2014 “A descoberta da Bossa-Nova na Bélgica”, “A descoberta do Mangue Beat na Bélgica”, “A música brasileira nos festivais”, and “Os músicos brasileiros residentes na Bélgica”, in Brasil e Bélgica: cinco séculos de conexões e interações

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Descrição do Produto

organizadores Eddy Stols Luciana Pelaes Mascaro Clodoaldo Bueno

Brasil e Bélgica

Cinco Séculos de Conexões e Interações

Brasil e Bélgica

organizadores Eddy Stols Luciana Pelaes Mascaro Clodoaldo Bueno

Cinco Séculos de Conexões e Interações

B r a si l e B é l g ic a Cinco Séculos de Conexões e Interações

brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

Brasil e Bélgica Cinco Séculos de Conexões e Interações

organizadores Eddy Stols Luciana Pelaes Mascaro Clodoaldo Bueno

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

edi çã o

Roney Cytrynowicz p rodu ção edi tor i al

Monica Musatti Cytrynowicz desi gn e edi tor aç ão e le tr ôni c a

Ricardo Assis Tainá Nunes Costa Negrito Produção Editorial www.negritodesign.com.br tradu ção

Eddy Stols Luciana Pelaes Mascaro Susana Rossberg p repa ra ção de te xto e r e vi s ão

Mariangela Paganini revi sã o de te xto e r e vi s ão das tr aduç õe s c i p - b r a si l . c a ta l o g a ç ã o n a p u b l i ca çã o s i n d i c a t o n a c i o n a l d o s e d i t o r e s d e l iv ro s , rj

Clodoaldo Bueno Eddy Stols Luciana Pelaes Mascaro

B83   Brasil e Bélgica: cinco séculos de conexões e interações / organização Eddy Stols, Luciana Pelaes Mascaro, Clodoaldo Bueno. – 1. ed. – São Paulo: Narrativa Um, 2014.   376 p.: il.; 29 cm.   ISBN 978-85-88065-34-5   1. Brasileiros – Bélgica – História.  2. Problemas sociais.  3. Política internacional.  I. Stols, Eddy.  II. Mascaro, Luciana Pelaes.  III. Bueno, Clodoaldo.

Editora Narrativa Um – Projetos e Pesquisas de História www.narrativaum.com.br [email protected]

14-13963

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CDD: 305.86980493 CDU: 316.77

Os laços entre Brasil e Bélgica

Manoel Arlindo Zaroni Torres Presidente da Tractebel Energia

S

eparados por um oceano e milhares de quilômetros, Brasil e Bélgica são mais próximos do que se poderia imaginar. Trazer à tona esse vínculo é a principal missão desta obra, que nos oferece um registro histórico e cultural importante da relação entre os dois países. A tarefa de desbravar o tema, transformando uma série de informações dispersas em um livro pujante como este, foi brilhantemente desempenhada pelos autores e organizadores, os quais conhecem o assunto em profundidade. Ao longo dos capítulos, o leitor descobrirá que os laços entre os dois países começaram a ser construídos ainda no Brasil Colônia, há mais de cinco séculos, e foram se estreitando a partir do intercâmbio cultural e econômico que se seguiu. O relato deixa claro que muitas pessoas e instituições colaboraram para consolidar marcas do Brasil na Bélgica e da Bélgica no Brasil. A elas cabe nosso agradecimento, pois a proximidade resultou em trocas importantes nas mais diversas áreas, do cinema à gastronomia, passando pelas artes cênicas e plásticas, literatura, música, esportes e arquitetura.

Além das influências culturais, o livro revela impressionantes alinhamentos religiosos, ideológicos e científicos entre as duas nações. Ao final de cada texto, constatamos a solidez dessa relação e, em especial, o legado deixado por um país no outro. Fundamental à construção desse legado, a atuação de empresas belgas, como a Tractebel Energia, no Brasil, bem como de companhias brasileiras na Bélgica, contribuíram de forma decisiva não apenas para o desenvolvimento econômico dos dois países, mas também para intensificar o intercâmbio cultural. Colaborar para que toda essa trajetória conjunta fosse registrada e se tornasse pública foi o que motivou a Tractebel Energia a apoiar a realização desta obra. Estamos certos de que, a partir dela, Brasil e Bélgica passam a ter uma referência bibliográfica tão relevante quanto inspiradora, capaz de demonstrar todos os benefícios da relação respeitosa, harmoniosa e cooperativa entre duas nações.

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

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Apresentação

Incentive Projetos e Eventos Florianópolis (SC)

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presentar um livro cuja missão é tão importante não é tarefa fácil. Uma obra que promete discorrer sobre o belo cordão que existe entre o Brasil e a Bélgica. Essa relação, tão cordial e sólida, já vem de tempos: são cinco séculos de interação. Um pouco esquecida entre as tão comentadas relações brasileiras com outros países europeus, como a Itália, Alemanha e Portugal, o relacionamento Brasil-Bélgica é importante de ser aprofundado, exposto e disseminado. Tornar esse livro acessível a todos aqueles que desejam ter mais conhecimento sobre o estreitamento entre esses dois países é o nosso maior objetivo. Como intuito principal, nosso desejo é que existam cada vez mais intercâmbios socioculturais entre as duas nações e, acreditamos, sem sombra de dúvidas, que este livro propiciará isso. Sabedores de que esta obra tem na sua tônica o resgate, a preservação e a promoção da presença do Brasil na Bélgica e da Bélgica no Brasil, temos a certeza de que os dois países se complementam e se ajudam mutuamente a evoluir e a crescer, trazendo intrínsecos benefícios um ao outro. A partir do convite do professor Eddy Stols, precursor do projeto, pode-se entender que este foi delineado para apresentar as relações que se formaram entre essas duas importantes nações no decorrer dos últimos séculos, que vão desde a gastronomia até o esporte. Passou-se pelas influências ideológicas e religiosas que cada país revelou um ao outro. Vislumbrou-se a arte como verdadeira ferramenta de diplomacia e assim descobrimos dois países repletos de trocas entre as áreas de cinema, teatro, dança, música popular e clássica, artes plásticas, arquitetura e literatura. Com este desafio proposto, acreditamos que podíamos alcançar os objetivos desenhados para este estudo e, certamente, nossa alegria é imensa por desempenharmos e mediarmos as relações entre os profissionais, que para nós, mostraram-se verdadeiros investigadores da história brasileira e belga. Poder proporcionar uma fonte de conhecimento sobre essa relação tão importante nos enche de entusiasmo. Ficamos motivados, cada vez mais, por sabermos que estamos no caminho certo: levar ao outro a possibilidade de descobertas e de crescimento através do aprendizado.

Enxergamos neste livro, também, uma forma não só de resgatar o passado das duas nações e suas relações, mas também de desenhar novos cenários para o futuro: promovendo conhecimento sobre a atual realidade entre os dois países e assim oportunizar novas formas de negociações. Assim, esperamos que este livro seja apenas o primeiro entre muitos outros que contarão mais sobre a trajetória do Brasil e Bélgica unidos em torno da valorizarão da cultura destes dois países. Agradecemos imensamente a todos os profissionais envolvidos neste trabalho, entre eles, especialmente aos pesquisadores Eddy Stols, Luciana Mascaro e Clodoaldo Bueno; Roney Cytrynowicz e Monica Musatti Cytrynowicz, diretores da editora Narrativa Um; a Embaixada da Bélgica no Brasil, na pessoa do Sr. Jozef Smet; ao Consulado Geral da Bélgica, representado pelo Cônsul Didier Vanderhasselt; ao Consulado Honorário da Bélgica em Santa Catarina, Sr. Manoel Arlindo Zaroni Torres. Sem o envolvimento destes profissionais não seria possível que tal estudo acontecesse. Somos gratos pelo profissionalismo, comprometimento e esmero que todos dedicaram a este projeto cultural. Nosso agradecimento especial também ao Ministério da ­Cultura, por ter proporcionado a execução deste projeto, e a empresa Patrocinadora Tractebel Energia, representada pelo Sr. Jan Flachet, Sr. Luciano Andriani e Sra. Luciane Pinheiro Pedro, que cumpriram papel essencial para a realização desta obra. O livro Brasil e Bélgica: Cinco Séculos de Conexões e Interações está pronto para ser apreciado pelos seus leitores. A Incentive Projetos e Eventos espera que a obra literária aqui presente seja de grande contribuição para a valorização das heranças culturais geradas pela relação entre os dois países e que traga incontáveis ganhos para aqueles que tiverem acesso a ela. Convidamos a todos, portanto, a entrarem neste mundo ainda pouco conhecido da relação belgo-brasileira e a se deliciarem com o incrível conteúdo que está agora disponível.

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Eddy Stols nasceu em 1938 em Roeselare, Bélgica. Concluiu seu Doutorado em História pela Universidade Católica de Lovaina em 1965. Foi professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (atual Unesp) de 1963 a 1968; professor na Universidade Católica de Lovaina de 1971 até se tornar Professor Emérito em 2004; professor extraordinário na Universidade de Leiden, Holanda (1987-1991); professor visitante em várias universidades brasileiras (USP, UFMG, UFSC e UNESP - Campus Assis) e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Entre suas publicações: Brazilië, Een geschiedenis in dribbelpas (Brasil, uma história em passo drible), 1996, 2002 e terceira edição ampliada em 2011; coeditor de La Belgique et l’étranger aux XIXe et XXe siècles (1987); de Flandres e Portugal, Na confluência de duas culturas (1991); Flandre et Amérique latine, Cinq siècles de confrontations et de métissages (1993); Brasil, Cultures et économies de quatre continents (2001); O diplomata e desenhista Benjamin Mary e as relações da Bélgica com o Império do Brasil (2006); Un mundo sobre papel (2009); Terra Brasilis (2011), com curadoria da exposição na Europalia.Brasil. Publicou mais de cem artigos em revistas ou capítulos de livros, dos quais uma dezena sobre alimentação, açúcar e chocolate. Luciana Pelaes Mascaro nasceu em 1970 em Dourado, São Paulo. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP) São Carlos em 1997 e Doutora pela mesma escola na área de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo em 2008. Realizou estágio de doutorado na Universidade do Minho, Portugal, e atuou como pesquisador estrangeiro na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Trabalhou como Diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade de Jaú (SP) em 2003. Participou da organização de workshops e seminários sobre Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico e colaborou com o CIVA (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage), em Bruxelles, Bélgica, durante o ano de 2010. É professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso – campus de Cuiabá, e atua como pesquisadora em temas como arquitetura do final do século XIX e início do XX, patrimônio arquitetônico e industrial. Clodoaldo Bueno nasceu em 1943 em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. É Mestre e Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), Livre-Docente e Professor Titular da Unesp, aposentado. Docente permanente do curso do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” da Unesp/Unicamp/PUC-SP, sediado em São Paulo. Foi professor visitante na Universidade de Brasília (1994-95) e no Instituto de Estudos Avançados da USP (1197-99). Com auxílio da Fapesp, desenvolveu em 1997 programa de aperfeiçoamento científico na Universidade de Lovaina, Bélgica. Membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP; membro da CHIR (Comission of History of International Relations), sediada em Paris-Milão e vicecoordenador acadêmico do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Unesp/SP. Entre suas publicações, destacam-se os livros A República e sua política exterior (1889 a 1902) (Editora da Unesp / Funag, 1995); Política externa da Primeira República – Os anos de apogeu – de 1902-1918) (Paz e Terra, 2003); História da política exterior do Brasil (Ed.UnB, 4ª ed. 2011), este em co-autoria com Amado Luiz Cervo. Publicou textos em revistas e livros editados em Londres, Tóquio, Paris, Buenos Aires, Milão, Quito e Assunção.

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Introdução

Eddy Stols • Luciana Pelaes Mascaro • Clodoaldo Bueno Organizadores

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ntre o Brasil e a Bélgica (a Flandres do século XVI) o primeiro atrativo foi a procura de açúcar de cana em quantidade suficiente para sustentar uma requintada produção doceira e confeiteira, bem como para adocicar, com o mascavado mais barato, a dieta popular. Para produzi-lo, um grande mercador de Antuérpia, Erasmo Schetz, lançou já na década de 1540 um dos primeiros investimentos capitalistas no Brasil com o Engenho dos Erasmos em São Vicente, no litoral do atual Estado de São Paulo. Pouco depois, em Antuérpia, um primeiro papagaio verde brasileiro apareceu à venda em uma feira, segundo um quadro de Joachim Beuckelaer de 1566. Importaram-se logo em seguida mais papagaios, além de araras, tucanos, saguis e tatus brasileiros, que serviam para dar prestígio à corte de Bruxelas e enriquecer as coleções dos primeiros naturalistas. Tais animais exóticos, vendidos no mercado, eram destinados também à intimidade dos lares burgueses e chegaram a merecer um lugarzinho nos quadros de Jan Breughel o Velho, no início do século XVII. Mas foi somente a partir do início do século XIX que se intensificaram e se diversificaram as conexões entre os dois países. A partir de 1807, o porto de Antuérpia abriu-se à importação de produtos brasileiros, como café, couros e madeira. O Brasil reconheceu a independência da Bélgica e com ela firmou, já em 1834, um tratado de comércio. Doravante, ambos os países manteriam relações diplomáticas exemplares, reforçadas pela arbitragem do Rei Leopoldo I em favor do Brasil na questão Christie com a Inglaterra em 1863, quando, por seu lado, o Brasil contribuiu para resgatar os direitos de peagem, cobrados pela Holanda sobre a navegação do Rio Escalda. Nesses anos ainda, o príncipe herdeiro Leopoldo II estimulou, sem êxito, o irmão Felipe a pedir no Rio de Janeiro a mão de uma das princesas imperiais. Logo depois, o Imperador Pedro II visitou a Bélgica por quatro vezes em 1871-1872, 1876 e 1888. Com a queda do Império, Leopoldo II, exitoso na sua conquista do Congo, cobiçou uma parte do território da recém implantada república brasileira: em 1891 fez a proposta ao Brasil e à França de cessão do território contestado do Oiapoque; por volta de 1900 estava de olho no Acre e tinha em mira grandes concessões de terras no Mato Grosso e no Araguaia. Entrementes embarcaram entre 1840 e 1914 quase seis mil emigrantes belgas para o Brasil, principalmente agricultores candidatos a um pedaço de terra numa das colônias privadas, como

nos anos de 1850 a de Nicolau Vergueiro em Limeira, ou oficiais, como por volta de 1890 a de Porto Feliz, dirigida pelo padre Vanesse. Havia também trabalhadores à procura de salário melhor. Em menor número, partiram comerciantes para vender armas, vidraria, casimiras, espelhos, lampadários, estruturas metálicas, como fizeram no Rio de Janeiro a Casa Laporte e os irmãos Pecher. O cônsul Edouard Pecher fundou no Rio de Janeiro em 1852 a Société Belge de Bienfaisance – ainda existente –, que organizava banquetes anuais para angariar fundos para dar assistência aos compatriotas necessitados ou doentes, embora não possuísse hospital próprio. Vieram, ainda, artesões como o litográfo Jean-Baptiste Lombaerts que montou em 1848 na Rua do Ouvidor uma conceituada livraria, continuada pelo seu filho Henri e frequentada por Machado de Assis. Os tecelões d’Olne de Verviers criaram no final do século XIX em Niterói a fábrica Tecidos Aurora. Nessa corrente imigratória nem mesmo faltou um ou outro nobre ou gente abastada: Léon Mosselman du Chenoy, longíquo parente da Rainha Paola da Bélgica, que se distinguiu na Bahia por volta de 1900 pelas suas empresas de mineração e, até, de piscicultura, embora nunca bem sucedidas; a família de Vicq de Cumpich no Rio de Janeiro; Henri Oedenkoven, filho de um rico industrial de Antuérpia, que, desiludido da famosa colônia de naturismo Monte Veritá em Ascano na Suiça, tentou em 1925 organizar uma similar em escala menor em Catalão, Estado de Goiás. Vale assinalar a presença de mulheres atuantes como Marie van Langendonck, que publicou em 1862 o relato de sua vida numa colônia do Rio Grande do Sul ou Georgina Mongruel, musa dos simbolistas e poetisa em Curitiba por volta de 1900. O talento artístico motivou frequentes travessias e migrações como a de Maurice Nadeau, que desde os anos de 1950 encenou peças no Teatro Brasileiro de Comédia e dirigiu inclusive novelas. Nos anos de 1950 e 1960 o violonista Jan Douliez fundou em Goiânia o Conservatório de Música, mas, incomodado pelo regime militar, voltou em 1965 para a Bélgica. O Brasil recebeu também fugitivos belgas. O primeiro foi Pierre Mabilde, que, revoltado contra o novo Rei Leopoldo I, chegou em 1832 ao Rio Grande do Sul, onde, dirigindo a abertura de estradas, ficou cativo dos índios Coroados, que lhe inspiraram seu livro Apontamentos. Nos anos de 1840, um conspirador contra o mesmo rei, o Conde Auguste van der Meeren, teve sua pena de morte comutada em banimento e se estabeleceu na Bahia. Com

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os distúrbios sociais do final de século, socialistas como Augusto Lootens e Alphonse Solheid e anarquistas como Jules Moineau se asilaram no Brasil. Fugindo dos horrores da Primeira Guerra Mundial, um grupo de 30 belgas fundou sua comunidade libertária na fazenda Tabantinguera perto de Cananéia; mesmo malograda, esta aventura brasileira inspirou um dos participantes, Géo Libbrecht, em sua futura obra poética. No início da Segunda Guerra Mundial, cerca de trinta judeus, com passaportes belgas, obtiveram do embaixador brasileiro na França, Souza Dantas, visto para refugiarem-se no Brasil. Uma vez terminado o conflito, para lá escaparam, por sua vez, vários colaboracionistas belgas da ocupação nazista. Outros ainda chegaram ao Brasil para prestar serviço a companhias belgas, como fez o engenheiro Gustave Vauthier, no final do século XIX, nas ferrovias do Paraná e Rio Grande do Sul. Em 1886 a compra da companhia inglesa Gaz do Rio por capitalistas belgas inaugurou um período de investimentos em ferrovias, mineração, indústria têxtil, agropecuária e exploração da borracha, totalizando por volta de 1910 mais de 100 milhões de francos em quase quarenta empresas. Algumas destas tiveram vida curta, como a Companhia Força e Luz, no Rio de Janeiro, que em 1887, embora por pouco tempo, teve parte do centro iluminado com baterias do belga Edmond Julien. Esta prefigurou de certa maneira o empenho belga no fornecimento de energia elétrica no Brasil. Outras empresas foram compradas pelo americano Farquhar como as ferrovias do sul brasileiro pouco antes da Primeira Guerra Mundial; outras ainda mantiveram-se por quase um século, como o Banco Ítalo-Belga, fundado em 1911 em São Paulo. Uma incipiente segunda onda de investimentos belgas no Brasil ocorreu no final dos anos de 1930, mas interrompida pela guerra. A nova dinâmia de investimentos que se verifica atualmente somente se intensificou a partir do final do século XX, mas supera agora as fases anteriores. Desta vez veio acompanhada de movimento de capitais em sentido inverso, pois várias companhias brasileiras instalaram-se na Bélgica. Se as empresas belgas levaram seu pessoal para o Brasil, numerosa colônia brasileira surgiu espontaneamente na Bélgica, com presença mais visível em Bruxelas, dos anos 1990 até hoje, constituída de emigrantes à procura de trabalho. Desde a década anterior, futebolistas brasileiros profissionais foram contratados por equipes belgas, a exemplo do maranhense Luís Oliveira, que se tornou entre 1988-1992 estrela do F.C. Anderlecht e da equipe nacional dos Rode duivels. Bem antes disso, isto é, desde meados do século XIX, foi expressivo o número de estudantes brasileiros nas universidades belgas. Merecem ainda destaque os cerca de quarenta exilados brasileiros no Chile que, depois do golpe contra o presidente Allende, encontraram no final de 1973 refúgio na Bélgica. Dois de seus líderes, Vladimir Palmeira e José Ibrahim, participaram de maneira ativa da redemocratização do País. Cabe mencionar, também, o programa de intercâmbio American Field Service, que desde 1985 facilita para algumas centenas de jovens brasileiros e belgas passar um ano escolar na Bélgica ou no Brasil, hospe-

dados em casas de família. Paralelamente, cresceu o número de expats belgas no Brasil, sendo cada vez maior o número dos que se registram em seus consulados no país. Assim não é de se estranhar o fato de a Bélgica ter se tornado referência frequente no vocabulário e ideário brasileiros. Em razão das dimensões do seu território e padrão de vida de sua população passou a fazer parte da métrica brasileira e adquiriu status de modelo de bem-estar social refletido no termo ‘Belíndia’, forjado em 1974 por Edmar Bacha para definir a sociedade brasileira, que justapõe o bem-estar desfrutado por 10% de seus nacionais nas condições da Bélgica aos 90% daqueles que vivem problemas similares aos da Índia. Esta primeira exploração poderia prolongar-se, enveredando-a na vida científica, educacional e religiosa, mas esta pequena miscelânea de dados é suficiente para evidenciar um surpreendente fluxo quase contínuo e muito diversificado de conexões entre ambos os países, o que justifica um estudo mais aprofundado destas relações multifacetadas e sobretudo recíprocas, relações que nunca suscitaram uma obra de síntese como as que existem para as relações do Brasil com outros países europeus. Diferenciando-se destas obras, preferiu-se aqui uma abordagem bifocal, explorando estas conexões dos dois lados e dando ênfase tanto à presença brasileira na Bélgica quanto à belga no Brasil. Em nosso projeto editorial, ambicionamos, inicialmente, apresentar um repertório sucinto, mas tão completo quanto possível, destas conexões em todos os setores, tanto no passado quanto no presente, alternando verbetes de estudiosos com depoimentos pessoais. Entretanto, logo vimo-nos subjugados e algo desnorteados pela abundância de temas, não suspeitada inicialmente. Além disso, tivemos a grata surpresa de constatar que muitos assuntos já foram investigados recentemente por acadêmicos belgas e, sobretudo, por brasileiros. O crescente interesse existente no Brasil pelos recantos de sua história reflete-se na excelente qualidade da pesquisa nas suas universidades e na conservação do patrimônio material. Em vista do limite de páginas, do tempo e do orçamento disponíveis impôs-se a necessidade de selecionar temas. Assim, deixamos de lado as figuras e os episódios mencionados acima. Procuramos equilibrar os mais conhecidos e proeminentes com outros desconhecidos e quase marginais. Mesmo assim, conexões importantes como na psicologia e psicanálise ou na literatura ficaram de fora. Pedimos desculpas às pessoas para as quais não pudemos dar a devida atenção, mas esperamos que futuramente em outro livro consigamos nos redimir desta falha. Para adequarmos a obra ao espaço disponível reduzimos as referências bibliográficas ao mínimo indispensável. Ressaltamos ainda que cada autor é pessoalmente responsável pelas opiniões emitidas. *** Este projeto foi viabilizado graças ao patrocínio da Tractebel Energia dentro das normas da Lei Rouanet. A boa acolhida dada pelo seu diretor Jan Flachet e seus colaboradores foi determi-

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introdução

nante, como também em Bruxelas o apoio de Dirk Beeuwsaert, diretor da Electrabel e administrador da GDF-Suez. Grande é nossa dívida para com a Incentive Cultural de Raphael Ribeiro, que conseguiu a aplicação da referida lei a este livro. Entre os diplomatas belgas, Peter Claes, cônsul-geral da Bélgica em São Paulo, foi, em 2011, o primeiro a apoiar o projeto, além de fornecer valiosas informações juntamente com seus colaboradores Dulce Vivas e Bart Struyf. Em seguida, também o embaixador belga em Brasília, Claude Misson, ofereceu sua colaboração. Os atuais embaixador Jozef Smets e cônsul-geral Didier Vanderhasselt apoiaram a conclusão do projeto. O embaixador brasileiro na Bélgica, André Mattoso Maia Amado, manifestou, também, especial interesse. Somos particularmente gratos à embaixadora Katia Godinho Gilaberte, no consulado-geral do Brasil em Bruxelas, pelo seu apoio, e ao seu assistente Brunno Hoffmann Velloso da Silva, pelas valiosas informações prestadas. Agradecemos de modo especial a todos os autores por terem aceitado colaborar, sem receber honorários, e particularmente a Els Lagrou, Susana Rossberg, Cristina Dias, Roland Renson por terem coordenado capítulos. Boa parte das ilustrações foi proporcionada pelos próprios autores. Várias fotografias são de autoria de Luciana Mascaro. Outras recebemos de Ivana Vervloet, Regina Lootens Machado, do Museu Histórico de Belo Horizonte, de Silvio Cordeiro, Luc Van Coolput, Bruno De Corte, do Arquivo Municipal de Antuérpia, de Bruno Gosse, do Fonds Léopold III

pour l’exploration et la conservation de la nature, de Luc Vints do KADOC (Centro de documentação católica da Universidade de Lovaina), do Institut Royal du Patrimoine Artistique (KIK-IRPA) em Bruxelas, de Monica Muggler, Patrick Segers, do Serviço de Turismo do município de Dendermonde, do Museu Real de Arte e História (KMKG-MRAH), em Bruxelas, do Ecomusée du Boisdu-Luc, em La Louvière, Bélgica, de Verônica Tamaoki do Centro de Memória do Circo em São Paulo, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, do Acervo do Museu Mineiro-Superintendência de Museus e Artes Visuais, do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, da Pinacoteca do Estado de São Paulo, do Museu da Cidade de São Paulo-Casa da Imagem da Prefeitura de São Paulo, do Museu do Trem do Rio de Janeiro, do Arquivo Público do Distrito Federal, da Christie’s Images, do Irmão João Baptista do Mosteiro de São Bento de São Paulo, do Núcleo de Documentação do Instituto Butantan, da Biblioteca da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”-Esalq, da Biblioteca da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade-FEA-USP, da Europalia em Bruxelas, do arquivo pessoal de Allen Morrison, do conde Frédéric de Limburg Stirum, de Paul Wittamer, do fotógrafo Ricardo de Vicq de Cumptich, e das fotógrafas Vivian Oswald e Sofie Deblieck, que cederam suas obras sem ônus. Devemos, finalmente, registrar que recebemos informações preciosas de Regina Barbosa, Daniela Rocha, Dominique Van Pée, dos padres Johan Konings e Thierry Linard de Guertechin.

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

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Sumário

Parte 1 – Travessias e Migrações

A inserção dos trabalhadores brasileiros migrantes no mercado de trabalho belga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

P res en ças B elg as n o B ra sil

Martin Rosenfeld e Beatriz Camargo

Os ‘flamengos’ do Brasil colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

A Associação Arte N’Ativa: um pouco da nossa história.... . . . . 51

Eddy Stols

Isabel de Lannoy

Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarina. . . 22

Parte 2 – Relações Oficiais e Diplomáticas

Eddy Stols

Jules Luis Parigot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Ana Maria Rufino Gillies e Eddy Stols

Paulo Roberto de Almeida

Jeanne Louise Milde, escultora e educadora. . . . . . . . . . . . . . . 28

Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de Jaegher (1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz (1845-1849) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

René Lommez Gomes e Verona Campos Segantini

Marcel Roos: viajante, escritor e cineasta . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Chris Delarivière

Milton Carlos Costa

A colônia belga de Botucatu. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo. . . . . . . . . . . . 63

Luciana Pelaes Mascaro e Eddy Stols

Clodoaldo Bueno

Uma italo-belga no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil (1895-1912). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Florence Carboni

A casa é sua. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Domingos Savio da Cunha Garcia

Annelies Beck

O Rei Alberto I e a música brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 Daniel Achedjian

Pr e s en ças B ras i lei ras na B é lgica

De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil. . . . . 69

Os primeiros brasileiros em Flandres. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Peter Daerden

Eddy Stols

Brasil-Europa, via Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos XIX e XX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Antônio Carlos Lessa

Eddy Stols

Parte 3 – Relações Econômicas: Comércio e Empresas

Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas em Onze-LieveVrouw-Waver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

O C o mé r cio

Mario Baeck

O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente . . . 75

Os estudantes brasileiros na Universidade de Liège (1870-1914). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Eddy Stols e Silvio Cordeiro

A companhia de Ostende e os portos brasileiros. . . . . . . . . . . . 77

Christine Fellin

Eddy Stols

Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta. . . . . . . . . . . . 46

Antuérpia e os diamantes do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80

Susana Rossberg

Tijl Vanneste

Algumas figuras brasileiras em Lovaina durante os anos 70 . . . 47 Paul Dulieu

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo oitocentista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira . . . . . 114 Regis De Bel

Jan Possemiers

Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil . . . . . . . . . 116

Um traficante de escravos na Bahia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

Regis De Bel

Chris Delarivière

Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes . . . . . . . 118 Chris Delariviere

E m presas belg as n o B ras il

Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação. . . . . 118

A Urucum dos belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

Dulce Eleonora de Oliveira

Fabio Guimarães Rolim

A Cooperação ente a KULeuven e as universidades brasileiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e suas conexões belgas (1904-1918) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão

Paulo Roberto Cimó Queiroz

Me d icina

Um lugar belga em Pernambuco: a cidade industrial da Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.. . . . . . . . . . . . . . . . 93

Marie Rennotte: medicina e emancipação da mulher . . . . . . 123

Jean Suettinni

Eddy Stols

A Solvay chega ao Brasil e abre as portas para a América do Sul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

Lucien Lison e André Jacquemin na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124

Tractebel Energia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

Luciana Pelaes Mascaro

O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios de pesquisa em diabetes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124

Deme: uma empresa de engenharia marinha com 150 anos de experiência mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Decio L. Eizirik

Grupo Jan de Nul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 Katoen Natie: mais de 15 anos de prestação de serviços logísticos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

Antr o po lo gia A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil. . . . . . 126 Els Lagrou

E m presas bras i lei ras na B élgica

Quando a selva chama. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138

A Compagnie Brésilienne des Tramways. . . . . . . . . . . . . . . . . 104

Daniel De Vos

Eddy Stols

As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano. . . . . . . . 140

O Panorama da baía e cidade do Rio de Janeiro. . . . . . . . . . . 104

Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot

Eddy Stols

Citrosuco: presente na Bélgica desde 1980. . . . . . . . . . . . . . . 106

Ensino e Pe sq u isa

Parte 4 – Colaboração Científica

Os belgas nas origens da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Luciana Pelaes Mascaro

A s tron om i a e Geo lo g i a

A cooperação entre o Institut International de Bibliographie e a Biblioteca Nacional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144

Louis Cruls e o Observatório Astronômico do Rio de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Jacques Gillen

Christina Helena Barboza

O Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas e o Barroco Mineiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

Um belga à procura do petróleo no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . 111 Patrick Collon

Erika Benati Rabelo e Myriam Serck-Delwaide

B o tân i ca e Z o o lo g i a

A cooperação acadêmica, científica e técnica entre Bélgica e Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

O botânico Céléstin Alfred Cogniaux e sua relação com o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

Claude Misson

Magali Romero Sá e Alda Heizer

14

sumário

Parte 5 – Influências Religiosas e Ideológicas

Parte 6 – O Brasil Entra em Cena

Jesuítas belgas no Brasil colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

O Br a sil e ntr a e m cena

Eddy Stols

O Brasil entra em cena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195 Eddy Stols

As missões flamengas no Congo e a cultura afro-brasileira. . . 155 Jeroen Dewulf

Brasileiros barrocos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196 Johan Verberckmoes

Dom Gerardo van Caloen e sua reconquista do Brasil beneditino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

Te atr o, Da nça , C ir c o

Eddy Stols

A dança na Bélgica a partir do Século XX. . . . . . . . . . . . . . . . 199

Os cônegos brancos e outras ordens belgas. . . . . . . . . . . . . . . 164

Textos organizados por Cristina Dias

Eddy Stols

Depoimento de Rachel da Costa Cunha. . . . . . . . . . . . . . . 199

O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde. . . . . . . . . . . . 168 Eddy Stols

A Escola Mudra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 Cristina Dias

O sonho monástico de José Moreau em Tabatinguera (Cananéia) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

Depoimento de Claudio Bernardo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200

Eddy Stols

A evolução da dança contemporânea na Bélgica. . . . . . . . . . 201

A Trapa Maristela (1904-1931). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170

Textos organizados por Cristina Dias

José Eduardo M. Manfredini Júnior

Depoimento de Milton Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202

Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro . . . 171

PARTS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202

Peter Heyrman

Cristian Duarte

Os colégios das freiras belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

Depoimento de Maria Clara Villa Lobos. . . . . . . . . . . . . . 203

Eddy Stols

O papel dos produtores, os intercâmbios de companhias de dança e os festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204

As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco. . . . . . . . . . . . 174 Marcelo Lins

Textos organizados por Cristina Dias

Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo (1945-2010). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176

Espetáculos brasileiros na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204 Rodrigo Albea

Eddy Stols

Danças populares brasileiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

Joseph Comblin (1923-2011). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178

Cristina Dias

Carl Laga

Grupos e companhias de espetáculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206

A contribuição dos jocistas belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

Arlene Rocha

Myriam Vanden Nest

Depoimento de Mano Amaro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

A Uniapac e o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184 Peter Heyrman

O homem do carnaval do Rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 Régis Lemaire

Os vínculos entre os mundos maçônicos e laicos da Bélgica e do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

Depoimento de Cristina Dias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209

Nicoletta Casano

A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo . . . . . . . . . . . . . 210

As igrejas brasileiras de Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186

Verônica Tamaoki

Anne Morelli

Circo social belgo-brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212

Grupos espíritas criados por brasileiros na Bélgica e o movimento espírita belga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188

Anne Loeckx

Parte 7 – Música

Fabio Mendes Furtado

Deuses em exílio: notas biográficas de um candomblé na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

Mú sica C lá ssica Músicos belgas no Brasil e brasileiros na Bélgica . . . . . . . . . . 217

Arnaud Halloy

Anna Maria Kieffer

15

brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

Álvaro Guimarães (1956-2009). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222

Baiano, Brasileiro e Bruxellois. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249

Katrijn Friant

Diego Santana Claudino

Biografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224

Documentário e mal-entendido: Retorno sobre uma primeira filmagem no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250

Eliane Rodrigues

Jeremy Hammers

M ú s i ca Popu lar B ras i lei r a

“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete, ah foi bom, meu coração ficou feliz...”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253

MPB . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 Daniel Achedjian

Reynald Halloy

A descoberta da Bossa Nova na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

O Brasil, terra de energia e de cinema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254

Bart P. Vanspauwen

Thierry Michel

A descoberta do Mangue Beat na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . 229

Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista. . . . . . . . . . . 257

Bart P. Vanspauwen

Heron Ferreira

A música brasileira nos festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231

Filmando nas aldeias Kayapó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259

Bart P. Vanspauwen

Gustaaf Verswijver

Os músicos brasileiros residentes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . 232

O fascínio pelo Nordeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260

Bart P. Vanspauwen

Nicolas Hallet

Parte 8 – Cinema e Televisão

Te le v isão

C i n em a Atual

A difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para os belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263

Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235

Daniela Rocha

Parte 9 – Artes Plásticas

Susana Rossberg

Capoeira, Bel Horizon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236

Pintu r a e Escu ltu ra

Basile Salustio

Rastros flamengos no Barroco mineiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269

O meu Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237

Alex Fernandes Bohrer

Roger Beeckmans

Pedro Américo de Figueiredo e Mello: Conexão Ciência & Brasil & Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271

As questões indígena e ambiental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238 Babi Avelino

Madalena Zaccara

A mensagem poética de Oscar Niemeyer . . . . . . . . . . . . . . . . 240

Benjamin Mary (1792-1846) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272

Marc-Henri Wajnberg

Valéria Piccoli

Sobre as “pessoas sem voz” no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Henri Langerock (1830-1915) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274

Lazhari Abdeddaïm

Valéria Piccoli

Paixão pelo Nordeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242

Adrien Henri Vital Van Emelen (1868-1943). . . . . . . . . . . . . 276

John Erbuer

Valéria Piccoli

Em busca de uma arte global. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

Georges Wambach e o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278

Icaro Alba

Aldrin Moura de Figueiredo

Sem-Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245

Um olhar para o meu passado brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . 280

Jean Timmerman

Jef Van Grieken

Descobertas do Brasil entre o som e a antropologia . . . . . . . . 247

Inscrever os direitos do homem entre o Brasil e a Bélgica. . . . 281

Nicodème de Renesse

Françoise Schein

Lampião, sonhos de bandido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248

A visibilidade da arte contemporânea brasileira na Bélgica: uma história recente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284

Damien Chemin

Olívia Ardui

16

sumário

Fonte de inspiração e temas de Luiz Figueiredo. . . . . . . . . . . 291

Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais da Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338

Frederik De Preester e Piet Slijkerman

Luciana Pelaes Mascaro

A trajetória da Galeria Cravo e Canela . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293

Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342

Jacques Ardies

Arte Popular Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296

Emiel De Kooning

Daniel Achedjian

Frédéric de Limburg Stirum e Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345

Europalia.Brasil 2011-2012 ou como quase um milhão de visitantes descobrem ou redescobrem a cultura brasileira. . . . 298

Dominique Vanpée

Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346

Kristine De Mulder

Cassio Ramiro Mohallem Cotrim

Hi s tóri as em Quad ri n h o s

Paraty e o plano de Limburg-Stirum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349

O cartunista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302

Fabio Guimarães Rolim

Ronaldo Cunha Dias

B-architecten. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351

Caatinga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303

Dirk Engelen

Hermann Huppen

O Projeto Bamboostic. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351 Sven Mouton

Foto g rafi a

Parte 11 – Esportes

A oficina litográfica de Leon De Rennes. . . . . . . . . . . . . . . . . 305 Jamil Abib

Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida Internacional de São Silvestre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355

Um patrimônio de fontes em comum com o Brasil: a coleção de fotografias dos Premonstratenses da Abadia do Parque (Parkabdij) de Lovaina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307

Roland Renson

A primeira competição de atletas brasileiros nos Jogos Olímpicos de 1920 em Antuérpia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356

Luc Vints

Um botânico, um jardim e uma expedição: Jean Massart e a “Mission Biologique Belge Au Brésil (1922-23)”. . . . . . . . . 314

Roland Renson

A capoeira na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359

Alda Heizer

Jan Tolleneer

O Rei Leopoldo III e a floresta amazônica brasileira. . . . . . . . 317

Nelson e Rodrigo Pessoa: uma família brasileira dedicada ao hipismo mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360

Gustaaf Verswijver

Frechal, pioneiro da luta quilombola no Brasil. . . . . . . . . . . . 319

Katia Rubio

Christine Leidgens

A obra de Ricardo de Vicq Cumpitch. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

Parte 12 – Gastronomia

Parte 10 – Arquitetura

Produtos brasileiros na gastronomia belga. . . . . . . . . . . . . . . . 365 Eddy Stols

Ramos de Azevedo: um arquiteto brasileiro formado na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325

Interlocuções etílicas entre o Brasil e a Bélgica. . . . . . . . . . . . 368 Daisy De Camargo

Maria Angela P. C. S. Bortolucci

Como um chef mergulhou nos sabores dos ingredientes nacionais valorizando os produtos e a gastronomia brasileira . . 371

Arquitetura industrial belga no Brasil no século XIX. . . . . . . . 327 Bernard Pirson

Quentin Geenen de Saint Maur

Os empreendimentos belgas e a moradia operária . . . . . . . . . 333

Mille merci monsieur Quentin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373

Telma de Barros Correia

Alex Atala

A vila belga de Santa Maria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335

Ensaio do fotógrafo Ricardo de Vicq Cumptich sobre gastronomia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373

Anna Eliza Finger

Nota sobre Arsène Puttemans. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337

Créditos de Imagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374

Luciana Pelaes Mascaro

17

brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

18

presenças belgas no brasil

parte 1

Travessias e Migrações

19

parte 1 – travessias e migrações

20

presenças belgas no brasil

Os ‘flamengos’ do Brasil colonial Eddy Stols

N

ão falta no Brasil quem se orgulhe de sua origem flamenga, seja pelo nome, seja pela aparência, de cabelos loiros e olhos azuis. Quem eram estes pretensos antepassados flamengos? Tratava-se mesmo de flamengos de Flandres ou de holandeses? A confusão entre os dois é frequente e banal no Brasil, mas não agrada aos atuais belgas e holandeses. Merece ser esclarecida por um curto histórico das presenças flamengas no Brasil colonial e das linhas de ascendência. Flamengo tinha, no Brasil colonial como em Portugal, um significado de nacionalidade diferente e bem mais amplo do que aquele vigente para os nativos da região de Flandres, no atual Estado federal da Bélgica. Como flamengos designavam-se não somente os súditos do condado de Flandres como também todas as pessoas vindas dos diferentes condados e ducados dos Países Baixos, reunidos pelos duques de Borgonha e herdados por seus sucessores habsburgos. Em Lisboa, a privilegiada e prestigiosa nação flamenga tinha sua capela – Santo André dos Flamengos – fundada em 1414 por mercadores de Bruges, naquela época a maior praça comercial do Norte da Europa. Mais tarde, no século XVI, a nação veio a admitir também holandeses e outros mercadores ou artesãos das regiões setentrionais. Esta ‘Flandres’ lato sensu dos portugueses coincidia com a ‘Bélgica’ constituída por 17 províncias e representada pelos cartógrafos como um poderoso ‘Leo Belgicus’. Seus habitantes ‘belgas’, um termo apenas corrente entre os letrados latinistas, falavam idiomas diferentes: o flamengo, o holandês, uma variante do baixo-alemão e o francês. Flamengos podiam ser francófonos, já que este idioma predominava em boa parte do condado de Flandres, em cidades como Lille e Douai, e circulava também na metrópole poliglota de Antuérpia. A união das 17 províncias desintegrou-se a partir de 1566 com a rebeldia contra seu soberano Felipe II e a reconquista contrarreformadora, que acabaram criando dois Estados separados: no Norte, as Províncias Unidas, com principalmente a Holanda e a Zelândia, protestantes e em guerras quase contínuas, e, no Sul, os Países Baixos meridionais, incluindo o condado de Flandres, católicos e leais dentro da órbita espanhola. Aliás, estes últimos

compartilharam com Portugal e o Brasil, de 1580 a 1640, os mesmos soberanos Felipe II, Felipe III e Felipe IV. Entretanto, no Brasil esta distinção entre obedientes e rebeldes custou a validar-se. Os holandeses, que começaram nos anos de 1590 a piratear os navios de açúcar brasileiro, conquistaram brevemente a Bahia em 1624 e dominaram Pernambuco de 1630 a 1654, ainda eram chamados de flamengos. Na boca do poeta Gregório de Matos foram até vituperados como ‘o belga ... ímpio tirano’. Ainda hoje a ocupação holandesa de Pernambuco é comemorada, numa veneração bastante ambígua, como o ‘Tempo dos flamengos’ no famoso livro de José Antônio Gonçalves de Mello. Na realidade, a maioria dos invasores era mesmo de holandeses, se bem que ao seu lado lutaram alguns flamengos emigrados ou trânsfugas das províncias meridionais e muitos mercenários alemães. Uns e outros tiveram filhos nos poucos casamentos com portuguesas e sobretudo nas furtivas relações com índias e negras, podendo, assim, figurar como antepassados flamengos de muitos nordestinos. Oposta a esta amálgama com os belicosos holandeses existe, entretanto, uma outra linha de ascendência flamenga que remonta ao próprio condado de Flandres, através de seus mercadores estabelecidos em Lisboa. Estes conseguiram, desde meados do século XV e no contexto dos laços dinásticos entre os duques de Borgonha e a Casa de Aviz, uma participação generosa nas empresas portuguesas no ultramar, primeiro no povoamento da Madeira e dos Açores com gente vinda de Bruges e vizinhança. Destas ilhas seus descendentes seguiram mais tarde para o Brasil, já no século XVI, ou com os colonos açorianos do século XVIII. Naquela época os Açores figuravam ainda em alguns mapas como ‘Ilhas flamengas’. Estes flamengos de segunda ou terceira gerações integraram-se sem maiores problemas na boa sociedade colonial como os Leme (Lam), Taques (Tacx), Dutra (de Hurtere), da Silveira (van der Haeghen), Bulcão (Bulskamp)..., nomes hoje presentes no País inteiro. Uma via flamenga mais direta para o Brasil preexistia desde os anos de 1540, quando os mercadores de Antuérpia, interessados no comércio do açúcar brasileiro e na exploração de engenhos, aproveitaram esta primeira mundialização portuguesa e enviaram

21

parte 1 – travessias e migrações

agentes ou filhos para São Vicente, Bahia e Pernambuco. Assim, constituiu-se lá até o final do século XVI um pequeno núcleo de flamengos de primeira geração, que tiveram também alguma descendência brasileira, como os Campos. Entretanto, sua tranquilidade foi logo afetada pelos ataques ingleses e holandeses e ficaram suspeitos de agir como uma quinta coluna. Alguns, acusados de heresias protestantes, foram deportados pelo visitador da Inquisição em 1594. Além disso, em represália às novas investidas holandesas, decretou-se em 1608 a expulsão desses flamengos do Brasil, mas vários puderam voltar durante a trégua de 1609-1621. Confrontados outra vez em 1624 e 1630 com as invasões holandesas, tiveram que escolher um ou outro partido. Quem, como Gaspar de Mere, ficou com os portugueses, teve seu engenho confiscado. Depois da vitória portuguesa sobre os holandeses em 1654, manteve-se em Lisboa e no Porto uma pequena comunidade flamenga, que intermediava o comércio com o Brasil e que enviava, ocasionalmente, um ou outro agente ao Brasil, sem, entretanto, reconstituir um novo núcleo flamengo.

Desde a abertura dos portos em 1808, os registros brasileiros de estrangeiros mencionaram esporadicamente a entrada de belgas como ‘franceses’ ou ‘holandeses’, em função do passaporte que traziam. É que os Países Baixos meridionais foram anexados pela República francesa em 1795 e passaram, depois da derrota de Napoleão, em 1814, a fazer parte, junto com a Holanda, de um Reino Unido dos Países Baixos, que teve pouca duração. Somente depois da Revolução de 1830 e da Independência da Bélgica é que a nacionalidade belga definiu-se como tal nos documentos de identidade. Porém, o equívoco subsistia no Brasil e belgas passavam frequentemente por franceses, porque falavam francês ou porque tinham residido por um tempo na França. Quanto aos flamengos, estes, já ausentes dos registros oficiais, incorporavam-se doravante no imaginário histórico dos brasileiros. Referências STOLS, Eddy. “Convivências e conivências luso-flamengas na rota do açúcar brasileiro”. In Ler História, Lisboa, 1997, 32, p. 119-147.

Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarina Eddy Stols

A

Bélgica viu-se durante o segundo decênio de sua independência confrontada com uma dramática crise econômica. A tecelagem e os outros artesanatos domésticos da zona rural foram substituídos pela produção fabril nas cidades, ao passo que estas novas indústrias perderam seu acesso aos mercados nas colônias holandesas. O êxodo rural e o desemprego urbano provocaram um pauperismo, mais marcado nas duas províncias de Flandres oriental e ocidental, que, a partir de 1844, tornou-se catastrófico com a fome e a alta mortalidade subsequentes aos malogros das safras de batata e às epidemias de tifo e cólera. Para evitar uma explosão social, os dirigentes políticos, e particularmente o Rei Leopoldo I, buscaram o remédio na emigração para colônias de povoamento belga no ultramar, que deveriam criar novos mercados para produtos belgas. A primeira colônia foi lançada em 1841 em Santo Tomás, na Guatemala, onde seu governo aceitou ceder um território a uma companhia de colonização belga. Esta focalizou durante um decênio as melhores atenções das autoridades belgas ao mesmo tempo em que suas atribulações comprometiam as outras tentativas coloniais nos quatro continentes. Neste contexto, não podia faltar um projeto colonizador no Brasil, país que se firmava naqueles anos no horizonte dos belgas. No porto de Antuérpia cresceu o número de partidas de navios para o Brasil. Comerciantes belgas, como os Laporte, Saportas e Hanquet, investiram na praça do Rio de Janeiro para a venda de armas e tecidos. A compra de café brasileiro começou a substituir o café holandês de Java. A riqueza botânica do Brasil fascinava as

elites belgas e vários naturalistas, como Louis van Houtte, Auguste Ghiesbrecht e Jean Linden, que partiram à busca de novas plantas. Além disso, os diplomatas brasileiros na Bélgica mostravam-se atentos à questão da emigração. Se o governo do Brasil incentivava a implantação de colonos europeus, procurava diversificá-los além dos suíços e alemães. Dos belgas, reputados por seus tecidos de linho, esperavam a introdução da cultura e de fábricas que utilizassem essa planta. Com este propósito, o presidente da província do Rio de Janeiro, Honório Hermeto Carneiro Leão, assinou, em 20 de outubro de 1842, um contrato com Ludgero Joseph Nélis, empresário do linho de Zele em Flandres oriental, para trazer 20 agricultores e implantar esta cultura numa concessão na Pedra Lisa, perto de Campos. Pouco depois, em 10 de maio de 1843, o contrato foi ampliado para 125 colonos com meia légua de terra e um empréstimo para suas passagens e primeiras despesas, a serem reembolsadas em dois anos. O cônsul-geral brasileiro na Bélgica, José Augusto Rademaker, vistoriou pessoalmente em Zele os candidatos: eram bons agricultores e suas mulheres, especialistas no trabalho com linho e manteiga. Dos 106 colonos embarcados no porto francês vizinho de Dunquerque, no navio francês Curieux, chegaram ao Rio em 28 de dezembro de 1843 somente 99, sendo que seis e um recém-nascido morreram durante a travessia de 56 dias. Entre eles estavam 56 solteiros, 9 casais, 6 moças e 16 crianças. Transportados para

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presenças belgas no brasil

Campos por uma escuna de guerra, seguiram em barcas até Pedra Lisa em 14 de fevereiro de 1844, onde deviam receber casas provisórias e alimentos até as primeiras colheitas. Desenganados e descontentes com o despreparo, em abril quase todos tinham desaparecido. Novas providências para comprar gado a fim de reter os poucos restantes não adiantaram. O único a ficar, Nélis tirou todo o proveito possível das matas, para escândalo dos vizinhos, que queriam repartir as terras entre os pobres. Alguns fugitivos se colocaram em outras colônias, mas boa parte voltou à Bélgica e relatou na imprensa seus dissabores. O governo nada recuperou de seus gastos e o próprio Nélis voltou para Zele onde, em 1847, figurou como morador e fabricante de velas. Neste contexto de Pedra Lisa situou-se a vinda a Campos do casal Charles Muylaert, originário de Aalst, cidade próxima a Zele, que deixou numerosa descendência no Brasil, ativa na música e nas artes. Perto de São Fidelis (RJ), a colônia de Valão dos Veados, montada pelo proprietário Eugênio Aprígio da Veiga em 1847, contou com 13 belgas. Outra atividade econômica belga que suscitava particular interesse brasileiro era sua já bem avançada exploração das minas de carvão. Para examinar o potencial carbonífero brasileiro e transferir a tecnologia belga, o governo imperial contratou, em 1839, o cientista Jules Parigot. Mal sucedido, este acabaria, mais tarde, nos anos de 1860, como diretor de colônias no Paraná. Um outro belga, Charles Van Lede, travou um nexo mais direto entre exploração geológica e colonização. Charles Van Lede (1801-1875), nascido em Bruges de uma família de comerciantes e proprietários de terras, conhecia a América Latina por seu trabalho como engenheiro militar no México e no Uruguai nos anos de 1826 a 1828. No Chile teria sido diretor das obras hidráulicas. Seu irmão, Louis Auguste Van Lede, vice-cônsul do Brasil em Bruges e sócio da Société de Commerce de Bruges, fazia comércio com o Brasil. Em abril de 1837 tinha despachado um navio para o Rio de Janeiro com farinhas, tecidos e armas. Em dezembro de 1841, Charles partiu para prospectar no Brasil, com um capital de 50.000 francos e recomendado pelo encarregado de negócios brasileiro em Bruxelas, Visconde de Santo Amaro. Este apreciava os belgas como “bons trabalhadores e católicos”, mas pretendia eliminar “a escória da sociedade”. Charles Van Lede levou consigo Joseph Philippe Fontaine, como delegado da Société de Commerce de Bruges e seu futuro substituto, e mais um sobrinho, Jules de Laveleye, mais tarde vice-cônsul do Brasil em Gand. Percorreu boa parte de Santa Catarina, de São José a Lages, remontou o Rio Itajaí, examinou o potencial de mineração de carvão como em Tubarão, levantou um mapa e redigiu a nota Geologia de Santa Catarina. Esta foi traduzida na Revista do Instituto Histórico, 1845, t. 7, do qual se tornou correspondente estrangeiro. Seu trabalho alimentou boatos de que queria explorar carvão e minérios com mão de obra flamenga. No Rio de Janeiro conseguiu do Império, em 10 de agosto de 1842, uma concessão de terras devolutas de 20 léguas quadradas que sua nova Companhia belgo-brasileira de colonização devia valorizar com capital suficiente para obras e construções e promover

a vinda de no mínimo cem colonos por ano. O governo imperial pagaria trinta mil réis por colono maior de 14 anos e dez mil por aqueles com idade entre três e 14 anos. Daria isenções de taxas sobre a importação de móveis, víveres, sementes, equipamentos agrícolas, material de construção, livros e armas. Permitiria a exploração de minérios, salvo diamantes e carvão, que exigiriam um contrato particular. Os colonos seriam submissos às leis do Império, mas gozariam de liberdade religiosa e seus filhos nasceriam brasileiros. Não poderiam empregar escravos. De regresso à Bélgica, Van Lede sintetizou suas informações gerais sobre o Brasil e Santa Catarina num livro substancial de 435 páginas, De la colonisation au Brésil, Bruxelas, 1843. Mandatado pela Société de Commerce de Bruges, organizou uma sociedade anônima de 6 milhões de francos em 6.000 ações. Esperava atrair capital e colonos com a distribuição de seu livro e de folhetos não somente na Bélgica como também na vizinha Renânia alemã. Rivalizando com a colonização já mais adiantada em Santo Tomás de Guatemala, seu projeto ambicioso pretendia envolver as mais altas instâncias do país. Entretanto, o principal banco belga, o Société Générale, recusou-se a promover a subscrição de ações, alegando que não podia depender de um governo estrangeiro. O próprio governo belga, alertado por seu encarregado de negócios no Rio de Janeiro, Edouard De Jaegher, sobre a instabilidade política no Brasil, os riscos financeiros e os problemas em casos de heranças, negou a proteção oficial e concedeu somente o patrocínio do rei e passaportes gratuitos aos colonos. Não consta que a hierarquia católica deu seu apoio como o fazia para a colônia na Guatemala. Mesmo assim, negociantes de Antuérpia, como Théodore de Cock e Melchior Kramp, participaram e facilitaram a ratificação da nova Companhia em 19 de janeiro de 1844. A imprensa advertiu os eventuais acionistas que ainda faltava a aprovação da Câmara brasileira e que as terras eram mais baratas nos Estados Unidos. Também na Renânia publicou-se um exame crítico do projeto: Die Belgischen Colonien in Guatemala und Brasilien, Colônia, 1844. De seu lado, o cônsul-geral brasileiro, José Augusto Rademaker, que no início era favorável ao projeto, se distanciou. A ausência de brasileiros no conselho de administração, as críticas ventiladas por De Jaegher, as passagens sobre as dívidas do Brasil no livro de Van Lede e a pouca consideração deste último chocaram sua autoestima de brasileiro, ainda mais quando os jornais escreveram que Van Lede tinha conquistado para a Bélgica ‘un petit royaume de 400 lieues carrées’ – um pequeno reino de 400 léguas quadradas. Rademaker ressentia a resistência dos belgas em ceder ao Império a soberania sobre seus súbditos e sua preferência pela colônia mais dependente de Santo Tomás de Guatemala, para onde embarcavam nesta época mais de 500 belgas. Algo recalcitrante, Van Lede não desistiu e partiu novamente em junho de 1844 para efetuar a demarcação de sua concessão. No Brasil lhe esperava a decepção da nova lei, que interditou a doação de terras públicas. Como os primeiros colonos já estavam embarcando, Van Lede comprou por conta própria, de Henrique Flores, uma légua quadrada de terras na margem do Rio Itajaí, a

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futura Ilhota. No final de agosto, saiu de Ostende o barco Jan Van Eyck, do capitão Minne, com a primeira leva de 114 emigrantes, principalmente da região de Wingene, na província de Flandres ocidental, em maioria agricultores, jovens de 20 a 30 anos, alguns casados e com filhos. Mas vinha também gente de classe média urbana, como o já citado Joseph Philippe Fontaine, Gustave Lebon, o agrimensor Henri Devreker, Hypolite Vanderheyden de Ostende e Pieter-Jan Plettinck. Este último, que foi médico e farmacêutico em Bruges antes de dedicar-se à agricultura e à destilaria em Jabbeke, escrevia suas cartas num bom francês (Boutens). A viagem levou 12 semanas, com paradas de oito dias em Santa Cruz de Tenerife e no Rio. Nem todos os imigrantes seguiram diretamente para a colônia no Itajaí. Plettinck, diante de notícias confusas sobre as terras, ficou no Desterro, pensando em exercer a medicina por lá. Outros 22 imigrantes se retiraram logo no primeiro ano e um deles, De Gand, ganhou até o processo movido por Van Lede. O grupo de Vanderheyden, com cerca de 14 pessoas, julgou as terras de Van Lede de má qualidade e alugou outras. Na própria Ilhota, cada colono recebeu um lote individual de 50 braças (110 metros) de largura, no qual devia uma renda em natura e mais um dia por semana de trabalho gratuito para o diretor da colônia. Pagaria a compra em quatro ou oito anos. Surpreendentemente, em fevereiro de 1845 Van Lede já havia deixado a direção da colônia a Fontaine, seu homem de confiança. Era uma fuga de suas responsabilidades ou um sinal de que julgava sua tarefa terminada? Pelo menos Fontaine informou, em carta de 07 de abril de 1845, publicada no diário oficial belga Le Moniteur, que os colonos estavam com boa saúde, já livres dos borrachudos e da sarna, contentes e trabalhando duro. Já havia 16 casas com um caminho traçado ao longo do rio e até uma área para um jogo de bochas e 25 hectares desmatados, que renderam a primeira safra. Plantaram feijão preto, batatas e, nas linhas divisórias, cafeeiros e laranjeiras, e tinham planos para cana, tabaco, linho, índigo, nopal para a cochinilha e até alpiste, e mais estradas para novos colonos. Também o cônsul belga em Desterro, Charles Sheridan, nomeado em maio de 1844 por causa de sua longa experiência marítima, confirmou que a colonização estava bem encaminhada e oferecia perspectivas para mais emigrantes. O próprio Sheridan, associado com o armador Telghuys, de Antuérpia, desviou emigrantes para suas próprias terras compradas em Tijucas Grandes. Foi provavelmente ele quem incitou Pierre Van Loo, filho de um respeitado negociante de Gandt, a investir sua herança de 10.000 francos num projeto com 16 colonos. Contratados em cartório, eram em maioria agricultores da região de Wingene, mas também alguns valões, dois operários, um ferreiro e um aluno de farmácia. O médico Plettinck, em carta de março de 1845, também propôs a seus conhecidos de Jabbeke a formação de uma companhia de 20.000 francos e a compra de terras para 12 colonos. Cada um entraria com pelo menos mil francos e deveria trazer utensílios agrícolas, tecidos baratos de algodão, sementes de centeio, armas e pólvora para caçar porcos e animais selvagens. Como Plettinck não deu mais sinal de vida, seu projeto provavelmente não vingou.

Paralelamente, esta colonização belga em Santa Catarina se conectou com o desenvolvimento da horticultura tropical na Bélgica e particularmente na cidade de Gand. Um de seus principais horticultores, Verschaffelt, enviou um empregado, François De Vos, para coletar orquídeas em Santa Catarina e recebeu deste a Cattleya Leopoldi e a Cattleya elegans, cuja comercialização exitosa rendeu bons lucros. Rijcke foi outro colono belga que também se dedicou à caça de plantas, talvez a serviço de outro horticultor gandense, Louis van Houtte. Graças às suas cartas, conservadas pela família, conhece-se um pouco melhor a trajetória catarinense do naturalista Lambert Picard (1827-1891). Jovem, órfão de um metalurgista luxemburguês, partiu em 1846, depois de um curto estágio com um horticultor em Bruxelas, para fazer dinheiro como ‘caçador de plantas’ no Brasil. Antes de coletar pelo interior, Picard passou várias semanas nas terras de Telghuys e Vanderheyden e conheceu depois outras colônias. Logo na sua primeira volta à Bélgica, em 1850, publicou, no Boletim da Academia belga, uma memória crítica sobre colônias. Entusiasmado pelas riquezas da província e bom observador, analisava as falhas de Van Lede e insistia que futuros colonos deveriam receber lotes já demarcados e casas preparadas para não perder tempo nem ânimo diante da selva impenetrável. Aconselhava a adoção das tradicionais culturas locais, como de cana, mandioca, feijão e milho. A exemplo dos agricultores brasileiros já experimentados, não devia proceder-se a um desmatamento tão minucioso e custoso como na Europa. Na mesma linha, Picard julgava indispensável empregar, como os brasileiros, mão de obra escrava, até que uma lei geral abolisse o tráfico. Regressando a Santa Catarina em 1855, voltou a expedir plantas tropicais e peles de jaguatiricas à Bélgica mas, em 1862, passou a exercer a medicina natural em Alegrete, no Rio Grande do Sul. Após juntar dinheiro suficiente, foi estudar medicina em Heidelberg, onde se formou em 1872. Homologou seu diploma na Bahia, mas preferiu praticar no Uruguai, primeiro em Montevideu e, finalmente, em Nueva Palmira. Referente à Ilhota, a colônia já estava desde o final de 1845 vivendo seus primeiros dramas com inundações, safras destruídas e mortes. Fontaine pagava caboclos para o trabalho mais duro e provocava a ira dos belgas, que se recusavam a prestar doravante seu dia obrigatório de trabalho gratuito. As brigas levaram Fontaine a fazer queixa às autoridades brasileiras, que condenaram três belgas, Krabeels e os dois irmãos Maes, a dois anos de prisão. Em Desterro, suas mulheres com dez crianças vagavam pelas ruas, pés descalços e pedindo esmolas. O consulado ajudou no seu sustento e colocou as crianças na escola pública. Os presos protestavam e teimavam em ser julgados pelas leis belgas. A reputação briguenta dos belgas piorou com um incidente em maio de 1846, quando Jan Van Eyck trouxe ao porto de Desterro mais colonos e mercadorias. Por andar tarde da noite pelas ruas, o capitão Minne e seus marinheiros foram interpelados por guardas da polícia e chegaram às vias de fato. No dia seguinte o subdelegado de polícia e o

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juiz de direito foram a bordo intimar os belgas a explicar-se e toda a tripulação acabou presa. O cônsul Sheridan não ousou intervir no meio de um populacho que gritava “matão já esta cambada d’estrangeiros, enforcão já todos elles, arrancão a bandeira”. Identificado como belga, Jean Eilgner foi insultado na rua e a esposa teve a roupa rasgada. Outro belga foi expulso. O clima xenófobo piorou com a chegada, em agosto de 1846, do Adèle com Pierre Van Loo e seus colonos. Estes sofreram maus tratos já na alfândega, que exigiu direitos excessivos sobre objetos de uso pessoal, como instrumentos agrícolas, quadros de família ou uma caixa para preservar plantas do agente do horticultor Van Houtte, de Gand. Até a casa do cônsul Sheridan foi vasculhada à procura de contrabando. Para maior confusão, Fontaine abandonou a colônia, vendendo o sino da igreja e a casa como material de construção, e deixou Lebon como substituto. Ao menos registrou, em 17 de julho de 1847, numa planta conservada no Museu de Tervuren, os nomes dos cinco colonos ainda presentes com 19 dependentes, mulheres e filhos, de outros três ausentes e ainda de mais três moradores sem lote. Os outros se dispersaram por outras colônias ou voltaram para a Bélgica Sheridan informou o novo encarregado belga, Auguste van der Straten Ponthoz, e atribuiu estas hostilidades a um partido liderado pelo presidente da província e juiz de direito. Segundo ele, estas elites nacionais estavam acostumadas a obter concessões de terras, que rentabilizavam pelo trabalho de colonos alemães ou que, eventualmente, lhes vendiam. Achavam-se agora prejudicadas pelas empresas belgas de colonização, que não permitiam semelhante exploração de seus imigrantes. Alguns, contrários ao desmatamento por mão de obra livre, preferiam a escravidão. Numa interpretação similar, Van Loo considerou os incidentes com Jan van Eyck como vingança, mas não deixou intimidar-se, ainda mais porque a revolução no Rio Grande do Sul dava sinais de “desintegração deste imenso Império”. Em sua opinião – significativa do incipiente estado de espírito colonialista entre alguns colonos –, os belgas, orientados por “chefes inteligentes” e “tão numerosos e com um núcleo de gente capaz, poderiam adquirir influência política e dirigir o movimento para o proveito da Bélgica”. Se não, Santa Catarina cairia nas mãos dos ingleses, como também temia o cônsul francês. O cônsul Sheridan, consciente de sua pouca influência e ainda sem exaquatur (permissão para exercer seu cargo no País), esperava que van der Straten fosse intervir junto ao governo central. Este diplomata profissional adotou uma atitude ambígua, mas de acordo com a reserva do governo belga diante da experiência em Santa Catarina. Criticou Sheridan por não ter intermediado entre Fontaine e os colonos e o demitiu por sua condenação por contrabando. Ao mesmo tempo, deixou claro que não interviria para proteger os belgas, afirmando que estes deveriam aprender a conformar-se com as leis de seu novo país e que seus problemas eram decorrentes dos contratos. Tendo em vista a suscetibilidade da opinião pública, o melhor era esquecer o episódio com Jan Van Eyck. Assim, o encarregado achou pouco oportuno que o navio de guerra da marinha belga Duc de Brabant, que devia, em 1847,

ostentar e prestigiar a bandeira belga na costa da América do Sul, fosse fazer escala em Desterro. Sheridan liquidou seus negócios, abandonou sua pequena colônia e voltou a Gand. Em 08 de julho de 1846, seu cunhado, Paul Dierxsens, secretário da Câmara de Comércio de Antuérpia, interveio em sua defesa, acusando van der Straten e seu cônsul Saportas de ineptos. Suas queixas fizeram o ministro belga das Relações Exteriores lembrar, em 29 de janeiro de 1847, ao encarregado no Rio seu dever de proteger os nacionais, sem que desse por isso qualquer apoio oficial a esta colonização. Essas desavenças naturalmente repercutiram na imprensa e no parlamento belgas em discussões sobre os rumos da emigração depois dos malogros em Santa Catarina e na Guatemala. O próprio Van Lede, eleito conselheiro provincial de Flandres ocidental, polemizou no final de julho de 1850 em Le Moniteur com o seu antagonista no Rio, De Jaegher, nomeado governador de Flandres oriental. Boatos de que venderia sua concessão deixaram os diplomatas brasileiros em Bruxelas de sobreaviso, ainda mais porque, por várias vezes, foi solicitada sua benevolência para deixar deportar ao Brasil presos dos asilos de mendicidade e que novos candidatos à emigração pediam subsídios brasileiros. Em Ilhota, porém, onde por meados de 1847 restavam somente 63 pessoas, a colônia se estabilizou e voltou a crescer. O novo cônsul belga, o suíço Schuttel, nomeado em 1850, autor dos Relatórios do Império de 1854 e 1859, o viajante alemão Avé-Lallemant em 1858 e o capitão Petit e seu adjunto Émile Sinkel, do Duc de Brabant, que em meados de 1855 acabou entrando em Desterro, citaram números variando de 89 a 200 indivíduos e atestaram seu bem-estar e boa natalidade. Na margem alta do rio, em pequenas casas cinzentas, mas limpas, viviam bem nutridos e contentes e casavam-se entre si. Tinham muitos filhos, que Avé-Lallemant viu “chafurdando alegres na lama entre bananeiras e canas de açúcar”. Locatários ou proprietários, plantavam milho, feijão, batatas, algodão e café, tinham gado, engenhos de cana e mandioca ou trabalhavam como profissionais. Econômicos, alguns já dispunham de dinheiro para emprestar a outros ou para voltar à Bélgica. Na falta de estradas até a costa, faziam comércio com uma escuna de Lebon pelo Rio Itajaí até a foz. Ao contrário, bem mais crítico se mostrou o diplomata belga Charles d’Ursel durante sua visita em dezembro de 1873. Chegando pelo rio, se deparou com a pobre venda de J. Maes e convocou todos. Das 22 famílias reunidas, a maior parte encontrava-se em situação de quase miséria. Continuavam casando em endogamia e falando ainda o flamengo, mesmo na segunda geração. Sem contratos ou papéis, viviam inseguros e incomodados pelo cônsul Schuttel, que pretendia cobrar dívidas de Van Lede. Quando este faleceu em 1889, seu legatário, o Sint-Jans Hospitaal de Bruges, procurou recuperar as terras e enviou um agrimensor, mas os colonos belgas resistiram e conservaram as terras. Nas gerações seguintes quase todos abandonaram a agricultura para profissões nas cidades. Hoje encontram-se os numerosos descendentes, Castellain, Coninck, Gevaerd, Hostin, Maes... espalhados por toda Santa Catarina e até nos Estados vizinhos.

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Ilhota tornou-se município em 1958 e, confrontado com a forte afirmação cultural e folclórica das outras comunidades étnicas na região, seguiu esta onda e começou ultimamente a comemorar suas raízes belgas. Organizou-se em 2010 uma festa Belga-Expo e formou-se uma rede da família Brocveld.

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Jules Louis Parigot Ana Maria Rufino Gillies e Eddy Stols

A

surpreendente trajetória do belga Jules Louis Parigot, diretor de colônias no Brasil imperial, redundando entre dois continentes e três ciências, tão característica do século XIX, merece mais que este esboço biográfico ainda fragmentário. De origem francesa, nascido em Paris em 1806, formou-se em medicina e foi nomeado em novembro de 1835 professor de mineralogia e geologia na Université libre de Bruxelles, recém-fundada em 1834 dentro do espírito do livre pensamento. No ano seguinte participou da comissão que devia redigir um projeto para organizar a nova Académie Royale de Médecine. Fez-se também membro da Société de Médecine de Gand e da Société des Sciences Naturelles et Médicales de Bruxelles. Ao mesmo tempo, redigiu uma Carte du bassin houiller de la Belgique et du nord de la France (Mapa da Jazida Carbonífera da Bélgica e do Norte da França), Bruxelas, 1838. Seu livro Histoire des tribus indiennes de l’Amérique septentrionale, Bruxelas, 1837, demonstrou seu interesse pelo novo mundo, que se concretizou na ideia de fazer uma viagem ao Brasil, como fizeram outros belgas na época. Apresentando-se como naturalista em carta de 28 de março de 1839 ao Ministro de Relações Exteriores belga, pediu subvenção de um ano de salário para uma viagem científica ao Brasil e países vizinhos, onde coletaria dados estatísticos, estudaria a economia rural e doméstica, examinaria o mercado para as exportações belgas e ofereceria seus serviços para fazer o mapa geológico do Império (Amaeb, 2015). Recebeu apenas uma carta de recomendação e a promessa de indenização no regresso. Mais receptividade encontrou no ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, Caetano Maria Lopes Gama, que informou o Ministro dos Negócios do Império, Manuel Antônio Galvão, sobre a possibilidade

de contratar Parigot para pesquisas mineralógicas e a exploração do carvão de pedra no Brasil (AHI). O interesse do governo brasileiro pelo carvão de pedra se devia naquele momento menos aos primeiros projetos ferroviários, mas antes à navegação a vapor, que tinha boas perspectivas na costa marítima e nos rios do País. Parigot recebeu este encargo e com instruções do Ministro do Império de 21 de novembro de 1839 foi primeiro a Alagoas e logo à Bahia. Lá, desde janeiro de 1840, fez sondagens na Ilha de Itaparica, mas em Ilhéus foi perturbado pelas chuvas. Pelo registro de estrangeiros, em 5 de julho de 1840 embarcou do Rio de Janeiro para o Sul. Publicou seus primeiros resultados no Rio de Janeiro em Memória sobre o carvão de pedra no Brasil (1841), Minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1841) e Memória terceira sobre as minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1842) (Anderson Heleodoro). No final destas viagens Parigot pode ter cruzado com o compatriota Charles Van Lede. Este liderou sua própria exploração em Santa Catarina no início de 1842, com atenção particular para o carvão, e obteve, em 10 de agosto de 1842, uma concessão imperial para trazer imigrantes belgas através de sua companhia belgo-brasileira de colonização. Ao mesmo tempo, o governo imperial encarregou Parigot de iniciar a exploração do carvão e de buscar capitais, mineiros belgas e instrumentos de mineração na Inglaterra e na França. Segundo o Jornal do Comércio de 10 de setembro de 1842, ele estava de partida no Rio de Janeiro. Poucos dias depois, o encarregado de negócios belga, De Jaegher, em aviso ao seu ministro sobre esta missão, exprimiu sua pouca confiança em Parigot e o aconselhou lhe conceder somente ajuda, depois de ter ouvido Van Lede.

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presenças belgas no brasil

Em janeiro de 1843, na Bélgica, Parigot tentou convencer a Société Belge de Colonisation a associar-se, com o devido respeito aos interesses brasileiros, à Compagnie Impériale des Mines de Sainte Catherine (Companhia Imperial de Minas de Santa Catarina) e a todas as indústrias conexas, um projeto em discussão no Parlamento brasileiro. Se o diretor da sociedade belga manifestou um interesse polido, deu prioridade ao projeto de colonização na Guatemala. Ao mesmo tempo, Van Lede estava buscando acionistas para sua companhia e gozava então da maior simpatia do cônsul-geral, José Rademaker, da legação do Brasil na Bélgica. Rademaker tinha recebido ordens para auxiliar Parigot e pagar-lhe a pensão. Como Parigot preferiu comprar na Bélgica – em vez de na França ou na Inglaterra – máquinas de mineração do duque d’Arenberg pelo preço de 3.500 francos, Rademaker ficou desconfiado e levou o engenheiro Tarte para examiná-las. Este as julgou ultrapassadas, mas Parigot acusou Rademaker de cumplicidade com Van Lede. No Rio de Janeiro também circulavam críticas e boatos contrários. Assim, no final de 1843, Parigot foi exonerado e os pagamentos, suspensos. Pelo menos algum material foi enviado, já que em carta ao Presidente da Província da Bahia Parigot solicitou a liberação de materiais destinados à mineração de Santa Catarina, procedentes da Europa, porém levados à alfândega da Bahia em 1844. De volta à Bélgica, Parigot dedicou-se mais à medicina e particularmente ao tratamento dos doentes mentais no Hospice de Bruxelas. Em 1849 foi nomeado inspetor-médico da colônia de alienados de Geel, uma pequena cidade na província de Antuérpia, onde desde a Idade Média se acolhia loucos nas casas de família com bons resultados. Entretanto, esta tradição salutar se deteriorou sob o mando tirânico de diretores eclesiásticos. Assim, o governo belga resolveu intervir e reorganizar a colônia com um serviço de quatro médicos e um inspetor. Neste cargo, Parigot restabeleceu e reformou os métodos tradicionais. Os alienados tinham seu próprio quarto, bem melhor que a cela dos asilos, não eram acorrentados, mas saiam quando queriam e até trabalhavam no campo. Faziam música, com direito a uma “cervejinha”. Recebiam-se mesmo estrangeiros e muitos se curavam ou, pelo menos, não pioravam. Desta experiência resultaram várias publicações como Thérapeutique naturelle de la folie: l’air libre et la vie de famille dans la commune de Gheel (Terapêutica natural da loucura: o ar livre e a vida em família na cidade de Geel), Bruxelas, 1852, De l’hygiène des sentiments (Da higiene dos sentimentos), 1856, e De la réforme des asiles d’aliénés (Da reforma dos asilos de alienados), 1860. A visita do jornalista francês Jules Duval em 1856, um entusiasta e praticante das ideias fourieristas num tipo de falanstério na Algéria, resultou num livro badalado, Gheel ou une colonie d’aliénés vivant en famille et en liberté (Geel ou uma colônia de alienados vivendo em família e em liberdade), Paris, 1860. Já em 1856 Parigot se deixou voluntariamente substituir em Geel, talvez porque a boa repercussão internacional de seus métodos lhe abriu novos horizontes. Por volta de 1861-1864 parece ter

ido a Nova York para dirigir um asilo. Entrementes, nos anos de 1850 a 1880, seu pensamento e suas propostas apareciam com destaque na corte imperial brasileira nos debates e discursos médicos sobre neuroses e loucura (Gonçalves). Não se sabe se Parigot voltou ao Brasil por algum convite, por iniciativa própria ou por um casamento. No final da década de 1860 já estava neste país e publicou O futuro dos hospícios de alienados do Brasil: memória offerecida a imperial Academia de Medecina do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 1870, 12 p.). Para este espírito polivalente e algo volátil a problemática das colônias de alienados se aproximava daquela das colônias de imigrantes no Brasil. Estas se encontravam, na época, em plena efervescência e as desavenças dos colonos encontravam acirrada repercussão na Europa. Entrando nas discussões sobre as alternativas, Parigot pronunciou um discurso, lançado em folheto, Convirá ao Brasil a importação de colonos chins?, em 16 de agosto de 1870, na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, da qual se tornou membro. Figurava pelo menos desde 15 de fevereiro de 1868 como diretor na colônia do Assunguy, composta por brasileiros, alemães, ingleses, franceses, suíços e outras nacionalidades, servindo também como médico e ocasionalmente como intérprete em quatro línguas. Teria aceito a função, segundo seu próprio comentário ouvido por um colono, principalmente para poder escrever sossegadamente uma obra sobre loucos (Lamb e Garcia). Se queixas dos imigrantes, inclusive contra os diretores, eram frequentes, nada consta nas fontes disponíveis contra Parigot. Segundo o diplomata belga Edouard Anspach, era bem considerado (Recueil consulaire, 16, 1870, p. 24-28). Mostrava-se muito comprometido a atender às necessidades dos colonos e ver cumpridas as promessas feitas pelo governo. Reclamava da falta de verbas para receber os colonos em casas prontas na sua chegada e prover-lhes ferramentas, panelas e alimentos, para preparar o caminho que conduzia às melhores terras, para contratar trabalhadores. Defendia a ideia de que, com as famílias pobres dez dias de sustento – conforme ditava o regulamento – não eram suficientes e que o provimento deveria estender-se por seis meses. Desaprovava a remessa de imigrantes solteiros por observar que estes não conseguiam viver sozinhos no mato. Além disso, denunciava as mazelas de diretorias anteriores e o não cumprimento das obrigações por outros elementos que faziam parte do pessoal da colônia. Assim, mandou demitir o engenheiro da colônia, Chalreo Jr, o que provocou longas discussões e argumentações entre ele, o engenheiro e as autoridades provinciais. Tantas críticas e sugestões podem ter causado sua transferência para a colônia de Cananeia, por portaria de 6 de abril de 1869. Sobre sua atuação em Cananeia há poucos dados. O relatório da Agricultura de 1870 citou um plano seu para abrir um tram-road do porto até Castro, atravessando a Serra Negra e a colônia de Assunguy. Pouco depois, em 31 de março de 1871, suplicou ao Imperador para ajuizar sua proposta de ‘ir à Europa despertar a emigração espontânea de pequenos proprietários’ (AN, M160D7403). Faria conferências em vários países, mediante pagamento da passagem de ida e volta e de adiantamento de seis meses de seu ordenado.

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Bibliografia sobre Parigot

Na mesma carta pediu sua exoneração do cargo de diretor. Não se sabe se foi realmente à Europa, mas pelo menos retornou à Colônia de Assunguy, onde, em 1875, segundo o relatório sanitário, atuava como médico da colônia. Pouco depois pediu ao presidente da província licença de 2 meses, com vencimentos, para tratar da saúde em Curitiba. Lá estava sua família, que ele só havia visto uma vez desde que assumira o posto na colônia. Além disso, ele referiu-se a conflitos com o então diretor da colônia, Pedro de Alcântara Buarque, em assuntos de natureza médica. Faleceu em 1877 ou 1878 na colônia Brusque ou Itajaí (Oswaldo Cabral, História de Santa Catarina, Rio de Janeiro, 1970, p. 243). Vários de seus descendentes desempenharam importantes funções no Estado do Paraná. A partir deles se poderia talvez preencher as lacunas de sua biografia.

Arquivo Ministério das Relações Exteriores (Amaeb), Bruxelas, 2015 e 2028, I; Cor. Pol. Brésil, II, De Jaegher, 16.09; 1842. AHI 300 04 01 – Parte I – Avisos (minutas) expedidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Ministério dos Negócios do Império – S. Seç. Engenharia e Mineralogia. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (AN), Documentação Histórica, Cod. 807, livro 5, p. 155-159, e livro 6, p. 57-61; M160 D 7403. GILLIES, Ana Maria Rufino. ‘Os ingleses do Assunguy (1859-1882) sob a perspectiva do processo civilizador: um estudo comparativo com outra comunidade britânica do século XIX’. X Simpósio Internacional Processo Civilizador. Campinas, SP, 1-4 abr. 2007. GARCIA, Edrielton dos Santos. Colonização em Assunguy: A experiência do colono nacional entre 1860 e 1870. Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica. Curitiba: UFPR, 2010. GONÇALVES, Monique de Siqueira. Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos médicos na busca pela cura das “nevroses” e da loucura na corte imperial (1850-1880). Tese de Doutorado. Curso de História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, 2011. HEIDEMANN, Eugenia Exterkoetter. O Carvão em Santa Catarina, 1918-1954. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em História (Econômica) do Brasil. Curitiba: UFPR, 1981. LAMB, Roberto Edgar. Imigrantes britânicos em terras do império brasileiro: mobilidade, vivência e identidades em colônias agrícolas (1860-1890). Tese de Doutorado. São Paulo: PUC, 2003. MASOIN, E. ‘Julien Parigot’. Biographie nationale, 16, col. 635-637.

Ana Maria Rufino Gillies é doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati.

Alguns socialistas e anarquistas belgas buscaram refúgio no Brasil, entre eles Augusto Lootens, que partiu para a Argentina em 1889 e se estabeleceu pouco depois no Rio de Janeiro com uma lavanderia.

Casa que pertenceu a JeanJoseph Vervloet, que imigrou em 1858 para a colônia de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, em um projeto oficial de colonização.

Jeanne Louise Milde, escultora e educadora R e n é L o m m e z G o m e s e Ve r o n a C a m p o s S e g a n t i n i Uma modernidade claudicante

25 de abril de 1930. No Brasil, o jornal Estado de Minas noticiou a participação da artista na VII Exposição-Geral de Belas Artes de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais: “Em sua escultura há serenidade e arrojo, [...] dando à sua obra essa alta expressão emotiva que não está disciplinada ao canon clássico e que não tomba na vertigem do modernismo chocante”. 17 de abril de 1960. Entrevistada por Lúcia Veado, do mesmo jornal, Milde diria: “Fui da escola impressionista e conservo até hoje alguns exemplares. Considero-a ainda a escola básica dos meus conhecimentos de arte, porém, apreciando muito a arte moderna na sua concepção sólida, sem fantasia e sem exageros”.

“E

sculturas, retratos, composições, estudos diversos, Mlle. Milde não cai nos erros de certas esculturas, ditas modernistas, que não oferecem mais que desbastes, rascunhos, [...] e acreditam descobrir a arte na expressão informe.” 27 de novembro de 1928. Com essas palavras, um crítico de arte do jornal Les Nouvelles, de La Louvière, saudava a produção de um promissor talento da nova geração de artistas belgas: Jeanne Louise Milde, que apresentava algumas de suas obras em uma exposição.

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Reflexo de suas escolhas, as palavras e a obra de Milde a situam em um “entrelugar”. Havendo abandonado uma carreira promissora na Bélgica, em 1929, a artista mudou-se para Belo Horizonte, como professora contratada para atuar na reforma do ensino público. Fixando-se na cidade, desenvolveu importante carreira de educadora e artista, que lhe rendeu a fama de pioneira do modernismo. Sua obra, contudo, oscilou sempre em torno de um ponto médio entre a renovação radical e o cultivo da tradição, fazendo de sua trajetória um eloquente símbolo do tardio e claudicante processo de modernização da cidade em que escolheu viver. Fundada em 1897, Belo Horizonte foi criada para ser a capital republicana de Minas Gerais, em substituição a Ouro Preto, que representava o passado colonial da região. Concebida sob a égide do progresso e da racionalização, a nova capital nasceu de um profundo desejo de modernidade, ali expresso na efemeridade de suas criações e rápida obsolescência do novo. Tão cedo quanto na década de 1930, a cidade já pensava os caminhos de sua renovação. Na arquitetura local conviviam diferentes atitudes frente ao cânone clássico, indo da opção pela manutenção do estilo eclético ao surgimento de duas alternativas de renovação – uma radical, a outra não. Eram o decorativismo moderno dos edifícios déco e os primeiros exemplares do modernismo de vanguarda, que negava a linguagem clássica e a ornamentação. Tratava-se da emergência de uma modernidade em duplo signo: um processo ambíguo, de alternativas múltiplas e interpenetrantes, que contrariava a perspectiva de que o moderno só se constrói no embate radical e excludente entre o novo e o antigo. Simbolizando o modelo de modernização assumido por Belo Horizonte, a vida da artista construiu-se em uma série de atos marcados simultaneamente pelo cultivo da tradição – pilar de sua formação – e a negação dessa mesma tradição, como fonte de normatividade.

Jeanne Louise Milde em seu ateliê em Belo Horizonte, cidade para a qual a artista plástica se transferiu em 1929.

de cabeça e torso antigos”, “Modelagem de figura antiga” e “Composição em art déco”. Era uma formação artística tradicional que se iniciava com o desenho, passava pelo estudo de modelos antigos e finalizava com o exercício da composição. Quanto à estética, no século XIX, a Academia de Bruxelas preconizou o neoclassicismo. Com o tempo, adotou várias linguagens, indo do romantismo ao naturalismo e ao impressionismo. Quando Milde a frequentou, a escola assumia ares modernos, incorporando o estilo art déco. A renovação da escola incluiu a abertura de um curso de Artes Decorativas. O intuito era incentivar a indústria, permitindo que artesãos e operários desenvolvessem habilidades e conhecimentos artísticos. Milde não frequentou esse curso. Mas, o reconhecimento de novas perspectivas para a arte produziu impactos no trabalho que viria a desenvolver no Brasil. Enquanto estudante, Milde respondia com a qualidade dos trabalhos a quem questionava sua vocação. No boletim das disciplinas cursadas, ficaram registrados seus êxitos. Durante sua formação, Milde recebeu 15 prêmios, seis deles com distinção. Em seu último ano de estudos, 1925, foi agraciada com o 1º lugar no Grande Concurso de Escultura. A artista começava a despontar. Em 1923, foi reconhecida pelas obras que apresentou numa mostra coletiva na importante Galeria Giroux, de Bruxelas. Em 1927, figurou nos jornais por criar uma placa de bronze com a estampa de Charles Lindbergh, primeiro aviador a voar de Nova York a Paris sem escalas. Entre 1926 e 1929, Milde integrou as mostras da seção belga da Société Française des Beaux-Arts, sendo destacada pela crítica. Os críticos não escondiam o assombro ao verem esculturas feitas por uma mulher. Por vezes, buscavam nelas ternura, delicadeza e outros traços de feminilidade. Por outras, se espantavam com o domínio da artista, supostamente frágil, sobre a matéria. Em 1928, o jornal Vooruit avaliou as obras expostas na Galeria Phenix, em Ghent: “Sra. Milde tem uma inclinação para agradáveis realizações, cujo personagem principal denuncia a feminilidade da escultora”. Já o Les Nouvelles afirmou sobre o VIII Salão L’Essaim:

Uma mulher na Academia Real de Belas Artes 15 de julho de 1900. Jeanne Louise Milde nasceu em Bruxelas, filha do professor Josse Milde e de Mathilde Cammaerts Milde. Aos dezoito anos, foi aceita como estudante na Academia Real de Belas Artes. Esse teria sido seu primeiro ato de ruptura. Para frequentar o curso, a jovem enfrentou a oposição dos pais e as críticas de professores e colegas, que acreditavam ser o exercício da arte, em especial da escultura, inadequado para mulheres. Inicialmente, ainda que várias tivessem se destacado como artista, às mulheres era vedado o acesso à Academia belga. Só lhes era permitido seguir os cursos complementares, oferecidos nos ateliês dos professores da instituição. Controversa, a abertura do curso a mulheres, em 1892, comportou restrições. Para alguns, a presença feminina era admissível apenas na formação em Artes Industriais, e não em Artes Maiores, estudando desenho aplicado, bordado e tapeçaria. Quando muito, era considerada uma vocação especial para o colorismo. Dedicando-se à escultura, uma Arte Maior, Milde cursou disciplinas que revelavam a verve do ensino na Academia: “Desenho

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“Apesar da insuficiência de sua altura, se revela dotada de uma grandeza de expressão e força artística pouco comuns”. A consagração de Milde chegou em 1928, quando ganhou o Grande Prêmio de Roma. O prêmio objetivava o aprimoramento dos artistas, concedendo uma viagem à Itália para o estudo da tradição clássica. Mas os impasses políticos surgidos ao fim da Primeira Guerra Mundial impediram a ida de Milde para Roma. Sua opção foi por uma estadia na França. A escultora já hesitava entre a tradição e a modernidade. No mesmo ano de 1928, participou do II Salão da Federação Nacional de Pintores e Escultores da Bélgica, à qual se associara. A imprensa atacou a Federação, por ser contra a pintura moderna e o Estado belga, que favorecia a avant-garde. Em meio ao que caracterizaram como a medíocre e conservadora produção da mostra, os jornais destacaram Milde como uma exceção digna de nota. Naquele tempo, além de participar de exposições e concursos, Milde desenhava joias e modelava manequins para uma fábrica. No atelier que mantinha na Academia, recebia a visita constante de admiradores e compradores, que se avolumaram após a aquisição da peça ‘Danse Folle’ pelo Museu Real de Belas Artes, em Bruxelas. Foi ali que recebeu a visita do Dr. Alberto Álvares, enviado do governador de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. A missão de Álvares era localizar profissionais belgas aptos a auxiliar na reforma do ensino em Minas. Milde foi-lhe indicada pelo secretário-diretor da Academia, que elogiara a ousadia e a qualidade da artista, fazendo-o crer que o convite não seria recusado. Fevereiro de 1929. A bordo do vapor Alcântara, Jeanne Milde partiu para o Brasil.

com a observação e o desenho, para só depois introduzir a escrita. Os trabalhos manuais assumiam, assim, grande protagonismo na Escola Ativa, associando-se à expressão e tornando frequente o uso de técnicas como a modelagem. Em Minas Gerais, o método foi instituído em alguns grupos escolares, sendo criadas duas ‘classes Decroly’, em Belo Horizonte. Com a reforma do ensino, em 1929, foi instalada a Escola de Aperfeiçoamento em Belo Horizonte. A instituição, que oferecia um curso de especialização para professores primários, destinava-se a preparar, do ponto de vista técnico e científico, os candidatos ao Magistério Normal, à assistência técnica do ensino e às diretorias dos grupos escolares do Estado. O curso tinha duração de dois anos, divididos em dois períodos, que incluíam disciplinas como Pedagogia, Metodologia, Desenho e Modelagem, Educação Física e Psicologia Experimental. O corpo docente da Escola de Aperfeiçoamento foi composto por professoras que haviam sido enviadas, pelo governo, para o Teacher’s College, da Universidade de Colúmbia (EUA). Além delas, atuaram estrangeiros que compuseram a chamada “Comissão Pedagógica Europeia”. Da Universidade de Paris veio Theodore Simon. Do Instituto Jean Jacques Rousseau (Suíça) vieram Leon Walter, Helena Antipoff, Edouard Claparède e Louise Artus-Perrelet. Na Bélgica foram contratados Jeanne Milde e o engenheiro Omer Buyse. Diretor do Ensino Técnico da Bélgica, Buyse foi criador e reitor da Universidade do Trabalho de Charleroi. À convite de Washington Pires, Ministro da Educação e Saúde Pública do Brasil, veio para o País com a missão de criar três Universidades do Trabalho, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. O projeto logo encontrou a oposição de Gustavo Capanema, sucessor de Washington Pires no Ministério. Capanema considerava prioritária a fundação de escolas profissionalizantes especializadas para atender às necessidades da industrialização nas diversas regiões do País. Quando muito, cogitaria ter uma Universidade do Trabalho no Rio de Janeiro, onde as indústrias já exigiam um operariado numeroso, variado e competente. Jeanne Milde, por sua vez, assumiu as disciplinas de Desenho e Modelagem na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico da capital mineira. Relatos de suas ex-alunas revelam como ela conjugava a formação estética com a pedagógica. Suas disciplinas incluíam desenho, modelagem e aquarela, além de marcenaria, tecelagem, cartonagem e a fabricação de objetos utilitários e mobiliário. O processo de ensino elaborado pela artista guardava semelhanças com a formação que recebeu em Bruxelas. Segundo a ex-aluna Maris’Stella Tristão, nas aulas, o mais importante eram os desenhos, que obrigatoriamente precediam os trabalhos artesanais. Anualmente, Milde organizava exposições com o material produzido por suas alunas. Nelas, eram apresentadas modelagens em gesso, cimento, terracota, bronze e matérias-primas regionais que poderiam ser encontradas em qualquer escola primária do Estado. Com o fim da Escola de Aperfeiçoamento, na década de 1940, Milde passou a lecionar no curso de Administração Escolar do Instituto de Educação, instituição em que se aposentaria em 1955.

Os belgas e a reforma do ensino em Minas Gerais Quando Milde chegou ao Brasil, vários Estados implantavam políticas de reforma do ensino, investindo na formação de professores primários, na criação de escolas e no combate ao analfabetismo. Em Minas Gerais, a reforma foi coordenada por Francisco Campos, Secretário dos Negócios do Interior no governo de Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Sua Reforma do Ensino Primário e Normal inspirou-se na reestruturação da instrução pública ocorrida em países estrangeiros, como a Bélgica, e incorporava preceitos do movimento ‘Escola Nova’ ou ‘Escola Ativa’. À época, uma das principais correntes pedagógicas em voga no Brasil era o método desenvolvido pelo médico belga Ovide Decroly. Baseado em estudos sobre o desenvolvimento biológico e psicológico das crianças, o método enfatizava suas aptidões para a observação, a associação de ideias e a expressão. Para o ensino primário, propunha o emprego dos ‘centros de interesse’, que associavam os conhecimentos ministrados a uma ideia central, tornando o ensino “ordenado e lógico”. Em Bruxelas, Decroly atuava na École de l’Ermitage, que fundara em 1907. A escola foi um fértil laboratório de experimentação, tornando-se centro de referência para o ensino. Praticado em outras escolas da cidade, o ensino no método Decroly se iniciava

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Nos anos de 1940, a artista também ministrou aulas de desenho e modelagem na Escola da Polícia Rafael Magalhães e integrou um projeto de Helena Antipoff para a formação e o aperfeiçoamento de professores primários rurais.  

Em Belo Horizonte, dizia-se que a arte era desamparada pelo Estado. Por isso, o poeta modernista Carlos Drummond de Andrade, entre outros, reconhecia o empenho heroico de Matos para desenvolver o meio artístico local. Ainda assim, a cada edição das Exposições-Gerais, acumulavam-se as críticas ao evento e a seu organizador. Alguns recriminavam o amadorismo e mau gosto das obras apresentadas. Outros apontavam o convencionalismo da produção local, relacionando a estagnação da arte à hegemonia dos valores acadêmicos. A posição de Matos, no entanto, era ambígua. Ele defendia o academismo e rejeitava com veemência as vanguardas, os “futurismos” e “cubismos”, como se dizia à época. Mas, acolhia artistas que optavam por um modernismo moderado. Para a VIII Exposição-Geral de Belas Artes (1931), convidou vários acadêmicos de verve neoclássica ou impressionista. E chamou ainda Milde, o desenhista Monsã e o arquiteto Luiz Signorelli que, clássicos de formação, apostavam na estética art déco. Signorelli, por exemplo, iniciou-se na arquitetura projetando edifícios ecléticos e art nouveau. Na década de 1930, adotou o estilo déco e criou o segundo arranha-céu de Belo Horizonte: a Feira Permanente de Amostra, edifício símbolo da modernização da cidade. No mesmo ano, 1935, ganhou o concurso de projetos para a construção de uma nova sede para a Prefeitura da capital. Esse projeto expressou a atitude preponderante no período, fundindo elementos e preocupações modernos com uma lógica compositiva tradicional. Junto com Matos e outros professores, em 1930 Signorelli fundou a Escola de Arquitetura de Minas Gerais. Ali, por um bom tempo, o arquiteto sustentou um sintomático conflito com os estudantes de arquitetura que se inclinavam para a vanguarda. Em entrevista concedida ao Projeto Memória da Arquitetura e da

Um ambiente propício à expansão da arte Quando Milde chegou a Belo Horizonte, a capital não passava de uma jovem cidade. Aos olhos da escultora, tudo estava por fazer: não havia escolas de arte, as exposições eram escassas e os artistas locais não formavam uma comunidade unida e ativa. Ao invés de desanimá-la, esse cenário mostrou-se fértil para sua produção. Em 1929, a crise econômica desencadeada pelo fim da Primeira Guerra Mundial chegava ao ápice. Na Bélgica, apesar do sucesso de suas exposições, a falta de oportunidades levou a artista a pensar em se mudar para Antuérpia, onde atuaria como professora de arte da Academia local. Talvez o tivesse feito, não fosse a proposta de trabalhar no Brasil. Recém-chegada a Minas Gerais, a escultora não dispunha de um local de produção. Percebendo a situação, Arcângelo Maletta, proprietário do Grande Hotel, onde Milde vivia, ofereceu-lhe uma sala nos fundos do estabelecimento. Ali foi instalada a oficina em que a escultora recebia quem vinha ver a “loirinha belga” trabalhando. Como não dominava o idioma, pedia aos amigos para falarem sobre as obras. “No decorrer do parecer de cada um, surgia uma ou outra palavra que tinha uma sonoridade que me agradava, aí então o nome da peça estava escolhido”, lembrou a artista em entrevista a Iolanda Pignataro, em 1980. Nessa sala, Milde concebeu suas primeiras obras brasileiras. Em 1929, moldou o busto do Embaixador da Bélgica em Washing­ ton e a efígie de várias personalidades de Belo Horizonte. Sob encomenda do Estado de Minas Gerais, criou dois baixos-relevos em cobre para decorar o saguão da Escola Normal Modelo da Capital, inaugurada em 1930. As peças art déco simbolizavam os valores da Escola, intitulando-se Alegoria às Ciências e Alegoria às Artes. Em 1930, Milde enviou várias peças para o Salão de Belas Artes do Rio de Janeiro, obtendo a medalha de ouro. Em Belo Horizonte, participou da VII Exposição-Geral de Belas Artes. Organizadas por Aníbal Matos, eminente artista que fundara a Sociedade Mineira de Belas Artes (1918), as Exposições-Gerais constituíam o único evento do gênero a ocorrer com regularidade na capital. Reunindo artistas de inclinações semelhantes à de seu promotor, as exposições viraram o reduto da tradição acadêmica. Naquela edição, a mostra reuniu 192 trabalhos de 26 artistas. Milde se destacou por trazer algo novo: uma obra que não se atinha à tradição clássica, mas nem por isso se rendia aos extremos da vanguarda modernista. Aníbal Matos foi um dos responsáveis pela inserção de Milde no ambiente artístico de Belo Horizonte. Os dois eram colegas de docência no Instituto de Educação, atuando na formação de professores. Com frequência, Matos convidava a colega para participar dos eventos e das exposições que organizava. Convidava-a, inclusive, para integrar o júri do carnaval.

“As Adolescentes”, moldagem em gesso de Jeanne Louise Milde, Belo Horizonte, 1937.

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Construção Civil em Belo Horizonte (1980), recordou: “Confesso com sinceridade a reserva com que a princípio recebi os primeiros rebates da nova arquitetura, para com um tempo relativamente curto aceitá-la sem restrições. Diante de tão palpitante assunto devo dizer que manterei sempre como ponto de vista aplicar no moderno a proporção clássica [...]”. As mudanças na estética de Milde parecem responder a preocupações semelhantes às de Signorelli. “Moderna, mas com uma base clássica” é como ela se classificaria ao fim da vida. Em alguma extensão, a adoção desse modelo de modernização, ambíguo e relutante, elucida o livre trânsito entre acadêmicos e modernos que a escultora sempre manteve. Em 1936, Belo Horizonte presenciaria seu maior embate entre modernos e acadêmicos. Sob a organização do artista Delpino Júnior, caricaturistas, pintores, escultores e arquitetos, modernos em sua maioria, se reuniram numa exposição organizada no bar do Cine Brasil. Tornando-se conhecido como Salão Bar Brasil, o evento expressava o descontentamento do grupo com a ambiência artística e social da capital, que então celebrava a realização do 2º Congresso Eucarístico Nacional e a inauguração da nova edição da Exposição-Geral de Belas Artes, montada por Matos no foyer do Teatro Municipal. Acompanhada pela imprensa, a polêmica criada no Salão Bar Brasil tinha dois alvos: contestar a hegemonia de Matos e reivindicar o apoio do Município, com a criação de uma Escola de Belas Artes, a organização de exposições periódicas e a instituição de prêmios de incentivo. Por sua ascendência sobre o meio artístico local, Delpino convidou Milde a integrar a mostra. Aceitando, a artista apresentou 22 obras e compôs o júri, ao lado de Luiz Signorelli. Ao visitar o Salão Bar Brasil, o prefeito Otacílio Negrão de Lima sancionou uma resolução determinando que o Município realizasse exposições de arte anuais. Assim, em 1937, Matos foi convidado para coordenar o 1º Salão de Belas Artes da Prefeitura de Belo Horizonte. Ele, por sua vez, convidou Milde para a comissão encarregada de assessorá-lo. A escultora serviu, então, como um elo entre acadêmicos e modernos, apaziguando os confrontos entre os grupos. O 1º Salão de Belas Artes, por fim, reuniu tanto artistas ligados a Matos quanto ao grupo de Delpino. Refletindo a diversidade do panorama artístico da capital, os Salões de Arte da Prefeitura consolidaram-se, nos anos 1930, como um espaço de tendências contraditórias, que reunia modernos, acadêmicos, autodidatas e artistas de formação. No 2º Salão de Belas Artes (1938), Milde participou como jurada. Nesse momento, fez valer seu papel aglutinador, reunindo 14 artistas de uma e outra vertente em um encontro na Fazenda Petrópolis, propriedade que mantinha próximo à capital. Embora o acontecimento não tenha produzido desdobramentos, o sentimento era que nascia um “movimento que congraçará os artistas de Belo Horizonte”, como testemunhou um cronista da Folha de Minas. Os anos de 1930 e 40 foram férteis para Milde. Muitas de suas obras mais relevantes foram criadas nesses tempos, como a más-

cara mortuária do governador Olegário Maciel (1932); a Alegoria à Indústria, alto-relevo criado para a Siderúrgica Belgo-Mineira (1933); e a escultura As Adolescentes (1937). Em 1940, o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, adquiriu sua obra Água, sua alegria e sua embriaguez. Em 1945, Milde realizou uma exposição individual no Salão de Festas do Grande Hotel. Entre os trabalhos expostos, estavam bustos e cabeças das personalidades com quem convivia na cidade, como o maestro belga Arthur Bosmans. Essa teria sido a primeira exposição individual da artista, que até então só participara de mostras coletivas. A arte tumulária surgiria como uma vertente de sua produção, nascida do hábito de representar seus convivas. Importante exemplo é o relevo criado para o túmulo do desenhista Monsã, falecido em 1940. Apesar de não ceder às vanguardas, Milde assumiu temáticas caras ao modernismo brasileiro, criando figuras populares, trabalhadores, indígenas, negros e mulatos. Uma série de esculturas com motivos brasileiros fizeram sucesso na última exposição da artista em sua terra – uma mostra coletiva na galeria Toison d’Or, em Bruxelas (1948). O evento foi divulgado pelos jornais, que brindaram a qualidade das obras, embora frisassem seu exotismo. Na ocasião, o Ministério da Instrução Pública da Bélgica adquiriu a escultura Ma maman. Milde obteve grande reconhecimento por sua atuação como artista e educadora. Em várias ocasiões foi homenageada por suas alunas e pelos governos belga e brasileiro. Em 1930, o Rei Alberto da Bélgica nomeou a “artista estatuária” Jeanne Milde como cavaleira da Ordem de Leopoldo II, uma distinção de alto grau, conferida aos civis que prestaram serviços inestimáveis à Bélgica. Já em 1950, um ano antes de se naturalizar brasileira, ela recebeu do Príncipe-Regente Baudouin a comenda de Cavaleiro da Ordem da Coroa por seu trabalho como “professora de desenho e artes aplicadas no Instituto de Educação de Belo Horizonte”. No ano de 1955, Milde se aposentou do magistério no Instituto de Educação. Afastada do ensino, ela foi gradualmente se ausentando do cenário artístico mineiro, que desenvolveu uma preferência pelas vanguardas. A importância de Milde foi resgatada 30 anos depois, quando ela recebeu uma série de homenagens. Em 1982, recebeu a Comenda da Ordem dos Pioneiros de Belo Horizonte, em reconhecimento a seu pioneirismo na arte e na educação. Também foi lembrada no XIV Salão Nacional de Arte (Museu da Pampulha) e em uma exposição no Palácio das Artes. Em 1984, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, condecorou-a com a mais alta comenda do Estado: a Medalha da Inconfidência. No mesmo ano, o sucessor de Tancredo, Hélio Garcia, agraciou-a com a Medalha de Mérito Educacional. Celebrada por seu impacto na formação cultural da cidade, Milde faleceu em 1997. Outubro de 1988. Em Belo Horizonte, a exposição “Escultura Contemporânea em Minas”, organizada no Palácio das Artes, consagrou Jeanne Milde como propulsora da renovação das artes plásticas em Minas, identificando-a como uma pioneira do modernismo na cidade.

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René Lommez Gomes é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou em diversas instituições nacionais e estrangeiras, entre as quais a Unesco e o Museum Plantin-Moretus (BE). Trabalha com temas como Arte Colonial; História da Arte Flamenga e Holandesa (séc. XVII); História da Arte Brasileira (sécs. XIX-XX); Mestiçagens e Trânsito de Culturas entre Europa, África e América no período moderno.

(UFMG). Coordena o núcleo de expografia do Espaço TIM UFMG do Conhecimento.

Bibliografia sobre Jeanne Milde Grande parte das matérias jornalísticas utilizadas neste verbete foi localizada na coleção documentos de Jeanne Louise Milde, doada pela escultora para o Museu Mineiro, Belo Horizonte. L. B. Castriota (org.). Arquitetura da Modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. Rita Lages Rodrigues. Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultura. Belo Horizonte: C/Arte, 2003. S. Schwartzman, H. B. Bomeny e V. R. Costa. Tempos Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000. Rodrigo Vivas. Por uma história da arte em Belo Horizonte. Artistas, exposições e salões de arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.

Verona Campos Segantini é doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). É professora assistente da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e subcoordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura

Marcel Roos: viajante, escritor e cineasta Chris Delarivière

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et Geheim van Mato Grosso (O segredo do Mato Grosso), Bloedige Diamanten (Diamantes sangrentos), De Sluipende Dood (A morte furtiva) são alguns dos títulos imaginativos dos livros de viagens e documentários cinematográficos com os quais o viajante, cineasta e escritor belga Marcel Roos (1919-1996) fazia furor nos anos de 1950 e 1960. Seus contagiantes relatos cheios de aventuras e juvenil entusiasmo caíram depois no esquecimento, mas não deixam de ser uma ilustração marcante do poder atrativo que o Brasil exercia sobre os europeus aventureiros. A história de Marcel Roos começa em Gand, pouco depois da Segunda Guerra Mundial. A Europa ocidental estava ainda se recuperando desta calamidade e já se anunciava a Guerra Fria. O futuro parecia pouco promissor e, antes de chegar novos tempos penosos, Roos decidiu procurar outros horizontes. Vendeu seu negócio de atacado em perfumes e de cabelereiros, comprou um montão de material cinematográfico e fotográfico e embarcou num vapor com destino à América do Sul. Ele pensava explorar terras na Argentina e procurar uma moradia adequada para em seguida trazer sua mulher e filhos. Ao menos essa era sua intenção. Os caprichos do destino intervieram e fizeram finalmente Marcel Roos parar no Brasil. A bordo do vapor Roos encontra-se com outro passageiro, Pierre Doriaan, que lhe conta histórias alvissareiras sobre o Brasil. Doriaan é de Antuérpia e fez seu nome como cantor no circuito dos cafés chantants de Paris. Durante a guerra se comprometeu pelo seu bom relacionamento com os ocupantes alemães. Uma razão suficiente para abandonar a Europa por algum tempo. Assim, parte para o Brasil, acompanhado pela mulher e seu amigo mais fiel: um automóvel ano de 1930. Chegados ao Rio de Janeiro, Doriaan leva Marcel Roos a passear neste carro antigo, um Minerva, pelo centro da cidade até as praias de Copacabana e Ipanema. “A vida pode ser boa”, deve ter pensado Marcel. Roos deixa-se fascinar pelo Brasil e parte para São Paulo. Lá,

através do cônsul belga entra em contato com Alphonse Hoge, um herpetólogo belgo-brasileiro ligado ao Instituto Butantã. Hoge é originário de Gand, onde concluiu sua formação universitária e recebe seu concidadão de braços abertos. Mais ainda, convida Marcel a participar como fotógrafo-cineasta de uma expedição. Para Roos é uma oportunidade única. O destino da expedição é o Mato Grosso, mais precisamente a Serra do Roncador. Numa área, ainda em sua maior parte desconhecida, entre o Rio das Mortes e o Rio Kuluene, o doutor Hoge pretende descobrir répteis vivendo nessa região transitória entre a floresta tropical e o cerrado do Brasil central. As serpentes, os escorpiões e as aranhas colhidos pela expedição serão estudados no Instituto Butantã e utilizados para preparar o soro antivenenoso. Tudo isso parece muito aventureiro para Marcel e seu coração bate ainda mais forte quando fica sabendo que a jornada passará por terras de índios. Expedições anteriores malograram pela atitude hostil dos índios xavantes, que não gostavam de intrusos. Circulavam os boatos mais diversos sobre a região para onde se dirige essa ‘expedição suicida’. Fundados, entre outros, sobre o desaparecimento do viajante britânico coronel P. H. Fawcett, que em sua busca do mítico El Dorado em 1925, junto com seu filho e o amigo deste, não deixaram rastro algum. O coronel Fawcett foi um dos últimos lendários exploradores da época vitoriana e seu sumiço misterioso durante a procura de uma civilização misteriosa continua a desafiar a imaginação. O mistério Fawcett não deixa de comover também Marcel Roos. Finalmente, a primeira expedição de Roos na região amazônica revela-se um acerto em cheio. Não somente encontra uma oportunidade para conhecer como testemunha privilegiada o faroeste brasileiro com sua mentalidade de fronteira nos confins da civilização, mas encontra também os xavantes, que, atraídos pelos presentes, procuram contato com a expedição. De toda evidência, Roos agrada aos índios e sobretudo sua cabeleira loira

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suscita muita admiração. Marcel Roos filma e fotografa à vontade e fará êxito com suas imagens nas salas paroquiais de Flandres. Uma vez de volta ao mundo habitado, Marcel Roos se põe a escrever, mas desiste de seu sonho de iniciar uma vida nova na América do Sul. Demasiados problemas práticos na sua opinião. Volta à Bélgica, onde publica em 1953 O segredo do Mato Grosso. O mistério Fawcett desvendado é o subtítulo e, se não coincide completamente com o conteúdo, o livro encontra muitos leitores. Em 1965 segue ainda um Avonturen Omnibus, uma coletânea de relatos de viagens sobre o Brasil, Paraguai e Bolívia, escritos em colaboração com sua mulher Jeannine Roos. Nesse meio tempo, Roos vai morar em Hasselt, onde trabalha no serviço de publicidade da empresa química Bayer. Com intervalos, Roos continua viajando. Financia suas ‘expedições’ pela América do Sul com os rendimentos de suas conferências, sessões cinematográficas e reportagens escritas para os jornais e revistas flamengos.

Volta várias vezes ao Brasil, onde roda diversos documentários, como O parque nacional do Iguaçu (1953) e A morte insidiosa (1957), sobre uma ilha das serpentes ou Ilha da Queimada Grande, na costa de São Paulo (Cinematek, Arquivo Real do Filme, Bruxelas). Nos anos de 1970 organiza viagens e expedições para jovens cientistas. Seu amor pelo Brasil é uma constante. Numa entrevista ao jornal Het Belang van Limburg, em 27 de julho de 1991, ele declarou ter passado no total 12 anos no Brasil. Marcel Roos faleceu em 1996 em Hasselt, mas foi sepultado em Gand, sua cidade natal, no cemitério do Campo Santo em Sint-Amandsberg. Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de reportagens sobre cultura e música popular brasileira; traduziu para o flamengo História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

A colônia belga de Botucatu Luciana Pelaes Mascaro e Eddy Stols

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uando em 30 de junho de 1960 o Congo Belga se tornou independente com o nome de República Democrática do Congo, surgiram graves desordens, que precipitaram o êxodo da maior parte dos belgas. Diante do afluxo dos retornados, o governo belga acreditou poder prevenir tensões sociais com alternativas de colonização no ultramar. Como a Austrália foi logo descartada por suas rígidas normas para imigração, o governo belga optou pelo Brasil, aureolado pela recente inauguração de Brasília e mais acolhedor à colonização do seu interior. A princípio, as autoridades belgas apoiaram-se na experiência da Holanda, que já mantinha uma colônia agrícola em Jaguaríuna (SP) – Holambra I. Seu presidente, Charles Hoogenboom, ficou encarregado de ajudar na localização de uma área agrícola para a instalação de uma cooperativa para os belgas que vinham do Congo. As terras escolhidas foram as da Fazenda Monte Alegre, antiga produtora de café localizada no município de Botucatu (SP). Seus 4.010 alqueires custaram, na época, o equivalente a 650 mil dólares. Em 22 de setembro de 1961 foi oficialmente fundada a Sociedade Cooperativa Agropecuária Belgo-Brasileira – SCABB. Entre 1963 e 64 aí se estabeleceram 102 belgas cooperados e seus familiares. No seu auge, em 1971, ascenderam pelos casamentos – dos quais, dez com brasileiros – e nascimentos a umas quatrocentas pessoas. A cada cooperado coube no início 50 hectares de terra e, após a redistribuição ocorrida em 1963 com o retorno de parte dos pioneiros à Europa, uma gleba maior, até o limite de 150 hectares. Além dos belgas, trabalhavam para a SCABB e para os próprios cooperados vários antigos colonos brasileiros da Fazenda e, na hora das safras, contratavam-se ainda boias-frias em Pratânia.

Quando os belgas chegaram em 1961, a cidade de Botucatu se engalanou para recebê-los com festa popular, mas rapidamente surgiram problemas. Muitos belgas, ainda imbuídos de sua mentalidade colonialista, não se davam conta de que a economia, a sociedade e a população de Botucatu eram diferentes do Congo belga. Criaram conflitos, sobretudo no trato com os empregados. Se entre os cooperados haviam agricultores, grande parte não era ligada à agricultura e não sabia trabalhar a terra. Além disso, descobriram que as safras não correspondiam às expectativas e circularam boatos que foram logrados pelos holandeses no preço e na qualidade das terras. Os novos colonos já tinham gastado boa parte de seu dinheiro com a construção de 45 casas confortáveis, mas deviam também arcar com os custosos estudos de seus filhos em escolas particulares. Prevaleceu entre eles um forte individualismo, em contraste com a exemplar disciplina entre os colonos de Holambra. Com o crescente descontentamento e sua repercussão na Bélgica, seu governo, na tentativa de salvar a experiência, providenciou ajuda dentro de seu programa de cooperação ao desenvolvimento. Enviou supervisores e assistentes técnicos e colocou 4 milhões de dólares à disposição da SCABB e dos cooperados, respectivamente 44.652.456 e 111.938.985 francos belgas. Assim, equipou-se a colônia com um poço artesiano, uma caixa d´água, transformadores de eletricidade, silos e uma beneficiadora de arroz. Para promover um melhor espírito comunitário, construíram uma escola, uma creche e uma igreja, para a qual chegou um padre belga para oferecer assistência espiritual. Após a redistribuição das glebas e diante dos poucos resultados com a agricultura, a SCABB optou finalmente pela pecuária e pela produção de derivados de leite. Com novas instalações e uma

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máquina importada da França o Laticínio Belco foi o primeiro no Brasil a vender leite embalado em saco plástico. Também o queijo e a manteiga da mesma marca alcançaram renome no Estado. O laticínio acabou absorvido pelo Leite Paulista. No início dos anos de 1980, foi ainda criada na colônia a Cervejaria Belco. Sua marca desfrutou de prestígio na região por sua qualidade, mas foi adquirida mais tarde pela Destilaria Schincariol e sua fábrica deslocada para São Manoel.

Como estas atividades não conseguiram consolidar a colônia, a antiga SCABB foi desfeita em 1987, quando quase todos os belgas e seus descendentes já tinham abandonado a colônia. Voltaram para a Bélgica ou se integraram de outra maneira ao Brasil. Referências Delmanto, Armando Moraes. Memórias de Botucatu, Botucatu: Ed. Vanguarda, 1990; ­Peabiru Revista Botucatuense de Cultura, nº 02, Ano I, março-abril, 1997.

Uma ítalo-belga no Brasil Florence Carboni

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esde a primeira série, eu era uma das poucas alunas a frequentar a aula de Religião. Por um lado, isso me fazia me sentir privilegiada. Quem nos ensinava essa matéria, duas vezes por semana, não era a nossa professora: ela se ocupava das minhas colegas que assistiam a disciplina de Moral. Era uma jovem senhora, muito simpática, irmã (assim diziam) do nosso pároco, que dava a máxima atenção às suas três ou quatro alunas. Por outro lado, incomodava-me um pouco o fato de não fazer parte do grupo majoritário, formado sobretudo por meninas belgas, enquanto minhas duas ou três colegas na Religião eram italianas, como eu. Aquela aula de Moral, eu a engrandecia. Parecia-me mais séria. Eu ficava sentida por deixar às minhas colegas, que considerava menos capazes do que eu, o privilégio de ter a nossa professora apenas para elas. Tentava imaginar as coisas interessantes que elas estariam aprendendo enquanto eu desenhava cestas atravessando o Nilo, com bebês chamados Moisés dentro, ou o menino Jesus carregado por uma mula, guiada por um cara que era marido de sua mãe sem ser seu pai. Isso me fazia sentir inferior aos meus próprios olhos. Mas assim tinha que ser porque minha mãe assim queria. E, deduzia eu, ela assim queria porque era italiana. Dois anos mais tarde, na terceira série, a primeira aula de História foi dedicada aos “nossos” antepassados, os Gauleses, que tinham tão bravamente combatido os invasores romanos... Romanos? Como assim? Então os malvados eram italianos? Como eu! Esses dois fatos, a aula de Religião e os romanos invasores da Bélgica, me fizeram tomar consciência de que não era totalmente igual às minhas colegas. Depois disso, tudo passou a ter um sentido particular: o nosso modo de viver, alguns gostos dos meus pais, nossa casa, o modo como minha mãe se vestia e me vestia, a ópera – italiana, é claro! – que escutávamos todos os domingos de manhã quando meu pai estava em casa. A nossa comida também, tão diferente da que faziam as mães das minhas amigas, que eu invejava porque comiam linguiça com batata fervida. Tinha também as cartas da Itália, dos avós, dos tios, das tias, e de amigos italianos como nós, que haviam voltado para a Itália depois da terrível catástrofe ocorrida numa mina de carvão da região, onde muitos dos nossos compatriotas tinham morrido.

Essas cartas, que terminavam sempre com as mesmas fórmulas, como ladainhas, minha mãe as lia em voz alta. E ela as respondia com uma religiosa seriedade. Havia também as orações da noite, que eu e meus irmãos recitávamos em francês e minha mãe em italiano, à exceção de uma prece, toda em italiano, uma espécie de conversa com Deus na qual se faziam vários pedidos: proteção para os diferentes parentes e ajuda para que, também naquele verão, se pudesse ir à Itália e rever a todos. Na época, nunca mencionava estas coisas com minhas colegas de aula ou com as outras crianças do bairro – já eram tantas as coisas que diferenciavam minha família das delas! Tornaram-me consciente da dualidade de minha existência também as constantes lamentações de meu pai porque seus filhos se recusavam a falar com ele na língua dele. E havia ainda o fato de que, no bairro, minha mãe fosse conhecida como Maria l’Italienne.  Vivíamos numa fração de um pequeno município, na província de Hainaut, no Pays Noir, a região escurecida pelo carvão das minas e pela fumaça dos hauts fourneaux (altos-fornos) da metalurgia. Meu pai trabalhava numa fábrica, onde era considerado um bom operário. No nosso bairro, ele também tinha certo prestígio: entendido de mecânica, era muito procurado para consertar carros. E, de vez em quando, tocava violino nas festas da paróquia, apesar de seu anticlericalismo declarado. No nosso bairro, no qual viviam quase exclusivamente operários e mineiros belgas e onde, por muito tempo, fomos uma das poucas famílias italianas, minha mãe também se destacava. Era uma das poucas mulheres a não trabalhar na grande fábrica de confecção masculina situada em uma cidade vizinha. Ela costurava em casa. Tinha aprendido com dez anos, quando fora enviada como aprendiz à loja de um alfaiate em La Spezia, na Itália. Ela vestia todos nós, inclusive meu pai. Mas costurava sobretudo para fora. Não havia noiva dos arredores que não entrasse na igreja com um vestido feito por ela. Ocupava-se também de uma horta, que nos alimentava boa parte do ano, assim como de um lindo jardim na frente da casa, o mais lindo da rua. Eu tinha muito orgulho dele, apesar da vergonha que me causava o estado de decadência de nossa velha casa.

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A única coisa que minha mãe não amava eram os trabalhos domésticos. Nossa casa era uma das menos bem cuidadas do bairro, onde a arrumação parecia ser uma verdadeira fixação. Seguidamente, eu, minha irmã e meu irmão tínhamos que arrumá-la e limpá-la porque minha mãe estava terminando um vestido ou trabalhando na horta. Naquela pequena casa, que meu pai em seguida aumentou, com a ajuda de todos nós – como era comum fazer na época, naquela classe social e em bairros como o nosso, semiurbano e semirrural –, vivíamos em cinco pessoas: eu, meus pais, minha irmã e meu irmão, nascidos na Itália. No ano em que completei oito anos de idade e estava entrando na terceira série, minha irmã iniciava o primeiro ano de faculdade e meu irmão começava a trabalhar na fábrica com meu pai. Contradições de uma sociedade em transformação! Dez anos mais tarde, eu também entrei na universidade, sem muita convicção e sem muito rumo. Formeime mais seriamente muitos anos mais tarde, já casada e mãe, em outra universidade e em outro curso, também na Bélgica, onde também me doutorei. Enquanto isso eu havia me apaixonado por um brasileiro, refugiado político em Bruxelas, onde conheci também chilenos e chilenas, exilados após o golpe de Pinochet. Logo, com ele e nosso bebê, tomei o caminho da emigração, um pouco como meus pais fizeram logo após a Segunda Guerra Mundial. Não pelas mesmas razões, nem com os mesmos objetivos. Muito provavelmente, não com as mesmas dificuldades. Tratou-se, no entanto, de emigração, com seu séquito de descobertas, enriquecimentos, encantos, mas também de empobrecimentos, rupturas, afastamentos e perdas irremediáveis – perda de referências culturais, de cheiros, de gostos, de afetos. Tudo isso deu-se talvez de maneira menos nítida em relação àquilo que meus pais viveram do final dos anos 40 aos anos 80 na Bélgica. Isso porque, para mim, não estava muito claro a qual cultura pertencia. Sentia falta da Bélgica, é claro, que considerava o meu país, apesar de nunca ter tido a nacionalidade belga: lá onde eu nascera e vivera os primeiros 23 anos de minha vida. Meu conhecimento racional do mundo se dera sobretudo através da língua francesa, que, mesmo não sendo a língua de minha mãe nem, talvez, a primeira que falara, passou a ser a dominante no meu repertório linguístico. Da Bélgica, conhecia quase tudo: interpretava perfeitamente os códigos sociais e sabia como me comportar conforme quisesse passar por estrangeira ou por autóctone; conseguia comunicar-me com os velhos operários e camponeses até mesmo quando me falavam em puro wallon; amava a comida; conhecia e apreciava enormemente a cerveja, com destaque para a trappiste etc. Gostava até mesmo do cli-

ma cinzento, chuvoso e frio, assim como da paisagem plana e monótona tão bem cantada por Jacques Brel. Mesmo assim, na convivência familiar, havia assimilado outras práticas, outros valores e traços culturais. Por isso, uma vez, no Brasil, senti também falta da Itália e mais especificamente da Ligúria, onde passara cada verão de minha infância e juventude. Era ali que se encontravam todas as minhas referências familiares – naquela altura até meus pais haviam voltado para a Itália, após 34 anos na Bélgica. Tinha saudade das paisagens do interior daquela região da Itália, mas também do seu litoral rochoso, das tortas de verdura, do cheiro de manjericão e alecrim, dos vilarejos medievais agarrados ao topo dos morros suaves. Ao chegar ao Brasil, em finais de 1977, senti falta da segurança que me dava a possibilidade de participar de um movimento social, político e cultural em efervescência, naqueles anos 70, na Itália sobretudo. Ainda mais porque o Brasil daquela época ainda era governado pelos militares. Uma vez no Brasil, o conhecimento, puramente teórico e potencial, que eu tinha de um Estado ditatorial e da difícil situação política na América Latina daqueles anos converteu-se em experiência concreta, imediata, cotidiana: pelos inúmeros obstáculos encontrados por meu companheiro em sua penosa busca por inserção profissional e por uma reinserção social, com todas as dificuldades econômicas que isto nos causou e ao nosso filho. Também pelos repetidos indeferimentos, por sete anos, aos meus pedidos de visto de permanência, ao qual tinha direito por ser mãe de uma criança constitucionalmente considerada brasileira por ter chegado ao País antes dos três meses de vida. Esta recusa que, como ficou demonstrado mais tarde, devia-se ao fato de ser companheira de um opositor do regime ditatorial, prejudicou irremediavelmente minha vida profissional, já que, além de não me permitir trabalhar de outro modo que informalmente, me impediu até mesmo de inscrever-me numa universidade para terminar os estudos de psicologia iniciados em Bruxelas. Os longos sete anos sob a ditadura militar – durante três, ia de Porto Alegre e vinha de Montevidéu em ônibus precários, com meu filho pequeno no colo, para manter o visto de turista; durante quatro, vivi como semiclandestina, após receber ordem de expulsão – tornaram também mais difícil uma inserção social serena. Sobretudo, eles prejudicaram a possibilidade de que eu amasse o Brasil incondicionalmente e o considerasse o meu país, o mesmo título que atribuo à Bélgica e à Itália, onde me sentia e sinto cidadã, apesar de minha condição de filha de trabalhadores, imigrados em um e emigrados do outro. Florence Carboni, italiana, é professora do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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A casa é sua Annelies Beck

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uma turma alegre que posa caótica para a foto da classe de segundo grau de 1991-1992. Cinquenta rapazes e moças num emaranhado de braços e pernas, todos com um largo sorriso, salvo o beicinho de uma que se imagina uma modelo. Uma moça tem o cabelo curto. Outra, chama a atenção no meio de todas as outras com seu cabelo até a cintura. Esta de cabelo curto, sou eu, a gringa, a belga – na época sou ainda uma novata estudante de intercâmbio, mas na minha opinião já totalmente integrada. O carnaval, o futebol e as novelas Sinha Moça e Escrava Isaura, que a televisão pública passava então no fim da tarde, eram as primeiras coisas que as pessoas evocavam quando lhes contava que passaria um ano no Brasil como estudante de intercâmbio. Em segundo lugar também: muita pobreza, a selva amazônica e os teólogos da libertação. E mais nada. O e-mail e a internet ainda não eram muito divulgados. De Facebook ou Twitter não se falava ainda. Tinha eu 18 anos, não falava português e iria morar um ano num país onde nunca tinha estado. Devia ser o Brasil por causa do idioma bonito, de situar-se bem longe e de ser uma terra totalmente desconhecida para mim: outra cultura e outra sociedade, com uma extensa gama de cores e de gente do mundo inteiro que, aparentemente, conviviam sem problemas. 1991. Fui parar numa família de classe média em Juiz de Fora, Minas Gerais. No ônibus do Rio de Janeiro para Juiz de Fora arregalei os olhos. Balbuciava as palavras estranhas dos painéis publicitários, ensaiando os sons certos. Pneu parecia pronunciar-se como pieneeuw. Tudo era diferente. Ia-se à escola de seis e meia da manhã até o meio dia e não das nove às cinco. Havia, no centro urbano efervescente, mais prédios altos do que estávamos acostumados nas cidades europeias. Por toda parte sempre me deparava com mendigos ou camelôs. Fernando Collor de Mello era presidente e Lula da Silva ainda líder sindical em São Paulo. A palavra presidente pronuncia-se em português como fosse ‘presidentje’ (um diminutivo em flamengo), o que então, em plena aprendizagem do idioma, me soava engraçado. Este tipo de coisa me impressionava no começo. O afamado choque cultural não está no multicolorido, nem mesmo na pobreza, tão visível. O choque está nas pequenas coisas. A cena de rua, que fica incompleta, até quando se realiza que, durante meses, não se via nem um carrinho de bebê ou buggy. Bebês sempre se carregam. Assim um vazio pega mais cor. A pergunta, sempre repetida, aberta e direta, na presença de qualquer um: “Você tem um namorado?” A reação incompreensiva quando eu não queria responder fazia mistério, ao passo que eu me assustava como quanto as pessoas faziam pouco caso, como achavam natural, penetrar desse jeito na privacidade de alguém. Como fixavam meus cabelos curtos – Sinéad O’Connor, Jeanne Moreau, Annie Lennox!, por quem mais me tomavam? Quem sabe se eu era talvez doente?

Minha família hospedeira me recebeu de braços abertos. Minha mãe é psicóloga. Ela combinava seu consultório pessoal com aulas. Meu pai trabalhava num restaurante de empresa. Meu irmão estudava arquitetura e aprendia alemão num curso noturno. Minha irmã era bastante esportiva e estava na escola secundária. A família com quem estava tinha raízes no Líbano, na Itália e, de algum antepassado, sangue africano. Cada membro da família tinha uma coloração diferente. Todos os dias chegava a empregada, que arrumava o apartamento e cozinhava o almoço, mas não havia luxo. Trabalhavam duro para poder ter o possível. Como estudante de intercâmbio, no começo anda-se às cegas. Compromissos fixos tornam-se amparos. No café da manhã havia variedade de frios e queijos, com uma faca em cada qual, e não, como de praxe na Bélgica, uma faca ao lado do prato de cada comensal. O mesmo se repetia no almoço, com toda a família. Eu estranhava os combinados pouco comuns para mim: carne, legumes e arroz com feijão sempre estavam na mesa; além disso, ainda um prato com mandioca, batata doce ou massa. Muitas vezes me felicitavam por eu não ser “doceira” e recusava facilmente o brigadeiro e outras bombas calóricas. Por outro lado, infelizmente, eu resistia bem menos aos salgadinhos vendidos em bares por toda a cidade e até na escola. Se eu tinha Durex comigo? A pergunta veio na segunda ou terceira semana desde que frequentava a escola. Fiquei um momento sem fala. A menina que parecia a mais inocente da classe me perguntou se eu tinha camisinha. Meu português estava ainda em desenvolvimento, mas eu estava certa de que a tinha compreendido bem, ainda mais quando repetiu a pergunta. Na escola, gravidez na adolescência não era incomum e muitas meninas da minha classe – tinham geralmente quinze ou dezesseis anos, um a dois anos mais novas do que eu – falavam o tempo todo de paquerar e namorar, sobre qual rapaz era atraente e de quem estava com quem. Mas quase nunca se falava diretamente de sexo. Eu balbuciava qualquer coisa. Minha colega de série me fitou com olhos interrogativos e apontou para o rolinho de fita adesiva no meu estojo. “Durex?” Este era o momento em que a classe e a gringa se abraçavam. A confusão prolongou-se por meses e provocava cada vez mais risadas. Fora a comida, também a novela das nove era ponto fixo do meu dia. A pretexto de que me ensinavam português, gostava de ver Vamp e Perigosas Peruas. Narrativas fantasiosas e relações amorosas, atuadas em diálogos singelos. O perfeito trampolim para a conquista do português em todas suas nuances. Mas, e as novelas como espelho da evolução da sociedade, como os sociólogos às vezes as apresentam? Dois verões antes especulava-se nos jornais durante semanas se duas personagens homossexuais se beijariam ou não. Com ou sem beijo, a franqueza com que se escrevia sobre o amor ainda não era, infelizmente, corrente na vida cotidiana.

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parte 1 – travessias e migrações

“Não é sempre tão simples. Às vezes fico apreensiva” me confiava minha mãe. Ainda em 2012 não é simples ser GLS no Brasil, apesar da garantia legal, do alegre travesti durante o carnaval, das flamejantes subculturas e da ocasional Gay Pride Parade nas cidades. Assim, há outras coisas que pedem uma segunda, terceira e quarta leituras. O que à primeira vista é reconhecível, ou compreensível, parece, numa inspeção aproximada, se situar um grau fora do fio de prumo, pelo menos em comparação com o quadro de referências que se traz de fora. A procura de pontos comuns, em algum lugar nas dobras entre familiaridade e alienação, é o que torna a conexão com o Brasil tão fascinante. Em 2013, de volta a Juiz de Fora, fiquei impressionada: foram construídos um hospital e um shopping ainda maior; por toda parte erguem-se altos prédios de apartamentos e na colina mais longe vêem-se alinhadas as casas sociais da “Minha casa, minha vida”. O Brasil vai de vento em popa. Não se deve mais passar horas na fila para trocar dinheiro: pode-se em qualquer parte sacar dinheiro do caixa eletrônico. Vinte anos atrás, no Jornal Nacional, a cada dia William Bonner dava o câmbio oficial do dólar e, em seguida, o paralelo no câmbio negro. Naquela época, minha família hospedeira comprava os dólares que eu, cuidadosamente, economizava e guardava num nicho secreto perto da cama. Não era recomendável ter dólares em casa, mas deixar o dinheiro no banco tampouco era a solução por causa da inflação galopante. Ainda guardo um arco-íris de passagens de ônibus: a cada mês subia o preço e, portanto, mudava também a cor do bilhete. Anos mais tarde, a economia melhorou bastante pela gestão liberal do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas naquela altura meus pais brasileiros já tinham visto boa parte de suas economias virar fumaça. Mais tarde o horroroso cenário para os brasileiros ricaços tornou-se realidade: o torneiro mecânico de outrora, o barulhento sindicalista Lula da Silva tornou-se presidente. Mas, ao contrário do que alguns temiam (caos! revolução!), ele fez um governo moderado. Continuou o que seus predecessores tinham começado a construir e o Brasil se deu bem com isso. Hoje, Dilma Rousseff é a primeira mulher presidente do Brasil, uma ex-guerilheira – quem teria imaginado isso? O Brasil é um caso interessante não só economicamente. Políticamente, 20 anos depois da renúncia do presidente Fernando

Collor, sob a pressão dos “caras pintadas”, desenrola-se um novo processo, que pode seguir-se nos mínimos pormenores na mídia: corrupção no coração do PT, o caso do mensalão. O Brasil reinventa continuamente o seu porvir. 2013. Minha família hospedeira vai bem – ainda mantemos contato. Meus pais construíram sua própria casa. Minha mãe ainda trabalha. Meu pai está agora aposentado. Meu irmão e minha irmã puderam estudar e ambos trabalham. Minha irmã é fisioterapeuta em Juiz de Fora e decidiu fazer Direito, “para poder fazer alguma coisa pela gente”. Meu irmão projeta cenários para novelas e vê de seu apartamento como o Rio se embeleza para os Jogos Olímpicos. A dinâmica dentro da cidade se transforma: as favelas empetecadas entraram na mira dos promotores da construção e das imobiliárias. Cá e lá oferece-se um bom dinheiro aos moradores de áreas que eram taxadas de favelas. Mas como a empregada do meu irmão me contou: “Para onde temos que ir, então? Para mais longe, onde é mais barato? Como então podemos chegar em tempo razoável no serviço?” Quando agora olho a foto da minha turma daquela época, vejo que sempre fui a gringa, mesmo que minhas colegas me dessem o sentimento de ser uma delas e mesmo que eu passasse frequentemente por uma catarinense ou uma gaúcha, por causa de meu cabelo loiro e meus olhos azuis. Como estudante de intercâmbio, desligada de quem eu era, salvo por uma frágil linha de envelopes do correio aéreo, eu fui muito longe para conquistar, no estrangeiro, aquele sentimento seguro e familiar de casa. Como jornalista, 20 anos mais tarde, levo vantagem com este olhar duplo: a familiaridade transparece nos gostos, cheiros e olhares, numa maneira de falar, em sensibilidades para tabus versus franqueza e, também, nas minhas mãos que se metem a dançar quando falo português. Ao mesmo tempo, este país poderoso apresenta-se cada vez numa outra faceta, tanta coisa muda, tão rapidamente, cada vez surgem novas questões e percepções. É como em toda boa relação: nunca se acaba. Annelies Beck é jornalista na VRT, a televisão pública flamenga. Há 20 anos se dedica ao Brasil, onde fez numerosas reportagens. Residiu neste país entre 1991 e 1992 como estudante de intercâmbio e obteve, mais tarde, um MA em Brazilian Studies na University of London.

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presenças brasileiras na bélgica

Os primeiros brasileiros em Flandres Eddy Stols

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or algum ufanismo a historiografia brasileira relutou muito tempo a pensar o Brasil como um país de emigração. Os únicos casos conhecidos eram os deportados da Inconfidência mineira, a família imperial e os monarquistas em 1889, os baderneiros anarquistas principalmente italianos expulsos por volta de 1900, os exilados da Revolução de 1930 e do Estado Novo e os refugiados e deportados da ditadura militar de 1964 a 1978. Como um fato novo e quantitativamente inédito surgiu a partir da crise econômica dos anos de 1980 a saída do País de milhares de brasileiros modestos por necessidade econômica. A formação de uma grande diáspora brasileira nos Estados Unidos, no Japão e na Europa abriu os olhos dos historiadores para os precedentes, como os ‘brasileiros de torna-viagem’ no Norte de Portugal ou no Sul da Itália, ou os escravos alforriados que voltaram para a costa ocidental da África. Dentro deste variegado Brasil extramuros, cabe situar a presença brasileira na Bélgica. Logo depois da chegada dos portugueses e franceses ao Brasil, alguns índios fizeram a viagem em sentido inverso para Lisboa ou para a Normandia. A sua vinda para Flandres pode ter demorado até que em 1584 uma primeira notícia assinalou a prisão em Antuérpia de quatro Brasiliaenen, ou brasileiros, Melchior Albares, Anthonio Ghercy, Pedro Borges e Juan Aldres (Bulletin des Archives d’Anvers, 5, 264). Chegando à cidade tarde da noite, encontraram as portas já fechadas pelo horário de recolher, mas entraram pulando pelos muros. Foram liberados mediante o pagamento de multa de 100 florins pelos cônsules da nação portuguesa. Estes os desculparam

como gente simples e ignorante, que nunca estiveram em outro lugar senão no Brasil e no mar. Tudo indica que eram mestiços, mamelucos ou mesmo índios, marinheiros de um navio português procedente do Brasil. Uma tripulação semelhante talvez já tivesse sido encontrada em viagens anteriores de navios portugueses a Flandres. Um pouco brasileiros podiam ser neste final do século XVI os cristãos-novos portugueses, que, após longa estada em Pernambuco ou na Bahia ou já nascidos por lá, vieram residir em Antuérpia para tratar de seus negócios de açúcar e pau-brasil e eventualmente à procura de maior liberdade religiosa. Algumas famílias desta rede comercial transatlântica se fizeram católicas como os Ximenes ou os Rodrigues d’Evora. Outras seguiram mais tarde, nos anos de 1640, para Amsterdam, onde podiam professar abertamente seu judaismo, se bem que como cidadãos de segunda categoria e com censuras internas na sua comunidade. Um ou outro cristão-novo voltou inclusive para os Países Baixos meridionais, que adotaram progressivamente maior tolerância com os judeus. Em Zandvliet, um povoado perto de Antuérpia, uma Brazilianenstraat se refere à gente de pele escura que vivia lá em choças como meio selvagens ao deus-dará. Na voz popular atribuía-se sua origem a soldados vindos com o exército espanhol no século XVI. Como mais plausível, tratar-se-ia de emigrantes belgas, que retornaram miseráveis do Brasil no século XIX e se reinstalaram em terras abandonadas (com meus agradecimentos a M. Bollen e J. Possemiers).

Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos XIX e XX Eddy Stols

U

ma vez independente, a Bélgica atraiu um número considerável de passantes e residentes brasileiros, sem que se constitu-

ísse uma colônia bem visível como a de Paris. Tratava-se de diplomatas, comerciantes, artistas e principalmente de estudantes. Em

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Ilustração de Henrique Alvim Corrêa para o livro La guerre des mondes, de H. G. Wells.

Uma vez reconhecido seu talento, seguiu primeiro para a Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro e depois, em 1903, com bolsa do governo paranaense, foi aperfeiçoar-se na Académie Royale des Beaux-Arts de Bruxelas. Gheur e outro belga interessado, Alphonse Solheid ou talvez o próprio Itiberê podem ter facilitado o contato. Em Bruxelas, Zaco trabalhou com o escultor expoente do art nouveau, Charles Van der Stappen. Recebeu em 1905 em sua casa o conterrâneo João Turin (1878-1949), filho de imigrante italiano, aprendiz de ferreiro, escultor e também auxiliado com bolsa de governo. Turin exprimiu o seu sofrimento pelo clima belga na escultura Exílio. Com certeza, conheceram Constantin Meunier, cujo Semeador (1896) inspirou semelhante estátua de Zaco Paraná. Ambos foram diplomados e premiados em 1909, recebendo um ateliê para trabalhar, carvão para aquecimento e direito a modelo vivo. Com a morte de Van der Stappen, voltaram ao Brasil em 1910, mas logo regressaram à Europa e viveram um longo período em Paris em contato com os artistas modernos. Após seu regresso definitivo em 1922 ao Brasil, encontraram mais reconhecimento e encomendas. Ainda em Bruxelas, seus caminhos se cruzaram com um outro artista brasileiro. Henrique Alvim Corrêa (1876-1910) foi levado com 16 anos pelo padrasto a Paris, onde aprendeu a gravura e se especializou em pintura militar com Edouard Detaille. Contrariado pela família em seu romance com Blanche Barbant, fugiu em 1898 para Bruxelas, onde montou um ateliê no subúrbio de Watermael-Boisfort. Mas o pintor não conseguia vender seus quadros de temas militares e se sustentou com decoração mural e ilustrações eróticas no estilo de Félicien Rops. Somente em 1905 conseguiu realizar na galeria Boute de Bruxelas sua primeira exposição individual. Numa abundância de pinturas, desenhos e esboços, um crítico (La Chronique, 12 e 15.03.1905) descobriu um artista solitário e original, sem filiação com alguma escola e desenraizado. Suas obras revelavam ‘uma mistura singular de fantasia e seriedade, de sonhos bizarros, caprichosos e de impressionismo natural, de simbolismo e realidade’. Tudo lhe inspirava, desde figuras do cotidiano, recantos e paisagens de Boisfort até cenas da atualidade internacional, como a guerra russo-japonesa de 1904, que ele dramatizava ou parodiava. Sua imaginação fantástica excedeu em cerca de 50 desenhos de monstruosos e terríveis extraterrestres para ilustrar a obra de grande êxito The War of the Worlds (1898) de H. G. Wells. O próprio autor, solicitado por Alvim Corrêa em viagens a Londres, os aprovou para uma edição belga, La guerre des mondes, Bruxelas, L. Vandamme, 1906, com 500 exemplares (reeditado no Rio de Janeiro, 1981). Doente dos pulmões, Alvim Corrêa foi tratar-se num sanatório suíço, mas acabou morrendo de tuberculose em Bruxelas em 1910. Seu necrológio (La Chronique, 15.06.1910) o reconheceu como um modernizador de Breughel e Bosch. Também devia-se relacioná-lo com o contemporâneo belga James Ensor. Seu ateliê foi destruido na invasão alemã em 1914 e as matrizes de suas gravuras desapareceram no torpedeamento de um navio em 1942, mas seus dois filhos, Eduardo e Roberto, salvaram o que

Bruxelas, o Brasil mantinha desde 1834, e quase continuamente, um encarregado de negócios, um ou mais adidos e um cônsul-geral, alguns com extensas famílias, como testemunham no cemitério de Laken os jazigos das famílias Souto Maior, Ipanema de Barros e Moreira Barros. Possivelmente recebiam viajantes brasileiros como o pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre e o poeta Domingos Gonçalves Magalhães, que excursionaram pela Bélgica por volta de 1837. Este último concluiu lá seu drama Antonio José ou o Poeta e a Inquisição e uma belga lhe inspirou talvez um suspiro poético. A belga era Céline, amante do outro grande poeta romântico, Antônio Gonçalves Dias, que passou por cirurgia na Bélgica em 1863, pouco antes de seu naufrágio na costa do Maranhão. Um salão literário concorrido manteve em Bruxelas no final do Império o plenipotenciário conde de Villeneuve e sua esposa, assistido por Brasílio Itiberê da Cunha, o compositor da Sertaneja. Este trouxe em 1880 para estudar no colégio jesuíta Saint-Michel um jovem irmão, João, que se formou depois em Ciências Políticas na Universidade de Bruxelas e se relacionou com figuras de La Jeune Belgique, como Iwan Gilkin (Andrade Muricy). Nesta linha publicou em 1890 sob o nome de Jean Itiberê e com o mesmo editor de Maurice Maeterlinck, Lacomblez, um volume de poemas em francês, Préludes. Voltando em 1892 para a terra natal paranaense com postura de dândi no estilo fin-de-siècle, continuou a publicar poemas em francês nas revistas Cenáculo e Almanaque Paranaense e divulgou nos meios literários de Curitiba o simbolismo belga. O prestígio deste pode ter influenciado na ida a Bruxelas, pouco depois, de dois jovens escultores paranaenses, filhos de imigrantes. Na oficina do polonês Miguel Zak, os trabalhos de madeira do filho João Zaco Paraná (1884-1961) despertaram o interesse de um freguês, o técnico ferroviário belga François Gheur. Este levou o menino para sua casa em Curitiba para lhe proporcionar ensino com auxílio do governo e de protetores no seminário menor e na Escola de Belas Artes e Indústria.

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puderam. Sua obra foi finalmente redescoberta por José Roberto Teixeira Leite, que lhe consagrou a primeira exposição em 1973, parcialmente reapresentada por Pietro Maria Bardi em Bruxelas na galeria Studio 44 no mesmo ano da Brasil-Export. Nestes anos de 1910 a presença brasileira atingiu maior visibilidade pelas iniciativas do embaixador Oliveira Lima. Junto com a participação do Brasil na Exposição de Bruxelas, organizou um concerto de música brasileira no Théâtre de la Monnaie. Os comissários do Estado de São Paulo editaram em Bruxelas várias publicações de propaganda como um álbum de 102 fotografias de Guilherme Gaensly, Vues de São Paulo. Um exemplar – hoje conservado na Biblioteca Municipal da cidade – foi oferecido ao poeta Vicente de Carvalho, residente em Bruxelas em 1912. Vários jovens talentos literários brasileiros, adeptos do simbolismo, vieram peregrinar na terra de Émile Verhaeren, Georges Rodenbach e Maurice Maeterlinck, ainda mais que lá havia editores bons e baratos e onde Victor Orban compôs uma das primeiras antologias de literatura brasileira em francês (Quataert). A visita aos canais de Bruges em 1913 de Rodrigo Otávio Filho, junto com Ronald de Carvalho, Filipe d’Oliveira e Álvaro Moreyra, rendeu seu Alma de Rodenbach, 1921. Foi nesta época que Manuel Bandeira veio da Suíça conhecer ‘a Bélgica perseverante dos velhos paços municipais e beguines’, evocados mais tarde em O Ritmo Dissoluto (1924). Ao contrário, lá também, na casa de um patrício, o poeta mineiro Belmiro Braga saboreou sua comida da terra. Um editor de Bruxelas lançou os primeiros estudos de Alberto Lamego, historiador da Terra Goytacá. Brasileiros vinham até veranear, como os Almeida Prado em La Panne. Num restaurante de Ostende, Gilberto Amado se surpreendeu em 1912 com uma dezena de seringueiros da Amazônia, vestidos de branco, festejando com bonitas mulheres nos joelhos (Amado). No mesmo balneário o casal Asseloos anunciava o ensino da ‘maxixe brésilienne’ (Le Carillon, 28.02.1914). A

festa acabou com a invasão das tropas alemãs em agosto de 1914, quando os diplomatas redigiram listas com os nomes de uns 400 brasileiros que deviam deixar a Bélgica. Boa parte destes eram estudantes e seus familiares. Já por meados do século XIX se encontravam em Bruxelas em instituições de educação como do Senhor Lavallée jovens brasileiros, ao lado de russos ou de uma Charlotte Brontë (Stols, 1974). Mais tarde, secundaristas frequentaram colégios como o Saint-Michel dos jesuítas em Bruxelas ou pensionatos, como das Ursulinas em Onze-Lieve-Vrouw-Waver. Bem mais numerosos foram os universitários. Vários motivos levaram os pais brasileiros a preferir a Bélgica: um país monárquico, mas constitucionalista e liberal, de idioma francês, mais seguro e também mais barato do que a França. Desde Bruxelas, em carta de 7 de julho de 1863, Antônio Prado recomendou ao irmão Caio estudos na Bélgica por não ter costumes tão diversos como a Alemanha nem tão perigos como Paris (Darrell, p. 147). Entre 1835 e 1914 matricularam-se cerca de 700 brasileiros, dos quais 237 na Universidade Livre de Bruxelas, 217 na Universidade de Gand, 100 na Universidade de Liège, 68 na Universidade de Lovaina, 37 na Faculdade de Agronomia de Gembloux, 5 na Université Nouvelle de Bruxelles – uma dissidência temporária da Universidade Bruxelas –, e 2 no Instituto Superior de Comércio de Antuérpia. Se os primeiros apareceram em 1835, somente a partir de 1857 contava-se mais de dez, alcançando 41 em 1871 com um pico de 72 em 1882, baixando depois para 12 em 1912 e subindo novamente até 48 em 1913. O mais surpreendente – e contrário à reputação de bacharelismo dos brasileiros –, é o alto número de inscritos e diplomados em engenharia (318), medicina (236) e agronomia (45). Notável também é a diversidade de origem dos estudantes brasileiros, a maior parte vinda das províncias do Rio de Janeiro (231) e de São Paulo (149), seguidas por Minas Gerais (41), Pará (31), Rio Grande do Sul (29), Maranhão (28), Bahia (27) e Pernambuco (24). Em algumas famílias brasileiras, como os Ottoni, Teixeira Leite, Roque de Pinho, Toledo Piza, Villares, Viana e Chermont, os estudos na Bélgica se tornaram quase uma tradição. No início viviam bastante isolados. A. S. de Abreu se queixou num folheto, Souvenir de la province de Minas Gerais au Brésil, Bruxelas, 1845, como em três anos fez poucos amigos. Defendia frente aos abolicionistas a reputação de sua pátria, argumentando que o escravo trabalhava somente oito horas e não se despedia na rua, faminto, como se fazia com o operário belga. Nos anos de 1860 e 1870 alguns frequentavam salões e aderiam ao positivismo como Luiz Pereira Barreto ou Joaquim Alberto Ribeiro de Mendonça. Um deles, Francisco Antônio Brandão Júnior, publicou em Bruxelas um dos primeiros livros abolicionistas, A Escravatura no Brasil, 1865. Participavam das associações estudantis, envolvendo-se às vezes nas disputas entre liberais e católicos. Em Gand houve até um clube brasileiro entre 1875 e 1880. Alguns se radicaram na Bélgica como Ladislau Furquim de Almeida, que publicou sobre o café e a borracha e deixou descen-

Ilustração de Henrique Alvim Corrêa para o livro La guerre des mondes, de H. G. Wells.

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No pós-guerra a presença brasileira se reativou primeiro na área cultural, promovida por uma Union Brasilo-Belge, fundada em 1950. Nesse ano estreou o maestro Eleazar de Carvalho no Palais des Beaux-Arts de Bruxelas. Magda Tagliaferro fez em 1952 uma turnê belga e participou do júri do Concours Reine Elisabeth. A construção da nova capital em Brasília colocava o País no diapasão da modernidade, que precisamente a Exposição Mundial de Bruxelas em 1958 pretendia celebrar. Esta coincidência suscitou mais intercâmbios. Assim Heitor Villa-Lobos dirigiu em 1958 a orquestra belga na inauguração do Pavilhão do Brasil. Se a Expo 58 fez descobrir Cândido Portinari e Cícero Dias, o Palais des Beaux-Arts mostrou em 1957 Burle Marx e em 1960 Lasar Segall, em parte como respostas às participações belgas na Bienal de São Paulo. Este maior apreço cultural mútuo levou em 1960 à assinatura de um acordo cultural. Ao mesmo tempo os belgas descobriram o futebol brasileiro nos encontros do Botafogo e do Santos com o Anderlecht e o Beerschot. A partir dos anos 1960 o número de estudantes cresceu bastante à procura de formações inexistentes ou pouco desenvolvidas no Brasil, como engenheiro de cervejaria, psicólogo, psicanalista, demógrafo, ou de especializações e de doutorados. Vários tipos de bolsas, do supracitado acordo cultural, do Ministério Belga da Cooperação, ou das próprias universidades facilitaram sua vinda. Paralelamente, escolas de artes plásticas, cinema ou dança e conservatórios de música atraíram mais jovens de vocação artística. Clubes de futebol belgas começaram a contratar jogadores brasileiros, ao passo que mestres capoeiristas faziam facilmente adeptos na juventude belga. Esta apreciou cada vez mais as bandas de música brasileira ativas no país. Empresas brasileiras se instalaram na Bélgica ou enviaram estagiários, enquanto a representação diplomática se expandiu na União Europeia e na Otan. Os casamentos mistos trouxeram mais brasileiras à Bélgica, inclusive princesas da família imperial. Com a crise econômica milhares de brasileiros buscaram trabalho na Bélgica. Muitos não conseguiram carteira de trabalho, arriscando-se como clandestinos à deportação. Para assisti-los, surgiu em 2006 a associação Abraço. Assim, formou-se uma verdadeira colônia brasileira com pontos de encontro, bares e restaurantes, associações culturais, galerias de arte, exposições, publicações, igrejas, carnaval e festas juninas, mais concentrada em Bruxelas, mas também presente em Antuérpia, Liège, Gand e Lovaina. Estimativas calcularam o total de brasileiros na Bélgica em torno de 40.000 por volta de 2010, um número bastante alto em comparação com a emigração brasileira nos outros países europeus. O tema merece certamente uma pesquisa mais ampla e sistemática. Em 2011 surgiu o projeto Me Brasil dentro da Oca, sob o impulso de Regina Barbosa, para registrar esta presença brasileira em interação com belgas ou outros lusófonos. Não falta matéria interessante como Pixote em Bruges, a revista Para ti Para todos em Antuérpia desde 1995, a galeria Zacco Canchi em Aalst, La Maison du Brésil em Bruxelas, Alegria em Lovaina ou os numerosos grupos de capoeira, como o Porto de Minas.

João Turin esculpindo “Exílio”.

dência. Outros levaram na volta ao Brasil uma esposa belga. Uma destas relatou, em carta aos parentes belgas, a vida na fazenda em Minas Gerais com os escravos reunidos à noite para a reza e benção. Depois da Primeira Guerra Mundial estudantes brasileiros inscreveram-se de novo nas universidades belgas, se bem que o Brasil criava entrementes suas próprias instituições. A Bélgica voltou a fazer parte da rota de literatos, artistas, diplomatas e empresários brasileiros no seu périplo europeu. Em viagem de 1922 junto com Vicente do Rêgo Monteiro, Gilberto Freyre conheceu uma belga ‘a mais lírica das namoradas... demônio de morena de olhos verdes tão criança e ao mesmo tempo já tão mulher’, que lhe escrevia cartas com um pouco de seu cabelo (Tempo morto e outros tempos). Outros vieram para visitar as exposições de Antuérpia em 1930 e de Bruxelas em 1935, como o pintor Décio Villares, do qual o Museu de Belas Artes de Antuérpia conserva uma tela. Foi no ateliê do escultor Oscar Jespers que Maria Martins aprendeu, por volta de 1938, a trabalhar em bronze. A segunda invasão alemã em maio de 1940 provocou um novo êxodo dos brasileiros.

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presenças brasileiras na bélgica

Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas em Onze-Lieve-Vrouw-Waver Mario Baeck

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undado em 1841, o Instituto das Ursulinas em Onze-Lieve-Vrouw-Waver se impôs em poucos decênios como uma instituição de fama internacional (Baeck, 2011). No final do século XIX oferecia fácil acesso pelo porto de Antuérpia e pela estrada de ferro até a cidade vizinha de Malines. Suas belas construções em diversos estilos históricos formavam um amálgama esplêndido bem ao gosto da alta burguesia. Prestavam muita importância à higiene e às técnicas modernas como calefação central, água corrente e iluminação elétrica. A propriedade rural de dez hectares dispunha de um parque de passeio de estilo inglês, de um bosque com vistosas estruturas de cimento rústico, entre as quais uma sala de piquenique e uma gruta de Lourdes, e vastos campos lavrados a partir de sua própria granja modelo. A sua maior atração consistia na sua oferta de um ensino de qualidade e progressista, não somente nas matérias de humanidades e nas formações de professoras, como também de economia doméstica e de ensino agrícola e hortícola. Graças às suas múltiplas inovações pedagógicas, inspiradas num feminismo moderado, tinha o instituto excelente reputação junto à burguesia afortunada e de cunho cosmopolita, bem além das fronteiras da Bélgica. Por volta de 1900 quase uma quarta parte das alunas vinha do exterior. As irmãs recrutavam não somente nos países vizinhos, como também na Rússia, Áustria-Hungria, Itália, Espanha e até na África, Austrália, nos Estados Unidos e na América Latina, com numerosas moças do Panamá e da Colômbia e ainda da Nicarágua, Argentina e do Brasil. Por causa de diversas circunstâncias, como as destruições durante a Primeira Guerra Mundial, as listas das matrículas conservadas são fragmentárias. Nos palmarés (listas) dos anos de 1920-1930 figuram como alunas brasileiras Flora e Gina d’Oliveira Castro, Juliette e Lucy Braz Pereira Gomes e Jandyra Gomes de Mendonça, todas de Brazópolis, cidade do Estado de Minas Gerais. Foi provavelmente este o pensionato belga onde o jornalista José Eduardo de Macedo Soares, exilado na França por volta de 1923, colocou suas duas filhas. Uma delas, Maria Carlota [ou Lota] de Macedo Soares parece ter inventado uma marchinha de samba quando, numa festa, todas as moças deviam cantar o hino nacional (Oliveira). Ela se tornou mais tarde, no começo dos anos de 1960, a paisagista executiva do parque no Aterro do Flamengo. Sua sensibilidade particular aos encantos da natureza talvez tenha se despertado e crescido no ambiente floral do pensionato. Para oferecer às centenas de internas estrangeiras e a seus parentes de visita uma condigna sala de recepção e de encontro, as Ursulinas enriqueceram o pensionato em 1900 com um magnífico jardim de inverno de estilo art nouveau, com vitrais numa

construção metálica. É uma realização artística única de prestígio mundial, ainda mais como uma rara e grandiosa construção art nouveau em zona rural e num contexto católico (Baeck, 1993). Pela cúpula de vidro entram raios dourados que criam uma atmosfera primaveril mesmo em dias escuros. O vitral multicolorido da cúpula desenha a Manhã, o Dia e a Noite. A flora se faz também proeminente na decoração. Além disso, a natureza ao vivo também está presente no jardim de inverno com palmeiras exóticas, samambaias, plantas e flores. Nisto as irmãs aderiram a um tipo de natureza civilizada e estilizada, cultivada pelo homem, inerente aos seus conceitos pedagógicos. O caráter único do complexo se encontra ainda nos interiores primorosamente ecléticos e bem conservados. A sua decoração carrega um significado fortemente simbólico como também serve às finalidades estéticas e sempre didáticas. Assim, o conjunto dos

Vista do interior da estufa art nouveau do Instituto das Ursulinas.

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parte 1 – travessias e migrações

Instituto das Religiosas Ursulinas em Wavre Notre-Dame, fundado em 1841.

edifícios vale sem dúvida como um dos exemplos mais marcantes do pensionato belga do período 1840-1960 e pode ter inspirado nesta procura de classe os seus congêneres estabelecidos por congregações belgas no Brasil, como o Des Oiseaux em São Paulo ou as Damas em Recife.

Mario Baeck é licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Gand, prepara um doutorado em História da Arte, publicou sobre literatura flamenga e neerlandesa, história da arte, conservação do patrimônio e particularmente sobre o Jardim de Inverno do Instituto das Ursulinas, do qual é secretário.

Os estudantes brasileiros na Universidade de Liège (1870-1914) C h r i s t i n e Fe l l i n

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chegada de estudantes brasileiros na Universidade de Liège ocorreu mais tarde do que nas outras universidades belgas com os primeiros quatro inscritos em 1863-1864 (Fellin; Stols, 1875). Esse número estagnou neste patamar por muito tempo. Aliás, ao passo que os estudantes dos outros países da América Latina se tornaram cada vez mais numerosos, se produziu desde 1887 em todas as universidades belgas uma diminuição nítida das inscrições brasileiras. Em comparação com os 15 anos anteriores, esta forte queda se relacionava não somente com as

dificuldades políticas do fim do Império e dos primeiros passos da República, mas também com a crise do café e a situação financeira instável do País. Quando a situação interna do Brasil melhorou e a industrialização do País deslanchou de verdade nos anos de 1900, o número de estudantes brasileiros aumentou novamente. Neste momento a tendência se inverteu: não eram mais a Universidade Livre de Bruxelas e a Universidade de Gand as mais procuradas, mas a Universidade de Liège, e principalmente seu Instituto Montefiore.

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presenças brasileiras na bélgica

Alunos trabalhando no Instituto Montefiore.

O Instituto Montefiore da Universidade de Liège.

Este predomínio de Liège durou até a Primeira Guerra Mundial e pelo menos 132 brasileiros frequentaram os bancos da Universidade de Liège, ou seja três vezes mais do que o segundo país latino-americano, a Argentina, com 39 inscritos entre 1870 e 1914. Entre estes 132 estudantes brasileiros, originários essencialmente das províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, 109 optaram por estudos técnicos, 66 pelas Escolas especiais ou, em seguida, a Faculdade Técnica em 1893, e 43 para o Instituto Montefiore, sete pelos estudos de Medicina, quatro pelas Ciências Políticas e Administrativas, dois pela Licenciatura Comercial, dois pelas ­Ciências Notariais, um por Química e um por Direito. Somente 24 obtiveram diploma. Como explicar o interesse marcante dos brasileiros para os estudos universitários em Liège? Já antes a cidade gozava no Brasil de boa reputação por causa de sua metalurgia e particularmente de suas armas. Comissões militares brasileiras vinham visitar os ateliês e faziam boas encomendas. Em agosto de 1871 o próprio Imperador Pedro II visitou Seraing com o industrial Georges Montefiore-Levi, almoçou na casa do sucessor de Cockerill, Sadoine, e recebeu revólveres de presente (Condessa do Barral, 736-379). Mais interessado nos métodos de ensino, se informou sobre a Universidade de Liège e entrou em contato com os professores Eugène Catalan e Edouard Van Beneden, respectivamente titulares de Matemáticas e de Biologia e Zoologia. No ano seguinte Van Beneden liderou uma expedição científica ao Rio de Janeiro, onde descobriu um tipo de boto, e visitou Pedro II. Numa outra passagem por Liège, em 1876 ou 1877, o Imperador se reencontrou com o zoólogo. Foi por sua apresentação que o Imperador se tornou em 22 de dezembro de 1885 membro correspondente da Société des Sciences de Liège.

O que entretanto diferenciou a Universidade de Liège das outras instituições do país foi seu ‘Institut Montefiore’ (Legros e Pirotte; Tomsin). Fundado em outubro de 1883 por Montefiore-Levi, senador de Liège, foi a primeira escola eletrotécnica de nível universitário no mundo a coordenar todas as aplicações da eletricidade num único programa e a formar engenheiros eletricistas numa sequência de estudos teóricos e práticos. Por situar-se na ponta do desenvolvimento da eletrotécnica, o Instituto Montefiore ganhou rapidamente reputação nos quatro cantos do mundo e os estudantes estrangeiros se apresentaram cada ano mais numerosos. Assim, apenas dois anos depois de sua abertura, um estudante brasileiro, Colin Freitas Broad, se inscreveu e mais 42 outros brasileiros o seguiram até a Primeira Guerra Mundial. Entre estes alunos brasileiros da Universidade de Liège, e particularmente do Instituto Montefiore, alguns fizeram uma bela carreira. Foi o caso de Edgard de Souza (nascido em 12.3.1876, Campinas), enviado com 16 anos à Bélgica para seguir uma formação técnica, diplomado como engenheiro de Minas com distinção em 1898 e como engenheiro Eletricista com satisfação no ano seguinte. De volta ao Brasil, tornou-se engenheiro Eletricista-chefe e depois, a partir de 1914, vice-presidente da The São Paulo Tramway, Light and Power, e ainda diretor da Companhia Telefônica do Estado de São Paulo. Mas, Edgard de Souza é sobretudo conhecido como o fundador e primeiro professor da seção de Eletrotécnica na Escola Politécnica de São Paulo. Seu irmão, Durval de Souza, também estudou Engenharia em Liège, mas levou quase dez anos para obter, em 1902, seu diploma de engenheiro Eletricista pelo Instituto Montefiore e exerceu sua profissão na cidade de São Paulo. Vale seguir outras carreiras: Herculano de Almeida Correa,

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parte 1 – travessias e migrações

formado engenheiro de Artes e Manufaturas em 1897 e engenheiro Eletricista em 1899, diretor da Companhia Melhoramentos de São Paulo; Colin Freitas Broad, engenheiro Eletricista em 1890, atuou na Compagnie Internationale d’Electricité em Liège (1891), em Santos (1892-1893), na Companhia Mogyana de Estradas de Ferro (1894-1895), na Comissão de Estudos da Estrada de Ferro Catalão-Cuiabá (1896-1900), em São Paulo (1901-1902) e, por fim, no London and Brazilian Bank no Rio de Janeiro (19051908); Carlos de Figueiredo, engenheiro Eletricista em 1900, foi professor no Rio de Janeiro; J. N. de Lemos Basto, engenheiro Eletricista em 1890, atuou como diretor dos Correios e Telégrafos do Brasil no Rio de Janeiro; Edouardo de Aguiar d’Andrade, engenheiro Eletricista em 1894, serviu, depois de três anos na General Electric Company em Nova York (1895-1898), como engenheiro

na São Paulo Railway Company e diretor da Companhia Telefônica, da Companhia Melhoramentos e da Empresa Luz e Força de Jundiahy. Alguns estudantes do Instituto Montefiore receberam bolsas da Marinha brasileira, sem dúvida com relação à sua compra de navios de guerra mais modernos. Foi portanto nas companhias de estradas de ferro e de eletricidade, no serviço público e no ensino superior que quase todos se beneficiaram com a formação recebida no Instituto Montefiore. Este contribuiu de maneira modesta, mas evidente, ao desenvolvimento e à modernização do Brasil. Christine Fellin obteve a licenciatura em História na Universidade de Liège com uma monografia sobre “Os estudantes latinoamericanos na Universidade de Liège antes da Primeira Guerra Mundial”.

Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta Susana Rossberg

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m 1964, quando ocorreu no Brasil um golpe de Estado e o estabelecimento da ditadura militar que duraria 21 anos, eu estava nos Estados Unidos, pois tinha me tornado órfã aos 15 anos e fora enviada para viver com minha tia americana. Mas não gostava dos Estados Unidos e, em 1965, antes de completar 20 anos, voltei para o Brasil. Comecei a cursar Psicologia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciei estudos de Crítica Teatral na Escola de Arte Dramática (EAD), precursora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Passei a viver com um colega da Escola de Arte Dramática. Um dia, em 1967, participamos de uma passeata contra a ditadura, e a nossa foto, na primeira fila da passeata, foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo. Sabíamos que as fotos feitas durante passeatas eram utilizadas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para identificar as pessoas que se opunham à ditadura. Compreendemos, assim, que deveríamos sair do País. Meu companheiro, Luis Otavio Barata, então cenógrafo de teatro, havia encontrado, na Bienal de São Paulo, um cenógrafo tcheco famoso, Josef Svoboda, e lhe propusera aperfeiçoar seus estudos com ele. Svoboda respondeu: ‘Venha’, de maneira que o lugar lógico para irmos, quando saíssemos do Brasil, era a então Tchecoslováquia. Esperávamos sermos acolhidos de braços abertos. No entanto, quando chegamos, nos sinalizaram que deveríamos aprender o tcheco durante dois anos e que as escolas de tcheco estavam lotadas, devido ao esforço de guerra, para ajudar o Vietnã do Norte. As escolas estavam cheias de vietnamitas e nos aconselharam a fazer o pedido de admissão em março do ano seguinte, isto é, 1968. Nos lembramos, então, de uma conferência que Heleny Guariba tinha dado na EAD. Ela tinha falado de seu estágio com o diretor francês de teatro Roger Planchon e de um outro estagiá-

rio, belga, diplomado em uma boa escola de teatro em Bruxelas, o Insas (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle). Foi assim que resolvemos ir para Bruxelas. Chegamos na véspera do vestibular e, não sei por que milagre, fomos ambos aceitos. O nosso francês, sobretudo o meu, não era extraordinário. Após um ano no Insas, Luis Otavio, hoje falecido, voltou para Belém do Pará, de onde era oriundo, e onde se tornou um profissional de teatro conhecido. Eu, tendo descoberto a edição de cinema, pedi transferência para a seção de continuidade e edição de filmes do Insas. Naquela época, o Consulado do Brasil ficava em Antuérpia. Eu viajava para lá unicamente para renovar o passaporte e não colocava jamais os pés na embaixada. Os dois funcionários na Antuérpia, um deles Silvio Moreira, que continua na embaixada, eram simpáticos, mas, como todos os brasileiros na Bélgica, eu morria de medo de aparecer por lá. Aliás, conhecia pouquíssimos brasileiros aqui. Era muito paranoica, morria de medo dos delatores da ditadura. Por isso, não voltei ao Brasil até o fim da ditadura e a Anistia. Bruxelas mudou muito desde 1967. Na época, parecia um vilarejo de província. A mentalidade era bastante racista. Até eu aprender o francês corretamente, era um pouco maltratada ou ignorada nas lojas. Tínhamos problemas para alugar um apartamento – em todo lugar estava anotado ‘étrangers s’abstenir’, isto é, ‘estrangeiros, abstenham-se’. O fato de Bruxelas tornar-se a capital da Europa, assim como a chegada de milhares de estrangeiros, modificou a mentalidade e aumentou a diversidade cultural da cidade. Tive muita sorte na vida profissional. Minha mãe me falava sempre da importância de um trabalho bem feito. Dediquei-me ao trabalho o quanto pude, chegando a negligenciar um pouco a minha vida privada. Graças ao conhecimento da língua alemã (meus pais tinham emigrado da Alemanha para o Brasil), aprendi

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o flamengo com certa facilidade. Atuei, em francês e flamengo, como continuista, editora, assistente de direção e diretora de filmes. Pude trabalhar com diretores belgas conhecidos, tais como Benoit Lamy, Harry Kümel, Marion Hänsel, Stijn Coninx, Jaco Van Dormael, Hugo Claus. Pratiquei meu ofício também em outros países europeus e fui responsável pela continuidade de dois filmes nos Estados Unidos. Tive a honra de receber a distinção honorífica de Cavalheiro

(não Dama) da Ordem de Leopoldo II, por minha contribuição ao cinema belga. No entanto, o trabalho pelo qual me sinto mais realizada, que me toca mais profundamente, é o meu documentário Brasileiros como eu. Susana Rossberg foi, igualmente, professora em duas escolas de cinema belgas, tendo, assim, a oportunidade e o prazer de contribuir ao desenvolvimento de novas gerações de cineastas.

Algumas figuras brasileiras em Lovaina durante os anos 70 Pa u l D u l i e u Os jovens que haviam deixado o Brasil dos generais temiam ser perseguidos. Eram muito desconfiados, a tal ponto que alguns os julgavam paranoicos. Um tipo bigodudo poderia ser um espião, e postiço seu bigode! Às vezes o rumor se espalhava. Pois não se falava em sequestrar Fleury, um policial torturador, que diziam ir à França para colher informações? Mas esses receios e projetos fantasiosos logo se dissipavam ao ritmo do carnaval no Stuc, Van Evenstraat; os passos endiabrados do samba espalhavam no inverno flamengo o calor vibrante dos Trópicos. Mas, deve-se confessar, experimentava-se às vezes um fundo de amargura, uma espécie de alegria melancólica. Seria o que nossos amigos do Brasil chamam de saudade? Os estudantes que não seguiam o rastro de Marx deixavam-se apanhar por Freud, ou por Marcuse ou Lacan. Os brasileiros degustavam as teorias psicanalíticas. Walter Evangelista, estudante de Filosofia, alardeava o evangelho segundo Sigmund; o tipo que não se deitava no divã era lastimável; recusava a aventura interior; tinha medo de embarcar no conhecimento do seu Eu profundo. Antonio Marques (chamavam-no Antonio das Mortes por causa do filme de Glauber Rocha sobre os cangaceiros) ficou dez anos na Bélgica; durante essa longa permanência – e era preciso driblar incríveis dificuldades – apaixonou-se por antiguidades e obras de arte. Depois de escrever uma tese sobre a literatura de cordel, tornou-se no Brasil especialista reconhecido em cultura popular e hoje possui em seu Solar das Artes, em Natal, vasta coleção de telas, esculturas, marionetes, comprovando a brilhante imaginação dos artistas brasileiros. Alto, magro, óculos de intelectual, sorriso irônico no canto da boca. Osmar Ramos Filho era inigualável na interpretação dos sonhos da noite. Parecia ter a chave de todos os enigmas. Atraído pelo esoterismo, tornou-se, por paixão, um conhecedor único da obra de Balzac. No Brasil, pretendeu ter descoberto um romance psicografado: Waldo Vieira, escritor brasileiro, teria sido tomado pelo espírito do grande romancista francês para escrever sob seu ditado Cristo espera por ti. A fim de provar esse fenômeno espírita, Osmar conduziu com persistência infatigável pesquisas de estilística e de lexicografia comparando o romance de Waldo Vieira com

“Il belge”, dizia Miranda quando o céu se mostrava chuvoso

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os anos 70, na Universidade de Lovaina, aconteceu-me encontrar inúmeros brasileiros. Era o tempo da ditadura militar, dissidentes de várias correntes chegavam à Bélgica. Em Bruxelas, Yolanda Bettencourt, que trabalhava na Entraide et Fraternité, era a mãe universal dos exilados. O brasileiro que desembarcava, se nada conhecia do país, tinha pelo menos no fundo do bolso uma papeleta com o endereço de Yolanda, e procurava, no emaranhado urbano de Anderlecht, a Rua Docteur Huet. Bate à porta. Longas explicações são desnecessárias. Providencia-se um pouso e alguns expedientes para sobreviver. Dom Hélder Câmara que declarava: ‘Quando dou pão a um pobre, dizem que sou um santo. Quando pergunto por que ele é pobre, dizem que sou comunista’, hospedou-se mais de uma vez em sua casa. O marido de Yolanda, Luc Thomé, pito no canto da boca à moda de Jacques Prévert, mostrava boa acolhida – às vezes resmungando um pouco – a todos os que, como se diz no Brasil, ‘não tinham onde cair morto’. Em Lovaina, havia um cabaret de estudantes com a placa l’Œil Nu (Olho nu). À noite, ouvia-se música brasileira. O guitarrista Marcelo de Mello, que fundou o Quinteto Violado, tocava ali música erudita e popular. Revejo Geraldo Vandré arranhando sua guitarra. Cantava “somos todos iguais braços dados ou não”, uma canção que não havia tido a sorte de agradar aos generais, e o pobre trovador, devido a certas estrofes impertinentes, vira-se forçado a exilar-se num país chuvoso. A época era efervescente. O grande caldeirão da universidade fumegava ainda do fogo de 68. Contra o ministro Vrancks, que queria, por meio de medidas julgadas iníquas, limitar o acesso de estrangeiros à universidade, os estudantes fizeram greve de fome em dezembro de 1971. No Œil Nu, um ateliê de serigrafia imprimia cartazes onde se lia: Non au décret; Les frontières on s’en fout; Nous sommes tous des étrangers. Tais cartazes eram um apelo à manifestação. Havia uma fraternidade na recusa à injustiça internacional, e era preciso lutar contra a palmatória dos regimes militares em que se apoiava o capitalismo.

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Ilustração de Géraldine Servais denominada “Aparecida Ventre Livre”.

Mas esse velho enclave português acabava de ser recuperado pela Índia. Aceitar um passaporte que Portugal lhe propunha? Seria correr o risco de se ver envolvido na guerra colonial de Moçambique. Apegado à sua língua, José Miranda escolheu partir para ensinar no Brasil. Foi, pois, passando pela universidade de Lovaina que um goense encontrou brasileiros que o determinaram a atravessar o Atlântico. Esses exemplos que pinço na paisagem movimentada dos anos 70 falam do papel prioritário que a Bélgica desempenhou no destino de certos jovens em relação ao Brasil. A partir de 1984 os intelectuais e os artistas exilados retornaram ao seu país e hoje são substituídos por emigrados sem formação particular, vindos principalmente de Goiás, e que esperam melhorar sua situação econômica instalando-se em Bruxelas.

Cartaz de 1971 conclamando a uma manifestação em Lovaina com os dizeres “Nós somos todos estrangeiros”.

os escritos de Balzac. Consequentemente a esse trabalho minucioso, Osmar redigiu uma obra notável que tem por título O avesso de um Balzac contemporâneo. Vindo de Ferreiras, uma cidadezinha que por gracejo ele chama de centro do mundo, José Maria Tavares de Andrade reunia uma quantidade de dados sobre a religiosidade popular do Nordeste e sobre a farmacopeia tradicional. Após completar sua formação de sociólogo junto com Bastide e Edgar Morin em Paris, tornou-se um brilhante especialista do fenômeno religioso e do que chama de ‘etnomedicina’. Rachel da Costa Cunha permaneceu na Bélgica após ter recebido sua licenciatura em Filosofia. Participara, antes de seus estudos, do Rio Ballet Guanabara e apresentou-se no Tea­tro Municipal do Rio. Após seus estudos fundou, em Wavre, o Centro de Balé Mimésis, que acolheu por mais de 30 anos centenas de alunos. José Miranda falava português, mas não vinha nem do Brasil nem de Portugal. Era originário de Goa. Em Lovaina, estudava Sociologia. Que faria no final de seus estudos? Retornar a Goa?

Segurando a mão de Aparecida Depois de ter-me casado com uma carioca, mergulhei na história desse país gigantesco, tão diferente da pequena Bélgica pelo tamanho e pelo céu. Devo minha primeira leitura em língua portuguesa à minha sogra, que ofereceu-me o livro fundador da identidade brasileira, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Em 1999, a Comunidade francesa da Bélgica propunha para seu concurso anual de novelas o tema do nascimento. Voltou-me à memória que o Brasil procedeu por etapas para chegar à abolição total da escravidão em 1888. Uma dessas etapas foi a Lei do Ventre Livre. Lembrei-me da imagem de uma jovem mulher

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presenças brasileiras na bélgica

negra. Chama-se Aparecida. Fiz dela a heroína de uma história que se passa em um engenho. Aparecida é uma escrava, mas pela Lei de 1871 o filho que espera já é livre. Jamais conhecerá, como seus pais, o trabalho servil. No tenso contexto social e político da época, Aparecida Ventre Livre ilustra o nascimento em um plano duplo: nascimento de um filho chamado Solto, mas esse Solto representa, sobretudo, um nascimento para a liberdade. Aparecida Ventre Livre recebeu o primeiro prêmio da novela e foi publicado em La Libre Belgique antes de ser traduzido para o português em um jornal de Curitiba. Para um belga que atravessa seu país de ponta a ponta em algumas horas, é presunçoso falar do imenso Brasil. Colocando-me a pergunta: ‘Como se pode ser brasileiro?’, tentei respondê-la por meio de um subterfúgio narrativo. Fico em Copacabana e faço uma espécie de caderno de rascunhos. Em meu carnê de notas, anoto as coisas vistas, evocações históricas, faço comparações entre essa terra nova e o que Jean de Léry chamava les pays d’en

deçà. Resulta um livro que tem por título Carta de Copacabana a Christophe que ficou em Courtelande; Courtelande sendo, na ocorrência, meu país de origem, a Bélgica. Essa carta sublinha muitas vezes de modo um tanto irônico o que nos une e nos separa, em toda fraternidade. Quando o céu se mostra baixo e qu’il belge, como dizia Miranda, lembro-me de Aparecida, pego a mão dessa mãe-coragem que soube, em meio ao pior dos abandonos, dar vida à Liberdade. (Tradução Virginia Gomes Ribeiro) Paul G. Dulieu é diplomado em Sociologia e Linguística, trabalhou para a Universidade Católica de Lovaina, para o Instituto de Artes de Difusão e para o Fundo das Nações Unidas para a População antes de exercer atividade de jornalista. Tem sólidos laços com o Brasil e escreveu canções, peças de teatro e novelas, estas últimas editadas por revistas belgas e brasileiras. Sua novela Aparecida Ventre Livre recebeu o Grand Prix de la Libre Belgique em 1999.

A inserção dos trabalhadores brasileiros migrantes no mercado de trabalho belga Martin Rosenfeld e Beatriz Camargo

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Brasil, tradicionalmente um país de emigração, combina atualmente essa tendência migratória com uma imigração significativa, formando fluxos migratórios complexos (Padilla & Póvoa Neto, 2012). Este artigo descreve e discute as características do último momento migratório brasileiro. Está organizado para enfocar as migrações brasileiras e as oportunidades no mercado de trabalho na Bélgica. De fato, o Brasil foi uma terra de destino para os europeus até o início da ditadura civil-militar, nos anos 1960. Todavia, a partir de 1964, intelectuais e sindicalistas expulsos pelo regime ditatorial foram em grande parte à Europa. Eram, em geral, pessoas altamente qualificadas, que se inseriram facilmente no mercado de trabalho europeu (Padilla et Peixoto, 2007). Uma parte dessa leva migrante retornou ao Brasil com a Lei de Anistia em 1979, trazendo consigo uma imagem positiva dos países de acolhimento, inclusive da Bélgica, como nações receptivas e com um mercado de trabalho atrativo. No final dos anos 1970, teve início uma imigração econômica de profissionais altamente qualificados. Esse movimento cresceu no início dos anos 1980 com a crise brasileira motivada, principalmente, pela dívida externa e a estagnação do projeto de desenvolvimento industrial, que havia sido, desde os anos 1930, a base do crescimento econômico brasileiro (Pochmann, 2009). A balança migratória se invertia, progressivamente, e o Brasil se tornava, nessa segunda vaga migratória, um país de imigração (Assis, 1999).

Padilla (2007) aponta que a chegada do século XXI trouxe uma massificação e uma ‘proletarização’ das migrações brasileiras rumo à Europa. Isto é, essa terceira vaga migratória é caracterizada por pessoas pertencentes à classe média baixa, cuja inserção no mercado de trabalho se dá principalmente em setores menos qualificados e, consequentemente, menos valorizados. Os principais países receptores dessa migração são Estados Unidos e Inglaterra. Os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos e ao metrô de Londres, e a consequente restrição do controle migratório, como revelam Padilla e Peixoto (2007), contribuíram para o desvio dessas migrações principalmente para países como a Bélgica.

Migrações brasileiras e oportunidades de trabalho O fluxo expressivo de migrantes de classe média baixa é favorecido na Europa por uma estrutura de oportunidade específica: a possibilidade de entrar no espaço Schengen como turista, sem necessidade de pedido de visto de entrada no país. O Acordo de Schengen é uma convenção entre países europeus (União Europeia exceto Irlanda e Reino Unido, mais Islândia, Noruega e Suíça) sobre a circulação de pessoas entre os países signatários e uma fronteira comum. Brasileiros entram sem visto, mas devem responder a uma série de condições, como provar a estadia e recursos suficientes para o período da viagem. A autorização funciona como porta de entrada, mas não dá acesso ao mercado de trabalho. Há, no entanto, uma relevante

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parte 1 – travessias e migrações

demanda por mão de obra de baixo custo para os chamados 3-D jobs (Dirty, Demanding and Dangerous) (Castles, 2002). Assim, as oportunidades de trabalho no mercado informal, ou ‘negro’, são muitas, sobretudo em setores pouco regulados pelo controle governamental: agricultura, restauração, construção e limpeza. Nessa direção, Rosenfeld et al. (2009) salientam que a migração brasileira tem uma dimensão transnacional por sua mobilidade entre países europeus e, muitas vezes, também entre Brasil e Europa. Para esses pesquisadores, essa mobilidade geográfica está a serviço de um projeto migratório que, na maioria dos casos, é de uma curta estadia na Europa, o suficiente para economizar dinheiro e retornar ao Brasil. O percurso migratório na Europa se revela, assim, um jogo estratégico entre oportunidades econômicas e migratórias. Num continuum migratório, de um lado extremo está o Reino Unido, cuja diferença salarial com o Brasil é das mais relevantes, mas cujas leis migratórias são extremamente severas. No outro extremo desse continuum está Portugal, que oferece uma série de vantagens em termos migratórios, principalmente a facilidade da língua e da organização de frequentes campanhas de regularização, mas com um mercado de trabalho em crise. Entre os extremos, a Bélgica parece ocupar uma posição intermediária, por sua proximidade de Paris – porta de entrada privilegiada dos turistas brasileiros – e a relativa facilidade de integração no mercado de trabalho informal local.

ou legal. Esse setor pouco regulado da economia nacional atrai, assim, principalmente trabalhadores migrantes, como brasileiros que entraram como turistas e se encontram em situação irregular de estadia, sem acesso legal ao mercado de trabalho. Eles entram no setor da construção – com ou sem experiência – e principalmente no subsetor das finalizações: pintura, forro e, sobretudo, como colocadores de placas de gesso (gyproc) para o forro. A especialização no subsetor de forro com placas de gyproc apresenta duas vantagens. Em primeiro lugar, é uma tarefa bem definida, que pode facilmente ser terceirizada pela empresa responsável pela obra. Em segundo lugar, é uma atividade indoor, isto é, realizada no interior da obra e por isso menos visível – mais segura –, ideal para um trabalhador em situação irregular. No setor de construção, há uma complexa rede de relações que se estabelece entre grandes empresas e pequenas ou micro empresas terceirizadas. Com frequência, há um mestre de obras português, um ‘patrão’ brasileiro, que não é senão o encarregado pela obtenção e controle da mão de obra e, enfim, o trabalhador brasileiro. Nessas articulações, não é raro que o intermediário guarde a metade do salário, e o trabalhador que o realizou recebe, apenas, entre dez a cinco euros a hora trabalhada, dependendo se o trabalho é especializado ou não.

O setor do care : limpeza e cuidado O chamado global care chain, ou redes globais de cuidado (Hochschild, 2000), contribuem para o aumento da demanda por serviços no setor do care (cuidado). Na Bélgica, a demanda se traduz em oportunidades de trabalho na limpeza e no cuidado de crianças e de pessoas idosas em domicílio. É comum que as trabalhadoras brasileiras se insiram nesse setor, começando por um trabalho de serviço doméstico que exige que a trabalhadora durma no emprego, o que lhes permite economizar uma parte do salário, acelerar o aprendizado da língua e minimizar os riscos de fiscalização nas idas e vindas de/para o trabalho. No entanto, a situação exige forte implicação emocional, pela proximidade com o empregador, o isolamento e a falta de controle sobre o tempo trabalhado, uma vez que a linha entre o trabalho e o repouso é por vezes mal definida. Embora essa modalidade de trabalho seja preferida por algumas brasileiras recém-chegadas, a maioria procura uma posição como trabalhadora doméstica em uma família sem exigência de dormir no emprego, ou como faxineira, em que trabalham por hora. Essa modalidade de trabalhar por hora oferece mais maleabilidade na gestão dos horários, necessária quando crianças acompanham o projeto migratório, mas implica, também, uma constante busca de um número suficiente de empregadores para completar a grade horária semanal, o que pode ser um motivo de estresse. Além da limpeza em domicílio, outras oportunidades de trabalho para os brasileiros com ou sem estadia regular são oferecidas por empresas de limpeza profissional. O setor é, todavia, bem distinto do mencionado acima, sendo fisicamente mais pesado e

Nichos étnicos e mercado de trabalho belga A repartição de trabalhadores brasileiros entre setores pouco regulados da economia belga é marcada: 72% dos homens estão empregados no setor da construção, enquanto 68% das mulheres trabalham no setor da limpeza (OIM, 2009). A grande concentração de brasileiros nesses dois setores revela a existência de nichos étnicos (Waldinger, 1994) que estruturam esses empregos. Embora somente 15% dos brasileiros trabalhassem nesses setores antes de sair do Brasil, a diferença salarial é um importante ponto de decisão. Isto é, apesar do desnível entre a profissão exercida no Brasil e a atividade profissional na Europa, metade dos brasileiros empregados nesses setores na Bélgica ganhavam menos de 300 euros por mês no Brasil (OIM, 2009). A Bélgica oferece, assim, numa lógica de divisão de gênero do mercado de trabalho, um nicho de emprego para as mulheres brasileiras, no setor da limpeza, e, para os homens brasileiros, na construção. É importante ressaltar que, antes de sua integração na União Europeia, trabalhadores portugueses, e em seguida poloneses, ocuparam, por sua vez, esses mesmos setores, movimentando o que Waldinger (1994) denomina ‘o jogo étnico da dança das cadeiras’ entre as nacionalidades (game of the ethnic musical chairs).

Os homens brasileiros na construção O mercado belga da construção depende, de maneira estrutural, de uma mão de obra barata, flexível e sem proteção social

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presenças brasileiras na bélgica

mais sujeito à fiscalização do trabalho. Essas características, somadas a horários de trabalho nem sempre fáceis (jornadas noturnas e frequentemente irregulares), fazem com que ele seja ocupado, em sua maioria, por homens. Em 2010, dois terços das infrações constatadas pela fiscalização do trabalho na Bélgica nesse setor envolviam brasileiros, com 575 casos (SIRS, 2011).

lhadores e trabalhadoras sejam semelhantes. Consequentemente, o projeto migratório inicial, de poupar dinheiro a curto prazo, é raramente concretizado no tempo previsto. À medida que o retorno ao Brasil é adiado, a integração à Bélgica se acentua. As vantagens sociais, em termos de acesso à educação e à saúde, mesmo para migrantes em situação irregular de estadia, contribuem para a evolução do projeto migratório no sentido da perenização, sobretudo se há crianças. As possibilidades de regularização da estadia e de inserção legal no mercado de trabalho, todavia, continuam raras, e a situação de irregularidade pode gerar relevantes tensões no seio da comunidade brasileira na Bélgica.

Conclusão O século XXI trouxe ao Brasil um desenvolvimento econômico significativo que, como aponta Pochmann (2009), favoreceu simultaneamente as classes socioeconômicas mais pobres e mais ricas da sociedade, e na qual a classe média foi a menos beneficiada com a mobilidade social. O foco deste texto foi, especialmente, a classe média inferior, que representa a maior parte do fluxo de trabalhadores brasileiros vivendo hoje na Bélgica. Para essa população, a migração para o exterior é uma forma de desbloquear a mobilidade social que eles não conseguem no Brasil, principalmente por falta de especialização profissional. Na Bélgica, a migração é, com frequência, familiar e parece se organizar de maneira complementar em cada casal, em nichos étnicos específicos e marcados pelo gênero. Assim, as mulheres encontram principalmente trabalhos regulares e seguros, que permitem uma renda estável. Os homens, por sua vez, costumam trabalhar em setores mais expostos, mas cuja remuneração é mais alta. A falta de regulação do mercado de trabalho, que atinge os dois setores, entretanto, faz com que as dificuldades vividas pelos traba-

Beatriz Camargo é doutoranda em Sociologia na Universidade Livre de Bruxelas (ULB) e pesquisadora no GERME (Group of Research on Ethnical Relations, Migration and Equality). Faz parte da Associação de Migrantes Brasileiros Abraço (www.abraco-asbl. be) e trabalha com temas de pesquisa sobre migração, trabalho e gênero; sua tese de doutorado investiga a formalização do trabalho doméstico em Bruxelas. Martin Rosenfeld é doutor em Antropologia pela Universidade Livre de Bruxelas (ULB) e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales-EHESS (França). Atualmente é pesquisador no GERME. Seus trabalhos estão apoiados na antropologia econômica e na sociologia urbana e se concentram, principalmente, no fenômeno dos movimentos migratórios transnacionais.

A Associação Arte N’Ativa: um pouco da nossa história... Isabel De Lannoy

P

odemos dizer que a Associação Arte N’Ativa, bastante dinâmica atualmente na promoção da arte e da cultura popular brasileiras em Bruxelas, “brotou” das sementes nativas da flora brasileira trazidas para a Bélgica por meio das bio-bijoux produzidas pelas artesãs Flávia e Patrícia Duarte, ambas irmãs de Isabel Duarte De Lannoy, coordenadora e presidente da Associação. Com um histórico de militância e envolvimento com temas sociais, ambientais e migratórios, Isabel criou em 2007 o Atelier Arte Nativa Brasil com o objetivo de difundir na Europa o uso das bio-bijoux fabricadas com materiais naturais, como sementes, madeira, coco, conchas etc., muito populares no Brasil. A iniciativa foi, em princípio, uma tímida ação de fomento à prática de consumo sustentável e promoção da economia popular praticada majoritariamente por mulheres à margem do mercado formal de trabalho: esta era a realidade das irmãs Duarte (Flávia e Patrícia) entre outras artesãs do Estado da Paraíba, que foram as primeiras protagonistas envolvidas no projeto que se pretendia solidário e transformador.

Evento promovido pela associação Art N’Ativa.

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parte 1 – travessias e migrações

Curso promovido pela associação Arte N’Ativa.

Com o passar do tempo, outras pessoas, sonhos e ideias se juntaram à iniciativa. Nesse período, Isabel encontra Alessandra, jovem empreendedora e com aguerrida motivação artística, ingredientes fundamentais para o avanço das ações. As duas buscaram conhecer melhor o mundo associativo belga e se lançaram no desafio de criar algo mais amplo e mobilizador. Com a oficialização da associação em 2011, juntaram-se a elas outros membros que trouxeram boa dose de dinamismo à equipe, como Myriam Marques, animadora cultural, e Cleverson de Oliveira, artista plástico. Nesse mesmo ano a associação foi selecionada para participar do festival Europalia – tradicional bienal de artes, que acontece há 30 anos em Bruxelas e outros países da Europa, cuja edição 2011-12 teve o Brasil como tema. Coube à Associação a responsabilidade de propor, organizar e gerir os eventos culturais do Club Brasil, café musical e ponto de encontro do evento. A realização de cerca de 50 manifestações artísticas com artistas brasileiros residentes na Europa (música, dança, artesana-

to, festa popular), no Club Brasil, trouxe à equipe Arte N’Ativa a maturidade para se estabelecer como uma importante associação sem fins lucrativos (asbl) de promoção cultural na comunidade.

A partir disso... Após o sucesso da Europalia, conquistamos outro espaço localizado no coração de Bruxelas, o Micro Marché, onde foi possível manter o projeto de difusão da arte e da cultura brasileiras, com a realização de concertos, mostras, saraus poéticos, vernissages, exposições, workshops, ateliers de reciclagem etc. Além dos eventos, a equipe investiu ainda no capital social, realizando o primeiro encontro informativo com ênfase na adesão de novos membros a fim de fortalecer o trabalho associativo e a inclusão de novas ideias e projetos. A iniciativa foi de grande sucesso e resultou na adesão de vários atores sociais munidos de bons projetos e interesse na participação ativa, como, por exemplo,

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presenças brasileiras na bélgica

Camélia Prado, educadora da área de Saúde Pública, Thierry Van Schuylenbergh, terapeuta bioenergético, Philippe Quevauviller, professor/músico, Grazielle Furtado e Ricardo Ambrósio, bailarinos contemporâneos, Paola Depienne, educadora/coaching, José Álvaro e Matheus Groove, músicos, Dudu e Christiane, voluntários, entre vários outros. Atualmente, a organização conta com mais de 20 associados e continua na promoção da arte e da cultura popular brasileiras, realizando projetos como “Samba dos Amigos”, Via MPB, I Roda de Choro de Bruxelas, Forrobodó, além da promoção de artistas brasileiros que estão ou que estiveram apenas de passagem pela Europa, como a cantora/compositora Déa Trancoso, o maestro percussionista Caíto Marcondes e o músico pesquisador Alfredo Belo DJ Tudo. Assim, há mais de três anos atuando de forma ativa e gregária, a Associação Arte N’Ativa – cuja “semente nativa” traz em seu cerne os ideais de inclusão e participação – vem crescendo e se desenvolvendo a cada dia, e funcionando como uma incubadora de sonhos, que identifica e valoriza o potencial criativo da comunidade através de seus membros, que são profissionais de diversas áreas e cujos sonhos, ideias e projetos são acolhidos, compartilhados e realizados. A Associação aglutina experiências possibilitando aos artistas, trabalhadores sociais e profissionais liberais novas oportunidades de ações inter e multiculturais. A título de ilustração temos alguns

projetos concretos como a Ciranda de Palavras, Rede Eco-Mix e “Pérolas do Mundo”, que têm como objetivo comum fortalecer o senso de solidariedade e cooperação da comunidade, que expressa seus valores e saberes, mantendo viva a identidade e diversidade cultural brasileiras. Concluindo, a Associação Arte N’Ativa está envolvida na luta pela construção de uma cidadania criativa e planetária, tendo a arte como instrumento de integração e transformação social.

Construção de redes e parcerias É importante dizer que a Fundação Roi Baudouin (FRB) foi uma parceira fundamental em nossa trajetória associativa, pois tivemos dois projetos aprovados pelo Edital da fundação “Migrantes: atores da solidariedade”. Outros parceiros são o IC Brussel (Comitê Internacional de Bruxelas); Wervel (Grupo de Trabalho por uma agricultura justa e sustentável); o Citizens Vorming Plus (ONG que trabalha com fomação para uma cidadania intercultural em Bruxelas); o centro cultural Piano Fabriek; a associação Terra Brasil, e a Associação Abraço. Isabel Duarte De Lannoy é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e possui pós-graduação em Cooperação ao Desenvolvimento pela Universidade Livre de Bruxelas – ULB; é fundadora e atual presidente da ASBL Arte N’Ativa.

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

parte 2

Relações Oficiais e Diplomáticas

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A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões belgas Pa u l o R o b e r t o d e A l m e i d a Preliminares

de Antuérpia (Onody, 1973, p. 281). Os contatos devem ter continuado, e se ampliado, durante a ocupação holandesa do Nordeste brasileiro, com as interrupções e rupturas que se seguiram às guerras prolongadas e à reconquista final do território pelas forças da metrópole portuguesa e dos residentes locais. A presença, nos dois lados, de famílias judias e cristãs-novas dedicadas ao comércio e às finanças deve ter assegurado a manutenção de vários tipos de vínculos entre a economia exportadora do Brasil e os grandes núcleos de comércio controlados pelas companhias dos Países Baixos na Europa setentrional: os portos sob sua “jurisdição” comercial sempre foram grandes distribuidores do açúcar brasileiro e de outros produtos exportados pela colônia. A ascensão subsequente dos interesses comerciais ingleses, no seguimento da derrota e da associação dos grandes comerciantes holandeses àqueles depois das guerras mercantilistas travadas entre as duas maiores potências comerciais da Europa do norte, podem ter consolidado alguns desses laços, a despeito da política exclusivista da metrópole portuguesa, mesmo a partir dos crescentes vínculos de dependência lusitana em relação à Inglaterra depois da Restauração (1640).

O

Reino da Bélgica ocupa, na história econômica do Brasil, uma importância especial, provavelmente similar àquela ocupada por Portugal na história mundial das navegações e dos descobrimentos: dois pequenos países, de dimensões geograficamente reduzidas e dispondo de recursos econômicos e humanos bastante limitados, mas que, no entanto, desempenharam, em suas esferas respectivas, papéis significativos na abertura de novos horizontes econômicos e na exploração de novas atividades humanas. Portugal, um reino periférico, com uma sociedade ainda bastante atrasada, mas dotado de um Estado relativamente “moderno” para os padrões da baixa Idade Média, avançou decisivamente, desde o início do século 15, na conquista de novos territórios, a partir de seu posicionamento geográfico ímpar e apoiado numa aliança entre seus mercadores e líderes políticos dotados de grande élan empreendedor, embora também animados pela fé missionária típica do espírito das cruzadas. A Bélgica, constituída como Estado independente vários séculos depois de Portugal, e oito anos depois do Império do Brasil, desempenhou, no entanto, mesmo antes de sua autonomia política, mas sobretudo depois, um papel de destaque na primeira revolução industrial (a do carvão e do aço) e avançou, já no contexto da segunda revolução industrial (a da química e da eletricidade), para posições relevantes na industrialização e modernização da infraestrutura do Brasil. De forma não surpreendente, portanto, os vínculos diplomáticos entre os dois países se contam entre os mais duradouros, estáveis e promissores nas suas histórias diplomáticas respectivas e nas suas relações bilaterais, de todos os tipos.

As relações Brasil-Bélgica no século 19 As relações oficiais, de governo a governo, começam logo após o rápido reconhecimento pelo Brasil do novo Estado europeu, o que se deve tanto ao alinhamento do primeiro reinado à política inglesa para o continente europeu quanto o desejo de ampliar o reconhecimento diplomático do novo Império sul-americano no contexto europeu (Stols, 1999, p. 210). O Brasil manteve, quase sempre, diplomatas profissionais à frente da legação em Bruxelas, sendo que já mantinha um cônsul de carreira desde antes da independência belga. O reino também despachou representante ao Brasil assim que foi possível fazê-lo (1834), logrando-se, logo em seguida, a assinatura de um tratado de comércio (Stols, 1999, p. 209-210). Comércio à parte, muitos jovens brasileiros fizeram estudos universitários em diversas instituições belgas, geralmente em medicina ou nas escolas politécnicas das universidades de Bruxelas e

O quadro histórico São antigas as relações, geralmente comerciais, entre o território da Flândria e a maior colônia do Império português. Um historiador informa que, já no século 16, o engenho de açúcar de Erasmo, em Santos, tinha relações financeiras com a casa Schetz,

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a ­Grã-Bretanha, no seguimento da chamada Questão Christie (Stols, 1973, p. 259), o que certamente agregou ao capital de simpatia de que dispunha o pequeno reino entre os brasileiros em geral, e entre os diplomatas em particular. Pedro II visitou várias vezes a Bélgica, no curso de suas diversas viagens internacionais. A partir de então, iniciativas belgas para efetuar negócios e empreender investimentos diretos no Brasil sempre foram acolhidas com boa vontade, a exemplo de projetos em estradas de ferro, da navegação do Paraguai e da exploração e transformação de recursos naturais no Mato Grosso (Garcia, 2009; Stols, 1987). Menor sucesso, porém, tiveram as investidas e os projetos colonialistas de Leopoldo II em direção do Brasil (Stols, 1987; 1999, p. 231), inclusive porque o Brasil não podia ser equiparado às terras incógnitas da Ásia ou da África, como os diplomatas brasileiros não deixavam de recordar. Os empreendimentos claramente capitalistas crescem então em importância: um primeiro investimento direto, na Société Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, é feito desde 1886 (Onody, 1973, p. 300), seguido de diversos outros, sobretudo no setor ferroviário. Ocorre então uma vaga de investimentos belgas no Brasil no final do século 19 e início do 20, paralelamente a outros investimentos belgas efetuados na Rússia, no Congo, no Egito, entre outros países: Stols identifica pelo menos 57 companhias belgas autorizadas a operar no Brasil entre 1876 e 1920, disseminadas por quase todo o território brasileiro (1973, p. 262-265).

Carro Imperial construído em 1886 na Bélgica para servir ao Imperador Pedro II.

Gand (Stols, 1999, p. 211). O Brasil, obviamente, vendia sobretudo café – não apenas para a Bélgica, mas a partir da Bélgica para diversos outros clientes na Europa do norte – e adquiria do país materiais diversos, entre eles equipamentos militares, como armas de guerra, especialidade das fábricas de Liège. O primeiro estudo sério das contas públicas brasileiras foi efetuado no início do segundo império pelo ministro belga no Rio de Janeiro, o Conde Auguste Van der Straten Ponthoz, em três grossos volumes: Le Budget du Brésil (1847). Pelo exame da distribuição de recursos entre as legações e os consulados do Brasil no exterior se podia constatar a hierarquia diplomática estabelecida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros: as despesas alocadas, conjuntamente com as representações na Bélgica e na Holanda ascendiam a 5,3 contos de réis, em paridade com os recursos atribuídos à representação em Montevidéu e pouco abaixo de Assunção, mas bem abaixo (num distante 15º lugar) dos montantes alocados à primeira legação em importância, Londres, que recebia 16,4 contos no orçamento de 1846-47 (Ponthoz, 1847: 169). À margem das observações críticas que o ministro belga fazia sobre o orçamento brasileiro, o interesse maior – dos dois países, aliás – estava concentrado no comércio e, do lado brasileiro, na imigração belga para o Brasil, embora a permanência do tráfico, primeiro, e da escravidão, durante quase todo o século 19, tenha limitado bastante as possibilidades de cooperação nesse particular. Mas a Bélgica podia servir de centro de recrutamento para agricultores da Alemanha e de outras regiões da Europa, da mesma forma como os portos da Bélgica e da Holanda eram receptores e distribuidores dos principais produtos brasileiros de exportação nas mesmas regiões (Almeida, 2005). Há também o registro positivo da arbitragem efetuada em 1863 pelo rei da Bélgica, Leopoldo I, em favor do Brasil, no caso do conflito político e do rompimento de relações diplomáticas com

Os investimentos belgas no Brasil no início do século 20 Os investimentos se diversificam no início do século 20, mas o destaque cabe, sem qualquer hesitação, ao setor mineral e metalúrgico, ramo no qual a companhia Belgo-Mineira pode ser considerada como a pioneira efetiva do início dessa indústria no Brasil (Stols, 2013). A indústria leve de transformação – têxtil, vidro, confecções, marcenaria, papelaria e impressão – e os serviços comerciais e financeiros também concentram a atenção dos investidores belgas, que chegam a representar parte substancial dos investimentos diretos estrangeiros no Brasil nesse período (embora com presença mais modesta na vertente dos empréstimos puramente financeiros, a despeito mesmo da participação de bancos belgas em algumas operações de valorização do café, conduzidas nessa época). Deve-se considerar, também, que muitos interesses belgas estavam representados por, ou associados a, capitais e companhias inglesas, francesas ou holandesas, e que boa parte dos aportes diretos foram feitos em capital humano, embutido nos trabalhadores e técnicos especializados que emigraram ao Brasil, cuja dimensão econômica é de difícil avaliação (Stols, 1973, 1999). Essa presença dispunha da simpatia manifesta da diplomacia brasileira, que sempre manteve em Bruxelas diplomatas experientes. A reciprocidade nessa área se deu sobretudo pela participação brasileira em exposições universais e outras mostras internacionais que eram realizadas na Bélgica, na época áurea do exibicionismo

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Carro utilizado pelo Rei Alberto I, da Bélgica, em sua visita ao Brasil em 1920. Construído nas oficinas do Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. O autor do projeto art nouveau do carro não foi identificado.

O desenvolvimento das relações nos últimos cem anos

burguês (Pesavento, 1997). O engajamento do Brasil nesse tipo de empreendimento se deveu em grande medida a diplomatas brasileiros, a exemplo de Brazílio Itiberê da Cunha, ministro em Bruxelas e grande entusiasta dos congressos de “expansão econômica”, tal como ele havia visto e participado em Gand, no início do século (Cunha, 1907). O auge do bom relacionamento diplomático ficou claramente evidenciado pela visita de alto nível, inédita, de um soberano europeu, feita ao Brasil em 1920 pelo Rei Alberto I, cuja comitiva deslocou-se inclusive ao Estado do Presidente Artur Bernardes, Minas Gerais, visita da qual resultou justamente a criação da Companhia Belgo-Mineira (aliás, belgo-luxemburguesa) no ano seguinte (Stols, 2013). O convite formal para a visita de Estado tinha sido formulado pelo delegado do Brasil na conferência de Versalhes, Epitácio Pessoa, no contexto da enorme popularidade do “rei-soldado” que tinha despertado a admiração de todos os brasileiros por sua corajosa participação na resistência militar do exército belga contra a ofensiva alemã na Primeira Guerra Mundial (Baptista, 2008).

No curso do século 20, o Brasil continuou a marcar sua presença político-diplomática na Bélgica, pela participação, por exemplo, em feiras e exposições universais organizadas no reino, bem como no terreno econômico, pela organização de mostras especiais de seu esforço de expansão comercial – como a “Brasil Export”, de 1973, perturbada pelas manifestações contra a ditadura militar – e pela instalação de companhias brasileiras em sua capital, entre elas a grande exportadora de minério de ferro, Vale do Rio Doce. A Companhia Belgo-Mineira, por sua vez, sempre representou bem mais do que uma simples siderúrgica – setor no qual, aliás, ela colocou o Brasil à frente de todos os outros países latino-americanos – e soube se integrar perfeitamente à paisagem mineira e à economia brasileira em seu esforço de industrialização, sem descuidar das atividades culturais e esportivas. Trata-se de uma das mais longas relações diplomáticas mantidas bilateralmente pelo Brasil de forma ininterrupta desde a cria-

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

ção do reino – à exceção de pequeno período de ausência física durante a Segunda Guerra Mundial, sem que isso, porém, significasse rompimento diplomático –, numa interação que alimentou, igualmente, um dos mais profícuos exemplos de cooperação cultural e educacional em benefício do Brasil: milhares de estudantes brasileiros, em todas as épocas, formaram-se no terceiro ciclo e/ou aperfeiçoaram-se cientificamente nas mais diversas instituições superiores da Bélgica, o que também confirma o argumento que iniciou este pequeno ensaio: a despeito de ser um país relativamente pequeno, a Bélgica ocupa um peso e uma importância desproporcionais no processo de modernização econômica brasileira e na sua presença político-diplomática, educacional e cultural mundial.

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Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Livre de Bruxelas (1984); Mestre em Planejamento Econômico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade do Estado de Antuérpia (1977); Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Livre de Bruxelas (1975); diplomata de carreira desde 1977; professor nos programas de Mestrado e Doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub); autor de diversas obras de Relações Internacionais, especialmente na vertente econômica, sobre a integração regional e de história diplomática brasileira; página pessoal: www.pralmeida.org.

Referências ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 2. ed.; São Paulo/Brasília: Senac-SP/Funag, 2005.

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Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de Jaegher (1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz (1845-1849) M i lt o n C a r l o s C o s ta Introdução

Jaegher deteve-se na análise das relações entre o Brasil e a Inglaterra. “Há uma potência da qual o dedo está gravado sobre os principais acontecimentos do Brasil: a Inglaterra”, afirmou Jaegher em 1º de agosto de 1840. Na mesma carta, o diplomata afirma que a Inglaterra impediu a recolonização do Brasil e conseguiu uma sólida posição no país com os tratados de 1810 e 1826, que lhe deram favores excepcionais, garantindo seus interesses de potência comercial, industrial e colonial. Para Jaegher, a posição privilegiada da Inglaterra sofreu uma degradação com o tempo: de um lado, devido ao desenvolvimento do país (produção agrícola etc.), de outro, com a concorrência, a partir de 1836, de países como Portugal, França, Estados Unidos. Ademais, o Brasil deixara claro seu desejo de não renovar os tratados existentes. Jaegher tratou em sua correspondência, largamente, dos conflitos platinos, detendo-se muitas vezes na análise de Rosas e de sua política. O diplomata faz dele uma caracterização completa, um retrato brilhante, não isento de fascínio pelo retratado, em cartas de 16 e 24 de setembro de 1840: “Rosas, de seu lado, escuta o ministro da Inglaterra, mas só segue suas opiniões na medida em que elas correspondem a suas ideias pessoais. Impassível no meio dos perigos que o ameaçam, ele parece não preocupar-se com sua grandeza; indiferente a tudo o que atrás dele cairia com ela, ele retomaria, meio selvagem ainda como ele as deixou, suas emboscadas, suas armas de caça; intrépido cavaleiro, combatente astuto, ele não teme seu homem quem quer que ele seja; ele sempre será o chefe dos caçadores do touro selvagem, se ele não é mais o chefe de sua República. Com homens como esses, que não recuam diante de nada, que sabem espalhar, sucessivamente e segundo as fraquezas, o ouro e o terror, não há nunca nada de positivo antes de ocorrer. Dez dias de demora, num golpe repentino como o de Lavalle, diante de um homem oportunista como Rosas, é excessivo.” Quanto ao Império brasileiro, Jaegher insistiu muito na necessidade de reformas institucionais, o que parecia estar ligado à sua concepção de um equilíbrio constitucional necessário ao funcionamento harmônico das instituições brasileiras. O diplomata parecia inclinar-se por uma monarquia forte, ativa, ilustrada e popular. Era obcecado pela manutenção da monarquia brasileira e pelo fantasma do republicanismo. A análise que fez da guerra em geral e das rebeliões brasileiras – e também dos conflitos platinos – mostra como ele esteve atento à sua consideração como fenômeno global, tratando tanto da crônica militar quanto da influência dos fatores políticos, das finanças, do contrabando e do comércio.

A

reconstituição e análise da visão do Império brasileiro pelos diplomatas belgas acreditados no País permite apreciar a história brasileira e platina da época – um período particularmente complexo e desafiante – a partir de um ângulo diferente: de uma perspectiva europeia. Neste artigo apresentamos uma síntese interpretativa da correspondência política enviada para o governo belga sobre o Brasil imperial por dois diplomatas dos mais interessantes que estiveram no Brasil: Edouard de Jaegher e Van der Straten Ponthoz.

Edouard de Jaegher (27/07/1806 – 06/03/1883) Edouard de Jaegher substituiu Benjamin Mary como encarregado de negócios da Bélgica no Brasil. Nasceu em Bruges. Entrou muito cedo na administração do Brabante Meridional. Por Arrêté Royal do Rei Guilherme I, de 20 de agosto de 1825, juntou-se à missão do Visconde L. P. J. Dubus de Ghisignies, governador do Brabante Meridional, o qual acabava de ser nomeado ComissárioGeral para as Índias Orientais Holandesas. Jaegher fazia parte do grupo de cinco funcionários que assessoravam aquela autoridade colonial. Permaneceu no posto do começo de 1826, quando chegou às Índias Orientais, a junho de 1830, data de seu retorno à Bélgica. Após a Revolução da Independência belga, Jaegher entrou na administração do país tornando-se comissário distrital em Oudenarde, função na qual permaneceu até 1839. Em 9 de junho de 1835 foi eleito deputado por sua comuna e esteve na Câmara de Deputados até 11 de junho de 1839. O novo diplomata chegou ao Rio de Janeiro em 2 de outubro de 1839, permanecendo no Brasil até novembro de 1843. Nomeado encarregado de negócios junto às cortes da Suécia e da Noruega, estabeleceu-se em Estocolmo e aí ficou até o fim de 1847. Sua nomeação como ministro residente junto à corte de Madri foi feita em 12 de novembro de 1847. Permaneceu pouco tempo na Espanha sendo chamado à Bélgica para ocupar um alto posto administrativo. Nomeado governador da Flandres Oriental em 1º de setembro de 1848, passou a exercer a função no dia 6 do mesmo mês e permaneceu no cargo por 23 anos, até agosto de 1831, quando sua demissão honrosa por motivo de idade foi aceita. Uma nota de 1878 mostrava-o vivendo em Bruxelas como aposentado do Estado belga. Sua morte ocorreu em Uccle, a 6 de março de 1883, segundo informação de seu irmão.

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Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz (14/09/1812 – 23/02/1900)

Ele via com muita clareza o fenômeno do expansionismo americano e foi crítico em relação a certos aspectos da realidade norte-americana. Tais posições são devidas, provavelmente, à sua permanência durante certo tempo nos Estados Unidos. Foi o único dos representantes belgas no Brasil que atribuiu a uma causa econômica as rebeliões que sacudiram o País entre 1831 e 1849. Afirma ele em carta de 26/2/1849 que “[...] a população das províncias não cessa de girar num círculo de desordens que são produzidas pela falta de atividades econômicas das quais essas desordens impedem todo impulso”. Ponthoz esteve longe da obsessão de Jaegher em relação à permanência e consolidação da monarquia brasileira. Assim, ele viu de maneira realista um possível desmembramento do Sudoeste brasileiro do resto do País, contando com a emigração europeia para apoiar os interesses da Europa no caso da concretização da hipótese. Interessante é sua ideia de que os fatores pessoais dominavam no Brasil os negócios do Estado, chamando a atenção para um fenômeno realmente importante da história brasileira. O diplomata deixou uma análise bastante clara dos partidos políticos do Império. Em carta de 7/10/1848, ele traçou a origem dos dois partidos do Brasil monárquico: “A influência que trouxe a independência do Império em 1822 e a abdicação de D. Pedro I em 1831 exagerando suas doutrinas, deveria chegar por novas agitações a uma organização republicana. Então se organiza um partido conservador que empreendeu salvar a ordem e as instituições, enquanto que um outro partido saía da revolução e da democracia para se reunir à monarquia ao mesmo tempo em que prosseguia o desenvolvimento das instituições liberais.” Ponthoz mostrou em 27/9/1847 quais eram esses partidos e suas características: “[...] dois partidos principais dividem o Brasil. Eles se chamam Saquarema e Santa Luzia nomes de localidades assinaladas por perturbações políticas do Império; nós os conservaremos para prevenir assimilações inexatas. Os Saquarema invocam o princípio monárquico como base de toda organização política. Os Santa Luzia invocam o princípio das instituições liberais regularizadas e desenvolvidas sob os auspícios da monarquia. Esses dois partidos se acusam mutuamente de tendências despóticas pelo exagero das medidas de ordem e anárquicas pelo exagero das medidas de progresso.”

O conde Ponthoz foi o sucessor de Jaegher como representante diplomático belga no Brasil. Entrou na diplomacia em 1838, inicialmente junto à legação belga em Estocolmo, da qual se tornou Segundo Secretário em 1839. Em 1840 foi transferido para Washington, sendo promovido a Primeiro Secretário. Representou a Bélgica no Brasil entre outubro de 1845 – sua primeira carta do Rio é de 22/10/1845 – e 1849 – sua última carta foi escrita em 14/04/1849. Ponthoz esperou a chegada de seu substituto, J. Lannoy, antes de regressar a seu país, apresentando-o ao corpo diplomático e às mais influentes personalidades do País. Lannoy afirmou que seu antecessor havia estabelecido excelentes relações, sendo tido em alta consideração no Rio de Janeiro. Ponthoz foi nomeado em seguida para Lisboa (1848), como encarregado de negócios. Em 1853 foi designado para ocupar as mesmas funções em Madri, sendo elevado em 1850 à categoria de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. Nessa última qualidade esteve sucessivamente em Munique (1867) e Haia (1881). Durante sua permanência em Haia, participou como plenipotenciário belga da Conferência Africana (15/11/1884 a 26/02/1885). Teve participação ativa: “Oficialmente ou nos bastidores, nossos delegados desenvolveram neste momento uma incessante atividade para obter o reconhecimento por todos do novo Estado Independente do Congo. Eles foram vitoriosos”. É o que afirma a Biographie Coloniale Belge, t. V, col. 779. Ponthoz foi colocado em disponibilidade a seu pedido e aposentado em 1888, retirando-se ao castelo de Ponthoz onde dedicou seu tempo livre à redação de suas memórias. Anteriormente, em plena atividade profissional, escrevera dois livros: Pesquisas sobre a situação dos emigrantes nos Estados Unidos (Bruxelas, 1846) e O orçamento do Brasil (3 vols., Bruxelas, 1845). O título completo da obra é: Le budget du Brésil, ou recherches sur les ressources de cetempire dans leurs rapports avec les intérêts du européens du commerce et de l’émigration. Como é demonstrado pelo título mesmo de suas obras, Ponthoz dedicou atenção especial ao tema da emigração, esboçando, numa de suas cartas ao ministro de Relações Exteriores da Bélgica (2/12/1845), uma “teoria” da emigração europeia para a América do Sul. Ele atribui a ela uma função estratégica na defesa dos interesses econômicos e políticos da Europa industrializada. Ponthoz combinava seu realismo com um certo visionarismo, presente nas perspectivas otimistas que visualizava para a emigração europeia em direção aos países sul-americanos e em seu plano de libertação do Brasil de sua dependência financeira em relação à Inglaterra.

Mílton Carlos Costa é graduado em História pela Universidade Católica de Lovaina, Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, Livre-Docente em Introdução aos Estudos Históricos pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp)- campus de Assis, professor e pesquisador de História do Brasil e Historiografia na Unesp-Assis.

Referência COSTA, Milton Carlos. Visões políticas do Império. Diplomatas belgas no Brasil (18341864). São Paulo: Annablume, 2011.

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Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo Clodoaldo Bueno

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anoel de Oliveira Lima nasceu na cidade de Recife no Natal de 1867. Seu pai, comerciante português lá estabelecido, retornou velho para sua terra natal após formar bom patrimônio. Manoel foi praticamente criado em Lisboa, aonde chegou com seis anos de idade. Teve vida confortável e pôde desfrutar de bom ambiente cultural. Cursou a Faculdade de Letras, e teve oportunidade de conhecer Teófilo Braga, de quem foi discípulo. Durante seus estudos em Lisboa dedicou-se às então chamadas “ciências auxiliares” da história, o que lhe desenvolveu o gosto pelo trato das fontes documentais. Em julho de 1883 escreveu uma série de artigos para o Comércio de Lisboa e em agosto de 1885 iniciou sua colaboração para o Jornal do Recife. Crítico ferino, escreveu sobre história, literatura, artes plásticas, arquitetura e teatro. Apesar de prevenções antibritânicas, admirava a Inglaterra (Gouvêa, 1976, p. 86-87, 94-5, 97-8). Após a conclusão de seus estudos (1888), buscou um cargo na carreira diplomática, o que conseguiu logo depois (1890), ainda jovem, sendo nomeado 2º Secretário da legação do Brasil em Lisboa por Quintino Bocaiúva, primeiro Ministro das Relações Exteriores da recém-implantada República no Brasil. Em maio de 1892 foi removido para Berlim, e lá permaneceu por três anos. Em maio de 1896 assumiu o cargo de 1º Secretário da legação brasileira em Washington, onde foi subordinado e admirador de Salvador de Mendonça. Em razão de desavenças pessoais com J. F. de Assis Brasil, sucessor daquele na chefia da legação, Oliveira Lima pediu e obteve remoção para Londres, para aonde partiu de Nova York em janeiro de 1900. Pouco ficou nesse cargo, pois foi nomeado Encarregado de Negócios no Japão, cuja legação assumiu em junho do ano seguinte (Gouvêa, p. 359-394, 285, 319). Em novembro de 1902 foi promovido a Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário no Peru, mas permaneceu no Japão até 7 de março do ano seguinte, quando embarcou em direção ao Brasil. O novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, confirmou sua nomeação para o Peru, mas pediu-lhe a presença imediata no Rio a fim de passar-lhe instruções antes de seguir para Lima, pois contava com seus conhecimentos para acompanhar os problemas de fronteira entre Peru e Bolívia que interessavam ao Brasil, então às voltas com a questão do Acre (Gouvêa, p. 443-5; Almeida, p. 252). Lima, todavia, em correspondência oficial e particular nada mencionou a esse respeito, além de ter significado seu desagrado com a nomeação para o Peru e reiterado suas solicitações referentes a vencimentos e licença. Afora isso, Lima retardou sua chegada ao Rio de Janeiro, o que Rio Branco interpretou como recusa ou desinteresse em participar das negociações para as quais estava preparado. Mesmo nomeado, Lima não chegou a ir para a capital do Peru, pois o Chanceler reteve-o no Rio de Janeiro, a título de aguardo de instruções, mas deixando-o alheio às conversações

que culminariam no Tratado de Petrópolis (1903), que pôs fim à difícil questão do Acre. Removido para Caracas, assumiu a legação em 12 de março de 1905 após resistências afinal vencidas por Rio Branco que lhe concedeu vantagens funcionais e prometeu-lhe um posto na Europa. Pouco tempo ficou na Venezuela; só o suficiente para assinar o protocolo do tratado de delimitação de fronteiras entre os dois países, em 9 de dezembro de 1905. Governava a Venezuela o caudilho Cipriano Castro, a quem chegou a admirar, conforme exprimiu-se em carta a Nabuco, “pela sua energia e desassombro”, qualificando-o como “um lutador nato”. Caracas foi para o diplomata pernambucano um ponto de observação privilegiado para conhecer a prática do monroísmo de Theodore Roosevelt, consubstanciado no big stick, levando-o a formular reservas ao pan-americanismo dos Estados Unidos tal como concebido pelo seu presidente em 1906. Depois de recusar a legação brasileira na Cidade do México, Lima foi nomeado para chefiar a de Bruxelas, alcançando, finalmente, o ambicionado posto na Europa. A cidade casava bem com seu perfil de historiador e homem de letras (em 1897, com apenas 29 anos de idade, Oliveira Lima tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras), pois, além de culta e agradável, permitia-lhe visitar outros grandes centros europeus para coletar material para suas pesquisas históricas. A função na Bélgica foi exercida cumulativamente com a legação do Brasil em Estocolmo. Lima assumiu a legação em Bruxelas em 2 de março de 1908 e em 7 de abril entregou sua credencial ao Rei Leopoldo II (18351909). Apenas decorridos 15 dias de sua chegada, Lima enviou a Rio Branco relatório sobre questões políticas e perspectivas econômicas da Bélgica e da colônia do Congo. Referiu-se ainda a uma possível imigração belga para o Brasil. O rei dos belgas estava atento às possibilidades de investimentos e incremento do intercâmbio comercial com o Brasil, coincidindo com as concepções do diplomata. Causa surpresa ao observador de hoje o fato de Lima, crítico da política imperialista norte-americana, ter formado opinião positiva sobre Leopoldo II, bem como de sua política imperialista no Congo. Para Gouvêa, a identificação de Oliveira Lima com o imperialismo belga foi um erro de previsão histórica. Além dos assuntos próprios da política externa, Lima enviava relatórios, ofícios e publicações de interesse prático para o Brasil, como o artigo sobre o aproveitamento do solo em face do industrialismo exagerado em voga na Europa. Prefaciou o livro (1910) sobre o ensino profissional e agrícola do engenheiro belga Armand Ledent, ligado, inclusive, ao projeto da Escola Agrícola de Piracicaba (SP) e ao ensino agrícola profissional em Araras. Da mesma forma levava ao conhecimento da chancelaria tudo o que interessava à indústria açucareira do Brasil. Na mesma linha, inspirou

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a publicação de artigos sobre o Brasil na imprensa belga, como o do Etoile Belge (25/1/1909) sobre o Estado de Pernambuco e sua indústria açucareira (cf. Gouvêa, 1976, pp. 669-814). Lima foi adepto da diplomacia econômica, à época também designada por diplomacia moderna, no entendimento de que o alargamento das relações mercantis solucionaria os problemas econômicos nacionais. A diplomacia do século XX, dizia, seria “muito mais comercial do que política”. Ao pedir a “republicanização” da diplomacia do Brasil, opinou que sua “tarefa capital, além da promoção da inteligência política” seria promover a expansão econômica. Lima reiteraria, em 1927, que “os interesses do Brasil, uma vez descrito e fechado o círculo das nossas fronteiras, são sobretudo econômicos” (Apud Gouvêa, p. 569, 797, 806, 1635; Almeida, p. 258-60). A concepção de diplomacia econômica completava-se em Oliveira Lima com o exercício de bem sucedida diplomacia cultural na Bélgica, país que ocupava posição privilegiada na Europa como centro econômico e intelectual, o que lhe permitia divulgar os valores culturais e as possibilidades do Brasil por meio de artigos em jornais, revistas e conferências. Começou pela Universidade de Lovaina, onde pronunciou palestras sobre La langue portugaise e La littérature brésilienne em 15 e 18 de janeiro de 1909. Teve êxito, também, ao criar, às suas expensas, um curso gratuito de português. Embora não tenha resultado de ação direta da legação, Lima inaugurou a Câmara de Comércio Belgo-Brasileira, a primeira desta natureza criada pelo Brasil na Europa, associando-se ao empreendimento de Afonso Toledo Bandeira de Melo e do Comissariado de São Paulo na Exposição Universal (Gouvêa, p. 814-5, 906-7, 951-3). Bruxelas facilitava-lhe estabelecer contatos com universidades e participar de reuniões científicas realizadas na Europa na qualidade de representante do Brasil. Assim, compareceu ao 16º Congresso Internacional de Americanistas em Viena (9 a 14 set. 1908), ao 9º Congresso Geográfico em Genebra (27 jul. a 6 ago. 1908), para o qual preparou a tese Le Brésil, sés limites, sés voies de pénétration. As sessões de geografia econômica foram presididas pelo grande Vidal de La Blache. No congresso de americanistas, Lima apresentou moção, aprovada por unanimidade, propondo que nos futuros congressos o português fosse incluído entre as línguas admitidas, como já o eram o francês, o inglês, o alemão, o espanhol e o italiano. Em março de 1909 Rio Branco consultou Lima, estimando uma resposta positiva, sobre o interesse em representar o Brasil no Congresso Internacional de História Musical a reunir-se em Viena nas festas do centenário de Haydn, e redigir “breve mas substancial notícia histórica [da] música no Brasil”. Rio Branco sugeriu o material a ser usado, remetendo-o juntamente com outros textos pedidos por Lima, com os quais preparou sua participação e fez executar trechos de compositores brasileiros, como o clássico José Maurício. Fez, também, alusão às modinhas e lundus. Antes de ir para Viena, Lima foi a Paris para a festa franco-brasileira, promovida pela União Latina na Sorbonne, onde fez conferência, em francês impecável, sobre Machado de Assis et son oeuvre. Ainda

na Sorbonne, Lima deu início, em 15 de março de 1911, a um curso sobre Formation historique de la nacionalité brésilienne no anfiteatro Turgot da Faculdade de Letras. De outubro a dezembro de 1909 Lima esteve em Estocolmo, na qualidade de ministro, para restabelecer a representação diplomática brasileira junto ao governo da Suécia, com o qual negociou um convênio de arbitramento. De volta a Bruxelas, em março de 1910, tomou parte na inauguração do Pavilhão Brasileiro na exposição mundial. Na oportunidade, Lima promoveu concerto de gala, com execução de trechos de composições de maestros brasileiros, como Carlos Gomes, Manoel Joaquim de Macedo, Alberto Nepomuceno e o violinista Francisco Chiaffitelli. O momento mais destacado da diplomacia cultural de Oliveira Lima foi a soirée de 4 de abril de 1910, promovida pela Societé Royale Belge de Geographie, no Théâtre de la Monnaie, em Bruxelas, quando palestrou, na presença do novo rei, Alberto I (1875-1934), sobre La conquête du Brésil. No decorrer da exposição foram insertos trechos musicais de autores brasileiros e, ao final, executaram-se uma suíte de Alberto Nepomuceno, a composição do Padre José Maurício (Est incarnatus est), e Tiradentes, de Manoel Joaquim de Macedo. A festa foi encerrada com a execução dos hinos nacionais brasileiro e belga (La Brabançonne). O Etoile Belge noticiou o evento (Fleiuss: 1937, p. 276; Gouvêa, pp. 815-941). Lima, aborrecido com o rumo que tomava sua carreira, pediu aposentadoria. O sucessor imediato de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores, Lauro Müller, para mantê-lo no quadro, não deu andamento a seu pedido e para que refletisse antes de consumar uma decisão definitiva sugeriu-lhe uma licença, por ele aproveitada para ministrar conferências a partir de 1o de outubro de 1912 na Califórnia (EUA). Rio Branco, provavelmente por respeitar os talentosos, foi paciente e tolerante com as insolências de Oliveira Lima, cujas posições chegaram a repercutir no legislativo federal, o que levou o deputado Dunshee de Abranches a fazer a defesa do ministro das Relações Exteriores na Câmara (Abranches, v. 2, p. 137-202). Falecido Rio Branco (fevereiro de 1912), a situação funcional de seu crítico só piorou. Müller não teve autonomia e força suficientes para barrar injunções políticas sobre o Ministério e, assim, o jornalista-diplomata, em razão de seu destempero verbal e de sua pena afiada, não teve a nomeação para a legação de Londres, sua antiga aspiração, referendada pelo Senado (Gouvêa, p. 949-50). Aborrecido, reiterou seu pedido de aposentadoria, ocorrida em 27 de agosto de 1913. Em 8 de março de 1914 embarcou em Recife com direção a Londres, cidade em que iria estabelecer nova residência. Passou antes por Bruxelas, onde foi homenageado, de surpresa, pelos amigos belgas e brasileiros com uma soirée em 22 de abril (Gouvêa, p. 1.181). Em Londres, durante a guerra foi acusado de ter simpatias pela Alemanha. Apesar dos riscos de uma travessia marítima no Atlântico norte em razão do conflito mundial, viajou para os Estados Unidos em outubro de 1915 a fim de proferir uma série de palestras sobre história e economia da América Latina na Universidade de

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Harvard, a convite intermediado pelo Embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Edwin Morgan. Depois de um semestre naquela universidade, tentou voltar à Inglaterra, mas sem sucesso por ter sido incluído na black list das personalidades impedidas de entrar no país. Em julho de 1918 Lima chegou a Buenos Aires a convite do Instituto Popular de Conferências, presidido por Estanisláo Zeballos (Gouvêa, p. 1.311, 1.459). Permaneceu sete meses na Argentina, conhecendo o país e proferindo conferências em várias instituições. Em agosto de 1920 embarcou no Avaré, em Recife, em direção aos Estados Unidos, onde fixaria sua derradeira residência. Ainda viajaria em 1923 para a Alemanha, para tratamento de saúde, e Portugal, onde proferiu conferências, uma delas na Faculdade de Letras por ocasião da inauguração da Cadeira de Estudos Brasileiros. De volta a Washington, em 10 de janeiro de 1924 começou a reger a cadeira de Direito Internacional na Universidade Católica. Oliveira Lima foi adequadamente caracterizado por seu conterrâneo Gilberto Freire como nosso Dom Quixote Gordo (Veja-se Almeida, 2002, p. 234). Homem de pensamento original que não tinha receio de expor e defender suas ideias, mesmo quando contrariavam, o que normalmente ocorria, correntes de pensamento em voga. Destemido e sem fazer concessões, sobretudo em questões de princípio, não raro surpreendia a quem acompanhasse os caminhos do seu pensamento, como, por exemplo, quando divergiu das posições de Rui Barbosa, a quem admirava, expostas no discurso, de ampla repercussão, inclusive no exterior, que fez em Buenos Aires (14 jul. 1916) favoráveis aos Aliados na Grande Guerra (1914-18). Fiel ao seu pacifismo, Lima defendeu a neutralidade brasileira. Outra polêmica, que acabou lhe custando o posto na diplomacia por conta de seu brio e amor próprio feridos, foi sua manifesta simpatia pela monarquia. Apesar de republicano desde moço, interpreta-se que Lima, após sua estada em Caracas à época da presidência de Cipriano Castro, viu de perto os males que o caudilhismo fazia à América Latina, constatação que, somada ao que observava no seu próprio país, onde políticos da jovem república lambuzavam-se no poder, provocou-lhe o desencanto com o novo regime, a partir do que passou a vislumbrar aspectos positivos nos regimes monárquicos, destacando que não eram antinômicos à democracia e se ajustavam bem às correntes socialistas então em ascensão na Europa (Malatian, p. 199-202).

Nadou contra a corrente, também, ao posicionar-se contrariamente ao alinhamento diplomático do Brasil aos Estados Unidos, inaugurado pela República. Neste ponto divergiu de seu ex-amigo Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil em Washington, um sonhador como outros norte-americanistas brasileiros, iludidos com eventual apoio norte-americano contra “imaginadas absorções europeias” ou “aventuras belicosas dentro do continente” (Cf. e apud Gouvêa, p. 738). Apesar de crítico, neste aspecto concordou com Rio Branco, pois este cultivou a amizade norte-americana, mas com ressalvas e nuances. Lima, coerentemente, aplaudiu o discurso do Chanceler na abertura da 3ª Conferência Internacional Americana (Rio de Janeiro, 1906), na presença do Secretário de Estado norte-americano Elihu Root, sobretudo pela ênfase na relevância da Europa para o Brasil, que recebia seus capitais e braços para a lavoura. Oliveira Lima faleceu em Washington em março de 1928, sentindo-se, segundo suas próprias palavras, escorraçado de seu próprio país, que não soubera lhe aproveitar o talento. Doou sua extensa biblioteca (que leva seu nome) à Universidade Católica das Américas, em Washington, inaugurada em 1924 e organizada, conforme sonhara, como centro de estudos brasileiros, portugueses e hispano-americanos. Atendendo ao que dispôs em seu testamento, seus restos repousam na capital norte-americana. Referências ABRANCHES, Dunshee de. Rio Branco e a política exterior do Brasil (1902-1912). Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1945, 2 v. ALMEIDA, Paulo Roberto de. “O Barão do Rio Branco e Oliveira Lima – vidas paralelas, itinerários divergentes”. In: CARDIM, Carlos Henrique & ALMINO, João (orgs.). Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. Pref. de Fernando Henrique Cardoso. Rio de Janeiro: EMC, 2002, p. 233-278. CORRÊA, Luiz Felipe de. “Semblanza biografica del autor”. In: LIMA, Manuel de Oliveira. En la Argentina. Buenos Aires: Editorial Centro de Estudios Unión para la Nueva Mayoría, 1998. FLEIUSS, Max, Conferência no Instituto Histórico e Geográfico a 23 de maio de 1928. In: LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José Olympio, 1937, p. 263-283. GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima, uma biografia. Pref. de Barbosa Lima Sobrinho. Recife: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1976. 3 vol. LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José Olympio, 1937. MALATIAN, Tereza. Oliveira Lima e a construção do nacionalismo. Bauru, SP: Edusc; São Paulo, SP: Fapesp, 2001.

Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil (1895-1912) D o m i n g o s Sav i o d a C u n h a G a r c i a

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ara entender a presença belga na fronteira Oeste do Brasil, na virada do século XIX para o século XX, é preciso entender o que se passava no mundo naquele momento. Essa perspectiva é necessária para termos a dimensão daquela ação e as possibi-

lidades que ela poderia abrir para os belgas, principalmente se considerarmos a exitosa operação na África do Rei Leopoldo II, que resultou na formação do Estado Independente do Congo, um Estado privado de grandes dimensões, encravado entre colô-

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

A empresa agroindustrial de Descalvados foi adquirida em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia.

nias e protetorados das principais potências europeias da época. Concluído o domínio sobre sua colônia africana, Leopoldo II e sua entourage passaram a procurar outra região do mundo onde pudessem repetir esse feito e alcançar os lucros advindos do comércio com produtos de origem extrativa ou produzidos com matérias-primas não encontradas na Europa. Para isso procuravam uma região com características políticas semelhantes àquelas encontradas na África quando iniciou sua operação naquele continente: territórios ricos em produtos extrativos com grande procura nos mercados centrais; populações nativas fragilmente organizadas, tendo como decorrência a inexistência de fronteiras entre Estados demarcadas e reconhecidas internacionalmente; territórios disputados por potências europeias, a partir dos interesses da geopolítica europeia. Naquele momento, a região Central da América do Sul se abria para a exploração mercantil, notadamente com o crescente processo de extração de borracha da seringueira, cujo consumo aumentava no mercado internacional. O aumento do consumo estimulava a abertura de novas frentes extrativas, que avançavam para regiões até então pouco atraentes para aquela atividade econômica. A América do Sul, ao longo do século XIX, era reconhecidamente uma área de influência da Inglaterra. No entanto, na medida em que se aproximava o fim desse século, vimos desenvolver a força econômica, política e militar dos Estados Unidos, que assumiram a condição de potência global com a vitoriosa guerra contra a Espanha em 1898. Portanto, quando os belgas decidiram iniciar a sua nova frente de atividades no coração da América do Sul, com métodos e objetivos semelhantes àqueles desenvolvidos na África, o fizeram no momento em que a geopolítica internacional passava por mudanças importantes. Mas nada estava decidido e a região central da América do Sul, rica em borracha e em campos de criação de gado vacum, de difícil acesso e longe dos centros de decisão, localizados no litoral no caso do Brasil, e próximo à Cordilheira dos Andes, no caso

da Bolívia, era controlada por estados fracos ou fragilizados, cuja presença nessa região era praticamente inexistente. Dessa forma, poderiam reaparecer ali as condições para que os belgas, liderados por Leopoldo II, pudessem repetir o seu feito africano, se as condições da geopolítica internacional o permitissem. E os belgas não esperaram surgir essas condições; trabalharam para isso. A compra da empresa agroindustrial de Descalvados, efetuada em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia com o fim último de comprar aquele empreendimento, não foi, portanto, uma ação isolada. A fábrica foi comprada da família de Jaime Cibils Buxaréo, um industrial uruguaio de origem catalã, que já operava no ramo de produção de derivados de carne e havia construído a fábrica no início da década de 1880. Descalvados era uma fábrica de extrato de carne estrategicamente localizada na fronteira do Brasil com a Bolívia, em pleno Pantanal, a maior planície alagada do mundo, possuindo uma área de um milhão de hectares. A Cibils ainda comprou, em 1899, a fazenda São José, com área de 500 mil hectares, também localizada no Pantanal e contígua a Descalvados em sua parte sul, perfazendo uma área total de mais de um milhão e quinhentos mil hectares ou 15 mil quilômetros quadrados. Nos campos de Descalvados e da São José havia um rebanho com cerca de 340 mil cabeças de gado bovino, a matéria-prima para a fábrica, que produzia principalmente extrato de carne, derivados de carne em conserva e couros tratados, produtos que eram remetidos para o mercado europeu, onde eram bastante apreciados. Possuía máquinas a vapor (produzidas na Bélgica), que acionavam uma usina de eletricidade, a serraria, bombas de água e permitia à fábrica ter a sua própria produção de embalagens de folhas de flandres, para acondicionar seus produtos para exportação. Os produtos da fábrica de Descalvados, principalmente o extrato de carne, eram famosos na Europa, onde ganharam prêmios de qualidade e onde eram oferecidos através de propagandas feitas por postais com imagens do empreendimento localizado na fronteira Oeste do Brasil.

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Vista da empresa agroindustrial em Descalvados, a Cibils, em fotografia dos anos 1980.

Durante o período em que pertenceu a empresas belgas, o empreendimento era dirigido por gerentes belgas (o primeiro foi François Joseph Van Dionant, que chegou a Descalvados em abril de 1895) e mantido por mão de obra braçal formada por brasileiros, argentinos, paraguaios e bolivianos, além de um expressivo número de indígenas dos grupos guató e bororo, que habitavam antigas aldeias existentes na área do empreendimento e que usualmente eram utilizados no difícil trabalho de manejo do gado bovino. Entre 1895 e 1897 a empresa rendeu dividendos aos seus sócios e se mostrou um investimento lucrativo. No entanto, em 1897 um fato chama a atenção para os objetivos dos belgas na fronteira Oeste do Brasil: a legação da Bélgica no Rio de Janeiro solicitou do governo brasileiro a instalação de um consulado daquele país em Descalvados. Tal solicitação não foi atendida; o consulado foi instalado em Corumbá e em Descalvados foi instalado um vice-consulado. O administrador do empreendimento, François Van Dionant, se tornou também o vice-cônsul da Bélgica e uma bandeira belga passou a tremular em pleno Pantanal, na fronteira do Brasil com a Bolívia. Em 1898, procurando defender o rebanho bovino do roubo provocado por constantes investidas de ladrões provenientes da Bolívia, Van Dionant solicitou do governo do Estado de Mato Grosso providências para coibir tais ações. Sem ter meios para atender à solicitação, o governo estadual autorizou os belgas a constituírem uma força policial própria para conter esses ladrões, forças que foram organizadas por antigos integrantes da Force Publique, que Leopoldo II mantinha no seu Estado Independente do Congo, na África. Daí em diante, os belgas passaram a ter em Descalvados uma representação diplomática e uma força armada, dominando um território de mais de 15 mil quilômetros quadrados. A partir de 1898 outras empresas organizadas por belgas na Europa vieram se juntar à Compagnie des Produitis Cibils em su-

as operações na fronteira Oeste do Brasil: Compagnie des Caoutchoucs du Matto Grosso, Syndicate de La Banque Africaine, Mercado, Ballivian & Companhia, La Brésilienne, Société Anonyme l’Abunã e a Comptoir Colonial Française Société Anonime. Eram empresas dedicadas principalmente à extração de borracha em afluentes da margem direita do Rio Amazonas, próximo à fronteira com a Bolívia. A partir de 1901, a própria Compagnie des Produits Cibils também passou a atuar na extração de borracha no Vale do Guaporé, onde adquiriu três concessões do lado brasileiro desse rio que divide a fronteira do Brasil com a Bolívia. A partir dessas concessões, a borracha extraída pela Cibils era enviada a Descalvados e, de lá, para o exterior. Chama atenção a formação dessas empresas belgas que passaram a atuar na extração de borracha na fronteira Oeste, se juntando à Cibils, pois seus principais acionistas eram praticamente os mesmos, se entrelaçando em diferentes composições acionárias. Para ajudá-las em suas operações, as empresas belgas deslocaram para a fronteira Oeste do Brasil um conjunto de funcionários capacitados e experientes, alguns já treinados em operações colonialistas, como Alexandre Delcomune, experiente auxiliar de Leopoldo II no Estado Independente do Congo, e José Cousin, um geógrafo também experiente. Esses funcionários mapearam os recursos naturais, fizeram trabalhos de reconhecimento dos rios e das características físicas da região, sempre procurando atuar de maneira discreta e sem chamar a atenção das autoridades locais. O fato que estimulou o ânimo dos belgas na fronteira Oeste do Brasil foi a disputa pelo território do Acre entre a Bolívia e seringueiros brasileiros que se instalaram na região, atraídos pela grande demanda por borracha no mercado internacional e pela grande produção que essa região proporcionava, disputa na qual se entrelaçaram os interesses de empresários norte-americanos influentes

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e ingleses organizados no Bolivian Syndicate, cujo objetivo era o arrendamento do território em disputa. O eventual desenlace positivo para aquele sindicato poderia reabrir no coração da América do Sul uma corrida colonialista semelhante àquela ocorrida na África. Nesse caso, os belgas estariam muito bem posicionados para ficarem novamente com a sua parte na disputa, sempre explorando as debilidades dos Estados locais e as disputas entre as grandes potências. Foi com essa perspectiva que Leopoldo II também tentou controlar o Bolivian Syindicate. Não foi coincidência que justamente no período em que a disputa pelo território do Acre alcançou o seu ápice, entre 1898 e 1903, os belgas tenham se lançado na corrida por concessões de terras para extração de borracha na fronteira Oeste do Brasil. O círculo próximo de Leopoldo II operava combinando a ação efetiva no território desejado com as articulações políticas que se desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos. Essa tática havia dado certo no caso africano e poderia dar certo novamente no caso da América do Sul. No entanto, uma combinação de fatores bloqueou essa perspectiva. A ação do governo brasileiro, principalmente após a ascensão do Barão do Rio Branco ao cargo de Ministro das Relações Exteriores em fins de 1902, combinada com a ação militar dos próprios seringueiros no Acre e, ainda, a decisiva mudança na política externa dos Estados Unidos para a América Latina naquele período, mudaram o cenário da disputa. O seu resultado foi o fim do Bolivian Syndicate, a compra do território do Acre pelo Brasil, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, e a transformação

de fato da América Latina em área de influência exclusiva dos Estados Unidos. Esse novo cenário se combinou ainda com as primeiras notícias sobre as atrocidades cometidas pelos funcionários das empresas ligadas a Leopoldo II no seu Estado privado na África. O resultado desse cenário desanimou rapidamente os belgas em suas operações na fronteira Oeste do Brasil e sua retirada da região foi tão rápida como a sua entrada. Em 1906, no setor agrícola e de extração vegetal praticamente só havia o empreendimento de Descalvados. Em 1911, o empreendimento que havia sido a porta de entrada para os belgas na fronteira Oeste do Brasil também foi a sua porta de saída, sendo vendido ao investidor norte-americano Percival Farquhar. Domingos Sávio da Cunha Garcia possui Mestrado em História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorado em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. É professor do Departamento de História da Universidade do Estado de Mato Grosso desde 1995.

Referências GARCIA, Domingos Savio da Cunha. Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Brasília: Funag, 2009. KURGAN-VAN HENTENRYK, Ginette. Leopoldo II e a questão do Acre. In: Cadernos do Centro de Documentação em História e Documentação Diplomática. Brasília: ano 8, tomo II, vol. 14, p. 477-499, primeiro semestre, 2009. STOLS, Eddy. O Brasil se defende da Europa: suas relações com a Bélgica (1830-1914). In: Boletin de Estúdios Latinoamericanos e del Caribe. Amsterdam: Centro de Estudios y Documentación Latinoamericanos (CEDCA), n. 18, junio de 1975.

O Rei Alberto I e a música brasileira Daniel Achedjian

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vocar as inúmeras interações entre os belgas e a música brasileira, erudita ou popular, representa uma matéria apaixonante para músicos, pesquisadores, jornalistas ou, simplesmente, amantes fervorosos. Porém, que um cidadão do Reino da Bélgica – e não se trata de um qualquer – tenha sido o tema de algumas composições é algo que seria imperdoável se negligenciado. A famosa vinda do Rei Alberto I e de sua esposa Elisabeth da Bélgica ao Brasil, em 1920, seduziu alguns letristas famosos. Estes viram no soberano, de temperamento excepcional e às vezes insólito, e que ignorava o protocolo, um personagem dotado de um jeitinho belga bem apreciado pelos cariocas. Encontramos a menção de uma primeira peça musical sobre este assunto no DVD “Ensaio, TV Cultura, 1990”, dedicado a Herivelto Martins (1912-1992), o muito célebre e importante compositor carioca de sambas e de marchinhas do século XX. Em um trecho do programa, ele evoca o samba “A Lapa”, que havia composto nos anos 30 com Benedito Lacerda. Herivelto Martins fala desse bairro do Rio que, nos anos 20, era o centro da vida

boê­mia, onde se atravessava a noite, se bebia, se caia na sarjeta e, claro, se tocava e se escutava música. O compositor relata que em 1920, para ser bem preciso, um certo “Rei Alberto” veio visitar o Brasil e o Rio de Janeiro – na época, capital do País – e pediu insistentemente que lhe fosse mostrado esse bairro de folia. Este famoso rei “Alberto”, claro, não era ninguém mais ninguém menos do que o Rei Alberto I da Bélgica (1875-1965), vindo em visita oficial em companhia de sua esposa, a muitíssimo amada e célebre Rainha Elisabeth (1876-1965). Eles visitaram, no final das contas, Rio e Minas Gerais. Assim, neste samba, “A Lapa”, Herivelto Martins canta os seguintes versos: “O bairro de quatro letras Até um rei conheceu Onde tanto malandro viveu Onde tanto valente morreu.”

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A atitude do soberano, no momento daquela visita, impressiona a todos. Sua vontade de quebrar certos protocolos durante as cerimônias oficiais perturbava um pouco as altas autoridades brasileiras. O rei decidiu até se engajar em atividades não previstas, como a visita à Lapa, como já mencionado, ou se fazendo presente em certas manifestações desportivas. Assim, ele se lança em um longo e difícil percurso de natação, que saía da praia de Copacabana em direção à praia do Diabo, situada ao lado das pedras do Arpoador de Ipanema. Uma proeza que deixou os cariocas admirados. Aficionado por escaladas, o Rei também decidiu subir parte da colina do Corcovado (sem o Cristo na época). Esta expedição tinha sido planejada, mas quase virou um incidente diplomático. Com a preocupação em tornar a expedição mais confortável, os cariocas já haviam demarcado o percurso e arrumado, em alguns lugares na rocha, degraus para facilitar a subida. O Rei Alberto se sentiu ofendido, se zangou e decidiu passar por um caminho selvagem que não havia sido preparado. Nos arquivos musicais da música popular brasileira também encontramos vestígios da atitude do soberano belga na canção “Alberto I Rei dos belgas”, de José Napolitanos, “Pro Rei Alberto ver”, de Lourival de Carvalho, e “O Protocolo”, de B. Silvestre e Miguel de Azevedo, que relata assim:

É um homem de fato Não tem orgulho Nem espalhafato Foi a insulta Da mais alta Deixar os repórteres Espiando na esquina Comeu feijoada E bebeu parati Jogava no bicho Não saía daqui E se ele provasse O angu da baiana Então ficava Mais uma semana.” Mas, além destes textos espirituosos, bem dentro do espírito dos sambas e marchinhas da época dourada, encontramos também a composição “Saudades e saudades” (aos Reis dos belgas), composta pelo ilustre Ernesto Nazareth (1863-1934), pianista e compositor, navegando entre o clássico e o popular, a quem devemos alguns clássicos do Choro como “Odeon”. “Saudades e saudades”, peça instrumental composta em 1921, um ano após a visita do casal soberano, toma ares de uma marchinha com cara de valsa. Enfim, se tratando da visita real, um outro eminente músico ligado à grande história do Choro, Pixinguinha (1897-1973), se apresentava com Os Oito Batutas num almoço ao Rei e à Rainha dos belgas. Aí estava presente também o maior compositor clássico brasileiro (de inspiração popular), Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que apresentou, por sua vez, várias de suas obras. Nessa ocasião, o soberano concedeu a este último a cruz honorária de Santo Leo­ poldo, que o brasileiro recusou sob o pretexto de que ela havia também sido dada ao cozinheiro e ao chefe da guarda do palácio. Pois é, até mesmo os grandes homens conhecem momentos de fraqueza e de vaidade, que sejam perdoados de bom grado...!

“O Rei Alberto Ao pisar este solo Mandou às favas O protocolo Conquistou logo Com feliz maestria Dos brasileiros A simpatia Assim, Alberto Primeiro Ao mundo inteiro Deu uma lição Mandou a etiqueta Com pirueta Lamber sabão

Daniel Achedjian, Doutor em História da Arte, se apaixonou pela música e arte popular brasileira; constituiu uma grande coleção em Bruxelas, onde, como radialista, mantém também o programa “Tropicalia” na Rádio Judaica.

O Rei Alberto

De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil Peter Daerden

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m 31 de julho de 1962 chegou ao Rio de Janeiro, a bordo do navio francês Charles Tellier, um jovem belga, algo tímido. Filho de uma família de açougueiros modestos da região de Liè-

ge, Conrad Detrez tinha 25 anos e acabava de interromper uma formação de seminarista em Lovaina. Passou primeiro seis meses na sinistra cidade industrial de Volta Redonda e mudou, depois,

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para o Rio de Janeiro. Lá trabalhou como auxiliar leigo nas favelas, como na paupérrima Bráz de Pina, mas ao mesmo tempo dava aulas na Universidade Santa Úrsula. Detrez ocupava assim uma posição interessante: entrava em contato tanto com a cultura popular como com os meios intelectuais. Esta combinação determinou fortemente sua visão do Brasil, que era contraditória. Sua atitude era em primeiro lugar de índole muito trabalhista. Não gostava nem um pouco da mundana Copacabana, mesmo esta se passando para a maioria dos estrangeiros como o cartão de visita do Brasil. Não, ele se encantava com a proletária Zona Norte do Rio. Este bairro era talvez feio, mas tinha caráter. Porém, neste olhar romântico sobre as favelas se escondia uma grande contradição, já que Detrez criticaria precisamente, de um ponto de vista cada vez mais à esquerda, a pobreza reinante por lá. Por outro lado, o fascínio de Detrez pela cultura negra e pela religião afro-brasileira – que o fez iniciar no candomblé – tinha uma forte conotação erótica. No Rio, o ex-seminarista descobriu sua homossexualidade, que projetava quase exclusivamente em negros. Nada indicava então que Detrez se tornaria mais tarde um escritor laureado. Sem dúvida tinha esta ambição, mas esta se desvaneceu depois do golpe militar de 1964. A partir desse momento, o compromisso com o engajamento político determinava sua conduta. Como muitos católicos radicalizados, se tornou membro da Ação Popular. Já pela sua formação católica, Detrez nunca sentiu muita estima pelo comunismo, e certamente não por seus militantes brasileiros. Mesmo assim, se deixou levar de maneira bastante ingênua para a esquerda radical. Isto foi mais uma questão de temperamento do que de compreensão. Nos anos de 1960, nutria uma grande admiração por Fidel Castro e Che Guevara, que pensava, ou pelo menos esperava, serem os promotores de um marxismo liberal. Também no Brasil tinha que aparecer o ‘Novo Homem’ de Cuba. Em 1967 Detrez foi preso por curto tempo por pretensa subversão política. Sua detenção não passou desapercebida na imprensa brasileira. Em manchete, O Globo anunciava: ‘Belga Preso Como Líder Comunista’. Já o Jornal do Brasil tomou sua defesa: “Os vizinhos do jovem súdito belga – com trinta anos de idade – têmno como pessoa de hábitos perfeitamente normais e destacam sua cordialidade, seu desejo de servir ao próximo, inclusive pondo-se à disposição dos que lhe pedem pequenos favores, como a redação de cartas pessoais”. Com a intervenção da diplomacia belga, Detrez pôde, quase sorrateiramente, deixar o país. Foi morar em Paris, onde participou ativamente da revolução de maio. Mais tarde, em 1968, conseguiu fixar-se em São Paulo, onde se tornou jornalista da Folha da Tarde, mas em menos de um ano teve que deixar essa cidade. Chegou num ponto em que a repressão ameaçava sua vida. Da França, Detrez queria prestar ainda uma vez uma curta, mas muito arriscada, contribuição. No maior segredo atravessou o oceano, encontrou e entrevistou Carlos Marighella para voltar às pressas. Marighella, chefe da guerrilha brasileira, foi pouco depois executado. Detrez resumiu suas ideias num manifesto revolucionário, Pour la libération du Brésil.

Inspirada pelos Tupamaros do Uruguai, a guerrilha urbana aterrorizava, no final dos anos de 1960, as grandes cidades brasileiras. Poderia considerar-se Detrez – que provavelmente nunca soltou um tiro – como apenas uma nota de rodapé nesta história. Mas, encarado de maneira mais positiva, ele passa pelo menos por uma testemunha privilegiada dessa época perturbada. Assim manteve uma amizade calorosa com Frei Betto, ainda antes de sua entrada no convento e de tornar-se um influente teólogo da libertação. Quando Detrez estava, no início dos anos de 1970, na Algéria, conheceu pessoalmente o exilado Miguel Arraes, um dos próceres da resistência brasileira. No tribunal Russell em 1974 – uma conferência em Roma contra as violações dos direitos humanos no Brasil –, se encontrou com o excêntrico guerrilheiro Fernando Gabeira. Em seguida, ambos mantiveram correspondência por pouco tempo. Nos anos de 1970 Detrez continuou seu percurso sinuoso, que o levou à Algéria e a Lisboa, onde fazia a reportagem das peripécias da Revolução dos Cravos para a rádio belga. Em matéria política, se tornou mais reservado e também sua escolha pela literatura era em grande parte ditada pela introspecção. Antes de escrever seus romances, Detrez tinha traduzido alguns autores brasileiros para o francês: Quarup, de Antônio Callado, e Os pastores da noite, de Jorge Amado. Este último manifestou seu agrado em carta. Já com Callado, que conhecia pessoalmente, a colaboração ficou mais difícil. Literariamente, o Brasil não lhe era tão importante. Se relacionava antes com os autores ‘caribenhos’, como o colombiano García Márquez e o cubano Reinaldo Arenas – ou também, perto de casa, com o picaresco Charles de Coster. Estava escrito nas estrelas que o Brasil ocuparia um lugar importante na sua obra. Depois de dois romances promissores Detrez surpreendeu, em 1978, com L’herbe à brûler, um livro que contava em boa parte suas aventuras brasileiras numa prosa sensual e excitante, sem por isso reincidir nos estereótipos exóticos. Na sua narração fortemente autobiográfica, Detrez se revelou um hedonista puro-sangue, que rejeitava todas as formas de dogmatismo revolucionário. Com isso se aparentava algo com os nouveaux philosophes franceses – se bem que ele mesmo não gostava nem um pouco desta comparação. L’herbe à brûler foi unanimamente aclamado como uma pequena obra-prima. Com a obtenção do prestigioso prêmio Renaudot, o nome de Detrez parecia definitivamente consagrado. A Bélgica tinha, depois de Simenon, novamente um autor de impacto internacional. Seguiram-se várias traduções como em neer­landês, português e inglês. A edição inglesa recebeu resenhas relativamente boas no Time e no The Village Voice. No Brasil, revistas influentes como Veja e IstoÉ foram francamente elogiosas. Nelson Pereira dos Santos, o padrinho do cinema novo brasileiro, se prontificou a filmar o livro. Infelizmente, este projeto falhou. O próprio Detrez regredia. Nunca mais igualou o nível do L’herbe à brûler. No seu romance seguinte, La lutte finale, as favelas do Rio voltaram a formar o cenário. Mas a inspiração anterior de Detrez, que era fortemente autobiográfica, minguava de ano para ano. Interessante foi o ensaio publicado em 1981, Les noms de la tribu, no qual relatava uma viagem recente ao Brasil.

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Em 1979 Detrez se beneficiou da anistia política oferecida pelos governantes de Brasília. Voltou por alguns meses e viu um país que se tornou, sob certos aspectos, irreconhecível. Les noms de la tribu, mais do que um simples diário de viagem, contém fascinantes considerações sobre o Brasil, a guerrilha dos anos de 1960 e seu próprio percurso de vida. Esta terminou rápido demais.

Detrez serviu desde 1982 como diplomata francês na Nicarágua, mas ficou pouco a pouco muito doente. Em 1985 morreu de Aids. Peter Daerden, mestre em História, com passagem pela Universidade de São Paulo (USP), juntou em frequentes viagens ao Brasil o material de arquivo e de literatura para uma biografia extensa de Detrez.

Brasil-Europa, via Bruxelas Antônio Carlos Lessa

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epois de seu retorno ao poder na França, em 1958, o General de Gaulle por diversas ocasiões imprecou contra o forte componente supranacional que era característico dos Tratados de Roma, fundadores do processo europeu de integração, que entraram em vigor justamente naquele ano. Para o líder francês, a Europa das Comunidades e os seus arranjos supranacionais diminuíam as competências e prerrogativas dos governos dos Estados-membros e exageravam no limite do absurdo as competências e a autoridade das burocracias europeias. Desde o início de seu funcionamento, sediada em Bruxelas, a Comissão Europeia era, na lógica do presidente da França, a tradução perfeita de uma tecnocracia apátrida e irresponsável. A evolução da política europeia nos anos seguintes mostrou que o líder francês efetivamente perdeu essa arenga. Ao cabo de mais uns poucos anos encontrou-se uma solução de equilíbrio para o desenvolvimento contínuo da integração da Europa, e a sua conversão, em pouco mais de 50 anos, em uma grande potência econômica e com vocações políticas universais que, de certo modo, ultrapassam as ambições dos Estados nacionais que tomam parte, hoje, da União Europeia. Mas o que efetivamente não mudou foi a permanência de Bruxelas como sede das competências crescentes das Comunidades, ao ponto em que a capital dos belgas se transformou em metonímia das burocracias que animam e governam a Europa Comunitária. O Brasil foi o primeiro país latino-americano a estabelecer relações diplomáticas com a Comunidade Econômica Europeia, ainda em 1960. Esse gesto se sobrepunha então à reação enérgica que a diplomacia do governo do Presidente Juscelino Kubitschek esboçou quando do anúncio da assinatura do Tratado de Roma, ainda em 1957. Desde então, e praticamente até 1964, o Brasil liderou a reação dos governos de países latino-americanos, grandes exportadores de produtos tropicais, temerosos da perda de espaço nos mercados europeus diante da associação das colônias e ex-colônias europeias à então Europa dos Seis por meio de acordos de comércio preferencial. No entender do Itamaraty, a formação do Mercado Comum Europeu ensejaria uma diminuição expressiva das exportações de café brasileiro, que se daria mediante a criação de desvios de comércio que beneficiariam a produção concorrente, especialmente

africana. Com efeito, as produções das colônias e ex-colônias europeias, não apenas de café, mas também de cacau, seriam dramaticamente favorecidas pelas medidas de associação comercial que garantiam o acesso em condições privilegiadas, não mais apenas para a França ou a Bélgica, mas para todos os seis países que então fundavam a Europa Comunitária (França, Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Itália e República Federal da Alemanha). Entre os Seis estavam justamente dois dos maiores compradores de café brasileiro, em termos globais, a Alemanha e a Itália. Em outra linha de argumentação esboçada pelo governo brasileiro em sua reação ao Tratado de Roma, se arguia que a integração econômica provocaria uma desvinculação progressiva dos capitais europeus, atraídos para investimentos na África e em outras paragens, enquanto o Brasil, em pleno desenvolvimento industrial, tinha mais do que nunca necessidade da ajuda financeira dos países europeus. Portanto, os primeiros contatos entre o Brasil e a Europa Comunitária foram caracterizados por desconfiança e tensão. De pouco, ou quase nada, adiantou o grande esforço diplomático de arregimentação levado a cabo pelo governo brasileiro que, trazendo consigo vários outros países latino-americanos, tradicionais exportadores de produtos tropicais, pressionaram contra o Tratado de Roma e, mais especialmente, contra as disposições dos artigos 131 a 136. Para azar do Brasil e dos seus parceiros latino-americanos, os dispositivos do Tratado de Roma seriam considerados legais sob a luz do Acordo-Geral de Tarifas e Comércio-GATT, e não haveria, portanto, via jurídica de recurso acerca da legalidade do ato fundacional da Comunidade Europeia. Esse início pouco auspicioso deu, então, o tom da história das relações do Brasil com o processo europeu de integração. De certo modo, a designação do poeta Augusto Frederico Schmidt como primeiro embaixador brasileiro junto à Comunidade pode ser entendido como um gesto de conciliação com a Europa Comunitária nascente ou, no mínimo, como o reconhecimento de que em Bruxelas surgia um respeitável oponente. Schmidt era um intelectual e empresário respeitado, do entourage do Presidente Kubitschek. Atribui-se a ele a paternidade intelectual da Operação Pan-Americana, e também influência certa sobre vários outros temas da política externa brasileira daquele momento. Apresentou

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

as suas credenciais de Embaixador ao belga Jean Rey, membro da Comissão da Comunidade Econômica Europeia. Bruxelas entrava, então, de um outro modo e pela segunda vez, no rol das praças diplomáticas que apresentavam importância central para os interesses internacionais do Brasil, ao lado de Washington, Londres, Paris e Buenos Aires. Funcionando inicialmente em Paris, a representação do Brasil junto à Comissão foi transladada definitivamente para Bruxelas em janeiro de 1961. A missão de Augusto Frederico Schmidt foi breve. Pode-se afirmar que a sua nomeação atendia à necessidade de distender as relações com a Bruxelas comunitária, e de encetar os difíceis processos de negociação que se seguiram ao estabelecimento da Tarifa Externa Comum, envolvendo tanto o Brasil quanto outros países latino-americanos. O Brasil manteve, a partir do estabelecimento inicial das suas relações com a Europa Comunitária, a prática de enviar para a sua representação diplomatas de carreira experimentados, somente quebrada com a nomeação de outro grande intelectual brasileiro, Celso Furtado, que exerceu a chefia da Missão entre 1985 e 1986. As relações do Brasil com a Bruxelas comunitária foram, ao longo de quase cinco décadas, muito tensas. A criação do processo europeu de integração teve esse condão: descarregou a pesadíssima agenda contenciosa envolvendo questões comerciais que existiam com alguns dos seis membros originais (especialmente com a França), mas produziu um grande polo contencioso, justamente a Europa Comunitária. As demandas recorrentes do Brasil, que se juntava aos demais países latino-americanos, estiveram ao longo desse período principalmente circunscritas ao acesso aos mercados, ao tratamento tarifário conferido aos produtos tropicais e às tentativas de circundar os graves desvios de comércio que se produziram pela associação das antigas colônias europeias. A Bruxelas comunitária se convertia, desse modo, em um importante centro nevrálgico e essencialmente conflituoso das relações internacionais do Brasil. Esse relacionamento assim permaneceu praticamente até o início da década de 1990. Nesse longo momento, não há que se falar em cooperação política, uma vez que a América Latina em geral constituía um ângulo cego das prioridades internacionais da Europa comunitária e pode-se afirmar que assim seguiu até o estabelecimento do Mercosul, em 1991. O surgimento de um novo processo de integração, em região que foi a periferia das prioridades internacionais da Europa, não deixou de ser um motivo de alento para a organização de uma nova agenda de cooperação. Com efeito, o bloco sul-americano surgia como o maior parceiro comercial e principal destino dos investimentos europeus na região. Em 1992 firmou-se um Acordo de Cooperação Interinstitucional, seguido em dezembro de 1995 pelo Acordo Marco Inter-regional de Cooperação. A articulação

de interesses teve prosseguimento em junho de 1999, com a rea­ lização da primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e América Latina/Caribe, quando se decidiu pela formação de um Comitê Birregional de Negociações União Europeia-Mercosul. O início da crise do Mercosul e os alargamentos da União Europeia, dois processos coincidentes, desfocaram a agenda de cooperação inter-regional, enquanto outros temas na dimensão política e econômica surgiam como prioritários. A partir da década de 2000, o crescimento do perfil internacional do Brasil, com crescente protagonismo em diferentes tabuleiros (negociações comerciais, temas ambientais etc.) e com maior visibilidade econômica, e o crescimento do seu ativismo internacional, levaram a União Europeia a reavaliar o conjunto das suas relações com a América Latina. Assim, ao final de 2005, a União Europeia decidiu passar a privilegiar o Brasil como país-chave da região. O modelo adotado para essa nova estratégia de Bruxelas seguiu o que já estava sendo implementado no manejo das relações da União Europeia com os seus principais interlocutores – Estados Unidos, Canadá, Japão, Rússia, China e Índia –, ou seja, o de relações de “parceria estratégica”. Ainda que não exista uma definição clara desde a diplomacia comunitária do que sejam esses vínculos, eles têm muito em comum: densas e dinâmicas correntes de comércio, amplos contatos bilaterais, intensidade de vínculos políticos e agendas compartilhadas. O Brasil foi ungido como parceiro estratégico da União Europeia em 4 de julho de 2007, por ocasião da primeira Conferência de Cúpula Brasil-União Europeia, reunindo a Tróica do Conselho Europeu e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se do reconhecimento da singularidade assumida pelo Brasil nas relações internacionais contemporâneas, de certo modo, tradução do peso específico que o País tem assumido para a economia e a política global. Trata-se de uma transformação de vulto no desenvolvimento das relações do Brasil com a Europa Comunitária e oferece uma moldura institucional para a organização do diálogo de alto nível e com pleno potencial para o desenvolvimento de uma agenda de cooperação bilateral que envolve os desafios da liberalização comercial, o acesso aos mercados agrícolas, meio ambiente e aquecimento global, a reforma das organizações internacionais (e o papel que o Brasil pode nelas desempenhar) e o reforço da ordem internacional multipolar. Mais do que nunca, o futuro da projeção internacional do Brasil passa por Bruxelas. Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq.

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parte 3

Relações Econômicas: Comércio e Empresas

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parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

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O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente Eddy Stols e Silvio Cordeiro

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m dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos no Novo Mundo (Stols e Cordeiro). Construído nos anos de 1530 pelo donatário da capitania, Martim Afonso de Sousa, contava entre seus sócios Johan Van Hilst, aliás João Veniste, nativo de Hasselt, que representava em Lisboa os interesses de seu tio, Erasmo Schetz. Este, de origem alemã, mas nativo de Maastricht e casado com uma rica herdeira de Antuérpia, Ida van Rechtergem, controlava na região de ­Aachen a exploração de calamina e cobre e a produção de bacias e manilhas de latão, em parte destinadas ao comércio português na África ocidental. Assim, granjeava longa experiência comercial em Portugal, onde tratava também especiarias, açúcar, trigo, tapeçarias ou mesmo cerveja. Gozava da confiança de Dom Manuel e de Dom João III, provavelmente para empréstimos de dinheiro. Regressando a Flandres, desenvolveu, sem abandonar o comércio, sua atividade bancária na praça de Antuérpia, prestando serviços financeiros tanto ao humanista Erasmo de Roterdã como ao imperador Carlos V. Bem relacionado no meio mercantil e intelectual desta metrópole cosmopolita, transformou a casa de seu sogro, Huis van Aken, numa das melhores residências de Antuérpia, onde recebeu, em 1549, Carlos V e seu filho, Felipe II. Para assegurar o enobrecimento de sua estirpe, Erasmo adquiriu em 1545 a senhoria e o castelo de Grobbendonk. Seus filhos continuaram nesta senda senhorial, se bem que os descendentes de Gaspar, casado com Catarina van Ursel, adotaram este nome e conhecem-se ainda hoje como duque e condes d’Ursel. A compra por Erasmo, nestes anos de 1540, das outras partes do engenho em São Vicente podia corresponder ao anseio de inserir-se socialmente entre os outros grandes banqueiros, Fugger e Welser, que também lançaram empresas coloniais na América. Tinha sobretudo a ver com a fulgurante expansão do negócio açucareiro, do qual Antuérpia, com grandes refinarias e numerosos confeiteiros, projetava-se como o maior centro da Europa setentrional. Se na entrada do Rio Escalda a tabela do pedágio de Iersekeroord mencionou o açúcar ‘Bresilli’ já em 1519, três anos

depois da introdução de seu plantio no Brasil por Dom Manuel, sua produção provinha, na época, principalmente da Madeira e das Canárias, onde outros mercadores flamengos tinham instalado engenhos. No intuito de ampliar o abastecimento com a produção brasileira e preocupado em rentabilizar sua nova propriedade, Erasmo enviou um servidor flamengo de sua filial de Lisboa a São Vicente para fiscalizar a gestão do feitor Pedro Rouzée. Pode ter sido um outro sobrinho seu, Sydrach Schetz, filho bastardo do irmão cônego em Maastricht, Willem Schetz, que no seu testamento de 1527 lhe confiou sua tutoria e uma pensão. O mesmo Sydrach Esquete apareceu, em 1557, na Inquisição de Lisboa como capitão do navio São Jorge, vindo do Brasil e acusado de luteranismo. O relatório deste agente, escrito em flamengo e enviado de São Vicente em 13 de maio de 1548 – um dos mais antigos deste tipo no novo mundo –, prefigura um raro exemplo de auditoria moderna e surpreende por sua fria capacidade de análise capitalista. Encontra o engenho como uma pequena fortaleza, elevada e munida com baluartes para sua defesa contra os índios ou outros invasores. Consta de uma casa grande, bem construída, espaçosa, com senzala e ferraria e mais duas casas cobertas de telhas. Apenas a roda d’água do engenho precisa de consertos e deveria ser remontada para cima, a fim de evitar as inundações da maré. Produz 900 arrobas de açúcar, mas apenas 400 exportam-se a Portugal, porque, por falta de moeda circulante, os serviços e as mercadorias pagam-se com açúcar. O próprio agente deve no pagamento de suas mercadorias contentar-se com uma letra de câmbio sobre Antonio Becudo em Lisboa. Outro problema sério numa terra de muitos degredados e malandros é a ausência de um aparato judiciário eficiente. Para aumentar a produção, julga indispensável recuperar as terras cedidas ou ocupadas pelos moradores e comprar novas roças. Rouzée já conseguiu incorporar 32 tarefas a mais. Com mais cana própria, dispensar-se-ia de moer aquela dos moradores a custo maior. Para alcançar esta autarquia e ao mesmo tempo suprimir os salários da mão de obra livre, dispõe-se de uma numerosa escravaria, se bem que destes 130 escravos da terra, somente a metade

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parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Um dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, de 1530, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos no Novo Mundo.

trabalha, o resto sendo velhos ou crianças. O relator aprecia muito mais os oficiais africanos, sete ou oito escravos negros da Guiné: o mestre de açúcar, que fornece um produto de excelente qualidade e vale bem o salário de trinta mil réis, que na Madeira pagaria-se para um semelhante; e mais um purgador e dois caldeireiros, que também dispensam as quatro arrobas de açúcar, pagas normalmente por mês a cada oficial livre. A compra de mais escravos para fazer carvão e cinzas e plantar mantimentos economizaria o dinheiro gasto nas compras aos moradores. Aconselha por fim de reforçar sua dieta de produtos da terra, como a ‘panqueca de mandioca’, que vale cem réis e alimenta uma pessoa por três ou quatro dias, com carne, bacalhau ou outros peixes salgados e queijos flamengos e holandeses. Desconhece-se a sequência dada às suas propostas, mas quando Erasmo faleceu pouco depois, em 1550, seus filhos e herdeiros – Gaspar, Baltasar, Melchior e Conrart – formaram uma companhia, que devia também gerenciar o engenho. Este, no período conturbado das investidas francesas nas costas brasileiras, tornouse um ponto de encontro e refúgio, conhecido como Engenho de São Jorge dos Erasmos ou dos Esquetes. Por lá deviam ecoar as controvérsias religiosas entre protestantes e católicos como também a curiosidade humanística pela natureza e pela cultura dos índios. Dois soldados alemães, que passaram pelo engenho, vieram na sua volta por Antuérpia contar aos Schetz suas aventuras, Ulrich Schmidl em 1554 e Hans Staden em 1555. O livro deste último sobre sua catividade entre os canibais foi traduzido para o flamengo e publicado, em 1558, em Antuérpia por Christophe Plantin, que lançou simultâneamente uma edição barata do livro de André Thevet sobre as singularidades brasileiras. Este interesse podia relacionar-se com a propriedade brasileira dos irmãos Schetz. Estes, muito envolvidos na vida financeira, política e cultural de sua cidade e dos Países Baixos,

sofreram pouco depois dramáticas perdas de vida, de fortuna e de prestígio durante a tormentosa guerra civil subsequente à revolta contra Felipe II. Nem por isso deixaram seu engenho num abandono completo e enviaram para lá, por várias vezes, navios com abastecimentos e novos empregados, como Jean-Baptiste Maglio, Paulo Wernaerts, um jovem cunhado de Van Hilst, e Geronimo Maya. Em 1565, Conrart Schetz e seu parente Jehan Vlemincx investiram pouco mais de 1.300 libras em mercadorias, equipamentos, ferros e até canhões, despachados num navio português. Em 1579, o navio Licorno levou seis fardos pelo valor de mais de mil florins (Laga). Seu conteúdo reflete o cotidiano no engenho, que misturava uma vida senhorial escravocrata com requinte burguês flamengo. Trazia, ao lado de quatro dúzias de camisas e outras tantas de pratos de madeira destinados aos escravos, também tecidos mais finos, lençóis de cama, guardanapos, utensílios de cozinha, panelas para peixe, pratos de estanho, canecas para vinho e até uma batedeira de manteiga. Se vinham caldeirões, tachos de ferro e de cobre e material de ferraria, não faltavam uma escrivaninha, papel e pena, e para o auxiliar Paulo Wernaerts um clavicórdio. Tocava-se música renascentista no engenho dos Erasmos! Seguia também uma quantidade surpreendente de pinturas e imagens, uma parte talvez para ornar a capela do engenho, mas sobretudo destinadas à catequese dos índios pelos jesuítas. Estes padres, inclusive o famoso Anchieta, mantinham contatos com Gaspar Schetz, que em Antuérpia lhes tinha vendido a Huis van Aken. Vigiavam particularmente o comportamento moral do feitor e de seus auxiliares em São Vicente. Estes subalternos apropriaram-se provavelmente de uma boa parte dos bens e o rendimento do engenho entrou em crise, ainda mais durante as incursões em Santos de piratas ingleses e holandeses no final do século. Mesmo assim, os netos de Erasmo,

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já completamente integrados na vida nobiliária e militar, não esqueceram seus direitos sobre suas posses brasileiras. Desde 1603 tentaram enviar, sempre por intermédio dos jesuítas, um procurador para investigar estas malversações. Finalmente, em 1612, o mercador flamengo Manuel van Dale conseguiu chegar até lá e lavrou em Santos, junto com os jesuítas, um protesto para obstruir a venda, pelo provedor de ausentes, dos bens dos Schetz, dos escravos e equipamentos de cobre. De pouco adiantou porque, em 1615, na sua volta ao mundo, o pirata Joris Van Spilbergen – por sinal um antuerpiense passado para o lado dos rebeldes holandeses – passou por São Vicente e, não obtendo ajuda nem abastecimento entre os habitantes, mandou por vingança incendiar o engenho dos seus conterrâneos. Se este desapareceu do horizonte dos Schetz, continuou a produzir açúcar, beneficiado em marmeladas e outras conservas apreciadas na economia regional. Finalmente, o terreno com as ruínas do engenho, localizado no atual município de Santos e tombado pelo patrimônio histórico, foi doado em 1958 à Universidade de São Paulo (USP). Esta o valorizou desde 2005 com pesquisas arqueólogicas e projetos educacionais e construiu ao lado um centro de estudos com biblioteca e auditório. Do lado belga ou flamengo não percebeuse ainda o significado e o potencial comemorativo deste monumento como elo tanto econômico como cultural entre Flandres, Portugal e o Brasil. Se os investimentos brasileiros dos Schetz resultaram onerosos pela distância e pelo controle difícil e lhes renderam finalmente poucos lucros, foram ao mesmo tempo estimulantes e corretivos para o desenvolvimento da produção açucareira no Brasil e para a sua concentração nas capitanias do Nordeste, mais próximas da Europa. Lá, em Pernambuco ou na Bahia, outros mercadores seguiram o exemplo dos Schetz e construíram engenhos, como os Lins e os Hoelscher, alemães conectados com Antuérpia. Mais jovens flamengos ousaram aventurar-se na compra de açúcares nas costas brasileiras e um deles, Gaspar de Mere, ergueu até seu próprio engenho no Cabo de Santo Agostinho, perto de Recife. Sobretudo os cristãos novos portugueses, católicos ou judaizantes,

souberam aproveitar a dinâmica e ganhar um notável predomínio desta rota açucareira. No mercado de Antuérpia o produto brasileiro aumentou sua cota de aproximadamente 15% por volta de 1570 para mais de 85% no último decênio do século XVI. Sua nova abundância abriu o consumo do açúcar, antes reservado à medicina e à aristocracia, a uma clientela mais larga, mesmo popular e infantil. Nas pinturas dos Breughel até o camponês rendeiro é presenteado por seu patrão com um pão de açúcar. Com a reconquista católica de Antuérpia, em 1585, e o subsequente bloqueio do Rio Escalda pelos holandeses, Antuérpia viu partir muitos refinadores para Amsterdã e teve que lhe ceder sua supremacia. Mesmo assim, recebia através de Lisboa suficientes caixas de açúcar brasileiro – em média duas mil no período de 1609-1621 – para manter uma requintada cultura da doçaria. O que Antuérpia perdia em quantidade compensou em boa parte pela qualidade de seu açúcar mais fino e pela diversidade de seus confeitos, um luxo representado e celebrado nas naturezas mortas de Osias Beert, Clara Peeters e outros pintores deste estilo antuerpiense, como o alemão Georg Flegel. Silvo Luiz Cordeiro, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE -USP) e documentarista, desenvolve projetos relacionados ao patrimônio histórico e arqueológico, como um filme sobre o Engenho dos Erasmos; em 2011 criou a Mostra Audiovisual Internacional em Arqueologia (MAIA).

Referências Carl Laga. ‘O Engenho dos Erasmos em São Vicente; Resultado de pesquisas em arquivos belgas’. Estudos Históricos, Marília, n. 1, 1963, p. 13-43. Eddy Stols. ‘Um dos primeiros documentos sobre o Engenho dos Schetz em São Vicente’. Revista de História, São Paulo, n. 76, 1968, p. 407-419. Eddy Stols. ‘The Expansion of the Sugar Market in Western Europe’. Ed. Stuart B. Schwartz, Tropical Babylons, Sugar and the Making of the Atlantic World, 1450-1680, University of North Carolina Press, 2004, p. 237288. Daniel Strum. O Comércio do Açúcar. Brasil, Portugal e Países Baixos (15951630). Rio de Janeiro, 2012.

A Companhia de Ostende e os portos brasileiros Eddy Stols

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ovas perspectivas de contatos marítimos com o Brasil apareceram quando os Países Baixos meridionais passaram, em 1713, do domínio espanhol para o austríaco sob o Imperador Carlos VI, um soberano benevolente. Já que o Rio Escalda e o porto de Antuérpia continuaram bloqueados pelos holandeses, os negociantes flamengos lançaram-se logo no comércio asiático a partir do porto de Ostende e armaram seus primeiros navios para Mocha, na Arábia, Surate, Malabar e Bengala, na Índia, e Cantão, na China.

Seus bons lucros com produtos em voga, como o chá, levaram, no final de 1722, à fundação, com patente do imperador, da Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como Companhia de Ostende. Sua concorrência ameaçou o quase monopólio das poderosas Companhias das Índias orientais existentes, principalmente a holandesa e a inglesa. Estas hostilizaram os navios de Ostende, que na rota do regresso fizeram escala na colônia do Cabo ou na ilha de Santa Helena à procura de assistência e refrescos.

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Esboço de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck realizado para a Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como Companhia de Ostende, 1728.

Dois navios, o Marquis de Prié e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728, o arquipélago de Fernando de Noronha e examinaram seu potencial como escala para a Companhia.

Em situação de desespero, um primeiro navio de Ostende, o Sint-Mathieu, entrou em 1716 no Recife e obteve limões e água para salvar os tripulantes doentes. Em dezembro de 1720, o Concordia conseguiu no Rio de Janeiro pagar os alimentos frescos com a venda de seis escravos. Entretanto, quatro oficiais foram presos nas ruas da cidade sob suspeita de comércio ilícito e somente soltos por intermédio do bispo. O navio seguiu para o Recife, onde vendeu tecidos indianos. Um outro navio de Ostende ancorou na Bahia em 1721. Com estes precedentes, os diretores da Companhia imaginaram uma nova rota e logística marítima para recorrer sistematicamente aos portos brasileiros. Os capitães deviam valer-se de um passaporte do imperador e do parentesco deste com o rei de Portugal. Poderiam vender uma parte de suas mercadorias para pagar o abastecimento e oferecer presentes de seda, porcelanas ou tecidos de até o valor de 800 a 1.000 pistolas. Provavelmente especulavam com mais negócios por lá, pelo menos com a paco-

tilha dos marinheiros, ou até com contrabando de ouro nas costas brasileiras. Além disso, a Companhia enviaria navios menores de aviso rumo a Ostende, Recife e Bahia, levando material náutico de substituição, como âncoras, e notícias sobre a situação militar na Europa e a melhor rota para escapar dos inimigos. Pelo menos uma dezena de navios de Ostende entraram assim nos portos do Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife. No entanto, apesar das negociações entabuladas com a Corte de Lisboa, não foram recebidos pelas autoridades portuguesas como esperavam. Particularmente o vice-rei na Bahia mostrava-se muito rigoroso. Em maio de 1727, com a chegada de quatro navios, limitou sua permanência, colocou soldados a bordo e confinou os quatro capitães e seus sobrecargos numa casa com guardas. Interditou sob pena de morte qualquer comércio e encarregou seus fiscais da Fazenda do abastecimento. O preço muito alto deste podia encobrir alguma corrupção. Um quinto navio chegou em julho no Recife, onde os alimentos frescos eram mais baratos e um

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Aquarela de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck, 1728.

agente pretendia, mediante uma gratificação, garantir no futuro uma recepção mais benevolente. Procurando uma alternativa, a Companhia cogitou criar um posto em Fernando de Noronha. Dois navios, o Marquis de Prié e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728, o arquipélago e examinaram seu potencial como escala estratégica para a Companhia. Num levantamento geográfico, Cortmemoriael van ‘t Eylant Fernando de Noronha, com esboços e uma aquarela por Henri Carlos Gheyselinck, constataram que, apesar dos abrolhos e corais, era possível ancorar sem danos. Encontraram boa água, beldroegas, cabritos, pombas, vacas selvagens e muito bom peixe. Em três noites capturaram 14 tartarugas de 500 a 600 libras. Em

terra, seus doentes de escorbuto sararam em dois dias. Sabiam do malogro holandês em estabelecer-se por lá por causa dos ratos, mas achavam possível tentar de novo. Bastava introduzir gatos para comer os ratos e plantar. Não consta que os navios de Ostende voltaram, uma vez que, por pressão dos holandeses e ingleses, a Companhia foi interditada em 1731 e finalmente liquidada em 1734. Referências Arquivo Municipal de Antuérpia, Fundo GIC, #5.704, 5.929 e 5.931; Biblioteca Real, Bruxelas, Manuscritos, II-161, Jornal do Concordia; Biblioteca Universidade de Gand, Fundo Hye-Hoys, Manuscrito 1837. Eddy Stols. ‘A Companhia de Ostende e os Portos Brasileiros’. Estudos Históricos, Marília, n. 5, 1966, p. 83-95.

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Antuérpia e os diamantes do Brasil T i j l Va n n e s t e

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uando nos anos de 1723 e 1724 foram extraídos os primeiros diamantes no Rio Jequitinhonha, na região do Serro em Minas Gerais, Antuérpia já tinha uma longa tradição de comércio e lapidação de diamantes. As pedras brutas eram importadas principalmente da Índia pela Carreira portuguesa e por intermédio de mercadores flamengos ativos em Lisboa nos séculos XVI e XVII. Desde 1582 uma guilda reunia e regulamentava os mestres lapidários e polidores, que cravejavam as pedras em alfaias litúrgicas para o culto católico e em joias para a nobreza e a rica burguesia. Boa parte destinava-se à venda em Paris e na corte francesa, mas também em Viena, Milão, Constantinopla e Moscou, ou até nas cortes da própria Índia. Rapidamente, a abundância dos diamantes brasileiros provocou uma queda de preços e o pânico entre os negociantes em Londres, Amsterdam e Antuérpia. Para melhor controlar o mercado, a Coroa portuguesa decidiu, em 1753, aplicar ao comércio diamantário na Europa um sistema semelhante ao monopólio já operativo na mineração desde 1739. Entre os interessados nesta exclusividade se apresentou um rico mercador de Antuérpia, James Dormer, de origem inglesa, mas casado na burguesia local. Ele tinha boas conexões com uma firma anglo-judaica de Londres, Francis e Joseph Salvador, muito importante no mundo dos diamantes e em contato com os governantes portugueses. Juntos fizeram uma proposta para comprar a cada ano 25.000 a 30.000 quilates de diamantes brasileiros, por um período de três anos. Não se concretizou. Ao passo que os Salvador sofreram grandes perdas no terremoto de Lisboa em 1755, o Marquês de Pombal deu preferência aos mercadores holandeses, que fortaleceram o predomínio de Amsterdã no comércio diamantário. Não obstante, Antuérpia continuou a receber indiretamente muitas pedras brasileiras e sua guilda viu subir o número de aprendizes em até quase 80 por ano por volta de 1765. Como Amsterdã se reservava as pedras melhores e enviava as pequenas ou de baixa qualidade para Antuérpia, seus lapidários se especializavam particularmente na talha de roosjes ou diamante-rosa para joias mais baratas. Entre as mais correntes figuravam os ‘hertekens’ ou corações, que os filhos ofereciam à sua mãe no dia da Assunção da Virgem, em 15 de agosto, costume consagrado posteriormente e comemorado até hoje como o dia das mães em Antuérpia. Durante o século XIX, Antuérpia conseguiu revigorar seu setor diamantário. Dependia agora menos de Amsterdã e, uma vez que

no Brasil a lavra de pedras se liberou do monopólio, importava diretamente ou por intermédio de comerciantes franceses. Se a partir de 1867 começaram a predominar as pedras da África do Sul, os diamantes brasileiros continuaram chegando, principalmente dos novos centros de extração, como Lençóis, na Chapada Diamantina. Capital belga foi investido na formação de companhias francesas, como a Boa Vista. Ainda em 1923 uma parada festiva da Antuérpia diamantária celebrava com um carro alegórico sua gratidão a essa riqueza brasileira. A dianteira de Antuérpia se devia sobretudo ao desenvolvimento industrial da lapidação. Já em 1842 Jean-Jacques Bovie instalou no seu ateliê uma primeira máquina a vapor, que funcionaria quase exclusivamente com pedras brasileiras. Com o tempo essa indústria diamantária exportava também instrumentos e know-how para o Brasil. Discos utilizados para lapidar pedras preciosas no final do século XIX vieram da companhia G. J. de Winter & Filho, de Antuérpia. Numa visita a Lençóis, em 1920, o jornalista belga S. Hartveld notou que as máquinas de lapidação eram de origem antuerpiana. Entrementes, desde o final do século XIX o potencial industrial e comercial de Antuérpia se beneficiou bastante com a chegada de judeus fugitivos dos pogroms na Europa oriental e melhor conectados internacionalmente, particularmente com Amsterdã e Paris. Empresários judeus deste circuito fugiram no contexto da Segunda Guerra Mundial para o Brasil, alguns com vistos do embaixador brasileiro em Vichy, Souza Dantas, e operaram uma nova transferência tecnológica. Significativa desta interação e da modernização da joalharia no Brasil foi a atribuição, em 2003, de um Antwerp Diamond Award a um bracelete da designer brasileira Gláucia Silveira. Tijl Vanneste, historiador especializado em história global e em história da América do Sul nos séculos XVII-XIX, trabalha atualmente na Universidade de Exeter e tem afiliações com a Universidade ParisVII e a Universidade Nova de Lisboa.

Bibliografia sobre os diamantes S. Hartveld. Schetsen uit Brazilië, Antuérpia, 1921; Iris Kockelbergh, Eddy Vleeschdrager e Jan Walgrave (eds). The Brilliant Story of Antwerp Diamonds, Antuérpia, 1992; Tijl Vanneste. Global Trade and Commercial Networks: Eighteenth-Century Diamond Merchants, Londres, 2011; Nicolaas Verschuur. Brieven uit Brazilië, 1897-1902. Amsterdam, 1989.

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o comércio

A barca de três mastros ‘Dyle’ da Société Maritime Belge, que no 14 de julho de 1846 deixou Antuérpia para o Rio de Janeiro com 162 emigrantes a bordo.

A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo oitocentista J a n Po s s e m i e r s

‘A

A revolução de 1830

ntuérpia deve o Escalda a Deus e todo o resto ao Escalda’ é voz corrente nesta cidade à margem do Rio Escalda. Este ficou durante mais de dois séculos fechado à navegação, mas depois de sua reabertura em 1795 o porto recuperou seu caráter internacional. Uma vez que o Brasil, por decreto de 28 de janeiro de 1808, admitiu navios estrangeiros, não demorou muito o interesse de Antuérpia por este país. No final dos anos de 1820, quando a Bélgica constituía ainda junto com a Holanda o Reino Unido dos Países Baixos, Antuérpia já recebia uns 15 navios do Brasil. O armador-negociante Adriaan Saportas era, ao lado de outros, um ativo importador de produtos brasileiros, como café, açúcar e couros. Figurava também como diretor da Société d’Armement d’Anvers pour le Brésil, que procurou organizar um serviço regular entre Antuérpia e o Rio de Janeiro.

Depois da revolução belga de 1830, dezenas de mercadores-armadores migraram para Roterdã ou Amsterdã, já que a bandeira belga não era bem-vinda nas colônias holandesas. Entretanto, Antuérpia conseguiu restabelecer rapidamente os contatos com a América Latina. Melhor ainda: os portos latino-americanos tornaram-se o principal destino dos veleiros belgas de longo curso. O primeiro navio de bandeira belga a chegar ao porto do Rio de Janeiro em 2 de janeiro de 1832 foi o brigue antuerpiense La Paix do armador Joseph Muskeyn. Parece que custou ao capitão J. Roose sete dias de negociações antes que as autoridades – por intervenção do cônsul da França – reconhecessem o tricolor belga e

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lhe dessem as boas-vindas com sete tiros de canhão. O Paix entrou no Rio num momento pouco propício porque uma revolta contra Pedro I perturbava o comércio. Em 12 de agosto o brigue estava de volta a Antuérpia, carregado com, entre outros, 340 sacos de café para a firma J. L. Lemmé. Em 1836 chegaram 22 navios do Brasil ao porto do Escalda, em 1845, 59, e em 1848 já eram 70. Os navios estrangeiros procedentes do Brasil em Antuérpia ultrapassavam quase sempre em número os belgas, ainda mais porque a marinha mercante belga continuou de tamanho muito modesto. A viagem de Antuérpia ao Rio levava em média 50 dias. A volta à Europa durava pouco mais, cerca de 60 dias, já que os veleiros precisavam procurar no Oceano Atlântico setentrional os ventos do ocidente. As tempestades e as bravuras do capitão e de seus marinheiros fizeram entrar a viagem ao Rio no imaginário popular no romance In ‘t schipperskwartier: tafereelen uit het Vlaamsche volksleven, de Domien Sleeckx (1861). Existia aliás no bairro portuário um café Rio.

por iniciativa dos próprios negociantes-armadores antuerpienses. Alguns eram muito interessados e ativos na rota do Brasil, outros, apenas esporadicamente. A barca Marie Key, de propriedade do armador antuerpiense Jean Key, fez entre 1839 e 1862 um total de 35 viagens, das quais nada menos que 21 para o Rio de Janeiro (12 vezes em direitura desde Antuérpia e nove vezes de um outro porto: Cardiff, Cádiz, Lisboa ou Setúbal). Outros navios de Key frequentavam menos o Brasil: a barca Jean Key fez entre 1829 e 1855 um total de 39 viagens, das quais somente três para o Rio de Janeiro. Muito ativo na rota do Brasil foi também Egide Van Regemortel, proprietário entre 1830 e 1866 de uma dezena de veleiros. Sua escuna Octavie partiu, entre 1847 e 1867, 11 vezes para o Rio, uma vez para a Bahia e 17 vezes para o Maranhão e o Pará. Ladislas Paridant, casado com uma filha do importante armador Cateaux-Wattel e que negociava no Rio de Janeiro, expôs suas ideias a este respeito no livro Des lignes de navigation entre l’Europe et le Brésil (Liège, 1855). Na ida para o Brasil os veleiros antuerpienses carregavam geralmente sal, carvão ou mercadorias isoladas. Na falta de uma carga lucrativa navegavam com lastro. Na volta traziam café, açúcar e couros, que tinham mercado garantido na Europa. Também era o caso para navios dos quais o primeiro destino era a costa Leste dos Estados Unidos, mas que, na volta à Europa, procuravam boas cargas em portos latino-americanos: café brasileiro, açúcar cubano ou produtos do Rio de la Plata. Egide Van Regemortel trazia do Maranhão e do Pará para Antuérpia couros, algodão e borracha, sob o nome de ‘Gom-Elastic’, além de arroz, cacau, café, bálsamo de copaíba, tabaco e salsaparrilha.

Armadores, navios e cargas Nos anos de 1840 e 1850 a Société Maritime Belge de Bruxelas era a principal companhia marítima belga na rota do Brasil. A empresa possuía entre 1837 e 1856 um total de 13 veleiros. Em 1841 ela fechou com o governo belga, que queria apoiar a marinha mercante e incentivar a exportação de produtos belgas, um contrato de exploração de uma linha direta e regular para o Rio de Janeiro, inicialmente continuada até Valparaiso. Em 1842 já se organizaram cinco partidas. Seguiram outros destinos ultramarinos, entre os quais Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Nestas linhas publicava-se para cada saída uma adjudicação. A Comissão para a navegação a vela avaliava os candidatos e designava, depois de um exame técnico dos navios, o preferido. Por princípio somente aceitavam-se veleiros de primeira classe, ataviados de cobre e sob bandeira belga. Cada travessia era subsidiada pelo governo da Bélgica. Por mais importantes que fossem as linhas de veleiros previstas pelo governo, a maior parte das partidas para o Brasil fazia-se

Emigrantes Um tráfico bem particular envolvia os emigrantes. Muitos milhares de europeus se dirigiram por meados do século XIX a partir de Antuérpia para a América do Sul. Assim, o Phénomène, uma galera de Egide Van Regemortel, partiu em agosto de 1846 com 253 emigrantes para o Rio de Janeiro. Na sua esteira seguiu em

Alexandre Baguet e Urbain Flebus O antuerpiense Alexandre Baguet (1817-1897) viajou em 1842 para o Rio de Janeiro onde ficaria uns dez anos. Em 1845 começou uma jornada audaciosa pelo Rio Grande do Sul e Paraguai. De regresso a Antuérpia, Baguet fez fortuna como negociante. Em abril de 1874 foi nomeado vice-cônsul do Brasil. No mesmo ano publicou seu relato da viagem, Rio-Grande-do-Sul et le Paraguay. Souvenirs de voyage. Baguet escreveu mais dezenas de artigos sobre o Brasil na revista da Société Royale de Géographie d’Anvers. Milton Costa traduziu e editou sua Viagem ao Rio Grande do Sul, Santa Cruz do Sul, 1997. • Urbain Flebus (1839-1853) era um sobrinho de Alexandre Baguet e pertencia a uma família antuerpiense de boas posses. Mesmo assim, com apenas 12 anos de idade, Flebus fez em 1851 sua primeira viagem marítima à América do Norte e à Ásia. Em 8 de setembro de 1852 partiu de novo, esta vez como novice na barca Indépendance, com destino ao Rio de Janeiro, onde chegou em 6 de novembro. Carregado com 3.200 sacos de café a Indépendance iniciou em 29 de novembro a viagem de volta, mas deixando Urbain Flebus muito doente no Rio. Faleceu lá, talvez de febre amarela, em 9 de janeiro de 1853, com seus 14 anos ainda não cumpridos. • A Indépendance era propriedade da Société Maritime Belge. Entre 1839 e 1856 a barca fez 19 viagens para o Brasil. Em julho de 1856 o navio sofreu avarias entre a Bahia e o Rio de la Plata. Regressada à Bahia a Indépendance foi declarada imprópria em 16 de agosto de 1856 e vendida.

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A marinha belga Já que os armadores antuerpienses lidavam com uma contínua falta de tripulantes, nos anos de 1830 e 1840 colocavam-se oficiais e marujos da marinha nacional à disposição da marinha mercante. O governo pagava o ordenado e fornecia os víveres. Assim, partiu o brigue Caroline (capitão Petit) em 24 de junho de 1835 com uma tripulação militar para o Rio. Voltou em janeiro de 1836 a Antuérpia carregado de café para os importadores Lemmé e Nottebohm. Parece que trazia também uma rica coleção de plantas brasileiras e um casal de pássaros exóticos para o Rei Leopoldo I. • A própria marinha belga chegou a frequentar os portos brasileiros. O brigue de guerra Duc de Brabant passou em 1847 pelas costas latino-americanas e visitou Santa Catarina e o Rio. No dia 6 de abril de 1855, o brigue ancorou de novo na baía de Santa Catarina, onde os belgas quiseram visitar seus compatriotas que residiam por lá. No Rio, o Estado Maior do Duc foi recebido pelo hospitaleiro cônsul-geral belga, Edouard Pecher, e sua esposa, outra filha do armador Cateaux-Wattel. Tenente-do-mar, Émile Sinkel (1823-1876), descreveu em sua Vie de marin, 1872-74, como o grupo passou um domingo paradisíaco na Ilha de Paquetá, na baía de Guanabara, junto com as famílias dos negociantes alemães, italianos e belgas. O comandante do Duc de Brabant, o primeiro oficial e o próprio Sinkel foram também recebidos pelo casal imperial. Em 1º de maio continuaram a viagem à Bahia. • Quem de nós não ouviu falar do Rio? Desde que estou no mar, este nome martelava constantemente minhas orelhas, acompanhado de exclamações da maior admiração. É o mais belo porto do mundo, dizem os marinheiros; é a baía mais magnífica, é o nec plus ultra da natureza, dizem os viajantes. Portanto eu estava prevenido e minha curiosidade em alerta. Num semelhante estado de espírito, geralmente ressente-se decepções. Aqui nada disso. (Émile Sinkel)

novembro a Marie Key com 118 emigrantes. No mesmo ano, sete navios belgas levaram 768 emigrantes para o Rio. Um navio saiu para Santa Catarina, onde uma empresa belga procurava realizar um projeto de colonização. Ainda em 1846 partiram oito navios estrangeiros com 878 emigrantes de Antuérpia para o Rio e mais um, com 95 para o Rio Grande.

numa viagem, passando por Le Havre, para Bahia, Santos, Rio de Janeiro e o Rio de la Plata. Em 25 de abril de 1872 o steamer voltou no seu porto de registro, carregado em Santos com 265 sacas de algodão para a firma Bunge. Também os vapores da companhia antuerpiana John P. Best & Co. destinavam-se excepcionalmente à América do Sul. Foi o caso do SS Ferdinand Van der Taelen em janeiro de 1875 saindo de Antuérpia para o Brasil e o Rio de la Plata. Os meios comerciais de Antuérpia pouco se importavam com o declínio da marinha mercante belga. Acreditavam tranquilamente que o princípio ‘Trade Follows the Flag’ não se aplicava ao seu porto tão bem situado e de fácil acesso. Algumas tentativas para estabelecer linhas belgas de vapores para a América do Sul fracassaram. Assim foi fundada, em 1855, por iniciativa da companhia de veleiros Spilliaerdt-Caymax, uma Société Belge de Bateaux à Vapeur entre la Belgique et l’Amérique du Sud. A Société Générale de Belgique e o Banque de Rothschild de Paris interessaram-se pelo negócio e o governo belga prometeu um subsídio. Encomendaram quatro vapores metálicos na Holanda. Um destes, o Rio de Janeiro (1857), tinha capacidade de carga de quase 600 toneladas para carvão e de quase 500 toneladas para mercadorias. Além disso, tinha espaço para 220 passageiros, dos quais 40 em primeira classe, com cabines com água corrente e banheiros, e uma magnífica cabine para senhoras com piano e canapés. No entanto, por causa de vários problemas financeiros e de organização, a companhia foi dissolvida no final de 1858. O Rio de Janeiro nunca navegou sob bandeira belga e foi vendido no exterior. Por falta de iniciativas belgas o governo decidiu conceder subsídios para atrair companhias estrangeiras a Antuérpia. Assim, o Ministro de Obras Públicas, Auguste Beernaert, concluiu em 1876 um contrato com a companhia britânica Lamport & Holt sobre uma linha subsidiada para o Brasil e o Rio de la Plata. Como a companhia tinha que incorporar navios sob bandeira belga, organizou-se uma Société Anonyme de Navigation Royale Belge-Sud-

Da vela ao vapor A partir dos anos de 1860 diminuiu muito rapidamente o número de veleiros belgas. O governo aboliu os subsídios e os armadores familiarizados com os veleiros sofriam a concorrência brutal dos vapores bem maiores e mais rápidos. A exportação de produtos agrícolas sul-americanos para Antuérpia fazia-se, cada vez mais, com linhas de vapores do exterior, que empalmavam as melhores cargas. O capitão Charles Boone, da companhia antuérpiense de veleiros De Decker – Cassiers, informou mais de uma vez ao seu armador que nos grandes portos sul-americanos estavam ancorados dezenas de veleiros à espera, sem resultado, de uma carga lucrativa. Em 1874 De Decker – Cassiers o considerou o assunto resolvido. O armador Claeys escutou a mesma história de seu capitão Thomas Zellien. Este relatou, numa carta do Rio Grande do Sul em 31 de março de 1870, que havia 195 veleiros à espera. Somente alguns poucos negociantes-armadores antuerpienses conseguiram adquirir seus próprios vapores. Daniel Steinmann figurou primeiro como carregador e agente marítimo, mas dispunha desde os anos de 1860 de seus próprios veleiros e vapores. Sob a bandeira da White Cross Line navegavam sobretudo para a América do Norte, mas esporadicamente destinavam-se também ao Brasil e ao Rio de la Plata. A companhia T. C. Engels & Co., fundada em 1859, comprou tanto veleiros, entre os quais alguns navios de ferro para o transporte dos nitratos chilenos, como também vapores. O SS de Ruyter (2.500 toneladas) partiu em 23 de dezembro de 1871

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-Américaine. A linha começou em 1878, com oito vapores sob bandeira belga e introduziu depois ainda outras unidades, porém sob bandeira britânica. Os subsídios para a Lamport & Holt revelaramse uma sangria para o tesouro. Provocaram a resistência do partido liberal e foram também bastante criticados nos círculos mercantis de Antuérpia. O contrato terminou em 1908. Na medida em que o número de linhas de vapores em Antuérpia aumentou, os subsídios tornaram-se desnecessários. Sem exagero deve-se constatar que Antuérpia tornou-se nos últimos decênios do século XIX um porto mundial sem frota própria. Nos portos brasileiros quase não se viu mais o tricolor belga. Mesmo assim, Antuérpia e Brasil ficavam conectados mais que nunca graças à rede mundial de linhas de vapores britânicas e alemãs. Estes embarcavam produtos industriais belgas e sobretudo os emigrantes da Europa central e oriental, mas interessavam-se também aos candidatos belgas. Estes eram recrutados com uma propaganda pouco escrupulosa, denunciada pelo escritor Georges Eekhoud em seu romance La Nouvelle Carthage, 1893, que trazia uma descrição naturalista do mundo de negócios antuerpiense. Neste fervor náutico pelo Brasil, o governo municipal de Antuérpia decidiu, em 1874, dar o nome de Braziliëstraat – Rua

do Brasil – a uma nova artéria aberta no velho bairro portuário, conhecido como Het Eilandje. Este nome de rua ainda existe e forma um conjunto latino-americano com a Limastraat, a Montevideostraat e a mais afastada Mexicostraat. Novas iniciativas belgas exitosas na navegação a vapor avançaram até o século XX, mas isto já é uma outra história. Com meus agradecimentos particulares ao senhor Luc Van Coolput, membro da Real Academia Belga da Marinha e autor de diversas publicações sobre a marinha mercante, que gentilmente colocou muitos dados à minha disposição. Jan Possemiers, historiador, com tese de licenciatura sobre o bairro ecléctico de Zurenborg em Antuérpia, premiada e publicada pela Real Academia Flamenga da Bélgica, publicou também vários trabalhos sobre a atividade marítima de Antuérpia.

Referências A. De Burbure de Wesembeek. Une anthologie de la marine belge. Antwerpen,1963; Gustaaf Asaert e. a. Antwerp: a port for all easons. Antwerpen, 1986; J. Vrelust (edit.) Antwerpen Wereldhaven. Over handel en scheepvaart. Antwerpen, 2012.

Um traficante de escravos na Bahia Chris Delarivière

D

As cartas

ezembro de 1851. O Rei Kosoko, soberano de Lagos, já era há tempo uma espinha no olho dos britânicos que controlovam a baía do Benin. Lagos virou o principal pivô do trato dos escravos na África e o rei recusou teimosamente em ceder às exigências dos britânicos de terminar com o tráfico de escravos. Quando, além do mais, o Rei Kosoko rejeitou a amizade da rainha da Inglaterra, os britânicos decidiram parar as negociações diplomáticas e passar para o método duro. Um dia depois do Natal a Royal Navy começou o ataque a Lagos. Os navios do West Africa Squadron entraram na desembocadura do rio e dirigiram-se para o centro da cidade. Ao fogo cerrado dos sitiados, responderam com salvas dos canhões Howitzer. Rapidamente uma parte da cidade pegou fogo. Desembarcando com suas tropas auxiliares africanas, os soldados britânicos encontraram forte resistência. Mesmo assim, os guerreiros do Rei Kosoko não rechaçaram as tropas da Royal Navy. O rei fugiu e dos três mil defensores da cidade algumas centenas perderam a vida. Os britânicos contaram somente uma dezena de vítimas. A queda de Lagos acabou assim com o último grande empório de escravos da África ocidental. Nos dias seguintes os conquistadores acharam no palácio do rei um maço de cartas. Tratava-se da correspondência entre o Rei Kosoko e seus parceiros de negócios no Brasil. Várias cartas eram provenientes de Gantois & Marback, uma firma comercial com sede em Salvador, Bahia, e fundada por Edouard Gantois, originário de Gand.

As cartas de Edouard Gantois ao Rei Kosoko constituem documentação singular sobre o estilo mercantil do tráfico de escravos. Em termos práticos e frios descrevem a mercadoria fornecida. Em nenhuma parte aparece a palavra ‘escravo’ e se fala antes de ‘sacas’ ou ‘pacotes’. Oferecem um balanço detalhado da ‘mercadoria’, levando em conta os preços de compra e venda, os gastos médicos e os alimentos, os prêmios de seguro, as comissões e a ‘mercadoria’ avariada. A correspondência prova também que Edouard Gantois tinha relações comerciais seguidas com o Rei Kosoko. Assim informou o monarca sobre os avanços na construção de um veleiro de dois mastros destinado ao transporte dos escravos do rei africano. A última carta de Edouard Gantois data de 1850, em pleno declínio do tráfico de escravos. Sob o impulso da Grã-Bretanha, combatia-se com mais rigor os traficantes e também no Brasil cessou a tolerância de longa data. Em suas cartas ao Rei Kosoko transpareciam as crescentes dificuldades e as queixas sobre a defeituosa qualidade da mercadoria. Muitos escravos eram velhos ou doentes demais e alcançavam preços baixos. Além disso, o risco do embargo dos navios aumentava. Numa carta de outubro de 1849, Gantois alertou o Rei Kosoko a respeito dessas dificuldades e insistiu para pressionar alguns de seus devedores. Um tal de Pe-

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o comércio

dro Marques devia ainda fornecer cinco ‘sacas’. Ajau d’Acambi e Agenia estavam ainda em falta na sua conta de três e dez ‘sacas’. Pelo visto Edouard Gantois não era homem de sentimentos, mas de trato frio e funcional.

para comprar e armar navios negreiros. Sobre os transportes por conta de Gantois encontram-se ainda alguns dados nos arquivos. Em 1836, o negreiro Atalaya realizou o Middle Passage em 128 dias. No golfo de Benin carregou 284 escravos, dos quais 270 desembarcaram em La Havana. Uma segunda viagem no mesmo ano teve menos êxito, e uma carga de 121 escravos foi interceptada pela marinha britânica na baía de Biafra. O ano de 1836 foi turbulento para a firma Gantois, pois tinha também o Esperança na rota. Uma primeira viagem começou na Nigéria com 352 “peças” e terminou na Bahia com 325 sobreviventes. Um segundo transporte com 477 “peças” foi confiscado. Oito anos mais tarde Edouard Gantois continuava ativo no tráfico. Em abril de 1844 partiu a escuna A Felicidade, sob o comando do capitão J. J. da Silva. Dos 589 escravos embarcados na África, depois de 73 dias de viagem para chegar à Bahia, apenas 530 resistiram. No mesmo ano a guarda costeira brasileira interceptou outro navio de Gantois. O bergantim A Fortuna tinha carregado em Lagos 630 escravos, dos quais 610 continuavam vivos. Em 1846 o iate Maria partiu de Lagos com 178 africanos para a Bahia e chegou com 160 sobreviventes, que foram vendidos. Por volta de 1850 os negócios começaram a declinar. As autoridades brasileiras agiam com mais severidade e a West-Africa Squadron da marinha britânica patrulhava mais intensivamente a costa da África ocidental para interceptar os navios negreiros. A queda de Lagos foi um golpe definitivo para o tráfico. Em seu relatório de 24 de março de 1851, G. Jackson, Her Majesty’s Commissioner, em Luanda, informou a apreensão, pelo West-Africa Squadron, de 54 navios, de março de 1850 a 1851, o que levou à libertação de um total de 4.841 escravos. Em decorrência, constatou-se a venda mais difícil de escravos e a falência dos traficantes.

Traficante de escravos e homem de negócios Subsistem poucos dados biográficos sobre o traficante belga. Apesar de sua posição proeminente no meio dos negociantes de Salvador, Edouard Gantois continua uma figura algo obscura. Nascido no final do século XVIII, emigrou para o Brasil onde estabeleceu uma firma comercial em Salvador. Lá ficou ativo entre 1830 e 1850 principalmente no tráfico de escravos, comércio ilegal mas lucrativo com agência na Rua d’Alfandega, na parte baixa da cidade. Gantois era visivelmente um peixe graúdo no tráfico. Junto com seus parceiros, como o francês Guilhaume Pailhet e o britânico Henry Marbach, dirigia uma empresa próspera, com vários navios. Nesse período de 20 anos fizeram pelo menos 36 transportes clandestinos, dos quais somente quatro foram interceptados. Os barcos partiam de Salvador com tabaco, têxteis, açúcar, cachaça, armas e pólvora, que trocavam na África ocidental por escravos. Sua firma era lucrativa. Entretanto, o Brasil, seguindo a Grã-Bretanha e outros países, proclamou em 1831 a ilegalidade do tráfico escravista. Se a escravidão continuou existindo, o comércio transatlântico de escravos ficou proibido, mas a lei continuou letra morta. As fazendas e as minas estavam tão dependentes da mão de obra escrava que as autoridades fechavam os olhos, ainda mais mediante propinas. Até 1850 a introdução de escravos continuou sem maiores problemas e oferecia excelentes lucros a Gantois e seus colegas. Em 1845 o cônsul francês, Mauboussin, considerou a chegada de 5.542 escravos como a principal atividade comercial em Salvador. Dava bons lucros, já que, segundo o britânico Lord John Hay, comprava-se um escravo por 10 dólares e vendia-se por 500 dólares no Brasil. Em seu informe consular, Mauboussin relacionava a companhia belgo-francesa Gantois & Pailhet entre os traficantes estrangeiros, que, aliás, desprezava como contrabandistas de humanos. Seus principais portos eram Lagos, na Nigéria, e Ouidah, no Benin, onde tinham seus agentes e depósitos.

O Terreiro do Gantois Edouard Gantois deve ter ficado muito preocupado com a notícia sobre a queda de Lagos. Pouco antes havia construído um navio para o Rei Kosoko e agora não podia mais recuperar seu dinheiro gasto. Sem futuro para o tráfico, Gantois procurou outras atividades comerciais. Isto transparece no relatório de viagem do Imperador Pedro II pelo Norte do Brasil em 1859. Aí Gantois figurou como proprietário de uma fábrica de tabaco. Nove anos depois da abolição do tráfico reconverteu-se em industrial. Além disso, investiu seus lucros do tráfico na compra de terras, que o transformaram em latifundiário. Num destes terrenos formou-se por meados do século XIX uma sociedade de candomblé, fundada por mulheres Yoruba, que tinham chegado como escravas. Foi o começo do Terreiro do Gantois, um dos templos mais antigos do culto sincretista afro-brasileiro, situado no atual distrito Federação, onde se localiza o campus da Universidade Federal de Salvador. Entre os frequentadores do terreiro encontra-se gente de todas as classes sociais, das favelas aos condomínios ou aos meios artísticos. A cantora Maria Bethania celebrou numa de suas canções ‘minha mãe Menininha...’, a famosa mãe-de-santo Menininha do Gantois, que ganhou prestígio nacional. Parece um destino irô-

Os navios de Gantois Uma ida e volta no trato dos viventes entre o Brasil e a África ocidental tomava de três a quatro meses, dependendo das escalas escolhidas e das eventuais paradas. Estima-se que, de 1800 até 1860, foram traficados de 2 a 2,5 milhões de escravos africanos para o Brasil. A mortalidade nos tumbeiros era alta e em média de 10% a 20% não chegava ao fim da travessia. Mesmo assim era um negócio lucrativo que atraía muitos comerciantes estrangeiros. Alguns combinavam com a venda de ferramentas e armas, ainda mais que lá serviam para a caça e a prisão dos escravos. O gandense Edouard Gantois era um deles e associou-se com outros traficantes, como o francês Guilhaume Pailhet e o britânico Henry Marbach,

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nico que precisamente nas terras de um traficante floresceu uma das mais respeitadas comunidades do candomblé afro-brasileiro. Em Salvador não se encontram mais rastros de Edouard Gantois. Mas, sim de seus parceiros, o comerciante britânico Henry Marback (Marbach), originário de Liverpool, que se tornou, na segunda metade do século XIX, um dos homens mais ricos da Bahia. Com sua fortuna, ganha parcialmente no tráfico, comprou no bairro do Bonfim uma casa grande com vista para a Bahia de Todos os Santos. O Solar Marback ainda encontra-se lá, perto da igreja do Senhor do Bonfim, que protagoniza a maior festa religiosa de Salvador, a Lavagem do Bonfim, na qual atuam tanto padres católicos como mães-de-santo do candomblé.

Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de reportagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

Bibliografia sobre Gantois Pierre Victor Mauboussin. Rapport sur la traite de noirs à Bahia en 1846, Ministére des Affaires Etrangères, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia Vol. 5;Transatlantic Slave Trade Database,  ; Accounts & Papers: 48 volumes (47 – Part I); Consuls; Slave Trade (Session 1852-1853), Vol. CIII-Part I; Pierre Verger.Flux et reflux de la traite des négres. Paris, 1968; Pedro Vasconcelos. Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus, 2002.

Esse fuzil de caça de 2 tiros corresponde ao modelo conhecido como “brasileiro”, que era especialmente fabricado em Liège, na segunda metade do século XIX, para exportação. Tais armas se caracterizavam por seu modo de carragamento pela boca, pelo seu mecanismo de disparo à percussão e pela escultura da coronha. Se trata de um modelo de luxo, ricamente esculpido, gravado e incrustrado de ouro. A tampa da caixa de munição, situada na coronha, leva o brasão do antigo império do Brasil. Um agradecimento a Claude Gaier, especialista do comércio de armas e ex-diretor do antigo Museu de Armas de Liège, pelas fotografias.

Os belgas se situaram no século XIX entre os maiores consumidores de café, com até 7 quilos por pessoa. Se o primeiro café brasileiro teria chegado ao porto de Antuérpia via Lisboa já por volta de 1807, somente a partir de meados do século importaram-se grandes quantidades. Entretanto, se vendia no varejo como café de Java, de maior reputação. A origem brasileira começou a valorizar-se depois que, nas Exposições de Antuérpia, em 1885, e de Bruxelas, em 1910, milhares de visitantes puderam prová-lo gratuitamente nos pavilhões do Brasil. Ganhou fama com a qualidade “Santos”, nome que um negociante belga incorporou em 1910 na sua “compagnie brésilienne” de torrefação. Esta fornecia os “Santos Palace”, salões de café, criados em Bruxelas e em cidades praieiras como La Panne.

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A Bélgica se envolveu muito cedo na construção da infraestrutura ferroviária do Brasil com a vinda do capitão Henri Vlemincx, que recebeu licença do exército belga para dirigir de 1859 a 1865 o Serviço de Tráfego da Estrada de Ferro Dom Pedro II. Esta permissão deveria contribuir para levar encomendas de material ferroviário para as metalúrgicas belgas. Estas, como as fábricas de Thy-le-Château, Cockerill, Ougrée, Marcinelle e Couillet, forneceram algumas locomotivas, mas principalmente vagões de carga e trilhos para diversas estradas brasileiras como a Leopoldina, a Sorocabana, a Central da Bahia e a Central de Pernambuco. O equipamento mais vultoso veio dos Ateliers franco-belges de la Dyle et Bacalan em Lovaina, que construiu o vagão do Imperador, conservado no Museu do Trem do Rio de Janeiro. Esta empresa franco-belga participou no capital da Compagnie Générale des Chemins de fer brésiliens, que começou a partir de 1879 a realizar a concessão da linha Curitiba-Paranaguá e abriu uma filial em Curitiba. Em 1888 se mostrou em Lovaina uma exposição de fotografias dos viadutos instalados no Brasil, mas o Álbum feito para esta ocasião ainda não foi encontrado ou se perdeu. Nesta onda, financistas belgas, principalmente Franz Philippson, cujo nome se deu a uma colônia judaica da Jewish Relief Association no Rio Grande do Sul, mobilizaram capitais belgas para a construção e exploração de concessões de ferrovias entre São Paulo e o Rio Grande do Sul e organizaram em 1891 a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésiliens e em 1898 a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil. Seu capital atingiu perto de 75 milhões de francos belgas para construir e gestionar uma rede de quase 2.500 km. O material foi fornecido pelas fábricas de Braine-le-Comte. Seu diretor, o engenheiro Gustave Vauthier, que teve sua primeira experiência na construção da estrada de ferro Matadi-Léopoldville, no Congo, construiu a Estação e a Vila Belga de Santa Maria. Os belgas se interessaram desde 1904 pela organização da estrada de ferro Noroeste e forneceram material ferroviário ainda na década de 1920.

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(Acima, à esquerda) – Inauguração do São Carlos Electric Tramway, em frente à estação ferroviária da cidade em 27 de dezembro de 1914. (Acima, à direita) Projeto dos bondes encomendados pela South Brazilian Railways a Les Ateliers Metallurgiques de Nivelles, Bélgica, e que começaram a funcionar em Curitiba, Paraná, em janeiro de 1913. (À esquerda) – Bondes comprados em 1925 pela CFLPA dos Ateliers de Construction Energie Marcinelle, Bélgica, e instalados em Porto Alegre; notar a circulação à esquerda, no estilo inglês.

Pavilhão Belga na Exposição do Rio de Janeiro em 1922-23. O governo belga, diante da custosa reconstrução do país devastado pela Primeira Guerra Mundial, hesitou em participar da Exposição Internacional do Centenário da Independência no Rio de Janeiro em 1922. Entretanto, foi pressionado pelo Rei Alberto, que, depois de sua visita ao Brasil, queria restabelecer e desenvolver as relações econômicas entre os países. Assim confiou a organização da participação belga ao conde Adrien van der Burch, especialista em matéria de exposições internacionais. Na Avenida das Nações, o arquiteto Arthur Verhelle construiu um pavilhão em estilo neorrenacentista, o Resurgam, prevalecente em muitas reconstruções nas cidades belgas. Foi um dos poucos a ficar prontos na inauguração de 7 de setembro. Seu interior mostrava uma exposição de arte belga. Na Praça Mauá havia mais: uma construção metálica, instalada pelo arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, muito ligado aos interesses belgas. Numa superfície de 7.000 m2 nada menos que 417 expositores belgas apresentavam seus produtos para o mercado brasileiro. O número de visitantes e as vendas, no entanto, ficaram abaixo do esperado.

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O Copacabana (um cargueiro mixto com BRT – toneladas brutas registradas – de 7.334 e uma Loa – longitude – de 140,15 m) foi lançado festivamente em 19 de outubro de 1937 nos estaleiros Cockerill, de Antuérpia (Hoboken), e entrou em serviço em 1938. O navio, bastante luxuoso e mobiliado em art déco, dispunha de amplas e modernas instalações para transporte de carnes e frutas (nas imagens, rótulos de laranjas brasileiras). Havia também acomodação para cerca de 140 passageiros, dos quais 20 em primeira classe. Naquele mesmo ano a CMB (Compagnie Maritime Belge) armou ainda dois navios idênticos: o Piriapolis e o Mar del Plata. Os três navios frequentaram os portos de Pernambuco, Rio de Janeiro, Santos, Montevideu e Buenos Aires. O Copacabana serviu sob a bandeira da CMB até 1958 e foi também utilizado na rota do Congo. Suas câmaras frigoríficas permitiam o transporte de frutas, principalmente de laranjas brasileiras que a empresa Louis Van Parijs de Antuérpia distribuía no mercado belga. Substituíam a importação das laranjas espanholas, afetada pela guerra civil na Espanha. Louis Van Parijs foi um dos primeiros a adquirir terras em São Paulo para desenvolver suas próprias plantações de laranja. No pós-guerra suas laranjas, com a marca LVP, dominaram durante muitos anos o consumo belga.

O sistema de estacas de concreto armado moldadas e cravadas no solo para sustentar grandes construções foi aperfeiçoado por um engenheiro de Liège, Edgard Frankignoul e patenteado como ‘estaca Franki’. Para operar na construção pesada pelo mundo inteiro, fundou em 1911 sua Compagnie Internationale des Pieux Armés Frankignoul. Em 1935 abriu uma filial brasileira no Rio de Janeiro, que interveio na construção de grandes prédios, como a Estação Dom Pedro II e Ministério da Educação e Saúde, e de obras como o túnel 9 de Julho, em São Paulo. A seguir operou no Brasil inteiro e teve participação importante em obras em Brasília. Desde 1938 contou com a colaboração de engenheiros brasileiros e em janeiro de 1940 se transformou em empresa brasileira, Estacas Franki, com capital de um milhão de cruzeiros. Criou em 1942 seu próprio Laboratório de Mecânica dos Solos. Dessa forma, constituiu um caso exemplar de empresa estrangeira rapidamente integrada na tecnologia e na economia nacional.

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A Urucum dos belgas Fa b i o G u i m a r ã e s R o l i m

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etentora de uma das maiores reservas de manganês e minério de ferro do mundo e de um Produto Interno Bruto em que a indústria, liderada pela mineração, até mesmo supera o tradicionalíssimo setor pecuário, a cidade sul-matogrossense Corumbá viu a primeira exploração sistemática de seus recursos minerais nascer entre 1907 e 1918 pela atividade da belga Compagnie de l’Urucum, nas montanhas de mesmo nome. Foram décadas de profundas transformações para Corumbá. Privilegiada por sua condição geográfica de articulação entre o interior do continente e as capitais platinas e da zona franca para o comércio internacional, a cidade viu explodir o número de habitantes e a atividade de casas comerciais, bancos e consulados, manifestos na arquitetura de seu porto e numa diversidade linguística que, segundo os relatos, fazia com que o português fosse apenas uma de suas línguas e a libra a moeda corrente. Paralelamente, no restante da fronteira matogrossense com a Bolívia desenvolvia-se uma intensa atuação de empresas belgas

proprietárias de imensas áreas nos dois países, sob retaguarda diplomática do governo belga na busca por administração territorial autônoma e nos moldes de sua experiência colonialista no Congo africano. Foi nesse cenário que operou a Compagnie de l’Urucum. Entretanto, sua história é hoje pouco conhecida, assim como a existência de alguma relação com as demais empresas belgas do período. Sabe-se que a Compagnie contou com mão de obra vinda do Uruguai e da Bolívia para a abertura de minas nas cotas superiores do maciço do Urucum e, com o fim da I Guerra Mundial, o minério produzido não foi exportado, a despeito da conclusão de uma via férrea entre as lavras e o Rio Paraguai e de alguma relação firmada com os proprietários da antiga Fazenda Urucum (em cuja área localizavam-se as lavras), que atuava simultaneamente como entreposto fornecedor de gêneros alimentícios, hospital militar e hospedagem. É possível, contudo, estabelecer algumas inferências, resultantes do cruzamento entre as informações já conhecidas. Por exem-

A primeira exploração sistemática de recursos minerais em Corumba se deu entre 1907 e 1918 pela atividade da Compagnie de l’Urucum.

A Compagnie contou com mão de obra vinda do Uruguai e da Bolívia para a abertura de minas nas cotas superiores do maciço do Urucum.

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plo, o geólogo Miguel Arrojado Lisboa, que passou pela região no final de 1907 com a Comissão Schnoor, para o estabelecimento do traçado da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil-EFNOB, faz referência a um certo engenheiro “residente”, Delhaye, o qual informou ter trabalhado na medição da altitude máxima do maciço (1.077 metros) “a partir da fazenda Urucum”. Seria este Delhaye o geólogo belga Fernard Delhaye (1880-1946), que mais tarde viria a ser o descobridor da delhayelita na região de Kivu, Zaire (ex-Congo Belga)? Permite essa suposição a reunião de elementos comuns como o sobrenome, o período cronológico, a profissão e a localização da descoberta que lhe eternizou o nome – o Congo –, remetendo ao contexto colonialista belga na África e ao que se intentava nas fronteiras do Mato Grosso. Casos mais concretos são representados por seções de trilhos encontrados na área da antiga Fazenda Urucum, reforçando as informações sobre a conexão portuária; por edificações ainda existentes na fazenda, entre as quais ao menos duas são identificadas por antigas fotos e cartões postais como sendo da Compagnie – estaria aqui a razão de ser do termo “residente” adotado por Arrojado Lisboa ao se referir ao engenheiro Delhaye? E, por último, mas não menos importante, a popular “mina dos belgas”, em área atualmente sob concessão da Urucum Mineração-Vale do Rio Doce. As atividades da Compagnie findaram-se em 1918 e a Fazenda Urucum entrou em abandono após 1960, até ser desapropriada em 1984. Seus remanescentes localizam-se em área adquirida pela Vale do Rio Doce em 2007 com o intuito de ampliar sua estocagem. A ação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan, no entanto, possibilitou a preservação da área e a condução de um projeto para um parque histórico-arqueológico no local. A “mina dos belgas”, por sua vez, é um dos

Chalet construído na Fazenda Urucum.

geossítios de interesse histórico e mineralógico componentes do Geopark Estadual Bodoquena-Pantanal, candidato ao reconhecimento mundial pelo Global Geoparks Network/GGN, sob os auspícios da Unesco. Felizmente, um cenário propício para o maior conhecimento deste passado, nem tão remoto, e que permanece vivo na economia e na paisagem corumbaenses, apto a emergir novamente à superfície da memória. Fabio Guimarães Rolim é arquiteto e urbanista, coordenador-geral de Patrimônio Natural do Iphan.

A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e suas conexões belgas (1904-1918) Pa u l o R o b e r t o C i m ó Q u e i r o z

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ferrovia historicamente conhecida como Noroeste do Brasil (NOB), existente ainda hoje, liga Bauru (SP) a Corumbá (MS, fronteira com a Bolívia), com um ramal de Campo Grande (MS) a Ponta-Porã (MS, fronteira com o Paraguai) – traçado que indica seu sentido essencialmente político-estratégico. A história da construção da NOB é extremamente movimentada. Suas origens remontam à traumática experiência da Guerra com o Paraguai (1864-1870), quando o Sul do então Estado de Mato Grosso (que constitui o atual Mato Grosso do Sul) foi ocupado pelas forças paraguaias. O início de sua construção, em 1905, deu-se pelo “aproveitamento” de uma antiga concessão, efetuada pelo governo federal em 1890, referente a uma ferrovia que deveria ligar Uberaba (MG)

a Coxim (MT) – traçado que foi alterado para Bauru-Cuiabá (capital do então MT) e concedido à Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil (Cia. EFNOB), fundada em 1904. Em 1908, com a construção em andamento, novas mudanças: o ponto final foi alterado de Cuiabá para Corumbá e a ferrovia foi dividida em dois segmentos: a E. F. Bauru-Itapura e a E. F. Itapura-Corumbá (sendo Itapura uma localidade no extremo Oeste do Estado de São Paulo, às margens do Rio Tietê). A concessão da Cia. EFNOB foi mantida apenas para a Bauru-Itapura, enquanto a Itapura-Corumbá foi declarada propriedade da União. Em 1914 foi dado por concluído o trecho entre Bauru e as margens do Rio Paraguai, em Porto Esperança. Pouco depois, a União encampou a Bauru-Itapura, e de sua fusão com a Itapura-

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des Travaux Dyle et Bacalan. Nos anos seguintes, Teixeira Soares havia prosseguido em suas estreitas relações com empresas belgas, como a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésilien e a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, ambas integrantes de um grupo pertencente à Compagnie Générale des Chemins de Fer Secondaires, sediado em Bruxelas. 2) O fato de a construção ter sido empreitada à empresa Compagnie Générale de Chemins de Fer et de Travaux Publics, fundada em Bruxelas, em 1902, inicialmente com vistas a assumir a “empreitada da construção e superestrutura da linha” da estrada de ferro de Vitória (es) a Diamantina (mg). Vale notar que o vice-presidente da NOB, João T. Soares, era também diretor da Cia. Vitória-Minas; Louis Malchain, que foi diretor da NOB, era um dos principais acionistas da Compagnie Générale, enquanto Ernest Poizat (membro do Conselho Fiscal da NOB) aparece como pequeno acionista e membro do Conselho Fiscal da mesma Compagnie. 3) O fato de muitos cidadãos belgas terem certamente se tornado obrigacionistas (debenturistas) da Cia. EFNOB, pois a maior parte do capital empregado na construção foi levantado na Europa, e Bruxelas (ao lado de Paris, Amsterdã e, possivelmente, Antuérpia) esteve sempre entre os locais onde foram negociadas as debêntures emitidas pela companhia. 4) O fato de grande parte do material rodante da ferrovia ser de origem belga. Em 1907, as seis locomotivas de que dispunha a empresa eram belgas, provenientes dos Ateliers de la Meuse; dentre os 15 veículos, 12 provinham igualmente da Bélgica (nove vagões para mercadorias e três vagões de lastro). Nos anos seguintes, a procedência belga se mantém muito forte no concernente aos veículos, embora ceda terreno no que se refere a locomotivas. Assim, em 1911, todos os 178 veículos da ferrovia (carros de passageiros, mistos, vagões para bagagens, animais, mercadorias etc.) têm como procedência a Bélgica; já, contudo, no que concerne às 14 locomotivas, apenas quatro (do tipo Mogul) eram belgas, sendo as demais importadas dos EUA. Esse quadro parece, enfim, claramente consolidado em 1916, último ano para o qual disponho de dados (referentes, no caso, apenas à Bauru-Itapura). De um total de 127 veículos, nada menos que 81 eram belgas; dentre os demais, havia cinco dos Estados Unidos (carros para passageiros), e os restantes 41 eram brasileiros. Já com relação às locomotivas, de um total de 20, apenas cinco eram belgas: das demais, 12 eram Baldwin e três inglesas (Sharp Stewart). Tal tendência confirma, portanto, para a NOB, a observação de Stols, que, referindo-se às ferrovias belgas no Rio Grande do Sul, entre fins do século XIX e início do XX, assinala que “le matériel roulant provient de plus en plus des États-Unis ou d’ateliers brésiliens” (Stols, 2001, p. 132). Mais difícil é a identificação de possíveis personagens belgas na Cia. EFNOB. É certo que na primeira diretoria, eleita em 1904, aparecem vários nomes estrangeiros: Henri Lartigue, “administrador da Sociedade de Estradas de Ferro Argelianas”, como presidente; Victor Folletête, como “administrador delegado”, e, como diretores, Gusty Joris, Louis Malchain (“administrador da Ouro Preto Gold Mine”) e George Moreau, “engenheiro de mi-

Vagão e interior do carro de 1ª classe da Nord Ouest Brazilian Railway, a ferrovia conhecida como Noroeste do Brasil (NOB), que liga Bauru (SP) a Corumbá (MS).

