2015 - ANAIS DO I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS (UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS)

May 31, 2017 | Autor: Douglas Angeli | Categoria: História, América Latina
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Descrição do Produto

ISSN 2447-6277

ANAIS DO I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS SÃO LEOPOLDO - RS 25 A 27 DE AGOSTO DE 2015

ANAIS DO I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS Alba Cristina dos Santos Salatino Helenize Soares Serres Marcus Vinícius Barbosa Douglas Angeli Camila Eberhardt (Organizadores)

ANAIS DO I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS Diagramação: Casa Leiria. Imagem da capa: Joaquín Torres-Garcia – América Invertida (1943). Periodicidade: Anual.

Os textos e ilustrações são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS Reitor Prof. Dr. Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, S. J. Vice-reitor Prof. Dr. Pe. José Ivo Follmann, S. J. Pró-reitor Acadêmico Prof. Dr. Pe. Pedro Gilberto Gomes, S. J. Pró-reitor de Administração Prof. Dr. João Zani

Colóquio discente de estudos históricos latino-americanos (1: 2015: São Leopoldo, RS) Anais do I Colóquio discente de estudos históricos latinoamericanos / Organização de Alba Cristina dos Santos Salatino et al., Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS) – São Leopoldo: Casa Leiria, 2015. 1 CD ROM. Evento realizado na UNISINOS, em São Leopoldo, RS, 25 a 27 de agosto de 2015. ISSN 2447-6277 Anual 1. América Latina – História. 2. História latino-americana – pesquisa científica - Eventos. I. Salatino, Alba Cristina dos Santos (Org.). II. Programa de Pós-graduação em História (UNISINOS). III. Universidade do Vale do Rio dos Sinos IV. Título. CDU 97/8

Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos - CRB 10/973

CASA LEIRIA E-mail: [email protected] Telefone: (51) 3589-5151 Rua do Parque, 470 CEP 93020-270 - São Leopoldo - RS - Brasil

I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS

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SUMÁRIO

Organização ................................................................................................ 8 Apresentação ............................................................................................ 10 Sobre o nosso logo ................................................................................... 13 Programação ............................................................................................. 14 Simpósios temáticos

História política, objetos e problemáticas sobre estado, sistemas e subsistemas políticos ................................................ 17



Poder, instituições e relações internacionais .............................. 55



Instituições associativas e cooperativas ................................... 149



História e fotografia ......................................................................185

O imaginário e o cotidiano a partir da imprensa e da literatura .. 237 Cultura e sociedades indígenas na América Espanhola ........... 357



Organizações, trajetórias e o protagonismo negro ................. 371



Índios e escravos na Região do Prata: experiências de trabalho, escravidão e liberdade (séculos XVIII-XIX) .......... 441



Processos de constituição e patrimonialização de acervos ..... 461



Deslocamentos e trajetórias: uma análise sobre as e/imigrações no Cone Sul ........................................................... 521



Companhia de Jesus: novas abordagens e temáticas de pesquisa .................................................................................. 595



A história da família no contexto latino-americano: fontes e métodos ......................................................................... 639



História da educação no contexto latino-americano: tendências interpretativas, diálogos interdisciplinares e abordagens historiográficas .................................................... 701



Arqueologia e cultura material ................................................... 771

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COMISSÃO ORGANIZADORA

PROFª. DRª. ELIANE CRISTINA DECKMANN FLECK COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

UNISINOS

ALBA CRISTINA DOS SANTOS SALATINO

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CAMILA EBERHARDT DOUGLAS SOUZA ANGELI HELENIZE SOARES SERRES MARCUS VINÍCIUS BARBOSA

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COMISSÃO CIENTÍFICA Marcos Jovino Asturian Diego Garcia Braga Rodrigo Pinnow Lidiane Friderichs Alba Cristina dos Santos Salatino Júlio César Oliveira Camila Eberhardt Elke Rocha Mariana Gonçalves Caroline Poletto Nicássio Costa Helenize Soares Serres Juliana Camilo da Silva Ênio Grigio André do Nascimento Corrêa Max Roberto Pereira Ribeiro Camila Silva Tatiane Lima Liriana Zanon Stefanello Rodrigo Luis dos Santos Cláudio Marins de Melo Mariana Schossler Jonathan Fachini Nathan Camilo Michele de Leão Bianca S. Bento da Silva Raul Viana Novasco Natália Machado Mergen

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Hermes Gilber Uberti

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APRESENTAÇÃO

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É com grande satisfação que o corpo discente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Vale dos Sinos apresenta os anais do I Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-Americanos, evento realizado entre os dias 25 e 27 de agosto de 2015. Os organizadores empenharam-se para realizar um evento marcante e significativo para todos os participantes, não abrindo mão de esforços para elevar, ainda que de maneira singela, a qualidade acadêmica dos fóruns de debate. Por meio de conferências, mesas-redondas, simpósios temáticos, visitas culturais e oficinas, objetivamos possibilitar um espaço de diálogo entre os pesquisadores, tendo como foco os estudos históricos latino-americanos. A pluralidade dos simpósios temáticos demonstra, parcialmente, o atual estado das pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação do Rio Grande do Sul. As temáticas tinham em comum o enfoque na história latino-americana, privilegiando este espaço geográfico que abarca uma diversidade cultural, política e histórica e que, a partir da década de 1960 – com maior ênfase – passou a ser um campo específico da pesquisa historiográfica. Durante os três dias do evento foram apresentados mais de cento e quarenta trabalhos, distribuídos em quatorze simpósios temáticos coordenados pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em História e Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS. O evento recebeu inscrições de diversas partes do país, com maior número de estudantes do Rio Grande do Sul. São graduandos, bolsistas de iniciação científica, graduados, mestrandos e doutorandos dos diferentes programas de pós-graduação. Embora a predominância tenha sido a participação de colegas da área de Ciências Humanas, tivemos um número significativo de inscritos de outras áreas como: Arquitetura, Direito e Administração, o que chamamos em nossa ementa de “áreas afins”, abrindo espaço de discussão a todos aqueles que se interessam e procuram se apropriar da História de alguma maneira. Esse fato nos alegra, pois evidencia que, ao longo da caminhada de organização do colóquio, o evento foi ultrapassando os limites imaginados pela comissão organizadora. Este evento nos propiciou a reflexão de que a história, apesar de não ser a mestra da vida, nos permite analisar, com um sentido crítico, os discursos do presente. Passados cinquenta e um anos do golpe de Estado que deu origem ao regime militar brasileiro, ainda é possível ouvir vozes que combatem, com praticamente os mesmos argumentos de outrora, o governo democraticamente eleito (por mais defeitos que ele tenha). A consciência da historicidade dos discursos atuais deve nos fazer refletir sobre a própria natureza da história que produzimos. Pretendíamos, através das discussões promovidas no evento, com suas convergências e divergências, que saísse vitorioso o conhecimento sobre a ignorância e o senso comum.

11 No filme História Sem Fim (1984), a imperatriz que governa o reino da Fantasia está morrendo, e só um guerreiro pode salvá-la e evitar que aquele mundo de seres fantásticos seja engolido pelo monstruoso “nada”. O ofício de historiador também pode ser considerado “sem fim”. Não somente porque a história acontece todos os dias, mas também, porque cada vez se descobre mais sobre as origens da Humanidade, ou ainda por haver várias versões e tantas histórias de cada pedacinho perdido do mundo que poderão vir a ser narradas. Ao pesquisar o passado, o historiador lida com diferentes maneiras de ser e estar no mundo e, portanto, com a própria pluralidade da existência. Ao pesquisar o passado, o historiador se depara com a capacidade de ação dos sujeitos em tempos e espaços diferentes, e, assim, com a autenticidade daqueles que experimentam o mundo. Demonstrando que as coisas nem sempre foram da maneira que são hoje, e que, portanto, elas podem mudar a História. Isto não apenas expressa a nossa presença finita no tempo, mas indica a nossa capacidade infinita de criar, de mudar, de transformar, de inventar e de vencer o “nada” que busca nos engolir. Diante dos desafios da aventura historiográfica, os simpósios temáticos propostos buscaram abordar diferentes recortes, temas e perspectivas da produção historiográfica recente. Os simpósios temáticos foram os seguintes: 1) História Política, objetos e problemáticas sobre Estado, sistemas e subsistemas políticos; 2) Poder, instituições e Relações Internacionais; 3) Instituições associativas e cooperativas; 4) História e fotografia; 5) O imaginário e o cotidiano a partir da imprensa e da literatura; 6) Cultura e sociedades indígenas na América Espanhola; 7) Organizações, trajetórias e o protagonismo negro; 8) Índios e escravos na região do Prata: experiências de trabalho, escravidão e liberdade (séculos XVIIIXIX); 9) Processos de constituição e patrimonialização de acervos; 10) Deslocamentos e trajetórias: uma análise sobre as e/imigrações no Cone Sul; 11) Companhia de Jesus: novas abordagens e temáticas de pesquisa; 12) A História da família no contexto latino-americano: fontes e métodos; 13) História da educação no contexto latino-americano: tendências interpretativas, diálogos interdisciplinares e abordagens historiográficas; 14) Arqueologia e cultura material.

A atividade da segunda noite consistiu na mesa-redonda intitulada “História e historiadores: canteiros abertos e caminhos a trilhar”, coordenada pela Profª. Dra. Eliane Cristina Deckmann Fleck (UNISINOS) e que contou com a participação da Dra. Alice Trusz, representando o Grupo de Trabalho de História Cultural da seção gaúcha da Associação Nacional de História – ANPUH-RS, da Profª. Dra. Gizele Zanotto (UPF), representando o Grupo de Trabalho de História das Religiões e Religiosidades da ANPUH-RS e do Prof. Dr. José Iran Ribeiro (UFSM), atual presidente da ANPUH-RS. A conferência de encerramento foi proferida pelo Prof. Dr. Xavier Albó, do Centro de Investigación y Promoción del Campesinato da Bolívia, convidado pelo Instituto Humanitas (IHU) UNISINOS e apresentado, na última noite do evento, pelo professor Gilberto Antônio Faggion (UNISINOS). O título da conferência foi “El gran desafío de los indígenas en los países andinos: sus derechos sobre recursos naturales”. A comissão organizadora agradece a presença de todos neste I CEHLA, sobretudo dos apresentadores que submeteram seus trabalhos para compartilhar conosco suas pesquisas, acolhendo e sugerindo opiniões adversas que potencializaram o próprio evento e nossas investigações pessoais. Agradecemos ao corpo docente do PPGH UNISINOS e aos

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A conferência de abertura foi proferida pela Profª. Dra. Elda Evangelina González Martínez, do Centro de Ciencias Humanas y Sociales de Madrid, convidada pelo PPGH da UNISINOS e apresentada, na primeira noite do evento, pela Profª. Dra. Eloísa Helena Capovilla da Luz Ramos. O tema da conferência foi “Brasil y Cuba: dos casos paradigmáticos de la emigración española a iberoamérica”.

12 colegas mestrandos e doutorandos que coordenaram os simpósios temáticos, bem como ao Instituto Humanitas UNISINOS pela parceria. Registramos especial agradecimento à coordenação do PPGH, ao apoio da então coordenadora Dra. Ana Silvia Volpi Scott e da atual coordenadora Dra. Eliane Cristina Deckmann Fleck. Também agradecemos o apoio dos professores Paulo Staudt Moreira, Marcos Antônio Witt e Marluza Marques Harres por todo incentivo e auxílio. O I CEHLA foi concebido a fim de estabelecer um espaço para a discussão dos diferentes temas de pesquisa dos pós-graduandos da História e das áreas afins, propiciando um debate horizontal e a troca de experiências. Assim, o evento cumpriu plenamente seu objetivo, pois o que se observou foi uma participação efetiva de todos os envolvidos nas discussões propostas. Desejamos a todos uma leitura proveitosa destes anais e convidamos à participação na próxima edição do evento. Alba Cristina dos Santos Salatino Camila Eberhardt Douglas Souza Angeli Helenize Soares Serres

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Marcus Vinícius Barbosa

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SOBRE O NOSSO LOGO

Originalmente esta imagem não é colorida, ela está em preto e branco. Portanto, a coloração em azul, vermelho e amarelo foi uma adaptação da arte pelo nosso colega Marcus Vinícius Barbosa, como forma de releitura e apropriação da arte de Torres. A escolha por estas cores foi a partir do logo da Revista Latino Americana de História do PPGH – UNISINOS.

Fontes TANI, Ruben. Etapas del pensamiento em Uruguay (1910-1960). Montevideo: Ensayo, 2013. JOAQUÍN Torres Garcia. Museu Torres-García (Montevidéu). Disponível em: http://www. torresgarcia.org.uy.

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O mapa invertido da América do Sul é uma obra produzida pelo artista plástico uruguaio Joaquín Torres-Garcia em 1943, para a inauguração do atelier coletivo de trabalho e ensino criado por ele. “Na realidade, nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora colocamos o mapa ao contrário, e então já temos uma justa ideia de nossa posição, e não como querem no resto do mundo”. Mesmo admitindo os princípios básicos do construtivismo europeu, Torres-Garcia defendia uma arte genuinamente sul-americana que incorporasse os motivos e símbolos próprios desta parte do mundo, formando a Escuela del Sur – um dos mais importantes movimentos artísticos do século XX.

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PROGRAMAÇÃO

PROGRAMAÇÃO 15

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 1 HISTÓRIA POLÍTICA, OBJETOS E PROBLEMÁTICAS SOBRE ESTADO, SISTEMAS E SUBSISTEMAS POLÍTICOS

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AS TRANSFORMAÇÕES DO PTB NA DÉCADA DE 1960: UMA ANÁLISE SOBRE O CASO DE DOM PEDRITO ............................................................................................................................................................. 21 EUGENIA, TEMPORALIDADE E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NACIONAL NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX............................................................................................................................................ 31 HISTÓRIA, MEMÓRIA E POLÍTICA: REFLEXÕES SOBRE COMO? E POR QUÊ? PESQUISAR A TRAJETÓRIA DA AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL ...................................................................................... 39 O REGIME CIVIL-MILITAR EM ALEGRETE: O CASO DA ESCOLHA DA PRESIDÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL (1965) ............................................................................................................................... 47

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AS TRANSFORMAÇÕES DO PTB NA DÉCADA DE 1960: UMA ANÁLISE SOBRE O CASO DE DOM PEDRITO Felipe Vargas da Fonseca 1 O PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO NO ÂMBITO NACIONAL E REGIONAL Na vertente pluripartidária instaurada após o fim do Estado Novo em 1945, surge o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Este partido criado, em um primeiro momento para atender os interesses de Getúlio Vargas, funcionou, por um longo tempo como meio de canalização das pressões populares e também como um condicionador do potencial reivindicativo e político dos trabalhadores pelo Estado. Essa grande capacidade de persuasão foi nutrida, tendo como objetivo fundamental a sustentação de um projeto através do qual o getulismo 2 pudesse viabilizar, cada vez mais, como uma força, senão hegemônica, pelo menos extremamente poderosa no novo contexto político nacional que surge após 1945. A identificação do trabalhismo brasileiro com o getulismo e com o PTB foi, desde então marca característica da vida e história política partidária do Brasil. A forte associação do PTB com os trabalhadores brasileiros acabou por fazer dos sindicatos uma das bases estruturais e um dos locais mais importantes de militância política do partido trabalhista. Os sindicatos e toda a sua infraestrutura de representação corporativa foram os espaços escolhidos para a atuação e sustentação do Partido Trabalhista Brasileiro no plano da sociedade civil. O Ministério do Trabalho acabará se tornando a sustentação no âmbito do Estado, toda a máquina política do PTB. Segundo Lucilia Delgado, A conjunção de forças de partidos trabalhistas/sindicatos evidenciou-se como uma forte vertente de canalização da participação popular pelo Estado. O PTB, criado sob a égide do trabalhismo getulista, e os sindicatos, com todo o seu arcabouço estrutural condicionado pela legislação trabalhista, penetraram, junto às forças populares, na maior parte das vezes, como apêndices do Estado ligados a esses setores. (DELGADO, 2011, p. 20-21) O forte entrelaçamento das forças PTB - sindicatos - Estado, a partir de uma frequente interpenetração de objetivos e estruturas, formou um direcionamento importante para os rumos adotados pela atuação dos sindicatos naquele contexto. Outro fator foi a falta de um projeto político que atendesse os interesses político-econômico dos trabalhadores. Esta ausência de projetos favoreceu a utilização do grande potencial de participação política dos trabalhadores brasileiros para apoio aos projetos de interesse do Estado que, em alguns momentos, confundiram-se com os de Getúlio Vargas, bem como os do PTB 3. O ano de 1945 apresenta significado especial na História política brasileira, pois se tornou um marco relevante no processo de desmantelamento do Estado Novo. Foi um momento de relevância que marca a ruptura que apontou alternativas de transformação do regime político. O PTB, fundado em maio de 1945 por Getúlio Vargas, contava em suas fileiras com trabalhadores urbanos e sindicalizados. O partido foi assinalado por Vargas como a “melhor opção partidária para o trabalhador brasileiro”, estes mesmos trabalhadores também tinham como opção o Partido Comunista Brasileiro (PCB) 4, neste período já legalizado pela abertura política. Getúlio Vargas criou dois partidos a fim de organizar sob sua visão dois grupos antagônicos, o PTB, para aglutinar as massas trabalhadoras, e o PSD, para a burguesia nacional, que o apoiava, e para uma boa parte dos donos de terras. Não era

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Mestrando do PPG História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista CAPES/PROSUP. O getulismo seria o seguimento de adeptos do pensamento político de Getúlio Vargas, principalmente nas questões relacionadas aos direitos trabalhistas e a nacionalização e desenvolvimento da indústria. 3 Ver: DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p.214-219. 4 Ver: CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. 2

