfico e exploratório. A pesquisa bibliográfica, segundo Prodanov (2009, p. 68) estrutura-se a partir de “[...] material já publicado, constituído principalmente de: livros, revistas, publicações em periódicos e artigos científicos, jornais, boletins, monografias, dissertações, teses, material cartográficos, internet [...]”. O material utilizado no trabalho foi extraído de livros e artigos científicos. Pelo fato de se propor a refletir acerca da influência exercida pela questão cultural na decisão de compra do consumidor, este estudo classifica-se também como exploratório, uma vez que busca “[...]

aprimoramento de idéias...” (GIL, 2002, p.41). Esse aprimoramento passa pelo crivo da análise de material já existente, ou seja, do que já foi falado e pesquisado da temática.

Conclusão Este estudo teve como objetivo refletir acerca da influência da cultura no comportamento de compra do consumidor e pode-se observar que o aspecto cultural requer atenção profunda por parte das organizações no sentido de compreender a cultura do público escolhido, seja esta local, regional ou nacional. A cultura é um agente de ação exercendo poder sobre os padrões de comportamento dos consumidores. Percebe-se a preocupação da academia em ampliar os estudos relacionados ao consumidor e a sua interação com outras culturas principalmente, no que tange a área de construção de escalas confiáveis para medir a aculturação do consumidor nos diversos países do mundo. A aculturação tem sido vista como uma característica mundial que vem aumentando à medida que a globalização facilita a circulação e a adaptação de marcas globais. Vendo sob uma perspectiva global, Belk (1996) relata que a música é cada vez mais world music, a comida é cada vez mais internacional, a moda e os estilos recebem influências no mundo inteiro. As empresas podem e devem se utilizar de estratégias para penetrarem nos mercados globais desde que observem as características regionais. Existem muitas considerações estratégicas a serem feitas e, principalmente, a respeito de apro453

IMPLICAÇÕES DA CULTURA E DA ACULTURAÇÃO NO COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

fundar o conhecimento sobre o comportamento de compra do consumidor global e nos estudos bibliográficos realizados nesta pesquisa. Sugere-se para estudos futuros o aprofundamento do fator cultural a partir da ótica global no sentido de desvendar a influência da cultura como agente de ação no consumidor global.

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Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster, Flávio Régio Brambilla

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Maria Regina D’Ambrosi da Silva Uster * (UNILASALLE) Flávio Régio Brambilla ** (UNILASALLE)

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GESTÃO EM ARQUEOLOGIA

Rafaela Nunes Ramos*

Introdução Através deste trabalho, pretende-se desenvolver um estudo de caso o qual objetiva evidenciar a relevância da utilização de métodos de preservação da cultura material, e de suas informações, tendo em vista que esta é responsável pela constituição do patrimônio cultural, é carregada de sentido memorial, e, sendo assim, possui características documentais, as quais são utilizadas para a construção da história de determinados povos. O local de estudo desta pesquisa, o sítio PS-03 Totó, está situado na margem Sudoeste da Laguna dos Patos, no balneário da praia do Totó, município de Pelotas, Rio Grande do Sul. Encontra-se junto à estrada que liga a comunidade do Barro Duro à colônia de pescadores Z3 (ALVES, 2010), localizando-se precisamente na foz do arroio Totó (sendo cortado por ele), de forma que são encontrados materiais arqueológicos na sua margem em processo de impactação (MILHEIRA, 2008) (figura 01). A identificação desse sítio se deu no âmbito do Projeto de Mapeamento Arqueológico de Pelotas e Região (PROMAPRE), o qual visa à realização de levantamentos sistemáticos dos sítios arqueológicos na área em questão, com o intuito de dar maior visibilidade à diversidade de culturas que ocuparam a região pesquisada, que inclui os primeiros caçadores-coletores, os construtores de Cerritos, os horticultores Guarani, os colonizadores ibéricos, os cativos africanos e os diferentes imigrantes europeus que chegaram ao Brasil a partir do século XIX (LEPAARQ, 2005). O sítio em questão sofreu três intervenções arqueológicas, duas no ano de 20071 e uma em 2010. No entanto, como o material utilizado para esta pesquisa é proveniente da escavação ocorrida no ano de 2010 (entre os meses de Março e Setembro), será exposto neste trabalho apenas os dados referentes a esta última campanha.

