2014 - A pena de Victor Hugo em Os Miseráveis: romance historiográfico e reparação social

June 14, 2017 | Autor: Jean Pierre Chauvin | Categoria: Victor Hugo, Literatura Francesa, Sociedade, Romantismo, Os Miseráveis
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[CHAUVIN, Jean Pierre. A pena de Victor Hugo em Os Miseráveis: romance historiográfico e reparação social. In: HUGO, Victor. Os Miseráveis. Tradução: Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2014, pp. 19-33]

A pena de Victor Hugo em Os Miseráveis: romance historiográfico e reparação social Jean Pierre Chauvin1

Derrubemos a golpes de martelo as teorias, as poéticas e os sistemas. Atiremos por terra o velho revestimento de estuque que mascara a fachada da arte! (Victor Hugo)2

O homem O francês Victor-Marie Hugo (1802 – 1885) tinha vinte e nove anos, quando O corcunda de Notre-Dame foi editado; e sessenta, quando Os miseráveis foi lançado, em maio de 1862. Publicada por uma editora sediada na Bélgica (A. Lacroix, Verboeckhoven & Cie), a obra contou com uma intensa divulgação, com meses de antecedência, promovida substancialmente por intermédio dos antigos reclames:3 anúncios publicitários em jornais, nas seções reservadas a crônicas ou folhetins. Em termos comerciais e culturais, tratava-se de um feito extraordinário, àquela altura, tendo em vista o alcance e os meios relativamente limitados com que os livros eram divulgados, especialmente na imprensa. O autor testemunhou uma verdadeira revolução no próprio modo de se divulgar uma obra literária, neste caso, com pendão para o drama e a história. De início, apenas a primeira parte do livro (Fantine) foi estrategicamente colocado em circulação, semeado em diversas cidades da França. O título vendeu enorme quantidade em questão de dias, o que revelava o poder da imprensa e o alcance do romance, uma das obras mais conhecidas do autor.

1

Pesquisador de Pós-Doutorado, junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo. Autor de O Alienista: a teoria dos contrastes em Machado de Assis (2005), entre outros. É afiliado à União Brasileira de Escritores. 2

“Prefácio” do escritor francês à sua peça teatral Cromwell, de 1827 (apud Álvaro Cardoso Gomes; Carlos Alberto Vechi. A estética romântica: textos doutrinários comentados. São Paulo: Editora Atlas, 1992, p. 118). 3

O termo, originário do Francês, poderia ser traduzido literalmente, e sem se perder o sentido original, de clamar duas vezes (re-clame), em Português. Ainda no final século XIX, a palavra publicidade tomou o seu lugar, com o advento da chamada Imprensa Moderna.

Desde então, o nome de Victor Hugo passou a ser associado ao consumo de literatura pela massa, possivelmente devido ao tema (de feição moral), e em função da linguagem (à época, considerada popular) empregada pelo escritor. Hugo foi um polígrafo, no amplo sentido do termo. Além de influente político em seu tempo, dedicou-se ao teatro, à poesia, ao romance e ao gênero memorialístico. Ele também tinha talento para o desenho e a pintura. Tratava-se de um homem erudito e profundo conhecedor da história de seu país; respeitado também como crítico literário, e que se tornou o porta-voz dos escritores românticos. Um de seus textos mais conhecidos é o prefácio que escreveu para Cromwell, peça teatral de sua autoria publicada em 1827, com que estreia na dramaturgia. Naquela ocasião, ele tinha vinte e cinco anos e alguns livros de poesia, que já ultrapassavam as fronteiras de seu país. Franco defensor da liberdade formal, o escritor atacava os adeptos do Classicismo, ainda em vigor na França. A combinação de gêneros, em um mesmo e volumoso livro de teor predominantemente ficcional, como é o caso de Os miseráveis, parece responder aos anseios do próprio poeta, dramaturgo e romancista, que desde muito jovem defendia a liberdade de composição ficcional e se mostrava em desacordo com as teorias a respeito da distinção dos gêneros (lírico, épico, dramático), proposta pelos antigos greco-latinos, especialmente a partir de Aristóteles (384 – 322 a.C.) A relevância de sua obra, que não se restringia ao seu país de origem, foi enorme, possivelmente também em função de seu posicionamento nas letras e na esfera pública. Vale recordar que o autor foi um severo contestador do Império de Napoleão III, o que lhe valeu o auto-exílio, em Guernsey - território da Coroa Britânica, já naquele tempo. O episódio é sobremodo conhecido e beira o extraordinário. Hugo deixou Paris em 3 dezembro de 1851, no dia seguinte ao golpe de estado impetrado por Luís, sobrinho do antigo imperador Napoleão I. Lá ele permaneceria por quase duas décadas, o que, de acordo com seus biógrafos4, teria possibilitado que concluísse a redação de Os miseráveis, inclusive. O poeta Manuel Bandeira5 registrou o fato de o escritor ter regressado “a Paris depois da queda de Napoleão III”, em 1870, tendo sido “eleito para a Assembléia Nacional”, onde se converteu “numa espécie de ídolo da democracia”. Deputado vinculado à Segunda República, após a volta do exílio, na década de 1870, Victor Hugo foi eleito Senador. Há notícia de que cerca de dois milhões de habitantes teriam 4