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possível reunir em um mesmo partido, dois grupos com interesses tão diferentes, se diz que com a “mão direita” foi criado o PSD e com a “mão esquerda” o PTB. Segundo Maria Benevides; Ao PSD caberia continuar a obra administrativa de Vargas e preservar os compromissos com as ‘classes conservadoras’ – e, daí, articular um pacto social baseado nas teses de conciliação e ‘união nacional’. Ao PTB caberia continuar a obra da legislação trabalhista propiciar canais de expressão para o proletariado emergente e ‘ideologizar’ um discurso reformista e nacionalista que ao mesmo tempo sensibilizasse a burguesia progressista e os setores populares. (BENEVIDES, 1989, p. 34) O PTB acabou por estar sempre ligado a imagem de Vargas, “aquele que merecia toda a fidelidade da nação” (BENEVIDE, 1989, p.47), já consolidada perante as classes trabalhadoras quando da criação do PTB e que era um forte fator de aglutinação do proletariado. No plano nacional, o político e historiador Raul Pont fala que o PTB, (...) seguia sob a vontade pessoal de Getúlio Vargas, na defesa de um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo, cuja expressão política mais acabada constituía-se no pacto nacional-populista. Isto é, uma aliança da burguesia nacionalista com as classes populares, notadamente de trabalhadores, na defesa dos ‘interesses maiores de um nacionalismo econômico’ que beneficiaria a todos”. (PONT, 1977, p. 4) O Partido Trabalhista Brasileiro defendia um progresso autônomo, nacionalista, que iria conduzir os trabalhadores filiados aos sindicatos, através de seus representantes, a uma aliança com o Partido Social Democrático (PSD). A coalizão PSD/PTB representava uma união de vários setores em prol de uma política nacionalista: a burguesia nacional, a classe média progressista e o proletariado. O PTB GAÚCHO E O CENÁRIO POLÍTICO No estado do Rio Grande do Sul, estado de origem de Getúlio, o PTB teve grande representatividade e adesão, estruturando-se melhor enquanto partido, como relata Gomes, No Rio Grande do Sul era o partido hegemônico e esta seção regional era a mais importante de todo o país. Nem o PSD, nem a UDN conseguiram se articular como forças significativas de situação ou oposição nesse Estado. A fonte desse poder era oriunda fundamentalmente da liderança e do controle que Vargas exercia sobre a política de seu Estado Natal. (GOMES; D’ARAÚJO, 1989, p. 38) Fora o partido ser hegemônico no estado, a agremiação diferenciava-se da linha nacional por apresentar singularidades regionais, visto que no estado, em razão da pouca expressão dos industriais e da forte oposição dos setores agrários, o pacto populista era mais difícil. Apesar da situação complicada, o PTB organizou-se melhor, tendo maior tradição popular que em outros estados e sem respaldo da burguesia, conforme afirma Raul Pont, O trabalhismo gaúcho formara-se absorvendo vertentes sindicalistas, o que lhe dava um sólido vínculo popular. Participa também, desde os primeiros momentos, um núcleo de socialistas-humanistas liderados por Alberto Pasqualini na União Social Brasileira, o que dá ao partido uma conotação programática e compromissos ideológicos que não alcançou em outros estados. Essas correntes foram suficientemente fortes no interior da agremiação para equilibrar a presença das oligarquias e burocratas egressos do Estado Novo, que, por sua vez, entraram no PTB pelas ligações anteriores que possuíam com a figura paternalista de Vargas. (PONT, 1977, p. 4) A imagem de Vargas, que seria o ponto mais forte do PTB nacional, foi muito mais forte no Rio Grande do Sul. Entretanto, no estado o partido apresentou uma melhor organização e formação ideológica, evoluindo, graças à atuação de Pasqualini, para um nacionalismo reformista, que superou a

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bandeira da legislação trabalhista do PTB nacional. Alberto Pasqualini representou, segundo Angela de Castro Gomes e Maria D’Araújo (1989, p. 38), “um dos esforços mais marcantes de construção de uma doutrina trabalhista para o partido”. 5 A atuação teórica de Alberto Pasqualini foi de grande relevância para que PTB gaúcho conseguisse ocupar “o lugar de destaque na política nacional, sendo que o Rio Grande do Sul o estado onde o partido atingiu o mais elevado nível de organização, não só orgânica, mas principalmente ideológica” (RUAS, 1996, p. 25). As influências mais marcantes nas idéias de Pasqualini, foram as encíclicas papais 6 e o trabalhismo inglês 7. Porém, Alberto Pasqualini se opunha ao comunismo, o qual dizia ser um sistema “onde o Estado se tornaria todo poderoso e seria difícil encontrar homens perfeitos para dirigi-lo” (RUAS, 1996, p. 33), onde o operário apenas trocaria de patrão, Pasqualini defendia que o Brasil deveria permanecer no capitalismo, entretanto num capitalismo mais justo – como se isso fosse possível – no qual a burguesia deixasse de ser tão egoísta a fim de serem reduzidas as desigualdades sociais. Assim, o programa do PTB passou a pregar a justiça social, com idéias do pensamento socialista democrático, mas sem ser socialista, pois não pregava a extinção da propriedade privada, e, sim, que se tornasse acessível a toda população. Em vários pronunciamentos, Pasqualini deixou claro que considerava inviável a implantação do sistema socialista no Brasil. (ABREU apud BALDISSERA, 2005, p. 37) Em relação ao imperialismo adotou uma posição bem diferente daquela adotada futuramente por Brizola, sendo um posicionamento moderado. Para Alberto, o capital estrangeiro era necessário para o desenvolvimento do país, mas seus efeitos maléficos precisavam ser combatidos os do capitalismo. Pasqualini afirmava a importância da educação política das massas, a necessidade de politizar e educar o homem para se chegar às transformações sociais. A “doutrinação das classes trabalhadoras e de sua conscientização acerca da realidade nacional e de seus próprios problemas, para que seja possível realizar as mudanças propostas no PTB” (RUAS, 1996, p. 35), era a idéia incorporada e levada a termo por Leonel Brizola. Assim sendo, o Partido Trabalhista Brasileiro tornou-se um partido com idéias reformistas para a época (BALDISSERA, 2005, p. 37), legando ao país líderes como João Goulart e Leonel Brizola, políticos que viriam desafiar a ordem política e econômica do Brasil nas lutas por mudanças constitucionais e pelas reformas de base 8. O RIO GRANDE DO SUL E O GOLPE O estado do Rio Grande do Sul é palco de grandes enfrentamentos políticos desde sua formação. Não será diferente após do término do Estado Novo e a partir da organização de novas agremiações partidárias, os embates no campo político se tornam cada vez mais acirrados. Havia dois grandes polos em que se encontravam as forças partidárias no estado, uma delas era o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que defendia o ideal nacionalista e trabalhista, em contraposição se encontrava o Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Libertador (PL) que capitaneavam as forças conservadoras do estado gaúcho. A historiadora Claudia Wasserman afirma que, 5

Pasqualini nasceu na cidade de Júlio de Castilhos, foi vereador pelo Partido Libertador (PL) em Porto Alegre, participou em duas secretárias do estado gaúcho durante o governo de Ernesto Dornelles, em 1943. Dois anos depois, em 1945, fundou a União Social Brasileira (USB) e, no ano seguinte ingressou no PTB levando consigo colegas da USB e suas concepções trabalhistas. Foi, um dos maiores articulistas para elaboração do programa do partido. Ver: BALSISSERA, Maria de Almeida. Onde estão os grupos dos onze? Os comandos nacionalistas no Alto Uruguai - RS. Passo Fundo: Ed. UPF, 2005. p. 35. 6 As encíclicas do papa Leão XIII e Pio XI. Ver: RUAS, op cit., p.30. 7 Ver: ATTELEE, Clement. Bases e fundamentos do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1948. 8 As mudanças não desejadas não podem ser entendidas como revolucionárias, de mudanças estruturais, mas sim de transformações de cunho reformista.

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Desde 1945, o principal enfrentamento político, ideológico e partidário no Rio Grande do Sul desenrolava-se entre os “trabalhistas”, liderados por Leonel Brizola, com filiação ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e os “conservadores”, liderados por Ildo Meneghetti. Foram quatro embates eleitorais desde 1950 até 1962, a última eleição estadual do período democrático. Entre 1951 e 1955, foi governador do estado Ernesto Dornelles, que representava o trabalhismo; entre 1955 e 1959, Ildo Meneghetti, representante dos conservadores, teve seu primeiro mandato no governo estadual; e, entre 1959 e 1963, foi a vez de Leonel Brizola, líder dos trabalhistas, ocupar o governo do estado. (WASSERMAN, 2010, p. 52) Com a vitória dos conservadores para governo do estado, representado na pessoa de Ildo Meneghetti em 1962, a trama que culminará no golpe de Estado de 1964 começa a ser articulada. O pleito eleitoral de 1962 acabou sendo um marco em ralação a história regional da ditadura civil-militar brasileira. Depois da solução parlamentarista para a posse de João Goulart em 1961, o desfecho da crise foi transferido para os resultados eleitorais nos estados em 1962. Novamente os Estados Unidos aparecem em cena com o financiamento de campanhas de candidatos contrários a Jango, como afirma Wasserman, As campanhas de candidatos anti-Jango foram financiadas pelos Estados Unidos, através da Aliança para o Progresso, num valor aproximado de quatro milhões de dólares, e por intermédio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que teria investido aproximadamente dois milhões de dólares em candidaturas de deputados e governadores em vários Estados, inclusive o Rio Grande do Sul. (WASSERMAN, 2010, p. 52) O Rio Grande do Sul era particularmente importante nas disputas políticas nacionais por causa da liderança de Brizola. Quando este fora governador do estado entre os anos de 1959-1963 liderou a Campanha da Legalidade 9 , nacionalizou e estatizou empresas estrangeiras (telefonia, eletricidade e transportes) criou assentamentos rurais, colocou portentosos investimentos na educação pública e em outras áreas de desenvolvimento da região. Assim sendo, quando Brizola se torna um nome de relevância internacional os Estados Unidos percebem que ele pode configurar-se em uma ameaça aos interesses do país do Norte. Deste modo, o RS se torna alvo do combate onde os trabalhistas deveriam ser derrotados, pois eram associados a esquerda ao comunismo e por isso deveriam ser banidos. Ildo Meneghetii foi o último governador do estado eleito democraticamente, como sua candidatura contara com uma coligação que reunia todas as siglas conservadoras do estado, formando assim a Ação Democrática Popular (ADP). Enquanto o executivo do Rio Grande do Sul era assumido pelos conservadores, liderados por Meneghetti, o Executivo federal estava nas mãos do PTB de Jango e Brizola. Este é um dos fatos que fez com que o governador conspirasse para derrubar Goulart desde o dia que assumiu o governo gaúcho. Claudia Wasserman relata a articulação golpista no Rio Grande do Sul por parte de membros do Executivo gaúcho que junto com os militares tramavam o desenrolar da derrubada de Jango. O secretário de Segurança de Meneghetti, deputado udenista Poty Medeiros, mantinha encontros sistemáticos com o comandante do III Exército, general Benjamim Gallardo 10, e com o general comandante da 6ª Divisão, Adalberto 9

Foi um movimento liderado pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, em agosto de 1961 após a renúncia do presidente da república Jânio Quadros através da Rádio Guaíba, e que mobilizou a população brasileira a defender a posse do vice-presidente João Goulart. 10 Wasserman ainda diz: Em artigo sobre o Serviço Federal de Informações e Contrainformação (Sfici), Wilson Machado Tosta Júnior faz a seguinte observação sobre o general: “o Conselho de Segurança Nacional, a cuja Secretária-Geral era subordinado o Sfici, se opôs à nomeação de um oficial: o general Benjamim Gallardo, em 1963, para o Sul do País. Aconselhado pelo ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, o próprio Goulart foi contra

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Pereira dos Santos, que em 1973 seria vice-presidente do general Ernesto Geisel. O Círculo Militar, comandado pelo coronel Ibá Ilha Moreira, que se tornou secretário da Segurança de Meneghetti depois do golpe, também fazia parte da conspiração que se reunia em um apartamento alugado na Av. Salgado Filho. O relacionamento entre civis e militares conferiu ao ato golpista, posteriormente, uma significativa coesão dos dois ambientes, ao menos, entre os setores reacionários de um e outro meio. (WASSERMAN, 2010, p. 55) O Rio Grande do Sul se aponta como o “celeiro do golpe” com os conluios entre civis e militares favoráveis ao golpe. Meneghetti tem maioria no legislativo gaúcho, facilitando assim a conjuração contra o governo federal. Ele começa a lançar manifestos em que alertava para “a comunização do país”, pela conjuntura do quadro político em colocava Jango como aliado dos comunistas, e para reforçar estes alertas os deputados da base aliada do governo do estado vinham junto ao legislativo fazer com que a campanha anti-Jango crescesse cada vez mais. Este mesmo legislativo que deu apoio a Meneghetti com políticas repressivas e autoritárias que visava conter a mobilização dos movimentos populares, que no governo anterior de Leonel Brizola haviam sido incentivados. A partir de então o governador gaúcho se reunirá com outros dirigentes estaduais e manterá firme apoio ao golpe. Tendo o estado um relevante número de civis e militares que sustentaram a derrubada de Jango no Rio Grande do Sul, evitando maiores mobilizações favoráveis ao presidente. Na madrugada de 1º de abril de 1964, transferiu o governo estadual para a cidade de Passo Fundo, a fim de não ser deposto pela resistência que se articulava em Porto Alegre pelas forças fiéis a Jango. No dia 4, após Goulart se retirar para o exílio no Uruguai, Meneghetti volta à capital, conduzido por uma força combinada de unidades da 3ª Divisão de Infantaria do Exército, sediada em Santa Maria, e de tropas da Brigada Militar. Ildo Meneghetti, como a maior parte do PSD gaúcho, incorporou-se à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação do regime. Entretanto, o próprio Meneghetti teve seu governo encurtado pela ditadura civil-militar, quando em 12 de setembro de 1966 foi substituído prematuramente por Walter Peracchi Barcelos, escolhido em convenção da ARENA, e eleito pela Assembleia Legislativa. O PTB EM DOM PEDRITO O Partido Trabalhista Brasileiro como já dito, foi o partido de grande força política no Rio Grande do Sul, no interior do estado multiplicavam-se os diretórios municipais e o número de pessoas que adentravam as fileiras do partido. Na cidade Dom Pedrito 11, município fronteiriço, os trabalhistas tiveram grande relevância política na cidade, visto o cenário político municipal se encontrava polarizado 12 entre o PTB e a Frente Democrática, sendo esta composta pelo Partido Social Democrático (PSD), União Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Libertador (PL). Apesar de ambos os lados terem suas histórias ligadas a Vargas, no município este fato é mais latente, pois tanto o PTB como o PSD reclamavam para si as medidas que beneficiaram os trabalhadores, assim como desviavam da ralação com o período do Estado Novo. Assim como afirma o professor Varílio:

a opinião do CSN e o nomeou para o posto. Segundo Corseuil disse a Carvalho, “a escolha era a pior do mundo” e, se em lugar de Goallardo tivesse sido nomeado o general Ladário Telles, “o III Exército não teria se revoltado”. 11 O município de Dom Pedrito se limita ao sul, em curta fronteira, com o Departamento de Rivera, Uruguai. No estado, se limita a oeste com Santana do Livramento, ao norte com Rosário do Sul, com São Gabriel e com Lavras do Sul. A leste o limite é com a cidade de Bagé. Encontra-se na chamada micro-região da Campanha Gaúcha. Esta região foi duramente atingida por três conflitos armados, Revolução Farroupilha, Revolução Federalista de 1893 e pela Revolução de 1923. O Tratado de Paz da Revolução Farroupilha ocorreu nos campos do Ponche Verde (Dom Pedrito), o que levou a cidade a ter a denominação de Capital da Paz. Após a Revolução de 1923 o progresso tomou grande impulso na zona, principalmente nos setores de criação de gado e triticultura. Dom Pedrito sempre manteve sua área geográfica desde sua emancipação, não tendo dado origem a nenhum outro município. 12 A partir e análise por parte do autor das Atas da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Pedrito, percebeu-se que havia uma polarização de duas forças antagônicas e como estas se colocavam no cenário político municipal.

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Aqui em Dom Pedrito, uma cidade pequena na época com uma população de pouco mais de 25 mil pessoas, a política era coisa séria. Aqui o PTB era forte, mas tinham os outros também, eles defendiam os grandes da cidade. Uma coisa que vale ressaltar é que tanto o PTB e os filados do PSD, sempre para conquistar votos ou apoio da população buscavam dizer da ligação de seus partidos com o Getúlio. Mas, quando nenhum deles tocava no período de trinta e sete a quarenta e cinco. [...] Nós do PTB nos reuníamos a onde é o Banco do Brasil, ali era a sede do partido. Sempre tinha gente ali jogando carta ou sentado na frente tomando mate, o povo gostava de estar lá. [...] Por se tratar de uma cidade pequena, as pessoas se conheciam, eram parentes, amigos, etc. Porém, isso no campo político era diferente, às vezes na mesma família tinha gente do Jango e do Lacerda, mas apesar das diferenças as pessoas se respeitavam. 13 Neste processo, uma das figuras que se destacam é o vereador e ex-prefeito Floribal de Oliveira Jardim. Este era um dos legisladores de 1963, grande apoiador das reformas de base, comungava da ideias de Brizola. Com ele a bancada trabalhista contava com três dos nove vereadores da Câmara Municipal. Também faziam parte da bancada: Rui Favile Bastide e o professor Syrio Lemos da Cruz. Estes apesar de serem minoria, tinham forte discurso contra as desigualdades locais e nacionais. Do outro lado, na bancada da Frente Democrática, que era composta por grandes comerciantes, pecuaristas, agricultores, e trabalhadores autônomos ligados a setores de grandes negócios, ou seja, aqueles que formavam a elite oligárquica local. Estes por sua vez eram como barricadas no sentido de que não deixavam passar nenhuma medida ligada as reformas de base, principalmente no campo, visto que economia local era agropastoril. Acusavam a bancada trabalhista de serem parte de um projeto "comunista" onde um de seus maiores líderes era Leonel Brizola. Porém, em outubro de 1963 entra uma nova legislatura, na qual o PTB passa a ter maioria na Câmara. Faziam parte dessa bancada: Nelson Machado, Demétrio Barcelos Xavier, Aristóteles de Mello, Eloy Almeida e Protásio Dutra. Estes por sua vez, acirraram cada vez mais os debates a favor das anunciadas reformas propostas pelo Executivo Nacional, os vereadores falavam em plenário a necessidade da realização da reforma agrária no Brasil e como seria a sua real implantação, contrariando as acusações da oposição. Além da oposição na Câmara Municipal de Vereadores, havia uma forte oposição na imprensa local, através do advogado e jornalista Marcio Bázan, qual era colunista do periódico local Ponche Verde. Este era um forte opositor dos trabalhistas principalmente das figuras do presidente da república João Goulart e do deputado Leonel Brizola, o qual acusava de ser um homem a favor do que ele chamou de "comucastrismo". Além disso, Bázan idolatrava a figura de Carlos Lacerda, no qual em suas colunas retratava como um grande político, que muito fizera enquanto governador da Guanabara no que diz respeito em melhorias no seu estado. Marcio Bázan, era um conservador que refletia o pensamento anticomunista no país que cada vez mais crescia, fazendo esta mentalidade fosse reproduzida na sociedade local. No ano de 1964, com a implantação de uma Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, a fronteira gaúcha assume um papel destacado, dentre os demais motivos, em função de sua localização privilegiada, tanto no ponto de vista da repressão como da resistência. Com isso, este espaço territorial foi fortemente aparelhado para conter qualquer tipo de ato que subverta a ordem estabelecida. Da mesma maneira, que também servira para evitar qualquer tipo de fuga por parte de procurados políticos. Podemos perceber isso através dos primeiros anos da ditadura, em que muitas pessoas iram atravessar a fronteira em busca de asilo político no Uruguai, visto que este tinha uma longa tradição democrática e profunda solidariedade na acolhida de asilados. Assim a fronteira se coloca como uma área de atividades, tanto do poder golpista instaurado, como de grupos de resistência de caráter legalista.

