2014. No rastro dos Holocaustos: a contribuição da retórica para o estudo da história a partir da noção de prova e possibilidade. Revista Portuguesa de Humanidades - UCBraga.pdf

May 30, 2017 | Autor: D. Vecchio Alves | Categoria: Skepticism, Micro History, Anomaly, Possibilities, Verity
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No rastro dos holocaustos: a contribuição da retórica para o estudo da história a partir da noção de prova e possibilidade Daniel Vecchio Alves Universidade Estadual de Campinas [email protected]

Abstract The fact that historical knowledge implies the construction of documentary series was a truism among historians until the middle of twentieth century. However, less obvious was the attitude of Ginzburg, and some other intellectuals, who valued the anomalies that arise in the documentation, replacing that series for a qualitative mapping. It  showed the importance of the literary studies in the historiographical analysis, beside this, the qualitative method takes the essay as a privileged form to the past investigation, form that Ginzburg learned how to transport carefully to the historiography. What characterize this process is exactly the capacity of evaluate the lecture possibilities of a complex reality constituted by rare testimonies. This method is very functional to recognize interpretation possibilities in the proof gaps. It can be applied in the Holocaust historic investigation, because your victims obviously did not survive to report their experiences as prisoners of the gas chambers, which existence is a doubt for many researchers. However, we are going to observe how this documental gap is not a motive to the absent of a dense investigation of its facts, having here as the main study vehicle the essays realized by Ginzburg. Keywords : anomaly, micro-history, possibilities, skepticism, verity Com um fio Teseu se orientou no labirinto, encontrou o Minotauro e o matou.Dos rastros que Teseu deixou ao vagarpelo labirinto, o mito não fala. (Ginzburg 2007: 7)

1. O holocausto da história Em O fio e os rastros (2006), o historiador italiano Carlo Ginzburg nos leva do labirinto cretense de que nos fala o mito grego aos labirintos da reali-

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dade histórica, que nos conduz à história e ao seu conflituoso processo de representação. Nessa analogia entre os labirintos, o que melhor representaria a história e o trabalho do historiador do que a figura de Teseu, um personagem que tenta entender o labirinto construído por Dédalus, estrutura complexa essa habitada por um monstro enigmático? Estendendo fios por todo o percurso e tomando coragem para matar a insólita criatura, é assim que conhecemos o Teseu da celebrativa e hermética versão transmitida pela tradição mitológica clássica. No entanto, ao contrário do que nos conta a versão dessa tradição, não poderia Teseu ter se perdido no labirinto de Creta, enlouquecido por não resolver seu enigma, enforcado pelo fio que carregava ou engolido pelo monstro taurino? O que gostaríamos de apontar com tais indagações é que a memória foi construída de acordo com o sabor celebrativo dos momentos históricos, e que a forma como devemos investigar um episódio histórico para chegar em suas devidas desconstruções é a da abordagem das possibilidades metafóricas desse silêncio labiríntico, que representa não mais do que a nossa própria história ou nossos próprios mitos. Para efetivar esse processo desconstrutivo e preencher lacunas, Ginzburg se pauta relativamente na Retórica de Aristóteles, cujo conceito de metáfora opera uma transposição lógica entre dois pólos ou dois significados. Nessa transposição, […] a metáfora surge numa ordem já constituída por um jogo regrado de relações: subordinação, coordenação, probabilidade, proporcionalidade, igualdade ou diferença de relações. (Ricœur 2000: 42)

Tais operações consistem em violar um dos significados desse jogo, transgredindo a estrutura lógica de um conteúdo e ou mesmo de uma linguagem para abrir leques de interpretações possíveis. Desse modo, Ginzburg se pautou no discurso do mito do labirinto apreendendo a densa metáfora do fio do relato. Partindo do fio da história, ou seja, do fato central investigado, a metáfora que interessa ao historiador é aquela lhe faz imergir na desconstrução de um fato através de dados coerentes e de provas seguras, constituindo para o historiador uma forma de se orientar no labirinto da realidade histórica sem sofismos e ingenuidades. Sendo assim, é preciso retomar a relação com os infindáveis rastros que as sociedades do passado nos legam em registros diversos, em condições sempre fragmentárias, para, a partir desses rastros, chegarmos as possibilidades. Por isso, traçando uma linha de raciocínio metafórica fundada em possibilidades e não em incertezas, o historiador italiano procura defender a prática de Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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contar histórias possíveis de um fato, mesmo que essas possam manter ligações estreitas com o fictício e o falso ao interpretar seu objeto de pesquisa, expondo suas críticas sob variadas formas narrativas. Pois, cercar possibilidades é uma operação investigativa e reflexiva que favorece, primeiramente, a revisão da leitura tradicional e documental a respeito de um dado episódio histórico para, consequentemente, inferir alternativas não especulativas de interpretação que estariam a margem dos modos de compreensão instituídos por uma ideologia, uma crença ou uma corrente historiográfica. Ginzburg argumenta, com os quinze ensaios reunidos em O fio e os rastros (produzidos entre o final da década de 1960 e 2005), que nas últimas décadas os historiadores passaram a dar maior atenção ao caráter narrativo e dinâmico de sua própria escrita, componente que não anula ou deslegitima os resultados de uma pesquisa científica em história, sendo esse caráter, antes de tudo, um quesito básico de sua constituição. Essa tensão recente do ofício de historiador forma o enredo principal da mencionada coletânea de ensaios, demonstrando assim que “a mistura de realidade e ficção, de verdade e possibilidade, estiveram no cerne das elaborações cognitivas desse século” (Ginzburg 2007: 334). Para uma prática inferencial mais coerente e menos especulativa, segundo Ginzburg, […] o verdadeiro, o falso e o fictício deveriam ganhar contornos mais híbridos, ao se desfazerem as distinções até então aceitas entre esses conceitos, e que se tornaram totalmente enfadonhas para a compreensão do passado, de acordo com a interpretação cética, dita pós-moderna. (Roiz 2009: 336)