Vejam-se as obras de André Maurois. Olympio ou la vie de Victor Hugo. Paris: Hachette, 1954; Jean-Bertrand Marie Barrère. Victor-Hugo, l’homme et l’oeuvre. Paris: CDU, 1984; Graham Robb. Victor Hugo – uma biografia. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Record, 2000; e a edição ilustrada de Carneiro Leão: Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. 5

Manuel Bandeira. Noções de história das literaturas. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946.

seguido o seu enterro (ROBB, 2000). Em 1885, sua “morte (...) provocou um luto universal; seu enterro foi uma apoteose, e o corpo esteve sob o Arco do Triunfo antes de ser conduzido ao Pantheon”. (BANDEIRA, 1946, p. 100) No Brasil, pelo menos três leitores de sua obra se deixaram contagiar vivamente pelo diálogo com os seus poemas, artigos, peças teatrais e romances: o político, orador e escritor cearense José Martiniano de Alencar (1794 – 1860); o advogado e poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves (1847 – 1871), ambos ligados ao Romantismo; e o escritor e carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908), considerado nosso maior escritor do século XIX. A obra Os miseráveis provavelmente seja uma das narrativas mais extensas e populares do Ocidente, dentre aquelas publicados em seu tempo. Esta informação é especialmente digna de nota, tendo-se em vista que o livro foi lançado em etapas distintas. Nos anos que se seguiram ao estrondoso êxito de vendas, na França (1862), costumeiramente as numerosas edições da obra em língua portuguesa traziam o romance dividido em alguns volumes. As versões destinadas ao público brasileiro indicam que esta tendência se manteve, a exemplo da edição de 1957, organizada pela Editora das Américas, em sete tomos; a edição de 1962, capitaneada pela Edigraf, com três volumes; e a presente re-edição, a cargo da Martin Claret. O romance estrutura-se em cinco “Partes”. A “Primeira” [Fantine], a “Segunda” [Cosette] e a “Terceira” [Marius] contêm oito livros, cada. A “Quarta” [S. Diniz], ocupa quinze livros; e a final, “Quinta” [Jean Valjean], apresenta outros nove. Ao leitor de nossos dias, cabe o alerta quanto às seções em que a obra está dividida. O termo livro é uma denominação de teor clássico, vinculada, originalmente, aos tratados de Retórica, Filosofia, História, Matemática e Ciências, legados pelos pensadores greco-latinos da Antiguidade. A Bíblia católica, para mencionar outro exemplo milenar e conhecido universalmente, está agrupada de maneira relativamente similar. Os livros que nomeiam as Escrituras preservam a mesma denominação, com o intuito de facilitar o agrupamento dos textos reunidos no Antigo e Novo Testamento. Seria interessante ponderar o fato de Victor Hugo ter concebido tal estrutura para a obra - com a ajuda, ou não, dos editores belgas. Seria o resultado algo até certo ponto usual, decorrente de uma longa tradição de edições com o mesmo formato? A disposição dos capítulos