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Trecho da entrevista concedida ao autor pelo professor e advogado, ex-militante do PTB Varilio Meneguetti. Em 27/07/2013, na cidade de Dom Pedrito.

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Uma característica de cunho político dessa região nesse período será a forte influência trabalhista, um dos principais alvos a ser combatidos pelo regime. Pois, era representado pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido do presidente deposto, João Goulart, conhecido por Jango. Sendo assim, os momentos iniciais da ditadura terão relevante ação no Rio Grande do Sul, de forma especial nas regiões fronteiriças, no propósito de capturar e desmanchar qualquer tipo de foco de luta com ligação ao governo deposto. De encontro a esse perfil gaúcho: Quanto a militância política propriamente dita, o pertencimento a organizações partidárias, o BNM apresenta 4.935,66% dos processados, como pertencentes a organizações partidárias clandestinas, basicamente organizações da esquerda armada. Mais uma vez, os dados referentes aos gaúchos divergem. Mais de 60% pertenciam a organizações banidas pelo regime militar – como o PTB e os Grupos dos Onze – mas que eram legais quando nelas ingressaram. (NEVES, 2009, p. 185) Os Grupos dos Onze - em alusão ao número de jogadores de um time de futebol – foram criados com incentivo do deputado federal Leonel Brizola, de forma particular em 1963, antes da deflagração do golpe. Esse grupo deveria servir para pressionar o Congresso e o presidente João Goulart, para implementação das chamadas reformas de base. Também deveriam resistir ao golpe que os setores conservadores da sociedade brasileira estavam planejando. Deste modo, a ligação do PTB e a participação desses grupos foram marcas recorrentes daqueles e daquelas que foram atingidos pelo regime. Na cidade de Dom Pedrito, um grupo formado por militantes do PTB iram iniciar uma tentativa de resistência, a partir de contatos com o deputado Leonel Brizola que após o golpe se exilou no Uruguai, junto com o ex-presidente Jango. Por causa do forte aparato de segurança que existia na fronteira e por causa do “perigo” subversivo ofertado por Brizola. Necessitou-se formar um grande mecanismo de contado entre os trabalhistas pedritenses e o grupo de Brizola, que pretendia realizar um esquema de retomada do poder através da resistência dos trabalhistas, todo isto seria liderando do Uruguai. Por isso, não era fácil o contato com esses exilados, visto como já dito, que Brizola representaria um forte comando pela legalidade da constituição usurpada pelos golpistas. O escolhido para manter o contato entre a resistência e o comando exilado, foi o ex-vereador trabalhista Onorato dos Santos, este tinha que fazer uma viagem de quase dois dias para despistar os agentes do regime. Alguns dos membros do grupo de resistência tinham forte inspiração na Revolução Cubana e apesar de não se considerarem comunistas simpatizavam com estes. Entre eles estavam o estudante Carlos Maria Picaz, o advogado e professor Hugo Brener de Macedo, o também professor Varílio Meneghetti, tendo estes dois últimos perdidos o diploma de professor sob acusação de doutrinarem os alunos para que estes viessem a se tornarem socialistas. O professor e hoje advogado Varílio Menguetti relata que: O nosso grupo era formado por pessoas que realmente acreditavam numa sociedade mais justa. O Onorato [...] que já tinha sido vereador foi escolhido para ser recebido por Brizola no Uruguai, porque este era um home de confiança, o Brizola não recebia qualquer um [...] Eu e o Hugo fomos impedidos de dar aula, porque segundo a direção da escola e algumas pessoas aliadas ao golpe, nós influenciávamos os alunos. Depois descobrimos que quem havia nos denunciado era um colega que eu e o Hugo ajudamos a empregar. Vê se pode! Acabamos desempregados, tentei emprego em outra escola da cidade, mas só lecionei por dez dias. A direção foi pressionada pelo exército a me demitir [...] nós nos encontrávamos as escondidas para repassar as informações que o Onorato trazia. O Hugo tinha os discos com os discursos

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do Fidel, passava escutando. 28/07/2013)

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(Entrevista concedida ao autor no dia

O grupo também fazia contatos com outros coletivos da região com o intuito de criar uma rede, e assim articular e organizar de maneira mais prática a luta pela democracia. O conjunto de oposição aos golpistas permanecerá firme na tentativa de começar a luta pela fronteira. Entretanto, no início do ano de 1965 o grupo é descoberto e preso. Em uma das viagens para se encontrar com Leonel Brizola, Onorato é pego na cidade vizinha de Bagé e encontram com ele a lista com os nomes dos participantes do grupo da resistência. Na edição do dia 02 de março de 1965, do jornal Correio do Povo saí à lista com o nome dos presos. A chamada da notícia é a seguinte: Prisões em Dom Pedrito por suspeita de subversão. A partir disto os integrantes do grupo foram vistos pela maioria da população como comunistas, e assim acabaram tendo grandes dificuldades em se manter na cidade, tanto o é que muitos após o fato mudaram-se. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pretensão deste breve estudo foi compreender como o PTB foi moldando seu projeto político até chegar ao nacional-reformismo, assim como a influência de Leonel Brizola no contexto de luta pelas aplicações das reformas de base e como isto permeou o PTB pedritense. Também, como estes trabalhistas atuaram e se mobilizaram para resistir ao golpe, buscando criar uma teia política regional. Desta forma, o caminho histórico e político nacional após o fim do Estado Novo, e os novos projetos de governos desenvolvimentistas. Podemos dizer, que o golpe de Estado foi traçado desde a morte de Getúlio Vargas em 1954, pois a burguesia nacional, militares juntamente com os mais variados setores conservadores da sociedade brasileira alinhados com o governo estadunidense planejou e colocou em prática a deposição do presidente constitucional com argumentos falsos de ameaça comunista. Na realidade, principalmente o empresariado e o governo dos Estados Unidos temiam que o governo de Goulart estatizasse cada vez mais as multinacionais, assim como o empresariado temia perder os financiamentos do capital internacional, além é claro de perderem o domínio opressor sobre a classe trabalhadora. Percebesse que o PTB ao longo de sua história passou por um “crescimento político ideológico” passando por um caminho de alicerciamento junto os sindicatos e as classes trabalhadoras como um todo. Leonel Brizola é uma figura chave para a radicalização do partido rumo o nacional-reformismo, este sem dúvida foi um dos grandes ideólogos do PTB. Após o golpe de Estado, os trabalhistas foram um dos primeiros grupos a serem perseguidos pela repressão, não sendo diferente em Dom Pedrito, porém, estes petebistas em muitos lugares formaram cadeias de resistência a fim de lutar contra os déspotas civis-militares. Portanto, a resistência trabalhista teve grandes significados no sentido de que mostrou a força política que estes tinham como também a força de repressão por parte do Estado, que rapidamente perseguiu os grupos ligados ao PTB como também demonstrou a sociedade local que aqueles que resistiram poderiam ser um perigo a ela, como também mostrasse o que aconteceria com quem se opusesse ao golpe. Estes acontecimentos deixaram grandes marcas na sociedade pedritense, fazendo que o ideário conservador fosse reforçado. REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Fontes Orais. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. BALSISSERA, Maria de Almeida. Onde estão os grupos dos onze? Os comandos nacionalistas no Alto Uruguai - RS. Passo Fundo: Ed. UPF, 2005.

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Entrevista concedida ao autor pelo professor e advogado, ex-militante do PTB Varilio Meneguetti. Em 27/09/2013, na cidade de Dom Pedrito.

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EUGENIA, TEMPORALIDADE E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NACIONAL NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX Jóice Anne Alves Carvalho 1 Simone M. Margis 2 Carlos Henrique Armani 3 TEMPORALIDADE E NAÇÃO Assim como Reinhart Koselleck 4 desenvolveu, o historiador sempre esteve ligado às noções de temporalidade, embora seu objeto de estudo estivesse intimamente ligado à historicidade do fenômeno estudado. De certa forma, este interesse pelas mudanças refere-se à criação de mecanismos que atribuem sentido ao fator tempo dentro da narrativa histórica, ou seja, a noção temporal no que se refere a passado/presente/futuro do qual diferem da perspectiva de tempo mecânico. A temporalidade contém intrínseca em seu sentido as noções de mudança quando o historiador volta o seu olhar para o passado no próprio método historiográfico – a delimitação do período, a busca e a análise das fontes – pois constitui a evidência de um objeto que foi, mas que não é mais. Se o elemento do passado tem a legitimação ontológica com um lugar determinado na perspectiva temporal, onde os fenômenos se interpelam de forma a desenvolver sistematicamente a História, o rastro traz a noção de ser delimitado pelo que não é mais, onde se torna o objeto do historiador. O não-ser-mais não significa um caráter de ruptura na perspectiva de passado/presente, mas dessa forma, na medida que o rastro é analisado e reduzido à linguagem – ou delimitado a uma dependência da mesma, mesmo que represente mais um ente dentre os elementos que compõe o fenômeno -, muito do que ele foi se perde. A percepção de que os fenômenos interpelam-se sistematicamente formando assim o que convencionou chamar de História tira, de certa forma, a simultaneidade dos acontecimentos, como se eles seguissem uma espécie de fio condutor em que cada fenômeno possui um lugar no tempo dentro do ente chamado passado. Esta forma de enxergar os objetos históricos dá espaço para as interpretações teleológicas do fenômeno, algo como Serge Gruzinski discorreu sobre a inevitabilidade de se pensar em uma perspectiva de Globalização sem antes dar os créditos à investida marítima dos ibéricos em direção às Américas e ao Oriente. Outra questão importante envolvendo o trabalho do historiador frente às intemperes do passado é como chegar a este acontecimento que não é mais. O que ligaria o passado ao presente e este ao futuro? Segundo Paul Ricoeur, o testemunho é o elemento da transição do passado para o presente e a projeção o que ligaria o presente ao futuro. Da mesma forma que o recurso da temporalidade está presente no trabalho do historiador – seja no método, seja no processo da escrita da História -, pode-se perceber o seu uso também nos discursos de legitimação nacional. Os discursos nacionais cunhados em uma perspectiva de identificar e demarcar os sujeitos no tempo a fim de justificar o caráter ontológico da nação pensada são os objetos de análise deste artigo. A invenção de uma noção capaz de apreender o fator do tempo mecânico para as narrativas históricas trouxe uma série de mecanismos que o sujeito dispõe para identificar e delimitar o espaço temporal por meio da linguagem. Um destes mecanismos é a temporalidade determinada na ideia de um 1

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal de Santa Maria, Bolsista CAPES DS, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Bolsista CAPES – PROSUP, e-mail: [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal de Santa Maria, Bolsista CAPES DS, e-mail: [email protected] 3 Orientador. Doutor em História; Pós-doutorado em Teoria e Filosofia da História. Atualmente é professor Adjunto dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria; Chefe do Departamento de História da UFSM. 4 “Por uma razão geral: desde sempre, o historiador, ao perguntar como chegamos a situação atual, diferente da anterior, se interessa por novidades, pelas mudanças, pelas alterações.” (KOSELLECK, 2014, p.75).

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fenômeno que foi, mas que não é mais e sobre as perspectivas de futuro relacionadas a ele, ou seja, a presença no discurso da noção de passado, presente e futuro. Passado este que, ao ser analisado por Ricoeur, saiu da ideia entidade ou uma localidade de onde residiram as lembranças esquecidas e de onde a rememoração as extrairia. (RICOEUR, 2012, p. 331). É identificável, porém, esta mesma perspectiva de encarar o passado como um ente e anexar os fatos como se fosse um espaço possível de tal ato nos discursos de caráter nacional, onde se tenta demarcar certos pontos chave que caracterizam e legitimam a nação e, em decorrência, o desenvolvimento de uma identidade nacional. Segundo Levinger, é identificável na retórica nacional a utilização de uma tríade temporal em que passado, presente e futuro compõem a razão de ser da nação imaginada. Nesta tríade, cada dimensão temporal tem papel fundamental no discurso que se diz nacional e tem como objetivo mobilizar o povo para um devido fim comum. Em suma, se a análise for direcionada aos Estados nacionais europeus, a invocação do passado tem um caráter de rememorar um fato considerado originário e trazê-lo ao presente de forma a compará-lo com a situação que se mostra em sua contemporaneidade. A partir disto é que se forma um horizonte de expectativa em que as medidas de mobilização que resultariam da invocação do passado glorioso seriam suficientes para retirar a nação da má situação em que se encontrava para alcançar um futuro utópico. O elo entre passado e futuro é a contemporaneidade. Neste tripé, é agregado ao passado o papel de resgatar elementos da História que dão subsídios ao imaginário nacional, legitimando o caráter ontológico da nação. Esta legitimação se dá, em contrapartida às experiências contemporâneas na comunidade que se propõe nação, em que o discurso centraliza-se na identificação dos problemas do tempo que se faz presente. Cabe então à noção da mobilização coletiva para que esta situação possa ser contornada, criando a ideia do futuro utópico, como mostra o esquema abaixo:

Figura 1: Tripé temporal nos discursos nacionais. Levinger & Lytle, 2001 Um exemplo levantado por Levinger sobre a tríade temporal envolvendo o discurso nacional pode ser encontrado na noção de unidade do Reich alemão no contexto que abarca as investidas de Napoleão na Europa, onde ressalta a perspectiva de Ernst Moritz Arndt sobre o glorioso império alemão que estaria por nascer:

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From the North Sea to the Carpathians, from the Baltic to the Alps, from the Vistula to the Schelde, one belief, one love, one spirit, and one passion must again bring together the whole German Volk in brotherly union. They must learn to feel how great, powerful, and fortunate their fathers were in obedience to one German emperor and one Reich, when the many feuds had not yet incited them against one another (LEVINGER & LYTLE, 2001, p. 184). DISCURSO EUGÊNICO BRASILEIRO E EXPECTATIVA DE NAÇÃO A ideia de uma unidade nacional está intimamente atrelada à invocação da perspectiva de destino comum para todos os que compõem aquilo que se tem como nação. Embora o conceito de nação já tenha sido diversas vezes discutido, torna-se necessária uma delimitação do que se considera nação, quem faz e quem não faz parte dela e suas relações com os conceitos de soberania, autonomia e liberdade. Seria necessária também uma análise das relações exteriores, tanto econômico, político e dentro do âmbito das ideias, para que assim se possa delinear um parâmetro para a nação. Fica claro que, de modo geral, as nações europeias utilizaram-se deste discurso de invocação do passado glorioso e utilização de um horizonte de expectativa que leva a um futuro utópico de modo a legitimar o caráter ontológico de cada nação e mobilizar a população protegida por suas fronteiras. Se o foco do estudo for, por exemplo, as nações latino-americanas, que se tornaram independentes durante um longo e complexo período de guerras para finalmente poderem gozar de soberania sem as intervenções de suas antigas metrópoles europeias, o esquema talvez não se sustentasse em sua totalidade. No caso brasileiro, o contexto que envolve fins do século XIX e início do século XX apresenta o desenvolver de um pensamento eugenista – foram analisadas para fins deste trabalho as teses eugenistas das Faculdades de Medicina de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro do período de 1910-1940 - cunhado nas ideias de hierarquização social importadas da Europa, justamente para que fosse possível delimitar e identificar o ser nacional brasileiro e projetar um futuro à nação. O passado colonial do Brasil trouxe um dos principais subsídios das discussões dos intelectuais interessados em aplicar políticas eugênicas no país, já que o fenômeno da escravidão havia trazido às Américas os negros africanos como principal fonte de trabalho escravo. A relação da temporalidade com o projeto de eugenia remete para o pensamento desses intelectuais eugenistas enquanto intérpretes da nação, o tempo histórico trabalhado por Reinhart Koselleck é fundamental para compreender a concepção de presente, passado e futuro na perspectiva dos autores estudados, já que, como citado anteriormente, em suas falas o passado colonial brasileiro e o presente composto pela miscigenação seriam a origem do atraso civilizacional. O presente englobaria a generalização desses males, culminando na degeneração da nação, o que levaria a sociedade à rejeição do progresso. Ao futuro se atrelariam as esperanças de rompimento com esse sistema e cura dos males através da difusão da eugenia. Neste sentido, do ponto de vista identitário estes intelectuais tiveram como característica essencial de seu pensamento o interesse do uso da ciência na relação da nação com o tema devir, demonstrando assim, a correlação entre as concepções de ciência e progresso (CARVALHO & MACIEL, 2014). Para os intelectuais analisados a tarefa do seu tempo consistia em submeter a razão à realidade, isto é, localizá-la dentro dos limites biológicos. Nos tempos passados, fazia-se a vida depender da moral. A missão do “tempo novo” era precisamente inverter essa relação e mostrar que a cultura, a razão, a moral, a ética social são funções da vida e devem variar com ela: A nossa época de renovação, rofundamente vital e biológica, procura a valorização e a libertação do espirito humano das idéas teoréticas, infecundas, extra-vitaes. As variações da sensibilidade vital se nos aparecem sob a forma de gerações. Mas uma geração não é um punhado de homens egrejios, nem simplesmente uma massa, "es como um cuerpo nuevo social integro, con su minoria selecta y su muchedumbre que ha sido lanzado sobre el ambito de la existencia con una trajectoria vital determinada." Cada geração reprezenta um momento vital na evolução duma raça e tem uma (GODOY, 1927,p.7).

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A ideia de ruptura com o passado mostra a insatisfação destes intelectuais para com as continuidades que representam o “atraso” e impedem que a nação atinja o “progresso”, que neste caso é traduzido a um horizonte de expectativa cunhado em uma visão de sociedade branca e sadia. Estes intelectuais tomaram para si a missão de desenvolver e aplicar políticas em sua contemporaneidade de modo a alcançar o objetivo de legitimar a nação e delimitar sua população. A noção de um mal de origem atrelado à nação brasileira estava vinculado à busca de novas imagens identitárias que resinificassem passado e presente em detrimento ao que se construía como um projeto de futuro: não mais a naturalização da identidade pelo nascimento em dado território, mas sim, o nascimento em uma boa prole. Ao retomar na Antiguidade clássica preceitos de estética e moralidade, corrigir-se-ia, através da busca do entendimento do passado, a trajetória que se desviara e rumara à degeneração. Momento agitado de embate político, especialmente no início do século XX, projetos nacionais diferentes expostos por uma infinidade de intelectuais engajados, portanto, tentaram responder de certa forma ao exotismo existencial da América Latina, e do Brasil em particular. Em outras palavras, precisava-se criar um Brasil moderno (CANCELLI, 2004, p. 120).