-Corumbá resultou, em 1918, a NOB, agora inteiramente estatal. A extensão até Corumbá e o ramal de Ponta-Porã foram construí­ dos entre 1938 e 1953. No Oeste do Estado de São Paulo, a construção enfrentou forte resistência dos antigos habitantes desse território, isto é, os indígenas kaingang, o que gerou sangrentos confrontos. Além disso, muitas vidas de operários e engenheiros foram ceifadas pela malária que grassava no vale do Rio Tietê. A Cia. EFNOB foi constituída no Rio de Janeiro, em junho de 1904, como uma empresa brasileira, com capital de 10 mil contos de réis, e, dentre seus nove acionistas, apenas um trazia um nome estrangeiro: Victor Folletête, citado como “incorporador”. Mas a presença de capitais e interesses belgas fica especialmente evidenciada por quatro circunstâncias: 1) As conexões belgas do fundador e principal dirigente da Cia., engenheiro João Teixeira Soares, cujo elevado prestígio profissional derivava, em grande parte, de sua atuação como chefe da construção da célebre ferrovia de Curitiba a Paranaguá, no início da década de 1880, a serviço da empreiteira belga Société Anonyme

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corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacional. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos [s.d.]. 222 p.; CASTRO, Maria Inês Malta. O preço do progresso: a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1905-1914). Campinas, 1993. 293 f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH/Unicamp; DIAS, José Roberto de Souza. Caminhos de ferro do Rio Grande do Sul: uma contribuição ao estudo da formação histórica do sistema de transportes ferroviários no Brasil meridional. São Paulo: Ed. Rios, 1986; ENG. João Teixeira Soares. Engenharia, São Paulo: Instituto de Engenharia, v. 7, n. 74, p. 53-54, out. 1948; Legislação federal brasileira (leis e decretos), disponível em: e ; QUEIROZ, Paulo R. Cimó. As curvas do trem e os meandros do poder: o nascimento da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1904-1908). Campo Grande: Ed. UFMS, 1997. 163 p.; QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F. Noroeste do Brasil na primeira metade do século 20. Bauru: Edusc; Campo Grande: Ed. UFMS, 2004; RELATÓRIO da diretoria da Companhia E. F. Noroeste do Brazil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 11 de junho de 1906. Rio de Janeiro: Typ. de Heitor Ribeiro & C., 1906; RELATÓRIO da diretoria da Companhia E. F. Noroeste do Brasil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 14 de agosto de 1907. Rio de Janeiro: Typ. do “Jornal do Commercio”, de Rodrigues & C., 1907; RELATÓRIO da diretoria da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brazil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 16 de outubro de 1911. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1911; RELATÓRIO da diretoria [da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil referente ao ano de 1916]. São Paulo: Estab. Graphico “Universal”, 1917, 119 p.; STOLS, Eddy. Présences belges et luxembourgeoises dans la modernisation et l’industrialisation du Brésil (1830-1940). In: DE PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan (ed.). Brasil: cultures and economies of four continents – cultures et economies de quatre continents. Leuven: Uitjeverij Acco, 2001, p. 121-164; TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia ferroviária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Notícia & Cia., 2011.

nas”. Não me foi possível, até o momento, identificar claramente a nacionalidade de nenhum desses personagens, nem de outros que, ao longo dos anos seguintes, aparecem como dirigentes ou acionistas da Cia., como Gaston Hamelin, Jean Jourdan, Parmentier, J. Bartholomé, George Prévault, Charles Rau, Léon Maître e Hubert Laroze. Contudo, levando em conta os resultados que obtive em buscas pela internet, inclino-me a dizer que se tratava, na maioria, de cidadãos franceses – o que contribuiria para confirmar a observação de Fernando de Azevedo, segundo a qual a Cia. EFNOB foi formada por “capitais mistos, brasileiro e franco-belga”. Paulo Roberto Cimó Queiroz, Doutor em História pela Universidade de São Paulo, com estágio de pós-doutoramento na Universidade Federal Fluminense. É Professor Associado da Universidade Federal da Grande Dourados (Mato Grosso do Sul) como docente e orientador nos cursos de graduação e pós-graduação em História (Mestrado e Doutorado).

Referências Atas de assembleias e relatórios da diretoria da empresa, publicados no Diário Oficial da União, disponíveis em: ; AZEVEDO, Fernando de. Um trem

Um lugar belga em Pernambuco: a cidade industrial da Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A. Jean Suettinni

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sociedade anônima Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A. (SCBB) foi fundada na cidade de Anvers (Antuérpia), no norte da Bélgica, em 23 de fevereiro de 1907, pelo Groupe LADM em acordo firmado com as empresas Fry Miers & Co., Nathan & Co. e com o consorciado delas no Brasil, o industrial pernambucano João de Hollanda Vasconcellos. O Groupe LADM era composto por industriais e financistas das cidades de Liège, Anvers, Deurne e Malines (Mechelen), que eram proprietários de fábricas do setor têxtil na Bélgica, além de serem acionistas de indústrias localizadas em outros países do Noroeste europeu e na Rússia (Société Cotonnière Belge-Brésilienne, 1907, p. 3-11). A sociedade anônima SCBB foi criada para estabelecer uma cidade industrial com fábrica especializada em tecidos de algodão localizada no Estado de Pernambuco, no Nordeste do Brasil, especificamente na área circunvizinha da metrópole de Recife que, em função do porto, constituía a quinta localidade mais industrializada do país, possuindo atrativos ambientais, infraestruturais e econômicos para o investimento do capital industrial europeu. Esse empreendimento desenvolveu-se durante o processo de urbanização industrial europeia que ocorreu em outros continentes.

A sociedade anônima SCBB instituiu o Conselho de Anvers como responsável para gerir a construção da cidade industrial belga em Pernambuco e a administração efetiva do empreendimento, representando todos os acionistas na estrutura jurídico-societária estabelecida. O Conselho de Anvers nomeou o brasileiro João de Hollanda Vasconcellos como procurador da sociedade anônima SCBB no Brasil para implantar jurídico-administrativamente a fábrica têxtil belga, atendendo as exigências dos ministérios no Rio de Janeiro (capital da República na época) e agilizando a implantação da cidade industrial em Pernambuco. Em 29 de novembro de 1907, a sociedade anônima SCBB comprou o engenho de açúcar São Sebastião localizado no vale do Rio Jaboatão, na região fisiográfica de mata atlântica, a 28 km da cidade do Recife, e, assim, foi iniciada a construção da cidade industrial belga. A propriedade adquirida, originada do sistema de plantation da cana-de-açúcar, era servida por eficiente sistema viário com a intersecção da rodovia Estrada Real com a estrada de ferro da Great Western of Brazil Railway Company Limited (que possuía uma estação ferroviária). Essas vias ligavam o porto do Recife até o extremo oeste de Pernambuco, atravessando extensa zona rural (Suettinni, 2011, p. 59-64). Os engenheiros-arquitetos belgas Fernand Selvais e Pieter

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empresas belgas no brasil

Gruschke foram os responsáveis pelo projeto urbanístico da cidade industrial da SCBB, com a colaboração administrativa do superintendente da sociedade anônima no Brasil, o industrial Wilhelm Bauer, natural da cidade de Malines, que foi nomeado pelo Conselho de Anvers. A edificação da cidade belga em um antigo engenho de açúcar norteou uma nova lógica socioespacial para a localidade, instituindo assim o efetivo aproveitamento da mão de obra campesina, ora ociosa (por conta da falência da agroindústria do açúcar), que foi especializada para ocupar as funções de oleiro, pedreiro e posteriormente de operário (Bauer, 1915, p. 5, 18-32). A implantação da cidade industrial da SCBB foi delineada aproveitando-se a espacialidade do engenho São Sebastião quanto à infraestrutura de vias (a Estrada Real e a Ferrovia Recife-Vitória de Santo Antão), os recursos naturais (o Rio Jaboatão, as matas nativas e o solo) e a situação locacional caracterizada por uma topografia de colinas. Na estrutura espacial do engenho evidenciou-se um processo de desmanche com o plantio de 2 milhões de mudas de eucalipto (nas áreas de cana-de-açúcar), a reutilização dos edifícios singulares (casa-grande, capela, senzala, conjunto do cemitério e outros prédios rurais) e o aproveitamento do traçado viário com as novas edificações localizadas às margens da Estrada Real formando alamedas (apresentando paisagismo arbóreo de flamboyants e castanholas). Assim, o traçado ortogonal do lugar belga, com tendência à espontaneidade da topografia íngreme, foi delineado por um cinturão verde circundante, com a primeira secção de floresta de eucaliptos e a segunda de mata atlântica, demarcando o fim do perímetro urbano em meio a um território entremeado de engenhos de açúcar, canaviais e extensas áreas de vegetação nativa (Suettinni, op. cit., p. 66-72, 74-77). O projeto urbanístico foi efetivado no platô a partir da centralidade do edifício da fábrica têxtil e localizado estrategicamente próximo à estação ferroviária. Nessa área central foram dispostos os prédios de apoio técnico, a termoelétrica, as lojas de comércio e serviços, a praça da feira, as 12 vilas operárias, o conjunto de chalés de diretores e técnicos, uma Villa Belge como casa da superintendência, as duas escolas, o posto de saúde, o campo de futebol, a pista de patinação e outros edifícios e logradouros públicos (compondo as alamedas ou formando arruamentos paralelos). A fábrica têxtil era circundada por um anel de trilhos que, através de um ramal, estava ligado à estação ferroviária para facilitar a logística da cadeia produtiva (Selvais, 1921, p. 19-78). A primeira fase do projeto da Cidade Industrial da SCBB deu-se entre 1910 e 1915, com a inauguração e o funcionamento efetivo da fábrica têxtil, que abrigou mais de 3.000 operários, oriundos da área de entorno de Recife, e de várias localidades do Nordeste do Brasil, como também 123 executivos e técnicos belgas imigraram com suas famílias para residir no “Lugar Belga” em Pernambuco. Nessa fase, o advento da I Guerra Mundial na Europa impediu que o projeto urbanístico final fosse concluído em prol do efetivo funcionamento da fábrica têxtil da SCBB no Brasil (Jean, op. cit., p. 35-40).

Entre 1920 e 1933 deu-se a expansão do projeto da cidade industrial da SCBB, pois, devido à crescente demanda de operários, uma quantidade significativa de intervenções urbanísticas foi acrescida à tessitura urbana em benefício da funcionalidade da fábrica têxtil e da reprodução socioespacial. Para isso, uma missão de engenheiros e arquitetos belgas, sob a direção de Pieter Gruschke, planejou o crescimento urbano da localidade. Foram construídas 36 vilas residenciais que triplicaram a oferta de moradia na cidade industrial, com destaque para a Villa Saint-Nicolas-Waes, com 17 casas em estilo “La Maison Flamande”, em bloco de fileira e com fachadas em tijolos aparentes. Assim foi expandida a composição das alamedas e dos arruamentos paralelos a partir da linearidade da rodovia (Gruschke, 1948, p. 29, 55-73). Outros edifícios singulares e equipamentos coletivos foram construídos, sendo as principais obras o Mercado Central (1922), a Praça das Bandeiras (1923) com morfologia em uma cruz celta, apresentando projeto paisagístico arbóreo de fícus e pinheiros, e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição (1930) com a fachada inspirada na L’église Notre-Dame-de-l’Immaculée-Conception de Liège. Quanto à infraestrutura, as principais obras foram a ampliação do anel ferroviário interno da fábrica têxtil, o calçamento em paralelepípedo de alamedas e ruas e a implantação da rede elétrica e do sistema de esgoto que beneficiou todos os operários do lugar belga (Suettinni, op. cit., p. 85, 88-94). Desse modo, com a finalização do projeto urbanístico, a cidade industrial da SCBB aumentou a autossuficiência econômico-espacial e, paralelamente, passou a ser denominada e reconhecida por belgas e brasileiros como Nouvelle-Anvers. Com o passar dos anos, foi acrescida à tessitura da cidade industrial belga a construção de outras vilas operárias, equipamentos coletivos e edifícios singulares, com a manutenção efetiva que a sociedade anônima realizava no ambiente construído, como no serviço de recolhimento de lixo realizado pela intendência da cidade industrial. Com a II Guerra Mundial (1939-1945), a sociedade anônima SCBB perdeu os seus contatos com Anvers, mas manteve-se como empresa estrangeira no Brasil com os produtos da fábrica têxtil sendo exportados para os Estados Unidos e o Canadá, como também atendendo ao mercado interno. E em 1950 a sociedade anônima conseguiu concluir a edificação e instalação da indústria subsidiária da fábrica têxtil, a Tissage Wallonie-Flandre Et Cie. (Société Cotonnière Belge-Brésilienne, 1966, p. 18, 43-67). Por conseguinte, a situação do pós-guerra na Europa, mesmo com a salvaguarda do Plano Marshall, e a crise da safra de algodão no Nordeste brasileiro, que afetou o setor da indústria têxtil, afora o incentivo para que a industrialização local fosse centralizada no Sudeste do país, fez com que a sociedade anônima SCBB encerrasse as atividades no Brasil em 1966 e, assim, repassasse as ações dela para um grupo local, com participação acionária de dois executivos da SCBB apenas, denominado Brasil-Belgo Union. Jean Suettinni é Mestre em Projeto da Cidade e da Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU)

Implantação da cidade industrial da SCBB.

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do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Urbanista e historiador (B.Sc.) pela UFPE; presidente-fundador do Instituto de Estudos Históricos Belgo-Brasileiros; organizador/pesquisador e detentor dos Direitos Documentais do Acervo da SCBB/Groupe LADM no Brasil e na América Latina.

BAUER, Wilhelm. Rapport au Conseil  d’Anvers (1907-1917). S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1917. SELVAIS, Fernand. Rapport au Conseil Général du S. C. B. B. (1907-1920). LADM / S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1921. Gruschke, Peter. Rapport au Conseil  d’Anvers (1920-1948) ). LADM / S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1949. SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Rapport de Monsieur Charles De Vocht au conseil général du S. C. B. B. LADM / S.C.B.B.: Anvers, 1966. Suettinni, Jean. Um Lugar Belga em Pernambuco: o Núcleo Fabril da Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A. (1907 – 1966). Tese de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob a orientação da PhD. Dra. Lúcia Leitão. Recife: MDU/DEAU/UFPE, 2011.

Referências SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Statut Général. LADM / S.C.B.B.: Anvers, 1907.

A Solvay chega ao Brasil e abre as portas para a América do Sul

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013, ano em que comemora seu 150º aniversário de fundação e a apenas três para celebrar os 75 anos de chegada ao Brasil, o grupo químico internacional belga, denominado Solvay S.A., reitera sua estratégia de crescimento fortemente baseada nos pilares da sustentabilidade. A empresa encontra-se engajada para enfrentar de forma inovadora, e baseada na excelência operacional, os desafios do presente e aqueles que terão de ser superados no futuro. Essa linha-mestra de atuação tem origem nos ideais que nortearam a vida pessoal e profissional de Ernest Solvay, que, em conjunto com seu irmão Alfred, fundou a Solvay & Cie em 1863. Ernest sempre pautou suas atividades em conformidade com a filosofia social progressista. Exemplos desta forma de pensar e agir permearam seus passos, inclusive como empregador. Antes mesmo de ser obrigado por lei, estabeleceu para seus funcionários um sistema de seguro social, implementou plano de aposentadoria em 1878, jornada de 8 horas em 1897 e férias pagas em 1913. Tudo isso no auge do segundo período da Revolução Industrial, quando as condições de trabalho eram insalubres e submetiam os empregados às piores situações já experimentadas desde a escravidão. Ernest não se restringiu aos muros de seus empreendimentos. Dedicou olhar especial à sociedade, e fundou várias bases científicas, filantrópicas e de caridade, incluindo o Instituto de Fisiologia (1895) e de Sociologia (1901), bem como a prestigiada Escola de Comércio Solvay (1903). A Biblioteca Solvay e o edifício que a abriga também foram obras financiadas por Ernest Solvay e doada à comunidade. O prédio foi originalmente construído para o Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas. A paixão primordial pela ciência impulsionou Ernest a expressá-la de forma ampla em 1911, ao agregar em Bruxelas a maioria dos mundialmente famosos físicos e químicos da época. Entre os participantes, Marie Curie, Albert Einstein, Max Planck, Ernest Rutherford, Henri Poincaré e Maurice de Broglie. Foi a partir desse encontro que nasceu o Conselho Internacional de Física e Química da Solvay, que ainda se mantém atuante.

Também conhecido por Instituto de Física e Química Solvay, esta entidade possui como atividade central a organização das reuniões do Conselho e a concessão de apoio às pesquisas realizadas pelos cientistas filiados. Em 1940, a ocupação da Bélgica pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial foi definitiva para que a Solvay decidisse estabelecer no Brasil os mesmos ideais que já a conduziam em solos da Europa, no Leste Europeu. Além de um complexo industrial, a Solvay contribuiu também para criar no país uma comunidade de trabalho, prosperidade, solidariedade e respeito mútuos. E foi por intermédio desta linha de atuação cidadã que no século passado, entre as décadas de 1930 e 1940, a empreendedora família contrapôs-se aos contextos de depressão financeira e bélica, que dominavam inúmeros países e dizimavam incontáveis empresas e seres humanos, e seguiu em frente com os ideais de seu patriarca Ernest Solvay. Sem render-se aos obstáculos históricos, optou por utilizar as temáticas de expansão e hegemonia geográfica de forma positiva e com vistas ao progresso da humanidade. A primeira empresa do Grupo Solvay em solo brasileiro foi a Indústrias Químicas Eletro Cloro, que, apesar de legalmente constituída em 1941, viu-se obrigada a protelar a construção da fábrica, e da vila para seus operários, devido às dificuldades causadas pela guerra para o envio de recursos. O local escolhido para a instalação do complexo industrial foi o quilômetro 38 da Ferrovia Santos-Jundiaí, no município de Santo André, região metropolitana de São Paulo. Ali, a Solvay semeou tecnologia, aprendeu a ser brasileira e abriu as portas para sua atuação na América do Sul. Cercada pela Mata Atlântica em terreno de 7 milhões de metros quadrados, cortada pelo Rio Grande, pela estrada de ferro e estrategicamente próxima ao Porto de Santos, da Estrada Caminho do Mar e da Via Anchieta – que à época se encontrava em construção –, a Solvay ergueu a Indústrias Químicas Eletro Cloro S.A. e a Vila Elclor. Pelo litoral paulista a empresa recebia as matérias-primas sal e energia elétrica para o processo de eletrólise. A eletricidade era

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Vista parcial da Solvay Indupa em Santo André. Ao fundo, instalações fabris, 1947.

fornecida pela Light & Power através da usina de Cubatão. E assim garantia-se a produção de cloro e soda cáustica. Em 1945, a Solvay lançou a pedra fundamental da fábrica e na sequência iniciou a terraplenagem. O período coincidiu com a desativação de vários canteiros de obras de outro grande empreendimento na mesma região, a construção da Rodovia Anchieta, que liga a capital paulista a Santos. Os trabalhadores aos poucos foram migrando para a construção da Indústrias Químicas Eletro Cloro. E os bons ventos sopraram a favor da Solvay, pois essa mão de obra estava habituada ao clima úmido e a então hostil região da Mata Atlântica. A inauguração foi em 16 de julho de 1946, um dia com clima bastante comum ao local: nublado. A produção inicial era de cerca de 1 tonelada de cloro por dia. E, não demorou muito para que a empresa belga começasse a confiar a brasileiros natos postos de comando dentro da organização. O primeiro a assumir como chefe de produção foi o engenheiro Leonel Luciano, formado pelo Instituto Mackenzie de São Paulo. Ingressou na Eletro Cloro em 1956 e lá permaneceu até 1991. Durante esse período, fez especialização no exterior e se destacou em sua área de atuação. A partir do start-up da Eletro Cloro, gradativamente a Solvay passou a desbravar outras fronteiras territoriais e de atuação industrial dentro do Brasil. Adquiriu o controle acionário da Enisa (Empresa Salineira e de Navegação Igoronhon S.A.), localizada em um complexo de ilhas (Caieira, Garça, Beirada Funda, Enforcado, Igoronhon e Carrapato) no Estado do Maranhão. Em Minas Gerais, comprou a CBCC (Companhia Brasileira de Carbureto de Cálcio), situada no município de Santos Dumont. Outra empresa agregada foi a Malharia Industrial do Nordeste, no Distrito Industrial de Paulista, cidade a 20 km de Recife, Pernambuco. Também fez parte das aquisições a Plavinil, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, capital. A Peróxidos do Brasil integrou-se ao rol de negócios no qual a Solvay passou a atuar; e neste caso com o caráter de joint venture, com a brasileira Produtos Químicos Makay. Já o início das atividades no setor veterinário se deu com a aquisição da Salsbury Laboratórios Ltda., em Campinas, no Estado de São Paulo, cidade dotada de

Cerimônia na Solvay Indupa em 1948 com a presença do prefeito de Santo André, Antonio Flaquer, e comitiva.

renomadas universidades e importante polo de pesquisa e inovação no Brasil. Esta preocupação de se estabelecer próxima ao setor acadêmico para a promoção da cultura do saber sempre permeou as relações da Solvay com a comunidade. No Brasil não foi diferente. E a Educação merece um capítulo à parte dentro da história do Grupo no País. Desde sua fundação, a Solvay aporta capital expressivo para o desenvolvimento de seus empregados e da comunidade em geral. Faz parte da política de Relações Humanas (RH) do Grupo o financiamento parcial de estudos que visem o aprimoramento profissional dos empregados. Localmente, o primeiro grande projeto educacional nasceu junto com a Vila Elclor, por intermédio do estabelecimento legal de uma escola de ensino fundamental para os filhos dos funcionários, cujas vagas remanescentes eram disputadas pela comunidade, devido ao reconhecimento da qualidade do ensino. Ano após ano, a disputa por uma das bolsas de estudo destinada a estagiários de diferentes campos de atuação científica é acirrada. Por meio dos estágios, a empresa permite que jovens testem na prática supervisionada os ensinamentos teóricos de cursos técnicos e superiores, oferecendo-lhes o primeiro contato real com o mundo industrial e corporativo. Em 2013, as bolsas de estágio, formalmente estabelecidas com instituições de ensinos superior e técnico, atenderam a 250 jovens estudantes brasileiros. Mundialmente, todas as empresas Solvay também são orientadas a analisar as solicitações de apoios ou patrocínios primeiramente pelo ângulo educacional do projeto, de acordo com o tripé social do Desenvolvimento Sustentável. Esta regra é válida inclusive para os programas sociais próprios, desenvolvidos com as comunidades vizinhas às fábricas. Esta determinação segue em linha com uma das paixões expressas por Ernest Solvay, que ansiava pela disseminação do conhecimento e de sua disponibilidade no apoio às pesquisas em todos os campos da ciência.

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Vista aérea da planta industrial da Solvay Indupa de Santo André.

Justamente essa ampla visão voltada à aquisição de conhecimento e de constante aprimoramento de suas competências sociais e fabris levou a Solvay a ousar na diversificação de portfólio e de atuação industrial na década de 1980. Já no limiar de 1990, resolveu rebatizar a Eletro Cloro como parte de sua estratégia de reconhecimento à boa acolhida em solo brasileiro. A empresa passou a denominar-se Solvay do Brasil S.A. A Solvay S.A., na Bélgica, realizou vários ajustes e reorientação de atuação nos anos 1990. Essas alterações atingiram os negócios locais. Foi a partir do know-how adquirido na fábrica de Santo André que o Grupo resolveu explorar os mercados da América do Sul por intermédio da aquisição, em 1996, de 51% das ações da Indupa S.A.I.C., na Argentina, pioneira no setor petroquímico daquele país. No mesmo ano, ainda em terras argentinas, foi criada a Solvay Automotive Argentina. Os anos 2000 também foram bastante férteis para a Solvay. Marca sua entrada local no segmento de saúde humana com a compra dos Laboratórios Sintofarma, em Taboão da Serra, São

Paulo, que passou a se chamar Solvay Farma. Nessa mesma década, o Grupo Solvay forma, no município de Osasco, região metropolitana de São Paulo, a Dacarto Benvic, no sistema de joint venture (50%-50%) com a Dacarto S.A. Indústrias de Plásticos, para atuar no segmento de compostos de PVC. Desde o início de operação da antiga Eletro Cloro, em 1946, o Brasil sempre esteve no foco das estratégias de crescimento da Solvay. Esse ponto de vista se fortaleceu em 2011, quando adquiriu 100% da francesa Rhodia. Localmente, foram agregados ao Grupo cinco unidades industriais e um centro de Pesquisa e Desenvolvimento, situados no Estado de São Paulo. Também se integraram à carteira da Solvay no País os negócios de aroma performance, fibras industriais e têxteis, energia renovável, plásticos de engenharia, poliamida e intermediários, sílica, solventes e a área que atua nos mercados de produtos de alto desempenho para uma ampla variedade de indústrias, incluindo as de cosméticos, produtos de limpeza, agroquímicos e óleo, assim como para aplicações industriais. O Grupo Solvay emprega hoje cerca de 3.000 funcionários.

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empresas belgas no brasil

Junto com o legado da francesa Rhodia no Brasil, a Solvay recebeu ainda o Instituto de mesmo nome, entidade sem fins lucrativos que atua em projetos sociais ligados à educação complementar, atendendo adolescentes e jovens de baixa renda, de 12 a 24 anos, nas comunidades onde a empresa tem atuação industrial e ou comercial. Em reconhecimento à força da marca localmente, o Brasil foi o único país que manteve o nome Rhodia após recente alinhamento mundial de branding, que incluiu a reestruturação da logomarca do Grupo. As sinergias entre os dois legados são maiores do que as diferenças, o que facilita a condução dos negócios em nível mundial. O futuro do Grupo Solvay no Brasil também já está traçado e ali-

nhado à estratégia global, dentro do programa denominado Solvay Way, fortemente ancorado no incentivo à inovação para o fornecimento de produtos que atendam aos desafios do desenvolvimento sustentável. Esse programa começou a ser implantado em 2013 em todas as empresas do grupo, e esta abordagem já integra os planos estratégicos de cada um dos negócios. Dessa forma, a Solvay segue rumo aos próximos 150 anos ciente de seu papel como empregador responsável e uma empresa com atuação cidadã, que enxerga em cada um de seus stakeholders a possibilidade de juntos continuarem a construção de um mundo mais igualitário e melhor para todos. Assim como em 1863 já pensava e agia Ernest Solvay.

Tractebel Energia

O

compromisso com a busca do desenvolvimento sustentável acompanha a Tractebel Energia desde sua criação, em 1998, data do início de suas atividades no Brasil sob controle da Tractebel, com sede na Bélgica. Acreditando no potencial de crescimento do Brasil, o grupo GDF SUEZ, atual controlador da empresa, trouxe sua experiência adquirida em mais de um século de atuação no desenvolvimento de soluções sustentáveis e inovadoras para os setores de água, energia e gestão de resíduos. Com sede em Florianópolis, Santa Catarina, a Tractebel Energia é a maior geradora privada de energia do Brasil. Empregando diretamente pouco mais de mil pessoas, está presente em 12 Estados, nas cinco regiões do País, onde opera 22 usinas, entre hidrelétricas, termelétricas e complementares (eólicas, a biomassa e pequenas centrais hidrelétricas). Juntos, em 2012 esses empreendimentos somavam 8.630 MW de capacidade instalada, o equivalente a cerca de 7% do total de energia consumida no Brasil.

Desta capacidade instalada, aproximadamente 80% é proveniente de fontes renováveis: água, vento e biomassa. E praticamente todo o seu parque gerador tem sua gestão certificada segundo as normas NBR ISO 9001 (Qualidade), NBR ISO 14001 (Meio Ambiente) e OHSAS 18001 (Saúde e Segurança do Trabalho). Isso confirma o compromisso da Tractebel Energia de atuar de forma sustentável, equilibrando crescimento econômico com conservação ambiental e avanços sociais. Essa premissa reflete os valores que a empresa compartilha com o seu controlador, o grupo GDF SUEZ, com sede na França, e maior produtor independente de energia do mundo, presente em 100 países. Alinhada às políticas do grupo GDF SUEZ, a Tractebel Energia faz do respeito ao meio ambiente um valor fundamental à conduta dos negócios. Assim, a gestão ambiental realizada pela Companhia, tanto nos empreendimentos em operação quanto naqueles em fase de implantação, tem como base a identificação, a

Geração de energia de biomassa; a Tractebel Energia é a maior geradora privada de energia do Brasil, está presente em 12 Estados e opera 22 usinas, entre hidrelétricas, termelétricas e complementares.

Geração de energia eólica; em 2012 as usinas da Tractebel somavam 8.630 MW de capacidade instalada, o equivalente a cerca de 7% do total de energia consumida no Brasil.

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Geração de energia por hidrelétricas; a Tractebel Energia foi criada em 1998 sob controle da Tractebel, com sede na Bélgica.

prevenção e a mitigação de possíveis impactos causados ao meio ambiente em função de suas atividades. Para isso, a Tractebel desenvolve uma série de programas e projetos focados na melhoria ambiental das regiões onde está inserida, o que inclui a proteção de nascentes, a conservação da flora e da fauna, a educação ambiental, o investimento em fontes renováveis e o combate ao aquecimento global, entre outras ações.

nas. A infraestrutura oferecida à comunidade conta com anfiteatro para 150 pessoas, salas para oficinas de inclusão digital, cursos de capacitação, biblioteca, museu e espaço para exposições. Assim, propicia o intercâmbio de companhias de dança, teatro, música e outras manifestações artístico-culturais de diversas regiões do Brasil. Também participa do desenvolvimento cultural das comunidades com o apoio a projetos de inciativas locais, contemplando manifestações tais como cinema, música, teatro, dança e literatura. Além disso, apoia ações voltadas à inclusão social, geração de emprego e renda, educação, promoção da saúde e erradicação da miséria.

Parceria com a comunidade Por meio de parcerias com agentes locais, a Companhia busca colaborar de forma decisiva com o desenvolvimento humano das comunidades situadas no entorno de seus empreendimentos, engajando-se em ações voltadas à qualidade de vida, à valorização cultural e à conquista da cidadania. Exemplo disso são os centros de cultura, uma das ações sociais patrocinadas pela Companhia nos últimos anos. Implantados em cidades de pequeno porte, esses centros têm como objetivo criar um importante vínculo entre as memórias étnicas e culturais da comunidade local e a construção de um futuro no qual as pessoas tenham mais oportunidades de preservar suas tradições e de conquistar cidadania por meio do acesso à cultura e à educação. O primeiro projeto nesse sentido foi inaugurado em 2011, no município de Entre Rios do Sul, no Rio Grande do Sul, com pouco mais de 3 mil habitantes e localizado na área de influência da Usina Hidrelétrica Passo Fundo. Desde que começou a funcionar, este Centro já recebeu cerca de 20 mil visitantes, tanto para assistir a espetáculos e exposições quanto para participar de cursos e ofici-

Criação de valor A postura empresarial diferenciada em relação à sustentabilidade, somada a boas práticas de governança corporativa, conferem credibilidade e solidez à Tractebel Energia no mercado. A Companhia faz parte do Novo Mercado e integra o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da BM&F Bovespa desde 2005 – ano de criação do ISE. Na última década, a Tractebel Energia vem alcançando ótimos resultados, e suas ações registraram valorização ascendente. Uma prova de que a opção pela sustentabilidade garante o bom desempenho econômico-financeiro de uma organização. E assim, aliando os valores trazidos da França e da Bélgica por seus controladores ao potencial local e à cultura brasileira, a Tractebel Energia mantém seu compromisso com a construção de um Brasil cada vez melhor.

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empresas belgas no brasil

DEME: uma empresa de engenharia marinha com 150 anos de experiência mundial

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DEME (Dredging, Environmental & Marine Engineering) foi estabelecida como uma sociedade de participação em abril de 1991, mas suas raízes remontam ao século 19. As origens da DEME estão embutidas na Flandres, que tem uma longa competência de engenharia hidráulica na construção de diques, na luta contra as inundações, no aprofundamento do acesso marítimo e na construção de portos. A DEME foi criada como sociedade de participação de duas empreiteiras de dragagem belgas: Dredging International e Baggerwerken Decloedt. Dois grupos industriais e financeiros atual­ mente controlam o capital de participação: Ackermans & van Haaren, um grupo de investimento industrial baseado em Antuérpia e cotado na bolsa; e a CFE, uma empreiteira civil cotada na bolsa, controlada pelo grupo francês Vinci. A experiência da DEME no Brasil remonta ao início do século 20, quando a Ackermans estava envolvida nos trabalhos de extensão no porto do Rio Grande do Sul, em 1908. Mais recentemente, o grupo está ativamente presente no mercado brasileiro desde 2006, momento em que o mercado de dragagem foi aberto novamente para empresas estrangeiras. O Grupo DEME criou uma companhia brasileira local em 2006, a Dragabras Serviços de Dragagem ­Ltda., para todas as suas atividades no Brasil. A DEME esteve envolvida em diferentes projetos de grande escala de dragagem no Brasil, tanto para clientes públicos como para privados: realizou trabalhos de dragagem e de aterro hidráulico para a construção da Usina Siderúrgica da Thyssen Krupp CSA, na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro (2006-2008); a dragagem de aprofundamento do canal de acesso ao porto de Itaguaí,

Drenagem de aprofundamento da seção 5 do canal de acesso ao porto de Itaguaí, Baía de Sepetiba, Rio de Janeiro.

localizado na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro (2008-2009); a dragagem para o aprofundamento da seção 5 do canal de acesso do porto de Itaguaí, incluindo o aprofundamento do acesso ao porto da ThyssenKrupp CSA (2010-2011); a dragagem de manutenção no terminal de Ponta da Madeira para a Vale, em São Luiz (MA) (2010), e os trabalhos de dragagem de capital no porto de Tubarão para a Vale (2011). Pequenos trabalhos de dragagem de manutenção foram executados nos últimos anos nos portos do Rio de Janeiro, de Imbituba, Santos e São Francisco do Sul. Como resultado da descoberta de grandes campos de petróleo, o governo brasileiro e o setor privado estão investindo enormes quantias em infraestrutura e nos portos. Isto leva a muitos projetos e diversas oportunidades para os próximos anos.

Grupo Jan De Nul

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essoas e embarcações, essa é a força motriz do grupo belga Jan De Nul. Graças à dedicação de nossos funcionários e de nossa frota ultramoderna, o Grupo Jan De Nul se mantém no topo da indústria de dragagem mundial. Além da dragagem de manutenção e de aprofundamento, o grupo possui um departamento de construção civil e uma divisão de meio ambiente que dão suporte e possibilitam a ampla gama de serviços do grupo. Esses são os três pilares que nos permitem realizar projetos em ampla escala, atendendo as expectativas de nossos clientes. Sejam esses projetos a Palm Island, em Dubai, o novo conjunto de eclusas no Panamá, a manutenção de rios na Argentina, novos complexos portuários na Austrália, a maior fábri-

ca de tratamento de esgoto da Europa ou a instalação de pedras a 2.000 metros de profundidade. Desde a abertura do mercado de dragagem no Brasil, em 2007, a Jan De Nul do Brasil Dragagem Ltda. – empresa 100% controlada pelo Grupo Jan De Nul – tomou a frente do mercado. Planos de investimento sem precedentes vêm sendo elaborados, tanto no setor público quanto no setor privado. Obras de Aprofundamento: Barra do Riacho (Portocel/Petrobras – 2007), Rio Grande (SEP/SUPRG – 2009/2012), Salvador/Aratu (SEP/Dias Branco – 2010), Itaguaí (LLX/Odebrecht – 2011/2012), Itajaí (SEP – 2011), Vitória (Vale – 2012) e Paraguaçu (EEP – 2012/2013);

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Draga de sucção autotransportadora Cristobal Colon, que, com seus 46.000m³, é a maior draga do mundo, adentrando o porto do Rio de Janeiro, 2011.

Obras de Aterro: Açu (LLX – 2011) e Itaguaí (Odebrecht – 2011/2012); Dragagem de Manutenção: Rio Grande (SUPRG – 2012), São Luís (Vale – 2012/2015); Aprofundamento e Serviços Ambientais: Santos (Embraport – 2012/2013).

O Grupo Jan De Nul continua fortalecendo sua atuação no Brasil, trazendo equipamentos de última geração e treinando funcionários brasileiros para que atinjam alto nível de qualificação. Assim sendo, o Grupo Jan De Nul continua evoluindo com o Brasil, criando o mundo do amanhã.

Katoen Natie: Mais de 15 anos de prestação de serviços logísticos no Brasil

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atoen Natie foi fundada em 1854 em Antuérpia por quatro companheiros de trabalho. Sua primeira atividade consistia no recebimento do algodão. Cada navio descarregado no porto por seu capitão e tripulação era assistido por estivadores recrutados localmente. Quando o guindaste colocava as mercadorias no cais, estas eram recebidas pelos associados. Estes trabalhavam

por comissão para os compradores de mercadorias. A Katoen Natie (Associação Algodoeira), em seus primórdios, trabalhava para o setor de processamento de algodão e recebia os fardos, além de manejar a armazenagem, pesagem, amostragem e distribuição. Ela rapidamente diversificou seu produto e começou a receber outras mercadorias: juta, café, ferro, aço, frutas, tomates etc.

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empresas belgas no brasil

Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a organização deu início a novas atividades: armazenagem em seus próprios depósitos, transporte, expedição, declaração aduaneira. Nos anos 90, os serviços especializados para o setor automobilístico, químico e petroquímico e de grande distribuição foram agregados. Em 1995, a Katoen Natie investiu pela primeira vez no exterior, abrindo uma filial em Sarralbe (França). Depois disso, as atividades se expandiram para todas as partes do mundo. Atualmente, a Katoen Natie é uma empresa de porto mundial com operações em 27 países distribuídos por Europa, Oriente Médio, América do Norte, América do Sul, Ásia e África. Consiste de 400 unidades operacionais, com 150 terminais e plataformas de logística, com mais de 10.000 pessoas. A Katoen Natie atua no mundo inteiro. É uma empresa privada e não está listada no mercado de ações, de forma que as decisões são tomadas como parte de uma visão de longo prazo. Opera terminais portuários, centros de distribuição e operações on-site (in house). O grupo também fornece todos os tipos de serviços semi-industriais, projeta, desenvolve e administra plataformas de logística e cadeias de fornecimento completas. Em 1997 a Katoen Natie começou operações no Brasil a convite de um de seus clientes mundiais da indústria petroquímica. Um primeiro projeto de engenharia, inclusive de silos, linha de embalagem e armazém, foi realizado em Santo André, ao lado de

São Paulo. Em seguida, outros projetos de engenharia e operações in house foram executados para clientes petroquímicos brasileiros. O grande crescimento no Brasil foi alcançado com a compra de um prestador de serviços logísticos brasileiro, JOB, com sede em Camaçari, Salvador (BA). A primeira sede da Katoen Natie estava por consequência na Bahia. Katoen Natie cresceu para ser o líder do mercado de serviços logísticos para a indústria petroquímica no Brasil com atividades desde o Rio Grande do Sul até Alagoas, passando por Paraná, São Paulo, Rio do Janeiro e Bahia. A Katoen Natie já desenvolveu dois centros próprios de distribuição multimodais no Brasil: um em Paulínia, região de Campinas (SP) e um em Araucária, região de Curitiba (PR). O primeiro foi construído em 2001 e Paulínia foi escolhida como localização por ser o ponto de interconexão das maiores empresas concessionárias ferroviárias, oferecendo as duas bitolas aplicadas no Brasil. Esta plataforma logística de mais de 50.000 m² de armazéns e mais de 70 ha de terrenos funciona como Centro de Distribuição por clientes brasileiros e internacionais do ramo automotivo, industrial, de bens de consumo e petroquímico. Finalmente, a sede da Katoen Natie do Brasil foi transferida para Paulínia,de onde controla mais de 20 operações empregando mais de 850 pessoas. Com essa estrutura a Katoen Natie está preparada para oferecer uma solução logística para a economia brasileira numa fase de forte crescimento.

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empresas brasileiras na bélgica

A Compagnie Brésilienne des Tramways Eddy Stols

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andidata à primeira empresa brasileira atuando na Europa ocidental pode ser a Compagnie Brésilienne des Tramways, fundada no Rio de Janeiro com um capital de 1.200 contos de réis, ou seja, algo mais que três milhões de francos belgas, quantia de dinheiro mais do que respeitável (Cosaert e Delmelle). Representada em Bruxelas por dois homens de negócios belgas ativos no Rio de Janeiro, Ladislas Paridant e Louis Laureys, ela comprou em 1874 dos irmãos Becquet duas linhas de bondes existentes com tração hipomóvel e em dificuldades por causa do alto custo dos cavalos. Uma servia a Rue de la Loi, uma nova artéria ao lado do Parlamento belga, e a outra, a Tour du Boulevard, e ligava as duas estações do Norte e do Midi correndo parcialmente pela avenida circular. Na parte inclinada deste trajeto precisava-se de quatro cavalos, o que encarecia muito o preço da passagem. Sua frota consistia em 30 carros fechados, pintados de vermelho. A Brésilienne foi a primeira a introduzir, nos dias de bom tempo, carros abertos com bancos transversais, e chegou a ter dez desse tipo. Os cinco últimos a entrar em serviço levavam uma cor marrom, que lhes mereceu na boca do povo, o apelido de tram chocolat. Este conservou-se por muito tempo, mesmo depois que a Brésilienne, em dificuldades financeiras, foi absorvida em 1879 pelos Tramways Bruxellois.

Um carro aberto, com cortinas para proteger da chuva ou do sol, de 16 lugares, da ‘Compagnie brésilienne des tramways’ ou ‘Brésilienne’, fundada no Rio de Janeiro e que passou a operar em Bruxelas em 1874.

Referência É. Cosaert e Joseph Delmelle. Histoire des transports publics à Bruxelles. Bruxelas, 1976, t. 1, p. 83-140.

O Panorama da Baía e da Cidade do Rio de Janeiro Eddy Stols

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ma das primeiras empresas publicitárias foi a sociedade comanditária ‘Meirelles & Langerock’, que os pintores Vítor Meirelles e Henri Langerock, um paisagista belga ativo no Brasil desde 1885, registraram no Rio de Janeiro em 25 de junho de 1886 com capital de 150 contos de réis e duração de seis anos (Mello Junior e Coelho). Devia realizar um Panorama da Baía e Cidade do Rio de Janeiro para explorá-lo comercialmente em exposições

nas grandes cidades europeias, onde este tipo de espetáculo pago se popularizou como diversão pública. Enquadrava-se bem dentro da ofensiva de propaganda que o Brasil deslanchou nesses anos na Europa com publicações subsidiadas e participações nas grandes exposições. Mais de 30 proeminentes brasileiros subscreveram cotas tanto para apoiar a promoção de sua pátria quanto na expectativa de bons lucros.

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empresas brasileiras na bélgica

As dificuldades técnicas para trabalhar com uma tela de várias dezenas de metros de comprimento obrigaram Meirelles e Langerock a programar a realização do Panorama, a partir de estudos pintados no Rio de Janeiro, num grande espaço na Europa. Como Londres não tinha naquele momento uma rotunda disponível, decidiu-se por um ateliê em Ostende. Na escolha desta cidade belga influíram, além dos vínculos pessoais de Langerock, vários motivos. Suas confortáveis instalações balneárias podiam facilitar uma estada longa dos dois pintores por mais de um ano. Por estrada de ferro, tinha proximidade com Bruxelas, onde existia uma rotunda num boulevard da cidade. A Bélgica parecia uma boa alternativa para a Inglaterra em vista dos crescentes interesses econômicos brasileiros naquele país. O Brasil tinha participado com algum êxito da Exposição Universal de Antuérpia em 1885 e era representado naquela época por um dinâmico e bem relacionado diplomata, conde de Villeneuve. Em 4 de abril de 1888 abriu-se sua primeira exibição em Bruxelas na presença da rainha belga Marie-Henriette. Um folheto de 14 páginas, Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en Europe et à Bruxelles pour la première fois, impresso em Bruxelas, identificava o espetáculo em todos seus pormenores. Insistia muito na modernidade desta grande cidade e ousava comparações com a Europa, sem dúvida para impressionar e tranquilizar os investidores e acionistas europeus e os eventuais candidatos a emigração entre os artesãos e operários. Indicava assim a fumaça das quatro chaminés da fábrica de gás, que acabava de ser adquirida em 1886 por capitais belgas e que assegurava agora a iluminação noturna de toda a cidade. Esta, com 400.000 almas, ou 800.000 com os subúrbios incluídos, tinha um intenso tráfico de vapores a cada 15 minutos para Niterói, um serviço abundante de bondes com mais de 100.000 passageiros por dia, grandes reservatórios de água, ou seja, setores que podiam suscitar investimentos belgas. Seu status de capital econômica se evidenciava ainda nos grandes edifícios da Alfândega e dos Correios, na Bolsa em construção e nos bairros de Tijuca, com as residências dos homens de negócios estrangeiros, e de Santa Teresa, acessível com um trenzinho em plano inclinado. A abertura recente da Rua Senador Dantas, onde se podia ver a carroça do Imperador e os planos para arrasar os morros de Santo Antônio, do Castelo e do Senado, anunciavam um urbanismo ambicioso e as obras de saneamento. Destacavam-se as diversões públicas e a vida cultural: a praia de Icaraí, que oferecia banhos de mar tão bons como em Ostende ou Blankenberghe; os belos jardins com cascadas de São Cristovão; o Passeio Público, onde se davam concertos nas noites de bom tempo; a biblioteca do Gabinete Português de Leitura, em estilo manuelino, e o Teatro São Pedro, onde atuara recentemente Sarah Bernhardt. A subida por trem em 40 minutos ao Corcovado, muito procurado pelos turistas estrangeiros, já superava a mais famosa de Righi, na Suíça. Durante seis meses o Panorama atraiu cerca de 50.000 visitantes, em parte escolares com tarifa reduzida. Pode ter melhorado a imagem do Brasil e influído em diversas novas iniciativas belgas neste país nos anos seguintes. Deve também ter rendido um bom

dinheiro, o que provocou uma briga judicial entre os dois artistas. Langerock queria receber mais do que o estipulado. Já no folheto assinado por Meirelles, foi inserida, certamente a pedido do belga, uma nota esclarecendo que era obra de dois artistas e que ele tinha pintado a parte oriental. Langerock saiu da sociedade, ao passo que Meirelles levou a obra a Paris para instalá-la numa avenida perto da Exposição Universal de 1889. Se ganhou lá boas apreciações e uma medalha de ouro, pelo excesso de outros espetáculos e panoramas, não recebeu visitantes suficientes e os resultados financeiros não corresponderam às expectativas. Em falta de outras oportunidades na Europa, Meirelles transferiu a obra para o Rio de Janeiro. Numa rotunda construída no Largo do Paço Imperial, futura Praça XV, o Panorama foi inaugurado em 3 de janeiro de 1891 e ficou aberto pelo menos por dois anos, se bem que num período muito conturbado. A tentativa de Meirelles para incluí-lo na Exposição Colombiana de Chicago em 1892 malogrou. Como previsto no ato de fundação, a empresa foi dissolvida em 1893 com pagamento de dividendos aos sócios. A rotunda parece ter acolhido depois outras telas panorâmicas de Meirelles até que, em 1898, a prefeitura, que não devia apreciar muito este pintor do antigo regime imperial, mandou demolí-la. A tela do Panorama do Rio de Janeiro, de boa qualidade artística segundo os críticos da época, foi doada por Meirelles ao governo em 1902, mas, abandonada na Quinta da Boa Vista, desgastouse por completo. Somente os seis estudos preparatórios ficaram preservados no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Quase um século mais tarde apareceram novas empresas brasileiras na Bélgica. Pouco depois da chamativa Brasil Export em Bruxelas, em novembro de 1973, a Rio Doce Internacional, subsidiária da Cia. Vale do Rio Doce, abriu em 1974 um escritório em Bruxelas, dirigido por Eliezer Batista até sua volta, em 1979, à presidência da sede no Brasil. O Banco do Brasil abriu uma agência em Bruxelas em 1992. Se ambas empresas já deixaram a Bélgica, entrementes chegaram novas. Em 1992 a WEG, fabricante de motores e sistemas industriais elétricos, de Jaraguá do Sul, SC, estabeleceu-se em Nivelles. A Citrovita da Votorantim abriu, em 1993, em Antuérpia um terminal para a distribuição de suco de laranja, ampliado em 2008 para armazenar também outros produtos do grupo, celulose e metais. Sobretudo o porto de Gand viu crescer a presença brasileira para a distribuição de minérios e produtos do agronegócio. Depois da Citrosuco da Fischer, a ­Louis Dreyfus abriu seu próprio terminal para o suco de laranja em 2000. Em 2011 veio a Cia. Brasileira de Logística, de Curitiba, que armazena biodiesel, e em 2013 a JBS para a distribuição de carne. A Duratex instalou um centro de distribuição em Mechelen (Malines) em 2005. Bibliografia sobre o Panorama do Rio de Janeiro Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en Europe et à Bruxelles pour la première fois, Bruxelas, 1888; Mário César Coelho, Os panoramas perdidos de Victor Meirelles, Tese de doutorado em história UFSC, Florianópolis, 2007; Donato Mello Junior. O Panorama da Baía e Cidade do Rio de Janeiro, de Vítor Meireles de Lima. Mensário do Arquivo Nacional, XIII, 10, 1982, p. 336-346.

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parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Citrosuco: presente na Bélgica desde 1980

A

Citrosuco instalou-se na Bélgica em 1980, no porto de Gand, quando contratou os serviços da Citrus Coolstore NV para o serviço de armazenamento e distribuição na Europa do suco concentrado e congelado de laranja. A escolha recaiu sobre Gand devido à sua localização estratégica em relação aos mercados europeus e também porque, já em 1980, era considerado o porto “brasileiro” mais importante na Bélgica. Naquela época, Gand movimentava cerca de 3 milhões de toneladas de mercadorias originárias do Brasil, principalmente grãos, soja, minério de ferro, produtos metálicos, celulose e sucos de fruta. Para grande parte desses produtos, o porto de Gand ainda funciona como centro de distribuição para toda a Europa e mesmo para o Oriente Médio. Esse é o caso, por exemplo, do suco de laranja da Citrosuco. Para atender o contrato firmado com a Citrosuco, a Citrus Coolstore NV construiu um armazém frigorífico com capacidade para 21 mil toneladas de suco a granel e 40 mil tambores. O frigorífico ficou pronto em novembro de 1982 e com ele a Citrosuco assegurou então plena capacidade para garantir o abastecimento de suco de laranja aos mercados europeus. Estava pronto, assim, o sistema que permitiu à Citrosuco o transporte a granel de suco concentrado congelado desde as ­suas fábricas no Brasil até a Europa. Na viagem inaugural, o navio “Ouro do Brasil” saiu de Santos no dia 17 de novembro de 1982 com 9 mil toneladas de suco de laranja concentrado congelado. Por outro lado, a Citrovita – até então uma empresa do Grupo Votorantim e concorrente da Citrosuco – instalou-se também na região de Flandres na Bélgica em 1993, mais precisamente na cidade de Antuérpia, considerado o segundo maior porto da Europa. Na ocasião, a Citrovita operava juntamente com outras empresas do Grupo Votorantim, entre elas a Votorantim Celulose e Papel (VCP). A escolha por Antuérpia levou em conta o fato de que a região de Flandres era considerada o coração da Europa, e oferecia às empresas toda a infraestrutura, seja rodoviária, ferroviária ou marítima, interligando os grandes centros europeus. O terminal da Citrovita em Antuérpia possui capacidade para armazenar 33.200 toneladas de suco, em tanques totalmente au-

O navio ‘Sol do Brasil’ da Citrosuco fornece regularmente suco de laranja à Bélgica, 2012.

tomatizados. O cais possui cerca de 200 metros de comprimento, oferecendo total estrutura para o carregamento e descarregamento dos navios dedicados ao transporte de suco de laranja. Em 2010, a Citrosuco, empresa do Grupo Fischer, e a Citrovita, empresa do Grupo Votorantim, anunciaram sua fusão e a formação de uma joint venture 50/50 de seus negócios, tanto no Brasil como no exterior. Em maio de 2011, a fusão Citrosuco/Citrovita foi aprovada pela Comissão Europeia e, em dezembro de 2011, teve a aprovação do Cade, órgão brasileiro regulador. A partir de 2012, as duas empresas passaram a operar conjuntamente, coordenando as atividades de produção, logística terrestre, terminais, logística marítima e comercialização do suco de laranja no exterior. Surge, assim, uma nova empresa, que manteve o nome Citrosuco, com uma nova marca e posicionamento. A nova Citrosuco está presente na Bélgica em seus dois principais portos, Gand e Antuérpia, com dois terminais e cerca de 60 funcionários.

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astronomia e geologia

parte 4

Colaboração Científica

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parte 4 – colaboração científica

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astronomia e geologia

Louis Cruls e o Observatório Astronômico no Rio de Janeiro Christina Helena Barboza

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engenheiro e astrônomo Louis Ferdinand Cruls nasceu no dia 21 de janeiro de 1848, em Diest, cidade situada no lado flamengo da Bélgica. Filho de Philippe Augustin Guillaume Cruls e de Anne Elizabeth Jordens, Cruls completou os estudos superiores na Universidade de Gand, onde travou amizade com jovens brasileiros, que o incitaram a visitar o Brasil. Foi assim que, contando com o apoio do pai, Cruls embarcou para o Rio de Janeiro em setembro de 1874, interrompendo a carreira de engenheiro militar na Bélgica. Graças à rede de amizades estabelecida ainda na Europa, alargada pelo convívio estabelecido com Joaquim Nabuco durante a travessia do Atlântico, Cruls foi recebido pelo próprio imperador, D. Pedro II, e pelo então Diretor-Geral do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Manuel Buarque de Macedo, que lhe arrumou trabalho na Comissão de Triangulação do Município Neutro, ainda no final de 1874. Nessa oportunidade ele não apenas desenvolveu um estudo comparativo sobre os métodos empregados na determinação de posições geográficas por triangulação, publicado em maio de 1875 por uma tipografia de sua cidade natal (Discussion sur les méthodes de répétition et de réitération employées en géodésie pour la mesure des angles, 1875), como também ganhou a confiança de Emmanuel Liais, diretor do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, que logo convidou-o a ingressar nessa instituição, em dezembro de 1877. Foi também durante essa etapa inicial de sua carreira no Brasil que Cruls conheceu Maria Margarida de Oliveira, com quem se casou em 26 de maio de 1877, e teve seis filhos: Edmée, Stella, Sylvie, Maria Luísa, Gastão e Henri (este último falecido ainda criança). Cruls trabalhou no Observatório do Rio de Janeiro durante cerca de 30 anos, desde 1877 até o ano de sua morte. Mais do que isso, ele contribuiu decisivamente para a consolidação dessa instituição no cenário científico brasileiro. De fato, entre o final da década de 1870 e o final da década de 1880, a despeito do apelo que possuía o ideário cientificista entre as elites políticas e intelectuais brasileiras, o Observatório foi alvo de críticas pesadas

Trabalho de campo da Comissão Cruls no alto dos Pirineus, Goiás, em 8 de agosto de 1892.

quanto à sua competência e mesmo sua utilidade, e não faltou quem recomendasse o fechamento da instituição. O principal alvo das críticas, Liais acalmou momentaneamente a situação no início de 1881, ao afastar-se da direção do Observatório e do país, voltando à França, sua terra natal. Cruls

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parte 4 – colaboração científica

Integrantes da Comissão Cruls, Goiás, 1892.

era o astrônomo de sua preferência para substituí-lo. Ele assumiu interinamente o cargo em 24 de março de 1881, não sem antes naturalizar-se brasileiro, em 12 de fevereiro do mesmo ano, entre outras razões para evitar o viés nacionalista embutido nas críticas endereçadas ao Observatório. Durante o início de sua gestão, ainda no período imperial, Cruls buscou angariar aliados para o Observatório, como o Imperador D. Pedro II, que não media esforços em demonstrar seu apreço pelas ciências em geral e pela astronomia em particular; Rui Barbosa, que chegou a publicar um folheto em defesa da instituição, e Gusmão Lobo, redator do Jornal do Commercio, principal jornal diário da época, e seu amigo pessoal. Um dos principais fatores que contribuíram para consolidar o prestígio da instituição entre as elites imperiais brasileiras foi sua participação em projetos de caráter internacional e grande visibilidade, como a observação do trânsito de Vênus pelo disco do Sol, em 6 de dezembro de 1882. Para possibilitar a participação do Observatório nos esforços internacionais de observação do trânsito de Vênus, Cruls convidou

a Repartição Hidrográfica a colaborar com a instituição, e solicitou ao governo recursos extraordinários, de modo a tornar possível a organização de pelo menos três expedições com bandeira brasileira, respectivamente enviadas à ilha de São Tomás, nas Antilhas, a Olinda e a Punta Arenas, na Patagônia chilena. Nesta última estação, sob seu comando científico, foi a única em que predominou o bom tempo, permitindo que todos os contatos entre Vênus e o Sol fossem cronometrados. Os resultados das observações e cálculos posteriores foram publicados em 1887, nos Anais do Observatório (Annales de l’Observatoire Impérial de Rio de Janeiro, t. 3, 1887), em um volume bilíngue organizado por Cruls e especialmente dedicado aos trabalhos das diversas expedições brasileiras. Enquanto eram organizadas as expedições visando a observação do trânsito de Vênus, Cruls protagonizou outro momento importante simultaneamente na sua carreira e na trajetória do Observatório ao comunicar o aparecimento de um novo cometa no céu austral, visível a partir de 25 de setembro de 1882. A Academia de Ciências de Paris reconheceu o seu mérito na descoberta e na

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astronomia e geologia

análise da constituição química desse cometa concedendo-lhe o Prêmio Valz, em sessão pública realizada em 2 de abril de 1883. Tendo em vista o prestígio da Academia francesa, o valor simbólico da premiação recebida por Cruls pode ser considerado maior do que o montante em dinheiro, na medida em que contribuiu para a consagração internacional de seu nome, e para o fortalecimento, entre os brasileiros, da instituição onde era diretor. Foi também ao longo dos anos 1880 que Cruls atingiu o auge de sua produção científica, com a publicação de trabalhos de temáticas bastante distintas, tais como um método gráfico para a previsão de ocultações e eclipses (“Occultações e eclipses; processo graphico para sua predicção”, Revista do Observatório, 1886-1887), o projeto de um novo tipo de barômetro destinado à determinação de altitudes (Descripção e Theoria do Barometro Differencial, 1888) e um estudo sobre o clima do Rio de Janeiro (O Clima do Rio de Janeiro, 1892). Além disso, sob sua direção – desde 1884 em caráter definitivo – o Imperial Observatório expandiu-se de maneira significativa, adquirindo instrumentos e contratando pessoal, e começou a divulgar sua produção, seja através dos Anais, dirigidos à comunidade científica, seja através da Revista do Observatório, um periódico mensal destinado à “vulgarização científica”. Em duas viagens aos Estados Unidos e à Europa, em 1887 e 1889, Cruls garantiu o lugar do Observatório e do Brasil, respectivamente, na Conferência Internacional do Meridiano, cujo objetivo era escolher o meridiano de referência na determinação das longitudes, e no ambicioso projeto Carta do Céu, iniciativa francesa cujo objetivo era construir um mapa de toda a abóbada celeste utilizando a fotografia, através da colaboração entre observatórios do mundo inteiro. Finalmente, a partir de março de 1889 Cruls passou a acumular a direção do Observatório com o cargo de professor de trigonometria esférica, astronomia e geodesia da Escola Militar do Rio de Janeiro. A instauração do regime republicano no Brasil, a partir de 15 de novembro de 1889, deu ensejo a outras oportunidades de projetar Cruls e o Observatório por ele dirigido no cenário científico

nacional. A mais importante delas foi sua nomeação para presidir a chamada Comissão Exploradora do Planalto Central, que entre junho de 1892 e março de 1893 percorreu essa região com o objetivo de definir a localização da área de 14.400 km2 que ainda hoje delimita o Distrito Federal do Brasil, conforme previsto na primeira Constituição Republicana, de 1891. Cruls também chefiou a Comissão de Estudos da Nova Capital da União, que voltou à região entre julho de 1894 e dezembro de 1895, com o duplo objetivo de escolher a melhor localização para a futura capital dentro da área previamente demarcada, e definir o traçado de uma estrada de ferro interligando duas cidades próximas, Cuiabá e Catalão. Logo no início do século XX, em janeiro de 1901, Cruls assumiu a chefia de outra missão de cunho político-científico: a demarcação das nascentes do Rio Javari, início da fronteira do Brasil com a Bolívia. A realização da nova expedição revelou-se uma grande e perigosa aventura, com dias a fio de viagem em canoas, racionamento de comida e a irrupção de diversas doenças entre os membros da comissão, como o próprio Cruls, que teria contraído beribéri e malária. Apesar de todas as dificuldades, a expedição foi bem sucedida, e no dia 22 de agosto de 1901 foi instalado o marco indicativo da nascente principal do Rio Javari. Cruls nunca se recuperou completamente dessa última viagem a trabalho. A partir dessa data passou a acumular pedidos de licença do cargo para tratamento de saúde, a tal ponto que em 1905 o governo nomeou Henrique Morize como seu substituto no Observatório, por prazo indeterminado. Em janeiro de 1908, uma nova licença lhe foi concedida pelo período de um ano. Cruls embarcou então de volta à Europa, junto com a família, em busca de tratamento. Morreu em Paris, em 21 de junho de 1908. Christina Helena da Motta Barboza é pesquisadora no Museu de Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro. É graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo.

Um belga à procura de petróleo no Brasil Pa t r i c k C o l l o n

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o final do século XIX o Brasil, assim como a Rússia, aparecia frequentemente no roteiro dos engenheiros belgas, que percorriam o mundo à procura de minérios para sua indústria metalúrgica. Neste sentido foi bem significativo o percurso de Auguste Collon (Mons, 30.04.1869 – Antuérpia, 07.01.1924). Em 1885 matriculou-se na Universidade de Liège para estudar Ciências Naturais e obteve, em 1890, com apenas 21 anos, seu doutorado com a menção de grande distinção. Nomeado assistente em mineralogia, pôde fazer numerosas viagens de estudo, descobrindo

as riquezas mineralógicas do Ural em 1891 e 1892 e a extração do petróleo em Baku no Cáucaso em 1894. Entre 1895 e 1897 deixou Liège e foi para o Brasil, na condição de encarregado de missão do governo belga, para montar um centro de estudos na Fazenda do Brejão, de propriedade de Eduardo Ferreira de Camargo. Em menos de dois anos, realizou várias explorações mineralógicas e geológicas no Estado de São Paulo, em parte junto com o influente geólogo americano Orville A. Derby. Estudou particularmente os terrenos carboníferos desse

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parte 4 – colaboração científica

Auguste Collon no laboratório do Brejão, onde realizou pesquisas mineralógicas e geológicas entre 1895 e 1897.

Estado, as jazidas de minérios de ferro de São João d’Ypanema e as rochas betuminosas da região de Botucatu. Em Porangaba, montou a primeira estrutura de sondagem profunda, tornando-se o pioneiro da prospecção petrolífera no Brasil, embora sem resultados. Seu profissionalismo foi muito respeitado e orientou mais tarde novas sondagens. Ele resumiu suas pesquisas numa memória manuscrita de 80 páginas, Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins dans l’État de São Paulo; suivi d’une étude chimico-industrielle des grès bitumeux de cette région, datada do Brejão, 11.02.1897, atualmente conservada no Instituto Geológico de São Paulo (e editada em facsimile, São Paulo, 1970). Entrementes, pouco depois de sua chegada ao Brasil, veio lhe fazer companhia sua noiva, Rachel Goron (Kovno, 28.2.1869 – Bruxelas, 6.8.1951). Nascida na Rússia, acabava de formar-se em medicina na Universidade de Liège, onde estudavam na época muitos russos e brasileiros. Casaram-se em São Paulo em 19 de dezembro de 1895. A morte neonata de seu primeiro filho no Brejão em 10 de janeiro de 1897 precipitou sua volta à Europa. Reinstalado na Bélgica, Auguste Collon efetuou, entre 1897 e 1904, como engenheiro-conselheiro, diversas missões científicas por conta de empresas como a Société Générale de Belgique e a Société Métallurgique Russo-Belge, na Rússia, Alemanha, Polônia, Suécia e Espanha. Em 1905 foi nomeado secretário-geral da So­

ciété Anonyme John Cockerill, em Seraing, chefiando também seus Serviços de Relações Exteriores. Como tal lidou por volta de 1910 com um projeto para vender modernos navios pesqueiros para o Brasil. Depois de ter conduzido a Cockerill através dos escolhos da Grande Guerra, a deixou por motivos pessoais em 1919 e se radicou com sua família em Antuérpia. Lá colaborou com a Casa G. & C. Kreglinger, muito ativa no comércio com a América Latina, como conselheiro e em seguida como procurador. Faleceu com 54 anos em Antuérpia. Patrick Collon, nascido em Bruxelas em 1942, é filho de Alexandre Collon e de Petronella Fitzwilliams-Hyde e neto de Auguste Collon, estudou na Inglaterra (Eton College), Áustria (Linz e Sankt-Florian), Alemanha (Ludwigsburg), é organeiro em Bruxelas desde 1966.

Referências Collon, A. Sur un Cristal de Zircon. Liège (sic) 1892. Collon, A. Sur l’Oligiste de Viel-Salm. Liège (sic) 1894. Collon, A. Manuscrit: Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins dans l’Etat de Sâo Paulo; suivi d’une Etude Chimico-industrielle des grès bitumineux de cette région; par Auguste Collon, Docteur en Sciences naturelles, Assistant honoraire de l’Université de Liége. Brejão. 1897. Reproduction facsimile, commentée. Sao Paulo 1970. Domingues, J. M. Porangaba sua História, Relatório de Collon. Porangaba 1998. Domingues, J. M. Porangaba sua História, O Manuscrito de Collon. Porangaba 2012.

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botânica e zoologia

O botânico Célestin Alfred Cogniaux e sua relação com o Brasil Magali Romero Sá e Alda Heizer

O

botânico belga Célestin Alfred Cogniaux (1841-1916) foi um dos maiores colaboradores da Flora Brasiliensis de von Martius, tendo sido responsável por cinco dos 40 volumes que compõem a obra elaborada pelo botânico alemão. Cogniaux foi responsável pelas monografias das famílias Melastomataceae e Orchidaceae tendo colaborado também na elaboração da família Curcubitaceae em um fascículo do volume VI, part. IV da Flora. Seus escritos sobre a flora brasileira preencheram cerca de 3.118 páginas, com mais de 600 ilustrações (Hoehne, 1941, p. 50-51). Formado como professor secundário pela École Normale de Nivelles, Cogniaux trabalhou como professor de matemática e ciências naturais em diferentes cidades e escolas da Bélgica. Amante da botânica, adquiriu sua formação na prática e através do convívio com outros botânicos. Em 1862 o botânico belga iniciou, em parceria com Barthélémy Dumortier, os estudos sobre briófitas indígenas, tendo participado, nesse mesmo ano, da fundação da Société Royale de Botanique de Belgique. Dez anos depois, em 1872, foi indicado para o cargo de Conservador do Jardim Botânico do Estado e nomeado naturalista ajudante. Lá, inicia seus estudos sobre a sistemática das fanerógamas e, a convite de August W. Eichler, editor da Flora Brasiliensis, dedica-se à família Curcubitaceae. Vale lembrar que o Jardim Botânico belga havia acabado de receber, no ano anterior, em 1871, o herbário brasileiro de Carl von Martius adquirido pelo governo da Bélgica. Em 1880, por divergências internas, Cogniaux se desliga do Jardim Botânico e volta a atuar como professor de ciências naturais, não deixando, porém, seus estudos botânicos, em especial sobre a flora do Brasil (Alfred Cogniaux – National Botanic Garden of Belgium. Disponível em: ). Sua ligação com os botânicos brasileiros, fortalecida quando esteve na direção do Jardim Botânico belga, se manteve viva e colaborativa. Com José de Saldanha da Gama, botânico brasileiro, professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e cônsul-geral do Brasil na Bélgica, Cogniaux realizou estudo sobre Melastomata­ ceae brasileiras para a Flora Brasiliensis, cujo extrato foi publicado

separadamente em 1887 (Saldanha da Gama & Cogniaux, 1887). Foi também através de Saldanha da Gama que Cogniaux foi indicado ao Imperador do Brasil para atuar como vice-cônsul do então recém-criado vice-consulado brasileiro em Verviers (Mattoso et al., 1999, p. 237), tendo sido nomeado pelo monarca em 1887 e permanecido no cargo até 1902 (Cogniaux, 2003, p. 5). Seu trabalho sobre a família Melastomataceae foi publicado na Flora Brasiliensis em dois volumes, com cinco fascículos, entre 1883 e 1888 (Hoehne, 1941) e, segundo Goldenberg et al. (2012) esse estudo ainda representa a monografia mais recente sobre a família no Brasil, constituindo a base para subsequentes estudos taxonômicos, tanto para tratamentos de revisão quanto trabalhos de cunho florístico. Em 1893 Cogniaux iniciou a publicação da primeira parte da obra sobre Orchidaceae na Flora Brasiliensis após intensa negociação com o botânico brasileiro João Barbosa Rodrigues. Desde 1868 Rodrigues vinha se dedicando à coleta e descrição das orquídeas brasileiras, tendo em 1870 apresentado à comunidade científica brasileira uma obra sobre Orchidaceae em três volumes com descrições em latim e francês e ricamente ilustrada. Rodrigues não obteve apoio do governo para a publicação da sua obra ilustrada. Porém, por iniciativa do Barão de Capanema, um volume de seu trabalho foi enviado para August Eichler na Alemanha e apresentado a Heinrich Gustav Reichenbach, orquidólogo alemão, responsável inicialmente por escrever a parte dedicada às orquídeas da Flora. Reichenbach, admirado com o trabalho do botânico brasileiro, convida-o para levar o seu herbário para a Europa para que suas novas espécies pudessem ser validadas, e propõe que sejam publicadas em coautoria. Em carta ao botânico sueco A. Regnell, residente no Brasil, Reichenbach explicou: “O objetivo de minha carta é falar sobre o sr. Barbosa Rodrigues. Devo admitir que suas pesquisas são muito boas, e que nós poderíamos ser úteis um ao outro. Se ele publicar suas orquídeas, acredito que metade já tenha sido descrita, e ele poderia evitar esta duplicação trazendo para a Europa os tipos de suas novas descobertas, e assim ninguém poderia contestá-lo. É sabido ser impossível produzir um trabalho perfeito (de taxonomia) fora da Europa... Por

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parte 4 – colaboração científica

Capa da publicação Mélastomacées Brésiliennes, de Alfred Cogniaux e Saldanha da Gama, 1887.

Uma nova colaboração com botânicos brasileiros se deu em 1910 quando foi convidado por Frederico Carlos Hoehne para participar da publicação sobre o material botânico coletado durante a expedição da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (Comissão Rondon). Cogniaux ficou encarregado do estudo das melastomáceas, curcubitáceas e orquidáceas, tendo o resultado de seu trabalho publicado no Brasil em 1912 na parte Botânica das publicações da Comissão. Cogniaux faleceu em 1916, aos 75 anos, quatro anos após a sua última contribuição à botânica brasileira. Apesar de nunca ter visitado o Brasil foi um profundo conhecedor de sua flora. Magali Romero Sá, bióloga e Ph.D, é Pesquisadora Titular e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz; Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Alda Heizer, Doutora em Ciências, é Professora de História da Botânica no Brasil na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ e Historiadora do Museu do Meio Ambiente e do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

favor, gostaria de chamar a atenção de seu amigo para esses fatos e dizer a ele que eu me ofereço a publicar suas novas descobertas em coautoria... Por favor, informe-me imediatamente de sua decisão e envie a ele meus respeitos...” (Barbosa Rodrigues, 1877). Rodrigues não aceitou a oferta e acabou publicando somente a diagnose de suas espécies em 1877 (Sá, 2001). Reichenbach acabou desistindo de participar da Flora Brasiliensis e após desencontros vários, até mesmo entre os próprios botânicos europeus, Cogniaux finalmente aceitou assumir a tarefa. Rodrigues (1882), por seu turno, continuava a receber ofertas de outros pesquisadores convidados a escrever a parte de orquídea da Flora, sem contudo aceitar nenhuma das propostas. Cogniaux, conhecedor do trabalho do botânico brasileiro, igualmente convidou-o a participar da obra de Martius por meio da utilização dos seus desenhos de orquídeas ainda inéditos e das descrições das espécies novas. Em 1892, Rodrigues finalmente aceitou o convite. No ano seguinte Cogniaux iniciou a publicação das orquidáceas em três partes, compostas por 10 fascículos, tendo o último saído em 1906. Do material cedido por Barbosa Rodrigues ao botânico belga, foram publicadas 267 cópias das pranchas originais, além de 7 gêneros descritos pelo botânico brasileiro e 538 espécies (Mori & Ferreira, 78).

Referências Cogniaux, C. A. Botânica III – Melastomáceas, Curcubitáceas, Orquidáceas, vol. 5, n. 10, p. 1-15, 1912. In: Hoehne, F. C., Harms, H. A. T.; Cogniaux, Célestin Alfred; Sampaio, Alberto José de; Kuhlmann, João Geraldo. Botânica/ Comissão de Linhas Telegraphicas Estrategicas de Matto Grosso ao Amazonas, vol. 5, 1910-1923. Cogniaux, Célestin Alfred (1841-1916). Nowellia Bryologica, n. 24, p. 5, 2003. http:// www.nowellia.be/download/revue%20nowellia/Binder%2024.pdf Goldenberg, R; Baumgratz, J. F. A.; Souza, M. L. D. R. Taxonomia de Melastomataceae no Brasil: retrospectiva, perspectivas e chave de identificação para os gêneros. Rodriguésia , vol.63 no.1, p. 145-161, 2012. Hoehne, F. C. Notas biobiliográficas de naturalistas botânicos que pretendemos homenagear com a denominação de caminhos e picadas no Jardim Botânico e na Estação Biológica do Alto da Serra. In: O Jardim botânico de São Paulo. São Paulo: Departamento de Botânica do Estado de S. Paulo. 1941. Mattoso, K. Q., Santos, I. F., Rolland, D. Le Brésil, l’ Europe et les équilibres internationaux XVI-XX siècles. Université de Paris IV: Paris-Sorbonne. Centre d’Études sur le Brésil. Presses de l’Université de Paris. Sorbonne. 1999. Mori, S. A., Ferreira, F. C. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues (1842-1909). Brittonia, vol. 39, n. 1, p. 73-85, 1987. Sá, M. R. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 8, suppl., p. 899-924, 2001. Saldanha da Gama, J. de; Cogniaux, A. Bouquet de Mélastomacées brésiliennes dédiées a Sa Majesté Dom Pedro II empereur du Brésil. A. Remacle, Verviers. 1887.

Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira Régis De Bel

V

ários belgas tentaram se estabelecer no Brasil para desenvolver a pecuária, tanto para lucrar com a venda de animais reprodutores como para valorizar o prestígio nacional… nem sempre com sucesso. Porém, podem ser mencionados alguns de seus

legados para o melhoramento do rebanho bovino brasileiro. Vale mencionar a contribuição do engenheiro agrônomo (Faculdade de Agronomia de Gembloux, 1884) e médico veterinário (Escola de Veterinária de Alfort, 1888) (Birgel, p. 72, 2011) belga

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botânica e zoologia

Capa do livro A Fazenda Moderna, de Eduardo Cotrim, publicado em Bruxelas em 1913. Foto de Eduardo Cotrim publicada em seu livro A Fazenda Moderna, de 1913.

Hector Raquet, mais tarde catedrático do Instituto Agrícola de Gembloux. Em 1906, foi contratado como diretor do Posto Zootécnico Central, criado em 1905 no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo, e em 1909 supervisionou os trabalhos de instalação do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros, na cidade de Pinheiral (RJ) e foi seu primeiro diretor – sendo substituído por Nicolau Athanassof, ex-professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Bhering, 2008, p. 76). Esses postos foram criados segundo o novo conceito da época – zootecnia –, que separou o estudo sobre a agricultura daquele sobre a arte de criar animais para melhorar as suas potencialidades. “Apoio Genética” ressalta os trabalhos realizados por Hector Raquet, assim como de um outro belga, o engenheiro agrônomo Louis Misson, que escolheram os animais das primeiras importações para o Brasil. Um documento que deve ser posto em destaque é o livro de Eduardo Cotrim, figura de destaque na área da pecuária no início do século XX, A Fazenda Moderna – Guia do Criador de Gado Bovino no Brasil –, que foi publicado em português em Bruxelas em 1913. Tal publicação merece mesmo uma observação sobre sua qualidade, a despeito de seu conteúdo, que aqui é nosso assunto principal: trata-se de uma edição de grande qualidade, com capa dura e decorada em baixo-relevo de acordo com a tendência art nouveau, em voga na época, espcialmente em países como Bélgica e França (precursores dessa linha artística).

Sete capítulos compõem este livro e tratam dos seguintes temas: – Estabelecimento e direção de uma fazenda de criar; – Práticas de bovinotecnia; – Alimentação e forragens; – Raças bovinas e escolha das raças; – Exploração econômica do gado bovino; – Higiene do gado bovino, e – Noções práticas de veterinária. O autor argumenta que, naquela época, a criação bovina no Brasil sofria com a falta total de métodos: “A indústria não existe porque o systema adoptado como mais commodo é o da perfeita selvageria”. Eduardo Cotrim incentiva, porém, o desenvolvimento de meios de proteção para o gado, o melhoramento dos campos com a plantação de forragens e a seleção dos reprodutores para dar princípio à criação extensiva. No quarto capítulo, além de descrever as raças nacionais, consagra uma parte importante às raças estrangeiras, que poderiam servir para criação de gado no Brasil ou para o melhoramento das raças nacionais através do cruzamento. Além disso, o autor avisa o leitor das especificidades do clima brasileiro, que apresenta vantagens e desvantagens, como, por exemplo, os inúmeros parasitas que perseguem o gado no campo. Em alguns casos, esse tipo de

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parte 4 – colaboração científica

Fotografia da novilha Flamenga belga da Estância “La Plomer” publicada no livro A Fazenda Moderna.

Fotografia de “Trowbridge”, campeão flamengo belga na exposição internacional de Buenos Aires, em 1910, publicada no livro A Fazenda Moderna.

problema inviabilizava a importação de raças estrangeiras que, em campos brasileiros, não apresentavam o rendimento esperado. Entre outras, o autor indica que a raça Flamenga belga se recomenda por sua dupla qualidade leiteira e de açougue: trata-se de uma raça mista que vinha sendo melhorada consideravelmente por seleção e que era proveniente das proximidades de Bruges (Flandria ocidental). Essa raça já fazia sucesso na Argentina e no Uruguai e iria se difundir também no Brasil, principalmente no Estado do Rio Grande do Sul. Belos exemplares de vacas e touros dessa raça também foram levados para os Estados de São Paulo (Fazenda de Santa Gertrudes) e Minas Gerais (Cotrim, 1913). Outro legado belga mais recente seria a introdução no Brasil da raça BBB (Blanc-Bleu Belge). A partir dos anos 1960, ela foi geneticamente melhorada por seleções sucessivas a fim de desenvolver de maneira extraordinária a sua musculatura (hipertrofia muscular hereditária). O BBB é conhecido como o halterofilista do mundo animal, o superboi. Esta raça foi introduzida no Brasil em 1994, principalmente para cruzamento e obtenção de produtos de carne mais macia. O cruzamento com o zebu de raça Nelore deu resultados interessantes no Estado da Bahia, apresentando melhores rendimentos em produção de carne, tanto quantitativa como qualitativamente (Boly et al., 2003, p. 21). Os resultados desses cruzamentos obti-

dos numa pesquisa realizada de 2002 a 2005, juntamente com a Université de Liège (ULg), as Facultés Agronomiques de Gembloux (FUSAGx – Faculdades Agronômicas de Gembloux) e a Seagri (Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e Aquicultura) do Estado de Bahia, foram apresentados durante o 8º Congresso Mundial de Genética em Belo Horizonte (Leroy et al., 2006). Régis De Bel é engenheiro agrônomo, graduado na Universidade Livre de Bruxelas (ULB, Bélgica) em 2004. Mora atualmente no Brasil.

Referências Bhering, M. J. Positivismo e Modernização: Políticas e Institutos Científicos de Agricultura no Brasil (1909-1935). Dissertação de Mestrado, Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2008. Birgel, E. H. O ensino da Medicina Veterinária no Estado de São Paulo. Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP. São Paulo: Conselho Regional de Medicina Veterinária, v. 9, n. 2 (2011), p. 70-79, 2011. Boly, H., Lebailly, Ph., Leroy, P. L., Leroy, E. Le Blanc-Bleu Belge en croisement dans les régions tropicales. Wallonie Elevages, n. 6, juin 2003. Cotrim, E. A Fazenda Moderna, Guia do Criador de Gado Bovino no País. Bruxelas, Belgique, 1913. Leroy, P. L., Leroy E., Cassart, R. Growth and carcass performances of Belgian Blue x Nelore and Bradford Cattel in Bahia State, Belo Horizonte, Brazil, 2006. “Apoio Genética”. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2013.

Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil Régis De Bel

D

om Amaro Van Emelen, nascido em 1863, foi um padre beneditino belga que se tornou professor no Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, considerado como um dos mais tradicionais do país, e do qual foi Reitor nos períodos 1905-1906 e 1909-1910. Esteve também ligado à tentativa dos beneditinos belgas de implantar

uma escola agrícola em Pernambuco. Foi, em 19 de abril de 1926, nomeado diretor-geral da Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda (Melo et al., 2010), mais tarde integrada à Universidade Federal Rural de Pernambuco. Era irmão do pintor e escultor Pierre Van Emelen e aparentado a Louis Cruls.

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botânica e zoologia

Foto de D. Amaro Van Emelen publicada na edição de sua cartilha, impressa após o seu falecimento.

Capa do livro Cartilha do Apicultor Brasileiro, de Amaro Van Emelen.

Em 1895, Dom Amaro Van Emelen introduziu a abelha italiana (Apis mellifera ligustica) em Pernambuco e foi autor de várias obras sobre apicultura, entre as quais a famosa Cartilha do Apicultor Brasileiro, publicada em 1934. Segundo os escritos do editor Amadeu Amadei Barbiellini, Van Emelen redigiu uma “verdadeira enciclopédia sobre as abelhas e as suas indústrias máximas de mel e cera” (5ª edição, 1952). Certamente, Van Emelen foi uma pessoa-chave na divulgação e no desenvolvimento das técnicas de apicultura no Brasil no início do século XX. Essa Cartilha do Apicultor Brasileiro foi elaborada a partir de duas edições anteriores. A primeira edição era um simples folheto com o título de Criação de Abelhas, publicada na revista de Barbiellini, Chacaras e Quintaes, apresentando 70 páginas ilustradas. A segunda edição, de 1924, já era mais desenvolvida, mas sempre no tamanho e na aparência de um opúsculo, com título de Abelhas, Mel e Cêra. Ela também apareceu na revista mensal de Chacaras e Quintaes. A terceira edição, de 1934, a famosa Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra apresenta três grandes partes – Abelhas, Mel e Cera – com 57 capítulos ilustrados com

254 gravuras e adotou a forma de ‘perguntas e respostas’, muito didática e agradável para o leitor. A empresa editora da Chacaras e Quintaes esgotou os 5.000 exemplares em nove anos, o que levou a uma quarta edição em 1945, que Van Emelen retocou e enriqueceu ainda mais, e a uma quinta edição, em 1952, após o falecimento de seu autor (em 1946). Referências Amaro Van Emelen, 1915. A Criação das Abelhas. São Paulo, Conde A. A. Barbiellini, 1915. 70 p. ilus. Amaro Van Emelen, 1924. Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes. 56 p. ilus. Amaro Van Emelen. 1934. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Empreza Editora da Chacaras e Quintaes, 344 p. ilus. Amaro Van Emelen. 1945. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus. Amaro Van Emelen. 1952. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus. Melo, Lúcio Esmeraldo Honório de; Magalhães, Francisco de Oliveira; Almeida, Argus Vasconcelos de; Câmara, Cláudio Augusto Gomes da. De alveitares a veterinários: notas históricas sobre a medicina animal e a Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, Pernambuco (1912-1926). Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, vol. 17 n.1, Rio de Janeiro Jan./Mar. 2010.

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parte 4 – colaboração científica

Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes Chris Delarivière

A

lphonse Richard Hoge foi um herpetólogo belgo-brasileiro (1912-1982) que, nos anos 50 e 60, era ativo no Instituto Butantã, fundado em 1901 em São Paulo para remediar as frequentes mordidas por serpentes nas fazendas de café. Hoge nasceu em Cacequi, no Estado do Rio Grande do Sul, filho de um engenheiro belga. Mais tarde a família voltou para Gand, onde o jovem Alphonse Richard foi estudar na universidade do Estado. Uma vez diplomado, tornou-se assistente do professor Georges Bobeau e estudou, entre outros, o uso do veneno serpentígeno no combate às células cancerígenas. Em 1939 decidiu voltar para o Brasil onde encontrou um posto no Instituto Butantã, que tinha, e ainda tem, fama mundial pelas pesquisas e pela produção de soros antivenenosos. O Instituto interveio ainda no salvamento da fauna reptiliana durante a construção das grandes barragens e no treinamento do pessoal da inspeção sanitária. Em São Paulo, o professor Hoge construiu uma reputação de cientista respeitado, que não recusava pesquisas de campo. Como tal, apareceu também nos relatos de Marcel Roos como um professor algo distraído, com senso de aventura. Alphonse Hoge morreu em 1982, pouco depois de sua aposentadoria. Publicou mais de cem trabalhos e deu seu nome a uma impressionante coleção herpetológica. Esta, com mais de 70 mil peças, entre serpentes, aranhas e escorpiões, foi parcialmente destruída por um incêndio em 15 de maio de 2010.

Alphonse Hoge e auxiliares na Ilha da Queimada, litoral do Estado de São Paulo, capturando jararacas ilhoas (Bothropóides insularis).

Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de reportagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para

o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação Dulce Eleonora de Oliveira

A

cooperação do Laboratório de Genética da Universidade de Gand com o Brasil vem de longa data e, de fato, caminha junto com a história da tecnologia do DNA recombinante. Desde o início das pesquisas sobre clonagem de genes, no começo dos anos 70, a Bélgica teve um papel relevante. Ainda em 1974, Fiers, Schell e Van Montagu organizaram o primeiro simpósio internacional sobre clonagem de genes. Nele compareceram os grandes nomes em sequenciamento e clonagem de DNA, tais como os laureados com o Prêmio Nobel: Werner Arber, Rich Roberts, Fred Sanger e Wally Gilbert. Este simpósio aconteceu um ano antes da famosa conferência de Assilomar, organizada por Paul Berg, para discutir os potenciais riscos biológicos da tecno-

logia do DNA recombinante e as recomendações para utilizar a tecnologia com segurança. Nessa época, Francisco Lara – então professor titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo – estudava os puffs de DNA de Rhynchosciara. O professor Lara teve o grande mérito de imediatamente reconhecer a Biologia Molecular como uma disciplina que revolucionaria as pesquisas na área de ciências naturais. Com o objetivo de trazer esta nova disciplina para o Brasil, Lara organizou um simpósio no Instituto Butantã sobre a clonagem de genes em diversos organismos, com a participação de especialistas de renome internacional. Marc Van Montagu foi convidado

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botânica e zoologia

O professor Marc Van Montagu e seus ex-colaboradores no IV Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas, Bento Gonçalves, abril de 2013.

para falar de sua pesquisa sobre o mecanismo natural de transferência de genes de Agrobacterium tumefaciens. A partir desse primeiro encontro, Lara iniciou uma série de cursos internacionais sobre a tecnologia do DNA recombinante na USP/Butantã nos quais Marc Van Montagu era um convidado cativo. Foi nesse cenário que Marc Van Montagu encantou-se pelo Brasil e decidiu vir para cá com frequência. Entre 1974 e 1983, Van Montagu, Schell e colaboradores fizeram, em Gand, descobertas e inovações que marcaram o início da era da biologia molecular vegetal. Eles descobriram o plasmídeo Ti de A. tumefaciens; elucidaram, junto com grupos de pesquisa liderados por Mary-Dell Chilton, nos Estados Unidos, e Robert Schilperoort, na Holanda, o mecanismo bacteriano de infecção e transferência de genes; desenvolveram a primeira tecnologia de transferência de genes para plantas e, publicaram, em maio de 1983, sobre a primeira planta transgênica. A descoberta e invenção de Van Montagu, Schell e colaboradores deixou uma pegada indelével na área de ciências da vida. A tecnologia de engenharia genética permitiu pela primeira vez uma análise sistemática e refinada do impacto de genes individuais em todos os aspectos da biologia vegetal, do crescimento e desenvolvimento a resistência a patógenos e estresse abiótico, assim como na forma como as plantas se comunicam com seu ambiente. Foi nesse período efervescente da genética molecular vegetal que Marc Van Montagu, em uma de suas muitas visitas ao Brasil, conheceu Luiz Antonio Barreto de Castro, então professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Luiz Antonio seria logo contratado pela Embrapa para desenvolver a primeira iniciativa de

engenharia genética vegetal no Brasil, no Cenargen, em Brasília. Graças à cooperação de Barreto de Castro com Van Montagu, vários cientistas do Cenargen foram treinados na empresa Plant Genetic System (PGS), spin-off do Laboratório de Genética da Universidade de Gand. Nessa época, tanto Cenargen como PGS estudavam as pro­ teínas de reserva de sementes ricas em metionina para melhorar o valor nutricional de alimentos básicos. A determinação da se­ quência de aminoácidos das proteínas de reserva ricas em enxofre da castanha do Brasil é um dos resultados dessa cooperação (Ampe, Van Damme, Castro, L.A.B., Sampaio, Montagu AND Vanderkerchove, 1986, p. 597-604). Entretanto, estes projetos não foram continuados porque tais proteínas seriam potencialmente alergênicas. Desde as primeiras tentativas de aplicações da tecnologia do DNA recombinante em plantas os cientistas tinham a consciência de que a metodologia de transgenia em si não era perigosa, mas que os genes a serem introduzidos deveriam ser analisados criteriosamente para evitar algum dano potencial. Em 1983, Antonio Paes de Carvalho, então diretor do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), deu início com alguns colegas – especialmente Affonso do Prado Seabra, Maria Apparecida Esquibel e Antonio Rodrigues Cordeiro – ao Programa de Biotecnologia Vegetal da UFRJ. Nesse mesmo ano, Paes de Carvalho e Seabra montaram a Biomatrix, primeira empresa brasileira de biotecnologia vegetal. Foi como fundador e presidente da Biomatrix que o professor Paes de Carvalho conheceu o professor Van Montagu, em um simpósio na França, na vinícola Moet Chandon. Entusiasmado

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parte 4 – colaboração científica

um projeto de desenvolvimento de batatas transgênicas resistente a vírus e obteve um importante financiamento do PADCT, que permitiu equipar o laboratório com o que havia de mais moderno na época para conduzir pesquisa em biologia molecular. Em 1990 assumi, como previsto, a direção do LGMV enquanto Ben retornou à Europa, enriquecido com a experiência como diretor de laboratório no Brasil, fazendo pesquisa aplicada em biotecnologia vegetal. Isto o levou a interessar-se por inovações em biotecnologia e a cursar um MBA no INSEAD, França. Atualmente Ben Timmerman é o fundador e CEO da empresa Enticel, dedicada a vacinas terapêuticas contra o HPV. Até a aposentadoria do professor Marc Van Montagu, em novembro de 1999, o LGMV contou com seu apoio incondicional. Continuamos tendo o suporte da Cooperação ao Desenvolvimento – ABOS. Entre 1990 e 1994, três jovens doutores do Lab de Genética-Gand fizeram pós-doutorado no LGMV, todos dentro da política belga de substituir o serviço militar por atividades em países em desenvolvimento. Sobrevivemos ao duro período de vacas magras para a pesquisa científica no Brasil nos governos Collor, Franco e Cardoso graças aos projetos que pudemos desenvolver em cooperação com a Universidade de Gand. Foram oito projetos em colaboração, sob a minha gestão (1990-1995) e a gestão da professora Marcia Pinheiro Margis (1996-2000), financiados por agências internacionais, tais como ABOS, ICGBE, Fundação Rockefeller e diversos programas de cooperação da União Europeia. Ao mesmo tempo, graças a estes projetos, a grande maioria dos pesquisadores e alunos de pós-graduação do LGMV tiveram a oportunidade de estagiar no Laboratório de Genética da Universidade de Gand. Contamos também com o apoio do consulado belga no Rio de Janeiro, que concordou em enviar pela mala diplomática materiais de consumo perecíveis, como enzimas de restrição e kits usados em biologia molecular que dificilmente resistiriam à temperatura ambiente durante o longo processo de desembaraço na aduana brasileira. Os frutos deste esforço são expressivos. Entre 1990 e 2000, o LGMV formou mais de 50 pesquisadores, entre mestres e doutores. Sob a liderança estimulante de Darcy Ribeiro, então Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, o LGMV participou da criação da Universidade do Norte Fluminense (Uenf) e do seu Laboratório de Biotecnologia Vegetal. Marc Van Montagu tem 54 publicações científicas em coautoria com cientistas brasileiros. Os pesquisadores que o professor Van Montagu acolheu em seu laboratório, e aqueles formados no LGMV, estão ativos em diversas instituições de pesquisa no Brasil e são uma parte expressiva da liderança brasileira em biotecnologia vegetal, uma área de pesquisa florescente e respeitada tanto nacional como internacionalmente. Muito disto devemos ao professor Marc Van Montagu. Marc recebeu, em 1997, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro por sua inestimável contribuição para a área de Biotecnologia Vegetal. Seu esforço para o desenvolvimento das ciências de plantas no Brasil foi reconhe-

Placa comemorativa ofertada ao professor Marc Van Montagu no 4º Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas em agradecimento ao seu inestimável apoio à Biologia Molecular Vegetal no Brasil, abril de 2013.

com o potencial da tecnologia do DNA recombinante para o melhoramento de plantas, Paes de Carvalho convidou Van Montagu para uma visita à UFRJ. Foi nessa visita, em 1985, que conheci o trabalho de Marc Van Montagu. A conferência que ele proferiu sobre os primeiros resultados com plantas transgênicas tolerantes a herbicida maravilharam-me e levaram-me a trocar a genética molecular de leveduras pelas plantas. Imediatamente postulei para pós-doutoramento no seu laboratório. Ao mesmo tempo o professor Antonio Cordeiro, que iniciava pesquisa em transformação de plantas em seu Laboratório de Cultura de Tecidos Vegetais no Instituto de Biologia da UFRJ, articulou com Paes de Carvalho e Van Montagu a criação do Laboratório de Genética Molecular Vegetal (LGMV) no Instituto de Biologia. Eu era a candidata natural para liderar esse laboratório, pois já pertencia ao quadro de docentes da UFRJ. Foi estrategicamente decidido que o professor Marc Van Montagu me receberia como pós-doutor na Universidade de Gand e, ao mesmo tempo, enviaria para a UFRJ o jovem doutor Benedikt Timmerman para iniciar o laboratório e implantar as primeiras linhas de pesquisa. Naquela época, a Bélgica permitia e incentivava os jovens belgas que haviam adiado o serviço militar por estar cursando universidade a, quando completassem toda a sua formação acadêmica, substituíssem o serviço militar tradicional na Bélgica por um trabalho científico/humanitário em um país em desenvolvimento. A Cooperação ao Desenvolvimento da Flandria – Algemeen Bestuur van Ontwikkelingssamenwerking (ABOS) – financiava o projeto de pesquisa do postulante. Assim, em 1986 eu segui para o pós-doutorado na Universidade de Gand e Benedikt Timmerman foi para a UFRJ. Paralelamente, entre 1987 e 1996, o professor Van Montagu acolheu para doutoramento em seu laboratório vários estudantes brasileiros, a maioria ligada ao LGMV. Benedikt Timmerman realizou um excelente trabalho no LGMV. Em três anos montou uma equipe dinâmica em torno de

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botânica e zoologia

cido também no 4º Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas, em Bento Gonçalves, RS (2013), como cientista homenageado. Entre as contribuições do professor Van Montagu para o setor privado, destaca-se sua participação como membro do Conselho Científico da empresa Allelix entre 2003 e 2009 e o recente convite para o Conselho Consultor do Instituto Tecnológico Vale. Atualmente no Institute of Plant Biotechnology Outreach, VIB/UGent, o professor Van Montagu continua sendo um incansável, articulado e influente advogado da transferência da biotecnologia vegetal para o benefício nutricional, econômico e ambiental dos países em desenvolvimento. Sua aliança com o Brasil continua

inabalável, contribuindo sempre que solicitado. Recentemente o professor Van Montagu ajudou a montar a equipe de Ciências de Plantas no Instituto Tecnológico Vale, em Belém do Pará. Dulce Eleonora de Oliveira trabalha no Institute of Plant Biotechnology Outreach, VIB – Ghent University.

Referências Ampe, C., Van Damme, J., Castro, L. A. B., Sampaio, M. J. A., Montagu, M. V. J. and Vanderkerchove, M. V. J. 1986. The aminoacid sequence of the 2S sulphur-rich proteins from seeds of Brazil nut (Bertholletiaexcelsa H.B.K.).Eur. J. Biochem. vol. 159 , p. 597-604.

A cooperação entre a KULeuven e as universidades brasileiras Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão

N

a Universidade Católica de Lovaina (KUL), um dos laboratórios que tem atraído a atenção de muitos estudantes cientistas brasileiros é o de biologia celular e molecular no departamento de Biologia da Faculdade de Ciência da KUL, chefiado pelo professor Johan Thevelein. Este laboratório tem como principal tema de investigação fundamental o estudo dos mecanismos de transdução de sinal ativados por nutrientes, mais especificamente os mecanismos envolvidos no controle de proteína quinase A em leveduras (Saccharomyces cerevisiae). Na área da pesquisa aplicada, o laboratório tem conquistado fama internacional pelo uso de uma eficiente metodologia de modificação genética de leveduras, com a finalidade de desenvolver estirpes de leveduras industriais superiores para a produção de bioetanol de primeira e segunda gerações, produção de vinho, cerveja e fermento. A cooperação entre os pesquisadores Rogelio Lopes Brandão e Ieso de Miranda Castro (Laboratório de Biologia Celular e Molecular-LBCM do Núcleo de Pesquisas em Ciências Biológicas-Nupeb da Universidade Federal de Ouro Preto) e o dr. Johan Thevelein surgiu em 1987 com intensa troca de “cartas” para tratar da resolução de aspectos do metabolismo de um fungo, Fusarium oxysporum, na época objeto de estudo do Dr. Rogelio Brandão. Disto resultou um curto estágio de três meses (dezembro de 1988 a fevereiro de 1989), que possibilitou a elaboração de um projeto de cinco anos (1991-1995). Este viabilizou com recursos da ABOS (Agência de Cooperação ao Desenvolvimento do governo flamengo) a estruturação física do LBCM/Nupeb/Ufop com a construção financiada pela Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto) e a compra de equipamentos e facilidades. Em contrapartida, o governo brasileiro, através das agências de fomento Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), financiou a ida de vários

brasileiros a Lovaina para trabalhar ou estagiar no Laboratório do dr. Thevelein. Mais recentemente, e no âmbito do Programa Ciência sem Fronteiras, foi aprovado um projeto de Pesquisador Visitante especial para o dr. Johan Thevelein por um período de três anos, no qual o Dr. Thevelein visitará algumas vezes o Brasil. Este projeto tem forte apoio de empresas brasileiras, tais como a Petrobras e a Fermentec, devido ao interesse bilateral no desenvolvimento da pesquisa aplicada ao bioetanol. Essa colaboração com o professor Brandão também deu início à organização de cursos em biologia molecular de micro-organismos, três dos quais em conjunto com a Ufop, em janeiro de 1994, novembro de 1997 e novembro de 1999, e mais uma vez na Universidade de Viçosa (MG) em fevereiro de 2005. Nessas ocasiões, alguns participantes foram convidados a estagiar no laboratório em Lovaina; no total, desde 1988, perto de 25 cientistas vindos da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e outras. Da participação de Beatriz Bonini no primeiro curso organizado em Ouro Preto surgiu a oportunidade de vir como estudante bolsista da Capes, do programa PDSE-Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, para trabalhar em pesquisa fundamental, desenvolvendo projeto na área de metabolismo de trealose e controle da glicólise por trealose-6-fosfato. Esta vinda como estudante de doutorado proporcionou a possibilidade de voltar como pós-doutoranda e colaborar com o professor Thevelein por mais de dez anos, com várias publicações e um projeto comum na área de metabolismo de trealose, estabelecido com o grupo do professor Héctor Francisco Terenzi da USP de Ribeirão Preto. Outros participantes dos cursos de biologia molecular vieram

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parte 4 – colaboração científica

Os professores Rogélio Lopes Brandão e Johan Thevelein e demais participantes do curso de Biologia Molecular de Microorganismos, Ouro Preto, Minas Gerais, janeiro de 1994.

também fazer seu doutorado em Lovaina, como recentemente Thiago Martins Pais, sobre a modificação genética de leveduras para a produção de bioetanol, já reincorporado em seu laboratório de origem no Brasil. Atualmente três estudantes brasileiros estão trabalhando em seus projetos de doutorado. Um deles, Thiago Pereira de Souza, Universidade Federal de Lavras (Ufla), Minas Gerais, bolsista Capes do programa PDSE-Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, desenvolve projeto relacionado com a genética de leveduras com vistas à produção de biocombustível, sob a orientação do professor Eustáquio Souza Dias, na Ufla, e Johan Thevelein, na KULeuven. Seu interesse pela Bélgica teve início a partir de conversas com seu orientador, que conhecia o professor Patrick Van Dijck, do VIB (Vlaams Instituut voor Biotechnologie), onde

também se pesquisam genética e fisiologia de leveduras com foco na indústria, principalmente de bebidas e combustível. Além de colaborações com universidades, o laboratório do professor Thevelein também mantém colaboração em projetos de aplicação industrial com a empresa Fermentec de Piracicaba (SP), fundada pelo dr. Henrique Vianna de Amorim. Beatriz Monge Bonini, Doutora em Bioquímica pela USP, trabalhou como pesquisadora no laboratório do professor Thevelein na Universidade Católica de Lovaina (KUL). Rogelio Lopes Brandão, Doutor em Bioquímica e Imunologia e com pós-doutoramento na Universidade Católica de Lovaina (KUL), é professor da Universidade Federal de Ouro Preto.

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medicina

Marie Rennotte: medicina e emancipação da mulher Eddy Stols

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arie Rennotte (1852-1942) foi recentemente redescoberta como uma figura relevante na história da emancipação feminina e da medicina no Brasil. Nascida em Wandre, perto de Liège, ganhou, em 1874-1875, em Paris, um diploma de professora e foi lecionar francês durante três anos na Alemanha, em Mannheim. Em 1878 desembarcou no Rio de Janeiro, onde trabalhou como governanta e deu aulas em colégios particulares, como o Colégio Werneck. Em 1882 foi convidada para o recém-fundado Colégio Piracicabano dos metodistas americanos em Piracicaba. Em suas aulas de Ciências, Rennotte professava ideias avançadas evolucionistas e positivistas, que destoavam da educação tradicionalista dispensada em escolas como o Patrocínio de Itu, das freiras francesas. Referindo-se a Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Spencer, ousava polemizar a esse respeito na imprensa local, a Gazeta de Piracicaba. Assim seu colégio ganhou mais alunas entre as famílias influentes da cidade, como os irmãos de Barros Moraes. Entrementes, propugnava a emancipação feminina em artigos no jornal A Família. E viajava bastante. Com passaporte belga do consulado do Rio, viajou em 1885 para Buenos Aires e em 18861887 aos Estados Unidos e à França. Provavelmente com o auxílio de Prudente de Moraes, decidiu em 1889 estudar Medicina no Women’s Medical College of Pennsylvania, na Philadelphia, onde formou-se em três anos. Em seguida, aperfeiçoou-se em ginecologia, obstetrícia e neonatologia como estagiária em Paris no Hôtel-Dieu e Saint-Louis em 1893-95. De volta ao Brasil, revalidou seu diploma em 1895 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com a tese Influência da educação da mulher sobre a medicina social, que insistia muito na necessidade de uma medicina preventiva. Começou sua primeira prática na Maternidade São Paulo, que acolhia mulheres pobres e, em 1906, entrou na Clínica Cirúrgica de Mulheres da Santa Casa de Misericórdia, onde colaborou com o célebre médico Arnaldo Vieira de Carvalho. Ao mesmo tempo era bastante ativa na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo com propostas inovadoras. Numa viagem de estudos pela França e pela Alemanha preparou-se para

Marie Rennotte, nascida em Wandre e que emigrou ao Brasil em 1878.

organizar, em São Paulo, a diretoria regional da Cruz Vermelha e em 1912 tornou-se sua presidente. No mesmo ano propugnou também a fundação de uma casa do convalescente, que não deu certo, e de um hospital para crianças, para diminuir a mortalidade infantil. Este último, construído no bairro de Indianópolis, segundo projeto de Francisco de Paula Ramos de Azevedo, foi inaugurado finalmente em 1919. Rennotte foi ainda pioneira na formação de enfermeiras com um curso criado na Santa Casa em 1912, se bem que foi de curta duração. Pelos seus contatos com as tradicionais famílias da sociedade paulista, foi aceita em 1901 como primeiro membro feminino do Instituto Histórico e Geográfico. Em 1922 participou da campanha a favor do voto feminino. Marie conheceu uma velhice difícil e morreu na pobreza. Referências Maria Lúcia Mott. ‘De educadora a médica: trajetória de uma pioneira metodista’. Revista do Cogeime, 1999, n. 15, p. 115-126. Idem, ‘Gênero, medicina e filantropia: Maria Rennotte e as mulheres da nação’. Cadernos Pagu, n. 24, 2005, p. 41-67; Débora Costa Ramires. A contribuição de Mlle. Maria Rennotte na construção e implantação do projeto educacional metodista no Colégio Piracicabano, Piracicaba, Doutorado, 2009.

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parte 4 – colaboração científica

Lucien Lison e André Jacquemin na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Luciana Pelaes Mascaro

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convite do primeiro diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FFCLRP), Zeferino Vaz (1952-64), Lucien Alphonse Joseph Lison (1908-1984) veio para o Brasil em 1953 para fazer parte do quadro dos professores e pesquisadores dessa instituição, movido, talvez, pelas consequências do pós-guerra na Europa. Nascido em Trazegnies, Bélgica, graduou-se em Medicina pela Universidade Livre de Bruxelas em 1931. Desde 1936 produziu estudos e artigos de grande relevância para a medicina e, em 1952, publicou um livro sobre histoquímica animal que se tornou um clássico, o que lhe valeu a reputação de pioneiro no assunto. Foi o primeiro diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (SP) que, embora tivesse sido criada em 1959, somente foi autorizada a funcionar em março de 1964. Ficou no cargo até 1968. Em 1966 convidou seu conterrâneo, o psicólogo André Jacquemin (1942, Baranzy, Bélgica) – formado pela Universidade de Lovaina La-Neuve em 1965 – para compor o corpo docente do Departamento de Psicologia da FFCLRP, chegando a ser seu diretor de 1988 a 1992.

Na área de Psicologia, ressalte-se os fortes laços existentes entre as universidades de Louvain-La-Neuve e de Lovaina com outras do Brasil, da qual a FFCLRP é um exemplo. Atualmente, Jacquemin é referência nacional e internacional para a Psicologia, especialmente em técnicas de Avaliação Psicológica. Referências Homenageado: André Jacquemin. Revista Psicologia Ciência e Profissão. Vol. 24 n. 1, Brasília, mar. 2004. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2013. Lison, Lucien. La Faculte de Philosophie, Sciences et Lettres de RibeirãoPreto. Paidéia (Ribeirão Preto) vol. 15 n. 31, Ribeirão Preto, May/Aug. 2005, Seção Especial. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2013. ALVES, Zélia Maria Mendes Biasoli. Carta a um mestre. Paidéia (Ribeirão Preto) vol. 16 n. 33, Ribeirão Preto, Jan./Apr. 2006, Seção Especial. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2013. Moraes, Maria Augusta de Sant’Ana. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2013.

O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios de pesquisa em diabetes na Bélgica

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professor doutor Decio L. Eizirik é atualmente diretor do Laboratório de Medicina Experimental da Faculdade de Medicina da Université Libre de Bruxelles (ULB). Ele começou sua carreira estudando medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e fez doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Depois de trabalhar dez anos na Universidade de Uppsala, Suécia, primeiro como pesquisador visitante e depois como Professor Associado, foi viver na Bélgica em 1996, inicialmente para dirigir uma unidade de pesquisa na Vrije Universiteit Brussels, mas em 2002 foi nomeado diretor do Laboratório de Medicina Experimental na ULB. Seu grupo conta no momento com quase 30 pesquisadores de diferentes países, incluindo cinco brasileiros que trabalham em

Bruxelas devido à intensa colaboração mantida pelo professor Eizirik com as universidades brasileiras Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP). O grupo do professor Eizirik fez importantes descobertas na área de pesquisa em diabetes, incluindo a clarificação de mecanismos que levam à morte das células beta no diabetes e o papel de genes candidatos para a doença nas células beta. Seu trabalho foi recompensado com vários prêmios belgas e internacionais, incluindo o Prêmio Pharmacia & Upjohn do FWO (Belga), o JDRFI Diabetes Care Research Award e, em outubro de 2012, um dos três mais importantes prêmios da EASD (European Association for the Study of Diabetes), o Prêmio Albert Renold. A foto na próxima página mostra os membros do laboratório do professor Eizirik, incluindo diversos brasileiros.

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medicina

Integrantes do laboratório do professor Eizirik (3° da esquerda para a direita, na 2a. fila em pé), incluindo diversos pesquisadores brasileiros.

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antropologia

A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil Els Lagrou

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ste artigo é o resultado de uma pequena pesquisa em documentos disponíveis e de uma consulta por e-mail aos colegas, antropólogos belgas residentes no Brasil ou que tiveram uma relação profissional com o país, que foi decisiva para suas carreiras. A consulta produziu um material rico e heterogêneo. Optei por reproduzir suas palavras tal qual, porque cada pequeno relato evocava, melhor do que eu mesma poderia reproduzir, a atmosfera particular que permeia a relação de cada um com a questão da migração da Bélgica para o Brasil. É curioso notar que num primeiro momento obtive mais informações sobre os motivos e os acasos que levaram esses belgas e ex-belgas a deixar seu pequeno país no coração da Europa, fazendo-os optar pela vida neste país fascinante, do que informações sobre suas carreiras acadêmicas. Esta modéstia mostra que os migrantes ainda não deixaram totalmente de ser belgas, pois faz parte do estilo belga não ostentar aquilo que não for explicitamente solicitado. Não pretendo explicar logo no começo a escolha do título deste artigo. Só queria assinalar que ‘a melancolia dos belgas’ nada tem que ver com pessoas melancólicas, e muito menos com uma nostalgia que sentiriam pelo país de origem. O que se quer sugerir é que pensar sobre a relação desses belgas com os dois países é que produz um efeito que poderia ser chamado de melancólico. Diferentemente de outros países europeus, como a França e até mesmo a Holanda, a Bélgica não tem uma política cultural agressiva. Minha leitura aqui é a de um nativo da vida entre dois mundos. Bélgica é um país pequeno, tem duas comunidades linguísticas majoritárias, a flamenga e a valona, além de uma pequena minoria de fala alemã. As políticas culturais belgas acabaram sendo regionalizadas de acordo com a fronteira linguística, tornando o país ainda menor do que já era. Outro fator importante do caráter belga, resultado de sua peculiar história e composição, é que cultivar o sentimento nacionalista não é bem visto. Cultivar regionalismos, menos ainda, mas parece ser mais difícil de conter. Cultiva-se antes certo humor negro perante outros nacionalismos e a própria história complexa de fronteiras fluidas, a ambivalência de sua identidade, a pequenez

do país, a cor cinza dos longos dias de chuva, os desentendimentos de seus políticos, que fazem com que os vizinhos se perguntem o que faz este país perdurar. Não obstante tudo isso, os belgas sabem que são o coração da Europa, tanto espacial quanto historicamente, mas não o dizem... Um resultado que aparecerá da comparação das trajetórias dos diferentes antropólogos belgas que vieram para o Brasil é que (quase) todos parecem ter vindo para cá como lonely riders em busca de algo, sem saber muito bem o quê. Se várias narrativas apontam mediadores ou histórias de família, não parece existir nenhuma política acadêmica sistemática de intercâmbio; as pessoas têm a sensação de ter vindo por conta própria e de, ao chegarem aqui, ter descoberto um mundo acadêmico poderosíssimo, insuspeito pela academia belga. O contraste com a situação na França, especialmente para o campo da antropologia, salta logo aos olhos. Na França se conhece a antropologia brasileira e vice-versa. Veremos que alguns dos nossos entrevistados traçaram sua relação com o Brasil por intermédio de antropólogos franceses. Grande é, portanto, o contraste da mentalidade belga, ciosa da solidez de sua formação, mas modesta por natureza, com a mentalidade brasileira, orgulhosa pelas dimensões e potencialidades do país, crente na sua diversidade e na sua capacidade de absorção das diferenças; país que se considera um país de migrantes, tendo se tornado um dos maiores blocos monolíngues do planeta. A hospitalidade para com o estrangeiro que chega ao país continua fazendo parte da autoimagem dos brasileiros e da experiência do estrangeiro europeu quando aqui aporta. Passo agora à apresentação dos relatos dos entrevistados sobre suas próprias trajetórias para depois tirar algumas modestas conclusões.

Belgas no Brasil: Étienne Samain Em filme de Clarice Peixoto, Étienne Samain respondeu às questões sobre sua atividade no Brasil: Formado doutor em Teologia na Université Catholique de Louvain (1965), foi servir por algum tempo como sacerdote numa paróquia na zona operária,

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antropologia

Dominique Tilkin Gallois

perto de Charleroi. Ele sentia, no entanto, um desejo grande por conhecer novos horizontes e foi assim que atendeu ao convite de amigos brasileiros que conhecera na universidade para um trabalho de cooperação numa diocese brasileira. Em 1971 ele fez sua primeira viagem, de férias, por Brasil, Argentina e Chile. “Sessenta e oito é a primavera francesa, quer dizer, uma inquietação na Europa e o desejo de respirar. Eu gostaria de dizer que na época eu sufocava. Esta viagem para o Brasil efetivamente me deu outros parâmetros para medir a vida humana, algo tinha acontecido. Eu descobria uma outra arte de ser gente, uma espontaneidade, um tipo de beleza, não apenas física, uma beleza moral na época, ou talvez eu estivesse romantizando até certo ponto, mas foi decisiva para mim essa primeira viagem.” Depois, de volta à Bélgica, recebeu o convite de Dom Eugênio de Araújo Sales, arcebispo do Rio de Janeiro, para lecionar, a partir de 1973, um curso de exegese na PUC. Pouco tempo depois de sua chegada, as dúvidas com relação à opção religiosa começaram a se agravar: “Com relação à vocação na minha vida eu sofria de uma coisa que nunca ia discernir totalmente... questões de fé, jogava sobre Deus o que era engajamento humano, questões de sexualidade que desconhecia...”. Sob a manifesta decepção do seu mentor brasileiro, Dom Eugênio, deixou o sacerdócio e, casando com uma belga em 1975, começou a estudar antropologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Fez pesquisa de campo, primeiramente entre os índios Kamayurá (Alto Xingu, Mato Grosso), onde estudou principalmente a mitologia e as histórias orais, e depois entre os Urubu -Kaapor (Maranhão) as músicas xamanísticas e de flauta. Sobre os Kamayurá publicou em 1991 Moroneta Kamayurá: Mitos e Aspectos da Realidade Social dos Índios Kamayurá (Alto Xingu), livro ilustrado com muitas fotos. Étienne Samain, apaixonado pela fotografia desde a infância, concentrou-se no aprofundamento das linguagens audiovisuais. Em 1984 se mudou para a Universidade Estadual de Campinas, onde foi convidado a ajudar na implementação de um programa inovador de Pós-Graduação em Multimeios. Desde então seu esforço teórico consiste em “fazer da antropologia visual realmente um suporte científico da antropologia, sem descartar a dimensão do verbal, mas trabalhar a relação de ambos”. Trabalhou assim sobre os usos da fotografia em antropologia visual, pesquisa colaborativa que resultou na coletânea O fotográfico (1998). Interessado pela teoria de comunicação de Gregory Bateson, publicou em 2005 Os Argonautas do Mangue, em colaboração com André Alves, seu orientando, fotógrafo e biólogo de formação. A primeira parte do livro, escrita por Samain, trata da obra clássica de antropologia visual, de Gregory Bateson e Margereth Mead, Coming of age in Bali. A segunda parte apresenta os resultados da pesquisa de Alves, com sequências de fotos dos caranguejeiros do mangue de Vitória (Espírito Santo), alternadas com textos, muitas vezes com interpretações dos próprios caranguejeiros. A intenção do livro é fazer dialogar estas duas pesquisas, usando a primeira como fonte de inspiração para a segunda.

Dominique Gallois, etnóloga de referência na USP, se destacou durante toda sua carreira por seu engajamento a longo prazo na pesquisa e na política indigenistas, assim como pela formação de jovens etnólogos. Desenvolveu pesquisa pioneira sobre o xamanismo entre os waiãpis e tem coordenado um grupo de pesquisa sobre as Guianas. Em suas próprias palavras: “Moro no Brasil desde 1975. É o país que escolhi para viver, trabalhar, envelhecer. Mas sou belga, que não nasceu na Bélgica, e lá viveu apenas por 4 anos, no início da década de 70, quando morei em Bruxelas, para estudar. Antes, morei na Venezuela – onde passei minha infância –, na Itália – onde vivi na adolescência. De meu nascimento na China, claro!, não recordo nada, pois de lá saí com 18 meses. Acompanhando minha família, com pai diplomata, também estive por um curto tempo em São Paulo, em 1967 e 1968. Já querendo ficar. Mas meus pais me enviaram para Bruxelas, para que eu me conectasse com meu país. Estudei Ciências Sociais, Políticas e Econômicas na Universidade Livre de Bruxelas. Tínhamos aula de antropologia física com um professor que nos mostrava imagens de pessoas negras, asiáticas ditas ‘primitivas’, em função do tamanho de sua caixa craniana. “Coisas assim me deixavam muito desanimada, pois já tinha lido na adolescência – graças ao estímulo de meu pai – Tristes Trópicos e outros livros de antropologia. A partir do 3º ano, finalmente minha formação se consolidou, com as aulas de Luc de Heush, que dava aula de Etnologia Africanista, mas também nos introduzia à obra de Lévi-Strauss. Ao lado disso, e de excelentes cursos de Filosofia, professores interessados nas contradições do desenvolvimento em países ditos ‘não desenvolvidos’, acolheram meu interesse pelos povos indígenas. Acabei realizando uma pesquisa sobre a situação dos índios no México no período da revolução de 1910. Não podia ir a campo, contentei-me com documentos e com a leitura de romances indianistas. O trabalho defendido em 1974 intitulava-se Les théories indigenistes au Mexique, de 1920 à nos jours. “Em 1975, casei e vim morar no Brasil. Com uma bolsa de especialização, válida por um ano, concedida através da ULB no âmbito de um acordo bilateral entre Bélgica e Brasil, pude me aproximar dos professores de Antropologia da USP e iniciar algumas disciplinas. Logo, Thekla Hartman e Lux Vidal insistiram para que me inscrevesse no mestrado. Defendi a dissertação em 1980, conseguindo finalmente realizar pesquisas de campo com povos indígenas. Inicialmente, desejava continuar na linha de pesquisa iniciada na Bélgica, estudando os efeitos das políticas indigenistas. A intenção era pesquisar em alguma região que permitisse comparar políticas nacionais, em ambos os lados de uma fronteira. Queria trabalhar com os Yanomami, mas um encontro com o antropólogo escocês Alan Campbell dirigiu meu destino para junto dos Wajãpi, no Amapá. “Contrariamente ao planejado, não iria trabalhar no lado da Guiana Francesa, diante da acolhida dos Wajãpi no lado brasileiro e dos desdobramentos que pouco a pouco se impuseram na minha

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parte 4 – colaboração científica

Jovem kaxinawa.

relação com esse grupo indígena. No entanto, antes de consolidar meus estudos sobre eles no doutorado, experimentei outras áreas de pesquisa etnográfica entre os Tiriyó, os Karipuna e Galibi do Oiapoque. Voltei aos Wajãpi no doutorado, após ter tentado, mas logo abandonado, uma pesquisa de cunho histórico sobre o trabalho indígena no período colonial, em Marajó. Nesse período, meu interesse pelas problemáticas do indigenismo consolidou-se enquanto participava das campanhas e atividades da Comissão Pró-Índio de São Paulo e também graças à oportunidade de trabalhar durante oito anos na equipe do programa Povos Indígenas no Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), depois incorporado pelo Instituto Socioambiental (ISA). Em 1992, comecei a trabalhar no Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Anos depois, fundei com colegas da USP outra ONG, o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé). “Ingressei na USP em 1985, antes de concluir meu doutorado, defendido em 1988. Desde então, dedico-me a formar etnólogos que possam desenvolver alternativas mais éticas de diálogo com os povos indígenas. Coordenei o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII/USP), engajando vários alunos em pesquisas na região do Amapá e norte do Pará. Um dos resultados dessa pesquisa está na coletânea que coordenei Redes de relações

nas Guianas (2005). Na sequência, coordenei um conjunto de pesquisas voltadas à discussão das formas de criação, circulação e transformação de conhecimentos, engajando um novo conjunto de estudantes. “Os artigos que publiquei nesse período sobre problemáticas dos saberes ameríndios foram suscitados pelo meu engajamento na formação de pesquisadores indígenas no Amapá, entre eles uma turma de 20 pesquisadores Wajãpi, engajados em atividades do Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Waiãpi, que incluiu, entre 2000 e 2003, o registro das expressões gráficas e orais deste grupo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela UNESCO. “Paralelamente, apostando na difusão de uma nova imagem dos índios, dediquei-me à realização de documentários, especialmente aqueles produzidos com o projeto de vídeo do Centro de Trabalho Indigenista, durante a década de 90 (A arca dos Zo´é, Segredos da mata, entre outros). Livros de difusão científica, como Patrimônio cultural imaterial: exemplos do Amapá e norte do Pará (2006), também foram realizados com esse objetivo, de contribuir com a valorização dos conhecimentos indígenas e, sobretudo, com a difusão das experiências políticas e culturais indígenas em curso naquela região.

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antropologia

“Ultimamente, tenho retomado minha pesquisa etnográfica sobre os índios Zo´e, no norte do Pará. Nessa trajetória, nunca mais voltei à ULB, nem mantenho contatos com antropólogos belgas. A não ser com os belgas que, como eu, se dedicaram ao Brasil. Recentemente, tive a alegria de ser escolhida como orientadora de um jovem belga, com dupla nacionalidade, que também estudou na ULB. Nicodeme Costia de Renesse concluiu seu mestrado em 2012 na USP e hoje desenvolve uma pesquisa de doutorado sobre os Surui-Paiter. Trajetórias que se repetem, sem nunca se repetir”.

estava sendo privada da nacionalidade belga por ter me naturalizado francesa em 2006, quando o meu filho nasceu. “O que mais posso dizer? Decidi estudar antropologia no último ano de colégio, quando descobri Lévi-Strauss em 1992, durante as aulas de Filosofia de Terminale, no Liceu francês, no Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, trabalhei como voluntária na organização da Conferência Mundial dos Povos Indígenas, conferência paralela à reunião das Nações Unidas conhecida como Rio 92. Essa experiência reforçou minha decisão de virar antropóloga. Estudei Ciências Sociais na Université Libre de Bruxelles, finalizando a graduação em Etnologia já na Universidade de Paris X-Nanterre em 1996. Na época realizei uma monografia de conclusão de curso sobre os javaés da Ilha do Bananal, portanto já havia feito trabalho de campo no Brasil. “Em 1998, entrei no Mestrado no PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social), Museu Nacional, e continuei minha pesquisa com os javaés e os carajás da Ilha do Bananal, sob a orientação de Aparecida Vilaça. Defendi minha dissertação de mestrado em janeiro de 2000. Ainda em 2000, fiz minha primeira viagem aos paumaris, no sudoeste do Estado do Amazonas. Poucos meses depois, já casada, me mudei para a França onde acabei me inscrevendo no doutorado após tentativas frustradas de fazer uma co-tutela entre o Museu e alguma universidade na França (na época, as co-tutelas ainda não estavam bem regulamentadas). Entre 2001 e 2002 realizei meu trabalho de campo com os Paumari, voltando para a França em outubro de 2002. Entre 2003 e 2005, trabalhei como Leitora de língua portuguesa e civilização brasileira no Departamento de Línguas da Universidade de Nanterre. Finalmente, defendi minha tese em setembro de 2007, voltando ao Brasil em 2009, para realizar um pós-doutorado de cinco anos, financiado pela Faperj, e desenvolvendo um projeto de pesquisa sobre cosmopolíticas indígenas e políticas públicas.” Sob orientação de Philippe Descola, Oiara Bonilla defendeu sua tese sobre os paumaris, grupo de língua aruá, na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, uma contribuição original e importante à etnologia ameríndia. Na teoria etnológica é bem conhecido o fato do discurso guerreiro estar bem presente nas sociologias ameríndias, assim como tem sido detectado uma ontologia que prioriza as relações de predação enquanto contexto no qual se desenvolvem as relações sociais, particularmente com outros seres humanos e não humanos. Neste contexto, os Paumari surgem com um discurso sócio e cosmopolítico particular, enfatizando sua posição de vítima e presa numa rede relacional onde precisam dos outros para serem protegidos, tanto no nível das relações interétnicas quanto na sua concepção de suas relações com outros seres do cosmos. É neste sentido que surge, no contexto das relações com os brancos, a figura do ‘bom patrão’.

Oiara Bonilla “Sou belga, mas não pude nascer belga. Nasci em Paris, em 1975, de um pai uruguaio exilado e de uma mãe belga desenhista. Mas, por lei, não podia ser nem francesa, nem belga. Só pude me tornar belga bem mais tarde, lá pelos 10-12 anos de idade, depois de uma modificação de lei que permitiu que os filhos de mães belgas nascidos no exterior tivessem direito a um passaporte. Quando nasci, era legalmente apátrida, até meu pai convencer o cônsul uruguaio a emitir um passaporte para mim. Toda minha família materna é belga e vive em Bruxelas, apesar de ser de origem húngara e holandesa. Assim, sou mais uma belga por acidente, uruguaia nascida na França e, portanto, também francesa (nacionalidade também adquirida bem depois). Acho que não preciso explicar por que quis ser antropóloga. “Para complicar, vim parar no Brasil (Recife primeiro e Rio de Janeiro mais tarde) aos seis anos de idade e por aqui fiquei até a faculdade. Quando terminei o colégio resolvi estudar antropologia e escolhi ir para Bruxelas cursar ciências sociais na ULB. A adaptação foi difícil, por várias razões, mas principalmente porque fiquei decepcionada, pois já sabia que queria trabalhar na Amazônia e por lá só se falava em África. Foi assim que, ainda no 2º ano de faculdade, decidi acompanhar um curso de 4º ano. Era o único oferecido sobre índios na Amazônia. Ali conheci Anne-Marie Losonczy, que lecionava essa matéria e rapidamente me encaminhou para Nanterre para terminar minha graduação com a equipe de americanistas de lá. “Minha experiência belga durou pouco, fiquei apenas dois anos por lá, terminando a faculdade em Nanterre e logo voltando para o Rio para fazer mestrado no Museu Nacional. Não tenho relações nem contato com antropólogos da ULB, nem com universitários de lá, apenas com amigos e família. Aliás, poucas pessoas de minha turma se tornaram de fato antropólogos, acho que com exceção de David Berliner, que é africanista e professor na própria ULB. Em 2000, voltei para a França, para fazer o doutorado, e lá tive filhos e me naturalizei francesa. Tenho um sentimento um pouco melancólico quando penso nesse não vínculo com a universidade e tenho uma sensação nítida e um pouco triste de que a Bélgica não apoia, não reconhece seus conterrâneos, nem valoriza muito aqueles que moram fora. Essa sensação contrasta fortemente com a atitude (oposta) dos franceses. Para ilustrar isso, fui informada na semana passada (logo após o e-mail da Els) que

Natacha Nicaise O texto de Natacha Nicaise é um resumo, editado por mim, de um memorial que ela escreveu em 2012 para um concurso público e que me cedeu gentilmente. Apresenta aqui a própria

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trajetória intelectual que levou a jovem estudante para o Brasil e a reflexão teórica sobre as diferenças entre os mundos acadêmicos belga e brasileiro, tal como foi experimentado por uma jovem estudante nos anos 1990 e 2000. Em suas palavras: “Deixei a Bélgica para me instalar no Brasil em 2002, após ter ganho uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para realizar o doutorado no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. A decisão de continuar minha formação neste país aparece retrospectivamente como uma boa lente para colocar em relevo vários elementos de minha trajetória pessoal e profissional. Em minha trajetória, acumulei diversas experiências de pesquisa em vários contextos nacionais (Brasil, Peru, Bélgica, União Europeia, Haiti, Estados Unidos), tratando de questões como tradições intelectuais, economia popular urbana, política e processos de comunicação, história e memória institucional, identidades nacionais, políticas de desenvolvimento e pós-colonialismo. Na Bélgica, como em vários outros países nos quais as relações coloniais foram estruturantes, o passado colonial continua presente na cultura material, na alimentação, na arte, na presença de imigrantes oriundos da África e também nas próprias tradições intelectuais e acadêmicas. No mundo acadêmico brasileiro, procurava um distanciamento crítico em relação ao universo cultural que informava minha visão sobre as relações pós-coloniais. “No doutorado, queria estudar as representações sociais das relações de cooperação para o desenvolvimento da Europa e na Europa, a partir de um âmbito cultural diferente e de outra tradição intelectual e, desse modo, tentar me afastar de pressupostos que percebia como embutidos na minha ‘condição de belga’, notadamente um paternalismo difuso na abordagem das relações Norte-Sul. Foram essas indagações — também carregadas, confesso, de rebeldia e irreverência juvenis — que motivaram minha decisão de realizar um doutorado fora da Bélgica e, em particular, no Brasil. “Foi na ocasião da monografia de final de graduação, em 1997, que tive o primeiro contato com o país. Graças a um encontro com uma professora alemã, na época diretora do Laboratório de Antropologia da Comunicação (LAC) da ULG, a Dra. Tomke Lask, que havia feito seu mestrado no PPGAS e mantinha um estreito contato com a academia brasileira, fui recebida como estagiária naquela instituição por um período de três meses, visando desenvolver o projeto de análise comparativa da abordagem do xamanismo em um grupo de índios guaranis na obra dos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Pierre Clastres. Esta primeira passagem pelo Brasil foi fundamental em minha trajetória; despertou um grande interesse pelo mundo acadêmico brasileiro e marcou o início de uma longa e interessantíssima jornada que me levou a me estabelecer no país. Um encontro com a antropologia brasileira era improvável no contexto acadêmico belga. “Em 2002, iniciei meus estudos de doutorado no PPGAS. Como orientanda do professor A. C. de Souza Lima, integrei o Laced (Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento). Estudei a transformação das ‘relações coloniais’ em relações de ‘cooperação para o desenvolvimento’ entre a Comunidade

Econômica (depois União) Europeia e a África. O fio condutor da minha investigação foi a política de comunicação oficial em dois momentos: na época da criação da CEE, no final dos anos 1950, e entre 2000-2005. Em 2007, fui convidada para integrar uma equipe de pesquisadores brasileiros que participou da criação do Instituto Interuniversitário de Pesquisas e Desenvolvimento (Inured), no Haiti. A partir de então, comecei a pesquisar um universo social complexo, marcado pela presença da ONU (e do Brasil, no exercício do comando militar dos capacetes azuis), de agências internacionais, de ONGs (algumas brasileiras, como o Viva Rio) e de instituições acadêmicas brasileiras, norte-americanas, francesas, canadenses, haitianas e de outros países do Caribe. “O Haiti e a região do Caribe transformaram-se em um dos meus centros de interesse. Desenvolvi várias atividades ligadas (1) à construção institucional – fui responsável pelas relações exteriores do Inured entre 2007-2009; (2) à pesquisa – participando do laboratório State, Justice & Public Policy do Inured e da equipe coordenada pelo Prof. Federico Neiburg no âmbito do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia e, a partir de 2009, desenvolvendo o projeto de pós-doutorado ‘Nações e Cooperação Internacional; a Foreign Assistance norte-americana e o Haiti, 1942-2010’, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob a supervisão do Prof. Omar Ribeiro Thomaz (bolsa Fapesp); e (3) à docência – ministrando cursos à distância para alunos da Universidade do Estado do Haiti. A minha participação no Inured e a colaboração com a ONG brasileira Viva Rio, que atua em Porto Príncipe, tem me permitido observar de perto as transformações e as tensões que acompanham a ‘cooperação internacional’ — por exemplo, situando como atores o governo e a “sociedade civil” brasileira e, com isto, abrindo todo um leque de questões a respeito das novas modalidades da presença do Brasil no cenário internacional. Até o momento, publiquei dois livros (em formato impresso e digital, em inglês, francês, português e creole haitiano) que permitem compreender a relação entre as necessidades e perspectivas da população e as formas de intervenção da cooperação internacional na área: Lixo, Estigmatização, Comércio, Política (2010) e A vida social da água (2009), ambos em colaboração com Federico Neiburg e editados em parceria entre o NuCEC e o Viva Rio”. 

Peter Beysen Peter Beysen foi meu aluno no doutorado e escreveu uma bela tese sobre a estética corporal ashaninka, grupo arawak que habita a fronteira entre o Brasil (no Acre) e o Peru. Antes de vir para o Brasil cursou História da Arte com especialização em Arte Étnica na Universidade de Gand. O relato de Peter é o de um viajante à procura de outro mundo: “A ideia era, originalmente, ir para a Indonésia, o que não aconteceu porque a situação política não era muito tranquila, especialmente para falantes do holandês... Dois meses de mochila por Java, Bali, Lombok e Sumbawa me fizeram escolher pelas ‘artes étnicas’ no curso de História da Arte na Universidade de Gand.

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antropologia

Preparação de pigmentos minerais.

“O Brasil nos parecia uma segunda opção promissora: para minha esposa, especialista em estética médica, o lugar era ideal e para mim, tinha a floresta amazônica... Fomos parar em Joinville, por influência da ex-cunhada de um dos clientes de Sonja (esposa de Peter). Em Joinville, passava meu tempo no ‘museu arqueológico de sambaqui’. O museu possui uma boa biblioteca e num certo dia peguei da estante, por acaso, o livro A temática indígena na escola, folheei o livro e parei numa foto dos Kaxinawa. Em cima da foto estava impresso o nome Elsje Lagrou. Sorri por causa do nome inconfundivelmente holandês ou flamengo. Alguém na sala reparou meu sorriso e me perguntou o que tinha me chamado a atenção. Para minha surpresa conheciam Elsje Lagrou, na época professora em Florianópolis, e especializada em antropologia da arte. Els se revelou mais tarde a orientadora ideal para mim... Els estava naquela época num processo de transferência da UFSC para o IFCS da UFRJ no Rio de Janeiro, sem dúvida a cidade mais interessante do mundo...”

Peter Beysen terminou seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia com tese intitulada Kitarentse. Pessoa, Arte e Estilo de Vida Ashaninka do Oeste Amazônico (2008). Aborda a estética minimalista dos Ashaninka a partir dos objetos fabricados e sua relação com desenhos, corpos e temas míticos que se organizam ao redor dos dois grandes eixos em torno dos quais gira a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortalidade e a fragilidade do amor. O autor argumenta que o belo para os Ashaninka consiste no equilíbrio entre o pensar (seu estilo de vida é marcado pela observação e pela reflexão) e o fazer, no qual a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o modo como se constituiu a pessoa Ashaninka. É a força latente que se acarinha, constituindo esta o ideal da estética da arte corporal. Atualmente prepara um catálogo, com fotos de sua esposa fotógrafa, Sonja Ferson, uma exposição e uma coleção etnográfica sobre os Ashaninka para o Museu do Índio no Rio de Janeiro, onde possui bolsa temporária de pesquisa pela Unesco.

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Lucia Hussak Van Velthem

popular, na gaita. Também ouvia ópera seguidamente, sobretudo as preferidas: La Bohême e Lucia di Lammermoor, o que explica meu prenome. Juntamente com o sobrenome, constituem estes os frágeis e tênues laços que me ligam à Bélgica. “Os laços são frágeis porque antes de me fazer conhecer e amar a Bélgica, meu pai me fez conhecer e amar o Brasil, o lugar que escolheu para viver e morrer. A minha grande ‘escolha’, por outro lado, foi ir contra todas as expectativas familiares e me graduar em Museologia em 1972. Estavam esperançosos de que seria uma engenheira, após ter-me formado no curso técnico de calculista de concreto armado. “A formação recebida no curso de Museologia não era em absoluto teórica, mas essencialmente prática. Aprendia-se a identificar estilos, modismos, fases, técnicas de peças de mobiliário e muitos outros objetos e artefatos, passíveis de serem encontrados em museus, não necessariamente brasileiros, pois nos debruçamos sobre as escritas medievais europeias. Na época, eu não atinava como me seria útil, no futuro, a intimidade visual e tátil adquiridas, nesse período, com artefatos tão variados na forma e nos materiais. A Museologia levou-me ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Desejava tornar-me restauradora de artefatos indígenas e assim busquei a Seção de Etnografia. Heloisa Fénelon Costa desencorajou-me desse intento, mas encaminhou-me para a documentação de coleções. Meus colegas, estagiários e bolsistas, vinham das Ciências Sociais e se dedicavam aos estudos dos povos indígenas altoxinguanos, assim como a própria professora. Como não havia a menor possibilidade de introduzir-me nesse território, busquei uma região distanciada, mas representativa no acervo. Assim cheguei ao Rio Negro e às coleções de artefatos plumários dos índios Tukano. “Era um trabalho descritivo e algo enfadonho. O divertido ficava com a prosa do museólogo Geraldo Pitaguary e o extraordinário com a descoberta de uma peça aqui, outra ali, no meio de dezenas de outras, nas caixas de metal do antigo ‘Depósito’. Esse período foi marcado por encontros e orientações que vieram de muitos lados, mas sempre no cenário do Museu Nacional. Uma forte lembrança está ligada à figura de Berta Ribeiro, que me cumulou de ensinamentos preciosos, e com a qual mantive duradouro compartilhamento de livros, cartas e o interesse pelos estudos de artefatos ameríndios. “Em meados de 1973 rumei para Belém do Pará, como alternativa à impossibilidade de me exilar na Europa, para onde foram muitos dos companheiros de militância política. Em Belém, Eduar­do Galvão, Protásio Frikel e Expedito Arnaud receberamme muito calorosamente no Museu Paraense Emílio Goeldi, então pertencente ao CNPq. Os estudos de plumária dos Tukano prosseguiram nas coleções deste museu, sob a batuta de Galvão, de quem fui a última orientanda. Paralelamente dedicava-me, a pedido de Galvão, a trabalhos propriamente museológicos na conservação da exposição permanente e foi esta especialidade que favoreceu minha contratação para o Museu Goeldi em 1975. Entrementes, eu havia descoberto a Etnologia e, sobretudo, a perspectiva de realizar trabalho de campo. Assim, rumei com o antro-

Lucia Van Velthem pode ser contada hoje entre os seniores da disciplina antropológica no Brasil que fizeram a diferença, particularmente no campo da antropologia da arte. A obra O belo é a fera, a estética da produção e da predação entre os Wayana, de 2003, se tornou um clássico no campo por antecipar, através de uma etnografia precisa e detalhada das técnicas de produção dos artefatos e das pessoas wayana, um paradigma que hoje domina a antropologia: a ideia que pessoas são como artefatos e artefatos são como pessoas. A bem dizer, Lucia Van Velthem não é belga, mas descendente de belga, de primeira geração. Entretanto, seu nome e sua aparência, seu modo de ser, parecem mais belgas do que os de muitos belgas. Talvez por ser belga de coração! É na atitude aventureira do pai, que veio para o Brasil para nunca mais voltar, que Van Velthem localiza a origem de sua vocação pela antropologia e é com ternura que ela se volta inicialmente neste texto para a memória do pai: “Meu pai, Pierre François Van Velthem nasceu em novembro de 1906, filho de Maria Beleyn e de François Van Velthem. Este, segundo a tradição familiar, era um renomado decorador de vitrines de grandes magazines na Bélgica, França e Alemanha e ela, a mimada filha de um próspero negociante de Bruxelas. A família se muda para Antuérpia e as relações familiares o introduzem no aprendizado do entalhe de diamantes em um dos muitos negócios de joias e pedras preciosas mantidos por judeus nessa cidade. Em 1925 viaja para o Congo Belga, mas logo decide tomar outros rumos e não permanece na África, seguindo para o Brasil, mais precisamente para Salvador. “Da capital baiana ruma para o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Na época era um lugar remotíssimo, com lavras de diamante que remontavam, entretanto, ao século XVIII. Percorre vilas e mais vilas e seus arredores: Datas, Serro, Milho Verde, São João da Chapada, Barão de Cocais, Guinda, Diamantina e também lugares mais afastados como ‘Cavalo Morto’ onde, nos contou, havia inúmeros refúgios de quilombolas. Nessa região construiu a rede de amigos que o acompanharia para o resto da vida, mesmo morando no Rio de Janeiro, onde se casou com uma filha de austríacos, e se estabeleceu. “Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai levou-me ao sertão de Minas em uma longa viagem e, enquanto registrava pessoas, paisagens e igrejas em aquarela, ensinou-me a abordar e a conversar com todas as pessoas: da mendiga da porta da Igreja do Amparo ao filho do cartorário, fanático por brigas de galo. Tenho certeza de que foi esse aprendizado, repetido em muitas outras viagens, a última em 1970, dois anos antes de sua morte, que me conduziram à Antropologia e aos índios. “Meu pai falava pouco da Bélgica e nunca de forma espontânea. Jamais esboçou qualquer iniciativa para viajarmos até seu país natal. Não sabemos nada sobre possíveis parentes belgas, os laços foram completamente rompidos. Recordo que a música era uma das suas grandes paixões, a clássica interpretava ao violino e a

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Apresentação de dança indígena no evento Europalia.Brasil, 2011.

pólogo alemão Protásio Frikel para o Rio Cururu e para as aldeias dos índios Munduruku. Nessa viagem, Frikel desejava repassar o rigor e a dedicação de um trabalho de campo à maneira dos velhos mestres germânicos. Assim, não parávamos: levantamentos nas roças, escavações arqueológicas, coleta de mitos, inventários da cultura material, dos grafismos e das aldeias que visitávamos e ainda uma longa viagem – em canoa a remo – até os locais míticos dos Munduruku, no alto Rio Cururu. Tudo isso provocava sucessivos choques intelectuais e sensoriais que me exauriam. “Em 1976 eu já estava na Universidade de São Paulo, no curso de pós-graduação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), e tinha como orientadora a professora Lux B. Vidal, que generosamente me transmitiu seus conhecimentos e sabedoria, e assim se tornou uma pessoa marcante em minha vida. A USP era, na época, um importante foco de pesquisas sobre índios e Lux Vidal reunia um grupo de estudantes interessados nas possíveis correlações existentes entre estética e cosmologia, mas tendo como ponto de partida os artefatos materiais. Descobri assim a única via propícia para uma museóloga, e por ela sigo até o presente! “O ingresso na USP abriu-me as portas da reflexão teórica, da história da antropologia e dos estudos sobre os índios do Brasil Central, através das aulas de professoras de origem alemã: Lux Vidal, Tekla Hartmann e Renate Viertler. Os cursos proporcionaram também o encontro de pessoas que me acompanham até hoje, umas mais próximas, outras mais distanciadas: Dominique Gallois, Alba Figueiroa, Regina Muller, Els Lagrou, Silvia Caiuby,

Nadia Farage, Marta Amoroso e as saudosas Vera P. Coelho e Aracy L. da Silva. “As leituras teóricas – sobretudo Lévi-Strauss – requeriam a abertura para novas experiências acadêmicas. Paralelamente era necessário ser pragmática, e assim encontrar um povo indígena que fosse pouco estudado, mas que pudesse ser acessado com facilidade. Cheguei então ao Parque Tumucumaque, frequentado semanalmente pelos aviões da Força Aérea Brasileira. A primeira viagem, em 1975, foi precedida da leitura de parte da bibliografia etnológica existente sobre os Carib norte-amazônicos – sobretudo Daniel Schoepf que me apresentou aos Wayana – para detectar onde pousar nesse vasto território indígena, contemporâneo do Parque do Xingu. A porção leste pareceu-me a mais adequada, pois não estava marcada, nem por debates teóricos palpitantes, nem por etnografias exaustivas. Os contatos iniciais com os Wayana e Aparai foram decisivos. Meus olhos os viram e os veem como pessoas de aguçado senso estético e de grande sabedoria. O que foi percebido, na ocasião, permitiu-me esboçar o projeto geral da dissertação de mestrado: o estudo de uma categoria artesanal proe­minente, a cestaria. “Outras viagens ocorreram: umas mais demoradas outras mais curtas, quando a malária se manifestava. Fixei-me em uma aldeia essencialmente wayana - Xuixuimëne, no médio Rio Paru de Leste – onde encontrei pessoas acolhedoras e especialistas dispostas a compartilhar seus saberes. Nesse período não tinha meios de avaliar que os estudos da arte e das categorias materiais dos Waya-

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na seriam tão fascinantes, tão absorventes e tão demorados, consumindo assim 20 anos, até 1995, ano em que defendi a tese de doutorado, ainda na USP e ainda sob a entusiasmada orientação de Lux Vidal. Os anos foram longos entre os Wayana porque as pesquisas e as publicações se entremearam com os trabalhos de delimitação da Terra Indígena Rio Paru d’Este, ao norte do Pará. “Os estudos posteriores ao mestrado continuaram girando em torno das técnicas e tecnologias da produção material dos Wayana: cerâmica, entalhe, plumária, arquitetura, culinária, mas não apenas isso, pois a formação adquirida me permitia enveredar por outros campos de expressão, essencialmente relacionais, e assim contemplavam a pessoa humana – os uaianas – e o resto do universo, o que se tornou a pedra fundamental sobre a qual repousa minha tese de doutorado, intitulada O belo é a fera. A estética da produção e da predação entre os Wayana. “Após o doutorado engajei-me na busca de outros horizontes teóricos, metodológicos e de ação, inclusive entre os Wayana e os Aparai, entre os quais permaneço em atividade desde 2005, coordenando projetos de valorização cultural em parceria com o Iepé e com o Museu do Índio (ProDeCult). Em 1999 tive a oportunidade de voltar a um antigo cenário: o Rio Negro, mas agora engajada em uma pesquisa multidisciplinar sobre o sistema agrícola, no contexto de um projeto de cooperação bilateral (Pacta). Neste projeto busco decifrar o sistema de objetos relacionados com o processamento da mandioca. Regressei também ao campo museológico. Este retorno à Museologia teve como ponto alto a curadoria do módulo ‘Artes Indígenas’ na monumental Mostra do Redescobrimento em 2000, mas também se exerceu em outras exposições no Brasil e no exterior, inclusive ‘Índios no Brasil’, montada no contexto da Europalia, em Bruxelas, e em parceria com Gustaaf Verswijver! “Entretanto, não me ative exclusivamente aos projetos expositivos, pois assumi a gestão curatorial da Coleção Etnográfica do Museu Goeldi e de um ambicioso projeto de reformulação da Reserva Técnica, concluído com algum êxito. A Museologia me possibilitou ainda trabalhar com Lux Vidal no Amapá, em cursos de capacitação museológica para os técnicos do Museu Kuahi dos Povos Indígenas do Oiapoque, e de presentemente ser a coordenadora brasileira do projeto ‘Museus da Amazônia em rede’ que une em parceria o citado museu paraense e museus do Suriname e Guiana Francesa. “Atualmente trabalho em Brasília, no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Da Esplanada dos Ministérios, continuo tecendo uma ampla rede de laços afetivos e profissionais com antropólogos, museólogos, biólogos, ativistas de muitos lugares e países e, sobretudo, com os Wayana e Aparai e também com os Baré, Tukano e Baniwa, junto aos quais desejo envelhecer”.

na África. Com esta intenção fui duas vezes, entre 1972 e 73, ao Museu Real da África Central (Koninklijk Museum voor Midden -Afrika/Musée Royal de l’Afrique Centrale) de Tervuren (Bruxelas) para apresentar meus planos. Primeiramente queria ir para o Congo, depois para a Etiópia. Em ambos os casos me desaconselharam a ir adiante por causa de problemas ou instabilidade políticos. “Durante uma viagem pela Europa encontrei os professores Simone Dreyfus-Gamelon (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) e René Fuerst (Genève), que influenciaram fortemente a escolha do meu campo, pois foi em parte motivado por seu entusiasmo que parti em 1974 para os Kayapó do Brasil Central. Apesar do fato de o grupo escolhido, os Mekrãgnoti, viver naquela época ainda muito afastado, nunca me arrependi de ter feito esta escolha. Entre 1974 e 1981 fiz pesquisa de campo entre os Mekrãgnoti de forma intensiva, aprendi sua língua e me aprofundei nas suas expressões culturais materiais, assim como nas suas práticas de guerra. “Me engajei ativamente para que os Mekrãgnoti pudessem obter uma terra significativamente maior do que o previsto originalmente. Depois da obtenção do doutorado cheguei a pensar em ficar no Brasil para neste país viver e trabalhar, mas a sorte o decidiu de outro modo e em 1990 fui parar finalmente no... Museu Real da África Central. Atualmente trabalho nesse museu no setor de Etnografia, onde me especializei em povos pastores da África Oriental, mais particularmente na região fronteiriça entre o Sudão, a Etiópia, o Quênia e Uganda. Os temas principais das minhas pesquisas são a decoração corporal e os conflitos intergrupais onde o gado ocupa um lugar central”. No Brasil Gustaaf Verswijver manteve intensas relações de troca e colaboração acadêmicas com as professoras antropólogas da USP Thekla Hartman, Renate Viertler e Lux Vidal e conheceu as colegas de geração Dominique Gallois e Lucia Van Velthem. As pesquisas de Verswijver entre os caiapós resultaram em várias publicações, a tese em 1992, The Club-Fighters of the Amazon: Warfare among the Kayapó Indians of Central Brazil (Universidade de Gand, Bélgica), a mais detalhada análise do sistema guerreiro caiapó até hoje e ainda o catálogo Kaiapó – The Art of Body Decoration –, com fotos da coleção etnográfica dos Kayapó Mekrãgnoti-Mebengokre, montada por Verswijver para o Museu Real da África Central. Em 1996 publicou ainda Mekranoti – Living Among the Painted People of the Amazon, pela PrestelVerlag (Munique). Entre 1997 e 2002, Verswijver passou longos tempos no Brasil, coordenando um projeto com os Kayapó, e organizou dois rituais de iniciação para seus filhos (ver os filmes descritos neste livro). Entre 2010 e 2011 Verswijver organizou, em colaboração com Lucia Van Velthem e com a assessoria acadêmica de Dominique Gallois, a exposição sobre os Povos Indígenas no Brasil para a Europalia na Bélgica em 2011. Juntos editaram o catálogo Índios no Brasil, além de novo livro com fotos suas entre os Kayapó. Ainda em 2010, editou com Maria Isabel B. Ribeiro um album de fotos intitulado Diários de viagem: fotografias de Leopold III: 1962-1967 com fotos das viagens do Rei Leopold III ao Brasil.

Belgas antropólogos que voltaram: Gustaaf Verswijver “Originalmente eu queria, evidentemente, como todo belga com aspirações de se tornar antropólogo, fazer pesquisa de campo

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antropologia

Paramentos utilizados em dança indígena apresentados no evento Europalia.Brasil, 2011.

Arnaud Halloy

vínculo com a minha família-de-santo em Recife continua forte. Vou publicar o meu primeiro livro cujo título é Une anthropologie des émotions. L’apprentissage de la possession dans un culte afro-brésilien.

Arnaud Halloy, atualmente professor na Universidade de Nice, no sul da França, é um jovem antropólogo belga que fez pesquisa de campo num terreiro de Xangô no Recife, fazendo doutorado na ULB. Acompanhou também os últimos anos de vida de um terreiro de candomblé caboclo na Bélgica, na pequena cidade de Carnières (ver seu verbete no capítulo religião). Em 2006 publica um artigo surpreendente, “Un anthropologue en transe. Du corps comme outil d’investigation ethnographique” (in Joël Noret e Pierre Petit, eds.). Halloy empreende uma descrição detalhada e reflexiva do processo de aprendizado, preparação e vivência do transe, a possessão por um orixá no candomblé. Não se trata de um relato meramente descritivo ou subjetivo, mas, antes, de mostrar como a etnografia e a vivência produzem um conhecimento especificamente antropológico. Em suas palavras: “A respeito da minha relação com o Brasil, ela continua muito viva. Eu sou casado há quase 20 anos com uma brasileira. Então o laço amoroso continua forte! Eu cultivo também uma relação artística com o Brasil. Montei com a minha esposa – Arlene Rocha, ela é bailarina e coreógrafa de danças populares brasileiras – um maracatu (http://maracatumix.blogspot. com) no sul da França e outro em Bruxelas. Além disso, participo atualmente da montagem de um projeto de troca artística entre o Brasil e o Benin. Finalmente, continuo trabalhando sobre o candomblé, apesar de não conseguir ir ao Brasil todo ano. O

De volta ao Brasil: Els Lagrou “Guardei minha autoapresentação para o final deste artigo, misturando a narrativa da minha trajetória pessoal com a profissional. Diferentemente de alguns, que vieram para o Brasil quase que por acaso, o Brasil estava no horizonte de meus sonhos de infância desde tenra idade. Conta minha mãe que eu dizia aos sete anos que me casaria com um índio, e se naquela época ainda não era claro se este índio moraria nos Estados Unidos ou na floresta amazônica, pouco a pouco fui adquirindo uma predileção pela América Latina. Para tal ajudou a experiência de morar em Lovaina, cidade universitária, onde viviam muitos estudantes latino-americanos, especialmente durante o período das ditaduras no Chile, na Argentina e no Brasil. Minha mãe participava do comitê de recepção dos estudantes estrangeiros da universidade e dessa maneira tivemos, eu e meus irmãos, desde cedo contato com estudantes e suas culinárias de todas as partes do mundo. Meu pai também contribuía com a internacionalização do clima em casa, trazendo para o jantar vários dos seus orientandos latinos, do México, Peru e Brasil. Assim fomos sendo seduzidos por este jeito caloroso que os latinos têm de se relacionar com os amigos,

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em contraste com a clássica, porém não por isso menos afetiva, reserva flamenga. “No final do secundário, já sabia que queria estudar antropologia. Na Universidade de Lovaina, no entanto, não existia a possibilidade de fazer antropologia na graduação. Deste modo, fui estudar História Contemporânea. Lá tive aula de História do Brasil com o professor Eddy Stols, que era, já naquela época, um apaixonado pelo Brasil. Eu namorava então um belga que estava se preparando para passar um ano como professor visitante no Brasil. Depois de defendida a dissertação, parti para o Brasil, mais particularmente para Florianópolis. Depois de curto período de adaptação e aprendizado da língua, fiz a seleção para o mestrado em Antropologia na UFSC, em 1987. O ambiente acadêmico que lá encontrei me empolgou muito, especialmente por ter sido esta minha primeira experiência com o modelo de ensino por seminários. “Sob orientação de Jean Langdon, queria estudar a arte, a pintura corporal e o xamanismo de algum grupo amazônico. Resolvi perguntar a opinião de Berta Ribeiro, conhecedora das artes indígenas, que me convidou para um encontro em seu apartamento no Rio de Janeiro. Berta estava acompanhada de Nietta Lindenberg Monte, na época coordenadora da comissão pró-índio do Acre. Foi assim que elas decidiram que eu estudaria os Kaxinawa. Saí de lá com uma lista de nomes a procurar até chegar a Rio Branco. Minha chegada em campo, em 1989, se deu em momento histórico: o Primeiro Encontro dos Povos da Floresta, que visava formalizar e pensar a aliança entre seringueiros e povos indígenas da região em defesa da floresta. Este encontro aconteceu um ano depois da morte de Chico Mendes, o precursor dessa aliança, e reunia pesquisadores e militantes do país e do exterior. Foi nessa ocasião que Terri Aquino, histórico aliado dos Kaxinawa, me apresentou a Pancho, chefe da aldeia Recreio e articulador político da região do Alto Purus. Quando ele e seus familiares regressaram à aldeia, fui junto. Fomos acompanhados também por Siã Osair Sales, jovem liderança kaxinawa do Rio Jordão que pretendia viajar até o Peru para encontrar e filmar seus parentes. Essa viagem daria origem a um dos primeiros filmes de vídeo nas aldeias, que Siã editaria mais tarde em São Paulo ao lado de Vincent Carelli. “Minha primeira viagem de campo foi iniciática. Permaneci cinco meses ininterruptos e sem comunicação ou notícias do mundo de fora nas aldeias Recreio e Nova Aliança no Alto Purus. Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado Entre o cobra e o Inka: uma etnografia da cultura kaxinawa (1991), na qual as questões centrais das minhas futuras pesquisas já estavam prefiguradas: a relação entre percepção e cognição; o modo como determinadas técnicas perceptivas e expressivas dialogam com uma ontologia específica onde a transformabilidade dos seres ocupa lugar central (o que veio a ser batizado mais tarde como perspectivismo, Viveiros de Castro, 1996). Na dissertação explorei a relação entre a existência de dois conceitos distintos para imagem (dami [figura] e kene [grafismo]) e suas relações com a complementaridade de gênero e o xamanismo. Resumidamente, notei através da análise dos rituais femininos de iniciação na

arte do desenho e de toma coletiva da bebida indutora de experiência visionária, a ayahuasca, pelos homens que existe entre os Kaxinawa uma especialização de gênero que gira em torno da complementaridade entre imagens, figuras e grafismos. Os mitos ensinam que o dono do poder transformador de todas as formas percebidas (ou seja, da fenomenologia kaxinawa) é a anaconda mítica, Yube. Este ser está na origem tanto da arte do grafismo aprendido pelas mulheres quanto da experiência visionária com ayahuasca, também chamada de dami (figuras em transformação, imagens). Mais tarde adicionaria um terceiro termo ao arcabouço nativo da percepção: o conceito yuxin, que também significa imagem, mas imagem enquanto fonte agentiva de outras imagens: a agência que está por trás da transformação de uma imagem em outra. Os yuxin são seres sem corpo que podem mudar de forma e os yuxibu, superlativo de yuxin, seres que podem transformar as formas dos seres ao seu redor. “Nas pesquisas de campo posteriores, em 1991, e entre 1994 e 1995, aprofundei os insights do mestrado através da análise e exegese do ritual, dos cantos rituais e dos mitos a eles associados do rito de passagem para meninas e meninos, o nixpupima, ritual de enegrecer os dentes das crianças. Este ritual condensa o discurso e práxis kaxinawa em torno da fabricação dos corpos das crianças e sua preparação para a vida adulta. Foi por intermédio da análise do ritual que pude pensar a agência das imagens e dos grafismos, assim como dos artefatos e sua relação com os corpos a partir de uma perspectiva nativa. Este material resultou na minha tese de doutorado em 1998. “Ingressei no doutorado da USP em 1992, sob orientação de Lux Vidal. Morei em São Paulo durante um ano. Lux já tinha se aposentado das aulas. Mas tive aula com Joanna Overing, Manuela Carneiro da Cunha e Roberto Cardoso de Oliveira. Em 1993 fiz um concurso para Professor em Antropologia na UFSC. Passei, assumi e deste modo interrompi o doutorado por dois anos, porque estava ministrando aula. Em 1994 fui liberada para fazer pesquisa de campo até meados de 1995. “Depois recebi o convite de Joanna Overing para passar um ano como Research Assistant na London School of Economics, onde ela lecionava. Quando embarquei para a Inglaterra, no entanto, ela já estava de mudança para St. Andrews, onde acabara de ganhar um Professorship. Joanna Overing levou toda sua legião de alunos de Londres consigo para animar a pacata St. Andrews na Escócia. Fiz parte dessa primeira geração de etnólogos em torno de Overing e lá fiquei por dois anos. Por causa desta longa temporada inglesa/escocesa resolvi fazer um duplo doutorado, reconhecido na Inglaterra e em São Paulo. Mas, já que não existia convênio entre os dois países, tive que defender a tese duas vezes, traduzindo-a do inglês para o português para defendê-la novamente, na minha volta ao Brasil, na USP. O período inglês foi para mim o ponto da virada. Se já sabia que uma volta para a Bélgica seria difícil, ficar por um tempo na Inglaterra me parecia tentador. Mas eu já era funcionária pública no Brasil, portanto nada disso seria fácil. A questão, no entanto, felizmente nem chegou a se colocar, pois foi em St. Andrews que conheci meu atual ma-

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rido com quem voltei novamente para o Brasil, desta vez com a certeza absoluta que era para ficar. O problema a enfrentar agora era o de obter a permissão de transferência de Florianópolis para a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os colegas cariocas do Departamento de Antropologia foram extremamente receptivos. Foi com o intuito de tornar nossa filha bilíngue, ela tinha dois anos e começava a falar, que passamos seis meses na Bélgica, entre 2004 e 2005. Nos apresentamos à Universidade de Lovaina para sermos professores visitantes sem remuneração adicional, pois estávamos de licença sabática na nossa universidade. Demos algumas palestras para os cursos de pós-graduação. Um ano mais tarde, cheguei a Paris para uma pesquisa com uma bolsa Leg Lelong de quatro meses (pelo CNRS). “Para concluir um resumo sobre minhas atividades acadêmicas mais recentes: Sou professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS, UFRJ, desde 2000. Sobre minha pesquisa entre os caxinauás publiquei em 2007 o livro A fluidez da forma: arte, agência e relação numa sociedade amazônica (kaxinawa) (Topbooks). Este retoma os recentes debates teóricos no campo da etnologia e da antropologia da arte, os principais resultados da minha pesquisa no campo da antropologia da percepção. Em 2009 publiquei o livro Arte indígena no Brasil, editado pela Com/Arte, um ensaio teórico sobre a questão da arte em contextos onde este conceito não existe, estabelecendo um diálogo com as discussões no campo da arte conceitual. Acabo de terminar um livro, em coedição com Carlo Severi (professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris), Quimeras em diálogo: xamanismo, grafismo e figuração, que reúne artigos de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre a temática da relação entre mostrar e ocultar nas artes e nos rituais relacionados ao xamanismo, tanto na Amazônia como na Sibéria e na América do Norte. O livro é um dos resultados de um convênio de pesquisa da Capes/Cobecub entre a UFRJ (PPGAS/MN e PPGSA/IFCS), o Collège de France, EHESS, e o Centro de Pesquisa do Musée do Quai Branly entre os anos 2006 e 2010. Atualmente continuo ligado ao Grupo de Pesquisa Internacional do Quai Branly e sou correspondente de sua revista Gradhiva. “Tenho formado meus orientandos de pós-graduação nos campos da antropologia da arte e na etnologia e coordeno desde 2008 um projeto de pesquisa em convênio com o Museu do Índio e a Unesco, “Construindo culturas, documentando tradições” (Prodocult), assim como um projeto de documentação sobre os usos e significados da miçanga entre as populações indígenas no Brasil, igualmente em colaboração com o Museu do Índio. Além disso, coordeno o Núcleo de Artes, Imagem e Pesquisa Etnológica

(Naipe) e os Seminários Ameríndios bimensais do PPGSA, IFCS desde 2002. Minhas áreas de interesse atuais englobam a etnologia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim como a antropologia da arte, da imagem e dos artefatos em geral. Neste último campo iniciei há alguns anos uma pesquisa sobre a figuração de santos e bichos em Juazeiro do Norte (CE), pesquisa esta em colaboração com Marco Antonio Gonçalves e cujos resultados resultarão em filmes e publicações”.

Conclusão Não posso deixar de querer encontrar alguns fios na meada destes relatos de belgas antropólogos tão diferentes entre si. Um primeiro elemento que ressalta aos olhos é que muitos se tornaram etnólogos, estimulados às vezes pela leitura de Lévi-Strauss, este gigante das Ciências Humanas do século 20, que fez muito para colocar os índios brasileiros no mapa do mundo, às vezes pela simples vontade de viajar para longe. A vocação pela etnologia ameríndia, que implica em viver numa aldeia na floresta amazônica, pode representar este sonho por um mundo diferente, comumente batizado de atração pelo exótico que caracterizaria o olhar ocidental sobre o mundo. Para se tornar antropologia, no entanto, esta vivência, que pode iniciar por um desejo pelo distante, por uma experiência de alteridade, precisa ser traduzida em termos inteligíveis que eliminam exatamente este aspecto fantasioso do outro idealizado e de incompreensão. Conhecer o outro é, nas palavras de Michael Taussig, tornar-se parcialmente outro. E é disso que se trata na antropologia. Esta experiência vale para qualquer campo, que seja num terreiro de Xangô, numa aldeia indígena ou no mundo relacional de espelhos invertidos entre agentes de políticas desenvolvimentistas europeias e representantes de países em desenvolvimento. Um elemento que me parece transpassar todos os textos aqui reunidos é a dificuldade do movimento de ida e volta. Para todos, o Brasil significou a descoberta de mundos de experiência e de pensamento antes insuspeitados. A melancolia deriva do movimento de retorno: quando se percebe o quão difícil é invocar o mundo de pensamento, reflexão e criação que se conheceu lá fora, mas que os que ficaram em casa desconhecem. É desta maneira que surge uma diferença crucial entre os mundos imaginários belga e francês: o Brasil existe no mapa do imaginário francês, mas existe muito pouco no dos belgas. Mas talvez seja muita presunção querer comparar a Bélgica, país tão pequeno e temeroso de ser uma periferia de vários centros, com o gigante intelectual que continua sendo a França no mundo.