Tal leitura nada faz do que acusar o discurso historiográfico de efetivar sempre um discurso ficcional sobre os acontecimentos, como se a ficção não contivesse verdades e como se história não permitisse interpretações sobre seus próprios modos de conduzir os fatos. Diante dessas ressalvas, é preciso afirmar que a aceitação, essencialmente relativista, de descer a esse terreno enfadonho faz da categoria “realismo”, usada por muitos céticos, uma fórmula bastante carente de conteúdo. Como afirma o próprio Ginzburg, o fato de uma narração histórica se assemelhar a uma narração inventada é atualmente algo óbvio. O “refinado” ceticismo que inspira a rejeição do chamado “erro referencial” leva-nos a um beco sem saída, a uma base cognitiva insustentável. Observaremos que na reparação desse problema conceitual, o princípio de realidade e ideologia, o controle filológico e a projeção no passado dos problemas presentes devem se entrelaçar, condicionando-se reciprocamente em todos os momentos do Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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trabalho historiográfico. Portanto, para Ginzburg, esse percurso narrativo não anula o devido valor investigativo da história, muito pelo contrário, acentua-o. É curioso apontar que tal hibridismo já se faz presente através de muitos modos desde a infância de Carlo, ao crescer e conviver com seus pais que estiveram muito ligados tanto aos exercícios da política quanto aos da literatura. Ginzburg nasceu na cidade de Turim em 1939, numa família de judeus intelectuais e antifascistas. Seu pai, Leone Ginzburg (1909-1944), era um professor de literatura russa natural de Odessa (Rússia), que emigrara com sua família para a Itália logo após a revolução bolchevique soviética de 1917. Na Itália, além de atuar nos estudos literários, o pai de Ginzburg tornou-se um militante com outros jovens que mais tarde se tornariam figuras intelectuais e políticas muito importantes do antifascismo italiano, como Benedetto Croce e Piero Gobetti. Leone lecionou literatura na Universidade de Turim por poucos anos, sendo “afastado por se recusar a prestar o juramento de fidelidade do partido fascista de Mussolini”. Seu engajamento ideológico e cultural era fortemente marcado pelo liberalismo político e pela abertura de um socialismo não dogmático, ficando preso entre os anos de 1934 a 1936, devido a sua fervorosa militância. No início de 1944, quando Mussolini já havia sido destituído do poder e Roma estava ocupada pelos alemães, os nazistas prenderam, torturaram e mataram Leone. (Lima 2008: 26)

Sua mãe, Natália Levi, era filha de professores universitários e veio a se tornar uma romancista muito conhecida, tendo livros publicados em vários países. A mãe de Ginzburg havia se envolvido com a literatura desde a juventude, tendo publicado seus primeiros contos ainda com 17 anos de idade. Ela trabalhou com Guilio Einauldi (amigo de Leone) como editora e tradutora. “Suas convicções políticas também levaram-na a filiar-se ao Partido Comunista Italiano (PCI).” (Lima 2008: 26). É indubitável que tal ambiente familiar intelectual e engajado foi muito importante para a formação do pensamento de Carlo Ginzburg, sensibilizando-o desde cedo tanto para a posição política da literatura quanto para a base ficcional do idealismo político opressivo sob o qual sua família vivia subjugada: “Nasci nessa família de intelectuais, o que sem dúvida representou um privilégio cultural.” (Abreu, Gomes & Oliveira 1990: 255). Arriscamos a dizer que com essa herança intelectual, bem como com o fato de seu pai ter sido vítima dos nazistas em Roma, foram lanças as bases que marcaram profundamente sua trajetória intelectual. Em O inquisidor como antropólogo (ensaio que faz parte de O fio e os rastros, mas que foi originalProvided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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mente publicado em 1968), o historiador italiano revela que “sua identidade judia é em grande parte fruto da perseguição”, acabando inclusive por se identificar emocionalmente com os acusados pela inquisição de feitiçaria sobre os quais optou pesquisar desde o início de sua carreira acadêmica: “[...], há o fato de que éramos judeus e de que, um pouco devido à guerra, conservei uma lembrança muito nítida da perseguição sofrida” (Ibidem: 255). A ideia de trabalhar com feitiçaria a partir do ângulo das vítimas foi tida por Ginzburg no final dos anos 1950. Trata-se, como observado, de uma ideia resultante de diversas inspirações, sendo a principal delas a dura experiência de perseguição e exílio experimentada por sua própria família durante a época fascista. Ou seja, foi fundamental para os seus trabalhos a marginalização sofrida pelos judeus, tanto que a influência esquerdista foi um dos elementos mais marcantes do seu primeiro estudo intitulado Feitiçaria e piedade popular (1961). Porém, sua produção bibliográfica não se restringe a essa característica. Suas principais obras, adotando um critério temático somente para fins explicativos, podem ser divididas em duas grandes partes: inicialmente dedica-se ao estudo da cultura marginal, formando um grande diálogo entre história e antropologia. Posteriormente, dedica-se às questões mais concernentes ao âmbito da teoria da história. Na primeira parte destacam-se curtos e longos estudos monográficos, como a já mencionada obra Feitiçaria e Piedade Popular, Os andarilhos do bem (1966), O queijo e os vermes (1976) e História Noturna: decifrando o sabá (1989), sendo comum entre esses estudos o problema da cultura, ou melhor, o choque entre elas, questão essa na verdade sempre presente nas temáticas de todos os seus trabalhos. Conhecido inicialmente por tais monografias, o historiador italiano passou a produzir majoritariamente, em um segundo momento, artigos ou conferências sobre teoria da história, que depois eram transformados em ensaios. Curiosamente, veremos que apesar de sua opção pelo ensaio ter matizes céticas, Ginzburg não segue um viés historiográfico ingenuamente relativista. Essa segunda parte mais teórica se inaugura com Sinais: raízes de um paradigma indiciário (1979), em que são tecidos comentários consistentes sobre o caráter científico da história. A epistemologia da história vai assentar definitivamente seu espaço e sua necessidade em Provas e possibilidades (1984), que figura como posfácio da edição italiana do livro O retorno de Martim Guerre (1983), de Natalie Zemon Davis. De 1991 a 2006, Ginzburg se enveredará ainda mais nos caminhos da teoria da história. Tal período compreende cinco importantes estudos: O juiz e o historiador: notas marginais de um caso de Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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injustiça do final do século XX (1991), Olhos de madeira (1998), Nenhuma ilha é uma ilha (2000), Relações de força: história, retórica, prova (2002) e a coletânea intitulada O fio e os rastros (2006), que é aqui o nosso veículo norteador. Muitos afirmariam que nesses dois conjuntos de estudos é comum o apelo à micro-história, termo pelo qual ficaram muito conhecidos os trabalhos de Ginzburg, revelando-se através dele um modo similar de abordar as fontes, a forma da exposição e da narrativa, a atenção às anomalias da documentação e o seu detalhe revelador. Entretanto, o termo micro-história não dá conta de abranger o conjunto de metodologias que marcam seu trabalho investigativo. Por outro lado, é verdade que o tempo que separa O queijo e os vermes, sua monografia mais conhecida, dos trabalhos mais recentes — e em especial da discussão presente em livros como O fio e os rastros, de quarenta anos depois — marca uma transformação radical nos tópicos de pesquisa, sem esconder, porém, a continuidade de algumas questões de fundo, cuja análise merece maior atenção a partir daqui. A palavra micro-história já aparecia na introdução de Fernand Braudel para o Tratado de Sociologia organizado por Georges Gurvitch (1958), mas sem significação concreta reconhecida. Na realidade, para Braudel, microhistoire era um tipo secundário de elemento serializável, um “fato do cotidiano, repetição, regularidade, multiplicidade, [...].” (Ginzburg 2007: 253). A possibilidade de construção do conhecimento científico para Braudel era legítimo somente através do que podia ser considerado repetitivo, regular. No  entanto, sob esse critério a micro-história continuava condenada, pois a palavra, evidentemente calcada em microeconomia ou microssociologia, permaneceu circundada de um halo tecnicista e quantitativo. Nesse sentido, um objeto só podia ser escolhido por ser típico ou por ser repetitivo nos termos de Braudel. Porém, as pesquisas micro-históricas italianas1  enfrentaram a questão do conhecimento histórico de uma forma diferente e, em certo sentido, oposta: através da anomalia, e não através da analogia, sendo a primeira “potencial  É importante ressaltar aqui que a micro-história logo extrapolou os círculos italianos através dos estudos de Ginzburg, Edoardo Grendi e Giovanni Levi, e transformou-se em uma respeitada modalidade historiográfica. Esta nova maneira de trabalhar começou rapidamente a ser experimentada em outros países, por isso devemos ter cuidado em atribuir a origem dessa corrente ao círculo de historiadores aos quais normalmente se refere como “Escola dos Micro-Historiadores Italianos”. 1