A citação de Cancelli exposta acima, de maneira geral, demonstra o contexto em que o discurso eugênico emerge no Brasil, na necessidade de resolver os problemas sociais para fins de elevar o país em grau de civilização. Civilização esta que abandona o que até então se apresentava como formação da sociedade brasileira – a miscigenação em que trazia os elementos mal classificados no que se referem à hierarquização racial (negros, mulatos), resquícios de um passado colonial. Assim, resgatando a ideia inicial de Levinger, o esquema da temporalidade aplicado no caso do Brasil, analisado pelos intelectuais eugenistas, propõe-se a seguinte adequação:

Figura 2 Tripé temporal proposto por Levinger, alterado para o caso brasileiro a partir da retórica nacionalista dos eugenistas analisados A linha ascendente do passado no esquema desenvolvido a partir da perspectiva dos intelectuais eugenistas sobre a nação do Brasil representa não mais a invocação de um ato fundador no passado, cuja lembrança seria capaz de mobilizar o presente. Neste discurso, vemos a invocação de subsídios do próprio presente para superar este passado colonial, cujas políticas eugenistas seriam capazes de ultrapassar as dificuldades de se alcançar um futuro promissor. Utilizando-se do conceito de Martin

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Heidegger, de certa maneira, para estes intelectuais, a temporalidade originária no caso brasileiro estaria em seu presente, diferente da invocação do passado glorioso descrito por Levinger a partir da análise da construção dos discursos nacionais europeus. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, a temporalidade não está presente na noção de tempo mecânico, mas é uma construção humana para conseguir abarcar por meio da linguagem o seu entendimento. Aquilo que um dia foi está intrinsecamente ligado ao presente de quem o rememora, mas é através dos mecanismos criados a partir da linguagem que a escrita da História torna-se possível. Além disso, a temporalidade pode ser identificada através da análise das retóricas nacionalistas, onde a evocação deste passado – mesmo já tendo sido historicizado, acaba por perder seu caráter de metáfora – trazendo mecanismos de mobilização de um povo para que se atinja um objetivo comum. Embora este pensamento se adeque aos anseios nacionalistas europeus, quando o foco da análise são os países latino-americanos, torna-se necessário rever a situação deste passado frente sua possível evocação, coisa esta que não se identificou no caso brasileiro a partir da análise da retórica dos intelectuais eugenistas, estudados a partir das teses eugenistas das Faculdades de Medicina de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro do período de 1910-1940, que viam no passado e presente elementos que deveriam ser superados e, a partir desta ruptura – feita a partir da aplicação de políticas eugênicas – poderia assim atingir o futuro utópico. Referências AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexiones sobre el origen e la difusion del nacionalismo. Fondo de Cultura; México; 1993. ANDRADE, Iara. Algumas Reflexões sobre o Conceito de Identidade Nacional. XIV Encontro Regional da ANPUH-RIO: Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, 19 a 23 de julho de 2010. UNIRIO. Disponível em: . Acesso em: 22 de agosto de 2014. APPELBAUM, Nancy P.; MACPHERSON, Anne S. & ROSEMBLATT, Karin Alejandra (eds.). Race and Nation in Modern Latin America. Chapel Hill e Londres: University of North Carolina Press, 2003. ARMANI, Carlos Henrique. Discurso da nação: historicidade e identidade nacional no Brasil de fins do século XIX – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. ______. A História da Historiografia no Rio Grande do Sul e a Escrita do Tempo da Nação: Um Estudo de Caso. Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 5, n. 2, jul./dez. 2012, pp. 193207. BALAKRISHNAN, Gopal. A imaginação nacional. BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. BAUMER, Franklin. O pensamento Europeu Moderno. Lisboa: Ed. 70, 1990 vol I. BREUILLY, John. Abordagens do Nacionalismo. In: BALAKRISHNAN, Gopal (Org.). Um Mapa da Questão Nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. CANCELLI, Elizabeth. A América do desejo: pesadelo, exotismo e sonho. História (online). 2004, vol.23, n. 1-2, pp. 111-132.

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HISTÓRIA, MEMÓRIA E POLÍTICA: REFLEXÕES SOBRE COMO? E POR QUÊ? PESQUISAR A TRAJETÓRIA DA AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL Cleverton Luis Freitas de Oliveira 1 INTRODUÇÃO – BREVE APRESENTAÇÃO DA AÇÃO POPULAR (AP) NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL: Tendo em vista que o principal objetivo deste breve artigo é desenvolver algumas questões de cunho teórico-metodológico surgidas a partir da pesquisa realizada sobre a Ação Popular no Rio Grande do Sul, consideramos necessária uma breve apresentação a respeito desta organização. No entanto, de antemão avisamos que a mesma não será satisfatória, dados os limites espaciais deste estudo. Aos que desejarem saber mais sobre a organização, as referências bibliográficas ao final do texto poderão ajudar. A organização política Ação Popular foi fundada no ano de 1963, tendo realizado seu I Congresso neste ano em Salvador, Bahia. No entanto, sua articulação nacional é realizada a partir do início da década de 1960, sobretudo no decorrer da UNE-Volante em 1962 (DIAS, 2011, p. 91). Para melhor compreender sua trajetória, nunca esquecendo que nenhuma cronologia comporta completamente a dinâmica do processo histórico – e que, portanto, a pesquisa empírica vai constantemente contestar os seus limites – podemos dividir a história da Ação Popular em quatro grandes períodos: 1) 1963-1965 – período de formação e consolidação da AP, no qual sua atuação foi marcada pelo caráter aberto e legal. Neste período a Ação Popular conquista hegemonia no movimento estudantil nacional, e amplia constantemente suas ações nos setores operário e camponês; 2) 1965-1969 – período de reestruturação interna da AP em resposta ao golpe civil-militar de 1964. Este momento é marcado pelas divergências internas, primeiro em torno da adesão ou não à luta armada e em seguida entre os grupos considerados foquistas – com ideias próximas às da Revolução Cubana – e os grupos maoístas. Por fim foi firmada uma adesão formal à luta armada e houve a predominância do maoísmo como viés ideológico da organização; 3) 1969-1973 – marcado pela generalização da política de integração à produção, por meio da qual militantes de origem pequeno-burguesa eram enviados para fábricas e áreas agrícolas com o objetivo de se inserirem na atividade produtiva. No Rio Grande do Sul, a organização foi dissolvida no ano de 1972, motivo pelo qual ela não é incluída na última fase. No ano de 1973 houve uma diretriz nacional para que os militantes se integrassem ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o que foi seguido pela maioria – não por todos – dos militantes; 4) 1973-1980 – grupos contrários à integração ao PCdoB permaneceram tentando organizar a AP até meados da década de 1980, ainda que com pouca força. Por fim, a maior parte dos militantes restantes acabou aderindo ao Partido dos Trabalhadores (PT). QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA O ESTUDO DA AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL: Esta breve e resumida exposição sobre a trajetória política da Ação Popular no Brasil e, especificamente, no Rio Grande do Sul suscita diversas questões. Em primeiro lugar, deixa claro o importante papel da organização tanto no período anterior como no posterior ao golpe de Estado de 1964. A verdadeira hegemonia conquistada no movimento estudantil, mantida em parte apesar da repressão, a inserção nos mais diversos movimentos populares, a participação de militantes em atividades específicas vinculadas ao governo, tanto federal como estaduais, a capacidade de rearticulação apesar da repressão e a expressividade de sua política de integração na produção são exemplos da capilaridade adquirida pela organização ao longo de sua trajetória. Além disso, a fecundidade dos debates teóricos e ideológicos revela uma organização que valorizou o embate entre seus militantes ao invés da padronização do pensamento. Apesar das condições objetivas da clandestinidade, que exigiam diretrizes rápidas para ação, e das cisões, que muitas vezes refletem também episódios de castração do debate, a Ação Popular não se caracteriza como uma organização

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Mestrando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas - UFPel

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predominantemente dogmática e autoritária. A riqueza de sua trajetória política, se não considerada de forma teleológica, suscita e suscitará ainda diversas pesquisas. Outra questão, no entanto, nos parece mais problemática: que fontes utilizar no estudo da história da Ação Popular? Se a Ação Popular atuou em diversos setores, quais deles oferecem registros desta atuação, passíveis de serem utilizados como fontes? No período do governo João Goulart, como vimos, a AP atuou no MEB, na CONTAG, em sindicatos urbanos, nos Movimentos de Cultura Popular, na UNE, nas UEE’s, entre outros setores. E estas atividades foram desenvolvidas em diversas regiões do país. Como se tratava de um período democrático, a atuação política da AP nestas diversas áreas deixou registros. Por isso, podem ser utilizados documentos da Superintendência da Reforma Agrária, por exemplo, para estudar as atividades da AP neste setor no período. Porém, por seu caráter oficial e formal, estes documentos revelam mais sobre os organismos em questão (a SUPRA, por exemplo) do que sobre a Ação Popular em si. Além disso, a diversidade de atividades desenvolvidas pela AP neste período praticamente inviabiliza uma análise aprofundada de todas elas em todo o Brasil. Uma saída para isto é, como propõe este trabalho, a perspectiva regional. Esta abordagem ainda tem a vantagem de deslocar a explicação dos fenômenos do eixo Rio – São Paulo, privilegiando as especificidades regionais, mas sem retirá-las do contexto nacional – afinal, a Ação Popular era organizada nacionalmente – e global. Sobre a abordagem regional nos estudos acerca da ditadura civilmilitar, Claudia Wasserman afirma que está mais do que na hora de ultrapassarmos o estágio da generalização em nossos estudos sobre a ditadura civil-militar implantada a partir de 1964 no Brasil e nos voltarmos para análises específicas das diversas regiões do país a partir dos estados (WASSERMAN, 2010, p. 54). Neste sentido, as reflexões aqui apresentadas adotam a abordagem regional, tanto para viabilizar a pesquisa – em nível de mestrado – quanto para privilegiar as especificidades regionais e superar o “estágio da generalização”. Assim, documentos de órgãos governamentais, do Movimento estudantil entre outros do período nacional-reformista podem ser utilizados como fontes para a pesquisa. É preciso considerar, porém, que muitos destes documentos, especialmente aqueles relacionados aos trabalhos de militantes de esquerda junto ao governo – como no caso da participação de militantes nas secretarias de Educação e do Trabalho do governo do RS – foram eliminados, ou pelos próprios militantes, visando escapar da repressão, ou pelos órgãos repressivos da ditadura civil-militar. Além destes documentos, temos ainda os chamados “Arquivos Repressivos”, quais sejam, os documentos produzidos pelos órgãos de informação da ditadura civil-militar visando a repressão das organizações políticas como a Ação Popular. Nesta breve discussão, por exemplo, citamos um documento produzido pelo Departamento Central de Informações da Secretaria da Segurança Pública do RS em 1972, que arrola nomes de “militantes, colaboradores e simpatizantes” da APMLdoB no estado, e descreve diversas de suas supostas “atividades subversivas”. A principal utilidade deste documento para fins desta pesquisa, no entanto, tem sido o fato de que ele traz uma longa lista de possíveis entrevistados. Assim como a maioria dos documentos produzidos no âmbito da repressão, tende a distorcer aquilo que descreve, uma vez que muitas de informações foram extraídas dos “depoentes” sob tortura. Deste modo, os arquivos repressivos tendem a contribuir mais para o estudo de como funcionava a repressão, sua lógica, seus instrumentos, sua ideologia do que para o estudo de organizações como a Ação Popular. Temos ainda os documentos produzidos pela própria organização, no caso, a Ação Popular, ao longo de sua trajetória. Tendo em vista que expressam as deliberações gerais da organização, sua filosofia e suas orientações políticas, estes documentos são de extrema importância para os objetivos desta pesquisa. Mais uma vez, já citamos aqui o Documento-Base da Ação Popular, datado de 1963, e posteriormente publicado em livro (LIMA, 1979, p. 118-144). Outros podem ser encontrados publicados, como o Programa Básico de 1971, que marca a adoção formal do marxismo-leninismo e a mudança de AP para APMLdoB (REIS FILHO & SÁ, 1985, p. 293-305). Vários outros documentos da organização podem ainda ser encontrados no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp – como a importante Resolução Política de 1965, que expressa o esforço da AP em reorganizar-se após o golpe

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de 1964. Todos estes documentos, porém, têm caráter nacional. Neste sentido, eles contribuem para a pesquisa na medida em que a Ação Popular era organizada nacionalmente e, em linhas gerais, seguia as mesmas diretrizes no Rio Grande do Sul, em São Paulo e na Bahia. No entanto, como afirmamos anteriormente, nosso estudo tem o objetivo de privilegiar também as especificidades regionais da organização. Ainda que as instâncias regionais estivessem organicamente ligadas à nacional, elas também produziam documentos, e de maneira alguma ignoravam suas especificidades. No Rio Grande do Sul, porém, esta documentação é extremamente escassa, existindo uns poucos documentos soltos em posse de alguns militantes. O mais expressivo – e, no entanto, bastante problemático – é uma reportagem do jornal Correio do Povo de oito de Janeiro de 1965 intitulada “IPM sobre GRUPÃO encaminhado à Procuradoria Geral do Estado”. Nela, o jornal transcreve o relatório do Inquérito Policial-Militar desenvolvido sob responsabilidade do tenente coronel Ruy Gonçalves, datado de 15 de Dezembro de 1964, sobre as atividades da Ação Popular no Rio Grande do Sul – em Porto Alegre, especificamente. O relator descreve quatro documentos apreendidos em posse dos militantes Sérgio Echenique Lopes e José Luiz da Costa Fiori, que tratam, entre outras coisas, da situação e da reorganização da AP no RS e de diretrizes organizativas para escapar à repressão. Apesar de serem documentos não muito extensos, são importantes especialmente porque demonstram a dinâmica regional da organização, reforçando a ideia de que apenas os documentos nacionais não a explicam por completo. Entretanto, é preciso ressaltar que, neste caso, não tivemos acesso à documentação original, e sim ao relatório do IPM publicado no Correio do Povo. Desta forma, nada garante que estes documentos diziam mesmo o que ali está escrito ou, em última análise, que eles tenham realmente existido. Por fim, temos as fontes orais. Não nos deteremos aqui em referendar a legitimidade do uso deste tipo de fonte para a pesquisa histórica, tarefa que a historiografia já realizou. No entanto, cabe-nos questionar: que possibilidades são efetivamente abertas com a utilização de depoimentos de exmilitantes da Ação Popular como fontes para a pesquisa? Que cuidados e problematizações são necessários para o uso deste tipo específico de fonte? AS FONTES ORAIS NA PESQUISA SOBRE HISTÓRIA DA AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL: REFLEXÕES SOBRE MEMÓRIA Em primeiro lugar, as fontes orais são importantes porque podem suprir justamente o déficit aberto pela escassez da documentação escrita produzida pela organização em sua instância regional. As falas dos militantes sobre sua própria ação, sobre a organização da qual participaram, revelam não só as especificidades regionais da organização, mas também os pontos de convergência entre as instâncias regional e nacional. Além disso, dinamizam a compreensão do processo, imprimindo ao seu relato as suas impressões e opiniões pessoais, bem como revelando atividades desenvolvidas por eles, mas não diretamente organizadas pela AP. A participação de militantes da AP em secretarias de Estado no RS, por exemplo, só pôde ser conhecida através de entrevistas realizadas com estes sujeitos, uma vez que não consta nos documentos da organização. Além disso, a elaboração sistemática de uma rede de depoentes possibilita realizar entrevistas com militantes que ocuparam diversas posições na organização, desde aqueles vinculados ao movimento estudantil secundarista – estudantes do Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, por exemplo – até aqueles que desempenharam a função de coordenação estadual. Deste modo, é possível que se tenha uma visão mais ampliada e plural da trajetória política da Ação Popular. No entanto, o uso de depoimentos de ex-militantes também suscita questões problemáticas. A primeira delas tem relação com a memória destes militantes, invocada no momento da entrevista. É necessário ter clareza de que o depoimento do ex-militante não se configura como uma repetição do passado. A memória é dinâmica, se transforma, e a operação de lembrar parte sempre do presente, é uma ação do sujeito. É preciso, desta forma, levar em conta também o contexto no qual estão inseridos os ex-militantes no ato da entrevista, pois ele pode, inclusive, modificar seu relato a respeito de sua própria experiência. Um caso já citado aqui é o do livro de Aldo Arantes e Haroldo Lima: ambos militantesfundadores da Ação Popular, foram favoráveis à fusão da organização com o PCdoB em 1973. Desde então, assumiram posições de liderança neste partido. Quando escreveram o livro – substancialmente redigido na prisão, ainda na década de 1970, e publicado em 1984 –, imprimiram ao seu relato traços

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nitidamente teleológicos, dando a impressão de que a Ação Popular somente teria atingido um grau satisfatório de maturidade política quando se incorporou ao PCdoB. Nas primeiras linhas do livro, por exemplo, já se pode ler: Este livro conta a história de uma organização política brasileira, fundada em 1962 – a Ação Popular –, que em 1971 passou a ser Ação Popular MarxistaLeninista do Brasil e que em 1972-73 se incorporou ao Partido Comunista do Brasil (LIMA & ARANTES, 1984, p. 09). Na realidade, diversas pesquisas e depoimentos de ex-militantes apontam para uma continuidade de atuação da AP mesmo após a incorporação de parte considerável de seus dirigentes ao PCdoB. Além disso, no Rio Grande do Sul, por exemplo, não houve praticamente incorporações de militantes da AP ao PCdoB neste período, tendo em vista a desarticulação da organização no ano de 1972. Jacob Gorender já apontava, além do mais, para o caráter teleológico da obra de Lima e Arantes, afirmando que a incorporação fora “supressora da própria identidade” da AP, resultado da travessia do “campo minado das lutas internas” que causaram “grandes perdas de substância partidária” (GORENDER, 1987, p. 187). O livro de Haroldo Lima e Aldo Arantes, no entanto, não deixa de ser uma referência de extrema importância para o estudo da trajetória política da Ação Popular. Porém, é necessário reconhecer que, apesar da clara intenção dos autores em se distanciar da narrativa memorialística e escrever a “História da Ação Popular”, o tom memorial permanece presente ao longo da obra. Por isso, a compreensão de que a memória não é uma repetição do passado, mas uma “reconstrução que cada um realiza dependendo da sua história, do momento e do lugar em que se encontra” (PADRÓS, 2001, p. 80) é fundamental para a leitura desta obra emblemática. A segunda questão problemática que a ser levantada com a utilização de fontes orais para o estudo da trajetória da Ação Popular diz respeito ao estatuto do depoente. Estamos tratando de sujeitos que, quando jovens, militaram em uma organização política. A maioria deles ingressou na Ação Popular quando esta ainda não era clandestina, mas muitos continuaram militando após o golpe de 1964, e alguns adentraram suas fileiras mesmo após a clandestinidade. Assim como militantes de diversas outras organizações de esquerda do período, foram chamados “subversivos” e considerados os “inimigos internos” de seu próprio país. Coerentemente com a política de Terrorismo de Estado implementada no país, muitos foram presos e severamente torturados, tendo suas vidas completamente desestabilizadas – necessidade de mudar de emprego, de endereço, de identidade, abandonar a universidade, etc. Dilza de Santi, por exemplo, relata que quando militava na Ação Popular em Porto Alegre sofreu diversas perseguições de grupos vinculados oficialmente e extraoficialmente a repressão: o Comando de Caça aos Comunistas, por exemplo, descobrira onde ela morava e, de tempos em tempos, pichava em sua residência – Dilza Comunista! Ela acabou abandonando seu emprego em uma escola nesta capital e o curso de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi para São Paulo. Alguns anos depois, já com sua família constituída, Dilza foi novamente alvo da repressão: ela, o marido e o filho recém-nascido – o menino tinha aproximadamente 15 dias de vida, e enfrentava uma Icterícia – foram presos em sua casa, em São Paulo, e levados à sede da Operação Bandeirantes. Os dois acabaram sendo liberados sem sofrer torturas físicas – já não eram mais vinculados a organização alguma –, mas o menino lhes foi entregue em péssimas condições de saúde, pois ficara mais de 12 horas afastado da mãe, e ninguém sabe o que lhe passou neste período . Após um relato como este, salta aos olhos a condição de vítimas destas pessoas. Realmente, foram vítimas do Terrorismo de Estado. Porém, ao pensarmos a trajetória política da Ação Popular, é necessário enxergar, para além das vítimas, os militantes como sujeitos protagonistas. Pensando sobre a Guerra Civil Espanhola e o Franquismo, a memória constituída destes processos e o papel do Estado no período da transição para a democracia, Ricard Vinyes reflete sobre as implicações negativas da vitimização dos sujeitos no entendimento racional do processo histórico: [o status de vítima...] es un estatus que facilita al Estado desviar la responsabilidad política de sus actuaciones o prevenciones. El motivo obedece