do romance residiria, por outro lado, em uma maneira de obter máxima coerência entre o teor moralizante do livro e o seu propósito didático? Ora, na forma como a obra está organizada, a ordenação de suas “partes”, “livros” e “capítulos” tanto permite obedecer a linearidade narrativa, quanto possibilita que o leitor retome a leitura, em caráter pontual, dedicando novo olhar a respeito de determinados episódios de sua preferência. O propósito didático do romance pode ter aproximado ainda mais o escritor de seu público. Vale lembrar que Hugo passou a maior da vida lutando pelos ideais libertários, durante o turbulento cenário cultural e político vivenciado pela França pós-napoleônica. Ele falava em nome do povo, de si mesmo e dos demais escritores românticos. Razão pela qual os manuais de história da literatura são unânimes em veicular a imagem de um escritor coerente com os ideais que defendia em sua longa carreira pública. No âmbito da linguagem empregada no romance, é particularmente interessante observar que, em muitos momentos, os episódios de Os miseráveis se aproximam de um franco lirismo, tipicamente romântico, como reparou Otto Maria Carpeaux. 6 À primeira vista, a dicção hugoana revela um aparente contraste com o formato clássico do próprio gênero em que o romance estava inserido. No entanto, o teor da história vivida por Jean Valjean desfaz rapidamente uma eventual confusão entre forma, expressão e conteúdo. Um sinal disso está no fato de o enredo não se restringir ao caráter exclusivamente romanesco. Em determinados capítulos, parecemos tomar contato com um autêntico tratado sobre os vícios e virtudes, contabilizados por personagens enigmáticos, sob a voz de um narrador onisciente, que de tudo e todos sabe: tanto dos indivíduos quanto do contexto social que os cerca. O fato de Victor Hugo ter sido grande conhecedor da história de seu país certamente é algo que se deveu ou consolidou durante sua extensa carreira como deputado e senador. Escrito ao longo de um longo período de tempo, na obra o tom romanesco frequentemente se aproxima da linguagem de um verdadeiro manual de história do cotidiano – vide os detalhes testemunhados pelo próprio autor -, deslocando Os miseráveis para além do plano estanque, fixo ou estável da pura ficção. No que diz respeito ao enredo, trata-se de um extenso e prazeroso universo que, a despeito do apelo popular, revela várias marcas da erudição hugoana. Em meio à variedade de cores, lugares, situações e personagens, a pena de Victor Hugo ora resvala para o dado histórico, ora para o ficcional; ora estamos diante de um romance tradicional de matriz épica; ora, diante de cenas cândidas, aderentes ao lirismo romântico. 6

Otto Maria Carpeaux. O Romantismo por Carpeaux. Rio de Janeiro: Editora Leya, 2012. Volume 6. [Trata-se da reedição de A história da literatura ocidental, também em dez volumes, publicada originalmente por Carpeaux em 1959.]

Como não nos sensibilizarmos com a figura do bispo Myriel de Digne, em sua sublime generosidade e bondade, na condição de homem religioso? A primeira seção do romance, que gira em torno da sofrida biografia de Jean Valjean, segue até a acolhida de Fantine: uma exprostituta que deixara a filha Cosette com outra família, por absoluta falta de condições financeiras. À medida que a história avança, acompanhamos a aproximação entre Valjean e a filha de Fantine. Durante o período em que residem em Paris, Jean e Cosette vivem como pai e filha – uma belíssima relação de empréstimo que serve a contrastar vivamente com os olhos frios, duros e afiados de Javert - o implacável inspetor de polícia que vive no encalço do antigo prisioneiro. Para além da angústia provocada pela severa perseguição ao protagonista, deve-se lembrar a figura de Thérnardier, cujas ações são presenciadas por Marius. Eis aqui um novo antagonismo, por obra dos coadjuvantes, que parece reproduzir em escala menor os dissabores sofridos pelo protagonista, quase sempre ao alcance das mãos do inspetor. Vale relembrar o desejo indisfarçável do escritor em imiscuir uma quantidade considerável de elementos de matiz histórico em meio às peripécias de suas criaturas. Na terceira seção do romance, em que deparamos com o personagem Marius, há, inclusive uma detalhada explicação a respeito do sargent de ville – figura comum em Paris, na época em que o romance foi publicado, por sinal. A menção direta às características e atribuições deste sargento da cidade (ou comissário local, em uma tradução menos literal da expressão) colabora com a impressão, por parte do leitor, de que Jean Valjean, Fantine e Cosette são criaturas desamparadas que parecem ter brotado do mundo real, mas alçadas a uma segunda chance, no plano da fábula, e sob o juízo de um leitor em seu favor. Nesta e em outras ocasiões, o narrador veste a máscara de historiador e se dirige ao leitor empírico, o que contribui para uma sobreposição de papéis, como se o propósito do livro fosse extrapolar o plano da narração. Seria uma pura ficção? Victor Hugo falaria conosco pela voz de seu narrador? De uma coisa podemos nos certificar: a narração em terceira pessoa seria um artifício bastante adequado para, simultaneamente, conceder maior liberdade formal ao livro, sem que o escritor precisasse abandonar algumas das convenções inerentes ao gênero composicional. Dado o forte componente moral do romance, o leitor é conduzido ao longo da narrativa a adotar o ponto de vista do narrador, em sua franca benevolência com relação às densas e dramáticas criaturas que compõem o aquele universo.