Intervenção arqueológica e os procedimentos de gestão direcionados à cultura material O trabalho arqueológico sucedido no ano de 2010 desenvolveu-se em uma superfície ampla (figura 02), com 72m², dividida em 72 quadrículas de 1m², as quais foram abertas “utilizando como limites da escavação a estrada que corta o sítio ao meio (oeste), as áreas de mata (a norte e sul) e a área escavada na campanha de 2007 (leste)” (ALVES, 2010, p.65). A técnica de escavação utilizada caracteriza-se pelo método de decapagem ou escavação em superfície ampla, a qual representa a interferência horizontal das camadas e perfis evidenciados verticalmente pelas trincheiras, sondagens e poços teste escavados no solo (PALLESTRINI; MORAIS,

GESTÃO EM ARQUEOLOGIA

1980). Através disso, tem-se por objetivo o registro tridimensional de todos os vestígios escavados, incluindo as continuidades e descontinuidades verificadas no registro arqueológico, ou seja, tendo como finalidade o entendimento da contemporaneidade, funcionalidade e cronologia dos eventos presentes no registro arqueológico (ALVES, 2010).

Figura 01: Mapa de Localização do Sítio PS-03 Totó. Fonte: Alves (2010).

Figura 02: Área escavada em superfície ampla. Fonte: Ramos (2012).

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Através da arqueologia pode-se entender a dinâmica social por meio da cultura material, pois esta: (...) está sempre presente na vida humana. Nascemos, crescemos e morremos interagindo com as mais diversas materialidades, criadas dentro de diferentes propósitos: são as estruturas, objetos e modificações que compõem os nossos espaços de lazer, trabalho, moradia, entre inúmeras outras possibilidades. A cultura material é tudo aquilo que é produzido ou modificado pelo ser humano, ou seja, tudo aquilo que faz parte do cotidiano da humanidade (...) (FUNARI; CARVALHO, 2009, p. 2).

Os objetos arqueológicos são bens culturais que trazem um potencial imenso de informações. A partir do momento em que eles são coletados em campo, ou retirados de seus contextos, uma vasta documentação começa a ser formada. O próprio sítio é um objeto arqueológico, as relações espaciais entre os objetos no sítio também (FROEHLICH, 1994). Daí, a importância da documentação referente à intervenção arqueológica (que é sempre um processo destrutivo), bem como da preservação dos dados e da integridade dos vestígios (BRAGA, 2001). Além dos vestígios culturais, o registro arqueológico referente à escavação também é importante para o entendimento das relações sociais estudadas pela arqueologia. Nesse sentido, o registro arqueológico acurado e o gerenciamento das informações geradas com esse processo são essenciais. O objetivo principal da intervenção arqueológica é evidenciar os vestígios culturais e os contextos onde eles se encontram, e para isso acontecer é necessário o registro detalhado dos procedimentos de escavação e dos contextos onde os materiais foram encontrados, pois, essa é uma das etapas cruciais para posterior análise dos vestígios arqueológicos (KIPNIS, 2003). Durante esta campanha arqueológica, foram utilizados como métodos de gestão da cultura material registros fotográficos de diferentes contextos, desenhos de croquis de áreas de atividade, gerenciamento das informações através da aplicação de um protocolo de registro de coleta dos materiais, coletas diferenciadas de materiais para datações absolutas e análises de sedimentos, bem como foram feitos ainda in situ procedimentos voltados à conservação dos achados. O protocolo de registro de materiais arqueológicos é composto por cinco fichas descritivas, as quais possibilitam a preservação de informações importantes para o registro arqueológico. A primeira ficha é responsável pelo controle de quadrícula, nela são registradas informações gerais sobre determinada quadra, tais como: nome do responsável pela escavação da quadrícula; o número da quadra; o nível do solo que está sendo escavado. A segunda ficha possibilita o registro espacial das peças. Na terceira ficha do protocolo pode-se registrar o volume escavado de cada nível do solo que sofreu intervenção. A quarta ficha possibilita o registro de informações específicas a respeito das camadas do solo escavadas; dos materiais encontrados; das amostras coletadas para futura análise, entre outras. E a última ficha é um formulário de descrição de fotografia, no qual são preenchidas informações acerca das fotos que foram tiradas ao longo da escavação. A partir deste protocolo, os vestígios escavados foram registrados individualmente segundo suas coordenadas. Foram também registradas as suas orientações, em relação aos pontos cardiais, bem como a inclinação em que os materiais estavam no solo no momento da intervenção. Isso, utilizando-se sempre essas fichas para armazenar as informações (figura 03), visto que o principal objetivo de sua criação foi exclusivamente a elaboração de uma documentação institucional detalhada, com 459

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informações padronizadas para realização de análises posteriores. Os materiais escavados receberam etiquetas individuais com informações contextuais, isto é, em relação ao sítio, à quadrícula, ao número de peça, ao nível do solo onde foram encontrados, às coordenadas, à orientação e inclinação, assim como a data da coleta, nome do responsável pela coleta, e se foram aplicadas técnicas de conservação arqueológica a eles.

Figura 03: Protocolos de coleta agrupados de acordo com as quadrículas escavadas. Fonte: Ramos (2012).

