(2013) O REAL É O NOME QUE SE DÁ AO INOMINÁVEL

June 13, 2017 | Autor: Lauro Baldini | Categoria: Análise do Discurso, Psicanálise
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O REAL É O NOME QUE SE DÁ AO INOMINÁVEL BALDINI, L. J. S.1 MARIANI, B.2 muita coisa importante falta nome Riobaldo

Tendo em vista que Michel Pêcheux sempre colocou a psicanálise num lugar de proeminência no quadro teórico da Análise de Discurso que concebeu, e, aliada a essa consideração, Pêcheux também sempre enfatizou a teoria e a prática marxistas como elemento de base do aparelho conceitual da análise discursiva, pareceu-nos importante, aqui, fazer um percurso pela questão do Real tal como ele se coloca na prática e na teoria psicanalíticas, lugar em que mereceu observações refinadas e distintas das que usualmente se fazem em outros campos do saber. Não foi nossa intenção estabelecer um quadro comparativo entre o modo como o Real é tratado na análise de discurso ou no materialismo histórico, mas, por razões de espaço, tão-somente considerá-lo em sua vertente psicanalítica, mais especificamente a partir dos trabalhos de Freud e de Lacan. De fato, Pêcheux, ao formular o panorama conceitual da teoria discursiva que vinha elaborando, atribuiu à psicanálise um lugar de especial atenção no quadro epistemológico que articula. Vejamos tal quadro no modo concebido por Pêcheux: Ele reside, a nosso ver, na articulação de 3 regiões do conhecimento científico: 1) O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2) A linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3) A teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica).3

É interessante notar que a psicanálise não comparece aí como um “quarto termo” do quadro geral proposto, mas como algo que “de certo modo” atravessa as 3 regiões anteriormente mencionadas. Sob esse ponto de vista, parece-nos importante salientar que a 1

Professor-adjunto do curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da UNIVÁS. O autor agradece à FAPEMIG pelo apoio obtido para participação no evento de que resultou este texto. 2 Professor- associado 3 do Departamento de Ciências da Linguagem e da Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. 3 Pêcheux, A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas, pg. 163/164.

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psicanálise figura de maneira distinta dos demais campos, atravessando-os (para modificálos?) com sua teoria de constituição da subjetividade. É esta teorização a respeito da constituição do sujeito que pretendemos comentar aqui, sem nenhuma pretensão de exaustão. Além disso, pretendemos contribuir no estabelecimento de um programa de trabalho em que a psicanálise não seja vista apenas como uma disciplina auxiliar, ou como uma remissão obrigatória (mas não levada em conta em sua radicalidade). Ao contrário, nosso objetivo aqui é enfatizar a necessidade de se pensar, como Freud o fez, o inconsciente como um sistema, em vez de apenas o lugar em que se localiza o que não faz parte da consciência. —x—

Nos primórdios da psicanálise, Freud julgava necessário que um trauma real ocorresse para o desencadeamento de uma neurose. Nesse momento, para Freud, a explicação da etiologia de uma neurose seguia os princípios de uma determinação causal derivada de um acontecimento real, produzido por uma ocorrência delimitada a partir do exterior. Sua “teoria da sedução”, como ficou conhecida, elaborada entre 1895 e 1897, pressuponha que havia uma relação entre uma cena de abuso entre uma criança e um adulto e o desencadeamento posterior de uma neurose. De fato, Freud partia de sua observação dos relatos de seus pacientes, que de maneira geral tendiam a se lembrar de uma cena ocorrida em tempo bastante precoce e que se caracterizava por uma tonalidade sexual, rememorada como traumática. Ainda nesta mesma via, Freud concebia as diferentes neuroses a partir da idade em que o trauma ocorrera, ou, ainda, a partir do momento em que se instalavam mecanismos defensivos contra a rememoração da experiência sexual traumática. De qualquer modo, como o próprio Freud salienta ao comentar a histeria, a lembrança tem um fator de máxima importância, e essa lembrança está ligada a uma experiência de abuso cometida por uma outra pessoa: assim, Freud concebe a existência de uma cena de sedução entre criança e adulto como explicação para o surgimento de uma doença psíquica: “uma experiência sexual passiva antes da puberdade: eis, portanto, a etiologia específica da histeria”4. Do mesmo modo, a neurose obsessiva é concebida como tendo a mesma causa, e Freud irá diferir a etiologia específica de cada uma dessas neuroses segundo a relação de atividade/passividade que tenha se constituído quando do evento em questão.

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Freud, A hereditariedade e a etiologia das neuroses, pg. 151, grifos do autor.

