2014. Uma nota sobre professores de Grego, quartos de hotel, viagens de campo, Albânia e a Ilíada

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Uma nota sobre professores de Grego, quartos de hotel, viagens de campo, Albânia e a Ilíada1 Tat i a n a Fa i a

IPHIDAMAS a big ambitious boy

At the age of eighteen at the age of restlessness His family crippled him with love They gave him a flute and told him to amuse himself In his grandfather’s sheep-nibbled fields That didn’t work they gave him a bride Poor woman lying in her new name alone She said even on his wedding night He seemed to be wearing armour He kept yawning and looking far away And by the next morning he’d vanished Arrogant farmhand fresh from the fields He went straight for Agamemnon Aiming for the soft bit under the breastplate And leaning in pushing all his violence All his crazy impatience into the thrust But he couldn’t quite break through the belt-metal Against all that silver the spear-tip Simply bent like lead and he lost Alice Oswald, Memorial

Na tarde de 3 de Dezembro de 1935, num quarto de hotel em Los Angeles, um homem morreu vítima do disparo acidental de uma arma. No dia seguinte, em Cambridge, Massachusetts, o diário da universidade de Harvard dava a notícia de que o indivíduo era Milman Parry, professor de Grego e autor de

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1. Agradeço a Gustavo Oliveira e a Oliver Taplin por terem discutido comigo vários aspectos deste ensaio, num momento em que ele era apenas uma sucessão desordenada (e nada atraente) de apontamentos. Para este ensaio, como para tantos outros aspectos dos meus estudos sobre Homero, entre São Paulo e Oxford, a minha dívida para com eles é literalmente homérica. Agradeço a Luís Quintais a amabilidade de me ter convidado a participar deste número da Relâmpago. É sempre bom regressar.

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2. Um estudo da influência de M. Parry nos estudos homéricos é feito por J. Haubold 2007: “Homer after Parry: Tradition, Reception, and the Timeless Text”, Homer in the Twentieth Century: Between World Literature and the Western Canon, Graziosi & Greenwood (edd.) (Oxford) 27-46 (daqui para a frente HTC). 3. Um breve estado da arte para esta questão, da Antiguidade até M. Parry, foi feito por Adam Parry na sua introdução aos estudos coligidos do pai: A. Parry 1971: “Introduction” in M. Parry, The Collected Papers of Milman Parry (Oxford) esp. x-xlvii. Como A. Parry (1971: xxii) nota: “It could fairly be said that each of the specific tenets which make up Parry’s view of Homer had been held by some former scholar (...) Parry’s achievement was to see the connection between these disparate contentions and observations...” 4. F. A. Wolf (Prolegomena) é o

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vários livros sobre Homero, recentemente regressado de uma viagem de campo ao sul dos Balcãs. M. Parry morreu com apenas 33 anos de idade. Esta viagem, parte de uma investigação mais ampla em torno de Homero, tem um papel decisivo na forma como no séc. XX a nossa percepção da chamada questão homérica2, isto é, o problema origem dos poemas, da sua autoria, composição e unidade3, evoluiu. Em termos muito básicos, Parry não foi o primeiro autor a estabelecer a relação entre os poemas homéricos e uma tradição oral mais vasta, da qual a sua linguagem seria herdeira4, mas foi o primeiro a investigar aprofundadamente a ligação entre a dicção tradicional dos poemas homéricos e o processo da sua composição5. Na verdade, existem várias teorias acerca da origem dos poemas, mas não sabemos ao certo qual a sua origem e qual o processo de composição. M. Parry começou por considerar as implicações de uma composição oral para os poemas tomando como ponto de comparação as práticas de composição numa tradição de épica oral viva. Assim, entre 1929 e 1934, ele e o seu assistente Albert Lord empreenderam uma série de viagens aos Balcãs, normalmente descritas pelos críticos – estudiosos de Homero e não só – como viagens lendárias na história da crítica literária6. A comparação com uma tradição viva permitiria reconstituir aproximadamente como os poemas poderiam ter sido compostos e transmitidos num contexto de produção oral. A. Lord daria sequência à investigação iniciada por M. Parry em The Singer of Tales7, o livro que apresenta os resultados da viagem de campo de Lord e Parry e procura desenvolver a teoria de Parry de acordo com os dados recolhidos nos Balcãs. Durante este período, M. Parry e A. Lord gravaram um número considerável de canções dos guslari, bardos que cantavam poemas acompanhados pelo gusle, um instrumento de uma só corda. Ao registar as canções os guslari, o que M. Parry estava a tentar imaginar era o tipod de poeta que poderia ter usado uma linguagem semelhante à de Homero, trabalhando-a até produzir um poema da extensão da Ilíada ou da Odisseia. De Avdo Mededovic, o mais profícuo dos bardos estudados por Parry, existe uma canção com a extensão da Odisseia8. Além da profunda investigação da possibilidade (normalmente descrita por estudiosos como nada menos do que o equivalente a um choque cultural no mundo dos estudos