Em relação aos processos de conservação arqueológica in situ, pode-se dizer que, como afirma Lorêdo (1994), mesmo que o principal objetivo do arqueólogo no exercício de sua pesquisa de campo não seja o da conservação, ao se expor os materiais a condições diferentes, perturba-se o equilíbrio estabelecido entre estes e o contexto onde se encontravam, acelerando-se, assim, o processo de deterioração do material. Desta sorte, foram realizadas, pela coordenação de campo, juntamente com outros pesquisadores que participaram dessa escavação, discussões e levantamentos bibliográficos sobre o assunto. Buscou-se assim, caracterizar informações referentes às fragilidades e especificidades dos diferentes vestígios arqueológicos; das condições do terreno e a influência das variações ambientais; das metodologias de estabilização e consolidação dos artefatos; bem como questões ligadas ao armazenamento, transporte e acondicionamento dos mesmos (ALVES, 2010). Nesse sentido, poucos materiais passaram pelo processo de limpeza mecânica a seco, com pinceis em campo, procurando-se assim, manter as potenciais informações contidas nos sedimentos associados aos objetos. A partir dessa decisão, buscou-se minimizar a mudança brusca de estado físico, mantendo a umidade da peça por um período mais prolongado, tendo o cuidado para que essa fosse eliminada vagarosamente por orifícios presentes nas embalagens onde estavam armazenados, como 460

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forma de evitar proliferações de fungos, bactérias, entre outros. A intervenção através da consolidação de materiais em campo (figura 04) foi mínima, ocorrendo apenas para garantir a estabilidade dos vestígios quando as suas condições físicas encontravam-se muito fragilizadas (fragmentos cerâmicos trincados, materiais ósseos extremamente fragilizados). A partir da revisão bibliográfica, discussão coletiva e alguns testes em materiais recentes, a equipe optou em realizar uma mínima intervenção nos vestígios coletados, onde a aplicação dos consolidantes seguiu critérios que obedeceram as características tipológicas, de fragilidade e umidade dos fragmentos, exceção em contextos onde foram efetuadas coletas para a realização de datação por radiocarbono e/ou sedimento, por não termos claro as possíveis contaminações desses produtos nas amostras (ALVES, 2010, P.68).

Figura 04: Consolidação de material (concentração de ossos fragilizados) in situ (a partir da substância primal 10%/água destilada), sua retirada do solo e acondicionamento. Fonte: Ramos (2012).

Em termos de acondicionamento, após terem todas as devidas informações registradas no protocolo de coleta, os materiais escavados foram acondicionados em embalagens plásticas com pequenos orifícios para que se evitasse a criação de um microclima no seu interior com proliferação de fungos, bactérias, etc. Dentro dessas embalagens plásticas, juntamente com o material arqueológico, foram adicionadas etiquetas com dados do sítio e do contexto arqueológico de onde os materiais foram retirados (figura 05). Após esse processo, o materiais embalados foram agrupados e colocados em outras embalagens com identificação das quadrículas e dos níveis de onde esses vestígios foram retirados. A separação do material foi feita já em campo, facilitando assim o processamento posterior do material em laboratório. 461

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Figura 05: Materiais arqueológicos sendo acondicionados em embalagens plásticas juntamente com etiquetas informativas. Fonte: Ramos (2012).

Os processos curatorias dos vestígios culturais desenvolvidos em laboratório Ao chegarem no LEPAARQ, os materiais arqueológicos foram acondicionados em caixas de arquivo provisórias, e, antes de começar a limpeza destes, os protocolos de coleta (utilizados na escavação para registro de informações) foram digitalizados. Isso facilitaria a inclusão posterior de novos dados gerados a partir da numeração das peças e de outras atividades realizadas ao longo do processamento destas em laboratório. O primeiro passo, após os protocolos de campo serem digitalizados, consistiu em separar os materiais de acordo com a sua tipologia e prepará-los para a higienização. A maioria desse material foi limpo através de água corrente (figura 06), todavia, alguns objetos não passaram direto pelo processo de higienização com água, mas sim, primeiro, pela limpeza mecânica a seco com escovas de dente e pincéis.

Figura 06: Higienização de um fragmento de cerâmica Guarani pintada. Fonte: Ramos (2012).