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mente mais rica, por ser exatamente a documentação mais improvável: a ‘exceção normal’, evocada por Edoardo Grendi [...].” (Ibidem: 277). O fato do conhecimento histórico implicar a construção de séries documentais quantitativas era uma obviedade entre os historiadores da época. Contudo, menos óbvia era a atitude iniciada por Ginzburg e alguns outros intelectuais como Giovanni Levi, que tinha como fundamento valorizar as anomalias que afloram na documentação. Em seu mapeamento qualitativo, evidencia-se a importância dos estudos filológicos e literários para a formulação dos indícios levantados por essas anomalias, tornando evidente a relação entre a análise do detalhe e o ensaio como forma privilegiada para seu cotejo, a qual Ginzburg soube transportar cautelosamente para a historiografia: Ginzburg afirma que a investigação sobre as anomalias documentais através de trocas, hibridismos e influências “seria muito mais do que propor formulações teóricas abstratas”. A conformação dos textos em ensaio, portanto, revela uma atitude reticente do autor para propor respostas para os problemas da historiografia hodierna; [...]. O gênero ensaio parece ser a forma de escrita adequada para ultrapassar o «desafio cético» que questionara [e relativizara de forma extrema] a história serial. (Ogawa 2010: 28)

Porém, tal essência investigativa de seus trabalhos parece por vezes subvertida por interpretações divergentes. A micro-história de Ginzburg é apropriada em diferentes aspectos de acordo com o país de recepção, sendo marcante a diferença entre as leituras que dela se fazem nos Estados Unidos e na França, por exemplo. No caso da França, em particular, a micro-história foi elevada ao status de modelo complementar às correntes estruturalistas-funcionalistas, que observavam numericamente os grupos sociais, massas e classes, e descartavam as particularidades prezando sempre pelas regras gerais. Sobretudo no campo das mentalidades, a análise serial de dimensões macro legitimava, através de uma vasta estatística, [...] as explicações acerca de comportamentos e atitudes. Essa análise historiográfica partia de extratos mentais que reunissem características em comum ao que foi apontado por dados generalizantes. (Andrade 2008: 2)

Tal leitura francesa pode ser constatada consistentemente em alguns estudos presentes no livro organizado por Jacques Revel, intitulado Jogos de Escala: experiência da microanálise (1996). Nesse livro temos, por exemplo, o texto de Marc Abélès, O racionalismo posto à prova da análise, que parte Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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de rápidas considerações a respeito do lugar das análises microscópicas entre os antropólogos, que por vezes chegam mesmo a fetichizar o micro como sendo o lugar do desvendamento pleno dos fenômenos sociais. Ginzburg foi também mal compreendido nos Estados Unidos, sendo recebido pelos norte-americanos como um historiador “pós-moderno”, principalmente por causa de sua produção ensaística. Por isso, durante sua carreira docente na Universidade da Califórnia (UCLA) entre os anos 1988-2008, ele fez questão de envolver-se nas polêmicas contemporâneas, buscando explicar as diferenças entre seu modo de pesquisar e narrar história, no qual se cruzam literatura e realidade, em oposição ao relativismo ou ceticismo epistemológico que se disseminou nos meios acadêmicos e artísticos desde os anos 1970-80. Algumas décadas de circulação de teses céticas generalizaram os pressupostos de que a finalidade da historiografia é a invenção e o convencimento, não a verdade, por serem os textos historiográficos e os ficcionais igualmente articulados internamente por uma dimensão estilística. Mas, para Ginzburg, é possível sustentar que na história o conteúdo de tais textos está ao mesmo tempo dentro e fora dessa dimensão figurativa e que as forças desejantes (ou vontade de poder, remontando ao conhecimento popularizado por Nietzsche) não excluem obrigatoriamente o princípio de realidade, pois esse princípio ainda pode permitir […] enxergar as relações de força vigentes numa sociedade que condicionam os próprios acontecimentos envolvidos na feitura e legado da documentação, logo, a imagem que uma sociedade deixa de si, [...]. (Vieira 2012: 3-4)

