2015 - A importância de agremiações artísticas e do colecionismo de Portugal na constituição da coleção de arte portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro

Share Embed


Descrição do Produto

história da arte: coleções arquivos e narrativas

org. ANA MARIA PIMENTA HOFFMANN ANGELA BRANDÃO FERNANDO GUZMÁN SCHIAPPACASSE MACARENA CARROZA SOLAR

1

editora urutau ltda

rua inocêncio de oliveira, 411 jardim do lago 12.914-570 bragança paulista-sp

Tel. [ 55 11] 94859 2426 [email protected] www.editoraurutau.com.br editores ana elisa de arruda penteado tiago fabris rendelli wladimir vaz

Imagem da capa Dados Internacionais de Catalogação na Almeida Júnior (Itu, SP, 1850 - Piracicaba, SP, 1899) Publicação (CIP)19 A Pintura (alegoria), 1892 (det.) óleo sobre tela, 250 x 125 cm Nogueira, André. Acervo damanifesto Pinacoteca do/ Estado de São Paulo, Brasil. Transferência Museu N778m O lenitivo André Nogueira. -- Bragança Paulista-SP : Editora Urutau, 2015. 208 p.; Paulista, 1947. 14x19,5 cm Crédito fotográfico: Isabella Matheus ISBN: 978-85-69433-00-2

1. Poesia brasileira. 2. Poesia contemporânea. 3. Literatura NOTA DE ESCLARECIMENTO: brasileira. I. Nogueira, André, 1987-. II. Titulo. A revisão dos textos e a autorização para a publicação das imagens são de responsabilidade exclusiva dos autores.CDD: B869.1 CDU: 82-1/9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Hoffmann, Ana Maria Pimenta; Brandão, Angela; Schiappacasse,Fernando Guzmán e Solar, Macarena História da arte: coleções, arquivos e narrativas / vários autores.Bragança Paulista-SP : Editora Urutau, 2015. 584 p.; ISBN: 978-85-69433-07-1 1. História. 2.História da arte. I. vários autores. II. Titulo.

coleções e museus

A importância de agremiações artísticas e do colecionismo de Portugal na constituição da coleção de arte portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro

Arthur Valle

Professor Adjunto Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Durante as primeiras décadas que se seguiram à implantação da República no Brasil, a Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (ENBA) constituiu aquela que é provavelmente a mais significativa coleção pública de arte portuguesa oito-novecentista existente em território brasileiro. Essa coleção conta com dezenas de obras de importantes artistas atuantes nas décadas finais do século XIX e iniciais do XX, como Columbano Bordallo Pinheiro, José Vital Branco Malhoa, António Francisco Silva Porto, José Júlio de Souza Pinto, entre outros. Os significados dessa coleção eram então variados. Por um lado, a sua constituição e exibição reiterava as orientações pedagógicas implantadas na ENBA após a proclamação da República, bem como as concepções de arte moderna que a instituição buscava então promover.1 Por outro lado, agentes portugueses estavam interessados no estabelecimento dessa espécie de “vitrine” no seio da Escola como um fator que contribuía para a consolidação de um mercado consumidor de arte, fomentado pelas colônias portuguesas em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Partindo dessa última afirmação, a presente comunicação tem como objetivo principal discutir o papel desempenhado por agremiações artísticas e pelo colecionismo de Portugal na formação da coleção em questão. Centrar-nos-emos na discussão de dois tópicos: (1) as aquisições feitas pela ENBA na “Exposição de Arte Portuguesa”, promovida no Rio de Janeiro em 1902, sob os auspícios da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa; (2) a doação de obras feita pelo colecionador luso-brasileiro Luís Fernandes, efetivada em 1926. Pretendemos assim evidenciar a Cfr. VALLE, A., “O acervo de pintura portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes no contexto pedagógico pós- Reforma de 1890.” Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 19, 2013. Pp. 117-139.