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a que la víctima, por el dolor que a padecido, genera un consenso en las reparaciones económicas, consenso basado en la piedad, no en la causalidad histórica –que obligaría a un posicionamiento político del Estado–, evitando o apaciguando así los conflictos en los juegos de hegemonías políticas. Conflictos que derivarían del reconocimiento, no a las víctimas, sino a los valores políticos de los cuales era portadores antes de ser víctimas. Esta actitud ha creado una burocracia reparadora que en la práctica mantiene, y estimula, el estatus de víctima, separando el sufrimiento de las causas políticas que lo han provocado […] (VINYES, 2009, p. 55-56). A questão aqui colocada é exatamente esta: a Ação Popular foi uma organização, sobretudo, política. Seus militantes foram sujeitos políticos. Apesar do horror dos relatos de tortura e perseguição, é necessário ultrapassar o estatuto de vítimas, enxergando o sujeito político, suas ideias, convicções e ações. Vinyes alerta que tal vitimização não só atrapalha o conhecimento histórico, separando o sofrimento das causas políticas que o provocaram, mas facilita ao Estado a negação de suas responsabilidades, tratando o ocorrido como uma espécie de “tragédia”. Para atingir o objetivo de enxergar os sujeitos políticos do processo, no entanto, se faz necessária uma breve reflexão sobre o conceito de política na história. O CONCEITO DE POLÍTICA E A PESQUISA SOBRE HISTÓRIA DA AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL: Neste trabalho, visamos entender os ex-militantes da Ação Popular não como vítimas apenas, mas como sujeitos políticos. No entanto, o que seria necessário para fazer isso? Do nosso ponto de vista, o fundamental é não isolar as trajetórias de vida dos militantes da história da própria organização política. É necessário ter em mente que eles fizeram a Ação Popular. Sua práxis, enquanto sujeitos, ainda que não se reduza à militância na AP, é sem dúvida indissociável dela. É necessário, assim, compreender a Ação Popular como uma organização política, cujos militantes construíram os ideais, as diretrizes, as linhas teóricas e ideológicas e as ações. Por isso, consideramos importante encerrar este artigo com uma reflexão, mesmo que breve e introdutória sobre o conceito de política no campo da história política. Conforme o historiador Laurindo Pereira, a história política enquanto campo do conhecimento pode ser dividia em três fases: 1) da constituição da disciplina histórica até a ascensão do grupo da revista francesa Analles, em 1929; 2) o período entre 1929 e 1974; e 3) de 1974 até os dias atuais. Na primeira fase, a história política foi predominante, identificando-se com a consolidação das repúblicas e a construção dos nacionalismos. Após 1929, no entanto, este campo perdeu importância, devido às críticas que recebeu por parte dos Analles e à ascensão da história econômica e social. Pereira afirma também que as vertentes ortodoxas do marxismo, ao enxergarem o Estado como mero instrumento para a dominação de classe, contribuíram para o abandono da história política. No terceiro período, a história política foi retomada, ganhando novos ares especialmente em reação a “estas concepções reducionistas do Estado e da instância do político” e tendo como principal bandeira a “defesa da autonomia do político, da sua existência própria” (PEREIRA, 2008, p. 98-101). René Remond, um dos principais representantes da chamada nova história política, defende que as fronteiras do que é político não são fixas, abarcando às vezes mais e às vezes menos setores da sociedade. Este mesmo historiador afirma que a política é “a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício, a prática do poder [...] Mas não qualquer poder”! (REMOND, 2003, p. 444), especificando que só é política a relação com o poder na sociedade global: aquela que constitui a totalidade dos indivíduos que habitam um espaço delimitado por fronteiras que chamamos precisamente de políticas. Na experiência ocidental, ela se confunde com a nação e tem como instrumento e símbolo o Estado. (REMOND, 2003, p. 444). Assim, percebe-se que o autor procura definir minimamente o conceito de política, mas sem limitá-lo em demasia. Esta opção teórico-metodológica é mais facilmente compreendida se temos em mente que, ao escrever este texto, Remond estava preocupado em reabilitar um campo do conhecimento e da pesquisa em história. Porém, o conceito de política acaba por tornar-se um pouco vago, nesta

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dinâmica na qual “ora ele se dilata até incluir toda e qualquer realidade e absorver a esfera do privado [...]. Ora ele se retrai ao extremo” (REMOND, 2003, p. 442). Por isso, nos é interessante buscar outras concepções de política que, talvez, sejam mais definidas, sem por isso serem estanques. O marxista italiano Antonio Gramsci, por exemplo, discute diversas questões relacionadas à política em sua obra, dando-lhes importância central. Por isso, Carlos Nelson Coutinho afirma que “Gramsci examina todas as esferas do ser social partindo da relação entre elas e a política” (COUTINHO, 2003, p. 68). Evitando as generalizações, mas também as reduções, Coutinho salienta que é possível identificar dois conceitos de política nos cadernos do cárcere – uma política ampla e outra restrita. A acepção ampla é identificada [...] com todas as formas de práxis de superam a simples recepção passiva ou a manipulação dos dados imediatos da realidade [...], e que se dirigem, conscientemente, ao contrário, para a totalidade das relações objetivas e subjetivas. [...] todas as esferas do ser social são atravessadas pela política, ou seja, [...] todas contêm a política como um elemento real ou potencial ineliminável (COUTINHO, 2003, p. 70). Este conceito nos permite compreender as relações intrínsecas entre a política, nesta acepção ampla, e a economia, a cultura, e outras “esferas do ser social”. Neste sentido, a política não é vista como autônoma, mas também não o é como reflexo: ela perpassa a sociedade de tal maneira que a percepção dos aspectos políticos é fundamental para a compreensão de determinado fenômeno, porém esta compreensão não é possível, ou é no mínimo prejudicada, sem a identificação das relações entre o político e as demais esferas. No entanto, Coutinho apresenta outra acepção de política no pensamento gramsciano: a política restrita. Esta se refere, conforme o autor, ao “conjunto das práticas e das objetivações diretamente ligadas às relações de poder entre governantes e governados” (COUTINHO, 2003, p. 72). Desta forma, enquanto a primeira acepção é permanente, ou seja, é inerente à vida em sociedade, à segunda é transitória, identificada com a vida em uma sociedade de classes. Neste sentido, o Estado também não natural e eterno, nem mesmo fruto de um pacto ou acordo, mas “emerge do conjunto das relações sociais para assegurar a continuidade da produção e da reprodução de sua existência; [...é...] fruto das diferenciações internas da vida social [...]” (MENDONÇA & FONTES, 2012, p. 57). A política restrita existe, assim, para conservar ou subverter a ordem de dominação social, ou a existência de governantes e governados. Porém, longe das perspectivas fragmentárias e superando a visão dualista que contrapunha base e superestrutura, Gramsci desenvolve ainda o conceito de Estado ampliado, que engloba, ao mesmo tempo, sociedade civil e sociedade política, coerção e consenso: O poder estatal, mesmo expressando uma dominação de classe, não poderia realizar-se como agente apenas coercitivo [...]. O Estado ampliado guarda também uma dimensão de consenso, obtido a partir da ação das vontades coletivas organizadas nos aparelhos de hegemonia da sociedade civil, bem como da atuação do Estado restrito, que tende a promover/ generalizar a visãoprojeto da fração de classe hegemônica em um dado bloco histórico (MENDONÇA & FONTES, 2012, p. 63). Assim, compreendemos a Ação Popular como uma organização da sociedade civil essencialmente política, ou seja, mobilizadora das vontades coletivas no sentido da contra hegemonia, da desestabilização da ordem de dominação social. Seus conflitos internos e as várias estratégias de ação adotadas por ela serão analisados não como desvios, imaturidades, romantismos, mas sim como frutos de leituras diversas da realidade social feitas por grupos de sujeitos políticos preocupados com sua modificação ou transformação. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Nosso objetivo com este trabalho foi o de sistematizar questões de cunho teórico-metodológico pertinentes ao estudo da Ação Popular no Rio Grande do Sul. No entanto, acreditamos que tais questões

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possam servir também para a pesquisa sobre outras organizações políticas do período no Brasil. Obviamente este breve artigo não esgotou as problemáticas propostas. A questão da memória como fonte já foi vastamente estudada, e talvez não receba a devida atenção aqui. No entanto, não se trata de ignorar sua importância. Pelo contrário: dada sua complexidade preferimos não aprofundar o tema em tão pouco espaço, dando mais atenção à outras questões. O mesmo se pode dizer das contribuições de Antônio Gramsci para o conceito de política, somente abordado através de alguns poucos intérpretes. No entanto, acreditamos que a principal contribuição deste estudo, o problema central abordado aqui, foi o do estatuto do depoente. É necessário que se entenda os militantes como sujeitos políticos, para que se possa analisar a dinâmica da trajetória de suas organizações. O fato de terem sido vítimas do Terrorismo de Estado, incontestável, não pode obscurecer suas ideias, opções e ações políticas. Na realidade, o próprio entendimento das trajetórias dos militantes e de suas organizações nos ajuda a compreender o significado histórico – essencialmente burguês – do golpe, da ditadura e do Terrorismo de Estado. FONTES: AÇÃO POPULAR. Documento Base da Ação Popular. 1963. In: LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: Hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 118-144. AÇÃO POPULAR MARXISTA-LENINISTA DO BRASIL. Programa Básico de 1971. In: REIS FILHO, Daniel; SÁ, Jair (orgs.). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: ed. Marco Zero, 1985, p. 293-305. Correio do Povo. IPM sobre GRUPÃO encaminhado à Procuradoria Geral do Estado. 08 de Janeiro de 1965. Depoimento de Dilza Maria de Santi. 26 de Outubro de 2013, Porto Alegre, RS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: COUTINHO, Carlos Nelson. O conceito de política nos cadernos do cárcere. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 67-82. DIAS, Cristiane. Ação Popular (AP) no Rio Grande do Sul: 1962-1972. 194f. 2011. Dissertação (Mestrado em História). Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2011. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2ª Ed. São Paulo: Ática, 1987. LIMA, Haroldo; ARANTES, Aldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: AlfaOmega, 1984. MENDONÇA, Sonia Regina; FONTES, Virgínia. História e teoria política. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 55-71. PADRÓS, Enrique. Usos da Memória e do Esquecimento na História. Letras, Santa Maria, n.22, Jan/Jun. 2001, p. 79-95. PEREIRA, Laurindo. A Nova História Política e o Marxismo. Opsis – Universidade Federal de Goiás, Catalão, v. 8, n. 11, Jul/Dez. 2008, p. 97-119. REIS FILHO, Daniel; SÁ, Jair (orgs.). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: ed. Marco Zero, 1985. REMOND, René. Do político. In: REMOND, René (org.). Por uma História Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003, p. 441-450.

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VINYES, Ricard. La memória del Estado. In: VINYES, Ricard (org.). El Estado y la memoria: gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de la historia. Barcelona: RBA, 2009. WASSERMAN, Claudia. O golpe de 1964: Rio Grande do Sul, “celeiro” do Brasil. In PADRÓS, Enrique Serra et al (orgs.) Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964 – 1985): História e memória. Vol.1. Porto Alegre: Corag, 2010, p. 51-70.

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O REGIME CIVIL-MILITAR EM ALEGRETE: O CASO DA ESCOLHA DA PRESIDÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL (1965) Diego Garcia Braga 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo analisar um caso ocorrido na Câmara Municipal de Alegrete em 31 de dezembro de 1965. Nesse dia seria escolhida a nova presidência da Casa, entre os postulantes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e da União Pelo Progresso de Alegrete (UPPA), formada pela coligação entre o Partido Libertador (PL), o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN). No entanto, uma ação articulada pelos membros da UPPA e por militares do Exército interferiu diretamente nos rumos da referida sessão. Isso porque, eleitoralmente, o PTB era o partido mais forte do município: havia elegido durante a eleição de 1963 o prefeito e o vice (os escrutínios para os dois cargos eram separados) e seis vereadores, num total de onze cadeiras, assim como a presidência, a vice-presidência e o secretariado legislativos. Não obstante, em 31 de março de 1964, uma conspiração civil-militar desferiu um golpe de Estado no país, contra o governo presidencial de João Goulart. No âmbito alegretense, essa conjuntura possibilitou à UPPA ampliar a sua oposição ao governo local. Formada por cinco vereadores, a bancada desferiu pronunciamentos que ora atacavam Goulart, Brizola e o trabalhismo como um todo, colocandoo no mesmo plano do comunismo, ora defendiam a “revolução”. Essas manifestações geravam insatisfação e rebates dos petebistas, proporcionando acaloradas discussões, embora houvesse o sempre presente risco da cassação de mandato aos que enfatizassem críticas ao regime. Porém, ficou evidente que a união entre a UPPA e o Exército em 1965 tratou-se de uma articulação que visou à reversão da predominância petebista no Legislativo e a desestabilização da bancada deste partido por meio da pressão política. Com base nisso, a principal fonte referente ao caso analisado é a ata da Câmara do dia 31 de dezembro. De modo geral, as atas legislativas revelam os embates entre as bancadas e a identificação dos vereadores que mais se manifestavam politicamente a favor ou contra o regime. Mas, como esse documento não revela a totalidade dos fatos ocorridos naquele dia, buscou-se auxílio de fontes orais e da imprensa local, em especial a políticos do período ainda vivos e do jornal Gazeta de Alegrete. A análise permite considerações sobre o impacto do regime para a política alegretense e nas alianças estabelecidas entre o Exército e as elites locais engajadas com este regime. De que forma o regime influenciou o campo político alegretense e de que maneira podem-se considerar as alianças destacadas? O “31 DE DEZEMBRO DE 65” E O SEU IMPACTO NO LEGISLATIVO MUNICIPAL Alegrete é um município localizado na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, próximo das fronteiras com a Argentina e o Uruguai, e distante cerca de 600 km de Porto Alegre, capital do estado. Durante o regime civil militar, foi um dos poucos municípios da região que manteve as suas eleições diretas. Isso pois a maior parte dos seus vizinhos, como Itaqui, São Borja, Uruguaiana, Quaraí e Santana do Livramento, tiveram os seus prefeitos escolhidos indiretamente pelo regime, por serem limítrofes à linha fronteiriça e serem enquadrados como Área de Segurança Nacional. Do ponto de vista político, Alegrete, assim como toda a região, era caracterizado pelas disputas partidárias envolvendo o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e coligações de partidos conservadores e liberais contra ele. Assim, se formou no município a coalizão denominada União Pelo Progresso de Alegrete (UPPA), constituída pelo Partido Libertador (PL), pelo Partido Social Democrático (PSD) e pela União Democrática Nacional (UDN). Estabelecida para o pleito municipal de 1952, foi retomada em 1955, 1959 e 1963. Nas atas legislativas, por exemplo, os vereadores dessa aliança não são vinculados aos seus partidos de origem, e sim, como pertencentes à bancada da UPPA.

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Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista FAPERGS.