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homéricos) de que os primeiros grandes poemas da história da literatura do ocidente muito dificilmente teriam tido raízes escritas ou origem numa cultura letrada, um outro aspecto em que a teoria de M. Parry se torna revolucionária é na questão do que, tendo os poemas sido compostos desta maneira, tem ou não um sentido significativo por si. O caso mais problemático é o das expressões formulares. Ou seja, expressões como “palavras apetrechadas de asas” ou “Aquiles de pés velozes” têm um valor significativo ou constam apenas nos poemas para preencher a métrica e para ajudar o aedo, que comporia de memória (e possivelmente em performance) a lembrar-se do que dizer? Esta pergunta, na verdade, é uma versão com implicações extremas da pergunta que normalmente colocamos despreocupadamente quando pensamos em qualquer poema: se a forma é a engrenagem, como funciona a máquina do sentido?, como é que a posição desta palavra neste lugar em particular tem mais força ou gera determinado efeito?9 Não é difícil de imaginar o tipo de taquicardia inspirada no mundo dos estudos homéricos pelos estudos de M. Parry e A. Lord. Depois daquela série de viagens aos Balcãs, nada voltaria a ser como dantes. Um sintoma disto: uma versão extrema do argumento da linguagem tradicional dos poemas como constrangedora de sentido ou desprovida dele é colocada por Adam Parry num pequeno artigo (oito páginas) tornado clássico, “The Language of Achilles”10, um ensaio absolutamente brilhante (ainda que actualmente refutado11), em que ele equaciona e tenta responder a algumas das implicações mais extremas da teoria do pai, argumentando que não é sequer possível romper com a linguagem do poema para expressar desilusão com a sociedade que este supõe (e que ninguém sabe ao certo qual é), mas, concluindo de um modo que inclui um paradoxo com o seu próprio argumento, que Aquiles consegue fazê-lo através de misuse da linguagem. Porque é que A. Parry sugere que a dicção formular dos poemas pode constranger o sentido? Há casos de expressões formulares tradicionais, usadas por M. Parry para investigar o fundo oral dos poemas, que claramente não adquirem o sentido que delas se espera. Um dos casos mais famosos é o da expressão ðïäÜñêçò ’A÷éëëåýò, Aquiles de pés velozes. Na verdade, não há uma única personagem na Ilíada que Aquiles