Desde o prefácio de O queijo e os vermes, Ginzburg constatava que a incerteza metodológica derivada da “exasperada consciência da violência, que pode estar oculta por trás da mais normal e inocente operação cognitiva” (Ginzburg 1988: 22), unida ao medo do positivismo ingênuo, propiciara nos meios intelectuais europeus certo niilismo cognitivo, disseminando uma intensa recusa de análise e interpretação de muitos episódios históricos. Avaliava que esse tipo de operação, em última instância, fecharia qualquer via para interpretar a alteridade, correndo o risco de “um irracionalismo estetizante ou do êxtase do estranhamento absoluto que torna o discurso dos indivíduos e dos grupos irredutíveis à análise e à compreensão.” (Vieira 2012: 2-3). Contra essa tendência, ressalta Ginzburg que uma maior consciência da dimensão narrativa não implica na anulação das possibilidades cognoscitivas da historiografia, mas, ao contrário, sua intensificação. Tendo como objetivo o estudo das fontes históricas através da imagem aparente que uma sociedade Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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quer deixar de si própria, o historiador italiano defende que a narrativa historiográfica deve deixar de ser fundamentada “na contraposição entre verdadeiro e inventado, para se revelar como uma representação que integre a realidade e suas possibilidades interpretativas”, que são ressaltadas muitas vezes em um plano representativo artístico-ficcional (Ginzburg 2007: 315). Para isso, […] é preciso reconhecer que alguns livros de história têm uma estrutura mais narrativa do que outros. Porém, o que, em geral, é ressaltado não é o campo de conhecimento identificável nas narrações de ficção, por exemplo, nas narrativas romanescas, mas sim o nível fabulatório identificável nas narrações com pretensões científicas – a começar pelas narrativas historiográficas. (Ibidem: 326)

Tais problemáticas foram tratadas consistentemente em Unus testis – o extermínio dos judeus e o princípio de realidade, um dos mais importantes ensaios de O fio e os rastros e que terá aqui especial atenção. Nesse ensaio, o autor discute a questão do testemunho e faz uma crítica a Hayden White, que também foi professor da UCLA, cujo percurso exige que se entendam suas filiações diretas a Croce na questão da tropologia e do subjetivismo, ideias essas que se fortaleceram cada vez mais ao entrar em contato com as obras de Michel Foucault e Roland Barthes. Após seu envolvimento na polêmica do relativismo em História com White, Ginzburg reconhece que tem praticado quase exclusivamente o gênero ensaio na última década. Essa persistência pode ser explicada através da estratégia do historiador italiano em questionar os céticos em seu próprio campo de atuação, ou seja, nos ensaios e em outros gêneros narrativos. Com o propósito de combater tal perspectiva, o ensaio em questão atenta inicialmente para duas noções de prova que se complementam, readequando seu conceito no âmbito da narrativa. A primeira é baseada na analogia entre o juiz e o historiador, já a segunda fundamenta-se em uma releitura da Retórica de Aristóteles, em que Ginzburg constrói sua ideia de prova e retórica em oposição à retórica puramente estilística dos céticos. Na formulação da primeira noção de prova, que pode ser estudada de forma mais consistente no texto O juiz e o historiador: notas marginais de um caso de injustiça do final do século XX, de 1991, Ginzburg destaca o livro A Guerra dos Judeus (75 d.C.) do historiador judaico-romano Flávio Josefo (37-100 d.C.). O investigador italiano observa que ao discorrer sobre os muitos genocídios que envolveram os judeus, Flávio Josefo sempre indica a sobrevivência de duas testemunhas para provar os violentos massacres. Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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Ginzburg aponta para o fato de que a escolha das duas testemunhas explica-se pela recusa bem conhecida, presente tanto na tradição jurídica romana como na tradição judaica, em reconhecer a validade de uma única testemunha no julgamento de um fato: Ambas as tradições eram, decerto, familiares a um judeu que se tornara cidadão romano, como Flávio Josefo. Mais tarde, o imperador Constantino transformou a recusa da única testemunha em lei propriamente dita, que foi depois incluída no código de Justiniano. Na Idade Média, a alusão implícita a Deuteronômio 19, 15 (Non sabit tesis unus conta aliquem) tornou-se testis unus, testis nullus, uma máxima recorrente, em forma implícita ou explícita, nos processos e na literatura legal. Procuremos imaginar por um momento o que aconteceria se um critério desses fosse aplicado na pesquisa histórica. (Ginzburg 2007: 214-215)

Para Ginzburg nenhum historiador sensato repeliria um testemunho único, invalidando-o. Com isso, ele conclui que o direito e a historiografia possuem regras e fundamentos epistemológicos que nem sempre coincidem, pois “os princípios jurídicos não podem ser transferidos com todo o seu peso para a pesquisa histórica. [...]. Hoje essa analogia soa decididamente fora de moda.” (Ibidem: 215). É fato que o conceito de prova intensifica a relação entre o juiz e o historiador. Contudo, seu uso diverge nas duas atividades na medida em que eles se deparam com documentos falsos. Nesse caso, o juiz deve interromper seu trabalho devido à ausência de suporte para os procedimentos jurídicos, enquanto o historiador pode tranquilamente trabalhar com documentos falsos, desde que não os tome ingenuamente como verdadeiros e invista nos motivos que levaram uma sociedade a produzir tal farsa. Ginzburg adverte que a prova para o historiador nunca tem caráter de certeza absoluta. Sua ideia de testemunho é destituída desse caráter, pois nem sempre é possível provar algo ou até mesmo conseguir alguma prova direta de alguma coisa. Diante desse impasse, recorre-se ao cotejo dos elementos ausentes em um documento, fazendo parte do ofício do historiador a prática inferencial, prática essa que buscará nas metáforas e no contexto as matérias silenciadas na fonte, cumprindo assim a análise dentro de seus parâmetros de probabilidade e possibilidade histórica. Escrever sobre o silêncio apresenta muitas dificuldades. Esse objeto de reflexão, que transita entre o dito e o não-dito, nos faz correr o risco de não caminhar coerentemente entre o discurso e suas lacunas. Por isso, é preciso observá-lo indiretamente por métodos discursivos, históricos, críticos e desconsProvided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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trutivistas, ou por seus efeitos retóricos e políticos. Quando se trata de identificar algo silenciado, nós não o identificamos através de marcas inteiramente formais, mas, sobretudo, através de pistas, traços, fissuras, rupturas e falhas, sinais esses pelos quais ele se mostra fugazmente, e que se constitui como prova necessária para o preenchimentos das anomalias documentais e monumentais. Pensamos que a noção bakhtiniana de texto dialógico2  possa lançar luz sobre algumas dessas características anômalas que de vez em quando afloram na superfície dos documentos, pois na maioria dos casos encontramo-nos diante de um verdadeiro dialogo, percebemos vozes distintas, diferentes e opostas. Nesse dialogismo, o mais ínfimo e concreto indício pode sugerir um caminho para chegar a uma interpretação histórica mais problematizadora. Naturalmente, os documentos não são neutros, a informação que nos fornecem não é nada objetiva. Para decifrá-los, […] devemos aprender a captar por trás da superfície lisa do texto um sutil jogo de ameaças e medos, de ataques e retiradas. Devemos aprender a desembarcar os fios multicores que constituíam o emaranhado desses diálogos. (Ginzburg 2007: 287)