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No pleito de 1963, o PTB venceu a disputa para o cargo de prefeito, elevando o Sr. Adão Ortiz Houayek a chefe do Executivo. Para a Câmara, elegeu cinco vereadores, num total de onze. Foram eles: Adão Dornelles Faraco, Adolfo Souto Corrêa, Ary da Silva Carbonell, Carlos Eroní Carús, Honório Paines e Waldemar Caloví. Pela UPPA, foram eleitos: Brasilêncio Lopes Machado, Odilon Bessa Simões, Nelcy Oliveira, Ruy Barbosa da Silveira e Salatiel Antunes da Silva. i Como presidente da Câmara, em 1964 e 1965, foi escolhido o Sr Adão Faraco. Durante os primeiros meses dos trabalhos legislativos, três vereadores foram substituídos: pelo PTB, Ary da Silva Carbonell pediu licença por tempo indeterminado, para tratar de problemas de saúde (faleceu no início de 1965). Waldemar Caloví, em 8 de junho, renunciou ao cargo. Assumiram os suplentes Gustavo Perfeito e José Guedes do Canto. Pela bancada da UPPA, Nelcy Oliveira pediu licença dos trabalhos, alegando problemas particulares, sendo substituído por Miguel Jacques Trindade. 2 O cargo de vice-presidente da Câmara, ocupado pelo vereador Coloví, foi assumido por José Guedes. Posteriormente, em 15 de julho de 1965, Eroní Carús renunciou. 3 Em virtude dessa renúncia, e também pelos seguidos pedidos de licença, tendo em vista o fato de o mandato não ser, à época, remunerado, os senhores Adalberto Rodrigues Cony e Osório Soares Nunes complementaram à bancada petebista. Portanto, apenas metade dos seis vereadores eleitos pelo PTB completou os mandatos até o final. Sem embargo, o cargo de presidente do legislativo alegretense estraria em disputa no dia 31 de dezembro de 1965. Nessa data, já estavam em vigor o Ato Institucional nº 2 (AI-2) 4 e o Ato Complementar nº4 (AC-4) 5, colocados em prática pelo regime meses antes, no qual extinguiu os partidos políticos e criou o bipartidarismo. Com isso, as bancadas da Câmara foram organizadas conforme o governo municipal, até a fundação dos novos partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), sendo, portanto, a do PTB considerada “situação” e a da UPPA “oposição” ou “coalizão”. Consta-se que antes da sessão legislativa ter início, “já presentes no recinto da Câmara, Oficiais do Exército solicitaram para parlamentar com o Presidente da Casa, no que foram atendidos na secretaria da Câmara.” 6 Reaberta a sessão, “foi o presidente novamente solicitado pelos já referidos Oficiais do Exército para outro contato, no que também foram atendidos.” Após as conversações com os militares, a reunião foi pausada em cinco minutos para a confecção das “chapas”, formando-se apenas uma, da “situação”. Em seguida, “dois vereadores, os Senhores Adalberto Rodrigues Cony e Osorio Soares Nunes, foram convidados por um capitão para um entendimento com o Major, o que se verificou.” 7

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Conforme ata da Câmara Municipal de Alegrete, de 24 de março de 1964, o vereador Miguel J. Trindade propôs um projeto de lei que estabelecia vínculos entre os níveis salariais para professores municipais, sendo fortemente rebatido pelos vereadores Eroní Carús e José Guedes do Canto, discutindo que “o projeto era ora inconstitucional, pois conflitava com o Artigo 30 da Lei Orgânica [...] e não eram conhecidos os futuros níveis do salário mínimo, pelo menos de imediato, o projeto reduzia os vencimentos do professorado”, sendo o citado projeto rejeitado por 6 votos a 5. 3 Eroní Carús era o vereador petebista mais enfático quanto à crítica ao regime. Seguidamente discutia com o vereador Brasilêncio Machado, da UPPA. Em virtude desses pronunciamentos, foi preso em julho de 1964 e depois em março de 1965. Na segunda oportunidade, foi detido juntamente com o presidente do diretório do partido, Cassiano Pahim da Motta. Na volta da primeira detenção, em 10 de julho, disse que havia integrantes da bancada da UPPA que eram “capazes de denunciar colegas aos militares”. No período entre as duas prisões, até a efetivação da renúncia, o vereador foi seguidamente intimado a prestar esclarecimentos na delegacia de polícia, por causa das referidas manifestações na Câmara. Alguns meses após a renúncia, Carús retornou à Câmara, desta vez para assumir como assessor administrativo. Cf. ALEGRETE. Câmara Municipal. Sessões legislativas de: 10/7/1964; 8/8/1964; 17/3/1965; 15/7/1965; 25/8/1965. 4 BRASIL. Ato Institucional nº 2. Extraído de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm. Acesso em: 15/1/2015. 5 Ibidem. Ato Complementar nº 4. Extraído de: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=90596&norma=116094. Acesso em: 15/1/2015. 6 ALEGRETE. Câmara Municipal. 31/12/1965. 7 Idem.

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Para evitar tumulto, a sessão foi encerrada mediante solicitação do vereador Gustavo Perfeito, por entender que a reunião tinha falta de garantias legais para a realização da eleição, “tendo o presidente dito que, se tornando evidente tal situação, suspendia os trabalhos até ulterior deliberação.” 8 Isso levou o vereador da “oposição” Brasilêncio Machado a protestar efusivamente, “afirmando não ver motivos para a suspensão, nem concordar com a alegada falta de garantias.” 9 Após o término da sessão, os vereadores de ambas as bancadas foram conduzidos até o 6º Regimento de Cavalaria, onde ficaram detidos no salão de entrada do quartel. 10 Pouco depois, o grupo foi liberado por ordem do comandante, com exceção de Adão Faraco, presidente da Câmara, e Gustavo Perfeito, líder da bancada “situacionista”. 11 Os dois teriam recebido a notícia de que seriam transferidos para o município de Uruguaiana, mas, para surpresa de ambos, foram soltos por volta das 17h30min. 12 Imediatamente, se dirigiram à Câmara, e lá ficaram sabendo que não apenas a sessão havia ocorrido como também uma nova presidência sido escolhida. Reabertos os trabalhos às 16:30 horas, com a presença de seis vereadores, cinco da Bancada da Oposição e um da Situação ver. Osório Soares Nunes, após informação dêste que seus companheiros não iriam comparecer ao plenário, assumiu a presidência o ver. mais idôso, Dr. Ruy Barbosa da Silveira, nos têrmos regimentais, de vez que não compareceu nenhum integrante da Mesa. O Presidente suspendeu a sessão, por cinco minutos, para a elaboração das chapas, reabrindo após para que se processasse a votação que acusou o seguinte resultado: eleitos com cinco votos cada um – Nelcy Soares Oliveira – Presidente, Salathiel Antunes da Silva – Vice Presidente, Odilon Bessa Simões 1º Secretário, Ruy Barbosa da Silveira 2º Secretário. (ALEGRETE. Câmara Municipal. 31/12/1965) Na sessão da tarde, no qual foi escolhida a nova composição da mesa, a bancada da “oposição” estava completa. No entanto, a sessão não poderia ocorrer sem, ao menos, a presença de um vereador da antiga bancada do PTB, uma vez que a UPPA, ou “oposição”, era formada por cinco vereadores, e o número mínimo era de seis pessoas. Mas Osório Nunes, da bancada da “situação”, compareceu à reunião parlamentar, garantindo o quórum necessário para a escolha da presidência da Casa. Os postulantes da UPPA sagraram-se vencedores por cinco votos a um. Osório votou nulo. 13 Possivelmente, os vereadores da “situação” foram coagidos a comparecer à tarde, o que não podemos afirmar. Durante a sessão da manhã, Osório fora um dos dois vereadores abordados individualmente pelos militares presentes no local, o que pode estar vinculado ao conhecimento antecipado de ambos de que os vereadores seriam detidos no quartel. A transferência de Adão Faraco e Gustavo Perfeito ao município vizinho foi provavelmente articulada contra a bancada em troca da soltura dos detidos. Ao final da sessão de 31 de dezembro, Osório disse que “veio a plenário resolver a solução do caso, por sua livre e espontânea vontade, sem imposição ou opressão, a fim de que a sociedade alegretense não fôsse abalada.” 14 Por fim, pediu licença dos trabalhos legislativos por tempo indeterminado. Em 9 de março de 1966, na primeira sessão após o recesso de férias e também a primeira após o ocorrido, o vereador Gustavo Perfeito colocou em discussão um Projeto de Resolução justificado e apresentado por escrito “que declara nula a eleição da Mesa da Câmara Municipal [...] pedindo no 8

Idem. Idem. 10 Cf. Entrevista, Alegrete. 24/8/2010. Adão Faraco. 11 Adão Faraco disse, em entrevista, que os dois não ficaram presos necessariamente numa cela, mas sim, detidos, segundo ele numa sala de espera próxima ao saguão de entrada da guarnição. 12 Idem. 13 Idem. 14 ALEGRETE. Câmara Municipal. 31/12/1965. 9

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mesmo instante o Regime de Urgência.” 15 O vereador Brasilêncio Machado usou a palavra para dizer que “entendia não poder a Casa discutir a matéria apresentada pelo vereador Gustavo Perfeito, sem que antes fôsse solucionado o problema relativamente à presença no Plenário do Legislativo Municipal do vereador que havia se aposentado das funções que exercia nesta Casa por motivo de doença,” 16 afirmando ainda que “tal fato está justificado através de documentos e exames que possuía em seu poder.” 17 Em outras palavras, o vereador Gustavo Perfeito formalizou uma Resolução. Na sessão, no entanto, estava presente um vereador que pedira desligamento da Câmara e que havia adquirido aposentadoria das atividades profissionais, entre janeiro e fevereiro de 1966. Para o desligamento, alegou problemas médicos. A presença dele foi desaprovada por Brasilêncio Machado. Para ele, algo como uma votação de Resolução, ainda mais em se tratando de pedido de urgência, não poderia ser deliberada nem levada adiante tendo a presença e participação de um vereador afastado. O referido vereador era José Guedes do Canto. Adão Faraco, em questão de ordem, pediu à Presidência para que Brasilêncio se restringisse ao trato da questão da Resolução, porque estava desviando o foco do tema, em razão dos seus pronunciamentos. Em contrapartida, Brasilêncio, “retomando a palavra afirmou que de forma alguma a Casa poderia discutir o assunto sem que, preliminarmente fôsse dada uma solução relativamente à presença no Legislativo do Vereador José Guedes do Canto.” 18 Adão Faraco protestou contra Brasilêncio. Em seguida, Nelcy Oliveira, o novo presidente legislativo, defendeu a questão levantada pelo seu correligionário, acerca da “impossibilidade de permanecer no plenário, de tomar parte das discussões dos trabalhos dêste Poder de um vereador que infelizmente adoecera em virtude do que havia sido aposentado como funcionário.” 19 Com isso, Adão Faraco solicitou à presidência para que fosse ouvido o Doutor Ruy Barbosa da Silveira, também vereador e presente na sessão, para que tirasse dúvidas e desse um veredito final à questão. Ruy Barbosa declarou que, mesmo não sendo o médico pessoal de José Canto, tendo a oportunidade de atendê-lo somente por uma vez e conhecendo a sua enfermidade, declarou que nada impedia que um “funcionário ou qualquer vereador enfêrmo compareça para exercer o seu cargo, durante uma, duas ou três horas.” 20 Por conseguinte, finalizou dizendo que somente poderia ser oferecido um novo exame. Contudo, Brasilêncio reiterou a sua opinião, afirmando que “não se discutia o projeto de resolução sem que antes fôsse dada uma solução à preliminar levantada.” 21 Por meio do pronunciamento de Adão Faraco, havia o entendimento de que “os assuntos até então tratados não invalidavam tal iniciativa [o pedido de urgência] conclamando à Presidência para a votação imediata da matéria.” 22 Para a bancada da “situação”, as abordagens de Brasilêncio Machado estavam unicamente centradas no desvio da questão até então primordial, que era a anulação da eleição. José Guedes do Canto, em sua fala, respondeu à intervenção de Brasilêncio Machado, declarando “que estava pronto a deixar a Casa, mas, desde uma vez que, aqueles que, segundo comentários há outros males nos jornais.” 23 Indiretamente, José Guedes sustenta o fato de o vereador Brasilêncio desviar o foco em questão para assuntos irrelevantes, como a sua doença. Por fim “declarou que retirar-se-ia definitivamente desta Casa no instante em que fôsse feita eleição livre, sem interferências de fôrças estranhas.” 24

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ALEGRETE. Câmara Municipal. 9/3/1966. Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 Idem. 23 Idem. 24 Idem. 16

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Ao final da sessão, Adão Faraco solicitou a sua suspensão sob a alegação de falta de segurança, pela estada de um militar no plenário. Declarou, também, “que aquilo que estava feito não seria desfeito.” 25 A Presidência, “em resposta declarou não suspender os trabalhos posto que, não via razões para tal e que a sessão continuaria enquanto houvesse numero legal.” 26 Isso declarado, “de imediato retirou-se a Bancada da Situação tendo declarado o Vereador Adão Faraco que ficaria à disposição de qualquer pessoa na rua ou em sua residência.” 27 Um dos beneficiados com a interferência na Câmara, Nelcy Oliveira, tinha se licenciado dos trabalhos legislativos no dia da posse, ainda em 1964. O político declarou em nota publicada pelo jornal Gazeta de Alegrete em janeiro de 1966, que havia sido procurado em seu escritório de advocacia por Brasilêncio Machado no início de dezembro, e este o havia orientado a retornar à Câmara para que encabeçasse a “chapa” da UPPA na disputa do dia 31. Mas Oliveira não revela o porquê da escolha de seu nome. A nota, intitulada “Notícia facciosa e inverídica, publicada ontem no jornal ‘A Platéia’, de Livramento”, pode ser vista na íntegra a seguir: Foi com espírito revoltado que lemos no jornal “A Platéia” de ontem, dia 13 de janeiro, notícia sôbre a eleição da atual mesa diretora da Câmara Municipal de Vereadores, que temos a honra de presidir. É objetivo precípuo desta nota repelir a assertiva contida em a notícia em aprêso, no sentido de que a chapa que tivemos a satisfação de encabeçar fôra organizada por militares. Nada menos verídico e temerário. No início de dezembro último, fomos procurados em nosso escritório de advocacia pelo ilustre líder da bancada da oposição, vereador Brasilêncio Lopes Machado que, em nome da Revolução de 31 de março de 1964, a que nos plenamente integrados, desde de sua deflagração, fazia-nos um apelo no sentido de que reassumíssemos nossa cadeira no Legislativo e concordássemos em que fôsse coordenado nosso nome para a Presidência da Câmara. Depois de muito pensarmos a respeito do caso, concluímos que, embora sacrificando interesses particulares, não poderíamos negar mais êsse serviço à revolução saneadora de março. Aceitamos o encargo, e, desde o dia 31 de dezembro último, estamos à testa do Legislativo, cumprindo fielmente nossa missão. Do ligeiramente exposto, evidencia-se que nossa candidatura e a da chapa vencedora surgiu no seio da Câmara, sem qualquer interferência estranha, ficando desta maneira, repelida a maliciosa afirmação contida em a notícia do jornal santanense “A Platéia”. (GAZETA DE ALEGRETE, 14/1/1966 p. 1) À guisa de conclusão, o presente texto permite inferirmos sobre algumas questões. Em primeiro lugar, nas alianças estabelecidas entre o regime e as elites políticas locais, que representariam a ARENA a partir de 1966, mas que formavam a UPPA até o ano do caso analisado. Logicamente, o regime reprimiu grupos e pessoas que mantinham alguma relação militante e/ou atividades de esquerda em Alegrete. Por outro lado, talvez por causa da vida mais pacata tida em localidades interioranas ou valendo-se do conservadorismo dessas sociedades, não foi preciso a generalização da violência, tal como a ocorrida nos grandes centros urbanos. No entanto, a questão levantada acerca das alianças

25

Idem. Idem. 27 Idem. 26

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estabelecidas e das formas de legitimidade elaborada pelo regime permite outra perspectiva de estudo sobre os “anos de chumbo”, entre 1964 e 1985. Nesse sentido, observamos que a articulação ocorrida na Câmara, que teve a participação direta do Coronel João Carlos Rodrigues Beltrão, por ser o comandante da Guarnição Militar de Alegrete em 1965, se deu pela força tida pela oposição ao regime em Alegrete. O prefeito elegera-se pelo PTB, e, junto com as principais lideranças do partido, manteve fidelidade quando das transições para a “situação” e esta para o MDB entre 1965 e 1966. Diferentemente do que fizera em Uruguaiana e Santana do Livramento, ao depor os seus respectivos prefeitos, ambos do PTB, através da justificativa legal de serem áreas de fronteira internacional, o regime não cassou o chefe do Executivo alegretense. Isso porque, certamente, as consequências seriam negativas caso interferisse na prefeitura. Com base nisso, a intervenção se direcionou ao Legislativo, visando inicialmente reverter à desvantagem numérica obtida no pleito de 1963, no qual a UPPA/ARENA elegeu cinco vereadores contra seis petebistas. Portanto, a aliança entre o regime e as elites políticas assim se estabeleceu: do ponto de vista do regime, o interesse era enfraquecer a sua oposição, de modo que não abalasse a sua própria imagem frente à opinião pública alegretense, significativamente condicionada pelas notícias da imprensa local, em especial às vinculadas do jornal Gazeta de Alegrete. Do ponto de vista da UPPA, representada pelas elites ligadas ao agronegócio, sobretudo à pecuária e o cultivo de arroz, o interesse era obter poder político, a iniciar-se pela reversão do controle legislativo. E o cargo de presidente da Câmara era importante para as votações de projetos e na pressão sobre o Executivo. Não obstante, durante o ano de 1966, os agora vereadores da ARENA criaram uma Resolução que teve por objetivo cassar o vereador emedebista Gustavo Perfeito, para desestabilizar ainda mais a bancada oposicionista. 28 Posteriormente, após nova derrota sofrida em 1968 no pleito municipal, foi tentado o impeachment do prefeito Arnaldo Paz, do MDB, em 1970. REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2005. AMARAL. Ainton Pacheco do: depoimento [nov. 2014]. Entrevista concedida a Diego Garcia Braga. AVELAR, Lúcia; Cintra, Antônio Octávio (Orgs.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer; São Paulo: UNESP, p. 243-255, 2007. BERSTEIN, Serge. Os Partidos. In: RÉMOND, René. (Org.). Por Uma História Política. 2ª Edição. Rio de Janeiro: FGV, 2003. BODEA, Miguel. Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992. BRANDOLT, Gilberto: depoimento [dez. 2014]. Entrevista concedida a Diego Garcia Braga. COSTA, Célia; GAGLIARDI, Juliana. Lysâneas, um autêntico do MDB. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 37, p. 201-212, jan./jun., 2006. DREIFUSS, René Armand. 1964. A conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. FARACO, Adão Dornelles: depoimento [ago. 2010]. Entrevista concedida a Diego Garcia Braga. FÉLIX, Luiz Carlos: depoimento [fev. 2013]. Entrevista concedida a Diego Garcia Braga. FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista brasileira de História. São Paulo, v. 24, n 47, p. 29-60, 2004. FLEISCHER, David V.. (Org.). Os partidos Políticos no Brasil. Volume I e II. Brasília: UnB, 1981.

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O projeto de cassação foi negado por cinco votos a três. ALEGRETE. Câmara Municipal, 26/10/1966.