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primeiro estudioso a desenvolver a teoria de que os poemas não poderiam ter sido escritos porque a tecnologia não existiria na data que ele propõe para Homero e a sugerir uma transmissão oral para os poemas, herdados por este meio desde cerca de 950 a.C., expandidos e alterados no decurso deste processo, e finalmente passados a escrito na chamada “Recensão de Pisístrato”, no séc. VI. Para uma discussão da teoria de Wolf veja-se A. Parry (1971: xiv). A data de composição dos poemas é, portanto, também ela incerta e tende a avançar e a recuar consoante a forma como se entende o processo de composição e a autoria. 5. Para uma breve introdução aos aspectos básicos da teoria oral-formular de M. Parry veja-se B. Powell 20072: “The Philologists’ Homer”, Homer (Oxford). 6. É esta a formulação de B. Powell (2007: 26). 7. Em certo sentido, A. Lord “continua” o livro. M. Parry tinha

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escrito as primeiras doze páginas. 8. As gravações feitas por Parry e Lord encontram-se hoje disponíveis online na página de The Milman Parry Collection. O arquivo encontra-se depositado na Widener Library na Universidade de Harvard. Para uma discussão introdutória sobre os guslari e a sua educação veja-se B. Powell (20072: 25-9). Para discussões mais pormenorizadas de tradição e composição oral veja-se o já mencionado livro de A. Lord, The Singer of Tales. 9. J. Haubold (2007: 28) nota que as discussões de M. Parry tem afinidades com questões levantadas mais tarde por intelectuais pós-modernos acerca da forma como os textos adquirem significado. 10. In A. Parry (1956) 1989: The Language of Achilles and Other Papers (Oxford). 11. Rios de tinta correram sobre este ensaio, a primeira refutação é da autoria de M. D. Reeve

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vença numa corrida. Assim, aparentemente, a expressão do poeta é limitada, ele não tem outra escolha que não utilizar esta expressão, sobretudo para preencher a métrica fixa do verso dos poemas homéricos, o hexâmetro dactílico. Esta conveniência métrica seria determinante para ajudar o poeta a compor de memória. A primeira objecção a esta ideia, levantada por diferentes estudantes de Homero, no entanto, pertence ao senso comum, afirmar que um modo de dizer limita um poema é como dizer que a linguagem nos impede de falar. Nós sabemos que os poemas homéricos, a partir de dado momento, dominaram a tradição em que surgiram e isto é difícil de reconciliar com a ideia de uma experiência limitada de linguagem. Na verdade, os poemas estão cheios de momentos desenhados para expandir as possibilidades de sentido dentro da linguagem tradicional em que ocorrem. Há, por exemplo, alusões a momentos anteriores e posteriores nas histórias das personagens que não ocorrem nos poemas, e que ainda que nos digam que elas não eram originais no sentido em que Gatsby é uma invenção, há uma apropriação de sentido para aquele poema em particular. Além disso, as personagens carregam com elas a ressonância de uma tradição maior que, alguns críticos argumentam, é carregada de sentido. 1991 é um ano particularmente interessante para a investigação desta possibilidade. Em 1991, John Miles Foley publica Immanent Art: From Structure to Meaning in Traditional Oral Epic, onde desenvolve uma teoria de referencialidade sobre os poemas homéricos. Na sequência da teoria de M. Parry e A. Lord, J. M. Foley, basicamente, propõe que se explore a forma como tudo o que no poema alude à tradição a que eles pertencem poderá apontar para a relação com uma tradição maior (personagens e histórias relacionadas com aquelas épicas noutras épicas) e para outras referências dentro do mesmo poema12. A teoria de Foley, independentemente de como se interprete a questão homérica13, é um exemplo da extrema influência exercida pelas teorias de Parry e Lord e da vitalidade da discussão que elas geraram. Estas discussões criam a ideia de um poema que, tendo atravessado séculos, permanece na história da literatura do Ocidente como uma espécie de Big Bang: uma explosão que deu lugar a um universo. No entanto, as suas origens permanecem obscuras.