Ao historiador que só dispõe das informações documentais e delas não pretende sair, tais possibilidades são a ele vedadas. Já a micro-história escolhe o caminho oposto: “aceita o limite explorando as suas implicações gnosiológicas e transformando-as num elemento narrativo.” (Ibidem: 271). Nessa estratégia, é preciso, acima de tudo, perceber o núcleo de um fato no entorno do qual giram suas possibilidades e probabilidades, percebendo-o através da reconstituição do seu mundo histórico intelectual, moral e fantástico. Para a compreensão desse núcleo cognitivo do qual se parte para efetivar suas investigações, o astuto historiador italiano busca na Retórica de Aristóteles a validade do conceito de entimema, no claro intuito de transpor os limites do relativismo em âmbito historiográfico e de reatualizar a noção contemporânea de fonte histórica. Entramos aqui na segunda noção de prova formulada por Ginzburg em Uno testis. Vale ressaltar que essa segunda noção já foi previamente estudada no ensaio Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez, publicado em 2002 no seu livro Relações de força: história, retórica, prova. 2   “A dialogicidade interna do discurso exige a revelação do contexto social concreto, o qual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu “conteúdo”, sendo que os determina não a partir de fora, mas de dentro; pois, o diálogo social ressoa no seu próprio discurso, em todos os seus elementos.” (Bakhtin 1993: 105-106)

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O que Ginzburg quer claramente mostrar com essa noção é o nexo existente entre história, na sua concepção moderna, e retórica, no entendimento de Aristóteles: A visão de Aristóteles sobre a retórica corresponde à mesma posição de Ginzburg contra a retórica do pós-modernismo cético: rechaçar a retórica entendida apenas como arte do convencimento, constituída de figuras de linguagens. No caso de Aristóteles, os inimigos que utilizam tal arte eram os sofistas gregos. (Zanin 2009: 42)

Ginzburg situa o conceito aristotélico entimema como o núcleo da prova. No texto de 2002 ele cita um trecho de Aristóteles a respeito desse conceito:   [...] de fato, apenas as provas são um elemento constitutivo, todos os outros elementos são acessórios. Eles [os sofistas], pelo contrário, não dizem nada acerca dos entimemas, que são o núcleo da prova, [...].» (1354, a). (Ginzburg 2002: 57)

Segundo Aristóteles, o entimema, ou silogismo abreviado, pode provir de quatro referências: […] o verossímil (eikos), o exemplo (paradeigma), a prova necessária (tekmeria) e o signo (semeion). As únicas conclusões irrefutáveis são as formadas por meio de entimemas baseados em provas necessárias (tekmeria). (Aristóteles 2005: 34)

Dos entimemas fundamentados nos pontos restantes, porém, só é possível tirar conclusões que permanecem no campo do provável. Esse campo, todavia, não pode ser posto no mesmo nível do que Aristóteles chama de “metáfora má”, ou seja, uma metáfora que “não tem relação senão com sons confusos” (Ibidem: 177), pois vimos que não podemos relegar a esses pontos de probabilidades um viés fictício ou de mera especulação e invenção. As possibilidades históricas partem sempre de uma prova necessária (tekmeria) e isso faz a diferença no momento de sua significação. Com o estabelecimento dessa ligação é que o entimema, além de ser um elemento característico do gênero judiciário e da retórica, cumpre um importante papel também no trabalho investigativo do historiador, constituindo-se no ponto de onde parte as interpretações históricas possíveis. É nesse exato ponto que a prática de inferir de difere da prática de especular. Portanto, com “a retórica se movendo no âmbito do provável, não no da verdade científica, e numa perspectiva delimitada, longe do etnocentrismo Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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inocente.” (Zanin 2009: 52-53), foi possível para Ginzburg demonstrar que a história também parte, por outro lado, de inferências projetadas com base num núcleo essencial, que consiste em conexões naturais e necessárias (tekmeria) com o caráter de certeza, como a comprovada existência de um acontecimento (o holocausto), de uma relação cultural (entre gregos e romanos) ou de um sentimento (a fúria de Aquiles). Mesmo que sejam de frágil sustentação, tais núcleos são complementados com rastros, indícios e signos que alimentam as possibilidades de uma interpretação histórica mais densa e menos especulativa. Nesse sentido, Ginzburg chegará criticamente aos tempos da juventude de Nietzsche, quando em uma releitura do pensador alemão irá contrastar a sua compreensão de retórica como sistema de tropos, isto é, de figuras de linguagem, na qual uma noção mínima de verdade não tem lugar. Isso reduz a verdade à enfadonha compreensão dicotômica entre falso e verdadeiro: […]: la retórica se enraíza en un pueblo que todavía vive entre imágenes míticas y que no conoce aun la necesidad absoluta de la fe histórica; ellos prefieren más bien ser persuadidos que instruidos. (Nietzsche 2000: 81)

Contra esse argumento, Ginzburg apontará uma retórica fundada numa noção de prova não apenas baseada na detecção de falsidade e de verdade, para mostrar que por vezes o que está fora do texto está também dentro dele, abrigado entre as suas intersecções. É nesse exercício que o esforço de compreensão das relações de força se fará presente, pois o “conhecimento possível” será apreendido no trabalho de construção de uma retórica fundamentada na ideia do núcleo de prova sobre um fato e seus possíveis desdobramentos metafóricos e contextuais. Em “Prova e possibilidade”, Ginzburg ressalta que se a literatura é capaz de absorver aspectos da realidade histórica com toda sua bagagem estética, a história, mesmo com toda sua tropologia e figuras de linguagem, não deixa também de comportar tais aspectos sem deslegitimar por completo a integridade de seu conteúdo histórico analítico apresentado: Aprende-se do autor de Mímesis [Eric Auerbach] que [...] a representação literária e o fragmento possuem força heurística e cognitiva para ler o tempo histórico; que a mimese como modus operandi da história não é questão meramente retórica, mas de poiesis no sentido mais amplo do fazer estético e social, que inclui práxis no sentido originário dos termos: ação/reflexão que lidam coma potência e limites da forma e da liberdade. (Vieira 2012: 10)

Não só o ensaio Uno testis, mas toda sua linha de pesquisa volta-se eminentemente a essas discussões, recuando no tempo para mostrá-las em Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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outros contextos e defender a crítica interna de que é possível construir conhecimento mesmo dentro do erro dos documentos e dos vestígios escassos de um passado quase invisível documentalmente, de modo que a partir dos fragmentos erodidos pelo tempo, da imperfeição e da ficção, se pode construir a contrapelo “uma história mais original a partir da falsa” (Ginzburg 2007: 93). Tudo depende evidentemente dos historiadores enfrentarem o desafio de um critério: o de que […] formas artísticas e ficcionais oferecem algumas verdades históricas que apenas se deixam desvelar mediante procedimentos formais, que podem ser conhecidos e dominados por meio de ferramentas interdisciplinares. (Vieira 2012: 10)