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GRINBERG, Lucia. Partido Político ou Bode Expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1965 – 1979. Rio de Janeiro: Mauad x, 2009. JACOBINA, André Teixeira. Clivagens Partidárias: ARENA e MDB baianos em tempos de distensão (1974 – 1979). Salvador: UFBA, 2010. Dissertação de Mestrado. LAMOUNIER, Bolívar; MENEGUELLO, Raquel. Partidos Políticos e consolidação democrática. São Paulo: Brasiliense, 1986. KINZO, Maria D´Alva Gil. Oposição e Autoritarismo. São Paulo: Idesp/Vértice, 1988. MADEIRA, Rafael Machado. ARENA ou ARENAs? A Coesão Partidária da Legenda do Regime em Três Estados Brasileiros. Porto Alegre: UFRGS, 2002. Dissertação de Mestrado. MENESES, Eleú: depoimento [nov. 2014]. Entrevista concedida a Diego Garcia Braga. RÉMOND, René. (Org.). Por Uma História Política. 2ª Edição. Rio de Janeiro: FGV, 2003. ROSSO, Claudio: depoimento [dez. 2014]. Entrevista concedida a Diego Garcia Braga. TRINDADE, Hélgio; NOLL, Maria Izabel. Rio Grande do Sul: Partidos e Eleições (1823 – 1990). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/ Sulina, 1991. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 2 PODER, INSTITUIÇÕES E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

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A POLÍCIA POLÍTICA NO BRASIL: DA DITADURA DE VARGAS À ABERTURA DEMOCRÁTICA EM 1946 ... 59 APONTAMENTOS DE GRAMSCI PARA A COMPREENSÃO DA IMPRENSA: A ATUAÇÃO DO JORNAL CORREIO DO POVO NA DEPOSIÇÃO DE JOÃO GOULART ...................................................................... 67 AS OPOSIÇÕES POLÍTICO-PARTIDÁRIAS NO RIO GRANDE DO SUL: DISSIDÊNCIAS E MOBILIZAÇÕES NA FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DA ALIANÇA LIBERTADORA (1924-1928) ...................................................... 75 COMO SE FAZ UM PRESIDENTE, UMA VISÃO BRASILIANISTA SOBRE A CAMPANHA DE JK .................. 85 DESTA VEZ TRAGO NOTÍCIAS DO LADO ESPANHOL: COMUNICAÇÃO POLÍTICA E ESPIONAGEM NOS DOMÍNIOS IBÉRICOS NA AMÉRICA, SÉCULO XIX .................................................................................. 91 ENTRE A OBRA E O AUTOR: JORGE AMADO, AS ELITES BAIANA E O PODER ........................................ 99 INTELECTUAIS EM REDE PARA A CONSTRUÇÃO DE CONSENSO PRÓ-AMERICANISTA NA AMÉRICA LATINA: UMA HIPÓTESE DE PESQUISA ............................................................................................... 107 MEIOS DE COMUNICAÇÃO, POLÍTICA E PODER: UM BREVE ESTUDO DE CASO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A REVISTA VEJA E O GOVERNO CHÁVEZ ............................................................................................. 117 MICROANÁLISE E AÇÃO SOCIAL: LIDERANÇAS POLÍTICAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA (18891903) .................................................................................................................................................. 125 NACIONALISMO E GÊNERO NA HISTÓRIA DA LITERATURA FRANCESA OITOCENTISTA ...................... 133 O PAN-AMERICANISMO E AS REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DO BRASIL NO IHGB DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930) .................................................................................................... 141

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A POLÍCIA POLÍTICA NO BRASIL: DA DITADURA DE VARGAS À ABERTURA DEMOCRÁTICA EM 1946 Estela Carvalho Benevenuto 1 AUTORITARISMO NO BRASIL DE VARGAS: A ESTRUTURAÇÃO DE UM ESTADO As ditaduras totalitárias começam a tomar forma após a primeira guerra mundial. A União Soviética de Stalin e a Alemanha nazista de Hitler caracterizam esse regime. Para Hannah Arendt (1978), a União Soviética foi o único Estado Contemporâneo que viveu a realidade totalitária por completo, pois a derrota para os aliados desfez os planos de Hitler em relação à completa edificação desse regime. Todavia essa realidade se fez sentir na Alemanha nazista, atingindo muitos dos seus objetivos. Para autores como Francisco Falcon (1991) o totalitarismo é um conceito sempre ligado ao nacional-socialismo e ao socialismo soviético: ele justifica essas comparações dizendo que o conceito de totalitário surge historicamente unido ao fascismo italiano. Seguindo uma análise semelhante, encontramos em Franz Neumann (1969) estudos na mesma direção. Para esse autor a ditadura é “O governo de uma pessoa ou de um grupo de pessoas que se arrogam ao poder e o monopolizam exercendo-o sem restrições (1969). Neumann distingue três tipos de ditadura. A primeira é a ditadura simples, onde o poder é monopolizado pelo ditador, por meio de um controle absoluto de setores básicos da sociedade (polícia, exército, burocracia e judiciário). A segunda é a ditadura cesarista, a qual recorre ao apoio popular para a sua ascensão ao poder e exercício do mesmo. Por fim, há a ditadura totalitária, que exige o controle da educação, dos meios de comunicação e das instituições econômicas, e assim atrelam a sociedade e a vida privada do cidadão ao sistema de dominação política. Neumann ressalta que não se pode confundir ditadura cesarista com totalitária, pois ditadura totalitária só ocorre após a Primeira Guerra mundial. Dessa maneira, o totalitarismo busca elementos do cesarismo, mas o mesmo não ocorre com a ditadura cesarista. Alguns fatores que levam ao totalitarismo são apontados por Neumann, estão presentes na realidade do pós-30 também no Brasil. A transição de um Estado baseado no governo de direito para um Estado policial, onde este Estado tem o direito de coagir o cidadão. A transição da difusão de poder nos Estados liberais para a concentração do mesmo no regime totalitário, ou seja, passa a existir um partido estatal monopolista 2. Esse partido tem as seguintes funções: 1) a transição dos controles sociais que passam de pluralistas para totalitários. Dessa forma, a sociedade deixa de ser distinta para ser infiltrada pelo Estado. 2) Nessa lógica, desenvolvem-se técnicas para o controle da sociedade, como a sincronização de todas as organizações sociais, a imposição de organizações de massa, a transformação da cultura em propaganda. Esse estudo, desenvolvido por Neumann, parece adequar-se à realidade estado-novista, porém outros elementos fazem do pós-30 um regime autoritário e totalitário: a busca de inimigos objetivos, a mitificação do poder em relação as massas, a propaganda, a doutrinação, a ideia de terror e a organização burocrática, jurídica e policial.

1

Estela Carvalho Benevenuto licenciada e bacharel em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutoranda em História na Unisinos. Professora pública da rede municipal de Porto Alegre de ensino fundamental. 2 No Estado Novo não havia um partido único, mas os grupos políticos que se reuniram em torno do poder de Vargas, desempenharam este papel.

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O totalitarismo é a centralização do poder. É o processo de coerção e coesão 3, onde a propaganda doutrinária torna-se um recurso primoroso e essencial. Nessa realidade, o Estado, “como um produto da sociedade enquanto Espírito subjetivo torna-se objetivo(...), é a ideia política por excelência (CHAUÍ, 1980, p. 46)” que deve absorver os anseios da massa. O autoritarismo é uma experiência política anterior ao totalitarismo, e acompanha a formação do Estado Contemporâneo brasileiro 4 , a formação política dos homens que faziam parte das elites governamentais brasileiras, carregadas da doutrina positivista comtiana, faz-se presente nos atores principais da revolução de 30. Sabe-se que o autoritarismo é a concentração de poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um órgão ou grupo político. Como conceitua Bobbio: “(...) o autoritarismo é uma manifestação degenerativa da autoridade. Ela é uma imposição de obediência e prescinde em grande parte do consenso dos súditos, oprimindo sua liberdade (BOBBIO, 1986, p. 94).” Para que esse mesmo projeto autoritário se desenvolva, é necessário que o mesmo encontre uma situação política, econômica e social que esteja de acordo com os anseios de quem articula este Estado. No pós-30, o contexto de crescimento urbano e a modernização emergente serão argumentos utilizados para o desenvolvimento do regime autoritário. Autores como Gabriel Almond (1972) ressaltam a realidade autoritária como forma de modernização em países pré-capitalistas. Ele enquadra o Brasil nessa perspectiva, e alguns pontos acentuados por ele se fizeram presentes no Estado Novo, pois a edificação do Estado autoritário brasileiro utilizou-se dos meios de comunicação como forma de disseminar seu discurso e manter-se no poder. As ideologias autoritárias buscam uma ordem comum a toda a sociedade, transformando-a de acordo com os interesses de uma “minoria” que detém o poder. Nessa conceituação de autoritarismo, o totalitarismo enquadra-se harmonicamente às ideologias totalitárias que, comparadas ao autoritarismo, demonstram ser mais cruéis e persuasivas, pois o autoritarismo tem como base a autoridade, e busca obsessivamente uma ordem hierárquica (ALMOND & POWEL, 1972) que oriente as estruturas sociais de acordo com a sua ideologia. Em busca desse objetivo são utilizados meios coercitivos. No entanto, isso pode ocorrer em um breve espaço de tempo, o tempo necessário para a edificação do projeto autoritário. No totalitarismo definido por Hannah Arendt, a edificação autoritária é diária e deve estar presente no cotidiano do cidadão. Ele deve ingerir a ideologia totalitária vinte e quatro horas por dia. Para Bobbio, o autoritarismo e totalitarismo são sempre oposição à democracia, e ambos os regimes têm seus termômetros no nível de autonomia das instituições estatais e subsistemas políticos. Nos sistemas autoritários, a penetração e mobilização da sociedade é limitada entre Estado e Sociedade, permanece entre ambos uma linha de fronteira muito precisa. Realidade que nos regimes totalitários procura ser eliminada, ao passo que o Estado consolida o seu poder. A violência e o terror tornam-se um aparelho repressivo de importância vital para a manutenção do projeto. Para Juan Linz: Os regimes autoritários são sistemas políticos com pluralismo político limitado e não responsável; sem uma ideologia elaborada e propulsiva (...) Sem uma mobilização política intensa e vasta (...) e onde um chefe, ou até um pequeno grupo, exerce o poder (BOBBIO, 1986, p.101).

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DICIONÁRIO enciclopédico brasileiro ilustrado. Porto alegre, Globo. Entende-se por coerção “ação ou efeito de coagir. Direito ou poder de coagir, reprimir”. P.436. E coesão “Fato que consiste em se manterem unidos e interdependentes todos os elementos e fatores da vida em sociedade. Força que produz essa união”. P. 437. 4 Entende-se por Estado Contemporâneo, os anos que antecederam a Proclamação da República no Brasil.

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Estas seriam as diferenças clássicas do totalitarismo, que por seu turno organiza-se de forma compacta. Segundo a definição de Arendt: O totalitarismo é uma forma de domínio radicalmente nova porque não se limita a destruir as capacidades políticas do homem, isolando-os em relação a vida pública. (...) mas tende a destruir os próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações privadas do homem. (ARENDT, 1978, p. 796). Desta maneira, conclui-se que o autoritarismo estado-novista tem em suas bases um perfil totalitário, e nesse contexto autoritarismo e totalitarismo se confundem a favor da nação. Para outros autores. “Num sistema de totalitarismo descentralizado, ou popular, a autoridade do governo central exerce um controle menor do que a própria repressão mútua e espontânea” (MOORE, 1972, p.35). O autoritarismo é a base política e ideológica para a edificação de um Estado totalitário, e existe uma fusão de objetivos que fazem autoritarismo e totalitarismo utilizem a instituição policial como aparelho repressor ideal. A partir desse contexto surge o discurso ideológico, o qual fará todo o trabalho de engendramento da sociedade. Como ressalta Marílena Chauí: O discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique o pensamento, linguagem e realidade para através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante (CHAUÍ, 1993, p.3). O discurso estatal varguista encontrou seus inimigos mesmo antes de tornar-se uma experiência consolidada no poder, os indesejados sociais revestem-se principalmente na figura dos comunistas, os grandes opositores da construção da nacionalidade. A nação, de acordo com os estudos de Bobbio, “é a ideologia de um tipo de Estado” (BOBBIO, 1978, p.798). É a meta buscada para a transformação da sociedade de então. A modernização através da industrialização é um dos objetivos a serem alcançados. Sendo assim, é necessário “transformar” a imagem do homem brasileiro, e a construção da nacionalidade é um dos fatores essenciais para atingir tal fim. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL NO BRASIL: DA DITADURA À DEMOCRACIA, UM CASO DE POLÍCIA. Com a decretação do Estado Novo, todas as polícias que já estavam em processo de mudança sentiram a presença do novo governo. Dessa forma, foram “unificadas” e atreladas ao mando da polícia civil do Distrito Federal, a qual estava ligada diretamente ao Presidente Vargas. Como diz Cancelli: O papel da polícia do Distrito Federal, como braço armado da ditadura instalada por Vargas, fazia parte de uma teia montada pelo regime, em que poderes entravam, mas onde tendia a vencer sempre o sustentáculo do exercício do poder: a polícia, suas perseguições, maquinações e terror (CANCELLI, 1993, p.51). Todo esse arranjo político tinha um objetivo, ou seja, o de consolidar um projeto político autoritário, e sem a polícia esse projeto teria mais dificuldades para estruturar-se. A polícia política tem seu embrião na capital federal de então, o Rio de Janeiro, “(...) Surgindo, formalmente, em 1933 com a criação (...) da delegacia Especial de Segurança Política e Social (D.E.S.P.S) a qual encarregou-se dos chamados crimes políticos e sociais (XAVIER, 1996, p. 36).” Com a decretação do Estado Novo e essa mesma polícia terá alguns retoques, para atender ao projeto político. Como ressalta Epitácio Torres:

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O Estado Novo, para firmar-se e impor o regime discricionário, precisava criar uma polícia especial, a polícia política. Assim, inspirada no modelo nazista, a 10 de novembro de 1937, deu-se caráter especial ao departamento que passou a denominar-se Serviço de Divulgação (TORRES, 1979, p.68). E dessa forma concretiza-se o D.O.P.S. (Departamento de Ordem Política e Social). Em suas atribuições destacam-se: “A prevenção e repressão dos crimes e atividades que atentem contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado e a Ordem social” 5. O DOPS compunha-se de quatro setores básicos e interligados. O serviço de Investigação S1, ao qual competia proceder sindicâncias sobre todos os assuntos da alçada do DOPS; esse mesmo setor seria composto dos seguintes órgão: Fiscalização Trabalhista (St-1); Atividades de Estrangeiros (st-2); Ordem pública (st-3) e Serviços Especiais (st-4). Esses subsetores acabavam desenvolvendo o trabalho de investigação preventiva, buscando material, e entregando os mesmos a outros setores, na escala hierárquica da polícia política 6. Esses homens tinham a função de informar todos os seus passos ao delegado, para que ele os repassassem ao Chefe de Polícia. Ao Serviço de Informações S-2 competia a execução, fiscalização e controle de todas as atividades burocráticas. O Serviço Secreto, denominado S-S, competia centralizar os serviços de informações de caráter secreto colhido por elementos de seu quadro e por outras fontes utilizadas pela polícia. Este setor era de responsabilidade direta do Delegado e do Chefe de Polícia, só recebendo instruções destes homens, e somente sob suas ordens poderiam fornecer informações de outras pessoas. A organização policial, que se efetuou com a decretação do Estado Novo, permite afirmar que os objetivos buscados com a revolução de 30- e que no decorrer dessa década vão tomando forma, concretizam-se na ação do DOPS – é a polícia política um dos elementos que torna o regime autoritário de Vargas uma realidade. Novos decretos são criados, e o que se vislumbra e concretiza-se é uma cultura policial que procura unificar-se para o bem da nação. O decreto 6880 foi instituído em 7/12/37 e revogava o decreto número 11, de 4/1/1886, pelo qual a polícia do estado era dividida em administrativa e judiciária. O decreto implantado em 7/12/1937, traz mudanças, pois extinguia-se a dicotomia policial. O argumento utilizado é de que a antiga lei não correspondia à nova realidade vivida no país, e em especial as policias civis estaduais. Os serviços policias passariam a compor-se de repartição central policial, auxiliada pela diretoria desta repartição, com 3 seções. Na delegacia de costumes não haveria grandes modificações, ela continuaria com o trabalho relacionado ao meretrício e repressão ao proxenetismo, censura teatral e cinematográfica, fiscalização desportiva e em geral diversões públicas (BENEVENUTO, 1997, p. 104). Além dessas tarefas, a polícia de costumes 7 deveria ainda fiscalizar publicações obscenas e nocivas, e ainda vigiar casas de Belquior, de brique-brique e de penhores.

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APRJ (Arquivo público do Rio de Janeiro), arquivo DOPS, setor administração, pasta 1. Na organização policial da época, o delegado e o chefe de polícia têm a mesma importância de um governador de Estado, todavia esse poder cessava frente ao chefe maior, Filinto Muller. Assim sendo, tudo deveria chegar até ele, e depois Getúlio Vargas. Ver APRJ, arquivo DOPS, setor administrativo. Elizabeth Cancelli, em sua obra já citada, ressalta o poder de Filinto Muller nesse período. 7 A delegacia de costumes era responsável por crimes de ordem moral. No Rio Grande do Sul, atuou de forma conjunta com o DOPS, após sua criação em 1937, sendo extinta somente em 1986, quando este departamento também é fechado no Rio Grande do Sul. Sobre este tema ver: BENEVENUTO, Estela Carvalho. A Polícia 6

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O DOPS vem substituir as funções que a Delegacia de Costumes efetivava até a instalação do Estado Novo. Se, anterior a isso, os inimigos da sociedade e Estado eram os desajustados sociais (prostitutas, bêbados, desordeiros de toda espécie e comunistas), agora o quadro recebe novos atores. Além, dos já citados, têm-se os opositores à construção da nacionalidade, encarnados principalmente na figura dos imigrantes alemães, italianos, e asiáticos e seus descendentes 8. O regime autoritário instaurado no Brasil em 1937, a partir da institucionalização de uma polícia política pode legitimar muitas de suas perseguições e ações calcadas em uma cultura de violência representada pela instituição policial. Para autores como José Murilo de Carvalho, “o Estado Democrático de 1946 a 1964, permanece com o perfil ditatorial, elitista e burguês que marcou o período Getulista, tal argumento é reforçado pela ilegalidade imposta ao PCB no governo de Eurico Gaspar Dutra e o cerceamento do movimento operário pelo aparato policial (CARVALHO, 2004, p. 127)”. Reduzindo o debate historiográfico a está lógica, tivemos então a sociedade brasileira assistindo a uma sucessão de governos sendo mera espectadora destes processos históricos. Como discute Claude Lefort (1991, p. 37 a 62), a democracia tem que ser “ampliada e inventada”. Ela não resulta de demandas da própria sociedade, de seus conflitos e contradições, inventando e reinventando suas práticas e instituições. Trata-se de entender a democracia como uma exigência popular, como prática sociopolítica que se expressa em todos os setores da sociedade e em inclusive em instituições estatais, como a polícia. Para Claude Lefort (1987), O Estado democrático de direito faz o contraponto com o Estado Totalitário, para ele o Totalitarismo não é um regime, mas uma forma de sociedade que prevalece sempre uma verdade absoluta, seja do saber, da ciência. E faz com que, Estado e Sociedade (leia povo) construam uma simbiose capaz de legitimar este Estado Autoritário. Já a democracia, implica em reconhecer a existência de múltiplas “falas”, inclusive dentro do próprio Estado. Para Lefort (1987), a condição indissociável e geradora do debate democrático é a existência plena de liberdades civis e políticas. Para ele, sem as liberdades democráticas, não é possível existir democracia, pois é esta experiência que garante condições de reivindicações, protesto e demanda de reconhecimento de direitos econômicos e culturais. No Estado Democrático que se instala no Brasil a partir de 1946, vivenciamos a democracia, assim como assinala Lefort (1991, p.42), no momento que experenciamos “a ampliação dos direitos políticos dos cidadãos, a nacionalização dos partidos políticos e um rápido processo de urbanização que emancipou politicamente amplos contingentes da população”. E a segurança pública, corporificada na instituição policial está presente nesta democracia, já que o poder de polícia não está somente centralizado na coerção e repressão. O funcionamento do Estado Democrático depende de um sistema legal que preserve as liberdades e as garantias políticas, proteja os direitos civis de toda a população, tenha redes de responsabilidade e mecanismos de fiscalização e punição dos agentes do Estado que cometem ilegalidades no exercício da função (BATTIBUGLI, 2006) Assim, em um sistema democrático é complexo reduzir a função policial a funções meramente repressoras.