1

269

intensidade dos intercâmbios artísticos entre Brasil e Portugal no período, bem como o quanto a constituição da coleção de arte portuguesa da ENBA foi tributária de práticas expositivas e colecionistas engendradas em Portugal a partir de fins do século XIX. Aquisições na “Exposição de Arte Portuguesa” de 1902 Em 17 de julho de 1902, no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, foi inaugurada a “Exposição de Arte Portuguesa,” organizada pelo representante de artistas lusitanos Guilherme da Rosa. Essa mostra contava com mais de uma centena de obras, entre pinturas, peças de arte aplicada e projetos arquitetônicos, e obteve um grande sucesso de público e de vendas. Dela participaram alguns dos mais consagrados artistas portugueses da época, como Raphael Bordallo Pinheiro, João Vaz e José Velloso Salgado, além dos já referidos Malhoa e Columbano, bem como artistas então ainda considerados “novos,” como Adriano de Souza Lopes.

Essa exposição foi largamente resenhada na imprensa carioca da época e obteve boa repercussão também do outro lado do Atlântico, em periódicos lisboetas como O Dia, O Seculo e O Occidente. Além de críticas escritas, foram publicadas diversas fotografias de obras presentes na exposição e imagens de sua instalação (FIG. 1). Aqui, todavia, não nos deteremos na recepção da “Exposição de Arte Portuguesa” como fizemos em outro trabalho,2 mas apenas na discussão de um dado significativo e até o momento pouco conhecido: a relação entre a mostra e a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa (SNBA).3

A SNBA, fundada em 1901,4 foi a mais importante agremiação artística portuguesa de inícios do século XX. Ela surgiu como resultado da junção de duas outras agremiações artísticas lisboetas: (1) a Sociedade Promotora de Belas Artes, criada em 1860, e (2) o Grémio Artístico, fundado em Cfr. VALLE, A.. “As aquisições da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro na ‘Exposição de Arte Portuguesa’ de 1902.” In: NETO, M. J.; MALTA, M. (org.). Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX - Perfis e Trânsitos. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2014. Pp. 347-363.

2

Cfr. TAVARES, C. A.. A Sociedade Nacional de Belas-Artes: um século de história e de arte. Vila Franca de Xira: Ed. Projecto, Núcleo de Desenvolvimento Cultural de Vila Nova de Cerveira, Fundação Bienal de Vila Nova de Cerveira, 2006.

3

4

Ibid: pág. 27-29.

História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 270

1890 na sequência das exposições que os integrantes do chamado Grupo do Leão5 realizaram nos anos 1880. Para a argumentação que se segue, é fundamental ressaltar que a SNBA deu continuidade sobretudo às ações do Grémio, adotando os termos estatutários, a atribuição de deveres e a forma de organização interna dessa última agremiação.

A análise de uma série de evidências aponta para uma ligação estreita entre a mostra portuguesa no Rio em 1902 e a SNBA. Por exemplo, diversos periódicos cariocas reportaram a ligação entre Guilherme da Rosa e a Sociedade; em um artigo da Revista da Semana se afirmava, inclusive, que a mostra no Rio fazia parte de um “projeto da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa [que] consiste em abrir um mercado à Arte portuguesa no Brasil, e simultaneamente, um mercado à Arte brasileira em Portugal.”6 Além disso, alguns meses após a realização da exposição no Rio, Guilherme da Rosa fez publicar, no Diario de Noticias de Lisboa, um documento que, segundo ele, “liquida[va] as responsabilidades que contraí com a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, por ocasião da minha recente viagem ao Brasil.”7 Tratava-se de uma carta assinada pelo pintor português João Ribeiro Christino da Silva, na qual este designava a si próprio como “presidente da comissão organizadora da exposição de arte Portuguesa no Rio de Janeiro, levada aí a cabo pelo Exm. Sr. Guilherme da Rosa.”8 Essas notícia confirma, portanto, que, em 1902, Rosa representava, de maneira formal, um grupo de artistas portugueses vinculados a SNBA. Outro indício da relação entre a “Exposição de Arte Portuguesa” e a SNBA é o conjunto de obras expostas no Rio, muitas das quais haviam participado antes de mostras da Sociedade, em 1901 e 1902, ou do Grémio Artístico, em finais dos anos 1890. As obras adquiridas pela ENBA às quais aqui vamos nos referir mais detalhadamente exemplificam o quanto a “Exposição de Arte Portuguesa” representava uma espécie de extensão

Para o surgimento do Grupo do Leão na arte portuguesa, ver: FRANÇA, J.-A.. A Arte em Portugal no século XIX. 3ª edição. Vol. 2. Lisboa: Bertrand Editora, 1990, pág. 23 sg; SILVA, R. H. da. “Silva Porto e a pintura naturalista.” In: LAPA, P.; SILVEIRA, M. de A. (Org.) Arte Portuguesa do Século XIX: 1850-1910. Vol. 1. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado/ Leya, 2010. Pp. LI-LXIII.