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parte 4 – colaboração científica

Quando a selva chama D a n i e l D e Vo s

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esde minha infância meu irmão mais velho me contava sobre os exploradores da África: Livingstone, Stanley, Burton… Ele também queria ser explorador. Um dia – eu tinha na época 14 anos – descobri a existência da floresta amazônica, a maior do mundo. Já que meu irmão iria à África, minha escolha estava feita. A África seria dele, a floresta amazônica seria minha! Informei meus pais, mas estes riram muito de meus planos. Comprei um livrinho O Português sem custo e em janeiro de 1981, com 21 anos, parti por alguns meses ao Brasil. Eu sabia pouca coisa sobre a Amazônia. Tinha lido alguns livros do autor holandês Anthony Van Kampen. Seu trabalho com os leprosos na floresta amazônica brasileira me emocionou bastante. Seus livros me fizeram, a caminho do interior da Amazônia, passar por Manaus. Lá encontrei um padre da Congregação holandesa do Espírito Santo que me propôs acompanhá-lo até Carauari, no Rio Juruá, para conhecer a população e a selva. Assim dito, assim feito. Lá, entrei em contato através de outro padre e de uma enfermeira com os leprosos. Cada dia participava da ronda da enfermeira pelos bairros de leprosos para tratar suas feridas. Após algum tempo eu os visitava sozinho. Sua condição dolorosa me deixou comovido por muito tempo. Em Carauari toquei um dia no assunto índios, mas veio pouca ou nenhuma resposta. Dizia-se mesmo: ‘Dentro de dez anos não haverá mais índios no Brasil!’ No final desta primeira viagem topei em Manaus com o finado Simon le Fevere de ten Hove. Ele voltava de uma aldeia Yanomami e queria ir de novo na direção do Rio Araçá, um afluente do Rio Negro. Decidimos nos preparar para uma nova viagem às terras dos Yanomamis, com o propósito de realizar um documentário em 16 mm sobre a vida na Amazônia. Passamos algumas semanas numa aldeia Yanomami, seguimos a extração da borracha pelos seringueiros e visitamos duas minas de ouro na região de Itaituba (Rio Tapajós), onde se coletava o pó de ouro na floresta e no rio. Depois de seis meses, em maio de 1982, nosso filme estava pronto. Recebeu o título de Grito Amazônico. Entretanto, voltei a Carauari e fiz um filme e uma reportagem de diapositivos. Na Bélgica, consegui recolher algum dinheiro para a construção de um lar para os leprosos que viviam às margens do Rio Juruá e que poderiam residir lá, quando precisavam de longos cuidados médicos. Em 1983 Simon e eu partimos de novo por um ano para o Brasil. Mas nossos caminhos se separaram logo. Eu fui a Carauari para o lar, cuja administração passou inteiramente para as mãos do município. Simon queria fixar-se definitivamente no Brasil e ocupava-se com infinita paciência da maçada administrativa, enquanto trabalhava para uma ONG com meninos de rua em Manaus. Somente dois anos mais tarde eu voltaria por um tempo mais longo à aldeia dos Yanomami para estudar seu idioma e cul-

tura. No entanto, em setembro de 1995 a fatalidade bateu à porta e Simon foi assassinado perto de sua casa em Manaus por dois meninos de rua. Quinze minutos antes da rixa à facada, Simon e eu tinhamos nos despedido depois de uma comidinha. Meu melhor amigo, o animado e sempre alegre Simon, não estava mais presente. Seu passamento significou uma perda pessoal extremamente penosa. Com ele vivi muitas aventuras e minha primeira vivência com os índios amazônicos. A partir daí, algo mudou na minha relação com o Brasil. Nunca mais seria a mesma. Simon nos deixou vários diários de seu trabalho de campo, assim como um dicionário Yanomami. Depois de Carauari, ainda no ano de 1983, eu queria decididamente subir o Rio Japurá. Tinha a impressão que era um dos tantos rios desconhecidos do Estado do Amazonas. Pude acompanhar um regatão no Rio Japurá e fiz uma reportagem sobre os ribeirinhos e sua relação com o regatão. Terminei minha jornada numa aldeia dos índios Maku-Guariba. Mais tarde visitei, numa segunda viagem de barco pelo Rio Japurá, uma aldeia Kanamari. No início dos anos 80, percorri principalmente o Estado do Amazonas, às vezes o do Pará. Tinha visto tantos recantos da selva e observado diversas populações, mas em nenhuma parte podia montar minha tenda. Isto mudou quando encontrei Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü. Em janeiro de 1984 fui para o Alto Solimões. Fiquei sabendo que na cidadezinha de Benjamin Constant existia um pequeno centro de encontro, onde os índios do Alto Solimões (principalmente os ticuna) se reuniam regularmente. Lá topei com Pedro Inácio Pinheiro, na época presidente do CGTT (Conselho-Geral da Tribo Ticuna), ou seja, capitão-geral do povo Ticuna. Contei-lhe minhas andanças pela Amazônia. Ele me convidou para sua aldeia Vendaval a fim de conhecer o povo Ticuna e enteirar-me de sua problemática. No momento de minha chegada à região Ticuna, a luta para a demarcação oficial das terras estava em pleno andamento. Patrões brancos foram expulsos e os índios acabavam de ganhar alguma liberdade, uma recuperação de suas raízes despontava, como também a conscientização de seus direitos à terra previstos pela constituição. Os Ticuna empenhavam-se para fazer valer estes direitos. Junto com Pedro e mais alguns da aldeia de Vendaval partimos de canoa às numerosas aldeias Ticuna para convidar os capitães Ticuna (como se chamavam os chefes de aldeia) para uma reunião geral para discutir a estratégia a seguir. Vários chefes e membros do Conselho Ticuna me pediram para divulgar fora do Brasil sua problemática, sobretudo dos direitos à terra. Desde o começo era evidente que não queriam ser objetos, mas sujeitos. Com estas lutas subiram as tensões entre os diversos grupos de população e interesses na região do Alto Solimões. Atingiram um ponto dramático com o massacre de Capacete, em 28 de março de

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antropologia

A festa da moça nova entre os Ticuna

Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü, presidente do Conselho Geral da Tribo Ticuna.

1988, quando, num conflito com um madeireiro, 14 índios Ticuna desarmados morreram e 23 outros ficaram feridos. Para levar seus problemas a público fora do Brasil não consegui muito mais que algumas entrevistas na imprensa e na rádio. Após o massacre aderi ao recém-fundado grupo flamengo de apoio aos povos indígenas, o KWIA. Escrevi alguns artigos para sua revista e, em parte porque houve pouco avanço no processo e julgamento dos culpados e na demarcação oficial de sua área, decidi, em colaboração com o KWIA, convidar Pedro para ir à Bélgica. Assim, ele poderia contar pessoalmente sua história à imprensa e buscar apoio nas diversas organizações internacionais. Foi a primeira vez que Pedro veio à Europa. Nessa ocasião escrevi o livrinho Calha Norte e os índios do Norte do Brasil – A problemática dos índios Yanomami, Tikuna e waimiri-atroari. (Série Inheemse Volkeren Vandaag t. 1, 1990, edição KWIA). Em 1991 demarcaram-se oficialmente as duas principais áreas dos Ticuna. Em 1993 fui convidado pelo Tropenmuseum (Museu dos Trópicos) de Amsterdã para prepararmos juntos a exposição Amazônia, que abriria em 1996. Esse projeto sobre a cultura Ticuna focalizaria a festa da fertilidade. O Conselho Ticuna concordou e apreciou a colaboração com o Tropenmuseum. Procurou-se, então, uma coleção representativa da cultura material, junto com a necessária documentação. Para os Ticuna, a mostra de objetos seria uma excelente oportunidade para contar sua vida e luta. No final de 1996 chega uma delegação Ticuna a Amsterdã e Pedro abre oficialmente a exposição. De repente, feita a demarcação, não havia mais interesses comuns ou ameaças. A união, antes tão importante na luta pela terra, parece perdida. Surgem sérios conflitos e divisões na comunidade Ticuna. Até os próprios pesquisadores se separaram contra sua vontade em dois campos. Reinava a suspeita e tornou-se difícil trabalhar nas comunidades Ticuna. Porém, não desisti de minha pesquisa de campo. Continuei seguindo os desenvolvimentos e as mudanças políticas dentro da comunidade Ticuna e escrevendo artigos para a revista Inheemse Volkeren do KWIA. Voltei a estudar e obtive, em 2002, bacharela-

do em Ciências da Família. Meu trabalho final tratou da Educação entre os povos índigenas Ticuna, Yanomami e Sioux. Em 2007-2008 colaborei em duas exposições no Etnografisch Museum de Antuérpia exclusivamente sobre o ritual da “moça nova” entre o povo Ticuna e no Musée International du Carnaval et du Masque (Binche) com uma parte sobre a festa da fertilidade entre os Ticuna. O catálogo da exposição de Binche, Basiques Instincts, leva um artigo meu, Worecü et la démarcation du territoire – La fête de la Nouvelle Fille ou la fête de la fertilité chez les Indiens Ticuna, que trata da festa e também do papel da festa na luta pela terra. No quadro da Europalia.Brasil e da exposição Índios do Brasil (2011) fiz, no Musée Royal d’Art et d’Histoire, duas conferências sobre os Ticuna: desde os primeiros contatos com o colonizador, os barões da borracha, a luta, a festa… até os acontecimentos e desafios atuais para o povo Ticuna. O fio da meada nesta história continua sendo o papel-chave de Pedro na luta pela terra e no que lhe aconteceu depois da demarcação. Ao longo dos 29 anos que trabalho com Pedro, tive desde o início até hoje um vínculo muito íntimo e uma profunda amizade. Ele foi quem me iniciou e introduziu à vida, ao espírito e à problemática dos Ticuna. Na medida do possível partilhei com ele todas as minhas iniciativas ou lhe comuniquei estas posteriormente. Atualmente preparamos juntos um projeto sobre esculturas de madeira e frutas. Seja como for, minha estada no Brasil foi determinante para o resto da minha vida. Levanto-me e deito literalmente no Brasil! Houve momentos em que duvidava, sentia um amor infinito ou uma dor profunda… “o que pelo amor de Deus venho eu ainda fazer aqui?” Mas recebia então um novo encargo ou o chamado da selva, que se apoderava tanto de mim que simplesmente ia comprar uma passagem na direção da Amazônia. Não há como escapar à selva! É muito mais do que uma coleção de árvores, um potencial econômico, turístico ou ecológico. Sobre esta vivência pode-se comunicar com grande facilidade com os índios. O meu encontro com Pedro não foi uma surpresa para ele, na sua juventude já sonhava que iria à Europa. Na minha última

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viagem (março de 2013), dizia no primeiro contato: já estou esperando um ano por você… Sobretudo é uma honra enorme poder

colaborar durante tantos anos e até agora em absoluta confiança com um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros.

As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot

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forte impacto cultural do escravismo transatlântico se faz sentir em grande parte do continente americano e, particularmente, na América Latina, no patrimônio linguístico. O Brasil é de longe a região que oferece o maior número de testemunhos através de numerosos africanismos que participam na sua variedade da língua portuguesa. A Bélgica é implicada em primeiro plano, através de dois linguistas, nas pesquisas sobre estes africanismos e, principalmente, nos bantuísmos (palavras de origem bantu, um conjunto agrupando mais de 500 idiomas falados na África Central, Oriental e Austral): Jacky Maniacky, franco-congolês, responsável pelo serviço de linguística do Museu Real da África Central (Musée Royal de l’Afrique Centrale) em Tervuren, e Jean-Pierre Angenot, belga naturalizado brasileiro, professor emérito de linguística na Universidade Federal de Rondônia. Jacky Maniacky tem, além de suas raízes e infância no Congo-Brazzaville, desenvolvido, desde 1997, em suas pesquisas de DEA e de doutoramento, uma expertise das línguas faladas nas regiões de Angola e do Congo, situadas em face do Brasil e fortemente implicadas no tráfico transatlântico. Aprofundando seus conhecimentos da região nas pesquisas pós-doutorais, surgiu o desejo de investigar o patrimônio legado do lado brasileiro. Decênios antes (1974), Jean-Pierre Angenot, na época pesquisador no Congo (antigo Zaire), levantou já um primeiro repertório dos bantuísmos no Brasil. Sua chegada neste país, há mais de 30 anos, permitiu a criação de um curso de linguística na Universidade Federal da Bahia. Depois de passar por Florianópolis, abriu uma fileira de estudos africanos no campus de Guajará-Mirim, Universidade Federal de Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Seu programa de mestrado é até hoje o único na América Latina dedicado à linguística africana. Em 2008, uma visita do professor Angenot a Tervuren ofereceu a oportunidade aos dois pesquisadores de se encontrarem e de unir seus recursos para aprofundar, por um lado, a pesquisa sobre o patrimônio linguístico bantu no Brasil e, por outro, de iniciar pesquisas sobre os numerosos idiomas bantu ainda não documentados, notadamente de Angola. Assim existe, desde 2009, através destes dois pesquisadores, uma colaboração intensiva entre a Universidade Federal de Ron-

dônia e do Museu Real da África Central, que conseguiu em referência aos bantuísmos estabelecer um banco de dados com hoje quase 5.000 entradas! Uma das próximas etapas desta colaboração será de afinar as etimologias propostas até agora para o vocábulo brasileiro de origem africana. Paralelamente a estas pesquisas, Jacky Maniacky dá cursos de linguística africana no programa de mestrado do campus de Guajará-Mirim como professor visitante. Além destes pesquisadores mencionados e ligados à Bélgica, outros linguistas, brasileiros desta vez, se reuniram a este projeto de estudos africanos, tanto doutores como doutorandos, que lhes oferece pesquisas de terreno em Angola e na Namíbia e visitas de estudos regulares no serviço de linguística de Tervuren. O objetivo a médio prazo é dispor, graças à esta colaboração belgo-brasileira, de vários especialistas nos idiomas africanos baseados na Universidade Federal de Rondônia e beneficiados da expertise reconhecida de Tervuren em matéria de linguística histórico-comparativa africana. Quando se fala de patrimônio linguístico africano no Brasil, trata-se principalmente de palavras de origem africana que se encontram na variedade do português falado no Brasil, seja na língua corrente, na gíria ou ainda em contextos particulares como quilombos e cerimônias religiosas. Por exemplo, caçula, bunda, moleque, fubá... Trata-se igualmente de influências gramaticais, ainda que essas sejam mais difíceis de estudar. Saber mais sobre os idiomas africanos permite aperfeiçoar os conhecimentos etimológicos do português do Brasil. Várias entradas dos dicionários de referência como o Aurélio ou o Houaiss ainda estão erradas. Mas estas pesquisas linguísticas contribuem também para melhorar o conhecimento da história do Brasil, notadamente em matéria cultural. Referências Jean-Pierre Angenot, Jean-Pierre Jacquemin e Jacques L. Vincke. Répertoire de vocables brésiliens d’origine africaine. Lubumbashi, Collection Travaux et Documents du CELTA, 1974. Jean-Pierre Angenot e Geralda de Lima V. Angenot. Dicionário de bantuísmos brasileiros. Manuscrito. Porto Velho, Universidade de Rondônia. Jacky Maniacky. Thèmes régionaux Bantu et africanismes brésiliens. Margarida Petter e Ronald Beline Mendes (eds.), Proceedings of the Special World Congress of African Linguistics: Exploring the African Language Connection in the Americas, São Paulo, Humanitas, 2009, p. 153-165.

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ensino e pesquisa

Os belgas nas origens da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” Luciana Pelaes Mascaro

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m 1889 Luiz Vicente de Souza Queiroz arrematou a Fazenda São João da Montanha, com 319 hectares e distante três quilômetros da cidade de Piracicaba (SP). Alguns anos depois doou a fazenda ao governo do Estado de São Paulo, como estratégia para alcançar seu sonho de ali instalar uma escola agrícola, o que começou a ser realizado a partir de 1893. A futura escola seria formada com a participação maciça de profissionais estrangeiros e vale ressaltar as relações estabelecidas com o Institut Agricole de Gembloux, na Bélgica. Escola superior

de nível universitário, lá estudaram, entre 1863 e 1914, pelo menos 38 brasileiros, dos quais sete se formaram engenheiros agrônomos. Um deles, José Fortunato de Camargo – formado em agronomia em Gembloux – e proprietário da Fazenda Aterradinho, município de Angatuba (SP), “contratou em 1899 os agrônomos Léon Renaud e Hernan Vande Venne para instalar uma leiteria industrial e uma fábrica de margarina [manteiga]” (Stols, 1987, p. 373). Ainda em 1893, chegava ao Brasil o engenheiro agrônomo belga Leon Alphonse Morimont, formado pelo conhecido Ins-

Fachada da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” que se encontra no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, de Mario de Sampaio Ferraz, publicado em Bruxelas, 1911.

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parte 4 – colaboração científica

Grupo de professores e assistentes da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” em fotografia no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.

Imagem do salão da Congregação da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, com o diretor Dr. Clinton Smith e os professores Vincent, Puttemans, Charropin, Arié, Mendes, Gagezou, Dias, Sanders e Ribeiro, que se encontra no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.

titut Agricole de Gembloux. Figura de renome na sua profissão, tinha larga experiência profissional obtida em várias estadias pela França, Espanha, Itália, por Portugal e África. Foi encarregado de elaborar o projeto para a escola idealizada por Luiz de Queiroz. Em dezembro desse mesmo ano, Morimont foi nomeado diretor da nascente escola por Jorge Tibiriçá Piratininga, então Secretário da Agricultura, Negócios, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo. Permaneceu em seu cargo na Fazenda São João da Montanha por pouco tempo, apenas até 1896 (Perecin, 2004, p. 135), devido a divergências políticas com o presidente recém-eleito Campos Sales. Consta que havia se dedicado profundamente ao projeto da escola de Piracicaba e deixou o Brasil muito ressentido e doente, tendo morrido no mar, durante seu retorno à Bélgica (Perecin, entrevista, 2004). Morimont desempenhou papel especialmente importante na elaboração dos moldes da escola que ali surgia. Implantou um modelo prático-teórico equilibrado, baseado no sistema do Instituto de Gembloux, mas que, afinal, “não deixou de ser um produto do academicismo europeu, para atender às necessidades de modernização do setor primário da economia, a ser testado no Estado de São Paulo” (Perecin, 2004, p. 155-157). Quando Carlos Botelho assumiu a Secretaria da Agricultura, no início do século XX, continuou a contratação de profissionais estrangeiros – não sem algumas reações xenófobas (Perecin, 2004, p. 301) – para a escola agrícola de Piracicaba, dentre os quais vários de nacionalidade belga ou formados na Bélgica, como o conhecido Arsène Puttemans, arquiteto paisagista, que foi professor de paisagismo e horticultura (ver nota em ‘Arquitetura’), e outros abaixo relacionados. Louis Misson, engenheiro agrônomo formado em Gembloux, assumiu a 4ª Cadeira, mas foi logo requisitado pela Secretaria da Agricultura por seu prestígio como cientista (Perecin, 2004, p. 293) e publicou, em Bruxelas, em 1907 e outras edições, o livro

Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil) (A indústria pastoril no Estado de São Paulo). Jean Baptiste Michel, engenheiro agrícola igualmente vindo de Gembloux, foi professor de Agricultura (antiga 4ª Cadeira) e sucedido por Hubert Puttemans, engenheiro agrônomo belga, que tinha sido um dos primeiros professores da Escola Politécnica de São Paulo (Perecin, 2004, p. 301 e 349). Publicou em 1915, na cidade de Nivelles (Bélgica), o livro Agricultura Geral Especialmente Apropriada ao Brasil. Além desses, também foi contratado Nicolau Athanassof, agrônomo búlgaro que havia estudado no Instituto de Gembloux, e que assumiu a 5ª Cadeira, mais tarde dividida em zootecnia – a cargo de Athanassof – e zoologia e higiene. Publicou diversos livros sobre criação de gado e suínos, dentre os quais se destaca o manual do criador Os Bovinos, publicado em São Paulo, em 1922, que traz figuras de exemplares Flamengos Vermelhos premiados em 1911 e 1912 nas exposições de gado em Ipre (Bélgica). Depois de sua passagem por Piracicaba, foi contratado como diretor do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros (RJ), substituindo outro belga, Hector Raquet, na função de diretor. (Ver texto “bovinotecnia”) Em 1911, Mario de Sampaio Ferraz editou em Bruxelas um livro muito bem cuidado e intitulado Piracicaba e sua Escola Agrícola. Nele consta a relação de professores e de seus assistentes, o período de matrícula, o conteúdo do curso, além de fotos de interesse: dos professores, assistentes e alunos – em seus laboratórios e em trabalho de campo – e do famoso prédio central, projeto de José Van Humbeeck, situado em frente ao jardim projetado por Arsène Puttemans. A presença desses técnicos e profissionais demonstram, por um lado, que o período era de renovação para a produção rural

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ensino e pesquisa

Trabalho de mensuração de um cavalo pela lente do dr. Vincent na Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, fotografia publicada em Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.

brasileira, especialmente na região paulista que começava a vislumbrar o possível declínio da produção cafeeira (confirmado a partir de 1929). Por outro, se evidencia o apelo dos governantes ao conhecimento estrangeiro do setor, no quadro do qual a Bélgica tinha excelente reputação. Assim, esse país viria a contribuir de forma relevante, ao lado da França e dos Estados Unidos, para a formação e o desenvolvimento da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”. Em tempo, para complementar a atuação de profissionais belgas no quadro do ensino relativo à agropecuária, é preciso citar René Straunard, formado pela Escola de Medicina Veterinária de Cureghem, Bruxelas, que chegou ao Brasil pela primeira vez em 1913, tendo ido para Catalão, em Goiás. Voltou ao Brasil em 1920, quando foi contratado como Inspetor Veterinário da Diretoria de Indústria Animal e trabalhou no Jóquei Clube de São Paulo. A partir de 1931 começou a atuar como professor no Instituto de Veterinária (criado em 1919 e atual Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo), quando assumiu interinamente o cargo de professor catedrático da Cadeira de Clínica e Obstetrícia do Instituto (D.O. do Estado

de São Paulo, p. 3.368, 1931). Ocupou as cátedras de Patologia e Clínicas Cirúrgica e Obstetrícia, de Patologia e Clínica Médicas, Indústria e Inspeção de Produtos de Origem Animal. Consta que produziu importante trabalho sobre patologia do aparelho locomotor em equinos e foi um dos maiores cirurgiões veterinários do Brasil (Matera, 1963-64). Referências D.O. do Estado de São Paulo, Imprensa Official, n. 99, p. 3.368, sexta-feira, 1 de maio de 1931. Matera, Ernesto Antônio. Professor René Straunard. Revista da Faculdade de Medicina Veterinária de São Paulo, Vol. 7, fasc. 1, 1963-64. Misson, Louis. Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil). Bruxelles: Société anonyme, M. Weissenbruch, 1912. Perecin, Marly Therezinha Germano. Entrevista à Rádio Educadora de Piracicaba AM 1060 Khertz em 20/11/2004. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2013. Perecin, Marly Therezinha Germano. Os Passos do Saber: a Escola Agrícola Prática “Luiz de Queiroz”. São Paulo: Edusp, 2004. Stols, Eddy. Penetração econômica, assistência técnica e “brain drain”: aspectos da emigração belga para a América Latina por volta de 1900. Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas = Anuario de História de América Latina (JbLA), n. 13, 1976 (Ejemplar dedicado a: Emigración europea a América Latina durante los siglos XIX y XX), p. 361-385.

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parte 4 – colaboração científica

A cooperação entre o Institut International de Bibliographie e a Biblioteca Nacional Jacques Gillen

P

ara Paul Otlet (1868-1944) e Henri La Fontaine (1854-1943, Prêmio Nobel da Paz em 1913), os dois fundadores do Office International de Bibliographie (OIB) e do Institut International de Bibliographie (IIB), a cooperação internacional é primordial. Consideram-na como uma dimensão essencial da missão que assumiram de providenciar ao mundo os instrumentos de acesso ao conhecimento. Além de oferecer possibilidades para estender seu campo de trabalho, ela permite, no seu espírito, favorecer a compreensão internacional. A paz aparece em filigrana do conjunto de seus projetos e as instituições criadas na sequência do OIB – tais como a Union des Associations Internationales (UAI) e o Musée International em 1910 –, acentuarão a dimensão internacionalista do conjunto que formarão a partir de 1920 o Palácio Mundial ou Mundaneum.

A primeira missão do OIB consiste em levantar o Répertoire Bibliographique Universel (RBU, destinado a reunir as referências de todas as obras publicadas no mundo e baseado no sistema da Classification Décimale Universelle (CDU). Desde sua criação em Bruxelas, em 1895, uma cooperação internacional se instala, notadamente, sob a forma de intercâmbio de publicações e de fichas bibliográficas, em torno das associações científicas, oficinas bibliográficas e bibliotecas que participam no desenvolvimento do RBU e da CDU. Na América Latina, o OIB dispõe de um embaixador na pessoa de Federico Birabén (1866-1929), promotor da CDU e dos métodos recomendados pela OIB em seu país, a Argentina. Ele atuou igualmente no Brasil, no Peru e no Chile, onde contribuiu com a criação de escritórios bibliográficos.

A sala-oficina do catálogo do Mundaneum.

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Os primeiros contatos entre o OIB e a Biblioteca Nacional do Rio parecem iniciar-se por volta de 1902. A partir dessa época, a Biblioteca Nacional do Rio envia publicações brasileiras ao OIB. Por volta de 1910-1911, seu diretor, Manuel Cícero Peregrino da Silva (1866-1956), aproveita sua estada em Bruxelas para visitar o OIB e decide aplicar o sistema da CDU na Biblioteca do Rio e de introduzir o RBU, do qual ele encomenda uma cópia completa. Trata-se da primeira encomenda tão extensa ao OIB. O primeiro volume de 23 mil fichas é despachado em dezembro de 1911 pelo intermediário de Manuel de Oliveira Lima (18671928), embaixador do Brasil na Bélgica. A colaboração se prolonga até 1914 e leva à criação de uma seção bibliográfica dentro da Biblioteca Nacional do Rio. Ela comporta várias remessas de fichas e a visita, em 1913, de Britto Galvão, funcionário dessa mesma biblioteca, que vem a Bruxelas estudar a organização e o funcionamento do RBU. Esta cooperação internacional foi decisiva para que primeiro o OIB e em seguida o Mundaneum pudessem desenvolver o RBU e a CDU de maneira tão considerável: o RBU atingirá um número

aproximado de 16 milhões de fichas e a CDU se tornará o padrão em inúmeras bibliotecas do mundo inteiro. Atualmente, o Mundaneum, instalado em Mons (Bélgica) desde 1993, é um centro de arquivos e um espaço de exposições temporárias. Conserva as coleções reunidas por seus fundadores e sucessores (publicações, jornais, periódicos, cartazes, fichas, fotografias, cartões postais…), como também os papeis pessoais de Paul Otlet e de Henri La Fontaine e os fundos de arquivos tratando de três temáticas principais: o pacifismo, o anarquismo e o feminismo. Jacques Gillen, historiador do pacifismo e do movimento anarquista na Bélgica, é diretor do Mundaneum em Mons.

Referências Le Mundaneum. Les archives de la connaissance. Mons, Impressions Nouvelles, 2008; Paul Otlet, fondateur du Mundaneum (1868-1944). Architecte du savoir, artisan de paix. Bruxelas, Impressions Nouvelles, 2010; Henri La Fontaine, Prix Nobel de la paix en 1913. Un Belge épris de justice, Bruxelas, Mundaneum-Racine, 2012. Mundaneum, Papéis pessoais de Paul Otlet, dossier numéroté 504 (PP PO 942).

O Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas e Barroco Mineiro E r i k a B e n a t i R a b e l o e M y r i a m S e r c k - D e l wa i d e

O

Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas (IRPA), antigo ACL (Archives Centrales Iconographiques d’Art et le Laboratoire Central), surgiu oficialmente em 1948, ano em que tornou-se independente em nível administrativo do Museu Real de Arte e História de Bruxelas. Entretanto, remontando no tempo, as atividades do IRPA se iniciaram em 1934, com a chegada de Paul Coremans (1908-1965) para os departamentos de documentação e do laboratório de pesquisas físico-químicas do Museu Real. Doutor em química, Paul Coremans implementou projetos de restauração envolvendo os principais museus belgas. Desejando que seus departamentos crescessem cientificamente, direcionou a conservação de obras de arte segundo uma metodologia científica, baseada no estudo exaustivo de seus materiais constitutivos. Preocupado com a comunicação, criou uma rede de relações com universidades da Europa, dos Estados Unidos e demais centros de conservação. O surgimento do IRPA é contemporâneo de instituições internacionais pioneiras, tais como o Courtauld Institute, em Londres (1932), e o Istituto Centrale per il Restauro (ICR), de Roma, criado por Cesare Brandi em 1939. Como diretor do IRPA, Coremans conciliou duas áreas distintas, mas complementares: a documentação e a análise científica. Deu início a uma vasta campanha de inventário fotográfico do patrimônio da Bélgica, que, apesar de ser um país pequeno, concentra uma riqueza excepcional. Essas campanhas de inventário

aceleraram-se durante o período da Segunda Guerra Mundial. Estima-se que entre 1941 e 1945 mais de 160 mil fotografias foram realizadas, e isto levando em conta o racionamento de gasolina, do material fotográfico em geral e dos constantes bombardeios. Esse acervo fotográfico foi de grande utilidade uma vez terminada a guerra, pois serviu para uma avaliação precisa do estado de conservação do patrimônio móvel e imóvel e para o desenvolvimento de uma estratégia de recuperação. Algumas dessas fotografias são, em casos extremos, o único testemunho de objetos completamente destruídos pela guerra (Masschelein-Kleiner, p. 18). Todo esse material fotográfico é, ainda hoje, uma excelente base de informação para restauradores e pesquisadores em geral. Se por um lado a guerra engendrou a deterioração do patrimônio, por outro, e paradoxalmente, ela promulgou, nos anos seguintes, o desenvolvimento de teorias relativas à sua recuperação. Os anos do pós-guerra foram vividos, em nível mundial, como um período de reflexão, de avaliação e de procura de critérios na área do patrimônio. Sem dúvida, a experiência desse inventário, realizado em tempos difíceis, com uma equipe composta de artistas, de historiadores de arte e fotógrafos, influenciou o desenvolvimento de uma prática baseada na interdisciplinaridade, pedra angular do trabalho do IRPA. No nível nacional, o IRPA apoiou a criação do Centro Nacional de Pesquisas ‘Primitifs flamands’ (1949), cujos objetivos

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eram constituir um inventário, um arquivo fotográfico e o estudo da produção de pintura do século XV nos antigos países baixos meridionais (atual território belga). No cenário internacional, o IRPA participou de momentos históricos, como da criação do International Council of Museums (ICOM) em 1946, do International Institute for Conservation of Historic and Artistic Works (IIC) em 1950, do International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property (ICCROM) em 1959 e ainda e do International Council on Monuments and Sites (ICOMOS) em 1964. Em 1957, o projeto de interdisciplinaridade idealizado por Coremans é oficializado e surge a atual denominação: Institut Royal du Patrimoine Artistique/Koninklijk Instituut voor het Kunst­ patrimonium. Historiadores de arte, restauradores, químicos, físicos trabalham juntos para o estudo, o inventário e a conservação do patrimônio artístico. O projeto do edifício independente com 8.700 m2, separando fisicamente cada área de trabalho, foi lançado e a pedra fundamental foi posta em 9 de maio de 1959 (Masschelein-Kleiner, p. 25). Em 1963, a química Liliane Masschelein -Kleiner integra a equipe do laboratório, dedicando-se às análises dos materiais orgânicos, até então difíceis de serem identificados pela microscopia e pela microquímica. Os laboratórios adquiriram, a partir da década de 60, um equipamento extremamente moderno para a realização de exames científicos.

Formação e estágio no IRPA

Paul Coremans, Jair Afonso Inácio e Fernando Barreto em Ouro Preto em 1964.

A partir de 1949, o IRPA começou seu programa de estágio em seus ateliers de restauração. Coremans, extremamente visionário, via sua instituição como um verdadeiro centro de formação. Enquanto conselheiro da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco), visitou vários países e observou que havia urgência em capacitar os recentes centros de conservação surgidos pelo mundo inteiro com funcionários formados segundo uma metodologia científica adequada. Quando o IRPA mudou-se para o novo prédio em outubro de 1962, o estágio tornou-se um curso de pós-graduação em parceria com universidades belgas (Ceulemans, p. 208), programa que durou somente três anos, mas que ganhou reputação internacional. Entre 1960 e 1970, 89 estagiários, entre estrangeiros e belgas, passaram pelo IRPA. Após o falecimento de Paul Coremans (1965) a pós-graduação voltou a ser um estágio de aperfeiçoamento, mais modesto, mas mantendo os objetivos iniciais centrado no estudo científico das obras de arte.

Antônio Cruz Souza (MG), Marcos Cézar de Sena Hill (RJ), Kathia Berbert Sant’Ana (BA), Beatriz Gonçalves Gaede (MG), Erika Benatti Rabelo (MG), Erika Santos (RJ), Karen Barbosa (SP). O primeiro estagiário brasileiro (1961-1962) viveu uma época importante da história do IRPA, que culminou com a transferência dos ateliers, dos laboratórios e dos arquivos para o novo prédio, inaugurado em dezembro de 1962. Jair Inácio não chegou a trabalhar nos novos locais, pois seu estágio terminou três meses antes. O percurso profissional de Jair é típico de sua época: sem formação acadêmica, ele foi admitido no Sphan (orgão que teve variações de nome e siglas desde sua criação: Dphan, Sphan, IBPC e atualmente Iphan) devido a seu talento como pintor na cidade de Ouro Preto (MG) e graças ao mecenato da Fundação Rockefeller, de Nova York, pôde vir estudar na Europa. Nos arquivos do IRPA encontram-se cartas de recomendação elogiosas a Jair da parte de Rodrigo Mello Franco Andrade, primeiro diretor do Sphan e pioneiro incontestável da recuperação patrimonial no Brasil, e de Edson Motta, restaurador, funcionário do Sphan e professor universitário no Rio de Janeiro. Nessa época, os restauradores eram ainda polivalentes, trabalhavam objetos diversos. Jair Inácio participou da restauração da ‘Descida da Cruz’, pintura de Rubens conservada na Catedral de Antuérpia, sob a direção de Georges Messens. Foi contemporâneo de Agnes Grafin Ballestrem, formada no Landesmuseum, de Bonn, Alemanha. Agnes tornaria-se responsável pelo atelier de restauração de escultura do IRPA, em seguida responsável pelo

Estagiários brasileiros Em 64 anos de existência, o IRPA recebeu 14 estagiários do Brasil, procedentes dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia: Jair Afonso Inácio (MG), Fernando Barreto (PE), Regina Costa Pinto Dias Moreira (BA), Francesca Karolyi (SP), Liana Gomes Silveira (BA), Claudina Maria Dutra Moresi (MG), Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (MG), Luiz

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Estagiários do Institut Royal du Patrimoine Artistique, 1961-1962.

Landesmuseum e diretora do Centraal Laboratorium voor Onderzoek van Voorwerpen van Kunst en Wetenschap, em Amsterdã. Durante seu estágio, Coremans organizou visitas profissionais a fim de que Jair Inácio pudesse usufruir ao máximo de sua experiência europeia. Entre os meses de abril e maio de 1962, o estagiário visitou o Museé National Suisse de Zurich, os ateliers do Musée du Louvre sob a direção de Madeleine Hours e o Instituto para o Exame e Restauro das Obras de Arte de Lisboa. Antes de retornar ao Brasil visitou a Rockefeller Foundation em Nova York. Paul Coremans viajou ao Brasil em 1964 como conselheiro da Unesco. Visitou o Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas Gerais e Pernambuco. Nessa ocasião conheceu Fernando Barreto, professor da Universidade de Pernambuco e restaurador de pintura do, então, Dphan. Fernando viria ao atelier de pintura do IRPA em 1964/1965 com uma bolsa concedida pelo governo belga. Na década de 70 o quadro muda um pouco e os estagiários brasileiros que chegam ao IRPA vêm com uma formação universitária

em Belas Artes e aprendizado em ateliers europeus. Ou seja, já há uma especialização entre as diferentes áreas. Regina Costa Pinto Dias Moreira, estagiária em 1970/1971 no atelier de pintura, tinha formação de três anos no Instituto de Conservación y Restauración de Bienes Culturales de Madri, criado em 1961 sob o incentivo da Unesco e particularmente de Paul Coremans. Regina tornar-se-ia referência na França onde durante mais de duas décadas esteve a cargo de restaurações de obras-primas conservadas no Museu do Louvre. Recentemente colaborou com restaurações no Masp, de São Paulo. Francesca Karolyi estagiou no atelier de escultura policromada em 1971/1973. Em seguida, trabalhou no IRPA e na Alemanha (Munique). Liana Gomes Silveira era restauradora do Museu de Arte Sacra de Salvador quando veio estagiar no IRPA em 1976/1977. Em seu currículo constava um curso na Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, em Madri. Durante seu estágio no atelier de esculturas policromadas, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide, dedicou-se ao estudo da substituição da

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reintegração à base de pintura a óleo por resinas sintéticas testadas em envelhecimento artificial, bem como a prática de remoção mecânica de repinturas. No Brasil dos anos 80 surgem cursos de especialização en conservação e restauração de bens móveis. Em 1980, o Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor) e, no mesmo ano, outro curso de especialização, na Universidade Federal da Bahia. A estagiária Claudina Maria Dutra Moresi, química do Cecor-UFMG frequentou o IRPA em 1986/1987, juntamente com seu marido, Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (atelier de pintura). Claudina desenvolveu um trabalho no Cecor-UFMG baseado em sua experiência na Bélgica. Voltou ao IRPA em 1991 para uma pesquisa específica. Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira foi professor da Fundação de Arte de Ouro Preto. Luiz Antônio Cruz Souza, químico do Cecor-UFMG, esteve no IRPA em 1987/1988 e em seguida estagiou no Getty Conservation Institute, em Los Angeles, EUA. Luiz Antônio é atualmente professor do Cecor-UFMG e representante do Brasil no conselho do Iccrom. Marcos Cézar de Sena Hill, diplomado do Cecor-UFMG, estagiou no atelier de escultura policromada em 1987/1988, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Diplomou-se pela Universidade de Louvain-La -Neuve e é professor de História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA-UFMG). Kathia Berbert Sant’Ana foi estagiária do atelier de pintura do IRPA em 1988/1989, sob direção de Nicole Goetghebeur. Trabalhou no Museu de Arte Sacra de Salvador, na Bahia, e no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Beatriz Gonçalves Gaede estagiou no atelier de escultura policromada em 1990/1991, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Erika Benati Rabelo, diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de escultura policromada em 1992/1993. Domiciliou-se na Bélgica e colabora com o IRPA desde 1997, onde foi responsável por vários projetos de restauração. Realizou pesquisas e publicações sobre a escultura barroca na Bélgica. Erika Santos estagiou no atelier de escultura policramada em 2007/2008. Domiciliou-se na Bélgica e estudou na Artesis Hogeschool de Antuérpia. E Karen Barbosa, diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de pintura em 2010/2011. Karen atualmente é coordenadora da área de conservação e restauração do Museu de Arte de São Paulo (Masp).

tação dos órgãos nacionais de preservação do patrimônio cultural no Brasil e na América Latina. Nas décadas seguintes essa relação continua, mas de outra forma. Ela caracteriza-se por uma troca de conhecimentos. Vemos a participação de belgas em cursos e congressos no Cecor-UFMG e no Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib), criado pelas professoras Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, fundadora do Cecor-UFMG, e Myriam Ribeiro de Oliveira, doutorada pela Universidade de Louvain-La-Neuve, professora da UFRJ e pesquisadora do Iphan. Em 1985, acontece o seminário sobre adesivos naturais, vernizes e utilização de solventes em restauração, ministrado por Liliane Masschelein-Kleiner, do IRPA, e coordenado por Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, no Cecor-UFMG. Em 1989, realiza-se o seminário Taller de actualización para América Latina: escultura policromada, organizado pelo Getty, Programme des nations unies pour le développement (PNUD), Unesco e UFMG, também no Cecor. Participaram deste seminário o belga Jean-Albert Glatgny, restaurador autônomo formado no IRPA, Myriam Serck-Dewaide, Monique Péquignot e Agnes Grafin Ballestrem. O I Congresso Internacional do Ceib em Mariana (1998), contou com a participação do professor Ignace Vandevivere (1938-2004) da Universidade de Louvain-La-Neuve e diretor do Museu de Louvain-La-Neuve. O III congresso do Ceib em São João Del Rei (2003) teve a participação de Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de escultura policromada e em seguida diretora do IRPA. Ela também publicou no Boletim do Ceib Breve história da evolução dos tratamentos das esculturas. O IV congresso do Ceib em São João Del Rei (2005) contou com a participação de Michel Lefftz, atual professor da Fundep (Facultés Universitaires Notre-Dame de la Paix), de Namur. Sua conferência foi publicada na revista do Ceib, Imagem Brasileira, com o título “Análises morfológicas dos drapeados na escultura portuguesa e brasileira. Método e vocabulário”. Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de esculturas policromadas do IRPA (1973-1999); Responsável pelo Departamento de Conservação do IRPA (1999-2002); Diretora do IRPA (2003-2011); co-autora de Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique, dans Policromia. A esculptura  policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e autora de ‘Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique’, Policromia. A esculptura  policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e ‘Breve história da evolução dos tratamentos das esculturas’, Boletim do Ceib, Belo Horizonte, vol. 9, n. 31, juillet 2005.

Considerações finais O relatório de Paul Coremans de sua missão ao Brasil e à América Latina como conselheiro da Unesco em 1964 é um documento interessante. Além de descrever o que viu no Brasil e sugerir medidas protetoras para os sítios históricos visitados, ele analisa em profundidade o funcionamento do antigo Dphan. Havia, nos anos 60, uma dependência do Brasil, nos níveis teórico e financeiro (bolsas de estudo), em relação aos países onde a estrutura patrimonial estava mais organizada. A relação belgo-brasileira desse período inscreve-se nesse âmbito. Observa-se a dependência internacional para os assuntos patrimoniais do Brasil. O IRPA e a Unesco forneceram recursos materiais e humanos para a capaci-

Erika Benati Rabelo, Master em Conservação Preventiva (Paris I-Sorbonne), Restauradora do IRPA em Bruxelas; autora de ‘Les imita-

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Referências

tions de marbre dans le baroque en Belgique’, Policromia. A Escultura Policromada Religiosa dos Séculos xvii e xviii. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 95-102, e ‘L’Ange Gardien et la Sainte Hélène de Cornelis Vander Veken (1666-1740). Analyses stylistique, technique et matérielle, traitement de conservation’, Bulletin de l’IRPA, 31, 2004/05 (2006).

Ceulemans, C. Historiek van de stage,  Bulletin de l’Institut royal du Patrimoine artistique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 208. Masschelein-Kleiner, L. Les cinquante ans de l’IRPA, Bulletin de l’Institut royal du Patrimoine artistique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 18 e 25. Archives KIK/IRPA – Bruxelas.

A cooperação acadêmica, científica e técnica entre Bélgica e Brasil Claude Misson

A

s relações entre o Reino da Bélgica e a República Federativa do Brasil sempre foram marcadas pelo respeito, pela amizade e pela cooperação. Após a Grande Guerra, em que o Brasil, neutro, defendeu a nossa integridade territorial, e a visita de Estado dos nossos Soberanos em 1920, sendo a primeira de um Rei e uma Rainha ao Brasil republicano, deu-se um impulso que se traduziu por um crescimento considerável dos nossos investimentos e das nossas trocas comerciais. Se, hoje, estas trocas não correspondem ainda inteiramente ao potencial dos nossos dois países, convém observar que, de acordo com o Banco Central, a Bélgica situa-se entre os mais importantes investidores no Brasil.

encontros. Esse acordo prevê, além disso, o desenvolvimento da colaboração nos domínios das biociências, da agroindústria, da engenharia mecânica, do transporte e da logística e, por último, da aeronáutica e da espacial. Ainda em 2009, as visitas à Bélgica de representantes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária-Embrapa e de uma importante delegação do Foro das Assessorias das Universidades Brasileiras para Assuntos Internacionais-Faubai ampliaram o conhecimento mútuo e aceleraram a aproximação entre instituições dos nossos países. O interesse manifestado pelas duas partes para uma colaboração mais intensa induziu as principais universidades belgas a participar – fato inédito – de uma missão econômica presidida por S. A. R., o Príncipe Philippe (2010). Essa “estreia” foi valorizada pelos encontros e seminários organizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília; além disso, demonstrou a vontade das nossas universidades de reforçar as relações transatlânticas. Sobretudo, sublinhou a relação necessária que deveria existir entre a atividade acadêmica, a pesquisa e a economia. Procedendo de uma mesma lógica, esforços foram envidados para estimular cooperações em setores de alta tecnologia. As primeiras visitas à Bélgica do presidente da Agência Espacial Brasileira-AEB e em seguida do presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear-CNEN permitiram constatar o interesse para colaborações entre cientistas belgas e brasileiros nos domínios da pesquisa espacial e da pesquisa nuclear. Negociações entre a AEB e o Centre Spatial de Liège e, posteriormente, entre a CNEN e o Centre d’Etudes Nucléaires (SCK-CEN) conduziram, primeiro, a um acordo sobre um programa de cooperação no domínio espacial (2009). Este cobre áreas como educação e formação nas ciências e técnicas espaciais, técnicas de observação da Terra, concepção de instrumentos espaciais, testes de instrumentos, cargas úteis e satélites, “nanossatélites estudantes”, técnicas ópticas (metrologia, revestimentos ópticos, estruturação de superfícies, concentração solar…) e tecnologias específicas ligadas ao espacial. Em matéria de pesquisa nuclear, os esforços foram coroados pela assinatura de um Memorando de Entendimento na presença de S. A. R., o Príncipe Philippe, quando de sua passagem por

A cooperação acadêmica e científica Nestes últimos anos, foram nos domínios acadêmico e científico que progressos essenciais foram registrados. A Bélgica atribui, com efeito, uma grande importância à cooperação com o Brasil nestes domínios e diferentes iniciativas foram tomadas para intensificar e reforçar as nossas relações. Nesse contexto, foram organizadas as primeiras visitas de trabalho dos presidentes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Capes. Os encontros com as autoridades belgas permitiram aos parceiros brasileiros desenvolver as principais linhas de ação para o futuro e conduziram à assinatura, em 2009, dos acordos de cooperação entre o CNPq, por um lado, e os seus homólogos belgas (FWO e FNRS-FRS), por outro lado. Estes acordos preveem, entre outras formas de colaboração, a implementação de projetos comuns de I+D, o intercâmbio de pesquisadores e de cientistas, a organização de seminários e outros encontros, assim como publicações científicas conjuntas. Foram seguidos, no mesmo ano, da assinatura de um acordo entre a Capes e a Wallonie-Bruxelles International, que visa igualmente o financiamento e a implementação de um programa conjunto de intercâmbio de professores, de pesquisadores e de estudantes entre as instituições de ensino superior e de pesquisa. Para efetivar a cooperação, estão previstos instrumentos como bolsas, projetos conjuntos de pesquisa e organização de

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Brasília (maio de 2010). O texto aprovado estabelece as condições para um programa de colaboração, a longo prazo, em domínios de pesquisa, como armazenamento de resíduos radiativos, dosimetria, corrosão, qualificação dos combustíveis, educação e formação e irradiações. Uma missão anterior dos altos dirigentes do SCK-CEN ao Brasil (2011) detalhava as formas de colaboração nessas áreas. A ação da Bélgica insere-se num quadro europeu mais amplo: é neste contexto que deve ser colocada a nossa presença nas feiras Euro-Pós (2011) e Estude no Exterior (2012), que tinham por objetivo apresentar aos estudantes universitários brasileiros uma larga gama de possibilidades de formação na Europa. Diante destes sucessivos desenvolvimentos, não é, por conseguinte, surpreendente constatar que a Bélgica figure na primeira fila dos países parceiros quando do lançamento do ambicioso programa brasileiro Ciência sem Fronteiras, que deve oferecer mais de 100 mil bolsas em quatro anos a estudantes brasileiros que desejem completar sua formação em Ciências Exatas no estrangeiro. Este assunto foi abordado com detalhe, por ocasião da visita oficial que a Presidente Dilma Rousseff realizou à Bélgica na inauguração do festival Europalia Brasil (outubro de 2011). O simpósio Belgium-Brasil Networking in Science, Technology and Innovation for a Better Future, seguido de encontros entre os presidentes do FWO e do FNRS com o presidente do CNPq, entre o presidente da Capes e o representante do CNPq com representantes de todas as universidades belgas e, por último, um encontro entre as universidades e centros de investigação belgas com delegações das associações Andifes e Abruem permitiram às duas partes discutir sobre as condições de futuros intercâmbios. As negociações foram rapidamente iniciadas para tornar possível, no princípio de 2012, a assinatura de acordos para o acolhimento desses bolsistas na Bélgica. A sua progressiva implementação terá sido facilitada pelas conversações entre os Reitores de universidades brasileiras membros da Associação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais-Abruem e todos os homólogos belgas quando da missão dos primeiros na Bélgica (em julho de 2012).

Center-APEC, merecia ser melhor estruturada. A fim de dar-lhe um quadro formal e um caráter privilegiado, a Secretaria de Portos assinava com o APEC – mais uma vez na presença de S. A. R., o Príncipe Philippe – um acordo de cooperação técnica para a formação de pessoal e a troca de informações (maio de 2010). Esse acordo, renovado para um período de dois anos em julho de 2011, permite a dezenas de especialistas familiarizarem-se com as técnicas modernas de gestão das operações portuárias mais diversas. Deveria, além disso, favorecer o desenvolvimento de investimentos belgas no Brasil nesse setor. À margem da visita oficial do Presidente Luis Inácio Lula da Silva a Bruxelas (2009), os altos dirigentes do Ministério dos Transportes do Brasil efetuaram uma visita que lhes permitia estudar as técnicas e obras desenvolvidas na Bélgica para assegurar eficazmente o transporte de mercadorias por vias navegáveis. Começaram, então, negociações que levaram à conclusão de um Protocolo de Intenções com os Governos regionais flamengo e valão (2011). Contemplava uma interação sobre, designadamente, o Plano Diretor brasileiro de vias navegáveis, o projeto de canal navegável, as construções, operação e manutenção das vias navegáveis, os projetos de vias navegáveis ecologicamente corretas, o transporte multimodal. Foram igualmente previstos estágios de formação e aperfeiçoamento de conhecimentos no domínio dos transportes por vias navegáveis. Para consolidar essas novas relações, o segundo Seminário Belgo-Brasileiro de Vias Navegáveis foi organizado em Brasília, em abril de 2012.

Conclusão Esperamos que estas diferentes iniciativas deem frutos e que o movimento não somente seja mantido, mas também ampliado. Essas trocas têm um efeito muito importante para o futuro das nossas relações com este grande parceiro que é o Brasil. A esse respeito, é muito agradável sublinhar que, primeiro, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, quando de sua visita oficial em 2009, e, em seguida, a Presidente Dilma Rousseff, quando de sua visita oficial em 2011, manifestaram, pessoalmente, o interesse e prometeram apoio a esta cooperação bilateral acadêmica, científica e técnica. Não há nenhuma dúvida de que esta colaboração deva desenvolver-se sempre mais, para maior benefício dos nossos dois países.

A cooperação técnica Note-se que a cooperação bilateral igualmente desenvolveu-se no domínio técnico. Tendo em conta a importância que representam as infraestruturas de transporte nos nossos dois países, e tendo em conta a experiência adquirida pela Bélgica durante séculos, pareceu útil organizar visitas de responsáveis brasileiros aos nossos portos e infraestruturas fluviais. A formação de especialistas brasileiros em gestão portuária, oferecida há mais de 20 anos por Antwerp/Flanders Port Training

Claude Misson é embaixador honorário da Bélgica. Jovem diplomata sucessivamente em Jeddah e Brasilia, foi nomeado embaixador em Abu Dhabi, Lisboa e Madrid; foi diretor geral do Institut Egmont em Bruxelas antes de encerrar a carreira em Brasília. Vive atualmente em Madri.

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parte 5

Influências Religiosas e Ideológicas

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Jesuítas belgas no Brasil colonial Eddy Stols

‘S

e existir um purgatório, deveria ser neste engenho entre tanta gente ruim’, lançou Antonio Billiet aos companheiros em Pernambuco por volta de 1590. Com este e outros ditos descrentes sobre padres, missa, confissão ou imagens de santos, vários jovens flamengos, marcados pelos questionamentos do humanismo e da Reforma, desafiavam o catolicismo conformista dos portugueses (Stols, 1988). Presos nas visitações da Inquisição em Pernambuco e na Bahia em 1592 e 1618 e remetidos ao tribunal de Lisboa, foram lá assistidos por jesuítas conterrâneos seus. Foi apenas um dos episódios em que se cruzaram os percursos religiosos do Brasil e dos Países Baixos meridionais ou da atual Bélgica. Estes foram, depois da tomada de Antuérpia em 1585 pelas tropas espanholas de Alexandre Farnese, privados da liberdade de culto e reduzidos à ortodoxia católica da Contra-Reforma. Na mesma época, as vitórias portuguesas sobre os franceses e holandeses procuraram purgar o Brasil do pluralismo religioso, ensaiado no seu primeiro século de convivência entre gentios, cristãos, judeus e africanos. Em ambas as partes, a nova ordem jesuíta tomou as rédeas desta reconversão. Particularmente, as duas províncias jesuíticas flandro-belga e galo-belga incentivaram, com novas igrejas barrocas e devoções, o fervor e a ação missionários, que tomariam o lugar do sonho medieval de cruzada e reconquista, frustrado pelo avanço otomano com a tomada de Constantinopla. A evangelização dos índios brasileiros apareceu no seu horizonte, pelo menos desde a publicação em Lovaina em 1566 das Cartas do jesuíta Manoel da Nóbrega (Cartas). Em Flandres, este pedia livros que vinham de Lisboa para os estudos em seus colégios. Sua igreja em Salvador (BA) estava, em 1567, ricamente decorada com ‘guademecis e mapas de Flandres’, ao passo que Nóbrega comparou a paisagem brasileira a um tapiz de verdura flamenga. O padre Anchieta vigiava a conduta dos feitores dos Schetz no engenho deles em São Vicente, que, em contrapartida, enviaram caixas com pinturas, estampas e imagens religiosas (Cartas; Laga). Já em 1544, Inácio de Loyola enviou nove jesuítas belgas para estudar em Coimbra. O primeiro a partir como missionário na Bahia foi, em 1559, Joannes Dicius, que voltou logo em 1562 para Coimbra (Leite, I, passim). Em 1577 partiram mais dois, Gedeão

Ilustração colorida do jesuíta Francisco Pinto entre os índios publicada no livro de Cornelius Hazart.

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de Cristo e outras obras na sacristia da igreja de São Francisco Xavier em Belém, Pará. Gastavam geralmente bastante tempo aguardando a licença real, indispensável para padres estrangeiros, um barco e também na preparação de mantimentos para a tripulação. Às vezes decidia-se lá mesmo a partida para a Índia ou para o Brasil. Assim, Ferdinand Verbiest, o futuro astrônomo da corte celestial em Pequim, destinou-se primeiro ao Brasil para finalmente embarcar para a China. Para o Brasil, o rei deu licença a uma dezena de padres flamengos. O mais influente deles foi João Felipe Bettendorff, luxemburguês e ingressado como noviço na província galo-belga dos jesuítas (Arenz). Permaneceu quase todo o ano de 1658 em Lisboa, no Colégio de Santo Antão, antes de partir para o Maranhão junto com outro luxemburguês, Gaspar Misch. Subiu várias vezes pelo Amazonas e passou por ser o fundador de Santarém na foz do Tapajós. Com um bom olho para o potencial econômico, descobriu o uso do guaraná pelos índios, plantou o cacau silvestre e a laranjeira da China e explorou as salinas. Como seu confrade Antônio Vieira, Bettendorff disputava com os moradores portugueses o monopólio da mão de obra indígena, que os jesuítas pretendiam agrupar em aldeias e preservá-las das influências maléficas. Bettendorff registrou as desavenças com os colonos, como também com seus superiores e confrades e com o próprio bispo do Maranhão, na Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, inédita até 1910. Expulso em 1684 do Maranhão pelos colonos levantados por Bequimão, passou nova temporada em Lisboa, onde publicou em 1687 um Compendio da Doutrina Christam na lingua Portugueza & Brasilica. Pelo beija-mão e pela oferta de um mapa do Amazonas em repetidas visitas a D. Pedro II e à rainha Sofia Maria de Neubourg, conseguiu ganhar sua confiança e negociar um novo Regimento das Missões, que lhe permitiu finalmente voltar para o Maranhão em 1688. Mais pragmático e disposto a compromissos que Vieira, mostrou-se também mais cético a respeito do interesse religioso dos índios. Uma tese sobre a ação missionária, contrária à Vieira, foi defendida por outro padre nórdico, Jacobo Rolandus, que, fugido de sua família protestante na Holanda e ingressado na ordem jesuíta em Antuérpia, julgou a escravidão dos índios como mais segura para sua evangelização. Seu panfleto Apologia pro Paulistis, que lhe valeu como punição o exílio para a Ilha de São Tomé, o colocou em franca oposição a outro jesuíta flamengo e filho de um mercador de Antuérpia, Josse Van Suerck, aliás Mansilla. Este foi em 1629 denunciar em São Paulo e até em Salvador ao governador ‘las crueldades y tiranias de los Portugueses’ dos bandeirantes paulistas liderados por Amador Bueno e Raposo Tavares, que invadiram as reduções jesuíticas na região do Guaíra (Anais do Museu Paulista; Furlong). Não somente roubaram camisa, almofada, guardanapo e garfo do missionário, mataram em plena quaresma porcos e galinhas, fazendo festa noturna com tambor e cornos e zombando dos padres como ‘pobretones’, além de levarem também seus índios evangelizados. Os conflitos dos jesuítas com os paulistas não cessaram e foram divulgados na Europa pelas

Estampa colorida do jesuíta José de Anchieta publicada no livro de Cornelius Hazart.

Lobo e João Baptista. Este último serviu primeiro no colégio de Olinda e posteriormente como superior em Ilhéus até 1599. Jacome do Vale, depois de sua entrada em 1594, estudou no Rio de Janeiro, mas deixou a Ordem em 1599. O protestante converso, João Baptista, ingressado na Ordem em 1606 em Olinda, foi ativo como pintor, falecendo em 1609. Até meados do século XVIII mais algumas dezenas de belgas rumaram para o Brasil ou para as reduções fronteiriças do Paraguai através de Lisboa, onde a residência dos confrades portugueses era uma espécie de filial da Ordem. Lá mesmo, dois belgas entraram na Ordem: em 1619 Remacle Le Gott, aliás Inácio Lagott, nativo de Marche-en-Famenne, que partiu para o Brasil em 1628, produziu pinturas na Bahia e voltou expulso de Pernambuco pelos holandeses, e em 1639 o irmão Baltasar de Campos, nativo de ‘s-Hertogenbosch, a quem é atribuído o quadro Vida

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Litterae Annuae, as cartas ânuas destes padres. Na mesma época, fundaram-se novas missões, como Santo Ângelo pelo flamengo Diogo de Haze em 1706. Nem todos os jesuítas belgas destinados às missões do Paraguai falaram mal dos portugueses. Um deles, o músico e pintor Louis Berger, se gabou em janeiro de 1617 da boa recepção em Lisboa, onde ‘querem bem à Nação flamenga’ e, na escala da Bahia, onde ‘os padres ao par de nossa chegada foram ao nosso encontro com um barco’ (Histoire du massacre). Antes tiveram a agradável surpresa que ‘à quase uma légua de distância do porto nosso navio foi cercado por uma armada de jangadas, feitas cada uma de três peças de madeira, e algumas de uma peça só escavada como uma selha onde comem os cavalos. Em cada barquinho tinha um brasileiro e um negrinho que pescavam e era coisa admirável como ficavam em pé sobre estes paus. Fizemos entrar alguns no nosso navio, que saíram muito contentes com os presentes que lhes fizemos’. No porto, descarregou-se muita artilharia e Berger foi honrar a sepultura de José de Anchieta: ‘Tinha ouvido falar de sua vida e miráculos, quando eu estava em Tournai. É nada em comparação com as maravilhas que contam aqui deste santo padre. Tenho uma carta escrita de sua própria mão junto com um pedaço de osso, de roupa e camisa que me deu o padre reitor daqui’. Ouviu lá mais notícias sobre o padre Francisco Pinto, ‘martirizado pelos Bárbaros, e beijei o bastão com o qual lhe romperam a cabeça... os Bárbaros não querem devolver o corpo, que veneram muito. Quando falta chuva nas suas lavras, rezam para este padre’. Falou ainda ‘com um bom padre, que já foi

três vezes amarrado para ser morto pelos Bárbaros’. A última vez, já amarrado nu num tronco de árvore, foi salvo pelos neófitos. Estes ameaçaram os bárbaros com o relâmpago, que os mataria se não desamarrassem o padre. Acreditaram, e vários se converteram. Este imaginário de índios selvagens e de milagres jesuíticos foi manipulado pelos confrades belgas para suscitar um culto a Anchieta com livros como a tradução francesa de sua biografia, La vie miraculeuse du P. Joseph de la compagnie de Jésus, do padre Pedro Rodrigues, aumentada pelo padre Sébastien Beretaire (Douai, 1619), e com as relíquias de seus escritos, conservados em Antuérpia ainda no final do século XIX (Kieckens). Inspirou estampas como as de Abraham a Diepenbeke na Kerckelycke Historiae van de gheheele wereldt, de Cornelius Hazaert (Antuérpia, 1652-1671). A visão de um Brasil perigoso e propício ao enaltecido martírio se fortaleceu ainda mais com a passagem por Antuérpia dos jesuítas portugueses, presos pelos piratas ingleses ou holandeses na Bahia, em 1624, e em Pernambuco, em 1630, e resgatados pelos confrades flamengos. O prestígio dos jesuítas deve ter incitado a nova ordem dos capuchinhos a lançar-se na evangelização do Brasil com uma primeira participação na expedição colonial dos franceses no Maranhão. A província belga dos capuchinhos se deixou seduzir pelas perspectivas na África, mas recorreu para chegar lá às conexões entre Lisboa, Recife e Angola, uma ligação triangular recorrente nas relações entre a Bélgica e o Brasil. O continente africano continuaria presente em filigrana na evangelização belga do Brasil.

As missões flamengas no Congo e a cultura afro-brasileira Jeroen Dewulf

A

ligação mais conhecida entre a Bélgica e o Brasil no que diz respeito à cultura negra é, sem dúvida, o Terreiro do Gantois. Este famoso terreiro do candomblé Gêge-Nagô em Salvador, na Bahia, deve seu nome ao proprietário belga – oriundo da cidade de Gand – do terreno onde o templo religioso foi construído em 1849 sob direção da ialorixá Maria Júlia da Conceição Nazaré. A ligação belgo-brasileira no contexto da cultura negra vai, porém, muito além deste detalhe curioso. Também as atividades missionárias flamengas na África Central no século XVII influenciaram de forma indireta a cultura negra no Brasil. Missionários flamengos contribuíram não só para o desenvolvimento de uma variante africana do catolicismo mas até causaram o envio da população inteira de uma aldeia africana como escravos para o Brasil. Hoje, muitos milhares de brasileiros são descendentes de um grupo de africanos levados para o outro lado do Oceano Atlântico devido a uma tragédia que tinha como figura central um missionário flamengo. A chegada de missionários flamengos ao Reino do Congo – que correspondia a um território que hoje se situa junto à frontei-

Retrato de missionário flamengo no Congo.

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sua chegada, em 1651, adoeceu e morreu de febre. Van Geel se manteve com boa saúde, mas rumores sobre o envolvimento de capuchinhos numa conspiração impediu o início de sua missão. Van Geel aproveitou o tempo para levar a cabo uma obra que acabou por ter uma importância histórica: a transcrição do primeiro dicionário da língua bantu, elaborado pelo mulato congolês Manuel Roboredo, o Vocabularium kongoense, hispanicum et latinum (1648). Quando sua missão foi finalmente liberada, van Geel foi mandado para a área de Matari. A chegada a Matari foi uma desilusão. O capuchinho flamengo não podia aceitar que o catolicismo que se tinha desenvolvido no Congo representasse uma variante africana dessa religião. Para os congoleses, o catolicismo não funcionava como substituto da(s) velha(s) crença(s), mas, antes, como um complemento. O tipo de religião que van Geel encontrara era, de fato, uma espécie de catolicismo creolizado. Enquanto a presença de elementos africanos no catolicismo congolês pouco preocupara aos missionários portugueses, para van Geel tal mistura era inaceitável. Profundamente influenciado pelo espírito intransigente da Contra-Reforma na sua nativa Flandres, van Geel iniciou uma campanha feroz de purificação do catolicismo congolês, decisão esta que selaria sua sorte. Indignado pelo fato de van Geel ter incendiado um local de culto tradicional, a população da aldeia de Ulolo espancou o missionário até levá-lo à morte, alguns dias depois. A tentativa por parte dos ololenses de evitar um castigo levando o corpo para fora da área foi em vão. O Rei Garcia II, que não queria ver a missão capuchinha comprometida, decidiu impor a punição máxima e condenou a população inteira da aldeia, umas 200 pessoas, à morte. Após a insistência dos capuchinhos, que alegavam que van Geel, antes da sua morte, tinha perdoado a população, o rei congolês revisou sua sentença e decidiu vender os habitantes como escravos. Todos eles foram então transportados para o Brasil (Hildebrand). Não foram estes os únicos missionários flamengos que che­ garam ao Congo no século XVII. Outra missão, desta vez composta por três franciscanos, foi à África Central a pedido do príncipe de Soyo. Os príncipes de Soyo, antigos vassalos do Rei do Congo, utilizaram sua posição estratégica na costa africana para seguir uma política autônoma no comércio transatlântico. A venda de escravos para europeus não católicos punha, porém, um problema ético e político (Thornton, 1998). Daí as tentativas por parte da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais de construir uma base de confiança em Soyo por intermédio de missionários católicos flamengos. A ideia parecia trazer vantagens para todos: os flamengos poderiam converter africanos ao catolicismo e, ao mesmo tempo, o príncipe de Soyo poderia fazer negócios com uma companhia holandesa protestante sem ter escrúpulos religiosos. Porém, o que parecia bom no papel tornou-se um fracasso pois nem os capuchinhos italianos nem os jesuítas portugueses viam com bons olhos a chegada de uma terceira força católica à África Central, e impediram, com sucesso, que os flamengos iniciassem sua missão. Após chegar em Soyo em 1673, Cornelius

O missionário incendeia a cabana de um feiticeiro em um manuscrito anônimo do início do século XVIII.

ra de Angola com a República Democrática do Congo – foi uma consequência direta da política colonial portuguesa que combinava a expansão militar com a expansão religiosa. A procura de aliados na África subsaariana por parte dos portugueses levara a um pacto com o rei do Congo, ou Manikongo, Nzinga a Nkuwu em 1485 (Vansina). Seu filho Mvemba a Nzinga (c.1456-c.1542) foi responsável pela espetacular expansão do catolicismo no Congo. Adotando o nome lusitano de Afonso I, o jovem rei mandou construir igrejas e capelas, fabricar crucifixos, rosários e estátuas de santos, observar festas religiosas e fundar irmandades (Newitt, 2010). Encorajada por este sucesso surpreendente, a ambição portuguesa de espalhar o cristianismo nos quatro cantos do mundo, no contexto de sua política colonizadora, recebeu grande suporte por parte do Vaticano. Isto explica a atribuição ao Reinado de Portugal do padroado na África Central por parte do Papa Leão X, em 1514, dando-lhes o direito exclusivo de representar a Igreja Católica nessa parte do mundo (Thornton, 1992). Os reis do Congo rapidamente perceberam que o padroado lhes impunha uma situação de dependência total de Portugal em assuntos religiosos e que os portugueses se aproveitavam dessa situação para, gradualmente, aumentar sua influência na região, em atrito com a ambição congolesa de criar uma diocese própria e de negociar assuntos religiosos diretamente com o Vaticano. Embora o Papa Urbano VIII simpatizasse com a ideia de aumentar a influência do Vaticano na África, também percebia o perigo de apoiar publicamente uma proposta que violava o padroa­ do português. A luta entre Portugal, o Vaticano e a monarquia congolesa pelo domínio religioso levaria a um compromisso em 1640: daí por diante, Roma enviaria missionários da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos diretamente ao Congo, sem intervenção portuguesa. Estes capuchinhos representariam, portanto, uma força neutra no conflito entre Portugal e Congo e a garantia da manutenção do catolicismo na região (Jadin, 1975). Apesar dos capuchinhos eleitos para a missão no Congo serem predominantemente italianos, dois flamengos também participaram da missão: Erasmus [Weyns] van Veurne e Joris [Willems] van Geel. Para van Veurne, a missão acabaria cedo pois, logo após

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Wouters, Gerardus Corluy e Willem Lambrechts não puderam fazer nada senão esperar pelo primeiro navio que os levasse de volta à Europa. Assim terminava a ambiciosa missão flamenga na África Central (Jadin, 1966). Dois séculos depois, porém, estes planos foram retomados em condições bem diferentes. Após a criação do Congo Belga em 1908, as autoridades coloniais deram prioridade à missão católica. Centenas de jovens belgas, quase todos flamengos, partiram para o Congo numa missão evangelizadora gigantesca. Pouco tinha ficado do antigo fervor católico, mas o encontro de crucifixos e estátuas de Santo Antônio levou vários missionários belgas a se aprofundarem no estudo do antigo Reinado do Congo e das raízes católicas na África Central. Nos últimos anos, historiadores brasileiros têm mostrado cada vez mais interesse nos trabalhos de pesquisa de Jean Cuvelier (1941), Joseph de Munck (1956), François Bontinck (1972), Louis Jadin (1965, 1975) e outros padres belgas. Este interesse corresponde a uma virada na historiografia brasileira no que diz respeito à população negra. Enquanto outrora acreditava-se que os escravos africanos só se familiarizavam com o catolicismo após a chegada ao Brasil, historiadores hoje reconhecem que muitos deles trouxeram consigo elementos afro-católicos para o continente americano (Souza; Kiddy; Heywood e Thornton, 2007). Assim, a mistura de elementos africanos e europeus – que desde Gilberto Freyre (1933) era considerada um fenômeno cultural tipicamente brasileiro – é hoje reconhecida como característica da zona transatlântica inteira, no contexto do tráfico de escravos entre os séculos XVI e XIX. Essa nova perspectiva sobre a África deu origem a um interesse crescente no impacto da obra missionária católica dos séculos XVI e XVII nos povos

Um padre capuchinho reza missa no Reinado do Congo, aquarela pintada pelo padre Bernardino Ignazio, 1740.

bantu. Daí o reconhecimento da importância do trabalho dos padres belgas que hoje se encontra nos acervos do Museu Real da África Central, em Tervuren, e nos arquivos da Universidade Católica de Lovaina. Se, à primeira vista, as relações entre a população negra do Brasil e a Bélgica não parecem ir para além de um detalhe curioso no nome de um terreiro baiano, hoje se sabe que historiadores brasileiros poderão vir a encontrar nos arquivos belgas pistas importantíssimas para melhor compreensão da identidade histórica de grande parte de sua população. Jeroen Dewulf é professor da University of California, Berkeley.

Dom Gerardo van Caloen e sua reconquista do Brasil beneditino Eddy Stols

N

os três últimos decênios do século XIX a Igreja Católica lançou uma forte contraofensiva ultramontana para recuperar o terreno perdido para o liberalismo e o livre-pensamento dali em diante ainda mais ameaçado pelo avanço do socialismo entre as classes populares. Orquestrada pelo Vaticano, desde 1870 sob Pio IX e com novo ímpeto sob Leão XIII, uma ‘internacional negra’ (cf. Lamberts) mobilizou todas as forças religiosas para impor a participação ou influência católica na educação e vida cultural, nas organizações profissionais e sociais, na imprensa e nos partidos políticos, na expansão econômica e colonial. Um novo vento missionário soprava particularmente sobre a América Latina para restaurar o predomínio católico sobre os liberais, maçons e positivistas, e preservar os emigrantes católicos destas influências perniciosas e do protestantismo em alta. A hierarquia católica reabriu tradicionais conventos, fechados ou despovoados desde o

século das Luzes, e fundou seminários e escolas, principalmente internatos com uma disciplina rigorosa e uma pedagogia bastante tradicional. O Brasil entrou na mira dessa ação restauradora e regeneradora tanto por seu crescimento econômico como pelos avanços do positivismo entre suas elites, sobretudo quando se livrou da tutela imperial após a proclamação da República e a separação entre o Estado e a Igreja. A partir dos anos de 1890 seguiu uma verdadeira investida de congregações, como os lazaristas, salesianos, redentoristas, às vezes solicitadas por bispos e sacerdotes brasileiros, que, depois da questão religiosa com Dom Vital, em 1870, postularam maior disciplinamento da religiosidade brasileira. Por sua vez, a Bélgica, país de tradição católica com um clero abundante, devia, nos olhos do Vaticano, desempenhar papel de liderança, tanto mais quando passou em 1884 de um governo liberal para o

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predomínio de 30 anos do partido conservador católico e quando suas elites se enriqueciam com os primeiros dividendos de sua industrialização exitosa. Proeminente pioneiro nesta romanização belga do catolicismo brasileiro foi o beneditino belga Gerardo van Caloen (1853-1932), hoje mais conhecido por dar nome a uma rua no Rio de Janeiro do que por suas façanhas no Brasil durante quase 25 anos. Sua figura, mais do que o mais citado beneditino alemão Miguel Kruse, tem o perfil dos empire builders coloniais, como Cecil Rhodes, econômicos, como Edouard Empain ou Percival Farquhar, ou religiosos, como Mgr Lavigerie. Van Caloen deixou uma pletórica correspondência e um diário bastante minucioso, conservado nos arquivos da Abadia de Zevenkerken. Inspiraram ao beneditino Christian Papeians de Morchoven uma valiosa biografia crítica, que aqui se resume, completa e contextualizada com outras fontes, algumas brasileiras. Joseph van Caloen (1853-1932) foi o primogênito de pai belga e mãe francesa, numa família de pequena nobreza e de ricos proprietários de terras, ativos na política na região de Bruges. Cresceu no novo castelo em estilo neogótico que seus pais mandaram construir em Loppem, onde se levantaria mais tarde a abadia ‘brasileira’ de Saint-André de Zevenkerken. Neste meio cultivado e multilingue, de saúde frágil mas curioso de tudo, com até seu ‘Petit Musée’ no parque, entusiasmou-se pela história, particularmente dos monges medievais, exaltados por Montalembert como os verdadeiros fundadores do Ocidente europeu. Bastante viajado, ainda jovem, andou pela Palestina, depois pela Espanha, Inglaterra e Alemanha, empolgou-se pela reforma beneditina iniciada em 1870 em Beuron, no sul da Alemanha. Em 1872 se fez, sob o nome de Dom Gerardo, o primeiro monge da suntuosa filial belga dessa congregação em Maredsous, custeada pela nobreza e burguesia católica belga. Diferentemente dos confrades, sonhava combinar a vida monástica com a ação missionária e fundar um mosteiro entre os ‘bárbaros’. Para isso propôs, já em 1886, ao colaborador de Leopoldo II, o Barão Lambermont, a fundação de uma escola apostólica para preparar a implantação dos beneditinos no Congo. Ao mesmo tempo entusiasmou-se pela reconciliação das igrejas ortodoxas orientais com Roma, para a qual pensava construir uma nova abadia. Sua guinada de rumo para o Brasil seguiu um pedido de ajuda feito a Roma por Frei Domingos da Transfiguração, abade da Bahia e abade-geral da congregação beneditina brasileira. Esta dispunha de apenas dez monges de idade avançada em cinco abadias e sete priorados, parcialmente ocupados por seus familiares ou descendentes. Temia-se pelo seu descalabro total com a provável expropriação pelo novo poder republicano. Roma se sensibilizou e delegou em 1893 ao impetuoso van Caloen a tarefa de examinar uma restauração beneditina no Brasil. Dom Gerardo aceitou, familiarizando-se antes, durante quatro meses, com a língua portuguesa em Lisboa. No Brasil constatou que os confrades brasileiros queriam apenas uma assistência temporária de Beuron para dirigir um noviciado-geral. Finalmente aceitaram ceder a abadia de Olinda para reformá-la com uma dúzia de europeus que seriam naturalizados.

No final de agosto de 1895, Dom Gerardo desembarcou em Recife liderando uma caravana de 17 monges, conversos e postulantes, além de dois padres seculares, Moreau e Van Emelen, e o agrônomo franco-polonês Schönowsky. Essa viagem custou cerca de 16.500 francos belgas, pagos por Frei Domingos. Restauraram logo a clausura e o culto, despediram os empregados e Dom Gerardo sucedeu ao abade Botelho. Os três primeiros anos foram desanimadores pelas dívidas encontradas e pelos conflitos com as autoridades sobre os regulamentos higiênicos e sobre uma escola técnica, aberta e logo fechada em 1897. Nas suas igrejas dependentes de Prazeres e de Nossa Senhora do Monte tornou-se penoso disciplinar as devoções populares arraigadas. Desgostavam da liturgia dirigida por um seminarista, da música mundana, das festas de São João e do barulho na igreja, como num ‘mercado de peixes’. Estranhavam a superstição dos fiéis contra padres que, montando a cavalo, faziam este animal ‘ressecar-se’. Em suas terras de Prazeres o administrador Schönowsky foi suspeito de roubo. Aí a preguiça dos trabalhadores deixava na saudade ‘humanidade à parte, o tempo dos escravos’. ‘Não trabalhavam antes das 7 nem depois das 5, descansavam quanto mais podiam e pela mínima repreensão iam-se embora’. Eram desonestos e todas as padarias do Recife se serviam do carvão roubado dos seus bosques. Religiosos belgas e alemães se desentendiam e alguns abandonaram. Vários adoeceram e dois morreram de febre amarela. O clima mortífero motivou ainda mais Dom Gerardo a considerar, em 1899, a fundação, no interior mais sadio do Ceará, de uma nova abadia, Santa Cruz do Quixadá. Esta, mais adequada para acolher o noviciado na tradição espiritualista, começaria tudo de novo e formaria um contrapeso às abadias urbanas. O que o visionário Van Caloen entreviu nesta primeira visita como a futura Maredsous do Brasil, começou num casario de taipa, mas deveria estender-se sobre dois morros. Um seria destinado a um colégio, que se tornaria a grande instituição do Norte do Brasil. Contava no início com a doação do terreno e o apoio da elite da província, do bispo, do chefe local, Coronel Cravo, e com dinheiro emprestado pelo Barão de Studart. Este êxito parece ter dado vento em popa às ambições de Van Caloen, que se fez designar adjutor e sucessor de Dom Domingos como abade-geral da Congregação Beneditina brasileira. Apenas chegavam mais alguns monges e ele os destinava à abadia da Bahia e sua dependência de Brotas, que deveriam sediar respectivamente uma ‘Faculdade Metropolitana’ e um orfanato ou escola agrícola. A abadia abriu suas portas aos feridos da Guerra de Canudos. Em 1900 foi lançado um jornal, O Estandarte Católico, com duas edições, na Bahia e em São Paulo, destinado a ser um equivalente do La Croix francês, com mais um periódico para crianças, O Anjo da Guarda. Van Caloen aconselhou em Pernambuco o prócer do paternalismo católico, Carlos Alberto de Menezes, que, em sua fábrica de Camaragibe, queria aplicar a encíclica Rerum Novarum e contratou freiras e padres franceses. Recuperou também a abadia da Paraíba, cobiçada pelo bispo local, Dom Adauto. A morte em 1900 do ‘escandaloso’ abade Moreira de São Bento em São Paulo abriu o caminho do sul e dos

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A abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Zevenkerken, 2011.

priorados de Santos, Sorocaba, Jundiaí, Parnaíba e Campos. Este era seu maior opositor dentro da Congregação brasileira junto com o frei secularizado Joaquim do Monte Carmelo, autor de O Brazil mystificado. Acusavam os monges estrangeiros de rapacidade e de tratar os brasileiros ‘como selvagens, ignorando sua longa história sob a cruz’. Van Caloen, entretanto, combateu sua influência e conseguiu participar do capítulo geral ao mesmo tempo em que obteve o fim da autonomia das abadias. Na São Bento de São Paulo, que a prefeitura queria tomar, expulsou o liquidante, improvisou uma pequena comunidade e instalou Miguel Kruse como prior. Este revidaria os ataques do positivista Luiz Pereira Barreto, ex-estudante da Universidade de Bruxelas. Faltava apenas a bela e bem localizada abadia do Rio. Quando seu ex-abade João Ramos teve seu protesto contra a invasão estrangeira rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, Dom Gerardo entrou, junto com o abade-geral Dom Domingos, em 12 de maio de 1903, para tomar posse. Circulavam rumores que preparavam uma futura invasão alemã e que fechariam a escola gratuita. Aos gritos de ‘Morram os frades estrangeiros’, foram assaltados por uma malta enfurecida de partidários do ex-abade excomungado. O belga conseguiu escapar dos ‘200 assassinos’ por uma portinha traseira e refugiou-se na casa do arcebispo Arcoverde. Alertado, o

presidente Rodrigues Alves enviou uma força armada sob o comando do Marechal Hermes da Fonseca para escoltar e instalar Van Caloen como novo abade. O próprio Barão do Rio Branco veio à rua para aplaudir sua posse. Enquanto se manteve a proteção militar, ainda durante a Revolta da Vacina, reorganizou o culto e a vida monástica. Construiu um novo colégio, equiparando seu programa ao ginásio nacional e aberto ‘gratuitamente’ a mais de 500 alunos. Para fugir do grande calor comprou na Tijuca várias casas e as transformou em um pequeno convento de vilegiatura com escola noturna de catecismo. Assim acalmou um pouco a hostilidade geral. Numa visita de cortesia a Rodrigues Alves, este se declarou ‘católico de coração’, ao passo que o jornalista Carlos de Laet defendia os beneditinos belgas. Com a morte de Frei Domingos em 1908, Dom Gerardo tornou-se o abade-geral vitalício e nomeou outro belga, Chrysostome de Saegher, como seu adjutor no Rio. As quatro principais abadias estavam agora nas mãos de monges belgas ou alemães. Fez consertos em Santos e em Sorocaba, que oferecia mais tranquilidade aos noviços de São Paulo. Em Campos reanimou a presença beneditina na Fazenda de São Bento e no santuário de Santo Amaro com o monge Mauro Desrumaux, que abriu centros de catecismo, batizou e celebrou casamentos (Lamego, 238). Na Bahia, em

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1905, arrancou Brotas das mãos dos posseiros com a promessa ao governo de criar um orfanato ou escola agrícola. Como se esta reconquista fosse pouca, Van Caloen pretendia ainda missionar entre os índios. Entre outubro de 1900 e final de 1901 interessou-se pelo supracitado projeto de Leopoldo II para uma concessão no Araguaia-Tocantins e se encontrou a este respeito com o coronel Thys e com o próprio rei. Ao mesmo tempo, em agosto de 1901, Dom Gerardo defendeu em Roma seu plano de missões entre os índios. Desarmaria as campanhas contra os frades pela utilização patriótica de suas rendas. Em audiência com o Papa Leão XIII junto com o embaixador brasileiro Augusto Ferreira da Costa, este último manifestou seu apoio, mas o projeto não vingou. Van Caloen descartou uma oferta do bispo do Espírito Santo para uma missão entre os botocudos e preferiu, depois de um encontro em 1904 com o bispo de Manaus, novas perspectivas no território de Rio Branco. No início de 1906 obteve de Roma sua nomeação de bispo coadjutor de Manaus, sendo consagrado em 18 de abril daquele ano em Maredsous pelo bispo de Belém. Entretanto, as resistências do episcopado brasileiro levaram a transferir este estrangeiro, bispo de Phocéa, à Prelazia do Rio Branco, criada em 1907 como dependência direta da abadia nullius do Rio de Janeiro. Com o status de bispo, Van Caloen foi em 1908 a Manaus conhecer a Amazônia, mas não seguiu até Boa Vista. Os primeiros três monges chegaram lá em 1909, Dom Acário, Dom Adalberto e Dom Boaventura, seguidos em 1911 por outros, acompanhados de um pedreiro flamengo, contratado por três meses. Entrementes, Van Caloen não apreciou que o abade de Salvador, Dom Mayeul de Caigny, imitasse na Bahia seu exemplo com a fundação, em 1909, de um posto entre os índios em Angelim, no Rio Pardo. Para dar fundamento e credibilidade a seu império beneditino brasileiro, precisava recrutar mais pessoas e assegurar-lhes um mínimo de conforto em construções reformadas ou novas. Como os poucos postulantes brasileiros não pareciam idôneos ou não aguentavam a disciplina, procurou monges e noviços sobretudo nas próprias abadias de Beuron e Maredsous. Solicitou também as abadias francesas ameaçadas de expulsão e cogitou incorporar a portuguesa de Cucujães. Sem êxito, apostou na criação de ‘procuras’ próprias para iniciar jovens à vida monástica no Brasil. Criou uma em Siena e outra em Wessobrunn, na Baviera, mas a maior e mais querida seria Saint-André, ressuscitando uma abadia medieval extinta perto de Bruges. Publicou no ‘Courrier de Bruxelles’ um apelo às vocações para o Brasil e começou, em 1899, primeiro numa casa de sua família. Um senador aparentado, Van Ocker­ hout, doou um grande terreno em Loppem para a nova construção. Em menos de dez anos, entre 1902 e 1910, surgiu, com um orçamento de 250.000 francos, a monumental Zevenkerken (Sete Igrejas), com um claustro, ladeado por alas térreas de celas, uma igreja, com torre e sinos e sete igrejas-capelas simbolizando as basílicas romanas, das quais três realizadas. Contra a vontade de Beuron e Maredsous, mas aprovada pelo papa para ‘servir ao bem do Brasil’, Saint-André foi promovida como ‘o Brasil na Bélgica’. Enquanto em 28 de abril de 1901 o jornal La Patrie jubilava-se

que ‘O Brasil fará renascer a velha abadia extinta’, o seu abade Van Caloen dizia na sua homilia da ceremônia da pedra fundamental ‘ouvir o gemido de dor dos índios’. A nova abadia nasceu dependente juridicamente da congregação brasileira, inclusive com um subsídio pecuniário, e adotou mesmo o idioma português para a comunicação entre postulantes e noviços de diversas nacionalidades. Estes eram, no início, sobretudo calabreses, já que os filhos dos camponeses da região de Bruges ‘resistiam aos apelos dos sinos’ (d’Ydewalle). Mesmo assim, desde setembro de 1899 rumaram as primeiras caravanas de monges para o Brasil. Dos 280 beneditinos europeus, enviados entre 1895 e 1914 ao Brasil, 118 passaram por Saint-André ou foram formados lá, na sua maioria belgas e alemães, mas também suíços, italianos e franceses. Tem-se notícia de apenas dois brasileiros, um noviço e um converso, Baltasar de Araújo, que faleceu em Rio Branco. Entretanto, Van Caloen, construtor obsessivo tal qual um empresário imobiliário, deixou suas marcas no Brasil, de obras de saneamento até pinturas murais. Na abadia do Rio, joia do barroco, este ‘vendaval’ (cf. Ramalho Rocha) reformou o telhado, instalou iluminação a gás e água encanada, desmanchou os alpendres da portaria, revestiu as escadas e os pavimentos com mármores – alguns falsos –, restaurou o dourado das imagens, instalou estalas no coro, mas suprimiu nas celas dos monges os aprazíveis bancos de cantaria junto às janelas, mandou talhar na rocha uma nova ladeira de acesso e construiu o novo Colégio São Bento. Mais tarde, a pedido do Sphan, foram parcialmente eliminadas estas intervenções no estilo barroco, que o belga abominava. Ao contrário, deu livre curso à sua preferência pelo neorromânico à la Beuron no claustro de Tijuca, conservado como Cela São Gerardo ou Capela da casa de São Bento no Alto da Boa Vista. Pode também ter influído o estilo neorromânico dos três prédios, os números 1-17, 29-33 e 51-55 da Avenida Central, construídos pelo arquiteto Gastão Bahiana numa sobriedade eclesiástica contrastante com o pomposo ecletismo dos outros edifícios. No entanto, Van Caloen não recusava o modernismo e para Rio Branco encomendou, em Hamburgo, à casa Backhome, uma igreja e duas casas em ferro sobre planos do arquiteto Moers, que tinha desenhado o palácio episcopal de Manaus. Foi especialmente a Hamburgo, mas os planos não tinham chegado lá. Em sua viagem a Georgetown, encantou-se pelas construções de madeira e planejou comprar algo semelhante para Rio Branco. Todas essas viagens e obras custavam evidentemente somas colossais. Van Caloen aplicou com certeza seu próprio patrimônio e repetidas doações de sua mãe, como as destinadas ao altar de S ­ aint-André. Para custeá-la lançou uma subscrição nos jornais e passou a coleta entre parentes, conhecidos e os brasileiros de Paris, como os Nioaques. Uma nobre de Bruges, Peñaranda, emprestou a juro muito baixo. Se Leopoldo II e o coronel Thys prometeram doar cada um 100.000 francos sob a condição de Saint-André preparar também padres para a China e o Oriente Médio, finalmente o rei limitou-se a 5.000 francos, sem outro compromisso. Além do subsídio anual, a congregação beneditina brasileira foi solicitada para pagar os juros de um empréstimo e

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garantir hipotecas. É bem provável que Van Caloen tenha transferido, na sua contabilidade nada transparente, recursos brasileiros, ainda mais quando em 1910 o subsídio terminou em consequência da autonomia alcançada por Saint-André em relação à congregação brasileira. Acusações e insinuações neste sentido circularam continuamente entre seus inimigos anticlericais como também entre os próprios monges, que o responsabilizavam de dilapidar as riquezas das abadias brasileiras. Estas tinham efetivamente a reputação de serem muito ricas, alimentando cobiças por toda parte. Somente a abadia do Rio era proprietária de 164 casas, se bem que pequenas, antigas e em descalabro, mais a metade da Ilha do Governador, uma imensa propriedade em Iguaçu, terras em Maricá, Quissamã, Cabo Frio, Campos e São João da Barra e ainda uma zona urbana em Niterói e em Campos. Contavam com uma renda de 200 contos, que seu predecessor Ramos dissipava com uma mesa diária aberta a 50 pessoas, banquetes e gastos de seus familiares. Bahia teria uma renda de 60 contos, Olinda, de 40, e Paraíba, de 80 contos. Um conto seria equivalente a 1.500 euros atuais, mas o câmbio oscilava muito. Encontravam-se, frequentemente, aluguéis a preço muito baixo ou pré-pagos por vários anos e dívidas sobre impostos do governo, como em Pernambuco ou na Bahia. Além disso, os belgas subestimavam a carestia de vida no Brasil. No Rio, Van Caloen não encontrou dinheiro em caixa e não podia vender para prevenirem-se suspeitas. Em bom entendimento com o ministro de Obras Públicas, Lauro Müller, procurou valorizar o patrimônio graças às generosas indenizações pelas expropriações para as obras de modernização do prefeito Pereira Passos, alguns 1.000 contos, além de terrenos na nova Avenida Central. Investiu o dinheiro nos supracitados prédios. Infelizmente, os locatários Lloyd Brasileiro e Jornal do Brasil ficaram devendo aluguéis na faixa de 200 contos. Outras casas continuavam vazias, ao passo que indenizações insuficientes ou aluguéis atrasados sobre a Ilha do Governador levaram a processos contra o governo. Na contestação sobre um terreno do Arsenal da Marinha, o novo presidente Afonso Penna se irritou, colérico com este abade estrangeiro, que interpretava dentro do viés belga qualquer oposição como obra da maçonaria. As campanhas na imprensa contra os frades redobraram-se com o segundo Congresso Católico, em julho de 1908, no qual participou um professor de Lovaina, Emiel Vliebergh, aconselhando a formação de organizações agrícolas e partidos católicos no modelo belga. Van Caloen incitou Lauro Müller a formar uma bancada católica na Câmara, mas este preferiu tornar-se sucessor do Barão de Rio Branco. Enquanto circulavam rumores de falência, propagados inclusive pelo abade Kruse de São Paulo, Van Caloen resolveu o aperto com pequenos empréstimos locais conseguidos com o Banco do Brasil, mas a juros altos de 8%. Como o Núncio se opôs a um grande empréstimo, foi negociar na Bélgica com a casa von Bary de Antuérpia. Constatando que as financeiras belgas desconfiavam de operações com ordens religiosas e hipotecas no exterior, procurou a City de Londres. Com cartas de apresentação do ministro Müller a outro político influente, Joaquim Murtinho, e com um

Um monge brasileiro falecido na Bélgica, fotografia de 2011.

intermédiário brasileiro, G. Reidy, de Paris, e seu advogado, Leitão da Cunha, levantou do Lloyd’s Bank em novembro de 1909 nada menos que 300.000 libras esterlinas a 5% sobre hipotecas de propriedades estimadas em 600.000 libras e a reembolsar a partir do quinto ano em meio século. Isto permitiu saldar os empréstimos no Brasil, mas logo surgiram novas necessidades para melhorar o ginásio e readaptar um edifício da Avenida Central e reparar os grandes danos sofridos entre 23 de novembro e 10 de dezembro de 1910 pela ocupação militar da abadia e pelo bombardeio dos marinheiros revoltados na Ilha das Cobras, além de gastos urgentes em Rio Branco. O presidente Nilo Peçanha, interessado nas terras de Iguaçu para um projeto de melhoramentos, mostrou-se mais benevolente e facilitou novos avanços do Banco do Brasil. Indenizou a expropriação da Ilha do Governador por 1.000 contos, mas saiu do poder sem pagar. Assim, Van Caloen quis repetir em 1911, em Londres, um grande empréstimo de 150.000 libras, alegando que hipotecas contratadas no exterior dificultariam o confisco dos bens das ordens religiosas como estava ocorrendo em Portugal. De fato, muitos advogavam no Brasil a expulsão dos monges, ainda mais com os conflitos em Rio Branco e no próprio Rio de Janeiro sobre a ponte para a Ilha das Cobras. Sobre esta o ministro Barão

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do Rio Branco reclamou em Roma, ao passo que Van Caloen solicitou a proteção e intervenção dos ministros belga e prussiano de Relações Exteriores. Desta vez, se Van Caloen encontrou disponibilidade financeira do lado inglês, tardou meses a autorização do Vaticano, alertado pelas denúncias do Núncio no Rio e de seu próprio abade adjutor, Chrysostome de Saegher. Este cria ter descoberto o desaparecimento de 400 contos das receitas extraordinárias. Além do mais, queria restringir as atividades do mosteiro e suprimir Tijuca, onde Van Caloen preferia residir para escapar da hostilidade dos monges no mosteiro. Junto com outros monges pediu a demissão de Van Caloen. Este resistiu primeiro e defendeu, num relatório de 3 de junho de 1912, sua gestão, salientando que deixava um patrimônio de 99 casas em bom estado. Quis até afastar De Saegher como vigário-geral em Rio Branco, mas o fim de seu reino onipotente estava chegando. Se o novo Papa Pio X ainda abençoou Van Caloen, este perdeu seus apoios tanto na Cúria vaticana como do Cardeal-Arcebispo Arcoverde. O abade de Seckau, Dom Zeller, foi encarregado de fazer uma visita apostólica. Enquanto o segundo grande empréstimo de Londres não se efetivava, surgiu, em 1914, com a baixa do câmbio e a diminuição das rendas, novamente o espectro da falência. Em desespero, Van Caloen vendeu as valiosas terras de Maricá por apenas sete contos (Ramalho Rocha). A animosidade por parte de De Saegher e de outros monges devia-se não somente às suas opacas transações financeiras como também às suas frequentes viagens e longas ausências. Van Caloen atravessou 23 vezes o Atlântico, de preferência nos mais modernos steamers ingleses ou franceses, em primeira classe, onde celebrava no salão missas para a alta sociedade a bordo, enriquecendo seu caderno de endereços. Suas repetidas viagens de trem pela Itália e Alemanha se justificavam no seu espírito para ganhar a benevolência dos poderosos e ricos. Teve audiências com os papas e os cardeais da Cúria, duas vezes com o Rei Leopoldo II, com os presidentes brasileiros, de Campos Salles a Hermes da Fonseca. Peçanha o recebeu quatro vezes em seis semanas. Aonde passava, visitava abades, bispos, governadores e até o Lord Mayor em Londres. Frequentava o rico barão bávaro von Cramer Klett e homens de negócios. Em almoços com diplomatas belgas tratava dos interesses econômicos da Bélgica no Brasil e lhes pedia consulados para seus amigos. Fazia sua mãe convidar no castelo de Loppem o embaixador Oliveira Lima ou o ex-governador de Pernambuco. Nas longas viagens marítimas podia descansar e recuperar-se de suas crises cardíacas. Para a cura destas foi tomar cinco vezes um mês de banhos em Bad Neuheim na Alemanha. Gostava também de banhos de mar, até nadar em pleno inverno na praia de Dieppe. Em toda parte fazia compras de objetos litúrgicos e livros. Esta intensa vida social, mundana demais e incompatível com o ideal monástico, o afastava de seus monges, ainda mais que, no Rio, dispunha de um apartamento abacial, além de seu retiro na Tijuca. Se nos primeiros contatos encantava seus noviços e monges, estes, pouco depois, descobriam um abade altivo e severo, que lhes recriminava continuamente falhas, neuroses ou outras indisposições para a vida monástica. Tratava seus secretários com aspereza.

Autocrático e algo maquiavélico, deslocava numa valsa contínua abades e priores como peões num tabuleiro de xadrez para afastar os críticos. Paralelamente se deterioravam suas relações com os bispos brasileiros. Estes vieram a preferir os franciscanos a estes potentados mitrados belgas e alemães. Van Caloen ressentia particularmente a hostilidade de Arcoverde, para quem tinha pleiteado junto ao Papa Leão XIII o chapéu cardinalício. Acusava de chantagem o bispo da Paraíba, quando este ameaçava com o confisco da abadia pelo governo. Oficialmente, o capítulo geral e a visita apostólica o descriminalizaram e foi seu opositor De Saegher quem voltou à Bélgica. Mesmo assim, van Caloen sentia-se cada vez mais isolado pelo prior e pelos outros monges e apresentou finalmente sua demissão. Foi aceita pelo Vaticano no início de 1915, sendo que van Caloen se ocuparia doravante somente de Rio Branco. Na sua costumeira tática de escapatória, o bispo van Caloen já tinha ido antes, no meio da crise em maio de 1914, tomar posse de sua prelazia em Rio Branco. Esta precisava mesmo de sua presença. Logo no início, em 1909, os primeiros monges se desentenderam em Boa Vista com o chefe político Bento Brasil, que administrava para a diocese de Manaus a grande fazenda de gado Calungá e se negou a entregá-la junto com a contabilidade aos novos donos beneditinos (Vieira). Sua recusa em aceitar um maçom como padrinho de batismo envenenou ainda mais a relação com o Brasil. Sua casa foi metralhada em 10 de dezembro e os monges tiveram que fugir para a fazenda nacional de Capela. Foram viver um tempo entre os índios na Missão de Surumu, cuidando de ‘4.000 a 5.000 almas’, enquanto Van Caloen obteve proteção militar através do ministro belga de Relações Exteriores. A morte de dois monges por febre amarela em Belém em fevereiro de 1911 prolongou a inatividade da missão tão distante. Van Caloen foi, aliás, estudar em Georgetown, uma ligação através da Guiana inglesa, mas preferiu ainda desta vez a rota do Amazonas. Nesta segunda viagem, em plena crise da borracha, ficou bem impressionado como, perto de Itacoatiara, esta se superava pela valorização da agricultura. Esta redimiria, no seu entender, Manaus do seu paganismo e favoreceria a evangelização. Assim seus monges deveriam transformar tanto os seringueiros como os índios em meeiros, um pouco como os agricultores nas terras de sua família perto de Bruges. Em Manaus, visitou as autoridades e se aproximou do doutor Amoura, um dos chefes do Serviço de Proteção aos Índios. Se opinava que Rondon o tinha criado para contrariar a influência dos padres, preferia, no Brasil, flexibilizar sua aversão à maçonaria e manter relações, pelo menos, desde que recebesse acesso às colônias para ensinar a religião. Fez também as pazes com Bento Brasil e seus agregados e cortejou outros poderosos de Rio Branco, como o comerciante J. G. Araujo, que lhe facilitaram alojamento e transporte até Boa Vista. Para um sexagenário doente a longa viagem em barcos sofridos, até num batelão sobre 200 bois, e o contorno a pé das cataratas se revelaram uma penosa aventura. Aguentou firme, dormindo na rede, no barco, anotando no diário os batismos e casamentos a realizar e os lugares para a construção de capelas.

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Interior da Basílica Abacial de Nossa Senhora da Assunção do Mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo.

Na sede de sua prelazia fez em julho sua entrada solene de bispo, preocupou-se com a igreja a reconstruir e consagrou o primeiro sacerdote. Ainda fez expedições pelo rio e a cavalo com ­peões nas redondezas para sopesar o melhor lugar para a construção do mosteiro São Bonifácio no morro São Bento e para os pastos do gado. Nas fazendas Calungá e Capela teve enfim contato com os índios, que pareciam ter medo do homem branco. Pretendia evangelizá-los e discipliná-los. Assim, proporcionaria uma mão de obra abundante e regular aos agricultores das terras demarcadas. Seu convívio pessoal se limitou a uma dúzia de curumins. Numa noite de agosto, armando sua rede, lhe alcançou a notícia da deflagração da guerra e da Bélgica incendiada. Logo resolveu voltar ao Rio. Passando por Manaus procurou obter uma estrada e um caminhão para contornar as cataratas do Rio Branco. No Rio de Janeiro, se implicou numa ‘Sociedade de Melhoramentos do Rio Branco’, mas que nunca funcionou. Ainda, em 3 de dezembro de 1918, numa conferência na Sociedade de Agricultura, publicada no Boletim da Câmara de Comércio belga no Rio de Janeiro, advogava a valorização de Rio Branco. Além do saneamento com uma missão médica, propunha demarcar as terras, dar títulos e repartir as grandes propriedades nacionais, dar trabalho

aos índios e mais recursos aos monges para sua catequese, e ainda melhorar a navegação e construir uma estrada de ferro de Manaus a Rio Branco e de Rio Branco a Georgetown. Esta era apenas uma quimera, mais de concessionários fantasiosos que chegaram a interessar até o grupo belga da Banque de l’Outremer. Em Boa Vista, seu vigário-geral Bonaventure Barbier e, a seguir, o prelado Pedro Eggerath conseguiram realizar algumas obras, uma escola, um hospital, um jornal e uma fábrica de charque, mas um projeto em 1925 de uma Companhia agroindustrial mais ambiciosa malogrou logo. Em 1948, os beneditinos entregaram o Rio Branco nas mãos de uma ordem italiana. Van Caloen regressou definitivamente à Europa em 1919 e terminou seus últimos anos na Côte d’Azur, em Antibes, onde construiu uma capela bizantina para os emigrados russos. Lá faleceu em 1932, não muito longe das faustuosas Villa Léopold e Villa des Cèdres de Leopoldo II. À primeira vista, Monsenhor Van Caloen se parece algo com um clone clerical do rei dos belgas e famigerado fundador do Estado Livre do Congo. Nutria uma ambição expansionista quase tão megalomaníaca e um gosto similar de construções, de viagens marítimas e balneários. Exibia, inclusive, a mesma barba comprida do missionário, se bem que

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era de estatura baixa e bem mais novo. Se Leopoldo era um convicto ensimesmado e autoritário por herança dinástica, o presunçoso Van Caloen se sentia investido pela providência divina. Esta o acordava de noite para comunicar um encargo novo. Apenas chegou num Ceará castigado pela seca que choveu de imediato e tudo verdejou. Escapava de navios que naufragariam, como o Sirio. Interpretava mortes imprevistas de adversários seus, como o presidente Pena ou o Núncio Bavano, como sinais providenciais. Entretanto, o diário do impávido ativista atrai alguma curiosidade, sensibilidade e simplicidade mais humana, sobretudo na Amazônia. Em 1914, no Tocantins, o prelado vai morar dois dias em Pinheiro numa casinha muito simples e pôs até um curativo no pé ferido de um menino, se bem que logo pensou em levá-lo como doméstico. Na serra de Araraquara, em Rio Branco, voltou a ser umas horas o monge sonhador, imaginando construir seu mosteiro num promontório em meio à natureza selvagem. Quando os confrades belgas e alemães lhe resistiam, era às vezes capaz de humildade e obediência. Com o tempo os primeiros monges brasileiros amansaram sua voluntariosa restauração beneditina numa espiritualidade tradicionalista. Van Caloen tinha confiado o mosteiro de São Paulo a Dom Miguel Kruse em 1907, um alemão de forte personalidade e empreendedor, que durante mais de 20 anos firmou-se na paisagem religiosa e intelectual desta futura metrópole. Além de um colégio, bem frequentado e reputado, abriu em 1908 uma faculdade com o primeiro curso de Filosofia, para o qual contratou com um bom salário o padre belga secular Charles Sentroul, discípulo do Cardeal Mercier, capaz de malabarismos entre o neotomismo, o kantismo e a ciência, mas também brincalhão, apreciado até pelo jovem Oswald de Andrade, e briguento durante a guerra com o abade alemão. Quando voltou à Bélgica em 1919, somente em 1922 reabriu o curso com outro belga, Léonard van Acker, e com o português Alexandre Correa, dois leigos formados em Lovaina. Em 1910, Kruse começou a construção de uma nova igreja com

o projeto do arquiteto Richard Berndl em estilo neorromânico e decorada pelo monge de Maredsous, Adalbert Gressnigt, e por um leigo, Adrien van Emelen, irmão do monge Amaro van Emelen. O mosteiro do Rio de Janeiro se estabilizou sob o abade Eggerath e manteve um colégio bem cotado; ao mesmo tempo, seria o melhor sucedido em suscitar vocações entre os próprios brasileiros e nacionalizar seu recrutamento de monges. A abadia da Bahia sofreu no conflito entre o arcebispo com seu abade, Dom Mayeul de Caigny, que acabou partindo em 1912 para fundar uma nova abadia em Barbados, Mount Saint Benedict. A de Olinda contou mais três mortes numa epidemia de febre amarela em meados de 1904. Sob seu severo abade Peter Roeser, criou uma escola superior de agricultura e medicina veterinária, dirigida em 1927 por Amaro van Emelen, conhecido por seus trabalhos sobre a apicultura, e mais tarde incorporada pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Malogros seriam as abadias da Paraíba e, sobretudo, a de Santa Cruz de Quixadá. Esta acabou fechando devido às secas repetidas, ao isolamento e aos altos e baixos de seu colégio em consequência de campanhas hostis em Fortaleza com sua suspensão final em 1909. Faltou-lhe um abade de pulso, segundo Van Caloen, uma vez que não conseguiu levar para lá o empreendedor Dom Jean de Hemptinne. O abade Lucas Heuzer não soube aproveitar a visita do padre Cícero, e sua difamação junto ao bispo de Crato fizeram o profeta do Cariri legar parte de sua fortuna para os salesianos. Quanto à abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Van Caloen a conectou em 1910 com uma nova missão beneditina em Katanga, no Congo, que cresceu em importância uma vez que em 1912 se deixou substituir como abade por Dom Théodore de Neve. Este ainda solicitou ajuda pecuniária do Brasil, mas o destino brasileiro dos monges minguou pouco a pouco no horizonte em favor de missões em outros continentes. Os poucos retornados do Brasil cultivaram algum tempo as memórias do país, hoje quase completamente apagadas.

Os cônegos brancos e outras ordens belgas Eddy Stols

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s premonstratenses ou norbertinos, mais conhecidos como cônegos ou padres brancos, prosperavam na Bélgica em meia dúzia de abadias. Tradicionalistas tranquilos e menos intelectualizados que os beneditinos, figuravam um pouco como manda-chuvas no meio rural, mais ainda entre seus próprios arrendatários. Em 1896 Van Caloen recomendou aos premonstratenses da abadia de Averbode o pedido do bispo de São Paulo, Joaquim Arcoverde, para que tomassem a direção de seu seminário. Os dois primeiros, Vincent Van Tongel e Rafael Goris, chegaram em dezembro de 1896 e o bispo lhes confiou o santuário Bom Jesus de Pirapora, interior de São Paulo, que, elevado a

paróquia, poderia em parte financiar a construção de um colégio. Este veio a ser monumental, com uma capela e a mobília em estilo neogótico, algo destoante com o barroco tradicional da igreja abaixo. Logo serviu também de seminário menor, que deveria levar centenas de jovens ao sacerdócio, até 1948 quando este preparo lhes foi retirado. Paralelamente os cônegos procuravam recrutar para sua própria ordem e enviavam noviços à abadia mãe em Averbode, até que, em 1930, criaram seu próprio noviciado em Pirapora. Entrementes, vieram mais religiosos de Averbode, o suficiente para encarregarem-se em 1901 do Colégio do Espírito Santo em

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Vista de Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo.

Jaguarão, no Rio Grande do Sul, bem perto do Uruguai. Este teve algum êxito e, depois da compra de um edifício maior, em 1903, teve mais de cem alunos, mas, por falta de equiparação com o ensino estadual, fechou em 1912. Foram então abrir outro colégio em Jaú, Estado de São Paulo, mas por falta de êxito fechou em 1968. Antes, em 1909, assumiram a pedido do Núncio a direção de um colégio em Petrópolis, para o qual alugaram o Palácio Imperial, vazio na época. Quando, em 1939, o edifício foi requisitado pelo governo para instalar o museu imperial, construíram, em 1941, um novo prédio na estrada para o Rio. Este colégio fechou em 1992. Como na Bélgica, alguns cônegos prestavam também serviço paroquial, como na igreja de São José, na cidade de São Paulo. De 1898 a 1905 partiram de Averbode 35 religiosos, quase a metade de irmãos, que assistiam os cônegos como marceneiros, cozinheiros, alfaiates e domésticos. Os últimos reforços chegaram nos anos de 1950. De um total de quase cem religiosos, a grande maioria voltou à Bélgica. As repetidas tentativas de montar uma abadia de vida regular no modelo belga se frustraram, mas resultaram finalmente na

fundação de um priorado em Jaú, elevado a abadia em 2000. Em Pirapora já não exploram o santuário, mas mantêm sua casa para retiros e museu de arte sacra com obras do irmão José Withofs. Outra abadia premonstratense, ‘t Park ou Abadia do Parque, na periferia de Lovaina, seguiu a senda brasileira a convite do bispo de Mariana, Silvério Gomes Pimenta, e, em 1898, o próprio abade, Quirinus Nols, acompanhou os três primeiros cônegos. Primeiro assumiram o serviço pastoral em Congonhas do Campo (MG), que, em conflito com a mentalidade local, abandonaram em pouco tempo. Tampouco persistiram no colégio aberto em 1900 em Sete Lagoas (também no Estado de Minas), logo fechado por falta de alunos. Finalmente, seduzidos pelo bispo de Diamantina, Joaquim Silveira de Souza, assentaram-se, em 1903, no norte de Minas, em Montes Claros. Desta base prestavam serviços pastorais em Bocaiuva, Morrinhos, Salinas, Januária, Tremedal, Jequitaí e outras missões pelo Alto São Francisco. Batizaram e casaram, restauraram ou melhoraram diversas igrejas e organizaram novas confrarias. Em Montes Claros mesmo fundaram o Colégio São Norberto, com um observatório meteorológico, compraram

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Ao fundo, Santuário do Senhor Bom Jesus e Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo, 2013.

uma tipografia e lançaram o semanário A Verdade (1907-1917). Pretendiam concentrar-se na fundação de um convento, mas não resistiram a novos convites em 1919 para cuidar de paróquias na periferia do Rio de Janeiro, que trocaram, em 1921, por Teresópolis. Por falta de mais padres belgas, priorizaram novamente Montes Claros, que, com uma escola apostólica, facilitou o recrutamento de brasileiros, a sobrevivência da ordem no Brasil e a criação recente de um priorado. Se os premonstratenses enviaram mais religiosos que os beneditinos, seus resultados foram modestos, devidos em primeiro lugar à instabilidade de suas fundações e às contínuas viagens pelo Brasil ou de volta à Europa. Poucos ficaram para temporadas mais longas. Em Minas, quase como padres ambulantes, andavam por muitos dias a cavalo e vários sofreram problemas de saúde, inclusive paludismo, com algumas mortes prematuras. Misturavam o serviço paroquial com o ensino, sem ter formação ou experiência pedagógica. Seus colégios se destacavam antes em bandas musicais ou em teatro, como o grupo São Genesco, em Montes Claros. Em suas cartas para a revista de propaganda ‘t Park’s Maandschrift, no seu uso da fotografia e nos livros dos padres Thomas Schoenaers, Drie jaar in Brazilië (Averbode, 1904), e Maurice Gaspar, Dans

le sertão de Minas (Lovaina, 1910), transparecem maior convivência e curiosidade com a cultura popular que entre os beneditinos. Schoenaers se deixou fascinar pela cultura negra em terras gaúchas. Gaspar, um Guimarães Rosa avant la lettre, se encantou pelas andanças por serras e chapadões mineiros em caravanas com os camaradas e pela hospitalidade generosa nas fazendas. Gostavam dos encontros e das entradas com fogos de artifício, das congadas de negros e de procissões, desde que as dirigissem. Mesmo assim, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, nativo de Montes Claros, ‘o movimento da ortodoxia romana comandado pelos padres de batinas brancas que nem se casavam, falavam mal português e só sabiam perseguir as formas tradicionais de religiosidade popular quase matou o catolicismo em Montes Claros. Nos espaços abertos por eles se multiplicaram o espiritismo, o candomblé e ultimamente o protestantismo, cada vez mais vigorosos’ (Confissões, Rio de Janeiro, 1997, p. 58-63). Efetivamente, algo prepotentes, como suas aldeias flamengas, enfrentavam tradições e líderes locais e reagiam com uma virulência, pouco brasileira, contra protestantes e maçons. Em Jaguarão e Salinas, sustentaram polêmicas imprudentes sobre pretensas bíblias falsas. Em Congonhas do Campo, mandaram desenterrar um maçom sepultado na

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Vista da fachada posterior do Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, São Paulo, 2013.

igreja. Paralelamente, seus projetos de vincularem-se à imigração e aos investimentos belgas, como no apelo do cônego Peffer aos industriais belgas da metalurgia, não vingaram (Peffer). Falta examinar se a crítica de Darcy Ribeiro atinge também as outras congregações, que enviaram padres belgas para o Brasil. Os Missionários do Sagrado Coração de Jesus, de origem francesa, mas com um convento em Borgerhout, chegaram em 1911 como professores do seminário em Pouso Alegre (MG). Logo se encarregaram de paróquias como a de Bauru, a partir de 1913, as de Campinas e de São Paulo e abriram, em Pirassununga, uma escola apostólica. Nos anos de 1950 se disseminaram no Paraná. Já depois da Primeira Guerra Mundial, os Josefitas, uma congregação belga reputada por seus prósperos colégios, empreenderam em 1924, no sul da Bahia, em Una, uma fundação ligada

à presença de uma companhia agrícola belga. Se retiraram em 1936. Outras ordens francesas ou italianas levaram membros belgas para o Brasil como os lazaristas, dos quais alguns belgas se encontram sepultados na cripta do Colégio do Caraça, em Minas Gerais; os salesianos no Mato Grosso, ou os barnabitas no Pará. Estes últimos, expulsos da França para Mouscron, embarcaram para Belém em 1903. Lá alçaram sua igreja de Nossa Senhora de Nazaré, a basílica, e relançaram o Círio. Entre os irmãos das escolas cristãs ou lasallistas, que saíram da França em 1907 para organizar escolas em Porto Alegre, havia belgas, como o irmão Justino, que partiu depois para o Congo. Ainda foi o caso entre os maristas, que em sua escola em São Luís do Maranhão tinham, em 1914, como diretor um irmão, Paul Berckmans, e um ‘time belga’ de futebol entre os alunos.

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O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde Eddy Stols

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al qual um solitário cavaleiro andante da devoção cordimariana, abriu seu caminho o padre Julio Maria de Lombaerde (1878-1944). Filho de pequenos camponeses de Beveren, perto de Waregem, começou com apenas 17 anos um noviciado como irmão dos Pères blancs na Algéria. Doente, acreditou-se curado pela Virgem Maria e decidiu dedicar-lhe doravante sua vida. Se fez padre na congregação francesa de vocações tardias, a Sagrada Família, que o destinou ao Brasil. Em 1912 chegou a Recife, aprendeu o português em Natal, conheceu em São Gonçalo a religiosidade sertaneja e seguiu, em 1913, para Macapá. Percorreu essa região amazônica de pouca presença eclesiástica a cavalo ou de bote, relatando em crônicas Vers les Amazones suas visitas à colônia indígena dos capuchinhos e suas observações de cerimônias afro-brasileiras. Na cidade inventou seu método missionário de catecismo e escola, batismos e casamentos, assistência higiênica e diversões com banda, grupo teatral e até cinema. Para atrair os negros, lançou uma confraria de São Benedito. Às mulheres, marginalizadas numa religião popular, a seu ver, dominada por homens, oferecia seu culto da Virgem Maria. Não encontrando freiras para auxiliá-lo na fundação de um colégio, organizou sua própria congregação em 1916, as Filhas do Coração Imaculado de Maria. Já nessa época acostumou a confrontar-se com inimigos, no caso, um farmacêutico espírita. Com a morte de uma freira e de alunas, surgiram mais críticos, até que ele transferiu sua escola em 1923 para Pinheiro ou Icoaraci, bairro de Belém. Nesse colégio, o Nossa Senhora de Lourdes, ainda existente, não faltou nem a réplica da gruta, construída com suas próprias mãos. Novos problemas, talvez financeiros, e outras desconfianças, ainda não elucidadas, levaram-no primeiro a um posto de pároco em Alecrim (RN), em

O padre Júlio Maria de Lombaerde a cavalo na região amazônica.

1926, e, depois, em 1928, a convite do bispo de Caratinga, para Manhumirim, em Minas Gerais. Nessa região de imigração recente, em parte alemã, entrou logo em choque com o prefeito, os protestantes, maçons e espíritas e lançou suas diatribes num novo jornal, O Lutador, e em vários panfletos, como O diabo, Lutero e os protestantes, distribuídos pelo Brasil inteiro. Alto, esbelto, com pequenos óculos, longa barba e crucifixo no peito – versão nórdica do padre Cícero –, este Terror dos herejes fulminava temores escatológicos em O fim do mundo está próximo? Em Anjo das trevas desmascara as seis pragas finais da maçonaria, do protestantismo, espiritismo, divorcismo, sen­sualismo e comunismo. Proteção e salvação oferecia o Coração de Maria, que acreditava estar presente junto com o filho no tabernáculo do sacramento. Essa devoção, algo heterodoxa, lhe inspirou a fundação de mais duas ordens, os missionários sacramentinos e as irmãs sacramentinas. Entrementes, se revelou também um construtor incansável. Além de concluir, em 1930, a primeira igreja em concreto armado – mas em estilo neogótico –, levantou um seminário apostólico, um hospital e o Colégio Santa Terezinha. No início teve um sobrinho como auxiliar por três anos, o padre Hyppolite Depoorter, e em 1931 recebeu a visita do irmão Achille, missionário na Mongólia, o outro sobrevivente de nove irmãos. Em 1941 celebrou sua naturalização brasileira. Sua morte na véspera de Natal, em 1944, em acidente na direção de seu automóvel, alentou seus fiéis a cultuá-lo em relíquias, livros e até numa opereta. Nos murais de seu museu aparece exaltado como um profeta-protetor no meio de um grupo de padres, freiras e curumins. O movimento dos ‘juliomarianos’ procura sua beatificação, desculpando seu fanatismo antiprotestante como comum a tantos outros líderes católicos da época.

O padre Júlio Maria de Lombaerde.

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O sonho monástico de José Moreau em Tabatinguera (Cananeia) Eddy Stols

O

congestionamento de vocações no final do século XIX empurrou alguns sacerdotes diocesanos a procurar cargo e sustento no Brasil, como Eugène Tyck, vindo da África e ativo no Rio Grande do Sul em 1907-1908, ou Jean-Baptiste Van Esse. Este parece ter inspirado um colega seu de seminário, José Moreau, a seguir seus passos. Seu atribulado percurso brasileiro – fragmentário pelas poucas cartas disponíveis – destoa da história convencional da romanização (Arquivo Saint-André; Amaeb, 2.806, IV). Como Moreau não encontrou na Bélgica uma paróquia de renda suficiente para sustentar sua mãe e falhou na tentativa de fundar um convento no Congo, juntou-se, em 1895, ao abade Van Caloen com a intenção de se fazer beneditino no Brasil. Mais preocupado em resolver suas dívidas, deixou o noviciado e foi ganhar a vida como vigário de Iguape, no litoral paulista, um posto já ocupado pelo compatriota Van Esse. Brigas com outros padres a respeito de emolumentos sobre batizados e casamentos e do roubo de uma imagem de São Miguel fizeram-no mudar para Porto Alegre em 1897, onde serviu por vários anos na paróquia de Nossa Senhora dos Navegantes e reanimou sua famosa procissão fluvial. Lá vieram também residir sua mãe e o irmão Adolphe, farmacêutico. Van Caloen, que se reencontrou com Moreau no Rio em 1903, sabia que seu bispo estava contente com este padre inteligente, mas demasiado preso às ‘affaires temporelles’. Segundo o cônsul belga em São Paulo, era interditado de missa e teria explorado vários compatriotas ‘chamados em 1898 para uma fazenda’. Mais do que provável, tal fazenda era a de Tabatinguará, em Cananeia, uma área de 709 alqueires ou 2.420 hectares, que Moreau comprou, ‘com um fim humanitário’, de Maria Isabel Camargo em 3 de julho de 1897, sendo vigário em Iguape. Pelas suas notas seria ‘vasta como metade da Bélgica, muito pitoresca, de clima temperado e salubre, sem epidemias, outrora visitada por Martim Afonso, rica em restos do ouro, mármore branco, sambaquis para servir de cal de construção, madeiras preciosas, pastos para gado, muito pescado, inclusive lagostas e ostras, muita caça como a anta, de carne e pele parecidas com o boi, as pacas, de carne mais fina que o porco, e até pássaros de plumagem valiosa’. Dizia ainda que até a abolição suas terras férteis produziam arroz, açúcar, mandioca, feijão, algodão, tabaco e até trigo, mas com a falta de braços estavam abandonadas. Os proprietários teriam migrado para a cidade e seus moradores viviam da pesca à espera de um novo empresário. Assim a fazenda tinha comunicação fácil e podia sustentar uma comunidade numerosa. Cananeia não seria tão isolada: havia quatro vezes por mês um vapor de passagem e correio terrestre três vezes por semana. Tabatinguará se encontraria a quatro horas de canoa, que um pequeno vapor reduziria a uma hora.

Depois do malogro com os belgas, e queixando-se de ‘inimigos maçons e protestantes’, Moreau esperava vender a uma congregação religiosa a metade dessa propriedade e utilizar o dinheiro na exploração do resto pelo irmão. Sua oferta ao abade Van Caloen, em 1899, para estabelecer uma comunidade ‘num lugar mais sadio que o Ceará’ foi descartada, mas logo pensou nos monges olivetanos ou trapistas. Talvez tivesse conhecimento de um projeto anterior quando, em 1858-1859, o governo do Império aceitou uma proposta do superior trapista belga Van State para abrir um ou dois estabelecimentos coloniais no Brasil, que, a exemplo da Bélgica, exerceriam uma boa influência sobre seus vizinhos lavradores (Relatório do Império). Além das passagens, receberiam terras perto da colônia militar de Pimenteiras, em Pernambuco, mas sua vinda não se concretizou. Em maio de 1903 Moreau se encontrou, na França, com Dom Chautard, que estava procurando para onde transferir seus monges da Abadia trapista de Sept-Fons, ameaçados de expulsão pela Loi Combes. Conseguiu seduzí-los a vir para Cananeia, mas, uma vez lá, os monges julgaram o lugar isolado demais. Nova ideia sua, exposta numa ‘Notice sur le domaine de Tabatinguará’, de 14 de julho de 1905, era doar a propriedade ao rei belga Leopoldo II como uma ‘colonie congolaise’, onde religiosos belgas educariam umas 20 crianças para tornarem-se colonos no Congo. Leopoldo II tampouco aceitou. Em 1909, Moreau voltou a procurar imigrantes belgas, mas sem a confiança do cônsul de São Paulo, Robyns de Schneidauer, que o conheceu nesse mesmo ano em Porto Alegre, ‘possuído pelo espírito mercantil’. Pouco depois, foi à Bélgica buscar a filha do irmão, que agora atuava como médico e farmacêutico em Garibaldi (RS). Numa inesperada peripécia, em agosto de 1911 estava em Recife (PE) de partida para ocupar no Congo o posto de pároco em Elisabethville. De lá, publicou efetivamente cartas no Bulletin des Oeuvres et Missions Bénédictines au Brésil de 1911-1912. No início da Primeira Guerra Mundial, reapareceu como vigário em Bananal (SP), procurando dinheiro e subsídios para buscar órfãos e agricultores na Bélgica, França e Inglaterra. Neste sentido pressionou, em carta de 27 de outubro de 1914, o ministro belga das colônias, que conhecia de Elisabethville, com uma proposta sobre Tabatinguera, mas este a julgou pouco séria. Em mais um episódio misterioso, Moreau subscreveu em setembro de 1917 uma carta, enviada de ‘Nova Lerina’ – sem dúvida sua fazenda de Tabatinguera –, como ‘père Marie Honorat Moreau, o. cist.’ Pelo visto, convenceu finalmente um outro abade trapista, Patrice Léron, de Saint-Honorat na Ilha de Lérins, na Costa Azul, a instalar uma filial em Cananeia. Dom Patrice morreu pouco depois, mas, em 1918, Moreau dizia continuar

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sua obra como ‘superior’. Após ter recebido um padre de coro e dois conversos, planejou ir a Lérins para fazer sua profissão eterna, mas a saída de ‘dois falsos irmãos’, a falta de noviços e a ‘caixa vazia por causa de um traidor’ fizeram periclitar seu mosteiro. Pensava sacar novos fundos de uma ‘Piedosa Liga para o Livramento das Almas do Purgatório’, que se estabeleceria no Brasil inteiro, em Campinas (SP), em Minas e no Piauí, talvez até em Rio Branco. Para construir uma igreja dedicada às Almas do Purgatório, servida pelos cistercienses, pediu o apoio a seu velho conhecido Van Caloen, que o convidou a vir descansar com ele. Em janeiro de 1919 estava em Dakar a caminho de Lourdes. Desta vez conseguiu atrair jovens belgas escapados da guerra, como

o futuro poeta Géo Libbrecht, mas estes logo se desencantaram e abandonaram Tabatinguera. Pouco depois, em 29 de abril de 1921, o novo abade de Lérins se queixou a Van Caloen que Moreau conseguira captar a confiança de seu predecessor abade Patrice por pelo menos 60.000 francos em numerário e mais um material considerável. Destinou o dinheiro para melhorar sua propriedade e estava vendendo o material. Mesmo assim, em 18 de maio de 1921, Moreau seguiu usando o hábito branco cisterciense e recolhendo inscrições para sua piedosa liga. Desvanecido o sonho monástico, teve que assumir novos cargos paroquiais em Porto Ferreira e Rio das Pedras, cidades de São Paulo, onde teria terminado a vida e provavelmente está sepultado.

A Trapa Maristela (1904-1931) J o s é E d ua r d o M . M a n f r e d i n i Jú n i o r

A

Trapa Maristela foi um mosteiro da ordem cisterciense da Estrita Observância, mais conhecida como ordem trapista, fundado em 19 de agosto de 1904 na cidade de Tremembé, Estado de São Paulo. Seu fundador foi o abade Dom Jean-Baptiste Chautard, responsável pelos mosteiros franceses de Sept-Fons e Chambarand. Em 1903, as ações da Terceira República francesa contra a Igreja e as ordens religiosas se acentuaram, fazendo com que Dom Chautard passasse a procurar um refúgio para os monges em caso de expulsão. Concentrando suas buscas na Europa, não obteve sucesso. Incentivado pelo abade Moreau, de origem belga, dono de uma propriedade em Cananeia, litoral sul de São Paulo, Dom Chautard veio para o Brasil, mas descartou essa propriedade (Audrá, 1951, p. 35-36). No início de 1904, foi escolhida em Tremembé a antiga e falida fazenda de café ‘das Palmeiras’, cuja extensão ia das margens do Rio Paraíba até a encosta da Serra da Mantiqueira. Em maio daquele ano, a propriedade foi comprada pelo conde francês Henry de Legge, com quem os monges fizeram uma sociedade que contava com a participação de alguns brasileiros. Em 1906, foi fundada em Londres, pelo Conde de Legge, a ‘Companhia Palmeiras Limitada’, que passaria a contar com acionistas ingleses. Entretanto, coube aos trapistas administrar e explorar a fazenda de pouco mais de 2.500 hectares. Em 1905, a Trapa Maristela passou a produzir arroz na várzea – numa área chamada de Berisal –, pelo sistema irrigado por inundação. A partir da Trapa, a rizicultura se expandiu por toda a extensão da parte paulista do Vale do Rio Paraíba, fazendo com que a região se tornasse uma grande produtora desse cereal. Na fazenda, a rizicultura era acompanhada da criação e seleção de diversos tipos de animais, da produção de café e de vários tipos de frutas, além de mel, vinho e cerveja. Com isso, a Maristela passou a ser considerada um polo agrícola de referência para o governo

brasileiro, uma vez que ele vinha incentivando a policultura como meio de diminuir a produção de café. Para Tremembé, por exemplo, a produção de arroz traria, pela influência dos monges, a construção do desvio da Estrada de Ferro Central do Brasil. Contrariando as orientações do governo de importar mão de obra europeia, para branquear a população brasileira, optou-se por empregar o trabalhador nacional. Mão de obra barata e de fácil exploração, contudo marginalizada pela elite. No início, foram empregados cerca de 500 trabalhadores, entre homens, mulheres e crianças. Muitos destes já se encontravam na fazenda quando os monges chegaram e, na sua maioria, eram ex-escravos (Gaffre, 1912, p. 293). Posteriormente, o número de trabalhadores diminuiu para cerca de 300, variando de acordo com a necessidade das atividades desenvolvidas. Seguindo as orientações da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, a comunidade religiosa e a Companhia proporcionaram aos trabalhadores uma série de ‘benefícios’, como meio de aumentar a produtividade e o lucro, além de colocar em prática o que a Igreja pregava. Na década de 1910, a Trapa Maristela se tornou também uma referência na utilização da mão de obra nacional (Limongi, 1916, p. 367), aumentando, ainda mais, o fluxo de visitas oficiais dos governos estadual e federal. Em 1925, com o alto custo da produção de arroz e sob a pressão da Ordem, que havia decidido fechar os mosteiros que não tivessem conseguido vocações locais, decidiu-se vender o Berisal. No ano seguinte, os monges começaram a retornar à Europa em pequenos grupos. A princípio, o destino era Portugal. Mas, devido à reconstrução da abadia de Orval, parte dos monges foi enviada para a Bélgica, onde, certamente, foi empregado o dinheiro da venda do Berisal. A outra parte voltou para Sept-Fons. No fim de 1928, a comunidade de Orval já contava com 28 religiosos. Em 1931, a parte alta da fazenda, onde se localizava o mosteiro, foi vendida pela Companhia a um grande industrial de

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Taubaté, Mario Boeris Audrá, por 150 contos de réis. Já os animais, os maquinários, as ferramentas, os móveis, dentre outras benfeitorias, foram vendidos pelos monges a Audrá por 160 contos de réis. Destarte, o último grupo de monges retornou à França, ficando apenas um monge em terras brasileiras, o holandês irmão ­Leonard Van Lier, que se transferiu para o mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo, onde faleceu em janeiro de 1948. Em suma, a Trapa Maristela foi uma referência durante os 27 anos de sua existência, proporcionando a Tremembé e à região grandes avanços econômicos e sociais.

Atualmente, a parte alta da antiga Trapa Maristela, particularmente o local onde era o mosteiro, é a sede de um hotel fazenda. Já no Berisal, conserva-se a capela construída pelos monges em 1917, e ainda pode-se ver, em estado de grande deterioração, o solar construído em 1908 para abrigar os monges que gerenciavam a produção de arroz, que ainda continua vigorosa em toda a região. José Eduardo Manfredini Júnior, graduado em História pela Universidade de Taubaté (Unitau), é professor de História na rede municipal de ensino de Taubaté-SP e na rede pública de ensino do Estado de São Paulo.

Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro Peter Heyrman

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abadia trapista de Orval (Vale de Ouro) se situa efetivamente num vale pitoresco e fértil no sudeste da Bélgica, a pouca distância da fronteira com a França, na região da Gaume, que goza de um microclima de temperaturas em média mais altas que nas Ardenas. Nos últimos anos sua fama cresceu bastante graças à cerveja que produz desde 1931, em quantidade limitada. Entre as seis cervejas trapistas belgas reconhecidas, é apreciada pela sua qualidade artesanal, pelo menor teor de álcool e por seu gosto mais seco. A abadia de Orval tem um longo e perturbado passado. Sua fundação dataria de 1070, em plena guerra de investidura. Os primeiros monges, beneditinos italianos, preferiram logo voltar para o sul mais quente. Em 1132 chegaram os primeiros sete monges cistercienses, enviados e talvez acompanhados por seu fundador, Bernardo de Clairvaux. Orval foi a primeira fundação desta ordem nos Países Baixos. Nos séculos seguintes a abadia aumentou progressivamente suas terras de exploração agrícola e suas fundições de ferro se destacaram entre a metalurgia europeia. A abadia participou ativamente dos movimentos de reforma da ordem depois do Concílio de Trento e adotou desde 1593 as regras severas da ‘estrita observância’. Bastante exitosa, Orval contava 130 monges em 1723. As rendas crescentes da comunidade foram investidas desde 1760 em um imponente conjunto abacial, projetado pelo arquiteto ‘ilustrado’, Laurent-Benoît Dewez. Entretanto, este nunca se concluiu, porque foi pilhado e destruído em 1793 pelas tropas revolucionárias francesas. A comunidade fugiu e as terras e as ruínas foram vendidas pelas autoridades francesas. Durante o século XIX, período do revival religioso, numerosas comunidades religiosas conseguiram reocupar suas antigas fundações, mas não foi o caso de Orval. A abadia trocou várias vezes de proprietários, que exploraram sem vergonha as ruínas como pedreiras. Estas, no meio da floresta, atraíam cada vez mais turistas, ainda mais depois das visitas de Victor Hugo em 1862-1864. Foi publicado em 1913-1914 um decreto de proteção, dando início

A abadia de Orval, no sudeste da Bélgica, vista do cláustro e da torre da igreja.

às primeiras obras de restauração. Este interesse público se devia em boa parte ao pároco da aldeia vizinha de Villers-devant-Orval,

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trução e um dos líderes do movimento católico das classes médias na Bélgica antes da Primeira Guerra Mundial. Em agosto de 1914, este celibatário de 40 anos se apresentou como voluntário e fez uma carreira militar notável na frente de batalha do Yser. Em novembro de 1918 voltou a Gand como tenente e famoso herói de guerra e retomou seu compromisso social e político. Dispunha de diversas e largas redes de amigos e de bons contatos na ala direita do partido católico. Como ex-combatente desfrutava efetivamente de boa reputação na corte. Podia ambicionar um mandato no parlamento. Mas em 30 de outubro de 1919, Van der Cruyssen surpreendeu amigos e inimigos por sua repentina partida de Gand. Umas semanas mais tarde soube-se que entrou na La Grande Trappe em Solignies (Normândia). O noviço de 45 anos recebeu o nome de Marie-Albert e foi ordenado padre em dezembro de 1925. Em razão de sua experiência profissional, o novo monge foi encarregado pelo abade Jean-Marie Clerc (1882-1971) dos problemas materiais (cellarius). Os dois visitaram em 8 de maio de 1926 as ruínas da abadia de Orval. Se entenderam também com os proprietários do antigo complexo abacial, a família de Harenne. Esta tinha pouco antes contatado a abadia de Solignies. Seu desejo de devolver a controvertida propriedade à ordem se relacionou logo com os planos de reconstrução da abadia e, levando em conta o passado de Van der Cruyssen, lhe foi confiado o dossiê. Ele formou, em 8 de julho de 1926, com alguns bons amigos de Gand, uma sociedade sem fins lucativos. Onze dias depois a família de Harenne doou sua propriedade a essa entidade jurídica. A iniciativa já correspondia à necessidade de um lugar para os monges de Sept-Fons, que regressavam do Brasil. Em 6 de novembro foi acertado definitivamente que os monges de Maristela alojar-se-iam em Orval e que Sept-Fons forneceria também o indispensável para formar a nova comunidade. A reconstrução de Orval foi uma empreitada impressionante, dirigida por Marie-Albert Van der Cruyssen de maneira enérgica, mas nem sempre correta. Van der Cruyssen mobilizou para o projeto todos os seus contatos de negócios e de amizade. Sabia recolher dinheiro em todas as partes. Começou uma exitosa cervejaria (1931) e uma queijaria (1932). Mobilizou a nobreza e a casa real e sabia, com pregações, festivais de todo tipo, venda de selos e uma equipe de ajudantes voluntários muito ativos, envolver quase toda a comunidade católica belga nessa iniciativa. Orval foi, ao lado da basílica de Koekelberg, em Bruxelas, sem dúvida o projeto católico mais presente na mídia no período entre as guerras. Realizou um conjunto monumental numa estética moderna. Renomados artistas belgas, como Albert Servaes (1883-1966) ou Oscar Jespers (1887-1970), foram convidados. A colaboração entre Van der Cruyssen e o arquiteto Henry Vaes (1876-1944) foi decisiva em todo o projeto. Van der Cruyssen, bastante ocupado com o projeto de construção e seu financiamento, se encontrava frequentemente em Bruxelas e seu nome aparecia também, nos anos de 1930, em muitos dossiês políticos. O bem-estar de sua jovem comunidade religiosa o preocupava bem menos. Esta nunca contaria mais de

Marie-Albert Van der Cruyssen e o arquiteto Henry Vaes na Abadia de Orval.

Nicolas Tillière (1845-1916), que organizava peregrinações e comemorações para o culto de Nossa Senhora de Orval e escrevia poesias românticas sobre o lugar, seu profundo significado religioso e seu trágico passado. O tema da abadia, mártir da violência revolucionária, cultivado nos meios católicos conservadores. Tillière esperava o regresso dos cistercienses e uma primeira ocasião se apresentou quando, em 1901, o abade Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), da trapa de Sept-Fons, se informou sobre o estado das ruínas. Ele procurava um bom lugar para fundar um priorado. O ambiente na França de crescente anticlericalismo – o Combismo – incitava a comunidade de Sept-Fons a emigrar para o exterior. Seus correspondentes belgas divergiam a respeito da excelente localização, da habitabilidade das ruínas e do potencial econômico e religioso da região. Assim, Chautard começou a prospectar outras localizações na Escócia e na Polônia, mas decidiu-se finalmente pela fundação de um priorado no Brasil. Em 19 de agosto de 1904 a abadia de Sept-Fons enviou um pequeno grupo de monges para Tremembé, perto de Taubaté, no Estado de São Paulo. Lá fundaram o mosteiro de Nossa Senhora de Maristela, que não se revelaria um êxito vocacional. Na mesma época em que Chautard decidiu chamar a comunidade de Maristela de volta, o dossiê do destino das ruínas de Orval avançou de novo. E, desta vez, a ‘ressurreição de Orval’ prosseguiu. A figura central nesta história foi o gandense Karel Van der Cruyssen (1874-1955), empresário de decoração e cons-

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58 membros, em desproporção com o monumental conjunto levantado. Os primeiros monges chegaram em 11 de março de 1927. De Sept-Fons partiram finalmente 14 religiosos para Orval, de Maristela vieram 20 padres de coro e irmãos. Em 28 de setembro lhes foi instalada uma capela de São Bernardo e, em dezembro de 1927, um noviciado. No início, os monges moravam em condições precárias no prédio da portaria. Somente em 1928 pôde a comunidade ocupar um edifício próprio, onde se situaria mais tarde o noviciado. Na comunidade surgiram tensões tanto entre os padres de coro e os irmãos como entre os grupos de diferentes origens, os franceses, os ‘brasileiros’ e as vocações belgas. Muitos monges criticavam o prior sobre como sua vida dedicada a Deus podia conciliar-se

com o barulho do gigantesco canteiro e as frequentes visitas de turistas e personalidades. Por isso o prior Van der Cruyssen e o abade Chautard entravam frequentemente em conflito. Depois do falecimento deste último, em dezembro de 1935, a comunidade foi desligada da matriz de Sept-Fons, o que abriu caminho para a consagração, em maio de 1936, de Van der Cruyssen como abade da ‘ressurrecta’ abadia de Orval. Se a maior parte dos monges vindos de Sept-Fons voltou para a matriz, aqueles regressados de Maristela parecem ter ficado todos em Orval. Peter Heyrman é doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas do Kadoc – Centro de Documentação Católica da Universidade de Lovaina.

Os colégios das freiras belgas Eddy Stols

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anto Van Caloen como os premonstratenses do Park empenharam-se bastante para trazer congregações femininas ao Brasil. As primeiras, solicitadas pelo bispo de Gand, Stillemans, foram as Irmãs de São Vicente de Paulo, de Gijzegem, perto de Aalst, ou vicentinas. Doze freiras, recebidas em Recife por Van Caloen, em maio de 1896, instalaram-se no convento da Conceição, salvo a madre superiora, que caiu no desembarque e teve que voltar. Abriram uma escola primária e profissional, um orfanato e intervieram numa epidemia de varíola. Já em 1897, a convite do Bispo Arcoverde, de São Paulo, as primeiras se deslocaram para lá. Patrocinadas por Monsenhor Passalacqua e sua família, instalaram uma Casa Pia no bairro de Santa Cecília, cuidaram do instituto oftalmológico do doutor Pignatari para imigrantes na Vila Mariana, abriram escolas paroquiais e externatos, um dispensário e um asilo. Uma irmã contagiada pela lepra teve que voltar à Bélgica. Como conseguiram rapidamente recrutar jovens brasileiras, começaram, em 1911, um noviciado na Penha que se tornaria sua sede principal e até monumental no Brasil. Enquanto em 1915 deixaram Olinda, expandiram a partir de 1914 suas atividades para outras cidades paulistas, Mogi das Cruzes, Jundiaí, Pindamonhangaba, Santos e São Roque. Em 1927 entraram em Mato Grosso, nas cidades de Bela Vista, Aquidauana e Miranda, onde trabalharam em escolas e em catequização nos aldeamentos. Para tudo isso receberam reforço da Bélgica, com mais de 50 irmãs até 1956, das quais restavam sete em 1975. Naquele ano, contavam com 266 freiras brasileiras, depois de ter recrutado desde 1910 mais de 550 moças, um êxito notável, ainda mais que durante muito tempo não aceitavam negras, mulatas, filhas naturais ou de pais desquitados. Às noviças brasileiras custava aceitar a língua francesa, receber pouca água para a higiene, ter a cabeça raspada careca e vestir muitos metros

de saias, além das longas rezas para santos belgas e de não falar com protestantes. Quase simultaneamente chegaram em Olinda outras freiras belgas, as Damas da Instrução Cristã, que se notabilizaram por escolas mais elitistas. Foi o caso da terceira congregação a desembarcar no Brasil, em dezembro de 1906, as cônegas de Santo Agostinho ou Damas de Jupille – nome de sua matriz belga. Forçadas pela concorrência dos pensionatos abertos por freiras francesas exiladas, cogitaram a expansão no Brasil, sempre com a mediação de Van Caloen. Este julgou as cinco primeiras como muito ativas e de boa instrução. Elas receberam logo reforço e, em 1907, compraram em São Paulo, da família Uchoa, sua Vila para abrir um internato. Este colégio Des Oiseaux ganhou rapidamente boa reputação entre as elites paulistas tanto pelo requinte das regras numa casa art-nouveau do arquiteto Victor Dubugras como pelo bom nível da educação intelectual. Também Santos ganhou, em 1924, um colégio desse tipo, o Stella Maris, e em 1933 as cônegas lançaram até mesmo a Faculdade Sedes Sapientiae, com prédio próprio projetado por Rino Levi em 1941, incorporada à Pontifícia Universidade Católica em 1971. Fomentavam entre suas alunas mais ambição intelectual do que costumeira e algumas, como Ruth Cardoso e Marta Suplicy, se destacaram na vida pública. Conseguiram também recrutar moças brasileiras de boa família como religiosas, algumas famosas como Madre Cristina, pioneira da psicanálise, e Ivone Gebara, teóloga feminista, capaz de enfrentar o conformismo da hierarquia brasileira. Dentro desta ordem serviam abaixo das cônegas também diaconisas, encarregadas dos serviços materiais. Uma delas, Irma Jehaes, uma limburguesa, chegada ao Brasil em 1934, ficou famosa como a Madre Aline dos pobres. Fundou uma creche no bairro afastado de Itaquera para os filhos de mães trabalhadoras, susten-

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tada com donativos. Com o prêmio ganho por volta de 1960, no programa O céu é o limite, de João Silvestre na TV Tupi, Madre Aline decorou a vida do Papa Pio XII. Monitoradas por premonstratenses do Park, chegaram em Montes Claros em 1907 as quatro primeiras irmãs do Sagrado Coração de Maria de Berlaar, que já tinham experiência de ensino e uma primeira missão no Congo. Sua nova escola pretendia, segundo advertia o jornal A Verdade dos premonstratenses, ensinar as moças ‘alguma coisa mais do que biscoito de goma, bôlo sovado, bolo de arroz e outras saborosas mas antiquissimas guloseimas: português, francês, aritmética, geografia, desenho, bordados, flores de pano e pintura aquarela’. O preço, de 5.000 réis para as externas, de 35.000 para as internas e de 3.000 para o curso Froebel, era alto demais e a escola acabou sendo fechada pouco depois. Chegando mais irmãs, tentaram uma escola em Januária (MG) em 1914, mas também abandonada em 1918. O bom fôlego veio somente em 1919 com o convite para abrir um colégio em Araguari, Minas Gerais, com internato para a boa sociedade do Triângulo Mineiro e mais uma escolinha modesta para crianças pobres, um patronato e um asilo. Sob a enérgica superiora Blandina seu êxito estimulou a criação de mais colégios em Montes Claros (1927), Patrocínio (1928), Belo Horizonte (1941) e Pará de Minas (1942), enquanto sua escola normal preparava moças para o trabalho profissional. A congregação Dames de Saint-André, de Ramegnies-Chin, perto de Tournai, se engajou no Brasil através dos contatos do jesuíta português Antonio de Menezes com o bispo de São Carlos. Este enviou um cheque e assim as cinco primeiras damas chegaram em fevereiro de 1914. Uma síntese de seu diário, hoje per-

dido, oferece uma crônica saborosa da intrusão de freiras belgas, algo altivas, na simplicidade material e na complexidade política do interior de São Paulo (Quelques notes ...). Bem recebidas, mas com alguma curiosidade sobre suas vestimentas diferentes, estranharam a improvisação, as mulheres sem chapéu na igreja, a simplicidade do palácio episcopal e da catedral e as promessas financeiras incorretas. Com quase nada preparado, abriram o colégio em três casas pequenas sem conforto algum, mas felizmente apareceram somente 16 internas, em vez das 50 previstas. Com alguma valentia as freiras se emanciparam dos olhares dos inspetores locais, ao mesmo tempo em que pressionavam as alunas e seus parentes para uma prática religiosa regular. Erguendo a partir de 1922 um prédio próprio, suficiente para acolher mais internas, ficou difícil entrar na posse real da boa área doada e fazer chegar da Bélgica os materiais de construção. Problemático foi também o reconhecimento legal de sua escola normal em 1928. Para a solução ajudaram um padre português expulso de sua terra e o chefe político local. Apesar dessas dificuldades dos primeiros anos, logo vieram convites para abrir filiais em Araraquara (1916), em São José do Rio Preto (1920) e em Barretos (1936), no Estado de São Paulo. Finalmente, no Rio de Janeiro havia algumas belgas, como madre de Potter, da congregação francesa Soeurs du Sacré Coeur de Jésus. Esta se recolheu por causa da Loi Combes na sua filial de Bruxelas (Jette) e lá encontrou reforços para abrir um colégio no Rio de Janeiro em 1904. No conjunto a presença das freiras belgas na eduação feminina não ficou muito atrás da francesa ou italiana. Outra questão a pesquisar é sua relação com a emancipação feminina.

As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco Marcelo Lins

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ornal do Recife de 16 de outubro de 1896: Fundeou no Lamarão... [o] vapor inglês “Nile” de 3.425 toneladas, comandante J. Spooner, equipagem 163. O Diário de Pernambuco da mesma data trás a lista dos passageiros chegados de Southampton: Maria Loyola Steyaet [sic], Marie Alphose Cloes, Marie Elisabeth Dobbelaere, Maria Barbe Duchaine, Gabrielle de Vreese, Roaslie Buyens, Livine Dirckx, Hubertine Schrooten, Silvie Goethals. Quando o Nile lançou âncoras diante do porto de Recife naquela quinta-feira, 15 de outubro de 1896, chegava ao fim a primeira etapa da aventura das nove religiosas belgas através do Atlântico e iniciava-se a história das Damas da Instrução Cristã no Brasil. No entanto, o preâmbulo desta história nos remete a 19 de novembro de 1894, quando a Madre Ignace Pollenus, superiora-geral da ordem, atende ao convite do Monsenhor Antoine Stillemans, bispo de Gand, que leu uma carta do Papa Leão XIII, na qual convocava as congregações religiosas dedicadas à educação

para que participassem da reforma da América do Sul, abalada pela ignorância e imoralidade, asseverando que o melhor meio de conseguir esse fim é o de sacrificar-se pela educação e instrução cristã da juventude (Mesquita, 1996, p. 87). A convocação feita pelo bispo pôs nas mãos das freiras a obrigação de fundar um novo colégio, só que desta vez nas terras longínquas da América. Mas onde na América? A resposta veio em 14 de junho de 1895, quando em visita ao convento de Dooresele, o monge beneditino de Maredsous, Dom Gerard Van Caloen, recém-nomeado prior do convento dos beneditinos belgas de Olinda, em Pernambuco, convidou as irmãs da congregação para fundar sua escola em Olinda, com a ajuda e proteção dos beneditinos. Convite prontamente aceito. A convocação papal vinha ao encontro dos apelos dos bispos brasileiros para que as ordens europeias enviassem religiosas e religiosos para ocupar os conventos e mosteiros

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abandonados e ajudassem na reestruturação e romanização da Igreja no Brasil (Lira, 2009). No final do século, o papel tradicional da Igreja na educação, principalmente na educação da elite, encontrava-se ameaçado pelos avanços da educação laica. Foi dentro deste contexto que as novas congregações chegaram ao Brasil, voltando suas atividades para o trabalho educacional e para a manutenção de escolas católicas, internatos e externatos, masculinos e femininos. No contexto cultural lusitano, o papel da mulher estava restrito a cuidar da casa, dos maridos e dos filhos. Voltadas exclusivamente para os afazeres domésticos, isoladas do convívio social e submetidas à autoridade do marido, a mulher no mundo português colonial estava condenada à ignorância. No início do século XIX, a transferência da família real portuguesa para o Brasil e o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas trouxeram novos hábitos para a sociedade brasileira. Em Recife, em fins de 1811, o inglês Henry Koster nota como as damas de algumas famílias portuguesas e inglesas recém-chegadas da Europa “davam o exemplo”, as primeiras indo a pé para a igreja, enquanto as inglesas tinham o hábito de passear todas as tardes. Ainda assim a educação feminina continuava direcionada para a formação de donas de casa. A Lei Imperial, de 15 de outubro de 1827, limitava o currículo das meninas à leitura, escrita, quatro operações, moral cristã, doutrina católica e prendas domésticas (Lira, 2009). Só em 1875 as mulheres foram admitidas na Escola Normal, até então restrita ao sexo masculino. Para a oligarquia brasileira os colégios religiosos supriam seu desejo de “educar suas filhas para a modernidade sem permitir que elas se envolvessem com as tendências negativas trazidas pela mesma modernidade” (Lira, 2009, p. 36). Entre os anos de 1872 e 1920, 58 congregações religiosas femininas europeias se estabeleceram no Brasil, entre elas, as Damas da Instrução Cristã, vindas da Bélgica. Voltemos às nove religiosas belgas que sob a liderança de Madre Loyola Steyaert (1860-1943), ex-superiora de sua comunidade de Antuérpia, eram aguardadas no cais por Dom Gerard Van Caloen. A Recife do final do século XIX tinha uma população de mais de 110 mil habitantes. Apesar dos esforços modernizadores das várias administrações, como a iluminação a gás carbônico, água encanada, telégrafo e o serviço telefônico, inaugurado em 1883, para as recém-chegadas à cidade, a estação e os vagões do trem pareciam-lhes sujos: é como se tivéssemos recuado ao menos meio século da nossa querida Bélgica, nas palavras da madre Loyola em seu diário (Mesquita, 1996, p. 71). Inicialmente elas instalaram-se no convento franciscano de Nossa Senhora das Neves de Olinda, fundado no ano 1585 e que se encontrava desocupado. Nesse edifício funcionou o Colégio da Sagrada Família de Olinda, primeira escola fundada pela congregação das Damas da Instrução Cristã no Brasil. As primeiras semanas foram dedicadas a pôr o velho edifício em condições habitáveis e aos preparativos para a abertura do internato. As freiras enfrentaram, também, os problemas de adaptação ao clima e, é claro, a barreira da língua e dos costumes. Madre Loyola fala da

feliz decepção que tiveram, pois “na Bélgica alertaram-nos sobre os mosquitos, mas até agora... não nos incomodam absolutamente” e o clima, apesar do calor forte, era amenizado “por uma brisa deliciosa” (Mesquita, 1996, p. 77). Já o português, era outro obstáculo a ser superado. Apesar dos esforços para aprender a língua, vez por outra as irmãs viam-se envolvidas em situações descritas com bom humor por madre Loyola como Cenas dramáticas! Durante uma entrevista com pais que vieram matricular suas filhas ela diz: “Eram quatro a explicar e três a responder. Não conseguimos entender-nos! A entrevista terminou sem ter começado”. Noutra ocasião, num café oferecido ao vigário-geral da diocese, monsenhor Marcolino, a irmã notou que faltava manteiga, enviou o funcionário à venda mais próxima com uma nota escrita. Pouco depois ele voltou, e prontamente colocou sobre a mesa um pedaço de madeira com exatamente 300 gramas. Diante da surpresa geral, a irmã compreendeu que havia copiado a palavra errada do dicionário, provocando o riso de todos. O Colégio da Sagrada Família de Olinda iniciou oficialmente suas atividades em 15 de fevereiro de 1897 com o ingresso de sua primeira aluna, Filadélfia de Paula Lopes. Ao longo do ano o número de internas foi acrescido de mais nove alunas com idades que variavam entre nove e 16 anos. O currículo pedagógico daquela primeira turma incluía: História Sagrada, Instrução Religiosa, Francês, Aritmética, Inglês, Geometria e Português (Silva, 2012). Ao fim daquele primeiro ano letivo, o reduzido número de internas dificultava o sustento do colégio. E esta não era a única preocupação. Logo no início de 1898, recebem a notícia de que o Papa havia autorizado a abertura do seminário da diocese no Convento Franciscano de Olinda, o que significava que as irmãs teriam que encontrar outro prédio para seu colégio. A solução, no entanto, foi a mudança para o antigo Palácio Episcopal de Olinda, cedido às Damas pela diocese. Mas nem tudo eram aperreios; com o início do novo ano letivo novas alunas ingressaram no colégio. Em fins de março já eram 19 e no segundo semestre, 34. A questão da residência não estava de todo solucionada, o projeto era comprar o edifício de forma definitiva e assim evitar novas mudanças inesperadas. No entanto, a legislação não permitia que imóveis do patrimônio da diocese fossem vendidos a congregações religiosas. Fazia-se, portanto, necessária a busca de outro imóvel para o abrigo definitivo da residência e do colégio. Em meados de 1901, foi comprado o sobrado da Ponte d’Uchoa, nos arredores de Recife, local aprazível, que contava com estação e linha de trem. A casa pertencera ao comerciante Luiz Morais Gomes Ferreira, um dos fundadores da Associação Comercial de Pernambuco e falecido em 11 de dezembro de 1899. A nova casa tinha vários cômodos: salas de visita, de jantar, de bilhar, copa e sete quartos e, o mais importante, um vasto terreno que permitiria os acréscimos necessários ao crescimento do colégio. Em 31 de julho daquele ano foi assentada a pedra fundamental do novo pensionato a ser construído no vasto terreno. Em 23 de dezembro, com o prédio já pronto, as irmãs instalaram-se de

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forma definitiva na nova residência. No dia 24 foi celebrada a primeira missa na capela do novo internato, agora denominado simplesmente Colégio Damas. Em 1921, foi comprada a casa vizinha que pertencia ao Barão de Casa Forte, praticamente dobrando a área de terreno. Sob a direção de madre Loyola, as Damas expandiram-se com a fundação de novas escolas. Em Pernambuco foram fundados os colégios Santa Sofia, em Garanhuns (1912); Colégio Santa Cristina, em Nazaré da Mata (1922); Colégio Santa Maria, em Timbaúba (1922), e Colégio Nossa Senhora da Graça, em Vitória de Santo Antão (1928). Em 1931, o Colégio de Timbaúba foi transferido para Campina Grande, Paraíba, com o nome de Ima-

culada Conceição. Em 21 de janeiro de 1967, foi oficialmente inaugurado o Ginásio Regina Mundi, em Maringá, no Paraná. Durante as primeiras oito décadas de Brasil, as Damas dedicaram-se exclusivamente à educação feminina, aspecto que viria a modificar-se com a adoção do ensino para ambos os sexos em 1970. Passados 116 anos daquela pequena aventura das nove freiras belgas que cruzaram o Atlântico a bordo do Nile, o projeto Damas da Instrução Cristã está mais do que solidificado no Brasil. Mantendo a tradição de suas fundadoras, as irmãs Damas fundaram no final dos anos 90, em Recife, a Universidade Damas. Marcelo Lins é jornalista em Recife e escreve sobre a história da cidade.

Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo (1945-2010) Eddy Stols

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pesar dos contatos interrompidos pela Segunda Guerra Mundial e da urgente reconstrução da Bélgica, o interesse missionário pelo Brasil não tardou muito a reativar-se. Desta vez, numa conjuntura de Guerra Fria, se articulou uma investida bem mais ampla, implicando as dioceses e seus padres seculares, os movimentos de ação católica, como a JOC, o sindicalismo cristão, as organizações caritativas, a cooperação institucionalizada, as organizações patronais e os líderes políticos. O refundado partido democrata-cristão formou com seus congêneres na Holanda, França, Alemanha e Itália uma nova internacional democrata-cristã, que esperava implantar-se na América Latina, inclusive com subsídios a partidos similares presentes na Venezuela e no Chile. Juntos, e ainda incentivados pelos norte-americanos, como o cardeal Spellman ou a própria CIA, ergueriam uma frente católica contra o bloco comunista, que parecia penetrar na América Latina depois da vitória de Jacobo Arbenz na Guatemala em 1951. Um dos primeiros a alertar sobre o perigo comunista na periferia de Buenos Aires foi um sociólogo de Lovaina, cônego François Houtart, que se faria conhecer mais tarde por posições esquerdistas. A respeito do Brasil, foi significativo o contato do democrata-cristão belga Auguste De Schrijver com Alceu Amoroso Lima. Nesse contexto, em 1953 fundou-se em Lovaina o Colégio para a América Latina (Copal), retomando um projeto de 1895 de abrir lá, junto à abadia beneditina do Keizersberg, um seminário orientado sobre este continente. Instalou-se o novo colégio em 1955 num antigo convento neogótico na Tervuurse Straat, em Lovaina. Devia acolher seminaristas belgas, como também de países vizinhos ou mesmo latino-americanos, enviados por bispos, como Eugênio Salles e José Távora, bem relacionados com a JOC belga. Num país predominantemente católico, certamente durante a guerra e, salvo o curto intervalo eufórico da libertação em 1944-1947, novamente durante a Guerra Fria, a

Igreja Católica manteve seu predomínio sobre o ensino e até o reforçou durante a ‘guerra escolar’ deflagrada pelo governo liberal-socialista em favor das escolas estatais em 1954-1958. Assim, os colégios diocesanos e as escolas apostólicas forcejavam, matraqueando os cérebros e reprimindo a sexualidade, abundantes vocações entre seus alunos. Paralelamente, os conventos femininos não se esvaziavam. O recrutamento somente diminuiu pouco a pouco a partir dos anos de 1960 com o mercado de trabalho em expansão, a sociedade de consumo e a liberalização de ideias e costumes. Já na Bélgica do início do século XXI, a prática católica caiu abaixo de 10% e as vocações desapareceram, ainda mais com o impacto dos escândalos de pedofilia. Mesmo nos anos faustos, o Copal nunca teve muita procura como seminário, porque as dioceses e as ordens preferiam os seus próprios. Assim prevaleceu, sobretudo, um curso de formação de vários meses para padres já formados, freiras e voluntários da cooperação, belgas, mas também franceses, holandeses e poloneses. A pedido do Papa Pio XII, as dioceses belgas colocaram como Fidei Donum padres belgas à disposição dos bispos latino-americanos. Entre 1955 e 1983, partiram para o Brasil 115 padres, dos quais 67 belgas. Mais alguns seguiram até meados dos anos de 1990. Em 2002 o colégio foi fechado e vendido. Em pouco tempo, a primeira motivação anticomunista se transformou, através da descolonização traumática do Congo, paulatinamente em terceiro-mundismo, até mesmo à esquerda do Partido Comunista. Na Universidade de Lovaina os cursos de sociologia, demografia e economia do desenvolvimento, em alta, descobriam temas como a reforma agrária e as favelas. Nessa matéria, alguns professores aconselharam bispos latino-americanos e montaram centros de pesquisa sociológica em Bogotá e no Chile. No que diz respeito ao Brasil, as traduções de Geografia da fome, de Josué de Castro, de Barracão, de Carolina de Jesus, e dos

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romances de Jorge Amado sensibilizaram jovens leitores belgas. No Copal residiram por algum tempo Camilo Torres, futuro guerilheiro na Colômbia, e Gustavo Guttierez, pioneiro da Teologia da Libertação. Esta fez prevalecer doravante a ‘opção preferencial pelos pobres’. Em 1970, Hélder Câmara, bem relacionado com o cardeal belga Suenens, recebeu em Lovaina um doutorado honoris causa, pregando um outro ‘socialismo humano’. Seguiram mais doutorados para Paulo Freire em 1975, Oscar Romero em 1980, Aloíso Lorscheider em 1982 e Jon Sobrino em 1985. Jovens idealizaram a revolução cubana de Castro, a morte de Guevara, mais tarde as de belgas na guerilha em El Salvador e na Guatemala. Na análise desta radicalização poderiam entrar tantos acontecimentos e fatores, desde uma pitada de nacionalismo flamengo – que reconvertia sua aversão à cultura latina em rejeição ao imperialismo ianque – à chegada de refugiados latino-americanos ou, até, conflitos íntimos como aqueles descritos pelo ex-seminarista Conrad Detrez no romance L’herbe à brûler. Tanto a secularização como o consumismo da sociedade belga empurraram jovens inconformados numa fuga escapatória, com a ilusão de que o Brasil estivesse ainda a salvo desses males. No Brasil os padres belgas se dispersaram pelo país inteiro, do Maranhão até o Paraná, mas se concentraram mais no Nordeste, particularmente na Bahia. Alguns eram recém-formados, outros tinham mais idade e experiência ou mesmo uma formação profissional como agrônomo. Como vigários, tomaram conta de paróquias e engajaram-se nas comunidades eclesiais de base, na pastoral da criança, da juventude, das equipes de casais, da terra e das prisões. Construíram casas e centros comunitários, creches, jardins de infância e escolas profissionalizantes ou agrícolas, às vezes com o apoio de uma retaguarda de simpatizantes na Bélgica. Alguns ensinaram em seminários e em universidades católicas. Vale registrar que um número significativo deixou a batina e constituiu família no Brasil ou de volta, na Bélgica. Quatro belgas assumiram a direção de uma diocese brasileira: o beneditino José Cornelis – ex-arcebispo de Lubumbashi, no Congo – em Alagoinhas (BA), de 1974 a 1986; Eugène Rixen, primeiro como auxiliar em Assis (SP) em 1995 e, depois, como bispo de Goiás Velho (GO) a partir de 1998; André De Witte, como bispo de Ruy Barbosa (BA) desde 1998, e Philip Dickmans em Miracema do Tocantins (TO), desde 2008. No âmbito da CNBB, Johan Konings, que ensinou exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Porto Alegre (RS) e passou no Brasil para a ordem jesuítica, responsabilizou-se pelas traduções da Bíblia, ao passo que outro jesuíta, Thierry Linard de Guertechin, demógrafo de formação, com longa vivência na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, e diretor do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, é consultor em matéria do descenso do catolicismo no Brasil. Vários padres belgas participaram intensamente da vida intelectual. Carl Laga, doutor em bizantinismo, em 1959 foi convidado para uma instituição estadual de São Paulo, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, e contribuiu como titular de História Antiga e Medieval durante um decênio para a valori-

zação desta disciplina no Brasil e a projeção de seu Departamento de História com uma revista e a primeira reunião da Anpuh (Associação Nacional dos Professores Universitários de História). Michel Schooyans, professor de Filosofia na PUC de São Paulo, curioso das coisas brasileiras, colecionador de livros e de obras de arte e ainda bem introduzido nos meios da burguesia industrial nacionalista de São Paulo, analisou, em Le destin du Brésil, La technocratie militaire et son idéologie (Gembloux, 1973) e Demain le Brésil? Militarisme et technocratie (Paris, 1977), crítico e premonitório, os problemas do Brasil como potência emergente. Entusiasta do potencial demográfico brasileiro, defendeu, de volta à Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, posições controvertidas em matéria de ética e política populacional. Larga repercussão teve o ensaio Formação do catolicismo brasileiro, 1550-1800 (Petrópolis, 1974), de Eduardo Hoornaert, que se enquadrou a seguir, junto com José Oscar Beozzo – que aliás estudou em Lovaina – e outros, na nova História da igreja no Brasil (Petrópolis, 1977). Esta pretendia romper com o tradicional institucionalismo e construir uma história a partir do povo. Na prática, Hoornaert investiu menos em novas pesquisas do que recuperou e selecionou, num viés catequético e ainda clerical, uma religiosidade, desde sempre bastante autônoma e diversa e já valorizada por historiadores leigos em edições de crônicas coloniais e de visitações inquisitoriais. Em pesquisa patrocinada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Frans Gistelinck estabeleceu em Carajás, usinas e favelas (São Luís, 1988) um primeiro balanço crítico do Programa de Desenvolvimento do Maranhão. A obra de Etienne Samain, que passou no Brasil da teologia à antropologia, se apresentou no capítulo anterior. Paralelamente aos padres seculares, as congregações regulares se empolgaram de novo pelas perspectivas brasileiras. Nos anos de 1950 os supracitados missionários do Sagrado Coração se concentraram no Paraná, formando uma quase província belga. Em 1966, em Francisco Beltrão (PR), Jef Caekelbergh criou a Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assesoar), particularmente ativa entre os pequenos agricultores junto com cooperantes belgas. Os Aumôniers du travail (Capelões do trabalho), que, surgidos no final do século XIX na parte industrial da Bélgica, ofereciam aos filhos dos operários escolas técnicas e albergues, abriram em 1963, com semelhante preocupação, uma escola com o nome de Universidade do Trabalho em Coronel Fabriciano (MG). Quando esta foi incorporada pela diocese de Belo Horizonte, em 1976, estabeleceram outra em Conselheiro Lafaiete, além de um seminário em Contagem, com três a quatro padres belgas. Os missionários da ordem do Imaculado Coração de Maria (ICM), conhecida como Scheut, do nome do bairro de sua sede em Bruxelas, dirigiram-se sobretudo à China, às Filipinas e ao Congo. Expulsos da China por Mao e com dificuldades no Congo independente, aumentaram sua presença na América Latina, onde já tinham missões no Haiti (1944), na Guatemala (1955) e na República Dominicana (1958). Em 1963, tomaram conta de paróquias em Nova Iguaçu e, logo depois, em Volta Redonda e

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Itabira. Receberam assistência de freiras também da Scheut e de algumas Grauwzusters de Roeselare. Estas, com muito pouco preparo social, ficaram desnorteadas com os contrastes brasileiros, mas pouco a pouco se engajaram em projetos sociais, inclusive em Marabá (PA), em 1979. Com a queda das vocações belgas, Scheut trouxe para o Brasil filipinos e outras nacionalidades. Um dos belgas, com 32 anos de experiência no Brasil, Gaby Gheyssens foi escolhido em 2013 como vigário-geral para a reestruturação mundial de sua ordem. Outras freiras integraram a ofensiva evangelizadora a partir de 1952-1953, como as Filles de la Croix de Liège em São Paulo e as Filles de Notre-Dame du Sacré-Coeur de Bruxelas ou mesmo as contemplativas, beneditinas de Schoten em Ribeirão Preto (SP) e clarissas de Flandres oriental em Porto Alegre. As Zwartzusters ou irmãs negras agostinianas de Bruges escolheram a Bahia em contatos com seu arcebispo, Eugênio Salles. Depois de um estágio no Copal, as duas primeiras tomaram conta da paróquia São Gonçalo do Retiro, em Salvador, em 1966. A partir de casinhas, como a Casa da Paz, trabalharam com clubes de mães e centros comunitários, com ensino e enfermaria, e souberam, assim, ainda mais pelo seu nome de Irmãs negras, atrair moças negras ou mulatas como noviças. Logo pensaram em expansão, primeiro para Maragojipe (BA) e depois para Ruy Barbosa (BA) e Oiticicas, no Ceará. As freiras brasileiras começaram a participar dos capítulos da congregação em Bruges, prontas a repovoar e rejuvenescer os conventos belgas. Este abrasileiramento ocorreu também com ordens já presentes no Brasil desde o começo do século XX e em franca expansão. As Dames de Saint-André, ou irmãs de Santo André, se disseminaram por São Paulo e até em Recife. Um terço de sua congregação no mundo é brasileira. As irmãs do Sagrado Coração de Maria de Berlaar recrutaram uma centena de brasileiras, das quais somente as primeiras fizeram seu noviciado na Bélgica. Agruparam seus colégios como Rede Berlaar de Educação, com sede em Belo Horizonte, e formaram em 1969 uma província brasileira, com um representante no capítulo geral na Bélgica.