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A viagem de Parry e Lord acidentalmente deu origem a um outro relato não inteiramente relacionado com a questão homérica, embora pertinente para a interpretação de certas questões de política dos Balcãs. Quem pegar na versão inglesa de O Ficheiro sobre H14 do escritor albanês Ismail Kadaré, pode ler na nota do tradutor (p. 170) que, numa conferência em Ankara em Agosto de ’79, Kadaré teve uma conversa que durou cinco minutos com Albert Lord. A conversa não teve tempo de ser muito elaborada, mas durou o suficiente para deixar Kadaré interessado na questão. O Ficheiro Sobre H (o H é, claro, de Homero) narra a história de dois estudiosos irlandeses-americanos de Harvard, Bill Norton e Max Ross, que viajam até à Albânia em 1930 (a viagem real de Parry e Lord concentrou-se sobretudo na Jugoslávia) para registar as canções dos últimos cantores de épica oral. Como noutro romance do autor, A Queda da Cidade de Pedra, o enredo toma como ponto de partida uma situação aparentemente cómica. As autoridades locais confundem os dois investigadores com espiões (porque eles são estrangeiros e viajam com um gravador para fazer a sua recolha de dados). Não é difícil imaginar o tipo de agitação que esta possibilidade gera numa cidadezinha de província. A mulher do governador desenvolve uma atração/fascínio por um dos investigadores (embora hesite entre ambos), e estes, exibindo um comportamento que não pode ser descrito como totalmente inaudito entre académicos, revelam-se completamente indiferentes ao mundo em chamas à sua volta. Bill Norton e Max Ross querem apenas recolher os seus dados, regressar a Harvard e tornar-se famosos. Diga-se, no entanto, que o seu amor pela research é verdadeiro. Uma das coisas mais interessantes acerca da primeira parte do romance é o modo como este captura as expectativas geradas pela chegada de estranhos e como esta trabalha na imaginação daqueles que os recebem. Há uma gentileza verdadeiramente enternecedora e comovente no modo como Kadaré descreve uma arte a extinguir-se num mundo isolado, politicamente opressivo, e de como é neste mundo que decorre a última tentativa de dois estrangeiros, de algum modo ignorantes do contexto e por isso limitados, de a preservar para que ela se torne a testemunha possível de um outro mundo, irreparavelmente desaparecido. Durante todo o romance, o aspecto em que sentimos mais simpatia por Ross e Norton é nesta imagem do seu

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1973: “The Language of Achilles”, Classical Quarterly (Cambridge) 193-95. 12. Para um comentário a um livro da Ilíada da perspectiva da teoria de Foley veja-se Adrian Kelly 2007: A Referential Commentary and Lexicon to Iliad VIII (Oxford). Para um belíssimo livro, acessível a qualquer interessado numa investigação acerca das formas como a poesia adquire sentido (na verdade um dos pontos críticos da teoria de Parry), sobre as vidas em tradições paralelas de uma personagem homérica veja-se o brilhante (e breve) livro de Laura Slatkin 2011: The Power of Thetis and Selected Essays (Washington). 13. Há autores que assumem que o texto é sobretudo um objecto literário: ele existiu em forma oral, mas o que temos é um texto com uma unidade, e que deve ser interpretado como tal, o que, claro, coloca, com diverso grau de aproximação ou afastamento, problemas a uma interpretação dos poemas tendo

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em conta a teoria de Foley. Um exemplo de uma defesa de uma abordagem de interpretação puramente literária dos poemas (i.e. que não toma questões de oralidade como prioridade) pode ser encontrado na introdução de Jasper Griffin a Homer on Life and Death (Oxford, 1980). Para uma hipótese que procura conciliar ambas as perspectivas veja-se O. Taplin 1992: Homeric Soundings (Oxford). Citando um comentário de J. Haubold no texto acima, as pessoas que defendem uma ou outra teoria, nem sempre falam umas com as outras. O exemplo extremo desta postura, incluindo um corte total com bibliografia recente sobre a questão homérica, são as duas teorias de composição dos poemas homéricos muito recentemente publicadas por M. L. West, detentor do título de maior helenista vivo: The Making of the Iliad (Oxford, 2011) e The Making of the Odyssey (Oxford, 2014). No extremo oposto veja-se a teoria de Gregory Nagy, discípulo de Parry e