Provavelmente por esse mesmo motivo, em recente leitura sobre a obra, o filósofo e historiador Renato Janine Ribeiro7 fizesse alusão ao caráter solidário, embutido nas mensagens transmitidas pelo escritor, sob a forma de episódios pautados pelo sofrimento e caracterizados pela penúria material e pela iniquidade social, que vitimam os personagens. O romance parece traduzir o apelo autoral da esfera empírica para o plano da ficção. Estaríamos perante uma demanda de Victor Hugo para que atentássemos para a miséria dos homens, naquele momento histórico? Ao mesmo tempo em que comunica detalhadamente a feição e o destino vivenciado pelas personagens, a intriga está de tal forma arraigada às criaturas que precisamos estabelecer um movimento constante, para além de nosso costumeiro papel de leitores passivos. Talvez assim, possamos encarar as mazelas vivenciadas por aquelas criaturas, como uma experiência que não se pode repetir, nem mesmo em termos históricos. Ora, tendo em vista o caráter moralizante e didático do livro; considerando-se a característica híbrida desta obra, a oscilar entre a ficção e a realidade de um determinado tempo e espaço, a literatura revela-se, como poucas vezes, uma possibilidade edificante. Sob esse aspecto, não se trata de ler meramente para passar o tempo, mas para municiarmos a nós mesmos, sob o respaldo do ingrediente romanesco. Dir-se-ia que esta obra pretende demover o leitor de seu confortável espaldar, sorvendo o seu café, ao abrigo das intempéries que acontecem nas ruas. O narrador está à beira de sugerir que o se tome alguma atitude, com o fito de minorar as dificuldades enfrentadas por aqueles que não frequentam os mesmos ambientes que os próprios leitores, aliás. No plano da expressão, o ritmo ondulante da narrativa – rica em idas e vindas; encontros e desencontros; fugas e rara calmaria, casa-se à instabilidade emocional dos personagens. Talvez por essa razão, o enredo contraponha generosas descrições de ambientes a situações pautadas por sequências inquietantes que beiram episódios de feição épica: talvez, a vocação principal do livro, não por acaso considerado um dos maiores clássicos da literatura mundial. Da mesma forma, o enredo sugere muitas imagens ao leitor, o que pode levá-lo a registrar e fixar afetivamente e na memória uma série de eventos, como se estivesse a assistir à representação do texto em uma peça teatral de teor universal, mas crivo particular. Não parece ser por acaso que o romance tenha sido adaptado para dezenas de versões, tanto no teatro, quanto no cinema e na televisão. Afinal, trajetória de Jean Valjean é fortemente marcada pelo elemento pictórico. A esse respeito, seria oportuno assistir à excelente série de tevê veiculada em 2002, com a participação de Gérard Depardieu e John Malkovich, respectivamente nos papéis de Jean Valjean e Javert. 7

Refiro-me à “Apresentação” constante da edição em dois volumes de: Victor Hugo. Os miseráveis. 4ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012 - traduzida por Frederico Ozanam Pessoa de Barros.

Dentre alguns dentre os fatos, direta ou indiretamente relacionados a este notável romance, a versão musical de Os miseráveis, que estreou na Broadway em 1987, ultrapassou a impressionante marca mais de seis mil e quinhentas apresentações, nos anos seguintes. Referência literária bastante conhecida por parte dos portugueses e brasileiros, em meados do século XIX, os ecos da obra hugoana chegaram e se espalharam pelo país, recém independente, talvez especialmente em função da força com que éramos contagiados culturalmente pela literatura francesa e os ideais libertários que perpassavam as obras que aqui chegavam. Para o historiador Otto Maria Carpeaux, “a obra de Hugo é um universo literário, compreendendo todos os gêneros. Mas Hugo parece sempre poeta lírico.” (2012, p. 302). O fato é que o autor tornou-se uma das maiores vozes do Romantismo ocidental, representado especialmente pela Europa, naquele tempo. Vale relembrar a configuração geral da escola literária, na Europa, para melhor entender o seu alcance. Segundo Alfredo Bosi8: Na França, a partir de 1820, e na Alemanha e na Inglaterra, desde os fins do século XVIII, uma nova escritura substituíra os códigos clássicos em nome da liberdade criadora do sujeito. As liberações fizeram-se em várias frentes. Caiu primeiro a mitologia grega (...) O martelo, augurado por Victor Hugo no prefácio do Cromwell, põe abaixo todas as convenções, começando pela vetusta lei das três unidades que os tráficos da Renascença haviam tomado a Aristóteles. (2001, p. 96)