Também as cônegas de Santo Agostinho continuaram a recrutar brasileiras. Outro fato novo foi a presença de leigos ao lado dos religiosos. Logo depois da segunda guerra, jocistas belgas vieram propagar no Brasil os métodos da JOC belga. A partir dos anos de 1960, a cooperação com o desenvolvimento foi institucionalizada com um novo Ministério do Estado belga. Dezenas de jovens cooperantes vieram trabalhar como auxiliares dos padres e lhes davam maior sustentação na Bélgica. A principal organização, Samenwerking Latijns-Amerika ou Coopération Amérique Latine (SLA e CAL), reconhecida e subsidiada pelo governo belga como ONG em 1964, mantinha, por volta de 1980-1990, de 20 a 30 voluntários em serviços variados. Foi absorvida por outra organização, Volens, que continua ativa e que leva também jovens por períodos mais curtos. Mais organismos, como Copibo, com ajudantes na construção, ou Vredeseilanden ou Îles de Paix, atentos às experiências rurais, se interessaram pelo Brasil, enquanto as campanhas de fraternidade de Broederlijk delen, um organismo caritativo das dioceses belgas, recolhiam sustento financeiro. Este se beneficiava também dos contatos entre patrões católicos belgas e brasileiros. Avaliar aqui o impacto destes aportes belgas ao catolicismo brasileiro seria prematuro e presunçoso, ainda mais na atual crise da Igreja Católica, do seu descalabro na Bélgica e do avanço das igrejas evangélicas no Brasil. Faltam mais transparência e pesquisas. Pelo menos já se pode constatar que, em comparação com a primeira romanização, por volta de 1900, a presença belga durante este último meio século foi mais ampla, diversa, persistente e sobretudo se dedicou cada vez mais aos brasileiros desfavorecidos. Neste engajamento social, frequentemente em parceria com leigos belgas, surgiram conflitos, mas com o tempo também uma convivência mais compreensiva e serena com a cultura e religiosidade brasileiras. A trajetória mais significativa desta aculturação aos pobres brasileiros parece ter sido a do ‘teólogo da enxada’, Joseph Comblin. Pediu para ser sepultado no Santuário do padre mestre Ibiapina, na Paraíba.

Joseph Comblin (1923-2011) Carl Laga

‘J

colega – recentemente e, por ter sido companheiro – durante poucos anos – e amigo – pelo resto da vida – de Comblin, me pus a lê-lo, venerabundo. Não cabe aqui avaliar o conteudo teológico da conferência, mas me sinto interpelado pelo grito: ‘Nunca mais, nunca mais!’ Vejamos, pois, se, porventura, da parte de um sacerdote bem qualificado, essa aversão ao ensino teológico, praticado sempre nos estudos de preparação ao sacerdócio, tenha se manifestado antes. Não é o contrário que deveria verificar-se? Antes de se apresentar

’ai décidé, il y a 30 ans, sous le regard de Dieu, de ne plus jamais travailler dans des séminaires. Plus jamais’ (Decidi, trinta anos atrás, sob o olhar de Deus, nunca mais trabalhar em seminários. Nunca mais.). Foi o que disse Joseph Comblin aos congregados para lembrar os 30 anos passados desde o assassinato de Dom Oscar Romero em El Salvador. Ressoa a frase como tirada de um testamento e, na realidade, vem do texto que se verificará provavelmente ser o último de Comblin, falecido em 2011 com 88 anos e poucos dias. Recebi o texto – gentileza de um jovem

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para servir na América Latina, Joseph Comblin, recém-doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, ensinou a Sagrada Escritura no Instituto Teológico dos Seminaristas belgas aos recrutas no exército. Meus amigos que atenderam às suas aulas falam em uníssono: um grande Professor! Chegado a Campinas, acho que no mês de junho de 1958, ou seja, no meio do ano acadêmico, estreou Comblin no ensino em língua portuguesa. Descobriram que ele possuía um grau ‘em ciências’ e encarregaram-no das aulinhas dessa matéria, no seminário menor. Da exegese do Livro do Apocalipse à elite do clero belga, à explicação da bomba para levar água aos meninos do interior paulista... não é grande elevação de posto. Mas já que tomou essa forma seu primeiro confronto com o ensino no Brasil, Padre José – assim foi conhecido por mais de meio século – se conformou, com uma dose de humor discretamente velado que lhe era tão típico. A Teologia mesma ele ensinou parte dela na casa de formação dos dominicanos de São Paulo, na Faculdade de Teologia da Universidad Católica de Chile – 1962 a 1965 ou 1966 –, e depois de sua volta para o Brasil, bem mais tarde, no Instituto de Teologia, fundado em Recife por Dom Hélder Câmara, mas que ia ser suspenso por Roma. Por fim, não esqueçamos que foi professor em tempo parcial, até chegar a aposentadoria, da Université Catholique de Louvain. Pois bem, nenhum desses institutos era um Seminário Maior no sentido clássico. Não é impossível que José Comblin tenha ajudado num Seminário desta forma durante uma de suas múltiplas e breves estadas no Brasil ou num outro país latino-americano, mas conhecimento disso não temos. Não é fácil ver, então, a que experiência infeliz se referia, revelando em 2010 que tinha feito, ‘30 anos já’, a tal promessa de nunca mais trabalhar num instituto desse tipo. Seja como for, temos a impressão de que ensinar não lhe foi atividade intelectual preferida. Escrever, sim, foi. A nós não cabe fazer a bibliografia completa de Joseph/José Comblin. Não temos capacidade para opinar sobre as obras mais extensas e bem planejadas. Entendidos na matéria me disseram que sua Théologie de la Ville, publicada em 1968, nas Éditions universitaires, em Paris, depois dos dois volumes de sua Théologie de la Paix, é inovadora no campo; além disso, não recusou contribuir com coleções de mais fácil acesso, visando o maior número possível de cristãos. Aí pensamos na coleção Comentário Bíblico, que, na mente dele, teve também a vantagem de ser lançada por um grupo ecumênico. Nem sei quantos são seus Opera Minora separados. Do estilo do autor saudoso, livre a cada um de se fazer uma ideia pessoal. No que me diz respeito, tendo vivido com ele na intimidade da mesma casa e tido o privilégio de ouvir em conversações sua opinião sobre mil coisas, não posso omitir de repetir aqui minha admiração – às vezes misturada, confesso, com um pouquinho de inveja – em sua agilidade com a pena. Tinha o dom de se concentrar num assunto e de confiá-lo ao papel com a mesma facilidade que temos, nós, de respirar. Nem lhe eram indispensáveis boas condições físicas. Até agora eu o vejo escrevendo numa parte qualquer da mesa comum de nossa casa em

José Comblin na Escola Missionária de Mogeiro, 2007.

Campinas, indiferente ao zumbido dos insetos e à temperatura que fazia. Uma visita inesperada? Uma vassoura intrépida? – alugamos a casa de uma proprietária que não permitia que padres inquilinos fizessem a limpeza – José interrompia, bem civilizado como era, seu labor, o tempo necessário para logo depois voltar, sereno, a seu mundo das ideias. Releio agora sua primeira produção impressa em português e que ali elaborou. Um ano e poucos meses depois de nossa chegada a Campinas, propôs-nos um texto, prudentemente impresso pro manuscripto, isto é, para não ser divulgado, com o título A Vocação Cristã do Brasil. Ter guardado essa brochura redime um pouco minha negligência para com suas obras posteriores, bem maiores e bem melhor publicadas. Que mensagem trouxe a plaqueta? Suficiência de europeu recém-chegado ao Brasil? Pois, vejamos as teses nela desenvolvidas. A primeira: a Igreja católica brasileira terá necessariamente que desempenhar o papel de líder do catolicismo mundial (p. 1). Nada menos... Lemos logo depois que realizar essa vocação mundial é um desafio atualíssimo, urgentíssimo, pelo qual o País tem de se preparar desde já. O autor estima que o prazo outorgado para essa preparação é o espaço, no tempo, de uma geração! O catolicismo europeu, continua, não tem nenhuma possibilidade de tomar essa liderança, pois sofre de uma doença incurável: [na Europa] há dois sistemas... de instituições, umas cristãs, outras anticlericais e antirreligiosas (p. 10); mas, aí – nos países da Europa – fracassou miseravelmente o esforço da inteligência cristã de denunciar e de refutar o pensamento alheio ao cristianismo, em marcha já há três séculos. Porém, Deus reservou-a [a Igreja brasileira] para – essas – tarefas futuras (p. 17), enunciadas na primeira página. Longe, então, de constituir uma expressão de ufania, o que se escutava aqui era a voz do profeta proclamando: ‘Quando soar sua hora, brasileiros, não façam como nós fizemos!’ Mais uma vez, era profeta ‘clamando no deserto’, pois conhecemos a história da Igreja brasileira, durante as duas gera-

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ções passadas. Quem nunca se conformou com essa ‘desistência’ brasileira foi o profeta Comblin. Mas um profeta não transmite sua mensagem sem andar ao encontro de gente. Andar... como Comblin o fazia! Permaneceu – não seria mais exato falar em passagens? – em Campinas, em São Paulo, em Santiago do Chile – bis, com cerca de dez anos de intervalo –, em Recife – ou será que foi também Olinda? –, antes de encontrar seus horizontes de preferência, o Nordeste profundo, a Paraíba. E mesmo aí parecia que se tratava mais de paragens: a Capital, Serra Redonda, Santa Rita e Bayeux, para terminar sua odisseia na humilde diocese baiana de Barra. A postura dele, parecendo frágil, era de uma resistência extraordinária para viajar: memorizava alegremente os horários de avião, e as longas horas de ônibus e de carro empoeirado não lhe provocavam mal estar. Será que era andejo mesmo? Mais ainda que andar, o profeta deve falar, e, de preferência, falar alto. A condição e a figura de Comblin, de acesso não realmente fáceis, frequentemente dando mostras de timidez defensiva, se transformavam desde o momento que dirigia a palavra a um público. Não se esperava uma voz tão forte e consonante saindo desta figura, físicamente não muito imponente. Porém, captavam a assistência – ou a irritavam... – aquele seu discurso cáustico, suas afirmações lapidárias e frequentemente incomodantes. E não raramente a repercussão ia além da simples assistência física, para irritar certas autoridades políticas. Pena que, por descuido nosso, perdemos o texto dos ataques no poderoso jornal O Estado de S. Paulo, que entrou numa verdadeira polêmica, citando nome e funções de Comblin. Soubemos que, infelizmente, era um sacerdote húngaro, fugido de sua pátria depois da revolta de 1956, que os inspirava. Nos anos nos quais vigorava a Doutrina da Segurança Nacional com toda sua força, os sucessivos Atos Institucionais impediam o ressurgimento da vida democrática, sempre prometida e sempre adiada. Naquela fase de suspeição generalizada, quando a polícia militar descobria ‘subversivos’ em todo campo, em 1972 José Comblin foi proibido de entrar no País ao chegar da Europa, em Recife. A proibição nunca foi suspensa – li em algum lugar que ela foi, sim, em... 2010 –, apesar de seu trabalho durante 38 anos no Nordeste não ter sido clandestino. Então, vemos um José Comblin, suspeito, perigoso para a nação, um Comblin que amava cada vez mais, que adorava um país que continuava oficialmente considerando-o durante 40 anos como perigoso – só que não fazia nada para eliminar esse perigo. Sutileza brasileira. Mas, entrementes, em 1968, havia se realizado a Conferência Episcopal da América Latina de Medelin e os horizontes não eram mais os mesmos. Aquilo que ia chamar-se Teologia da Libertação tem aí uma das suas origens. José Comblin, não há dúvida, participou ativamente dela, tinha contatos frequentes com Gustavo Gutiérrez e outros protagonistas, lutou por ela, escrevendo, discursando, explicando. Tudo isso foi importante pelo resto de sua vida. Mas do ponto de vista do autor destas linhas, que pretendem ser uma homenagem de amigo, assim como um olhar interrogativo sobre toda a vida de José Comblin, não se pode parar aí, como o fizeram a maioria dos comentadores na oportunidade

de sua morte. A fase da Teologia da Libertação foi exaltante para Comblin, mas relativamente breve. Já a Conferência de Puebla, que seguia aquela de Medelin, dez anos depois, o decepcionou – e não só a ele ... Como já dissemos, o golpe militar em 1964 e os temidos Atos Institucionais que se sucediam afogavam em boa parte a vida política normal. Não é de se estranhar, nesse silêncio político, que umas vozes de representantes da Igreja – evitemos sugerir que a Igreja falava alto e de uma voz! –, que ousavam ocupar um lugar no palco recebiam maior atenção e encontravam bom ouvido em parte da população, que ficava quieta por medo, mas injuriada por aquela prosa continuamente repetida a respeito de um ‘Brasil que, agora sim, anda direito e progride no desenvolvimento’. Em São Paulo e no Recife, percebia-se este som de independência. Teve a coragem o Arcebispo da maior cidade do País, Dom Evaristo Arns, de dizer non licet quando a polícia militar prendia gente indiscriminadamente e torturava sem dar contas a ninguém. E no Nordeste, a eloquência de um bispo baixinho muito irritou os militares, repetindo que na sua região a massa empobrecida, apesar de todas as proclamações grandíloquas de Progresso e de Patriotismo, só ficava um pouco mais pobre ainda. Dom Helder Câmara, homem santo – porém, ‘não rebelde’, precisava José Comblin –, era intelectual de grande curiosidade, de modo que sem dúvida já conhecia a obra de Comblin, e foi naquela época que a colaboração do teólogo belga, oficialmente expulso do País, com um arcebispo, em vias de tornar-se o símbolo da coragem resistente, tornou-se mais intensa. Mas conosco, Comblin não pormenorizava o assunto e nós não temos revelação a fazer nesse ponto. Tenho motivo para supôr, em compensação, que naqueles anos começou a surgir no peito de Comblin uma nova inclinação, versão que virou conversão e que pode bem ter sido a maior na sua vida brasileira, e, quem sabe, a maior da sua vida tout court. O brilhante intelectual, o autor com estupenda facilidade de conceber e de realizar livros, não se dava mais por satisfeito com sua produção livresca. Deve ter sido o que vamos chamar sua vocação de nordestino, vontade de deixar aí mesmo uma marca dele, de pôr ponto às grandes teologias – ‘Teologia da Revolução’, ‘Teologia da Cidade’ – para pegar na humilde ‘teologia da enxada’ – instrumento que, naquela terra, evoca nada de grandioso mas, isto sim, o penoso, tedioso curvar-se para a terra –, vontade de construir algo com as próprias mãos, curvando-se, até pedindo ajuda financeira de outros – o que na vida anterior nunca teve de fazer, tirando do ordenado e da aposentadoria de professor de tempo parcial o suficiente para um sóbrio solteiro como ele. Saíram aos poucos os Centros de Formação Missionária para leigos masculinos e femininos. Fato é que com esta nova atividade surpreendeu um pouco os velhos amigos europeus que o visitavam. Conseguia também – não sei como – a admirável ajuda de dona M. M. e de outras. Graças a elas não passava fome, acho, mas me lembro bem de uma passagem minha de um dia e meio com aquele regime: já sonhava – parecia fartura! – com a comida que tinhamos em nossos anos de Campinas e São Paulo. Somente agora, lembrando as outras fases de sua vida, é que começo a ver que esta foi a fase mais de-

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cisiva e mais durável do seu curriculum. E bem poderia ter sido a fase mais feliz, apesar das limitações materiais evidentes. Não é repentinamente, num dia de calendário, que geralmente uma pessoa se acostuma a um novo estilo de vida. Mas proponhamos prudentemente que essa ideia bem pode ter começado a infiltrar-se em sua cabeça a partir do momento em que, na sua intuição, a Teologia da Libertação, como ele a concebia, não tinha mais futuro. Não foi muito tempo depois de ‘Puebla’ que já teve essa intuição. ‘A Teologia da Libertação? Ela já morreu!’, repetia. A partir do momento em que se convencera disso, até o fim da vida, contamos uns 25 anos. Significa que, durante a quarta parte de século, dedicou-se à sua obra, dando-lhe a melhor parte do seu tempo e de seus talentos. Os centros missionários do Nordeste – a sua pátria, agora – multiplicavam-se, partindo de ‘sua’ Serra Redonda. Na minha mesa tenho o relatório pormenorizado de um mês de Formação Pastoral intensiva em duas dioceses, Juazeiro e Guarabira, respectivamente na Bahia e na Paraíba. Aí, não se tratava de só passar o tempo. Essas escolas de formação organizavam-se em qualquer lugar, onde se ofereciam boas oportunidades, conformando-se às circunstâncias diocesanas, criadas, na prática, pelas preferências pastorais do bispo local. Precisei de um bom mapa para localizar as dioceses de Juazeiro na Bahia – não aquele Juazeiro do Padre Cícero! –, de Bonfim – o Brasil está cheio de ‘Bonfins’! –, de Guarabira, ‘perto da capital’, cujo título de glória é o santuário do Padre Ibiapina, um santo – proclamado pelo povo – paraibano, sobre o qual ler-se-á no fim deste depoimento. A fase mais penosa da vida? Bem pelo contrário, pode ter sido a fase mais feliz: nas fotografias que guardei desse período, aparece um Comblin com largo sorriso, feliz daquela vida. Trabalhando dentro deste novo horizonte, identificando-se com a gente humilde, não por isso se tornou eremita. O Nordeste, em nossos dias de comunicações sociais, está longe de ser um deserto egipcíaco. Reuniões, assembleias, celebrações não faltavam. A celebração dos 80 anos de sua vida, nos dias 20-22 de março de 2003, ficarão para sempre na minha memória. No campus da Universidade Paraibana Estadual – acho que o ‘Padre’ nunca foi professor aí, mas sabia-se que escreveu livros e livros e ‘é dos nossos’ –, que punha à disposição seus salões, se entregou o Festschrift com inúmeras contribuições, nacionais e internacionais. Mas é a concelebração de Ação de Graças que me deixou a impressão mais profunda. A missa em si mesma nada tinha de cerimônia revolucionária – Comblin nunca achou que fazer pulos acrobáticos na liturgia fosse idêntico à evolução necessária e frutífera. Mas foi a dignidade, misturada com uma alegria de poder realmente participar do ato litúrgico – como a da moça, cujo pai não a tinha deixado frequentar a escola até uns três anos antes –, pronunciando a maioria das leituras, e, mais ainda, a do movimento lento de dança sacramental da velha pretinha, que vinha apresentar pão e vinho litúrgico da parte traseira da tenda para o altar, que me comoveu. Não me acho ser do tipo sentimental, mas, no fim da ceremônia, tinha lágrimas nos olhos. Liturgia digna e comovente ao mesmo tempo, parece impraticável em nossa Europa cética

e autossuficiente de hoje. E um celebrante, assistido por um par de bispos do Nordeste e por dezenas de sacerdotes, se mostrando feliz com toda a naturalidade; difícil reconhecer nele o professor europeu, ponderando tudo, hesitando em muito. A conversão ao Nordeste funcionava. ‘Preciso me converter’, se defendia, quando seus amigos prudentemente opinavam contra mais uma mudança de casa, desta vez num esconderijo baiano, fora do qual – excluindo sua viagem costumeira para ver sua família e uns amigos na Bélgica – uma vez só se deixou tirar. Jon Sobrino, companheirão de luta nos dias de Medelin, foi quem o convenceu, na ocasião do trigésimo aniversário – já! o prazo de uma geração inteira – do assassinato de Dom Oscar Romero, em El Salvador. A alocução de Comblin já mereceu um breve comentário acima, mas dará mais trabalho aos teólogos que a lerão. ‘Preciso me converter’ – não houve tempo para isso nas vidas anteriores? Comblin queria não ficar abandonado, mesmo quando morto. Queria juntar-se – assim falou –, fecundando a terra, ao humilde padre – sem maiúscula – Ibiapina, declarado santo pela gente nordestina, onde ‘sempre tem gente visitando o padre... aproveitarei do movimento’ (comunicação eletrônica de Mônica Maria Muggler, 05.04.2011). Ouso concluir com uma lembrança pessoal. Sempre vinha visitar-nos e passar um meio dia em Lovaina, na ocasião da sua viagem estival – no mês de junho ou julho na Bélgica: ‘Nordestino tem medo do frio, sabe!’. Nisso, como em muitas coisas da vida, era de uma regularidade exemplar. Lembro-me bem da última vez. Quando a Mônica me comunicava um novo endereço, mais uma vez, e por causa de mais uma mudança, agora porém para um lugar no interior baiano, que eu nunca ouvira mencionar e no qual, para mim, Judas podia ter lá perdido as botas, perguntei com toda inocência: ‘Não foi difícil, então, o transporte da biblioteca tua para tal buraco?’. ‘Oh, essa!’, respondeu, ‘eu a deixei, ficou em Bayeux’. Que susto que me deu tal declaração! Fiquei sem entender. Para mim, ver Comblin abrir mão da biblioteca – ampla, variada, atualizada, mesmo em Serra Redonda, onde eu o vi lutar, enfurecido, contra o cupim que a invadira... –, com a qual ele parecia ter-se identificado, era ver um artista de renome, repentino desprezador do seu instrumento preferido, jogando-o fora. Com o tempo, pouco a pouco – com José, as manifestações sobre si mesmo ficavam sempre a meio caminho entre brincadeira e afirmativa... – permeou-me o suspeito de que, nesta fase da vida, que sabia ser a última, recluir-se num buraco baiano, juntar-se a um bispo conhecido por ter tido o jejum como única arma contra o poder e a pobreza como único cartaz, era, para o andante, seu caminho de despojo, prova de que seu compromisso com os pobres era conclusivo. Carl Laga, bizantinista, é Professor Emérito da KULeuven; entre 1959 e 1968 foi professor de História Antiga e Medieval na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, atualmente campus da Unesp.

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A contribuição dos jocistas belgas M y r i a m Va n d e n N e s t

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om seu método de ‘ver-julgar-agir’, a JOC (Juventude Operária Católica) deixou, nos anos de 1960, inegavelmente sua marca na pastoral do povo. Graças à participação de tantos jovens operários se produziu uma radical inversão dentro da Igreja Católica brasileira, que resultou na elaboração e no impacto da teologia da libertação até na Bélgica (Bidegain de Uran). Para compreender sua origem é preciso remontar aos primeiros anos da JOC e seguir a evolução deste movimento, a partir da Bélgica, berço do jocismo e de seu mentor espiritual, Cardijn. Para realizar seu sonho de ser um sacerdote para os operários, Jozef Cardijn (1882-1967) começou, em 1919, como vigário em Laken, um movimento precursor, os Jovens Sindicalistas (1925). Sua atuação entusiasta repercutiu rapidamente no exterior e vários países contataram o secretariado belga. Vários padres e outros visitantes na Bélgica observaram seus métodos. Assim, duas moças de São Paulo, Albertina Ramos e Maria Kiel, que estudavam em Bruxelas na Escola Social Superior (1932-1935), ficaram conhecendo a JOC. De volta ao Brasil, organizaram grupos de jovens operárias católicas, que foram as primeiras tentativas do jocismo em terras brasileiras. Não empregavam ainda um método definitivo, mas contribuíram na sensibilização a respeito da situação social dos desfavorecidos (carta de José Gomes – aliás, Zezé – Morais, 25.04.1986). Publicaram um boletim mensal, Jocismo, a partir de maio de 1934. O padre Carlos Ortiz, que organizou a primeira JOC em Taubaté e publicou Acção Ca-

tholica e Jocismo, esteve em Lovaina e manteve correspondência com os capelães belgas da JOC. Estes enviavam suas publicações, lidas com fervor, se bem que Ortiz achava que ‘a JOC/F brasileira não podia ser uma caricatura do modelo belga’ (Ortiz). O Estado Novo (1937-1944) e a Segunda Guerra Mundial perturbaram os contatos entre o Brasil e a Bélgica. Mesmo assim os esforços dos pioneiros brasileiros não foram infrutíferos: em 1942 fundou-se no Rio de Janeiro a JOC/F com Odette Azevedo Soares, Yolande Bettencourt e Francisco Mangabeira, que conheceu a JOC durante seus estudos em Paris. Bettencourt dirigiu, por volta de 1944, a JOC/F no Rio, tendo entre seus membros principalmente domésticas. O fim da Segunda Guerra Mundial abriu para Cardijn e a JOC um período de maior internacionalização: de 1946 até sua morte em 1967 Cardijn viajou pelo mundo inteiro apesar de sua idade avançada (Kadoc, Cardijn). Quando visitou pela primeira vez as três Américas, de julho a setembro de 1946, ficou muito comovido pela pobreza, pelos contrastes chocantes e pelas condições de vida desfavoráveis dos operários na América do Sul. Sua visão da problemática operária se ampliou para uma dimensão terceiro-mundista. Realçava a necessidade de uma solidariedade universal. Em outubro de 1948 pisou pela primeira vez em solo brasileiro, por ocasião da I Semana de Estudos Nacional da JOC brasileira, em São Paulo. Das diversas dioceses afluíram cerca de 600 delegados para analisar juntos a situação da JOC. Se elegeu uma Conselho Nacional da Juventude Operária Católica (JOC) no Brasil reunido em novembro de 1961; ao centro o sacerdote Jozef Cardijn.

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direção nacional: José Gomes de Morais Neto como presidente da JOC, Odette Azevedo Soares como presidente da JOC/F e José Távora como capelão nacional. A aprovação dos estatutos, votada na presença de Cardijn, marcou o reconhecimento oficial da JOC/F brasileira. Cardijn aproveitou sua estada para estreitar suas relações com a Igreja, num dia de estudos com 400 padres e seminaristas, no Ipiranga, e numa alocução para 75 bispos e 3 cardeais, em Porto Alegre. Dizia que a JOC devia poder contar com o apoio de um grande grupo de padres e aproveitar todos os meios para lutar contra ‘esta igreja a-histórica que fugia na caridade’. Recebeu o título de doctor honoris causa das universidades católicas do Rio e de São Paulo. Desde 1948, Cardijn se esforçou para que padres e militantes leigos viessem da Europa para implantar a JOC em países como o Brasil, mas numa colaboração que não fosse colonial: ‘A JOC no Brasil deve ser brasileira’. A este apelo responderam membros da JOC, como Jacques Jerome, originário de Visé, que, com 20 anos em 1948, na difícil conjuntura do pós-guerra, planejava ir trabalhar como eletricista na Argentina. Tinha sido ativo na préJOC de Seraing. Como o consulado do Brasil em Antuérpia despachou mais rapidamente seu visto, acabou chegando ao Rio de Janeiro, onde foi considerado uma dádiva do céu pelo capelão da JOC brasileira, Távora. Alguém com tão rica experiência jocista preferiam guardar por lá! Com a equipe da JOC/F participou da supracitada semana de estudos e Cardijn conseguiu convencê-lo a ficar dois anos mais e instalar a JOC na região de Belo Horizonte. No ano seguinte foi liberado como propagandista da equipe de São Paulo, junto com o padre Mélanson, Zezé Morais, Bartolo Perez e Tibor Sulik. Fundou várias seções no interior e serviu de intérprete na preparação da Conferência Internacional em Braine-l’Alleud. Desde fevereiro de 1952 era ativo no Rio de Janeiro como responsável pelas manifestações externas, na preparação da conferência da JOC/F sul-americana em Petrópolis e da peregrinação a Aparecida. Depois, em 1955, dedicou-se ao Estado de Minas Gerais. Jacques impressionava-se frequentemente ‘com a generosidade, religiosidade e disposição ao sacrifício dos militantes brasileiros’ (JOCI). Voltando ao Brasil em 1951, Cardijn falou na semana de estudos da Ação Social Arquidiocesana. Se os problemas da juventude operária eram do mundo inteiro, tratou de casos especificamente brasileiros percebidos em suas visitas às fábricas e às seções da JOC. Fez suas palestras em francês, mas, mesmo assim, sua mensagem era compreendida pelos jocistas brasileiros por sua fala cativante e entusiasta e por seu carisma. Bartolo Perez, presidente nacional da JOC em 1952, constatou que ‘muitos jovens se comprometeram depois do discurso de Cardijn: suas visitas tinham grande significado para a direção da JOC/F e os capelões, foi um enorme estímulo para nós encontrá-lo e nos sentimos fortalecidos na nossa obra pioneira’. Segundo Angelina de Oliveira, Cardijn fez os bispos brasileiros compreenderem a dimensão da problemática operária, como também a necessidade de se organizar em nível nacional. Tudo isto colocou a hierarquia a refletir sob a direção de Hélder Câmara e José Távora. Quando a Conferência Nacio-

A Juventude Operária Católica (JOC) no Brasil com o sacerdote Jozef Cardijn.

nal dos Bispos do Brasil adotou, em 1955, o ‘ver-julgar-agir’ como método, iniciou-se um processo que transformou radicalmente a atitude da igreja brasileira. Em 1953, o Secretariado Internacional concordou em enviar a primeira jocista belga para a América Latina a pedido da secção JOC/F do Rio de Janeiro. Denise Verschueren foi recebida por uma equipe bem organizada. Sua tarefa consistia em assistir o movimento na formação de militantes e sobretudo de dirigentes. Depois de alguns meses de adaptação, padre Távora lhe encarregou a responsabilidade dos grupos paroquiais de operárias da Zona Norte. Precisamente como Cardijn, consagrava muito tempo às visitas a padres e bispos para convencê-los que jovens operárias eram capazes de se organizar. Desde novembro de 1955 explicava em todas as seções da Zona Sul em que deviam consistir as reu­ niões de núcleos e direção. Como membro da equipe nacional, Denise era também responsável pelo trabalho com as domésticas. A situação das domésticas a tinha comovido logo no início: os baixos salários, um quarto pequeno, a falta de liberdade, seu analfabetismo… Na Zona Norte e na Zona Sul havia centenas de milhares destas domésticas e existiam seções da JOC específicas para elas. A maior parte vinha do interior, sem família, para trabalhar nas casas das classes média e alta. Desde março de 1956 organizavam-se dias de estudo com o tema ‘Também eu sou filho de Deus’ ou ‘Tenho uma resposta a oferecer’; desde abril se publicava a revista Para você, jovem doméstica. Foi neste zelo pela melhora de suas condições de vida que Denise mostrou suas grandes qualidades pedagógicas. Conseguia que moças analfabetas executassem, a partir de sua própria experiência de vida, tarefas importantes na JOC/F. A partir de 1959 organizaram-se no Brasil inteiro pesquisas sobre as experiências destas domésticas e seguiram campanhas como

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para ‘obter uma cadeira na cozinha’. Estas ações resultaram no primeiro congresso para domésticas no Alto de Boa Vista (1961), que formulou o Manifesto das domésticas e deu origem ao seguro social para este grupo. Denise se dava conta de que não veio para transplantar ao Brasil um modelo belga. Ela procurou viver como uma brasileira no espírito de pobreza e evitava fazer muitas comparações com a JOC/F belga. Era consciente de que a JOC brasileira já havia realizado muito durante sua curta existência e observava que os jovens brasileiros apenas tinham tido o tempo para ser crianças despreocupadas. Em 1961, depois de uma estada de oito anos, voltou à Bélgica e recebeu um mandato no Secretariado Internacional em Bruxelas. Na sua etapa inicial a JOC/F brasileira ficou grata pela ajuda de fora e precisava de publicações jocistas belgas. Entretanto, não se tratou de uma transplantação, que seria contrária aos princípios de Cardijn e da JOC/I. Sua estratégia era seguir em cada país seu

próprio desenvolvimento. Nos anos de 1960, a JOC existia em mais de 90 países! A situação brasileira era totalmente diferente da belga e a JOC tinha que se adaptar. O fato de a JOC/F ter sobrevivido a tantos problemas e à repressão militar prova que o movimento se adaptou realmente a esta sociedade. Na medida em que a JOC/F brasileira crescia no nível da direção e em influência, alcançou sua autonomia, também graças ao apoio dos comitês regionais e do Centro de Informação América Latina (1955). O fato de Bartolo Perez ter sido eleito em 1961 presidente internacional no Segundo Conselho Mundial da JOC/I, com participantes vindos de 85 países, mostra como se tinha fortalecido a JOC/F brasileira. Myriam Vanden Nest obteve licenciatura em História na KULeuven com um trabalho de conclusão sobre “Os belgas na JOC brasileira”, é formada também em Ciências Religiosas, professora do ensino médio e ativa na pastoral da igreja católica.

A Uniapac e o Brasil Peter Heyrman

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s primeiras organizações de empresários católicos surgiram no anos de 1880-1890 na França e na Bélgica. Na senda de Léon Harmel (1829-1915) e frequentemente assistidos por jesuítas, examinavam como podiam adaptar sua prática empresarial à doutrina social da Igreja. Na Bélgica, data de 1894 a Association des Patrons et Industriels Catholiques. A similar flamenga surgiu em 1925, o Vlaamse Algemeen Christelijk Verbond van Werkgevers. Em 12 de junho de 1931, 40 anos depois da Rerum Novarum, foi fundada a primeira internacional de patrões católicos, as Conférences Internationales des Associations des Patrons Catholiques. Depois da guerra, em maio de 1949, esta organização foi reforçada por holandeses, belgas, franceses, alemães e italianos na Union Internationale des Associations Patronales Catholiques, a Uniapac, com uma cúpula ainda exclusivamente europeia, mas que já nutria ambições mundiais. Em 1962 a organização se rebatizou como International Christian Union of Business Executives. Sem esquecer a África, a Uniapac procurava nesses anos de 1950-1960 sobretudo expansão na América Latina. Através dos bons contatos com os jesuítas, os patrões católicos europeus esperavam encontrar lá correligionários para suas aspirações de uma ordem mundial cristã, na linha das encíclicas Mater et Magistra (1961) e Gaudium et Spes (1965). Essa aproximação ocorria paralelamente com o movimento operário cristão e as Nouvelles Equipes Internationales democrata-cristãs. Naturalmente, inspiravam-se nos interesses de negócios. Criaram-se então associações de patrões católicos no Chile (1948), no Uruguai (1952), na Argentina (1953), no Peru (1956) e no México (1957). O congresso mundial da Uniapac em Montre-

al, no Canadá, em setembro de 1957, decidiu formar uma cúpula regional (CCDAL) em Buenos Aires (Argentina). A reunião mundial seguinte da organização em Santiago (Chile), em setembro de 1961, deu novo impulso. Nesse ano fundou-se também no Brasil a Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), tendo entre seus administradores Ernesto Diederichsen (presidente), Elias Corrêa de Camargo e Haroldo Falcão. Depois de São Paulo e do Rio de Janeiro, seguiram seções na Bahia, em Recife (PE), na Paraíba, em Natal (RN), Fortaleza (CE) e Belo Horizonte (MG). A ADCE organizou a partir de setembro de 1962 seminários para empresários e pleiteou, entre outros, um sistema de salário família. Alguns belgas desempenharam papel de primeira importância na expansão deste movimento empresarial cristão na América Latina. Em 1955, o jesuíta e assistente espiritual da Uniapac, Jean-Marie Laureys (1897-1956), percorreu o continente e manteve conversações com várias associações de patrões católicos, como no Brasil. No seu rastro seguiram entre outros o fabricante de fios de aço Léon Bekaert (1891-1961) e Jacques De Staercke (nascido em 1927). O professor de Gand, André Vlerick (1919-1990), cooperou desde 1959 em iniciativas para formação de empresários junto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Centro Nacional de Produtividade na Indústria (Cenpi). Entre os assistentes espirituais da ADCE encontrava-se o belga Michel Schooyans (1930-), que lecionou de 1959 a 1969 na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. O mediador mais importante foi, sem dúvida, Rik Vermeire (1920). Graças a Bekaert e ao industrial alemão Peter H. Werhalm (1913-1996), foi nomeado em 1958 secretário-geral da Uniapac.

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Esta função o levou várias vezes à América do Sul. Mesmo depois de sua passagem para a empresa Bekaert, em 1965, Vermeire continuou a intermediar os contatos através da Fundação Léon Bekaert (1962) e da Maison de l’Amérique Latine. A Uniapac procurou o fortalecimento da organização patronal latino-americana e maior colaboração com o patronato europeu e com a Comunidade Econômica Europeia. Em novembro de 1962 ocorreu em Bruxelas o Fórum Europeu para a América Latina, que resultou na fundação do Comité Européen pour la Coopération avec l’Amérique Latine (CECAL, maio de 1963). Meio ano depois se reuniram 400 empresários latino-americanos em São Paulo e formaram

o Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (CLAD). A ‘Declaração de São Paulo’, de novembro de 1963, defendeu uma integração econômica latino-americana mais forte, algo no modelo europeu e correspondente às ideias do economista argentino Raul Prebisch (1901-1986). O avanço da Uniapac na América Latina se consagrou no congresso mundial no México, em outubro de 1964. Peter Heyrman é Doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas do Kadoc – Centro de documentação Católica da Universidade de Lovaina.

Os vínculos entre os mundos maçônicos e laicos da Bélgica e do Brasil N i c o l e t ta C a s a n o

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omo ‘produto’ europeu, a Maçonaria foi introduzida no Brasil no final do século XVIII (Oliveira Marques; José Catellani e William Carvalho). Figuras decisivas ou muito influentes na história do país, desde a Independência até a Proclamação da República, eram maçons, desde o próprio Imperador Pedro I e o ‘patriarca’ José Bonifácio de Andrada e Silva até o Marechal Deodoro da Fonseca, os presidentes Prudente de Moraes, Campos Sales, Hermes da Fonseca, passando por tantos outros, como o Duque de Caxias, o Visconde do Rio Branco e seu filho, o Barão do Rio Branco. Entretanto, os historiadores brasileiros discordam sobre a concertada direção maçônica desses eventos, ainda mais que as lojas brasileiras passaram por contínuas rivalidades e dissidências, fusões e novas cisões. Numa dessas, um maçom exilado na França, Francisco Gomes Brandão (1794-1870), aliás, pelo seu nome indigenizado, Gê Acayaba de Montezuma, conseguiu, do Conselho Supremo do Rito Escocês Antigo e Aceito nos Países Baixos, uma carta de legitimação em 12 de março de 1829 para instalar um Conselho Supremo semelhante no Brasil. No seu regresso foi reconhecido por outra carta vinda da Bélgica em 12 de novembro de 1832 como 1º Soberano Grande Comendador brasileiro. Ainda em 1858, o Conselho Supremo belga confirmou o reconhecimento do congênere brasileiro, mas naquela altura este se tinha afastado, há muito tempo, de Montezuma, e voltara à política como deputado, ministro da Justiça e dos Estrangeiros e diplomata na Inglaterra. Sobre as relações deste com os maçons belgas, valeria a pena investigar, tanto mais que foi enobrecido como Visconde de Jequitinhonha, sendo o único mulato, filho de um português e uma negra, a alcançar um título e que introduziu no Senado as primeiras propostas para abolir a escravatura. No final do século XIX, tanto na Europa como nas Américas, algumas associações maçônicas e laicas nacionais começaram a

federar-se, criando entidades internacionais. Nestas, a Bélgica desempenhou um papel importante. Na mesma época, a entrada do Brasil nesses contextos internacionais devia facilitar a ligação entre os mundos maçônicos e laicos dos dois países. No Bulletin du Grand Orient de Belgique desse período pode-se ler como a maçonaria belga seguia com interesse a evolução do movimento maçônico no Brasil, constantemente contestado pela propaganda clerical ultramontana. Por falta de documentos resulta difícil, por enquanto, traçar mais a fundo os vínculos anteriores a 1930. Nessa data, o Grande Oriente do Brasil entrou na Associação Maçônica Internacional, fundada em Genebra, onde a maçonaria belga sempre foi muito ativa (Bulletin de l’Association Maçonnique Internationale, nº 32, 1930, p. 31; nº 34, 1930, p. 4). Outra pista seriam os papéis pessoais de influentes maçons belgas e brasileiros, como o pioneiro do ensino leigo e primeiro ministro da educação Pierre Van Humbeek (1829-1890), que tinha parentes brasileiros, ou o arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, que estudou em Gand e manteve boas relações com empresários belgas. Mais aparentes são os vínculos nas associações do livre-pensamento, acercadas à maçonaria. Grande parte destas, espalhadas pelo mundo, se federaram em 1880, criando em Bruxelas a Fédération Internationale de la Libre Pensée. O Brasil integrou esta Federação no início do século XX, uma vez que se constituíam as ligas anticlericais em oposição à ingerência clerical na vida social e política do país. Nas cidades onde se instalaram se aproximavam muito dos meios maçônicos. Em particular, a Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, fundada em 1911, se filiou à Federação Internacional do Livre-Pensamento em 1912 (La Pensée, 17.11.1912, nº 407). Pode-se seguir a evolução e as atividades destas ligas brasileiras por meio de seu semanário La Pensée, dirigido por seu secretário, o livre-pensador e maçom belga Eugène Hins (1839-1923).

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Hins conhecia relativamente bem o Brasil por ter nele residido em 1863, quando, com 24 anos, teve que interromper seus estudos por problemas de vista. Tirou de sua estada como preceptor num engenho da província de Pernambuco material para as cartas publicadas na Revue de Belgique e, mais tarde, em 1884, reunidas num livro com o título Un an au Brésil. Este tratava da natureza e da sociedade escravocrata pernambucana e não tinha ainda nada a ver com o Livre-Pensamento. A seguir, Hins partiu em 1872 para a Rússia, onde lecionou numa escola militar. Em 1880 participou em Bruxelas do congresso da primeira internacional. Em La Pensée, Hins assinalava regularmente as atividades dos livres-pensadores brasileiros, observando o modo como as ligas festejavam todos os aniversários do mundo laico europeu, como, por exemplo, as comemorações de Francisco Ferrer, em 13 de outubro, e de Giordano Bruno, em 14 de fevereiro, mas também o 20 de setembro, data da queda da Porta Pio em Roma, em 1870, e do fim do Estado pontifical. Vale notar que esta última data é lembrada pela Liga Anticlerical do Rio de Janeiro por significar ‘a queda do poder temporal dos papas, […] um dos feitos mais importantes da história da Humanidade’. Além disso, Hins publicava a correspondência de seus correligionários brasileiros a respeito da ingerência dos jesuítas na vida social do Brasil e preocupavase com as alternativas à ofensiva ultramontana na educação da América Latina. Aliás, na própria Bélgica, depois da vitória do partido católico em 1884, os maçons e livre-pensadores se encontravam na defen-

siva em matéria escolar, mas seus educadores já elaboravam, nas escolas municipais e na Universidade de Bruxelas, novas ideias e métodos pedagógicos laicos. Advogavam a coeducação e a ginástica. Para quebrar o monopólio católico, pensavam na organização de orfanatos ‘racionalistas’. Muita atenção recebia o modelo das ‘Escolas Modernas’ formulado pelo mártir do Livre-Pensamento espanhol, Francisco Ferrer. Estas novas propostas podiam experimentar-se na América Latina e uma missão laica nesse sentido foi dirigida por Georges Rouma, a partir de 1909, na Bolívia e em seguida em Cuba. Na pauta deveriam surgir iniciativas no Brasil, onde os métodos inovadores de Ovide Decroly e, sobretudo, o livro Méthodes américaines d’éducation (1908), de Omer Buyse, tiveram forte impacto na nova pedagogia propugnada por Lourenço Filho e Anísio Teixeira. Este último evoluiu assim do tradicionalismo religioso para a defesa da escola nova pública nos seus cargos de inspetor e diretor de ensino, o que lhe valeu acusações de comunista por parte dos católicos da revista A Ordem e que, bem mais tarde, levou à sua morte misteriosa no regime militar em 1971. O Estado de Minas Gerais contratou ainda nos anos de 1930 uma missão pedagógica belga, liderada por Buyse, mas logo o Estado Novo de Getúlio Vargas e sua política mais favorável à Igreja Católica e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial interromperam este diálogo entre belgas e brasileiros adeptos da laicização. Nicoletta Casano é Doutora em História pela Universidade Livre de Bruxelas.

As igrejas brasileiras de Bruxelas Anne Morelli

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os últimos dois decênios muitos brasileiros vieram viver na Bélgica e particularmente em sua capital. Pertencentes em sua maioria às classes populares e frequentemente relegados a uma situação administrativa de ilegalidade, se ocupam nos nichos profissionais normalmente reservados, no século XXI, aos imigrantes recém-chegados aos países menos afetados pela crise: trabalho na construção, na jardinagem, na limpeza, nos restaurantes, na assistência às crianças, às pessoas de idade e aos doentes, no serviço doméstico interno e na prostituição. Como emigrantes, evidentemente, levaram consigo suas crenças. Se no século XX o Brasil era ainda considerado como país católico – com somente traços de sincretismo com os cultos africanos e locais –, hoje não é mais o caso. Os católicos somam 64,6% (123 milhões de brasileiros), os protestantes, 22,2% (42 milhões de pessoas), enquanto 8% da população se define sem filiação religiosa (La Raison, nº 577, 2013, 6). O pluralismo religioso avança. Se a Constituição brasileira de 1988 foi mesmo promulgada ‘sob a proteção de Deus’, a menção

nas cédulas brasileiras de reais da fórmula ‘Deus seja louvado’, inserida em 1986, por iniciativa do então presidente José Sarney, suscita hoje debates. O ministério público de São Paulo, pela voz do procurador Jefferson Aparecido Dias, pediu que esta menção não figurasse mais a partir de março de 2013 nas cédulas, a fim de proteger a liberdade religiosa de todos os cidadãos brasileiros. Neste clima de questionamento do monopólio católico, as diferentes igrejas ligadas ao protestantismo se desenvolveram rapidamente. Trata-se essencialmente de evangélicos, de pentecostalistas ou testemunhas de Jeová que acumulam progressos sobretudo nos meios populares. A divisão religiosa dos imigrantes brasileiros na Bélgica reflete esta evolução recente. Em Bruxelas, ao lado da comunidade católica brasileira reunida em torno da paróquia de Jesus Trabalhador, encontram-se os presbiterianos renovados, os testemunhas de Jeová, as igrejas pentecostalistas (Deus é Amor, Deus é Fiel) e diversas igrejas evangélicas (Semade, O Brasil para Cristo, Comunidade Cristã, Renascer em Cristo, Assembleia de Deus Missionário...).

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parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Presença em certos bairros

trística, a exegese, a homilética ou a heurística antes de tornar-se pastor. Os carismas da comunicação são geralmente suficientes para o êxito do fundador. Sua esposa e seus filhos são quase sempre associados à sua predicação e à gestão do grupo. Deste modo David Miranda fundou a igreja pentecostalista Deus é Amor, sua mulher é ‘conselheira’, seu filho é pastor e sua filha, Debora Miranda, canta para a igreja. Quando o fundador da Semade na Bélgica morreu prematuramente, o magazine ilustrado AB destinado aos brasileiros da Bélgica – o mensal gratuito declara imprimir 11.000 exemplares; vive de abundantes publicidades para as diversas igrejas – anunciou muito espontaneamente que os três filhos do pastor Edvaldo Tavares Gomes – que apoiou o projeto da revista desde o início – vão continuar seu trabalho e já são legitimados (AB, janeiro de 2013, 54).

Geograficamente estas igrejas se concentram, logicamente, nos bairros de Bruxelas que têm longa tradição de acolher imigrantes recém-chegados. De fato, as comunas de Saint-Gilles e Anderlecht (Cureghem), depois de terem sido a moradia de numerosos judeus, italianos e espanhóis, acolheram muitos poloneses, marroquinos, portugueses e brasileiros. Assim, a paróquia católica de Jesus Trabalhador é uma das paróquias de Saint-Gilles, situada na Chaussée de Forest, ao passo que a igreja pentecostalista Deus é Amor se encontra na mesma rua (rue Gheude) em que a Semade, em Anderlecht, comuna onde se situam também a grande Comunidade Cristã (rue des Deux Gares), os presbiterianos renovados e Deus é Fiel (rue Van Lint para estas duas últimas). Deus é Amor tem também uma sala de culto em Ixelles (rue de La Cuve) e a Semade uma segunda sala em Anderlecht (chaussée d’Alsemberg). Estas igrejas procuram naturalmente os endereços de moradia ou, pelo menos, de encontros de seus potenciais fiéis. Elas oferecem serviços sociais e os serviços religiosos são fervorosos e frequentes. Assim, a paróquia católica brasileira de Saint-Gilles, que todas as noites oferece sessões abertas depois das jornadas de trabalho, se sobressai sobre suas homólogas belgas, em vias de quase extinção da prática religiosa. Às 19h30 durante a semana, às 18 horas nos fins de semana, pode-se rezar, cantar, estudar ‘a palavra de Deus’, fazer música, se confessar ou participar da missa. Tratase de um grupo da renovação carismática, que, confrontado com a situação de muitos de seus paroquianos, se implica ativamente nas lutas pela regularização dos “sem-papéis” e na sua ajuda social.

Uma mídia eficaz As igrejas brasileiras de Bruxelas se dirigem a um público de trabalhadores modestos, mas que dominam a internet e geralmente possuem celulares, smartphones e laptops. Utilizam estes instrumentos para divulgar as diversas igrejas. Assim existe um site para a paróquia católica da Comunidade Jesus Trabalhador (www. ccbbruxelas.be) como também para a Comunidade Cristã (www. ccbnet.eu) ou as igrejas pentecostalistas (Deus é Amor...). Lá se podem encontrar as homilias, informação sobre a agenda das atividades do grupo ou dos horários do culto. A Comunidade Cristã se comunica com seus fiéis através de uma rádio que transmite 24 horas diárias (www.radioccbnet.com). Durante as sessões é possível comprar os DVDs de cantos ou de predicações para ouvir em casa. A revista dos brasileiros na Bélgica (AB Magazine) serve também de transmissora das atividades religiosas, anunciadas em plena página de publicidade ou até na capa. Assim, a vinda a Bruxelas do cantor Lázaro foi manchete da revista para anunciar seu concerto no dia 23 de fevereiro de 2013 no Tour e Taxis, numa sala para 5.000 pessoas. Sua vinda à Bélgica foi organizada pela igreja Comunidade Cristã. Ele é um embaixador cantante da igreja, como Debora Miranda o é para Deus é Amor. A morte súbita do pastor Edvaldo durante sua volta momentânea a Goiânia teve seu culto fúnebre filmado. Alguns fragmentos do filme foram postados no Youtube para permitir aos fiéis residentes em Bruxelas associar-se ao culto. A cada instante é possível consultar os sites e as eventuais novidades enviadas pelo correio eletrônico. O uso desses instrumentos modernos estreita evidentemente os laços entre os membros, muitas vezes isolados durante a semana.

Pentecostalistas evangélicos A igreja pentecostalista Deus é Amor foi fundada em 1962 por David Miranda. Ela tem sua sede mundial em São Paulo e pretende ter construído lá o maior templo do mundo, previsto para 140.000 pessoas e inaugurado em 2004. Se as duas salas de Bruxelas são modestas, elas oferecem o culto no sábado à noite e no domingo à noite e mantém laços de auxílio mútuo entre os membros (ofertas de trabalho, alojamento, babás para as crianças, roupas...), aos quais propõem também atividades religiosas excepcionais, vigílias de rezas, visitas às outras comunidades fora da Bélgica... A Semade é um ramo da missão da Assembleia de Deus na Europa, sob invocação do Espírito Santo, criada em 2000 na Bélgica por Edvaldo Tavares Gomes, originário da cidade de Goiânia, e falecido prematuramente no final de 2012. A Comunidade Cristã se apresenta como jovem e moderna e, além de sua sede em Bruxelas, que oferece quatro sessões por semana, tem também filiais em Antuérpia, Liège e Turnhout.

Os serviços sociais Para encontrar um trabalho, um alojamento, uma solução para seus filhos, uma ajuda administrativa ou mesmo roupa quente de inverno, os brasileiros de Bruxelas podem contar com suas igrejas. Muitos fiéis vivem na precariedade e precisam de apoio. As igrejas transmitem também a seus fiéis as informações mais interessantes: Quais são os requisitos para sair da clandestinidade

Empresas familiares Os fundadores das igrejas mencionadas geralmente gostam de empregar os membros de sua família na sua empresa religiosa. Para tanto não é preciso debruçar-se longos anos sobre a pa-

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e obter papéis; Onde fazer um curso de francês; Por qual fronteira fazer chegar sua família; Qual é o meio mais barato para enviar dinheiro; Como alugar um apartamento em Bruxelas e conseguir relógios de eletricidade e de água para quem não tem os documentos em ordem. Para todas estas questões vitais para o recém-chegado é possível encontrar respostas nas igrejas, através de outros brasileiros que já tiveram esses problemas e podem comunicar suas experiências e seus “jeitinhos”. As mensagens fornecidas não têm nada de abertamente político ou, ainda menos, revolucionário. Mas não dizia alguém há 175 anos (antes de acrescentar seu celebre: a religião é o ópio do povo): A miséria religiosa é, por uma parte, a expressão da miséria real e, por outra, o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo sem coração, como é o espírito de condições sociais, dos quais o espírito é excluído. Que ligação têm os brasileiros com suas igrejas? Que papel têm estas em suas inserções? Pode surpreender que na realidade muitos brasileiros não tenham um apego exclusivo a uma única igreja, mas podem circular entre várias delas. A proximidade geo­ gráfica facilita esta mobilidade. Se hoje não tem um culto na minha igreja ‘habitual’ posso atravessar a rua e assistir numa outra igreja, onde vou encontrar algumas de minhas referências e... conhecidos brasileiros. As diferenças dogmáticas desaparecem diante das semelhanças comunitárias e sociais. O grupo religioso age aqui como um substituto do grupo familiar. Como todos os seus membros se encontram numa situação parecida de desarraigamento,

pode-se encontrar nesse “ambiente familiar” interlocutores para exprimir, em seu idioma, suas alegrias, suas dores e suas saudades. Uma questão se coloca, da mesma forma que, como para todas as situações religiosas em migração: essas igrejas específicas favorecem a integração ou isolam seus membros da realidade belga? Além do papel que elas se atribuem, de que ajudam muitos brasileiros a ultrapassar situações difíceis ou mesmo a sobreviver, algumas dessas igrejas são etapas progressivas para a mistura. Assim a grande comunidade Cristã Brasileira de Anderlecht (Rue des Deux Gares) reúne um público internacional. Várias outras igrejas são igualmente ‘mistas’. Lá se encontram, ao lado dos brasileiros, cidadãos portugueses ou originários das antigas colônias portuguesas na África negra ou ainda de outros países. O idioma português não é utilizado exclusivamente e dá lugar ao francês ou ao inglês. O francês pavoneia-se no letreiro em algumas fachadas. Para a incipiente segunda geração, o português muitas vezes não é o idioma de melhor compreensão. Assim o ‘recuo’ sobre essas igrejas comunitárias pode também abrir portas sobre o ‘diferente’, ser ponte entre o ‘por lá’ e o ‘por aqui’. Anne Morelli é historiadora, professora na ULB-Universidade Livre de Bruxelas, onde dirige o Centro Interdisciplinar dos Estudos das Religiões e da Laicidade – CIERL. Um de seus cursos trata da História das igrejas cristãs contemporâneas. Entre suas obras sobre as minorias religiosas se destaca o livro Lettre ouverte à la secte des adversaires des sectes (Carta aberta à seita dos adversários das seitas).

Grupos espíritas criados por brasileiros na Bélgica e o movimento espírita belga Fa b i o M e n d e s F u r t a d o

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movimento espírita é composto por membros que se unem em grupos para o estudo e a reflexão sobre as obras do francês Allan Kardec. Esses grupos espíritas não contam com nenhum tipo de apoio financeiro de outros órgãos. Em 1995 o brasileiro Franciso Bosco e sua esposa, Carolina Bosco, chegaram a Bruxelas por questões profissionais. Espíritas desde criança, procuraram logo um grupo para continuar seus estudos espíritas. Encontraram, assim, um grupo de amigos que se reuniam semanalmente na casa de um de seus participantes. Com o passar do tempo o grupo cresceu, os estudos e a prática da Filosofia Espírita exigiram uma organização mais estruturada. Foi nesse momento que nasceu a ideia da criação de um centro de trabalho e estudos aberto ao público em Bruxelas. A ideia desse centro de estudos começou a se concretizar em fevereiro de 1996 quando alugou-se uma pequena sala. Assim, o CESAK-Centre d’Études Spirites Allan Kardec, o primeiro grupo espírita criado na Bélgica por brasileiros, se tornou oficialmente uma ASBL (as-

sociação sem fins lucrativos) em dezembro de 2000. Atualmente encontra-se na Rue Louis Hap 134, em Etterbeek, e conta com várias atividades semanais em francês. Em 2001 chegou à Bélgica Marcia Alves, casada com o belga Luc Mary, nativo das Ardenas. Desde a sua chegada sentia a necessidade de encontrar outros companheiros de ideal espírita, visto já ser espírita e membro do Grupo Caminho da Esperança no Rio de Janeiro. Por estar em Auby-sur-Semois, longe dos grandes centros urbanos, levou vários anos para que isto acontecesse. Em 2008 com a participação de uma amiga médica e outra enfermeira no Congresso de Medicina Espiritualista em Liège, o Espiritismo veio à sua porta. Suas amigas solicitaram uma reunião de esclarecimentos que foi realizada em sua casa, com a presença de 21 pessoas, para ouvir Jean-Paul Evrard, presidente da União Espírita Belga. Assim, naquele dia nascia o Groupe Philosophique Spirite ‘Nosso Lar’, atuante na região de Auby-sur-Semois.

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Em 2005 um terceiro grupo espírita começa a se criar em torno de um grupo de amigos brasileiros que também se reuniam semanalmente em Saint Gilles, Bruxelas. Liderados pela brasileira Flavia Veríssimo, um local foi alugado para acomodar o grupo nascente que crescia. Por volta de 2006 é criado o NEECAFLA – Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion. Com o crescer do grupo e de suas atividades, o NEECAFLA se torna uma ASBL em 2010, época em que o grupo contava com aproximadamente 10 membros ativos. Atualmente encontra-se na Rue d’Albanie 103, em Saint-Gilles, e promove diversas atividades semanais em português e em francês voltadas para o público. Esses grupos se integram e trabalham em conjunto com o movimento espírita belga com a adesão à União Espírita Belga, que se encontra na cidade de Liège. A União Espírita Belga realiza reuniões trimestrais para a reflexão e troca de experiências entre os diversos grupos espíritas existentes no país. A União Espírita Belga foi criada em 1882 e mantém vivo o movimento espírita na Bél-

gica desde então. Os grupos CESAK, NEECAFLA e Nosso Lar, que foram criados por brasileiros, se únem ao movimento para o avanço das ideias espíritas neste país. Por seu caráter livre e desprovido de hierarquias, o movimento espírita cresce pelo esforço e pela união de seus próprios membros. As atividades caritativas deste movimento se baseiam principalmente no apoio moral e espiritual ao público participante. Eventualmente são realizadas atividades de caridade para dar apoio financeiro a movimentos de auxílio ao próximo, como, por exemplo, o programa STOP Famine Corne de l’Afrique e o grupo Coeurs SDF ASBL de Liège. Fabio Furtado é Engenheiro de Computação pela Universidade Federal de São Carlos, atuando há vinte anos na área de desenvolvimento de sistemas no Brasil, França e Bélgica. Participa ativamente no Movimento Espírita Belga e é atualmente presidente do NEECAFLA – Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion em Bruxelas.

Deuses em exílio: notas biográficas de um candomblé na Bélgica Arnaud Halloy

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princípio, nada predestinava Alain, professor de Moral na cidade operária de La Louvière, a tornar-se pai de santo e, ainda menos, a abrir um terreiro de candomblé de caboclo em Carnières, pequena cidade valona situada próximo à cidade de Binche (conhecida por seu carnaval...). Mas os orixás lhe fixaram um outro rumo. É este percurso religioso fora do comum que pretendo relatar aqui. Todo texto biográfico, descrito em poucas linhas, encontra o desafio da escolha dos fatos a relatar, pois é nos detalhes de cada evento que se traça a trama de uma vida. Me contentarei, então, à imagem de um ‘story-bord’, em orientar a descrição naquilo que me parece terem sido os momentos determinantes do encontro entre Alain e o mundo do candomblé. Alain é um ativo participante do carnaval de La Louvière onde desenvolveu muito cedo uma paixão pelo folclore. E foi esta paixão que o levou a viajar pela África e também pelo Brasil, onde, em 1974, visitou pela primeira vez um terreiro de candomblé: ‘Achei engraçado... Para não dizer interessante... Sem mais’. Após quatro anos, ele retornou ao Brasil, desta vez para visitar sua irmã, que havia se instalado na pequena cidade de Alagoinhas, interior da Bahia. E foi durante esta segunda estadia que os eventos tomaram um rumo inesperado. Desta vez, o encontro com o candomblé ocasionou-lhe uma verdadeira revelação espiritual: por várias vezes, Alain apresentou sinais de uma ‘aproximação’– os signos precursores de uma possessão religiosa. Esta situação era surpreendente pois, na época, era bastante difícil para um branco – salvo talvez alguns etnólogos! – ter acesso a estes cultos, e ainda mais raro que um estrangeiro fosse ‘tomado’ por uma divindade africana, no caso o orixá Oxóssi, a divindade da caça. Esta

segunda viagem marcou o início de uma série de acontecimentos que impuseram a Alain, na época ateu convicto, a integrar esta dimensão espiritual à sua própria existência. Entre os eventos importantes, podemos citar o episódio acontecido no dia 23 de abril de 1979, dia de São Jorge, no qual Oxóssi ‘se manifestou’ através de uma incorporação no meio da cozinha da casa dos pais de Alain, que ficaram bastante impressionados com a cena. Em decorrência deste evento, seus pais convenceram-no a consultar um psiquiatra. Para tranquilizá-los, Alain foi consultar o doutor Jean Dierkens, professor emérito em psicologia médica na Universidade Livre de Bruxelas (ULB), bastante conhecido na época por suas apresentações na televisão. O resultado dessa entrevista foi positivo, pois o eminente psicólogo encorajou Alain a ‘insistir no erro’, ou seja, continuar a experiência, como conta Alain com bastante humor. Nos anos seguintes, Alain realizou diversas viagens a Alagoinhas e, a cada uma de suas visitas, ele ia gradativamente mergulhando no mundo do candomblé, desenvolvendo assim suas capacidades mediúnicas. Depois de uma década de frequência assídua, Alain adquiriu o direito de abrir seu próprio terreiro e de iniciar seus próprios adeptos. Foi assim que pouco a pouco, e não sem dificuldades, ele edificou o que viria a ser o candomblé de caboclo de Carnières. Em consequência de uma série de decepções e dificuldades relacionais entre os membros da comunidade religiosa formada ao longo dos anos, Alain decidiu fechar o terreiro de Carnières em 2000 e vender a casa familiar que abrigava o culto e também um museu dedicado à escravidão transatlântica e às religiões afro-

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-americanas. Após vários anos de reflexão e hesitação, pontuadas por uma longa estada em Salvador e a abertura de um restaurante brasileiro em Carnières, Alain fundou uma nova casa de culto, desta vez em La Louvière. Como testemunham a breve história do terreiro de Carnières e também, numa escala mais ampla, a escravidão transatlântica, as crenças e práticas religiosas não têm nem fronteiras nem nacionalidades: elas parecem, tanto quanto o ser humano desde há dezenas de milhares de anos, destinadas a migrar e a se transformar ao longo dos encontros e das circunstâncias sócio-históricas. Escolher a Bélgica como domicílio não é um negócio fácil para as entidades afro-brasileiras, mas este desafio foi vencido há mais de 30 anos por Alain. E hoje ele pode contar também com o apoio

de seu companheiro brasileiro, ele próprio iniciado no candomblé. A eles eu exprimo aqui toda a minha admiração. As informações mencionadas acima fazem parte de uma pesquisa etnográfica realizada no candomblé de Alain entre 1998 e 2000. Esta pesquisa resultou na redação de uma dissertação de Mestrado na Universidade Livre de Bruxelas (“Dieux en Exil. Adaptations et apprentissage rituel dans un candomblé de caboclo en Belgique”) e na publicação de um artigo (“Um candomblé na Bélgica. Traços etnográficos de uma tentativa de instalação e suas dificuldades”, na Revista de Antropologia – USP, 2004, 47(2): 453-493). Arnaud Halloy é antropólogo na Universidade de Nice Sophia-Antipolis.

Bibliografia Geral da Parte 5 Sobre os jesuítas

Sobre os beneditinos

Juarez Donizete Ambires. ‘Jacob Roland: um jesuíta flamengo na América Portuguesa’. Revista Brasileira de História, t. 25, n. 50, 2005, p. 201-216; Anais do Museu Paulista, I, 239-246 e II, 254-257; José de Anchieta. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Belo Horizonte e São Paulo, 1988; Karl-Heinz Arenz. De l’Alzette à l’Amazone. Jean-Philippe Bettendorff et les jésuites en Amazonie portugaise, Institut grand-ducal, Luxembourg, 2008; Karl-Heinz Arenz. “Do Alzette ao Amazonas: vida e obra do padre João Felipe Bettendorff (1625-1698)”. Revista Estudos Amazônicos, 5, 1, 2010, 25-78; João Felipe Bettendorff. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Belém, 1990; Guillermo Furlong. Justo Van Suerck y su carta sobre Buenos Aires (1629). Buenos Aires, 1963; Histoire du massacre de plusieurs religieux de S. Dominique, de S. François et de la Compagnie de Iesus… Item Diverses extraicts des Lettres escrites par aucuns de ladicte Compagnie, qui du Païs-bas ont esté envoyez aus Indes Occidentales en l’an 1615. Valenciennes, Ian Vervliet, 1620, p. 76-80; F. Kieckens. «Une sucrerie anversoise au Brésil à la fin du XVIe siècle. Le vén. P. Joseph de Anchieta S. J. et Gaspar Schetz, seigneur de Grobbendoncq’. Bulletin de la Société Royale de Géographie d’Anvers, 7, 1882, 467-499; Carl Laga, ‘O Engenho dos Erasmos em São Vicente; Resultado de pesquisa em arquivos belgas’. Estudos Históricos, Marília, I, 1963, 13-43; Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo, 2004; Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil. Belo Horizonte e São Paulo, 1988; Eddy Stols. ‘Dutch and Flemish Victims of the Inquisition in Brazil’. Essays on Cultural Identity in Colonial Latin America, ed. Jan Lechner. Leiden, 1988, p. 43-62.

Saint-André de Zevenkerken, Loppem. Arquivo, Fonds Van Caloen; Nouvelles bénédictines, 1895-1897, t. 12-14; Gerard Van Caloen. ‘Le Brésil vécu. Souvenir d’un vétéran des tropiques’. Bulletin des Missions, 1920-1923, 6, p. 13-16, 52-56, 94-98 e 138-140; Gerard Van Caloen. Lettres intimes à sa famille. Bruges, 1933; Gilberto Ferrez e Paulo F. Santos (eds.). Marc Ferrez, O Álbum da Avenida Central. São Paulo, 1983; Emiel Lamberts e.a. The Black International 1870-1878: the Holy See and militant catholicism in Europe. Lovaina, 2002; Alberto Lamego. Efemérides da terra Goytacá, Livro II. Niterói, 1947; Christian Papeians de Morchoven. L’abbaye de Saint-André Zevenkerken, Un projet audacieux de Dom Gérard van Caloen. Tielt, 1998; Mateus Ramalho Rocha. O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, 1590/1990. Rio de Janeiro, 199; Mark Tierney e Filip Vandenbussche. Longing to belong. The Life of Dom Mayeul de Caigny. Trinidad, 2012; Jaci Guilherme Vieira. Missionários, fazendeiros e índios em Roraima. Boa Vista, 2007.

Sobre os premonstratenses Bibliografia: Godofredo Chantrain. História dos Premonstratenses Averbodienses e Jauenses atuando no Brasil, 1896-2006. Idem, Florilégio Premonstratense, Pirapora, 2008; Maurice Gaspar. Les Prémontrés Belges et les Missions Étrangères. Lovaina, 1905; Maurice Gaspar. Dans le sertão de Minas. Lovaina, 1910; Maurice Gaspar. Trente années d’Apostolat au Brésil par les Prémontrés du Parc. Malines, 1930; Beatriz Ana Loner e Lorena Almeida Gill. ‘Rio Grande do Sul no nascer do século XX: Jaguarão e a fronteira brasileira pelos olhos de um padre belga’. Estudos Ibero-Americanos, 2012, 38, 253-268; Hubert Peffer. Trois mois dans l’Etat du Parana au Brésil. Lovaina, 1908; Hubert Peffer. Aux capitalistes et industriels belges, comment résoudre la question du fer au Brésil? Une solution? Lovaina, 1908; Hubert Peffer. Une conférence sur le Brésil, L’avenir d’un grand pays. Lovaina, 1911; Thomas Schoenaers. Drie jaar in Brazilië. Averbode, 1904, 2 t. Três anos no Brasil, Ed. e trad. de Eduardo Álvares de Souza Soares e Cornelis Van Ommeren. Pelotas, Educat, 2003.

Sobre os capuchinhos François Bontinck. Histoire du royaume du Kongo. Lovaina, 1972; Jean Cuvelier. Het Oud-Koninkrijk Kongo. Bruges, 194; Joseph De Munck. Kinkulu kia Nsi eto Kongo [História do nosso País o Kongo]. Tumba (Kongo), 1956; Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala. Edição crítica. Ed. Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca, Madri [1933] 2002; Heywood, Linda M. e John Thornton. 2007. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas. Cambridge, UK; Hildebrand, P. 1933. Een Vlaams martelaar in Oud-Kongo: Joris van Geel, Tielt; Kiddy, Elizabeth W. 2005. Blacks of the Rosary: Memory and History in Minas Gerais. University Park, PA; Louis Jadin. ‘Rivalités luso-néerlandaises du Sohio, Kongo, 1600-1675’. Bulletin de l’Institut Historique Belge de Rome., 1966, t. 37, 137-360; Louis Jadin. L’Ancien Kongo et l’Angola, 1639-1655. Bruxelas, 1975; Souza, Marina de Mello e. 2002. Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei Kongo. Belo Horizonte; Thornton, John. 1992. Africa and Africans in the Making of the Atlantic World. Cambridge, UK; John Thornton. The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement. Cambridge, UK., 1998; Jan Vansina. Les anciens royaumes de la savane. Léopoldville-Kinshasa (Kongo), 1965.

Sobre outras ordens J. De Klerck. Brazilië, het land der toekomst. Borgerhout, 1944; Daniël Verhelst e Hyacint Daniëls. Scheut hier et aujourd’hui, 1862-1987. Lovaina, Leuven U. P., 1993.

Sobre Júlio Maria de Lombaerde Diário missionário do Pe. Júlio Maria. Trad. Demerval Alves Botelho. Belo Horizonte, 1991; Júlio Maria de Lombaerde. Romance de um missionário no Amazonas. Trad. Ivan Fornazier Cavalieri. Belo Horizonte, 1991; Anne Marie Goderis. Het leven, het werk, de figuur van Padre Julio Maria de Lombaerde. Antuérpia, 1984; Antônio Affonso de Miranda. Padre Júlio Maria, sua vida e sua missão. Belo Horizonte, 1991.

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Sobre José Moreau

Sobre o jocismo

Arquivo Saint-André, Fonds Van Caloen, Liasse Moreau; Arquivo Relações Exteriores, Bruxelas, Correspondance politique 1.192, 03.07, 1.905; 2.806, VI; 2.971, IX e 4.382; Relatório do Império. Rio de Janeiro, 1858, p. 33; 1879, p. 73.

Ana Maria de Bidegain. La organización de movimientos de juventud de acción católica en América Latina. Los casos de los obreros y interuniversitários en Brasil y en Colombia entre 1930-1955. Louvain-la-Neuve, 1979 ; Kadoc jaarboek 1982. Cardijn. Een mens, een beweging. Leuven, 1982; Kadoc, Lovaina, Arquivo Cardijn, 388/1, rapport van 1936; 1433, diário de viagem de Cardijn, outubro de 1948; Juventude Trabalhadora, abril de 1956; 924, diário de Denise Verschueren e suas cartas de 21.03.1955 e 19.12.1953; 884, Pour une promotion d’une JOC véritable latino-laméricaine; Carta de Bartolo Perez, 15.05.1986; C. Ortiz. Ação católica e jocismo. Taubaté, 1936; Entrevistas com Yolande Bettencourt, 22.05.1986; com Denise Verschueren, 21.03.1986 e 09.07.1986; com Angelina de Oliveira, 15.04.1986; com Jacques Jerome, 03.03.1986; M. P. Carvalheira. ‘Momentos históricos e desdobramentos da ação católica brasileira’. Ed. Leonardo Boff, Os 50 anos da JOC, Revista Eclesiástica Brasileira, 1983, 43, fasc. 169, p. 10-28; JOCI, dossiê relações internacionais, cartas de Jacques Jerome, 09.05.1955 e 16.07.1956; Denise Verschueren. ‘Je les appelle’. Perspectives de catholicité, 22-23, 1963-1964, p.11-14.

Sobre Maristela A. Audrá. Maristela: O Convento da Trapa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951; L. A. Gaffre. Visions du Brésil. Paris, Aillaud, Alves e Cia., 1912; J. P. Limongi. ‘O Trabalhador Nacional’. Boletim do D.E.T. Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo. São Paulo: Typografia Brasil de Rothschild e Cia., ano 05, n. 20, 3º trimestre de 1916.

Sobre Orval Marcel Anfray, L’Abbaye d’Orval. Paris, Picard, 1939; P.- C. Grégoire. L’Abbaye d’Orval au fil des siècles. Metz, Serpeniose, 2002; Orval 1070-1970. Neuf siècles d’histoire. Orval, 1970; P. Rion. ‘L’abbaye d’Orval comme projet de société’. L. Van Ypersele en A.-D. Marcelis eds. Rêves de chrétienté. Réalités du monde. Imaginaires catholiques. Actes du colloque, Louvain-la-Neuve, 4-6 novembre 1999. 2001, 129-140; C. Soetens dir. Orval 1926-1948. Entre restauration et résurrection. Arca, Louvain-la-Neuve, 2001; Nicolas Tillière, Histoire de l’abbaye d’Orval. Namur, Delvaux, 1897.

Sobre Uniapac Louis Brouwers. Vijftig jaar christelijke werkgeversbeweging in België / Responsables chrétiens d’entreprises: cinquante ans d’histoire. Bruxelas, 1974, 2 t.; Declaração de Princípios da Associação de Dirigentes Cristãos De Empresa (A.D.C.E.), São Paulo 17 ago. 1961; Joseph B. Gremillion. The catholic movement of employers and managers. A study of Uniapac. Rome, Gregorian University Press, 1961; Forum Européen sur l’Amérique Latine. Palais des congrès, Bruxelles, 21-23 novembre 1962. Haia, 1963 ; Towards international solidarity. XIIe World congress of Uniapac. Mexico, 20-23 october 1964; Rik Vemeire. Een wereld in wording/Un monde à construire. Brussel, 1968; KADOC: Arquivo André Vlerick, 4.3.14.4.3 e Arquivo Rik Vermeire, 21-25.

Sobre as freiras belgas Informações fornecidas pelas irmãs vicentinas Thereza Confortin e Suzanne Smedts em 1975; Lira, Maria Helena Câmara. Academia das santas virtudes: a educação do corpo feminino pelas Beneditinas missionárias nas primeiras décadas do século XX. Recife: Maria Helena Câmara Lira, 2009; Mesquita, Madre Tarcísia P. As Damas Cristãs no Brasil: 1896-1996. Recife: Damas Cristãs, 1996. O livro da madre Tarcísia de Masquita foi elaborado a partir de documentos originais manuscritos existentes no colégio do Recife: Itinerário da Viagem, Diário da Casa da Sagrada Família de Olinda e diversas cartas enviadas para a Bélgica pelas fundadoras do colégio de Olinda; Nunes e Silva, Ramsés. ‘As Damas da Instrução Cristã no Brasil da Transição Secular: 1897-1912’. IX Seminário ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’. Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012; Santos, Carla Adriane Arrieira dos. Colégio Regina Mundi: A Construção de uma identidade (1967-1970). Maringá, 2012; Yves Segers e. a. 150 jaar Zusters van het Heilig Hart van Maria van Berlaar, 18451995. Lovaina, Kadoc, 1995; F. Van den Berghe, J. Van den Heuvel e G. Verhelst. De Zwartzusters van Brugge. Bruges, Ed. Marc Can de Wiele, 1986. Quelques notes sur les débuts de la province brésilienne de la Congrégation de Saint-André, cópia recebida da sua sede em Ramegnies-Chin.

Bibliografia sobre a maçonaria e o livre-pensamento Bulletin de l’Association Maçonnique Internationale, nº 32, 1930, p. 31; nº 34, 1930, p. 4; José Castellani e William Carvalho. História do Grande Oriente do Brasil. A Maçonaria na História do Brasil. São Paulo,Madras Editora, 2009; Eugène Hins. Un an au Brésil. Mons, Bibliothèque de la jeunesse belge, 1884 ; Antonio Henrique de Oliveira Marques. La Franc-maçonnerie portugaise 1727-1820. París, Editions maçonniques de France, 2001 ; Marc Mayné. Eugène Hins. Une grande figure de la Première Internationale en Belgique. Bruxelas, 1994; La Pensée, 25.12.1910, nº 309; 14.01.1912, nº 364; 17.11.1912, nº 407; 30.11.1913, nº 460 ; 30.03.1913, nº 426; 09.11.1913, nº 457; 04.08.1912, nº 393.

Sobre os espíritas Websites: União Espírita Belga: http://www.spirite.be; NEECAFLA ASBL: http://www. neecafla.be; CESAK ASBL: http://bruxelles.cesak.org

Sobre o candomblé Arnaud Halloy. ‘Um candomblé na Bélgica. Traços etnográficos de uma tentativa de instalação e suas dificuldades’. Revista de Antropologia-USP, 2004, 47(2): 453-493.

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O Brasil Entra em Cena

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O Brasil entra em cena Eddy Stols

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arcus van Vaernewyck, cronista de Gand, comparava as lutas entre Tupin Imbas oft Tupin Ikins com a briga violenta e o maltrato dos presos entre católicos e protestantes nas ruas daquela cidade, em 22 de dezembro de 1566, no primeiro ano dos distúrbios religiosos em Flandres. Esta conexão, à primeira vista insólita, se devia, sem dúvida, à leitura de um dos dois livros seminais da primeira brasiliana, André Thevet, Les Singularitez de la France Antarctique, e Hans Staden, Warachtige Historie ende beschrijvinge eens lants in America ghelegen, wiens inwoonders wilt, naeckt, seer godloos, ende wreede menschen eters zijn... Tinham saído do prelo em Antuérpia, em 1558, ainda no apogeu desta florescente metrópole do comércio internacional. Em edições baratas, língua vernácula, capítulos bem articulados e dezenas de gravuras, descreviam os modos de viver e o meio ambiente natural dos índios brasileiros e obtiveram maior êxito que as obras mais doutas em latim. Sobretudo o livro de leitura fácil do artilheiro alemão Staden, que, na volta de sua catividade entre os canibais, passou por Antuérpia e lá contou suas aventuras na casa dos Esquetes. Ganhou muitas reedições, uma primeira em Antuérpia em 1563. Com estes livros o Brasil irrompeu com um perfil mais nítido e uma temática própria na representação da América. Antes, apenas descoberto, o Brasil já havia entrado no imaginário de Flandres, mas de maneira confusa e mesclada com outras terras do ultramar. Em 1503 um pintor ou comerciante flamengo de Lisboa, João Draba, ofereceu, segundo Valentim Fernandes, uma imagem de índio e uma pele de jacaré à Capela do Santo Sangue em Bruges, mas não se sabe se foram expostas lá como ex-votos. Uma crônica de Bruxelas registrou, em 1506, a descoberta de uma grande ilha, onde os homens andavam nus. Anos depois, nas tabernas de Antuérpia, Thomas Morus ouviu do marinheiro português Raphael Hythlodaeus histórias do ultramar que lhe inspiraram o cenário de sua De Utopia, 1515. Se índios mexicanos talvez se apresentaram em espetáculos nos Países Baixos, inspirando as máscaras do palácio do príncipe-bispo de Liège, nada consta de seus congêneres brasileiros. Nas famosas festas de Binche, em 1549, os nobres dançaram ainda vestidos de peles como os selva-

Gravura de Jacobus Sluperus no Livro dos Costumes, de Abraham de Bruyne, impresso em Antuérpia por G. van Parijs por volta de 1570.

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gens dos balés medievais. Na segunda metade do século XVI, junto com os livros, o mapa do Brasil ganhou presença e volume na cartografia de Mercator e Ortelius. Ao mesmo tempo, traziam-se do Brasil, em abundância, saguis, macacos, papagaios e araras como animais de companhia, ao ponto de vendê-los na feira, como registrou uma pintura de Joachim Beuckelaer em 1566. Mercadorias brasileiras, do pau-brasil ao açúcar, agora mais abundante e barato, entraram no consumo corrente, enquanto se experimentavam em cachimbos as primeiras pitadas do tabaco brasileiro. Formavam-se gabinetes de curiosidades como o Museo instructissimo de Jacobo Plateau, em Tournai, com tatus e colibris, ou a coleção do Duque de Arenberg, especializada em armas e plumaria dos índios. Artistas como Hans Bol, Philippe Galle e Jan van der Straeten imaginavam suas pescarias, enquanto o naturalista Carolus Clusius inseriu as novidades brasileiras numa síntese enciclopédica, Exoticorum libri decem, 1605. Se um aparente nivelamento entre uma sociedade cristã e uma selvagem surpreende – como na supracitada referência de Van Vaernewyck aos flamengos como índios –, este aflorou mais explicitamente nas comparações feitas por Jean de Léry e Michel Montaigne sobre o canibalismo dos índios brasileiros e as barbaridades entre cristãos. Algum relativismo cultural, subjacente e mais pragmático, se veiculou pela mesma época em Antuérpia na exaltação do comércio internacional pacífico e do intrépido mercador viajante pelo mundo e em contato com civilizações diferentes. Textos como os prólogos do Landjuweel, o grande festival de teatro popular em 1561, justificavam, perante as resistências da agricultura e artesa-

nato locais, seu papel indispensável no abastecimento de matérias-primas, ao passo que os artistas plásticos inventavam e desenvolviam a temática dos Quatro Continentes na pintura, gravura e arte efêmera. No arco do triunfo dos portugueses na entrada de Antuérpia, do Arquiduque Ernesto, em 1594, Brasília, antes ainda representada sob o vulto da América, acedeu, num desenho de Maarten de Vos, ao seu próprio status em pleno, ao lado da Índia, Etiópia e Mauritânia. Entretanto, a guerra religiosa e civil em Flandres e o crescente antagonismo entre católicos e protestantes que, além de tudo, repercutiram no bloqueio ou na pirataria do comércio marítimo regular com o Brasil, fizeram abortar esta equanimidade humanista, algo respeitosa da alteridade indígena. Com a Contrarreforma triunfante nos Países Baixos meridionais, seus poderosos, sua nobreza e sua igreja esvaziaram o desafio cultural do primeiro Brasil e reduziram as interrogações a meros estereótipos alegóricos. Confinaram os índios numa ciranda de plumas, ao passo que domesticaram as araras insolentes como emblema da fidelidade conjugal. Referências Vaernewyck, Marcus Van. Van die beroerlicke tijden in de Nederlanden en voornamelijk in Ghendt, 1566-1568. Ed. E. Vanderhaeghen, Gand, 1872. Stols, Eddy. ‘De triomf van de exotica of de bredere wereld in de Nederlanden’. Eds. Werner Thomas e Luc Duerloo, Albert &Isabella, 1598-1621, Essays. Turnhout, 1998, p. 291-301. Stols, Eddy. ‘Alegorias fossilizadas o redivivas? Las cuatro partes del mundo en las artes visuales de los Países Bajos (siglos XVI-XVIII)’. Eds. Scalett O’Phelan Godoy e Carmen Salazar-Soler, Passeurs, mediadores culturales y agentes de la primera globalización en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XIX. Lima, 2005, p. 853-885.

Brasileiros barrocos J o h a n Ve r b e r c k m o e s

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m 5 de dezembro de 1634, no palácio Nassau, em Bruxelas, alguns membros da alta nobreza abordaram o palco fantasiados de Topinanbour no Balet des princes indiens, apresentado em homenagem ao novo governador-geral dos Países Baixos meridionais o cardeal-infante Ferdinando da Áustria. Infelizmente, não se sabe como, andavam ataviados no meio de um elenco exótico com escitas e mouros. Como o balé dos príncipes índios foi exibido quando Gastão de Orléans e Marie de Medici se encontravam ainda em Bruxelas, devia ter um toque francês. Nos meios da corte francesa e de seu balé, os tupinambás se tornaram populares desde o final do século XVI, dentro da facção dos povos menos civilizados. Estes Topinanbours enfeitaram-se provavelmente com fantasias de plumas, a exemplo de uma gravura sem data impressa em Antuérpia no início do século por Jacob de Gheyn. Numa mascarada carnavalesca aparece, entre um selvagem com cabeça de coruja e uma velha mulher luxuosamente vesti-

da, uma índia trajada com uma tanga de plumas, uma couraça com peitos, um manto de plumas, um chapéu de plumas e uma ligadura em cada joelho. Além da força selvagem da amazona, chama a atenção sobretudo seu adorno com plumas, doravante característico do índio para todo o mundo. Esse rico vestuário contrasta com as gravuras sobre os tupis ou tupinambás, que nos supracitados livros populares de Thevet e Staden eram sempre representados nus, com apenas enfeites de plumas no corpo como única roupa. Semelhantes imagens de índios nus e armados de bordunas, flechas e arcos foram reproduzidas também no livro do huguenote Jean de Léry, Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, publicado em 1578 e de larga difusão europeia com tradução para o neerlandês em 1597. Mesmo proibido pela censura, o livro entrou também em bibliotecas privadas dos Países Baixos meridionais e foi até mencionado no início do século XVII como livro escolar. Num livro flamengo de trajes, impresso por volta de 1570 em

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Dançarinos brasileiros nas ruas de cidades flamengas durante cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores.

Antuérpia, tanto por Guilliam van Parijs como por Joannes Bellerus, o gravador Jacobus Sluperus apresenta o homem e a mulher brasileiros nus e qualificados como monstruosos. Somente o homem leva um pequeno penacho na cabeça e um enduape ou coroa de plumas no traseiro. Num outro livro antuerpiense de trajes de 1581, de Abraham de Bruyn, se vê um casal parecido de índios brasileiros. As variantes mais horríveis de índios emplumados surgem nas gravuras dos livros sobre a América, de Théodore de Bry, de Liège. Esta foi a primeira coleção pan-europeia de livros de viagem sobre outros continentes e as suas gravuras mostravam com muita minúcia o canibalismo, a idolatria e a crueldade dos índios. As gravuras de Bry mostraram ainda por vários séculos os autóctones brasileiros como canibais desnudos. Mesmo assim, a outra representação dos índios brasileiros muito bem vestidos se adequava melhor às festas em terras da Contrarreforma católica. Em 1613 o senhor de Rasilly levou alguns índios do Maranhão a Paris, onde foram batizados. Na ocasião foram convidados a dançar. O desenhista Joachim Duviert (1580-1648) e o gravador Pierre Firens (1580-1638), ambos antuerpienses trabalhando em Paris, registraram, num retrato ao natural, os diferentes passos de sua dança. Pela roupa parecem quase europeus: meias longas, calças curtas bufantes, camisa de manga longa e gola alta. De índios, têm somente sua coifa curta em quatro deles, e longa, com plumas cobrindo as costas, nos outros dois. Primam nesta imagem o prazer de dançar e a humanidade desses índios. Dançarinos brasileiros eram vistos também nas ruas das cidades flamengas durante os cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores. Na entrada triunfal do Arquiduque Ernesto da Áustria em Antuérpia, em 14 de junho de 1594, um cortejo de brasileiros emplumados chamou a atenção com suas danças exuberantes. O livro de homenagem os menciona como Brazi-

lianen e a gravura mostra uns 14 andando na frente e ao lado de etíopes, sobre camelos e precedendo seu rei em cadeirinha. Os brasileiros somente trajam tangas e dançam gesticulando com seus braços, tocando música ou levantando espelhinhos para o rei etíope. Estes brasileiros, gingando alegremente, se tornaram, por volta de 1600, em pleno período barroco, um supletivo constante nas festividades. Em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, participaram num carro alegórico do Ommegang – um desfile tradicional nas principais cidades flamengas –, em homenagem à Arquiduquesa Isabela, com o maior requinte indumentário. A pintura por Denijs van Alsloot (antes de 1593-1626) mostra quatro índios porta-estandartes ataviados com uma túnica curta de plumas de diferentes cores e de uma deslumbrante manta de plumas vermelhas, que desce da coifa e cobre suas costas e pernas por inteiro. Seus estandartes com o monograma IHS, da ordem jesuítica, parecem simbolizar a expansão da religião cristã entre os índios americanos. Na parte traseira do carro senta um soberano branco com cetro, que se deixa abanar por um menino africano com um para-sol de plumas vermelhaças. No meio, uma grande gaiola prende um jovem índio pagão debaixo de um bando de papagaios e araras. Estes reaparecem em abundância na decoração do pano, que cobre a carroçaria. Aos jesuítas dos Países Baixos meridionais, que tinham frequentes relações com o Brasil, visto como terra de missão e de índios a vestir, convinha uma imagem intermediária, nem escandalosamente nu, nem adornada demais. Ainda mais quando, festejando em 1640 o centenário da ordem, os jovens da retórica em Bruges representaram, no seu teatro escolar, temas brasileiros como a figura de José de Anchieta. Na sua grande igreja de Francisco Xavério, construída em Malines nos anos de 1670, o arquiteto jesuíta integrou, com exuberância, índios no programa iconográfico do interior. O banco de comunhão é decorado com emblemas de índios com cocares.

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O gigante índio no cortejo Ros Beiaard de Dendermonde.

Mostra ainda um missionário, que carrega nas costas um menino índio. Como um dos representantes dos quatro continentes, um índio, de forte bigode e braços musculosos com pulseiras emplumadas, sustenta o púlpito. Numa série de pinturas sobre a vida de Francisco Xavério se encontram também índios com cocares reconhecíveis entre a multidão extasiada pelo santo. Esta propaganda em Malines para estimular as missões ao Brasil também é tributária do belo livro que o jesuíta antuerpiense Cornelius Hazart tinha publicado, a Kerckelycke Historie van de gheheele wereldt (A história eclesiástica do mundo inteiro). No primeiro dos quatro volumes, publicado em 1668, um capítulo sobre o Brasil trata de José de Anchieta e de três martírios de alguns jesuítas. Três gravuras ilustram o texto. Em duas se representam índios perigosos com tangas de plumas, flechas e arco, e na terceira, Anchieta no meio de animais selvagens. Hazart tinha predicado também sobre estes temas na igreja jesuítica de Antuérpia e não é excluído que, por essa ocasião, se mostraram imagens desses índios selvagens, por exemplo, em grandes telas de pano. Desta maneira o Brasil era visualmente presente, até o final

do século XVII, como uma terra onde as fronteiras da civilização podiam ainda avançar. Como tal, se confundia frequentemente com a África. Assim o pintor Jan van Kessel justapõe no seu painel América, da série Os quatro continentes (1666), índias mais claras com homens negros de cocares índios. Filhos deste fascínio confuso são os dois gigantes tapuyas com cocares que se carregam ainda nos cortejos de Dendermonde, os dançarinos índios representando a Ásia na toalha de damasco de Courtrai ou, ainda, o menino índio com arco e flechas no lustre rococó dos Quatro continentes de Frans Allaert (1770), do Museu de Arte Decorativa de Gand. Johan Verberckmoes é professor de História Cultural da Época Moderna na Universidade Católica de Lovaina. Escreveu um doutorado sobre o Riso, o Humor e os Livros de piadas nos Países Baixos espanhóis nos séculos XVI e XVII. Suas pesquisas tratam do humor e das emoções na cultura da época moderna, dos intercâmbios culturais dos Países Baixos meridionais com os impérios português e espanhol, das correspondências privadas e da vida cotidiana das famílias nobres nos Países Baixos meridionais.

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teatro, dança, circo

A da n ça na Bél g i ca a pa r t i r d o s é c u l o X X Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s

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o intuito de traçar os intercâmbios ocorridos no domínio da arte da dança entre o Brasil e a Bélgica, abordaremos o assunto a partir deste período, no qual se observa grande fluxo de migração de artistas brasileiros, tanto nas áreas da dança clássica, moderna e contemporânea como na área das danças populares brasileiras. Percorreremos as diferentes etapas da história da dança na Bélgica até os dias de hoje, através dos percursos artísticos individuais e de alguns depoimentos de profissionais ligados a esta arte, que participaram ou ainda participam ativamente da cena da dança nos dois países. Inevitavelmente, evocaremos o papel importante que teve a Bélgica especialmente na evolução da dança contemporânea a partir dos anos de 1980 e as eventuais repercussões na dança brasileira.

foi convidado a se instalar em Bruxelas pelo diretor do Théâtre Royal de la Monnaie, Maurice Huisman, e fundou o então Ballet du XXe siècle, dando início a um período glorioso para a dança belga. Logo no começo da formação deste balé já se encontrava ao lado de Maurice Béjart uma brasileira, a grande bailarina Laura Proença, que interpretou inúmeros balés ao lado do próprio Béjart e de bailarinos que marcaram a história da dança, como Jorge Don, Suzanne Farrell, Tania Bari, Paolo Bortoluzzi e Rosella Hightower entre outros. Outra figura importante da dança mundial que também interpretou as obras de Béjart é a brasileira Márcia Haydée, que foi uma das grandes bailarinas atrizes de sua geração, aclamada como a “Maria Callas da dança”. Cristina Dias é formada em dança no Rio de Janeiro e em Nova York, vive na Europa desde 1986. Foi assistente coreográfica de Frédéric Flamand durante 20 anos no centro coreográfico da comunidade francesa Charleroi-Danses e no Ballet National de Marseille. Hoje em dia se dedica à direção de filmes de dança.

A era Maurice Béjart O intercâmbio entre os dois países na área da dança foi marcado pelo ano de 1960, quando o coreógrafo francês Maurice Béjart

Depoimento de Rachel da Costa Cunha

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ssim como os pássaros deixando-se reger pelos ventos que os conduzem longe das histórias às vezes contraditórias dos homens, os bailarinos se deixam levar pelos voos que determinarão uma certa evolução que nos escapa; caminhos de sofrimentos, mas que inspiram energias novas. Assim vivi no Brasil esse mergulho numa arte extraordinária; assim configurei quando, chegando à Bélgica, as impressões que tento exprimir nesta pequena descrição comparativa com um voo rasante, mergulhando uma segunda vez numa época diluí-

da na inovação perpetuada por Maurice Béjart, revolucionário da dança moderna. Assim como os pássaros entre céu e terra, os bailarinos integram esta disciplina, esta humildade, esta busca final incontrolável num êxtase que ultrapassa o implante em tal ou tal hemisfério. Rachel da Costa Cunha é Pedagoga de dança, licenciada em Filosofia pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é diretora do Centre de Ballet Mimésis, em Wavre, Bélgica.

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A Escola Mudra Cristina Dias

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éjart criou em 1970 a escola internacional Mudra, escola superior pioneira na Europa, onde foram formados grandes coreógrafos e bailarinos, tais como Maguy Marin, Ohad Naharin, Anne Teresa De Keersmaeker, Michèle Anne de Mey, Pierre Droulers, Michèle Noiret e Nicole Mossoux. Obviamente deveremos citar alguns dos muitos brasileiros que fizeram parte desta aventura e que voltaram para o Brasil, como a bailarina e atriz Juliana Carneiro; o primeiro bailarino do Teatro

Municipal do Rio de Janeiro, Francisco Timbó; a coreógrafa Célia Gouvêa; o bailarino Linhares Junior que, após uma imensa carreira na Bélgica e Holanda, voltou para o seu Ceará natal e continua a incentivar este intercâmbio artístico, colaborando com seu irmão David Linhares (diretor da Bienal de Dança do Ceará, festival no qual a participação de companhias belgas é intensa). Outra figura que se destaca é o coreógrafo e bailarino Claudio Bernardo, diretor da Cia As Palavras, que completará 20 anos de existência na Bélgica.

Depoimento de Claudio Bernardo

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m 1981, quando deixei Fortaleza para continuar meus estudos de dança em São Paulo, já levava na mala o livro Um instante na vida do outro, do coreógrafo francês radicado na Bélgica Maurice Béjart, e me dizia secretamente que a Bélgica seria meu Ceará na Europa. Outros fatos e coincidências relevantes esclareceram mais tarde este destino. Durante os anos vividos entre São Paulo e Rio de Janeiro, trabalhando com o Ballet Stagium e Victor Navarro, pude encontrar com dois brilhantes intérpretes da dança no Brasil, Robson Rosa e Francisco Timbó, ambos cearenses, que me aconselharam a seguir seus passos e ir estudar na escola internacional Mudra, fundada por Béjart em Bruxelas. Assim, em 1986 cheguei ao coração da Bélgica e, logo no ano seguinte, minha primeira coreografia feita com os alunos da escola, com apresentações na África e na Europa, me consagrou coreógrafo e Béjart me levou para a Suíça, onde recebi o prêmio “Philipe Maurice” pela minha segunda criação no concurso ali realizado. Meu retorno a Bruxelas marca uma ruptura de estilo importante na minha carreira artística, com a visão de trabalhos dos novos coreógrafos belgas, tais como Anne Teresa De Keersmaeker, Jan Fabre e Nicole Mossoux, como também o trabalho com Frédéric Flamand. Seu olhar inovador entre dança e novas tecnologias foi precioso para minha formação. Desde 1991, dedico-me inteiramente à formação do meu repertório como coreógrafo. Nesse mesmo ano tornei-me artista associado do teatro Atelier Sant’Anne, sob a direção de Serge Rangoni, o qual, além de termos uma sólida cumplicidade profissional, veio a tornar-se meu companheiro. Em 1994, a adoção de nosso filho, Benjamin, marcou um passo decisivo para uma construção familiar neste país. Fundando minha companhia As Palavras em 1995, meu trabalho se consolidou junto à comunidade francesa da Bélgica e, dois anos depois, com a residência artística em Mons, veio um número importante de criações premiadas e de sucesso internacional. As

O bailarino Claudio Bernardo, que fundou a Companhia As Palavras em 1995.

colaborações com artistas belgas e de diferentes países alimentaram esse processo. Minha chegada à Bélgica, com 21 anos de idade, foi decisiva para a minha formação profissional, para minha família e minhas amizades. Penso que a distância das minhas raí­ zes foi fundamental para a minha formação como coreógrafo e artista; isso me permitiu analisar minha cultura ao mesmo tempo em que encontrei outra, buscando novos espaços de descobertas e reflexões sobre meu enquadramento no mundo. Os cearenses são considerados despretensiosos, humoristas e trabalhadores, adoram desbravar fronteiras e estão sempre em êxodo pelo mundo. Na Bélgica, mesmo distante da minha geografia e do meu clima, encontrei um povo parecido com o meu, generoso, com grande senso de humor, chegando a desarmar o outro rindo de si mesmo. Uma gente que concilia diferenças na tolerância e no respeito, contornando os conflitos com constância dentro da formação das suas comunidades e do seu acolhedor posicionamento como sede da comissão europeia. O cidadão belga que agora sou, o cearense que continuo a ser e esse trajeto que continuo a traçar, constituem uma grande parte do que define a minha obra e a minha posição em relação ao humano. Estas duas culturas me formaram e sou-lhes infinitamente grato.

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A e vol ução da da n ça c o n t e mp o r â n e a na B élgi ca Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s

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m 1991, a dança contemporânea belga viveu um momento decisivo. Este grande movimento artístico, que se manifestava desde os anos 80 com o aparecimento da chamada vague flamande obteve importante apoio político. Podemos dizer que assistimos a uma verdadeira explosão de produções coreográficas de qualidade inovadora e intensa, que sacudiram os códigos preestabelecidos, com a formação de importantes companhias de dança representadas até hoje no contexto internacional. Esta riqueza de produções, inevitavelmente, atraiu para este pequeno país um fluxo enorme de artistas. A circulação de bailarinos e coreógrafos vindos dos quatro cantos do mundo, inclusive do Brasil, no território era e continua sendo evidente. Como exemplo do interesse dos artistas belgas pelos artistas brasileiros não podemos deixar de mencionar o coreógrafo Frédéric Flamand que, desde quando dirigia sua Cia. Plan K, fundada em 1973 em Bruxelas, já colaborava com alguns artistas brasileiros, tais como Elisabete Santos, o maravilhoso bailarino Ricardo de Carvalho (que nos deixou precocemente) e os bailarinos Linhares Junior e Claudio Bernardo (já citados) que, após terminarem a escola Mudra, fizeram parte da criação do espetáculo “La Chute d’Icare”. Estas colaborações continuaram mais tarde, quando Frédéric Flamand fundou o primeiro centro coreográfico da comunidade francesa, Charleroi-Danses, com os bailarinos Gustavo Miranda, Marcelo de Sá Martins, Anderson Santana – que também dançou no Royal Ballet de Flandres e hoje dirige a escola Brussels International Ballet – e Milton Paulo, que chegou à Bélgica por intermédio de Claudio Bernardo. Outros artistas brasileiros, que participaram intensamente da evolução desta arte no país, voltaram para o Brasil, como o coreógrafo e professor Airton Tenorio; outros continuam atualmente colaborando com o desenvolvimento da dança belga, como Juliana das Neves, assistente e intérprete de Alain Platel; Ricardo Ambrosio, que dança com Wim Vandekeybus; Carlos Alberto Paniz Garbin, que cursou PARTS e é bailarino de Rosas há alguns anos, tendo participado da criação de The Song, En Atenden, Cesena e da remontagem de Drumming; e Flávia Ribeiro Wanderley, que criou várias coreografias com bailarinos profissionais, mas também com pessoas que não praticam a dança, incentivando-as a descobrir esta arte.

O espetáculo “La Chute d’Icare”, que contou com os bailarinos brasileiros Linhares Junior e Claudio Bernardo em sua criação.

Cena do espetáculo “Cesena”, que contou com a participação de Carlos Alberto Paniz Garbin em sua criação.

Ricardo Ambrosio, que dança com Wim Vandekeybus.

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Depoimento de Milton Paulo

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omecei a dançar em 1994 na cidade de Fortaleza, tendo uma formação eclética. Fazia parte da primeira turma do Colégio de Dança do Ceará, um projeto piloto para a dança nessa cidade, quando resolvi participar da audição da companhia As Palavras, de Claudio Bernardo. Fui aceito e trazido para a Bélgica. Fiz parte dessa companhia de 2000 a 2005 e, neste meio tempo, escolhi Bruxelas como cidade adotiva. A cena belga se apresentava como uma grande potência, as propostas estéticas me pareciam bem interessantes: a proximidade das fronteiras europeias, o fluxo de informação e o contato com as diferentes abordagens de dança me pareciam vitais.

O bailarino Milton Paulo, nomeado “artista conselheiro” em 2011 em matéria de dança no projeto “Danse à l’école” para trabalhar juntamente com o Centre Dramatique de Wallonie por l’Enfance et la Jeunesse.

Milton Paulo é formado no Método das Cadeias Musculares e Articulares G.D.S. Colaborou com Claudio Bernardo (BR/BE), Fréderic Flamand (BE), Kyung-a Ryu (KOR), Bud Blumenthal (USA), Ari Numminen (FIN), Kristian Smeds (FIN), Elizabeth Czerczuk (POL) e Marie Martinez (FR). Como coreógrafo, criou vários espetáculos com a bailarina Raffaella Pollastrini. Em 2011 foi nomeado “artista conselheiro” em matéria de dança no projeto “Danse à l’école” para trabalhar juntamente com o CDWEJ (Centre Dramatique de Wallonie por l’Enfance et la Jeunesse).

Pa rts Cristian Duarte

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m 1995 Anne Theresa de Keesmaeker fundou a escola internacional PARTS (Performing Arts, Research and Training Studios), escola que continua até hoje a contribuir com a formação de grandes nomes da dança, como Sidi Larbi Sharkaui, Akram Kram e brasileiros como Cristian Duarte, baseado hoje em São Paulo, e a coreógrafa Maria Clara Villa Lobos, que continua em Bruxelas” (Cristina Dias). Penso que o que aprendi, no período em que estava estudando em PARTS, foi entender que podemos fazer muito com muito pouco. Pensar nas propostas e rigorosamente elaborar a sua prática no estúdio, com empenho e disciplina. Aprendi também a me desafiar, tanto como bailarino quanto como coreógrafo, e não considerar as coisas como garantidas. O ambiente da escola me incentivou a expandir minhas possibilidades técnicas e conceituais, não só através das informações que eram oferecidas aos alunos durante o período escolar, mas também através da intensidade das informações que experimentávamos na cidade de Bruxelas, pela sua oferta em quantidade e diversidade de produções em dança, teatro, artes visuais, exposições e música.

O bailarino Cristian Duarte, que integrou a escola internacional PARTS – Performing Arts, Research and Training Studios.

Cristian Duarte é reconhecido pelos principais prêmios de pesquisa em dança no Brasil: APCA 1998/2003/2008/2011; Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo 2008/2010/2011/2012; Prêmio Funarte Klauss Vianna 2007/2011; Festival Cultura Inglesa 2011; Rumos Itaú Cultural 2012, entre outros. Coordena o projeto de residência artística LOTE#, subsidiado pelo “Programa de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo”.

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Depoimento de Maria Clara Villa Lobos

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inha conexão com a Bélgica começou antes do meu nascimento, através da minha família. Meu pai, diplomata brasileiro, serviu em Bruxelas nos anos de 1960 e foi assim que meu irmão, Dado Villa Lobos, músico, nasceu em Bruxelas. Na época, meus pais haviam conhecido Laura Proença, uma das solistas do Ballet du XX Siècle. Tornaram-se amigos e assistiram a vários balés de Béjart, na ópera La Monnaie. Em 1995, vim estudar em Bruxelas para cursar a escola PARTS. Um dos motivos desta escolha foi a influência que as companhias belgas, como Rosas e Última Vez, que viajavam pelo mundo com suas criações, tiveram na minha formação como artista. Estar em contato direto com essas companhias e com esses criadores foi muito intimidante no princípio, pois não era fácil, sendo uma jovem bailarina com aspirações a coreografar, estar rodeada permanentemente por grandes nomes da dança contemporânea. Além das muitas companhias e artistas de fama internacional na Bélgica, Bruxelas ocupava um lugar central na Europa, muitas companhias estrangeiras se apresentavam na cidade. Isso tudo criou um contexto muito fértil para a descoberta de novas formas e linguagens cênicas. Acho que todas essas influências se concretizaram na minha peça “XL, because size does matter”, criada em 2000. Nela, tentei falar da abundância de propostas devido à comercialização da dança como um produto de consumo e também, de forma irônica e crítica, da angústia que essa hegemonia dos grandes nomes representa para um jovem artista. Eu tinha a impressão, na época, de que não era mais possível criar um passo de dança sem que houvesse alguma referência conectada a ele. Foi a partir destas questões, e de outras mais, que criei o espetáculo que lançou minha carreira como coreógrafa na Bélgica. Acho bem provável que se não tivesse vivido em Bruxelas, nesse contexto tão específico da dança contemporânea, meu trabalho não teria tomado esse caminho. Em todo caso fica claro que o ponto de partida do meu trabalho como coreógrafa esteve totalmente conectado ao contexto no qual ele foi criado, contexto de extrema liberdade no âmbito da criação, mas também de grande exigência de nível artístico. Tive, então, a possibilidade, graças ao apoio do governo belga, de mostrar meu trabalho em vários festivais no Brasil, tais como o Panorama de dança no Rio de Janeiro, a Bienal de Dança de Fortaleza, o festival Dança Brasil no Centro Cultural Banco do Brasil e no Serviço Social do Comércio (Sesc), em São Paulo.

Maria Clara Villa Lobos, que fundou em 2000 a companhia “XL Productions”, baseada em Bruxelas.

A bailarina Maria Clara Villa Lobos, em “M, Une pièce moyenne”.

Maria Clara Villa Lobos é atualmente artista em residência no teatro “Les Tanneurs”, em Bruxelas. Seu último trabalho, o espetáculo infantil “Têtes à Têtes”, foi apresentado com êxito em três cidades brasileiras em novembro de 2012. A partir de 2000, ano da criação de sua companhia “XL Productions”, baseada em Bruxelas, criou uma série de espetáculos que foram apresentados por quase toda a Europa, além de Coreia do Sul, Canadá, Estados Unidos e Brasil.

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O pa p e l d os p r o du t o r e s , o s i n t e r câ mb io s d e com pa n h i a s d e dan ça e o s f e s t i vai s Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s

Espetáculos brasileiros na Bélgica Rodrigo Albea

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ual o impacto da dança brasileira nas plateias, imprensa e instituições belgas? Traçar as relações entre os dois países no campo da coreografia passa necessariamente por este âmbito. Portanto, qualquer abordagem exclusivamente estética seria inválida sem uma visão econômica. A dança cênica, cujas origens no Ocidente podemos identificar com a criação da técnica clássica e do ballet na França de Luís XIV, construiu sua identidade ao longo dos séculos como uma arte sem fronteiras. No entanto, é óbvio que o processo mundial de globalização das últimas décadas acentuou a circulação de espetáculos entre continentes. Na Europa, desde os anos 80 o Festival de Avignon, na França, contribuiu para esta abertura de horizontes e para o interesse por outras estéticas mundiais, porém raramente brasileiras. A distância e a instabilidade econômica são duas hipóteses críveis para justificar esse desinteresse, sobretudo quando comparado à música, produto cultural de escala industrial e comercial. A exceção à regra seriam os trabalhos de cunho mais político e social, durante o período da ditadura militar, quando, por exemplo, Maria Maria (1976) do Grupo Corpo foi vista e bem recebida em várias capitais europeias. Mas em Bruxelas, não... e isto por vários fatores que influenciaram desde então a relação dos teatros belgas com os artistas estrangeiros: nos anos 70, o federalismo belga transferiu a política cultural do Estado central para as comunidades linguísticas do país; a dança na Bélgica foi dominada até o final dos anos 80 por Maurice Béjart, com pouca abertura a outras escrituras cênicas; com a verdadeira explosão criativa provocada pelos alunos de Béjart na escola Mudra, a paisagem começou a mudar, e os poucos festivais estavam mais atentos ao movimento local e europeu. A Bélgica tornou-se nessa época um dos principais países ex-

portadores de novas audácias coreográficas e Bruxelas, capital europeia da dança. Último elemento contextual, e importante por vezes até hoje, é o fato de que a confecção das temporadas nos teatros e festivais europeus exige um planejamento de produção que vai de oito meses a dois anos em média: um sistema com o qual podem dialogar somente artistas ou instituições com uma rea­lidade organizacional e financeira raras no Brasil. Ou seja, salvo exceções é compreensível que tanto o norte flamengo quanto o sul valão, ou na capital Bruxelas, não convidaram grupos brasileiros aos seus palcos. O grande marco para a mudança de paradigmas nesse sistema foi a programação da Bienal de Lyon de 1996, em homenagem ao Brasil. Dois anos antes, o Grupo Corpo se apresentava em Lyon e em Bruxelas, com grande êxito. A partir da Bienal, observou-se um dinamismo até então desconhecido da cena brasileira. Ao mesmo tempo em que as singularidades coreográficas se multiplicavam, intercâmbios foram organizados, as trocas de informação tornaram-se menos intermitentes, políticas setoriais e de exportação começaram a germinar. É impossível elaborar uma lista de espetáculos brasileiros apresentados na Bélgica. Alguns marcaram o público e os profissionais. Lia Rodrigues, por exemplo, gravou na memória de Liège sua passagem pelo festival da cidade com “Aquilo do que somos feitos”, em 2003, mais tarde apresentado em Bruxelas, numa capela mítica para o meio da dança da cidade. A coreógrafa estabeleceu uma boa relação com o país, voltando várias vezes, sobretudo durante o Kunsten Festival, verdadeiro termômetro anual das tendências mundiais. Durante esse festival, vivi um dos momentos mais eletrizantes com a recepção de uma obra. O meio da dança de Bruxelas

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é bastante característico e Bruno Beltrão conseguiu surpreender a todos e criar uma verdadeira explosão na plateia com seu H2 (2005). Havia ali uma síntese dos conceitos mais em voga na dança e, ao mesmo tempo, uma fronteira nova para a qual apontava, longe de todo e qualquer exotismo dos quadris brasileiros. O apogeu recente dessa nova relação, mais de igual para igual – inclusive entre os festivais, com o interesse crescente suscitado pelo Panorama, no Rio –, foi toda a programação durante a temporada Europalia (outono-inverno 2011-2012). Marcelo Evelin, Lia Rodrigues, Membros, Quasar, Dani Lima, Marta Soares... apresentaram suas singularidades fortes, sobretudo durante a bienal de Charleroi-Danses e num programa por mim elaborado no Théâtre de la Place de Liège.

Nesse teatro, sob a direção de Serge Rangoni e com o apoio de uma equipe de produção extremamente competente, brasileira e belga, conseguimos a verdadeira proeza de mostrar três apresentações das “Bacantes”, de José Celso Martinez Corrêa, e seu Uzina Uzona de mais de 50 pessoas. Um espetáculo teatral, operístico, carnavalesco, coreográfico. Total. As referências à antropofagia cultural brasileira e à imensa influência de José Celso no meio artístico brasileiro justificam ele aqui ser citado. O evento encerrou as festividades do Europalia e marcou esse novo modo de relação, de interesse e de produção da cultura brasileira na Bélgica. Rodrigo Albea é jornalista, produtor e curador de dança.

Danças populares brasileiras Cristina Dias

A

Bélgica transformou-se ao longo dos anos em um centro incontestável da dança contemporânea na Europa. Como podemos notar, essa dinâmica de migração de bailarinos e coreógrafos brasileiros continua extremamente importante, fato explicado pelo incentivo existente ao desenvolvimento da dança contemporânea e, como veremos mais adiante, pela receptividade e pelo interesse pelas danças populares brasileiras. Nesta área observamos um grande fluxo migratório de artistas que vieram do Brasil em grupos já formados e que, pouco a pouco, se dispersaram pelo país formando novos grupos. O grupo Brasil Tropical, que chegou à Bélgica em 1973, e tinha 40 integrantes.

Brasil Tropical No ano de 1973, chegou à Europa a companhia Brasil Tropical, formada por Edvaldo Carneiro e Silva, Camisa Roxa, Grão Mestre da Abada capoeira, na intenção de trazer para o público europeu a arte da capoeira, como também apresentar a enorme paleta de danças populares brasileiras com seus diferentes ritmos, como o samba, o maracatu, as danças dos orixás. A primeira formação dessa companhia tinha 40 membros, entre músicos, cantores e bailarinos. A base principal da companhia na Europa ficava na Bélgica, por seu ponto estratégico e também pela imensa receptividade que teve por parte dos belgas. A partir de então e até meados dos anos de 1990, essa companhia viajou pelo mundo e se renovou ao longo do tempo com outros membros, artistas originários principalmente da cidade de Salvador, Bahia. O próprio Edvaldo Carneiro não tem noção do número exato de brasileiros que trouxe para a Europa durante esse período, mas nos confirma que foram muitos. Inúmeros destes artistas deixaram o Brasil Tropical, se instalando principalmente na Bélgica, como o bailarino e professor Ruy Basílio – que agora dirige seu próprio grupo de danças brasileiras

Edivaldo Carneiro e Silva e o coreógrafo Domingos Campos.

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parte 6 – o brasil entra em cena

O bailarino e professor Cleber Santos, que ensina o afrojazz, participou do espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart (à esq.), de passagem por Bruxelas, o apresentou no Forest National.

A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, foi eleita em 2010 rainha do CarnaBruxelas.

Oya Brasil –, e o bailarino e professor Cleber Santos – que ensina o afrojazz –, e teve a grande oportunidade de participar do espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart, de passagem por Bruxelas, o apresentou no Forest National. A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, também começou a ensinar dança após ter viajado pelo mundo com o Bra-

sil Tropical; em 2010 foi eleita rainha do CarnaBruxelas e continua seus estudos superiores de Educação, com especialidade no acompanhamento psicoeducativo, com o objetivo de utilizar a dança e o esporte como terapia para pessoas com deficiência motora ou cognitiva. Outras histórias como esta nos descreve Arlene Rocha a seguir.

Grupos e companhias de espetáculos Arlene Rocha

E

m 1994, a companhia de teatro Marombar desembarcou em Bruxelas, após ter estado um ano em cartaz em São Paulo, com o espetáculo “Farsa para Guignol”, de Lorca, para participar do Festival du Rire em Rochefort. A trupe era composta pelos artistas brasileiros Vanderlan Marques, Emilia Rocha, Simone Lima, Emiliano Benevides, Paulinho da Cuíca, Flavio de Sousa e pelo belga Reynald Halloy. Era dirigida por Alexandre Amaral e Arlene Rocha. Para a maioria dos componentes da trupe Marombar, o ano de 1994 marcou o início de uma nova fase: entre teatro, música e dança, os artistas se instalaram em Bruxelas e desenvolveram cada um o seu projeto artístico, marcando assim um intercâmbio entre a Bélgica e a cultura popular brasileira.

ana Angélica e diversos outros ex-integrantes do Balé Brasil Tropical de Salvador. Também integraram Matalumbo o professor de gafieira Anderson Bairros e sua companheira Aocione Ferreira; o bailarino e pesquisador musical gaúcho Mano Amaro e a jovem dançarina Bruna Fernandes, que desenvolveram sua arte na própria Bélgica. A companhia Matalumbo existiu até o ano de 2007, criou vários espetáculos e trabalhou em colaboração com diferentes grupos de percussão, como a Batucada Terra Brasil e o grupo Batuqueria, ambos dirigidos por Paulinho da Cuíca.

O grupo Maracatu Mix! Após uma viagem de um ano a Recife, Pernambuco, Arlene Rocha e seu marido, o antropólogo belga Arnaud Halloy, trouxeram na bagagem o gosto e o amor pela cultura de Pernambuco e, em especial, pelo maracatu de baque virado, seu ritmo, sua dança, sua história... De volta a Bruxelas, em 2004 nasceu Maracatu Mix! (MMix!), projeto formado por músicos de diferentes experiências percussi-

Companhia Matalumbo Em 1995, em Bruxelas, Arlene Rocha criou a companhia de dança popular brasileira Matalumbo, da qual fizeram parte diversos dançarinos, como Elionara Pessoa e Augusta Braga (Balé Folclórico da Bahia), Livia Carvalho, Nêga Bombom, Jo-

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teatro, dança, circo

Maracatu Mix! (MMix!), fundado em 2004 em Bruxelas e formado por músicos de diferentes experiências percussivas e bailarinos com experiência na dança afro-brasileira.

vas e bailarinos com vasta experiência na dança afro-brasileira, em particular na dança sagrada dos Orixás. No seu desfile, Maracatu Mix! traz um ambiente musical e coreográfico particular, marcado pelo som grave das alfaias, pela potência do ritmo do maracatu e por um visual inspirado na cultura tradicional pernambucana, redesenhado na dança por Arlene Rocha e na percussão por Arnaud Halloy. Hoje o projeto Maracatu Mix! se compõe de duas formações: Maracatu Mix! France e Maracatu Mix! Bruxelas. Ambos apresentam o mesmo repertório musical e coreográfico.

jetos europeus e brasileiros. Atualmente, desenvolve três projetos culturais: Maracatu Mix!, companhia de dança Alma Brasil (criada em 2009, em Bruxelas, e dirigida por Arlene Rocha e Bruna Fernandes) e projeto Pedro Moura.

Companhia Alma Brasil Companhia de dança brasileira criada em 2009, em Bruxelas, é dirigida por Arlene Rocha e Bruna Fernandes. Guarda o mesmo objetivo artístico da companhia Matalumbo: valorizar a diversidade e as raízes da cultura brasileira através da dança e da música popular.

ASBL Alma Brasil Maracatu Mix! é um projeto cultural produzido e divulgado pela associação sem fins lucrativos Alma Brasil, instalada nas Ardenas belgas e criada em 2011. Tem como objetivo valorizar a cultura brasileira na Europa e promover o intercâmbio entre pro-

Arlene Rocha é Coreógrafa, nascida em Goiânia, formada em Artes Cênicas pela Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio), residente na Bélgica.

Depoimento de Mano Amaro

“U

m dos componentes da companhia de dança popular brasileira Matalumbo, Mano Amaro nos conta um pouco da sua história de migração” (Cristina Dias) Nasci no Rio Grande do Sul, na cidade de Pelotas, a mais importante cidade no período do processo das charqueadas (carne salgada). Lá os negros escravos trabalharam muito e enriqueceram a cidade, era muito frio e tinham que trabalhar com o sal, o que dava-lhes um tempo curto de vida. Cresci em uma vila chamada Castilhos, filho de zeladora de

Mano Amaro durante evento de dança em sua juventude no Rio Grande do Sul.

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religião afro-brasileira e de pai funcionário público. Ali aprendi a ter respeito pelo próximo e conviver com as diferenças, que na época eram grandes. Desde pequeno frequentava lugares restritos a negros, como clubes e discotecas. Assim foi minha infância, pois em certos lugares nós, negros, não entrávamos e vice-versa. Desde cedo convivendo com esta atmosfera, comecei a envolver-me com a dança dos guetos e com o carnaval da cidade. A partir dos seis anos desfilava em blocos infantis, escolas de samba, fui passista, mestre-sala, ritmista: bons tempos! Na época, encontrei a dança funk, que era muito forte; desde então não parei. Tive contato com a dança contemporânea através de Beka Kanaan, pessoa que me ensinou a ver coisas que, no meu dia a dia, eu não percebia, como o racismo que estava à minha volta, com aquela carga pesada que subestimava a todos nós. Passei a ser um cidadão da sociedade e não apenas aquele negrinho que dançava funk! Daí para frente interessei-me mais pela nossa cultura e pela dança; fiz parte de movimentos negros e fui o próprio movimento; viajei bastante: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. Trabalhei como professor educador em um projeto em Porto Alegre, com crianças de rua. Aí conheci Môa do Catendê – baiano, grande mestre –, encontro que me estimulou a perceber aos poucos as diferenças da dança afro nas diversas regiões do Brasil. Em 1996 recebi um convite para ministrar um workshop de dança afro-brasileira na Bélgica, em Antuérpia, onde estou até hoje, construí família... Aqui fiz muitos cursos de dança africana com ótimos professores do Senegal, Benin, Nigéria, Togo, e meu trabalho como pesquisador em dança afro avançou bastante. Mantenho contato e troco informações com pessoas no Brasil, pois continuo, mesmo morando aqui, sempre atento à cultura afro-gaúcha, pesquisando e bebendo desta fonte que é muito rica e que o Brasil ainda não conhece. A cultura negra propicia uma relação profunda entre o corpo e a dança, com sentido de vida baseado na relação entre o ser hu-

Mano Amaro no espetáculo “Ori dança”, em Bruxelas, 2010.

mano e a natureza. Assim, a dança é a representação da existência de cada pessoa, se fazendo presente em todos os momentos da vida. Em todos esses momentos dançantes se faz presente o tambor, cujo som é utilizado de diferentes maneiras, em diversas tonalidades e intensidades. A dança afro no Brasil adquiriu várias formas, variando segundo as nações africanas que contribuíram para a formação do povo negro, de acordo com o ritmo e as características dos Orixás (deuses), e segundo as recriações feitas no interior de uma sociedade pluricultural e pluriétnica como a brasileira. Por meio do desenvolvimento de um trabalho de conscientização através da dança, venho propondo a dança afro-brasileira a toda a comunidade europeia. Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou pelo carnaval do Rio de Janeiro.

O homem do carnaval do Rio Régis Lemaire “Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou pelo carnaval do Rio de Janeiro”. – Cristina Dias

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esde sua infância, o belga Alain Taillard se banhou com seus pais no ambiente carnavalesco de algumas cidades belgas, como na festa da Cavalgade de Herve, no Lundi des Roses, da cidade de La Calamine. Sua paixão pelo carnaval logo o levou a Nice, Veneza, Santa Cruz de Tenerife e, sobretudo, ao Rio de Janeiro, onde desembarcou em 1992, primeiro como simples espectador no berço das escolas de samba.

Alain Taillard desfila no carnaval no Rio de Janeiro.

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Em 2001, teve a sorte de conhecer o destaque Nabil Samir Habib, personagem principal que desfilava no alto de um carro alegórico: uma verdadeira estrela para os brasileiros. Este encontro permitiu que, desde o ano de 2004, Alain Taillard desfilasse como figurante numa grande escola de samba. Em 2008, a grande surpresa! Nabil Samir Habib fez a proposta para que Alain o substituísse, o que foi o ponto de partida de uma longa aventura, rica em encontros e em emoções intensas.

Alain é um dos raros europeus a ter o privilégio de fazer parte do círculo fechado dos destaques das escolas de samba do Rio, principalmente numa das mais populares, a Mangueira. Atualmente, Alain Taillard trabalha na SNCB (Sociedade Nacional dos Caminhos de Ferro Belga) e é reconhecido como especialista e embaixador do carnaval do Rio na Bélgica. (Tradução e adaptação de Cristina Dias.)

Depoimento de Cristina Dias

M

e formei em dança no Rio de Janeiro, cidade onde nasci. Depois de estudar alguns meses em Nova York, vim para a Europa em busca de mais informações no aprendizado da dança contemporânea. Bruxelas, em meados dos anos 1980, se encontrava em ebulição neste campo artístico. Minha passagem pela Bélgica, prevista para ser de apenas alguns meses, já dura 26 anos. Vários encontros adiaram a minha volta ao país natal e um dos mais importantes foi o encontro com o coreógrafo belga Frédéric Flamand, com o qual colaborei artisticamente durante quase 20 anos. Esta aventura, composta de mais de 15 criações cênicas, apresentadas nos quatro cantos do mundo, me proporcionou a chance de ter um contato intenso com grandes artistas belgas e internacionais. O fato de trabalhar com outros criadores, além de bailarinos, videastas, arquitetos, músicos, compositores e artistas plásticos, com o intuito de compor um projeto artístico multidisciplinar, integrando sistematicamente vídeos e filmes nas obras criadas, fez aumentar cada vez mais meu interesse pela linguagem cinematográfica e me abriu novos horizontes de reflexão. Assim, há oito anos me dedico inteiramente à direção de filmes de dança, filmes experimentais, cenografia e vídeo, por meio dos quais continuo a investigar o movimento, a composição, o ritmo, a luz. Meus três últimos curtas-metragens, L’instant suspendu, L’autre e Le rêve du roi, que penso serem os filmes mais representativos da minha linha de trabalho, abordam o tema do “Duplo”, e formam assim uma trilogia, inspirada livremente em textos do escritor argentino Jorge Luis Borges. Cada um deles é construído

Cena de filme de Cristina Dias.

como uma ficção dançada, na qual o personagem principal questiona a sua própria duplicidade, o que é real e o que é sonho, a inconsistência do tempo. Acredito que o motivo principal que me levou tão naturalmente ao encontro do suporte cinematográfico foi ter descoberto que este último me abre novas portas e me ajuda a continuar a desenvolver temáticas que me atraem e que tenho necessidade de explorar.

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A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo Ve r ô n i c a Ta m a o k i

O

circo brasileiro foi constituído por famílias tradicionais vindas, em sua maioria, da Europa, e que aqui chegaram, a partir do início do século XIX, como saltimbancos ou integrando grandes companhias que percorriam o mundo. Quando essas famílias começaram a viajar, indo a lugares aonde só o circo chegava, foram incorporando artes, expressões e artistas dos lugares por onde passavam, diluindo o caráter internacional do espetáculo circense em criações locais. Assim, o circo de origem europeia, que quando aqui chegou recebeu o nome de “circo de cavalinhos”, foi se transformando, abrasileirando-se. E entre as diversas contribuições brasileiras à linguagem internacional do circo, vale destacar o circo-teatro, gênero de espetáculo que consiste na apresentação de números circenses na primeira parte e de um ato teatral na segunda. A partir do decênio de 1950, muitas famílias tradicionais se retiraram do picadeiro, interrompendo uma tradição que perdurava por várias gerações e privando a população de vários circos itinerantes que percorriam todo o território nacional. As que resistiram adaptaram-se aos novos tempos e, entre outras mudanças, eliminaram a segunda parte do seu espetáculo, o teatro, e passaram a apresentar apenas o ato circense. De lá para cá, o acontecimento mais significativo no que se refere ao circo é sem dúvida o surgimento das escolas de circo, a partir de 1978, que apontou novos caminhos para a arte circense no Brasil. No fluxo e refluxo do circo entre Brasil e Europa, precisamente entre Brasil e Bélgica, que afinal é o tema deste texto, é preciso ressaltar que muitos dos nossos talentos têm, nos últimos tempos, optado pela escola ESAC (Ecole Supérieure des Arts de Cirque, Bruxelas) para sua formação. É o caso de Maíra Benozatti Campos, uma das nossas melhores aramistas da atualidade. Por outro lado, começamos a nos acostumar com as visitas de grupos belgas que têm nos encantado com sua arte, como o ShakeThat! E Duo POLINDE. Assim como temos nos acostumado com a parceria de belgas que vivem hoje no nosso país, como Anne Loeckx que, entre outros trabalhos, colaborou com a pesquisa e a montagem da exposição “Hoje tem

espetáculo!”, do Centro de Memória do Circo. Mas, sem dúvida, as estrelas que mais brilharam no firmamento do circo brasileiro-belga foram Lison e Carola.

Madame Lison Elisabeth Josephine Gallemaert Knockaert nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 20 de setembro de 1921. Filha do chefe de cozinha do rei, desde pequena demonstrou talento musical, cantando inclusive numa banda de sua cidade. No início da década de 50, casou-se com Nani Brasso que integrava o trio cômico “Les Chabris” – considerado na época um dos melhores do mundo

Madame Lison em cena com palhaços.

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teatro, dança, circo

Carola Boets tocando acordeon.

–, com quem Lison percorreu várias cidades da Europa, Ásia e África, até chegar ao Brasil, em 1953, para integrar o elenco do Circo Garcia. No Brasil, La Lison se destacou como apresentadora, papel em que foi pioneira e marcou época. Trocava de roupa a cada número, anunciava o espetáculo em oito idiomas e tinha uma elegância que até hoje é lembrada pelos colegas. Atuou nas maiores companhias circenses da época, com as quais viajou por todo o País e parte da América do Sul. Após quase 50 anos de ausência, Lison retornou à sua terra natal, onde reencontrou Carolus Leon Van Reet, seu namorado de adolescência. Começaram a manter contato e em 1991 Carolus fez uma visita surpresa a Lison no Brasil. No ano seguinte, casaram-se em uma cerimônia católica dentro do circo de Federico Orfei, com quem sua neta Lissete era casada. Seis meses depois, como num conto de fadas, casaram-se também no cívil, em um Castelo de Antuérpia. Daí em diante, Lison passou a viver uma nova rotina, residindo metade do ano no Brasil e a outra metade, na Bélgica. Fale-

ceu em Santo André, no dia 14 de fevereiro de 2008, ao lado de sua filha Jeanine, suas netas Carmem e Lissete, muitos bisnetos e tataranetos.

Dona Carola Andréa Françoise Carola Boets nasceu em 1937, na Bélgica. Filha de acordeonistas performáticos, Carolus Boets e Ernestine Maria Ryckaert, que se apresentavam com o nome de Scandallis, começou ainda menina sua carreira artística, fazendo imitações de Maurice Chevalier e, seguindo a tradição familiar, tocando acordeons dos mais variados tamanhos. Carola também tocava saxofone, dançava, interpretava, adestrava animais (cobras, cabras, elefantes, chimpanzés). No Brasil, aonde chegou em 1953, casou-se com Antolin Garcia (1904-1987), proprietário fundador do Circo Garcia (1928-2002), na época considerado um dos maiores circos do mundo. Indubitavelmente, dona Carola, como era chamada nos bastidores, foi a primeira dama do circo brasileiro nas últimas

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parte 6 – o brasil entra em cena

décadas do século XX. Seu amor incondicional pelos animais rendeu a piada que circulava entre os empregados e artistas do Garcia de que, na próxima encarnação, queriam nascer macacos da Carola. Em 2002, com a morte de seu enteado, Rolando Garcia, que sucedera o pai na direção da companhia, dívidas financeiras, ausência de terrenos adequados para circos nas grandes cidades e leis proibindo a presença de animais no espetáculo circense fizeram com que Carola tomasse a mais difícil decisão de sua vida: baixar de vez a lona do Garcia, após quase 75 anos de existência. Seu desejo era construir um santuário para acolher os animais do seu e de outros circos. Não teve tempo. Fora do picadeiro, viveu pouco tempo, vindo a falecer em 2006, na cidade de São Paulo. Verônica Tamaoki é jornalista, atriz e diretora circense, escreveu o livro Circo Nerine ao lado de Roger Avanzi. É fundadora e coordenadora do Centro de Memória do Circo da cidade de São Paulo.

Carola Boets com chimpanzé.

Circo social belgo-brasileiro Anne Loeckx

N

o dia 11 de maio de 2010, o Centro do Circo de Flandres organizou em Antuérpia um intercâmbio entre organizações flamengas e brasileiras que se dedicam ao circo social. A reflexão examinava o êxito do circo como metodologia em muitos projetos sociais. Zonas de risco, gangues, tolerância zero… Ainda que não se comparem à “barra pesada” das favelas cariocas, cidades como Bruxelas e Antuérpia têm bairros com muitos problemas sociais, culturais e econômicos. Felizmente, tanto a região de Flandres como o Brasil possuem a arma do Circo! Alguns ateliês de circo nas cidades flamengas se estabelecem justamente nesses bairros difíceis para organizar, em colaboração com outros parceiros, projetos de circo com as crianças e os jovens da vizinhança. A expressão “circo social” surgiu nas comunidades carentes brasileiras, quando alguns entusiastas, poucas décadas atrás, utilizaram o circo para oferecer mais chances às crianças e aos jovens. Se bem que atualmente, no Brasil, acha-se graça do termo, uma vez que, de certo modo, todos os circos são sociais, já que interligam as pessoas. A pista é redonda, de maneira que todos os espectadores se confrontam olhos nos olhos. Em seu livro O elogio da bobagem, Alice Viveiros de Castro relaciona o circo com o primeiro encontro entre os portugueses e os indígenas de Pindorama: “O Brasil começou – e não podia ser de outro modo – com uma festa! Índios e portugueses dançando juntos, de mãos dadas, ao som de uma gaita. E quem armou a grande roda foi um palhaço. Pois é. Devíamos construir uma estátua, um monumento a Diogo Dias, o cômico gracioso que viajava com Pedro Álvares Cabral e que, no Domingo de Páscoa, no início da tarde, resolveu tomar a mão dos

índios e dançar com eles”. Pena não termos conseguido manter tal convívio lúdico e pacífico... No que me concerne, já trabalho há quatro anos como pedagoga em vários projetos com crianças e jovens em zonas carentes brasileiras, tais como o projeto Crescer e Viver, no Rio de Janeiro, o Movimento Bixigão, em São Paulo, o projeto Circo, Arte e Cidadania, em Ouro Preto. Organizações bem diferentes, mas que acreditam no circo como meio de desenvolvimento pessoal, embora em geral recebam apoio e meios insuficientes para se manter. Penso que, nas mesmas condições, organizações belgas teriam provavelmente desistido há muito tempo. Mas que esta luta no dia a dia vale a pena se comprova pelo entusiasmo dos meninos participantes desses projetos. Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil é a sensação de se ser apreciado, não apesar da diferença, mas precisamente por se ser diferente. Desde sempre o circo é o lugar para os que são “diferentes”. Mas o circo tem também a ver com liberdade. Em nenhuma parte se sente maior liberdade do que quando o artista consegue, depois de muito suar, realizar o salto almejado. Uma imensa liberdade, acompanhada da sensação de controle. O que falta tanto a crianças e jovens de bairros desfavorecidos é ter o controle de uma situação em casa ou no bairro, o que podem experimentar intensamente no circo. Mais ainda porque, no picadeiro, os sentimentos de orgulho e liberdade são apreciados pela sociedade, que aplaude de pé. Lá onde a sociedade determina o que pode e não pode, o circo insiste: “Pode mais, e melhor”. O circo, por si só, não tem utilidade social, mas oferece a qualquer um o direito ao desenvolvimento pessoal,

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teatro, dança, circo

Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil é a sensação de se ser valorizado não “apesar da diferença”, mas precisamente por se ser diferente.

o direito de expressão e, sobretudo, o direito ao prazer. Esta é a magia do circo social. Anne Loeckx possui formação em Psicologia e em Pedagogia do Circo. Na Bélgica, em Flandres, esteve ativa em diferentes projetos de circo com grupos sociais em situação delicada. Há quatro anos atravessou o oceano para ganhar experiência de vida no Brasil, onde trabalha como supervisora e coordenadora de projetos de circo social no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Ouro Preto. Links úteis: ; ;

Em nenhuma parte se sente maior liberdade do que quando o artista consegue, depois de muito suar, realizar o salto almejado; uma imensa liberdade, acompanhada da sensação de controle.

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parte 6 – o brasil entra em cena

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música clássica

parte 7

Música

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parte 7 – música

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música clássica

Músicos belgas no Brasil e brasileiros na Bélgica Anna Maria Kieffer Reichert e Callado: dois flautistas irmãos

cólogo e diretor do Conservatório de Bruxelas quando Reichert lá fez seus estudos: “Reichert (Mathieu André), nascido em Maestricht, em 1830, um dos virtuosos flautistas mais hábeis e extraordinários do século XIX (...) “Não foi à toa que o jovem Carlos Gomes compôs o Entreato da ópera Joana de Flandres, peça de grande dificuldade técnica, especialmente escrito e dedicado ao insigne flautista Reichert”. Por outro lado, é possível que sua primeira formação musical, como filho de um músico ambulante que se apresentava em cafés, tenha contribuído para que se sentisse à vontade junto de músicos populares, em formações instrumentais que, em pouco tempo, seriam conhecidas como grupos de choro. O mais importante dentre esses músicos foi o flautista Joaquim Antonio da Silva Callado. Carioca, 18 anos mais moço que Reichert, o autor de Flor amorosa estudou flauta e piano primeiramente com seu pai, mestre da Banda Sociedade União de Artistas, depois, composição e regência com Henrique Alves de Mesquita. Em 1867, foi publicada sua primeira polca, Querida por todos, dedicada a Chiquinha Gonzaga. Em 1873, Callado compõe o Lundu característico, primeiro lundu a ser apresentado em sala de concerto. Professor de flauta no Conservatório, é condecorado pelo imperador com a Ordem da Rosa. A amizade fraterna entre Callado e Reichert durou toda a vida de ambos, uma vez que foram vítimas de uma epidemia de meningoencefalite perniciosa que assolava o Rio de Janeiro e faleceram com poucos dias de diferença, em 1880. Sua relação se traduziu numa interinfluência profíqua, uma vez que Reichert passou a Callado procedimentos técnicos sofisticados, inclusive o uso da flauta com sistema Boehm, processo praticamente desconhecido no Brasil até então, e Callado levou-o a absorver a música brasileira de salão, como se pode observar na polca La coquette, composta por Reichert, que durante anos fez parte do repertório dos grupos de choro. Reichert viajou pelo Brasil de norte a sul, nunca deixando de compor, inclusive peças de estudo; seus Estudos e Exercícios Diá­ rios, como suas peças de concerto, ainda hoje são adotados em conservatórios europeus e brasileiros.

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uando o flautista belga Mathieu-André Reichert desembarcou no Rio de Janeiro em 8 de junho de 1859, encontrou uma cidade em grande ebulição musical. Desde o porto, a cidade fervilhava de sons, a começar pelos cantos dos carregadores e pelas cantigas dos escravos de ganho que enchiam as ruas com seus pregões, até a música praticada nas casas, nos teatros e na corte. O compositor Francisco Manuel da Silva tinha conseguido reerguer a antiga Capela Imperial, esfacelada depois da abdicação de D. Pedro I, e fundar o Conservatório. As temporadas de ópera foram retomadas, após quase dez anos de silêncio, e nelas se apresentavam divas como Augusta Candiani, Rosina Stolz e Anna de La Grange. José Amat acabava de criar, com o apoio de Francisco Manuel da Silva, de professores do Conservatório e de membros da sociedade carioca, a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, cujo objetivo era montar óperas em português. Multiplicavam-se as lojas de instrumentos musicais e as casas editoras de música que forneciam material para os saraus familiares, em coleções de nomes sugestivos, como O ramalhete das damas, Prazeres do baile, Abelha musical, Ninfas brasileiras, Ilustração dos pianistas, O livro de ouro dos flautistas, entre outros. Contratado pelo Imperador D. Pedro II junto com outros músicos europeus com o intuito de formar uma orquestra de alta qualidade na Real Quinta da Boa-Vista, o jovem Reichert se viu, em pouco tempo, também tocando na orquestra do Teatro Lírico Fluminense (antigo Provisório) e realizando recitais solo pelo Brasil. Tendo sido aluno de Jules Demeur, no Conservatório Real de Bruxelas, e lá obtido o primeiro prêmio, era considerado, à época de sua contratação, um dos mais importantes flautistas da Europa, apresentando-se com grande sucesso principalmente na Bélgica, Holanda, França e Inglaterra. A flautista Odette Ernest Dias, que mais profundamente estudou a obra e a vida de Reichert, transcreve o verbete do dicionário de François-Joseph Fétis, importante regente, compositor, musi-

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Cabe à flautista francesa Odette Ernest Dias o mérito de ter redescoberto, pesquisado e interpretado Reichert. Como professora da Universidade de Brasília (UnB), em 1985 ela dedicou o disco “Afinidades brasileiras” à sua obra, lançado pela própria UnB.

dos com perfeita e rigorosíssima afinação, execução firme, excelente sentimento, o que honrava a escola de seu professor, Charles de Bériot. O público carioca festejou-o com delirantes aplausos. No dia seguinte, o Imperador D. Pedro honrava-o, presenteando-o com um anel cravejado de brilhantes e ornado com suas iniciais”. Outros artistas estrangeiros que aqui se apresentaram, como o português Eduardo Medina Ribas, o holandês Gustav Van Mark, a francesa Madame Freery, também foram alunos de Bériot, enquanto Paul Julien, que se tornou amigo de Carlos Gomes, trazia em seu repertório obras dos representantes da escola franco-belga de violino, como Bériot e Vieuxtemps. Portanto, nada mais natural para alguns brasileiros que queriam se aperfeiçoar no exterior do que escolher Bruxelas como seu destino. Manoel Joaquim de Macedo nasceu em Cantagalo, Rio de Janeiro, em 1847. Estudou composição no Conservatório Real de Bruxelas com François-Joseph Fétis (1784-1871) e violino com Huber Leonard (1819-1890) e Henry Vieuxtemps (1820-1881), recebendo medalha de ouro. Há notícias de que tenha, ainda, se aperfeiçoado com Joseph Joaquin (1831-1907) e com o próprio Auguste Bériot (1802-1870). Vieuxtemps o indica para a função de violinista spalla da orquestra do Covent Garden, em Londres, o que estende sua estadia na Europa por um total de nove anos. Quando volta ao Rio, em 1871, é nomeado por D. Pedro II mestre da Capela Imperial. Na capital do império compõe a opereta Antonica da Silva com libreto de seu tio, o romancista Joaquim Manuel de Macedo, apresentada no Teatro Fênix Dramática em 1880. Três anos depois, se estabelece em Minas para dedicar-se, principalmente, à composição. Sua obra inclui sonatas, fantasias, um álbum para piano, canções e, segundo Camila Frésca, que o estuda, oito concertos para violino, dos quais sete deles estão desaparecidos até agora. Seu poema sinfônico Floriano Peixoto foi apresentado com grande sucesso em Minas e no Rio de Janeiro e foi publicado em versão para dois pianos. Em 1897 termina de compor sua ópera, Tiradentes, com libreto de Augusto de Lima (1859-1943) e obtém uma bolsa de trabalho do governo brasileiro e mineiro para orquestrá-la na Bélgica, onde permanece por longos anos, só voltando ao Brasil pouco antes de sua morte, em 1925. O prelúdio e alguns trechos dessa ópera foram apresentados por Alberto Nepomuceno no Festival de Música Brasileira, na Exposição Internacional de Bruxelas, em 1910. Entre seus alunos destaca-se João Augusto Campos que foi tio e professor do violinista e compositor mineiro Flausino Vale. Grande virtuose de violino e compositor injustamente esquecido, deve-se a Villa-Lobos a lembrança de homenageá-lo com a cadeira nº 21 da Academia Brasileira de Música, no momento de sua criação. Macedo foi o primeiro de uma série de violinistas que introduziram e sedimentaram a escola franco-belga no Brasil. Outros foram: Francisco Chiaffitelli (1881-1954). Estudou no Conservatório Real de Bruxelas, na classe do renomado violinista Eugène Isaye, obtendo o primeiro prêmio de violino do Conservatório em 1897. No Brasil, foi professor do Instituto Nacional de Música, destacando-se entre seus alunos Paulina d’Ambrosio, nascida em

Em 1863, por ocasião do 33º aniversário da Independência da Bélgica, apresenta-se, com o pianista Carlos Schramm, após o banquete oferecido pelo Cônsul-Geral da Bélgica no Rio de Janeiro, Edouard Pecher, aos membros da Sociedade Belga de Beneficência. Em São Paulo, onde se apresentou por duas vezes, em 1863 e 1871, teria entrado em contato com os jovens do curso de Direito, pois eram eles que formavam o público mais expressivo dos concertos e que escreviam críticas e artigos musicais no Correio Paulistano. Cursavam a Faculdade de Direito, em 1863, o poeta Fagundes Varela e o compositor Venâncio José Gomes da Costa Júnior. Em 1871, o compositor Antônio Frederico Cardoso de Menezes pôs em música a célebre Hebréia, de Castro Alves. Reichert teve vários alunos no Brasil. Entre eles Duque Estrada Meyer, que também foi aluno de Callado e famoso professor no Conservatório de Música, tendo, por sua vez, entre seus alunos o grande flautista e compositor Patapio Silva. Por essa razão, Odette Ernst Dias afirma: “Reichert pode ser considerado, junto com Callado, o fundador da escola de flauta brasileira”.

Um violino que veio do mar Segundo Vincenzo Cernicchiaro (1855-1928), violinista, musicólogo e compositor italiano radicado no Rio de Janeiro e professor do Instituto Nacional de Música (antigo Conservatório), foram muitos os violinistas a se apresentar no Rio de Janeiro no século XIX. Entre eles, estava um “violinista de superior importância, trazendo novidades de escola, elegância de estilo e novas obras musicais para violino. Era ele Charles Wynem, jovem belga que um forte temporal – quando viajava para as ilhas orientais – lançou à praia da Bahia, sem ter podido salvar outra coisa além de seu violino e o repertório musical. “Na Bahia, onde realizou dois concertos, obteve grande sucesso, passando depois ao Rio de Janeiro, onde chegou em 19 de março [de 1846]. Seu primeiro concerto teve lugar dias depois de sua chegada. (...) Em seu último concerto, em 25 de agosto, tocou o Rondó russe do segundo concerto de Bériot, além do célebre Tremolo, executa-

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1890, em São Paulo, matricula-se aos 15 anos no Conservatório Real de Bruxelas. Ao voltar, em 1907, dedica-se principalmente ao ensino, como professora do Instituto Nacional de Música. Como intérprete, participou da Semana de Arte Moderna, executando, inclusive, obras de Villa-Lobos. Teve como alunos, entre outros, Guerra Peixe, Nathan Schwartzman, Henrique Morelenbaum, Mariuccia Jacovino, Ernani Aguiar e Paulo Bosísio que, por sua vez, foi professor do violinista mineiro especializado em música barroca Luís Otávio Santos, atualmente professor no Conservatório Real de Bruxelas.

de Gelisette (sic, 1895), de Aglavaine et Sélizette. Foi seu primeiro contato com a Bélgica. Não foi possível saber se Nepomuceno se encontrou pessoalmente com Maeterlinck na França ou na Bélgica, mas tudo leva a crer que tiveram algum tipo de contato, uma vez que Chanson de Gelisette foi composta um ano antes da publicação de Aglavaine et Sélizette (1896). De volta ao Rio, realiza – no Instituto Nacional de Música – um concerto com obras suas, na qualidade de compositor, pianista e organista, apresentando, também, um punhado de canções com texto em português. Inicia, assim, sua campanha pela composição de canções com texto em vernáculo, sustentando: “Não tem pátria um povo que não canta em sua língua”. Alberto Nepomuceno foi um homem de grande cultura e um compositor incansável. Criou obras para todas as formações vocais-instrumentais, incluindo ópera (Ártemis, Abul), música sinfônica, vocal e de câmara. É autor da mais importante coleção de canções da história da música brasileira, pela quantidade, qualidade e pela associação feita com os mais expressivos poetas seus contemporâneos, desde Machado de Assis a Coelho Neto e Olavo Bilac. Suas obras estão perfeitamente sintonizadas com a estética internacional do período, permanecendo, no entanto, extremamente pessoais e utilizando elementos de raiz brasileira. Atuou ainda como regente, professor e diretor do Instituto Nacional de Música. Executou estreias brasileiras de obras contemporâneas de autores internacionais, como Debussy, Dukas, Roussel, Glazunov, Rimsky Korsakov, e primeiras audições de obras de compositores brasileiros como Araujo Viana, Barrozo Netto, Francisco Braga, Alexandre Levy, Henrique Oswald, Leo­poldo Miguez, entre outros. Estimulou novos talentos, como Glauco Velazques, Luciano Gallet, Lorenzo Fernandez e Heitor Villa-Lobos. Em 1910, por ocasião da Exposição Internacional de Bruxelas, realiza no Teatro La Monnaie o Festival de Música Brasileira, comissionado pelo então embaixador e grande intelectual Oliveira Lima. Rege obras de sua própria autoria, de Carlos Gomes, Manoel de Macedo, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco Braga. Também se apresenta diante da corte belga, num concerto particular, com obras suas e de outros compositores brasileiros. Durante a guerra de 1914-18, Nepomuceno participou do grande movimento de simpatia para com a Bélgica, inclusive organizando concertos em favor do país que tão bem o recebeu. Por ocasião da visita dos reis da Bélgica ao Brasil, em 1920, Nepomuceno recebeu do Rei Alberto a Medalha de Ouro pela “devoção que fez prova durante a guerra pela causa belga”. Alguns meses depois, Alberto Nepomuceno escreve sua última canção, A jangada, com versos do poeta cearense Juvenal Galeno, obra que o coloca definitivamente na história da música do Brasil como o elemento de ligação entre o Romantismo e o Modernismo. Tendo se separado de Walmor Bang e residindo, desde então, na casa de seu grande amigo, Frederico Nascimento, não resiste a um agravamento de seu estado de saúde, já precário desde 1916, e,

A ponte para o Modernismo Difícil tentar colocar em poucos parágrafos a grandeza da vida e da obra de um compositor como Alberto Nepomuceno. Nascido em Fortaleza, CE, em 1864, fez seus primeiros estudos de piano e violino com o pai e, adolescente ainda, frequenta o meio abolicionista do Recife. Tobias Barreto o inicia em Filosofia e Alemão. A morte do pai faz com que a família retorne ao Ceará onde continua suas atividades políticas. Em função delas, o pedido enviado pela Assembleia Legislativa cearense ao Governo Imperial para que Nepomuceno pudesse aperfeiçoar-se na Europa é negado. Parte, então, para o Rio de Janeiro, onde continua seus estudos e é nomeado professor de piano do Club Beethoven. Data dessa época sua amizade com Machado de Assis, então bibliotecário do clube, com o violoncelista Frederico Nascimento e com os irmãos Rodolfo e Henrique Bernardelli. Todos exercerão importantes papéis em sua vida. Em maio de 1888, executa no Club Iracema, em Fortaleza, a 1ª audição de sua Dança de Negros, para piano, que se tornará, mais tarde, o Batuque da Série Brasileira para orquestra. Nesse mesmo ano, parte para a Europa com os Bernardelli em viagem de estudos. Em Roma, matricula-se no Liceo Musicale Santa Cecilia. No ano seguinte, obtém do Governo Provisório uma pensão que lhe permitirá inscrever-se na Academia Meister Schule, em Berlim, e, em seguida, no Conservatório Stern. Nas provas finais rege obras suas à frente da Filarmônica de Berlim. Durante sua estada na Alemanha, conhece sua futura esposa, a pianista norueguesa Walmor Bang, que o aproxima de Brahms e de Grieg. Este reforça a ideia já demonstrada por Nepomuceno em seu Batuque: a importância de compor obras a partir de um patrimônio brasileiro. Antes de voltar ao Rio de Janeiro, segue para Paris, aperfei­ çoando-se na Schola Cantorum com o célebre organista Alexander Guilmant. Conhece Saint-Saëns, Vincent d’Indy e Debussy, de quem assiste a estreia mundial de L’après – midi d’un faune, obra que seria o primeiro a revelar no Brasil em 1908. Durante sua estada na França, compõe, a convite de Charles Chabault, catedrático de grego na Sorbonne, a música incidental para a tragédia de Sófocles, Electra. Também musica, ao mesmo tempo, uma série de poemas em português e em francês, alguns deles com texto do poeta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck: Desirs d’hiver Oraison (1894), de Serres Chaudes, e La chanson

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cercado por amigos e discípulos, falece em 16 de outubro de 1920. O musicólogo Luiz Heitor relata através da testemunha ocular de seu passamento, Otávio Bevilacqua, que ele cantava na hora da morte, tal como fizera José Maurício Nunes Garcia.

Segundo a pianista Berenice Menegale, que estreou sob a regência de Bosmans aos 11 anos, o maestro era um grande improvisador, capaz de criar em tempo real pequenas obras à maneira de compositores do passado. Oiliam Lanna, compositor que foi aluno e amigo de Bosmans, relata ter sido ele um homem de grande cultura não só musical, mas também no campo das artes em geral, possuindo uma imensa biblioteca. Foi amigo de artistas plásticos, como Guignard e Chanina – que pintou um retrato seu – e de compositores seus contemporâneos, como Edino Krieger, Francisco Mignone e, principalmente, Radamés Gnatali. Sua vida de marinheiro teria contribuído para seu interesse em outras culturas e influenciado no colorido de suas obras. Embora não fosse um compositor nacionalista, no sentido estrito da palavra, durante sua estada em Portugal compôs a Sinfonietta Lusitana, baseada em cantigas tradicionais portuguesas. Oiliam ressalta o papel de Bosmans como divulgador da obra de compositores belgas no Brasil (Peter Benoit, Joseph Jongen, Marcel Poot e Gaston Brenta), assim como o de compositores brasileiros no exterior. Os títulos de suas obras sugerem um certo humor e mesmo alguma irreverência, como La vie em bleu, O cavaquinho bem temperado, Clavinedoctes, Valsa...da outra esquina – para violão –, segundo o violonista Edelton Gloeden, uma homenagem a Mignone. Sérgio Freyre, Alice Belém e Rodrigo Miranda, que o estudaram mais profundamente, admitem ter sido Bosmans um grande admirador de Gershwin, Bartok e Ravel, podendo-se notar a influência desses compositores em sua rica e ao mesmo tempo clara sonoridade orquestral. A linguagem de sua obra, entretanto, despreza os experimentos das correntes de vanguarda pós-Schoenberg, valendo-se de combinações politonalistas e timbrísticas como elementos de construção. Arthur Bosmans casou-se com uma brasileira, Walkyria – que mantém o acervo de suas obras – e naturalizou-se brasileiro em 1954. Faleceu em Belo Horizonte em 1995. Boa parte do registro de suas obras feitas na Bélgica perdeu-se durante a Segunda Guerra Mundial, com os bombardeios sobre Antuérpia e Bruxelas. No entanto, seu filho, Jaak Bosmans, tem restaurado e digitalizado as gravações ainda existentes, trabalho complementado pela Escola de Música da UFMG, que tem realizado novas gravações de algumas de suas obras. Leo Kupper nasceu em Nidrum, Bélgica, em 1935, e fez seus estudos de Musicologia e História da Arte nas Universidades de Liège e de Bruxelas. A partir de 1962, colaborou com Henry Pous­seur no Studio Apelac, o primeiro estúdio de música eletroacústica da Bélgica. Foi diretor de sonorização da Rádio e Televisão Belga, compondo trilhas sonoras para filmes e programas de televisão. Em 1967, funda o Studio de Recherches et de Structurations Électroniques Auditives, em Bruxelas, no qual realiza uma série de experiências relacionadas à música e à criação sonora, como Música Digital Pública: realizações de músicas coordenadas pelo público ou autoestimuladas por máquinas que engendram um ambiente sonoro complexo, através de um grande número de fontes sonoras (na Bienal de Veneza, em 1987, até 350 canais de áudio).

Um compositor marinheiro e um músico-viajante do século XX Entre os compositores belgas que estiveram no Brasil no século XX, destacam-se dois nomes cujo trabalho se encontra mesclado, de forma particular, às duas culturas. Trata-se do compositor e regente Athur Bosmans e do compositor de música eletroacústica Leo Kupper. Arthur Bosmans nasceu em Bruxelas em 1908. O fato de não ter seguido cursos regulares de música não o impediu de participar, já aos 12 anos, como violinista, da Orquestra Sinfônica de Mons. Além do violino, tocava com grande desenvoltura piano, clarinete e trompa. Em 1926, ingressou na Marinha Belga, na qual permaneceu por cinco anos, ao fim dos quais resolveu abandonar a carreira militar para se dedicar unicamente à música. Estudou por conta própria composição e regência e, em 1933, recebeu o Prêmio Cesar Frank, em Liège, por sua rapsódia La rue, o que o tornou conhecido em todo o país e propiciou a edição de várias obras suas. Durante a Exposição Mundial de Bruxelas, em 1935, foi organizado o Festival Arthur Bosmans, no qual apresentou várias de suas obras sinfônicas com grande sucesso. Nessa época, tornou-se regente assistente e depois titular da Orquestra Filarmônica de Antuérpia, tendo apresentado seu scherzo sinfônico James Ensor, Cymbalum para piano e orquestra e a suíte orquestral La vie em bleu. Em 1939, torna-se membro do conselho editorial da Revue Musicale Belge e diretor do Ballet Bellowa. Com a eclosão da Segunda Guerra, voltou à Marinha e, após uma operação no Canal da Mancha, chegou acidentalmente a Lisboa. Lá encontrou Darius Milhaud, que pretendia ir para os Estados Unidos. Era o ano de 1940 e, através de Milhaud, conseguiu um visto para o Brasil. Aqui chegando, encontrou-se com Villa-Lobos que o ajudou a integrar-se no meio musical do Rio de Janeiro. Nos dois anos seguintes regeu, deu aulas e compôs música para cinema e dança. Enquanto isso, suas obras continuavam a ser apresentadas na Bélgica ocupada, nos Estados Unidos, no Canadá e Uruguai. Em 1944, foi convidado a reorganizar a Orquestra Sinfônica de Belo Horizonte, como diretor artístico e regente estável. Transfere-se então para Minas Gerais, onde exerceu grande atividade na vida cultural de Belo Horizonte. Em 1965, começou a lecionar composição, regência e música de câmara na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo se aposentado em 1980. Nos anos 1960, Bosmans realizou várias turnês na América Latina e Europa e gravou com a Orquestra da Rádio e Televisão Belga várias de suas obras. Em 1975, conquistou o primeiro prêmio do 7º Concurso Internacional de Composição da Académie Internationale de Lutèce, em Paris, com sua Toccata para piano.

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A partir de 1977, estuda a divulgação da música no espaço, através da construção de quatro cúpulas sonoras (Roma, 1977, Avignon, 1979, Linz, 1984, Veneza, 1987). A maior delas foi a construída para o festival “Ars-Electronica”, em Linz, Áustria, com 104 canais de áudio. Cria, ainda, máquinas musicais de fabricação original como o Game (Gerador Automático de Música Eletrônica) por estimulação vocal (analógica e numérica, depois MIDI), 1970-1980; os Autômatos sonoros, estimulados pela voz humana, 1970-1976; os Muvis: instrumento de visualização espectral da música, 1976-78; o Kinéphone: instrumento musical com teclado para a interpretação da música no espaço através de cúpula sonora, 1983. Realiza, a partir de 1968, uma longa série de concertos de música eletroacústica na Europa, nas Américas e no Oriente, com solistas e grupos musicais. Tem sido, durante toda sua vida, um viajante incansável, se interessando pela música dos lugares que visitou, principalmente o Irã – cuja cultura influenciou sua espiritualidade e sua arte – e o Brasil. Em 1978, vem pela primeira vez ao Brasil, convidado pelos organizadores da 8ª edição dos Cursos Latino-Americanos de Música Contemporânea, realizados cada ano em uma cidade latino-americana, no caso, São João del Rei, em Minas Gerais. Em 1981, é convidado pelo compositor Gilberto Mendes a participar do Festival Música Nova com o Grupo de Música Fonêmica e Vocal do Studio de Recherches, do qual faziam parte o baixo Paul Gérimont e o ator Jean-Claude Frison. Conheci Leo Kupper durante o festival. Desse encontro nasceu uma colaboração artística que completa 30 anos, em busca de uma linguagem vocal que pudesse ser, ao mesmo tempo, abstrata e afetiva e que servisse de matéria-prima para posterior elaboração eletroacústica. Testemunho desse trabalho são cinco obras nas quais temas da cultura brasileira são tratados através dos procedimentos de música fonética, desenvolvidos anteriormente por Kupper. As duas primeiras, Amkea e Annazone, necessitaram de uma longa fase de exercícios e procedimentos microtonais oriundos de novas técnicas vocais e respiratórias a partir dos quais brotaram grafismos vocais, gestos sonoros, miragens resultantes da livre associação com insetos, pássaros, bichos do mato, árvores e pedras. Segundo Kupper, “Amkea se exprime em linguagem absolutamente abstrata, não tendo pois – como resultado – nenhuma significação nacional, internacional ou figurativa: fonemas, fonátomos, alofones, vocalizes, gritos e chamados constituem a essência da linguagem abstrata mas lembram em suas entoações, seus timbres e seus ritmos, a origem brasileira da cantora”. Em Annazone, Leo Kupper mescla materiais sonoros criados por mim a pios de pássaros e sons eletrônicos. Comecei partindo da memória de cantos de pássaros, zumbidos de insetos, coaxar de batráquios, passando a uma linguagem de invenção da sonoridade de flores, plantas e borboletas. A obra é enquadrada por um acorde sinfônico, no começo e no fim dela, como se “ouvíssemos” um quadro no qual a sonoridade de uma mata imaginária se desenrola.

Os materiais vocais da terceira obra, Anamak, foram criados a partir de temas musicais de índios do Brasil, recolhidos por viajantes e antropólogos, desde o século XVI, completados por blocos vocais estimulados por trechos musicais gravados entre os Kaiapó por Fuesrt, Love, Rosseels e Verswijwer. No entanto, Kupper explica, “o conjunto das vocalizações, das fonemizações e das articulações musicais é absolutamente abstrato. É uma sequência de invenções a várias vozes, a polifonização da voz de uma mesma e única cantora”. Rezas populares do Brasil teve a colaboração do baixo brasileiro Eduardo Janho-Abumrad. A maior parte delas são rezas de cura coletadas por Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edmildon de Almeida Pereira, em Minas Gerais, nas décadas de 1970 e 1980. Foram ainda utilizados cantos fúnebres recolhidos por Alceu Maynard de Araújo, no Ceará, na década de 1940, e cantos religiosos populares recolhidos por mim em Cananeia, litoral sul de São Paulo, em 1982. Segundo Kupper, “uma seleção delas foi fonemizada e parcialmente cantada. Os sons gerados pelo baixo foram posteriormente, transformados por máquinas eletrônicas, com o intuito de criar seu próprio acompanhamento. Uma das técnicas utilizadas foi a da granulação sonora, realizada por um programa criado pelo compositor belga e professor de arte digital da Universidade de Mons, Todor Todoroff. Este programa permite armazenar na memória do computador um pequeno fragmento do original e trabalhá-lo. Todos os sons da obra foram extraídos da declamação e do canto dos intérpretes”. Essas quatro primeiras peças foram reunidas no CD Ways of the voice, e deram origem ao espetáculo do mesmo nome, encenado pelo diretor brasileiro radicado na Bélgica, Caio Gaiarsa, com imagens digitais em movimento criadas por Alessandra Galasso, Eduardo Campos e Chico Escher. O espetáculo foi apresentado em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, no Centro Cultural do Museu Reyna Sofia, em Madri, e no Festival Au Carré, em Mons, Bélgica. A última das obras realizadas em conjunto com Leo Kupper, Kamana, parte de um universo afro-brasileiro, através dos vissungos (antigos cantos de trabalho das minas) recolhidos por Ayres da Matta Machado, em São João da Chapada, Minas Gerais, na década de 1920. No caso dessa obra, o processo usado para sua composição não foi o de polifonia, mas o de multifonia, representada por sete diferentes vozes superpostas colocadas num eixo horizontal e integra voz, sons instrumentais de diferentes culturas, sons eletroacústicos e sons eletroacústicos originários da voz tratada. De acordo com Kupper, “embora vários sons como os de metal, madeira, e sons eletrônicos sejam oriundos da vida contemporânea, através dos processos compositivos, se tornam referência a aspectos inerentes aos reinos animal e vegetal”. A estreia dessa obra se deu em Bruxelas, no encerramento da Semaine du som, na grande sala do complexo cultural Flagey no dia 27 de janeiro de 2013. Leo Kupper veio inúmeras vezes ao Brasil e vários técnicos, compositores e cantores brasileiros participaram de suas produções ou estagiaram em seu estúdio, em Bruxelas, ao lado de artistas belgas. Além dos já citados, não posso deixar de lembrar nomes

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de compositores como Helio Sizkind, Vania Dantes Leite, Rodolfo Caesar, Vanderlei Lucentini e cantoras como Kátia Guedes e Cláudia Todorovo, o que o torna um verdadeiro promotor de intercâmbio musical entre o Brasil e a Bélgica.

CORREA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. DIAS, Odette Ernst. Mathieu-André Reichert: um flautista belga na Corte do Rio de Janeiro. Brasília: Editora UNB, 1990. FORSTER, Maria Thereza Diniz. Oliveira Lima e as relações exteriores do Brasil: o legado de um pioneiro e sua relevância atual para a diplomacia brasileira. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. FREIRE, Sérgio / BELÉM, Alice / MIRANDA, Rodrigo. Do conservatório à escola. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. REZENDE, Carlos Penteado de. Tradições musicais da Faculdade de Direito de São Paulo. São Paulo: Edições Saraiva, 1954. CDs/CDs-livros KIEFFER, Anna Maria. In: Encarte do CD A. Nepomuceno-canções. São Paulo, AKRON, 1997. KUPPER, Leo. In: Encarte do CD-livro Ways of the voice. São Paulo, AKRON, 2004. KUPPER, Leo. In: Encarte do CD Digital voices. Nova York, POGUS, 2012.

Anna Maria Kieffer é musicóloga, pesquisadora e cantora lírica brasileira, participou de turnês por Alemanha e França como mezzosoprano. Estudou musicologia na década de 1960 e lançou vários CDs, entre os quais Ways of the Voice (1999), produzido na Filadélfia, com o compositor belga Leo Kupper, reunindo rezas populares do Brasil carregadas de heranças múltiplas da Ásia, da Europa e da África. É responsável pela trilha sonora do filme O Retorno, de Rodolfo Nanni.

Referências Eletrônicas

Referências

DEWILDE, Jan e FCQUAERT, Annelies. Bosmans, Arthur: Biographie. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2013. FRÉSCA, Camila. Uma gênese do violino no Brasil: a escola franco-belga e o desenvolvimento do violino como instrumento autônomo. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2013.