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Isso ocorreu com alguns materiais que estavam com sedimentos e concentrações de outros vestígios incrustados em sua superfície. Optou-se, então, por retirar esses sedimentos dos materiais e guardá-los para a possibilidade de uma futura análise química dos componentes ali encontrados. Para a secagem dos materiais, foram utilizadas peneiras (figura 07), em que estes foram agrupados e receberam etiquetas contendo informações de procedência (contexto arqueológico). Quando os vestígios se encontravam secos, iniciava-se o procedimento de numeração das peças, gerando por conseguinte o inventário. A numeração dos materiais seguiu de forma tripartida, de acordo com a metodologia padrão desenvolvida no LEPAARQ. Cada peça recebeu três números de identificação, ou seja, o número do catálogo do sítio, o numero correspondente ao local de onde o vestígio foi exumado em campo, e o número da peça em si, dentro de determinado catálogo (figura 08). Utilizou-se para a aplicação dos números nos materiais uma camada de esmalte incolor em um local que não pudesse prejudicar a análise posterior da peça. Assim que o esmalte secava, eram aplicados os números com caneta nanquim preta ou branca, dependendo da coloração do material. Porém, alguns objetos não tiveram os números inscritos em sua superfície. Foi o caso de materiais muito pequenos ou com formas que impossibilitassem essa ação. Nesse caso, o número de inventário foi escrito na etiqueta que posteriormente seria adicionada ao vestígio na hora da sua guarda.

Figura 07: Materiais arqueológicos secando nas peneiras. Fonte: Ramos (2012).

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Figura 08: Em destaque a numeração tripartida inscrita na peça. Fonte: Ramos (2012).

Após o inventário, o material foi guardado (de acordo com a sua tipologia e sequência de inventário) em sacos plásticos juntamente com etiquetas contendo as informações de campo. Em seguida, este foi acondicionado em novas caixas de arquivo e transferido para a área de análise do laboratório. Uma vez o material inventariado e numerado, este passa para a etapa de análise, e depois é acondicionado de forma definitiva na reserva técnica. Posterior a isso procede-se a sistematização das informações do sítio, da intervenção arqueológica, e também do material resgatado com a intervenção, em um banco de dados digital2. Contudo, a cultura material do sítio PS-03 Totó ainda não foi acondicionada de forma definitiva na reserva, esta permanece ainda na área de análise do laboratório (figura 09), pois ainda não passou por todas as etapas de análise.

Considerações finais A conservação científica é uma disciplina relativamente nova nos museus, contudo já aponta como uma das responsabilidades mais fundamentais de uma instituição (WARD, 1986). O trabalho com o acervo deste sítio Guarani ainda está em desenvolvimento, pois faz parte do projeto de mestrado da autora deste artigo, o qual está sendo desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas. Este projeto intitula-se “Gestão de Acervos Aplicada à Arqueologia: Reflexões Desenvolvidas a partir do Tratamento Dedicado à Cultura Material Oriunda do Sítio Guarani PS-03 Totó – Pelotas – RS” e está em fase de conclusão. Por meio desta pesquisa, conclui-se que uma das missões do conservador é conscientizar o público sobre a importância da conservação (BRAGA, 2001), pois quando é negligenciada a gestão 464

Rafaela Nunes Ramos

dos materiais provenientes das escavações, pode ser deturpado o desenvolvimento da pesquisa arqueológica por perda de informação. Segundo Orser (2000), deve-se considerar que a arqueologia é um processo destrutivo. Parte do sítio que sofre intervenção deixa de existir, desta maneira, os pesquisadores recuperam um conjunto de informação contextual. Se as informações que os achados carregam, em si e no seu contexto, não forem registradas (e gerenciadas) de forma adequada, as mesmas serão perdidas de forma irreversível, daí tratar-se de um patrimônio frágil. Portanto, os arqueólogos têm o dever de desenvolver as intervenções nos sítios de maneira minuciosa e tratar os artefatos encontrados com o maior dos cuidados. Partindo destas constatações, torna-se evidente a relevância da utilização de métodos para a preservação da cultura material, e de suas informações, tendo em vista que ela é responsável não apenas pelo desenvolvimento de estudos arqueológicos e museológicos, mas também pela constituição do patrimônio histórico e cultural.

Figura 09: Exemplos de como os materiais são dispostos na área de análise: Na parte superior da figura, à esquerda, fauna; à direita, materiais cerâmicos. Na parte inferior, à esquerda, lítico; à direita, materiais líticos separados para registro fotográfico. Fonte: Ramos (2012).