Trata-se, sobretudo, da possibilidade de desvendar a racionalidade a partir do irracional. Em contrapartida, a “política da interpretação histórica” de Hayden White parte da ideia de que a narrativa histórica tem sua produção de sentido falha porque depende essencialmente dessa lógica figurativa. Na virada dos anos 1960-70, avalia Ginzburg, esse subjetivismo tinha sabor de esquerda [aparentemente refinada e] radical ao sobrepor o desejo à realidade e ao atacar simultaneamente as ortodoxias liberais e marxistas. (Ibidem: 4)

Desse paladar “revolucionário” e de um conceito de prova reduzido a sua noção judiciária é que se originam as controversas teses revisionistas que negam a existência do Holocausto, interpretando esse episódio histórico de raros testemunhos como resultado de uma invenção política de tendência sionista, como veremos a seguir. 2. O extermínio dos judeus e seus limites de representação Em meio a tais tendências céticas contemporâneas, tornou-se cada vez mais recorrente o tema da memória e sua total destruição nos campos da história e, sobretudo, da arte, relegando sua construção exclusivamente ao poder e ao convencimento. Uma das implicações teóricas resistentes a toda essa discussão é justamente a questão do princípio de realidade, em que Carlo Ginzuburg e Pierre Vidal-Naquet se fundamentam para tentar sair dos problemas colocados por White. Segundo tal princípio, é imprescindível parte da velha noção de realidade, ou seja, daquilo que necessariamente ocorreu e foi herdado (tekmeria), ou seja aqui a noção de prova é importante para que não caiamos em um relativismo Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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estetizante e estruturalista-funcionalista de que todo discurso é relativo em função de sua ideologia e de sua linguagem figurativa. As análises de White que emergem nas páginas de Metahistória (1973) e Trópicos do Discurso (1978) realmente tornaram imprecisas as fronteiras que distinguem fato histórico e ficção literária. Talvez Hayden White seja um dos historiadores americanos mais representativos dentre aqueles que buscaram teorizar o impacto da virada lingüística no âmbito da História nos anos da década de 1970-80. No entanto, a ameaça do pós-modernismo na historiografia norte-americana se assentou por meio da revista American Historical Review, ligada à Northrop University de Los Angeles, periódico esse que certamente contribuiu para o auge dessas discussões. Tal produção foi resultado do fato de que a partir dos anos 60, as atitudes céticas de que Ginzburg questiona em seus ensaios teóricos tornaram-se cada vez mais influentes nas ciências humanas. Com base nesse impacto cético no campo da historiografia, surgiram muitas questões em torno da polêmica revisão histórica do Holocausto. Ressalta-se como parte desse revisionismo o próprio investigador Hayden White, que se posiciona de acordo com a corrente cética divulgada pela citada revista do Institute for Historical Review. Nessa forma de entender o Holocausto, muitos outros investigadores se destacam como o historiador francês Robert Faurrison. 3 Desde a metade do século XX, essa corrente revisionista vem negando a existência das câmaras de gás e o extermínio de doentes mentais alemães, judeus, ciganos e, ainda, o extermínio de membros de povos considerados radicalmente inferiores. Justificam, com efeito, que o Holocausto não passa de um mero discurso político que mascara a defesa e a proliferação da pertinência do projeto sionista, um projeto de ocupação que visa vantagens e benefícios na geopolítica e na economia do Oriente Médio. Ou seja, o Holocausto seria o mito que daria suporte a criação do Estado de Israel e às grandes injustiças causadas pelos Aliados ao longo da guerra, propagadas por uma imprensa sob domínio judeu. Assim, tais revisionistas afirmam fazer justiça aos fatos, contrariando os grandes interesses políticos que os suportam. Tal posição cética perante o Holocausto pode ser identi  “O caso Faurrison não era único, mas apenas a chegada à grande imprensa das opiniões defendidas por um grupo de crescente organização desde 1960. [...]. Faurrison era apenas a expressão mais recente de um grupo que se mobiliza em torno de tais questões desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O negacionismo francês, assim como suas contrapartes americana e alemã, é um fenômeno intenso e complexo.” (Ogawa 2010: 64-65). 3

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ficada na reação de White, que refuta as afirmações feitas por Vidal-Naquet que defende, por sua vez, a existência e o funcionamento das câmaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial. Contra Vidal-Naquet, White assimila as opiniões consideradas principalmente pelo historiador Robert Faurisson, sobre o extermínio em massa dos judeus através das câmaras de gás: “We are able to demonstrate effectively that six million Jews were not ‘gassed’ but were simply a product of the Zionists Machiavellian imaginations, […].” (Faurisson 1980: 100) White não consegue aceitar as conclusões do historiador francês, sustentando que há uma interpretação israelense que deixa intacta a realidade do acontecimento, enquanto a interpretação revisionista o desrealiza, redescrevendo-o de tal modo que faz dele uma coisa diferente daquilo que as pessoas sabem do Holocausto: A interpretação histórica do Holocausto fornecida pelos sionistas, diz White, não é uma contra-verdade (como havia sugerido Vidal-Naquet), mas uma verdade: “Sua verdade, como interpretação histórica, consiste precisamente na sua eficácia em justificar uma ampla gama dos atuais comportamentos políticos de Israel, que, do ponto de vista dos que os formulam, são essenciais não apenas para a segurança, como para a própria existência do povo judeu”. (Ginzburg 2007: 225-226)