AZEVEDO, Luiz Heitor Correia de. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956. ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo (1808-1865). Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1967. CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai nostri giorni (1547-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926.

Álvaro Guimarães (1956-2009) K a t r i j n Fr i a n t

N

ascido em Araguari, Minas Gerais, Álvaro Guimarães mudou-se aos 13 anos de idade, depois da morte do pai, com sua mãe e as irmãs para São Paulo, onde continuou seus estudos de música no Mozarteum e obteve uma formação universitária de artista executante. Estudou com Hans-Joachim Koellreutter, Coriun Aharonian e Klaus Huber. Ele foi um dos co-fundadores do Núcleo Música Nova de São Paulo. Com este grupo introduziu, nos anos de 1980, entre outros, John Cage e sua obra no Brasil e colaborou com o próprio Cage. Em 1990 veio à Bélgica com a intenção de escrever um doutorado sobre o contexto sociocultural da música brasileira na Universidade de Gand sob a orientação do professor Herman Sabbe. Apesar de ter sempre pesquisado sob este ângulo sociocultural o fenômeno da música erudita, a redação de um doutorado lhe parecia demasiado teórica. Muito rápido começou a organizar, na Bélgica, concertos, workshops e palestras sobre a música brasileira enquanto introduzia a música belga no Brasil. E esta última consistia principalmente em obras compostas na parte flamenga do país e tinha muito a ver com a política cultural federalizada. Seu objetivo principal era romper com os estereótipos, nos quais se pensava a cultura dos outros países. Assim o Brasil parecia sempre carregar a associação com carnaval e não ultrapassava na música clássica o nome de Heitor Villa-Lobos. Por isso Álvaro gostava de divulgar a obra de Gilberto Mendez e Willy Corrêa de

Álvaro Guimarães, fundador do KaG e professor no departamento de música da Hogeschool Gent (Escola Superior de Gand).

Oliveira. Ousava mesmo tocar compositores mais antigos como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno e Luciano Gallet. Assim organizou em Gand, em janeiro de 1999, um festival de música

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de câmara sul-americana. Nisto colaborava com o conjunto Spectra, do qual foi co-fundador, como também com Katrijn Friant, Françoise Vanhecke, Pier van Bockstael e muitos outros músicos de formação clássica. Alguns auditores por aqui ficaram chocados com os elementos expressamente teatrais das partituras brasileiras. Por exemplo, a Opera Aberta de Gilberto Mendez é uma obra para soprano e body-builder, na qual os dois executantes mostram seu lado mais vaidoso e procuram numa forma fugato tomar o trono. Entretanto, a maior parte dos ouvintes benevolentes se deram conta que este modo de musicar era original e mais socialmente engajado do que era usual na Bélgica. Na introdução da cena musical belga contemporânea no Brasil, Álvaro gostava também de sair das veredas batidas. Assim, conscientemente, preferia trabalhar com músicos jovens dispostos a interpretar obras novas de seus colegas compositores. Paralelamente lhes pedia também para tocar obra de nomes respeitados na Europa. Desse modo, os frequentadores do Festival Música Nova em São Paulo, Santos e outras cidades puderam conhecer extensamente a obra de Maurizio Kagel, György Kurtàg, Karlheinz Stockhausen e muitos outros. Sempre procurava enquadrar estes concertos com palestras, workshops e repetições abertas. Em 2003, fundou em Gand seu próprio grupo KaG (Kunstarbeidersgezelschap ou Companhia de Trabalhadores Artistas). Este se originou da necessidade de fazer música num coletivo. Por isso a KaG funcionava como uma plataforma de e para artistas, que eram ativos em diferentes áreas. Seus projetos de música contemporânea cresciam sempre de uma necessidade intrínseca de contribuir com a arte para um mundo melhor e isto com atenção especial para os aspectos multidisciplinares, sociais e teóricos. Com este grupo queria, a exemplo de Cornelius Cardew, trabalhar não somente com artistas das diversas disciplinas, mas também com profissionais e amadores. Sobretudo, amava abrir as fronteiras dentro da Europa e seu grupo era tão internacional quanto possível. O seu projeto mais ambicioso foi a encenação de Maulwerke de Dieter Schnebel. A obra foi observada pelo próprio compositor e foi apresentada na Bélgica, na Alemanha, na Suécia e, naturalmente, também no Brasil. Com esta obra conseguiu finalmente envolver performances da parte francófona do país e de romper os limites culturais da política federal. Álvaro Guimarães foi professor no departamento de música da Hogeschool Gent (Escola Superior de Gand) e faleceu prematuramente em Gand em 2009. Terminamos citando os títulos do seu quarteto de flauta, que, depois da primeira execução, foi quase imediatamente impresso

Cartaz do concerto Les Indiennes Galantes ou Les Folies Flamandes, de 1996.

pela editora Moeck. Em sua totalidade, a obra ilustra como nenhuma outra a mistura de suas raízes brasileiras com sua permanência na Bélgica: Les Indiennes Galantes ou Les Folies Flamandes (1996) (As Índias Galantes ou As Folías Flamengas) 1. La question de la canne à sucre à la mer sous dominó blanc… (A questão da cana de açúcar no mar sob dominó branco…) 2. La Sonate sous dominó bleu… (A Sonata sob dominó azul…) 3. La Consonanza: sous dominó vert… (A Consonanza sob dominó verde…) 4. La réponse de la mer à la canne à sucre: sous dominó noir… (A resposta do mar à cana de açúcar: sob dominó negro…) Katrijn Friant, viúva de Álvaro Guimarães, é pianista e professora de música em Gand.

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Biografia: Eliane Rodrigues

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liane Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro. Seu talento musical foi descoberto muito cedo e dirigido por Arnaldo Estrella (aluno de Alfred Cortot e amigo de Villa-Lobos). Aos seis anos de idade estreou na televisão (Mozart KV488 com a Orquestra Sinfônica Nacional). Foi laureada nos EUA com o “prêmio especial” do júri no concurso Van Cliburn. Como laureada do Concurso Musical Internacional Rainha Elisabeth, na Bélgica, em 1983, Eliane não demorou a atuar no Concertgebouw Amsterdam, no Berliner Schauspielhaus, em Paris, Hamburgo e no Leipzigs Gewandhaus. Em 1985, já foi caracterizada como “brilhante e tecnicamente perfeita” (Die Welt). Atuou também nas cidades de Antuérpia, Amsterdã, Berlim, Bruxelas, Haia, Moscou, Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, Roterdã, São Petersburgo, Volgogrado, Zurique. Compôs um concerto para piano e orquestra de quase uma hora que estreou mundialmente em 9 de agosto de 2000. De setembro a abril de 2002, tocou em São Petersburgo os cinco concertos para piano e orquestra de Sergei Prokofiev, tendo sido gravados dois CDs. Repertório: 61 concertos para piano, dos quais 58 foram executados. Atualmente, Eliane Rodrigues é professora no Conservatório Real, em Antuérpia, Bélgica.

A pianista Eliane Rodrigues, que em 2002 tocou em São Petersburgo os cinco concertos para piano e orquestra de Sergei Prokofiev, tendo sido gravados dois CDs.

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música popular brasileira

MPB Daniel Achedjian

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bastante confortável ser belga no Brasil. Um certo conforto que aumentou com o tempo e que reside no fato de não ser vítima de nenhum preconceito associado a um país do qual não se conhece muita coisa. Em 1989, quando aterrizei pela primeira vez na pista do Galeão do Rio de Janeiro (atual aeroporto Antônio Carlos Jobim), poucos cariocas podiam situar precisamente a Bélgica em um mapa, ou mesmo associá-la a algumas personalidades ou produtos culturais, quaisquer que fossem. Em seguida, o futebol (na época dourada dos Scifo, Preud­ homme e Gerets, entre 1986 e 1990), o chocolate, a moda dos bares com cervejas belgas e, mais recentemente, a revista em quadrinhos (Tintim, Os Smurfs), trouxeram alguns elementos de ajuste de identidade condizentes com o reino do surrealismo. Musicalmente, quando alguém me perguntava, eu tinha certa dificuldade em achar características que pudessem definir um estilo próprio da Bélgica. Pois não existia realmente um…

Bluesette de Toots Thielemans era regularmente tocada em todas as boates de jazz do Rio e de São Paulo, mas era, com frequên­ cia, atribuída ao bossa-novista Roberto Menescal, cuja maneira de tocar violão possui semelhanças com o nosso gaitista. Quanto a Ne me quittes pas, a canção em língua francesa mais interpretada e gravada pelos artistas brasileiros, era preciso que eu esclarecesse que pertencia a Jacques Brel e ao patrimônio de seu país plano (Le Plat Pays, outra obra-prima do cantor belga), e não a um eventual compositor francês, como ela era frequentemente apresentada. Maysa (1936-1977) gravara uma versão ao vivo no finado Canecão, sala mítica do Rio de Janeiro, e ela teve inúmeras versões diferentes, até a da jovem paulista Maria Gadú em 2010, passando por Jards Macalé, Cauby Peixoto, Bibi Ferreira, Ângela Rorô e muitos outros, com versões com êxitos diversos... Quanto a Toots Thielemans e Bluesette, os dois álbuns The Brazil Project de 1992 e 1993, nos quais ele convidou a nata da MPB, eles propunham uma versão de mais de nove minutos do grande clássico, cuja letra em português tinha sido escrita por Ivan Lins. Tive a oportunidade de assistir aos shows de apresentação dos álbuns tanto no Rio, no Hotel Nacional de São Conrado, como em Bruxelas, no Palácio de Belas Artes. Em 1989, então, eu tinha alguns anos de jornalismo na minha bagagem – principalmente no Télémoustique – dedicados às músicas pop, rock, new wave e soul, inglesas e americanas, e eu demonstrava certa falta de interesse em escutar Jorge Ben, Sérgio Mendes e João Gilberto, que eram ouvidas sem parar por meus familiares. Naquele ano, houve essa primeira viagem ao Rio, quase que por acidente, e uma conexão imediata foi feita em mim, que me fez procurar no acervo de discos dos meus pais o que se tornaram, na época, meus dois álbuns de cabeceira: Vinícius, Toquinho e Maria Creusa/Maria Bethânia, en La fusa, gravados em 1970 em Buenos Aires, dos quais escutei cada mínimo detalhe, até estragar os vinis. Minha compulsão doentia fez o resto. Escutar e estudar em profundidade os mestres da Bossa-Nova, os diferentes tipos de samba, o choro, as músicas do Nordeste, os outros estilos regionais e

Edu Lobo e Daniel Achedjian.

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parte 7 – música

Oscar Castro-Neves e Toots Thielemans, que gravou três álbuns em homenagem à música brasileira.

os grandes clássicos da MPB, abandonando tudo que era cantado em inglês. Entre 1988 e 1994 foi também a época do festival “Viva Brasil” na Bélgica e dos cartazes de sonho que reuniam, entre muitos outros, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco, João Gilberto, as jovens Marisa Monte e Daniela Mercury, mas também Toninho Horta, Egberto Gismonti, Hermeto Pas­ coal, Nana Vasconcellos. Como um digno filho do rock e da soul, eu me abri rapidinho aos outros estilos, de influências mais claramente estrangeiras, muitas vezes misturados aos ritmos e harmonias do Brasil, para me dar conta que a riqueza implantada musicalmente naquele país continente não tinha equivalente no mundo. Se eu estudava com paixão e compulsão mais de um século de história da música popular brasileira (me levando a adquirir mais de dez mil CDs), eu vivia igualmente com intensidade, através de minhas inúmeras viagens durante os anos 90, uma das décadas mais ricas e produtivas do século XX no Brasil. O aparecimento do Mangue Beat de Pernambuco, a afirmação nacional da música axé de Salvador, Bahia, o cenário rap de São Paulo e Rio de Janeiro, o amadurecimento da música eletrônica, a bossa lounge na Europa; o nascimento de uma nova geração de cantoras compositoras como Adriana Calcanhotto, Marisa Monte, Zélia Duncan, Fernanda Abreu, Cassia Eller, Ana Carolina; uma chegada importante de artistas carismáticos vindos do Nordeste como Lenine, Zeca Baleiro, Chico César; a consolidação do rock nascido nos anos 80 (Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Titãs) e os primórdios muito importantes do grupo Los Hermanos no Rio de Janeiro que influencia toda a cena independente e indie carioca até os dias de hoje. Na realidade, tratava-se de uma década que após ter visto o nascimento do rock influenciado pelo cenário inglês, e a chegada da MTV Brasil, em 1989, mais uma vez conseguiu integrar magnificamente os estilos estrangeiros às raízes brasileiras. Após ter feito uma pausa na carreira jornalística, retomei minhas atividades no início dos anos 2000, atuando em diferentes rádios independentes, ainda hoje na Rádio Judaica Bélgica (90,2 FM), na qual tive a liberdade de produzir programas de duas a três horas semanais. O que não é muito comum, diria até mesmo inédito, em francofonia. O programa foi muito tempo ao ar no domingo à noite, em seguida, na segunda-feira, enquanto, atualmente, ele é gravado no Rio de Janeiro, e colocado no ar, sendo várias vezes retomado em diferentes horários, em função da atualidade frequentemente perturbada, típica da natureza da estação. Tendo aperfeiçoado meu português do Brasil, pude retomar o exercício das entrevistas e, foi com bastante surpresa que vi as portas se abrirem com entusiasmo. Tive a oportunidade de encontrar, para longas conversas, artistas como Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Gal Costa, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Francis Hime, Edu Lobo, Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato, Alceu Valença, Ney Matogrosso, Ed Motta, Frejat, Marina Lima, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, Lenine, Paulinho Moska, Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Los Hermanos, Leila Pinheiro, e tam-

bém artistas da novíssima geração, como Rodrigo Campos, Tiê, Rodrigo Bittencout, Sílvia Machete, Mariana Aydar, Cris Aflalo, Verônica Ferriani e Chico Saraiva da nova cena independente de São Paulo. Em suma, por volta de uns 200 nomes, conhecidos e menos conhecidos. Pode-se dizer que, geralmente, foram encontros bem à vontade, informais (embora todos gravados) e com direito, de vez em quando, a sessões privadas de música. Tudo isso devido à confiança que me foi dada pelos produtores, presidentes de selos, assessores de imprensa e artistas que haviam tomado conhecimento do site Tropicália MPB – precedido pelo blog “Art et Musique Populaire Brésilienne” –, redigido em duas línguas, francês e português, onde também se encontram os podcasts dos programas transmitidos na Rádio Judaica Bélgica. Os cadernos culturais de jornais importantes como o finado Jornal do Brasil (que ainda existe na internet), O Dia e O Globo, me honraram publicando alguns artigos sobre meu trabalho, e boa parte das minhas resenhas de discos e de shows encontram-se nos sites oficiais dos artistas e das gravadoras. Há dois anos resido, principalmente, no Rio de Janeiro, e é com um prazer levemente dissimulado que continuo, como Hercule Poirot, a corrigir com malícia aqueles que acham que sou francês. Pois se a Bélgica é um país tão complexo para ser definido, ela possui ao menos a vantagem, devido a isto, de escapar das ideias preconcebidas. Verdade seja dita, continuo a pensar que é particularmente confortável dizer que se é belga no Brasil. Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia” na Rádio Judaica.

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A descoberta da Bossa-Nova na Bélgica B a r t P. Va n s p a u w e n

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Bossa-Nova ganhou fama na Bélgica com Toots Thielemans e Elis Regina, com a gravação deles de 1969 e com sua atuação em Bruxelas em 1979; com o Festival Viva Brasil em Bruxelas nos anos 1980; com o guitarrista belga Philippe Catherine; com o Two Man Sound, o grupo dos músicos belgas Lou Deprijck, Sylvain Vanholmen e Yvan Lacomblez; com o compositor, músico e produtor Henri Greindl, em formações diferentes como Cheiro de Choro, Parfum Latin e Henri Greindl Quintet; com o saxofonista John van Rymenant; com o DJ Buscemi (Dirk Swartenbroekx), e com Vincent Kenis e sua editora discográfica Ziriguiboom, baseada em Bruxelas. O jazzista Toots Thielemans, conhecido por tocar violão e harmônica de boca, produziu em 1969, juntamente com a diva brasileira Elis Regina, o álbum Aquarela do Brasil – Elis Regina & Toots Thielemans, que foi gravado na capital sueca, Estocolmo, durante a turnê europeia de Elis no mesmo ano. A dupla foi acompanhada pelo quinteto Conjunto de Roberto Menescal, que se chamou Elis Cinco para essa ocasião. O álbum foi uma mistura de jazz belga e Bossa-Nova. Thielemans foi responsável por três solos de harmônica de boca e violão, incluindo um tributo a Elis Regina. Thielemans gravou mais dois álbuns em homenagem à música brasileira: Brasil Project 1 (1992) e Brasil Project 2 (1993). Neles, Thielemans tocou com colegas músicos brasileiros, como Ivan Lins, Djavan, Oscar Castro-Neves, Dori Caymmi, Ricardo Silveira, João Bosco, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Luiz Bonfá, Edu Lobo e Eliane Elias. O Festival Viva Brasil foi organizado em Bruxelas de 1988 a 1992. A primeira edição teve lugar de 29 de junho a 1º de julho de 1988 no Palácio de Belas Artes, com Beth Carvalho, Jorge Ben, Astrud Gilberto e Milton Nascimento no cartaz. A segunda edição – em 21 e 29 de junho e 3, 5 e 6 de julho de 1989 –, foi aberta por Marcia Maria na Grand Place de Bruxelas. Escola de samba Galeria, Maracatu Elefante Porto-Rico e Frevo Abanadores do Arruda também atuaram. O restaurante Do Brasil organizou uma noite musical quando recebeu no palco Hermeto Pascoal Grupo, bem como João Bosco & Caetano Veloso, com Carlinhos Brown na percussão. Astrud Gilberto & João Gilberto atuaram no prestigioso Palácio de Belas Artes. A terceira edição, de 21 de junho a 10 de julho de 1990, trouxe Ritmistas Pernambucanos (Escola de Samba do Recife), Tania Maria e Djavan ao palco na Grand Place; Mexe com Tudo e Joyce no Clube do Brasil; e Margareth Menezes, Gilberto Gil, Marisa Monte e Jorge Ben no Cinquentenário. A quarta edição do Viva Brasil, de 5 a 12 de julho de 1991, teve no cartaz Flávio Dell’Isola, Cheiro de Choro, Fuzuê, Margareth Menezes, Gilberto Gil e Márcia Maria, além de Milton Nascimento e Nana Vasconcelos, Osmar, Pau Brasil, Stéphane

Toots Thielemans recebeu uma encomenda na Embaixada do Brasil na Bélgica em 23 de janeiro de 2006, tocou junto com Gilbero Gil (fotografia de Vivian Oswald).

Martini & Papagaio & Denise Azul. Houve atuações no Clube do Brasil, Travers, o Palácio de Belas Artes, e Mirano. E o Viva Brasil 1992, finalmente, realizado de 30 junho a 10 de julho. A noite de abertura coincidiu nessa ocasião com a noite de encerramento do festival multicultural Couleur Café. Jorge Ben Jor e a Banda do Zé Pretinho e Kaoma atuaram na sala Halles de Schaerbeek; Marisa Monte e Batucada na Praça Muntplein; Cheiro de Choro na sala Beurscschouwburg; Rita Lee e Ricardo Silveira e The Latin-American All Stars na Ancienne Belgique; Marito Correa no Do Brasil, Kaoma e Batucada na cidade costeira de Blankenberge; Denise Blue na Les Tréteaux de Bruxelles; Ana Caram & Zizi Possi na Ancienne Belgique; Assa Brothers & Uakti no Estúdio 4 da então chamada emissora de televisão nacional BRT (na Praça Flagey). Ara Ketu, Nazaré Pereira + Sivuca também atuaram. Por fim, um lugar especial foi reservado para o Brazilian Project de Toots Thielemans, contando com a participação de Gilberto Gil, Chico Buarque, Eliane Elias, João Bosco, Ivan Lins e Oscar Castro-Neves. O guitarrista de jazz belga Philippe Catherine substituiu, no início do ano de 1976, Jan Akkerman na banda de rock holandesa Focus durante a gravação e a turnê do álbum Focus con Proby em 1977 e 1978. Com Catherine, a banda atuou para mais de 60 mil pessoas no Palácio das Convenções do Anhembi, durante o International Jazz Festival of São Paulo (também conhecido como São Paulo-Montreux Jazz Festival), ao lado de músicos como Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti, Stan Getz, Milton Nascimento, Raul de Souza, Luiz Eça, Helio Delmiro, Márcio Montarroyos, Wagner Tiso e Victor Assis Brasil.

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parte 7 – música

Em 1990, Catherine recebeu, junto com Stan Getz, o Bird Prize, durante o Northsea Jazz Festival. Catherine compartilhou seu amor pela Bossa-Nova repetidamente no palco com Toots Thielemans. Por exemplo, em 1993, durante um concerto na Flanders Expo, em Gand, com Thielemans e amigos. No seu primeiro álbum solo, Guitars Two (2008), Catherine interpretou igualmente números do guitarrista brasileiro Guinga, de Stephane Grappelli e de Fiszman Nicolas, além de composições originais (tal como a música acústica Lendas Brasileiras). Catherine voltou repetidamente a São Paulo, como em 2010, com interpretações de Guinga e Pixinguinha, juntamente com a orquestra Jazz Sinfônico no Auditório Ibirapuera. Two Man Sound foi um grupo belga pop constituído pelos músicos Lou Deprijck, Sylvain Vanholmen e Yvan Lacomblez. Tanto Deprijck como Vanholmen já tinham ganho alguma fama como produtor musical: o primeiro com músicos como Liberty Six, Lou & the Hollywood Banana’s e projetos como Viktor Lazlo, Plastic Bertrand; o segundo com The Wallace Collection, Octopus, e mais tarde com The Machines, Jo Lemaire & Flouze. A banda registrou seus maiores sucessos na década de 1970 com influências de disco, samba e bossa-nova. Mais elogios o trio recebeu com as canções “Copacabana” (1971), “Charlie Brown” (1976) e “Que Tal América” (1979). O medley “Disco Samba”, do álbum homônimo (1978), por outro lado, se tornou um grande sucesso na Europa no início dos anos 1980, com posições altas nas diferentes euro-charts entre 1983 e 1986, depois do grupo já ter parado de atuar. Henri Greindl, além de ser compositor, arranjador, produtor musical e engenheiro de som também ativo como músico (violão, baixo, cavaquinho), trabalhou com numerosos músicos de jazz no Brasil (Marimbanda, Caito Marcondes, Marito Correa, Léa Freire). Greindl, casado com a curadora de exposições brasileira Cristina Barros Greindl, foi membro fundador das bandas Cheiro de Choro, Parfum Latin, e Henri Greindl Quintet, todas influenciadas pelo gosto musical de Greindl por bossa-nova, jazz e rock progressivo dos anos 1970. O grupo Cheiro de Choro é composto por Daniel Stokart (flauta, sax), Anne Wolf (piano), Tonio Reina (bateria e percussão) e Henri Greindl (violão, baixo eletrônico, contrabaixo, cavaquinho). O flautista brasileiro Beto Cavalcante (Heriberto Cavalcante Porto Filho) também foi envolvido na fundação do grupo em 1990. Desde então, Cheiro de Choro tocou em vários festivais na Bélgica e no Norte da França (Viva Brasil, Belga Jazz Festival, Bruxelas Jazz Rallye, entre outros), com interpretações de Tom Jobim, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, misturando o jazz com diversas variantes da música brasileira, tais como samba, frevo, marcha rancho, partido alto, chorinho, maracatu, xote e baião. Depois do primeiro álbum, Chorinho para Tina (2001), a ênfase passou do choro ao jazz. O segundo projeto musical de Greindl, o grupo Parfum Latin, é composto por Pierre Bernard (flauta), Anne Wolf (piano, tecla-

dos e vocais), Charles Loos (piano e teclados), Jan de Haas (bateria, percussão e marimba) e Henri Greindl (baixo), novamente com influências musicais brasileiras. Finalmente, o terceiro projeto de Greindl, Henri Greindl Quintet, tem como membros Daniel Stokart (sax, flauta), Pierre Bernard (flauta), Theo de Jong e José Luis Montiel (baixo), Luc Vanden Bosch (bateria, percussão) e Henri Greindl (violão). Durante suas apresentações no Brasil, Greindl foi acompanhado por músicos locais: Vitor Alcantara e Josué dos Santos (sax e flauta), Zeli (contrabaixo) e Alexandre Damasceno (bateria). Além disso, Greindl fundou em 1997 o selo independente ‘Mogno Music’, que produziu as obras discográficas de seus diferentes grupos. Na compilação Inspiração Brasil (2005), Greindl tocou ao lado de músicos brasileiros ou outros músicos que se inspiraram na música brasileira (Tom Jobim, Benoit Mansion, Ronaldo Boscoli, Weber Iago, Pixinguinha, Baden Powell, Jose Eduardo Gramani e Charles Loos). Os rendimentos do álbum foram inteiramente transferidos à comunidade Corumbau, no Estado brasileiro da Bahia. O saxofonista John van Rymenant gravou o álbum Memory Stop (1982) durante oito meses de estadia no Brasil, em 1979, período no qual mergulhou no mundo dos sons brasileiros, criando uma fascinação pelo berimbau, que usou extensivamente nas gravações e depois tratou eletronicamente no estúdio em Bruxelas. O LP é classificado como de gênero de música eletroacústica, contendo músicas como “Electro Samba” e “Capoeira”. Desde 1996, Buscemi (pseudônimo de Dirk Swartenbroekx) ganhou fama com seus álbuns remix sob influência brasileira, chamados Late Nite Reworks, incluindo remixes no estilo bossa-nova de canções de músicos brasileiros como Marcos Valle, Rosalia de Souza, e Electro Coco. Juntamente com sua banda Squadra Bossa (trompetista Sam Versweyveld, baixista Hans Mullens e baterista Luuk Cox), DJ Buscemi atuou repetidamente em muitos festivais de grande dimensão na Bélgica bem como no exterior. Finalmente, Ziriguiboom, um sub-rótulo da editora discográfica belga Crammed Discs, foi fundado em 1998 por Vincent Kenis em colaboração com o produtor musical brasileiro Beco Dranoff. A editora foca em sons brasileiros inovadores que mesclam tradição e pop com elementos eletrônicos, sendo a bossa-nova uma parte importante dessa mistura. Músicos internacionalmente conhecidos como Bebel Gilberto (cujo álbum Tanto Tempo, de 2000, criou um avanço nacional), Trio Mocotó, Celso Fonseca, Bossacucanova, Zuco 103, Cibelle, DJ Dolores, Apollo Nove e Suba são alguns dos nomes famosos. Ziriguiboom já editou mais de 30 CDs e compilações, tais como Samba Soul 70, Brasil 2 Mil: Soul Of Bass-O-Nova) e Ziriguiboom: The New Sound Of Brazil. Bart Vanspauwen, graduado em Estudos Literários e em Estudos Culturais pela Universidade Católica de Lovaina, é Mestre e Doutorando em Etnomusicologia pela Universidade Nova de Lisboa, com pesquisa sobre a integração de músicos migrantes de língua portuguesa.

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música popular brasileira

A descoberta do Mangue Beat na Bélgica B a r t P. Va n s p a u w e n

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angue Beat é uma denominação para a cena musical eclética do Recife, capital de Pernambuco. Em 2000, foi apresentada pela primeira vez ao público através da emissora nacional flamenga Rádio 1 em dois programas semanais sobre músicas do mundo: “Club Tropical” (desde 1984) e “Cucamonga” (desde 1993), ambos produzidos e compilados por uma equipe liderada por Zjakki Willems, que estudou ciências políticas e relações internacionais na Universidade Livre de Bruxelas (ULB). Ele fez sua primeira série musical sobre Frank Zappa na década de 1970 para a emissora holandesa KRO e a emissora belga (flamenga) BRT 2. Como jornalista freelancer, ele também publicou nas revistas Knack e Oor. Entre 1986 e 1997, Willems estava na base da EBU World Music Workshop e participou da World Music Charts Europe. Além disso, ele produziu as gravações da emissora belga (flamenga) VRT nos festivais Cactus Festival, Couleur Café, Sfinks Festival, Antilliaanse Feesten, Open Tropen e Belgium Rhythm & Blues Festival. Entrementes, o programa Cucamonga recebeu os prêmios Zamu Award e Deutsche Welle Award, entre outros. Com a alteração do perfil da Rádio 1 em 2007, os programas de rádio de Willems foram substituídos por ‘Exit’, ‘ExitPlus...’ e ‘Exit­ PlusWorld’, que em 2011 se transformariam em ‘Closing Time World’. Em 2010 e 2011, Willems foi curador musical do festival cultural internacional Europalia.Brasil em Bruxelas. Willems entrevistou Chico Science, um dos fundadores do Mangue Beat, no Recife, em 1994. Desde então, o radialista fez cinco séries de rádio sobre a música brasileira: Rádio Brasil (2000), Rádio Mangue (2002), Sintonize Pernambuco (2003), SamPa Beats (2006), Rádio Mauritsstad (2009, para a emissora holandesa Rádio 6) e Rádio Mauritsstad (2011, versão francesa). Nessa série de rádio, a ênfase foi particularmente colocada na expressão musical no Recife, com a história do Mangue Beat, por Willems designado como o movimento recente mais importante na música brasileira desde o Tropicalismo do final da década de 1960. Como referido por Willems e seus colaboradores, tais como Jeroen Revalk e John Erbuer, Mangue Beat é sinônimo de uma geração de músicos que, desde a década de 1990, ganharam fama com uma mistura de música tradicional do Nordeste, pop e rock e outras influências do mundo inteiro. Dos programas de Willems surgiram Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, dois dos grupos principais, que elaboraram um manifesto cultural no qual viram o ecletismo do Nordeste como um motivo de orgulho, no nível regional, nacional e internacional. Por isso, festivais locais como Abril Pro Rock e Rec Beat, focaram em grupos inovadores de Pernambuco, Brasil e América Latina, enquanto a conferência Porto Musical (organizada pela Womex-World Music Expo, sediada em Berlim desde 2005) juntou anualmente músicos, investigadores e espe-

cialistas de marketing e tecnologia do mundo inteiro no período de carnaval. Além disso, Cucamonga e Club Tropical também abordaram fatos socioculturais e históricos sobre Recife que, de 1630 a 1654, foi a capital do Brasil holandês e era conhecida por Mauritsstad. Como referido pelos radialistas, foi nesse período colonial que os maracatus surgiram, cerimônias com influências europeias, africanas e indígenas em duas variantes: o maracatu urbano (maracatu nação), em homenagem aos reis africanos e como se tornaram escravos nas plantações de cana de açúcar; e maracatu do campo (maracatu rural), com a figura central do mestiço indígena (caboclo). Maracatu é tipificado musicalmente pela alfaia, um grande tambor portátil onipresente nos desfiles de maracatu durante o carnaval do Recife. Chico Science e seu grupo Nação Zumbi incorporaram essa alfaia no mangue beat, junto com outras percussões indígenas. Segundo Willems, velhas e novas influências culturais foram recicladas musicalmente para reforçar a identidade local do Recife. Think of One, um grupo de Antuérpia, foi inspirado pelo ecletismo popular do mangue beat. Estimulado por John Erbuer, o cineasta de Cucamonga, o coletivo, que já havia colaborado com músicos marroquinos sob o nome Marrakech Emballages Ensemble, decidiu fazer dois álbuns com músicos locais no Recife, seguido de duas turnês pela Bélgica e Europa. A BBC World Music Award, em 2005, apenas aumentou o reconhecimento do grupo. A equipe de Cucamonga também fez um documentário sobre as estadias de Think of One no Recife. Para o primeiro álbum, Chuva em Pó, a banda passou seis semanas no Recife para ensaiar com os músicos de lá, gravar um CD e fazer uns shows. Durante as últimas quatro semanas, o cantor-guitarrista do grupo, David Bovée, falou semanalmente por telefone sobre o avanço do projeto e a interação musical durante a emissão de Cucamonga. John Erbuer registrou essa aventura musical em um documentário que foi exibido no lançamento de Chuva em Pó no dia 25 de maio de 2004, na sala de concertos Ancienne Belgique em Bruxelas. O álbum trouxe ritmos e instrumentos (como a alfaia e o agogô) do Recife, e contando igualmente com uma participação de Siba, ex-cantor do mangue beat grupo Mestre Ambrósio. Durante a turnê belga, Think of One compartilhou o palco com a Dona Cila do Coco, então com 60 anos, o percussionista Carranca, e as backing vocals Christina Nolasco e Lulu Araújo. Think of One, por sua vez, tinha como membros David Bovée (voz e violão), Eric Morel (saxofone), Roel Poriau (bateria, kwita, reco -reco), Tobe Wouters (trombone, tuba), Tomas De Smet (violão, baixo). O grupo ainda atuou em Antuérpia (na sala Roma), Lovaina (festa do mundo no parque Bruul), Kortrijk (Sinksen 04), Gand

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parte 7 – música

John Erber filmando em Pernambuco.

(Vooruit), Mol (Het Getouw), Bruges (De Nacht) e em festivais de projeção nacional como Afro Latino, Polé Polé, Gentse Feesten, Dour e Dranouter. Para o próximo álbum, Tráfego, que foi lançado pela editora belga Crammed Discs (que também editou discos de outros músicos brasileiros, como Zuco 103, Bebel Gilberto, DJ Dolores e Suba), Think of One voltou para o Brasil. O programa Cucamonga novamente transmitiu um telefonema semanal com o grupo a partir de Recife e trechos musicais exclusivos. Participaram do álbum novamente Dona Cila do Coco (voz), Alê Oliveira, Lucie e Carolina de Renesse, Fernanda Boechat, Ganga Barreto, Sheyla Vidal e Cris Nolasco (backing vocals), Ricardo Lourenço (violão), Sergio Lemos, Dom Carlos e Hugo Carranca (percussão), David Bovée (violão, teclados, voz), Tomas De Smet (baixo, teclados), Bart Maris (corneta, trompete), Bruno Vansina (saxofone barítono), Eric Morel (saxofone), Jon Birdsong (corneta, trompete), Marc Meeuwissen e Stefaan Blancke (trombone), Tobe Wouters (trombone, tuba), Michael Weilacher (marimba, vibrafone), Peter Vandenberghe (órgão Hammond), Pitcho Bovée (efeitos de som) e Roel Poriau (bateria, teclados, triângulo). Think of One atuou como showcase na conferência musical Porto Musical em março de 2006 no Recife. Na Bélgica, a banda atuou nas principais salas de concertos de Bruxelas (Ancienne Belgique), Antuérpia (Petrol), Gand (Vooruit), Lovaina (Het Depot), Diksmuide (Ten Vrede), bem como em festivais multiculturais como Mano Mundo (em Boom) e Couleur Café (Bruxelas). Entretanto, outros músicos do Recife também vieram à Bélgica. DJ Dolores e Orquestra de Santa Massa atuaram, em 2002, nos clubes Nijdrop em Opwijk e 4AD em Diksmuide, em 2003 no festival multicultural Sfinks (Boechout, perto de Antuérpia) e,

em 2007, no Cactus Festival (Bruges), desta vez sob o nome de DJ Dolores & Aparelhagem. Aliás, vários outros artistas e bandas pernambucanas passaram por Sfinks Festival, como Chico Science e Nação Zumbi (1995), Mestre Ambrósio (1996), Lenine (2000), Mundo Livre S/A (2000), Cordel do Fogo Encantado (2001), Silvério Pessoa, ex-cantor do grupo Cascabulho (2003) e a Banda Eddie (2006). Diversos grupos de maracatu e outros desfiles tradicionais também chegaram até Sfinks, entre eles: Maracatu Nação Pernambuco (1998, que também tocou no Festival Couleur Café no mesmo ano), Maracatu Leão Coroado (2002), Maracatu Estrela Brilhante (2005) e a Afoxé Iyê de Egba de Olinda (2006). O programa Cucamonga, entretanto, tentou construir uma ponte musical entre RecBeat e a Bélgica: o grupo belga Madensuyu na edição de 2010 de RecBeat, em Recife e São Paulo, e havia também grupos do Recife nos palcos do festival Gentse Feesten em Gand. Finalmente, em 2011, foram programados vários atos musicais de Recife no Europalia.Brasil em Bruxelas, do qual Zjakki Willems era o curador musical. Ficaram agendadas apresentações da Banda Eddie, DJ Dolores e Renata Rosa em Gand (na sala Handelsbeurs), Turnhout (Warande) e Amsterdã (Melkweg), que, no entanto, foram cancelados na última hora pela organização. Para outras atuações, como a de Siba em Bruxelas (Palácio de Belas Artes), apareceram poucas pessoas, que também foi o caso de Renato Borghetti, Olivinho e Lulinha Alencar. Willems observou que, embora houvesse grandes concertos de músicos brasileiros como CéU, Samba Chula de São Braz e Tom Zé, estilos musicais como maracatu, funk carioca, bossa-nova, DJ sets ou hip hop foram pouco promovidos.

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música popular brasileira

A música brasileira nos festivais B a r t P. Va n s p a u w e n

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s irmãos Stephen e David Dewaele, DJs fundadores dos grupos de eletro-rock Soulwax e 2 Many DJs, são frequentes em São Paulo (por exemplo, com Soulwax no Ultra Music Festival na Arena Anhembi, em 2011). Soulwax conta, além dos irmãos Dewaele (filhos do celebrado radialista belga Zaki), com Stefaan Van Leuven (baixo) e Steve Slingeneyer (bateria). Com o 2 Many DJs, têm uma parceria com o Mixhell, projeto eletrônico paulista de Iggor Cavalera (ex-Sepultura) e sua esposa, Laima Leyton. As contínuas viagens a São Paulo resultaram em um remix intitulado ‘Batuta Discos’, no qual os irmãos Dewaele fazem mash ups de discos raros de MPB (Tom Zé, Caetano Veloso e Milton Nascimento, entre outros) que compraram nas galerias do rock paulista. O disco vem acompanhado de um documentário que os Dewaele fizeram andando por São Paulo. Lieven Verstraete, apresentador do jornal de televisão flamenga, também viajou a São Paulo em 2007 para o programa Cucamonga de Zjakki Willems (Rádio 1). Sua pesquisa na cena musical underground da cidade resultou em uma série de relatórios apresentados em Cucamonga, e nas compilações Braz-ill (que redigiu para a revista de música belga Gonzo Circus em 2007) e Satanic Samba – São Paulo extravaganza (publicado pelo rótulo Lowlands, de Antuérpia, em 2008) –, com artistas como Tom Zé, Cidadão Instigado, Bonde do Rolê, Vurla, Krautdemonish, Cansei de Ser Sexy e Instituto vs DJ Dolores. Verstraete, desde então, não só divulgou seu trabalho como DJ em clubs e festivais belgas (por exemplo, Jazz Festival Ghent 2009 e Dranouter 2013), como apresentou o programa ‘ExitPlusWorld’, também sob tutoria de Zjakki Willems. A banda Arsenal, projeto dos produtores Hendrik Willemyns e John Roan, fizeram a ligação com o Brasil através de uma mistura de pop, hip hop e música do mundo nos discos Oyebo Soul (2003) e Outsides (2005). Os singles “A volta”, uma colaboração com Mario Vitalino dos Santos, um cantor e compositor de Salvador, Bahia, e “Mr. Doorman” se tornaram hits. Com Outsides, acompanhado de um DVD em que foram apresentados vocalistas convidados – incluindo Vitalino dos Santos, em Salvador –, Arsenal em 2005 ganhou o prestigioso Zamu Award.

Ao vivo, o grupo fez sucesso com a ajuda da cantora Leonie Gysel, com o público recitando as letras em português. Atuou várias vezes no maior festival belga, Rock Werchter, bem como em outros festivais como Pukkelpop, Marktrock, Dranouter e Lokerse feesten. O Festival Sfinks em Boechout (perto de Antuérpia), dedicado à ‘música do mundo’, divulgou desde os anos 1980 vários grupos e artistas brasileiros, como Banda Eddie, Carlinhos Brown, Chico Science & Nação Zumbi, DJ Dolores & Orchestra Santa Massa, Fernanda Abreu, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Lenine, Maracatu Leão Coroado, Maracatu Nação Pernambuco, Mestre Ambrosio, Mundo Livre s/a, Olodum, Pedro Luis e A Parede, Samba de Coco Raízes de Arcoverde, Skank, Ylê de Egbá, Zeca Baleiro e Zuco 103. Anualmente, o festival dedica uma noite à música brasileira sob o nome ‘Festa do Brasil’. Outros festivais belgas também receberam músicos brasileiros, como foi o caso de Couleur Café em Bruxelas, que projetou no palco Daniela Mercury (1998 e 2002), Carlinhos Brown (2001), Zuco 103 (2001 e 2002), Gilberto Gil e Ivete Sangalo (2006). O Festival Braziliaanse Feesten em Brecht (perto de Antuérpia), também trouxe ao palco música brasileira desde 2008. A popularidade dos projetos musicais em torno dos irmãos Max e Iggor Cavalera (Belo Horizonte/São Paulo), nomeadamente as bandas Sepultura, Soulfly e Cavalera Conspiracy, apesar de ser considerada música ‘pesada’, ganhou evidência a partir de 1994, com passagens quase anuais nos principais festivais e clubs da Bélgica até 2012. Especialmente a obra Roots (1996) foi tocada pelas importantes rádios nacionais, fazendo com que Sepultura fosse a primeira banda de metal a estar nos festivais mainstream belgas, com destaque para o festival duplo Rock Torhout/Werchter em 1994 e 1996. Muitos jovens conheceram melhor o Brasil pelo grupo, não só pela bandeira do Brasil no palco e os instrumentos usados, tais como o berimbau e a alfaia, mas também pelo relato da história sociocultural e racial do Brasil nas músicas. Para a faixa “Roots Bloody Roots”, Sepultura tocou junto com Carlinhos Brown (Timbalada), enquanto o primeiro guitarrista da banda Soulfly era Lúcio Maia, da banda recifense Nação Zumbi, ícone do mangue beat. Além disso, os irmãos Cavalera se tornaram fortes amigos dos irmãos Dewaele (Soulwax, 2 Many DJs).

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parte 7 – música

Os músicos brasileiros residentes na Bélgica B a r t P. Va n s p a u w e n

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ão vários os músicos ou grupos brasileiros que residiram, permanentemente ou não, na Bélgica, resultando em diversas gravações, colaborações e projetos. Marcelo de Vasconcelos Cavalcanti Melo, violão e voz predominante do grupo de música do Norte do Brasil, Quinteto Violado, passou uma temporada de estudos na Bélgica e na França antes de decidir apostar na música. Em Paris, fez contato com a cantora francesa Françoise Hardy, que lhe abriu portas para gravações de discos e apresentações nas mídias locais. Na Bélgica, conheceu músicos cabo-verdianos engajados na luta de libertação das colônias portuguesas na África, gravando em conjunto o LP Stora Stora, em Roterdã, na Holanda. O grupo Samboa, de Augusto Gonçalves e sua esposa belga Liliane Fontaine, toca vários gêneros musicais do Nordeste brasileiro, sem esquecer o samba. Samboa também criou uma escola de samba, desfilou muito, se apresentando, por exemplo, no Parc Royal no dia 21 de julho (feriado nacional da Bélgica). Gravaram três CDs. O grupo Sergio Lemos e Goiabada, formado por cinco músicos, toca samba tradicional e popular. Lemos dirigiu, durante muitos anos, a escola de samba da Vila Isabel, e se casou com uma belga. Pau Xeroso canta forró tradicional. O grupo foi fundado por três brasileiros – Augusto Rego (zabumba e canto), Paulinho da Cuíca (percussão e canto) e Dioni Costa (canto) – que se especializaram no forró tradicional de Pé de Serra, mas também interpretam outras músicas e danças típicas do Norte do Brasil. O grupo conta ainda com o belga Maurice Blanchy, mais conhecido como ‘Zé Momo’ (acordeão), Marat Araujo (baixo e canto) e Flávio de Souza (viola e canto). Paulinho da Cuíca também é responsável pelo grupo ambulante de percussões Batuqueria, com elementos brasileiros e belgas, tocando um repertório tradicional. Fora isso, há muitos grupos de forró contemporâneo, assim como de música sertaneja, que se apresentam nos numerosos cafés e restaurantes populares brasileiros na Bélgica. Em 2012, por exemplo, o ViaVia Café-Micro-Marché, em Bruxelas, foi o palco de vários projetos musicais, como a ‘Roda de Choro de Bruxelas’, projeto animado pelo músico carioca Pedro Moura, e o ‘Via MPB’ com o grupo que conquistou o 1º lugar no Festival de Música

Latina em Bruxelas, o Trio Santa Pua. São vários os cantores de MPB, como Sergio Bastos, Dioni Costa, Pedro Moura, Solania, Cintia Rodriguez, o belga Reynald Halloy, Maria Teresa e Grafite. Outros músicos brasileiros se dedicaram na Bélgica a determinados instrumentos ou repertórios. Osman Martins, especialista do cavaquinho, já gravou vários CDs, se apresentou no Festival Couleur Café, e está na programação da asbl Muziekpublique, onde também dá aulas de música. Seu último CD, Motivo de Alegria (2008), consiste em chorinhos. Martins também é ativo com os grupos Parceria e Samba de Candei, tendo tocado muito com o músico belga Max Blesin. Alexandre Boff, sobrinho de Leonardo Boff, criou o grupo Alek et les japonaises, juntamente com sua companheira japonesa, cantando em japonês. No campo do jazz, o compositor e guitarrista Daniel Miranda gravou vários CDs e toca com músicos brasileiros e belgas. Seu espetáculo ‘Le Brésil en 17 Cordes’ foi integrado no quadro das ‘Jeunesses Musicales de Belgique’. Victor da Costa é professor de guitarra nas Academias de Bruxelas e Antuérpia; e também gravou um CD com composições suas, chamado Caçamba, com uma participação do guitarrista de jazz belga Boris Gaquere, Cláudio Rocha (saxofone e flauta, instrumentos de metal) e Osvaldo Hernandez, um mexicano que se especializou em percussões brasileiras. Em 2011, Boris Gaquere gravou o CD Tempo Feliz com o percussionista brasileiro Renato Martins. Sobre os corais, a brasileira Maria Helena Schoeps dirige o coral Anaconda, com um repertório variado – canções francesas, música popular e sacra brasileira – enquanto Flávio de Souza, que canta, toca violão e é compositor, dirige igualmente, com sua esposa, Ylva Berg, um coral onde cantam músicas de vários países, resultando no CD Ritmus Project. Por fim, muitos músicos brasileiros estudaram na Bélgica, como, por exemplo, a pianista Elizabeth Fadel e o saxofonista Filipe Nader. (Agradecimento a Susana Rossberg pelas informações.)

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cinema atual

parte 8

Cinema e Televisão

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parte 8 – cinema e televisão

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Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil na Bélgica Susana Rossberg

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Bélgica tem uma tradição pictural importante, e o cinema belga não escapa a essa tendência. Quando cheguei em Bruxelas, em 1967, eram os documentaristas da televisão belga que iam filmar no Brasil. Muitos deles, como Roger Beeckmans e André Dartevelle, são conhecidos e respeitados. Entrei na escola de cinema INSAS (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle) ao mesmo tempo que duas cariocas, Eunice Gutman, documentarista que retornou ao Brasil, e Regina Veiga Ribeiro. Estudávamos edição de filmes. Penso que fomos os primeiros brasileiros nessa escola, mas outros passariam por lá assim como por outras instituições: Gustavo Mesquita de Siqueira, atualmente diplomata; o diretor de fotografia Edgar Moura; o editor Antonio Carlos Bernardes, que se tornou diretor de teatro infantil no Rio; dois latino-americanos que se radicaram em São Paulo: o diretor de fotografia argentino Hugo Kovensky e a editora equatoriana Veronica Saëns. Estudou igualmente no INSAS Aube Dierckx, belga criada em São Paulo, que se tornou editora, depois chefe do departamento de edição na televisão RTL, assim como dois de seus sobrinhos, Veronica e Felipe Dierckx, ambos

brasileiros, que se formaram no INRACI (Institut National de Radioélectricité et Cinématographie). A Bélgica, um pequeno país, possui muitas escolas de cinema. O interesse pelo Brasil, na Bélgica, é crescente. Atualmente existe um programa de intercâmbio, Visões Cruzadas, entre alunos de cinema da Universidade de São Paulo (USP) e das escolas belgas INSAS e Sint Lukas. Poucos dos que aqui estudaram permaneceram, mas nos últimos anos chegou uma nova leva de cineastas, tais como Barbara Ferreira Avelino, Cristina Dias, Diego Tchole e Heron Ferreira. Maïa Martins, que estudou no IAD (Institut des Arts de Diffusion), tornou-se diretora na televisão belga RTBF. Além dela e de mim, que fiz carreira sobretudo como editora, poucos conseguem viver de cinema. Felipe Mafasoli acaba de terminar seus estudos de diretor na escola flamenga RITCS, e também atua como ator. Ermeson Vieira, chegado há pouco, após estudos de direção em Londres, está começando a lançar sua carreira aqui. Como no Brasil, trabalhar em cinema na Bélgica, em tempos de crise, não é fácil.

Acima, “Capoeira”, e à direita “Cantores com Fabinho” (fotos de Simone Krunas).

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parte 8 – cinema e televisão

O Brasil sempre interessou aos belgas, ávidos assistentes de um projeto cinematográfico chamado Exploração do Mundo, criado em 1950. No entanto, a maioria dos diretores cujos filmes são ainda hoje apresentados é francesa. Diversos antropólogos belgas se empolgaram pelo Brasil e fizeram filmes como parte de seu trabalho – por exemplo, Dominique Tilkin Gallois, professora na USP, e Gustaaf Verswijver, curador do Museu de Arte Africana de Tervuren, na Bélgica. Ambos trabalham com indígenas brasileiros. Outros cineastas belgas, tais como Damien Chemin, Nicodème de Renesse e Nicolas Hallet, se radicaram no Brasil e construíram suas vidas lá. Seguem depoimentos de algumas dessas pessoas, cineastas experimentados ou principiantes. Nota-se que os documentaristas belgas que filmaram no Brasil tendem a ser politicamente

engajados e preocupados com os problemas sociais do nosso país. Uma das grandes lacunas nessa série de depoimentos é Jean­-Pierre Dutilleux, eminente documentarista, particularmente interessado pelas tribos indígenas. Seu documentário Raoni, feito em 1978, muito premiado, foi candidato a um Academy Award nos Estados Unidos. Dutilleux fez diversos filmes na Amazônia e escreveu um livro, Raoni, les Mémoires d’un Chef Indien, infelizmente ainda não traduzido para o português. Outra lacuna é a falta de um depoimento de André Dartevelle, infelizmente doente e incapacitado de escrever. Dartevelle realizou dois documentários que nos dizem respeito: um, nos anos de 1980, sobre o retorno do sindicalista José Ibrahim, refugiado na Bélgica, ao Brasil; o outro, sobre a grande seca de 1984 no Nordeste e as revoltas da fome que dela resultaram.

“Capoeira, Bel Horizon” Basile Sallustio

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ui confrontado pela primeira vez com a capoeira em 1994 durante o festival Couleur Café, por intermédio de um amigo participante dessa arte, e fui conquistado por ela. O que me impressionou, como todo neófito face ao espetáculo desses dançarinos-acrobatas, foi a beleza bruta dos corpos lustrosos viravoltando ao rés do chão e no espaço. Este encontro teria permanecido como a lembrança de um bom momento visual artístico no qual se mesclam cantos subjugantes, músicas enérgicas e piruetas estéticas se os membros do grupo que se apresentava não estivessem movidos por um projeto social destinado a ajudar crianças de rua em Belo Horizonte, Minas Gerais. A ideia do filme nasceu da conjunção desses dois elementos: a beleza do gesto artístico, baseado numa filosofia de busca de equilíbrio do indivíduo, aliado à generosidade de um projeto social. Todos os ingredientes necessários e reunidos para que eu iniciasse um filme, o que me faltava era realizá-lo. Durante a elaboração do roteiro e, em seguida, do filme, eu não devia apresentar a capoeira como a panaceia para os problemas que afrontam as megalópoles brasileiras no que se refere ao destino das crianças abandonadas e tudo o que diz respeito à sua educação. Precisava apresentá-la como uma ação positiva e construtiva destinada a recuperar, às vezes até inculcar, nos adolescentes e nas crianças os fundamentos de uma identidade pela cultura, sem a qual é bem difícil chegar a se posicionar na sociedade. Não se tratava, tampouco, de fazer uma apologia da violência dos bairros vulneráveis de Belo Horizonte, e de se comprazer numa espécie de voyeurismo doentio, mas de expor um método, de abordar o problema da educação das crianças e, sobretudo, de divulgar os resultados e as esperanças encorajadores obtidos pela utilização da arte e, em particular, da capoeira.

Cartaz do filme “Capoeira, Bel Horizon”, de Basile Salusttio.

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A associação brasileira “Porto de Minas”, em Belo Horizonte, propunha não somente um complemento possível ao sistema educativo, que o apresentava desde 1984, de uma maneira original, como propunha um novo estilo de colaboração dentro da sociedade. O procedimento utilizava todas as características do setor informal – eficiência, entusiasmo, o método de “dar um jeito” –, mas cultivava, no entanto, a ambição de consolidar sua estrutura, a fim de assegurar a perenidade do projeto. Três eixos principais regeram a fabricação desse filme. Em primeiro lugar, o aspecto de descobrimento que representa a capoeira. Poucos estrangeiros, hoje em dia, conhecem o fenômeno brasileiro, a sua origem e a sua evolução durante os séculos. Em segundo lugar, o aspecto “retorno à nossa sociedade”, ou seja, de que maneira as sociedades ocidentais eram e ainda são solicitadas pela capoeira. É por intermédio de seus praticantes brasileiros que a encontramos, que a descobrimos, e, particularmente através do

percurso de um jovem capoeirista de Belo Horizonte, que a “exporta” para a Europa, que a seguimos em Bruxelas. Em terceiro lugar, esse filme, que se debruça sobre a problemática das crianças de rua no Brasil, não as mostra sob os tristes chavões, como frequentemente certos documentários e certas revistas os fazem, isto é, como delinquentes, ladrões, drogados e assassinos. Essa dura realidade não é iludida no filme, porém, esse aspecto não podia ser considerado como a única verdade. Capoeira, Bel Horizon é, nesse sentido, uma resposta a essa situação, e uma tentativa de reequilibrar a informação. Enfim, trata-se principalmente de um filme que nos faz ver protagonistas generosos e, sobretudo, portadores de uma ideia de esperança. No mundo (audiovisual) no qual vivemos, feito, mais do que no passado, de abundância e ebulição de imagens, precisamos e muito de imagens construtivas e positivas. (Tradução Susana Rossberg)

O meu Brasil Roger Beeckmans

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o avião que me leva paro o Brasil, estou sentado entre Pierre Manuel e um jornalista alemão do qual esqueci, rapidamente, o nome. Partimos para uma reportagem para o programa 9 Milhões, da Westdeutscher Rundfunk – WDR. Não me lembro da data exata. Só sei que o Brasil está vivendo sob a ditadura de Castelo Branco, pouco depois do golpe de estado militar, com a bênção dos Estados Unidos. Estamos em plena Guerra Fria e a ditadura evoca a luta contra o comunismo em nome da segurança nacional. O que sei do Brasil, para onde vou pela primeira vez? De Nova York até o Rio, tenho o tempo de me informar e de sonhar. Conheço o Cinema Novo, Lima Barreto e Glauber Rocha. Vi O Cangaceiro e Deus e o Diabo na Terra do Sol, li Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, antes, ou depois, dessa viagem. Tive a sorte, mais tarde, de encontrar Jorge Amado duas vezes. Li os relatos sobre filmagens no Brasil de um dos meus autores favoritos, Blaise Cendrars. Eu conheceria Brasília, capital criada em pleno deserto, durante uma segunda viagem. Descubro primeiro os cartões postais do Rio: o Pão de Açúcar e a praia de Copacabana. Logo em seguida, com o jornalista alemão, “o exército ao serviço da população” em Minas Gerais e, com Pierre Manuel, o Sertão, os nordestinos e Dom Helder Câmara. A Teologia da Libertação fez dele um adversário do regime. Padres ao seu redor, engajados na luta para devolver a dignidade aos pobres, foram assassinados. Dom Helder nos emprestou seu jeep para irmos filmar nos vilarejos nordestinos. As primeiras imagens do Nordeste me parecem familiares por

tê-las visto no cinema. No primeiro dia, cruzamos com um jeep militar. Deitado em cima do capô estende-se um homem morto. Um camponês. Filmamos, e nos inteiramos da violência que reina na região. O que me impressiona nos vilarejos é a pobreza, as casas de terra pisada e os cemitérios com lápides de mármore. A explicação nos é dada rapidamente: vive-se na terra, na miséria, durante 40 ou 50 anos, e no paraíso eternamente. Regressamos com essa reportagem, dedicada a essa luta. Voltei várias vezes para o Brasil, com o apoio da Unicef. Filmei crianças procurando comida no lixo, no meio da indiferença geral. O que revoltava os transeuntes era a presença de uma equipe de televisão, necessariamente estrangeira. Íamos dar, novamente, uma imagem negativa do país, enquanto havia tanta coisa bonita para mostrar. Coisas que também filmei, para o programa Visa pour le monde. No Brasil, reencontrei Maurice Vaneau. Maurice tinha partido com a companhia teatral Rideau de Bruxelles, como ator e diretor. Estabeleceu-se no Brasil, nos teatros do Rio e de São Paulo, e tornou-se diretor do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Seu trabalho, durante anos, numa novela, o tornaram célebre. Sua fama nos foi bem útil. Graças a ele, pude filmar jovens prostitutas nas ruas de Recife. Com Marc Augé e Jean-Paul Colleyn, filmei o candomblé, as idas e voltas religiosas entre a África e o Brasil, em Belém, onde pude contemplar o Amazonas, esse rio lendário, majestoso. (Tradução Susana Rossberg)

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parte 8 – cinema e televisão

As questões indígena e ambiental Te x t o s o b r e B a b i A v e l i n o

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ascida em 1975, em São Paulo, e graduada em Ciências da Comunicação, Babi Avelino sempre esteve interessada na imagem fotográfica e audiovisual. Depois de atuar, em 1996 e 1997, como fotógrafa publicitária, lança-se no fotojornalismo, trabalhando como free-lance para diversos jornais e revistas de São Paulo e da Europa, na Bélgica, na Holanda e na França. Em 1999, surge-lhe a ideia de estudar cinema. Babi decide deixar o Brasil e muda-se para Bruxelas. Como autodidata, começa a realizar vídeos documentários independentes. Seu primeiro trabalho, São 9.859,47 km, é um documentário filmado no Brasil e na Bélgica, em 2004-2005, cujo título evoca a distância exata entre a cidade de Liège e a megalópole de São Paulo, dois lugares, em ambos os lados do Atlântico, onde Babi vive e trabalha. Em 2002, depois de uma viagem ao coração do país natal, cresce nela o desejo de mostrar e divulgar o Brasil. Assim, torna-se

“Ikp 2”, de Babi Avelino.

Cartaz do filme “La visite du Roi”, design gráfico de Deborah Avelino e fotos de Leopoldo III e Babi Avelino.

artista membro da ONG Nhandeva, que incentiva projetos para o resgate das tradições do povo Guarani M’bia do Rio de Janeiro. Desde então, seu trabalho é um espelho militante da causa indígena e da questão da diversidade cultural. Desenvolve a instalação fotográfica Mensagens, apresentada pela primeira vez na 5ª Bienal Internacional de Fotografia e Artes Visuais de Liège, que é o resultado do encontro, em 2004, com diversas nações indígenas do Brasil. Em 2006, Babi torna-se também membro da ONG belga ICRA International, que luta pelos direitos dos povos indígenas ao redor do mundo. De 2006 a 2008, Babi Avelino realiza um segundo documentário independente, denominado Elo, em parceria com o videasta Marica Kuikuro e o músico Douglas Froemming. Este trabalho foi exibido em diversos centros culturais da Europa e no programa A’UWE da TV Cultura, destacando-se pelo fato de traçar, através de múltiplos pontos de vista, um retrato da relação extremamente frágil entre os indígenas e as áreas rurais e urbanas do Mato Grosso. Há dez anos, Babi Avelino está plenamente envolvida com a questão indígena e ambiental no Brasil, enfocando em seu trabalho de artista/documentarista (foto e vídeo), as questões socioambientais. Em Amazonien, exposição individual apresentada na 5ª Bienal Internacional do Design de Liège, em dezembro de 2010, Babi divulga fotos e vídeos questionando nossa relação com a diversidade cultural dos povos indígenas e com a natureza, tão degradada pela ação do não indígena. Essa mesma exposição foi apresentada em dezembro de 2011, no âmbito do festival Europalia.Brasil, no Espace Senghor, em Bruxelas, para a abertura do concerto de Marlui Miranda. Em outubro de 2011, Babi finaliza, com o apoio da Fundação Leopold III para a Conservação da Natureza de Bruxelas, um novo projeto documentário independente em vídeo, A Visita do Rei.

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Fotografia “Interior”, de Babi Avelino. Abaixo, fotografia “Mão”, de Babi Avelino.

O filme relata de maneira singular a história de um rei belga em visita à região do Xingu em 1964. Quarenta e cinco anos depois, Babi Avelino, com algumas fotos da época debaixo do braço, parte em busca destes personagens, testemunhas de uma história desconhecida. Em junho de 2012, o filme é premiado como melhor direção de média-metragem na 7ª Edição do Festival Cine MuBE Vitrine Independente de São Paulo. De modo geral, utilizando a fotografia e o vídeo como ferramentas para transmitir reflexões sobre questões ecológicas e a diversidade cultural, Babi Avelino documenta, com imagens plásticas, estéticas e com certa fascinação por planos fechados, o universo contemporâneo dos povos indígenas do Brasil, mostrando assim toda sua sensibilidade de artista/documentarista engajada. Sua última obra audiovisual, Dimension Nord, é um curta-metragem documentário realizado no âmbito de um seminário com o documentarista belga Thierry Michel, em 2012, na ULG Universidade de Liège. Considerando-se pluridisciplinar, Babi Avelino está em constante busca, criando espaços para expressar, da maneira mais autêntica possível, as experiências vividas em suas imagens. Já não lhe basta a imagem propriamente dita; por isso Babi Avelino se aproxima do transdisciplinar, participando de oficinas e de algumas residências na Academia Real de Belas Artes de Liège, onde o vídeo e a escultura se fundem para proporcionar novas possibilidades criativas em videoarte. Trabalha, assim, a imagem fotográfica e audiovisual de maneira mais plástica e não menos engajada. Babi é uma artista belgo-brasileira. Após oito anos de casamento com um belga, torna-se mãe. Ela vive e trabalha entre Liège e São Paulo.

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A mensagem poética de Oscar Niemeyer M a r c - H e n r i Wa j n b e r g

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pós ter realizado um filme sobre o fotógrafo judeu soviético Evguény Khaldéi, que tirou a foto símbolo do fim da Segunda Guerra Mundial, aquela na qual se vê um soldado soviético segurando uma bandeira no alto do Reichstag, procurei novamente um assunto sobre um homem para o qual a vida, a obra e a história de seu país estavam intimamente ligadas. Foi assim que tive a ideia de fazer um filme sobre Oscar Niemeyer. Me surpreendi, pois não existia um verdadeiro filme sobre ele. Havia numerosas reportagens, mas um filme que falasse de sua vida, de seu aprendizado em Arquitetura, da arquitetura moderna, do Rio de Janeiro, do seu amor pelas mulheres, de sua relação com Juscelino Kubitschek, da ditadura, do Tropicalismo etc., esse filme ainda não tinha sido feito. O caminho estava livre, me precipitei nele com muito interesse. Como não ter prazer fazendo um filme num país cuja simples evocação do nome, Brésil, Brazil, Rio, Pampulha, faz viajar, sonhar, dançar. E, quando o guia se chama Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares, todos os componentes da mestiçagem, do gênio, da poesia, do humor, do exotismo e da consciência estão presentes para fazer uma viagem, uma bela viagem inteligente pela história de um país que afrontou a ditadura, que inventa, que pulsa. O filme que fizemos juntos, Oscar Niemeyer, un Architecte Engagé dans le Siècle (Oscar Niemeyer, um Arquiteto Engajado no Século) deu a volta ao mundo, recebeu muitos prêmios internacionais, mas nunca foi mostrado na América Latina ou na América do Norte. O produtor brasileiro preferiu utilizar o material filmado para fazer outros filmes sobre Oscar, como, por exemplo, Oscar

Niemeyer, o arquiteto do século, que significa outra coisa que não um arquiteto “engajado no século”. Uma relação muito amigável se formou com Oscar. Dez anos após ter realizado o filme, em 2010, voltei para o Rio, com minha filha Lucie, para cumprimentá-lo. Imediatamente, ele sugeriu que fizéssemos um novo filme juntos. A ideia me entusiasmou; enquanto o primeiro falava de Niemeyer, de sua obra e de seu compromisso político, o novo, independente do primeiro, falaria da galáxia de engenheiros, técnicos e arquitetos que gravitavam em torno de Oscar. Era fascinante ver esse homenzinho, de 103 anos, desenhar um projeto que, em seguida, era discutido tecnicamente e filosoficamente com seus colegas e amigos arquitetos e poetas: Haron Cohen, Jair Valera e muitos outros. Porque um gesto arquitetural, para Oscar, não se limitava a uma obra arquitetural, mas devia, igualmente, se traduzir numa mensagem poética. Oscar se empolgou pelo projeto e as pessoas que o cercavam igualmente: Vera, Jair, Haron. Eles sentiam a excitação de Oscar por esse novo trabalho. Cada encontro cotidiano trazia consigo novas ideias. Fiquei fascinado em ver que ele não esquecia nada do que tínhamos dito. Não hesitava em voltar a falar de ideias discutidas na véspera; tinha refletido, e me propunha novas perspectivas de roteiro. Filmei essas entrevistas com Oscar, provavelmente as últimas longas entrevistas que ele tenha aceitado fazer. Já estava doente, um colete cingia-lhe o peito. Não achei financiamento para esse novo filme. Uma pena, uma grande pena. Obrigado, amigo Oscar, pela confiança que me deste. (Tradução Susana Rossberg)

Marc-Henri Wajnberg e Oscar Niemeyer.

Um gesto arquitetural, para Niemeyer, devia se traduzir numa mensagem poética.

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Sobre as “pessoas sem voz” no Brasil Lazhari Abdeddaïm

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m 1998, a Casa da América Latina de Paris pediu-me para participar, como fotógrafo, da exposição organizada pelos 500 anos da descoberta do Brasil. Fui enviado ao Brasil para trazer de volta à Bélgica a minha visão do país: sozinho, passei seis meses viajando pelo Brasil inteiro. Pensava, na época, que a melhor maneira de representar a essência dessa cultura era mostrando o rosto dos artistas do país. Aprendi o português e tive a sorte de encontrar muita gente, sobretudo artistas, diretores de cinema, escritores e cantores. Todos tinham uma vida relativamente confortável. Praticavam sua arte inconscientes, ou pior, não se sentindo concernidos pelo que estava acontecendo fora de seu círculo protegido. Saí desse meio, e foi então que encontrei a “fauna” perigosa, sobre a qual ninguém falava, ou somente de leve. Pessoas normais, trabalhadores, crianças, mulheres, gente sem teto... Fotografei cenas de pobreza, crianças de rua, a brutalidade e a repressão da polícia, e só o que vi foram pessoas abandonadas ao seu destino. Ao rever os artistas que tinha conhecido, minha decepção aumentou, pois percebi que, após ter visto tantos contrastes no país, nenhum deles sentia-se tocado pela miséria à qual eu tinha assistido. Por que nenhum deles se revoltava contra esse

flagrante racismo e essas injustiças sociais? Na verdade, tinha encontrado uma pessoa consciente e que reagia a tudo isso, o cantor de samba Bezerra da Silva, muito conhecido no Brasil, mas posto de lado pelas mídias justamente por causa de suas posições julgadas muito críticas. Ao regressar à Europa, decidi mostrar minha visão do Brasil, mas não aquela dos retratos de artistas e sim aquela dos “esquecidos” desse país gigantesco. No contexto brasileiro, me refiro à maioria da população, principalmente aos afro-brasileiros. Consciente dos chavões habituais de praia, futebol e corpos bronzeados, abri a janela para o crime e a pobreza que fazem parte integrante do cotidiano brasileiro. Fotografei todos com o mesmo cuidado em respeitar cada um, fosse qual fosse sua classe social e o cenário no qual evoluíam. Um amigo, que trabalha em favelas no Brasil, me pediu um dia para fazer o papel de intérprete de um cantor de rap brasileiro que passava por Paris, para uma conferência. Foi quando encontrei o Lamartine. Ele me contou o que fazia no Brasil, como estava tentando transformar a sociedade, se servindo da música como meio de expressão. Fiquei admirado com seu empenho, seu compromisso com a causa. Na sua luta encontrava-se a expressão de toda

Foto “Sombras no Muro”, de Lazhari Abdeddaïm: um cinema sobre juventude e justiça.

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uma geração de pessoas conscientemente excluídas das grandes decisões políticas de um país. Examinando mais de perto como Lamartine e o seu movimento, o MHHOB, se serviam da cultura como um “instrumento de transformação social”, me veio à mente as imagens de outro movimento nascido nos anos 1970, nos Estados Unidos, o Black Panther Party. Só que estava acontecendo hoje, como herdeiro espiritual, com o MHHOB, no Brasil. Foi na Bélgica que decidi realizar um filme sobre o compromisso dessa juventude sofrendo de dor de justiça. O produtor, que eu tinha encontrado durante uma formação de escrita de documentários, me propôs trabalharmos juntos no projeto, que o interessava. Após meses de escrita, de contatos e de encontros, chegamos a um acordo. Tínhamos a opção de sermos acompanhados por uma produção local, mas, por motivos de leveza de filmagem e de discrição, preferi evitar essa possibilidade. Fiz as primeiras viagens sozinho, acompanhado, quando necessário, por uma técnica de som brasileira. A ideia era ser ultradiscreto, pois a maioria das filmagens ocorria nas favelas. No entanto, não era por segurança pessoal, pois quando chegávamos nesses bairros, ditos sensíveis pela imprensa, éramos muito bem recebidos. Foi quando compreendi que a favela era composta de uma população de renda baixa, e não de bandidos de todo tipo,

prestes a tirar-nos a vida para obter um par de tênis novos! Muito ao contrário, os habitantes das favelas são formigas que permitem ao gigante econômico se desenvolver, e não os marginais que se vê, todas as noites, nos programas sensacionalistas que seguem as equipes de polícia. Eu ia de surpresa em surpresa. Evidentemente, vivemos situações de tensão, mas poucas, afinal, comparadas com o que tínhamos imaginado. Eu tinha uma porção de perguntas, e devia achar elementos de respostas na aventura documentária que iniciei. O hip-hop brasileiro poderia, um dia, fazer parte da máquina política? Caso afirmativo, se tornaria um partido político tradicional? Ou: Lamartine veria seu sonho se tornar realidade graças ao seu movimento, ou seja, um fator de melhora das condições de vida de milhões de pessoas? Confesso que encontrei, diante de muitas perguntas e dúvidas que eu tinha, respostas bem mais complicadas do que esperava. Em todo caso, tive a sorte de ser testemunha privilegiada do desenvolvimento do MHHOB, por ter obtido sua confiança. Continuo esperando, profundamente, que sua experiência tenha um alcance que vá além das fronteiras brasileiras, e que esse filme possa, modestamente, contribuir para isso. Ele transmite as palavras destas pessoas “sem voz” e, sobretudo, oferece uma visão de uma parte do Brasil muito pouco conhecida. (Tradução Susana Rossberg)

Paixão pelo Nordeste Jo h n E r bu e r

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heguei ao Brasil pela primeira vez em 2002. Só tinha cinco dias para filmar o festival RecBeat em Recife. Não falava nem uma palavra de português e, exceto o fato de conhecer um pouco sobre a música, não sabia quase nada sobre o país. Não sabia que essa viagem seria o começo de uma paixão cultural que nunca me deixaria. A história do Mangue Beat, na Rádio 1 da Bélgica, tinha me interessado muito e eu esperava descobrir mais na programação do festival RecBeat. Chico Science, o líder carismático desse movimento do início dos anos 1990 – que foi mais do que música! – havia morrido em 1997, mas, surpresa, depois de cinco anos o Mangue Beat ainda estava onipresente na periferia da cidade. Nunca havia imaginado que as influências tradicionais que tinha ouvido, nos diferentes estilos do Mangue Beat, se apresentassem todas nas ruas do carnaval: Maracatu, Frevo, Forró, Ciranda, Pífanos, Bumba Meu Boi, Afoxé ... Voltando para a Bélgica, com 13 horas de gravações e a cabeça cheia de impressões confusas, não parava de falar do Nordeste do Brasil com todos os meus amigos. Utilizei meus contatos profissionais para divulgar a cultura nordestina através da história do Mangue Beat. Junto com os produtores da rádio, Zjakki Willems e Jeroen Revalk, organizei apresentações nos clubes de música,

um “vídeo jam” com o DJ Dolores (Hélder Aragão) e convenci a banda belga Think of One a voltar comigo para gravar um CD em Recife. Desta maneira fiz contatos com muitos músicos de Recife e Olinda, em Pernambuco, e comecei a aprender o português na rua. Realizei um documentário, O Som do Maracatu, um curta para o CD e, nos anos seguintes, mais um clipe em Olinda e gravações no Porto Musical – Womex. Depois de um encontro em Recife com o belga Bart Vetsuypens, que já tinha trabalhado durante cinco anos em projetos sociais com jovens, comecei a dar oficinas de vídeo e fotografia, como voluntário, no Centro de Comunicação e Juventude – CCJ. Em 2008 fiz um documentário sobre o RecBeat, misturado com a realidade que tinha encontrado durante o meu trabalho social nas favelas. Meu interesse pela música continuou, mas meu envolvimento social aumentou a cada viagem. Em Recife há muitas favelas no mangue, perto dos rios, e os problemas aumentam com o aquecimento global. Quando o mar avança sobre a cidade, a água entra nas favelas com todo o lixo que a cidade joga nos rios. Documentei isso, com fotografias, num projeto de arte, Yemanjá, rainha de todos as águas. Em 2009 participei da Caravana de Comunicação e Juventu-

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Filmagem de John Erbuer no Morro da Conceição.

“Rumbanda”, de John Erbuer.

des de Recife, atravessando Pernambuco, Ceará, Piauí, Maranhão, até chegar ao Fórum Social, em Belém, no Pará. No Pará, filmei um curta sobre a poluição causada pela indústria de alumínio na área de Barcarena, em terras dos ribeirinhos. Com o jornalista Lieven Verstraete, da televisão belga, fiz um curta sobre as crianças catadoras de lixo durante o carnaval. O festival belga Europalia.Brasil me convidou para fazer um projeto de arte com dez pequenos vídeos, Retratos Brasileiros. Realizei isso através de uma oficina para o CCJ de Recife. Os vídeos foram mostrados durante quatro meses no Club Brasil em Bruxelas. Na “Zwarte Zaal”, da academia de arte KASK, em Gand, convidei o artista de rua brasileiro José Cleiton Carbonel para criar comigo uma instalação, Rua na Rua, no final de 2011. Em 2012 continuei esse trabalho na galeria de arte contemporânea Crox­

hapox, enquanto se formava uma turma itinerante, no Brasil, da exposição Rua na Rua. Hoje estou iniciando um novo projeto de arte social. Copa Favela 2014 é um projeto de arte contemporânea, uma intervenção na cidade, que será fabricada sem dinheiro, sem ajuda estrutural – uma pesquisa sobre o poder das ideias na arte popular das comunidades. Também é uma plataforma para reunir tudo que tem a ver com a Copa do Mundo no Brasil e o povo da periferia. Enquanto a FIFA está divulgando as boas notícias sobre a Copa do Mundo 2014, Copa Favela 2014 vai mostrar as realidades das comunidades e os impactos no meio ambiente. A ideia seria unir essa iniciativa ao projeto Welvaert, ao lado do museu MAS, em Antuérpia. O Brasil vive em mim, nunca me largará.

Em busca de uma arte global Icaro Alba

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ou da família de Francisco de Almeida Fleming, cineasta considerado entre os primeiros a realizar filmes mudos, falados, coloridos, fora de estúdios, além de outros pioneirismos no Brasil. Sou formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), que possui, desde sua fundação, reconhecida vocação multicultural e multimídia. Ao estudar Rádio e TV, tínhamos cursos paralelos com a turma de Cinema, Jornalismo, Artes Plásticas e Teatro, além de frequentar as faculdades de Arquitetura, Teologia e Filosofia. Daí talvez o amor à criação em equipe, multidisciplinar, à imagem em suas diversidades, interrogando tabus, contando histórias ou documentando. Sem fronteiras, sem ‘pré’ conceitos. A decisão de trocar o Brasil pela Bélgica, para continuar a es-

tudar e trabalhar a confluência das artes plásticas, teatro, dança, literatura e filme, deveu-se a diversas razões essenciais: primeiro devido aos sacrifícios e desapontamentos políticos crescentes de nossa geração, filhos que éramos dos restos da ditadura militar, esperançosos e lutadores pelas “Diretas Já”, logo frustrados com a morte de Tancredo Neves. Obrigados a engolir na sequência trágica: José Sarney e Fernando Collor de Mello, presidentes do Brasil, com seus costumeiros escândalos, corrupções, planos econômicos aberrantes, levando o Brasil ao caos e provocando o impeachment final, oferecendo a posse presidencial ao apocalíptico vice-presidente, Itamar Franco. Neste ciclo infértil, degenerado, repetitivo e autodestrutivo, a criatividade ficava comprometida pelo pessimismo, pelo sectarismo ou ainda pela ironia. Para so-

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Icaro Alba e a capa baseada na original de Arthur Bispo do Rosario em um filme-teatro-conferência.

Icaro Alba e Coral Pastoreaux, coral infantil belga de música erudita, no Brasil.

Quando aqui cheguei, “eu nada entendia”, deste país dividido, que parecia condenado eternamente ao surrealismo, sem uma única coerência nacional interna. Talvez justamente devido a isso, oferecia uma liberdade de expressão extrema, ideal para a criação, um “no man’s land”, sem os constrangimentos nacionalistas mofados, exaltados, que viriam com tudo, por todas as partes, anos mais tarde. Outra razão de morar na Bélgica foi a possibilidade de realizar o mestrado no Centro de Estudos Teatrais da Universidade de Louvain La Neuve, sobre a obra dramática de Pina Bausch e seu companheiro igualmente cenógrafo, Rolf Borzik. A relativa proximidade em trem da Bélgica até Wuppertal facilitaria as idas e vindas de estudos e trabalhos ao lado da mestra do teatro-dança e toda sua equipe. Esta tese universitária se tornou, a pedido de Pina Baush, o primeiro livro publicado pela companhia de Wuppertal sobre a influência determinante do multidisciplinar artista Rolf Borzik em sua inovadora linguagem (Rolf Borzik Und Das Tanztheater. Paris: L’Arche, Wuppertal: Tanztheater, 2000). Assim como nos meus filmes iniciantes para a TV Cultura de São Paulo, os filmes produzidos na Bélgica foram feitos, quase sempre, em relação, a propósito, ou no contexto das criações de teatro, dança, ópera ou artes plásticas. Na busca de uma arte global, total. O conceito é simples: usar a tecnologia atual, temáticas atuais, universais ou particulares, recaminhando, no entanto, em rotas bem traçadas e sinalizadas pela tradição teatral, via a tragédia grega, via Shakespeare, via Wagner ou Nietzsche. No filme-teatro-dança-concerto Macbeth, com o grupo La Fura Dels Baus, nos Matadouros de Anderlecht e de Bruxelas, realizamos, ou melhor, nos aproximamos deste difícil equilíbrio, onde imagens ao vivo de três simultâneas apresentações teatrais, em três cidades, via satélite, relacionavam-se com atores reais e imagens gravadas. Nesta lógica, também filmamos para instalações de arte contemporânea, em diversas proporções, como foram os trabalhos conjuntos com a premiada artista belga Marie Jo Lafontaine. Fizemos o megafilme I Love The Word para a abertura da copa de futebol da Alemanha, em Frankfurt, exibido nos arranha-céus da cidade transformados em telas, num raio de quatro quilôme-

breviver, mudar, necessitávamos fugir para novos sonhos, mais realizáveis de imediato. Foi assim, ainda de cara pintada após uma manifestação anti-Collor, que veio a decisão definitiva – nada fácil – de partir. Foi o saudoso bailarino baiano Ricardo Carvalho, do Grupo Plan K, através de sonhados projetos conjuntos, sempre ligados à pós-modernidade, um dos primeiros, ainda no Brasil, a me apresentar as potencialidades teatrais da vida na Bélgica. A Bélgica seduzia, despertava os instintos criativos, independentemente da meteorologia, justamente por sua qualidade de vida – humana e profissional – acostumada às vanguardas artísticas; talvez devido à sua posição geográfica estratégica na Europa, próxima e acessível, permitindo o contato saudável, franco e aberto entre culturas divergentes. A Bélgica, através do Kaaitheater, apresentou-se de imediato como uma opção muito provável e desafiante ao nos convidar e acolher, após a apresentação da peça El Señor Presidente, adaptação teatral do livro de Miguel Angel Astúrias, com o Grupo Boi Voador, em Hamburgo. Na Bélgica, residências, projetos, estágios, cursos e treinamentos artísticos eram contínuos, o ambiente favorecia o trabalho consistente e era catalisador de intercâmbio europeu e internacional. Verdade é que aos vinte e poucos anos as oportunidades vinham de todos os lados, todas interessantes, e não havia porque perdê-las. Tais como foram as vivências com os grupos: La Fura Dels Baus, Odin Teatret e com diretores inovadores como Robert Wilson, Lev Dodin, Peter Brook, Peter Stein, Grotowski, Luca Ranconi, Giorgio Strehler, Dario Fo, Ingmar Bergman, entre tantos outros mestres das artes cênicas e visuais. Foram seguramente os amigos antigos e novos que fizeram da Bélgica um porto estratégico para aprofundar, iniciar e aprender. Como esquecer o apoio da escritora Martine Renouplez e da tradutora Angela Munhoz nas intermináveis noites de inverno?

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tros. Mais intimista, sempre com Marie Jo, fizemos o filme-instalação-artística The Ball, na qual recriamos uma sala de baile, com telas envolvendo o público, obra exposta em diversos museus pelo mundo, tendo como sujeito diversas modalidades de danças confluentes: o flamenco, a dança do ventre, o dervish e o tango. Ainda no mesmo objetivo, a peça Opera Canibal, que escrevi e dirigi, foi toda filmada em Bruxelas, editada em Kortrijk em colaboração direta com a empresa Barco, especialista em telas digitais panorâmicas. Usamos para este trabalho, apresentado durante o Festival d’Avignon, cinco telas gigantes que dialogavam entre si. Testando sempre os limites da linguagem cênica, da tradição, do sentimento e da tecnologia, realizamos também o filme-teatro-conferência abordando a vida e a obra do brasileiro Arthur Bispo do Rosario, que foi apresentado no Espace Senghor em Bruxelas. Recentemente, com o grupo Pastoureaux, coral infantil belga de música erudita, estamos experimentando a utilização de filmes temáticos, com cores e imagens de natureza, distribuídos pela sala em telas cinematográficas durante as apresentações de seus concertos. Numa viagem pelo Brasil com o coral, por nós organizada, filmamos, em colaboração com a TV Cultura e a Rede Globo, uma participação especial na homenagem aos meninos de rua

O megafilme I Love The Word realizado para a abertura da copa de futebol da Alemanha, em Frankfurt, por Ícaro Alba e Marie Jo Lafontaine.

assassinados na porta da igreja da Candelária, violência mundialmente conhecida como Chacina da Candelária. Esta homenagem uniu uma vez mais Bélgica e Brasil, países que historicamente sempre se encontram.

Sem-Terra Jean Timmerman

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ui atraído para o Brasil pela música, mas o músico que me fascinava na época era norte-americano, estava começando a tocar saxofone e meu modelo era Stan Getz, isso foi em 1982 e eu tinha 25 anos. Aproveitei uma filmagem no Peru, em 1987, na qual era técnico de som, para prolongar minha estada sul-americana ao Brasil. Eu tinha um contato no Brasil, a Rosa Brandão, uma carioca que se tornou brasiliense. Seu pai, igualmente folclorista e poeta, foi um dos construtores da nova capital. Rosa, cantora lírica, tinha estudado música em Bruxelas, tornou-se minha companheira e, dois anos depois, deu-nos duas filhas maravilhosas, Iara e Cecy. As meninas tinham apenas três meses quando atravessaram o Atlântico pela primeira vez. Sempre cuidei para que elas e o irmão mais velho, Gabriel, de um primeiro casamento da Rosa, pudessem explorar suas duas culturas. Íamos para o Brasil a cada dois anos. Como as viagens eram caras e eu queria conhecer o país, sobretudo a Amazônia, resolvi “profissionalizá-las”. Em 1991, em Brasília, tive a sorte de encontrar dois grandes especialistas em Amazônia, Ezequías Heringer Filho, dito Xará, antropólogo, e Victor Leonardi, historiador da Universidade de Brasília. Graças a eles obtive contatos em todas as regiões da Amazônia que, em seguida, visitei. Deixamos as meninas com um irmão de Rosa e partimos para nossa primeira experiência amazônica. Visitamos outro irmão de Rosa, André, médico que tinha fu-

gido da ditadura, e que trabalhava “lá onde se precisava de médicos”. Se estabeleceu em São Félix do Xingu, no sul do Pará, e construiu um hospital fora do comum, no meio da Amazônia. Foi lá que encontrei, pela primeira vez, indígenas, os Kayapós. Anos depois, levaria minhas filhas. Dois anos mais tarde, penetrei muito mais profundamente na floresta. Fomos a Tabatinga, fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, região onde se explora a madeira preciosa. Foi onde redigi meu primeiro dossiê de produção de filmes, O Preço da Madeira, que tratava do trabalho escravo dos lenhadores. O projeto interessou a um ateliê de produção belga, mas não se chegou a um acordo interno para fazê-lo. Foi talvez o que me salvou a vida, porque o assunto era muito barra pesada. Nesse meio tempo, recebi uma subvenção europeia para escrever um projeto cinematográfico em Rondônia. O Banco Mundial emprestava, pela segunda vez, dinheiro para a região, para “reparar” os desgastes causados pelo primeiro empréstimo, para o asfaltamento da BR-364 entre Cuiabá e Porto Velho. Eu tinha intitulado o projeto de On the Road again, e imaginava o filme como um “road-movie” sobre a BR-364. Estava fazendo prospecção para o filme em 1995 quando ocorreu o massacre de Santa Elina, em Corumbiara (RO). Um Comando de Forças Especiais, com a ajuda de jagunços, tinham expulsado, a mão armada, centenas de famílias de camponeses sem-terra

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“A aula”, cena de filme de Jean Timmerman, “Sem Terra”.

que estavam ocupando as partes improdutivas de uma fazenda. Fui para Corumbiara com um responsável sindical da CUT. Em Rondônia, segundo as regras do Instituto para a Colonização e a Reforma Agrária-Incra, não deveriam existir propriedades de mais de 2.000 ha. A Santa Elina tinha 20.000 ha. Encontrando as famílias sobreviventes alojadas às centenas nos porões da igreja de Colorado do Oeste, resolvi consagrar o projeto à questão agrária. Um ano depois, em 1996, voltei para filmar. Minha estada duraria três meses. Foi o ano do massacre de Eldorado de Carajás, no sul do Pará. Minha equipe, inteiramente brasileira, estava esperando o meu sinal. Era fim de junho; deveríamos começar a filmar em agosto. Eu me perguntava se não filmasse no Pará, onde tinha havido o massacre, mas em Rondônia eu poderia mostrar aspectos mais variados da reforma agrária. Nem todas as famílias tinham sido inscritas num plano de reforma agrária. As que estavam inscritas precisaram ir para o norte do Estado, a mais de 800 km de Corumbiara. Estavam acampadas, isoladas, esperando a divisão dos lotes. Sem ajuda financeira, teria sido impossível sobreviver até a primeira colheita. Perto de lá havia um grupo ocupando terras improdutivas de um latifúndio composto, em parte, de sobreviventes do massacre de 1995. Eu poderia mostrar as dificuldades da reforma agrária, que não pode limitar-se à distribuição de terras. Poderia mostrar a luta dos que tentam beneficiar-se dessa reforma fazendo ocupações, e poderia mostrar também a violência das relações com as vítimas do massacre. Fui para Theobroma, perto de Jaru, onde se encontravam famílias que tinham recebido terras. Estavam no fim de uma pista traçada na floresta por exploradores de floresta com uma escavadeira para terraplenagem. Todas as passagens naturais de água tinham sido aterradas. Esses aterros iam certamente ser levados no início da estação das chuvas, e a pista tornaria-se impraticável. As famílias ficariam, então, isoladas até a estação seca. Foi o que aconteceu, e uma criança faleceu por falta de tratamentos. Eu sabia que chegaria a filmar ações sociais. Foi o caso, por um lado, durante a ocupação de uma fazenda, e, por outro, por

“Sem-Terra”, de Jean Timmerman, filmado em 1996, ano do massacre de Eldorado dos Carajás.

causa da ocupação da sede do Incra em Jaru, com um refém que, afinal, não estava sendo totalmente forçado. Filmamos tudo isso. Apesar de muita prudência, fomos pressionados. Uma família citadina de Theobroma foi ameaçada porque nos ajudava. Atiraram na direção do técnico de som e de mim, para nos intimidar, em Jaru. No entanto, estávamos alojados na casa de uma amiga, então candidata nas listas do PT! A maior pressão que sentimos foi na sede do Incra: sabíamos que, a qualquer momento, uma operação policial podia ocorrer, e que podia ser violenta. Eu mandava para fora as fitas magnéticas na medida em que as terminávamos, para colocá-las a salvo. Houve muitas armadilhas, tanto durante a filmagem quanto durante a pós-produção, mas o filme existe e se intitula, simplesmente, Sem-Terra. Agora a Rosa e eu estamos separados, as crianças cresceram e viajam sozinhas. Tenho menos razões para voltar ao Brasil, mas uma parte de mim tornou-se brasileira. É indelével – axé Brasil! Após o massacre de Corumbiara, dois sem-terras foram condenados pela morte de dois policiais durante a ação. Um deles, Claudemir Ramos, vive, desde então, na clandestinidade, fugindo dos jagunços e da justiça. Em 10 de agosto de 2011, 16 anos depois do massacre, o Congresso Nacional decretou a anistia para todos os sem-terras incriminados. O pai de Claudemir foi assassinado, no mesmo ano, após a denúncia de extração de madeira ilegal em Rondônia. (Tradução Susana Rossberg)

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Descobertas do Brasil entre o som e a antropologia Nicodème de Renesse

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resci na Bélgica entre pessoas de teatro, com as quais aprendi muito e herdei um insaciável desejo de conhecer e compreender aquilo que desconheço e não compreendo por aí, mundo afora. Adolescente, quando comecei a fazer meus próprios experimentos, que incluem experiências de cinema, descobri que registrar sons era uma maneira de explorar o mundo. O som passou então a ocupar o centro dos meus interesses, embora nunca por si só, sem fazer uma ponte com outros domínios. Não estudei o som, mas Antropologia. Ingressei na Universidade Livre de Bruxelas (ULB), cursei dois anos e parei para passar um ano na Rússia, onde trabalhei, entre outros, com Catherine Montondo, uma cineasta belgo-americana que fazia filmes em Moscou. Finalmente voltei para a Bélgica e prossegui meus estudos. Foi no final desse período que o Brasil surgiu no meu caminho. Posso dizer que conheci o Brasil, em grande parte, pelos ouvidos. Em 18 anos, aprendi a encontrar os lugares e as pessoas, e a conhecê-las, pelos sons. Meu itinerário no Brasil começa em Recife, Pernambuco. Em 1994, eu e minha mulher, Alessandra, viemos passar uma temporada junto de sua família com nossa filha recém-nascida. Eu tinha 22 anos e estava ainda no último ano de graduação em Antropologia na ULB. Pretendia aproveitar a viagem para coletar os dados do meu mémoire de licence, uma monografia obrigatória de conclusão de curso, e tinha levado um gravador DAT para esse fim. Andava com ele por todo lugar, na mochila ou a tiracolo. Dessa época, guardo a gravação de momentos que nunca saí­ ram da minha memória: uma cantiga de sapos numa lagoa noturna do agreste pernambucano, um canavial em fogo e um coco de roda puxado por Seu Sedo, pescador, poeta e tirador de coco, numa praia de Olinda (coco é um ritmo e uma dança da região). À medida que meu português ia melhorando e que eu compreendia o que tinha gravado, a magia do coco, sua poesia e seu ritmo me seduziram. Decidi que o coco de roda seria o tema do meu mémoire. Passei a percorrer morros e ladeiras à procura dos puxadores de coco, gravando fartas histórias e cocos. Olinda era, neste aspecto, na parte popular atrás do farol, um verdadeiro ninho. Voltamos para a Bélgica, concluí a monografia e meu orientador, Didier Demolin, um etnomusicólogo e eminente linguista que, bem mais tarde, por coincidência, também veio ao Brasil para ensinar na Universidade de São Paulo (USP), me propôs gravar um disco de coco. Com o material que eu já possuía, produzi dois programas de rádio para a BRT (Bélgica) e para a VPRO (Holanda) graças aos quais financiamos a viagem. Em 1996, com equipamento emprestado, voltei para o Brasil para gravar o disco com Dona Selma, num terreiro no alto de Olinda. O disco foi lançado em 1997 pela Fonti Musicali, gravadora belga especializada em músicas do mundo.

“Lampião, sonhos de bandido”, de Nicodème de Renesse e Damien Chemin, foi produzido pela produtora Tarantula na Bélgica.

Durante esses anos, do Brasil só conheci o Nordeste. No início de 1998 voltamos ao Brasil com nossas filhas para trabalhar num filme documentário sobre a cena musical de Recife nos anos 1990, de Helder Aragão (DJ Dolores) e Sérgio Oliveira. Eu devia fazer o som direto, porém as filmagens pararam logo por falta de financiamento. Fiquei rapidamente sem dinheiro e decidi descer para São Paulo, onde fui hospedado por um amigo fotógrafo. Vivi meu período de migrante nordestino e descobri um outro Brasil. Comecei a trabalhar como técnico de som direto em filmes comerciais, documentários e de ficção, longas e curtas, com Andrés Bukowinski, Ugo Giorgetti, Edgar Navarro e outros. Ao mesmo tempo, passei a captar e fornecer sons para diversas produções. Com o renascimento do cinema brasileiro, alguns editores, na finalização, careciam de sons específicos que não podiam produzir facilmente em estúdio e não encontravam em bancos de sons, pois não existem coletâneas de sons brasileiros, ou mesmo porque envolvem ambientes muito particulares. Tive a chance de chegar exatamente nesse período. Míriam Biderman e, mais tarde, Waldir Xavier me passaram algumas encomendas. Foi assim que, a partir de 1999, voltei a fazer o que eu mais gostava, isto é, percorrer becos e estradas em busca de sons: um Brasil campestre do século XIX para o filme Memórias Póstumas de Brás Cubas; sons da caatinga para Eu, Tu, Eles; ruas populares no Rio de Janeiro dos anos 1920 para Madame Satã etc. Para mim, esses trabalhos eram verdadeiras explorações sonoras do mosaico de camadas históricas e sociológicas que compõem o Brasil; não apenas porque era preciso uma boa noção acústica daquilo que se buscava, mas porque, toda vez, era preciso compreender a organização sonora do real para encontrar os lugares e os horários adequados. À medida que os anos iam passando, procurei outras abordagens. Em Lampião, um documentário que codirigi com Damien

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Chemin em 2005, produzido por Tarantula, na Bélgica, deixei de fazer o som para experimentar uma outra maneira de explorar o mundo, um outro ponto de vista. Aos poucos, comecei a cultivar o desejo de retomar o caminho deixado para trás e voltar para a Antropologia. Nas minhas andanças, descobri um Brasil indígena que eu desconhecia e, em 2009, entrei na USP com um projeto de mestrado em etnologia indíge-

na que evoluiu para um projeto de doutorado em 2012. Por coincidência, minha orientadora, Dominique Tilkin Gallois, seguiu um percurso parecido: graduou-se em Antropologia na ULB, antes de migrar para o Brasil nos anos 1970, onde prosseguiu com um mestrado e um doutorado na USP, até tornar-se professora nessa universidade. Quanto a mim, a questão de saber de que lado ficar ainda não recebeu uma solução definitiva.

Lampião, sonhos de bandido Damien Chemin

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oi durante minha primeira viagem para Pernambuco que fiquei intrigado pelo personagem. Quis saber mais sobre ele, saber por que fascinava tantos brasileiros, qual era a parte de lenda e qual a parte de história. Com Nicodème de Renesse, antropólogo, técnico de som e diretor, que já vivia no Brasil, resolvemos fazer um documentário para tentar captar o personagem, não do ponto de vista histórico, mas do ponto de vista sociológico. Foi a dimensão imaginária do personagem que nos interessou particularmente. É, pois, através do encontro com diversas personalidades, todas apaixonadas pelo cangaço, que o filme procura fazer um retrato coletivo e subjetivo de Lampião. No final, é o sonho de liberdade que ele leva consigo, mais do que a sua história fac­tual, que nos interessou, porque ela se refere a aspirações universais. O filme, produzido principalmente por Joseph Rouschop, da produtora Tarantula, de Liège, é uma coprodução de três sociedades francófonas belgas, de um apoio oficial e de uma coprodução flamenga. No Brasil, tivemos a colaboração de uma produtora de São Paulo. O técnico de som foi um belga instalado no Brasil, Nicolas Hallet, e a edição de som foi feita por uma editora brasileira que vive na Bélgica, Susana Rossberg. O filme é distribuído no Brasil. Foi mostrado no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, em festivais de Fortaleza e Salvador e participou de um programa itinerante, sobre o tema do cangaço, em diversas cidades brasileiras. Foi, igualmente, apresentado em diversas manifestações e festivais europeus.

“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Kika Farias, Mariana Serrão e Bruno Pêgo, produtora Tarântula, Bélgica.

essa cultura musical e poética forte. Felizmente, uma editora de discos parisiense, dirigida por um especialista do acordeão, Philip­ pe Krümm, se interessou pelas gravações, e editou em CDs dois volumes chamados Forró Acústico vol. 1 e vol. 2. Os CDs tiveram uma grande difusão internacional, sem dúvida por causa da qualidade dos artistas, como também pelo caráter autêntico das gravações, feitas nos lugares onde os artistas viviam, o que causou o sucesso inesperado dos discos. Este trabalho apaixonante me convenceu a me instalar em Aracaju, onde comecei a trabalhar, entre outros, para a televisão pública local, Aperipê TV, para a qual dirigi diversos programas documentários. Também colaborei com diversas produtoras locais, como diretor ou diretor de fotografia, sempre continuando meu trabalho de diretor de filmes de ficção para a produtora belga Tarantula. Uma vez instalado, produzi, a pedido de Philippe Krümm, um novo CD, consagrado inteiramente ao virtuoso sanfoneiro Cobra Verde, um dos artistas mais marcantes do CD Forró Acústico. Esse CD, distribuído, como os anteriores, por L’Autre Planète, ocasionou, em maio de 2010, uma turnê do grupo Forró de Cobra Verde à Bélgica e à França. Foi, para mim, motivo de grande felicidade o fato de ter criado esse encontro e de ver a excelente recepção que o grupo recebeu do público belga e francês.

Sergipe Foram encontros feitos durante a filmagem de Lampião, sonhos de bandido que me deram vontade de voltar para o Brasil, para conhecer melhor a cultura nordestina. Eu tinha sido marcado, particularmente, pelo forró pé-de-serra, tal qual é praticado nos povoados do interior de Sergipe. Essa região é pouco conhecida e pouco valorizada, sem dúvida por causa da proximidade dos gigantes culturais vizinhos, Bahia e Pernambuco. Colaborei novamente com Nicolas Hallet e Nicodème de Renesse para gravar diversos músicos e aboiadores da região. A maioria deles era pouco conhecida do público; nós queríamos valorizar

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“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Bruno Pêgo e Tuca Andrada.

A Pelada

é composta principalmente de atores e técnicos de Sergipe, com a participação de alguns atores mais conhecidos na área nacional, como Tuca Andrada, Karen Junqueira, Edmilson Barros e Luci Pereira. Nos papéis principais, temos Bruno Pêgo e Kika Farias. Foi, mais uma vez, uma ocasião para unir a Bélgica e o Brasil, pois o diretor de fotografia Marc de Backer e os produtores Joseph Rouschop e Michel de Backere estiveram presentes durante a filmagem no Brasil. A pós-produção inteira foi feita na Bélgica. Mais uma vez, o belga Nicolas Hallet, que mora no Brasil, fez o som, em colaboração com sua esposa, Simone Dourado. (Tradução Susana Rossberg)

Depois de viver vários anos em Aracaju, escrevi um filme inspirado em histórias e personagens dessa cidade muito pouco conhecida. Trata-se de uma comédia romântica, chamada A Pelada, que conta os desgostos de um jovem casal, de origem modesta, tentando dar uma nova vida ao seu casamento, meio encalhado. Fiz o filme inteiramente em Aracaju no início de 2012. Essa obra é o fruto de uma coprodução inédita entre a Bélgica e Sergipe, entre Tarantula e WG Produções, de Sergipe, com a ajuda de órgãos oficiais e estaduais dos dois países. A equipe técnica

Baiano, brasileiro e bruxellois D i e g o Sa n ta n a C l a u d i n o

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cho difícil falar sobre a minha relação com a Bélgica sem perder um pouco a imparcialidade que inibe julgamentos apressados. O momento em que escrevo não é o mesmo que vivi quando cheguei, nem é igual ao que está por vir. Eu e a Bélgica somos um casal que se conhece muito bem e que teve uma bela jornada com pontos bem altos e mergulhos bem baixos. O que nos segura juntos é o respeito que temos um pelo

outro. Amor? Não sei, diria que não, ou melhor, que sim. Tenho um amor sem tesão pela Bélgica. Mas sim, por que não amor? Ela faz parte de mim e respira comigo. Chego a criticar, mas sempre a defendo. Somos família. E como toda relação familiar, temos lá nossos problemas. Mas, sim, nos amamos. Nos amamos, mas não morreria por ela. Enquanto visse fogo nos seus olhos, lutaria ao seu lado até o fim. E isso é o que creio

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Cenas de trabalhos realizados por Diego Santana Claudino na Bélgica.

faltar aqui. Fogo, chama, calor, autoconfiança. A Bélgica te incentiva pela dúvida e não pela confiança cega. E acho que isso se reflete na atitude das pessoas, na integração do país como um todo e na sua arte em geral. A Bélgica precisa se amar mais. Cheguei à Bélgica por amor e resolvi ficar por teimosia. Larguei um trabalho em ascensão no Brasil, na prestigiada O2 Filmes, onde era editor e assistente de direção, por amor a uma jovem belga que conheci no Rio de Janeiro e por amor à aventura. Pelo desejo de enfrentar o desconhecido. Pela curiosidade infantil que pulsa dentro de mim e faz coro à minha ode ao “por que não?”. E de “por que não?” em “por que não?”, estou aqui há seis anos. Às vezes me pergunto como seria a minha vida se não tivesse tomado tal decisão. Mas a certeza de que certamente não seria

quem sou acalma essa recorrente dúvida. Na Bélgica aprendi quão pequeno é o mundo, e como não há limite para o que podemos fazer; basta querer. Na Bélgica me assumi artista, me comprometi comigo mesmo e aprendi a apreciar a jornada muito mais que o seu destino. Tomei gosto pelas curvas da estrada, mesmo como o impaciente e inconformado que sou. Hoje eu sou “eu”. E parte desse eu devo à Bélgica. E mais que um diretor de filmes, me considero um artista, e me expresso nos meios que me convêm: foto, desenho, pintura e filme. No momento, flerto com os pincéis e as telas enquanto bailo sobre as teclas que coreografam o que pode algum dia se tornar o roteiro de um longa-metragem. Sou Diego Santana Claudino. Baiano, brasileiro e bruxellois. Link: www.selfishbastards.tumblr.com e www.vimeo.com/ dieego

Documentário e mal-entendido: retorno sobre uma primeira filmagem no Brasil Jeremy Hamers

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m 2003, Dorothée Luczak, então diretora artística da Bienal Internacional de Fotografia e de Artes Visuais de Liège, me propôs coproduzir um projeto de filme documentário que eu queria dirigir no Brasil. Naquela época, eu já tinha viajado para a região de Goiás a fim de passar algumas semanas com os trabalhadores rurais sem-terra de lá. Foi durante esse primeiro périplo brasileiro que tive a oportunidade de descobrir um fenômeno que ocuparia uma parte essencial do meu projeto documentário chamado A Verdade do Gato (2005): a queima noturna dos campos de cana de açúcar. Cada ano, durante os seis meses da colheita, se produzia um espetáculo interessante: quilômetros de campos queimavam durante a noite. Durante a noite que precede a colheita, coloca-se fogo na cana

que vai ser cortada no dia seguinte, para eliminar as folhas que quase não produzem suco. Obcecado por esse espetáculo, que eu tinha visto somente de longe durante minha primeira viagem, comecei a preparar a rodagem de um filme sobre a produção de biocombustível na região de Goiás. Naquela época, minha intenção era dupla. Por um lado, eu me interessava por essa produção que, tal era minha esperança, nos permitiria, a longo prazo, libertar-nos da hegemonia das grandes sociedades petrolíferas. Por outro lado, e após diversas conversas com Benoît e Inès Rixen, um casal de agrônomos belgas que tinha trabalhado durante anos na região, queria denunciar a condição dos cortadores de cana de açúcar, essencialmente trabalhadores sazonais, que sofriam, de maneira evidente, em condições

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Cena de A Verdade do Gato, de 2005, de Jeremy Hamers, sobre a cremação noturna nos campos de cana de açúcar.

de trabalho catastróficas: eram empregados por um recrutador (chamado “gato”) que tinha um estatuto jurídico totalmente nebuloso, com um salário proporcional ao metro de cana cortado, sem direitos sociais, com uma deterioração da saúde devido ao trabalho cotidiano num cinzeiro gigante. Uma condição que lembrava, sem ambiguidade, o tratamento infligido aos trabalhadores das minas de carvão imigrados na Bélgica alguns decênios antes. O projeto estava, pois, marcado por uma contradição que eu achava interessante, e que deveria me permitir escapar ao registro maniqueísta da reportagem televisual clássica. A produção do biocombustível oferecia ao Brasil uma independência financeira que achávamos de excelente agouro no cenário do primeiro mandato presidencial de Lula e, concomitantemente, a exploração da cana de açúcar ocorria em condições sociais e ecológicas amedrontadoras. No anteprojeto do filme, que nos proporcionou algum financiamento, as coisas eram apresentadas de maneira muito simples. O filme seria composto de imagens da colheita manual e da cremação dos campos, ambas espetaculares (penso, hoje, que é o que causa, em parte, o sucesso do filme nos festivais). Naquela época, eu recusava toda Voice Over clássica e toda entrevista, que conside-

rava como recursos da reportagem tradicional, infiéis a uma situação complexa. Contava com o que diriam as pessoas que ia filmar. No entanto, apesar do aprendizado do português ter constituído uma parte importante da preparação para a filmagem pela equipe inteira, não tínhamos nos preocupado com a relação com as pessoas que íamos encontrar. Estava unicamente inquieto com a liberdade que teríamos para filmar os trabalhadores labutando. Porém, chegando lá, todas as portas foram abertas com uma facilidade desconcertante. Tudo podia ser filmado. Nunca tivemos que usar estratagemas, ou sermos discretos, para filmar o trabalho. Passado nosso primeiro entusiasmo, percebemos que parecia impossível estabelecer qualquer comunicação com os sazonais. Sempre sorridentes, dispostos a repetir um gesto quando julgávamos necessário para a filmagem, brincalhões apesar do trabalho extenuante, eles nos davam a impressão de estar interpretando uma opereta num filme que tinha a pretensão de ser uma ópera. Uma primeira explicação dessa estranha situação nos veio de nosso encontro, no terceiro dia de filmagem, com o diretor da exploração agrícola na qual filmávamos. Alguns minutos de conversa informal foram suficientes para compreender que o homem nos considerava como poderosos meios de retransmissão publi-

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Jeremy Hamers: “Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado”.

citária vindos de uma Europa (onde tinha feito seus estudos) e que fantasiávamos, então, a propósito dos biocombustíveis. Antes da nossa chegada, tinha encarregado os contramestres de anunciar nossa visita aos cortadores. Eu nunca teria imaginado que o peso das categorizações clichês pesaria tanto na nossa relação com os sazonais. A este primeiro mal-entendido, que nunca conseguimos desconstruir totalmente (mesmo em situação de entrevista anônima, a prudência dos trabalhadores era impressionante), juntou-se um segundo problema. Frequentemente, diante da câmera, os trabalhadores paravam de trabalhar e assumiam uma pose. Retrospectivamente, essa situação problemática (afinal, estávamos lá para filmar o movimento do trabalho) me parece totalmente interessante, na medida em que espelhava minha própria ingenuidade. Evidentemente, eu não podia pedir a esses homens que fossem naturais, que agissem como se eu não estivesse lá. A carga aviltante desse tipo de injunção contraditória e grotesca é evidente. Hoje me parece que, adotando um comportamento que eu achava absurdo e inadequado, esses homens responderam à minha intrusão ingênua no seu cotidiano de trabalhadores. Até hoje não tenho a certeza de ter podido estabelecer a origem de tal comportamento. No entanto, acompanhando um grupo de cortadores a uma sessão de televisão que encerrava o dia, me pareceu que o imobilismo que eles ofereciam à câmera, em certas circunstâncias, me lembrava as encenações extremamente petrificadas das telenovelas melodramáticas que consumiam em massa. Mais tarde, quando o filme foi mostrado no povoado de Carmo do Rio Verde, onde tínhamos filmado, informaram-me que a maioria dos cortadores tinha ficado desapontada com o documentário, constatando que nele não acontecia nada. Quase no mesmo momento, Leon Cakoff, que eu tinha tido a sorte de encontrar

durante a Mostra de Cinema de São Paulo, mencionava A Verdade do Gato como um dos filmes imperdíveis da seleção oficial.1 Essas duas recepções brasileiras de meu filme sintetizam bem o abismo que minha ingenuidade tinha eliminado mesmo antes do primeiro dia de filmagem. Atualmente penso que a filmagem de A Verdade do Gato no Brasil repousou num conjunto de mal entendidos e de elementos a priori, com os quais um documentarista – certo de suas boas intenções – pode se aproximar de um lugar, de uma situação e de uma comunidade que lhes são estrangeiros. Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado. Alguns documentários camuflam esse problema para colocar a matéria filmada unicamente a serviço de um relato. Outros tentam implicar o filmado para fazer um filme a duas, ou mais, vozes, na tradição dos autores que revolucionaram o documentário etnográfico a partir dos anos 1950. Mais raros são os que colocam essa relação no centro de sua obra, problematizando-a e tornando-a o assunto do filme, sem jamais perder de vista a causa que defendem. Me parece que a filmagem de A Verdade do Gato deveria ter chegado a tal problematização. Em vez disso, o filme se refugia numa encenação que transforma o cortador numa silhueta, num robô, num escravo sem personalidade, para sublinhar, por falta de coisa melhor, a exploração humana que está na origem de um sistema. Nesse sentido, o filme não trai os trabalhadores da cana de açúcar. Mas ele constitui somente uma primeira etapa no caminho de um tratamento real do que é o encontro entre dois mundos. (Tradução Susana Rossberg) Notas 1. http://media.terra.com.br/imprime/0,,OI1220750-EI7774,00.html

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“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete, ah foi bom, meu coração ficou feliz...”* Reynald Halloy

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m 1992, o tocador de harmônica belga Toots Thielemans gravou The Brasil Project, álbum que descobri, com alegria, quando voltei para a Bélgica, após um longo périplo pelo Brasil. Este encontro magnífico entre um artista belga e uma irmandade de músicos brasileiros se tornaria o símbolo da minha busca artística. Em 1992 eu acabava de completar 18 anos. O Brasil tinha colocado um violão nas minhas mãos e dito “vai, canarinho belga, canta!” Eu tinha deixado Rochefort, minha cidadezinha natal belga de cinco mil habitantes, sem olhar para trás, para me encontrar num palco em São Paulo, no Teatro Bela Vista, onde descobriria as bases da minha criação artística atual. Fazia parte de uma companhia de teatro brasileira onde aprendia, de improviso, o violão, o canto, a interpretação do ator e a cenografia. Uma formidável escola! Com essa companhia aprendi a nadar me jogando na água, encarando a dura realidade da cultura alternativa no meio de uma megalópole, me virando diariamente, sem subsídios do governo, com somente fé e coragem. Eu fazia fotos, e a fotografia me permitiu afrontar cara a cara “a dura poesia concreta” de São Paulo. Graças à imagem fotográfica, tentava resolver o enigma que essa cidade me colocava: “Decifra-me, ou devoro-te!” Percorria as ruas do Bexiga, onde fotografava tudo o que não se parecia comigo: tudo me parecia tão estranho... Felizmente, já havia para mim a canção Sampa, de Caetano Veloso, a minha mais completa tradução: “Alguma coisa acontece no meu coração que só quando cruza a Ipiranga com a avenida São João...” Foi durante essa experiência fundadora na escola da vida que encontrei meus irmãos e irmãs de coração, minha família brasilei-

ra, que continuam até hoje a alimentar minha inspiração. Flavio Maciel de Souza, Arlene Rocha, Emilia Rocha, Simone Lima, Vanderlan Marques e Paulinho da Cuíca, que voltaram comigo para a Bélgica para apresentar El Retablillo de Don Cristobal, uma farsa de Garcia Lorca, no Festival do Riso de Rochefort, em 1994. Após algumas deambulações na Espanha, a companhia se estabeleceu, finalmente, em Bruxelas, onde seus projetos não pararam de se multiplicar, e de raiar pela Europa inteira. Por minha parte, comecei a estudar cinema na École de Recherche Graphique (ERG, Bélgica) e no Institut National Supérieur des Arts du Spectacle (INSAS, Bélgica), mas compreendi, rapidamente, que ia me sentir constrangido entre os muros de uma escola. Por isso, preferi fundar minha própria produtora de filmes e música: Grimoire asbl. Em 1996, compus minhas primeiras canções e dirigi meus primeiros curtas-metragens, ainda muito influenciados pela cultura brasileira. “Os Fogos do Céu”, conto pastoral, entre ficção e documentário, lançava uma ponte entre os fogos de São João no Brasil e a queima das corcundas de palha, durante o carnaval no Borinage, na Bélgica. Em 1998, voltei ao Brasil com minha esposa, para fazer uma prospecção fotográfica e sonora dos últimos mamulengueiros do Estado de Pernambuco. Viajantes sedentários, tomamos o tempo que nos parecia necessário para encontrar os habitantes e viver com eles no ritmo da terra e da água estagnada. Não chovia no Sítio do Açude Grande fazia dois anos. No entanto, torrentes de ondas surdas tinham-se abatido sobre as terras áridas do Nordeste, trazendo o risco de afogar, pouco a pouco, as palavras de seus habitantes.

Acima, esquerda: Iniciação de meu irmão Arnaud Halloy, antropólogo, num quarto de santo de um candomblé de Recife, registrado no documentário “Iyawo” (2004), consumido por um incêncio. Experiência inédita de “antropoesia”. Acima, direita: Reynald Halloy.

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Severino na sua casa de barro: um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos de tradição oral em terras da cultura do açúcar. “Ondas Surdas”, 2000.

A chegada da eletricidade nesse vilarejo isolado havia, igualmente, permitido a chegada da televisão. Zé Lopes, mamulengueiro em Glória do Goita, nos falava de sua dificuldade para transmitir sua arte à jovem geração, que preferia os jogos televisuais aos jogos de rua. Estelita, artesã que criava flores cortando garrafas de Coca-Cola, sonhava também em comprar esse movelzinho luminoso para ocupar suas noites. Severino sonhava em construir, para sua esposa, uma casa de tijolo com uma cozinha equipada, como nas telenovelas. Ele morava numa casa de taipa, feita pelas suas mãos, com terra que tinha achado sob seus pés. Nossa prospecção fotográfica e sonora se tornou um documentário, “Ondas Surdas”, em torno da influência devastadora das mídias em meio rural. Depois de ter apresentado o filme no Bilan du film ethnographique, de Jean Rouch, eu quis voltar ao vilarejo para mostrá-lo aos habitantes – na sua nova televisão. Talvez tivesse sido uma maneira de despertar o olhar crítico deles. Infelizmente, a aldeia tinha desaparecido. Os habitantes tinham ido viver na cidade e suas casas tinham sido engolidas novamente pela terra, como se nada tivesse, jamais, existido. Sem saber, tínhamos feito um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos de tradição oral em terras da cultura do açúcar.

Estelita e foto do Zé Mudo, cena de “Ondas Surdas”, 2000, de Reynald Halloy.

Em seguida filmei um documentário do qual não me restou nem um rastro. Em 2005 “Iyawo” desapareceu num incêndio, junto com meu apartamento, em Bruxelas. Era consagrado à iniciação de meu irmão Arnaud, antropólogo, num candomblé de Recife. Filmado na intimidade do culto dos orixás, esse filme teria sido pioneiro na história do cinema etnográfico, uma experiência inédita de “antropoesia”. O grande roteirista desse filme era Ifá, o oráculo que, através do jogo de búzios, autorizaria, ou não, a filmagem das sequências rituais. Meu irmão antropólogo, seu pai de santo e eu ficamos surpresos, pois o oráculo nos abria todas as portas, até a do Quarto do Santo, onde nenhuma câmera nunca tinha penetrado. O segredo do culto talvez não devesse ser revelado; o mistério devia, e deve, provavelmente permanecer inteiro! O Brasil foi o berço da minha inspiração musical e cinematográfica, a terra onde nasci artista, entre encanto e desencanto. (Músicas, filmes e fotografias na internet: www.reynaldhalloy.be) (Tradução Susana Rossberg) Notas * Extrato de “Bluesette” de Toots Thielemans, The Brasil Project, Private Music, 1992.

O Brasil, terra de energia e de cinema Th i e r r y M i c h e l

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Brasil foi primeiro, nos anos 1970, na Bélgica, uma extraordinária mobilização do que hoje se chama a sociedade civil, para manifestar contra uma grande feira comercial que estava havendo em Bruxelas, e que se chamava Brazil Export. Fazíamos questão, nesses tempos longínquos, no qual o fundo do ar era vermelho, de denunciar a ditadura dos generais no Brasil e as relações estreitas que ela tinha com numerosos poderes ocidentais,

que negavam as aspirações do povo brasileiro à democracia, assim como os direitos humanos elementares. Conscientemente, eu participava, no início dos meus vinte anos, e levado pelos entusiasmos militantes da época, destas manifestações de solidariedade com um povo que pouco conhecia, exceto pelo cinema e a lembrança de um dos raros filmes que fazem com que um dia alguém decida de tornar-se cineasta: Orfeu

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Cena do filme “Gosses de Rio”, de Thierry Michel.

negro, visto quando eu era adolescente, e do qual a música continuava a me trotar na cabeça. O filme falava, evidentemente, de amor, tendo como fundo o Rio, as favelas e o carnaval. Essa grande manifestação, Brazil Export, me levou, igualmente, à Cinemateca de Bruxelas, onde descobri, com avidez, os filmes de Glauber Rocha, Carlos Diegues, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos, todos inspirados no cinema social neorrealista italiano e na liberdade de tom da “nouvelle vague” francesa. Dois filmes me impressionaram particularmente: Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em transe. Foi também o que me orientou, alguns anos depois, a ler um escritor belga, além do mais de Liège, coroado com um prestigioso prêmio literário, o Prêmio Renaudot, por seu livro L’herbe à brûler. O livro falava da Bélgica profunda, aquela que eu conhecia, aquela que fazia parte da minha identidade, a Bélgica das contestações políticas, aquela do conflito linguístico flamengo e valão, aquela da divisão da Universidade de Louvain, na época Leuven, em duas universidades – enfim, o pão de cada dia deste pequeno país sujeito à guerras étnicas de baixa intensidade. Mas o livro falava, igualmente, de um envolvimento num país dito do terceiro

mundo, do envolvimento, no Brasil, de um jovem belga que partiu com um ideal religioso, mas sobretudo social, e que, no Brasil, ia se imergir na luta contra a ditadura, ao ponto de arriscar sua vida, de ser preso, torturado, expulso. Foi um dos poucos livros que me abalou e, num dado momento da minha carreira, eu quis fazer dele uma obra de ficção cinematográfica. Me baseando nesse livro, parti para o Brasil pela primeira vez. Meu desejo era preparar essa grande ficção, essa adaptação do romance de Conrad Detrez. Mas, como se tratava de uma obra ficcional, igualmente muito autobiográfica, me pus, desde que cheguei no Rio, a buscar as pessoas reais sobre as quais o romance nos contava a história, a resistência, a oposição política, a coragem, a abnegação. Foi assim que pude encontrar vários companheiros e camaradas de Conrad Detrez, que haviam compartilhado sua luta e os sofrimentos da repressão. Foram eles que me fizeram descobrir o Rio profundo, o das favelas, das prostitutas, das lutas políticas, da emergência do que se tornaria o grande partido político no poder, o Partido dos Trabalhadores; mas igualmente o Brasil dos grupos de traficantes de drogas que reinavam sobre os bairros pobres, das prostitutas organizadas em sindicatos, dos padres bra-

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Cena do filme “A fleur de terre”, de Thierry Michel.

sileiros missionários no seu próprio país, no coração das zonas e dos bairros mais violentos da cidade, das escolas de samba; e essa cultura brasileira feita de energia, de criatividade, de solidariedade profunda, sobretudo nas classes populares, do sentido da festa, e de uma liberdade da qual compreendi melhor como ela pôde embriagar o jovem Conrad Detrez, que tinha deixado as ordens religiosas para afirmar sua revolta e sua homossexualidade. Nunca fiz o filme de ficção para o qual partira ao Brasil, mas trouxe de volta, nas minhas malas, vários projetos documentários que me permitiriam imergir no mais profundo da vida brasileira, e de ser um cronista internacional dela. Fiz dois filmes: A fleur de terre, focado sobretudo na vida cotidiana da favela Mangueira, cuja escola de samba venceu diversas vezes o desfile do carnaval. Trouxe, igualmente, um segundo filme, feito quase sem querer, Gosses de Rio, que teve uma fabulosa carreira internacional, divulgado por quase 30 televisões no mundo, e que contava a vida de um grupo de crianças de rua do bairro da Lapa, no âmago do Rio. Inicialmente, filmando as crianças de rua, eu somente queria mostrar, no filme sobre as favelas, que também havia os excluídos da miséria, os mais miseráveis dentre os pobres, essas crianças rejeitadas dos bairros populares e das favelas para ir sobreviver, por seus próprios meios, nos centros das cidades. Durante a edição percebemos que essa parte inteira da filmagem de A fleur de terre poderia fazer um filme em si, porque as crianças exalavam a verdade, a vida, o entusiasmo, a energia mas, igualmente, carregavam consigo um destino trágico. Tive outros projetos no Brasil, seja o retrato de Joãozinho Trinta, um dos mais prestigiosos mestres de carnaval, ou o retrato de padres missionários brasileiros empenhados, no Pará, pela causa dos trabalhadores rurais sem-terra, expulsos pelos grandes proprietários latifundiários. Também desenvolvi um retrato do conflito no

Thierry Michel filmando “Gosses de Rio”.

seio da igreja católica, entre os defensores da Teologia da Libertação, na linha de Monsenhor Dom Hélder Câmara, arcebispo de Recife, engajado ao lado dos mais pobres, e da igreja oficial, decidida a combater, sob ordens do Papa, esses padres turbulentos, socialmente engajados, que batalhavam sem dó contra a instituição de uma igreja próxima demais do poder e das oligarquias. Esses projetos, e muitos outros, nunca os realizei – assim é o destino. Voltando do Rio, de Salvador, de Recife, de Belém, parti para o Congo/Zaire, onde deviam ocorrer eventos excepcionais devido ao fim do reinado do Marechal Presidente Fundador Guia Supremo Mobutu Sese Seko, que ia perder o poder, e do qual eu queria filmar o tombo. Mas o ditador não caiu e fui embarcado na história tumultuosa desse país, do qual sou hoje, e há mais de vinte anos, uma testemunha e um cronista cinematográfico privilegiado. No entanto, o Brasil permanece ancorado profundamente no meu coração, meu espírito, minha cultura, minha maneira de ser, de ver a vida. Revejo regularmente Israel Tavares, um dos diretores da Mangueira, emigrado na Suíça há muitos anos. O Brasil continua, continuará sendo um país do qual me sinto próximo, um país e um povo cúmplice e amigo, onde espero, num dia futuro, imergir novamente, com a câmera em punho. (Tradução Susana Rossberg)

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Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista H e r o n Fe r r e i r a

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oram quase cinco anos de universidade e trabalho em empresas de engenharia. Não aguentava mais as integrais e as derivadas, as máquinas e seus protocolos, as redes e seus processos repetitivos. Queria o humano, o palpável, as histórias, as imagens invisíveis neste mundo em que me havia colocado. Percebia mais claramente que não seria esta profissão que iria exercer no futuro e que Porto Alegre, Rio Grande do Sul, estava ficando pequena demais. Estamos em 1997, “águas de março fechando o verão é promessa de vida no teu coração”. Embalado por uma carioca que havia conhecido em um encontro de capoeira em São Paulo, junto com a vontade de retornar à minha cidade natal, decido minha mudança para o Rio de Janeiro, cidade dos contrastes, minha terra, Morro do Estácio, Santa Teresa, onde aterriso depois de 18 anos. Tinha cinco anos quando partimos para Porto Alegre. Trabalho como técnico em Telecomunicações na empresa Victory. Considerava este emprego temporário, pois estava à procura do que queria fazer – talvez estudar Cinema. Conversando com amigos, decido fazer um curso de vídeo no Senac, durante dois meses, todas as noites. Trabalhamos do VHS ao Betacam, editamos em mesas de edição linear etc. O professor superaplicado percebe meu interesse e, ao terminar o curso, me indica para fazer uma formação de assistente de câmera 16 mm e 35 mm, ministrado por Cesar Elias, na Fundição Progresso, no centro do Rio. Termino dois anos mais tarde, depois de ter assistido ao curso de Cinema na UFF (Universidade Federal Fluminense) como aluno ouvinte e ter seguido os cursos de assistente de câmera e de diretor de fotografia na Fundição Progresso e no Templo Glauber. Continuo trabalhando com alguns fotógrafos que conheci

nos documentários “Além Mar” e “Música do Brasil”, dos quais participei como assistente de câmera e assistente de produção. Ingresso num curso de Assistente de Direção I e II, ministrado pelo mestre Jorge Monclair, no Instituto Templo Glauber, em Botafogo. No final dos estudos, escolhemos a peça de Plínio Marcos, “O Abajur Lilás”, e a adaptamos para o cinema. Cada aluno dirige duas sequências do filme de 30 minutos, com atores profissionais e todo o trabalho de A até Z. Depois disso escrevo, produzo, filmo e dirijo alguns curtas-metragens e documentários com um grande amigo e cineasta, Rodrigo Infante. Minha ida à Bélgica deu-se por causa de uma amiga do Rio que fazia doutorado em Antropologia na UFF e que estava de férias em Liège. A ideia era passar três meses visitando amigos espalhados pelo continente europeu, e Liège fazia parte do roteiro. Depois de ter visitado Marselha, Gênova, Roma, Milão e Paris, decidi passar o final do meu visto em terras belgas. Bruxelas me impressionou com suas línguas e suas cores diferentes. Fiquei curioso e interessado em falar melhor a língua; comecei um curso de francês na VUB (Universidade Livre de Bruxelas). Em setembro de 2004, na embaixada do Brasil, descubro que existe um encontro da comunidade brasileira todas as quintas-feiras. Fico conhecendo pouco a pouco a comunidade e os artistas residentes, entre eles Sidney Tendler, Susana Rossberg, Inêz Oludê e outros. Através desta nova rede, sou contratado para organizar o primeiro festival Cine Brasil, em 2005, no Cinema Aventure. De visita ao Rio de Janeiro, no outono de 2005, juntamente com um amigo videasta napolitano, Gigi Mette, criamos a Não Tem Zoom Autoproduções, a NTZ. A ideia motriz deste coletivo é estar próximo das situações mais interiores e tão perto quanto

Heron Ferreira diante do Museum of Modern Art.

Cartaz de “Esse pequeno vislumbre”, de Heron Ferreira.

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parte 8 – cinema e televisão

Cartaz de “Le meme chapeau que toi”, de Heron Ferreira.

possível da realidade, sem a necessidade de lidar com zoom remoto. A realidade é mais “real” quando estamos próximos dela. Nosso primeiro filme juntos aconteceu em junho de 2006. Gigi veio me visitar em Francorchamps, no sul da Bélgica, perto de Verviers, onde ocorrem as corridas de automóvel. Era um dia ensolarado, o segundo dia do verão. Estava levantando uma graninha extra, trabalhando como garçom. O restaurante tinha um belo lago redondo no centro. Estava quase na hora de abrir o serviço do jantar quando um cozinheiro me pede para ajudá-lo. Era para preparar um esquentador de pratos, no qual um gel-combustível era utilizado para manter a comida quente. Coloquei a quantidade a olho e tentei acender e nada. O cozinheiro me disse que era necessário colocar mais gel no copo para que o gel-combustível permanecesse durante todo o jantar. Sinto um frio que me atravessa, mas sigo suas ordens. Quando viro o galão de três litros a flama sobe e explode no meu rosto. Só tenho o reflexo de levantar a cabeça e de me jogar no lago. A partir de lá, muita dor, o fim do verão, e o nascimento de um filme sobre meu acidente, Le Même Chapeau Que Toi (2007), Prêmio Especial do Juri no Festival CinEsquemaNovo 2007. Anoto no cartaz do filme: “Vítima da explosão de um esquentador de pratos, Heron Ferreira é queimado em segundo e terceiro graus no rosto, pescoço e mãos. Para não cair no desespero e em depressão, decide filmar o que aconteceu com ele. As trocas de curativos e os cuidados diários, um encontro nos corredores do hospital e sua recuperação vão ajudar a recuperar a esperança e a confiança.” O pequeno Elias e seu pai, o incentivo da doutora Anne Pierlot e de sua equipe, o apoio da família e o trabalho conjunto com Gigi Mette na câmera e na edição foram fundamentais na realização deste filme. Em setembro de 2006, ingresso na Académie de Dessin et Arts Visuels de Molenbeek Saint-Jean, Bruxelas, em Videografia, onde estudo durante dois anos. O interessante desta escola é que você é quase forçado a ter o seu próprio projeto, a descobrir o seu olhar sobre o mundo. O singular dentro do plural. Aprendi muito, tive cursos com Thierry Zeno sobre crítica, e com Jean Timmerman sobre a importância do som. Em junho de 2007 conheço Jean-Pierre e seus companheiros. Eles vivem em autogestão nas bordas do Canal Saint-Martin, na décima circunscrição administrativa de Paris, desde 2006. Exigem a garantia dos direitos fundamentais, o monitoramento da saúde em todos os acampamentos de Paris e a existência de um acampamento permanente, assim como o direito de viver de uma forma diferente. Após o encontro com Marianne Col nasce um fragmento do cotidiano deste acampamento no coração de Paris, Sans Doute Fous (Sem Dúvida Loucos), em 2007. Um mês após as filmagens eles foram despejados e nunca mais tivemos notícias de Jean-Pierre. Em fevereiro de 2008, Este pequeno vislumbre dos Balcãs decorre de um projeto comum, e de um movimento composto por muitos olhos, mãos e vozes. Tudo começa e termina nas margens do Danúbio, com o encontro de três estrangeiros durante uma

noite de embriaguez: Gigi Mette, napolitano, Heron Ferreira, brasileiro, e Nikola Buric, servo-bósnio. Naquela noite nasce um curta-metragem que conta a história de um menino da Sérvia, na verdade a história de muitos jovens sérvios. O filme rodou o mundo e foi premiado em 2010, em Belgrado. Após o festival, foi guardado na videoteca nacional de Belgrado para lembrar que a Sérvia esteve um dia fora do espaço Shengen (aderiu em 2009). Em fevereiro de 2009, fui convidado pela jornalista belga Marie-Martine Buckens para acompanhá-la na pesquisa para seu documentário, Sementes, na Amazônia. Em Manaus, entrevistamos escritores, responsáveis ambientais, artistas e ribeirinhos. Seu filme questiona a relação do homem com a natureza e as reservas ambientais, das quais o homem que ali vive deve se retirar para preservar a natureza. No mesmo ano, em Paris, entrevistamos Franz Krajberg, que nos falou da sua fuga do ser humano, da guerra e de seu re-nascimento quando conheceu o Brasil e a floresta. Foi emocionante. Em meados de março de 2010, fui convidado pela Associação Vision e por ZinTV para fazer um filme sobre um grupo de jovens de Bruxelas, de origem marroquina, que partiriam para Quebec para aprender teatro e improvisação. Através dessa viagem eles descobrem um país, uma cultura e aprendem a arte do entretenimento. Além da improvisação e, sobretudo, da troca, a comunicação entre os jovens está no centro do projeto. O filme, rodado em Bruxelas, Montreal e Nova York, se chama Au Coin de Ma Rue (Na Esquina da Minha Rua). Nosso coletivo de autoproduções audiovisuais, Não Tem Zoom, procura contar fragmentos da realidade. O desejo de experimentar, aprender, participar e criar comparações tem muito a ver com a capacidade de mudar seu ponto de vista: o mesmo objeto, evento, pessoa, pode-se ver de uma maneira diferente, dependendo dos óculos que usamos e da perspectiva em que estamos. É preciso se aproximar ou se afastar, se inclinar ou dar alguns passos para ver o mesmo fenômeno de maneiras diferentes e entender sua complexidade. Afinal, a chave é uma questão de atitude: a gente pode se mover com a câmera, mas não adiantará nada se não se é capaz de mudar seu ponto de vista, dentro de si.

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Filmando nas aldeias Kayapó G u s t a a f Ve r s w i j v e r

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filme Nanook of the North, de 1922, descreve a vida quotidiana de Nanook e de sua família Inuit, no Polo Norte canadense. Apesar de algumas sequências terem sido encenadas, foi o primeiro longa-metragem etnográfico digno desse nome. Durante os decênios seguintes, muitos documentários magníficos e valiosos foram feitos sobre povos do mundo. Na maioria eram documentos isolados, produzidos por cineastas independentes. O canal britânico Granada Television escolheu outra opção quando, em 1970, produziu uma verdadeira série de documentários sobre sociedades tribais. Para cada episódio, um cineasta de Disappearing World (1970-1993) trabalhava em conjunto com um antropólogo especializado. A série conheceu um sucesso inesperado, de modo que a BBC resolveu lançar, igualmente, sua série, Under the Sun (1989-2002), que se consistiu de mais de 80 episódios. Graças ao sucesso das duas séries britânicas, nos anos 1980 e 1990 muitos documentários etnográficos foram difundidos, nos melhores horários, em muitas televisões europeias e americanas. Nunca antes culturas diferentes haviam obtido tanta atenção nos países ocidentais. Editoras aproveitaram essa tendência para publicar magníficos livros de fotografias, nos quais um povo era, a cada vez, posto em evidência. Mas essa atenção foi passageira e hoje em dia documentários sobre povos indígenas são mostrados raramente nas televisões europeias e americanas. O papel desses povos parece servir agora sobretudo como cenário das séries ditas “de realidade”, nas quais brancos, de preferência totalmente despreparados, são jogados no meio de uma suposta sociedade “primitiva”, e gradualmente tornam-se membros da tribo. Isso não exclui, evidentemente, que ainda sejam feitos documentários etnográficos esplêndidos. Muito pelo contrário, como se vê pelo sucesso dos festivais etnográficos internacionais organizados anualmente. Característico, nas produções recentes, é o fato de que as populações filmadas participam ativamente da decisão do conteúdo dos filmes. Foi na série Disappearing World que, em 1987, o primeiro documentário sobre os índios Kayapó, do Brasil Central, viu a luz. Eu mesmo tinha feito uma pesquisa antropológica entre os Kayapó entre 1974 e 1981. Teria gostado de filmar durante essas viagens, mas era praticamente impossível, porque não dispunha dos meios financeiros para comprar a custosa aparelhagem e também porque, naquela época, filmar não era tão fácil quanto agora. Ainda se trabalhava com grandes câmeras, colocadas em pesados tripés, e o som tinha de ser gravado com outro aparelho. Era a época das bobinas de filme em 8 mm e 16 mm, grandes e de manejo complicado. Também era extremamente difícil conservá-las em circunstâncias tropicais. A época digital ainda era uma ficção, e de estabilizadores de imagem, DVD ou HD, ainda não se tinha ouvido falar. Visto que eu sempre viajava sozinho nessas regiões

Durante o ritual kuarup, os Mehinako enfeitam o tronco que representa o Rei Leopoldo III da Bélgica, Aldeia Utawana, Parque Indígena do Xingu, Gustaaf Verswijver.

de difícil acesso, percebia que a pesquisa antropológica não combinava bem com filmagens. Durante o período de 1974 a 1981 permaneci, ao todo, 37 meses com os Kayapó. Trabalhava numa aldeia onde uma só pessoa falava um pouco de português, de modo que fui, literalmente, obrigado a aprender a linguagem indígena. Foi um aprendizado lento, mas a necessidade de comunicar continuamente me aproximou muito das pessoas. Os laços com uma certa família tornaram-se mais fortes do que com as outras; depois de mais de um ano de pesquisa de campo me deram alguns nomes indígenas e fui, lentamente, adotado pela família. Os direitos assim adquiridos eram, evidentemente, ligados a obrigações: esperava-se, sobretudo, uma contribuição na área econômica e ritual. Passaram-se muitos anos antes que eu conseguisse atingir minha ambição de filmar os Kayapó. Foi em 1989, quando mais de 600 Kayapó juntaram-se na cidade de Altamira para protestar contra a construção de uma grande barragem na região. Com Lode Cafmeyer, um cineasta independente belga, produzi então The Green Puzzle of Altamira, filme que foi indicado ao festival Margaret Mead, em Nova York, em 1993. Depois ainda contribui com diversos programas de televisão, tais como o relatório da viagem aos Kayapó de Vera Dua, ministro flamengo do Meio Ambiente, e cinco documentários de longa-metragem, dos quais o foco central era sempre um ritual Kayapó diferente. Essa escolha era consciente, porque os rituais Kayapó são apresentações impressionantes, durante as quais os dançarinos aparecem com pinturas corporais diferentes e complexas, assim como uma série de adornos, inclusive imponentes cocares.

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Nosso patrocínio subentendia o estabelecimento de um longo laço econômico com as comunidades que organizavam as festas, como também com uma série de pessoas que preenchiam certos papéis durante os rituais. Atualmente, 15 anos depois, o processo continua em andamento, e os Kayapó ainda exigem, regularmente, compensações de Martine e de mim. Honrar crianças brancas, num ritual indígena, ocorre muito raramente, porque significa que a sociedade indígena investe nas crianças, dando-lhes, assim, seu próprio lugar, dentro da rede da sociedade. Trata-se de uma avançada forma de adoção. Desse ponto de vista, as imagens que filmamos durante as celebrações de meus filhos são exclusivas. Mesmo assim, foram pouco difundidas, de maneira que esses fatos passaram praticamente sem serem notados. Talvez isso esteja relacionado com a falta de ostentação belga; nós, os belgas, somos demasiadamente modestos, e não ousamos mostrar devidamente as nossas realizações. Vivenciei isso novamente, em agosto de 2012, quando os índios Mehinako, do Parque Indígena do Xingu, organizaram uma homenagem muito especial para honrar a memória do Rei Leopoldo III, da Bélgica, no grande ritual chamado kuarup. O soberano havia visitado o território em 1964 e tinha tido um papel importante na história daquele Parque Nacional, que mais tarde se tornou um ícone brasileiro, em termos de respeito às culturas originais do país. Somente seis brasileiros tinham sido homenageados da mesma maneira pelos índios do Parque do Xingu; o Rei Leopoldo III fora a primeira pessoa não brasileira incluída na seleta lista de brancos assim honrados. Quando se honra um brasileiro dessa maneira, o fato é difundido, detalhadamente, na mídia nacional. No entanto, no caso do Rei Leopoldo III, tudo se desenrolou serenamente, sem jornalistas ou câmeras de televisão. Assim, o fato não foi destacado e passou despercebido. As imagens que filmamos durante as celebrações de meus filhos podem não ser conhecidas nos países ocidentais, mas elas têm um sucesso enorme entre os Kayapó. São os documentários que eles mais assistem nas aldeias. Esse sucesso tem a ver com o fato que ambos foram filmados em um momento no qual, segundo os Kayapó, as tradições ainda eram seguidas de maneira bastante estrita, justo antes de uma série de profundas mudanças. Aos olhos dos Kayapó, essas imagens são o último testemunho de “como era antigamente”, o que provoca certa nostalgia. (Tradução Susana Rossberg)

Martine sentada ao lado de Kyra ‘Nhàktu’ e Filip ‘Bepgogoti’ durante a festa das ‘mulheres pintadas’, Aldeia Pukanu (Kayapó), 1997, Gustaaf Verswijver.

De todas as filmagens das quais participei, duas merecem menção especial. Trata-se do longa-metragem The Feathers from the Sky (2001), que produzi com Lode Cafmeyer e a produtora ITP, de Bruxelas; e de certas sequências do programa de interesse humano Napels Zien (2002), da produtora Woestijnvis, no qual se segue algumas pessoas flamengas que empreendem uma viagem que vai mudar suas vidas. Nesses filmes igualmente destacavam-se os rituais Kayapó, mas o excepcional foi que meus filhos foram celebrados durante esses rituais. Atendendo a um pedido dos Kayapó, eu tinha dado aos meus dois filhos nomes Kayapó: para Kyra ‘Nhàktu’, e para Filip ‘Bepgogoti’. Segundo a tradição kayapó, minha esposa, Martine, e eu deveríamos organizar uma cerimônia de nomeação antes das crianças atingirem a idade de, mais ou menos, 12 anos. A maioria dos grandes rituais kayapó são cerimônias de nomeação que, de certa maneira, podem ser consideradas festas de batismo. Os Kayapó diferenciam diversas categorias de nomes pessoais que são ligados a cerimônias específicas. Para Martine e para mim, isto resultou que tivemos de patrocinar duas festas: a “festa das mulheres pintadas” para nossa filha e a “festa da onça” para nosso filho. Tudo isso era orquestrado e decidido pela minha família Kayapó adotiva. Cerimônias de nomeação são grandes eventos, e os diversos rituais ocorrem durante várias semanas, às vezes meses. Para cada uma das duas festas me dirigi para uma aldeia Kayapó com minha família, durante algumas semanas, a fim de acompanhar a celebração das crianças. Aconteceram em junho e julho de 1997 e em julho e agosto de 2002.

O fascínio pelo Nordeste Nicolas Hallet

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uando estudava na Bélgica, eu morava numa república estudantil de um projeto humanitário da ONG OXFAM, organização que trabalha com os países do Sul numa relação de comér-

cio justo (fair trade) com pequenas comunidades, na Universidade de Louvain-La-Neuve, onde estudei Geografia e Sociologia. Nessa república estudantil havia gente do mundo inteiro. Um dia convi-

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cinema atual

Bisavó de Nicolas Hallet, Irene de Nangy (3ª pessoa sentada da esquerda para a direita), na chegada do navio ao Brasil.

dei um amigo brasileiro, Paulinho Lupifieri, para almoçar na casa de meus pais, uma casa velha e bagunçada no interior da Bélgica. Ele ficou impressionado com a quantidade de objetos do Brasil que havia lá: quadro do Pão de Açúcar, Santo Antônio de madeira, boneca negra da Bahia... Esses objetos não haviam me chamado a atenção antes. Foi quando minha mãe esclareceu a relação da família com o Brasil. Minha bisavó, Augusta Leclercq, havia imigrado da América do Sul em 1910. Ela nasceu em 1888 na província do Hainaut. Depois da adolescência mudou-se para Bruxelas, onde era modiste, fabricava chapéus e participava de um grupo de teatro, La Compagnie Du Bois Sacré. Frequentava a boemia de Bruxelas, onde começou a cantar acompanhada de um pianista. Numa relação com um homem da burguesia teve um filho, meu avô, Jean Lebrun Leclercq. Como ele não assumiu a relação, ela deixou a criança sob a guarda da avó materna e pegou um navio para a América Latina, somente com a roupa do corpo. No Brasil, começou uma nova vida como cantora fazendo turnês de Belém do Pará a Buenos Aires, na Argentina, sob o nome artístico de Irene De Nangy. Quando a Primeira Guerra Mundial começou, ela foi buscar seu filho e se instalaram no Rio de Janeiro. Lá, ela construiu o Hotel Bélgica na Rua das Laranjeiras, e com

ele a riqueza chegou. Nunca se casou, era uma mulher independente já no início do século XX. Voltaram para a Bélgica no final dos anos 1920. Ela transformara todos os seus bens em diamante e mandara costurar uma cinta para sair do país com essa fortuna clandestinamente, pois, nesse período, o Brasil não permitia a saída de valores. Assim que chegou à Bélgica, comprou três casarões em Bruxelas. Morreu em 1942, provavelmente de um câncer, e meu avô foi morar na mata para se esconder dos alemães, que recrutavam jovens para trabalhar nas usinas de armas durante a Segunda Guerra Mundial. Meu avô morreu em 1973 com muitas saudades do Brasil, sem nunca ter voltado. Cheguei ao Brasil em 1997 com 26 anos, mais ou menos a idade em que meu avô saíra do Brasil, no final da década de 1920. Eu já tinha viajado bastante pelo Leste Europeu, Oriente Médio e África, porém nesses países nunca me senti em casa, a diferença cultural era muito grande. Cheguei ao Rio de Janeiro e, no dia seguinte ao desembarque, peguei um ônibus para Salvador, Bahia, a fim de conhecer uma cidade de tamanho mais humano e talvez de tamanho mais “belga”. O Rio me parecia uma enorme “Paris Tropical”.

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Cartaz de Irene de Nangy, bisavó de Nicolas Hallet.

Nicolas Hallet trabalhando no filme “O Som ao Redor”.

Dessa época saíram filmes como As três histórias da Bahia, de Sergio Machado, José Araripe Júnior e Edyala Iglesias, em 35 mm, ou, na tendência mais experimental, Capitália, de Danillo Barata, em 16 mm. Fui microfonista no primeiro e diretor de fotografia no segundo. Hoje a realidade no Nordeste é bem diferente, trabalhamos muito com a formação dos profissionais de cinema. Fui professor do Centro Audiovisual Norte e Nordeste – Canne –, durante anos ministrei cursos de curta duração para quem já tinha “um pé na área” do audiovisual. Esses cursos e a criação de editais melhoraram muito a qualidade dos filmes do Nordeste. O que me chamou para ficar no Nordeste foram as pessoas, essa liberdade de pensamento, apesar de uma realidade “pesada” em comparação com a Bélgica. O filme de Damien Chemin e Nicodème de Renesse, Lampião, sonho de bandido, retrata bem esse universo livre e pouco racional. Com Simone Dourado, minha esposa, além de dividir a captação de som, como no filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor, melhor som no festival de Gramado, faço filmes documentários do tipo observacional, como o Carro de boi, melhor filme do festival 5 Minutos de Salvador, ou o Seca Verde, melhor filme baiano do festival Cachoeiradoc. Nesse filme acompanhamos a família de um pequeno agricultor, dentro do seu quotidiano, durante um mês. Hoje estamos morando em Olinda e participando, em Recife e Salvador, de vários grupos de cineastas. Um belo exemplo desse cinema coletivo é o filme O menino do 5, de Wallace Nogueira e Marcelo Matos, melhor curta do festival de Gramado 2012, no qual fiz o som, a fotografia, junto com o Wallace, e a Simone fez a direção de arte. Trocar a Bélgica pelo Brasil, no meu caso pelo Nordeste, me fez arriscar uma aventura de vida mais livre, menos convencional, baseada na fascinação que eu tenho pelo Nordeste, que o cinema me possibilitou conhecer a fundo. Não consigo ficar muito tempo nas grandes cidades, é o interior que me dá as chaves das grandes questões da vida.

O primeiro contato com o Nordeste acendeu em mim uma sensação diferente. Senti-me como um imigrante de última geração e não exatamente como um estrangeiro. Faço muitas fotos e um dos meus grandes trabalhos de fotografia, que resultou em um livro, Nordeste feito à mão, foi feito durante a filmagem de uma série de documentários sobre o artesanato nordestino. Rodamos mais de 40 mil quilômetros. Nessa viagem descobri a riqueza, a cultura, a música e as tradições do Nordeste. Cheguei a Salvador num momento-chave. Era a retomada do cinema baiano, após dez anos sem que quase nada tivesse sido rodado. A maioria dos técnicos tinha ido embora para o Sudeste do país ou mudado de profissão. Nesse contexto, acabei me especializando em captação de som e direção de fotografia. Tinha feito, em Bruxelas, um curso de cinema na Académie des Beaux Arts de Molenbeek, que me ajudou muito. Produtores locais tinham interesse em profissionais locais, sem ter de chamar pessoas do eixo Rio–São Paulo cada vez que um filme era rodado. Em Salvador, nessa época, havia duas tendências na produção cinematográfica: a tendência industrial, criando “set de filmagem com equipe grande e uma certa hierarquia entre as pessoas”, e outra tendência, mais próxima da vídeo-arte ou da turma do super 8 dos anos 1980. Rodamos muito, operei muitas câmeras 16 mm e gravadores de som DAT. Foi um processo doloroso; nessa época não havia os incentivos culturais que existem hoje, os filmes demoravam muito para ficar prontos. Em todas as áreas do cinema as pessoas estavam começando ou recomeçando a filmar. Estourava-se os orçamentos. Às vezes nem havia orçamento. A gente bancava três latas de negativos 16 mm e pronto. E a revelação? E a telecinagem? E a mixagem? Tem filmes, curtas e longas-metragens, que demoraram mais de três anos entre o momento de serem filmados e a finalização.

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televisão

A difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para os belgas Daniela Rocha

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ena 1: “O maior problema da Favela da Rocinha não é o tráfico de drogas. É a falta de oportunidade”, assim uma das moradoras da comunidade tentava explicar à equipe de TV belga os desafios de um país cheio de desigualdade, como é o Brasil. Cena 2: “Nosso momento é agora. Faremos deste país campeão na Rio 2016”, explicou à mesma equipe o presidente da Confederação Nacional de Natação, um dos esportes em que o Brasil tem tradição de medalha olímpica (para além do “futebol-indústria” e do judô, nos quais o Brasil é celeiro de bons atletas). Cena 3: “Avisa ele que pupunha crua é veneno”, pediu o feirante do tradicional mercado popular Ver o Peso, em Belém, no Pará, ao ver o chef de cuisine belga levar à boca essa fruta típica da região, normalmente consumida após cozida em água e sal e apreciada sem casca, acompanhada de um cafezinho. Cena 4: “O que me surpreende é o otimismo do povo mesmo diante dos problemas”, do presidente da Unizo, organização para pequenas e médias empresas na Bélgica, ao conhecer algumas experiências brasileiras na área de tecnologia e empreendedorismo. Cena 5: “Vou comentar sobre o politeísmo no Brasil”, tentativa belga de compreender o sincretismo religioso no país, felizmente esclarecido antes da TV filmar o comentário. Cena 6: “Isto é uma loucura”, comentário de um artista plástico belga ao visitar o Instituto Cultural Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, local que reúne em suas instalações e em seu jardim botânico obras dos mais renomados artistas contemporâneos do mundo. Cena 7: “Menina, cê tá de parabéns! Nunca ninguém traduziu tão bem o que eu falo!”, do cantor e compositor brasileiro Tom Zé, a quem aqui vos escreve, durante entrevista para a equipe de TV belga que tentava em vão entender suas complexas explicações sobre a Tropicália, importante movimento artístico brasileiro iniciado em 1967, do qual foi um dos idealizadores. Cena 8: “Ah, eu adoro ter um marido machão”, frase repetida à exaustão à equipe de TV belga que buscava entender o fenômeno (ultrapassado) do latin lover, sem perceber que a mulher brasileira ganha autonomia, e que um homem machão não é o mesmo que um machista.

Cena 9: “É tanta água que a poluição da cidade se dilui”, bió­ loga tentando dar ideia da imensidão do Rio Amazonas, após, diante da equipe de TV belga, coletar água do rio em Manaus para análise. Cena 10: “Vamos tratar do populismo no Brasil”, proposta inicial da equipe belga para tentar explicar a política do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus projetos sociais. Depois de esclarecido, o termo “populismo” foi trocado por “governo popular”. Todas as cenas acima aconteceram nos bastidores das filmagens da série de documentários Brazilië voor Beginners, levada ao ar pelos canais belgas flamengos TV Canvas (2010) e Eén (2011). A ideia de revelar o Brasil para o público belga integrou um projeto dedicado aos países do Bric. Depois de China voor Beginners e India voor Beginners, foi a vez do Brasil, seguido da Rússia. O formato consistia em ter uma apresentadora que ajudasse um especialista belga flamengo a compreender o país. Eu fui a jornalista escolhida para apresentar o Brasil aos “experts” belgas que viajaram a uma determinada capital para conhecer o tema da sua especialidade no Brasil e, evidentemente, para travar contato com uma realidade distinta da belga flamenga. Foram quatro meses de filmagem que me permitiram ir a recantos onde nunca havia chegado. E, se até para brasileiro é difícil entender o Brasil com sua diversidade e suas contradições, para alguns estrangeiros isso se torna, a curto prazo, quase impossível. Pois até o roteiro da série às vezes metia os pés pelas mãos... Uma das pérolas estava logo no primeiro script, que explicava que os militares da ditadura só saíram do poder em troca de latifúndios, e sugeria que esses coronéis até hoje determinam os rumos políticos do país... Poderia até ser verdade se a ditadura militar não tivesse acontecido entre 1964 e 1985, e os chamados coronéis de engenho do Nordeste, vivido no Brasil Colônia, período áureo de exportação de açúcar, entre os séculos 16 e 17. Apesar do esforço, nem sempre os episódios da série se revelaram verdadeiramente esclarecedores ao público espectador. País dos contrastes, o Brasil naturalmente desperta sentimentos múltiplos a seu respeito... Entre reportagens e resenhas publicadas na

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época da série de TV, tomei de forma aleatória dois exemplos. Enquanto uma revista (Uit Magazine) anunciava na capa Brazilië is Hot, que remetia a um dossiê de 12 páginas com reportagens sobre o país, uma das resenhas críticas sobre a série foi publicada pelo site Humo.be com o sugestivo título de Cartões Postais do Inferno (Ansichtkaarten uit de hel). Compreensível, uma vez que o primeiro episódio a ser levado ao ar teve como tema a criminalidade no Rio de Janeiro, com imagens (de arquivo) de tiroteio nas favelas, e entrevistas com policiais, criminalistas e educadores que vivem uma realidade de grande violência física e psicológica... Chegaram a me explicar que para que o público belga entendesse a situação no Rio de Janeiro eu deveria compará-lo à Faixa de Gaza... Eu acreditava que essa comparação mais confundia que esclarecia (porque os conflitos urbanos do Rio de Janeiro não têm natureza de guerra civil); felizmente essa frase foi descartada. Depois desse tema, os outros foram bem mais amenos e mostravam um Brasil que, apesar das adversidades, esbanjava criatividade e bom humor, tanto nos negócios e empreendimentos das mais variadas naturezas, como na liberdade de culto do chamado maior país católico (“não praticante”) do mundo, ou na sua culinária amazônica de peixes e temperos locais, contrastado ao universo musical que derruba fronteiras, ou no ajuste da relação entre homens e mulheres em uma sociedade que já foi patriarcal. Convidada a escrever um livro com o mesmo título e os mesmos temas da série, vi nele a oportunidade de revelar várias situa­ ções, inclusive cômicas, que vivi nesse rico convívio de diálogo entre Brasil e Bélgica. Tive como meta dar a minha visão de brasileira sobre o meu país e publicar entrevistas que realizei mesmo quando as câmeras estavam desligadas e que renderam momentos emocionantes. Um deles foi a conversa que tive com um biólogo do Ibama de Manaus sobre a trágica morte de um filhote de peixe boi que atrapalhava o abate de sua mãe durante a temporada de pesca desse grande mamífero de água doce, tradição no Amazonas que colocou a espécie em risco de extinção. Outro, foi a história de um caçador de macacos que agradeceu por ser preso e confessou que tinha pesadelos com os gritos das fêmeas e filhotes ao verem os machos mortos a tiros cairem das árvores e serem recolhidos das águas do Rio Amazonas. Ou ainda minha conversa com uma família do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra em Rezende (RJ), e me surpreender com o nível de participação e de destemor das crianças, politizadas desde o berço, na busca pela reforma agrária. Outro ainda foi minha curiosidade para entender a realidade da violência urbana no Rio de Janeiro e de poder confessar o meu medo em entrar à noite com a equipe de TV em uma das maiores favelas da cidade para realizar uma entrevista com um ex-traficante e ex-usuário de crack. Existem territórios onde a licença para entrar não significa garantia de segurança. Mas felizmente, no momento em que chegamos, fomos “recepcionados” por uma chuva torrencial e não havia vivalma nas ruelas da Rocinha, quase às dez horas da noite. Durante as filmagens, em nenhum momento houve censura ou restrição imposta à equipe belga. O máximo que ocorreu foi

um pedido do diretor do presídio de Bangu I para que não filmássemos os presos nas celas (para garantir o direito à privacidade deles). Mesmo assim, eles foram filmados, e seus rostos, exibidos, sem que isso trouxesse problemas posteriores. Pensei com meus botões: em que país do mundo uma equipe de TV estrangeira ousaria pedir à polícia aérea para acompanhar seus voos em helicóptero por tempo ilimitado, além de realizar em inglês entrevistas em terra e em ar, respondendo questões que iam da criminalidade das ruas à corrupção nas corporações da polícia... Os policiais do GAM (Grupamento Aéro-Marítimo) do Rio de Janeiro fizeram tudo isso e chegaram a emprestar seus uniformes oficiais para uso da equipe a ser filmada e do diretor. Essa abertura, essa sinceridade, esse gosto pela exposição, típicos do Brasil, foram registrados, mas nem sempre bem aproveitadas na edição final na TV... Porque, para muito além da criminalidade, que foi o tema mais controverso da série, o meio ambiente, a religião, a política, o empreendedorismo, a gastronomia, o esporte, a sexualidade, a música e as artes do Brasil se revelavam um campo imenso a ser explorado e mostrado, com seus personagens que aos olhos belgas pareciam tão estranhos que logo se tornavam simpáticos. No episódio sobre a sexualidade, houve espanto em ver que homens e mulheres falam sobre sua intimidade com tamanha desinibição... Ali, perdeu-se a oportunidade de mostrar como a sociedade brasileira vive um tuning point, com mulheres que conquistaram autonomia financeira e sexual, definindo parceiros, número de filhos e quando tê-los. Em paralelo, o homem, que antes era o provedor, tenta se reposicionar e aprender um novo papel que, entretanto, não está claro para ele. Em empreendedorismo, o espanto ocorre porque, aos olhos belgas, seria impensável iniciar um negócio com quase nada de recurso financeiro. E o Brasil mostra que muitas das experiências que começam precárias conseguem apoio para corrigir seus produtos e ingressam no mercado com excelente retorno a médio prazo. A cultura de arregaçar as mangas e ir à luta, aceitando os riscos, surpreendeu os belgas. Por outro lado, o jeitinho brasileiro de improvisar ou de pensar que no final tudo vai dar certo prova que o país precisa aprender que planejamento e pesquisa urgem em fazer parte da rotina de quem quer entrar em um mercado cada vez mais competitivo. A percepção da música brasileira na série, tema filmado em São Paulo, optou por mostrar uma música de raiz, do folclore, um pouco do samba, do jazz, do hip-hop, do rock e da MPB, que revelou um belo recorte no caldeirão de sons e ritmos paulistas. Na gastronomia, a opção foi registrar a fantástica culinária amazônica, conhecida principalmente por quem é da região, já que demanda ingredientes locais e peixes frescos encontrados apenas ali. Minha pesquisa sobre a comida amazônica foi intensa, já que eu mesma, nascida no Estado de São Paulo, pouco conhecia dos sabores amazônicos. Tive dificuldade em decorar tantos nomes de origem indígena das frutas, ervas, temperos e pratos típicos, e mais ainda em descrever o sabor e o preparo deles, já que até o açaí de polpa congelada servido com guaraná em todo o Brasil não tinha

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televisão

nada a ver com o creme do açaí fresco consumido na região com farinha de mandioca. A série de TV e o livro Brazilië voor Beginners não satisfizeram por completo a curiosidade dos belgas para entender o país. Ao longo do ano de 2011, fui chamada a fazer dezenas de palestras, em português, inglês e francês, para belgas em Antuérpia, Gand, Bruges, Oostende, Aalst e Bruxelas. Alguns já haviam visitado o Brasil ou tinham familiares por lá. Outros, pouco sabiam, mas queriam entender que tipo de fenômeno é esse, de um país que, em algumas décadas, deixa de ser considerado de terceiro mundo e passa a figurar entre as oito maiores economias do planeta (e ganha status e poder nas mesas de negociação), um país que inicia um caminho por maior inclusão social, um país que possui um estratégico mercado consumidor, um país que é percebido como amea­ ça aos outros quando o tema é agrobusiness ou biocombustível.

De repente, notei nos belgas que eles mesmos deixaram os estereótipos sobre o Brasil de lado (o carnaval, o futebol e a caipirinha eram meras alegorias, e deixaram de ser o main issue que traduziu durante tantos anos o Brasil). Sem negá-los, busquei contar da minha experiência, assumindo as precariedades, mas sem ocultar o orgulho que tenho das conquistas do país. Um dos comentários que mais me chamou atenção foi de um dos participantes em Bruges. “Pensava que você não tinha muita coisa a dizer. Mas quando você fala, parece que a gente encontra, enxerga e sente o Brasil.” Daniela Rocha é jornalista, autora do livro Brazilië voor Beginners (Witsand Uitgevers) e apresentadora da série de TV de mesmo título exibida pela TV Canvas em 2010.

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pintura e escultura

parte 9

Artes Plásticas

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parte 9 – artes plásticas

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pintura e escultura

Rastros flamengos no Barroco mineiro A l e x Fe r n a n d e s B o h r e r

A

s gravuras tiveram papel preponderante na arte colonial brasileira. Era comum os artistas locais se apropriarem de ilustrações europeias, usando-as como fonte de inspiração e padronização iconográfica. Já que as tipografias eram proibidas no Brasil

colônia, tratava-se de impressos vindos de outras partes do mundo (e não somente de Portugal). Nos arquivos paroquiais mineiros localizei centenas de impressos ilustrados remanescentes, todos europeus. Tudo leva a crer que, durante o século XVIII e ainda

“Santa Ceia”, de Manoel da Costa Ataíde, Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, MG.

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parte 9 – artes plásticas

no XIX, esse número deva ter ascendido a dezenas de milhares, o que bem demonstraria a magnitude do comércio livreiro entre o Velho e o Novo Mundo. Os livros ilustrados, cujos mais belos exemplares saíam dos prelos de Antuérpia, especialmente da Tipografia Plantiniana, popularizaram e intercambiaram, pela primeira vez na história, imagens feitas em série. Das tipografias, os livros eram enviados aos quatro continentes. No mundo luso-brasileiro, suas belas ilustrações serviram de modelos iconográficos a artistas locais, ainda mais por serem cópias de obras de grandes mestres. Dessa maneira, as pinturas de vários artistas de Minas Gerais têm muita semelhança formal com determinadas criações europeias. É possível ver influências tão diferentes como Rafael (1483-1520) ou Abraham Bloemaerte (1566-1651). Todavia, aquele que mais influenciou os pintores mineiros foi Rubens (1577-1640), cuja obra teve muitas versões impressas e inspirou, por sua vez, toda uma geração de gravadores. No antigo Colégio do Caraça, localizado no Quadrilátero Ferrífero, zona de intensa exploração aurífera na antiga capitania de Minas Gerais, encontra-se hoje, nos corredores neogóticos da igreja local, uma interessante ‘Santa Ceia’ do aclamado pintor Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), concebida nos últimos anos de sua vida. O colorido, a musculatura e o planejamento são típicos de Ataíde, mas, no cerne desta sua criação, está, sem dúvida, o uso de uma ou mais gravuras europeias. Por volta de 1630, Rubens concebeu algumas ‘santas ceias’, todas formalmente aparentadas entre si, com poucas variações. O principal exemplar é o que se conserva na Pinacoteca di Brera, em Milão, que em muito lembra a citada pintura mineira: o conjunto equitativo dos apóstolos em torno da mesa; o Cristo, com olhar piedoso voltado aos céus; o ato de abençoar os pães; o olhar indagador de Judas à direita (mesma posição dos outros estudos de Rubens e da ‘ceia’ de Ataíde). Em suma: mesmo com diferenças formais e pictóricas (penumbrismo de Rubens X colorido vivaz de Ataíde), podemos dizer que há um elo entre as concepções do mestre europeu e o pintor mineiro. Certamente Ataíde não viu pessoalmente qualquer obra de Rubens, mas pelas gravuras pôde ter ideia precisa do que havia sido produzido na Europa, por este e por outros artistas, contemporâneos ou não do próprio Ataíde. Prova disso está em outra ‘santa ceia’ concebida pelo mestre mineiro: na ilharga da capela-mor da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto o pintor representou novamente a última refeição de Cristo, esta nitidamente ligada a uma gravura de missal feita na Tipografia Régia, em Lisboa, e circulante em Minas nos últimos anos do século XVIII e inícios do XIX, justamente a época em que Ataíde produziu as obras citadas aqui. É evidente nessa gravura lisboeta a influência do desenho rubensiano, típico das gravuras de Plantin. Cabe frisar que, além dos missais dos arquivos paroquiais, Ataíde também dispunha de algumas bibliotecas ricamente ilustradas,

“Santa Ceia”, de Silva F., gravura de Missal lisboeta, inspirada em Missal de Plantin, na Paróquia Senhora do Pilar.

como a do próprio Colégio do Caraça, tida como das mais importantes do Brasil por conter obras de acentuado valor histórico e artístico, algumas delas, inclusive, incunábulos ainda do século XV.1 Alex Fernandes Bohrer, Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estudo sobre a influência das gravuras europeias na pintura mineira, prepara um doutorado sobre a talha barroca em Minas Gerais. É professor efetivo do Instituto Federal de Minas Gerais e, como historiador da Prefeitura Municipal de Ouro Preto, publicou sobre o patrimônio desta cidade.

Notas 1.