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Retomemos o caso de Anna O. e de Emmy von N., duas pacientes famosas de Freud e que, literalmente, ensinaram-lhe a psicanálise. No primeiro caso, Anna O., Freud pôde aprender o poder da fala enquanto tratamento do sofrimento psíquico, embora ainda pensasse a eficácia do tratamento via hipnose e como efeito catártico, isto é, liberação de afetos recalcados, os quais, supostamente levariam à dissolução dos sintomas. De qualquer modo, é a paciente que ensina a Freud a importância da escuta como método terapêutico: “ela descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma ‘talking cure’, ao mesmo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como ‘chimney-sweeping’”5. Embora Freud tenha sido levado a abandonar a hipnose e o método catártico, permaneceu sua consideração de que a psicanálise se caracteriza como uma cura através da fala. Do mesmo, o caso Emmy Von N., jovem de quem tratou ainda no começo de sua prática psicanalítica, tal como Anna O., ensinou a Freud ainda mais a importância de deixar a cargo da fala a condução do tratamento. Na sessão de 12 de maio de 1889, Freud, mais uma vez, indaga o paciente sobre o porquê de seus sintomas e de onde eles provêm. Emmy Von N., obviamente, diz não saber. É então que Freud faz à paciente um ultimato: dou-lhe até o dia seguinte para se lembrar. Ela me diz, então, num tom muito mal-humorado, que não devo lhe perguntar sempre de onde provém isto ou aquilo, mas deixá-la contar o que ela tem a dizer.6

Como se vê, Freud é levado a considerar a fluidez da fala como elemento essencial do tratamento psicanalítico, o que posteriormente fará com que a associação livre seja erigida por Freud como regra de ouro da psicanálise. No entanto, neste momento, Freud ainda está considerando, como fator determinante do surgimento de uma neurose, a questão de um trauma sexual real como figura determinante. Para o que nos interessa aqui, o ponto importante a abordar é como Freud rompe com essa linha de raciocínio e passa a considerar a preponderância da fantasia como elemento a ser considerado na rememoração do encontro com a sexualidade. Dessa maneira, Freud mantém a relação traumática existente no encontro de todo ser humano com a questão da sexualidade, sem, porém, atribuir o caráter traumático desse encontro a um evento de abuso sexual empiricamente reconstituível. Como Freud argumenta, no limite, sua teoria da sedução levaria a considerar que quase a totalidade dos pais seriam perversos abusadores dos filhos, e que se fazia necessária

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Freud, Estudos sobre a histeria, pg. 65. Idem, pg. 95.

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buscar outra explicação para o desencadeamento das neuroses. A renúncia à teoria da sedução é, de fato, o que permitiu a Freud construir a psicanálise, pois levou-o a construir conceitos importantes para o entendimento do psiquismo, tais como a fantasia, o complexo da Édipo, a pulsão, etc. Esse renúncia foi expressa de maneira enfática numa carta de 1897 a seu amigo e confidente Wilhelm Fliess, que investigava a relação entre a fisiologia e a bissexualidade: “não acredito mais na minha Neurotica”7. O que nos interessa reter dessa renúncia de Freud em sua relação com o conceito de real que tentamos tatear neste texto é que Freud é levado a considerar um elemento importante e crucial para a psicanálise, a partir da rememoração de seus pacientes: o conceito de realidade psíquica. Através da elaboração desse conceito, Freud consegue operar um deslocamento teórico importante, que permite pensar em termos além de uma dicotomia simples entre mundo exterior e mundo interior, realidade e fantasia, subjetividade e objetividade. Tal como a banda de Moebius que Lacan irá explorar posteriormente para ilustrar o fato de que exterior e interior são contínuos, Freud indica que nosso aparelho psíquico funciona sob um registro em que tais distinções são diluídas: O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais.8

Assim, do ponto de vista do funcionamento do inconsciente, há um certo real, uma certa face do real, que não deve ser confundido com algo empiricamente observável ou externo ao sujeito, mas como uma espécie de existência de outra natureza: Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos a sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de concluir, sem dúvida, que a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material.9

“Realidade material” e “realidade psíquica”, “mundo externo” e “realidade psíquica”, tais construções nos permitem perceber o movimento de Freud em direção a uma concepção de real que funciona para além da dicotomia fantasia/realidade, e que nos indicam uma forma verdadeiramente nova de conceber que real está em jogo no funcionamento do inconsciente. Embora, durante certo tempo, Freud ainda se utilize de tais distinções de modo a permitir uma 7

A referência a essa correspondência encontra-se em Gay, 1988, pg. 101. Na mesma carta, é interessante notar que, dada a generalidade da neurose, Freud chega a concluir: “em todos os casos, o pai, sem excluir o meu, teria de ser acusado de perversão”. Além disso, e de importância muito mais fundamental, Freud enfatiza: “não há marcas de realidade no inconsciente”, o que impediria distinguir relatos reais de experiências reconstruídas sob a égide da fantasia. 8 Freud, A interpretação dos sonhos, pg. 584, grifos do autor. 9 Idem, pg. 591, grifos do autor.