Em Uno testis, Ginzburg analisa a interpretação cética sobre esse episódio retirada de um livro de Hayden White intitulado A política da interpretação histórica (1987). Ginzburg decide questionar seu tom subjetivista ao interpretar esse episódio de nossa história, alegando que é evidente que uma das ideologias judias, o sionismo, explora o genocídio de forma por vezes escandalosa e tendenciosa, mas o fato de a ideologia se apropriar de um fato não o suprime totalmente do nosso tempo histórico. Seu posicionamento foi apresentado em um congresso organizado na UCLA por Saul Fridlander, realizado no ano de 1990, em uma palestra que intitulou O extermínio dos judeus e o princípio de realidade. Seu ensaio Uno testis foi resultado dessa conferência proferida. Como visto, um dos motes do ensaio é a crítica sobre os comentários de White às afirmações de Vidal-Naquet, contestando, por conseguinte, o affair que o norte-americano faz à Faurrison. Ginzburg é muito claro ao associar esse tipo de posicionamento a um certo pós-modernismo, cuja ideia rudimentar consiste no fato de que modelos narrativos e discursos políticos deslegitimam totalmente o trabalho historiográfico. Pelo contrário, a prática historiográfica para Ginzburg se move no âmbito do provável e da possibilidade, não no da verdade científica, e em uma perspectiva Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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delimitada, longe do etnocentrismo inocente. “O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”, como acontece com a realidade do Holocausto através das câmaras de gás, já que suas vítimas obviamente não sobreviveram para testemunhá-lo (Ginzburg 1989: 152). Ginzburg cita o volume Os assassinos da memória que contém um ensaio de Pierre Vidal-Naquet intitulado Um Eichmann de Papel (1986), ensaio esse ingenuamente refutado por White. Nele o historiador francês, cuja mãe fora morta em Auschwitz no ano de 1944, rejeita a tese que sustenta a inexistência das câmaras de gás. “Não é difícil imaginar os motivos morais e políticos que levaram Vidal-Naquet a se envolver numa discussão detalhista...” (Ibidem: 228), diz o historiador italiano. Como não é difícil imaginar também o incômodo de Ginzburg com essa investida cética, porque sua própria família passara por uma experiência agressiva semelhante. 4 Para ele, a noção de Uno testis é mais do que marcante, ou seja, finca o que ocorrera com seu pai, sendo isso o suficiente para que Ginzburg acredite na ocorrência do genocídio e saia em defesa dos argumentos de Vidal-Naquet, procurando assim reconstruir explicitamente as características essenciais de um fato que não havia deixado muitos rastros. A ideia de se fazer ouvir o silêncio das vítimas dos campos de concentração e das câmaras de gás, e driblar a queima de arquivos dos nazistas sobre o fato era sua meta central. Esse silêncio só poderia ser preenchido recolhendo as memórias de todos os indivíduos (até do mais humilde soldado) direta ou indiretamente envolvidos na guerra. Só assim seria possível dar às vítimas desse episódio o direito […] de contar para os outros, de fazê-los participarem, [...] adquirindo um caráter impulsivo imediato e violento, a ponto de rivalizar com as outras necessidades elementares. (Ibidem: 230)

Entretanto, os mais céticos rejeitam essa solução. É Faurrison quem profere a famosa fórmula: […] it ought to be meticulously shown how the Nazis proceeded to invent, construct, and operate these fearsome slaughterhouses for humans. (Faurisson 1980: 105)

  É preciso lembrar novamente aqui sua descendência judia e o fato de seu pai ter sido vítima dos nazistas na prisão em Roma, em 1944, marcando profundamente sua trajetória pessoal e intelectual. 4

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Mais audaciosa ainda parece sua afirmação seguinte: Hitler never gave an order – no permission – that anyone should be killed because of his race or religion. (Ibidem: 112)

Os negacionistas, como Faurrison, consideram que todo testemunho nazista posterior ao final da guerra, provenientes dos processos judiciários do leste ou do oeste, em Varsóvia ou Colônia, Jerusalém ou Nuremberg, em 1945 ou em 1962, foi obtido sob tortura ou intimidação, sendo toda testemunha e todo documento uma falsidade ou um boato. Como um Sócrates, denuncia-se todo tipo de prova como uma arte enganadora, uma imagem deformada da justiça e sua legislação. Ignoram completamente, por exemplo, […] os documentos escritos por membros do Soderkommando de Auschwitz, escondidos por eles e encontrados após a guerra, documentos que descrevem com precisão e confirmam tudo o que se sabe sobre o funcionamento das câmaras de gás. (Vidal-Naquet 1988: 40)

Além dessas cartas, em que fica claro a existência do extermínio, muito falado foi o julgamento de Otto Adolf Eichmann em Jerusalém, no ano de 1962, nome que figura o título Eichamann de papel escrito por Vidal-Naquet. Eichmann foi detido em seu exílio, num subúrbio de Buenos Aires, no ano de 1960. Apresentou-se como um funcionário de segundo escalão, espécie de chefe da estação que controlava os trens que levavam os judeus para os campos de concentração e para as câmaras de gás. Tentou, durante o julgamento, se livrar do peso esmagador das acusações de crime de guerra, contudo precisou que tinha conhecimento direto e pessoal dos caminhões da morte de Chelmno, das execuções de Minsk e das câmaras de gás de Auschwitz. Teria Eichmann sido torturado e forçado a dar tais “inventivas” declarações como afirmam os revisionistas? Que força no mundo, que saber compartilhado com o judeu alemão que o interrogava poderia tê-lo obrigado a pronunciar a seguinte frase: «Em meados do verão de 1941, Heydrich pediu-me que fosse vê-lo. O Führer ordenou que suprimíssemos os judeus. Foram exatamente essas palavras que pronunciou ao me receber; e para verificar o impacto, ao contrário de seus hábitos, calou-se por um bom tempo. Ainda me lembro muito bem». (Ibidem: 55)

Outro testemunho mais concreto ainda de Eichmann foi a descrição que fez da Conferência de Wansee, realizada em janeiro de 1942, convocada por Heydrich, chefe da tropa de choque nazi, realizada numa casa no subúrbio de Berlim. Sobre tal conferência explica Eichmann: Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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  […] esta reunión fue necesaria debido a que la Solución Final, si quería aplicarse a la totalidad de Europa, exigía algo más que la tácita aceptación de la burocracia del Reich, exigía la activa cooperación de todos los ministerios y de todos los funcionarios públicos de carrera». (Arendt 1999: 70)