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Para mais informações sobre os aspectos esboçados aqui ver Bohrer, Alex Fernandes. “Os Missais de Plantin e Outras Reminiscências Flamengas no Barroco Mineiro”. In: Thomas, Werner e Stols, Eddy (org.). Un Mundo Sobre Papel. Libros y Grabados Flamengos em El Império Hispanoportuguês (siglos XVI-XVIII). Antuérpia: Acco, 2009, pp. 261 a 279.

pintura e escultura

Pedro Américo de Figueiredo e Mello: conexão Ciência & Brasil & Bélgica Madalena Zaccara onde se inscreveu na Faculdade de Ciências da Universidade de Bruxelas. Entretanto, um intervalo de tempo e trabalho se fez necessário antes de prosseguir seus estudos científicos naquele país. Em 1862, ele terminou os três anos de estudos em Paris aos quais tinha direito enquanto pensionista do imperador. Pedro II, porém, não prorrogou seu prazo na Europa. Ordenou-lhe o retorno ao Brasil. Era necessário que ele concorresse ao cargo de professor de Desenho Figurado na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Ele se submeteu e comunicou a seu protetor que partiria para o Rio de Janeiro em 25 de agosto de 1864 obedecendo às ordens imperiais. Volta ao país, presta exames, é aprovado e consegue uma nova licença. Agora sem vencimentos. Por sua conta e risco. Viajou, então, durante algum tempo, por uma grande parte da Europa. Para sua sobrevivência pesquisava por encomenda, fazia ilustrações para teses, pequenos retratos, retoques em fotografia. Enfim, qualquer trabalho que lhe proporcionasse algum rendimento financeiro. Sempre dividido entre arte e ciência, Américo chegou a Bruxelas com o objetivo de completar seus estudos. Em 1867, ele foi admitido no doutorado da Universidade de Bruxelas para o período escolar de 1867-1868. Durante seus estudos passou pelas mesmas dificuldades financeiras sofridas em suas andanças. Finalmente, em 22 de julho de 1868 recebeu pela Universidade de Bruxelas o diploma de doutor em Ciências Naturais. Após este fato ele se dedicou cada vez mais aos estudos. Ansiava obter o grau de professor doutor adjunto da Universidade Livre de Bruxelas. Para tanto, defendeu em 13 de janeiro de 1869 a tese intitulada A Ciência e os Sistemas; questões de História e de Filosofia Natural. Obteve um ótimo conceito para o cargo pretendido. O trabalho em questão foi publicado em 1869 em Bruxelas e foi dedicado a Pedro II, imperador do Brasil. Na Bélgica, Américo pretendia o reconhecimento científico que acreditava não obter de seus compatriotas. Afinal, como afirma na introdução de sua tese, “a situação moral e intelectual da Europa difere bastante da nossa”.2 Sua necessidade de ampliação do saber e a necessidade de reconhecimento deste o deixava sem diálogo em seu país natal. A necessidade de expansão de horizontes aliada ao colonialismo cultural europeu marcante em seu século o fazia orgulhar-se de ter conseguido obter esse reconhecimento de uma universidade europeia. Suas conquistas, entretanto, não escaparam da inveja e da maledicência de seus contemporâneos brasileiros. Para ilustrar o impacto que suas conquistas científicas na Universidade de Bruxelas geraram – principalmente após suas exposições europeias – no meio intelectual brasileiro dentre as vitórias atribuídas ao pintor, na polêmica midiática de 1879, que eram con-

“Observar é procurar ver nos fatos tudo o que eles nos podem oferecer deles mesmos, sob todos os ângulos e em todos os seus detalhes.”1

N

a pequena cidade brasileira chamada Areia, perdida nas serras do brejo paraibano, nasceu Pedro Américo de Figueiredo e Mello em 29 de abril de 1843. Filho de Daniel Eduardo de Figueiredo (pequeno comerciante que gostava de tocar violão para seu lazer) e de Feliciana Cirne de Figueiredo, ele era membro de uma família com uma inclinação especial para as artes, que, por sua vez, o gerou: um dos mais conhecidos artistas brasileiros e um homem que se notabilizou também por sua busca incessante do conhecimento em todas as suas vertentes. Américo manifestou cedo sua vocação artística. Seus primeiros desenhos, nas paredes da loja de seu pai, impressionavam seus frequentadores. Uma criança especial nascida no interior profundo do Brasil do século XIX. Sua curiosidade em relação a outros campos do conhecimento também se manifestou cedo em sua vida. O naturalista francês Louis Jacques Brunet chegou a Areia em 1852 à frente de uma expedição científica que fazia pesquisas na região para o Museu Nacional. A cidade mostrou então ao estrangeiro sua principal atração: a criança. Tanto o naturalista quanto o desenhista da expedição (o alemão Bindseil) se entusiasmaram com aquele talento natural e propuseram levá-lo como membro da equipe. Os anos que passou na companhia daqueles pesquisadores nos sertões do Nordeste brasileiro marcaram a criança e o futuro cientista. Brunet o recomendou, após a expedição, ao presidente da província da Paraíba, Sá e Albuquerque, e Américo, ainda criança, partiu – subvencionado pelo governo brasileiro – para a capital do País, o Rio de Janeiro, aonde chegou em dezembro de 1854. Ele inscreveu-se na Academia Imperial de Belas Artes em 1855 onde estudou até seus 15 anos quando se sentiu pronto para ir estudar, como era de praxe, na Europa. O Imperador Pedro II lhe concedeu uma bolsa de estudos e Américo partiu para Paris em 1859. Tinha 16 anos de idade. Na bagagem ia uma carta de seu antigo professor, Manuel de Araújo Porto Alegre, para Victor Meirelles de Lima que, na época, era bolsista da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro e estudava em Paris. Pedro Américo se inscreveu na Ecole des Beaux Arts em 6 de outubro de 1859. Um ano depois de sua chegada, se inscreveu também no curso noturno da Escola Imperial e Especial de Desenho e Matemática, Arquitetura e Escultura de Ornamentos para as Belas Artes na Indústria e, em 1861, se inscreveu no curso preparatório para o Baccalauréat ès Sciences no Instituto Ganot. O ecletismo de suas aspirações o acompanhou durante toda sua vida e foi responsável por sua futura estadia na Bélgica, em 1862,

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parte 9 – artes plásticas

sideradas duvidosas, uma das mais discutidas foi o diploma obtido na Universidade de Bruxelas. Américo, orgulhoso de sua qualidade de doutor (posteriormente ele chegou a assinar alguns quadros como Dr. Pedro Américo), escreveu ao diretor da universidade belga, G. Tiberghien, relatando as acusações que ele (e o seu diploma) sofria. O diretor lamenta o fato em carta datada de 30 de setembro de 1870. O próprio governador da província do Rio de Janeiro, João Ramos Queirós, resolveu tomar parte nesta polêmica e escreveu a João Couto dos Santos, que habitava então em Bruxelas (provavelmente membro da diplomacia brasileira), pedindo informações sobre Pedro Américo e seu amigo Daniel Pedro Ferro Cardoso. A resposta caracteriza bem a desconfiança que reinava no Brasil e que gerou as perguntas feitas pelo governador. De fato, era quase como se o artista tivesse que apresentar um álibi. João Couto, porém, confirmou as conquistas acadêmicas de Pedro Américo, objeto de tanta controvérsia. Diz Couto: O Sr. Dr. Pedro Américo de Figueiredo não só obteve os primeiros lugares entre os companheiros como ainda não contente com tantas distinções que obteve ainda quis defender uma these para obter o titulo de Doutor agregado, o que fez sendo elogiado por um júri de nove membros e todos notáveis (...) pela mesma ocasião obteve o titulo de lente agregado da Universidade. Distinção essa que é muito rara, que não só elle deve estar orgulhoso como nosso país que orgulha-se de o possuir por filho.3 (...) Pedro Américo foi um homem à maneira da Renascença. O

conhecimento em seus mais diversos campos o fascinava e movia. No contexto do Brasil do século XIX o aprendizado artístico e científico na Europa referencial foi vital para sua trajetória. A Bélgica, por sua vez, foi fundamental para sua formação científica bem pouco estudada em relação ao seu desempenho artístico como pintor do Império brasileiro. Para concluir esta breve análise tomo emprestado suas próprias palavras como explicação daquele momento: “Transporte-se pois pelo pensamento através do espaço e do tempo e julgue estas páginas do ponto de vista que eu mesmo me situei para escrevê-las”.4 Madalena Zaccara é Doutora em História da Arte pela Université Toulouse II, França, Professor Associado do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco, Coordenadora do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE-UFPB, autora de vários livros e artigos inclusive um sobre Pedro Américo intitulado Pedro Américo de Figueiredo e Mello: um artista brasileiro do século XIX, baseado em sua tese de doutorado.

Notas 1. Mello, Pedro Américo de Figueiredo. A Ciência e os sistemas: questões de história e filosofia natural. João Pessoa: Editora Universitária, 1999, p.11. 2. Mello, Pedro Américo de Figueiredo, op. cit., p. 6. 3. Zaccara, Madalena. Pedro Américo de Figueiredo e Mello: um artista brasileiro do século XIX. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2011, p. 77. 4. Mello, Pedro Américo de Figueiredo, op. cit., p. 4.

Benjamin Mary (1792-1846) Va l é r i a P i c c o l i

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ascido em Mons, cidade da região da Valônia, Bélgica, Mary passou a infância em Enghien, onde seu tio materno, Joseph Parmentier, botânico de renome, era responsável pelos jardins dos duques de Arenberg. Atribui-se a essa proximidade com Parmentier o interesse precoce de Mary pela botânica, o que se manifesta visualmente em muitos de seus desenhos. Prosseguiu seus estudos em Bruxelas, cursando Direito, e, a partir de 1818, passou a residir

em Namur como representante dos interesses financeiros do Duque de Arenberg. Desse período datam suas primeiras experiências com a recém-criada técnica da litografia. O método de impressão litográfica, que havia sido inventado e patenteado pelo alemão Alois Senefelder (1771-1834) nos primeiros anos do século XIX, ganhava então notoriedade na Europa, em grande parte graças ao trabalho de difusão levado a cabo

“Panorama do Rio de Janeiro”, de Benjamin Mary, c. 1835 / Aquarela, grafite e nanquim sobre papel, 30,3 x 312,4 cm.

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pintura e escultura

por seu inventor. Alois e seu irmão Karl Senefelder viajaram por diversos países europeus formando grupos de alunos de litografia e é certo que Mary tenha frequentado o grupo belga, reunido no Musée Central de Minéralogie em Bruxelas. São conhecidos dois exercícios de litografia de sua autoria, com inscrições que indicam terem sido realizados nas aulas de Karl Senefelder. Além disso, gravuras feitas a partir de desenhos de Mary ilustram o livro Voyage pittoresque dans le royaume des Pays-Bas de autoria de Jean-Baptiste de Cloet, publicado em Bruxelas entre 1822 e 1830, o que atesta uma já consolidada expe­ riência na prática do desenho. Como complemento indispensável de uma educação humanista, Mary empreende viagem à Itália em 1823, onde teve aulas com o pintor francês François-Marius Granet (1775-1849), discípulo de Jacques Louis David. Ao eclodir a revolução de 1830, que culminou no surgimento do Reino da Bélgica, Mary opta pela carreira no exterior como diplomata. Foi nomeado Encarregado de Negócios no Brasil em 1832 e sua chegada ao Rio de Janeiro dois anos depois marca a abertura do primeiro posto diplomático do Reino da Bélgica na América Latina. Sua principal incumbência nessa função era negociar um Tratado de Comércio e Navegação entre os dois países, celebrado cerca de seis meses depois de sua chegada. Por esta conquista, Mary foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul, pelo lado brasileiro, e pela Ordem de Leopold, pelo governo belga. Nos quatro anos em que viveu no Rio de Janeiro, Mary fixou residência no Catete, bairro que se urbanizava pouco a pouco, povoado por chácaras de cultivo de verduras e casas de campo. Era a região em que se instalariam muitos estrangeiros, como o ministro inglês William Gore Ouseley (1797-1866), cuja residência se pode distinguir em vários desenhos de Mary, e Karl Wilhelm von Theremin (1784-1852), cônsul da Prússia no Rio de Janeiro. Este, um ativo homem de negócios que atuara em Lovaina e Antuérpia, era possivelmente já conhecido de Mary. Ambos, assim como Mary, são autores de importantes registros iconográficos do Rio de Janeiro à época da Regência. Curiosamente, não se constata nenhum relacionamento de Mary com o meio artístico brasileiro, capitaneado, àquela altura, pela Academia Imperial de Belas Artes, cujo diretor era o francês Félix-Emile Taunay (1795-1881). A obra de Mary que se conserva em coleções brasileiras está concentrada predominantemente em pequenos álbuns de dese-

nhos, nos quais constam índices manuscritos que acompanham a numeração das folhas. Exceção é o grande panorama do Rio de Janeiro tomado do alto de Santa Teresa, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ainda que seja obra avulsa, foi adquirida juntamente com seu portfólio, cuja capa traz a gravação em dourado “Benjamin Mary. Souvenirs du Bresil I”. Sobressaem, no primeiro plano da composição, várias espécies da flora brasileira, nativas ou aclimatadas. Podem ser identificados o mamoeiro, a araucária e a jaqueira, assim como vegetação de pequeno porte, como cipós, filodendros e outras trepadeiras, e uma grande variedade de bromélias. Através desta profusão vegetal, a cidade pode ser vislumbrada ao fundo: à esquerda o convento de Santa Teresa, a cidade baixa, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. A aquarela foi executada em sete folhas separadas, coladas posteriormente pelo artista. Cada uma delas tem tratamento e níveis de acabamento diferenciados, o que confere ao conjunto certo aspecto de modernidade. Dentre os álbuns conhecidos de aguadas de autoria de Mary, merece destaque aquele adquirido na década de 1970 pelo casal Pimenta Camargo, de São Paulo. Contém 63 aguadas representando, além de vistas do Rio de Janeiro, raros registros da viagem que Mary empreendeu pelo litoral paulista. Destacam-se vistas panorâmicas tomadas do mar em direção à costa que ocupam folhas duplas do caderno. A paisagem, assunto por excelência da produção brasileira de Mary, surge como manchas de cor, como registro sensível de tonalidades. Se há um desejo de definir o caráter geral da paisagem, este se realiza por meio da sensação da espacialidade e das intensidades luminosas. Esse conjunto de memórias visuais de viagem marcam a perfeita sintonia de Mary com o perfil do naturalista diletante do século XIX para o qual, de acordo com o ideário defendido por Alexander von Humboldt (1769-1859), a sensação diante do mundo natural é tão fundamental para a compreensão científica da natureza quanto o são a observação e a análise racional. Outro álbum a mencionar seria o pertencente à coleção Paulo Geyer, hoje parte do acervo do Museu Imperial de Petrópolis, que traz na capa o monograma de Louis Philippe d’Orléans (1773-1850), rei dos franceses. Desenhos esparsos comparecem em álbum de memórias pessoais de D. Francisca de Bragança (1824-1898), depois princesa de Joinville.

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parte 9 – artes plásticas

Contudo, a contribuição mais significativa de Mary para a divulgação da iconografia brasileira seria, sem dúvida, sua participação na audaciosa obra do botânico bávaro Carl von Martius (1794-1868), a Flora Brasiliensis. Ilustrada com 3.811 gravuras agrupadas em 130 fascículos, a publicação surgiu em Munique entre 1840 e 1906 e resulta de uma vida toda dedicada a estudar e sistematizar o material coletado em três anos de viagem pelo território brasileiro. Dentre as 59 pranchas que ilustram o primeiro volume da Flora Brasiliensis, 14 são assinadas por Benjamin Mary. Não foi possível apurar com precisão em que condições Martius e Mary teriam se conhecido. O mais provável é que tenha sido por meio de Adolphe Quetelet (1806-1874), matemático e astrônomo, fundador do Observatório Real de Bruxelas. Mary se aproximara de Quetelet na capital belga e era frequentador do salão promovido por sua esposa, que reunia renomados poetas e artistas. Quetelet e Martius, por sua vez, mantiveram assídua correspondência, sendo que Martius menciona visitas feitas a ele em Munique por Mary. A pedido de Martius, Quetelet teria obtido de Edouard Mary a promessa de fazer vir de Atenas para Munique os desenhos de seu irmão Benjamin. As obras de Mary reproduzidas na Flora Brasiliensis demonstram um artista atento aos entrelaçamentos das formas vegetais, assim como à profusão de espécies. Dedica atenção especial às espécies mais particulares da flora brasileira, registrando-as em termos de sua inserção no contexto geral da paisagem. É curioso notar que, embora Mary tenha um olhar orientado para a construção de uma paisagem de viés pitoresco, tão característico daquele período, ele parece ser atraído pelas formações mais excêntricas, tanto no que diz respeito à topografia como às formas vegetais, evitando

os pontos de vista mais convencionais no registro da paisagem. Após o período brasileiro, a carreira diplomática de Benjamin Mary o levaria para o Oriente Médio. De seu posto em Atenas, onde permanece por cinco anos entre 1839 e 1844, empreende diversas viagens, entre as quais a Constantinopla, Smyrna, Bursa, Beirute, Chipre e Egito. Todas elas devidamente registradas em uma profusão de desenhos. O artista parece ter desenvolvido ali um olhar mais atento aos tipos humanos, às cenas urbanas, assim como aos retratos de personagens com os quais se relacionava. São notáveis ainda as caricaturas que realiza com destreza e humor de anônimos e músicos que observa, por exemplo, em apresentações teatrais. No entanto, ele nunca descuidaria do registro da paisagem, assunto principal de seu trabalho artístico, em que a presença da natureza local é sempre privilegiada na revelação de suas formas mais intrigantes e inusitadas. Seu traço expressivo, o gesto marcado no papel, o registro sensível da paisagem colaboram para que seu trabalho tenha um aspecto, em última instância, tão moderno. Ao final de seu período na Grécia, Mary começou a apresentar problemas de saúde. Retornou à Bélgica, via Malta, em 1845. Não se sabe com precisão quais funções assume em Bruxelas nesse período, mas começa a apresentar sinais de alienação mental, até que foi declarado inapto para a carreira diplomática. Por recomendação médica, Mary seguiu para a estação termal de Bagnères-de-Luchon, nos Pirineus franceses, onde faleceu em 1846. Valéria Piccoli, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), é Curadora-Chefe da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Henri Langerock (1830-1915) Va l é r i a P i c c o l i

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s especificidades da formação artística de Langerock ainda permanecem por serem esclarecidas, mas o artista cumpriu possivelmente um período de aprendizado na Escola de Belas Artes de Gand, Bélgica, sua cidade natal. No conjunto de suas obras conhecidas, prevalece o gênero da pintura de paisagem, e a amplitude dos temas representados atesta uma carreira de verdadeiro pintor viajante. Sucedem-se paisagens originadas em viagens pela Europa – notadamente Holanda, França, Suíça, Itália –, bem como ao Oriente e Norte da África, sem dúvida motivadas pela voga do orientalismo, tão característica da pintura europeia do período. A partir da década de 1880, as paisagens brasileiras também serão registradas pelo artista. Durante os anos de 1860 e 1870, entretanto, Langerock certamente residia em Paris, pois, além de participações frequentes em salões pelo interior da França, o artista, a partir de 1869, figura como associado de André François Blanc de Labarthe (1849-?),

no estúdio fotográfico Numa Blanc Fils, situado no Boulevard des Italiens. Langerock assume o estúdio em 1875 como “successeur de Numa Blanc Fils”, permanecendo responsável por ele até 1878. A publicidade do estúdio afirmava que Langerock era um “peintre-photographe” e que sua especialidade residia no “agrandissement de toutes espèces de photographies”. Como Langerock teria adquirido familiaridade com a técnica da fotografia e quando teria iniciado suas atividades nessa área são fatos ainda desconhecidos de sua biografia. Contudo, já em 1867, o pintor-fotógrafo receberia uma medalha na Exposição Universal de Paris e publicaria, em 1871, um álbum de fotografias de Paris destruído pelos eventos da Comuna. A habilidade na transposição da fotografia para a pintura é, sem dúvida, o que qualificou Langerock para o grande empreendimento de que tomou parte juntamente com o pintor brasileiro Victor Meirelles (1832-1903). Não se sabe ao certo como os

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pintura e escultura

“La montagne de L’Or Noire [Ouro Preto]”, 1888, de Henri Langerock / Óleo sobre tela, 111.7 x 161.3 cm.

dois teriam se conhecido. Meirelles estava em Paris entre 1881 e 1883, pintando a segunda versão de sua Batalha do Riachuelo. Entretanto, Langerock teria já chegado ao Brasil por essa época, pois sua primeira pintura de tema brasileiro data de 1881. O fato é que, em 1885, ano em que executa uma fotopintura a partir de fotografia de Marc Ferrez (1843-1923), Langerock se torna sócio de Meirelles para a realização do Panorama circular da cidade do Rio de Janeiro, uma vista cenográfica de 360 graus, tomada do alto do morro de Santo Antônio, no centro da então capital brasileira. A impossibilidade de encontrar no Brasil um ateliê de dimensões suficientes para a execução da grande pintura de 14 metros de altura por 115 metros de largura leva os dois artistas a se instalarem em Ostende, onde trabalharam entre 1886 e 1887. Meirelles e Langerock compuseram o panorama certamente a partir de fotografias da paisagem do Rio de Janeiro, talvez de autoria de George Leuzinger (1813-1892) ou mesmo do próprio Marc Ferrez, sendo o belga responsável pela pintura da parte oriental da cidade. No ano seguinte, o panorama do Rio de Janeiro foi inaugurado em Bruxelas com a presença dos soberanos da Bélgica. Uma disputa judicial, contudo, pôs fim à sociedade entre os dois artis-

tas, prevista inicialmente para durar seis anos. Em 1889, quando o panorama do Rio de Janeiro foi exibido na Exposição Universal de Paris, sendo agraciado com a medalha de ouro, Langerock já tinha se desligado do empreendimento. Posteriormente, em 1891, uma rotunda foi construída no Largo do Paço, atual Praça XV, no Rio de Janeiro, onde o panorama foi exposto durante alguns anos. Doado por Meirelles ao governo brasileiro, a tela foi incorretamente armazenada e totalmente destruída. Do grande empreendimento de Langerock e Meirelles restam apenas seis estudos a óleo, conservados no Museu Nacional de Belas Artes. Langerock daria continuidade à sua carreira como pintor-fotógrafo especializado em paisagens de lugares exóticos. Em 1894, participou da Exposição do Congo em Antuérpia, expondo lá um diorama baseado no relato de viagem de Henry Morton Stanley (1841-1904) à África. O artista faleceu em Marselha, França. Há obras de sua autoria em diversos museus brasileiros, entre os quais no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, no Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora (MG) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

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parte 9 – artes plásticas

Adrien Henri Vital Van Emelen (1868-1943) Va l é r i a P i c c o l i

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ascido em Lovaina, na província do Brabant flamengo, na Bélgica, Van Emelen era filho do escultor Léon Van Emelen (1829-1900). Não são conhecidas as etapas de sua formação artística, mas ele foi possivelmente treinado na mesma instituição em que seu pai estudara, a Escola de Belas Artes de sua cidade natal. Foi ainda discípulo do escultor e pintor Constantin Meunier (1831-1905), e, assim como o mestre, Van Emelen praticaria tanto a escultura quanto a pintura. Em 1892, foi recomendado por Meunier para estudar com seu colega Auguste Rodin (1840-1917). No entanto, a efetiva presença de Van Emelen no ateliê do escultor francês ainda está por ser apurada. De todo modo, tanto suas escolhas temáticas como suas

soluções formais guardam semelhanças com a obra de Meunier, especialmente por privilegiar o realismo dos temas sociais e tipos urbanos. Ainda na juventude, Van Emelen realizou quatro esculturas para a decoração da fachada do Hôtel de Ville de Lovaina. Dentre os sete irmãos de Van Emelen, dois escolheram a carreira religiosa, tendo sido o mais velho, Jacobus Marie Joseph (ou Jacques), um monge beneditino que se transferiu para o Brasil na última década do século XIX, adotando o nome de D. Amaro van Emelen (1863-1943). Alternando períodos de permanência no mosteiro de Olinda, Rio de Janeiro – onde foi diretor do Colégio São Bento – e São Paulo, D. Amaro foi enviado pelo abade D. Miguel Kruse (1864-1929) para a Bélgica em 1907 com a missão

“Cena do Porto de Santos”, década de 1920, de Adrien Van Emelen / Óleo sobre tela.

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pintura e escultura

“Manuel Preto”, escultura em bronze de Adrien Van Emelen, década de 1920.

Escultura em gesso e policromia do Apóstolo “Santiago Menor”, 1919-1922, de Adrien Henri Vital Van Emelen, na Basílica de N.Sra. da Assunção do Mosteiro de São Bento, São Paulo.

de buscar junto à Universidade Católica de Lovaina um professor para a criação da Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento. Em São Paulo, D. Amaro estava certamente a par das reformas planejadas pelo abade, o grande responsável pela reconstrução do edifício do mosteiro de São Bento, empreendida a partir de 1910, segundo projeto do arquiteto alemão Richard Berndl (1875-1955). Já em 1912, começavam a ser executadas as pinturas decorativas no interior da Basílica, obra do beneditino holandês Adalbert Gressnicht (1877-1956). Os motivos da transferência de Adrien Van Emelen para o Brasil ainda não são de todo claros, mas não é improvável supor que a presença de seu irmão na abadia beneditina em reforma fosse um estímulo nesse sentido. Sabe-se que outro de seus irmãos, o pastor Léon Charles Victor Van Emelen, visitou São Paulo em 1915 e Adrien Van Emelen talvez o tenha acompanhado. O fato é que o artista estava já em 1919 envolvido com a realização de 12 esculturas representando os apóstolos para a decoração da Basílica de Nossa Senhora da Assunção, no mosteiro de São Bento. As peças foram moldadas em gesso nas oficinas do Liceu de Artes

e Ofícios de São Paulo, o que demonstra que Van Emelen se inseriu rapidamente no meio artístico local. O Liceu era o principal estabelecimento do gênero na cidade, onde tiveram origem monumentos públicos de grande importância para São Paulo. Van Emelen manteve um espaço de trabalho no Centro das Artes do Palácio das Indústrias, disponibilizado pelo engenheiro Ramos de Azevedo (1851-1928). Suas esculturas para o complexo de São Bento foram finalizadas em 1922, tendo o artista realizado, além dos apóstolos, uma imagem da Pietà, localizada em uma capela fechada à visitação pública, e outras duas de Sant’Ana e Santa Gertrudes, situadas em capelas laterais da Basílica. Sem dúvida, Van Emelen chegou a São Paulo num momento de grande pujança econômica e quando a cidade se preparava para comemorar o centenário da independência. Simultaneamente à realização das esculturas para o mosteiro de São Bento, o artista estava envolvido no projeto decorativo de outro importante edifício público, a Bolsa do Café em Santos. Inaugurada em 1922, a Bolsa do Café – hoje Museu do Café – foi construída para cen-

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parte 9 – artes plásticas

tralizar e controlar as operações do mercado cafeeiro em Santos, então o principal porto exportador do “ouro verde”. O edifício foi projetado pela Companhia Construtora de Santos sob a direção do engenheiro Roberto Simonsen (1889-1948), e consta ter sido dele o convite feito a Van Emelen para a elaboração das figuras alegóricas da Indústria, Comércio, Lavoura e Navegação que ornam a torre do edifício. Voltadas para os quatro pontos cardeais, as esculturas se encontram a 40 metros de altura. Também em 1919, começava a ser elaborado o ambicioso plano de ornamentação pretendido para o Museu Paulista pelo historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958). O então diretor do museu almejava reunir no edifício esculturas e pinturas que sintetizassem o papel pioneiro de São Paulo na conquista do território brasileiro, evocando a história do bandeirantismo, bem como seu papel no processo de independência do País. Van Emelen colaborou com o projeto de Taunay por meio da reali-

zação das esculturas dos bandeirantes Manuel Preto e Francisco de Brito Peixoto, respectivamente conquistadores dos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul. As esculturas, de grandes dimensões, ressaltam a indumentária do bandeirante, com seu chapéu de abas largas e botas altas, que ficou imortalizada na imaginação popular. Van Emelen foi responsável ainda pela concepção do suporte das ânforas de vidro que guardam as águas dos rios brasileiros, parte da ornamentação da grande escadaria central do edifício. Fundidos em bronze entre 1928 e 1930, os suportes são decorados com exemplos da flora brasileira compostos com as figuras de cinco pássaros representando a fauna das bacias amazônica e platina. Além de sua atuação como escultor, Van Emelen foi autor de um número expressivo de pinturas. Conhecem-se algumas obras de temática histórica, mas sobressaem nesse conjunto as figuras populares, como vendedores de rua. O artista faleceu em São Paulo.

Georges Wambach e o Brasil Aldrin Moura de Figueiredo

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onsiderado o último dos pintores-viajantes, o belga Georges Wambach construiu ao longo de cinco décadas uma das mais importantes narrativas visuais da paisagem brasileira. Nascido em Antuérpia numa família de artistas, o pai era Emile Xavier Wambach (1854-1924), violinista, organista, compositor e regente de orquestra. A mãe era a aquarelista Marie Wambach de Duve (1865-1857), famosa nos círculos da arte flamenga dos fins do século XIX. Jovem ainda, Wambach se inicia nas artes por volta de 1920, com 18 anos de idade, data de suas mais antigas obras conhecidas. Dessa época são alguns retratos de atrizes e cantoras de teatro das noites de Antuérpia e Bruxelas, com quem o pintor convivia nos círculos boêmios belgas. Também foi nessa época que se casou com Yvonne Milles, filha de família importante, com quem teve um filho, Christian. O sustento da família vinha do trabalho de contador em um banco, negócios de ações e venda de quadros. Mas o casamento durou pouco e Yvonne foi morar em Nice, na França, levando o filho pequeno para longe dos olhos do pai. Em 1926, Wambach conheceu a francesa Edith Blin de Arruda Nóbrega Beltrão, atriz da Companhia de Teatro Mollière, na qual se apresentava com o nome de Edith Derreine. Edith era então casada com o diplomata brasileiro Roberto de Arruda Nóbrega Beltrão. Segundo Margarida Cintra, que organizou um catálogo de obras de Wambach, a relação entre Wambach, Edith e Roberto é envolta em mistérios, porém se sabe que foi em companhia de Edith, por quem se apaixonou, que o pintor chega ao Rio de Janeiro em 1935. O ano foi de forte movimentação política, com a Intentona Comunista e com o avanço da Ação Integralista bra-

sileira. Porém, nada disso parece ter perturbado Georges Wambach que logo se envolveu completamente com a cidade e com a vida carioca. Além dos retratos dos tempos da Bélgica, Wambach se dedicou a pintar paisagens, tema que será uma constante em sua obra até o fim da vida e onde o autor revelará impressionante competência técnica. Hoje, revendo suas obras é notável o repúdio do artista ao conteúdo racista e totalitário da ideologia nazista. Wambach foi um cultor da diferença, do colorido, da luminosidade. O Brasil foi então o paraíso de liberdade e o Rio de Janeiro foi a cidade escolhida e o principal cenário de exuberância. Mas Wambach foi um pintor viajante, por isso mesmo sua obra traz registros de Fernando de Noronha, Ouro Preto, Olinda, Salvador, Fortaleza, Belém, Manaus e muitos outros locais. Para ganhar a vida, também trabalhou desenhando rótulos de remédio, cartões postais e colaborou com ilustrações para importantes revistas nacionais de sua época, como A Revista da Semana e Dom Casmurro. Em 1938, volta à Europa e expõe em Bruxelas na Galerie da la Toison D’Or, com grande sucesso de venda. Na volta ao Brasil, visita Belém do Pará e pinta uma coleção que hoje pertence ao Museu de Arte de Belém. Muito bem acolhido pela crítica da época, o escritor Raymundo Moraes rende ao pintor um belo texto apreciando sua obra, que vão desde óleos sobre a arte sacra até as paisagens urbanas. Wambach provinha de uma Bélgica marcada pelo art nouveau e de uma inspiração nas obras de Félicien Rops (1833-1898), Théo­phile Steinlen (1859-1923) e Jean-Louis Forain (1852-1931) e sua arte foi logo associada ao improviso e à perfeição do traço. Em Belém, pintou o famoso Teatro da Paz, praias da Ilha do Mos-

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pintura e escultura

“Avenida Independência”, de Georges Wambach, 1939.

queiro, as avenidas largas sombreadas pelas mangueiras, os hidroaviões da Panair ao tempo da Segunda Guerra Mundial, os palácios e o casario colonial da cidade. Apesar de dominar várias técnicas de pintura, Wambach era cultor da aquarela e de uma antiga tradição da arte flamenga que vinha de sua mãe Maria De Duve. O método era antigo e faz parte ao menos desde o século XVI do repertório cognitivo dos artistas de Flandres e depois amplamente empregado em Florença e Veneza. Mas a aquarela só pode resistir ao tempo com a obra de Albrecht Dürer (1471-1528), que deixou pelo menos 120 obras suas; e, destas, algumas retratam uma viagem pelo Rio Reno até Colônia e então para Antuérpia, com inúmeros desenhos em várias técnicas, com imagens de Bruxelas, Bruges, Gand, Zeeland e Nijmegen. Imagens que fascinariam o jovem Wambach no início do século XX. Na década de 1940, Wambach descobre o povo brasileiro, especialmente a mulata, dialogando com o Movimento Vanguardista da Bahia, de Mário Cravo, Carlos Bastos e Gennaro de Carvalho. Também viu a obra de Alberto Guignard e Emeric Marcier e as montanhas de Minas Gerais, uma imagem que estará presente em suas aquarelas de Ouro Preto, Itabira e Sabará, nas décadas de 1950 e 1960. Muito articulado nos círculos políticos e da elite carioca, Wambach expõe em 1942, em meio à Segunda Guerra, no Museu Nacional de Belas Artes uma série de obras, especialmente de

paisagens brasileiras. Alguns intelectuais, incluindo sua mulher, o consideravam alienado da situação que a Europa vivia. Essa tensão talvez tenha provocado, em parte, o fim do casamento com Edith Blin. Já famoso, tudo o que pintava conseguia vender. Ganhou dinheiro e frequentou as altas rodas do Rio de Janeiro, tanto que a última vez que conseguiu reunir obras para uma exposição foi em 1954, na Galeria Montparnasse, em Copacabana. Viajou o Brasil em aviões da Força Aérea Brasileira, daí sua vasta obra por diferentes recantos do País. Entre seus amigos importantes estiveram os jornalistas Samuel Wainer, Osvaldo Orico e Assis Chateaubriand, além dos políticos Juracy Magalhães, Virgílio Távora e Magalhães Pinto. Por causa dessa inserção no poder, Wambach acabou por receber o grau de oficial da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul das mãos do presidente Getúlio Vargas em 1956. Apesar de toda essa notoriedade, Georges Wambach nunca fez parte da roda de artistas plásticos e intelectuais brasileiros. Viu, observou e dialogou com vários movimentos nas artes – da velha Flandres, passando pelo impressionismo, pela art nouveau e pelas vanguardas. Sempre tinha, porém, uma ironia para definir os artistas da moda, como sobre as “lindas mulheres de Picasso, contrafeitas, de olhares apavorados, saídas do Hospício Nacional de Belas Artes”. De fato, Wambach gostava de ambientes alegres, como o Cassino da Urca, onde aparecia com vedetes, cantoras e também políticos da época.

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tipo mignon, falante do francês e outras lembranças excêntricas. À Francisca, Wambach dedicou quatro cadernos de viagem, com obras datadas entre 1951 e 1963, nos quais, além de suas famosas aquarelas, existem endereços e assinaturas de diversas pessoas, versos de próprio punho de Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. Hoje esse conjunto de obras pertence ao acervo do Banco Itaú, em São Paulo, revelando mesmo uma espécie de livro de memórias, registro de passagens da vida, recordações do cotidiano da arte. Depois da morte do artista, quando seu espólio foi a leilão, junto com essas aquarelas, veio a público um impressionante catálogo constando, além de seus quadros, outros de grandes nomes da pintura clássica europeia, assim como tapeçaria, prataria, porcelanas e muitos objetos orientais. Algo que foi muito registrado na sua pintura – as imagens sacras, e também uma bela mobília brasileira em jacarandá, além de joias antigas e brilhantes de alto valor foram arrematados. Estamos, portanto, diante de uma figura invulgar, de uma cultura ampla, de um artista único. Entre o esteta do pincel e o dionisíaco da vida, de sentimentos à flor da pele, de muitas paixões, de dores românticas dos antigos pintores, Wambach viveu uma vida em nada sedentária. Anticlerical, odiou a guerra, mantendo distância do belicismo europeu de sua época. Ironizou muitas autoridades e conviveu com amizade com outras tantas, repudiou o totalitarismo nazista, embora uma fotografia de Hitler estivesse em seu apartamento, para alguns em sinal de chacota. Teve um olhar impressionante sobre a natureza brasileira e, sobre ela, deixou uma das páginas mais prolíficas da pintura no Brasil do século XX. A pesquisa sobre Wambach em arquivos da Bélgica foi possível com os auxílios do Ministério da Cultura do Brasil, por meio de um edital de Intercâmbio, da Maison de l’Amerique Latine de Bruxelas e do CNPq, que me concedeu bolsa de Produtividade em Pesquisa. Agradeço também a companhia e o debate com Stephen Barris na pesquisa sobre Georges Wambach na Bélgica.

“A moça do lenço amarelo”, aquarela de Georges Wambach.

Foi nessa época, por volta de 1944, que conheceu Francisca Alves dos Santos, uma mulata que foi sua companheira até sua morte em 1965. Essa mulher que, por vezes, passou por empregada do artista, foi tida pelos amigos como modelo, mulata bonita,

Aldrin Moura de Figueiredo é Doutor em História. Professor da UFPA e pesquisador do CNPq.

Um olhar para o meu passado brasileiro J e f Va n G r i e k e n

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m 1983 eu tive, graças ao marechal da corte na época, Herman Liebaers, a oportunidade de viajar num navio de conteineres da CMB para o Brasil. Para esta nota consultei meu diário de viagem para poder identificar as imagens. Que significam 30 anos para uma memória? Apagar e deformar! Logo depois de meu regresso no outono de 1983 comecei a desenhar, gravar e pintar. Precisava processar um montão de foto-

grafias, esboços e impressões. Depois de dois anos podia olhar para trás sobre uma produção abundante. Depois de 30 anos consigo sacar melhor a essência dela. É um álbum com 12 gravuras sob o título “Igarapé-Manaus”. Manaus foi o fim de uma viagem que começou em Santos. Depois de São Paulo e do Rio de Janeiro, visitei a região de Minas Gerais e, em seguida, Salvador, Recife, São Luís e Belém.

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pintura e escultura

“Igarapé-Manaus III”, de Jef Van Grieken, 1984, 22x30cm.

“Alcântara I”, de Jef Van Grieken, 1985, 13x17,5 cm, 1985.

Em Minas Gerais fui atraído pelas enormes minas de minérios de Itabira e seu contraste com o tumulto artesanal nos “rios” dos pequenos garimpeiros. Folheando de novo minhas notas, constato que me custou bastante esforço e irritação para fazer as imagens. Agora, esse nervosismo da época desapareceu completamente. Finalmente consegui fazer uma pintura bastante grande das redondezas de Itabira. Naturalmente criei obras sobre quase todos os lugares por onde passei. Uma destas em particular devo mencionar: “Alcântara”. Esse pequeno paradeiro dos traficantes de escravos da época, ao lado de São Luís, foi a razão pela qual Herman Liebaers me enviou para o Brasil... para fazer quatro pequenas gravuras. Para mim, a série sobre Manaus me deu maior satisfação. Me

lembro que o ânimo de viajar, a admiração e a curiosidade estavam minguando. Mas os passeios pelos leitos secos dos igarapés nessa cidade amazônica marcaram um ponto alto no fim da longa viagem. O implante anárquico destas palafitas ao lado de tantas margens é uma benção para um gravador. Algum tempo atrás, amigos voltaram de Manaus. Falaram da bonita ponte iluminada nessa cidade. Uma ponte em Manaus?... E iluminada? Sim, vi as fotografias. Pois é o que faz 30 anos. Eu tive que desligar um momento. Jef Van Grieken é professor na Academia de Belas Artes de Lovaina e artista plástico com uma obra que tematiza cidades, construções, ruinas e arqueologia industrial.

Inscrever os direitos do homem entre o Brasil e a Bélgica Fr a n ç o i s e S c h e i n

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o Brasil criei numerosas obras artísticas e monumentais com o objetivo de mostrar e ensinar os artigos da Declaração dos Direitos Humanos, texto fundador da democracia, num país onde essas questões estão ainda longe de serem resolvidas: “Todos o seres humanos são iguais”, diz o texto, mas é essa a realidade face às múltiplas oportunidades que a vida oferece? Como fazer para chegar mais perto desse texto? Por onde começar? Porque adotei minha filha, hoje com vinte anos, é que o Brasil me conquistou, com sua língua, sua cultura e sua história – ao mesmo tempo sublime e infernal. Eu também, como milhares de outros antes de mim, emigrei ao Brasil (não emigrei verdadeiramente, mas trabalho no Brasil há 13 anos e para aí viajo

sucessivamente) para aí realizar um sonho, sobre essa terra ainda jovem, onde os elementos naturais e os seres que aí habitam nos impingem a nos superar. É nessa terra BRASILIS, nessa América do Sul, eternamente em movimento, que se faz, se desfaz e se refaz sem melancolia alguma, que pude criar obras inventando diálogos com os habitantes; criações participativas onde cada um pôde participar e exprimir seus pensamentos, seus sonhos e seus desejos quanto aos direitos humanos. Se não pode resolver as questões políticas das sociedades, a arte pode fazer pensar de maneira crítica e pode abrir os espíritos a novas maneiras de ver e de pensar o mundo. A arte tem a capa-

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Montagem da obra na estação de metrô Luz, São Paulo e vista geral da mesma estação.

cidade de fazer compreender ideias por imagens. A arte permite pensar com ferramentas conceituais individuais Desde a adoção de minha filha no Rio de Janeiro, em 2000, retornei ao Brasil anualmente para engendrar novos projetos sobre questões dos direitos humanos. Aí constituí uma equipe de arquitetos, de artistas, de artesãos e de voluntários para atingir diferentes objetivos que havia imaginado e que fazem parte de um todo, de um só e grande projeto: “O Caminho dos Direitos Humanos”. Tal projeto é imaginado e composto de centenas de obras sobre o tema realizadas com a população. Uma vez criados, os painéis de cerâmica são instalados nos lugares públicos. Esse caminho, em 2013, já integra numerosos projetos realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo. Alguns são situados nas estações de metrôs das duas cidades e outros nos bairros desfavorecidos chamados ‘favelas’. Todas essas obras foram produzidas com a participação da população e com profissionais locais interessados em participar do projeto. No Rio de Janeiro, foi com a jovem arquiteta Laura Taves que a equipe começou a realizar os projetos que eu havia imaginado a partir da expressão do direito, ou da ausência do direito, entre a população das favelas do Rio: como falar de direitos onde o acesso à educação básica é reduzido à sua mais simples expressão: aprender a ler, a escrever e a contar (tendo guardado contato muito

próximo com a família biológica de minha filha, eu posso afirmar que seus seis irmãos e irmãs que vivem em uma favela no norte da cidade infelizmente não conhecem mais que isso aos 16 anos). A participação na produção de obras artísticas se tornam uma ocasião de ter acesso à vida cultural da cidade de maneira imediata, mais fácil, realizando obras sobre um tema ainda desconhecido. Quais são os direitos de todos os seres humanos, inclusive os seus? A questão restou muitas vezes sem resposta quando começamos o trabalho. A partir desse trabalho artístico, imaginei obras em cerâmica de cores vivas, suficientemente grandes sobre as quais poderíamos ver elementos realizados profissionalmente, como textos e mapas, ao lado dos quais seriam justapostas outras obras realizadas manualmente pela população. Os elementos artísticos cartográficos e textuais retomam de maneira metódica e legível o mapa do local, da favela, onde cada um pode se situar. Os textos são os dos direitos humanos – em sua totalidade ou em fragmentos – acompanhados de textos literários e poéticos. Na ocasião dos ateliês participativos, a população dos bairros desfavorecidos foi convidada a inserir nessas obras contribuições figurativas feitas por eles mesmos, desenhos que exprimem o que lhes sensibiliza, particularmente sobre questões das origens étnicas,

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Aspectos da obra de Françoise Schein na cidade do Rio de Janeiro.

históricas e culturais. Nesse trabalho em comum desejei permitir o acesso à cultura, ou seja, o acesso aos museus, às galerias, às bibliotecas, aos lugares de cultura da cidade às pessoas que pensavam não ter direito a tais espaços... Os ateliês foram precedidos por diversas visitas culturais, o que atraiu um grande número de participantes. Ao fim do trabalho, em diversas comunidades, a arquiteta Laura Taves e uma dezena de mulheres decidiram continuar a experiência e criaram, dentro do meu ateliê, a “Azulejaria”: um ateliê de cerâmica que produz artesanato e novos projetos culturais. Assim, há dez anos essas mulheres continuam a produzir obras cidadãs. Pouco a pouco, passamos de uma obra de artista para o desenvolvimento estável do ateliê “Azulejaria” e para a sua independência. Penso poder afirmar que essa experiência, nascida de ideais utópicos, é um sucesso, pois a estabilidade é garantida na independência da “Azulejaria”. Enquanto isso, com a Associação Inscrire (que fundei e dirijo desde 1989) iniciei outra importante obra sobre os direitos fundamentais em São Paulo: trata-se da primeira estação de metrô do mundo com a instalação de painéis construídos com a participação de milhares de jovens alunos das escolas das comunidades pobres da cidade. O imenso projeto para a estação Luz do metrô – 500 m2 – em obra desde 2009, permitiu criar novas parcerias, como a da ONG “Danyann: Aprender, Evoluir”, e convites a outros artistas brasileiros, como Julio Villani e Tatiana Dalla Bona.

O projeto possibilitou criar uma microempresa de serigrafia, a “Serigrarte”, dentro do ateliê paulista da Associação Inscrire. Esse projeto se desenvolve, lenta, mas firmemente, com as dificuldades e os imprevistos das buscas de patrocínios brasileiros: processos de financiamentos complexos e baseados no desconto de impostos, trabalho difícil mas apaixonante. O projeto para a estação do metrô Luz é um projeto-piloto, pois leva com ele um trabalho social e educativo. Nosso patrocinador principal é a empresa belga de iluminação Schréder, que nos acompanha e nos apoia desde o início, à qual agradecemos grandemente. A equipe reúne arquitetos, grafistas, artistas, historiadores, serigrafistas, juristas, economistas e professores de escolas de São Paulo com as quais trabalhamos. Os parceiros-chave são o Metropolitano, o CMDHSP (Comissão Municipal dos Direitos Humanos da cidade de São Paulo) e o Museu da Língua Portuguesa. Também são parceiros investidores privados e novas instituições que se interessam por essa maneira inovadora de fazer arte com numerosas mãos para realizar uma obra do interesse de todos. Como para o projeto do Rio, para este da estação Luz, pretendo criar uma “Associação Inscrire de São Paulo” e permitir, assim, a continuidade em futuros projetos. Pouco depois da realização das primeiras obras em cerâmica sobre os direitos do homem no Rio de Janeiro, em 2003, com a Associação Inscrire criei um kit pedagógico de ensino sobre o tema

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através da arte (a ser feito em papel ou em cerâmica). Ele é difundido nas escolas do ciclo secundário pela Europa e pelo mundo. Numerosos parceiros culturais locais, institucionais e privados, utilizam esse kit atualmente. No prosseguimento de nossa parceria com a CMDHSP, esta começa a utilizá-lo nas escolas municipais. O que posso dizer da experiência de trabalho com os brasileiros é que eles têm capacidade de se engajar, desinteressadamente, em projetos inovadores e transformando-os em projetos que funcionam em longo prazo. O país, como outros, é jovem ainda e a verdadeira democracia aí se instala lentamente. O trabalho de

educação e de senso da comunidade cidadã é o único caminho que a cria. Como em todo lugar, existem apenas indivíduos que acreditam e conseguem, contra tudo e todos, transformar, quando juntos, suas utopias individuais em realidade comum. Françoise Schein é arquiteta e urbanista formada na Bélgica e professora na École Supérieure d’Arts et Médias em Caen (França). Como artista plástica realizou obras com temáticas cívicas em vários metrôs nas cidades de Paris, Bruxelas, Lisboa, Esctocolmo, Berlim, Haifa, Bremen e Coventry e também em favelas do Rio de Janeiro.

A visibilidade da arte contemporânea brasileira na Bélgica: uma história recente Olivia Ardui

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circuito internacional das artes é tradicionalmente dominado por um eixo central bipolar constiuído por países europeus e pelos Estados Unidos que “detêm o monopólio do mercado e das instâncias de legitimação” (A. L. Fialho, 2006, p. 28 e A. L. Fialho, 2005, p. 690). A partir dos anos 70, esse circuito começa progressivamente a se abrir a outros países, devido a um sentimento de saturação e uma demanda crescente de novidades por parte do mundo acadêmico, institucional e do mercado da arte (A. L. Fialho, 2005, p. 690). O caso da Bélgica segue sensivelmente essa tendência geral dos países ocidentais. Sem pretender realizar um inventário completo das exposições de arte contemporânea brasileira na Bélgica, é relevante percorrer alguns momentos nos quais a arte brasileira esteve em evidência no país, através de exposições. Essa tématica é complexa pela falta de estudos monográficos relativos à recepção da arte brasileira na Bélgica. Convém sublinhar desde já que esse artigo é uma primeira pista de reflexão no campo, que traça grandes linhas e que, evidentemente, apresenta lacunas a serem completadas por estudos futuros. Até meados dos anos 80 e os anos 90, havia poucas exposições de artistas brasileiros na Bélgica e essas se inseriam em um contexto de relações internacionais e acordos bilaterais entre os dois países. Ou seja, as mostras de arte brasileira contemporânea pareciam ser um pretexto para ilustrar a cooperação entre os dois países, e não resultando de um interesse propriamente artístico. De 24 de novembro a 18 de dezembro de 1966, por exemplo, em resposta à exposição Quarenta anos de pintura belga, apresentada no ano anterior no Rio de Janeiro, foi realizada no Bozar, o prestigioso centro de Belas Artes em Bruxelas, a exposição Arte contemporânea brasileira. Outro exemplo foi a exposição Criatividade na arte brasileira contemporânea, realizada de 10 a 24 de maio de 1978, no Museu Real de Belas Artes de Bruxelas. A iniciativa foi dada pelo colóquio organizado pelo Instituto de idiomas de São Paulo Aimav-Yazigi. É interessante notar que na introdução do catálo-

go desta exposição, um problema bem concreto é mencionado: a logística e transporte de obras entre países tão distantes. Razão pela qual os organizadores foram levados a selecionar um número limitado de obras, geralmente de pequeno tamanho, e realizadas em papel (Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, 1978, s.p. [p. 2]). Essa limitação logística, combinada a uma certa indiferença geral à arte “periférica” fora desses eventos organizados no contexto de acordos bilaterais, de certa forma deixa claro o porquê de tão poucas iniciativas de exposições na Bélgica. A partir do final dos anos 90, com a abertura progressiva da Europa e dos Estados Unidos a essa arte dita “periférica”, aparecem na Bélgica algumas personalidades que começam a manifestar um interesse pela arte brasileira. Um exemplo de uma grande entusiasta da abertura da Europa à arte latino-americana é Catherine de Zegher, então diretora do centro de arte contemporânea Kanaal Art Foundation em Courtrai, cidade situada em Flandres Ocidental. Ela explica, em entrevista a Katy Deepwell, que nos anos 80 a maior parte dos curadores de arte contemporânea se interessava principalmente pelo intercâmbio com os Estados Unidos (K. Deepwell, 1996, p. 57-58). Foi nesse período que, em uma viagem a Nova York, ela conheceu artistas sul-americanos com os quais se indentificou, talvez por sentir-se ela mesma um pouco marginalizada em relação à predominância dos Estados Unidos no contexto artístico do seu país. Decidiu então convidar artistas sul-americanos, e entre eles brasileiros, a exporem seus trabalhos no Kannal Art Foundation, algo raro à época, o que contribuiu para que a instituição se tornasse pioneira nessa tendência de abertura ao multiculturalismo na Bélgica (K. Deepwell, 1996, p. 58). Os primeiros artistas convidados por Catherine de Zegher para expor no Kanaal Art Foundation foram Cildo Meireles e Tunga, numa exposição coletiva que se estendeu durante o período de 20 de maio a 22 de outubro de 1989. Se os dois artistas, considerados entre os mais importantes da sua geração, já haviam realizado ex-

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pintura e escultura

posições no exterior, eram relativamente desconhecidos na Bélgica. Efetivamente, enquanto cinema e música brasileira eram, até certo ponto, conhecidos do público europeu e norte-americano, não se conhecia praticamente nada sobre as artes visuais do Brasil (G. Brett, 1989, s.p. [p. 33] ). Além disso, o Brasil também não teve artistas com um reconhecimento internacional como Frida, Botero ou os muralistas mexicanos, que desfrutam de uma popularidade mundial (Depoimento de Afrânio Fonseca de Paula e Sidnei Tendler em Bruxelas no dia 02/11/2012 ). Esse fator contribuiu para induzir a concepção errada de que “não há arte no Brasil” (C. de Zegher, 1989, s.p., [p. 2]), salvo aquela considerada como uma continuação da Europa ou impregnada de exotismo e primitivismo. O objetivo dessa exposição foi justamente contradizer e desmentir esse clichê sobre a arte brasileira pois, como explica Paulo Venâncio Filho, “quem esperar tematização do Brasil, a cor local, certamente não encontrará isso nos trabalhos [de Tunga e Cildo Meireles]” (P. Venâncio Filho, 1989, s. p., [p. 25]). Essa exposição parece ter sido um catalisador de outras exposições individuais também realizadas no Kanaal Art Foundation, como as de Waltercio Caldas, em 1991, e de Anna Maria Maiolino, em 1995. Depois de 25 anos sem representação do país, o curador da Documenta em 1992, Jan Hoet, fundador do SMAK, museu de arte contemporânea de Gand, deu uma visibilidade sem precedentes a artistas brasileiros na história desse evento, com obras dos já expostos Waltercio Caldas e Cildo Meireles além de Saint Clair Cemin e Jac Leiner (A. L. Fialho, 2006, p. 71). Aliás, nesse mesmo ano, o SMAK adquiriu para o seu arcervo obras de Jac Leirner e de Adriana Varejão (site do SMAK), duas artistas consideradas até hoje como expoentes da arte brasileira (R. Storr, 2012, p. 104). A importância da Documenta como vetor de divulgação de artistas é manifesta no caso de Lygia Clark, quando, em 1998, dando prosseguimento à sua participação na 10ª edição, lhe foi dedicada uma retrospectiva no Bozar e que culminou itinerando pela Europa. Nesse mesmo contexto de interesse pela América Latina e de estratégias multiculturais nos anos 90, por ocasião da comemoração dos 500 anos da descoberta da América, vários eventos foram organizados na Europa (B. H. D. Buchloh e C. de Zegher, 1992, p. 223, e A. Farias, 1997, p. 34). A Bélgica sediou um dos maiores eventos: uma grande exposição que abordou o intercâmbio entre a América Latina e Flandres: America. Bride of the Sun. 500 years Latin America and the Low Countries. No prefácio do catálogo da exposição, Gaston Geens explica que, até aquela data, o público conhecia apenas as manifestações artísticas pré-colombianas e que pela primeira vez um panorama da arte pré e pós-colonial seria apresentado ao público belga (G. Geens, 1992, p. 11). Com efeito, a seção de arte contemporânea, que teve curadoria de Catherine de Zegher, trouxe obras de grandes artistas brasileiros como Lygia Clark, Waltercio Caldas, Regina Vater, Anna-Maria Maiolino entre outros, mas que na Europa eram relativamente desconhecidos (B. H. D. Buchloh e C. de Zegher, 1992, p. 233). Esta exposição foi uma das maiores realizadas até então no terri-

tório belga, que incluiu arte contemporânea brasileira, mas que ainda estava incorporada na categoria vaga e problemática de “arte latino-americana”. Se Catherine de Zegher foi uma importante intermediária entre o Brasil e a Bélgica no campo institucional das artes, outra personalidade importante no estabelecimento de uma ponte entre os dois países é Cristina Barros que, diferentemente daquela curadora, trabalha de forma independente, sem estar vinculada a uma instituição. A especialista brasileira, casada com o belga Henri Grendl, vivendo entre Bruxelas e São Paulo, trabalha há muitos anos trazendo exposições e artistas do Brasil para a Bélgica e vice-versa. Ela foi, entre outros exemplos, responsável pela exposição de Marcia Xavier e Albano Afonso em 2002 no centro cultural Botanique, dois artistas então pouco conhecidos na Bélgica. Foi também curadora da exposição de Sandra Cinto, Albano Afonso e Regina Silveira no espaço Médiatine, em 2005. Além disso, a embaixada do Brasil na Bélgica, que conta com um espaço expositivo, a galeria Marcantônio Vilaça – Casa do Brasil, incentivou a visibilidade da arte contemporânea brasileira sediando diversas exposições de artistas como Paulo Climachauska, Sebastião Salgado ou Maria Bonomi. Em 2005 aconteceu o ano do Brasil na França, grande manifestação cultural sobre o Brasil no exterior, com a ambição de reforçar as relações bilaterais entre os dois países em diferentes campos, tanto no cultural e acadêmico quanto no econômico. Pela proximidade da França, este evento foi uma vitrine para artistas brasileiros na Bélgica, como o prova a Bienal de Fotografia de Liège em sua edição de 2006, que foi dedicada ao Brasil. O evento reuniu 80 fotógrafos que foram representados em mais de 15 locais diferentes da cidade localizada na região da Valônia. Os organizadores desse evento procuraram afastar-se da ideia de exotismo geralmente associada ao país. Aliás, a dimensão engajada dos artistas brasileiros foi o que levou o comitê da Bienal a escolhê-los para sua edição de 2006. Dorothée Luczak, a idealizadora do evento, explica que foi sensível ao fato desses artistas abordarem questões de sociedade e se interrogarem sobre a realidade que os cerca. Segundo ela, essa atitude crítica também tem algo a ensinar aos belgas, já que no seu próprio país há problemas sociais ignorados, como a existência de sem-tetos e uma importante taxa de suicídio (Dorothée Luczak citada em G. Duplat). Outro elemento interessante dessa Bienal foi a vontade de estabelecer um diálogo e uma confrontação entre artistas belgas e brasileiros, uma iniciativa rara. Foi o caso da exposição no Instituto de Arquitetura Lambert-Lombard Bruxelles-Brasília: à la traque des signes de pouvoir que revêt une capitale...(Bruxelas-Brasília: à procura dos sinais de poder encontrados em uma capital...). Como o título indica, a exposição quis mostrar como a ideologia e as marcas de poder influenciam a arquitetura e o urbanismo de uma capital como Bruxelas ou Brasília (Comunicado de imprensa 5ème Biennale internationale de la Photographie et des Arts visuels de Liège). No entanto, a maior manifestação dedicada ao Brasil até hoje foi Europalia, um festival bienal internacional de artes criado

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em 1969 destinado a um novo país a cada edição. Depois de duas edições consagradas a países emergentes, respectivamente, Rússia em 2005 e China em 2009, em 2011 foi a vez do Brasil. Com eventos em mais de 75 cidades da Bélgica, abrangendo as diversas disciplinas como artes plásticas, música, teatro, poesia, literatura entre outros, o festival se propôs a apresentar um vasto panorama da cultura brasileira. A originalidade de Europalia também foi trazer a um público europeu uma perspectiva brasileira da sua própria produção artística uma vez que essas exposições geralmente caracterizavam-se por um olhar estrangeiro na curadoria. No catálogo de exposição Art in Brazil, que aconteceu no Bozar entre 4 de outubro de 2011 e 15 de janeiro de 2012, foi ressaltado várias vezes que Europalia. Brasil seria a primeira apresentação da cultura brasileira nessa escala, a ser realizada na Europa com uma significativa participação do país, em particular na curadoria das diferentes exposições (R. Brito, G. Bueno e S. Salcedo (ed.), 2011, p. 9-11). Esse ponto de vista propriamente brasileiro seria a diversidade de um Brasil miscigenado e sincrético, que representa um aspecto menos conhecido do Brasil na Bélgica (R. Brito, G. Bueno e S. Salcedo (ed.), 2011, p. 9-12). Essa temática estruturou Brazil. Brasil, uma das maiores exposições do festival, que aconteceu no Bozar, e que retraçou o aparecimento do modernismo no Brasil e a sua busca por uma identidade artística própria e que incorporou tanto as inovações das vanguardas europeias como a diversidade étnica do país. Essa tématica também esteve implícita em exposições menores tais como Incorporations: Afro-brazilian contemporary art que apresentou, de forma pedagógica e didática, obras contemporâneas relativas à questão da herança negra no Brasil. Se a Europalia.Brasil reflete uma certa mudança de mentalidade em relação ao Brasil pelo fato de o considerar como um país com um grande potencial, inserido no importante bloco dos países emergentes do BRIC e, também, pelo fato de reconhecer a necessidade de superação dos antigos clichês impregnados de exotismo que cercam o país sul-americano (B. De Baere, 2011, p. 14), na prática, esses estereótipos ainda povoam as representações do público belga em geral. Efetivamente, ainda são projetadas sobre a arte brasileira noções como arte primitiva ou popular, sensualidade e cores quentes. Segundo Afrânio Fonseca de Paula, que trabalhou como monitor fazendo visitas guiadas na maior exposição de arte contemporânea do festival, Art in Brazil, que cobria a arte brasileira dos anos 50 até hoje, a tendência do público era esperar algo mais “autêntico” e “legitimamente brasileiro” com uma coloração local e diferente do que se encontra na Europa. Esse foi o caso, por exemplo, do confronto do público com o rigor e a geometria do concretismo. Além disso, algumas das obras que faziam referência a situações e vivências propriamente brasileiras ficaram herméticas para um público que conhece muito pouco da história do país e necessitava de mais chaves de leitura para uma apreensão completa de seu sentido. Tal constatação prova que a problemática e o desafio da realização de exposições de artistas brasileiros no exterior ainda oscila entre dois polos extremos: “Como pode o distante olhar estran-

geiro estabelecer uma imagem da arte brasileira sem cair no risco ou de considerá-la simples mimese dos procedimentos europeus ou sofrer a recorrência fantasmagórica dos temas do folclore e do exótico” (P. Venâncio Filho, 1989, s.p., [p. 24]). Contudo, o festival Europalia.Brasil contribuiu para a divulgação da arte brasileira contemporânea na Bélgica. Desde o encerramento do festival, por exemplo, obras de Cildo Meireles, Zero Dollar e Projeto Coca-Cola, que estavam na exposição A Rua, integraram sucesivamente diversas exposições em Antuérpia, como: Vis-à-vis (3 de dezembro de 2011 a 21 de janeiro de 2012); Spirits of Internationalism que aconteceu no MuHKA, museu de arte contemporânea da cidade, antes de ser apresentada na exposição e Extra Muros: Obras-primas no MAS. Cinco séculos de imagens em Antuérpia (17 de maio de 2011 a 30 de dezembro de 2012), no MAS, mais recente museu aberto na cidade. Contudo, a obra apresentada na última exposição, Zero Dollar, ilustrou a tématica da arte como alternativa à economia, mas não houve contextualização ou explicação sobre o artista, que aliás não teve relações particulares com a cidade de Antuérpia, fio condutor da exposição. Depois do encerramento de Europalia.brasil, pelo menos duas exposições em Bruxelas foram dedicadas exclusivamente à arte brasileira contemporânea. A exposição Brazilian Modern, que reuniu prataria, joalheria, moda e artes plásticas nacionais selecionadas por Cristina Barros e Laurence Lachambre. 7SP: 7 Artists from São Paulo, exposição que teve curadoria de Rejane Cintrão, reuniu os trabalhos de Paulo Climachauska, Sandra Cinto, Albano Afonso, Raphel Carneiro, Ana Elisa Egreja, Wagner Malta Tavares e Rodrigo Bivar. O fato mais relevante, no entanto, é que essa exposição foi escolhida para inaugurar o CAB – um novo centro de arte contemporânea aberto em Bruxelas –, além de acontecer paralelamente à Art Brussels – principal feira de arte contemporânea na Bélgica. Aliás, o Brasil é representado nessa feira há dois anos pela Galeria Leme de São Paulo, e as obras de Paulo Climachauska e Rafael Carneiro são representadas pela galeria belga Bodson-Emelinckx. Seu sócio-proprietário Charles -Antoine Bodson explica que foi ao Brasil por interesse próprio, mas que não foi Europalia.Brasil ou outras exposições que o incentivaram, e sim a situação econômica atual do Brasil, que é semelhante à situação da China há alguns anos. O galerista explica que se antes se falava muito pouco do Brasil, hoje o momento é de um crescente interesse das galerias pelo gigante da América Latina porque há mercado e uma grande efervescência de novas inciativas. Tal fato é comprovado, por exemplo, pela abertura em dezembro de 2012 de uma filial da White Cube em São Paulo, uma das maiores galerias mundiais. Portanto, antes dos anos 90, poucas exposições de arte contemporânea brasileira eram realizadas na Bélgica, e mesmo as que foram realizadas deviam-se a ocasiões de eventos ou acordos bilaterais. Os artistas brasileiros começam a ter visibilidade a partir dos anos 90, num contexto de interesse pela arte dos países “periféricos”, relativamente desvinculados do eixo Europa–Estados Unidos. Porém, a visibilidade da arte brasileira na Bélgica foi

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Artistas brasileiros vivendo na Bélgica

menos importante do que nos países vizinhos tais como a França e a Inglaterra, que já divulgam artistas do país há mais tempo e de forma mais sistemática. Na Bélgica, as exposições de artistas brasileiros foram principalmente resultado de iniciativas individuais, como as de Catherine De Zegher, Cristina Barros ou Dorothée Luczak, e são permeáveis a outros eventos que puderam contribuir para a divulgação da arte brasileira na Europa, como a Documenta ou o ano do Brasil na França. Isso talvez explique a recorrência das exposições de alguns artistas e, talvez, a ausência de manifestações artísticas incluindo outros. Enquanto artistas como Sandra Cinto, Albano Afonso ou ainda Paulo Climachauska já têm um histórico de exposições na Bélgica, artistas como Beatriz Milhazes ou Adriana Varejão, que desfrutam de um reconhecimento nacional e internacional, não tiveram muita visibilidade na Bélgica (segundo o currículo das duas artistas publicado no site da galeria Fortes Vilaça). Com o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos e com a realização dos eventos esportivos (Copa do mundo da FIFA, em 2014, e Olimpíadas, em 2016), as atenções se voltam para o Brasil e estimulam um interesse crescente e mais generalizado pela arte brasileira. E ainda que esta afirmação possa ser vista de forma negativa, é imperativo que o Brasil aproveite esse momento oportuno para ganhar visibilidade na cena artística internacional, impondo-se como ator de peso no circuito de arte. Mas para que essa posição persista e seja coerente, é preciso que o país se faça reconhecer por sua história e sua arte, e não alimentando os clichês que ainda persistem.

Depois de um panorama geral (e voluntariamente generalista) sobre a visibilidade da arte brasileira na Bélgica, convém também abordar alguns casos de artistas brasileiros que lá vivem. Porém, geralmente a compreensão e concepção da noção de “artistas brasileiros” tende a excluir aqueles que vivem e trabalham em outros países, onde eles também não entram na categoria de artistas nacionais (G. Brett, 1989, s.p., [ p. 33]). Contudo, são esses artistas expatriados que melhor encarnam a ideia de intercâmbio e interação entre países, às vezes de forma bastante palpável, como veremos em algumas obras. Por essa razão nos parece fundamental no contexto desta publicação apresentar brevemente seus trabalhos e seus percursos.

Afrânio Fonseca de Paula, entre mémoria pessoal e coletiva Natural do Ceará, Afrânio Fonseca de Paula cursou dois anos de História na Universidade Estadual do Ceará seguidos de dois anos de Desenho e Pintura na Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Entretanto, ele desejava obter uma formação complementar de uma academia de pintura europeia, onde pudesse adquirir mais técnica e prática. Se a sua escolha inicial oscilava entre a Royal Academy de Londres, a Kunstakademie Düsseldorf e a Akademie der Künste em Berlim, o artista sempre manteve uma curiosidade pela Bélgica. Efetivamente, o pequeno país tem uma forte tradição de pintura a óleo desde os primitivos flamengos como Jan Van Eyck, até os retratos de Van Dyck e as dramáticas cenas de Rubens. Isso o levou a enviar um dossiê para a Academia Real de Belas Artes de Bruxelas, onde foi aceito. O artista chegou a Bruxelas em 1999, quando a cidade ainda não era um centro artístico muito conhecido na cena internacional. Entretanto, ela já oferecia uma grande facilidade de acesso a informações e bibliotecas, além de uma oferta cultural considerável. Além disso, Afrânio Fonseca de Paula também se identificou com a diversificação e o cosmopolitismo da cidade que criaram um ambiente propício à sua criação. Por conta disso, Bruxelas teve uma grande influência no trabalho do artista. Em primeiro lugar, foi na capital da Europa que Afrânio Fonseca de Paula adotou o material de base do seu trabalho atual: pedaços de porcelana recuperados. O artista coleta fragmentos de louça em porcelana que são descartados ao final do maior mercado de pulgas de Bruxelas, no bairro popular Maroles. Esses fragmentos são utilizados como cacos de mosaicos para revestir ou compor figuras tridimensionais. Dessa forma, o artista dá uma segunda vida a esses objetos descartados reunindo-os em mosaicos que amalgamam as diversas histórias associadas aos seus usos anteriores. Em segundo lugar, alguns temas iconográficos povoam o trabalho do artista, como por exemplo o seu emblemático Manne­ ken-Pis Blanc realizado em 2009, que constitui uma releitura do mascote da cidade, literalmente um menininho que urina. O artista achou uma estátua quebrada do Manneken-Pis e a usou como

Bibliografia Brito R., G. Bueno e S. Salcedo (éd.), Art in Brazil 1950 – 2011, catálogo de exposição, 4 outubro 2011 – 15 janeiro 2012, Bozar. Centro de Belas Artes, Bruxelas, 2011. Comunicado de imprensa 5ème Biennale internationale de la Photographie et des Arts visuels de Liège. BRASIL - Du 19 février au 2 avril 2006. De Baere B., I. Koeckelberghe N. Van Hout, Images pensées. Cinq siècles d’images à Anvers, Antuérpia, 2011. Deepwell K., “An Interview with Catherine de Zegher, curator of Inside the Visible: An Elliptical Traverse of Twentieth Century Art, in, of, and from the feminine”, n. paradoxa, 1, dezembro 1996, p. 57-67. De Zegher C., Tunga “Lezarts” – Cildo Meireles “Through”, catálogo de exposição, 20 de maio – 22 de outubro 1989, Kanaal Art Foundation, Courtrai, 1989. Duplat G.,  “ Eux, ils interpellent encore la société” em Culture em Lalibre.be, 16/02/2006, [ http://www.lalibre.be/culture/global/article/269175/eux-ils-interpellent-encore-la-societe.html], (15/09/2012). Farias A., “Brésil: un petit manuel d’instructions”, Art Press, 221, fevereiro 1997, p. 34 – 39. Fialho A. L., L’insertion internationale de l’art brésilien. Une analyse de la présence et de la visibilité de l’art brésilien dans les institutions et le marché, Tèse de doutoradoapresentada na École des hautes études en sciences sociales, Paris (Jacques Leenhardt, orientador), 2006. Fialho A. L., “As exposições internacionais de arte brasileira: discursos, práticas e interesses em jogo”, Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n° 3, set.-dez. 2005, p. 689 – 712. Musées royaux des beaux-arts de Belgique, Créativité dans l’art brésilien contemporain, catálogo de exposição, Bruxelas, 10 maio-24 de maio de 1978, Bruxelas, 1978. Robberechts C., S. Beele, C. de Zegher e H. Verschaeren (ed.), America. Bride of the Sun. 500 years Latin America and the Low Countries, catálogo de exposição, 1 de fevereiro – 31 de maio de 1992, Museu Real de Belas Artes de Antuérpia, Gand, 1992. Roelstraete D. (éd.), A Rua. Rio de Janeiro & The Spirit of the Street, catálogo de exposição, MuHKA.Museu de Arte Contemporânea de Antuerpia, Antuerpia, 6 outubro 2011 – 22 janeiro 2012, Antuerpia, 2011. Storr R., “The carioca & the paulista”, Art in America, setembro de 2012, p. 104-108.

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Convite para a vernissage de esculturas do artista Afrânio Fonseca de Paula.

base para sua obra. A escultura original foi recoberta por cacos de objetos utilitários dos quais a função primeira foi desviada. Por exemplo: o órgão sexual da estátua é representado pelo bico de um bule de chá. Talvez esse espírito de desvio e subversão tenha sido algo que lhe foi transmitido pela Bélgica, e que encontra um eco no trabalho de artistas como René Magritte, Marcel Broothaers ou James Ensor. De toda forma, o artista brasileiro conseguiu conciliar a figura folclórica que marcou a história coletiva da cidade com fragmentos de memórias individuais (site Ville de Bruxelles). Essa livre interpretação do mascote da cidade foi apreciada pelos belgas, tanto que a obra foi adquirida pelo Museu da Cidade de Bruxelas – Maison du Roi, em 2011, e está exposta na sala consagrada ao Manneken-Pis.

Sidnei Tendler, entre paisagens reais e mentais Viajar sempre foi uma necessidade para o artista carioca Sidnei Tendler. Depois de estudar arquitetura na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, e participar de projetos urbanísticos, como a reabilitação do bairro do Catete, pelo qual foi premiado, seguiu alguns cursos em 1982 na Parsons School of Design, em Nova York. Voltou então ao Rio de Janeiro, onde desenvolveu um trabalho de pintura e desenho que apresentou na sua primeira mostra individual, em 1986. No final dos anos 80, o artista mudou-se para Recife, onde morou por dez anos. A ligação de Sidnei Tendler com a Bélgica começou em 1993, quando um belga descobriu seu trabalho durante uma exposição em Recife e o convidou a expor na Bélgica. Depois dessa primeira mostra, ele é convidado anualmente a dar workshops e apresentar seus trabalhos, principalmente em Flandres. Durante esse período, o artista pôde interagir com personalidades do mundo da arte e se cercar da amizade de artistas belgas, como Luk Vermeerbergen. Por receber boas críticas e aceitação, ele considerou que o país podia lhe oferecer mais possibilidades. Tanto que em 2000, Sidnei Tendler mudou-se para a Bélgica. O artista explica que o contexto belga foi profícuo para o desenvolvimento da sua produção artística. Primeiro porque a sua posição geográfica estratégica, limítrofe com a França, Holanda e Alemanha, permite a visita a grandes centros artísticos europeus, que ficam a poucas horas de trem de Bruxelas. E também porque a situação política da Bélgica, onde convivem três comunidades

O artista Sidnei Tendler.

(a flamenga, a francófona e a germanófona) além de sediar diversas instituições europeias, apresenta uma significativa diversidade cultural e linguística. Com respeito especificamente ao contexto artístico, a Bélgica conta com uma produção de qualidade que vai da tradição da pintura flamenga até grandes nomes da arte contemporânea, tais como Luc Tuymans, Wim Delvoye e Jan Fabre. Paralelamente, o país dispõe de um bom circuito de galerias e grandes colecionadores. Foi efetivamente na Bélgica que Sidnei Tendler desenvolveu seus projetos mais ambiciosos e que evidenciam uma maior maturidade. Entre eles está 365 – Um diário visual, projeto no qual o artista pintou uma aquarela por dia durante o ano de 2002, quando viajou regularmente, tomado pela vontade de registrar sistematicamente o estado de espírito e a espontaneidade do momento associado a um lugar em particular. Efetivamente, se a Bélgica foi um ponto de partida para esse projeto, o artista percorreu vários outros lugares da Europa, tais como Paris, Nice, Veneza, Salzburgo e Munique. Portanto, nesse calendário íntimo, o artista nos oferece uma vista panorâmica de seu inconsciente, onde se misturam paisagens reais e mentais, onde transversalidades se destacam, ligando diferentes desenhos entre si.

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pintura e escultura

Além de seus projetos artísticos, Sidnei Tendler também desenvolve atividades educativas na Bélgica. Em 2001 apresentou um seminário na escola europeia de Bruxelas aos alunos do último ano em Artes Plásticas e, de 2002 a 2004, foi idealizador de diversos seminários no centro cultural De Warende, em Turnhout. O artista também montou seu próprio ateliê na Bélgica, primeiro na cidade de Mol e depois em Overijse, antes de se estabelecer em Bruxelas, onde atualmente vive e trabalha. Este espaço projetado para estabelecer diálogos, discussões e trocas entre artistas e profissionais do mundo da arte, sediou exposições de diversos artistas durante o projeto Ateliê Sidnei Tendler Invites. Agora abre espaço para novos artistas no seu projeto mais recente, Showing Young Talents, onde o artista espera poder criar um intercâmbio entre a Bélgica e o Brasil, em que os artistas possam expor respectivamente nos dois países. Esta, aliás, também é a ambição da galeria TeC – Tendler Contemporânea, nova galeria de arte aberta no Rio de Janeiro por sua esposa Carla Tendler, que pretende reforçar a ponte entre os dois países.

de Munich em 2008. Em 2009 também foi comissionado para rea­ lização de Good Luck, para o Museu da Ourivesaria Sterckhof, na Província de Antuérpia. Apesar da participação nesses diversos eventos, a obra de Nilton Cunha se situa mais precisamente no cruzamento entre a sua cultura natal brasileira e a cultura da Bélgica, país onde vive e trabalha há 20 anos. A este respeito, o artista explica que o diálogo e a interação entre essas duas matrizes são fonte de inspiração que alimentam e estruturam sua arte. Um exemplo significativo é a obra intitulada Pomar, que apresenta uma superfície branca e plana de formato retangular, na qual estão fixadas pequenas hastes de diferentes tamanhos e sobre as quais estão dispostas taças circulares de prata. Em português, o título remete a um terreno de árvores frutíferas, enquanto em francês ele evoca as palavras maçã e arte (respectivamente “pomme” e “art”). Ao mesmo tempo que a obra remete ao pomar, ela ergue e valoriza cada fruta em vez de apresentá-las de forma amontoada e desordenada. Assim, com esse jogo de palavras e línguas, Pomar reflete a maneira na qual Nilton Cunha “preserva uma cultura e absorve outra”. Depois de conciliar essas duas esferas de influência e de estar fora do Brasil por tantos anos, o artista deseja compartilhar seu aprendizado e experiência em seu país de origem, que desde o século XIX, não teve uma grande tradição em ourivesaria. As técnicas que aprendeu na Bélgica e a joalheria contemporânea ainda são pouco conhecidos no Brasil, e é esse manuseio que ele gostaria de divulgar na sua terra natal.

Nilton Cunha, entre a esfera linguística francófona e lusófona Nilton Cunha desenvolveu um trabalho consistente e diversificado, que vai da prataria até a joalheria contemporânea, e que se destaca pela simplicidade e elegância de suas formas, assim como pela sua habilidade técnica. Depois de seguir as primeiras aulas de ourivesaria, em uma escola particular de Belo Horizonte, o artista se estabelece na Bélgica em 1992, então com 26 anos. Apesar de nunca ter planejado se instalar no país, ele expressa a sua satisfação de ter adotado a Bélgica e ser adotado por ela. O primeiro aspecto relevante que contribuiu para o seu desenvolvimento artístico é o acesso a formações e cursos de qualidade relativamente baratos em comparação a outros países. Depois da sua chegada, Nilton Cunha completou a sua formação em joalheria, esmaltação e cinzel no Instituto Arts et Métiers, em Bruxelas, de 1994 a 1999. Paralelamente, se especializou em ourivesaria no Instituut voor Kunstambachten, de Malines, entre 1998 e 2001. Desde esse período de formação, Nilton Cunha se destacou pela qualidade do acabamento de suas peças e pela minúcia e precisão de sua realização técnica. Em 2000 sua obra Prato Valeiro venceu o prêmio Wim Ibens de ourivesaria contemporânea, e em seguida foi apresentada no Museu do Design de Gand, onde recebeu uma menção honrosa. No mesmo ano, o artista voltou ao Instituto Arts et Métiers, dessa vez como professor, onde lecionou até 2006 e, posteriormente, a partir de 2008. O trabalho de Nilton Cunha também foi reconhecido fora da Bélgica, como indica, por exemplo, a sua participação em 2001 e 2004 respectivamente nas 13ª e 14ª Silbertriennale em Hanau, na Alemanha, além dos diversos prêmios recebidos, como os prestigiosos SNS Bank Silver Day Public’s Prize, em 2006, e o Schoon­ hoven Silver Award,em 2009, ambos em Schoonhoven, na Holanda, e o Inhorgenta Innovation Award durante a Internationale Fachmesse für Uhren, Schmuck, Edelsteine, Perlen und Technologie

Inêz Oludé da Silva e a Bienal de artes brasileiras de Bruxelas Se o acaso trouxe à Bélgica os artistas que apresentamos anteriormente, o exílio político fez com que Inêz Oludé da Silva se instalasse na Bélgica em 1976. Foi lá que ela encontrou na arte uma maneira privilegiada de expressar suas ideias e um meio de divulgação do seu engajamento. Autodidata, começou a pintar em 1991, mas tornou-se uma artista polivalente que se dedica também à música, à dança e à arte postal; linguagem esta que convém particularmente bem ao seu ativismo e que consiste em realizar colagens de pequeno formato com mensagens políticas que são enviadas a outros artistas no mundo, estabelecendo assim uma forma de arte livre de qualquer critério estético ou preocupação comercial. Além das ideias engajadas que ela faz circular com sua arte postal, a artista explica que vem lutando muito pelos artistas brasileiros expatriados. Ela distingue os “artistas oficiais”, aqueles que são enviados pelo Brasil em exposições no contexto de acordos de cooperação, e os artistas “locais”, ou brasileiros residentes no estrangeiro, que não podem contar com o auxílio governamental mas que na verdade constituem a memória viva do Brasil no exterior. Dois dos principais problemas que recaem sobre os artistas brasileiros no exterior são, segundo Inêz Oludé, a ignorância relativa à arte brasileira e os clichês sobre o Brasil. Efetivamente, a artista insiste sobre o fato de que na Bélgica as pessoas desconhecem e até

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tor de compreensão recíproca que permite desconstruir clichês e pré-concepções. Depois de três edições ainda é difícil avaliar o impacto da Bienal no intercâmbio cultural com a Bélgica. De toda forma, como a dicotomia entre “artistas oficiais” e “artistas locais” permanece, sua iniciativa firma-se como uma plataforma interessante para os artistas brasileiros que residem no exterior. Até porque são eles que melhor encarnam esse status de intermediários: entre memória pessoal e memória coletiva no trabalho de Afrânio Fonseca de Paula; entre paisagens reais e mentais no trabalho de Sidnei Tendler; entre a esfera linguística francófona e lusófona na obra de Nilton Cunha e entre engajamento pessoal e causa coletiva nas iniciativas de Inêz Oludé da Silva. De forma consciente ou não, estes artistas aparecem como mediadores e intermediários entre duas realidades, entre a Bélgica e o Brasil, o que pode ser percebido com um olhar atento às suas produções artísticas. Agradecimentos: Afrânio Fonseca de Paula, Albano Afonso, Ana Lacerda, Ana Leticia Fialho, Charles-Antoine Bodson, Cristina Barros, Inês Oludé da Silva, Luciana Kujawski, Nilton Cunha, Paulo Climachauska, Sandra Cinto, Sidnei Tendler. Este artigo foi concluído em dezembro de 2012. Olivia Ardui, formada em História de Arte pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve (UCL) com uma tese sobre a obra de David Claerbout. Atua como curadora em São Paulo.

Bibliografia As informações dos diferentes textos foram realizados a partir de entrevistas com os artistas e com auxílio de documentos mencionados na bibliografia. As entrevistas aconteceram em Bruxelas, no dia 2 de novembro de 2012 com Afrânio Fonseca de Paula e Sidnei Tendler, dia 9 de novembro de 2012 com Inês Oludé da Silva e finalmente no dia 13 de novembro com Nilton Cunha. Atelier Sidnei Tendler, About, 15/11/2012, [http://ateliersidneitendler.wordpress.com/ about/], (04/12/2012). Devoght T., 001. Sidnei Tendler, Turnhout, 1999. De Naeyer Ch., “Inêz Olude da Silva. L’expression comme nécessité”, Artenews, n°72, maio 2011, p. 14. MintenI., “La classe ? C’est la personnalité qui joue avec le beau…”, ISEL, 21, p. 79-89. Nys W., Nilton Cunha. Good Luck, catálogo de exposição, 25 de outubro de 2009 – 10 de janeiro de 2010, Museu de ourivesaria Sterckhof da Província de Antuérpia, Antuérpia, 2009. Oludé da Silva I. (ed.), Bienale des Arts Brésiliens de Bruxelles, Bruxelas, 2007. Oludé da Silva I. (ed.), Catalogue 2eme édition 2009. Bienale des Arts Brésiliens de Bruxelles, Bruxelas, 2009. Oludé da Silva I. (ed.), 3ème Biennale des Arts Brésiliens de Bruxelles. Catalogue 2011, Bruxelas, 2011. Ville de Bruxelles, “Witte Manneken-Pis Blanc” em Musées de la Ville, 01/12/2012, [http:// www.bruxelles.be/artdet.cfm/7156], (01/12/2012).

‘Labirinto’, obra de Inêz Oludé da Silva.

se perguntam se existe arte no Brasil. Essa foi a principal motivação que a estimulou a idealizar uma Bienal de artes brasileiras em Bruxelas. Este evento tem como objetivo reunir e divulgar em uma exposição as obras dos artistas brasileiros que vivem e trabalham na Europa, mostrando assim ao público europeu que o brasileiro é portador de uma cultura rica e diversificada. Em 2007, com o apoio da embaixada do Brasil na Bélgica e a Comune de Saint-Gilles, foi realizada a primeira Bienal de artes brasileiras em Bruxelas. No catálogo dessa primeira edição, Inêz Oludé expôs seus objetivos. Os principais são a realização de um mapeamento dos artistas brasileiros residentes na Europa, a divulgação dos seus trabalhos no Brasil, assim como no exterior, e estimular e estabelecer as trocas entre o Brasil e a Europa. Dessa forma a arte adquire um papel de integração e se torna um ve-

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Fonte de inspiração e temas de Luiz Figueiredo Fr e d e r i k D e P r e e s t e r e P i e t S l i j k e r m a n O Museu Dr. Guislain em Gand (Bélgica) tem uma grande coleção internacional de arte marginal. Além das obras de Adolphe Wölfi, Willem van Genk, Nek Chand, possui uma grande coleção das obras de Luiz Carlos Pereira de Figueiredo. Em 2009, o museu publicou um catálogo em três idiomas (português, inglês, neerlandês, 100 p.) sobre a obra deste último. Este catálogo começou com uma excelente introdução, escrita pelas mãos de Frederik De Preester e de Piet Slijkerman, que descreve as fontes de inspirações de Figueiredo (Patrick Allegaert).

É

difícil caracterizar a obra de Luiz Figueiredo. Ela é original tendo em vista tanto a tradição brasileira quanto a europeia. Embora possamos reconhecer elementos do barroco em seu trabalho, não podemos classificá-lo como sendo de um determinado estilo. Tampouco basear seu trabalho em artistas do passado, mas permanecer fiel ao seu estilo espontâneo. Podemos, sim, notar um desenvolvimento em seu estilo, no entanto, a linha de trabalho permanece a mesma: a representação de suas ideias, de suas fantasias e do mundo ao seu redor. Sua obra nos mostra sua interpretação de diferentes aspectos da vida brasileira: a mundana, a religiosa, a artística e a marginal. Figueiredo era extremamente impressionado com o barroco luso-brasileiro. A alegria e a dramaticidade do mesmo podem ser encontradas em sua obra. Simplicidade e serenidade não fazem parte do seu vocabulário. Ele não é muito religioso, pelo menos não é praticante, assim como a grande maioria dos brasileiros. A religião é usada em caso de emergência, se há, por exemplo, um problema a ser resolvido, um mal olhado a ser afastado ou uma catástrofe a ser evitada. Mas, ao mesmo tempo, a religião ocupa um lugar importante em sua obra: não somente o catolicismo com sua forma barroca, mas também aspectos culturais afro-brasileiros com seus deuses, rituais e espiritismo. Seu trabalho conta com inúmeras representações de Cristo, Nossa Senhora e Iemanjá, deusa dos mares. Artistas de filme e televisão, o circo, o carnaval, a vida noturna movimentada do Rio de Janeiro com seus teatros, cabarés, shows e bordéis são também uma importante fonte de inspiração para Figueiredo. As divas também exercem um grande poder de atração sobre o artista e aparecem com frequencia ao seu lado. No Brasil, entre outras, destacamos: Nádia Maria, uma comediante; Watuzzi, dançarina e cantora do Moulin Rouge; Zezé Mota, atriz de televisão e cinema; Elke Maravilha, modelo; Elza Soares, cantora; Wilma Noel, atriz e escultora; Marisa, fotógrafa; Juliana Wagner, pianista e numerologista; e Majoy Betancourt, correspondente e escritora. Na Holanda ele aprecia a companhia de Dany Zonewa, uma cantora de ópera de origem búlgara. Em Londres é amigo de Moo Broughton, um arquiteto paisagista, mas também apresenta uma

“Iemanjá”, de Luiz Figueiredo, 1982, papier-maché pintado.

enorme adoração por Josephine Baker, Carmen Miranda e Maria Callas. A mesma adoração ele demonstra para as divas da rua e da vida noturna: as prostitutas, os travestis e transsexuais, pessoas que desafiam a moral burguesa e desenfreadamente ousam demonstrar suas índoles e sentimentos. Sua obra é densamente povoada por divas, estrelas, prostitutas e artistas circenses. A via sacra, pietás e representações natalinas se sobrepõem com cenas de bordéis, cenários teatrais e festividades carnavalescas.

O artista plástico Com excessão ao curto período na academia de belas artes, Figueiredo é um verdadeiro autodidata. Ele não somente apresenta originalidade na escolha de seus temas, mas também na técnica empregada, no estilo e nas cores utilizadas.

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Se existe uma característica que não possui é habilidade técnica. Como especialista ele não é ninguém. Ele não possui a capacidade de preparar suas próprias telas, tampouco de montar uma moldura. Não são poucas as vezes em que ele imagina uma determinada obra e acaba necessitando de ajuda de terceiros para colocar o plano em ação. Suas primeiras esculturas ele constrói usando para isto garrafas e uma papinha de maizena e grude. Neste momento, ele ainda não conhece a técnica do papier-maché e esta maneira original usando maizena e grude gera clientes insatisfeitos já que suas esculturas acabam atraindo insetos. Todo este trabalho de preparação dificulta e limita seu processo criativo em detrimento do prazer que tem em criar. Sendo assim aceita agradecidamente com frequência a ajuda de profissionais que lhe fornecem o material básico e sabem solucionar problemas técnicos. Embora aparentemente demonstre ser uma pessoa muito calma e relaxada, no seu dia a dia, lhe falta muitas vezes a paciência necessária para deixar uma escultura de papier-maché secar naturalmente. Munido de sacos plásticos e secador de cabelo acaba por levar o trabalho à ruína. Ele tampouco é capaz de copiar ou imitar seu próprio trabalho, reproducões estão fora de questão. Ele raramente aceita encomendas e, quando o faz, o resultado geralmente é bem diferente do que o cliente tinha em mente. Seu trabalho tem um caráter alegre com exceção de umas poucas obras dramáticas e, mesmo estas obras apresentam detalhes alegres e amáveis. Suas obras são muito coloridas e detalhadas. Suas esculturas também são policromadas. Quando uma de suas coloridas imagens de Iemanjá foi forjada em bronze para ser exposta no calçadão de Copacabana, ele lamentou a ausência das cores. Até no preparo de receitas culinárias ele dá mais atenção às cores do que aos sabores. Um prato sem cor é por definição um prato insosso. Sua necessidade de aprovação, principalmente quando confrontado com uma crítica negativa, lhe gera insegurança. Para provar seu talento como artista plástico passa a basear seu trabalho no estilo de outros artistas. Por exemplo, a fase “Kees van Dongen”. Desta forma tenta provar que consegue pintar no estilo dos “verdadeiros pintores”.

“Madona Nossa Senhora”, de Luiz Fiqueiredo, 1983, acrílico sobre tela.

Nem para as pinturas nem para as esculturas ele parte de um plano previamente elaborado. Impulsivamente ele começa a trabalhar e sob a influência das circunstâncias, dos materiais disponíveis e de seu humor, o resultado é, como se poderia esperar, totalmente imprevisível. Ele tem um anseio quase neurótico para desenhar e decorar. Com grande prazer ele passa horas, dias e semanas trabalhando em suas esculturas e pinturas. Isto acaba gerando uma imensurável quantidade de rascunhos, desenhos, pinturas e esculturas. Mas também quando conversa ao telefone, ou espera para ser atendido em um restaurante, ou mesmo deitado em uma esteira na praia, ele desenha, usando para isto um livro, um gardanapo, ou até a areia. Sua casa é cheia de estatuetas, bugigangas, enfeites, quadros e molduras. A obra de Luiz Figueiredo é uma expressão visual de sua expressividade impulsiva. Seu trabalho resulta de ato criativo, a idéia se desenvolve durante o processo. Ele encontra dificuldades em assinar um quadro ao terminá-lo. Como se estivera lendo um livro muito interessante e não quisesse chegar à última página. Seu trabalho artístico representa para ele o mesmo papel que o futebol para a maioria dos brasileiros: algo que você não faz obrigado, mas, pelo contrário, o faz com prazer.

Patrick Allegaert é Diretor artístico do Museu Dr. Guislain de Gand. Frederik De Preester é Coordenador dos projetos de exposições do Museu Dr. Guislain de Gand e escreve sobre arte, criatividade e delírio.   Piet Slijkerman foi assistente administrativo da cidade de Rotterdam em matérias de educação, renovação urbana e arquitetura. Pela amizade com Luiz Figueiredo se interessou pela arte naïf brasileira e passou longas temporadas no Brasil. Escreveu o livro Cariocas. 

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pintura e escultura

A trajetória da Galeria Cravo e Canela Te x t o s o b r e J a c q u e s A r d i e s

J

acques Ardies nasceu na Bélgica, em 1949, de mãe francesa e pai belga. Diplomado em Ciências Financeiras e Comerciais pelo Institut Catholique des Hautes Études Commerciales (ICHEC) de Bruxelas, complementou sua formação com um ano de estudos sobre Economia dos Países em Desenvolvimento na Universidade de Lovaina. Com seus diplomas e 25 anos de idade, Jacques decidiu transferir-se para o Brasil aonde deveria conseguir um trabalho por um período de dois anos numa entidade onde atuaria em formação profissional ou ainda como professor. Esta era a condição imposta pelo governo belga para ele conseguir a isenção do serviço militar que, na época, era obrigatório na Bélgica. Depois de completar o período de dois anos, pensou na ideia de ficar mais um pouco nesta terra tão aconchegante. Trabalhou em um escritório de representação de um grupo bancário francês, instalado em São Paulo, durante dois anos. Foi chamado para trabalhar numa empresa de exportação que precisava de melhor comunicação com os clientes da Europa. O fato de falar várias

línguas foi determinante para conseguir o emprego. Depois de alguns meses, numa bela manhã, Jacques foi chamado pela diretoria que lhe informou que, por razões de conjuntura, não tinha mais condições de pagar seu salário. De repente, em alguns minutos, Jacques viu sua vida ser transformada em pesadelo. Ele demorou para se recuperar do susto. Alguns dias depois, decidiu que nunca mais viveria uma situação parecida, na qual alguém pudesse transformar sua vida tão repentinamente, e começou a pensar numa alternativa para se sustentar. Estava aberto a todas as ideias possíveis, inclusive àquelas que não tinham relação com sua formação acadêmica. Surgiu então a ideia maluca de abrir uma galeria de arte. Cliente de uma loja de produtos naturais e sem ocupação formal, Jacques foi solicitado pela dona da loja a pedir quadros emprestados que pudessem decorar as três salas do andar de cima, onde seria feita uma ampliação do salão de chá. Na hora ele achou aquilo um pedido absurdo. Como teria ela a “pouca vergonha” de pedir a vários artistas quadros apenas para

“Brindando com os noivos”, de Edivaldo Barbosa de Souza, 2012, 90 x 150 cm.

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parte 9 – artes plásticas

Essa amiga logo se entusiasmou com a ideia e prometeu dar apoio apresentando os artistas e fornecendo contatos de amigos executivos e empresários. Jacques voltou à loja de produtos naturais e apresentou uma proposta de sociedade para a proprietária. Assim nasceu, em poucos meses, a Galeria Cravo e Canela, que foi inaugurada em agosto de 1979. A galeria ocuparia o espaço do andar de cima da loja de produtos naturais, pagaria a metade das despesas e seria especializada em arte naïf. Os artistas, graças ao aval da amiga, entregaram todos os quadros solicitados. A grande sorte foi que, naquele exato momento, não existia uma única galeria em São Paulo que promovesse, divulgasse e comercializasse a arte naïf. Havia uma oportunidade única e Jacques se entregou de corpo e alma, com a energia e o entusiasmo dos seus 30 anos, a essa atividade que representava o preenchimento de uma lacuna no universo das artes naquele momento. No começo, Jacques teve que improvisar e ter jogo de cintura para fugir das perguntas difíceis. Não tinha nenhuma formação em história da arte. Também não tinha ideia de como devia funcionar uma galeria de arte. Começou a devorar livros de arte, dicionários, críticas, viajou bastante e, para o resto, usou o famoso “jeitinho brasileiro”, foi se fazendo de entendido, mas sem se aprofundar no assunto. Recebeu apoio dos amigos que, de certa maneira, admiravam a coragem de trocar uma carreira de um eventual futuro executivo por uma aventura sem nenhuma ga-

Retrato de Jacques Ardies na companhia de Ernani Pavaneli na Galeria.

esta finalidade? Meio bravo, ele retrucou que não teria a mínima possibilidade de atender a esse pedido tão surreal e que certamente os artistas nunca aceitariam. À noite, sonhou com a abertura de uma galeria de arte e no dia seguinte procurou uma amiga que, ele sabia, tinha contatos privilegiados com alguns artistas, dos quais, por acaso, ele tinha apreciado as obras alguns meses antes.

“O lambe-lambe”, de Ana Maria Dias, 2012, 50 x 80 cm.

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pintura e escultura

“Na praia”, de Ivonaldo Veloso de Melo, 1996, 80 x 100 cm.

rantia de sucesso. E assim foi levando; conseguiu seus primeiros clientes, artigos na imprensa e a reputação de galeria de arte onde era agradável passar um fim de tarde. Um ano mais tarde, transferiu-se para uma casa mais ampla e melhor localizada, perto do Parque do Ibirapuera, inaugurando uma nova galeria à qual deu seu nome. Nessa casa, na Rua do Livramento, seria realizada uma quantidade importante de exposições individuais e coletivas durante os 25 anos seguintes. Em 1998, conseguiu publicar um livro sobre a arte naïf do Brasil, que teve excelente receptividade; o livro foi reimpresso duas vezes e hoje encontra-se esgotado. Em 2002, teve também a sorte de poder editar um livro sobre a vida e a obra do artista pernambucano Ivonaldo Veloso de Melo, comemorando uma parceria bem sucedida de 22 anos e que se mantém até hoje.

Em 2004, teve que deixar a casa da Rua do Livramento em três meses, pois ali seria construído um prédio. Procurar um novo local transformou-se numa tarefa bem mais complicada do que tinha imaginado: ou os imóveis estavam deteriorados ou o aluguel estava além de suas possibilidades. Com muita sorte encontrou uma bela casa de 1925, renovada, maior, mais luminosa e não muito longe, no Bairro de Vila Mariana, mais precisamente na Rua Morgado de Mateus, onde a galeria está instalada até hoje. Depois de completar os dois anos obrigatórios no Brasil, Jacques pensou na ideia de ficar mais um pouco. Este pouco dura já quase 40 anos e não há perspectivas de modificar este quadro tão cedo. Jacques é casado com Lucia Diniz, sua esposa e companheira de todos os desafios. Tiveram três filhos: Maité, Joyce e Daniel, todos formados e seguindo carreira profissional.

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parte 9 – artes plásticas

Sobre a arte naïf, por Jacques Ardies

inconsciente coletivo. Há muita poesia, observação encantadora, uma desajeitada habilidade charmosa, uma mensagem positiva e, enfim, um mundo encantado. Os olhos agradecem por tanta beleza e sutil emoção. Os meus clientes costumam sorrir quando observam os quadros expostos. Depois da revolução da arte moderna, vivemos uma implacável necessidade de apresentar novidades no mundo das artes. A arte conceitual, as performances e as instalações requerem grande concentração e leitura de muitas explicações esclarecedoras. A arte virou um terreno fértil para muitas extrapolações que aparecem tão rapidamente quanto são esquecidas, assim que os efeitos das modernas técnicas de marketing desmoronam. Neste contexto, a arte naïf oferece um sopro de ar fresco, uma obra honesta e dedicada, uma expressão sem maior implicância intelectual, apreciada e admirada pelo povo e também pelos intelectuais e colecionadores contemporâneos.

É uma classificação para definir um grupo de pintores que expressam livremente suas memórias e suas emoções. Sem a ajuda de um professor de Belas Artes, eles conseguem superar as dificuldades técnicas e inventam uma linguagem inédita e pessoal. A palavra francesa naïf significa ingênuo, e foi dada ao estilo apresentado por Henri Rousseau, que se juntou aos revolucionários da arte moderna. Rousseau era uma pessoa sensível que vivia um pouco fora do seu tempo. Ele tinha o seu lado bem ingênuo e sua pintura espontânea encantava pelo talento criativo e inédito. Tenho um fascínio pela arte naïf porque ela se inspira nas raízes culturais. Penso também que representa uma expressão artística de grande valor pela criativitade e orginalidade de seus artistas. Cada um apresenta uma obra diferenciada, inconfundível, expressiva e que se inspira em sua vivência pessoal e invade o nosso

Arte Popular Brasileira Daniel Achedjian

M

inha descoberta e meu interesse pela Arte Popular Brasileira se devem a um cruzamento de fatores. Depois de estudar História da Arte no Instituto Real de Belas Artes de Bruxelas, nos anos 80, e focando minha paixão pelas artes plásticas da época moderna e contemporânea, foi apenas no início dos anos 2000 que me dei conta da riqueza desta arte ainda injustamente depreciada. A Arte Popular continua sendo, no entanto, essencial para se poder perceber o Brasil na sua essência e identidade, e isto através de obras de grande qualidade estética, quando evocamos seus melhores mestres, tanto em pintura como em escultura. Na verdade, foi através da música que por ela me interessei, e, depois, me apaixonei. Cada escultura de Mestre Vitalino não é um tema recorrente de Luiz Gonzaga, como cada pintura de Heitor dos Prazeres, não expressa a alegria e o convívio de uma ‘roda de samba’? Através de grandes compositores, como através de inúmeros mestres da Arte Popular, aprendi a conhecer um pouco melhor o Brasil, suas festas, suas tradições, suas lendas, sua história, mas também seu cotidiano e o imaginário específico de cada região. Cada uma dentre essas manifestações é o cruzamento de várias culturas, vindas dos quatro cantos do mundo, que se misturaram com as tradições locais. Após ter consultado inúmeros livros (muitas vezes difíceis de encontrar, pois, com frequência, antigos e esgotados), visitar diferentes espaços culturais – como o Museu Casa do Pontal no Rio de Janeiro, legado do franco-belga Jacques Van den Beuque, e também o Museu Afro-Brasil de São Paulo e o Museu do Folclore no centro da capital carioca –, após ter conversado com colecio-

nadores – como César Aché, Vittoria Pardal, Vilma Eid –, com especialistas – como a saudosa Lélia Coelho Freitas (1938-2010) –, e os marchands que não se tornaram cegos devido ao sistema do mercado da arte – como o dono de galeria Jacques Ardies ou Ana Maria Shindler –, comecei a juntar, há alguns anos, uma coleção significativa que, talvez um dia, decida expor de alguma forma. Ela compreende, entre muitos outros nomes, os pintores José Antônio da Silva, Júlio Martins da Silveira, Maria Auxiliadora, Miriam, Heitor dos Prazeres e Rosinha Becker do Vale; e dos escultores em madeira ou barro Vitalino Pereira dos Santos, GTO, Chico Tabibuia, Artur Pereira e Isabel Mendes de Cunha. Filho de colecionador da escola belga moderna tive, inicialmente, que me libertar de regras e ideias próprias do mercado da arte tradicional, como o sistema de cotações, as salas de leilão, as estratégias de galerias, os modismos, em suma, tudo o que faz girar um mercado lucrativo, com seus bons e (muitos) maus aspectos, onde a obra de arte em si deixou de ser o centro de interesse. Foi preciso, também, reavaliar a ideia de peça única e de atelier. Foi difícil abstrair estes conceitos, visto que a Arte Popular é concebida por artistas que assinam, produzem e devem também ser responsáveis pela divulgação. Nos primórdios, os artistas populares não criavam com esta visão, mas o mundo do mercado da Arte se envolveu neste emaranhado, e certos colecionadores não hesitam em afirmar que, tendo se tornado financeiramente interessados, os artistas populares de qualidade não existem mais… O primeiro grande obstáculo que a Arte Popular encontra, ou a Arte Naïf, no que diz respeito à pintura, é sua própria definição. Cada obra sobre o assunto dedica páginas inteiras para explicá-la, para valorizá-la em relação à arte tradicional, como se fosse

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pintura e escultura

necessário desculpá-la de ser o que é. Perde-se, então, muito tempo antes de, simplesmente, falar dos artistas e de suas criações, o que constituiria, sem sombra de dúvida, um atalho através do qual o amante compreenderia, por si próprio, o interesse e o valor artístico de suas criações. Cada autor aplica a sua teoria – que se resume, geralmente, em dizer que a fronteira com a arte estabelecida é tão móvel quanto arbitrária –, mas a definição que permanece como um bom denominador comum é dizer que a Arte Popular é a expressão artística de pessoas que não possuem formação formal nem acadêmica, mas cujas obras refletem uma tradição estabelecida de estilo e de savoir faire (conhecimento). Podemos acrescentar a isto que o savoir faire em questão é, frequentemente, transmitido pela família e depende dos materiais encontrados no meio ambiente natural. Sem ser uma regra absoluta, é, de fato, muitas vezes, o caso. Na verdade, a Arte Popular é uma arte contemporânea nascida no século XX, a partir do momento em que o artista quis exaltar o objeto de arte como um fim em si mesmo. Não se deve confundir com o Artesanato, feito de objetos de uso que possuem, algumas vezes, qualidades estéticas inegáveis, e menos ainda com a produção massiva de objetos souvenirs decorrentes da Arte Popular em si. Enfim, quanto à questão de saber se a Arte Popular Brasileira não poderia ser anterior ao século XX, observemos ainda a opinião da escritora e historiadora de arte Lélia Coelho Frota. Para ela, existiam, de fato, manifestações individuais de inspiração popular, mas a busca de um estilo e o desejo de criar uma obra global e uma biografia, só datam, de verdade, a partir do século passado. Lélia C. Frota, aliás, assinou o Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, obra de referência que reúne a biografia de 150 principais artistas populares do século XX.

Escultura de Mestre Vitalino.

der que a pintura naïve não é um estilo, mas sim o qualificativo atribuído a um grupo de artistas que não seguiram uma formação artística tradicional. A definição da arte popular, em suma. Também é importante ressaltar que a maioria destes pintores trabalhou e expôs, cada um em seu tempo, com os pintores qualificados como eruditos – e desde então reconhecidos – e que estes últimos admiravam enormemente estes autodidatas por serem livres de regras de ensino. Infelizmente, com o tempo, os organismos oficiais ocultaram os naïfs, que podiam prejudicar um cenário artístico que queria se alinhar com o intelectualismo frenético da cena mundial contemporânea. Eles não tiveram direito a exposições individuais de envergadura, nem a uma biografia digna de suas contribuições para a cultura brasileira. Porém, é bom lembrar que a grande exposição de Arte Popular Brasileira do ano do Redescobrimento do Brasil, em 2000, em São Paulo, ilustrado com um magnífico catálogo, teve mais sucesso de público do que a mostra dos pintores modernistas.

A pintura: popular, naïve, ingênua, primitiva, bruta, regional? Meu primeiro contato com as artes plásticas populares foi com a pintura dita naïve por intermédio de um pintor que não tinha como não chamar a minha atenção: Heitor dos Prazeres (1898-1966). Este artista, testemunha e ator da vida boêmia do Rio de Janeiro no meio do século XX e da idade de ouro do samba, possuía uma linguagem que só podia me seduzir. Foi através dele que tomei conhecimento de outros pintores revestidos do mesmo qualificativo naïf, que eu logo achei incômodo por dar um sentido pejorativo e sobretudo diminutivo. De fato, em alguns, eu encontrava um expressionismo potente (José Antonio da Silva, Maria Auxiliadora), uma visão impressionista (Pavaneli, Júlio Martins da Silveira), uma tendência à abstração (Alcides Pereira dos Santos, Sílvia) ou uma linguagem feita de alegorias fantásticas (Chico da Silva, Iaponi Araújo) ou surrealista (Crisaldo Moraes, Paulo Wladimir). Estamos longe das paisagens coloridas, tranquilas e idílicas com grande teor decorativo, às vezes tingidas de humor, que para a maioria dos amantes da arte simboliza o estilo naïf. Ora – e uma vez por todas! – é preciso enten-

A Escultura Popular… Se a arte dos escultores populares deve ser classificada como contemporânea, não existe, em compensação, um real desejo da

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parte destes de mergulhar na vanguarda. No entanto, alguns deles, apesar de tudo, dela participam. Existe um exemplo mais belo de arte minimalista que a de Nhô Caboclo (c. 1910-1976), genial criador de ascendência indígena, que alia modernidade e cultura ancestral naqueles navios de guerreiros e de escravos? Mas a maioria dos artistas populares partiu dos objetos de uso. Assim, a inspiração das esculturas do Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais) vem das antigas moringas que podiam guardar a água fresca nesta região seca. Por sua vez, Mestre Guarany (1882-1979) esculpiu as famosas carrancas para as embarcações que navegavam no Rio São Francisco, mas a grande maioria destas obras foi criada depois que a utilização destas cabeças de proa fantásticas foram descartadas. Essas obras passaram a ser esculpidas enquanto objeto de arte em si. Da mesma forma, Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), no início, criava seus personagens com barro para fazer brinquedos, antes de suas peças se tornarem estas magníficas testemunhas da vida nordestina, muito apreciadas pelos colecionadores atuais. O artista popular é, geralmente, fruto de condição modesta, que possui um nível de educação e de cultura um tanto restrito. Ele não tem formação artística. É um criador intuitivo e instintivo que produz uma arte autêntica, mas, contudo, muitas vezes, sofisticada; um homem ou uma mulher que trabalha duro e que se dedica ao seu meio de expressão (pinturas, esculturas) após suas horas de ‘batente’, ou assim que entram na aposentadoria. Seu ambiente de vida é simples e rústico, nos vilarejos remotos do interior do Brasil, na costa ou nas periferias das grandes cidades. Não se trata aqui de fazer o retrato romântico do artista vivendo em condições precárias que, na dor e na miséria, percebe que tem, de repente, o dom de criação. Muitas e muitas vezes ele foi, inicialmente, artesão para sobreviver, antes de se tornar artista para se expressar. Vemos que

a produção do artista popular data, em geral, da sua maturidade. Um exemplo entre tantos outros, um dos maiores escultores de madeira do Brasil, Geraldo Teles de Oliveira – GTO (1913-1990) –, só entra de cabeça no trabalho a partir de 1965 – ou seja, quando o artista já está com 52 anos –, e ele só atinge a plenitude da sua arte uma década depois. E não se trata de um caso extremo. Pode-se notar que assistimos, para alguns destes artistas, um certo efeito rotor: em um momento da sua vida, um artesão abandona o seu lado utilitário para se dedicar definitivamente à criação artística. Este, em questão, adquire, então, sua autonomia e pode, algumas vezes, reivindicar um certo reconhecimento. E seu sucesso é tal que a demanda fica cada vez maior. O artista é, então, forçado a trabalhar sob encomenda, repetindo suas obras mais populares e perdendo, desta forma, toda sua alma criativa. Ele se vê de volta ao lugar onde começou: rumo à produção em série, ainda menos interessante que o artesanato. Muitas vezes ele não tem escolha, pois é deixado propositalmente nos limites de uma certa pobreza pelos marchands pouco escrupulosos. Dão-lhes apenas o suficiente para cobrir suas necessidades e para trabalhar. Os lugares de difícil acesso onde vivem não lhes permitem usufruir de alguma concorrência, nem de promover sua arte. Grandes nomes, como o famosíssimo escultor ceramista de Pernambuco, Mestre Vitalino, não escaparam dessa armadilha. Por isso, os colecionadores de hoje se focam na produção que o artista criou quando este não estava sujeito a nenhuma restrição. Quando ele ainda não havia sido engolido pelo comércio e pela superprodução. Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia” na Rádio Judaica.

Europalia.Brasil 2011-2012 ou como quase um milhão de visitantes descobrem ou redescobrem a cultura brasileira Kristine De Mulder

L

ançado em Bruxelas em 1969, Europalia é um grande festival internacional que apresenta bienalmente a essência do patrimônio cultural de um país, na Bélgica e em diversos outros países europeus. De outubro a fevereiro, o festival encena todas as expressões artísticas em centenas de eventos: música, artes plásticas, cinema, teatro, dança, literatura, arquitetura, design, moda, gastronomia... O objetivo do festival é promover o diálogo entre as culturas pela apresentação tanto de seu patrimônio cultural como de sua cena contemporânea e de lançar pontes para relações duradouras entre o país convidado e as instituições culturais implicadas na Europa.

Enquadrado por acordos com o governo do país convidado, o programa do festival se prepara com a ajuda de especialistas culturais internacionais e se elabora num clima de estreita colaboração entre a equipe do Europalia e a do país convidado. Nestes moldes o Europalia organizou 23 festivais e festejou quase todos os países da Europa e, ainda, vários do resto do mundo como o México, o Japão, a Rússia, a China e, em 2013, a Índia. Cada festival tem recebido o alto patrocínio de S. M. o Rei dos belgas e do Chefe de Estado do país homenageado.

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A Presidenta Dilma Rousseff com o Rei Albert II e a Rainha Paola por ocasião do festival Europalia.Brasil.

Ritmos, cores, formas... Em 2011-2012, Europalia fez a festa do Brasil

ra em 2009, na época ministro da Cultura, que deu luz verde ao projeto e determinou suas grandes linhas. Em seguida, em 2011, Ana Buarque de Hollanda, ministra nomeada pela nova presidenta, Dilma Rousseff, retomou o projeto. Dois comissários-gerais investiram toda sua energia nesse vasto projeto: Sérgio Mamberti e Pierre Alain De Smedt. Ritmos, cores, formas… patrimônio e arte atual: mais de 200 sítios culturais na Bélgica e nos países vizinhos deixaram o público europeu descobrir o Brasil, sua vitalidade, seu calor, sua abundância de identidades e de culturas.

24 exposições, 137 concertos, 105 encontros literários e conferências, 62 espetáculos de dança, 31 apresentações teatrais, 4 espetáculos de circo, mais de 100 sessões de cinema... Quer dizer 1.033 artistas e especialistas vindos do Brasil para o festival, 208 parceiros culturais na Bélgica, 103 dias de festival, 71 cidades, 5 países e finalmente 913.000 visitantes e espectadores. O festival Europalia.Brasil foi um verdadeiro ‘fogo de artifício’ cultural. País em movimento, resolutamente moderno e orientado sobre o futuro, o Brasil soube valorizar suas origens e o mosaico de povos que o compõem. Mistura um mundo inteiro: dos herdeiros dos colonos europeus aos índios da Amazônia, dos afro-brasileiros aos numerosos imigrantes japoneses, libaneses, italianos ou alemães. O desafio era o de confrontar o público europeu o melhor possível com esta complexidade. E de ultrapassar os estereótipos que somente se limitam a aspectos como o futebol, as favelas, o samba e o carnaval. O tema da diversidade se impôs quase naturalmente e permitiu ao público perceber o país sob este prisma diferente. O conjunto do programa foi elaborado em colaboração com o Ministério da Cultura do Brasil. O impulso veio de Juca Ferrei-

Exposições ‘sob medida’ Brazil.Brasil, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, traça a busca apaixonante de uma expressão da diversidade e da(s) identidade(s) do Brasil por artistas brasileiros, ansiosos de liberarem-se do barroco onipresente e das influências coloniais. Desde o início do século XIX, com sua ‘arte nacional’, preconizada pela monarquia e academia brasileiras, até o início do século XX, quando os artistas brasileiros procuram desvelar a alma de seu país, resultando numa arte moderna própria. Os comissários desta exposição, Ana Maria de Moraes Belluzzo, Julio Bandeira, Victor Burton e

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Montagem da tela “Primeira Missa do Brasil, de Victor Meirelles, de 1860, na exposição para o festival Europalia.Brasil.

Lorenzo Mammi, fizeram o público europeu conhecer a história da arte brasileira, e notadamente do modernismo incontornável. Entre os artistas apresentados: Aleijadinho, Victor Meirelles, Jean-Baptiste Debret, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Cícero Dias, Emiliano Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Vicente do Rego Monteiro, Candido Portinari, Lasar Segall, Oswaldo Goeldi, Arthur Bispo do Rosário, Alfredo Volpi… Índios no Brasil, no Museu do Cinquantenaire de Bruxelas, levou o visitante ao coração da Amazônia brasileira e à descoberta da imensa diversidade dos povos indígenas. Um percurso inédito permitiu mergulhar no meio de sua vida cotidiana, de encontrar seus xamãs, de compreender sua organização social e de participar de seus ritos. Cestarias, cerâmicas, máscaras, instrumentos musicais ou suntuosos cocares de plumas, objetos utilitários ou sagrados revelavam aos olhos do público todo um universo desconhecido de uma incrível vitalidade. Comissários: Lucia Hussak van Velthem, Gustaaf Verswijver. Terra Brasilis, no Espaço Cultural ING de Bruxelas, mostrou a influência recíproca entre a Europa e o Brasil na descoberta, valorização e exploração da fauna e flora brasileiras. Esta intera-

ção singular se refletia em todas as expressões artísticas: desenhos, pinturas, esculturas, objetos de arte, ourivesaria e, também, nas ciências. O roteiro da exposição narra 400 anos de história, desde a descoberta portuguesa do Brasil, passando pela época holandesa, as expedições alemãs, francesas e portuguesas e a longa história colonial até o Império brasileiro do século XIX e o início da República. Comissários: Valéria Piccoli, Eddy Stols, Patricia De Peuter. Art in Brasil, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, esboça a evolução e a revolução na arte brasileira dos anos 1950 até hoje. Um tema e uma exposição originais vistos pela primeira vez na Europa a partir de uma perspectiva brasileira. Comissários: Ronaldo Brito, Vanda Klabin, Guilherme Bueno, Sonia Salceido, Cauê Alves, Marcus Lontra, Alexandre Dacosta, Luiz Camillo Osório, Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos. A Rua, a exposição apresentada no MuHKA, Museu de Arte Contemporânea de Antuérpia, trouxe cerca de 20 artistas, cuja vida e obra têm relação peculiar com a cidade do Rio de Janeiro. A exposição se concentrou sobre a evolução da cena artística do Rio ao longo dos quatro últimos decênios e focalizou a noção da rua e seu papel na produção artística carioca contemporânea. Os artistas

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pintura e escultura

apresentados: Artur Barrio, Ricardo Basbaum, Waltercio Caldas, Lygia Clark, Dias & Riedweg, Guga Ferraz, Ivens Machado, Anna Maria Maiolino, Antonio Manuel, Cildo Meireles, Ernesto Neto, Helio Oiticica, Arthur Omar, Rosana Palazyan, Lygia Pape, Paula Trope, Alexandre Vogler… Comissário: Dieter Roelstraete. Vinte outras exposições trataram de temas muito diversos, tais como a arte afro-brasileira, a fotografia, a gravura, o design, a arquitetura com mostras particulares dedicadas a Lina Bo Bardi, Sérgio Bernardes, Paulo Mendes da Rocha e à cidade de Brasília, ou ainda sobre Arthur Bispo do Rosário, os carnavais brasileiros, Copacabana, as joias afro-brasileiras, a febre do ouro, os diamantes, as viagens do Rei Leopoldo III ao Brasil e Tintin no Brasil.

por ocasião do festival e contribuíram com 64 conferências, debates e leituras. Um êxito e uma surpresa, visto o número limitado de autores brasileiros traduzidos para o francês e sobretudo para o n ­ eerlandês. No total, 24 intervenientes, como João Ubaldo Ribeiro, Augusto de Campos, Bernardo Carvalho, Zuca Sardan, Lourenço Mutarelli, Ricardo Domeneck, Arnaldo Antunes, Daniel Galera e Chico Alvim. Cinema: Cinco encontros com cineastas brasileiros e pelo menos 100 projeções foram organizados durante o festival. Um convidado de honra: Walter Salles. Fundamentalmente, Europalia quis, como de seu costume, acentuar os encontros e suscitar ou despertar as colaborações entre os artistas belgas e brasileiros. Dentro desta ótica, dançarinos e atores brasileiros foram acolhidos para desenvolver os projetos em residência. O concerto de Thoots Thielemans e de seus ‘Brazilian friends’ foi um dos momentos memoráveis do festival. O Clube Brasil, instalado a dois passos da Grand’ Place de Bruxelas, foi o coração vivo do festival, com suas irresistíveis caipirinhas, seus cursos de dança, seus concertos e seus ateliês gratuitos, um lugar de reunião e convivialidade com a comunidade brasileira na Bélgica. Europalia.Brasil foi uma aventura artística e humana, apaixonante e enriquecedora; um encontro entre a Europa e o Brasil, país vasto como um continente que, certamente, não deixará de surpreender nos próximos anos.

Eventos de artes cênicas… completas! Os eventos musicais tiveram um êxito impressionante. Uma tamanha concentração de cultura brasileira não é pão de todo dia na Europa e os amantes de música se regalaram. Do Norte ao Sul, os diversos estilos e tendências atuais puderam expressar-se nas cenas europeias. Entre os artistas: Teresa Cristina, Tom Zé, Velha Guarda da Portela, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Hamilton de Holanda, Naná Vasconcelos, Dona Cila, Chico Pinheiro, Céu, Barbatuques, Marlui Miranda, Chico Correa, Dj Dolores, DJ Tudo… Samba, forró, choro, coco, dj’s & vj’s, música tradicional ou experimental, grandes clássicos ou underground, um pouco de tudo, para todos os gostos! Em matéria de dança, Europalia acolheu com orgulho e admiração o Grupo Corpo, mas também Lia Rodrigues, Balé Folclórico da Bahia, Mimulus, Quasar e ainda Marta Soares e Marcelo Evelin. O teatro também participou da festa com Zé Celso, monstro sagrado por excelência, Enrique Dias e Cibele Forjaz. E para os amantes do circo e dos mamulengos: a espantosa Intrépida Trupe, a magia do Grupo Giramundo e da Nau de Ícaros. Literatura: Poetas, escritores, filósofos, professores e especialistas da literatura brasileira vieram em grande número à Belgica

Kristine De Mulder é formada em Arquitetura de Interiores e em Arqueologia e História da Arte na Universidade Livre de Bruxelas (VUB), fez carreira como curadora de arte e de comunicação no setor acadêmico, mediático e empresarial e é desde 2003 diretora-geral da Europalia International, além de membro dos conselhos de administração do Festival van Vlaanderen e do Concours Reine Elisabeth. Recebeu em 2012, por seu engajamento cultural, o título de baronesa.

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histórias em quadrinhos

O cartunista Ronaldo Cunha Dias

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onaldo Cunha Dias, o médico cirurgião, e Ronaldo, o cartunista são a mesma pessoa. Nasceu em 1951 em Vacaria, Rio Grande do Sul, onde atua como médico cirurgião há 30 anos. Desde sua infância gostou de desenhar, paixão que o acompanha até hoje. Sempre diz que o cartunismo é apenas um passatempo, um hobby que lhe dá imenso prazer, que tudo começou quando, em 1985, ganhou o primeiro prêmio “Revista Playboy procura novos humoristas”. Incentivado por este prêmio e convidado a colaborar com a revista, não parou mais. Desde 1995 é chargista do jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, e colaborador do jornal Zero Hora. Publicou seus desenhos nos Estados Unidos, através do Cartoonist & Writers Syndicate, e, na Europa, pelo Joker Feature Service. Foi

convidado a participar da publicação dos 80 anos do jornal Le Canard Enchaîné, na França. Com várias mostras coletivas e individuais, é autor de vários livros: O homem que ri, Posso rir agora, doutor?, Sorria... você está em extinção e Enquanto seu médico não vem. Participou também de várias coletâneas com outros autores. Seus desenhos passaram por vários países, entre os quais a Bélgica, onde participou como jurado do 35º Festival Internacional de Cartum de Knokee-Heist, e onde foi curador da mostra Brasil Cartoon, que reuniu trabalhos de vários cartunistas brasileiros, eentre eles Ziraldo, Edgar Vasques, Santiago. Ganhou inúmeros prêmios no pais e exterior e hoje é considerado um dos cartunistas brasileiros mais premiados em salões de humor. Cartum de Ronaldo Cunha Dias, médico e cartunista.

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histórias em quadrinhos

Caatinga Hermann Huppen

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m novembro de 1991 fui convidado, assim como outro desenhista, para um festival de histórias em quadrinhos no Rio de Janeiro. Nós éramos, de alguma maneira, os representantes das histórias em quadrinhos belgas. Os contatos foram estabelecidos entre essa organização e o representante da Comunidade Valônia, da Bélgica. Eu já tinha tido contatos com um dos organizadores do festival, Julio Braz, admirador de meu trabalho quando de sua passagem por Bruxelas. Penso que ele deve ter influenciado seus colegas do festival em meu favor na escolha dos convidados. O Rio de Janeiro exerce uma sorte de fascinação sobre nossos espíritos europeus. Minha mulher, então, insistiu em me acompanhar. Sua presença foi importante, pois ela desempenhou um papel capital na aventura de Caatinga. Para mim, a estada foi dividida entre turismo e obrigação de estar presente no festival e nas sessões de dedicatórias. E, claro, a compra de cartões-postais a serem enviados para a família e os amigos é uma restrição à qual deve se submeter todo turista. Fazendo sua escolha, minha esposa viu reproduções de fotografias antigas, de um lado, de Lampião e seu bando, mostradas no jornal O Povo em 1926 e, de outro, de sertanejos dos anos de 1960. Ela estava seduzida e os comprou. Assim, esse é seu papel capital para Caatinga. A foto dos cangaceiros me lembrou um filme que teve grande sucesso nos anos de 1960, quando ele estreou na Bélgica, “o Cangaceiro”, e a canção “olê mulé rendeira” retornou aos meus lábios. De volta a Bruxelas, essa foto, associada à lembrança do filme, girava em minha mente. Pouco a pouco a vontade de me apropriar

desse tema para uma história em quadrinhos ficava mais precisa. Eu não queria desenhar a vida de Lampião, mas me servir do quadro histórico da época para inventar uma história. Porém, eu não queria cometer erros. Eu precisava de documentação sobre o tema, do qual eu não conhecia nada além da lembrança do filme. Vasculhei em vão as livrarias, as bibliotecas. Eu precisava não somente das informações históricas e sociológicas, mas, igualmente, da ambiência natural, das flores, dos animais se eu quisesse respeitar o quadro da aventura que eu queria ilustrar. Aí, Julio Braz foi providencial. Ele me forneceu os livros que me deram um quadro histórico e sociológico, uma biografia de Lampião e de sua companheira, Maria Bonita, a origem e a evolução dos cangaceiros para o banditismo, assim como numerosas fotos tanto desse último como de políticos e militares ligados a tal bando. E um belíssimo livro de fotos do Sertão. E aprendi a ler em português! Eu também aprendi sobre o poder dos grandes proprietários de terra, sobre a miséria da classe desfavorecida, sobre os pregadores... Todo um mundo que, aos poucos, me invadia e do qual eu sentia se elevar o desejo de dele me servir para contar a “minha” história. Uma manhã eu peguei um lápis e comecei a colocar no papel as primeiras ideias do cenário e esbocei as primeiras silhuetas dos personagens que eu ia fazer viver ao longo das páginas de Caatinga. Bibliografia Billy Jaynes Chandler, Lampião, o rei dos congaceiros; Melchiades da Rocha, Bandoleiros das Caatingas; Eduardo Barbosa, Lampião, rei do cangaço; Carlos Alberto Dória, O Cangaço; Ronald Daus, O ciclo épico dos cangaceiros na poesia popular do Nordeste.

Cartão-postal que inspirou Harmann Huppen a desenhar Lampião.

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parte 9 – artes plásticas

Interpretação da personagem Lapião pelo desenhista e cenarista Harmann Huppen.

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A oficina litográfica de Leon de Rennes Jamil Abib

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litografia, implantada no Rio de Janeiro na década de 1820, marcou o mercado gráfico oitocentista brasileiro, principalmente na década de 1870. Papel relevante exerceu nesse desenvolvimento a vinda de técnicos especializados estrangeiros. A produção abrangia circulares, fac-similes, letras de câmbio, faturas, bilhetes d’adresse, bilhetes de visita, cartas geográficas, planos topográficos, vinhetas, letreiros, música etc. Nas décadas de 1860-70, tornaram-se populares as práticas de realizar estampas a partir de fotografias: vistas, retratos e cenas populares. Dentre as últimas oficinas litográficas instaladas no Rio de Janeiro, no final do século XIX, encontramos a do belga Leon de Rennes & Cia. Leon de Rennes chegou ao Rio de Janeiro a chamado da antiga casa Paulo Robin, a Companhia de Artes Gráficas. Meses depois de deixar a companhia, abriu seu próprio estabelecimento, na Rua do Carmo nº 16. Em busca de melhores instalações, mudou-se

sucessivamente: para a Rua da Guarda-Velha nº 35, Rua do Ourives nº 31 e, finalmente, com a abertura da Avenida Central, para a Rua da Assembleia nº 75. Desenvolveu relevantes serviços com as então modernas máquinas de tipografia, litografia e cromolitografia. Ampliou os trabalhos com os serviços de encadernação, estereotipia, galvanoplastia, zincografia e fotogravura. Especializou-se na impressão de etiquetas de luxo, mapas, diplomas de sociedades, ações de companhias etc. À nova razão social, Leon de Rennes e Companhia, agregou o sócio titular mais o baiano João Ferreira Pinto, João Alves Feitosa, Adelaide Basten e Ramiro Botelho Aranha. Com a liquidação da firma e o possível retorno de Leon de Rennes para a Bélgica, por volta de 1910, João Ferreira Pinto continuou com a oficina, que se chamou, mais tarde, Ferreira Pinto e Companhia. Em 1º de agosto de 1898, a Lei nº 496 definiu e garantiu os direitos autorais de obras nacionais, estabelecendo o registro feito

A subida da Serra, Teresópolis.

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parte 9 – artes plásticas

O leiteiro no Rio de Janeiro.

Avenida Central, Rio de Janeiro, onde se vê, perto da esquina, à esq., o estabelecimento de Leon de Rennes, fotografia de Marc Ferrez.

Igreja de Santa Rita, Rio de Janeiro.

na Biblioteca Nacional como uma formalidade constitutiva do Direito Autoral. O primeiro registro no Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional foi o da “Lithographia e Cromolithographia” da empresa Leon de Rennes e Cia. – requerido em 14 de outubro de 1898, deferido em 7 de dezembro de 1898, com termo lavrado em 16 de dezembro de 1899 (Livro 1, fl 1, nº 1). No início do século XX, Leon de Rennes estava entre os pioneiros na impressão e venda de cartões-postais ilustrados, no atacado e no varejo, atendendo assim à enorme demanda que esse comércio experimentou na época. Era, já, a idade de ouro do cartão-postal também no Brasil.

Sua produção distinguia-se pela originalidade das ilustrações, ângulos e objetivos fotografados, tanto no Rio de Janeiro como em outros lugares do Brasil, como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. O legado iconográfico-documental deixado por Leon de Rennes faz dele um dos editores mais procurados e valorizados pelos colecionadores e estudiosos do passado brasileiro. Monsenhor Jamil Abib é Vigário-Geral da Diocese de Piracicaba e Mestre em História. Atuou na história da Igreja no Brasil (Cepehib) e na defesa do patrimônio como conselheiro do Condephaat. Reuniu uma das maiores coleções de cartões postais com temas brasileiros.

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Um patrimônio de fontes em comum com o Brasil: A coleção de fotografias dos premonstratenses da Abadia do Parque (Parkabdij) de Lovaina Luc Vints

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ntre os responsáveis pelo patrimônio cultural surgiriam recentemente conceitos como source community, patrimônio de fontes em comum. Trata-se de coleções relativas às áreas extraeuropeias e/ou que carregam significados transnacionais. Abundantes coleções se encontram na Bélgica, tanto em arquivos públicos como privados. Este país tinha, desde sua origem, em 1830, contatos intensos com o exterior, ao passo que suas numerosas ordens religiosas se engajaram plenamente no renascimento missionário do século XIX. Dessa maneira, muitos institutos religiosos conservam documentos e publicações, além de fotografias e filmes de suas missões, com significação particular para a própria história e a biografia cultural das source communities. Nada mais natural que estas queiram partilhar esse patrimônio, para o qual a digitaliza-

ção abre muitas possibilidades. O KADOC – centro de documentação e pesquisa da religião, cultura e sociedade da KU Leuven, Universidade Católica de Lovaina – se interessa particularmente por esse patrimônio de fontes em comum e guarda muitos arquivos audiovisuais destas atividades extraeuropeias, abertos à consulta e ao estudo. Bons exemplos desse patrimônio, que não se relaciona somente com a ex-colônia belga do Congo, pode-se encontrar no arquivo dos padres de Scheut, atualmente já integrado ao KADOC. Assim, sobre os povos Ifugao da província montanhosa setentrional na maior ilha filipina de Luzon há material fotográfico datado do início do século XX, e mesmo um filme documentário dos anos de 1930, de um valor inestimável para o etno-historiador. O mundo dos Inuit, no Norte polar do Canadá, renasce no arquivo do padre

Praça Doutor Chaves ou Praça da Matriz, em Montes Claros, por volta de 1910, repleta de gente bem vestida, talvez por ocasião de uma das festas religiosas da Semana Santa relatadas pelos missionários em suas cartas. Na frente de um grupo, caminham meninas de roupa branca, possivelmente de 1a comunhão, cada uma levando na mão uma bandeira; no fundo, entre as duas casas maiores, vê-se uma fonte, sobre a qual sentam uma dezena de homens para ver melhor o espetáculo.

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parte 9 – artes plásticas

Esta fotografia foi tirada na frente da Matriz de Montes Claros. A grande cruz e o altar externo, com um padre na sua frente, parecem indicar que a imagem mostra uma missão organizada pelos norbertinos com a ajuda de redentoristas holandeses, como ocorreu em meados de 1907. A foto é interessante, sobretudo, pelo povo presente, bem representativo da sociedade brasileira mestiça de brancos e muitos negros; um grupo de mulheres na frente, olhando para o fotógrafo, parece ser de origem índigena.

oblato Franz Van de Velde. Seus diários e notícias oferecem uma imagem da vida cotidiana, do clima, da história e do idioma desse povo, completada com fotografias e filmes. Também a respeito dos países latino-americanos, os arquivos religiosos belgas merecem ser pesquisados a fundo. Os jesuítas foram ativos na Guatemala, os redentoristas nas Antilhas, as irmãs de Champion e os domínicos no Equador, as irmãs franciscanas de Gand na Argentina e os franciscanos no Chile. Sobretudo para o Brasil, a safra promete ser rica, com mais de uma dúzia de ordens acima relacionadas. Uma destas, os norbertinos ou premonstratenses, atuou no Brasil a partir de duas abadias suas na Bélgica, Averbode e ‘t Park (do Parque). Desta última, os cônegos brancos, como se conheciam no Brasil, passaram em 1898 primeiro por Congonhas do Campo e Sete Lagoas para fixarem-se, em 1903, em Montes Claros, cidades mineiras, de onde irradiaram sua pastoral pelo norte de Minas Gerais. Serviram também em paróquias

em Teresópolis e num bairro operário do Rio de Janeiro. Conservam atualmente, tanto como seus confrades de Averbode, ativos em Bom Jesus de Pirapora (SP), Jaguarão (RS), Petrópolis (RJ) e Jaú (SP), arquivos em sua própria abadia. ‘t Park se encontra próximo aos arredores de Lovaina e atende visitantes. Lá, o fundo Brasil conta com quase um metro de documentos. Datam desde o período inicial até os anos de 1970, quando a maior parte dos religiosos belgas voltaram e seus confrades brasileiros montaram seu próprio arquivo. O material é muito diverso: correspondências dos missionários e dos bispos locais, relatórios de visitações, documentos sobre o patrimônio, contas, regulamentos, todo tipo de folhetos, personalia. Uma menção à parte merecem o dossiê e as fotografias da viagem ao Brasil do Rei Alberto I e da Rainha Elisabeth em 1920. Essas fotografias não são as únicas e, espalhadas pelo arquivo, podem localizar-se uma centena. Além disso, há ainda dez pastas com fotografias dos anos de 1900 a 1970,

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Os cônegos brancos da Abadia do Parque receberam em 1907 a assistência das irmãs belgas do Sagrado Coração de Berlaar. Nesta fotografia, publicada na Revue de l’Ordre de Prémontré et de ses missions de 1908, vê-se a primeira “caravana” junto com o pároco Charles Vincart e as primeiras alunas. As freiras de Berlaar foram chamadas primeiro para servir na Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros. Como isto não se realizou, se reorientaram para o ensino sem ter, no entanto, formação específica para isso. Mais tarde as irmãs tiveram muito êxito neste setor. Duas freiras que estão nesta fotografia voltaram depois de alguns meses para Berlaar.

Salão na casa do cônego Charles Vincart, que partiu em 1898 para o Brasil e em 1903 foi nomeado pároco de Montes Claros, o novo posto missionário dos norbertinos da Abadia do Parque, tendo como coadjutor Franciscus Moureau (possivelmente são ambos nesta imagem). Acima deles um retrato, parecido com o novo Papa Pio X, que em 1903 tinha sucedido a Leão XIII. O interior do salão é ricamente decorado e tem um teto curioso; na mesinha se encontram livros e um globo e as cadeiras são cobertas com uma pele de jaguatirica.

O cônego Lenaerts a cavalo, provavelmente em Montes Claros por volta de 1907, quando chegou à missão. A foto não foi tirada ao ar livre na natureza, mas diante de uma tela grande dentro ou perto de um estúdio de um fotógrafo profissional. Através destas extensas paróquias, os missionários viajavam a cavalo, único meio de visitar os fiéis neste período pioneiro. Nas cartas escritas para casa frequentemente insistem na importância do cavalo. Assim o cônego Fessingher pretendia, já em 1901, que o pároco passava metade de seu tempo a cavalo. Não é de estranhar que o arquivo dos norbertinos contenham várias destas fotos de cavaleiros.

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Publicada em 1907 na Revue de l’Ordre de Prémontré et de ses Missions, esta fotografia foi tirada por ocasião da visita pastoral a Montes Claros de Monsenhor Joaquim Silvério de Souza, bispo auxiliar (e mais tarde bispo) de Diamantina; entre as muitas festividades, o norbertino Vincart organizou um cortejo de crianças que representavam nas vestimentas ou com emblemas e instrumentos os diferentes ofícios de Montes Claros e região (pode-se também ver um pequeno padre agitando o incensário).

O trabalho missionário nem sempre é tenso, parece sugerir esta fotografia. É uma das poucas identificadas no verso pelo carimbo do fotógrafo Antonio Quirino de Souza. Trata-se de um piquenique na Lapa Grande, um complexo de grutas a cerca de 10 km de Montes Claros, ainda hoje procurado pelos turistas. O grupo, bastante heterogêneo, com dois norbertinos e mais dois outros padres, celebra com caça e vinho.

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Acima: Nesta curiosa fotografia de 1901 posam o cônego Charles Vincart e um confrade no meio de várias figuras pitorescas. Parece até uma pequena cena de teatro. Todos estão muito sérios de olho no fotógrafo, salvo o homem armado na janela. Apontaria ele para alguém ou algo? Mais dois homens à esquerda levam uma arma. Algumas crianças na frente não têm sapatos, se bem que todos estão bem vestidos, particularmente as três mulheres. É uma foto intrigante com muitas perguntas: Por que carregam estas armas? Que faz este jovem com o guarda-chuva? E a pose de pensador de duas figuras? O que tocaria o violeiro? E o homem de chapéu branco e óculos escuros parece ter saido de uma banda de rock. Ao lado: Os Cônegos Brancos em um automóvel em sua paróquia de Teresópolis por volta de 1930.

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Fotografia um pouco posterior à construção do mercado de Montes Claros, construído em 1899. Carros de bois e cavalos trazem as mercadorias. Se a foto não está relacionada ao trabalho missionário dos norbertinos, mostra como coleções de congregações podem ser importantes para a história local, mesmo econômica.

alguns álbuns do padre Siardus Felix Maes e algumas centenas de negativos, parcialmente em vidro. Que num arquivo missionário se encontre material fotográfico não é excepcional, muito ao contrário. Depois da invenção da fotografia, todos os missionários e os superiores de sua congregação se deram conta da força dessa mídia. Para promover sua obra e recolher meios financeiros utilizavam fotografias, tiradas pelos próprios missionários ou compradas dos fotógrafos locais. Assim fizeram os norbertinos da Abadia do ‘t Park. Imediatamente depois do começo da missão do Parque no Brasil, seu abade, Quirinus Nols, lançou a propaganda da obra missionária. De 1899 a 1904 editou a Bibliothèque norbertine, seguida pela Revue de l’Ordre de Prémontré et de ses missions (1905-1915). Entre 1901 e 1914, Nols publicou ainda em neerlandês ‘t Parks maandschrift. Estas revistas tinham o propósito explícito de exaltar a missão no Brasil, geralmente na forma de uma carta de um dos missionários. Às vezes, mas nem sempre, eram ilustradas

com uma fotografia. Também as publicações do cônego Maurice Gaspar, Les Prémontrés Belges et les missions étrangères (Lovaina, 1905), Dans le Sertão de Minas (Lovaina, 1910) e Trente années d’Apostolat au Brésil par les Prémontrés du Parc (Malinas, 1930), levam ilustração interessante. As fotografias do fundo Brasil são de qualidade desigual. As mais velhas do período pioneiro de 1900-1920 são geralmente boas. A autoria das fotos quase nunca é mencionada. Tampouco sabemos se os próprios missionários dispunham, na época, de uma máquina fotográfica. Apenas excepcionalmente aparece o nome de um fotógrafo local: Max Rosenfeld (Rio de Janeiro), Symphronio Coutinho de Castro e Antonio Quirino de Souza (Montes Claros). As fotos mostram as cidades onde os missionários da Abadia do ‘t Park eram ativos, as igrejas paroquiais onde serviam, suas explorações na região – geralmente a cavalo –, seu apostolado de ensino e a vida religiosa que estimulavam. Notável é também a presença de muitos cartões-postais, como uma série sobre os povos

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Esta foto foi tirada em Sete Lagoas na frente de uma das capelas – neste caso, a de Nossa Senhora das Dores no bairro da Piedade – desta extensa paróquia, que os norbertinos receberam sob sua guarda em 1900 e onde começaram uma escola. Sete Lagaos contava então com 7.000 habitantes numa região montanhosa de quase 1.000 km². Quando o missionário chegava a uma destas capelas – o que não acontecia frequentemente por causa da extensão do território – ocorriam manifestações de alegria, que segundo o cônego Fesingher na revista missionária da Abadia do Parque em 1901, “faziam pensar em nossas quermesses”. Seria uma destas festas retratadas nesta fotografia? Pelas tendas e pelo acordeonista à direita da capela parece ser o caso. E isto não impede que o cônego na porta da capela continue lendo seriamente um livro.

indígenas da Amazônia, nos álbuns de Siardus Felix Maes, que nos anos de 1930 era sobretudo ativo em Teresópolis e nos anos de 1950, superior em Montes Claros. Sua viagem ao Brasil, em 1952, pode reviver-se a partir dos cartões: de Gênova, passando por Marseille, Barcelona, Mallorca, Olinda e Recife até o Rio de Janeiro e, de lá, a Belo Horizonte e, finalmente, Montes Claros.

Publica sobre história do cinema e da fotografia e sobre história e propaganda das missões.

Bibliografia: S. Van Lani. Witheren van ’t Park in Brazilië. 100 jaar missioneringswerk van de Abdij van t’Park. Heverlee: Abdij van ’t Park, 2003. http://www.norbal.org/-Montes-ClarosL. Vints. ‘Photographs of and with a Mission’ J. Tollebeek, ed. Mayombe. Ritual Sculptures from the Congo. Tielt, 2010, 45-51. L. Vints. ‘Utilisation et valorisation des films missionnaires du KADOC-KU Leuven Trente ans d’expériences’. Paris, Karthala, no prelo.

Luc Vints é mestre em História da KU Leuven (1986). Nessa Universidade dirige a seção de Publicações e Exposições do KADOC.

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Um botânico, um jardim e uma expedição: Jean Massart e a “Mission biologique belge au Brésil (1922-23)” Alda Heizer “Malgré certaines listes de plantes, listes inévitables dans une étude du genre, j’espère que les aperçus biologiques et géographiques intéresseront l’Européen curieux de saisir les manifestations de la vie végétale sous le jeu libre des forces naturelles et loin de l’influence de l’homme”. (Massart, 1929) “A Manaos, elle fut reçue par le Consul de Belgique qui sut mettre à sa disposition tous les moyens de réaliser en peu de jours plusieurs voyages extrêmement instructifs dans les Igapos du Rio Negro”. (idem)

doux e A. Navez, da Université de Bruxelles –, desembarcou no Rio de Janeiro, vinda de Antuérpia (Bélgica). Esse grupo, vindo de diferentes instituições e liderados pelo biólogo e médico Jean Massart (1865-1925), conhecido como o primeiro conservador da natureza em seu país, se destinava à Amazônia e tinha como missão estudar a fauna e a flora do Brasil. Patrocinados pela Monarquia belga e por associações científicas, os integrantes da expedição percorreram, durante um ano, parte considerável do território brasileiro. “Les cinq premières semaines y furent consacrées au travail dans le célèbre Jardin Botanique de cette ville, dont le savant directeur, M. le Prof r Pacheco Leâo, et ses collaborateurs firent, avec une amabilité charmante, connaître toutes les richesses à nos compa-

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m 16 de agosto de 1922, uma missão de biólogos, pesquisadores e professores belgas – composta, entre outros, por Raymond Bouillenne, da Universidade de Liège; P. Brien, P. Le-

À esquerda, João Geraldo Khulmann e Paul Ledoux, num momento de descontração dos integrantes da “Missão Jean Massart”; note-se o material fotográfico e alguns objetos que faziam parte da expedição.

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Jovem índio numa canoa, próximo à floresta de Jeretepaua, na Amazônia, imagem da “Missão Jean Massart”.

triotes, qu’ils emmenèrent, de plus, en de nombreuses et fructueuses excursions”. (Marchal, 125) Ao chegarem ao Rio de Janeiro, Massart e sua equipe se instalaram no Jardim Botânico (JBRJ) – criado no século XIX e hoje autarquia do Ministério do Meio Ambiente, que tem como missão “Promover, realizar e divulgar o ensino e as pesquisas técnico-científicas sobre os recursos florísticos do Brasil, visando o conhecimento e a conservação da biodiversidade, assim como a manutenção das coleções científicas sob sua responsabilidade” – e foram acolhidos pelo então diretor, o biólogo Antonio Pacheco Leão (1872-1931), bem como por seus pesquisadores, como foi o caso de João Geraldo Kuhlmann (1882 -1958), que seguiu com a expedição para a Amazônia. Além disso, os biólogos utilizaram os laboratórios e fizeram viagens de reconhecimento a diferentes locais próximos à cidade do Rio de Janeiro. “Après avoir acquis cette première initiation à La connaissance de la flore et de la faune brésiliennes, les biologistes belges, toujours pilotés par de distingués spécialistes du pays, visitèrent un certain nombre de régions forestières et de steppes des États de Sao-Paulo,

de Minas Geraes et de Bahia, recevant partout le plus chaleureux accueil de la part, non seulement des autorités scientifiques et administratives, mais de la population tout entière.” (idem) A viagem ao Brasil permitiu a Massart, identificado por seus pares como um “animador de vocações científicas”, bem como aos seus companheiros de jornada constatar hipóteses, propor novas interpretações e gerar novos conhecimentos para a Botânica. Um exemplo é o fato de um dos integrantes do grupo, o biólogo Raymond Bouillene (1897-1972), fazer do resultado de sua viagem à Amazônia a sua tese de doutoramento intitulada Un voyage botanique dans le Bas Amazone (Uma viagem botânica pelo baixo Amazonas), considerado por seus biógrafos o primeiro ato de sua carreira científica. “Tandis que Massart reprenait, le 5 janvier suivant, Le bateau pour la Belgique, ses compagnons se dirigeaient vers le Nord, vers Belem de Para, en vue de séjourner quelque temps dans le Bas-Amazone, région qui, à cause de son insalubrité, avait été interdite au chef de l’expédition.” (Marchal, 126) Durante a viagem, a expedição foi bem acolhida por onde

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porém, sua produção acadêmica não foi atingida. Ao contrário, um exemplo é o artigo “Belgian botany a record of war time” na revista inglesa Nature, de 1923. Suas publicações se encontram sob a forma de memórias, boletins, anuários, relatórios, nas academias e sociedades científicas, universidades, jardins botânicos. A preocupação com a formação de botânicos e com a valorização do trabalho em equipe foi constante e é notável. Massart atuou e colaborou em diferentes instituições científicas, como, por exemplo, a Universidade Livre de Bruxelas (ULB), o Instituto Pasteur de Paris e foi diretor do Jardim Botânico de Bruxelas. Além disso, o biólogo defendeu sua concepção de trabalho de campo associada a uma preocupação com a proteção das florestas, monumentos e sítios rurais, na Bélgica e fora do país, que o colocaram numa posição de destaque dado a atualidade das temáticas pelas quais se interessou. Sua obra abriga textos científicos, didáticos e sua preocupação com o ensino e a difusão do conhecimento pode ser atestada nas publicações específicas e com a criação de recursos importantes, como o primeiro laboratório biológico ambulante, o uso do cinema como recurso de difusão, entre outras frentes não menos importantes. Jean Massart foi um cientista, um professor e um vulgarizador das práticas científicas sem nunca deixar de se preocupar com as circunstâncias políticas nas quais suas práticas estavam submersas. Em tempos mais atuais, Jean Massart pode ser considerado um homem plural.

Casa de um engenho em Santarém, no Pará, imagem da “Missão Jean Massart”.

passou. O material produzido é bastante diversificado: descrição diária do que viram, cadernetas de coleta, textos, mapas dos trajetos e fotografias. Os biólogos, eles mesmos, fotografaram o que viram. Em 1929 e 1930, o material foi publicado em livro, em dois volumes. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) detém um número considerável de fotografias em seu acervo, como as produzidas pela missão de Jean Massart, entre outras do início do século XX (registros fotográficos do arboreto e de suas coleções vivas; das coleções do herbário; dos jardineiros; do interior dos laboratórios de química; de instrumentos científicos; do museu botânico, hoje Museu do Meio Ambiente). “Au point de vue scientifique direct, le voyage de Massart eût sans aucun doute donné des résultats três importants. Les membres de la Mission ont recueilli d’innombrables observations du plus haut intérêt et sont revenus avec 70 caisses de matériaux botaniques et zoologiques et environ 1,500 négatifs photographiques.” (idem). Afinado com a sua época, Massart, que não completou o itinerário traçado pela expedição ao Amazonas por motivos de saúde, planejou a viagem ao Brasil num contexto de reflexão sobre o lugar das fotografias científicas, da experimentação nos trabalhos de botânica e sobre a proteção de florestas, entre outros temas que lhe eram caros. “A ce premier contact avec le monde amazonien, s’éveillent en nous les angoisses qu’éprouvaient les anciens voyageurs. Ils ont fait à la plaine de l’Amazonie presque complétement couverte de forêts et inondée pendant le moitié de l’année, une réputation redoutable. N-a-t-on pás écrit qu’elle était l’empire de La fièvre, “l’enfer vert”? On La regardait comme une merveille de la nature, mais on en parlait avec une admiration mêlée d’effroi.” (Massart, 1929) Longe de ser um homem excepcional, Massart foi um homem de seu tempo, viveu as limitações que a guerra lhe impôs,

Alda Heizer, graduada em História, Mestre em Educação pela PUC-RJ e Doutora pelo Programa História das Ciências do IG-UNICAMP, é professora de História da Botânica no Brasil na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ e historiadora do Museu do Meio Ambiente e do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Referências Diagre, Denis. Le Jardin botanique de Bruxelles (1826-1912), Miroir d’une jeune nation. Thèse de Doctorat (section Histoire), Université Libre de Bruxelles, 2006, 2 part., 855 p. (non publiée). Gaspar, Thomas, Maurice Streel, Georges Berbier, Cyrille Sironval. Notices. Raymond Bouillenne (1897-1972).www.academieroyale.be Heizer, Alda. “Jean Massart e a criação das reserves naturelles na Bélgica na primeira década do século XX”. Dossiê “Ciência e Meio-ambiente”. (Jean Luiz Neves Abreu org.) Dossiê Cadernos de Pesquisa do CDHIS, ISSN: 1981-3090. Heizer, Alda. Notícias sobre uma expedição: Jean Massart e a missão biológica belga ao Brasil, 1922-1923. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2008, vol.15, n.3 [cited  2011-06-17], pp. 849-864. Marchal, E., “Notice sur Jean Massart, Membre de l’Académie”, in: Annuaire de l’Academie Royale de Belgique, Bruxelles, 1927, p. 141-158 (bibliographie de J. Massart). www.academieroyale.be Massart, Jean. “La création de reserves naturelle”. Recueil de L’Institut Botanique Léo Errera. Tome IX. Bruxelles: Henri Lamertin Éditeur-libraire, 1913. Massart, Jean et al. Une Mission biologique belge au Brésil (aôut 1922-mai 1923). Bruxelas: Imprimerie Medicale ET Scientifique, 1929. Massart, Jean. Recueil de l’Institute Botanique Léo Errera. Tome VIII. Bruxelles: Henri Lamertin, Éditeur – Libraire, 1911.

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O Rei Leopoldo III e a Floresta Amazônica brasileira G u s t a a f Ve r s w i j v e r

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o outono de 1920, o príncipe herdeiro e futuro rei, Leopoldo III (1901-1983), acompanhou seus pais, o Rei Alberto e a Rainha Elizabete, em visita oficial ao Brasil. Foi sua segunda viagem intercontinental, depois de ter ido aos Estados Unidos no ano anterior. Durante sua estada no Brasil ele passou alguns dias numa fazenda no interior de São Paulo, que o deixou impressionado com a diversidade biológica da Mata Atlântica. Essa viagem inspirou seu fascínio pela natureza e seus seres vivos, um interesse que cultivou a vida toda. Depois de uma vida atribulada como Chefe de Estado, em reclusão e exílio por causa da Segunda Guerra Mundial, foi forçado a abdicar do trono em 1951 em favor de seu filho, Balduino. Pelo menos assim encontrou oportunidades para viver intensamente sua paixão pela natureza. Entre 1952 e 1959 fez quatro viagens à América Central, à Colombia e à Venezuela, onde combinou a

exploração de regiões de difícil acesso com encontros com as populações indígenas. Nos confins da Venezuela e no fundo de sua floresta amazônica, entrou em contato com os índios ianomamis, um povo cuja maioria dos grupos, nos anos de 1950, ainda não tinha tido contato direto com os brancos. Durante esta expedição amazônica se explorou um lago ainda desconhecido, que foi batizado, bem a propósito, de Lago Leopoldo. Em fevereiro de 1962 Leopoldo se reencontrou com o Brasil de sua juventude, ao final de uma missão encarregado pelo governo belga que o levou primeiro ao Chile e à Argentina para promover a reinserção de belgas do Congo e a colaboração científica. Ficou algo chocado com a aridez e a arquitetura da nova capital, mas em 15 dias percorreu Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e a Bahia, além de Belém, Santarém e Manaus, o suficiente para idealizar já uma nova viagem no final de outubro

O rei Leopoldo III na sua visita aos Kayaó no Parque Nacional do Xingu em outubro de 1964. Raoni (à esquerda), ainda jovem naquela época, serviu de intérprete. Mais tarde ele se impôs como um reconhecido defensor das terras indígenas na floresta amazônica.

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do mesmo ano, centrada somente na Amazônia. Fez, durante seis semanas, excursões a partir de Manaus pelo Rio Solimões e adjacentes, acompanhado pelo professor Jean-Pierre Gosse, ictiólogo do Instituto Real de Ciências Naturais de Bruxelas, com a natureza e principalmente os peixes amazônicos como prato principal. Entretanto, com a autorização do Serviço de Proteção aos Índios, quis visitar Roraima e conheceu lá, através das missões protestantes, outros grupos de ianomamis na Serra Parima, perto da fronteira venezuelana. Foi, ainda, ao Amapá, mais interessado pela exploração dos minérios e da natureza. Apaixonado pelo Brasil, Leopoldo III fez mais duas viagens a esse país em 1964. Na primeira, curta, de pouco mais de uma semana, chegou em 23 de março ao Rio de Janeiro, na volta do Chile. Visitando o Museu Nacional, no zoológico foi mordido na mão por uma onça. Mas seguiu viagem e foi a São Paulo para ver o Museu Paulista, que o desapontou, e seguiu logo para Brasília, que achou bem melhorada. De lá fez uma breve excursão para Santa Isabel no Brasil central. Embarcou para a Bélgica em 1º de abril, em plena agitação do golpe militar. Isso não o deteve de planejar, para outubro do mesmo ano, uma expedição mais longa com o professor Gosse ao Parque Nacional do Xingu. No período de 1975 a 1981 encontrei-me diversas vezes pessoalmente com o Rei Leopoldo III. Suas evocações da viagem de 1964 deixavam entender como esta o impressionou profundamente até o ponto de ainda considerar uma segunda visita ao Parque Nacional do Xingu. Este parque foi criado oficialmente em 1961, quase no coração do Brasil e do tamanho da Bélgica. A delimitação do parque trouxe uma proteção privilegiada e intangível para os povos indígenas que viviam lá, como também para os da vizinhança, que estavam ameaçados de extermínio e que os idealizadores do parque, os irmãos Villas-Bôas, tinham removido para dentro da segurança do parque. O objetivo oficial do parque era duplo: a preservação tanto da natureza como do homem; mas seus administradores, os irmãos Villas-Bôas, o consideravam desde o início como um meio para garantir a sobrevivência das culturas indígenas. Seria um exemplo a repetir mais tarde em outras áreas. Essa visão foi oficialmente confirmada em 1967, quando o nome do parque foi alterado de Parque Nacional do Xingu para Parque Indígena do Xingu, o primeiro desse tipo. Hoje oferece moradia a 16 povos indígenas, com uma população total de cerca de 5.500 pessoas repartidas em cerca de 80 aldeias. Leopoldo III chegou em 10 de outubro de 1964 ao Posto Leo­ nardo, dirigido por Orlando Villas-Bôas. Pensou primeiro em ficar três dias no parque, mas, uma vez no lugar, mudou seus planos e permaneceu lá por cinco semanas. Enquanto o professor Gosse realizava suas pesquisas científicas, o rei passava seu tempo sobretudo com os índios. Cláudio Villas-Bôas vislumbrou-lhe a possibilidade de receber antropólogos belgas para estudar as culturas indígenas. Durante essa visita o rei foi testemunha de dois momentos históricos: os primeiros contatos e a pacificação dos Ikpeng ou Txicão, um grupo de índios ainda isolado, e a fusão de duas frações antes separadas do povo Kayapó. Estes acontecimentos mos-

travam a dinâmica dentro do parque índigena e encontraram em Leopoldo uma testemunha que era felizmente excelente fotógrafo. O rei se encantou com o porte físico destes índios e pelas danças dos Kayapó. Suas poderosas fotografias são de uma rara beleza e provam sua paixão pelo homem na natureza. Depois do Xingu foi mais para o Norte, explorar o Cururu e conhecer os Munduruku, e percorreu o Rio Trombetas e adjacentes, prestando agora mais atenção à sua fauna. Passando por Óbidos e Santarém, deixou o Rio de Janeiro somente em 8 de dezembro para reencontrar-se com sua família. O Brasil, e sobretudo a região Amazônica, se cravaram no coração de Leopoldo. Ainda em 1967 voltou para outra viagem, de 14 novembro a 18 de dezembro. Desta vez, em várias excursões a partir de Manaus, foi conhecer Porto Velho e o Rio Madeira até Guajará-Mirim, e no Acre, foi a Rio Branco e Cruzeiro do Sul – em sua opinião, a mais romântica cidadezinha do Brasil – e ao Rio Negro. A partir de 1970, Leopoldo orientou suas pesquisas para a Índia e sobretudo a Indonésia. Essas missões fundamentaram a organização, em 1976, de uma estação biológica permanente numa ilha em frente à costa oriental da Papuásia, de onde se estudaram os bancos de coral e a fauna e a flora locais. Entrementes, por volta de 1970 as três viagens do Rei Leopoldo III à Floresta Amazônica brasileira suscitaram a ideia de realizar uma fundação. Assim surgiu, em 8 de junho de 1972, a Fundação Leopold III, para a pesquisa e a preservação da natureza, uma associação apolítica, sem fins lucrativos, para patrocinar expedições científicas e viagens de estudos. A partir daí a fundação prestou apoio financeiro e material a mais de 150 missões ou expedições científicas, em diversas disciplinas, como a zoologia, botânica, antropologia e entomologia. Estes subsídios permitiram a publicação de centenas de artigos científicos e lançaram a carreira de muitos jovens cientistas belgas. Eu fui um dos contemplados. Gustaaf Verswijver, doutor em Antropologia pela Universidade de Gand com pesquisas de campo entre os índios Caiapó e Mehinako; desde 1990 conservador na Seção de Etnografia do Museu Real da África Central, em Tervuren, com pesquisas de campo entre os povos pastorais da África Oriental, curador de várias exposições, como “Omo, peoples and design”, 2008-2009, no mesmo museu.

Referências Ed. Roger Bodart, Expédition “Elata”, Voyage de S. M. Le roi Léopold III de l’Orénoque au Rio Negro, Bruxelas, Vromant, s.d. Leopold de Belgique, La fête indienne, Souvenirs d’un voyage chez les Indiens du Haut-Xingù, París, 1967. Gustaaf Verswijver, Kayapó, the Art of Body Decoration, Catálogo da exposição no Museu Real da África Central, Tervuren-Ghent, 1992. Gustaaf Verswijver, The Club-Fighters of the Amazon, Warfare among the Kayapó Indians of Central Brazil, Ghent, 1992. Gustaaf Verswijver, Mekranoti, Living among the Painted People of the Amazon, Munique-New York, 1996. Leopold III, Carnets de voyages, 1919-1983, Bruxelas, Racine, 2004. Léopold III Photographe, ed. Esmeralda de Belgique, Bruxelas, Racine, 2006. Diários de viagem – Fotografias do Rei Leopoldo III no Brasil (1962-1967), Catálogo da exposição no Museu de Arte Brasileira, São Paulo, 2010.

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fotografia

Frechal, pioneiro da luta quilombola no Brasil Christine Leidgens

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ituado entre a Amazônia e o Nordeste brasileiro, o Estado do Maranhão viveu um tráfico negreiro que se intensificou a partir de 1755. Hoje, com uma população cuja maioria descende de escravos, esse Estado brasileiro ainda permanece essencialmente agrícola. Das quase 4 mil áreas de comunidades rurais negras existentes no Brasil – designadas pelo termo genérico de quilombo –, mais de 900 se encontram no Maranhão. Elas correspondem às antigas plantações de algodão e engenhos de açúcar já desaparecidos. Dentre elas, Frechal destacou-se como pioneiro no movimento de emancipação dos quilombolas e de acesso jurídico à propriedade coletiva de suas terras ancestrais. Combinando a organização interna à resistência aos grandes proprietários rurais, Frechal liderou, em 1986, o primeiro encontro de comunidades negras do Maranhão. Organizado pelo Centro de Cultura Negra (CCN), esse evento está na origem do Artigo 68 da Constituição Federal de 1988, à época do processo de redemocratização do país. Um século após a abolição da escravatura, esse artigo abriu um precedente legal, reconhecendo a posse de terras de quilombos aos descendentes de escravos. Nesse período crucial de emergência do movimento quilombola, vivi em Frechal, entre os anos 1989 e 1995, partilhando com seus habitantes alegrias e tristezas, lutas e vitórias. Depois de viver em vários países, senti o apelo do Brasil e do movimento negro. Decidi continuar minha caminhada de fotógrafa itinerante e documentarista independente, assumindo-me como voluntária no projeto de cooperação cultural entre a Bélgica e o Brasil. Na época, fotografei o cotidiano da comunidade de Frechal, que revelei em sua festa anual, após o primeiro ano de vivência ali, na exposição de minhas fotografias. Algumas pessoas da comunidade descobriam-se retratadas pela primeira vez em suas vidas, enquanto moradores de comunidades vizinhas emocionavam-se ao se identificarem com os frechalenses. Esse encontro, como outros pelo Brasil afora, reforçou os laços entre remanescentes de quilombos, suscitando intercâmbios e permitindo que se desenvolvesse uma consciência crítica favorável à afirmação de sua identidade. Mais que tudo, os frechalenses destravaram a língua e, passo a passo, as palavras preencheram as páginas brancas de um livro contando suas histórias. Espelho do cotidiano e catalisador de palavras, as fotografias, expostas no Maranhão e em outros Estados permitiram que os frechalenses encarassem positivamente sua trajetória e percebessem o valor cultural dos afrodescendentes. Aquelas fotos e gravações evocavam memórias sufocadas anos a fio e uma cultura que a sociedade dominante teimava em desconhecer e que podia, finalmente, revelar-se ao mundo. Lembramos que um mês antes da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como ECO-92, realizada no Rio de Janeiro,

um Decreto presidencial declarou o quilombo Frechal reserva extrativista, ou seja, uma área de preservação permanente dos recursos naturais. Vitória exemplar: Frechal tornou-se a primeira comunidade rural negra do Brasil a dispor coletivamente de sua terra mãe. Ela é hoje a matriz referencial do vasto movimento quilombola de reivindicação identitária e jurídica. Em maio de 2003, o Presidente Lula legitimou o movimento, assinando o Decreto de regularização das terras de quilombos e de reconhecimento oficial das comunidades de descendentes de escravos, até então excluídas das políticas sociais e fundiárias, uma medida legal que abrange pelo menos 4 milhões de camponeses e dezenas de milhões de hectares.

Fotografia de Christine Leidgens no quilombo Frechal.

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Fotografia de Christine Leidgens no quilombo Frechal.

Essa nova realidade jurídica suscitou oposição virulenta dos ruralistas que, ao perseguir os quilombos, pretendem, na realidade, anular as leis que protegem os interesses coletivos dos quilombolas e apropriar-se de suas terras. Desde então, os quilombolas articulam-se com o movimento indígena, com seringueiros, pescadores e ribeirinhos na defesa dos recursos naturais do País. Na verdade eles já discutem direitos territoriais e estratégias de desenvolvimento social com habitantes dos demais países amazônicos. Ao longo de duas décadas e mais recentemente, em 2012, quando lá estive pela última vez, pude observar as mudanças em curso naquela comunidade, hoje dona de seu destino. As exposições fotográficas e os seminários organizados na Europa e no Brasil durante o Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre (RS), em 2003, contribuíram para a divulgação do percur-

so exemplar da comunidade do Frechal, orgulhosa de si, de seus valores e de sua história.   Essa história poderá ser descoberta através de depoimentos e fotografias colecionados no meu livro, Frechal, Terre africaine au Brésil (Ed. belga Territoires de la Mémoire, 2014), e na versão original brasileira, Frechal, quilombo pioneiro no Brasil, a ser publicada. Christine Leidgens, fotógrafa sem fronteiras, nascida na Bélgica, pratica sua arte entre as populações diversas numa abordagem de antropologia sociocultural interativa, a qual procura soltar a palavra dos sujeitos fotografados incentivando o reconhecimento de sua identidade e a reapropriação de sua plena autonomia.

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A obra de Ricardo de Vicq Cumpitch Ricardo de Vicq de Cumptich (1950, Rio de Janeiro) é descendente de uma família nobre belga estabelecida no Rio de Janeiro no começo do século XX. Desenvolveu uma obra fotográfica muito variada de capas para discos de Nara Leão e de outros músicos brasileiros, de cenas do mundo do samba, de figuras populares, de retratos de personagens como Burle Marx, de nus, de flores, de objetos e de pratos de gastronomia. Seus trabalhos encontram-se publicados em revistas como Casa Vogue ou Carta Capital e em livros como Roberto Burle Marx: uma fotobiografia, de Soraia Cals, 1995. Ganhou vários prêmios internacionais como, desde 1980, da Graphis Press, em Zurique. Em 1985 mudou seu estúdio para São Paulo. Ver Simonetta Persichetti e Thales Trigo (orgs.), Ricardo de Vicq de Cumptich, Coleção Senac de Fotografia, São Paulo, 2004.

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Arquitetura

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Ramos de Azevedo: um arquiteto brasileiro formado na Bélgica M a r i a A n g e l a P. C . S . B o r t o l u c c i

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rancisco de Paula Ramos de Azevedo era seu nome completo, nasceu na capital da então província de São Paulo, a 8 de dezembro de 1851 e faleceu a 12 de junho de 1928 no Guarujá, litoral de São Paulo. Apesar de ter nascido na cidade de São Paulo, ele gostava de se dizer campineiro, pois sua família era de Campinas (SP) e lá foi criado. Além disso, lhe fazia bem sentir-se um moço do interior que teve sucesso na capital devido a muito esforço e competência. Era de personalidade forte e determina-

da, mas também muito cordial. Sabia como dar ordens e se fazer respeitar. Angariava a simpatia de seus subordinados e colegas de trabalho, talvez por sua grande dedicação em tudo que fazia. Trabalhou sempre de forma incansável. Fortemente influenciado pelos ideais positivistas, soube ser racional na medida necessária e de modo a permitir que, sendo de família nem tão abastada de Campinas, alcançou de forma vertiginosa uma posição profissional extremamente destacada e

Teatro Municipal de São Paulo, projeto de Ramos de Azevedo, fotografia de 2011.