5

6

BONHOMME, J.. “CRÔNICA.” Revista da Semana, Rio de Janeiro, 13 jul. 1902, pág. 1.

“A exposição d’arte portuguesa no Rio de Janeiro.” Diario de Noticias, Lisboa, 26 nov. 1902, pág. 2.

7

8

Ibid: pág. 2.

Arthur Valle 271

das políticas expositivas dessas duas agremiações lisboetas, que, como salientamos, eram estreitamente vinculadas.

Um documento assinado pelo então diretor da ENBA Rodolpho Bernardelli9 informa que 11 quadros foram adquiridos na mostra de 1902: 4 de Columbano (A Luva Branca, A Locandeira, Madona e Soldado); 1 de Velloso Salgado (Azinhaga em Benfica); 1 de Ernesto Condeixa (Um Homem do Mar); 1 de Carlos Reis (Os Amores do Moleiro); 1 de Manoel Henrique Pinto (A Saída do Rebanho); e 3 de Malhoa (A Sesta, A Corar a Roupa e Gozando os Rendimentos). Todas essas obras pertencem hoje à Coleção de Pintura Estrangeira do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que incorporou em 1937 a parte mais importante do antigo acervo da Escola. A única exceção é a Madona de Columbano, que, em entrevista na época, Guilherme da Rosa declarou ter ele próprio comprado.10

Das três obras de José Malhoa, Gozando os Rendimentos, um quadro de temática urbana relativamente rara na produção do artista, que retrata um “forte burguês que repousa num banco de jardim, provavelmente o de S. Pedro de Alcântara,”11 havia sido exibido, sob o n. 94, na exposição comemorativa do 4º. Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, organizada pelo Grémio Artístico em 1898. Já A Sesta indubitavelmente é a obra exibida sob o n. 63 na exposição organizada pela SNBA em 1902, como comprova um desenho reproduzindo o quadro, publicado no jornal lisboeta O Seculo.12 Apenas a respeito de A corar a roupa, não encontramos referências inequívocas em exposições lisboetas anteriores. Todavia, essa tela bem poderia ser o Estudo exposto sob o n. 77 na mostra da SNBA de 1901. O escritor português Henrique de Vasconcellos resenhou esse Estudo à época, juntamente com outro quadro intitulado Cebolas, que Malhoa também enviou para o Rio, asseverando que nessas duas obras “as figuras são sadias, são verdadeiras camponesas, trigueiras e fortes. Há, talvez, Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em abril de 1903. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903, pág. 225.

9

“De Columbano ficaram nas Belas Artes os seguintes quadros: A locandeira, A luva branca, Cabeça de mulher, O soldado. A Madona, comprei-o eu.” “A exposição d’arte portuguesa no Brasil.” O Dia, Lisboa, 20 set. 1902, pág. 2.

10

11 SILVA, R. H. da. “Invocação do Grupo do Leão e do naturalismo português.” In: O Grupo do Leão e o Naturalismo português. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996, pág. 58. 12

“Sociedade Nacional de Bellas Artes.” O Seculo, Lisboa, 20 abr, 1902, pág. 1.