Evidentemente, o influxo provocado pela recepção à obra dos românticos por aqui, foi grandemente favorecido pela cultura média letrada urbana, e em ascensão, que se habituava à leitura periódica dos jornais. José Ramos Tinhorão9 destacou o fato de que: Os romances de folhetim, quase sempre traduzidos do francês, começaram a ser publicados com regularidade, em jornais brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro, ainda na década de 1830. Um dos introdutores do novo gênero – e a quem, por sinal se iam dever as traduções de O conde de Monte Cristo, em 1845, e Os miseráveis, em 1862 – foi o jornalista conservador Justiniano José da Rocha. (1994, p. 29)

Aos olhos do leitor de nosso tempo - um período histórico em que a literatura vem sendo amplamente divulgada por intermédio do hipertexto, dos multi-meios e dos aparatos eletrônicos e digitais -, pode soar algo estranho que o livro compartilhasse, naquele tempo, de estatuto similar aos jornais e revistas - veículos de orientação naturalmente diversa e duração sabidamente efêmera. 8

9

Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 39ª ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

José Ramos Tinhorão. Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade). São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1994.

O próprio Tinhorão faz uma ressalva importante a esse respeito, uma vez que: (...) nem sempre os folhetins foram considerados subliteratura e, em seu tempo, muitos autores de romances de rodapé de jornal alcançaram fama e respeito. (1994, p. 31)

Recepção de Victor Hugo no Brasil No Brasil, tanto os escritores românticos, quanto os realistas mostravam-se admiradores e, em alguns casos, devedores da obra do autor francês. Eugênio Gomes 10 resgatou o relevante testemunho de José de Alencar, a respeito das matrizes francesas que tanto o inspiraram a compor os seus livros: A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado por mera casualidade aquele arrojo de criança a tecer uma novela com os fios de uma aventura real, fui encontrá-la fundido com a elegância e beleza que jamais lhe poderia dar. (ALENCAR Apud GOMES, 1958, p. 19)

As obras de Victor Hugo circularam desde relativamente cedo, entre nós, a princípio entre poetas. Antonio Candido11 relembra, também a respeito de Alencar, que: (...) [o seu] desejo de escrever romances veio por duas etapas (...). Aos quinze anos, em São Paulo, ainda estudante de preparatórios, lendo Chateaubriand, Dumas, Vigny, Hugo, Balzac, imagina um livro que fosse, como o dos franceses, um “poema da vida real”. (2000, p. 200)

A obra hugoana é bastante sintomática de uma nova concepção de mundo pósrevolucionário, assinalado pela tomada da Bastilha, ao final do século XVIII. Tratava-se de um momento histórico em que contava e pesava a novíssima categoria de originalidade, em lugar da retomada de modelos clássicos, como observou João Adolfo Hansen (1992). 12 O ineditismo da obra torna-se índice de valoração. Substitui-se a manutenção dos autores do passado, considerados exemplares, pela capacidade do escritor de se fazer inaugural. Entra em jogo uma concepção radical, em termos culturais, representada pela instância autoral.

10

Eugênio Gomes. Aspectos do romance brasileiro. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1958.