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trabalho como uma tentativa de entender o tipo de mundo e de condições em que uma forma de arte, a arte de que Homero dá testemunho, se poderia ter incendiado como um clarão e desaparecido. A narrativa de Kadaré toma como ponto de partida o trabalho de Parry e Lord, mas a partir daqui é um relato ficcional que encerra, como é característico da obra de Kadaré, uma reflexão sobre o contexto político albanês15. A maior esperança de Bill e Max é fazer uma recolha de canções existentes e depois encontrar um cantor que componha sobre um evento de um passado recente ou contemporâneo16, o que seria uma prova de que a épica oral na Albânia não estaria a morrer. Ultrapassando uma série de peripécias, finalmente eles parecem ser bem sucedidos na sua primeira tarefa: Whereas they had previously despaired at the dispersion of the Albanian epic tradition, they now felt reassured that the entire corpus was in good order. What to begin with had seemed like shards scattered through space and time, as ungraspable as a mane of rainbows, as wind and burnt dust, and quite impossible to collect, was not locked in numbered metal reel cases. Sometimes it seemed hard to credit that they had managed to tame all that hatred and all that passion17.

A última frase na verdade aponta para o final do romance. Como Bill Norton e Max Ross estão prestes a descobrir, a ideia de que a épica, que toda aquela imensa desordem de canções, tinha sido finalmente dominada por eles, é ilusória. Todo aquele ódio e toda aquela paixão não podiam ser verdadeiramente documentados. À medida que se avança para as últimas páginas do romance os acontecimentos evoluem de forma inesperada e no fim, não só os seus dados são destruídos como isto parece ditar a morte da épica albanesa e pôr em risco as suas próprias vidas. Mas o final do romance sugere, na impossibilidade dos investigadores de dominar e prever a evolução desta arte, a sua vitalidade. Nisto, acidentalmente, este romance sobre a Albânia lança um olhar sobre o outro fenómeno que é obscuro para os homeristas. O da morte da épica18. Quando se pensa em viagens e em Homero, é normal que se pense no íïóôüò (no regresso) de Ulisses, na Odisseia. A crónica da viagem de Bill Norton e Max Ross tem muito pouco que ver com a diversidade do mundo que se atribui às viagens de Ulisses, e ao seu regresso a casa, sobretudo se pen-

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sarmos na famosa interpretação que Kavafis faz dessa viagem: “Ítaca deu-te a bela viagem. Sem Ítaca não terias saído do caminho.”19 Ainda que alguma coisa desta interpretação se conserve nas páginas finais do romance, a viagem de Bill Norton e Max Ross tem muito mais a ver com as viagens que os humanos empreendem no mundo da Ilíada. Há uma viagem na Ilíada que me faz sempre pensar no mundo de Kadaré em O Ficheiro sobre H. Reconheço que em parte isto tem que ver com uma suposição que subjaz ao cenário opressivo do romance de Kadaré (Bill e Max gravam os aedos albaneses numa pensão numa aldeia, confinados num quarto, e durante quase todo o romance chove), que é comum à Ilíada. Realidades alteradas (guerras, regimes opressivos) alteram o modo como os corpos podem progredir no espaço, alteram a sua liberdade de movimentos e introduzem riscos imperceptíveis que se podem revelar fatais (para uma obra que serve para pensar acerca disto num contexto português veja-se, por exemplo, Os Grão-Capitães de Jorge de Sena). Na Ilíada a personagem que mais sofre com as restrições que a guerra impõe sobre a forma como ele se pode movimentar no espaço é, muito provavelmente, Licáon. Licáon é um dos mais jovens dos filhos de Príamo (na verdade o mais jovem é o seu irmão Polidoro, morto por Aquiles no Livro 20 da Ilíada). Licáon sofre, em grande parte, porque Licáon não aprende. Uma noite, antes de Aquiles incorrer na sua cólera épica, Aquiles rapta Licáon e vende-o pelo resgate. Doze dias mais tarde, numa altura em que Aquiles claramente já não está na disposição de tomar prisioneiros (morto Pátroclo, Aquiles transforma-se numa máquina de matar), Licáon e Aquiles tornam a cruzar-se: Foi então que deu de caras com um filho de Príamo Dardânio a fugir do rio: Licáon, a quem outrora Aquiles tomara à força no pomar de seu pai, quando lá caminhava a meio da noite. O jovem cortava com o bronze afiado vergônteas de figueira selvagem, rebordo para o seu carro. De encontro a ele, como ínvio flagelo, surgira o divino Aquiles. E depois vendera-o na bem fundada Lemnos, levando-o para lá na nau, onde o filho de Jasão pagou o preço por ele. Mas de lá o resgatara um hóspede paterno por uma fortuna: Eécion de Imbro, que o mandara para a divina Arisbe. Porém de lá Licáon fugira às escondidas para casa de seu pai.