História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 272

no Estudo um excesso de branco, as roupas a secar”.13 Essa descrição de Vasconcellos se adequa bem, portanto, à obra adquirida pela ENBA; além disso, corroborando essa hipótese de identificação, sabemos que Malhoa realmente considerava o quadro aqui em questão um estudo para uma versão maior de A corar a roupa, hoje perdida, que foi exibida na Exposition Universelle de Paris, em 1900.14

Dois dos três quadros de Columbano que sabemos terem sido adquiridos pela ENBA - A Luva Branca, A Locandeira e Soldado - também figuraram em mostras lisboetas anteriores. A versão d’A Luva Branca que ficou no Rio seria a mesma exposta na mostra do Grémio de 1897, sob o n. 32. Já A Locandeira participou da mostra da SNBA de 1902, sob o n. 17, onde compôs com outros dois quadros de pequeno formato centrados em figuras femininas um conjunto que foi muito elogiado pelos críticos de arte portugueses. Somente a respeito do terceiro quadro de Columbano, Soldado, é mais difícil fazer afirmações, pois ainda não foram encontrados indícios que permitam identificar de maneira inequívoca que obra com esse título foi efetivamente adquirida pela ENBA em 1902.

Além das obras de Malhoa e Columbano, dois outros quadros comprados pela Escola teriam figurado em exposições da SNBA. O primeiro é A Saída do Rebanho, de Manoel Henrique Pinto, que participou da mostra de 1901, sob o n. 105. O segundo é a tela de Ernesto Condeixa intitulada Um homem do mar, que muito provavelmente é a obra homônima que figurou na exposição de 1902, sob o n. 23, que possuía exatamente as mesmas dimensões (73 x 53 cm) da obra que foi incorporada pela ENBA em 1902. Apenas com relação a Azinhaga em Benfica de Velloso Salgado e Os amores do moleiro de Carlos Reis não foi possível, até o momento, verificar qualquer participação em mostras organizadas pela SNBA ou pelo Grémio Artístico.

VASCONCELLOS, H. de. “Exposição de Belas-Artes.” Brasil-Portugal, Lisboa, n. 58, 16 jun. 1901, pág. 155. 13

A versão de A corar a roupa exposta em Paris se perdeu no naufrágio do navio a vapor Saint-André, quando retornava para Lisboa, junto com uma série de importantes obras de artistas portugueses. 14

Arthur Valle 273

A doação de Luís Fernandes Depois de 1902, a coleção de arte portuguesa da ENBA foi sendo aumentada lentamente, com aquisições importantes, mas esparsas no tempo. Em termos quantitativos, nada semelhante à grande compra de 1902 se verificou até 1926, quando a Escola recebeu um novo contigente de obras portuguesas, no bojo da doação feita pelo colecionador luso-brasileiro Luís José Seixas Fernandes (1859-1922). Luís Fernandes é bem conhecido na historiografia de arte portuguesa, especialmente pela sua participação na criação do Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa (MNAA). JoséAugusto França o recordou em seu clássico A Arte em Portugal no século XIX15 e, nos últimos anos, tem surgido textos analisando a sua atuação como primeiro diretor do Grupo dos Amigos do MNAA.16 Todavia, aquilo que aqui mais nos interessa - a sua atividade como colecionador de arte ainda carece de investigações sistemáticas.

Luís Fernandes17 (FIG. 2) nasceu no Estado da Bahia, Brasil, filho de Justino José Fernandes, um português natural do Minho, e de Maria Emília Figueiredo Seixas, de nacionalidade brasileira. Quando Fernandes tinha cerca de 12 anos, sua famila se mudou para Portugal, em função do adoecimento de seu pai; após a morte deste, Fernandes herdou uma importante fortuna, que lhe deu a possibilidade de se dedicar, ainda no final do século XIX, ao colecionismo de arte. José-Augusto França, ao traçar um panorama geral do colecionismo em Portugal em fins de Oitocentos, definiu a coleção de Fernades como “uma colecção de moveis, porcelanas, esmaltes, tapeçarias, leques, com poucos quadros a nobilitarem o bricabraque mais sensivelmente reunido.”18 Com efeito, no palacete onde reunia sua coleção, na antiga Travessa de São Marçal (hoje Rua Luís Fernandes n. 15

FRANÇA, op. cit: pág. 80.

Cfr. BASTOS, C.; CARVALHO, M. B. (org.). Por amor à arte. Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. 100 anos 1912-2012. Lisboa: Amigos do Museu, 2012; BAIÃO, J.. “O Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Fundação e primeiros anos.” In: De Amiticia. 100 anos do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, MNAA/ IMC, 2012. Pp. 22-38. 16

17 Cfr. Verbete FERNANDES (Luís). In: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa, Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, [s.d.], v. XI. P. 108; “O Palácio do Menino de Ouro.” Olisipo: boletim do Grupo Amigos de Lisboa, Lisboa, S. 2, nº 12, mar. 2000. Pp. 111-114 18

FRANÇA, op. cit: pág. 80.