11

Antonio Candido. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9ª ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. Vol 2. 12

João Adolfo Hansen. Autor. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

O escritor acumula à sua identidade, uma persona que passa a escrever. Por isso, cria narradores e personagens inseridos em tramas pautadas ora pelo individualismo, ora pela motivação de ordem historiográfica e caráter coletivo, ligado ao popular. Pressupondo-se a desejável maior liberdade formal, em verso e prosa, o e escritor empenhava-se no reposicionamento de si mesmo: indivíduo criador e emancipado também em função da literatura. No sentido moderno, autor é um termo que veio a ganhar ampla adesão justamente com o Romantismo, substituindo o até então chamado letrado ou homem de letras. Dito de outro modo, o fator subjetivo sugeria, em tese, uma maior coesão entre escritor, obra e público. Tratava-se de uma série de procedimentos, no plano político, social e cultural, que alteraram sensivelmente o paradigma classicista, que estimulava, desde o Renascimento, a imitação (ou, quando muito, a emulação) dos escritores de tempos predecessores. Logo, a virada do século XVIII para o XIX mostrou algo bem diferente, radical, considerando-se o que a história e a filosofia testemunhavam até aquele momento. No Brasil, as notícias chegavam a vapor: “O Romantismo francês – que vai atingir sua expressão mais forte por volta de 1840 – se define no Brasil pelo canto do poeta, no romance, no teatro. A literatura deixara de ser um reflexo das letras portuguesas.” (RENAULT, 1984, p. 196) 13 A assunção da subjetividade se devia grandemente a uma concepção de mundo que passava pela vida na cidade: território em que o indivíduo, ainda que tolhido pelo relógio ou pelo trabalho regrado, alimentava o desejo de se expandir. Ele poderia evadir não necessariamente para o campo, mas para dentro de si mesmo. Ronald de Carvalho14 sintetizou bem aquela nova percepção dos homens em geral: O romantismo, segundo seus filósofos, os seus críticos e os seus historiadores, representa a vitória do indivíduo sobre a disciplina moral e intelectual do classicismo, que transformara a cultura humana, desde o século XVI, num jogo de princípios invariáveis e regras inflexíveis, dentro dos quais o espírito se movia com dificuldade, e quase sem autonomia. (1968, p. 205)

Claro esteja: a influência de Victor Hugo, entre os escritores brasileiros, não se limitou à prosa. José Guilherme Merquior15 foi um dos primeiros a evidenciar a filiação de Castro Alves à poesia de tom libertário, legada pelo escritor: A partir de 1860, a poesia oratória de temas político-sociais, hipnotizada pela eloquência versificada do Victor Hugo de Les Châtiments (1853),

13

Delso Renault. O Rio antigo nos anúncios de jornais. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1984.

14

Ronald de Carvalho. Pequena história da literatura brasileira. 13ª ed. Rio de Janeiro: F. Brigiuiet & Cia., Editores, 1968. 15

José Guilherme Merquior. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

receberá da Guerra do Paraguai e, sobretudo, da campanha abolicionista estímulos decisivos. (1996, p. 128)

A leitura do historiador Fausto Cunha16 reforça a hipótese do crítico: (...) o que vai caracterizar essencialmente a década de 1860-70 é o surto do hugoanismo. Após a hegemonia de Lamartine, de Musset, Victor Hugo passa ao primeiro plano (...) Foi um estado de espírito, em sintonia com a fermentação do Brasil naquela etapa. Sua luta contra Napoleão III era, para quase todos os nossos poetas republicanos, ou apenas antimonárquicos, o canhão que deveria derrubar o trono de Pedro II. Um dos últimos românticos, Luís Murat, transformaria Hugo em profeta de uma nova religião. (1971, p. 19)

Não parece haver motivo para duvidar que os romances franceses encontravam, em nosso país, um clima bastante propício à sua leitura e disseminação. As traduções de Victor Hugo foram copiosas e incluem o nome do Imperador Dom Pedro II e Machado de Assis – que verteu, entre nós inédito, o romance Les travailleurs de la mer (1866) para o Português. Cabe a observação, no entanto, de que nosso apreço em relação aos franceses advinha de um componente híbrido, como resultado da afirmação da identidade nacional e da independência cultural e política, frente a Portugal. O romantismo no Brasil não foi contemporâneo ao da França, embora as novidades vindas de Paris fossem avidamente esperadas por uma sociedade ansiosa por se libertar da influência da metrópole portuguesa e adaptar-se velozmente aos modelos culturais franceses. (CALLIPO, 2010, p. 29)17

Outro dado que se revelou bastante favorável à divulgação da obra hugoana entre os brasileiros se devia ao gosto dos leitores pelo tom historiográfico que se percebe na obra do escritor. A poesia e o romance de Victor Hugo eram consumidos por considerável número de admiradores: leitores tornados cativos, e para quem o nome do autor tornava-se referência para toda ocasião. A exemplo do que sucedeu na França, não só ou exclusivamente os jornalistas, advogados ou letrados da corte tiveram acesso à obra hugoana. É que a assimilação do modelo francês, em vestes, revistas e livros, pode estar na base, inclusive, da migração do chamado

