2014 Cultura visual e o uso de velhas tecnologias na arte contemporânea do Rio Grande do Sul: um estudo de caso

June 30, 2017 | Autor: Daniela Kern | Categoria: Contemporary Art (Brazilian Studies)
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CULTURA VISUAL E O USO DE VELHAS TECNOLOGIAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA DO RIO GRANDE DO SUL: UM ESTUDO DE CASO

Daniela Kern PPGAV/UFRGS [email protected]

Resumo: A presente comunicação pretende analisar de que modo se deu a formação da cultura visual dos jovens artistas Fernanda Gassen, Guilherme Dable, Jander Rama, Laura Cattani e Munir Klamt (Ío), Marielen Baldissera, Marina Guedes, Michel Zózimo, Nara Amelia Melo, Rafael Pagatini e Rochele Zandavalli, ligados ao cenário da arte contemporânea sul-riograndense, a partir da análise de suas respostas ao questionário Tradição em paralaxe, publicadas no livro Tradição em paralaxe: a novíssima arte contemporânea sul-brasileira e as “velhas tecnologias”, de minha autoria, cuja edição em 2013 foi possibilitada pela Bolsa FUNARTE de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais 2012.

Palavras-chave: Arte Contemporânea; Cultura Visual; Velhas Tecnologias.

O estudo da cultura visual dos artistas vem se estabelecendo como um campo de pesquisa importante e fecundo no cenário internacional e nacional, nas últimas décadas. Na verdade, antes de se constituir como uma área especial de investigação, já aparecia, em caráter muitas vezes fragmentário, nos textos críticos que apresentavam, em diferentes contextos, as obras dos artistas, suas motivações, seus procedimentos. No Rio Grande do Sul a situação não é diversa. São inúmeros os textos críticos publicados em catálogos de exposição, por exemplo, em que a cultura visual do artista, ou seja, suas preferências visuais, a formação de seu olhar, as imagens marcantes em sua formação, é referida. Tomando em consideração tal contexto, o que proponho aqui é o estudo da cultura visual de jovens artistas gaúchos por meio de um estudo de caso específico, a pesquisa Tradição em paralaxe: a novíssima arte contemporânea sulbrasileira e as “velhas tecnologias”, de minha autoria, contemplada em 2012 com a Bolsa

FUNARTE de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais e registrada na publicação de mesmo título, lançada pela Editora do Museu Julio de Castilhos em 2013. Foi aplicado, como parte dessa pesquisa, um questionário composto de cinco questões a um conjunto de onze jovens artistas, Fernanda Gassen, Guilherme Dable, Jander Rama, Laura Cattani e Munir Klamt (Ío), Marielen Baldissera, Marina Guedes, Michel Zózimo, Nara Amelia Melo, Rafael Pagatini e Rochele Zandavalli, e as respostas foram integralmente publicadas no referido livro. O que se propõe aqui é um estudo que não foi feito no ensaio introdutório de Tradição em Paralaxe, a saber, a análise da totalidade das respostas dos artistas à primeira questão do questionário, que diz respeito justamente à formação de sua cultura visual. Tal estudo visa estabelecer, de modo mais sistemático do que as já referidas menções esparsas ao tema da formação da cultura visual de determinados artistas em catálogos e publicações semelhantes, um panorama das principais características geracionais desta formação entre artistas residentes e atuantes no Rio Grande do Sul. Também é objetivo da presente comunicação apontar algumas relações entre características específicas da cultura visual deste grupo de artistas e sua preferência, em determinadas etapas de suas respectivas carreiras artísticas, pelo recurso ao uso das chamadas velhas tecnologias na constituição de suas obras. Antes, no entanto, de analisar, caso a caso, as informações apresentadas pelos já mencionados artistas acerca da constituição de sua própria cultura visual, convém reforçar a afirmação de que tais informações costumam aparecer, na tradição crítica local, apenas incidentalmente em catálogos de exposição, sem serem objeto de análise mais aprofundada. Quando se trata de apresentar os artistas em obras mais gerais, de consulta, a preferência é dada à apresentação da poética do artista e do resumo de seu currículo. Esse é o modelo que podemos encontrar em um levantamento abrangente de jovens artistas atuantes no Rio Grande do Sul, como Entre: Curadoria A – Z, de Ana Zavadil (2013), recentemente publicado. Eventualmente, com a adoção de outra estrutura, como as entrevistas, pode-se encontrar nesses grandes mapeamentos geracionais elementos indiciais da formação da cultura visual dos artistas, como em outra obra de 2013, essa publicada em São Paulo: Arte Brasileira Contemporânea, de Adriano Pedrosa e Luisa Duarte (2013). Em Tradição em Paralaxe a primeira das cinco perguntas que formulei para todos os artistas participantes do projeto visava justamente trazer à luz suas reflexões sobre a formação de sua própria cultura visual. Tal pergunta tinha o seguinte enunciado:

Falar que vivemos em um mundo superpovoado de imagens já se tornou um truísmo, e mesmo disciplinas acadêmicas relativamente jovens, como os Estudos Visuais, partem desse pressuposto. Com essa afirmação em mente, te pergunto, para começarmos nossa entrevista, como se deu, em linhas gerais, a formação da tua própria “cultura visual”. O que visualmente te chamou e chama a atenção? Gostaria que discorresses um pouco sobre como percebes

essa jornada pessoal de formação do próprio olhar, considerando o tipo de “matéria visual” com a qual já te deparaste. (KERN, 2013, p. 63)

Seguindo a ordem alfabética adotada no livro, as primeiras respostas a aparecer são as de Fernanda Gassen (1982), fotógrafa, que atualmente conclui o doutorado em Artes Visuais no PPGAV/UFRGS. Fernanda cresceu em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, sem acesso direto e imediato a exposições de arte erudita. No entanto, como sabemos, em uma cultura permeada pela imagem facilmente reproduzida, as fontes imagéticas se mostram as mais variadas. Fernanda procura resumir quais foram, especificamente, as suas: Nesta época, a televisão era o espaço midiático para ter contato com imagens, os filmes da sessão da tarde, as novelas que ainda não estavam sob o julgo do politicamente correto, a estética dos anos 90, os super-heróis japoneses, a Caverna do Dragão, os Thundercats, o programa da Xuxa, dentre outros. Não havia cinema na minha cidade, minha primeira experiência com a grande tela foi aos treze anos, aqui em Porto Alegre. As revistas e enciclopédias ou coleções de livros infantis estavam muito presentes. Ainda tinha acesso às coleções de livros dos meus pais, muito material ilustrado de botânica, de culinária, etiqueta, coisas que hoje figuram na minha produção artística. (GASSEN apud KERN, 2013, p. 67)

Fernanda estabelece também, em sua resposta, uma relação direta entre o tipo de imagens com o qual tinha contato na infância, contidas em livros, revistas, ou emitidas pelo cinema e pela televisão, e as que continuam a interessá-la hoje, como artista:

Muito embora, hoje, as imagens que realmente me chamam atenção sejam as constantes em livros ou revistas e as mediadas por um ecrã. Algumas coisas que se perpetuam, desde a infância, são a atração pelos retratos antigos em preto e branco e imagens de férias familiares. (GASSEN apud KERN, p. 67)

Coleções de fotos de família também são, para Fernanda, um disparador importante para o interesse pela imagem. Tanto que ela escolheu, para acompanhar sua resposta sobre cultura visual no livro, uma fotografia de família, em que sua mãe aparece criança, em um velório (Figura 1).

Figura 1. Fotografia familiar. Fonte: acervo pessoal de Fernanda Gassen.

O despertar do interesse pelas obras de arte consideradas eruditas acontece mais tarde. A primeira visita a uma exposição de arte, em Santa Maria, ocorrerá por iniciativa da professora de artes da escola onde estudava, e esse tipo de experiência se tornará frequente quando Fernanda se tornar estudante de artes na Universidade Federal de Santa Maria. Em outros momentos da resposta Fernanda reforça a importância do contato inicial com as imagens “não-arte”, como as denomina James Elkins (2011), para sua futura atuação como artista: Neste percurso, a imagem foi se tornando um bem inevitável, certas qualidades percebidas nas imagens antigas me chamam muita atenção, ilustrações de livros, todo esse imaginário que hoje é tão difundido em distintas vias. (GASSEN apud KERN, 2013, p. 68)