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de Lord, enunciada em Homeric Questions (Austin, Texas, 2003). Michael Nagler, no livro Spontaneity and Tradition (California, 1974 – ver a introdução) é o caso de um estudioso que aponta as correspondências entre os processos de composição oral e escrita. São alguns destes pontos básicos de relação que explicam porque é que estas teorias aparentemente díspares ( a) os poemas evoluem em composição oral e só depois são passados a escrito, b) os poemas evoluem de forma escrita, muitas vezes preparados para performances orais), não se conseguem anular uma à outra: elas tocam-se justamente nos pontos que não tornam a exclusão de uma delas possível. 14. The File on H (David Bellos, trad., Londres, 2006). Publicado pela primeira vez em albanês em 1981. 15. Para uma análise da obra como reflexão crítica sobre o contexto político albanês veja-se o ensaio de Barbara Graziosi 2007: “Homer in Albania:

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Oral Epic and the Geography of Literature” in B. Graziosi & E. Greenwood (edd.), HTC (Oxford) (esp. p. 12f.). 16. Na verdade, o romance de Kadaré problematiza e, de alguma forma faz o revisionismo, do conteúdo político de uma canção composta para M. Parry por um dos bardos por ele entrevistados, sobre a suposta unificação harmoniosa (e recente à data da viagem de Parry e Lord) da Bósnia, Sérvia, Herzegóvina e Croácia (v. Graziosi: 2007: 13). A composição deste poema demonstrou na altura que ainda havia alguma vitalidade nesta tradição e que era possível compor sobre um assunto contemporâneo. 17. The File on H, p. 146. 18. Richard P. Martin, num ensaio de 1993, “Telemachus and the Last Hero Song” publicado na Colby Quarterly (29.3), propõe uma leitura de Telémaco, o filho de Ulisses, como representante de um outro tipo de herói,

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E durante onze dias se dedicara ao prazer com seus amigos, vindo de Lemnos. Mas ao décimo segundo dia de novo um deus o lançou nas mãos de Aquiles, que estava prestes a mandá-lo para o Hades, embora ele não quisesse ir.