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GESTÃO EM ARQUEOLOGIA

REFERÊNCIAS ALVES, A. G. Arqueologia Guarani em uma Aldeia no Litoral Sudoeste da Laguna dos Patos, Sítio PS-03 Totó. 2010. 152 f. Memorial de Qualificação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. BRAGA, Gedley Belchior . A Conservação das Coleções do MAE/USP. In:______ Eduardo Góes Neves; Erika M. Robrahn-González; Paulo De Blasis. (Org.). Brasil 50 mil anos: Uma viagem ao Passado Pré-Colonial. São Paulo - SP: MAE/USP / EDUSP, 2001, v. 1, p. 59-69. FROEHLICH, A. Conservação de materiais arqueológicos. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade, número 52. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1994. FUNARI, P. P.; CARVALHO, A. V. Cultura material e patrimônio científico: discussões atuais. In: II Seminário Internacional - Cultura Material e Patrimônio da Ciência e da Tecnologia - Mast, 2009, Rio de Janeiro. Cultura Material e Patrimônio da Ciência e da Tecnologia. Rio de Janeiro : MAST, 2009. v. 1. p. 1-13. KIPNIS, R. Protocolo de Campo: Escavação. São Paulo: Universidade de São Paulo, Instituto de Biociências, Departamento de Biologia, Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, 2003. LABORATÓRIO DE ENSINO E PESQUISA EM ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA (LEPAARQ). Projeto de mapeamento arqueológico de Pelotas e Região (São Lourenço do Sul, Capão do Leão, Morro Redondo, Turuçu e Arroio do Padre). 2005. 12f. Projeto de Pesquisa. Instituto de Ciências Humanas - Universidade de Federal de Pelotas, Pelotas. LORÊDO, W. M. Manual de Conservação em Arqueologia de Campo. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, Departamento de Proteção, 1994. MILHEIRA, R. G. Um Modelo de Ocupação Regional Guarani no Sul do Brasil. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 18:19-46, 2008. ORSER, C. E. Introducción a La Arqueología Histórica. Tradução e Prólogo: Andrés Zarankin; Revisão à versão em Espanhol: Maria X. Senatore. Buenos Aires: AINA, 2000. PALLESTRINI, L.; MORAIS, J. L. Arqueologia Pré-Histórica Brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo. Museu Paulista, Fundo de Pesquisas, 1980. RAMOS, R. N. Gestão de Acervos Aplicada à Arqueologia. : Reflexões Desenvolvidas a partir do Tratamento Dedicado à Cultura Material Oriunda do Sítio Guarani PS-03 Totó – Pelotas – RS. 2012. 96 f. Qualificação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, da Universidade Federal de Pelotas (Não publicada). WARD, P. 1989. The Nature of Conservation - A Race Against Time. Marina dei Rey - California, The Getty Conservation Institute. Second edition, 1989.

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(Endnotes) 1

Ver detalhes em Milheira (2008).

2

Essa ferramenta metodologica de gestão tem como principal função a organização e a gestão das informações relativas ao material arqueológico sob a guarda do laboratório. Esta permite, basicamente, o registro de sítios arqueológicos com base nos formulários do IPHAN; registro de doação de material arqueológico; inventário de peças arqueológicas em formulários específicos; controle da reserva técnica com localização de peças por caixa; controle da movimentação do acervo arqueológico; cruzamento de dados com geração de tabelas e gráficos; consulta de dados; entre outras funções.

*Licenciada em História pela Universidade Federal de Pelotas; mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas; bem como pesquisadora associada ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (LEPAARQ/ UFPel)

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NOÇÕES SOBRE A GESTÃO DA CULTURA E MARKETING CULTURAL

Flávio Régio Brambilla*

Introdução: Cultura e Gestão Como não poderia ser diferente, o presente estudo começa por definir cultura, numa perspectiva interdisciplinar, com influência dos preceitos da cultura no contexto corporativo. A cultura, independente do contexto, representa uma atividade com influência direta nas relações entre as pessoas. Kotabe e Helsen (2000) mencionam que a cultura está relacionada com a aprendizagem, e que seu resultado serve como referência para as ações aceitas como adequadas perante uma sociedade. Ainda para os autores, a cultura extrapola a questão da diversão e entretenimento, atuando como um tipo de mecanismo que mantém unidade social, o que viabiliza a convivência. A cultura, seja ela da vida diária ou do contexto capitalista da empresa, representa uma série de “modos de vida criados por um grupo de seres humanos”, quais são transmitidos ao longo do tempo, e que irão perdurar das gerações atuais para as vindouras, como permanecem desde os ancestrais da atual geração (KEEGAN, GREEN, 2000, p.92). Ainda que a cultura represente a ligação do passado, presente, e oriente ao futuro, há que se reconhecerem as mudanças naturais sofridas. Cultura conceitualmente incorpora atitudes, crenças e valores, bem como o modo de agir e pensar das pessoas diante da coletividade vinculada (em seu bairro, na cidade, no país). Bohlander, Snell e Sherman (2003) atentam para influência deste elemento nas relações de trabalho, quais interagem com o meio. O contexto do trabalho é como um espelho social, onde as práticas sociais se projetam no trabalho e vice-versa. Apesar de mencionar o contexto da gestão tradicional, o foco deste artigo reside na gestão da atividade cultural. Villas-Boas (2005) faz uma série de observações importantes sobre o contexto da gestão cultural. Primeiramente, que há dois focos centrais, o da cultura em si e da noção de projetos, que é uma área madura no contexto da gestão. No Brasil, se observa a dificuldade dos artistas sem assessoria profissional, de entender e participar das concorrências que envolvem projetos, o que inclusive está gerando uma nova forma de trabalho cultural, seja do produtor ou do captador de recursos. Há que se entender que, no momento em que a atividade cultural se torna “uma atividade produtiva, a cultura passa a ser regulada pelas leis de mercado, assim como qualquer outra atividade comercial” (VILLAS-BOAS, 2005, p.101). Não é defendida neste artigo a cultura como meramente, e formalmente, uma atividade mercantil, mas é inegável que recursos são necessários para que seja uma atividade viável. As questões de sustentabilidade e rentabilidade perpassam muitas áreas de atuação, inclusive a cultural. Destaca-se que o planejamento, o financiamento e a promoção cultural devem ser atividades de uma atividade cultural moderna e organizada. Trata-se sobre estes tópicos neste artigo.