A memória visual de Fernanda apresenta semelhanças com a de outro artista de sua geração, Guilherme Dable (1976), desenhista e um dos gestores do Atelier Subterrânea, em Porto Alegre, que também recupera suas lembranças sobre os primeiros contatos com a imagística proveniente da cultura de massa:

Como muita gente da minha geração, minha cultura visual começou a se formar pela cultura pop do final dos anos 70 e início dos 80; TV e quadrinhos. Eu aprendi a ler muito cedo e li quadrinhos compulsivamente na

infância. [...]. Das minhas lembranças de infância tem também a quantidade enorme de livros e revistas na casa dos meus avós maternos. Lembro muito bem de uma coleção da versão brasileira da National Geographic, a Revista Geográfica Universal, e do escritório lotado de livros – astronomia, muitos atlas, enciclopédias. Lembro de uma coleção com capa marrom que me fascinava, com seções sobre cada país, onde eu via fotos desses lugares, mapas, bandeiras. Eu gostava de desenhar essas bandeiras. (DABLE apud KERN, 2013, p. 77)

É de igual maneira na vida adulta que Dable, cuja formação inicial voltou-se ao design, indica ter feito um investimento de tempo e energia para aumentar seu repertório de imagens do circuito da arte dita erudita, seja ela contemporânea ou não:

Nesses quase dez anos que se passaram desde que eu deixei o design gráfico para me dedicar ao desenho também houve, de minha parte, um movimento bastante intenso de minha parte para aumentar meu repertório de imagens. Me organizei para viajar e ver o máximo de coisas que eu pudesse, investi em livros e formação, buscando ampliar meu repertório visual e também tentar compreender questões e recorrências na história da arte. (DABLE apud KERN, 2013, p. 78)

Laura Cattani (1980) e Munir Klamt (1977), artistas multimídia da Ío, reafirmam a natureza da constituição inicial da cultura visual de vários dos jovens artistas em atuação hoje no Rio Grande do Sul: Esta pergunta – e o tipo de questão que nos interessa – talvez seja consequência da cultura visual que constituiu nossa formação. Apesar de termos crescido assombrados pela imagem, não somos nisso muito diferentes de nossos pares geracionais: uma mescla de referências pop (desenhos animados, histórias em quadrinhos), filmes variados, reproduções de obras de arte em livros com baixa qualidade de impressão (e muitas vezes em preto e branco) e, mais recentemente, a rápida evolução da oferta visual fornecida pela internet. (ÍO apud KERN, 2013, p. 87)

Mais do que descrever em detalhe as especificidades das fontes visuais que inicialmente despertaram seu interesse, Laura e Munir se dedicam a pensar a respeito do que definem como “imagem ausente”:

Uma imagem mental polimorfa e evasiva presente na literatura fantástica (como ilustração, o Horla de Maupassant), mas também na especulação científica (e das pseudociências) de alguns fenômenos de causa imprecisa (por exemplo, o universo antes do big bang). A tradição Romântica entende que o invisível se manifesta através do visível. (ÍO apud KERN, 2013, p. 88)

É essa “imagem ausente”, “imagem imprecisa” ou “imagem-labirinto”, de difícil localização espacial ou temporal, que permeia a construção da cultura visual de ambos. Para o gravador Jander Rama (1978), por outro lado, em meio à base visual comum à formação de outros artistas de sua geração, houve o interesse em destacar a

relação entre a intensa dedicação ao desenho na infância (são dois mil os desenhos que o artista guarda dessa época), de caráter algo enciclopédico, pois, segundo Jander, “havia uma grande preocupação em catalogar o mundo que conhecia e que estava conhecendo” (RAMA apud KERN, 2013, p. 105) e a admiração pelos “seres tecnológicos” que povoavam sua cultura visual nessa mesma etapa:

Observando estes desenhos é possível ver as diversas referências que me influenciaram durante a vida. Particularmente, foi pelo viés das animações, cinema e literatura que meu interesse por ciborgues e androides, recorrentes na minha produção atual, se manifestou inicialmente. A década de 1980 foi inundada por produções de ficção científica, contendo seres tecnológicos, tanto no cinema como também nas animações exibidas em horário matutino na televisão. (RAMA apud KERN, 2013, p. 106)