História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 274

1) em Lisboa, o destaque era dado aos objetos de cerâmica, em especial às chávenas. Todavia, contemporâneos do colecionador no Grupo dos Amigos do MNAA negavam que ele fosse um mero “bric-à-braquista” e frisavam o gosto apurado que regia a maneira de expor a sua coleção. Segundo o depoimento de um contemporâneo, no palacete da Travessa de São Marçal as obras de arte ocupavam “os lugares para os quais pareciam naturalmente destinadas, [...] todas subordinadas completamente à decoração e adorno dos vários aposentos, ou aos fins para que haviam sido criadas.”19 Os quadros de Columbano que foram depois legados a ENBA, por exemplo, “em vez de suspensos ao longe nas tapeçarias das paredes, eram comodamente expostos à nossa contemplação em pequenos cavaletes, sobre os bufêtes dourados do salão.”20

Luís Fernandes faleceu em Paris no dia 6 de fevereiro de 1922. Menos de uma semana depois, o seu testamento, que datava de 18 de dezembro de 1914, foi lido na conservatória do Registro Civil da Rua Ferreira Borges, em Lisboa. Uma cópia integral se encontra conservada no Gabinete de Estudos Olisiponenses e nela podem ser lidas as indicações de Fernandes quanto ao destino de suas coleções de arte.21 Insituições portuguesas como o MNAA e o Museu de Arte Contemporânea (Museu do Chiado) foram alguns dos principais beneficiários, mas instituições de sua terra natal, o Brasil, também receberam doações significativas. Foi o caso do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia e da ENBA do Rio. O trecho que se refere ao legado para a Escola especificava o seguinte: “Deixo ao Estado Brasileiro, com o exclusivo fim e aplicação de serem colocados e entrarem em exposição na Academia [sic] Nacional de Belas artes do Rio de Janeiro, todos os meus quadros a óleo, desenhos, estampas, gravuras, [...] esmaltes, bronzes e mármores.”22

Infelizmente, das diferentes seções da coleção de Luís Fernandes, apenas aquela incorporada pelo MNAA de Lisboa, consituída em sua grande maioria por peças de cerâmica, pode ser reconstituída com precisão.23 In memoriam. LUIZ FERNANDES. Homenagem dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, [S.n.], 1923, pág. 44. 19

20

Ibid: pág. 44.

Cfr. Testamento de Luís José Fernandes [cópia; Lisboa, 4 de março de 1922]. Gabinete de Estudos Olisiponenses, MS-MÇ 1416 CMLEO. 21

22

Ibid: pág.6-7.

Cfr. LEGADO DE LUÍS FERNANDES - 1923, Código de referência. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa. PT/MNAA/AJF/APF-MNAA-M/002/00005, Cota atual: AJF-Cx.4-P.14 23

Arthur Valle 275

Nada relativo à doação para a ENBA, que, como indicamos, só teria sido recebida em 1926, foi até o momento encontrado em arquivos portugueses. É possível que um registro se encontre no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que, como já referido, incorporou a parte mais importante das coleções da ENBA. Atualmente, os arquivos do Museu se encontram inacessíveis para investigação, mas suas coleções podem ser consultadas através do Sistema de Informação do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes (SIMBA): um levantamento que realizamos nesse sistema em setembro de 201424 revelou nada menos do que 113 obras relacionadas à doação de Luís Fernandes. Embora esse levantamento seja provavelmente incompleto, ele parece revelar, em linhas gerais, o que foi incorporada pela ENBA.