NOÇÕES SOBRE A GESTÃO DA CULTURA E MARKETING CULTURAL

Origens do Financiamento Cultural, Marketing e Sociedade de Consumo Quando tratada a questão dos incentivos financeiros para atividades culturais, através de ações de apoio, a primeira modalidade deste tipo de promoção é o mecenato. O mecenato tem suas raízes no apoio estatal, mas ao longo do tempo não se limitou a esta forma, contando com o apoio, por exemplo, de entidades de direito civil, como as pessoas jurídicas, através das contribuições de seus acionistas e/ou administradores. A noção de mecenato se refere ao “acolhimento e estímulo à cultura” (RUBIM, 2005, p.55). Uma das problemáticas do mecenato, bem como de outras modalidades de incentivo governamental é a idealização política, o que ocorre tanto nas correntes de direita quanto nas políticas de esquerda, conforme a orientação da ideologia no poder. Em outra perspectiva governamental, mas de caráter Constitucionalista (bem mais próxima da noção de justiça), o incentivo para cultura oriundo do Estado é parte integrante dos direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal (ver Art.6º), uma vez que se relaciona com as noções de incentivar a formação do povo através da educação e da cultura. Como destaca Rubim (2005, p.56), ao encontro das postulações anteriormente referidas, o incentivo cultural serve para “apoiar a criação, transmissão, divulgação, preservação e estimular o consumo cultural tornaram-se áreas de atuação do Estado, requeridas pela sociedade, sob a modalidade de direitos sociais e culturais”. Outro formato/canal de incentivo para cultura é o mercado, qual centraliza estas ações com foco em visibilidade para o artista e também para o patrocinador. A noção de ganho mútuo, ou relação de soma positiva para ambos, é uma prerrogativa atual de mercado, onde tanto o artista quanto a empresa ganham projeção na sociedade. Quanto mais a empresa aparecer, mais tende a ganhar. Quanto mais ganha, mais verba para patrocinar a cultura poderá dispor. Cunha e Granero (2008, p.1) destacam que “investindo em cultura a empresa beneficia a si mesma e a sociedade em que está inserida”. A empresa que patrocina cultura busca visibilidade diante da sociedade, tendo em vista construir boa reputação, e responsabilidade social e cultural favoráveis. Conforme estabelecido em Rubim (2005), o incentivo cultural se divide em três categorias: mecenato, Estado e mercado. Todavia, neste artigo o entendimento é que mecenato em sua predominância é uma orientação Estatal de apoio, transformada ao longo do tempo em uma atividade de projeção dos patrocinadores/financiadores da cultura. Há então bem definidas duas categorias de suporte à promoção da cultura, o apoio Estatal e o apoio Privado, onde o mecenato ao longo do tempo se fundiu em ambas (de um começo exclusivamente Estatal até uma abordagem mista entre governo e iniciativa privada). Com a evidente relevância mercadológica que a cultura passa a ter na atualidade, Jaime-Júnior (2001, p.69) observa que o consumo é imerso em cultura e símbolos, e apesar da aparente massificação, o que realmente ocorre é “uma passagem do consumo de massa para uma cultura do consumo marcada pela existência de diversos estilos de vida”. Neste contexto, há espaço para os artistas mais alternativos.