Dentro desse universo de cultura visual massiva, Jander salienta ainda a associação entre indústria de brinquedos e televisão, com as animações associadas a lançamentos de brinquedos. Foi precisamente o manual de instruções de montagem de um brinquedo da época que Jander escolheu para figurar junto à sua resposta sobre cultura visual (Figura 2). A importância desse tipo de imagem para o desenvolvimento de sua poética artística é dimensionada por Jander nos seguintes termos: Outro fato importante ligado a estas animações e brinquedos, é que estes últimos vinham acompanhados de manuais de instruções de montagem. Não tenho mais estes manuais, mas recentemente encontrei na internet diversos exemplares semelhantes aos que possuía. O que podemos notar ali é que o desenho técnico era utilizado como linguagem didática. E este tipo de imagem foi muito presente na minha infância, através de todos os manuais de instruções que acompanham esses brinquedos. Estas influências imagéticas não ficaram isoladas no tempo, mas participam da produção que realizo em consonância com as influências atuais de que disponho, ainda no cinema, na literatura e também na arte. (RAMA apud KERN, 2013, p. 107)

A fotógrafa Marielen Baldissera (1990), que atualmente cursa o mestrado em Artes Visuais no PPGAV/UFRGS, em sintonia com alguns dos artistas já mencionados aqui igualmente irá se reportar, em sua resposta, à importância das ilustrações de livros na elaboração de sua própria cultura visual: Acho que as primeiras imagens de arte a que tive acesso estavam nas ilustrações dos livros didáticos de história da minha mãe, que é professora de história. Também folheava os livros de arte de uma tia que tinha interesse

pelo assunto. Todas as mulheres da família fizeram um curso de desenho e pintura na escola de “Belas Artes” da cidade, e eu segui a tradição. Lá iniciaram meus estudos de arte propriamente ditos, apesar de a didática ser mais experimental, algumas professoras traziam coleções de livros de arte para as aulas. Mas sempre livros de arte clássica e moderna, sendo assim, meu primeiro contato com arte contemporânea se deu na faculdade. (BALDISSERA apud KERN, 2013, p. 119)

Figura 2. Assault Copter, manual de instruções de montagem. Fonte: Acervo pessoal de Jander Rama.

Também para Marielen o ambiente universitário irá possibilitar o contato, pela primeira vez em maior profundidade, com outro circuito artístico, o circuito da arte contemporânea. Marina Guedes (1985), desenhista gaúcha atualmente radicada em São Paulo, em seu relato sobre as fontes visuais que primeiro chamaram sua atenção, não apenas as enumera, mas também sublinha o fato de serem, ou a ela então parecerem, “antigas”: Minha mãe sempre gostou muito de antiguidades e povoava o sobrado com elas. Normalmente eu estava presente no momento das compras ou trocas que ela fazia – ainda faz, e muito – nestas versões mais acessíveis de antiquários. Desta forma eu acabava perambulando por estes estabelecimentos que

vendem e trocam tais peças – locais vulgarmente conhecidos por “briques”, se me perguntar a origem do termo não saberei responder –, e estes, muitas vezes, possuem uma atmosfera tomada pela desordem, amontoamento de móveis, grande diversidade de objetos, revistas, LPs, peças de vestuário, armas, receptáculos... Todos cobertos por teias de aranha, poeira... São ambientes que me instigam, porque descubro peças que considero valiosas. (GUEDES apud KERN, 2013, p. 127).

A associação entre “antiguidade” e “valor” é, para Marina, bastante evidente, e as imagens que ela escolhe para ilustrar sua resposta trazem, de modo bastante característico e reconhecível, as marcas do tempo (Figuras 3 e 4).

Figuras 3 e 4. Estampas encontradas pela mãe de Marina Guedes junto à moldura de uma pintura barata de antiquário. Fonte: Acervo pessoal de Marina Guedes.

O artista Michel Zózimo (1977), em sua resposta, a exemplo de Jander Rama, irá preferir destacar um segmento da vasta cultura visual de massa para falar sobre o desenvolvimento de sua própria cultura visual: É estranho pensar nessa questão, tentando articular com a minha formação em cultura visual. Mas, foi o cinema. Dos 9 aos 12 anos, assisti muitos filmes em um cinema de rua, quase todos os dias da semana. Incontáveis vezes, os mesmos filmes [...]. Em 1988, com 11 anos de idade, assisti um filme que marcou muito a minha lembrança visual: A insustentável Leveza do Ser. Não lembro de toda a história. Nunca mais revi este filme. Mas lembro de imagens impregnantes. Era sobre uma história de amor. Alguém fotografa no filme. Não sei se era ela ou o seu amante. Gostava do nome filme, ficava pensando nesse título. (ZÓZIMO apud KERN, 2013, p. 137-138).