Ilíada 21. 34-4820

Licáon deixa cair as armas (na verdade livrara-se de uma parte delas na fuga no rio) e implora a Aquiles que o poupe de novo. Implora primeiro porque quando Aquiles o raptou eles partilharam pão juntos, porque o resgate que Aquiles recebeu é o que só podia ser pago por um prisioneiro extremamente valioso. Licáon é um dos princípes de Tróia, um dos filhos mais jovens de Príamo, e no fim implora que ele não o mate porque ele não é filho da mesma mãe que Heitor, o assassino de Pátroclo. A súplica de Licáon é o pedido terrível que só pode ser feito por um inexperiente. Para perceber o quão inexperiente Licáon é basta avançar cerca de cinco versos e encontrar Asteropeu, que enfrenta Aquiles armado com duas lanças e morre a tentar arrancar do chão a lança de Aquiles – é morto com um golpe de espada. O contraste não é só o da viagem que insere uma disrupção no ritmo da matança de Aquiles, por onde de repente se sente o ressoar momentâneo de outro mundo prestes a perder-se, o jardim do jovem príncipe Lícaon, a sua preocupação escrupulosa com o carro, que vale uma caminhada no meio da noite em plena guerra. O contraste é também entre o mundo civilizado de onde Lícaon vem, ele passa pelo sofrimento de uma longa viagem como captivo e regressa e passa onze dias entre os amigos, e o grau de desumanidade que Aquiles atinge entre os livros 20 e 22 da Ilíada. Isto permite uma consideração mais geral, as viagens não são, portanto, apenas a travessia de um ponto a outro, elas criam novas realidades e geram realidades deslocadas. Licáon e Aquiles encontram-se naquele ponto, no meio do rio, mas eles nem sequer vêm do mesmo mundo. No entanto, a viagem de Licáon liga-o a Aquiles. Aqui, a história da viagem, que não chega a tornar-se no conceito de viagem enquanto forma de biografia (trata-se antes do episódio decisivo na biografia de Licáon na Ilíada)21, no entanto, gera o dilema ético que subjaz à decisão de Aquiles de o matar. Se procurarmos, na Ilíada22, por este conceito de viagem enquanto forma análoga à vida (na verdade este é mais o tema

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da Odisseia) a personagem que talvez melhor corresponda a este modelo é Ifidamante. Ifidamante surge no Livro 11 e é morto por Agamémnon. A sua viagem é de uma natureza muito particular. Ele é uma das duas personagens que empreendem uma viagem a pé no poema23 e é o primeiro dos Troianos no poema a enfrentar Agamémnon: ...Ifidamante, filho de Antenor, homem alto e valente, que fora criado na Trácia de férteis sulcos, mãe de rebanhos. Foi Cisseu quem o criou em casa quando era ainda criança, ele que era seu avô materno e gerara Teano de lindo rosto. Mas quando ele chegou à medida certa da florescente juventude, Cisseu reteve-o lá e deu-lhe a sua filha em casamento. Mal casara saiu do tálamo atrás do rumor dos Aqueus com as doze naus recurvas que o seguiram. Em seguida deixou as naus bem construídas em Percote, prosseguindo viagem para Ílion a pé.

Ilíada 11. 221-30

As primeiras linhas descrevem Ifidamante como um rapaz alto e valente, ele é criado entre rebanhos, é retido em casa de Cisseu e toma a sua filha em casamento. Mas assim que lhe chega o rumor da guerra aos ouvidos ele esquece a esposa e parte. Há uma adequação entre a caracterização dele (alto e valente) e a forma como ele parte para a guerra. O contingente que ele comanda tem o mesmo tamanho do contingente de Ulisses (doze naus). E basta pensar em Ulisses, que tenta por todos os meios escapar a partir para Tróia, para perceber que Ifidamante parte com vontade de partir – ele tinha acabado de se casar. Porque objectivo e viagem são parte do mesmo fim, a viagem neste caso não é uma disrupção como no caso de Licáon. Esta ideia parece ser confirmada pela sua ambição: Agamémnon é o grego que ele escolhe atacar. O que é que acontece quando olhamos para a viagem de Ifidamante até Tróia? Entendemos que ela começa no momento em que ele começa, na Trácia, e dura exactamente até ao momento em que a sua lança falha em trespassar a armadura de Agamémnon. O tempo da viagem expande-se mais do que era suposto para se comprimir com a abruptidão própria do espaço concentrado da Ilíada. A melhor metáfora acerca disto