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leitura em que o funcionamento neurótico esteja oposto a um “funcionamento normal”, em que a relação do sujeito com a realidade seja, de certo modo, distorcida, tal tipo de elaboração teórica dará lugar à consideração da realidade psíquica como a realidade decisiva para o funcionamento do inconsciente, como veremos a seguir: O que jaz por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são sempre realidades psíquicas, nunca realidades concretas. O que caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta, reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades.10

Se, como dissemos, aqui ainda é possível pensar numa distinção entre real e fantasia, tão ao gosto da psicanálise anglo-saxã, ao longo de toda sua obra Freud irá cada vez mais insistir no caráter irrecorrível da realidade psíquica como fundamento do inconsciente e como elemento primordial para a compreensão da subjetividade. Nesse sentido, a oposição entre fantasia e realidade se desfaz, pois é na própria fantasia que se encontra o real de que se trata em psicanálise: As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva.11

Este é o passo que dá condições para a própria existência da psicanálise, na medida em que deixa de operar sob uma dicotomia do tipo imaginação/realidade, para construir uma compreensão de como, na própria fala do sujeito, se constituem os elementos de fantasia que constituem sua relação com o mundo. Assim, não se trata mais de verificar que elementos “concretos” correspondem ao dizer do sujeito, mas em perceber como no fio do seu próprio discurso se constitui a fantasia como operador central do funcionamento de seu inconsciente. Da teoria da sedução à teoria da fantasia, o que está em jogo é o próprio valor da psicanálise como prática de escuta do sofrimento psíquico. Como afirma Lacan, “o valor da psicanálise está em operar sobre a fantasia”12. —x—

Voltamos, assim, ao título desse texto em sua débil tentativa de mostrar a impossibilidade de nominar o inominável, conforme nos fala Lacan. E Lacan, sobretudo nas décadas de 50 e 60, retoma da letra freudiana o que ela tem de análise de linguagem,

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Freud, Totem e Tatu, pg. 160/161, grifos do autor. Freud, Conferências introdutórias sobre psicanálise, pg. 370, grifos do autor. 12 Lacan, Alocução sobre as psicoses da criança, pg. 364. 11

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incluindo nessa retomada, uma leitura muito própria e singular do aparato teórico da linguística saussureana, em seus elementos fundadores da Linguística estrutural, e, posteriormente, estabelecendo diálogos críticos com É. Benveniste e R. Jakobson. Um dos aspectos que interessa a Lacan é justamente a ordem própria da língua postulada por Saussure. Como o próprio Lacan afirma, “a linguística, cujo modelo é o jogo combinatório operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva – é esta estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente”13. Ao definir a língua como um sistema de signos, um sistema com dependências internas e autônomo, Saussure produz dois deslocamentos: o pensamento que vincula as palavras às coisas e o que supõe uma visão instrumental da linguagem. Um signo liga arbitrariamente significado a significante, e não uma coisa a um nome, como nos diz o mestre genebrino. Esse corte saussureano instala o real na língua, um real próprio à língua, como nos diz Milner (1978) e, por extensão, na linguística, que nascerá dessas bases. Em importantes textos do final dos anos 50 - Função e campo da fala e da linguagem e A instância da letra (ou a razão desde Freud) -, Lacan reafirma essa separação linguagem – mundo, refuta aproximações instrumentais da língua, e vai além. Com Freud, Lacan afirma que ao falar, o sujeito diz mais do que imagina ao ser constituído por essa ordem própria que é o sistema da língua. Porém, não o sistema à moda saussureana, mas sim um sistema reelaborado pela ótica lacaniana que, além de inverter a posição das duas partes constitutivas do signo linguístico tal como aparece no Curso de Linguística Geral, propõe um espessamento da barra que separa significante (S) de significado (s). Com esse gesto teórico, Lacan privilegia o sistema significante, acentuando a mobilidade dos significantes entre si e a presença/ausência na cadeia do S1, o significante unário, um significante que tanto dá início à constituição da cadeia significante como fica fora da sequência S2 S3... Sn. É a estrutura da linguagem no inconsciente, ou como se pode ler no famoso aforisma lacaniano “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Ele não é a linguagem, ele funciona à moda de uma linguagem e nesse funcionamento o que importa são os significantes. “O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na cogitação a que ele dá forma.” 14

13 14

Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, pg. 26. Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo, pg. 813. Grifos nossos.