Diferente das respostas vistas até aqui é a da gravadora Nara Amelia Melo (1982), também doutoranda em Artes Visuais no PPGAV/UFRGS, que preferiu enfocar sua aquisição de repertório imagético já no curso de Desenho e Plástica da Universidade Federal de Santa Maria, onde descobre as gravuras de Dürer e Rembrandt:

Foi como um encantamento quando percebi na gravura de Dürer, Adão e Eva, um animalzinho, um cabritinho sobre um rochedo distante. Estes artistas despertaram o interesse que me conduziu a descobrir um universo de imagens e artistas que compõem meu universo de referências e com os quais meu trabalho estabelece confluências: Pieter Brueghel o Velho, Dürer, Rembrandt, Gustave Doré, Francisco Goya, Max Ernst, José Guadalupe Posada, Paula Rêgo, Evandro Carlos Jardim, Gilvan Samico, Walmor Corrêa, e também as imagens da literatura ilustrada, dos bestiários, das fábulas. E esse conhecimento veio através do livro, do museu imaginário. (MELO apud KERN, 2013, p. 150)

Nara Amelia indica assim como fundamentais para a elaboração de sua cultura visual um cânone pessoal completo, que inclui tanto velhos mestres internacionais como artistas de referência na cena brasileira, sobretudo nas artes gráficas. Outro dos gravadores entrevistados, Rafael Pagatini (1985), hoje professor de gravura na Universidade Federal do Espírito Santo, de igual maneira aponta para a centralidade da frequência a um meio universitário na construção de uma cultura visual “erudita”:

Em Porto Alegre comecei realmente a conviver e estudar arte, ir a exposições, fazer cursos, trocar com pessoas que tinham o mesmo interesse. Pela ausência de repertório visual e de história da arte tive algumas dificuldades. Talvez por isso o local no qual inicialmente me sentia mais a vontade era o atelier de gravura. O labor dos processos de gravação e impressão se relacionava com uma relação com a matéria com a qual sentia afinidade. (PAGATINI apud KERN, 2013, p. 162)

A menção a impressos de vários tipos, métodos hoje obsoletos de reprodução e fotos de família, que já vimos se repetir até aqui algumas vezes, também aparece na resposta da fotógrafa Rochele Zandavalli (1980), mestre em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRGS:

Livros, revistas, álbuns, caixas plenas de fotografias de família, e um retroprojetor faziam parte do meu universo íntimo e me inspiravam a desenhar. Algumas das fotografias que ficavam na caixa de recordações da minha mãe também me influenciaram e exerceram grande fascínio, e eu inclusive as utilizei em meu trabalho. Um exemplo é a fotografia do meu tio com seus amigos, diante de um carro, com seus pés descalços. Sempre gostei dessa imagem e fiz um bordado sobre ela. Eu desenhava usando papel carbono, papel vegetal, o mimeógrafo do meu pai, que era professor, e

lembro que pulava de alegria quando podia fazer cópias xerográficas dos meus desenhos na máquina copiadora com a qual ele trabalhava. (ZANDAVALLI apud KERN, 2013, p. 174)