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que não pertence já ao mundo dos heróis homéricos. Para uma discussão do terminus ante quem e para uma descrição do que sabemos do processo que medeia entre o desaparecimento dos aedos (compositores e performers de épica) e o surgimento dos rapsodos (apenas performers) veja-se o excelente ensaio de W. Burkert 1987: “The Making of Homer in the Sixth Century B.C.: Rhapsodes vs. Stesichoros” in A.A.V.V., Papers on the Amasis Painter and His World (The J. Paul Getty Museum, Malibu) 43-62. 19. Konstandinos Kavafis 2005: Os Poemas, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (trads.) (Lisboa). 20. Tradução de Frederico Lourenço (Lisboa, 20125). 21. Para um ensaio sobre life journeys num género subsequente, a tragédia grega, veja-se O. Taplin 2010: “Tragic Journeys and Real Life Journeys: the Places where Three Ways Meet”, Antichon (44) 1-11.

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Agradeço ao autor ter-me disponibilizado o acesso a este ensaio. Há aí uma descrição da geografia de Tróia no período clássico. 22. As outras viagens que são narradas no tempo da Ilíada e de que não falo aqui serão duas. A viagem empreendida por Ulisses no Livro 1, que decorre antes do início das cenas de batalha, mas que na verdade é a descrição mais pormenorizada de uma viagem por mar contida no poema. Existe um livro inteiro sobre viagens por mar no mundo de Homero: Samuel Mark 2005: Homeric Seafaring (College Station). Sobre viagens de heróis homéricos em geral (não só nos poemas homéricos) veja-se Robin Lane Fox 2009: Travelling Heroes: Greeks and their Myths in the Epic Age of Homer. A outra viagem é discutível se conta como viagem. Trata-se da deslocação, empreendida pelos troianos como um todo, para recolher madeira para a pira de Heitor. A viagem é empreendida com carroças (puxada por bois e mulas) e a extensão

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corre o risco de soar como uma banalidade pretensiosa. Na morte de Ifidamante, como na de Licáon e de tantas outras personagens menores, toda a luz e toda a sombra convergem na força com que o narrador ilumina alguns detalhes das suas vidas. Na sua maneira de apontar para outros tempos que não o da acção da Ilíada, estas alusões expandem o universo do poema e acendem ecos sucessivos de outros contextos e lugares que ficaram de fora do que alguma vez saberemos com toda a certeza acerca do universo de Homero. A viagem real de Parry e Lord, a viagem ficcionada de Ross e Norton, multiplicam as possibilidades dos sentidos em que esse universo se pode ter movido ou pode ainda comunicar. Essas possibilidades frequentemente habitam o tipo de pormenores de que se compõem as histórias de Licáon e Ifidamante, ou seja, aquilo que no poema escapa ao seu contexto narrativo mais imediato. Esta ressonância de coisas anteriores pode percorrer uma distância tão longa quanto aquilo que a nossa imaginação possa iluminar. Neste sentido, a viagem recomeça sempre que um leitor, deparando-se com a Odisseia ou a Ilíada em qualquer parte do mundo, abre o livro e começa. E em tudo isto há uma espécie de nostalgia cujo ponto de chegada é o nosso amor, uma coisa cheia de pequenas interrogações, ecos e mistérios, capaz de gerar curiosidade suficiente, vício suficiente, para deixar um leitor a regressar a Homero a vida inteira.

OX F O R D

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de tempo que dura (nove dias) é consistente com uma viagem longa (24. 782-4). É possível, no entanto que a distância percorrida não fosse longa (eles movimentam-se diante da cidade), mas antes a tarefa. Não conto como viagem a distância percorrida por Príamo para resgatar Heitor porque decorre entre a cidade e o campo inimigo, num cenário percorrido por outras personagens. 23. Agradeço a Gustavo Oliveira ter-me chamado à atenção para este pormenor. A outra é a de Pandaro (5.192f.).

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