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Um dos modos de funcionamento do inconsciente é justamente o de emergir provocando cortes no “discurso efetivo”, provocando falhas, esvaziando o que se diz com lapsos e chistes, mas também com repetições e articulações significantes que produzem furos nos sentidos e escapam aos ouvidos de quem fala. Assim, deve-se perguntar, como nos lembra Lacan: que tipo de sujeito pode ser concebido no inconsciente? O sujeito do inconsciente - aquele que sempre surpreende, aquele que nunca está onde se supõe estar, aquele que comparece como um piscar de olhos, que é efêmero, que não sabe o que diz, que nem mesmo sabe que vai falar ou que nem sabe que está, no exato momento em que comparece desfazendo os sentidos, falando – tem sua estrutura como pura descontinuidade, descontinuidade no real15. No primeiro momento de seu longo e profícuo percurso na constituição dos alicerces do seu pensamento teórico, Lacan dará primazia à cadeia significante, ou seja, o registro do simbólico, enfatizando o percurso que marca a entrada do infans na linguagem. Ele chamará de A (“Autre”, o Outro) o lugar do “tesouro dos significantes”, um lugar, portanto, onde os significantes se encontram, sincronicamente articulados e em oposição, movendo-se na cadeia com a ausência de S1. Constituído e tomado na língua, o sujeito falante fala. Encontra-se em A, em meio à espessura do sistema, no tecido do desejo do Outro, inserido no jogo que lhe é opaco dos significantes/significados que faltosamente o constituíram e que produzem, ilusoriamente, uma relação com o mundo. O sujeito fala e só depois se dá conta do que disse com seus lapsos e chistes, marcas que denunciam a presença do “sujeito do inconsciente como descontinuidade no real”, ou seja, naquilo para o quê não há palavras, sendo inominável e irrepresentável.

No curto e efêmero espaço do lapso, ali se pode apontar o real do

inconsciente, sem nome, sem substância, sem sentido. Nem mesmo o significante de um nome próprio significa o falante como tal no mundo. Seu nome próprio faz parte desse jogo de significantes que deslizam, está inserido em um sistema que porta uma ausência e não traz um único significado; seu nome próprio faz parte da fantasia que o constitui em sua realidade psíquica e seu(s) significado(s) está/estão atrelado(s) aos sentidos imaginários que ele pode produzir a partir desta inserção no jogo significante. É na ignorância de si mesmo aquilo com que o sujeito se depara nos vacilos de seus dizeres que buscam circunscrever o real.

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Idem, pg. 815.

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Não haveria, portanto, um único significante que representaria o sujeito em si. Seria impossível de dizer, portanto, o que quer que seja sobre o sujeito. Do objeto, do mesmo modo, o dizer só pode bordejar a margem, naquilo que esta escapa a qualquer inscrição na forma de uma representação: O real não designa somente o objeto, mas também a dimensão que surge do fato da falta de objeto. [...] O real não é, então, algo de estrangeiro à realidade, mas nessa designa um ponto que escapa à representação imaginária e simbólica, e desde então, define-se por falta dessas dimensões na abordagem da realidade. Ao mesmo tempo que o real designaria a essência da realidade, ele se constitui numa certa antinomia a esta 16

São três os registros, ou instâncias, que para Lacan podem dizer do humano: o simbólico, o imaginário e o real. E, para o que nos interessa aqui, cabe dizer que o Real é, para Lacan, aquilo “que não pára de não se escrever”17, isto é, aquilo que não é simbolizável, que permanece como sempre externo ao sujeito, cujos temas mais frequentes são, é claro, o sexo e a morte, aquilo do qual o simbólico nunca poderá escrever nada. O real em Lacan não é uma esfera pré-discursiva da qual o simbólico poderia aproximar-se ou distanciar-se, ao contrário, é efeito do próprio simbólico, como aquilo que o simbólico expulsa para adquirir consistência. O real é pleno, sem fissura, irrepresentável, inomeável. Como diz Zizek, retomando Lacan, “no real não falta nada: toda percepção de uma falta ou de um excesso [...] implica sempre um universo simbólico”18. Ao mesmo tempo, o Real não é uma estrutura ontológica simplesmente inacessível ao sujeito: ele se depara com o real, tropeça nele, e é esse o conceito de trauma (isto é, de algo que não pode ser integrado à rede simbólica) que interessa à psicanálise. E é por isso que a psicanálise, enquanto tratamento, pode oferecer ao sujeito a saída do pior: porque a realidade psíquica pode ser alterada, desde que o ser falante que sofre aceite se submeter a dizer, sem ter o que dizer, sem saber o que dizer... Nesse semi-dizer, a verdade pode ser dita, mas com a condição de que consideremos que “nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer”19. Semidizendo, o sujeito aprenderá que “a fantasia é a sustentação do desejo” 20 , é que é nessa fantasia que reside sua verdade particular. Neste ponto, o sujeito toca o real.

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Porge, Resumo sobre o real em Lacan, pg. 59. Lacan, Mais, ainda, pg. 101. 18 Zizek, O espectro da ideologia, pg. 12. 19 Lacan, O avesso da psicanálise, pg. 49. 20 Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, pg. 175. 17

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