Rochele, além do mais, tem consciência de pertencer talvez à “última geração a ter um contato cotidiano com materiais e aparelhos analógicos de projeção, difusão e reprodução das imagens” (ZANDAVALLI apud KERN, 2013, p. 174). Depois de ter acompanhado a resposta de cada um dos jovens artistas ao questionário Tradição em Paralaxe, algumas conclusões podem ser, preliminarmente, alinhavadas: a primeira delas é o elo comum entre praticamente todas as culturas visuais pessoais expostas, ou seja, o consumo, desde cedo, da imagística veiculada principalmente pela indústria da informação e do entretenimento – cinema, televisão, e uma gama variada de publicações impressas, em geral de baixo custo, destinadas a grande público. Marquard Smith, entre tantos outros autores, evoca o papel formativo da cultura de massa mainstream para sua geração (2005). A força dessa cultura é, aliás, basilar para a estruturação e consolidação da Cultura Visual e, depois, mesmo dos Estudos Visuais, uma vez que se apresenta inúmeras vezes como objeto de estudo privilegiado para essas novas abordagens, como se pode ver em uma ampla gama de autores de referência (DIKOVITSKAYA, 2006; ELKINS, 2003; KROMM, BAKEWELL, 2009, MIRZOEFF, 1999). A esse dado, qual seja, ao consumo precoce da imagística mainstream deve se acrescentar outro dado recorrente nas respostas: a inexistência, ou a dificuldade de acesso, dependendo da cidade em que se vivia, a centros que expusessem a chamada arte erudita. Os ambientes escolares e domésticos foram os mais citados como influentes na constituição dessas culturas visuais individuais. É interessante notar também que os artistas muitas vezes destacam exemplos bastante concretos de imagens ou objetos que lhes chamavam a atenção, procurando nas próprias memórias, ao que parece, algumas vezes, também o que possa ser significativo quando se consideram seus trabalhos artísticos individuais. Ao assim proceder privilegiam o que foi captado por seu olhar atento, no sentido proposto por Jonathan Crary (2012 e 2013). Outra característica que desponta nas respostas é o fato de o contato com o universo da arte erudita, seja ela antiga, moderna ou contemporânea, ocorrer em geral no ensino superior, o que não deve causar estranhamento se tivermos em conta que mesmo hoje ainda são poucas as escolas de nível fundamental e médio que oferecem cursos de História da Arte – quando o fazem, em geral optam, também, por um cânone

artístico de certa forma mainstream, reforçado pela cultura midiática (Rafael, Michelangelo, Van Gogh, etc.). Um outro aspecto se faz presente de igual modo em certas respostas: para alguns artistas, questões teóricas como a memória e a atemporalidade propiciada pela imersão contínua em um fluxo aparentemente infinito de imagens são de grande importância, e estruturam a maneira como percebem a gênese de suas respectivas culturas visuais. Ressalto, enfim, à guisa de conclusão, que o relacionamento desses jovens artistas com o que hoje se convenciona chamar em sentido muitíssimo amplo de “velhas tecnologias” varia grandemente em caráter: algumas vezes o interesse ainda vivo por tecnologias e mídias que envelheceram não está relacionado com sua atual obsolescência, e sim ao fato de se ter aprendido a ver o mundo, na falta de museus e centros culturais, justamente através delas, quando ainda eram, em parte, “novas”. Outras vezes, pelo contrário, a obsolescência se soma como valor a esse contato originário com tais meios tecnológicos, sendo assim reconhecida como sinal de antiguidade, como marca da memória. A breve análise desse conjunto limitado de respostas permite inferir, desde já, que não estamos aqui diante de um fenômeno monolítico, pois, brincando agora com o dito popular, há “velhas” e “velhas” tecnologias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013. CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. DIKOVITSKAYA, Margaret. Visual Culture. The study of the visual after the Cultural Turn. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT Press, 2006. ELKINS, James. História da arte e imagens que não são arte. Revista Porto Arte: Porto Alegre, v. 18, n. 30, p. 7-42, maio/2011. ELKINS, James. Visual studies: a skeptical introduction. New York: Routledge, 2003. KERN, Daniela. Tradição em Paralaxe: a novíssima arte contemporânea sul-brasileira e as “velhas tecnologias”. Porto Alegre: Editora do Museu Julio de Castilhos, 2013.

KROMM, Jane; BAKEWELL, Susan B. A history of visual culture. Western civilization from the 18th to the 21 st century. New York: Palgrave, 2009. MIRZOEFF, Nicholas. An Introdution to Visual Culture. Londres/Nova York: Routledge, 1999. PEDROSA, Adriano; DUARTE, Luisa. Arte Brasileira Contemporânea. São Paulo: Cosac Naify, 2013. SMITH, Marquard. Visual Studies or the Ossification of thought. Journal of Visual Culture, v. 4, p. 237-256, 2005. ZAVADIL, Ana. Entre: curadoria A – Z. Porto Alegre: s. ed., 2013.

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