Em termos quantitativos, destacam-se os conjuntos de arte contemporânea ao colecionador, especialmente os de arte portuguesa, com um total de 40 obras (18 desenhos, 18 pinturas e 4 esculturas), e arte francesa, com um total de 37 obras (31 desenhos, 2 pinturas e 4 esculturas). De maneira menos significativa, também se encontram representadas outras “escolas:” a belga, com 1 pintura atribuída a John Michaux; a brasileira, com 1 bronze de Auguste Girardet; a espanhola, com 1 pintura de Enrique Atalaya Gonzales; a italiana, com 1 pintura de Giuseppe Carelli; a holandesa com 2 pinturas de P. J. Lutgers; e a russa, com 4 esculturas de Eugène Lancere. Há, ainda, um conjunto de 15 obras de procedência desconhecida e um pequeno contingente de obras de “mestres antigos,” como o italiano Corrado Giaquinto e o português Domingos António de Sequeira, bem como 12 peças classificadas como de “arte decorativa” (travessa, defumador, jarra, relógio etc.). No contexto da presente comunicação, nos interessa sobretudo a composição da coleção de arte portuguesa legada por Luís Fernandes à ENBA. Seu interesse estava voltado para a produção daqueles artistas que a historiografia de arte lusitana convencionou chamar “naturalistas” e para gêneros como a paisagem, o retrato e a pintura de gênero - uma predileção que Fernandes partilhava com outros colecionadores portugueses de sua geração, notadamente com o importante político José de Mascarenhas

Agradeço a Mary Komatsu Shinkado, bibliotecária do Museu Nacional de Belas Artes, por gentilmente ter me possibilitado consultar esse sistema. 24

História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 276

Relvas.25 Destacam-se artistas cujas obras já haviam sido incorporadas em 1902, como José Malhoa, com Lição de Violino (quadro originalmente exibido na mostra do Grémio Artístico de 1895 sob o n. 105, com o título Um compasso difícil), ou Columbano, com dois quadros que figuraram na exposição do Grémio de 1896: A refeição (originalmente intitulada Estudo (Efeito de Noite)), e A mulher da luneta.

Mas a doação de Luís Fernandes continha obras de diversos outros artistas portugueses de relevo. Um de seus principais destaques é um conjunto de obras de pequenas dimensões atribuídas a Silva Porto:26 5 pequenas “manchas” de paisagem e 2 obras centradas na figura humana - Cabeça de Menina e Mulher montada sobre um burrinho, essa última relacionada a uma composição de grandes dimensões chamada A Volta do Mercado, atualmente no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado de Lisboa. Ainda entre as pinturas a óleo, encontramos obras de Adolfo Cesar de Medeiros Greno, Alfredo Cristiano Keil, António Monteiro Ramalho, Carlos Reis, Francisco Villaça e João de Melo Falcão Trigoso, entre outros. Duas esculturas de António Teixeira Lopes também se destacam: Menino brincando, realizada em pedra-sabão, e A Caridade, uma redução em bronze de uma das mais conhecidas obras do escultor. Entre os desenhos, encontramos obras de artistas de diversas gerações como Sousa Lopes, Alfredo Roque Gameiro, Carlos Reis, Miguel Ângelo Lupi, Raphael Bordallo e Ricardo Hogan. Praticamente todas as peças que integram a doação de Luís Fernandes aguardam por um esforço sistemático de investigação. À guisa de conclusão, é importante frisar o quanto as evidências que acima procuramos reunir demonstram a importância de agremiações artísticas e do colecionismo portugueses no processo de constituição da coleção de arte portuguesa da ENBA. Esses fatores tiveram, de resto, uma repercussão ainda mais ampla. Por exemplo, o sucesso da “Exposição de Arte Portuguesa” de 1902 teria desencadeado a importante série de exposições de artistas portugueses no Brasil, que se estendeu até os anos 1920 - inclusive, nesse movimento, alguns artistas como Malhoa e Carlos Reis levariam seus

Cfr. GRILO, Fernando. “COLECCIONISMO E MERCADO DE ARTE NACIONAL E INTERNACIONAL NO INÍCIO DO SÉC. XX. A COLEÇÃO DE JOSÉ RELVAS.” ARTIS. Revista de História da Arte e Ciências do Património, Lisboa, 2ª série, n. 2, maio 2014. Pp. 150-157. 25

Cfr. SILVA PORTO, 1850-1893, Exposição comemorativa do centenário de sua morte. Lisboa: Instituto Português de Museus/ Museu Nacional de Soares dos Reis, 1993. 26