Conceito de Marketing Cultural Definir com precisão o conceito de Marketing cultural é difícil. Primeiramente, porque cultura e Marketing ainda são vistos como mundos equidistantes. Por outro lado, a área de Marketing é uma 470

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ciência mais madura conceitualmente e metodologicamente estruturada do que os conceitos simples defendidos pela sua variável na cultura. Um dos fatores desta distância é o pouco trabalho da área de Marketing na pesquisa da cultura, sendo um dos objetivos deste estudo o refino de alguns postulados. É defendida uma noção de continuidade das atividades e novidade na promoção da cultura como efeitos do conceito de marketing cultural, como um “segmento da relação entre mercado e cultura” (RUBIM, 2005, p.61). Corroborando com a perspectiva do autor, nesta obra é entendido que fazer marketing cultural não é necessariamente um meio de massificar e reduzir a qualidade do resultado cultural. A massificação pode ser de qualidade, como ocorre no lançamento de obras fonográficas de muitos artistas, embora não seja possível negar a massificação de expressões culturais sem mesma qualidade e profundidade. A questão da qualidade cultural está mais na decisão das pessoas do que no produto cultural em si. Por exemplo, um disco ou filme criticado como desqualificado não é sucesso imediato, isso ocorre porque as pessoas compram, por livre vontade (free will). Outro aspecto polemizado, que no entendimento deste artigo não faz sentido, é a crítica de que o marketing cultural busca uma contrapartida, como via de duas mãos e de retribuição. De certa forma, é uma relação saudável quando moderadamente exercida, quando o financiador não interfere na obra, mas na sua propagação. Não há sentido na não retribuição, porque o investidor ao lucrar com a cultura poderá financiar nova atividade. É um mito que no mecenato e na atividade de Estado não há interesse de contrapartida. Nestes casos, apenas não é uma retribuição diretamente perceptível. Quando os nobres Romanos patrocinavam a cultura mediante mecenato, o faziam para serem vistos e lembrados como homens do povo e cultos amantes da cultura. Quando governos o fazem, por exemplo, por meio de fundações de cultura municipais, o fazem para obter visibilidade do município e de suas ações como governo. Não há gratuidade em nenhum ato de financiamento cultural, mesmo porque o dinheiro público advém de impostos e outros fundos financeiros que geralmente derivam da máquina pública, abastecidas pelo povo. Neste contexto há discordância total das palavras de Rubim (2005, p.62), quando o autor menciona que “o caráter mercantil da negociação distancia o marketing cultural das iniciativas culturais normais do Estado”. O fato de o Estado divulgar suas ações, em especial relacionadas com a cultura, é uma forma de (auto)promoção. E no contexto do marketing, a promoção é um dos seus recursos de ação. Em contrapartida, é adequadamente mencionado que a noção de marketing e sua aplicação devem ser compreendidas “como uma maneira eficiente de administrar, pode ser plenamente aplicado na área cultural, inclusive por instituições que não objetivam o lucro” (RUBIM, 2005, p.70). Define Rubim (2005, p.62) que “o marketing cultural é uma modalidade de organização e financiamento da cultura, inscrita na interação entre mercado e cultura, que retém um conjunto de marcas peculiares”. Ainda que o conceito esteja aderente à realidade, em seu final não aborda outros pontos além da visibilidade de marcas. Estas iniciativas podem ser mais abrangentes quanto aos resultados, gerando nas pessoas uma percepção positiva e a valorização das empresas por incentivar a cultura e a educação, sejam empresas privadas, mistas ou públicas. Também aspectos como a imagem e a reputação institucional são impactados pela promoção da cultura. Por fim, é importante a noção geral de que marketing como ciência está muito além do mercado, que não significa enganar, e em especial, que não é uma abordagem exclusivamente adotada pela iniciativa privada (um exemplo muito comum é a propaganda política e de Estado). 471

NOÇÕES SOBRE A GESTÃO DA CULTURA E MARKETING CULTURAL

Marketing Cultural no Brasil O Marketing Cultural no Brasil, como destaca Rubim (2005), mantém estreita relação com as leis para incentivo da cultura, o que por vezes implica em certa ambiguidade e uma série de definições. Além da própria questão das leis de incentivo à cultura serem ambíguas, também a noção e os conceitos de Marketing Cultural são imprecisos. Rubim (2005) destaca com propriedade a confusa noção de grande parte do povo brasileiro de que Marketing é um sinônimo de geração de mídia e visibilidade. Pode-se ir além, porque de fato o que se encontra é uma visão centralizada em apenas um dos pilares do composto de marketing: a promoção; com foco na propaganda. Igualmente destaca o autor outro ponto problemático do estudo no Brasil do conceito central deste artigo, que é a falta de profundidade conceitual. Há poucos estudos, e estes não conseguem grandes avanços, especialmente porque a academia apenas nos últimos anos despertou para o refino conceitual. Estudos empíricos também são escassos. Os trabalhos normalmente encontrados se limitam em análises baseadas em teorizações como o composto de marketing, também conhecido como mix de marketing e quatro Ps (produto, preço, praça, promoção). Embora sejam estruturas originalmente criadas para serem amplas, no caso da cultura é aceitável a menção de mais três Ps, relacionados ao contexto do serviço (pessoas, processos, performance). No entanto, para este tema bem como para o marketing em geral, aumentar a quantidade de Ps é apenas uma criação de redundâncias, pois se deve compreender que a concepção de praça, por exemplo, se enquadra tanto para um ponto de venda em espaço físico, quanto para um site de vendas hospedado na Internet. Mais Ps apenas alimentam a indústria do livro, sem contribuições significativas em relação aos supracitados (abrangentes e suficientes). Além dos benefícios do marketing por incentivo de governo, há possibilidade de que o marketing advenha dos próprios artistas. Souza e Carrieri (2011) demonstram isso através de um estudo empírico junto a um grupo de teatro de Belo Horizonte, MG. O grupo aborda a arte em diversas perspectivas, sendo uma delas a necessidade de fazer arte criativa (customizada), ao mesmo tempo em que proporcione sobrevivência no panorama econômico. A relação trabalho arte também favorece ao profissionalismo.