A finalidade da conferência era coordenar todos os esforços em ordem da execução da Solução Final, iniciando una franca discussão sobre os diversos tipos de possíveis soluções do problema, o que significava os diversos modos de matar: Existem muitos outros registros históricos além de documentários, de cartas e de relatos dos chefes do exército nazi e dos responsáveis pelos campos de concentração e câmaras de gás. Mas o que queremos questionar aqui é que mesmo não existindo tais registros ou se fosse comprovada a invenção dessa documentação como afirmam muitos críticos, não bastaria, para provar a existência do genocídio, o sofrimento expresso por milhares de pessoas cujos familiares não retornaram de suas prisões? Mesmo ainda com as experiências individuais vividas pela família de Ginzburg e Vidal-Naquet e os muitos documentos arquivados, há uma série de acontecimentos ou fatos significativos que são indiretamente perceptíveis e que podem ser interpretados metaforicamente por sua inserção no contexto, ou seja, no fluxo dos acontecimentos e do discurso sociocultural. Essa abordagem é bem sucedida na utilização da análise microscópica de fatos às vezes tomados por insignificantes, como um meio de se chegar a possíveis conclusões de mais amplo alcance. Essa abordagem é possível, por exemplo, quando analisamos os fatos envolvidos no desenvolvimento do programa de eutanásia promovida durante o governo de Hitler, a partir de meados da década de 1930. Esse programa se mostra potencialmente promissor para investigarmos a existência das câmaras de gás que levara muitos judeus e outros grupos à morte nos anos da segunda guerra mundial. As primeiras câmaras de gás foram construídas em 1939 para cumprir o decreto de Hitler, ditado em 1 de setembro do mesmo ano, que dizia: “«[...] debemos conceder el derecho al enfermo incurable una muerte sin dolor ».” (Arendt 1999: 67). O que devemos nos perguntar é: quem são considerados os “enfermos incuráveis” em tempos de paz e em tempos de guerra? Creio que a resposta não seria a mesma para atender as exigências dessas duas épocas distintas do governo nazista. O que sabemos de fato é que o decreto foi colocado em execução enquanto fazia menção às pessoas com doenças mentais. Segundo os dados apresentados pelo estudo de Hannah Arendt, até o início da Segunda Guerra, quase cinqüenta mil alemães foram mortos mediante gás de monóxido de carbono, em Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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instituições cujas câmaras de morte teriam as mesmas enganosas aparências que   as de Auschwitz, parecendo duchas e quartos de banho. O programa fracassou, pois […] era imposible evitar que la población alemana de los alrededores de estas instituciones no desentrañara el secreto de la muerte por gas que en ellas se daba. […]. Ya en 1935, Hitler había dicho al director general de medicina del Reich, Gerhard Wagner, que «si estallaba la guerra, volvería a poner sobre el tapete la cuestión de la eutanasia, y la impondría, ya que en tiempo de guerra es más fácil hacerlo que en tiempo de paz. (Ibidem: 67)

O programa de eutanásia não seria uma brecha para começarmos a pensar nas grandes probabilidades desse projeto ter sido utilizado como arma de guerra ao considerar judeus e outros tipos de prisioneiros “enfermos incuráveis” diante da formação de uma raça ariana pura e superior? Como estamos observando, muito dados convergem para que as afirmações revisionistas sobre o Holocausto caiam por terra, mesmo estando ciente de que muitos sionistas utilizam tal episódio histórico para justificar as frequentes crueldades que ocorrem na região da Palestina. Essa investigação foi muito dificultada pelo fato de que nos últimos meses e, sobretudo, nas últimas semanas de guerra, a SS se ocupou em destruir montanhas de documentos que constituíam a prova de seis anos de sistemáticas matanças. O departamento de Eichmann queimou seus arquivos, sem lograr com isso grande coisa, já que muitas correspondências assinadas por ele foram resgatadas pelos Aliados, resgatando consequentemente o que caracteriza o Eichmann [no] papel, na feliz expressão de Vidal-Naquet. Defendendo o estudo feito por esse historiador francês, Carlo Ginzburg alude à obra de White para refutar, mais uma vez, o ceticismo inocente que traz para suas análises historiográficas um conceito de prova e documento completamente carente de conteúdo, de analogias limitadas, afetando, sobretudo, as abordagens históricas por causa de uma ideia dicotômica instaurada que separa agressivamente a verdade (história) da ficção. Através do ensaio Uno testis, podemos apreender que é preciso assumir que a relação com o passado é precária, mas pertinente, compreender que possibilidade e relativismo não são sinônimos, e estabelecer cuidadosamente os critérios da possibilidade na pesquisa historiográfica para não cairmos num discurso meramente especulativo. Tais critérios podem proporcionar um ganho em significação de suma importância para episódios históricos pouco ou nada documentados, sendo esse ganho, todavia, não separado de uma tensão entre duas interpretações, uma literal, limitada aos valores estabelecidos pelos Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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documentos, e a outra irônica, metafórica e metonímica, proveniente de uma complexa torção imposta a essa documentação. No artigo Enredo e verdade na escrita da história de 2006, creio que se pode perceber que Hayden White procura dialogar com as críticas recebidas de diversos intelectuais, inclusive com as críticas recebidas de Ginzburg ao longo da década de 1990, pois, de certa forma, White ameniza sua posição cética ao tratar do problema epistemológico e ético das teses de (ir)representabilidade do Holocausto. Ao levantar a questão dos limites da representação desse genocídio, aparenta defender menos uma rejeição do projeto realista e uma negação da história do que a antecipação de uma nova forma de realidade histórica. O que o Hayden White dos trabalhos mais recente sugere é que os modos de representação podem oferecer possibilidades de representar a realidade do Holocausto a partir de diferentes experiências que nenhuma outra versão do realismo poderia fazer, o que valorizaria o conceito ginzburgiano de “testemunho único” pautado pela experiência, conceito esse rebaixado como uma simples arte do convencimento pelos revisionistas céticos: Isso não é sugerir que nós iremos abrir mão do esforço de representar o Holocausto realisticamente, mas sim que nossa noção daquilo que constitui a representação realista deve ser revisada para levar em conta as experiências que não únicas ao nosso século e para quais modelos mais antigos de representação têm provado ser inadequados. [...]. Sua representação, quer seja na história ou ficção, requer o estilo modernista, que foi desenvolvido para representar tipos de experiências que o modernismo social fez possível, em que Primo Levi deve ser invocado como exemplo. (White 2006: 207)

Desse modo, White se aproxima mais da leitura de Ginzburg, pois o historiador italiano defende a todo instante uma necessária mudança na historiografia, cuja concepção ingênua de realismo é inadequada para representar complicados eventos como o Holocausto, ou qualquer outro evento histórico que dependem das anomalias, dos enigmas, e dos demais impasses de sua representação. Como vimos durante esse trabalho, a ideia de rever as formas de representação histórica e o conceito de prova tem o intuito de adequá-las às experiências específicas do século XX e XXI, eventos que apresentam um fôlego publicitário e ideológico, para não dizer mitológico, cada vez maior. Por isso, vemos com importância a dinamicidade do projeto ginzburgiano dedicado à historiografia, por visar uma mais ampla compreensão das possíveis realidades históricas que não deixam de habitar as narrativas e os erros interpretativos, operações que antes eram relegadas somente à natureza do campo literário. Provided for Personal License use. Not for reproduction, distribution or commercial use. The Copyright of this Article belongs to the Aletheia - Associação Científica e Cultural. © 2015 Aletheia - Associação Científica e Cultural. All rights reserved.

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