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engenharia e arquitetura, entre 1877-1878, frequentou disciplinas na Academia de Belas Artes para complementação de aspectos relativos a composição, história e desenho. Concluindo seus estudos, prestou exames para obtenção do título de engenheiro arquiteto no dia 16 de outubro de 1878. Em função das notas obtidas, o júri lhe conferiu a honrosa menção “com grande distinção”. Os anos de convívio acadêmico em Gand marcaram profundamente o profissional e o professor Ramos de Azevedo. Entre os professores de maior influência cabe destacar Adolphe Pauli (1820-1895), renomado arquiteto em Gand e professor de Ramos de Azevedo na Escola Especial de Engenharia e também na Academia Real de Belas Artes. Para a autora Maria Cristina Wolf de Carvalho “estabelecer um paralelo entre as posturas dos dois não parece absurdo e, à luz do que manifesta Pauli, é possível entender muito da mentalidade de Ramos de Azevedo e, consequentemente, de suas realizações posteriores no campo da arquitetura e de seu ensino” (Carvalho, 2000, p. 96-103). Quando Ramos de Azevedo voltou ao Brasil em 1879 e instalou seu escritório em Campinas, estava disposto a contribuir para mudar a fisionomia das cidades brasileiras. Sua primeira e marcante obra foi, ainda em Campinas, terminar a construção da Matriz, que ele conseguiu com muito êxito e uma pomposa inauguração no dia 8 de dezembro de 1883. Nessa mesma data era dia do aniversário de Ramos de Azevedo e batizado de uma de suas filhas. Ele soube se valer bem da autopromoção, uma vez que este não se constituiu um fato isolado em sua vida tão repleta de enaltecimentos e homenagens. Ramos de Azevedo mudou-se para São Paulo em 1886 acompanhado de sua família. Em 1881 havia casado com Eugenia Lacaze, sobrinha do General Francisco Glycério, que, por sua vez, tinha três irmãos casados com três irmãs de Ramos de Azevedo. Eugenia e Ramos de Azevedo tiveram três filhos: Lúcia, Laura e Francisco de Paula. Em Campinas projetou e construiu diversas obras importantes (Monteiro, 2009), mas foi notadamente em São Paulo, a partir de 1886, que ele conseguiu as condições ideais para romper os paradigmas da tradição de três séculos de arquitetura. A sólida formação de Ramos de Azevedo pautada no ideário europeu de fins do século XIX lhe permitiu conceber edifícios e espaços urbanos construtivamente muito corretos, empregando as novas técnicas e as regras de conforto e higiene. Em relação à estética foi mais condescendente, sempre aceitando outras tendências estilísticas adotadas por colegas, inclusive por seus sócios de escritório, embora, particularmente, tenha sido fiel à sua preferência pela tradição clássica. Também foi em São Paulo que ele concentrou e ampliou seus negócios, os quais foram muito além das atividades do escritório de projetos. Em São Paulo, se associando com amigos e parentes, Ramos de Azevedo revelou ser um grande empreendedor, uma vez que, paralelamente às atividades do escritório, ele foi instalando diversos negócios com o objetivo de obter a autossuficiência nas etapas da construção civil: exploração de madeiras, cal, mármores e granitos; venda de material importado, serraria, fábrica de tijolos, empreendimentos imobiliários, financiamentos de obras etc.

A Catedral de Campinas, inaugurada em 1883, finalizada por Ramos de Azevedo, fotografia de 2009.

gozou de tanto prestígio na sociedade paulistana a ponto de receber honras de chefe de Estado em seu funeral. Foi um homem que soube construir amplo e sólido ciclo de amizades com pes­ soas bem postas na política e na sociedade em geral, inclusive em sociedades secretas como a maçonaria. Desde o início de sua carreira, ainda jovem e antes da ida à Bélgica, já se cercava de amigos importantes e influentes, muitos deles maçons. Segundo Ana Paula Farah (2003), a sua iniciação na maçonaria se deu pelas mãos do General Francisco Glycério (além de aparentado, foi grande amigo e protetor de Ramos de Azevedo), no dia 17 de outubro de 1873 e, em novembro do mesmo ano, foi elevado a Mestre. No período de 1869 a 1872 esteve na Escola Militar, na Praia Vermelha do Rio de Janeiro. Em 1872, inicia suas atividades como “praticante” na construção das estradas de ferro paulistas. Durante sua permanência na Companhia Mogiana, mesmo sem remuneração, foi extremamente dedicado e despertou a atenção do presidente da companhia, Antônio de Queirós Telles, Barão de Parnaíba, que passou a protegê-lo pelo resto de sua vida. Em março de 1875, Ramos de Azevedo seguiu para a Bélgica. Foi estudar na École Espéciale du Génie Civil et des Arts et Manufactures da Universidade de Gand. Paralelamente ao curso de

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No escritório, foram executados centenas de projetos e obras públicas e particulares, tanto na capital quanto em outras localidades do Estado de São Paulo, com a participação de diversos profissionais, mas sempre sob o controle de Ramos de Azevedo até 1928, ano de sua morte. Alguns dos principais colaboradores de Ramos de Azevedo: Antonio Francisco de Paula Souza, Maximiliano Hehl, Ricardo Severo, João Frederico Washington de Aguiar, Jorge Krug, Victor Dubugras, Calixto de Paula Souza, Carlos Wagner, Carlos Shalders e Domiziano Rossi. Quase todas as obras importantes de São Paulo nessa época saíram do seu escritório, algumas delas foram: Tesouraria da Fazenda, Secretaria da Agricultura, Teatro Municipal, Mercado Central, Faculdade de Medicina, Correios, entre outras. Outra importante atuação de Ramos de Azevedo foi na área acadêmica. Ele gostava muito de ensinar e São Paulo estava carente de profissionais habilitados na construção. Esses foram requisitos suficientes para ele ter se unido ao amigo Paula Souza para criar a Escola Politécnica em 1894. Este último foi o diretor da Escola Politécnica de São Paulo até sua morte em 1917 e Ramos de Azevedo, o vice-diretor. A partir dessa data a direção é assumida por Ramos de Azevedo até seu falecimento em 1928 (Ficher, 2005). Faltava também a São Paulo o ensino técnico de qualidade

e por isso Ramos de Azevedo se empenhou na estruturação e consolidação do Liceu de Artes e Ofícios. Assumiu a direção em 1895 e manteve-se até o ano de sua morte; nesse período ele conseguiu que o Liceu obtivesse muito prestígio e se tornasse uma referência em tudo o que produzia. Maria Angela Pereira de Castro e Silva Bortolucci é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-Campus de São Carlos/SP.

Referências Carvalho, M. C. W. de. Ramos de Azevedo. São Paulo, Edusp, 2000. Farah, A. P. A produção do engenheiro arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo na província de São Paulo. São Carlos. Dissertação (Mestrado) EESC-USP, 2003. Ficher, S. Os arquitetos da Poli – ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2005. Lemos, C. A. C. Ramos de Azevedo e seu escritório. São Paulo, Pini, 1993. Monteiro, A. M. R. de G. Ramos de Azevedo: presença e atuação profissional em Campinas. Campinas, Unicamp-CMU, 2009. Santos, M. C. L. dos. Escola Politécnica (1894-1984). São Paulo, Imesp, 1985.

Arquitetura industrial belga no Brasil no século XIX Bernard Pirson

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a aurora da Revolução Industrial, encontrava-se na Bélgica numerosas instalações metalúrgicas, cujas implantações resultavam da presença abundante de madeira, água e minério de ferro. O processo de mecanização das instalações, facilitada ainda pela presença abundante de carvão de pedra, participou e alimentou a transformação industrial do país. A implantação rápida de uma densa rede de estradas de ferro, iniciada em 1835, obrigou as empresas, uma vez a rede completa, a se voltar para a exportação, o que a própria rede ferroviária facilitou ligando as empresas ao porto de Antuérpia. O material de ferrovias, rodante e fixo, constituiu, pelo menos inicialmente, uma parte importante do mercado industrial para exportação. No Brasil, companhias privadas belgas de exploração de ferrovias procuraram ir além da simples realização de obras de engenharia civil, participando do financiamento da nova rede de construção, tal como a linha ferroviária de Paranaguá-Curitiba. Trilhos, pontes, viadutos não exclusivamente ferroviários e numerosos vagões de passageiros ou de mercadorias foram fornecidos por diferentes empresas belgas que ofereciam para os mandantes e os chefes de empresas brasileiros produtos particularmente competitivos. A grande concentração geográfica de empresas belgas facilita também a emergência de “associações momentâneas”,

permitindo aos seus componentes atender aos principais mercados globais. No que diz respeito às obras de engenharia civil isoladas, o viaduto tardio de Santa Ifigênia de São Paulo, construído em 1913 por Aciéries d’Angleur (Siderurgia de Angleur, perto da cidade de Liège) com base nos planos dos arquitetos Micheli e Chiappori, é mais que uma simples obra técnica: ela participou da estruturação da paisagem paulista por sua qualidade e a obra foi apropriada pela população quando sua destruição foi considerada. Numerosas pontes, a maior parte ainda existente em diferentes Estados, e algumas declaradas bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foram realizadas por empresas distintas, dentre as quais algumas ainda podem ser identificadas: – Ceará: a ponte sobre o Rio Quixeramobim, em Quixeramobim, de 1899 (comprimento: 209 m); – Minas Gerais: o Pontilhão de Ferro, em Carangola, de 1907; a Ponte Marechal Hermes, em Pirapora, de 1922 (comprimento: 694 m. Ela seria oferecida pelo Rei Alberto I para fazer parte da ligação jamais finalizada entre as cidades do Rio de Janeiro e Belém do Pará); – Espírito Santo: a Ponte Florentino Avidos, em Colatina, em 1928, sobre o Rio Doce (comprimento: 800 m. Um sistema cha-

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Viaduto Santa Ifigênia (2012), na cidade de São Paulo, exemplo da arquitetura industrial fabricada na Bélgica e instalada no Brasil. Inaugurado em 26 de julho de 1913.

Estação Bananal, construída em 1888, exemplo da construção industrial do Sistema Danly no Brasil no século XIX.

Projeto da nova Estação Inicial de São Paulo da E. F. Sorocabana.

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Mercado Modelo de Salvador, Bahia, 1911.

Mercadinho São João, em São Paulo, construído em 1890.

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Chalé de ferro da Universidade Federal do Pará, em Belém.

mado “dinossauro”, permitindo empurrar os elementos da ponte até os pilares, foi igualmente fornecido); – Rio de Janeiro: o Viaduto Dr. Paulo de Frontin, em Miguel Pereira, sobre o Rio Santana, de 1889 (comprimento: 82 m, altura: 34 m); a Ponte Getúlio Vargas sobre o Rio Paraíba do Sul, em Barra do Piraí, de 1898 (comprimento: 250 m); a Ponte Dr. Nilo Peçanha (Ponte Velha), em Resende, de 1905 (comprimento: 230 m); – Paraná: o conjunto das pontes da linha ferroviária Paranaguá–Curitiba construída a partir de 1833; – Santa Catarina: a Ponte Dr. Dinis Assis Henning sobre o Rio Negro, de 1896, que liga as cidades de Mafra (SC) e de Rio Negro (PR) (Comprimento: 71 m. Empresa: Dyle et Baccalan, de Lovaina). Concernente à arquitetura ferroviária, é preciso notar a singular estação feita de chapas galvanizadas do Bananal (SP), construída em 1888 com o sistema desenvolvido pela empresa Forges d’Aiseau e seu engenheiro, Joseph Danly, e restaurada de maneira muito rigorosa em 1984 pelo arquiteto S. Kruschin. A estação foi adquirida como um símbolo de modernidade ligada à cultura cafeeira que poderia ter construído a estação de modo tradicional, pois seu projeto não exigia nenhum elemento mais vantajoso a ser executado em metal. A consulta de arquivos de empresas na Bélgica revela numerosos projetos de estruturas e de coberturas de estações de trem brasileiras, como a da Nova Estação Inicial de São Paulo, mas esses projetos devem ainda ser comparados com as obras realizadas. Tal abundância prova o dinamismo das empresas belgas para responder às encomendas brasileiras. O desenvolvimento rápido e, às vezes, subvalorizado das grandes cidades brasileiras no final do século XIX e as diversas configurações urbanas que daí resultam engendram programas de construção dos quais alguns terão uma vida mais efêmera que o previsto. É o caso dos mercados que estavam, além disso, confrontados com rápidos melhoramentos – especialmente relativos à higiene –, e que resultavam subitamente inadequados.

Consoles para candelabros.

O interessantíssimo Mercado Municipal de Belo Horizonte, construído em metal e estrutura semiaberta em 1907 no local da atual rodoviária, se mostrou rapidamente estreito e foi substituído em 1929. Seu construtor belga ainda não foi identificado. Em Salvador, o primeiro Mercado Modelo, construído em 1911-12 ao lado da Rua do Chile, pelas empresas Baume et Marpent, em estrutura aberta, seria a primeira construção metálica da cidade. Seu desenho não pareceu corresponder às expectativas da população e adaptações foram realizadas já em 1915. Ele foi destruído por um incêndio em 1969 e o mercado foi implantado em seu lugar atual. Em São Paulo, o Mercadinho (Mercado São João), de estrutura fechada, foi construído em 1890, na baixada do Açu, Praça Federal, pela empresa Forges d’Aiseau. Há suspeita de que a entrega foi incompleta e que o prédio adotou, talvez, uma versão reduzida em relação ao projeto original. Deslocado em 1914, ele foi definitivamente demolido em 1924. No Rio de Janeiro, o Mercado Municipal de 150 m x 150 m foi, provavelmente, o maior edifício metálico construído no Brasil. Uma empresa inglesa realizou os pavilhões centrais e os Ateliers de Willebroeck, de Bruxelas, realizaram os torreões octogonais situa-

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Cúpula do Teatro Amazonas em pré-montagem em Haine-Saint-Pierre.

dos nos quatro cantos bem como o elemento central. Construído em 1903, ele sobreviverá ao cruzamento da Avenida Perimetral, mas foi destruído no final dos anos de 1950; subsiste apenas uma das torres de canto, transformada em restaurante a partir de 1933. É interessante notar o apelo a empresas de construção metálica de diferentes nacionalidades para um mesmo prédio. Esta situação que se repete em outras construções no Brasil parece, entretanto, única na América Latina nessa época e ela demonstra grande domínio de diferentes técnicas de construção metálica e a gestão hábil da concorrência pelos arquitetos brasileiros. Em Manaus, o Trapiche 15 de Novembro (ex-trapiche Princesa Isabel), foi construído em 1889-90 pela empresa Forges d’Aiseau para abrigar numa estrutura fechada os produtos de borracha. Em bom estado de conservação, ele foi recentemente integrado num projeto turístico do porto de Manaus. Os pequenos prédios de habitação ou “chalés de ferro” correspondem, como programa, aos primeiros desenvolvimentos da arquitetura metálica da metade do século XIX. Em meio tropical, essas habitações integram elementos tipológicos e climáticos dos pavilhões coloniais ingleses. Os dois chalés de ferro construídos pela Forges d’Aiseau existentes ainda em Belém, situados no Bos-

que Rodrigues Alves e no campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), herdaram as tipologias desenvolvidas. Sua data de chegada a Belém não está registrada, mas, segundo elementos de detalhes, podemos situar sua construção depois de 1890. A estação de Bananal, o mercado de São Paulo e o trapiche de Manaus, bem como os chalés, são construções completamente metálicas. Se a estação de Bananal e os chalés de Belém foram considerados como elegantes pela população local, esse não foi o caso do mercado de São Paulo. Na Europa, as construções inteiramente metálicas e fechadas foram consideradas apenas muito esporadicamente: os arquitetos concebiam muito excepcionalmente a utilização do metal em fachada e o relegavam aos elementos estruturais e internos. A esse respeito, a posição dos arquitetos latino-americanos é mais coerente em relação à modernidade, não dando esse status restritivo aos novos materiais. Os quiosques, muito numerosos na Bélgica, não parecem ter constituído um mercado de exportação, não chegando a vencer a concorrência britânica que trabalhava com catálogos. Exceção à regra, o elegante Mirante Chapéu do Sol do Corcovado, construí­ do depois de 1886, e da construção da estrada de ferro de acesso, demolido na ocasião da construção do Cristo Redentor, em 1931.

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Projeto do Floral Pavilhão, cerca de 1910.

Ao longo da Baía de Botafogo, as primeiras instalações do Clube de Regatas de Botafogo, fundada em 1894, foram construídas no mesmo ano pela Compagnie Centrale de Construction de Haine-Saint-Pierre. Serão demolidas depois de 1910 quando da ampliação das instalações. Diferentes estruturas de cobertura e de cúpulas, assim como elementos decorativos, foram realizados por empresas belgas. Esses elementos, partes de projetos maiores, são identificados mais pelos catálogos de construtoras: – A cúpula do Teatro Amazonas em Manaus, fabricada depois de 1885 pela empresa Compagnie Centrale de Construction de Haine-Saint-Pierre; – O domo do necrotério do Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, pela empresa La Brugeoise, construído em 1900 e preservado; – A estrutura do telhado, construída por Baume et Marpent em 1906, do edifício da Associação dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro, situado à Avenida Central, e demolido em 1939; – A estrutura visível do interior da igreja do Pequeno Grande em Fortaleza (1898-1903); – A estrutura da estação triangular de General Carneiro (MG) em 1895, demolida nos anos de 1960;

– As escadas do Palácio da Liberdade em Belo Horizonte, de 1897, construídas pelos Ateliers de Jaegher, de Bruges, que foram igualmente guarnecidas de vitrais coloridos e de elementos estruturais; – Um pórtico, colunas e elementos estruturais de casa da família Brennand, em Recife, pela Compagnie Centrale de Construction de Haine-Saint-Pierre; – Os espelhos bisotados existentes originalmente no Palácio de Cristal de Petrópolis, em 1884, e aqueles ainda existentes na Confeitaria Colombo (1894) no Rio de Janeiro; – Os candelabros, aparelhos para iluminação para a S.A. do Gaz de Rio de Janeiro, fornecidos pela empresa Baume et Marpent, de Haine-Saint-Pierre, em 1926. Os arquivos das empresas belgas do século XIX e início do XX, quando subsistem, são em sua maior parte não classificados. Não há dúvida de que numerosas construções realizadas no Brasil poderão ser identifcadas por ocasião de um eventual trabalho sistemático – devendo-se ainda fazer a distinção entre realizações e projetos – como esse belo “Floral Pavilhão” encomendado perto de 1910 para as empresas Baume et Marpent por Paul Villon, paisagista francês que trabalhou em criações de parques no Rio de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte, principalmente, e cuja construção ou destino não puderam ainda ser identificados.

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Os empreendimentos belgas e a moradia operária Te l m a d e B a r r o s C o r r e i a

E

mpresas de capital belga ou pertencentes a famílias de origem belga tiveram papel relevante na história da moradia operária no Brasil durante o século XX. Criaram vilas e núcleos fabris, dotados de moradias e equipamentos de uso coletivo, entre os quais Monlevade, cuja concepção revelou-se inovadora em termos de forma de eleição do plano e dos padrões urbanísticos adotados. Um exemplo desta ação é a Vila Belga, erguida, a partir de 1906, pela Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, empresa concessionária que finalizou a construção e operou o ramal ferroviário entre Porto Alegre e Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Na cidade de Rio Grande, importante entroncamento ferroviário, a empresa ergueu uma vila para abrigar seus funcionários, além de escritórios, oficinas, galpões, farmácia e armazém. A vila, projetada pelo engenheiro Gustave Vauthier, se estende por quatro ruas, com suas 80 casas geminadas duas a duas e dotadas de estreito recuo lateral (Finger, 2009). Algumas são construções desprovidas de ornatos, enquanto outras têm suas fachadas revestidas de elementos compositivos – cornijas, pilastras, cercaduras e ornatos – de viés eclético. Algumas casas, em coerência com padrões de higiene divulgados na época – são dotadas de porão. O Estaleiro Mabilde é outro exemplo de empresa de origem belga que propiciou moradias para seus empregados. Foi fundado em 1896 por Emilio Carlos Oscar Mabilde, filho do engenheiro belga Pierre François Alphonse Mabilde, a partir da crescente demanda de serviços e construção de embarcações em uma oficina que inicialmente realizava consertos de máquinas e fogareiros. Em 1921 tinha cerca de 450 empregados. Diante dessa expansão havia transferido em 1912 suas instalações de Porto Alegre para a Ilha da Pintada, a uma distância de 15 minutos de barco da cidade. Na nova localização a empresa ergueu uma vila operária com cerca de 80 casas, armazém de secos e molhados, escola, hotel e grêmio recreativo. Em 1919, o Estaleiro oferecia a seus empregados moradia e assistência médica e havia criado o Grêmio Sportivo Mabilde (Pesavento, 1988, p. 74-75).1 Segundo o jornal Notícia, de 25 de outubro de 1917: “Logo a uma distancia de 50 metros, mais ou menos, das officinas, fica a vila operária dos estaleiros. Nella residem cerca de oitenta operários, installados em casas de madeira, algumas de material, com as suas famílias e na mais completa harmonia. Vimos alli duas casas de negocio, canchas para jogo de bola e uma escola para os filhos dos operários ...” (Mabilde, 2009, p. 50). Um empreendimento urbano de envergadura bem maior foi Moreno, um núcleo fabril em Pernambuco, criado pela Societé Cotonniére Belge-Brésilienne. Essa empresa iniciou em 1909 a construção de uma fábrica de tecido, que em 1910 começou a produzir. Desde os seus primeiros anos contava com residências, havendo seu núcleo fabril sido erguido entre 1908 e a década de 1940, acompanhando o crescente número de operários que em 1919 já eram mais

de mil (Correia, 1998). Nesse momento o núcleo fabril já tinha dimensões consideráveis: “Além das aprazíveis vivendas destinadas ao pessoal technico a Companhia possue cerca de 300 casas que são alugadas aos operarios, pagando estes modico aluguel mensal. Muitos outros são proprietarios das casas em que residem mediante aforamento dos terrenos” (Álbum de Pernambuco 1919, p. 226). Sobre as formas de lazer em Moreno, consta em livro publicado em 1919: “Próximo à fabrica ha um grande campo de recreio onde se realizam constantes matches de foot-ball e outros jogos. No aprazivel palacete da Gerencia existe magnifico tennis court e excellente campo para jogo de Bowling. Como elementos de diversão ha um cinema onde duas vezes por semana são exhibidos films, e a Philarmonica da Sociedade Musical Operaria que aos domingos e dias de festas realiza retretas na principal praça da localidade, attrahindo grande concurrencia” (Álbum de Pernambuco 1919, p. 226). Em 1939, Moreno reunia cerca de 700 casas, consultório médico, creche, o Societé Sport Club e várias escolas.2 Na ocasião a revista Cidade Mauricéa considerava que Moreno era “...pelas suas condições de hygiene, asseio e cuidados empregados, a mais confortável (vila operária) do Paiz (...). Acrescentava que a empresa visava (...) fortalecer o ánimo de seus trabalhadores proporcionando aos mesmos, habitação confortavel e sadia, predispondo-os destarte para um trabalho mais produtivo e vantajoso” (Cidade Mauricéa, 1939). Localizado em terreno acidentado, Moreno tinha ruas com traçado sinuoso que, dotadas de arborização profusa, remetiam ao urbanismo das cidades-jardim. Casas de vários padrões, formas e tamanhos foram erguidas. Funcionários em postos de chefia ocupavam amplos chalés. As moradias dos operários eram grupos de casas semelhantes dispostas em renque, às vezes dotadas de um pequeno jardim. O empreendimento urbanístico mais ousado realizado no Brasil por empresa belga – Monlevade – deve-se à ação da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, que surgiu em 1921, com a associação da ARBED, um consórcio belgo-luxemburguês, à Companhia Siderúrgica Mineira, que tinha sede em Sabará. Em Minas Gerais, a empresa criou diversas vilas operárias em Sabará e o núcleo fabril de Monlevade. Para Sabará, a empresa providenciou a elaboração de um plano de conjunto – Plans de Sidérurgique avec Project d´habitation ouvrières –, em 1932, o qual definia uma “Cité europèene”, localizada numa encosta junto à fábrica e destinada a diretores, e uma vila operária em frente à usina (Lima, 2004). Em 1933, a empresa abdicou da ideia desse plano em favor da construção de vários grupos de casas nas imediações da fábrica. Em 1935, um documento da empresa relatava que essas casas “... apresentam um aspecto alegre e risonho e toda a cidade dá uma impressão de ordem e de propriedade completamente saudável (...). Estas residências, evidentemente, não são muito espaçosas: como tal,

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O núcleo fabril Moreno, Pernambuco, construído a partir de 1909, fotografado em 1994.

Monlevade, construído pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, fotografado em 1998.

elas atendem à sua destinação e podem servir de modelo no Brasil, onde não se está habituado a conforto semelhante” (Lima, 2003, p. 91). Em 1952 havia cerca de 500 casas, distribuídas em várias vilas.3 A Belgo-Mineira também ergueu um hotel-cassino para hospedagem de visitantes e moradia de engenheiros solteiros, a Escola Profissional, a Pensão Siderúrgica, a Maternidade e Puericultura Louis Ensch, um ambulatório, um dormitório para solteiros, o Esporte Clube Siderúrgica, a Associação Atlética dos Ex-Alunos do Senai (Serviço Nacional da Indústria) e vários clubes de futebol. Na década de 1960 a empresa tinha o Grupo Escolar Cristiano Guimarães e subvencionava o Ginásio Santa Rita, além de dois postos de abastecimento e um açougue (Silva, 2004).4 Havia nove tipos de habitações: casas para engenheiros, dois tipos de casas-padrão (com 2 ou 3 quartos), casas geminadas e cinco tipos de casas econômicas. Adotavam várias formas e tamanhos: em renque, geminadas e isoladas em meio a jardins; de porta e janela, chalés e bangalôs; de alvenaria ou madeira. Em alguns conjuntos todas as casas eram iguais, enquanto em outros havia mais de um modelo de moradia. Em 1934 a empresa decidiu criar uma segunda usina – inaugurada em 1937 –, construir junto a ela um núcleo fabril – denominado Monlevade – e promover um concurso para o seu plano. Ao decidir promover este concurso, a Belgo-Mineira inseriu-se em uma tendência que se firmaria nas duas décadas seguintes, de núcleos fabris concebidos a partir de planos previamente elaborados por urbanistas. Foram 13 as propostas que participaram do concurso, vencido pelo engenheiro Lincoln Continentino. A proposta concebida pelo arquiteto Lucio Costa, embora não selecionada, constitui um documento muito importante na história do urbanismo moderno brasileiro. Nele o arquiteto explicita estratégias instigantes de diálogo entre modernismo e tradição, ao mesmo tempo em que formula uma curiosa articulação entre procedimentos consagrados na organização de núcleos fabris e ferramentas de projeto difundidas pela arquitetura e pelo urbanismo modernos (Correia, 2000). O programa proposto pela Belgo-Mineira para o núcleo residencial incluía, além de 300 moradias, área para comércio, clube,

igreja, escola e cinema. O edital do concurso determinava que “A nova cidade deveria transpirar a alegria de viver e o contentamento de seus habitantes, dando uma impressão risonha e clara” (Lima, 2003, p. 97-98). Lincoln Continentino definiu seu plano como o de uma “cidade-jardim industrial moderna”. Criou uma praça em forma elíptica, com uma igreja no centro e prédios comerciais e de serviço em torno. O sistema viário composto por passagens para pedestres, ruas residenciais e avenida marginal ao Rio Piracicaba, se conformava em formas retilíneas ou em curvas suaves, incluindo faixas gramadas com árvores de pequeno porte. Coerente com a intenção de diversidade que marca a concepção espacial das cidades-jardim, Continentino propôs ampliar os tipos de casas, dos três sugeridos pelos organizadores do concurso para sete, todas dotadas de jardins. O engenheiro Louis Ensh dirigiu os trabalhos de detalhamento e implementação do plano urbanístico, enquanto o arquiteto Yaro Burian projetou escolas, igreja, hospital, hotel e moradias (Lima, 2003, p. 364). Monlevade rapidamente extrapolou os limites do plano original, se expandindo sob a ação da Belgo até a década de 1960. Nele a empresa construiu mais de duas mil casas, alojamentos, cassino-alojamento, mercado, igreja, cinema, escolas, praças, hotel, clubes, estádio de futebol, hospital, ambulatório, aeroporto e matadouro. No início da década de 1960 a empresa tinha em Monlevade quatro grupos escolares, o Ginásio Monlevade e a Escola Profissional (Lima, 2003, p. 369). Um pequeno comércio – açougue, armazém farmácia, barbearia etc. – se estabeleceu no local. O espaço do núcleo fabril de Monlevade foi marcado pela segregação social: havia a “vila dos médicos” junto ao hospital, a “vila dos engenheiros” na Avenida Aeroporto, um grupo de casas grandes na Avenida Getúlio Vargas e diversas vilas com casas menores. Monlevade se estruturava a partir desses conjuntos de casas semelhantes, localizados em torno da usina ou em locais mais distantes: em 1952 existiam 16 vilas operárias. As moradias se diferenciavam em termos de material, tamanho e padrão de construção. Havia casas térreas e sobrados, de madeira e de alvenaria, cercadas por jardins, geminadas e dispostas em renque. As casas maiores, situadas na Avenida Aeroporto, eram construções térreas amplas,

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de linhas modernistas e dispostas em meio a grandes jardins. Monlevade e Moreno se converteram em cidades, enquanto as vilas operárias em Sabará (MG) e em Santa Maria (RS) continuam existindo, testemunhando a ação das empresas na urbanização e na reforma da moradia do trabalhador brasileiro.

Correia, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no Sertão. Campinas, Ed. Papirus, 1998. 320 p. Finger, Ana Eliza. Vilas Ferroviárias no Brasil. Os casos de Paranapiacaba em São Paulo e da Vila Belga no Rio Grande do Sul. FAU-UNB, 2009. Dissertação de Mestrado. Lima, Fábio José Martins de. Por uma cidade moderna: ideários de urbanismo em jogo no concurso para Monlevade e nos projetos destacados da trajetória dos técnicos concorrentes (1931-1943). São Paulo, FAU-USP, 2003. Tese de Doutorado. Mabilde, Adriano Ballejos. Estaleiro Mabilde – As relações com os funcionários e o Estado. (1896-1943). Porto Alegre, PUC, 2009. Dissertação de Mestrado em História. Pesavento, Sandra Jatahy. A Burguesia Gaúcha: dominação do capital e disciplina do trabalho (1889-1930). Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988. Silva, Ronaldo A. R. da. “Empresa, cidade e sociedade: uma (re)construção das relações sociais sob o olhar das vilas operárias”. Memeguello, C. & Rubino, S. Patrimônio Industrial: perspectivas e abordagens. Campinas, Unicamp, 2004.

Telma de Barros Correia é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFPE, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e livre docente pela USP. É professora e pesquisadora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-Campus de São Carlos/SP e é autora dos livros Pedra: plano e cotidiano operário na sertão (Papirus, 1998) e A construção do habitat moderno no Brasil – 1870-1950 (Fapesp/RIMA, 2004).

Notas 1. Boa parte dos operários morava na vila, a cujo acesso se dava preferência às famílias numerosas. As moradias eram gratuitas, assim como água, luz e carvão. A fábrica tinha médico e enfermaria e, nos casos de acidentes de trabalho, fornecia remédios, pagava hospital e 2/3 do salário até a volta ao trabalho. Promovia festas, como a de Nossa Senhora dos Navegantes com procissão naval, o Primeiro de Maio com churrasco e o carnaval com bailes e blocos, o que não a impediu de instituir “Lei Seca” no local (MABILDE, 2009, p. 53-62). 2. Havia o Externato Societé Cotonniére, Jardim da Infância, Escola Paroquial e o Collegio Batista de Moreno. As casas eram alugadas e a luz fornecida pela fábrica a preços subsidiados. 3. Havia as vilas: Siderúrgica, Santa Cruz e Michel, as casas destinadas a engenheiros e um conjunto de moradias situado junto à usina destinado a funcionários em cargos de chefia. 4. Pelas moradias se cobrava um pequeno aluguel que era considerado módico pela empresa e incluía água e luz. Além de empregados moravam em casas da empresa o diretor da Escola Senai e um padre, enquanto na Vila Michel um posto policial foi instalado até 1964 em casa da Usina (SILVA, 2004, p. 11).

Referências e fontes “A Fabrica de Morenos, pela sua Organização Modelo e pela Assistencia Efficaz que Presta aos seus Operarios, Sobresae-se de suas Congeneres com Grande Destaque”. Cidade Mauricéa. Anno II, N.15. Recife, julho de 1939. “A Siderurgia em Minas Gerais”. O Observador Econômico e Financeiro, Ano V, n. 57, São Paulo, outubro de 1940. Álbum de Pernambuco - Obra de Propaganda Geral. Editor Proprietário: José Coelho. Rio de Janeiro, Pimenta de Mello & Comp., 1919. Continentino, L. “Plano de urbanização da cidade operária de Monlevade”. Revista da Directoria de Engenharia, 5(3): set. 1936. Correia, Telma de Barros. “O modernismo e o núcleo fabril: o anteprojeto de Lúcio Costa para Monlevade”. Anais do VI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. CD-ROM. Natal, UFRN, outubro de 2000.

A Vila Belga de Santa Maria Anna Eliza Finger

S

ituada em Santa Maria (RS), a Vila Belga foi construída na primeira década do século XX pela empresa belga Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fèr au Brésil. A Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana foi construída entre 1877 e 1907, tendo chegado a Santa Maria em 1885, quando foi construída a Estação. Em 1898 a Auxiliaire arrendou a linha e, como havia a previsão de que Santa Maria se transformasse em um importante entroncamento ferroviário, por onde passaria outra linha em direção a São Paulo, transferiu para lá seus escritórios e instalou ali suas oficinas. Para abrigar os funcionários que trabalhavam no pátio ferroviário, a empresa adquiriu uma gleba urbana próxima à estação para a construção de um conjunto de residências. E como inicialmente a Auxiliaire não intencionava construir uma vila autônoma isolada, não foram previstos equipamentos de uso exclusivo para seus funcionários, nem áreas públicas como praças e largos. Pelo contrário, a empresa investiu na qualificação de escolas e hospitais da cidade, abertos ao restante da comunidade, pois partia-se do princípio de que seus moradores se mesclariam à população de Santa Maria.

Vista da rua e das casas da Vila Belga, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, fotografada em 2012.

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Estação Ferroviária da Vila Belga, 2012.

O projeto foi desenvolvido pelo engenheiro belga Gustave Vauthier, na época diretor da companhia, e não foi concebido segundo os preceitos clássicos das vilas industriais, com setorização urbanística e arquitetônica ou hierarquia viária, pois abrigaria apenas funcionários de uma mesma hierarquia e que não exerciam um papel de vigilância uns sobre os outros, pertencendo todos ao mesmo nível funcional, o que lhes permitia usufruir certa autonomia e liberdade individual. Entretanto, é possível identificar referências aos manuais de orientação para a construção de vilas operárias e ferroviárias publicados na Bélgica ao final do século XIX, com destaque para o Traité d’Architecture, de Louis Cloquet, de 1898, e que constava do acervo do Liceu de Artes e Ofícios da Cooperativa dos Ferroviários de Santa Maria. Dentre esses, se destaca a integração em relação ao restante da cidade, evitando o isolamento dos bairros operários, que poderia criar “castas” hostis à sociedade e constituir locais de desordem. Quanto à implantação, as 80 residências foram organizadas em blocos de duas, conforme modelo chamado por Cloquet de accolée, preservando a ventilação cruzada entre a fachada principal e o quintal aos fundos. O agrupamento de apenas duas unidades também permitiria o afastamento de uma das laterais do lote, garantindo certo isolamento e privacidade. As residências foram divididas em tipos, variando de tamanho conforme o número de ocupantes, mas com os mesmos padrões de acabamento. Como foi construída dentro da área urbana de

Santa Maria, possivelmente em função das chamadas “posturas municipais” (leis que normatizavam a forma de implantação dos edifícios, acabamentos, coberturas etc.), sua configuração se aproxima do restante da cidade, com edifícios construídos em alvenaria e implantados no alinhamento dos lotes. Além disso, cada unidade é diferenciada através de detalhes dos requadros das aberturas, cimalhas e pilastras, que têm desenho único e, associados a porões altos em alguns edifícios, proporcionam variações que tornam única cada unidade, o que também pode ser atribuído a uma possível influência de Cloquet, que afirmava que a uniformidade das residências era um defeito que geraria banalidade e monotonia, negando-se o direito à individualidade humana. No ano 2000 a Vila Belga foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) como Patrimônio Cultural do Rio Grande do Sul. Anna Eliza Finger é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001), especialista em Conservação e Restauro de Monumentos e Conjuntos Históricos, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre e Doutora em Teoria, História e Crítica da Arquitetura pela Universidade de Brasília (UnB), com o tema Patrimônio Ferroviário Brasileiro. É funcionária do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2006, atualmente desempenhando o cargo de Coordenadora-Geral de Cidades Históricas.

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Nota sobre Arsène Puttemans Luciana Pelaes Mascaro

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rsène Puttemans, arquiteto e paisagista belga formado pela Escola de Horticultura de Vilvoorde (École d’Horticulture de lÉtat – Vilvoord), trabalhou no Brasil nas duas primeiras décadas do século XX (na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz-Esalq, até 1913). Foi responsável por vários projetos, entre os quais os jardins do atual Museu Paulista (na imagem) – modificados na década de 1920 –, o da Praça da República e o da Várzea do Braz, na cidade de São Paulo; o da Praça de São Bento, em Niterói, e o do Parque Philippe Westin Cabral de Vasconcelos, em Piracicaba, SP

(Lima, 1987, p. 22). Este último parque é o da Esalq. Participou também do projeto de Aprendizado Agrícola de Barbacena (MG) e foi auxiliar do diretor dessa instituição (Cimino, 2013, p. 174). Referências Lima, Ana Maria Liner Pereira. (1987). Nosso parque faz 80 anos. Revista ADEALQ, Piracicaba, 1987, v. 10, n. 6, p. 20-22. Cimino, Marli de Souza Saraiva. Iluminar a terra pela inteligência: trajetória do aprendizado agrícola de Barbacena, MG (1910-1933). Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação, 2013.

Jardins do Museu Paulista, em São Paulo, projeto de Arsène Puttemans.

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Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais da Bélgica Luciana Pelaes Mascaro

O

s pavilhões das exposições internacionais e universais são objetos privilegiados para o estudo da história da arquitetura. Aqueles que foram construídos nas décadas próximas à virada do século XIX para o XX estão inseridos num contexto histórico no qual a modernidade e a introdução dessa modernidade nos países sul-americanos são aspectos primordiais. Nesse período, a América do Sul era destino de imigrações e de produtos industrializados europeus e as exposições universais e internacionais conheceram sua “idade de ouro”. Dois fatores importantes convergiram e contribuíram para o desenvolvimento do metal para construção: a disponibilidade desse material e a forte demanda por pavilhões de exposições, que eram construções efêmeras e deveriam se adequar a determinadas facilidades. Esses pavilhões – concebidos e realizados sob as exigências da rapidez, da economia, da pré-fabricação, da desmontabilidade – são, portanto, de especial interesse, posto que neles se desenvolveu o aperfeiçoamento da técnica e da estética. Na época evocada, as exposições universais e internacionais eram concebidas como vitrines publicitárias para os países que primeiro se engajaram na via da industrialização e se constituíam como ocasiões privilegiadas para as trocas e para o comércio. Segundo Renardy (2005, p. 134), “a sociedade ocidental parece querer cada vez mais se comparar a outras de outros continentes, pois as indústrias (...) procuram matérias-primas, mas também mercados consumidores onde verter seus produtos finalizados”.1 Desde a realização das duas primeiras grandes exposições em Londres em 1851 e 1862, que aconteceram num único pavilhão comum a todos os expositores, foram utilizadas estruturas metálicas. Ainda se tratava de um sistema construtivo em desenvolvimento, caro e mal aceito esteticamente como afirma Dantas (2010, p. 70), sobre a exposição de 1862: “A imprensa nacional fez várias críticas, chamando a principal atração de ‘tigelas de sopa colossais’ e ‘uma desgraça nacional’”. Mas o material foi desenvolvido e, mesmo em exposições realizadas após a Segunda Guerra Mundial, o emprego das estruturas metálicas para pavilhões tornou-se incontornável. A partir de 1867, em Paris, os próprios espaços de exposição – ou seja, os pavilhões – foram explorados como produtos. Eram concebidos e realizados para mostrar o nível de desenvolvimento do país representado e como exemplos do que a industrialização poderia fazer pela construção. Foi uma época de grande abertura para outras culturas, de fé no progresso e no desenvolvimento (Renardy, 2005, p. 133, 134). A famosa exposição realizada em Paris em 1889 – na qual a Torre Eiffel foi erigida – veio a se transformar numa amostra do apogeu da utilização do metal no século XIX (Kühl, 1998, p. 37). A Bélgica, até 1935, já tinha realizado em seu território cinco exposições internacionais e universais, mesmo com o advento da

Primeira Grande Guerra. O grande interesse por parte desse país nesse tipo de evento se explica pelo fato de que a região da Valônia (sul da Bélgica) era uma das regiões siderúrgicas mais desenvolvidas do mundo e desempenhou “um papel apreciável na evolução universal das ciências e das técnicas”2 (Halleux et al., 1995). Além disso, exportou suas mercadorias – sobretudo as estruturas metálicas para construção – para diversos países. No que concerne ao comércio com a América do Sul, a Bélgica partilhou um mercado disputado principalmente pela Inglaterra, pela França e pela Alemanha (Kühl, 1998, p. 77). Esse mercado foi destino de produtos belgas que, em conjunto com produtos de outras origens, ajudaram a transformar a arquitetura sul-americana como nos mostra Pirson, em seu artigo “Arquitetura industrial belga no Brasil no século XIX”. Como exemplo, é possível citar uma série de construções de estrutura metálica de origem belga no Brasil como a estação de trem do Bananal (SP), o Armazém do Porto de Manaus, o Mercado São João em São Paulo, o Chalé de Ferro de Belém – os dois últimos originários das Forges d’Aiseau – e o Viaduto Santa Ifigênia, em São Paulo – procedente da S. A. Aciéries d’Angleur (Pirson, 1986, p.154 a 162; Bruxelles, prouesses..., 2011). Como nos ensina o professor Geraldo Gomes – pioneiro nas pesquisas sobre o assunto com seu livro A arquitetura do ferro no Brasil, São Paulo (Nobel, 1986) –, na região da América Latina

Seção do Brasil na Exposição Universal de Antuérpia, 1885.

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parte 10 – arquitetura

Cartão-postal mostra as estruturas de ferro retorcidas após o incêndio que atingiu a Exposição de Bruxelas de 1910.

a arquitetura de ferro produzida naqueles tempos ainda sobrevive e prenuncia conceitos racionalistas, dentre os quais a pré-fabricação e a fabricação distante do local da construção. Nesse clima de corrida por novos mercados – que também funcionou na mão inversa, ou seja, países não industrializados procuravam comercializar seus produtos primários –, por um lado, observamos o impacto do processo de industrialização europeia no mundo e, por outro, a presença de vários países não europeus nas grandes exposições citadas. Vamos, então, explorar a presença do Brasil nas exposições realizadas na Bélgica. Até o ano de 1939 o Brasil participou de 13 exposições universais e internacionais, a começar pela Exposição Internacional da Indústria de Londres, em 1862 (Dantas, p. 67, 2010). Em 1885, a seção do Brasil na Exposição Universal de Antuérpia, Bélgica, ainda sem pavilhão próprio, se localizava, segundo o mapa da exposição – que se encontra na Biblioteca da Universidade de Gand, Bélgica – à direita da entrada principal da feira, num pavilhão voltado ao acesso da Exposição Marítima e partilhado com países da Europa, como Portugal, Espanha e Suíça, do Oriente Médio, como a Turquia, e de outros continentes, como Estados Unidos, Japão, China. A publicação semanal sobre a exposição, datada do dia 9 de agosto de 1885, mostra a seção do Brasil em destaque. Na fachada do espaço brasileiro nota-se abundante decoração, muito de acordo com a tendência arquitetônica do final do século XIX, constituída, entre outros elementos, pela exuberância dos arranjos vegetais – que, em certa medida, dissimula a estrutura da construção – em associação com a profusão de tecidos aplicados à moda dos interiores burgueses, com bandeaux e franjas pendentes, e a dois grandes painéis, provavelmente envidraçados, onde se lê “Brazil”. Todo esse conjunto de recursos está aplicado sobre uma estrutura aparentemente metálica, a julgar pela esbeltez e pelo desenho dos pilares e pela amplitude do espaço que se adivinha no interior do recinto. Se a linguagem empregada precisava deixar evidente que o Brasil já acompanhava os últimos gritos da moda europeia em ter-

Ilustração da Fachada do Pavilhão do Brasil na capa do Livro Pavillon du Brésil, Exposition Bruxelles, 1910.

mos de arquitetura – através do emprego de características da casa burguesa de fins do século XIX –, não podia deixar de marcar, ao mesmo tempo, o exotismo e as singularidades do país – através de elementos utilizados para exaltar a exuberância de sua natureza e de seus recursos. Daí a mistura entre cortinas, painéis e vegetação exagerada que, para além de transmitir as mensagens que descrevemos, tinha a virtude de servir muito bem à dissimulação da estrutura metálica: nesse momento, ela era apenas o cabide para o traje de festa. Outras informações sobre a arquitetura desta seção do Brasil requerem pesquisa mais aprofundada. Em 1910 o Brasil estava de novo presente na Bélgica, durante a Exposição Universal de Bruxelas, com pavilhão próprio cujo projeto é atribuído ao arquiteto belga Franz Van Ophem na publicação “Pavillon du Brésil – Exposition de Bruxelles 1910”. Ficou localizado à direita no sítio destinado ao evento, junto aos pavilhões de países da África, da Indochina e das Colônias Francesas, como mostrado no mapa da exposição “Bruxelles 1910

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Vista do Pavilhão do Brasil, Exposição de Antuérpia de 1930.

– L’Exposition Universelles Retrouvée”, uma exposição sobre a exposição de 1910, realizada em 2010, no Campus da Universidade Livre de Bruxelas. A exposição de 1910 é característica pela linha política de seu Comitê Executivo, que escolheu como arquiteto-chefe Ernest Acker, professor e antigo diretor da Academia de Belas Artes de Bruxelas (em detrimento, por exemplo, de Victor Horta, representante da vanguarda em arquitetura) (Douillet; Schaack, p. 7-8). Como resultado, a estética que se manifesta nos pavilhões da exposição – exceto raras exceções – representa o retorno ao classicismo e à Belle Époque (http://expo1910.be/). O Pavilhão do Brasil não fugiu à regra, como se nota por suas raras imagens. Grandioso, simétrico, com suas estátuas, cúpulas e colunatas nos faz pensar em Palladio, mas as proporções e a altura da cúpula principal – que, de acordo com Dantas (2010, p. 108) estava “situada a 52 metros de altura”, deve ter recorrido a conhecimentos técnicos de engenharia para ser realizada e, talvez, sido

facilitada pelo uso da estrutura em metal – nos trazem imediatamente de volta ao século XIX (embora tenha sido construído nos primeiros anos do século XX, em linguagem anacrônica). Uma curiosidade sobre este evento foi o incêndio que atingiu, em agosto daquele ano, um dos seus setores, poupando o do Brasil, e revelou as técnicas construtivas escondidas e a capacidade de reorganizar a feira rapidamente, sem que a mesma tivesse de ser cancelada. Vasta iconografia da época mostra escombros e estruturas metálicas retorcidas pelo incêndio, flagrante do interesse geral pela modernidade velada do evento, apesar da opção por uma aparência conservadora. Em 1930 o Brasil participou novamente da Exposição Internacional em Antuérpia. Nos 20 anos que se passaram desde a feira em Bruxelas, a arquitetura eclética estava suplantada e se impunham francamente tendências muito menos ornamentadas e mais arrojadas. As exposições internacionais eram o reflexo de tais transformações na linguagem arquitetônica, pois os pavilhões formavam um uníssono composto por linhas art déco e racionalistas.

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Fotografia do Pavilhão do Instituto Nacional do Café na Exposição de Bruxelas de 1935, publicada na Revista La Technique des Travaux, julho de 1935.

O pavilhão do Brasil, projetado pelo arquiteto Pedro Paulo Bernardes Bastos, e “no qual lembranças da grandiosa arte précolombiana lhe atribuem uma nota muito característica (...) com galerias baixas e varandas nos transportam à frescura dos abrigos à sombra nos países quentes” (La Technique..., 1930, p. 427), foi um exemplar de tendência art déco. O arquiteto adota formas geométricas e linhas retas, reforçando a verticalidade da torre central; aparecem detalhes decorativos com motivos estilizados de inspiração vegetal e, também, máscaras e estátuas indígenas estilizadas. De acordo com o “Livro de Ouro da Exposição Internacional, Colonial, Marítima e de Arte Flamenga”, a participação do Brasil nessa exposição foi particularmente brilhante e contribuiu para ampliar o renome do país na Bélgica. Pouco depois, em 1935, reencontramos o Brasil em Bruxelas para a Exposição Internacional com seu Pavilhão do Instituto Nacional do Café, situado próximo à Entrada do Centenário e em frente aos pavilhões dos Países Baixos e do Chile. Nessa exposição pode-se notar o esforço dos arquitetos em explorar a estética dos materiais e das técnicas então disponíveis que, embora não fossem propriamente novos – o concreto e o metal já estavam no mercado da construção desde fins do século XIX –, passaram a ser trabalhados de forma nova, procurando deixar de lado a carga historicista e academicista. Esse modo de atuar que caracterizou a arquitetura dita moderna empregou, entre outros recursos, panos envidraçados, elementos metálicos aparentes, linhas sóbrias e espaços racionais recorrentemente. Concebido por Alphonse Barrez, arquiteto belga, dentro dessa

lógica, o pavilhão brasileiro apresentou uma constituição abertamente moderna. Não faltaram grandes áreas envidraçadas, o volume retangular sobre pilotis nem o terraço elevado do solo – referências inequívocas aos preceitos de Le Corbusier – onde se degustava várias maneiras de se preparar o café. O prédio mereceu uma pequena nota elogiosa na revista La Tecniques des Travaux, que o descreveu como “muito moderno e muito elegante” (1935, p. 358). Em 50 anos – desde 1885 até as vésperas da Segunda Guerra Mundial –, portanto, o Brasil se fez presente na Bélgica através das exposições internacionais, que eram, e continuam sendo, eventos especialmente eficazes de divulgação e catalizadores de relações comerciais entre países. Assim, além de mostrar que são capazes de acompanhar as últimas tendências em matéria de arquitetura, pois os próprios pavilhões se tornaram produtos passíveis de comercialização e exemplos de domínio de técnicas e tecnologias construtivas, os países representados nelas expõem os mais diversos atrativos exportáveis. Nesse sentido, de maneira geral, o Brasil levou à Bélgica, além do café, que era o carro-chefe da exportação brasileira no período, amostras de suas outras riquezas, naturais ou processadas, fossem elas oriundas da fauna, da flora ou dos minerais. Além disso, o Brasil mostrou que estava a par das vanguardas arquitetônicas, como mostra o estudo dos pavilhões que produziu para tais feiras realizadas em território belga. Em 1958 o Brasil estará presente numa das mais marcantes exposições realizada em Bruxelas com um pavilhão de autoria do célebre arquiteto Sérgio Bernardes, sobre o qual o professor De Kooning nos fala no artigo a seguir.

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Referências

La technique des travaux. Revue mensuelle des procédés de construction modernes. Magazine publié sous les auspices de la Cie Internationale des Pieux Franki, n. 7, 6ème année, Juillet 1930. _____________. Revue mensuelle des procédés de construction modernes. Magazine publié sous les auspices de la Cie Internationale des Pieux Franki, n. 7, 11ème année, Juillet 1935. Pirson, B. (1986). Architecture métallique démontable au XIX e siècle exportée d’Europe vers les pays d’Outre-mer. Une contribution belge: les Forges d’Aiseau. Louvain: KUL, 238 p. Renardy, C. (2005). Liège et l’Exposition universelle de 1905. Sous la direction de Christine Renardy. Bruxelles: La renaissance du livre, Fonds Mercator, Dexia banque, 317 p. Silva, Geraldo Gomes da. Arquitetura de ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986.

Bruxelles 1910, L’Éxposition Universelle Retrouvée. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2013. Civa (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage); Université Libre de Bruxelles (ULB); Vrije Universiteit Brussel (VUB) (Bélgica). Bruxelles, sur les traces des Ingénieurs Bâtisseurs: catálogo-guia. Bruxelas, 2011. 320 p. Guia realizado para a exposição Bruxelles, prouesses d’ingénieurs, 20 de maio e 2 de outubro de 2011. Dantas, A. D. (2010). Os Pavilhões Brasileiros nas Exposições Internacionais. Dissertação de mestrado, São Paulo: FAU-USP. Douillet, I. Schaack, C. L’avenue Franklin Roosevelt et le quartier du Solbosch Considérations historiques, urbanistiques et architecturales. In: Inventaire du Patrimoine architectural, Bruxelles-Extensions Sud. Bruxelles, Ministère de la Région de Bruxelles-Capitale, Direction des Monuments et des Sites, Ed. P. Crahay. S/D. Disponível em: http://www.irismonument.be/pdf/fr/1001-roosevelt_solbosch_bruxelles-extensions_sud.pdf>. Acesso em: 21 maio 2013. Halleux R., Bernes A.-C., Etienne L. (1995). L’évolution des sciences et des techniques en Wallonie. In:  «Wallonie. Atouts et références d’une Région», sous la direction de Freddy JORIS, Gouvernement wallon. Namur. Kühl, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: reflexões sobre a sua preservação. 1. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. v. 1. 438 p .

Notas 1.

2.

“la société occidentale semble vouloir de plus en plus souvent se comparer à d’autres continents, car les milieux industriels (…) cherchent des matières premières, mais aussi des marchés porteurs où écouler les produits finis”. “un rôle appréciable dans l’évolution universelle des sciences et des techniques”.

Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas Emiel De Kooning

E

m janeiro de 1956, algumas semanas antes de assumir como presidente, Juscelino Kubitschek ofereceu uma recepção na embaixada do Brasil em Bruxelas. Entre os convidados estava o Barão Moens de Fernig, Comissário-Geral da Exposição Mundial de 1958. A participação do Brasil na ‘Expo 58’ parecia ser um negócio do interesse do Estado, como também o foi em 1939 na World’s Fair de Nova York. A Expo 58 – a primeira exposição mun-

dial depois da Segunda Guerra Mundial – formaria um esplêndido mostruário para a apresentação das modernizações mais recentes em andamento no Brasil: o canteiro de obras da nova capital estaria em 1958 ainda em plena atividade. Precisamente como em 1939, a arquitetura precisava não somente ser ‘moderna’ como também dar expressão à consciência nacional. Em 1939 Costa e Niemeyer corresponderam com verve a esta dupla tarefa. Seu pavilhão foi recebido com entusiasmo nos meios da arquitetura e deu, junto com o novo Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, origem ao ‘estilo brasileiro’ na arquitetura. Desde o final dos anos 1940 esse estilo obteve reconhecimento mundial, mesmo que criticado, também no Brasil, por seu caráter formalista. A propaganda que lhe foi feita desde os Estados Unidos foi recebida com suspeita por alguns – um arquiteto paulista perspicaz como Villanova Artigas falou nesse contexto mesmo de ‘manoeuvre of larceny’ (manobra de apropriação indébita). No final dos anos 1950 Niemeyer foi totalmente ocupado pela obra da nova capital, Brasília. Como arquiteto do pavilhão brasileiro em Bruxelas foi indicado Sérgio Bernardes (1919-2002), um homem definido como ‘um arquiteto humanista, uma mistura de poeta e utopista’. Até o fim da vida Bernardes elaborou planos espetaculares nos quais lidava com os problemas sociais e ecológicos do Brasil com uma fé incondicional nas potencialidades da técnica. Produziu uma obra ricamente variada que soube guardar sua vitalidade até os últimos anos de vida. Lauro Cavalcanti o considera ‘o melhor arquiteto da segunda geração dos modernistas cariocas’.

Vista da entrada do pavilhão da Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

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Quando recebeu o encargo do pavilhão, Bernardes não tinha ainda se manifestado como um utopista, se bem que ficou famoso, mesmo nas revistas internacionais, por seu surpreendente uso de materiais diversos e por suas construções em aço leve. Assim ele explorou em 1954 o potencial lúdico dos light weight roofs (telhados leves), num magnífico pavilhão que se construiu por ocasião do quinto centenário de São Paulo no Parque do Ibirapuera e que pode ser considerado um direto precursor do pavilhão em Bruxelas. O caráter inteligível da construção se encaixava perfeitamente com o quadro dinâmico e livre que a arquitetura deve, segundo Bernardes, poder oferecer ao homem e à natureza – um credo que marca toda sua obra. Na Expo 58 o pavilhão do Brasil foi parar num lugar remoto do sítio, na parcela mais afastada da seção estrangeira. O terreno era idílico, mas difícil – e em nenhum outro pavilhão as limitações foram exploradas com tanta elegância. O lote, com forte desnível de dez metros, proporcionou um roteiro de exposição em declínio; o foot print (presença) do pavilhão seguia literalmente – mas de maneira extraordinariamente lúdica e sensual – o contorno sinuoso da superfície construível. Tudo se juntava visualmente por um teto em forma de prato, suspendido em quatro torres angulares transparentes de aço e das quais as beiras se inclinavam para dentro, como um eco da curva do caminho, mas também para evitar os cumes das árvores presentes. No meio do teto se abriu um oculus pelo qual podia subir ou descer um balão vermelho. De acordo com o tempo, pairava livre e alegre acima do pavilhão, como os balões nas festas juninas de São João, ou fechava como uma tampa a abertura. Sua leveza e flexibilidade contrastavam com o espalhafato rígido dos abundantes chamarizes da Expo 58 e formavam um sinal adequado para um pavilhão que foi concebido como um espaço aberto e animado. Nas fotografias do interior do pavilhão se pode efetivamente notar como todos os elementos se conectavam, num espetáculo total que se experimentava já logo na entrada, num plunging view: Bernardes teve a ideia luminosa de fazer com que os visitantes entrassem no pavilhão pela parte de cima do terreno e de conduzí-los para baixo numa reviravolta contínua, contornando um jardim interior, que recebia a água do telhado numa região central – captando a chuva que entrava pelo oculus. O percurso circulante proporionava pontos de vista sempre mutantes e uma vivência dinâmica do interior. A semelhança com o pavilhão dos Estados Unidos era notável – lá também a presença do partido interior aberto com um tanque central e uma abertura no teto. Entretanto, a elegância altiva do pavilhão de Edward Stone não se comparava em nada com a vivacidade do pavilhão brasileiro, que não pretendia encantar ou impressionar, mas oferecer um ambiente descontraído para a festiva reunião de gente e coisas entre si. Numa de suas Braziliaanse brieven, cartas brasileiras, escrevia August Willemsen sobre ‘a vida aberta, sem muros, atrevida’ – o que pode ter sido o mote da participação brasileira na Expo 58. Todo o pavilhão era uma manifestação disso: a aparência alegre, o interior vigoroso, os materiais de construção informais, ‘brutalistas’, a apresentação tão lânguida

Vista da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

quanto calculada da exposição. E naturalmente também o jardim de Roberto Burle Marx: centro e final da descida, junção de geometria e espontaneidade, como o próprio pavilhão. A instalação da exposição era tão simples quanto evidente no seu propósito. Painéis e longas mesas se encontravam perpendiculares ao percurso de maneira que conduziam os visitantes em zigue-zague. O Brasil foi apresentado como uma nação moderna pronta a integrar-se na corrente dos desenvolvimentos mundiais e expressamente moldada no exemplo ocidental. Lia-se no catálogo oficial: ‘Le Brésil construit une civilisation occidentale des tropiques’ (O Brasil constrói uma civilização ocidental dos trópicos). Além do progresso na previdência da saúde, ensino, meios de transporte, turismo e indústria, se realçavam a arquitetura e o urbanismo atuais, com imagens de perspectiva deformada que faziam parecer os novos blocos high rise ainda mais altos do que eram e com panoramas da skyline das metrópoles brasileiras. O ponto culminante se situava na última curva do percurso, onde se evocavam as obras de Brasília com dramáticas fotografias em branco e preto e com uma maquete da Praça dos Três Poderes. Depois da Expo 58, Bernardes realizou em Brasília obras prestigiosas: um mastro

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Interior com o jardim de Roberto Burle Marx, perspectiva a partir da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

de bandeira transparente na Praça dos Três Poderes e um imponente centro de congressos no Eixo Monumental, perto da torre de televisão de Lúcio Costa. Mesmo tendo o pavilhão do Brasil na Expo 58 grande repercussão nas revistas profissionais internacionais, foi também criticado pela elaboração construtiva impura. Essa crítica é pertinente, mas, de fato, não é relevante: se faz injustiça a Bernardes de querer compreender o pavilhão somente a partir de uma lógica construtiva. O cariz de seu trabalho tem precisamente a ver com o caráter exaltante, e mesmo obstinado, desta repetida combinação de experimentação construtiva e de intenção formalista. Tampouco se deve a isso que o pavilhão de Bruxelas não teve o mesmo impacto como aquele de Costa e Niemeyer em Nova York. Diferentemente de 1939, as características do Brazilian style (estilo brasileiro) se tinham tornado os clichês do arsenal de formas da arquitetura internacional. Além disso, com seu ‘Burle Marx’, sua rampa e suas curvas leves e lúdicas do teto e dos muros, o pavilhão de Bernardes pode facilmente ser posto no catálogo consagrado, mas, entrementes, já contestado, da arquitetura brasileira contemporânea. Entretanto, o caráter informal e o propósito expressamente construtivo faziam uma diferença bem nítida entre Bernardes e a maior parte dos arquitetos do Brazilian style. Tanto que, em

muitas outras obras suas, Bernardes fundiu as ideias divergentes na arquitetura brasileira do pós-guerra numa síntese extremamente pessoal, uma síntese que parecia oferecer uma saída ao impasse ao qual a abordagem formalista tinha chegado naquele momento. Nesta residem o valor histórico e a atualidade duradoura do pavilhão do Brasil na Expo 58. Emiel De Kooning é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Gand e publicou sobre a Arquitetura e o Design na Bélgica do pós-guerra.

Referências Elisabetta Andreoli e Adrian Forty, eds. Brazil’s Modern Architecture. London/New York: Phaidon Press, 2004. Kykah Bernardes em Lauro Cavalcanti, eds. Sérgio Bernardes. Reinvenção da Arquitetura. Rio de Janeiro: Artviva Editora, 2010. Lauro Cavalcanti. ‘Sérgio Bernardes, un moderniste radical’. L’Architecture d’Aujourd’hui, 359 (número temático: Brésil), julho-agosto de 2005, p. 68-75. Rika Devos e Mil De Kooning, eds. Moderne architectuur op Expo 58. ‘Vooreenhumanerwereld’. Bruxelas: Mercatorfonds/Dexia Bank, 2006. Márcia Macul. ‘Sérgio Bernardes. Arquiteto+humanista+poeta+utopista’. Arquitetura & Urbanismo 82, 15, fevereiro-março 1999, p. 64-69. Paul Meurs, Mil De Kooning e Ronny De Meyer, eds. Expo 58: The Brasil Pavilion of Sérgio Bernardes. Gent: Vakgroep Architectuur & Stedenbouw, Universiteit Gent, 1999.

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Frédéric de Limburg Stirum e Paraty D o m i n i q u e Va n p é e

F

rédéric de Limburg Stirum nasceu em 23 de março de 1931 em Huldenberg, filho do Conde Thierry de Limburg Stirum e da princesa Marie-Immaculée de Croÿ. Frédéric estudou arquitetura na École Spéciale d’Architecture em Paris. Antes de seu casamento, em 5 de julho de 1969, em Fleurigny, com Monique de Castellane, filha de Louis Provence Boniface, Duque d’Alamzón de Saint Priest, Marquês de Castellane, ainda queria viver uma ‘aventura’ e foi para o Brasil. Chegou ao Brasil de navio em 26 de outubro de 1961. Depois de duas noites num hotel bem caro conseguiu um apartamento de propriedade de um conhecido. Seria seu ponto de partida durante sua estada brasileira. Conheceu o arquiteto Henrique Mindlin. Um parente diplomata em posto no Rio de Janeiro, Serge de Robiano, tinha um amigo proprietário de um avião, com o qual sobrevoaram Paraty, sem que os olhos do europeu detectassem algo de especial (Robiano). Somente mais tarde, numa excursão de carro, percebeu a extraordinária beleza do sítio ao pé da serra. Como qualquer turista que visita o Brasil “ficou surpreso de descobrir cidades que datavam da época colonial ou do Império e que conservaram até nossos dias seu aspecto intacto. Como tais, apresentam um interesse particular para a história em geral, mas sobretudo para o estudo da arquitetura e do urbanismo, e naturalmente do modo de vida dos portugueses no Brasil desde sua chegada no século XVI” (Limburg Stirum, 1963). Como arquiteto, no seu modo de pensar sobre a conservação dos vestígios do passado, se inspirou na leitura de um livro dos anos 1930 sobre Marrocos, onde a arquitetura de Fez, Meknès e Marrakech foi preservada. O que os franceses e, particularmente, o Marechal Lyautey – “maior criador de cidades de todos os tempos” – lá fizeram para separar os bairros históricos dos europeus por motivos políticos, econômicos, sanitários e estéticos e, no entanto, interligá-los com grandes artérias virou uma referência no seu Mémoire pour la défense et conservation des monuments et sites au Brésil. Turistas à procura de paisagens e cidades diferentes não querem ver estas desfiguradas por construções modernas sem gosto e “uma falsa noção de progresso arrisca sacrificar a cidade antiga e pobre, tirando ao mesmo tempo sua única renda do interesse turístico” (Limburg Stirum, 1963). Precisamente nesse período, em oito de julho de 1963, o Globo anunciava que vai “ser iniciada a Rodovia Angra dos Reis–Paraty”. Planos de 1963 para desenclavar Paraty pela estrada – um perigo? (Limburg Stirum, 1963, p. 15.) Baseado nestas primeiras notas pessoais o conde escreveu no final de 1963 seu primeiro relatório Plano de urbanização de Paraty, publicado em 1964 com um suplemento Proposta visando a um projeto de lei para defesa dos monumentos e sítios do Brasil. No prefácio agradece ao governo brasileiro as facilidades concedidas para conhecer Paraty (Limburg Stirum, 1964).

Frédéric de Limburg Stirum na praia de Paraty, em 1967.

Em janeiro de 1964 ele teve seu primeiro contato com Rodrigo Mello Franco de Andrade, interrompido algum tempo por uma viagem à Europa. Em novembro de 1964 entregou o relatório ao governador Paulo Torres. Entrementes se discutiu muito como realizar o plano dentro da legislação e da autonomia municipal. Em 29 de janeiro de 1965, Rodrigo M. F. de Andrade apresentou um projeto de decreto proclamando o município de Paraty como Monumento Nacional. Precisava ser assinado pelo ministro da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, mas este se recusou totalmente. Mais uma viagem prolongou a demora, mas em julho de 1965 as coisas se precipitaram, quando Frédéric foi convidado por uma pessoa muito conhecida no mundo das corridas para um evento no Rio de Janeiro com todas as misses de beleza do mundo. Percebeu que o presidente Castello Branco estava sentado por perto da miss Bélgica e entregou a ela um papelzinho escrito com as palavras ‘Presidente, salve Paraty’. Esta o passou ao presidente, que viu e entendeu tudo. Logo seguiu uma nota deste presidente para o ministro da Educação e Cultura ‘Peço examinar com urgência este assunto, Castello’. Em 16 de agosto veio a carta da Delegacia do Estado do Rio de Janeiro com o pedido para assinar o decreto transformando Paraty em monumento nacional. Em carta de 14 de setembro de 1965, Renato Soeiro, diretor substituto do Iphan (Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), tratou da proteção da cidade. Uma semana mais tarde, em 21 de setembro de 1965, Frédéric de Limburg Stirum elaborou um segundo relatório para convencer o ministro a assinar o decreto: Plano diretor em proveito da proteção e do desenvolvimento urbanístico de Paraty. Na capa levou uma reprodução da fotografia de prospecção, que sempre seria a base de seu trabalho em torno de Paraty.

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Exemplares desse trabalho foram distribuídos pela DPhan (Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) às diferentes autoridades, inclusive ao prefeito de Paraty, Lulu Vieira Ramos, e ao governador do Estado do Rio de Janeiro, Paulo Torres. Numa sessão ordinária, em 30 de setembro de 1965, a Câmara Municipal de Paraty discutiu o plano, que na votação “foi aprovado, sendo que o vereador Antonio Porto votou contra” e o seu presidente, Derly, pediu ao presidente para assinar o decreto. Ainda houve em novembro de 1965 alguma resistência da parte do ministro. Por seu lado, Rodrigo M. F. de Andrade apresentou uma nota ao ministro do Planejamento, Dos obstáculos para o planejamento e de uma primeira solução (Constatações que surgiram na elaboração do plano diretor em proveito de Paraty). Em 14 de janeiro de 1966 a revista Visão publicou um artigo: Um conde quer salvar Paraty, para incitar o ministro a dar sua assinatura. Com uma mudança de governo, Pedro Aleixo se tornou o novo ministro da Educação. O texto do decreto foi submetido ao presidente e em 24 de março de 1966 saiu sob o nº 58.077, convertendo Paraty em Monumento Nacional e assinado por Castello Branco, Pedro Aleixo, Juarez Távora, Ney Braga, Paulo Egydio Martins e Roberto Campos. O texto se encontra publicado na revista Arquitetura, nº 46 de abril de 1966, junto com uma reportagem do arquiteto M. Nogueira Batista (IAB-GB) e com fotos de Frédéric de Limburg Stirum. Quando Michel Parent realizou para a UNESCO algumas missões no Brasil nos anos de 1966-1967 a fim de valorizar e proteger o patrimônio cultural no contexto do desenvolvimento turístico e econômico, obteve, junto com Rodrigo M. F. de Andrade, que o Conde Limburg Stirum pudesse trabalhar para a UNESCO em torno de Paraty. Redigiu então um relatório, publicado em 1968 (Parent, 1967, e Limburg Stirum, 1968). Em 1969 se elaboraram, dentro do programa do primeiro ano, as Diretrizes básicas na urbanização de Paraty. Com o falecimento de Rodrigo M. F. de Andrade a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) passou para Renato Sairo.

A CNPI (Companhia Nacional de Planejamento Integrado) envolvia Limburg Stirum pelo seu engajamento anterior no plano diretor da zona de expansão da cidade de Paraty, mas entregou a direção efetiva a Lúcio Costa (Plano diretor, 1972). Colaborou com eles de setembro de 1971 até janeiro de 1972, quando regressou à Bélgica com o sentimento de ser cada vez mais deixado de lado. Em 1973 Paraty ainda se mostrou na Brasil Export 1973, em Bruxelas. Suas visitas em 1974 e 1976 ao Brasil e, especificamente, ao Rio de Janeiro e a Paraty não o tranquilizaram quanto à preservação futura da cidade. Será que o Brasil ousaria esquecer o papel deste estrangeiro no salvamento de Paraty? Dominique Vanpée publicou vários trabalhos sobre biblioteca e documentação, informação ligeira como rumores e urban legends, história local de Huldenberg, alimentação, patrimônio industrial e científico, inteligência competitiva, management e estratégia dos conhecimentos.

Referências Este verbete se baseia principalmente numa entrevista concedida pelo Conde Frédéric de Limburg Stirum ao autor Dominique Vanpée em 11 de fevereiro de 2012 e presenciada por Eddy Stols. Boa parte de sua documentação sobre Paraty foi doada pelo conde aos arquivos do Heemkundige Kring van Huldenberg (Círculo de história local de Huldenberg). F. de Limburg Stirum. Mémoire pour la défense et conservation des monuments et sites au Brésil. Rio de Janeiro, edição pessoal, 1963. Frédéric de Limburg Stirum. Plano de urbanização de Paraty. Rio de Janeiro, edição pessoal, 1964, 57+vp. Frédéric de Limburg Stirum. Plan national de mise en valeur de Paraty dans le cadre d’un développement touristique. Paris, Unesco, 1968, 774/BMS.RD/SHC/CLT/DEV. Frédéric de Limburg Stirum. Paraty, son port et la fôret atlantique. Rio ‘92 Forum global. Bruxelas, edição pessoal, 1 juin 1992, 9 p. Serge de Robiano. Le tour du monde insolite d’un diplomate belge. Bruxelas, Éditions Racine, 2009, 288 p. Michel Parent. Protection et mise en valeur du patrimoine culturel brésilien dans le cadre de développement touristique et économique: Brésil (mission) 24 novembre 1966 - 8 janvier 1967 et 17 avril - 1er juin 1967. Paris, UNESCO, 1968, 492/BMS.RD /CLT. Plano diretor da zona de expansão da cidade de Paraty. Separata do plano de desenvolvimento integrado e proteção do bairro histórico de Parati, Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Companhia Nacional de Planejamento Integrado-CNPI, 1972.

Paraty Cassio Ramiro Mohallem Cotrim

P

Prosperidade econômica no século XIX

araty é uma pequena cidade a beira-mar, situada na costa do Brasil a 23°13’12” de Latitude Sul e a 44°43’ de Longitude Oeste de Greenwich. Por detrás da cidade, após uma área de planície de aproximadamente cinco quilômetros, ergue-se a Serra do Mar: uma cadeia de montanhas em sentido sudoeste-nordeste, acompanhada pela faixa litorânea, com altitudes variáveis de 700 m a 1.000 metros. Acompanhando a Serra do Mar no sentido sudoeste-nordeste, separado do alto da Serra por um leve declive no sentido noroeste, corre o Rio Paraíba do Sul, passando por uma extensa região denominada Vale do Paraíba.

No período entre 1820 e 1870, nas terras vermelhas e férteis das pequenas cidades ao longo do Vale do Paraíba, floresceu a cultura do café destinada à exportação, trazendo riqueza para os cafeicultores e para o Império do Brasil, independente de Portugal desde 1822. Por questões de custo dos transportes, o porto da Vila de Paraty era usado para embarque de café com destino ao Rio de Janeiro (de onde era exportado para a Europa). Em sentido contrário vi-

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parte 10 – arquitetura

Patrimônio arquitetônico e paisagístico de Paraty.

nham por mar, do Rio de Janeiro a Paraty, e dali subiam a serra carregados por tropas de mulas até o Vale do Paraíba, todos os produtos necessários aos fazendeiros de café: desde ferragens e ferramentas para a lavoura, até produtos da Europa, como cristais da Bohemia, porcelanas de Sèvres, bules e talheres de prata, móveis de jacarandá, tecidos de seda e vinhos do Porto. Em Paraty desembarcavam-se também grandes quantidades de escravos africanos com destino à lavoura do café. Os traficantes desses escravos residiam nos arredores da Vila e abasteciam seus navios com mercadorias compradas dos comerciantes locais. A famosa aguardente de cana de açúcar produzida em Paraty servia como “moeda de troca” por escravos na costa da África.

Ainda nesse período de prosperidade: trechos de ruas ganharam novo alinhamento, a vila recebeu calçamento construído com grandes pedras arredondadas e todas as casas remanescentes do século XVIII foram reformadas. O padrão construtivo de altura das casas e de dimensões das portas foi estabelecido em 1799. Uma lei de 1829 confirmou esse padrão. Desse modo, a vila histórica dos nossos dias foi construída no século XIX com um padrão arquitetônico português do século XVIII. O “palmo” português equivale a 22 cm. A pedra que forma o degrau de entrada da casa denomina-se “soleira”. As portas deveriam ter, de espaço livre, cinco palmos de largura por onze palmos e meio de altura acima da soleira. As janelas deveriam ter, também de espaço livre, seis palmos e meio de altura por cinco palmos de largura.

Urbanismo no século XIX

Decadência econômica

No período de prosperidade comercial, entre 1820 e 1870, a pequena Vila (cidade após 1844) expandiu-se com a construção de novas casas, muitas das quais sobrados. Nesses sobrados, o piso térreo servia para a loja e para o armazém de mercadorias, enquanto que a parte superior servia de moradia para a família do comerciante.

Entre 1831 e 1850, o tráfico de escravos já era proibido pelos tratados internacionais entre o Brasil e a Grã-Bretanha, mas era tolerado (e mesmo incentivado) por comerciantes, por fazendeiros e por autoridades do Império do Brasil.

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Os mesmos comerciantes, agricultores e dirigentes do Império perceberam, em 1850, ter chegado o momento político e (especialmente) econômico para o fim do tráfico de escravos. Naquele mesmo ano de 1850, uma lei proibiu definitivamente o tráfico e o Império passou a perseguir, com muito rigor, os traficantes que ousassem desembarcar escravos no Brasil. Em 1877, as cidades do Vale do Paraíba foram ligadas ao porto da cidade do Rio de Janeiro por uma estrada de ferro. Entre 1870 e 1890, as lavouras de café do Vale já estavam decadentes. Concorriam com elas os cafés de outras regiões: plantados com melhores técnicas agrícolas e com a contratação de trabalhadores livres e assalariados. Com o fim do tráfico de escravos, Paraty sofreu o primeiro choque econômico de decadência. O comércio local deixou de vender produtos para os traficantes e estes mudaram suas residências para a cidade do Rio de Janeiro, onde podiam reinvestir seu dinheiro (anteriormente utilizado na empresa do tráfico) em outros negócios. A partir de 1877, a ferrovia passou a levar o café do Vale do Paraíba diretamente ao Rio de Janeiro. O porto de Paraty deixou de ter utilidade para os cafeicultores e essa situação trouxe o “golpe fatal” para a economia da cidade. Entre 1880 e 1975, Paraty esteve esquecida e abandonada. Manteve-se preservada por sua extrema pobreza.

Patrimônio arquitetônico e paisagístico de Paraty.

Ciclo do turismo Em 1975, a abertura de uma estrada de rodagem pelo litoral (Rodovia Rio-Santos) ligou Paraty ao mundo “civilizado”, facilitando os interesses dos especuladores imobiliários e prejudicando a pacata vida do povo pobre de Paraty. Grandes atrocidades foram cometidas por esses especuladores imobiliários. A rodovia foi aberta em função de necessidades macroeconômicas governamentais (terminal petrolífero, usina de energia atômica, estaleiro de construção naval, porto de descarga de minério de ferro e de carvão para um parque siderúrgico). Em face desses interesses, as autoridades governamentais desprezaram os projetos de infraestrutura para as pequenas cidades à beira-mar (que, por suas belíssimas praias, apresentavam enorme vocação turística). Ciente dos futuros estragos que a Rodovia Rio-Santos poderia causar quando ali chegasse, ainda em 1965 o jovem arquiteto (Conde) Frédéric de Limburg Stirum fez um excelente plano urbanístico para a preservação de Paraty. O plano não se limitava ao centro histórico. Preocupava-se, também, com a proteção paisagística, com as matas naturais, com a preservação dos rios desde as suas nascentes (no alto da Serra) e com a passagem da estrada em local afastado da vila histórica. A área paisagisticamente protegida abrangia uma área de cinco quilômetros de raio em torno do centro histórico e pretendia a separação física entre a antiga vila e os novos bairros. Quem chegasse a Paraty pelo mar só deveria avistar construções (tanto antigas quanto novas) com, no máximo, a altura de um sobrado. Quem chegasse a Paraty por terra deveria ver o centro

histórico separado dos novos bairros por uma enorme esplanada de grama verde: cortada por duas vias de acesso ladeadas por aleias de palmeiras imperiais. Por detrás da vila histórica, os visitantes deveriam ver apenas as montanhas protegidas por mata natural. Problemas políticos, possivelmente associados a interesses econômicos escusos, impediram a realização das obras propostas. Com grande perda para Paraty, o plano do Conde Frédéric foi abandonado pelo governo do Brasil. Esse Plano ainda serve como referência de proteção paisagística ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas do projeto original, a única ideia realmente aproveitada foi a enorme curva que manteve a rodovia afastada do centro histórico. A vila histórica de Paraty permanece relativamente bem preservada, atraindo turismo (uma das principais fontes de renda dos paratienses), mas urbanisticamente sufocada pelos novos bairros que compõem a cidade. Permanece, até os dias atuais, a constante ameaça às matas naturais. Permanecem, igualmente, os problemas de infraestrutura (de abastecimento de água, de esgotos e de coleta de lixo) que poderão prejudicar, no futuro, a preservação e o turismo. Mesmo em face de tantos problemas, é admirável o otimismo do Conde Frédéric de Limburg Stirum e sua constante luta – de quase meio século – pela preservação de Paraty. Cássio Ramiro Mohallem Cotrim é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Analista Tributário da Receita Federal e autor do livro Villa de Paraty.

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Paraty e o plano de Limburg Stirum Fa b i o G u i m a r ã e s R o l i m

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visão da Serra do Mar coberta pela densa e luxuriante vegetação da Mata Atlântica emoldurando o branco casario ritmado de portas e janelas refletidas no espelho d’água da baía é recorrentemente evocada pelo arquiteto Frèderic de Limburg Stirum como a imagem marcante de Paraty, desde sua primeira vinda à cidade, em 1962. Talvez a força daquela imagem integral tenha sido determinante para sua compreensão acerca de Paraty, conduzindo-o a um plano urbanístico e de preservação que bem pode ser chamado de pioneiro para o Brasil daquela década. Afinal, seria algo absolutamente excepcional no cenário urbanístico brasileiro dos anos 1960 – marcado por um desenvolvimentismo que hoje se reconhece como desenfreado e mesmo danoso sob muitos aspectos – a concepção de um plano de ordenamento e expansão urbanos que tivesse como diretrizes primordiais a preservação do patrimônio histórico-arquitetônico, a conservação dos recursos hídricos e florestais e a identidade estética da cidade. No entanto, são estas as premissas do plano de Limburg Stirum, que podem ser resumidas em: reflorestamento das encostas

da Serra do Mar, especialmente nas bacias hidrográficas dos dois maiores rios que correm pela planície da cidade (Perequê-Açu e Mateus Nunes); a criação de um sistema de canais de drenagem e lagoas de decantação para o controle de enchentes e de afluxo de sedimentos; a dragagem da baía defronte ao centro histórico; a criação de um cinturão verde atuando como um gradiente entre os setores antigo e novo de Paraty; a concentração da expansão urbana mais adensada e verticalizada na várzea da Jabaquara, separada do centro histórico pelo morro do Forte; a consolidação de uma atividade portuária condizente com a pesca e o turismo. Pois Stirum é taxativo ao afirmar que o problema de Paraty é o desmatamento originador do gradativo assoreamento da baía e da crescente interiorização da cidade, levando-a a perder o contato com a água – crucial para sua identidade de porto urbano. Para este entendimento não devem ter passado despercebidas por Stirum as peculiaridades da região para além da dimensão arquitetônica do centro antigo. A ocupação de Paraty se deu ao longo de planície de sedimentação situada entre a Serra do Mar e a linha de costa, numa faixa ora estreita em promontórios que mergulham abruptos em costões

Ordenamento urbano com sistema de canais e lagoas previsto pelo plano de Limburg Stirum.

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Foto aérea de 1966 de Paraty mostrando os rios ainda meandrados.

rochosos, ora alargada em várzeas dos diversos rios que vertem das montanhas e afluem à Baía de Ilha Grande, intercalando-se por restingas e manguezais. Esse território, assim como o de diversos outros núcleos urbanos situados nessa característica porção do litoral brasileiro entre Santos e a Baía de Guanabara, testemunha exemplarmente os complexos processos de recuos e avanços marinhos durante os últimos 25.000 anos em que o mar esteve alternadamente a cerca de cem metros abaixo e quatro metros acima da atual linha d’água. Assim, parece ter sido fundamental para o arquiteto belga a intuição de um terreno que já fora alternadamente terra, água e terra novamente, bem como da instabilidade geológica da Serra do Mar e da dinâmica dos rios, que serpenteiam lentamente pela planície em móveis meandros, dada a baixa declividade do terreno. As premissas de seu plano evidenciam a compreensão e o respeito a estas condicionantes físicas. Tal postura face ao território é fundamental para um efetivo controle de suas dinâmicas próprias e também da ação humana. Casos contrários são os que hoje infelizmente abundam, conforme atestam as notícias de deslizamentos e enchentes que em proporções cada vez maiores abalam as cidades brasileiras. O plano não foi implementado, apesar dos esforços de Rodrigo Melo Franco de Andrade (dirigente do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional – Iphan até 1968) e a despeito da incorporação de seus principais aspectos pelo “Plano de Desenvolvimento Integrado e Proteção do Bairro Histórico do Município de Paraty”, produzido sob os auspícios do Iphan pela Companhia Nacional de Planejamento Integrado – CNPI entre 1971 e 1972 e convertido em lei municipal em 1973. Hoje, o plano de Stirum é referência para a atuação do Iphan em Paraty por meio de seu escritório da cidade, notadamente quanto à visão integral requerida para a gestão da preservação na área municipal, inteiramente tombada em 1974. Como uma decisiva vitória do plano e da cidade, na década de 1970 a rodovia BR-101 (Rio-Santos) foi executada distante do centro. Evitou-se, assim, uma proximidade que seria fatal ao núcleo urbano original e garantiu a permanência desta área a nos lembrar hoje das lutas pela preservação e pelo futuro de Paraty. Fabio Guimarães Rolim, Arquiteto e Urbanista pela Escola de Engenharia de São Carlos (USP), com especialização em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 2006, atuou em Mato Grosso do Sul e Paraty e é atualmente Coordenador-Geral do Patrimônio Natural no Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização.

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B-architecten Dirk Engelen

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arquitetura, o design e a arte brasileiros foram, através dos anos, uma fonte de inspiração para os B-architecten. Cenografias para exposições no Palácio de Belas Artes em Bruxelas foram projetadas tendo em mente a obra da arquiteta Lina Bo Bardi. Seu conhecimento fatual e conceitual em matéria de desenho de exposições teve uma influência revolucionária. Assim os B-architecten realizaram em Bruxelas, em 2001, a exposição Rosas XX, em torno do instituto de dança de Anne Teresa De Keersmaeker, e em 2003 Rimbaud-Une saison en enfer. Nos projetos de móveis dos B-architecten surgem também referências ao uso intemporal e plástico da madeira por Sergio Rodrigues como também à reciclagem particular de materiais pelos irmãos Campana. A arquitetura da escola de São Paulo inspira os B-architecten com seu concreto brutalista e seus conceitos cristalinos. Além destes, se pensa ainda em Paulo Mendes da Rocha e na obra de Isay Weinfeld e de muitos outros de São Paulo. Suas características marcam os projetos dos B-architecten, como no pavilhão em concreto, junto a uma mansão dos anos 1930, em Antuérpia, e também na reconversão em prédio de escritórios da casa particular de um dos parceiros dos B-architecten, Dirk Engelen. O uso inequívoco e plástico do concreto para realizar uma sinergia entre objeto, luz e função faz destes projetos exemplos de como os B-architecten entram particularmente em diálogo com o Brasil e a história de sua arquitetura. Links: www.b-architecten.be e www.b-bis.be

Projeto do escritório belga de arquitetura B-architecten, que se inspira em referências brasileiras.

O Projeto Bamboostic Sven Mouton

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ONG Bamboostic é uma organização belga que trabalha desde 2004 em Ubatuba, litoral de São Paulo, no bairro de Camburi. A ONG belga consiste principalmente de arquitetos e engenheiros especializados na construção com bambu. Eles trabalham numa relação estreita com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), sob a supervisão do professor titular Khosrow Ghavami, presidente da NOCMAT (Associação de Materiais e Tecnologias Não Convencionais) e também professor do Departemento de Engenharia Civil da PUC-RJ. Os belgas da Bamboostic trabalharam no projeto de campo de Camburi, idealizado pelo professor Ghavami e realizado através do Departamento de Engenharia Civil. Este projeto de desenvolvimento é concebido como um processo integral de longo prazo no qual dois fatores, o bambu e o

Detalhe das dimensões dos bambus utilizados nas construções, Camburi.

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Uma construção de bambu realizada em Camburi, 2004. O aprendizado da técnica de construção em bambu do Projeto Bamboostic pelos moradores do bairro de Camburi.

A construção deve ter um design atraente e de valor arquitetônico por duas razões: expandir a atividade econômica (turismo) e estimular as pessoas a usar uma madeira barata como material de construção eficiente e visualmente atraente. O bambu é um material local disponível, barato, facilmente renovável e é uma fonte multifuncional, caracterizado por sua grande força e leveza. O bambu é uma alternativa ecológica de construção em madeira. Esta planta cresce rápido. Em três anos tem-se o material adequado para construção, ao contrário dos 20 ou até 30 anos para a madeira. Diferentemente das árvores em geral, a colheita não mata a planta do bambu, então não há problema de erosão. O bambu oferece uma oportunidade para que se possa “plantar” sua própria casa. Numa área do tamanho da construção pode crescer bambu suficiente para erguer essa construção em cinco anos. No sexto ano pode-se realizar duas construções da mesma plantação; no sétimo ano, três construções, e assim por diante.

turismo, têm papel importante. O objetivo principal é a redução da pobreza através da construção de casas de bambu a baixo custo e a criação de uma renda regular através do turismo. A parte do projeto com o bambu é a realização de construções que serão usadas como abrigo e outras atividades e para o aprendizado de várias técnicas. Uma pequena equipe de trabalhadores locais desempregados aprenderá as técnicas necessárias para construir com bambu, o que servirá como base conceitual para levantarem outras construções, que darão teto às pessoas carentes e acomodarão turistas. O objetivo da primeira construção é ter uma base de operacões, um espaço de ensino e vários quartos para turistas. Desse modo, o projeto pode ser dirigido por uma base autônoma, formada pelos próprios moradores locais, assegurando, assim, que nenhuma organização governamental, ou de outra natureza, será necessária para a continuidade do projeto.

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parte 1 1

Esportes

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Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida Internacional da São Silvestre Roland Renson

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aston Roelants (Opvelp, 5 de fevereiro de 1937) foi o primeiro atleta a ganhar quatro vezes a corrida de São Silvestre, realizada em São Paulo: em 1964, 1965, 1967 e 1968. Podia ter ganhado mais vezes se, em 1966, não tivesse torcido o pé no trilho do bonde pelo que, cambaleando em vez de correndo, foi ultrapassado pelo colombiano Álvaro Mejía Florez a uns 30 metros do final. A Corrida de São Silvestre acontece anualmente desde 1925, no dia 31 de dezembro, dia patronal de São Silvestre. Esta corrida de rua, no clima quente e abafado de São Paulo, era originalmente um evento esportivo puramente brasileiro, mas foi aberta em 1945 para atletas de toda a América do Sul e se tornou, desde 1947, uma competição internacional. Em 1975, o Ano Internacional da Mulher, elas concorreram pela primeira vez. Desde 1988 se organizam competições separadas para homens e mulheres, mas no mesmo percurso de ruas. Numa entrevista com Gaston Roelants (Meldert, em 19 de dezembro de 2012) esse ‘barão’, enobrecido pelo rei da Bélgica, olha com orgulho para trás sobre suas fantásticas vitórias em São Paulo. Seu escritório está, aliás, abarrotado de troféus que conquistou e que, naquela época, podia-se levar sem pagar excesso de bagagem. O primeiro belga a ganhar esta corrida de rua foi Lucien Theys, em 1950, o “carteiro ruivo” de Overijse. O interesse de Gaston Roelants pela São Silvestre foi despertado pela vitória de Henri ‘Rik’ Clerckx, em 1963: “... se Clerckx pode ganhar esta competição, então eu com certeza também!” Na linha de partida, em 1964, já era um favorito. Roelants acabara de ganhar, em 17 de outubro, em Tóquio, a medalha de ouro olímpica no steeple chase e estava em plena forma. Quando, no quarto de hotel, perto da sede do jornal Gazeta Esportiva, procurou relaxar antes da partida, escutou na rua uma banda tocar continuamente a ‘Brabançonne’, o hino nacional belga. Uma empregada lhe explicou o porquê: “ ... eles esperam que um grande campeão belga vai ganhar este ano a corrida e por isso ensaiam, porque o disco da vitrola quebrou.” O ensaio não parecia desnecessário!

O pódio da corida de São Silvestre de 1968; no topo está o vencedor Gaston Roelants, ao lado de Carlos Joel Nelli, diretor de A Gazeta Esportiva, promotora do evento.

Em suas participações seguintes, em 1965, 1966, 1967 e 1968, sempre foi recebido como um herói popular. Depois da corrida de rua seguiam ainda um meeting de pista em São Paulo e, às vezes, uma turnê pelo Uruguai ou uma participação numa corrida de praia em Mar del Plata, na Argentina, onde era recebido e laurea­ do por uma grande delegação flamenga. Gaston se torna lírico quando pensa nos seus êxitos brasileiros. Em 1959 ficou muito apavorado quando, em sua primeira participação – que terminou em quinta posição –, foi puxado por seus, na época, ainda longos cabelos, pelos admiradores locais em busca de souvenirs. Se lembra das chuvas de confetes, que caíam dos prédios, as ‘duchas’ contínuas de cerveja e de vinho que os festeiros do Ano-Novo lhe jogavam, o ronco dos motores dos carros dos bombeiros e das motocicletas da polícia, que dispersavam em formação “V” a multidão fora de si. Enfim, uma festa atlética com teor de samba!

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Roland Renson estudou Educação Física (1965), Fisioterapia (1969) e Antropologia Cultural e Social (1973) na KU Leuven (Bélgica), onde obteve seu Ph.D em Educação Física em 1973. Esteve ativamente envolvido no “Longitudinal Leuven Boys Growth Study of Belgian Boys” (1969-1974). Em 1975 organizou o HISPA, Seminário de História do Esporte, e tornou-se presidente do HISPA de 1985 a 1989. Foi

o primeiro presidente do ISHPES (1989-2003) depois de o HISPA ter sido anexado ao ICOSH. Elaborou cursos de História e Sociologia da Cultura do Movimento. Fundou e preside o Museu de Esportes ‘Sportiimoinium’, Hofstade-Zemst (Bélgica). É professor emérito da Universidade Católica de Leuven (KUL) desde 2008, mas continua ativo em pesquisas sobre o conceito de “Ludodiversidade”.

A primeira competição de atletas brasileiros nos Jogos Olímpicos de 1920 em Antuérpia Roland Renson

O

fundador dos Jogos Olímpicos, o Barão Pierre de Coubertin, era estratégica e culturalmente interessado na América do Sul (Da Costa, 2002). Já em 1911 propôs “uma geografia esportiva que poderia às vezes diferenciar-se da geografia política”. Num folheto de 1918, “Le projet de Olympie moderne et l’avenir de Lausanne”, incluiu o continente sul-americano como parte de seus planos de expansão. Por outro lado, foi fundado, em 1914, o Comitê Nacional Brasileiro Olímpico junto com a Federação Esportiva Brasileira, rebatizada mais tarde de Confederação Brasileira de Desportos (De Franceschi Neto-Wacker, 1999 e 2009). Levando em conta as boas relações do Brasil com a Bélgica, ainda mais estreitadas pelas visitas recíprocas do presidente Epitácio Pessoa e do Rei Alberto I, nada impedia a participação do Brasil pela primeira vez nos Jogos Olímpicos da Sétima Olimpíada de Antuérpia, em 1920. Um time de 16 atletas foi enviado para competir em tiro (5), natação (2), polo aquático (7), salto (1) e remo (5). Quatro brasileiros competiram em dois esportes. Entretanto, De Franceschi Neto-Wacker e Wacker falam de 21 atletas, que foram transportados no cruzeiro Curvello. Adolpho Wellisch, que vivia em Paris, se juntou ao grupo na Europa. O secretário-geral da CBS, Roberto Trompowskyr, dirigia a delegação e vinha acompanhado por Ferreira Santos, presidente da Associação Paulista de Esportes Atléticos, como secretário. Raul do Rio Branco – embaixador na Suíça e filho do Barão de Rio Branco e de sua esposa belga – já havia representado o Brasil no Comitê Olímpico Internacional desde 1913 e continuaria até 1938. O time brasileiro ficou hospedado – junto com a equipe finlandesa – numa das escolas municipais de Antuérpia, situada na Haantjeslei. O atirador Afrânio Antônio da Costa levou a bandeira na cerimônia de abertura em 14 de agosto.

cinicamente que “mesmo em Verdun houve menos tiros”. Esse comentário deve ter contrariado Coubertin que, depois dos Jogos de Antuérpia, reduziu drasticamente o número de eventos de tiro dentro do espaço olímpico (Renson, 1996). Afrânio da Costa ganhou a medalha de prata no evento de pistola livre individual em 2 de agosto, dando 60 tiros no alvo a 50 metros. Terminou depois de Karl Frederick, mas na frente de Alfred Lane, ambos dos Estados Unidos. Teria emprestado o revólver e a munição da equipe norte-americana (Kluge). O time brasileiro de tiro livre era composto por Guilherme Paraense, Afrânio Antônio da Costa, Sebastião Wolf, Dario Barbosa e Fernando Soledade. O relatório oficial sueco mencionava, entretanto, um certo Mario Maurity e não Wolf (Bergvall, 47). José Gonçalves, do Brasil, listou Mario Machado Maurity e Dermevel Peixoto como competidores no tiro, respectivamente militar e livre (Mallon, 233). Estes ganharam a medalha de bronze atrás dos times norte-americano e sueco, também em 2 de agosto. Guilherme Paraense ganhou ouro na categoria tiro rápido individual em 3 de agosto, com 30 tiros a 30 m, em cinco sessões de seis tiros cada. Os cinco brasileiros que terminaram em quarto lugar no evento de fuzil em equipe, em 3 de agosto, eram os mesmos atiradores de pistola livre.

Nadando contra o frio José Gonçalves lista Adhemar Ferreira Serpa, João Jório e Abrahão Soliture como competidores de natação, mas Mallon e Bijkerk (2003) supõem que podem ter entrado mas sem competir. Angelo Gammaro não se qualificou para as semifinais depois de ter terminado em terceiro na eliminatória dois da competição de 100 m em estilo livre, ocorrida em 22 de agosto no Estádio Náutico. Orlando Amendola terminou em sexto na eliminatória quatro no mesmo dia. Os dois nadadores jogaram também no time do polo aquático, junto com os cinco colegas do time: Agostinho “Mangangá” Sampaio de Sá, Victorio “Chocolate” Fernandes, Alcides de Barros Paiva, Abrahão Soliture e João Jório. O Brasil bateu a França de 5 a 1 em 23 de agosto. O jogo terminou em 1 a 1, mas o Brasil

Os atiradores brasileiros nos pampas belgas Os atiradores brasileiros se destacaram nos eventos localizados na base do Exército de Beverloo, a uns 75 quilômetros de Antuérpia, numa área descampada e arenosa da campina. Houve uma grande variedade de tiro. O jornal francês Echo de Paris registrou

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Primeira equipe brasileira em Jogos Olímpicos, os da sétima Olimpíada realizada em Antuérpia.

ganhou no tempo extra. Perderam a quarta de final da Suécia em 24 de agosto. Algumas fontes brasileiras citam nove jogadores, incluindo Carlos Lopes e Edgard Ribeiro, mas não foram registrados no jornal esportivo belga leVélo-Sport (Mallone Bijkerk, 483). O município de Antuérpia tinha comissionado a construção de uma piscina nova no final da Avenida Van Rijswijck. A muralha da cidade que se encontrava lá foi parcialmente escavada e utilizada como uma “praia natural”. A Sport-Revue (8.8.1920) a qualificou sem mais como “realmente a mais bela piscina ao ar livre do mundo, que custou à cidade de Antuérpia nada menos que 1.100.000 francos”. Duas semanas mais tarde, o mesmo semanário falou de mais ou menos meio milhão. Pelo menos Coubertin considerou o Estádio Náutico como um modelo. Mas essa opinião não era compartilhada pelos nadadores masculinos e femininos americanos. A saltadora americana Aileen Riggin, de apenas 14 anos na época, escreveu mais tarde em suas memórias que nunca tinha visto coisa semelhante. A piscina era nada mais que um fosso repleto de água fria e opaca. Os saltadores, tanto masculinos como femininos, se muniram não apenas de toalhas, mas de todo tipo de roupa quente e procuraram esquentar-se entre os saltos com massagens recíprocas. Mais ainda, lembraram que alguns dos jogadores de polo tiveram que ser resgatados porque desmaiaram de frio (Carlson e Fogarty, 19-20). Adolfo Wellish, o único competidor brasileiro no salto, chegou até as finais em salto de plataforma e salto ornamental, nos quais

terminou respectivamente em oitavo lugar entre nove competidores e em sétimo ou último. Avançou para a final de salto ornamental, em 25 de agosto, sem competir primeiro nas pré-eliminatórias (Mallone Bijkerk, 141).

Reme, reme, reme seu barco... Os cinco remadores brasileiros no casco de quatro remos e um timoneiro eram Guilherme Lorena, João Jório, Alcides Vieira, Abrahão Soliture e Ernesto Flores Filho. Jório e Soliture também participaram do polo aquático. Terminaram em segundo na quarta eliminatória das semifinais, no Canal de Willebroek, perto de Bruxelas. Em 28 de agosto perderam da tripulação americana, mas terminaram antes dos checoslovacos. O canal era um tanto estreito e por isso as regatas se remaram com dois ou, no máximo, três barcos. O Canal de Willebroek, entre os lugarejos de Trois Fontaines e Marly, era longe de ser idílico. Foi descrito por Coubertin como “a pior paisagem possível... tão horrorosa que todos os esforços para esconder sua feiura foram abandonados” (Coubertin, s. d., 52).

Barulho e alegria em Antuérpia Infelizmente, sabemos pouco como a equipe olímpica brasileira viveu sua iniciação olímpica e sua estada numa cidade portuária como Antuérpia. Sabemos, sim, de muitos outros participantes,

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que não levaram muito a sério o festival olímpico e procuraram mais divertir-se. Como a guerra pertencia ao passado, Coubertin intitulou seu discurso na 18ª Sessão do COI (Comitê Olímpico Internaccional), na sala da prefeitura de Antuérpia, em 17 de agosto, como “O esporte é rei” (Renson, 1995, 96). Junto com a banda do Exército americano, a Idade do Jazz alcançou a Bélgica no final da guerra. Essa música sincopada tinha feito sua entrada com o baterista-cantor negro americano Louis Michell e seus Jazz Kings. O jazz era a expressão da nova era dos roaring twenties, o símbolo de que se podia improvisar livremente mantendo a harmonia com o grupo. Em 27 de agosto, Roberto Trompowsky Júnior ofereceu um banquete em honra a Pierre de Coubertin e Edward S. Brown, do YMCA no qual o COI prometeu apoio oficial aos Jogos Regionais da América do Sul (De Franceschi Neto-Wacker e Wacker). Globalmente, Pierre de Coubertin deixou uma imagem bastante objetiva do “Sturm und Drang” dos olímpicos de 1920. Mencionou, por exemplo, que uma noite um grupo de atletas vasculhou a cidade caçando bandeiras olímpicas. Coubertin constatou sabiamente no seu relatório sobre os Jogos de Antuérpia: “...houve muitos outros distúrbios. Mas alguém imagina que antes, no Olímpio (sic), nunca houve disputas ou escaramuças?” (Coubertin, s. d., 55). Ignoramos se algumas bandeiras foram levadas como troféus olímpicos para casa no Brasil.

distrito sul, vestindo as cores belgas, contra outro do distrito norte, no uniforme da Liga Metropolitana (Miranda Pereira). O Rei Alberto manteve sua reputação de esportista mergulhando cada manhã na praia de Copacabana. Em Ribeirão Preto (SP), os soberanos belgas presenciaram ainda um jogo de futebol, ao passo que, na Fazenda de Guatapará, puderam andar a cavalo, conhecendo a vida rural. Como lembrança de suas visitas ao Brasil receberam dois magníficos cavalos, que acomodaram nos estábulos do Palácio Real de Laken (Le Patriote illustré, 28.11.1920).

Conclusão As relações belgo-brasileiras provavelmente nunca foram mais intensas em termos políticos e econômicos como em 1920. O esporte desempenhou um papel catalítico nesta aproximação. Naquele momento, era a expressão do espírito modernista e expansionista e devia moldar o estilo de vida dos jovens industriais, empresários e aventureiros coloniais. Tanto a estreia do Brasil nos Jogos Olímpicos de Antuérpia quanto a visita real belga se enquadraram nesta configuração. Esta “caipirinha agridoce” de esportes e negócios ficou ainda mais evidente nos jogos latino-americanos de setembro de 1922. Pierre de Coubertin tinha delegado o conde belga Henry de Baillet-Latour como o representante do COI, que exprimiu seu desejo de manter esses jogos como a melhor maneira de preparo para os Jogos Olímpicos e uma única oportunidade de dar à juventude a educação esportiva que lhe faltava (Costa, 2002). Após a participação memorável do Brasil nos Jogos Olímpicos de Antuérpia em 1920, os Jogos da Exposição do Rio de Janeiro, presenciados por Baillet-Latour, tornaram-se um marco na política geoesportiva da América do Sul e promoveram a criação formal dos Comitês Nacionais Olímpicos no continente latino-americano. Desta maneira, esse “romance” belgo-brasileiro esportivo e econômico teve consequências duradouras.

O esporte brasileiro e a visita real de 1920 Como o Rei Albert e a Rainha Elisabeth partiram em 1º de setembro para o Brasil, “país das maravilhas” (Le Patriote illustré, 5.9.1920), não puderam assistir à Cerimônia de Encerramento do mesmo dia. Entretanto, em pleno mar, assistiram no cruzeiro São Paulo a vários divertimentos esportivos. Já o príncipe herdeiro, Leopold, seguiu seus pais 15 dias mais tarde no navio belga SS Pays de Waes, levando a bordo os participantes brasileiros dos Jogos de Antuérpia. Para o casal real, foi organizado, no Rio de Janeiro, no estádio fluminense, em 26 de setembro, um grande festival esportivo com um desfile dos clubes esportivos da Liga Metropolitana. O caráter nacionalista e simbólico dessa manifestação foi celebrado no jornal O Paiz de 24 de setembro de 1920: “Nenhuma ocasião se apresenta para uma demonstração do que representamos como expressão galharda do que somos, como sport... da parada atlética de domingo, em homenagem à energia moça e heróica do grande atleta-rei, que é o soberano belga, que ora nos dá a honra de sua visita” (Miranda Pereira, 155). A imprensa brasileira destacava que o rei belga, que era ao mesmo tempo um europeu, esportista e “rei-soldado” podia lá observar uma nova geração de atletas “...flores do Brasil de hoje e frutos do Brasil futuro”. Por sua vez, a imprensa belga usou superlativos similares: “Todos os atletas e esportistas do Brasil desfilaram defronte à tribuna dos reis belgas e do presidente” (Le Patriote illustré, 14.11.1920). Como parte da manifestação, foi jogada uma partida de futebol entre dois times escolares, um selecionado no

Referências E. Bergvall. De Olympiska Spelen / Antwerpen 1920. Estocolmo, 1920. Carlson, L. H., e Fogary, J. J. Tales of gold. Chicago, 1987. Costa, L. da. The IOC geopolitics in South America, 1886-1936. Journal of Olympic History, 2002, 10(3), 61-67. Coubertin, P. de. Géographie sportive. Revue olympique, 1911, abril, 51-52. Coubertin, P. de. The seventh Olympic Games. Report of the American Olympic Committee, s. d., 47-58. Kluge, V. Olympische Sommerspiele: Die Chronik I: Athen 1896-Berlin 1936. Berlim, 1998. Neto-Wacker, M. de Franceschi. Brasilien und die Olympische Bewegung 1896bis 1925. Stadion, 1999, 25, 131-137. Neto-Wacker, M. de Franceschi e Wacker, C. Rio de Janeiro goes olympic. Journal of Olympic History, 2009, 17 (3), 6-20. Mallon, B..The unofficial report of the 1920 Olympics. Durham, 1992. Mallon, B., e Bijkerk, A. T. The 1920 Olympic Games: results for all competitors in all events, with commentary. Jefferson, 2003. Pereira, L. A. de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro, 2000. Renson, R. War is over, sport is king: the political climate during the 1920 Olympic Games of Antwerp. Stadion, 1995-1996, 11-12, 193-209. Renson, R. The Games reborn: the VII Olympiad Antwerp 1920. Antuérpia, 1996.

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A capoeira na Bélgica J a n To l l e n e e r

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viagem que a capoeira fez da África Ocidental através do Brasil para países como a Bélgica é um dos temas mais fascinantes no estudo da mobilidade social e cultural. Que vem fazer este fenômeno de dança, luta e música num país europeu e quais são as motivações dos praticantes da capoeira? O que pode explicar seu êxito nas associações, nos festivais urbanos e nos eventos culturais? E limita-se, esta história, a um trânsito em sentido único entre o Brasil e a Bélgica? Um número crescente de belgas se deixa fascinar pelas demonstrações de capoeira nas ruas e nas sessões de exercícios em pavilhões desportivos. Ficam intrigados pela estranha mistura que apresenta a capoeira: é ao mesmo tempo uma arte marcial e uma dança, uma arte e uma acrobacia, um happening e um esporte. Isto contrasta com o caráter unívoco de seus próprios jogos tradicionais, que são tranquilos, e de seus esportes competitivos modernos, que são regulamentados com maior rigor. O caráter exótico da capoeira tem efeito contagiante. Canto e música – sobretudo com o instrumento do berimbau – criam um ambiente festeiro. A roda, o círculo formado em volta dos dançarinos-lutadores, comunica uma força energética. A roupa branca se associa com paz e concórdia. Wielandts & De Meyer (2006) mostraram que os praticantes se interessam particularmente pela história e pela cultura que a capoeira traz consigo: suas raízes his-

tóricas se situam na África Ocidental, de onde os escravos eram deportados para a América do Sul, e o significado que a capoeira ganhou, depois, para a conscientização do povo afro-brasileiro. Propagar esta identidade cultural é, aliás, uma motivação fundamental dos professores, que deixam o Brasil para ensinar a capoeira em outros países, onde são também chamados de ‘mestres’. Mestre Dendê, uma figura central na capoeira belga, testemunhou essa motivação. Nasceu em 1964, em Salvador, na Bahia, onde, desde seus dez anos, pratica a capoeira. Teve aulas com mestres reputados e fundou, em 1990, o grupo Porto de Minas, que se reuniu mais tarde à Oficina da Capoeira. Em 1992, abriu uma academia Porto de Minas em Colônia, na Alemanha, e, depois de uma estada nos Estados Unidos, Mestre Dendê chegou à Bélgica. Ele dá aulas em vários lugares do país e forma capoeiristas. A flamenga Debbie Hamerlynck teve um papel notável: depois de suas aulas com Mestre Dendê no Brasil fundou uma organização belga Porto de Minas. Abelha, seu nome brasileiro, se tornou a esposa de Mestre Dendê e estava na Bélgica na base de Mus-e Brasil, um projeto orientado para as crianças de rua em Salvador e que lhes oferece, através da capoeira e de outras atividades, oportunidades de desenvolvimento. Um outro exemplo confirma este trânsito em duplo sentido entre o Brasil e a Bélgica. Nicole Berx, nascida em Flandres em Um número crescente de belgas se deixa fascinar pelas demonstrações de capoeira, ficam intrigados pela estranha mistura de arte marcial e dança, um happening e um esporte.

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1962, conheceu o Mestre Miguel Magado em 2002, um professor de educação física e famoso pelo grupo brasileiro e internacional Cativeiro. O mestre estava então na cidade de Antuérpia para dar aulas de capoeira. Casaram-se em 2007 e começaram juntos, em 2004, a Ilê dos Êres, um projeto de desenvolvimento em São Miguel, um bairro de pescadores em Ilhéus (BA). Uma pesquisa com observação participativa (Van Dyck, Vermeulen & Tolleneer, 2007) ressalta que a capoeira é um instrumento excepcional para melhorar não somente a motricidade mas também as habilidades sociais e a autoestima de crianças desfavorecidas e adolescentes. Projetos como Ilê dos Êres e Mus-e Brasil se conduzem no entusiasmo e idealismo, mas não podem subsistir sem financiamento e enquadramento. O primeiro projeto desfrutou nesse período do apoio da ONG flamenga SOS Kids International e da Barry Callebaut, que possui perto de São Miguel uma fábrica que processa sementes de cacau. O segundo surgiu no contexto da International Yehudi Menuhin Foundation (IYMF). Como meio para estimular a convivência local e o desenvolvimento internacional a capoeira precisa efetivamente de uma gestão eficiente e de financiamento substancial. Na Bélgica, leva um pouco sua vida própria como um valor patrimonial, artístico e lúdico. Em comparação com o mundo esportivo moderno, é menos burocratizada e deixa mais lugar para a vivência pós-moderna

e as redes informais. Ensina as pessoas a elevar seus olhares acima das fronteiras das disciplinas esportivas, das formas culturais, das épocas, dos países e das raças. Que se estude o fenômeno, seja em nível micro ou macro, os conceitos que sempre voltam são paz, liberdade, controle e desenvolvimento. É o que faz a capoeira tão contagiante na Bélgica e que lhe dá sua carga simbólica e atração em muitos países. Jan Tolleneer é professor das Universidades de Lovaina (KULeuven) e de Gand. Foi membro da presidência da International Society for Comparative Physical Education and Sport (ISPES) e da International Society for the History of Physical Education and Sport (ISHPES). Ensina Fundamentos da Educação Física, Estudos Comparativos, História dos Esportes e Ética Esportiva. Coordena o Interfaculty Research Group Sport and Ethics (KULeuven). Publicou vários livros e artigos em revistas de estudos dos esportes.

Referências Van Dyck J., Vermeulen E. e Tolleneer J., Capoeira, ontwikkeling en samenwerking in Brazilië. Literatuuronderzoek en gevalstudies, Leuven: KU Leuven, tese de mestrado em Educação Física e Kinésiologia; orientador prof. dr. J. Tolleneer, 2007, 141 p. Wielandts J. e De Meyer G., Capoeira: van zelfverdediging voor slaven tot populaire sport in Vlaanderen, Leuven: KU Leuven; tese de mestrado em Ciências da Comunicação; orientador prof. dr. G. De Meyer, 2005, 137 p. 

Nelson e Rodrigo Pessoa: uma família brasileira dedicada ao hipismo mundial Kátia Rubio

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cavalo foi introduzido no Brasil pelos colonizadores portugueses e utilizado basicamente na lavoura, no pastoreio e foi de muita utilidade para os bandeirantes no desbravamento do oeste brasileiro. Os pampas do sul do país constituíam-se local ideal para seu desenvolvimento, mas foi no Nordeste, durante a gestão de Maurício de Nassau, que aconteceu a primeira competição hípica, em 1641, o Torneio de Cavalaria, que levaria holandeses, franceses e ingleses de um lado e portugueses e brasileiros de outro a se enfrentarem competitivamente. Vale ressaltar que a cavalaria foi de grande importância na Batalha de Guararapes, quando portugueses e brasileiros expulsaram os holandeses do litoral do Nordeste brasileiro. Nos séculos XVIII e XIX eram comuns as cavalgadas e os torneios esportivos não oficiais, como corridas e simulações de combates. Com a mudança da família real portuguesa para o Brasil, foi solicitada a vinda de mestres da Europa para servirem de instrutores aos fidalgos da corte, iniciativa que foi encerrada com a Independência. Diante da importância que o cavalo assumia para as situações

de guerra, o governo brasileiro, a pedido do Duque de Caxias, mandou importar garanhões puro sangue inglês, melhorando a criação nacional. O fato estimulou ainda mais a realização de corridas e motivou a criação do Jockey Club Fluminense, em 1854. Em São Paulo, incentivada pela Marquesa de Santos, uma adepta da montaria, a equitação ganharia seu espaço no Campo da Luz, em 1875, dando origem ao Clube de Corridas Paulistano, que mais tarde passou a se chamar Jockey Club da Mooca, o precursor do Jockey Club de São Paulo. Um novo desenvolvimento da equitação foi experimentado quando da chegada da missão militar francesa, após a Primeira Guerra, já no século XX, que organizou um curso de instrução especializada em equitação, mais tarde denominado curso especial de equitação. Fora dos quartéis o hipismo era praticado por fazendeiros e seus familiares, bem como por militares nas sociedades hípicas. No Rio de Janeiro existiam o Clube Esportivo de Equitação e o Centro Hípico Brasileiro, que se fundiram em 1948 formando a Sociedade Hípica Brasileira.

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Ainda que os cursos de equitação tenham sido fechados durante a Segunda Guerra, em 1942 pela primeira vez uma equipe brasileira disputou torneios no exterior, mais precisamente no Chile. Mas, essa história poderia ter outro enredo, não fosse a presença de dois brasileiros ilustres. Há quem diga que o esporte é uma linguagem universal. Em certo sentido isso poderia sugerir a inexistência de fronteiras ou barreiras uma vez que a comunicação pode se dar pela competição em si. Alguns atletas brasileiros mostram isso quando vencem as fronteiras dos Estados Nacionais e ganham o mundo com seu talento e competência, estabelecendo residência e tendo mais do que um passaporte, mas mantendo vínculo com o Brasil. Esse é o caso de Nelson e Rodrigo Pessoa, pai e filho, cavaleiros olímpicos, reconhecidos internacionalmente por seus talentos e habilidades e que residem há muitos anos na Bélgica. Nelson Pessoa Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de dezembro de 1935, e muito cedo começou a montar e a se destacar nos torneios em que participou. Como dito acima, o hipismo nesse momento era um esporte praticado basicamente por militares e os destaques da modalidade eram oficiais do exército brasileiro. Foi nesse cenário que no final dos anos 1950 Nelson Pessoa surgiu para o esporte, passando a representar a equipe brasileira e defendendo o País nas competições internacionais. Neco, como é conhecido o atleta, iniciou sua carreira internacional como cavaleiro muito jovem, ganhando vários torneios e a vaga para sua primeira participação olímpica em Melbourne, em 1956, quando tinha 21 anos. Em 1961 mudou-se para a Europa a fim de aperfeiçoar-se, o que o levou não a apenas conquistar o reconhecimento mundial como também abriu caminho para que muitos outros cavaleiros brasileiros pudessem conquistar esse continente. Nelson ficou conhecido como o Feiticeiro por causa do estilo de conduzir seu animal, o que parecia ser uma obra de encantamento. Nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg, em 1967, pela primeira vez na história a equipe brasileira de hipismo conquistou a medalha de ouro, superando os favoritos à medalha. Nelson Pessoa Filho, juntamente com Antônio Alegria Simões, José Roberto Reynoso Fernandes e o coronel Renyldo Ferreira foram os protagonistas desse feito. E na prova individual, Neco conquistou a medalha de prata. Como atleta, Nelson participou ainda dos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964, México em 1968, Munique em 1972 e Barcelona em 1992, mostrando uma longevidade rara em atletas. Em seu currículo constam duas medalhas de ouro e uma de prata em Jogos Pan-Americanos, sete vezes campeão (recorde de vitórias) do Derby de Hamburgo, tricampeão do Derby de Hickstead, campeão europeu, vencedor de 150 GPs na Europa, foi vencedor de mais de 100 provas de Potência e foi quatro vezes campeão brasileiro.

Além de grande atleta, Nelson destaca-se, até o presente, por sua performance como técnico e criador de cavalos. É um profundo conhecedor da psicologia do cavalo e um estudioso das linhas genealógicas dos cavalos de esporte. Como técnico, alcançou destaque ao orientar equipes em vários países na Europa e no Oriente Médio e ajudou na conquista da primeira medalha olímpica do esporte equestre brasileiro, bronze em Atlanta. Em 1981 instalou-se na Bélgica, onde vive até o presente. Lá ele montou o Haras du Ligny, em Fleurus, importante centro de formação e treinamento para cavaleiros de todo o mundo. Rodrigo Pessoa nasceu em 29 de novembro de 1972, em Paris, na França. Apesar de nunca ter morado no Brasil, aos 18 anos ele optou pela cidadania brasileira. Começou a montar aos cinco anos e aos nove participou de seu primeiro campeonato, em Hickstead (Inglaterra), na classe pônei. Aos 12 anos, foi com a família morar na Bélgica onde conquistou o campeonato belga de pônei. Foi o jóquei mais jovem dos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992), ficando em nono lugar na classificação individual. Nesse mesmo ano conquistou seu primeiro grande prêmio na Copa do Mundo, em Malines (Bélgica). Em 1995 ganhou a medalha de ouro por equipe nos Jogos Pan-Americanos de Mar del Plata (Argentina) e no ano seguinte venceu o Grande Prêmio da Alemanha, recebendo o título de melhor cavaleiro em Paris (França) e Zurique (Suíça). Rodrigo fez parte da equipe que conquistou a medalha de bronze olímpica nos Jogos de Atlanta em 1996 e, em 2004, foi campeão olímpico individual. Além dessas conquistas também foi campeão da Copa do Mundo em Helsinque (Finlândia) e do Campeonato Mundial em Roma (Itália), disputado a cada quatro anos. Em 1999, venceu pela segunda vez a Copa do Mundo em Gotemburgo, na Suécia, e chegou ao segundo lugar no ranking mundial de hipismo na categoria sênior. A partir de 2004, junto com o pai, Rodrigo trouxe de volta ao calendário internacional o tradicional CSI de Bruxelas, evento que reúne os melhores cavaleiros do mundo e revela grandes talentos. Nelson e Rodrigo Pessoa são exemplos vivos da mundialização do esporte e da fluidez das fronteiras quando o objetivo é a busca da excelência. Kátia Rubio é Professora Associada da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP). É bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (1983) e psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995). Fez mestrado em Educação Física pela USP (1998) e doutorado em Educação pela USP (2001). Tem 16 livros publicados na área de Psicologia do Esporte e Estudos Olímpicos. É membro da Academia Olímpica Brasileira.

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Gastronomia

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Produtos brasileiros na gastronomia belga Eddy Stols

Nas últimas décadas do século XVI e nas primeiras do século XVII chegava em Flandres o açúcar dos novos engenhos brasileiros com maior abundância e a melhor preço. Abastecia as refinarias de Antuérpia e promoveu para as mesas aristocráticas e burguesas uma sofisticada arte de doçaria e confeitaria. Açúcar cristalizado, biscoitos e conservas de frutas eram celebradas nas pinturas de naturezas mortas de Osias Beert e de Clara Peeters. Entretanto, outro pintor, Pieter Breughel o jovem, mostrava também um camponês recebendo de presente de seu proprietário um pão de açúcar, já embrulhado no papel e provavelmente de açúcar mascavado. Este entrou rapidamente no consumo popular, como cobertura de tortas ou até de simples fatias de pão, às vezes assadas como rabanadas ou adocicando pratos populares com repolho vermelho. No século XIX o açúcar, se bem que agora de beterraba, se generalizou na dieta popular, ao mesmo tempo em que se criaram novas iguarias de confeitaria como a tarte brésilienne e a glace brésilienne (sorvete). Justificavam seu nome de brasileira pela presença da “noix du Brésil” ou castanha do Pará.

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“La Maison Antoine”, um dos mais conceituados ‘fritkots’ de Bruxelas – lojas de frituras em vias públicas, onde se encontram as batatas fritas belgas e outras guloseimas – tem no seu cardápio, entre outros, o molho ‘Brazil’, cujo ingrediente especial é o abacaxi.

A presença de uma grande colônia de brasileiros em Bruxelas fez prosperar doceiras e quituteiras, vários restaurantes com churrascos, feijoadas e moquecas, bares com caipirinhas e cervejas brasileiras e até uma barraca de feira com pão de queijo, pastéis, coxinhas e empadinhas. Perto da estação de trem de Midi, lojas que vendem produtos espanhóis, italianos ou indianos aumentaram sua clientela incorporando produtos brasileiros, incluindo até pequís conservados em vidros para atender ao expressivo número de brasileiros vindos do Estado de Goiás. Surgiu um pequeno supermercado brasileiro, o Mineirinho, que, além de picanhas, linguiças calabresas e carne seca, oferece desde biscoito de polvilho, guaraná, café brasileiro, sonhos de valsa e até queijo mineiro, feito na Bélgica. Entre seus fregueses encontram-se muitos belgas, que, mesmo sem jamais ter ido ao Brasil, se familiarizaram, através de amigos brasileiros, com a base da alimentação brasileira.

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Interlocuções etílicas entre o Brasil e a Bélgica Daisy de Camargo

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o campo das bebidas alcoólicas, assim como na gastronomia em geral e em todas as searas econômicas, comerciais e culturais, a relação entre o Brasil e a Bélgica sempre foi pautada por um rico intercâmbio e uma sede de descobrimento mútuo. Os belgas exportavam genebra para o Brasil no século XIX. Tudo indica que este destilado de cereais com trigo e centeio, de altíssimo teor alcoólico, era bastante apreciado no país, dada sua recorrência entre os inventários de donos de tabernas nesse pe­ ríodo, como de Bernardo Martins Meira, dono de um armazém de molhados na Rua São Bento, em São Paulo. O líquido espirituoso vindo da Bélgica é fartamente arrolado no estabelecimento de Meira, entre garrafas de cachaça, espírito de vinho, rum, conhaque e outras iguarias. O crescimento do consumo de espirituosos no Brasil pode ter motivado investidores belgas do setor interessados em produzir no país. Em 27 de fevereiro de 1899 foi fundada, em Liège, a empresa Distilleries brésiliennes, com capital de 300.000 francos, para valorizar uma destilaria existente em Jundiaí que se associou com um industrial italiano residente nessa cidade, de nome Celestino Pesce (Recueil Financier, 1913). Entretanto, se o capital foi duplicado a 600.000 francos, no ano de 1913 a sociedade já se encontrava em liquidação. Mas um dos grandes pontos de interlocução entre belgas e brasileiros é a paixão pela cerveja, bebida fermentada que desde a domesticação dos cereais sempre foi um dos alimentos líquidos mais importantes da história da humanidade. Segundo Câmara Cascudo, o amor do brasileiro pela cerveja sedimentou-se nos fins do século XVIII. Logo depois de 1808, com a chegada da família real portuguesa e a abertura dos portos, as cervejas alemãs, holandesas, dinamarquesas, inglesas, norueguesas e belgas alagavam os mercados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Recife. Vários são os viajantes que citam a experiência da degustação da bebida no Brasil. John Luccock, em 1809, observa a predileção brasileira pela cerveja forte. Martius saboreou a inglesa Porter no Tijuco e em Itaparica. Esse preparado já estava presente no período do domínio holandês em Pernambuco (1630-1654), onde foi largamente citado nos relatos de festas do governador João Maurício de Nassau por frei Manoel Calado. Entretanto, foi depois de 1808 que o líquido dourado se espraiou e contaminou o gosto do brasileiro, dada sua refrescância quando gelada, tão bem-vinda num país de clima quente. Esta mania valorizou o uso do gelo no país. No Brasil virou sinônimo de elixir refrescante. No decorrer do século XIX pululavam por todo o Brasil pequenas fábricas artesanais, sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Recife, Pará, Rio Grande do Sul. Os primeiros registros de fabricação de cerveja no país numa escala de maior dimensão datam de 1848, no Rio de Janeiro, com a Vogelin & Bager, indústria

que teve duração efêmera. Em 1853, na cidade de Petrópolis, foi inaugurada a cervejaria Bohemia. No ano de 1875, em viagem pelo Brasil, especificamente Rio de Janeiro e Minas Gerais, o naturalista belga Walthère de Sélys-Longchamps manifestou, na sua relação de viagem, sua preferência pela cerveja da terra à inglesa e sublinhou a rápida expansão da produção nacional. Vale a pena retomar o que o Brasil oferecia de etílicos ao mundo belga. Em relatório endereçado ao Secretário dos Negócios, Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Brasil, A. da Silva Prado, o Conde de Villeneuve (delegado especial da Seção Brasileira) relata o que o país colocou à prova na Exposição Universal de Antuérpia (1885). Constam aguardentes de Sergipe, Pernambuco e Rio de Janeiro. Cita também vários produtores de licores: Eugenio Marques de Hollanda, Freire Aguiar e Antonio José Rodrigues de Araújo (Rio de Janeiro); Francisco José Pinto Requião (Curitiba). Há também expositores de vinho: André Gimber (Curitiba) e João do Amaral Raposo (Pernambuco), além do vinho de caju, por José Augusto Gomes de Abreu. Mas a cerveja, interesse mútuo evidente, mereceu destaque especial do jurado Sr. Denayer, que narrou as apreciações do júri de classe relativas às cervejas brasileiras em exposição: Pale Ale, produzida por Francisco Logos & Comp. (Rio de Janeiro), ressaltado seu sabor fresco, agradável e aroma especial; Nacional de Thomas Iwersen (Morretes, Paraná), segundo o jurado, digna de rivalizar com as cervejas castanhas belgas; e por fim a Tels Bier, produzida por Von Goumoens (São Paulo), de preparo superior. Posteriormente surgiram indústrias de maior porte. A Antarctica seria fundada em 1888 e a Brahma em 1904, duas grandes forças centrípetas que mais tarde polarizariam a produção no país. Quanto às cervejas belgas, no Dicionário de Medicina Popular, publicado no ano de 1862, Chernoviz cita a bebida dessa nacionalidade (entre as inglesas, francesas, alemãs e austríacas) e suas respectivas gradações alcoólicas: Faro (4.15), Cerveja de Cevada (4.35), Diversas entre as belgas (5.8). Essa atenção de Chernoviz dada às cervejas belgas leva a crer que já havia no Brasil nesse período um interesse pelo gosto, a importação e o consumo. Durante todo o século XIX os jornais da corte publicavam propagandas das casas importadoras. No caso dos belgas vindos para o Brasil, assim como os alemães, a cerveja fazia parte de um hábito alimentar milenar e o processo migratório cria essa demanda de importação. A cerveja é para a Bélgica o que o vinho é para a França. A produção chegou à região com o Império Romano. Grande parte da fabricação artesanal atual é herança do medievo, com história de larga manufatura nos mosteiros, onde a bebida era consumida como alimento. O país está situado no que é denominado cinturão da cerveja, formado também por Irlanda, Reino Unido, Holanda, Alemanha e Norte da França. Essa região é caracterizada por um

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ecossistema favorável ao plantio de cevada, lúpulo e certos maltes, com clima moderado e solo propício. A Bélgica conta com marcas poderosas como a Stella Artois (originária da taberna Den Hoorn, fundada na cidade de Lovaina em 1366), já tão presente e apreciada no mercado brasileiro. A produção industrial fomentou a organização na Universidade de Lovaina de uma formação universitária de engenheiro-cervejeiro. Mas a produção artesanal segue sendo uma atração à parte que conta com misturas tradicionais como coentro, alcaçuz, gengibre, cerejas e framboesas; e a ousadia de novas experiências e misturas, como a mostarda, o café e o chocolate. Esse entusiasmo de produção e consumo que une os dois países já viveu episódios frutíferos. Vários jovens brasileiros foram estudar engenharia cervejeira em Lovaina. Em 1905 um deles, Luiz Englert, adquiriu em Porto Alegre a grande cervejaria Christoffel, que tinha 45 empregados, e uma produção de 1.500.000 garrafas de cerveja por ano, de cerveja branca e preta simples e dupla, de Lager Bier, Export Bier, Culmbacher, Chopps simples e duplo (A Redenção, 16.03.1904). Sua caldeira a vapor do sistema Belevil vinha da Bélgica, da empresa metalúrgica De Nayer & Cia. de Willebroek, que forneceu nessa época também as estruturas metálicas para o novo Mercado Municipal do Rio de Janeiro. Segundo um padre belga em Porto Alegre, Joseph Moreau, no final de 1905 Luiz Englert procurou associar-se com capitalistas belgas para aumentar sua produção e conquistar, no Norte do Brasil, um mercado em falta de boa cerveja (Moreau). Não podemos aferir se tal empreitada teve sucesso, mas pelo menos poucos anos depois um grupo de investidores belgas percebeu que com a alta proibitiva das taxas de importação sobre cervejas chegava a hora de aventurar-se no Brasil. Se sua produção nacional aumentou de forma expressiva, faltava-lhe boa qualidade nas cervejas de alta fermentação. Em 22 de julho de 1910 foi fundada na cidade de Bruxelas Les Grandes Brasseries du Rio de Janeiro, com capital de 2 milhões de francos belgas (Recueil Financier, 1910). Entre os acionistas da nova sociedade encontravam-se dirigentes de uma das maiores cervejarias belgas daquela época e em plena expansão, as Grandes Brasseries de l’Étoile, mas também um ex-presidente da Província do Pará, José Paes de Carvalho. A intenção era rentabilizar com mais capital e a tecnologia das Grandes Brasseries de l’Étoile a cervejaria Guarda Velha, comprada dos Alves da Nobrega por um contabilista de Bruxelas, Léon Requier. Situada num bairro rico do Rio de Janeiro, estava equipada com material moderno e produzia 1.200.000 garrafas, sendo dois terços de cerveja clara e um terço de stout. A parte não utilizada do prédio era alugada por 40.000 francos e podia, com melhoramentos, render 80.000. Não obstante, em 12 de abril de 1913 a sociedade já se encontrava em liquidação. A entrega da cervejaria demorou demais e os primeiros sete meses de exploração sofreram prejuízo pela forte concorrência alemã. Além do mais, houve suspeita de erros em relação à produção anterior e aos aluguéis. Mas a presença de belgas aflorou em novas searas de consumo. Em 23 de novembro de 1913 foi inaugurado na estrada de São

Paulo para Santos um Parque Recreio Belgo-Brasileiro. Um belga de Bruxelas, Pascal Schoeps, introduziu assim no Brasil um tipo de taberna com música, jogos e bailes, que com suas janelas verdes em meio a ipês se parecia muito, segundo o visitante belga Louis Piérard em 1920, com as guinguettes parisienses ou com casas recreativas como Moeder Lambic e Ziska, localizadas na praia belga de Knokke (Piérard e Araújo, p. 321). Outra visita belga que rendeu frutos saborosos foi Emile Tobias Morisse, engenheiro agrônomo que nas primeiras décadas do século XX assumiu vários cargos na Seção de Leiteria do Posto Zootécnico Federal(D.O.U, 1910; 1911; 1913). Posteriormente voltou todos os seus conhecimentos e investiduras em uma sociedade com Antoine Daniel Souquières e Landucci, no Grand Hôtel e Rotisserie Sportsman, localizado no centro da cidade de São Paulo. Esse estabelecimento pretendia ser uma verdadeira miscigenação de hábitos e produtos europeus. O cardápio era servido à francesa. O nome – sportsman – era uma referência ao inglês supostamente refinado praticante de esportes (o logotipo da casa era uma cabeça de cavalo, evocação nítida aos esportes equestres). A adega ficou famosa por sua variedade e sucesso na eficiência das regas em festas e banquetes (Barbuy, p. 125) Novos encontros se fizeram esperar por muito tempo até que foi fundada em 1983 na cidade de Botucatu (SP) a Cervejaria Belco. A fábrica foi instalada onde anteriormente funcionava a Belgium Co., uma cooperativa que reunia remanescentes da colonização belga nesse município, iniciada na década de 1960. A origem do nome é um amálgama e homenagem das primeiras sílabas do nome da cooperativa. Em 1985 foi adquirida pela Destilaria Schincariol e posteriormente remanejada para São Manuel, onde permanece. Há também uma filial em Cabo de Santo Agostinho (PE). Essa cerveja que traz a marca feliz da junção do gosto belga em território brasileiro é exportada para os Estados Unidos, Europa e Ásia. Suas principais marcas são: Chopp Belco, Belco Pilsen, Tauber, Malzbier Belco e Mãe Preta. No mais, a influência da cervejaria belga foi incorporada por algumas fábricas brasileiras. É o caso da Riopretana (fundada em 2005, São José do Rio Preto, SP), que produz a Amber, anunciada como avermelhada e de origem belga. A Whitehead, cervejaria artesanal de Porto Alegre (RS-2007), comercializa a Witbier, seguidora do “estilo belga”, forte, encorpada e aromática. Esse namoro etílico desembocou num grande encontro entre a história da cerveja nos dois países, agora no campo do mundo globalizado. Falamos da formação da AB Inbev (sediada em Lovaina), companhia de bebidas formada no ano de 2004 com a fusão da brasileira Ambev e a belga Interbrew. Essa última era uma empresa de raízes belgas, formada pela junção da flamenga Stella Artois com a Piedboeuf, da Valônia. Depois de muitas fusões e aquisições tornou-se a maior companhia de cerveja do mundo. Do lado brasileiro, a Ambev (Companhia de Bebidas das Américas) é o resultado da fusão da Companhia Antarctica Paulista e Companhia Cervejaria Brahma. Com a AB Inbev o brasileiro teve maior acesso às cervejas belgas, que, traçando um caminho aberto pela Duvel (Diabo), viraram verdadeira febre. A lista de oferta

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belga é ampla, dentre as quais destacam-se no mercado brasileiro: Hoegaarden (com fórmula baseada em sementes de coentro e raspas de casca de laranja); Belle-Vue (do tipo Lambic, ou seja, de fermentação espontânea); Leffe (de alta fermentação, do tipo abadia); Malheur 10 (encorpada e marcante); West Malle Dubbel (trapista); Delirium Tremens (ironicamente frutada); Troubadour; Maredsous; La Chouffe; Kwak. No rastro de tamanho sucesso de paladar, Xavier Depuydt, cervejeiro belga de família tradicional no ofício e com experiên­ cia de mais de dez anos em cervejarias belgas, imigrou para o Brasil em 1996, instalando-se no Rio de Janeiro. Depois de três anos inaugurou a primeira loja com espaço para degustação de cervejas belgas do Brasil, a Belgian Beer Paradise. O sucesso foi de tal envergadura que Depuydt passou a arranjar, no ano de 2010, a Belgian Beer Festival, festa para degustação de cervejas e gastronomia típica belgas. Em novembro de 2013 organizou-se em São Paulo uma Semana da Cerveja Belga. Retornando à permuta de encantamentos etílicos, atualmente a hora e a vez na Bélgica é da Caipirinha. Na década de 2000 começaram a surgir vários bares brasileiros onde essa bebida impera. No livro Xangô de Baker Street, Jô Soares elabora um chiste em torno da invenção desse drink. O sábio médico Dr. Watson, amigo e assistente de Sherlock Holmes, teria criado a receita na tentativa de utilizar o limão e o açúcar como antivenenos para qualquer mal -estar que pudesse causar a força da cachaça no corpo de Holmes. Mas a Caipirinha surgiu em algum recanto do Estado de São Paulo. A mistura de aguardente, limão e açúcar era primeiro utilizada na Capitania de São Vicente como antídoto para constipações. Com o passar do tempo e o acréscimo do gelo tornou essa mistura querida e disseminada por todo o Brasil, vertendo-se num dos símbolos da cultura brasileira no exterior. Na Bélgica a Caipirinha virou febre nos últimos anos, em bares brasileiros como o Dona Flor em Bruxelas, onde é servida com feijoada e picantes da Bahia. Outra embaixadora nesta cidade dessa fórmula encantatória é o Canoa Quebrada, onde é consumida como combustível para danças latinas e remédio para fadigas repentinas e renitentes. Mas a poção mágica também é vendida em um pequeno carro ambulante ancorado no centro de Bruxelas.

Daisy de Camargo é Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Capes), Doutora em História pela Unesp/ Assis (Fapesp). Trabalhou como historiadora no Museu da Imagem e do Som de São Paulo e no Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Publicou o livro Alegrias Engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

Referências Luis Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux. “Caras e modos dos migrantes e imigrantes.”, in Luis Felipe de Alencastro (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 291-335. Vicente de Paula Araújo. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo, 1981. Heloisa Barbuy. A cidade – exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 18601914. São Paulo: Edusp, 2006. Henrique Carneiro. Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. Luis da Câmara Cascudo. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. Luis da Câmara Cascudo. Prelúdio da Cachaça. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. Pedro Luiz Napoleão Chernoviz. Diccionario de Medicina Popular (em que se descrevem em linguagem accommodada á intelligencia das pessoas estranhas á sciencia medica). Terceira Edição, Paris: em casa do autor, Rua de Passy, 10 bis, 1862. http://www. Cervejasdomundo.com/Brasil.htm Acesso em 22 de outubro de 2012. Inventário de Bernardo Martins Meira, Arquivo Judiciário do Estado de São Paulo, Processo 689/1876. Joseph Moreau, 30.12.1905, Archives du Ministère des Affaires Étrangères, Bruxelas, 2806, VII. Diário Oficial da União (DOU). 17 nov. 1910, p. 14, seção 1; 30 jun. 1911, p. 8, seção 1; 10 maio 1913, p. 44, seção 1. Michael Jackson. Great Beers of Belgium. Philadelphia: Running Press, 1998. O Estado de S. Paulo, 8 jun. 1919, p. 9; 25 jan. 1920, p. 11; 08 fev. 1920, p. 8. Louis Piérard. Films brésiliens. Bruxelas, 1921. Recueil Financier. Bruxelas, 1910-1921. Walthère de Sélys-Longchamps. ‘Notes d’un voyage au Brésil’. Revue de Belgique, 1875. Jô Soares. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Mário Souto Maior. Cachaça. Brasília: Thesaurus, 2005. Conde de Villeneuve. Exposição Universal de Antuérpia: relatório apresentado a S. Ex. Sr. Conselheiro A. da Silva Prado. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Biblioteca Digital do Senado Federal/ Obras Raras. http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/ id/242456 [acesso em 22 de novembro de 2012]. Revista Cervisiafilia (A história das antigas cervejarias) Domingo, 2 dez. 2012. http://cervisiafilia.blogspot.com.br/2012/12/fabrica-de-cerveja-frederico.html [acesso em 15 de novembro de 2013].

Como um chef mergulhou nos sabores dos ingredientes nacionais valorizando os produtos e a gastronomia brasileira. Quentin Geenen de Saint Maur

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ascido na cidade de Mbandaka, Congo Belga, hoje República Democrática do Congo, lá vivi a primeira década da minha vida, sendo alfabetizado em francês. Desde cedo, me familiarizei com o dialeto usado pelos empregados da casa, o kikongo, falado na região do Baixo Congo, o que

facilitou minha iniciação, conduzido pelos africanos, em seus rituais culinários. Assim, registrei na memória afetiva a diversidade de perfumes, cores, texturas e sabores dos ingredientes que serviram de referência à formação do meu paladar. Só os homens trabalhavam fora das aldeias para cuidar das

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tarefas nas casas dos brancos. As mulheres, envolvidas em tecidos de cores vivas e alegres, de porte altivo, sorrisos reluzentes e olhar meloso, desfilavam no portão, ao amanhecer, coroadas por grandes bacias em ágata, vendendo as frutas colhidas e raízes catadas, folhas e legumes da horta comunitária ninados pelos cantos ritualísticos do vilarejo de origem. Os peixes de água doce, as tartarugas e os pitus eram trazidos, ainda vivos, pelos pescadores, ao entardecer. Os caçadores vinham com cortes de carnes sanguinolentas presos a pedaços de couro para identificar sua origem. Tinha também a feira a céu aberto, com seu labirinto de ilhas de tapetes de folhas de palmeira trançadas, amostras dos diversos produtos com cores variadas e que exalavam cheiros marcantes, provocando um dégradé de emoções, que passavam do enigmático ao deslumbrante, podendo chegar até mesmo ao repulsivo. Duas estações compartilhavam o ano, a das chuvas que se alternava com a das secas, modelando a imensa paisagem e a natureza com caraterísticas bem definidas. A chegada na Bélgica teve como forte impacto a demarcação das quatro estações e a delimitação das propriedades, assim como várias sutilezas socioculturais, iniciando minha adaptação pelo aprendizado necessário de uma outra língua, o neerlandês. Toda minha educação escolar foi feita por uma maioria de professores que demonstravam ter, mais do que um trabalho remunerado, uma vocação, ensinando a importância do porque, do onde, do como e do pesquisar, sempre. Meus pais valorizaram, na minha educação, a constante procura da qualidade e da originalidade. Durante as férias, a Europa era explorada com o olhar focado na arquitetura, na música, nos museus, nos mercados, nas feiras livres de produtos regionais e nas visitas aos ateliês dos artesãos. Em poucas palavras: a cultura em geral, natural e humana. Todas as refeições servidas à mesa eram realizadas com receitas à base de produtos de origem conhecida, o que reforçou o foco de ter no mínimo três prazeres epicuristas ao dia. Leite, manteiga, creme de leite fresco, ovos, carnes e aves fornecidos pelas fazendas vizinhas. A carne de caça era trazida pelo meu avô materno na estação permitida. As frutas silvestres eram catadas na floresta; os cogumelos, apanhados nos pastos antes do amanhecer; as frutas, colhidas no pomar, e as verduras, na horta de casa. Tudo isso me permitiu aguçar e enriquecer a minha bagagem de sabores iniciada na África, sem preconceito, mas com exigência. Cheguei no Brasil no início dos anos 80 e, como todo estrangeiro, aterrissei na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, onde a influência francesa na culinária já era notória no hotel Copacabana Palace, da família Guinle, seguido, mais tarde, pelo chef Laurent Suaudeau e pelo chef Claude Troisgros. Os pratos vedetes da época eram coquetel de camarão com molho golf, filé café de Paris, linguado belle meunière e strogonoff com batata palha. Na cidade de São Paulo, o restaurante Casserole, da Tuna e do Roger, hasteava a bandeira da cozinha tradicional francesa, e o Rodeio era a grande churrascaria em voga. O restaurante do hotel Ca D’Oro, o La Tambouille, o Massimo e outros do gênero demostravam a importância da presença italiana, cuja culinária se popularizou com a explosão do fenômeno pizzarias

e cantinas. A gastronomia japonesa estava despontando para um público seletivo ainda restrito. A abertura do Hotel Maksoud Plaza e seus cinco restaurantes com cardápios de diversos países sintetizava a virada da gastronomia na capital paulista: um mercado com sede de novidades, o que se confere até hoje. Trazia comigo o aprendizado profissional de uma nova filosofia da gastronomia europeia, a Nouvelle Cuisine: movimento da culinária iniciado pelo chef Fernand Point, que chefs renomados da Europa abraçaram nos anos 70, para atender a uma clientela de homens de negócio e mulheres de silhuetas esbeltas, à procura de uma alimentação mais adequada ao estilo de vida contemporâneo. Com um visual mais desenhado, ela acompanhava a onda de novidades que estavam revolucionando a alimentação cotidiana, o mundo da moda, da música, da arquitetura e das artes em geral. Uma brisa de frescor soprou a favor de uma cozinha mais livre, mais leve, mais apurada, temperada com parcimônia e delicadeza, cozimento minucioso com ingredientes preparados na hora e com respeito às riquezas nutritivas, com porções menores e estilizadas, permitindo, assim, a elaboração de vários pratos na composição dos menus degustação. Tudo para estimular os sentidos e, em destaque, a aparência. São Paulo, em plena ebulição, oferecia um campo fértil para implantação dessa nova gastronomia. Os estilistas da capital paulista e de Belo Horizonte animavam, com suas criações, o bairro dos Jardins, tanto de dia como de noite. As artes plásticas estavam explodindo em cores e novas linguagens e as galerias de arte se multiplicavam, a música marcava novos ritmos, os arquitetos encontravam um mercado aquecido para propor novas formas e novos espaços; os escritores, roteiristas e jornalistas desfrutavam da recém-conquistada liberdade de expressão. Toda essa efervescência me motivou a abrir o L’Arnaque, na rua Oscar Freire. Um local apropriado para encontrar um público diversificado, vanguardista e atuante, favorecendo a troca de ideias e informações, no seu terraço aberto para a rua, com mesas na calçada, sua máquina de café expresso, seus jornais e revistas nacionais e internacionais. Os pedidos dos clientes eram anotados por uma hostess. Os garçons, vestindo jeans e grandes aventais, camisas brancas e gravata borboleta, iniciavam uma nova tendência que se perpetua até hoje. O público do terraço era atendido por estudantes universitários. Na cozinha, foram implantadas aulas do Mobral para ensinar a equipe, basicamente formada por uma mão de obra vinda do Ceará e do Piauí, a ler e escrever. Trabalhadores assíduos e corajosos que até então só podiam reproduzir as receitas de memória. A proposta era inovadora, o público e a mídia apoiaram incondicionalmente sua ousadia e temeridade. Na época, só havia a revista Gourmet especializada em gastronomia, e colunas assinadas por críticos apareciam semanalmente nos jornais. Para manter o espaço interagindo com a cidade, eram realizados eventos, como lançamentos de livros, exposições de obras de jovens artistas, desfiles de moda, que constituíam uma moldura para uma culinária arrojada com um cardápio degustação que mudava radicalmente a cada mês.

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Durante os primeiros meses, foram apresentados pratos com raízes no velho continente. Iniciamos uma criação própria de patos mulard para obter foie gras fresco, e uma horta orgânica abastecia a casa. Uma traineira explorava a baía de Angra dos Reis, para fornecer os peixes e camarões. A cozinha sempre foi aberta para integrar, nas suas criações, novos ingredientes de pequenos produtores. Com a ajuda da historiadora e pesquisadora Ângela Marques da Costa, pesquisamos receitas, a tendência fusion, hoje consagrada, mas que já existia no Brasil Império, mesclando três fontes – tipíco da colonização portuguesa: índios, portugueses e negros. Uma paleta de ingredientes brasileiros, sabores, texturas e perfumes, ainda ignorados pela alta gastronomia, entrou com força na filosofia da Nouvelle Cuisine no Brasil. O Chef Alex Atala, recém-chegado da Europa, aluno da escola de hotelaria de Namur, e que mais tarde iria projetar internacionalmente a gastronomia brasileira, foi apresentado ao chef em destaque no momento, durante um almoço no L’Arnaque. O empurrão foi dado e bem dado. O movimento da Nouvelle Cuisine se espalhou pelas cozinhas dirigidas por jovens chefs, a princípio formados fora do país. Logo os cursos de gastronomia se multiplicaram no Estado, e seu o governo investiu em escolas técnicas. A profissão de chef foi tomando um novo rumo, deixando o estereótipo “casa grande e senzala”, para ter o reconhecimento do notório saber e a valorização do seu ofício e da sua arte. Em Brasília, concretizei um novo sonho: apresentar a diversidade das receitas e o potencial das matérias-primas do país no livro “Muito Prazer, Brasil”, publicado com apoio do Ministério

da Cultura do Governo Fernando Henrique Cardoso. Pesquisa de produtos e comidas regionais iniciada desde a minha chegada ao país reuniu receitas criadas, revistas e recriadas sob a nova filosofia, agrupadas por região. Sempre fui um viajante dos sabores, levantando ingredientes e receitas do Oiapoque ao Chuí. O reconhecimento da nova proposta foi imediato. O livro, talvez em função do novo conceito, esgotou-se rapidamente. O Embaixador da União Europeia, João Pacheco, e sua esposa, Leonor Pires, ofereceram na sua residência um jantar, preparado por oito chefs de São Paulo e Brasília, para toda comunidade diplomática europeia e autoridades brasileiras, baseado na proposta do livro. Segundo Maria Cecilia Londres, representante do Brasil nas reuniões de especialistas internacionais na Unesco, para a elaboração da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, “quem estava presente se deliciou com os sabores dos ingredientes inusitados apresentados e quem não foi perdeu o trem”. Esse evento levou um dos participantes, o chef brasileiro Henrique Fogaça, consagrado como chef revelação do ano em São Paulo, a aproveitar suas férias para descobrir a gastronomia belga, trabalhando ao lado da chef Arabelle Meirlaen e do Chef Philippe Fauchet. A ponte dos sabores está lançada entre o Brasil da mandioca, do feijão e das frutas de botão e a Bélgica da batata frita, do chicon au gratin e do sirop de Liège. Agora, é só reatar os laços e se deliciar com o exotismo dos ingredientes de lá e de cá para desfrutar e enriquecer nossa cumplicidade gastronômica. Boa viagem! Gastronomicalement, Quentin Geenen de Saint Maur.

Mille merci monsieur Quentin A l e x A ta l a

A

inda me lembro, como se fosse hoje, da primeira vez em que pisei na Grand Place, em Bruxelas, quando comecei a entender a Bélgica. Eu era, então, um brasileiro de família comum, que naquele momento desconhecia até mesmo os pães, as cervejas, as maravilhas que a Bélgica poderia propor. Lembro-me do quanto embriagado, positivamente, fiquei por aquela cultura. Fascinado, decidi que não queria voltar para o Brasil e precisava, então, arrumar um jeito de morar e de viver. Para sobreviver, como todo imigrante, fui pintar paredes, trabalhar em construção. Grandes aprendizados. Um outro problema era conseguir o visto. E foi assim que me inscrevi na escola de cozinha Namur. Tão rápido como vocês podem imaginar percebi que era muito mais gostoso cozinhar do que pintar parede. Meu destino estava traçado, mas eu não tinha entendido. Na Bélgica aprendi muito mais do que cozinhar. Aprendi a me relacionar, e viver em uma pequena cidade cosmopolita – naquele momento, o centro da formação da comunidade europeia – me deixou claro o quanto meu

horizonte era pequeno e o quanto eu poderia aprender e absorver daquela experiência. Os anos da Bélgica foram fundamentais para a minha formação, não só de cozinheiro, mas de homem e de caráter. Da Bélgica ganhei voos. Fui para a França, a Itália... Eu me apaixonei, casei! E um dia entendi que nunca faria cozinha belga, francesa ou italiana tão bem quanto alguém que nasceu ali. E essa foi a primeira motivação para voltar ao Brasil e me debruçar sobre a cozinha brasileira – afinal de contas, esse era o sabor que eu tinha, que eu conhecia. A cozinha tomou conta de mim; eu não tinha entendido, mas já era tarde. Já era um caminho sem volta. Sem volta, mas feliz. Passam-se mais de 25 anos e hoje tenho o prazer não só de contar minha experiência, mas de render uma homenagem a um homem que, além de amante do Brasil, desde meu primeiro contato demonstrou sorriso e generosidade. Nos anos que antecederam a estada na Bélgica, trabalhei como DJ em São Paulo numa famosa rua que se chama Oscar Freire. Nessa rua existia um pequeno bistrô dedicado à alta cozinha, o L’Arnaque.

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Preciso confessar que, nesses anos em que vivi na Belgica, o L’Arnaque povoava meus sonhos, pensava em um dia voltar e quem sabe trabalhar lá. De volta para o Brasil, trabalhando como cozinheiro em restaurantes menores, um dia, com seu tradicional sorriso, um homem de um tamanho avantajado entra em meu restaurante e se apresenta. Era o dono do L’Arnaque, Quentin Geenen de Saint Maur. Tremi, gaguejei, tentei preparar um prato e para minha surpresa fui elogiado. Com sua maneira simpática, mas firme, me apontou alguns caminhos. O mais divertido foi a sua segunda visita. Um pouco mais confiante, resolvi alçar um voo mais alto e levei um puxão de orelha. Em tempo, quero agradecer. Obrigado Quentin, aquele puxão de orelha ainda hoje dá voltas na minha cabeça. O L’Arnaque é sem dúvida um momento da cozinha brasileira. Marca a transição de um país fechado a produtos importados, a descoberta e a paixão da cidade de São Paulo pela alta cozinha. O Quentin tinha tudo para sentar nos louros de um estrangeiro. Acomodar-se naquela situação e administrar essa vantagem que, na época, era grande. Mas um grande homem não se senta em cima de uma grande vantagem. O Quentin mostrou para o Brasil que era possível acreditar no país. Fazia uma cozinha de base clássica, mas sempre com interferência de ingredientes brasileiros. A fase do L’Arnaque se findou, mas o Quentin continua brilhando. Trouxe livros, sabedoria e espalha generosidade e ensinamentos da mesma maneira que ensinou um menino brasileiro que chegava da Bélgica. Obrigado Quentin. Mille merci monsieur Quentin ou, como você bem diz, gastronomicalement. Um abraço. Alex Atala: “Os anos na Bélgica foram fundamentais para a minha formação, não só de cozinheiro, mas de homem e de caráter”.

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Ensaio do fotógrafo Ricardo de Vicq de Cumptich sobre gastronomia.

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Créditos de imagens

Parte 1 p. 28 à esq.: Acervo pessoal de Regina Lootens Machado. p. 28 à dir.: Acervo Ivana Vervloet Di Francesco / http://www.familiavervloet.com.br/fotos.asp p. 29 Museu Mineiro / Superintendência de Museus e Artes Visuais / Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. p. 31 Museu Mineiro / Superintendência de Museus e Artes Visuais / Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais / Fotografia de Pedro David. p. 40 e 41 http://www.territorioscuola. com/wikipedia/pt.wikipedia. php?title=Ficheiro:Alvim-correa12.jpg p. 42 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5 / Attribution: By Diesko Rosa (kexow@hotmail. com) (Own work) [CC-BY-SA-2.5.] p. 43 e 44 Acervo de Mario Baeck. p. 45 Reproduções de Christine Fellin. p. 48 Reproduções de Paul Dulieu. p. 51 e 52 Acervo Associação Art N’Ativa. Parte 2 p. 58 e 59 Acervo da Casa do Patrimônio Ferroviário do Rio de Janeiro (antigo Museu do Trem) / IPHAN – RJ. p. 66 Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 67 Foto de Eddy Stols. Parte 3 p. 76 Foto de Silvio Luiz Cordeiro. p. 78 à esq.: “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, GIC#5704_001 p. 78 à dir.: “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, GIC#5704_002 p. 79 “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, GIC#5929 p. 81 Acervo do Museu Efgoed, Antuérpia, reproduzida por Jan Possemiers.

p. 86 em cima: Museu de Armas de Liège, n° M.A.L. : 8005-De 58”. p. 86 embaixo: Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 87 em cima à dir. e embaixo: foto de Carlos R. Zanello de Aguiar (Macacheira) / Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 87 em cima à esq.: foto de Marc Ferrez em: http://www.brasil.gov.br/old/copy_of_imagens/ sobre/cultura/fotografia/marc-ferrez/estradade-ferro-de-paranagua-a-curitiba-viaduto-doconselheiro-sinimbu-parana-1879/view p. 88 em cima à esq. e à dir e no meio: Coleção Allen Morrison / http://www.tramz.com p. 88 embaixo: Brasil, Cultures and Economies of Four Continents Cultures Et economies De Quatre Continents, editora Acco, Lovaina, 2001, fig. 20 e 21. p. 89 em cima à esq.: Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 89 embaixo: Dumoulin, Michel e De Vreese, Marianne, Franki: een wereld bouwen”, Tielt: Lannoo, 1992. p. 90 foto do lado esq.: “Mina dos Belgas, Corumbá/MS”, foto de Fábio Guimarães Rolim /Acervo do IPHAN-Corumbá, MS. p. 91 Acervo do IPHAN-Corumbá, MS. p. 92 © Bernard Pirson. p. 94 © Acervo de Jean Suettinni. p. 97 e 98 Acervo Solvay Indupa. p. 99 e 100 Acervo Tractebel Energia. p. 101 Acervo DEME. p. 102 Acervo Grupo Jan De Nul. p. 104 Emile Cosaert e Joseph Delmelle, Histoire des transports à Bruxelles, Bruxelas, 1976, t. 1, p. 86-87 p. 106 Acervo Citrosuco. Parte 4 p. 109 Arquivo Público do Distrito Federal. Notação: ArPDF-B.03.01.c / Localização: ficha 0124, env. 21 / Reprodução: Marta Vale 02-031993. p. 110 Arquivo Público do Distrito Federal. Notação: ArPDF-B.03.01.c / Localização: ficha

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101, env. 16 / Reprodução: Marta C. Vale 0203-1993 p. 112 © Acervo pessoal de Patrick Collon. p. 114 © Magali Romero Sá. p. 115 Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo / Fotógrafo da reprodução: Hélio Nobre. p. 116 Acervo da Biblioteca da Esalq-USP. p. 117 Acervo da Biblioteca da FEA-USP. p. 118 Acervo do Núcleo de Documentação do Instituto Butantan. p. 119 e 120 @ Dulce Eleonora de Oliveira p. 122 Acervo pessoal de Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão. p. 123 http://www.ihgsp.org.br/abl/arquivos/2.pdf p. 125 Acervo pessoal de Decio Eizirik. p. 128 e 131 Fotos de Els Lagrou. p. 133 e 135 Acervo da Europalia. p. 139 ©Daniel De Vos. p. 141, 142 e 143 Acervo da Biblioteca da EsalqUSP. p. 144 © Acervo pessoal de Jacques Gillen, ARCMUNDA-PV-RBU1900bis p. 146 e 147 ©Erika Benati Rabelo. Parte 5 p. 153 e 154 Cornelis Hazaert, “Kerckelijcke Historiae van de gheheele wereldt”, Antuérpia 1652-1671 / Acervo de Johan Verberckmoes. p. 155, 156 e 157 © Jeroen Dewulf. p. 159 e 161 Fotografias de Luciana Mascaro. p. 163 Acervo da Biblioteca do Mosteiro de São Bento. p. 165 © KADOC, Centre de Documentation et de Recherche: Religion - Culture - Société / Imagens fornecidas por Luc Vints. p. 166 e 167 Fotografias de Luciana Mascaro. p. 168 http://www.territorioscuola.com/wikipedia/ pt.wikipedia.php?title=Ficheiro:Padre_julio.jpg p. 171 e 172 © KADOC, Centre de Documentation et de Recherche: Religion – Culture – Société / Imagens fornecidas por Peter Heyrman. p. 179 ©Monica Maria Muggler.

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p. 182 e 183 © KADOC, Centre de Documentation et de Recherche: Religion Culture - Société / Imagens fornecidas por Luc Vints. Parte 6 p. 195 Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 197 © Johan Verberckmoes. p. 198 © Hendrik De Schrijver / Patrick Segers, Arquivo do Comité Ros Beiaard, Dendermonde, Bélgica. p. 200 Foto de Celso Oliveira. p. 201 acima: Foto de Carlos da Ponte. p. 201 no meio: Foto de Anne Van Aerschot. p. 201 abaixo: Foto de Danny Willems. p. 202 acima: Foto de Strange Milena, SOFAM, 2006. p. 202 abaixo: Foto de Carolina Mendonça. p. 203 Fotos de Daniele Hustin. p. 205 Fotos de Edivaldo Carneiro. p. 206 à dir.: Foto de Patricia Argolo. p. 207 acima: Foto de Arlene Rocha. p. 207 abaixo: Foto de C. Garmendia. p. 208 acima: Foto de C. Garmendia. p. 208 abaixo: Foto de Bernard Lovens. p. 209 Foto de Didier Minne. p. 210 Acervo pessoal de Carmem Navau Torres. p. 211 e 212 Acervo do Centro de Memória do Circo / Departamento do Patrimônio Histórico / Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. p. 213 Fotos de Angelika Berndt, do projeto Crescer e Viver. Parte 7 p. 218 Retrato do livro Dias, Odette Ernst. Mathieu-André Reichert: um flautista belga na Corte do Rio de Janeiro. Brasília, Editora UNB, 1990. p. 222 e 223 Fotografias de Katrijn Friant. p. 224 Acervo pessoal de Eliane Rodrigues. p. 225 e 226 © Daniel Achejidian. p. 227 Foto de Vivian Oswald. p. 230 © Carlos Alberto. Parte 8 p. 235 Fotos de Simone Krunas. p. 236 © Jungle Films. p. 238 e 239 © Babi Avelino. p. 240 à esq.: © Lucie Wajnberg. p. 240 à dir.: © Marc-Henri Wajnberg. p. 241 © Lazhari Abdeddaïm. p. 243 © Carlos Alberto. p. 244 e 245 © Icaro Alba. p. 246 ©Jean Timmerman. p. 247, 248 e 249 © Tarantula. p. 250 © Diego Santana Claudino.

p. 251 e 252 © Jonas Hamers. p. 253 à esq.: © Reynald Halloy. p. 253 à dir.: © France Dubois. p. 254 © Reynald Halloy. p. 255 e 256 à esq.: © Thierry-Michel. p. 256 à dir.: © Les Films de la Passerelle. p. 257 à esq.: © Eve Boilard. p. 257 à dir.: © Heron Ferreira. p. 258 © Gigi Mete. p. 259 e 260 © Gustaaf Verswijver. p. 261 e 262 à esq.: Acervo pessoal de Nicolas Hallet. p. 262 à dir.: © Simone Dourado. Parte 9 p. 269 e 270 @ Acervo pessoal de Alex Fernandes Bohrer. p. 272 e 273 Pinacoteca do Estado de São Paulo / Coleção Brasiliana / Fundação Estudar / Reprodução de Sérgio Guerini. p. 275 © Christie’s Images Limited (“Christie´s”). p. 276 Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo / Reprodução de Hélio Nobre. p. 277 esq.: Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo / Reprodução de Hélio Nobre . p. 277 à dir.: Acervo da Biblioteca do Mosteiro de São Bento. p. 279 Coleção Museu de Arte de Belém – MABE / Reprodução de Aldrin Moura Figueiredo. p. 280 Coleção Particular de Aldrin Moura Figueiredo, Belém / Reprodução de Aldrin Moura de Figueiredo. p. 281 Acervo pessoal de Jef Van Grieken. p. 282 e 283 © Françoise Schein. p. 288 à esq.: imagem fornecida por Afrânio Fonseca de Paula © Sidnei Tendler. p. 290 © Inêz Oludé da Silva. p. 291 e p. 292 © Fundação “Collectie De Stadshof”, Museu Guislain, Gand. p. 293, 294 e 295 Acervo pessoal de Jacques Ardies. p. 297 Acervo pessoal de Daniel Achedjian. p. 299 e 300 Acervo Europalia.Brasil p. 302 © Ronaldo Cunha Dias. p. 303 e 304 © Hermann Huppen. p. 305 e 306 Acervo pessoal de Jamil Abib. 307 a 313 KADOC, Centre de Documentation et de Recherche: Religion - Culture - Société / Imagens fornecidas por Luc Vints. p. 314 Museu do Meio Ambiente / Jardim Botânico do Rio de Janeiro/JBRJ. p. 315 e 316 © Fotos de Raymond Bouillenne, 1923 / Museu do Meio Ambiente / Jardim Botânico do Rio de Janeiro/JBRJ. p. 317 © Bruno Gosse. p. 319 e 320 © Christine Leidgens. p. 321 © Ricardo Falcão de Vicq de Cumptich.

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Parte 10 p. 325 e 326 Fotos de Mateus Rosada p. 328 acima Foto de Luciana Mascaro p. 328 abaixo à esq.: Foto de Eddy Stols p. 328 abaixo à dir.: Acervo do EcoMusée Boisdu-Luc. p. 329 acima: Acervo do Eco Musée Bois-du-Luc. p. 329 abaixo: foto de Guilherme Gaensly , 1908/ Acervo Iconográfico do Museu da Cidade de São Paulo / Casa da Imagem. p. 330 à esq.: © S. Solano / Acervo do Eco Musée Bois-du-Luc. p.330 à dir.: Acervo do Eco Musée Bois-du-Luc. p. 331 Acervo pessoal de Bernard Pirson. p. 332 Acervo do EcoMusée Bois-du-Luc. p. 334 Acervo pessoal de Telma de Barros Correia / Fotografias de Philip Gunn. p. 335 e 336 Fotografias de Danielle Faccin. p. 337 Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo / Fotografia de Hélio Nobre. p. 338 Le Brésil à l’Exposition d’Anvers, 05.08.1885. p. 339 à esq. : Acervo pessoal Luciana Mascaro. p. 339 à dir.: Pavillon du Brésil, Exposition Bruxelles 1910. p. 340 “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, FOTOALBUM # 83_001. P. 341 La Technique Des Travaux, Juillet, no. 7, 11ème année, p.358. p. 342 Foto acervo pessoal de Emeil De Kooning. p. 343 e 344 Foto Lucien Willems, Acervo VA&S, Ugent (autorizada por Emeil De Kooning). p. 345 Acervo pessoal de Dominique Vanpée. p. 347 e 348 Fotos de Cassio Ramiro Mohallem Cotrim. p. 349 e 350 © IPHAN-Paraty/RJ. p. 351 acima: Acervo B-architecten. p. 351 abaixo: Foto de Hilde Duerinck. p. 352 Foto de Sven Mouton. Parte 11 p. 355 e 357 Acervo pessoal de Roland Renson. p. 359 Foto de Simone Krunas. Parte 12 p. 365 © Paul Wittamer. p. 366 abaixo e acima à dir.: Fotos de Régis De Bel. p. 372 © Alex Atala. p. 373 Fotos de Ricardo de Vicq de Cumptich.

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