16

Fausto Cunha. O Romantismo no Brasil: De Castro Alves a Sousândrade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1971. 17

Daniela Mantarro Callipo. Rimas de ouro e sândalo: a presença de Victor Hugo nas crônicas de Machado de Assis. São Paulo: Editora da UNESP, 2010.

romance histórico francês para as letras nacionais. José Veríssimo 18 defendia, há muito, a ideia de que: A inclinação dos românticos aos estudos históricos foi uma, e talvez a melhor das manifestações do sentimento patriótico que aqui se gerou da Independência. Deu-lhe corpo, estimulou-a, favoreceu-a a criação do Instituto Histórico, onde se procurou assídua e zelosamente estudar a nossa história, menos talvez por curiosidade e amor de sabê-la que por, mediante ela, justificar e exaltar aquele sentimento. (1963, p. 199)

Ora, nem só os escritores adeptos do Romantismo admiravam a obra de Victor Hugo. As pesquisas de Jean-Michel Massa (de 1960 e 2000), Gilberto Pinheiro Passos (2000) 19 e a já citada Daniela Mantarro Callipo (2010) mostram que Machado de Assis era um ávido leitor dos europeus, o que explicaria as recorrentes alusões aos pensadores e escritores da banda de lá do Oceano Atlântico. A proporção de livros de sua biblioteca revela que mais da metade de seu acervo pessoal se constituía de livros de títulos franceses, com manifesta predileção por alguns autores, como parecia ser o caso de Victor Hugo. (MASSA, 2001). Podem-se encontrar diversas peças e poemas traduzidos por Machado; contos e romances, cujas personagens reproduzem o discurso político e imitam a moda parisiense, com referências inclusive a Napoleão III (PASSOS, 2000). Cumpre lembrar que o sobrinho de Napoleão I era um sério desafeto de Victor Hugo. Talvez valesse a pena relermos Quincas Borba (1890): romance em que Machado conduz o ex-professor Rubião a imitar a figura de Napoleão I, também como sinal da acelerada demência do personagem. Seria este um aval machadiano, ainda que no plano da ficção, ao posicionamento de Victor Hugo, em sua luta no plano político contra o polêmico líder francês? O diálogo de Machado com a obra hugoana pode ser explicado de várias formas, como se percebe nas mais de seiscentas crônicas compostas pelo brasileiro, em décadas de colaboração na imprensa carioca. O contato inicial pode ter se dado pelo intermédio da poesia: (...) visto ser leitor de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Gonçalves de Magalhães, foi-lhe possível, por meio das epígrafes utilizadas nos poemas desses românticos, ter acesso a versos célebres, como as de Lamartine, Vigny e, certamente, de Victor Hugo. A amizade com Charles Ribeyrolles e a leitura da obra de Eugene Pelletran fortaleceram os laços com a cultura da França. (CALLIPO, 2010, p. 24)

18

José Veríssimo. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira, 1601 a Machado de Assis, 1908. 4ª ed. Brasília: Editora da UnB, 1963. 19

Jean-Michel Massa. A biblioteca de Machado de Assis: quarenta anos depois. In: JOBIM, José Luís. (Org.) A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2001. Gilberto Pinheiro Passos. O Napoleão de Botafogo. São Paulo: Editora Annablume, 2000.

Como se vê, havia por parte dos escritores brasileiros uma espécie de alinhamento cultural e, em certa medida ideológico, com a obra hugoana. Dessa perspectiva, pode-se afirmar que, além de terem homenageado um escritor de sua predileção, Alencar, Castro Alves e Machado auxiliaram a amplificar os efeitos e a preservar a numerosa produção do romancista francês entre nós. Enfim, partamos para a viagem. A partir de agora, o leitor tem a oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Valjean, Fantine e Cosette, em sua verdadeira peregrinação por entre o rigor da lei, personificada no inspetor Javert; o oportunismo perverso de Thérnardier; e a covardia de um bando de personagens anônimos, indiferentes às agruras de nossos heróis. Felizmente, o bispo de Myriel estará por lá para conceder o necessário consolo espiritual. Logo às primeiras páginas, ele estenderá um comovente apelo, de modo que a leitura do romance será muito mais que um passa-tempo. Afinal, estamos diante de uma poderosa denúncia. Em forma de ficção, é claro.

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