Arthur Valle 277

quadros até outros países latino-americanos, como a Argentina e o Chile. A constituição da coleção de arte portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes do Rio se apresenta, assim, como um objeto privilegiado cujo estudo permite que aprofundemos o entendimento dos intensos intercâmbios artísticos estabelecidos entre Portugal e Brasil nos anos finais do século XIX e iniciais do XX. Referências bibliográficas “A exposição d’arte portuguesa no Brasil.” O Dia, Lisboa, 20 set. 1902. P.2. “A exposição d’arte portuguesa no Rio de Janeiro.” Diario de Noticias, Lisboa, 26 nov. 1902. P. 2. BAIÃO, J. “O Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Fundação e primeiros anos.” In: De Amiticia. 100 anos do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: MNAA/IMC, 2012. Pp. 22-38. BASTOS, C.; CARVALHO, M. B. (org.). Por amor à arte. Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. 100 anos 1912-2012. Lisboa: Amigos do Museu, 2012. BONHOMME, J.. “CRÔNICA.” Revista da Semana, Rio de Janeiro, 13 jul. 1902. P. 1. FRANÇA, J.-A.. A Arte em Portugal no século XIX. 3ª edição. Vol. 2. Lisboa: Bertrand Editora, 1990. GRILO, Fernando. “Coleccionismo e mercado de arte nacional e internacional no início do séc. XX. A coleção de José Relvas.” ARTIS. Revista de História da Arte e Ciências do Património, Lisboa, 2ª série, n. 2, maio 2014. Pp. 150-157. In memoriam. LUIZ FERNANDES. Homenagem dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, [S.n.], 1923. “O Palácio do Menino de Ouro.” Olisipo: boletim do Grupo Amigos de Lisboa, Lisboa, S. 2, nº 12, mar. 2000. Pp. 111-114. SILVA PORTO, 1850-1893, Exposição comemorativa do centenário de sua morte. Lisboa: Instituto Português de Museus/ Museu Nacional de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 278

Soares dos Reis, 1993. SILVA, R. H. da. Invocação do Grupo do Leão e do naturalismo português. In: O Grupo do Leão e o Naturalismo português. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996. Pp. 27-31. ____. Silva Porto e a pintura naturalista. In: LAPA, P.; SILVEIRA, M. de A. (Org.) Arte Portuguesa do Século XIX: 1850-1910. Vol. 1. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado/ Leya, 2010. Pp. LI-LXIII. “Sociedade Nacional de Bellas Artes.” O Seculo, Lisboa, 20 abr, 1902. P.1. TAVARES, C. A.. A Sociedade Nacional de Belas-Artes: um século de história e de arte. Vila Franca de Xira: Ed. Projecto, Núcleo de Desenvolvimento Cultural de Vila Nova de Cerveira, Fundação Bienal de Vila Nova de Cerveira, 2006. VALLE, A.. “As aquisições da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro na ‘Exposição de Arte Portuguesa’ de 1902.” In: NETO, M. J.; MALTA, M. (org.). Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX - Perfis e Trânsitos. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2014. Pp. 347-363. ____. “O acervo de pintura portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes no contexto pedagógico pós-Reforma de 1890.” Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 19, 2013. Pp. 117-139. VASCONCELLOS, H. de. “Exposição de Belas-Artes.” Brasil-Portugal, Lisboa, n. 58, 16 jun. 1901. Pp. 155-158. Verbete FERNANDES (Luís). In: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa, Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, [s.d.], v. XI. P. 108.

Arthur Valle 279

FIG. 1: Aspecto da instalação da “Exposição de Arte Portuguesa”, inaugurada no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro em julho de 1902 Desenho publicado em: “Exposição de arte portuguesa no Rio de Janeiro.” O Seculo, Lisboa, 21 ago. 1902. P.1. Foto: Arthur Valle

FIG. 2: Retrato de Luís José Seixas Fernandes (1859-1922) executado por Columbano Bordallo Pinheiro Publicado em: In memoriam. LUIZ FERNANDES. Homenagem dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, [S.n.], 1923. N.p. Foto: Arthur Valle

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.