Considerações Finais Apesar de breve, o presente artigo aborda questões necessárias ao avanço na noção de gestão cultural e marketing cultural. Primeiro, que a gestão da cultura segue parâmetros semelhantes ao contexto das organizações, já que a mesma sociedade que compõe o mundo da arte está interagindo com a realidade do mundo do trabalho. As práticas de gestão, como o planejamento favorecem atividades culturais assim com empresariais, pois estabelecem estratégias e oportunidades de atuação. Como segundo critério, a discussão entre Estado e empresas no fomento da cultura são iniciativas mais próximas do que a discussão reconhece. Ideologia a parte, independente de quem venha a financiar a cultura, o objetivo é sempre ter uma contrapartida. Governos e empresas buscam em geral visibilidade, para a construção de uma imagem positiva perante a sociedade. É um mito entender que o Estado não deseja uma contrapartida de imagem favorável tanto quanto a iniciativa privada deseja. 472

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Por fim, o conceito de marketing cultural representa uma série de conhecimentos já desenvolvidos em outras perspectivas de atuação do marketing. No entanto, na abordagem cultural há ainda o uso excessivo de teorias consolidadas e por vezes obsoletas ou clássicas, o que deixa espaço para a verificação de abordagens mais modernas para o favorecimento da cultura. Conceitos como os 4 Ps e o aspecto de mídia predominam, embora sejam tratados em geral de maneira superficial. É importante buscar por conceitos mais adequados com a realidade da sociedade, e de certa forma, que melhor representem a complexidade entre variáveis. O presente estudo apresenta uma série de limitações, a começar por seu caráter meramente teórico e baseado em poucos estudos disponíveis sobre marketing cultural no Brasil. Outro ponto fraco é a restrita abordagem dos conceitos de gestão e marketing, sem que tenha sido feito aprofundamento para elementos mais específicos. No entanto, apesar de não trazer novos elementos, este estudo de caráter inicial para uma pesquisa mais aprofundada identificou a fragilidade com que os conceitos de marketing são tratados na literatura específica (superficialidade), bem como a falta de entendimento da importância do marketing como mecanismo que viabiliza as atividades culturais. Dois pontos importantes foram identificados no estudo: a necessidade de delimitar de forma mais coerente e estruturada a noção de marketing cultural e; foi desmistificada a noção de que os governos são agentes neutros no processo de financiamento da cultura.

REFERÊNCIAS BOHLANDER, George W.; SNELL, Scott; SHERMAN, Arthur. Administração de Recursos Humanos. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003. CUNHA, Patrícia Faleiros da; GRANERO, Arlete Eni. Marketing Cultural: Modalidades e Estratégias de Comuni-cação Institucional. REC: Revista Eletrônica de Comunicação, Uni-FACEF, Edição 6, p.1-13, Julho/Dezembro, 2008. JAIME-JÚNIOR, Pedro. Etnomarketing: antropologia, cultura e consumo. RAE: Revista de Administração de Empresas, v.41, n.4, p.68-77, 2001. KEEGAN, Warren J.; GREEN, Mark C. Princípios de Marketing Global. São Paulo: Saraiva, 2000. KOTABE, Masaaki; HELSEN, Kristiaan. Administração de Marketing Global. São Paulo: Atlas, 2000. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Marketing Cultural. In: RUBIM, Linda. (Org.). Organização e Produção da Cultura. Salvador: EDUFBA, p.53-77, 2005. SOUZA, Mariana Mayumi Pereira de; CARRIERI, Alexandre de Pádua. Racionalidades no Fazer Artístico: Estudando a Perspectiva de um Grupo de Teatro. RAE: Revista de Administração de Empre473

NOÇÕES SOBRE A GESTÃO DA CULTURA E MARKETING CULTURAL

sas, v.51, n.4, p.382-395, 2011. VILLAS-BOAS, Rosa. Gestão Cultural. In: RUBIM, Linda. (Org.). Organização e Produção da Cultura. Salvador: EDUFBA, p.99-116, 2005.

Flávio Régio Brambilla * (UNILASALLE)

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