Política e a Revista Vida Policial: uma face do Estado Novo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, PUCRS, 1997, Cap. 4. 8 BENEVENUTO, 1997, cap. 4.2.2 e 4.2.3. Neste capítulo há uma vasta documentação primária que apresenta as estratégias e ações do DOPS do Rio Grande do Sul, a partir de 1942, em torno destas populações e suas ligações com os países de origem.

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A democracia que se inicia em 1946 no Brasil tem a necessidade de dar continuidade a um projeto desenvolvimentista econômico e social. Respeitando alguns elementos que são a base de um sistema democrático. A instituição policial que é legitima em um estado, é parte integrante da burocracia estatal “organização complexa responsável por administrar a esfera pública, estruturada na autoridade racional e hierarquizada, na formalidade nas relações entre os cargos… (BATTIBUGLI, 2006, p. 7)” faz parte de todo este contexto. Desta forma, a polícia deverá ser precisa em suas ações dentro do limite da legalidade e, se necessário utilizar de violência para manter à ordem. Resolver de forma rápida e precisa situações emergenciais e muitas vezes inesperadas. Todavia, pode-se questionar se em todos os momentos a corporação policial mantem e manteve, está postura “legal” em suas ações. A própria natureza do trabalho faz com que em muitos momentos essa ação ocorra de forma discricionária junto a população civil, e é comum o medo da sociedade em relação a atuação policial. A polícia como agente do Estado reflete, até certo ponto, em suas ações, as diretrizes governamentais, ainda que tenha relativa margem de autonomia para estruturar e realizar tarefas de policiamento. A polícia é, portanto, uma instituição chave para avaliar a efetividade dos valores democráticos de um país, de seu governo e de sua sociedade (BATTIBUGLI, 2006, p. 10). A instituição policial por ser complexa não pode ser reduzida a um simples aparelho repressor do Estado, algo que foi criado pelas elites governamentais para reprimir, vigiar e manter a ordem. Hoje, diferentes estudos sobre o tema demonstram que a corporação desenvolveu em muitos momentos históricos uma “autonomia” em relação ao Estado (governo) que ela representa. Há uma certa independência em suas ações, assim como, uma certa distância entre os que os agentes policiais fazem e o que é esperado na lei, suas chefias e a realidade vivida. Soma-se o discurso que é função da polícia “proteger o cidadão”. Para Marcos Bretas, [...]os estudos de história da polícia dividem-se entre aqueles que analisam as práticas da instituição tomada como um todo (partindo de perguntas como: o que é a polícia? O que ela faz?), e aqueles, mais recentes, que entendem que é necessário investiga-la a partir das práticas de seus agentes (deslocando as perguntas para as questões do tipo: quem são os policiais? Como eles atuam no dia-a-dia? (BRETAS, 1997, p. 14). Como argumenta Cláudia Mauch: Rompendo com as histórias institucionais tradicionais, os estudos produzidos a partir dos anos de 1960 e 1970 foram fundamentais para a definição de um campo de pesquisas que avançou no entendimento das especificidades dessa instituição em relação a outras que surgiram no mesmo contexto histórico no ocidente (MAUCH, 2011, p. 16 e 17). Entender e analisar a polícia política em um Estado Democrático, delineando seus conflitos e contradições também é entender o contexto da estruturação democrática no Brasil. A ação policial tornase mais “representativa” do que “ativa”, isto significa, que a violência física voluntária torna-se bem mais rechaçada pela população e denunciada pela mesma, porém a idealização da violência e os fatores e pessoas responsáveis por desordens sociais que podem fazer surgir à violência, tornam-se o discurso do Estado e da Instituição policial. Desta forma,

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(...) A polícia está para o governo, assim como a lâmina está para a faca. O caráter do governo e a ação policial são virtualmente indistinguíveis. O governo é reconhecido como autoridade quando a sua polícia é repressora e como democrático quando sua polícia é democrática (RUDINICK, 2011, p. 128). Se durante o governo autoritário de Vargas, a polícia foi utilizada como um instrumento de afirmação do poder político do presidente e seus aliados, e inúmeras ilegalidades foram cometidas, como torturas e prisões sem o devido processo legal. A partir de 1946, procura-se amenizar tais atuações repressivas, porém, ainda a sociedade brasileira era cerceada de muitos dos seus direitos. O voto ainda era um privilégio de 50% da população, pois o restante enquadrava-se como analfabetos ou estavam localizados em áreas rurais, o direito de greve também era proibido, em lei promulgada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra 9, “a qual permaneceu válida durante o sistema democrático e a política de Dutra congregava a repressão sindical à contenção de salários (BATTIBUGLI, 2006, p. 17)”. Seja em governos autoritários ou democráticos, a instituição policial, e seus departamentos especiais, fazem parte da estruturação do Estado Moderno Contemporâneo, assumem um papel de controle social relevante e se tornam em muitos momentos o reflexo do governo e suas ações. Não se pode perceber tal instituição como mera controladora e executora das ações repressivas do Estado, mas a instituição que tem por finalidade manter a ordem e a coesão social e, para tanto, se for necessário utilizará de todos os recursos para atingir este fim. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMOND, Gabriel & POWEL, Jr. Uma teoria de política comparada. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1972. ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Lisboa: Dom Quixote, 1978. BATTIBUGLI. Democracia e segurança pública em São Paulo (1946-1964). PPG Sociologia – Núcleo de Estudos da Violência USP, São Paulo, 2006. BENEVENUTO, Estela Carvalho. A Polícia Política e a Revista Vida Policial: uma face do Estado Novo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, PUCRS, 1997, BRETAS, Luiz Marcos. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. Brasília: ed. UNB, 1993. CARVALHO, José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004. CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Ed. Cortez, 1993. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980. DICIONÁRIO enciclopédico brasileiro ilustrado. Porto alegre, Globo FALCON, Francisco J. Calazans. Fascismo: autoritarismo e totalitarismo. In: O feixe: o autoritarismo como questão teórica e historiográfica. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1991. LEFORT, Claude. Os direitos do homem e o Estado-Providência, In: Pensando o político: Ensaios sobre Democracia, Revolução e Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. LEFORT, Claude. A invenção democrática: Os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987

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Decreto-lei n 9070

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APONTAMENTOS DE GRAMSCI PARA A COMPREENSÃO DA IMPRENSA: A ATUAÇÃO DO JORNAL CORREIO DO POVO NA DEPOSIÇÃO DE JOÃO GOULART Camila de Almeida Silva 1 DITADURA CIVIL-MILITAR O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 se constitui como um processo histórico complexo, que representou e ainda representa em nossa sociedade um marco de mudanças estruturais. Se faz presente a necessidade de não apenas conhecer sua história, mas também, problematizar algumas questões oriundas de intepretações que não raras vezes simplificam o processo que culminou em um golpe. Como a interpretação defendida por parte da historiografia de que se tratou de um contragolpe frente as investidas comunistas do então presidente João Goulart. Não podemos negar é claro, que a conjuntura política, econômica e social do momento não fosse propicia para manifestações e organizações mais profunda da classe trabalhadora. O mundo encontrava-se polarizado entre o Ocidente, representado pelos Estados Unidos e o Oriente representado pela União Soviética. Nesse sentido, o que estava em disputa era qual ideologia mais se disseminaria e ditaria os rumos da política internacional 2. No Brasil, conforme Maria Helena Moreira Alves (1984), com a crescente penetração do capital internacional, juntamente com ao capital multinacional e nacional associado criou-se uma dependência no funcionamento deste tripé, visto que, permanecer em desenvolvimento era vital, para afastar o perigo comunista. No intuito de garantir a hegemonia do modelo capitalista na América Latina, foram estabelecidas algumas medidas, como a criação da Doutrina de Segurança Nacional 3, que buscava garantir tal desenvolvimento. No entanto, o capital multinacional e associado mesmo atingindo uma supremacia nos anos 50 e 60 não conseguiu inserir-se no poder através dos mecanismos “populistas”. Nesse sentido, foi necessário recorrer a meios extra constitucionais, visando à “conquista do Estado, isto é, buscar o exercício direto do poder nos altos cargos estatais, e não à influência indireta” (MORAES, 2012, p. 32). Esse é o caso de membros civis integrantes do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) que exerceram diversos cargos no governo de Castelo Branco. A atuação direta dos membros do complexo IPES/IBAD, é demonstrada na pesquisa do sociólogo René Dreifuss, tornando evidente que tal grupo estava “engajado em uma vasta campanha que procurava manipular a opinião pública e doutrinar as forçar sociais empresariais modelando esses interesses para uma classe ‘para si’” (DREIFUSS, 1981, p.281). Faz ver a existência de uma campanha cujo interesse era estabelecer consenso tanto intra, como extraclasse. Também a pesquisa de Thiago Moraes, consegue evidenciar esta perspectiva de disseminação do interesse entre classes. A partir da revista Democracia e Empresa, publicada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do Sul, o autor busca salientar, quais estratégias políticas foram utilizadas a fim de construir ideologicamente a defesa da democracia contra o comunismo no

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas – PPGH – UFPel. Email – [email protected] 2 A Doutrina Truman e o Plano Marshal também representam essa luta, com o objetivo de predominar o sistema capitalista, nesse sentido, corporificam a divisão da Europa e criam bases para a formação de blocos políticosmilitares, a partir disto, ficou marcada a ascensão dos norte-americanos na corrida para impor o seu sistema econômico ao mundo. 3 Segunda Maria Helena Moreira Alves a DSN é “um abrangente corpo teórico constituído de elementos ideológicos e diretrizes para a infiltração, coleta de informações e planejamento político-econômico de programas governamentais. Permite o estabelecimento e a avaliação dos componentes estruturais do Estado e fornece elementos para o desenvolvimento de metas e o planejamento administrativo de periódicos”.

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empresariado, na crença de que apenas através da modernização as empresas poderiam “contemplar as demandas sociais” (MORAES, 2012, p.17). IMPRENSA: O JORNAL CORREIO DO POVO ENQUANTO PARTIDO O objetivo desse artigo é apresentar a trajetória da Empresa Jornalística Caldas Júnior no Rio Grande do Sul, bem como evidenciar as principais discussões em torno das pesquisas com mídias, procurando destacar os cuidados necessários com a fonte e as transformações ocorridas a partir dos anos 80, que acarretaram em um aumento nas produções que utilizam como fonte de pesquisa os jornais. Nesse sentido, a antiga tendência em percebê-los como uma fonte secundária tem se tornado menos recorrente, colaborando assim para desmistificar os paradigmas da historiografia tradicional que os considera como fontes não confiáveis, pois, estariam envolvidos em subjetividades, tanto daqueles que o produziram, como do leitor/pesquisar. Segundo (LUCA, 2005, p. 112), os jornais podem ser entendidos como “‘enciclopédias do cotidiano’, registros fragmentários do presente”, por esse motivo foram considerados fontes de pesquisa inadequadas, pois, seus registros contêm fragmentos do presente, “realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões”. Porém, para os objetivos propostos nesta pesquisa, tais paixões e interesses não são vistos como meras distorções subjetivas e sim a partir das reflexões de Gramsci sobre jornais e revistas, como “meios para organizar e difundir determinado tipo de cultura” (GRAMSCI, 2014, p.33). Buscamos a história do Correio do Povo, com o objetivo de melhor compreender como ele se relaciona como a produção jornalística no decorrer dos anos. Fundado em 1895 por Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior, o Correio do Povo surge a partir da decadência do jornalismo de cunho políticopartidário. Que fez da imprensa um “agente orgânico da vida partidária” (RÜDIGER, 1993, p.28). A fundação de jornais pelos próprios partidos acabou criando uma concepção de que a natureza do jornalismo é fundamentalmente opinativa, que cabe a ele dirigir a opinião pública. Progressivamente esse novo modelo de jornalismo demonstrou que soube se aproveitar das transformações na estrutura econômica do país, do crescimento econômico e da expansão do público leitor. Associando-se a comerciantes, que e somariam forçar para formar um jornalismo independente como alternativa às novas necessidades da sociedade. Com um campo fértil para a sua atuação, Caldas Junior constrói seu jornal sempre vinculado a laços políticos, porém essa conexão se dá de uma forma bastante sutil em comparação com a antiga proposta de jornalismo. O Correio do Povo, buscou manter-se sempre de acordo com sua fundação, um “órgão sem nenhuma facção, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna” (RÜDIGER, 1993, p.64). Conforme Clarice Esperança, o Correio do Povo sempre cultivou uma “imagem de distanciamento das discussões políticas, mas não abria mão de sua influência, expressa ao longo do século XX” (ESPERANÇA, 2007, p.57-58). Manteve uma postura empresarial que podemos entender como essencial para o êxito do jornal, percebeu “que o caráter político do jornalismo não precisava ser explicito, que havia uma mutação em curso nas necessidades do público e no próprio espectro desse público, estabelecendo novos termos para a concorrência do mercado de jornais” (RÜDIGER, 1993, p.66). Em contraponto à percepção liberal de imprensa, bem como na crença em uma imprensa acima dos conflitos sociais, nesta pesquisa percebemos a imprensa como um agente partidário. Ela existe a fim de garantir ao bloco hegemônico não apenas o domínio a partir do controle repressivo - exercido pelo Estado, mas também fundamentalmente pela hegemonia cultural, exercida pelo conjunto de organismos privados, neste caso os meios de comunicação. Com Gramsci surgem discussões no campo político que nos auxiliam a perceber que “tanto nos regimes democráticos, onde existe uma relação equilibrada entre coerção e consenso, até as mais rudimentares ditaduras, nenhum regime político foi capaz de sobreviver sem o estabelecimento de bases sociais e elementos de hegemonia” (MELLO, ano XIII, p.33). Nesse sentido, hegemonia é “construção

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de mundo” (BRANDÃO, 2007, p.5), ou seja, são os meios para a elaboração e/ou manutenção de determinada ideologia que historicamente encontram-se em disputa. O autor sugere também que todo movimento político, que pretenda ser hegemônico, que considere formar uma nova consciência deve estabelecer críticas as ideologias anteriores. Diversas vezes serão apresentadas esta perspectiva nesta pesquisa, por exemplo, nos momentos em que o jornal Correio do Povo no ano de 1964 – ano da pesquisa – realiza críticas ao populismo, também quando apresenta uma preocupação em estabelecer críticas contundentes a João Goulart, em desconstruir sua imagem e transformar o caráter das Reformas de Base em demagogia. Essa leitura sobre o Correio do Povo entende que os meios de comunicação são “instrumentos de manipulação de interesses e de intervenção na vida social” (CAPELATTO, 1980. p. XIX). Embora o termo manipulação pareça maniqueísta, ele refere-se à necessidade de o bloco hegemônico manter-se dominante frente as outras classes, e esta dominação não ocorre apenas a partir do controle do aparelho repressivo do Estado. Em contraposição ao Estado a imprensa é “um aparelho privado de hegemonia” (SILVA, 2013 p. 147), ou seja, a imprensa possui um projeto carregado de valores intelectuais, políticos e culturais que estão aliados à manutenção do status quo. E esses valores que caracterizam a imprensa como um partido, parte de uma classe, isto é, da organização de determinada Classe. Tanto para Marx quanto para Gramsci, um tipo qualquer de associação que tomasse parte de alguma ação política consciente, de organização de “vontades coletivas”, dotada de um princípio político invocador de um projeto de sociedade, pode ser encarado como partido político (SANTOS, 2010, p. 30). Desta forma, o Correio do Povo enquanto partido é “um mecanismo que realiza na sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado”, é também “o modo próprio de elaborar sua categoria de intelectuais orgânicos” (GRAMSCI, 2014, p. 24). Os intelectuais “são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político” (GRAMSCI, 2014, p. 21). Eles se formam segundo processos históricos e em relação com o mundo produtivo, mediados pelo conjunto das superestruturas (ideologia, instituições, sistema de ideias), dos quais “os intelectuais são precisamente os funcionários” (GRAMSCI, 2014, p. 20). Como qualquer organização, seu objetivo é “elaborar os próprios componentes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como ‘econômico’ até transformá-lo em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integra, civil e política” (GRAMSCI, 2014, p. 24). Ou seja, mesmo que o indivíduo não tenha nascido no seio da classe hegemônica, ciclicamente se formam intelectuais que assumem essa visão de mundo. Sendo o Correio do Povo um partido, cabe perceber a sua capacidade de transpor seu programa com claros objetivos de classe, a um grupo que historicamente não possui os mesmos interesses. UM PROJETO ANTIPOPULISTA E O EMBATE A DEMAGOGIA POPULISTA Abordaremos alguns artigo e editoriais produzidos no ano de 1964, buscando relacionar as fontes elaboradas antes do golpe civil militar e com aquelas que se referem ao processo em que busca institucionalizar o golpe. Buscaremos construir um paralelo a fim de perceber como o jornal Correio do Povo se posicionou frente aos fatos. É possível perceber presente no Correio do Povo, na situação pré-golpe, principalmente no espaço de colaborações do ano de 1964 um forte apelo a uma contrarrevolução. Que seria desferida em contraposição a um golpe comunista, encabeçado por João Goulart e Brizola, e portanto, os militares deveriam cumprir seu dever histórico na defesa da segurança da nação. No dia 5 de abril de 1964 com o editorial intitulado “Esperança e realização” o periódico salienta a ideia da inaptidão política de João Goulart, bem como o caráter de suas reformas, que segundo o jornal eram inoperáveis. Sugere a falta de habilidade de Jango em conhecer a realidade, visto que, segundo o Correio do Povo “toda a América Latina é um cenário de problemas sociais graves, que

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exigem medidas corajosas... urge, contudo, que não se confundam reformas sérias com agitações demagógicas e tumultos subversivos”. Nesse sentido, tornou-se comum a associação de Jango à reformas demagógicas e a ênfase de que suas propostas se baseavam “em falsas soluções para uma problemática propositalmente oferecida como posto de agitações, para os quais se procuram as mais diferentes, estapafúrdias e contraditórias justificativas” (Correio do Povo, 01 de janeiro de 1964). Mesmo em uma perspectiva de neutralidade criaram recursos para melhor impor sua versão de mundo. Nesse intuito, observamos uma constante relação entre os problemas enfrentados na América Latina e no mundo, com os existentes no Brasil, deixando claro que estavam não só relacionados, mas possivelmente determinando a condição econômica, política e social do Brasil. De certa maneira o jornal apropria-se de conceitos já existentes e os redefine. No artigo abaixo, do dia 5 de abril de 1964 afirma, O país tem problemas de extrema gravidade e pode, agora, colocar homens experientes, honestos e capazes nos grandes postos da República. A Nação respira aliviada e confia em que haja raiado mesmo uma nova fase de concórdia e paz, fase de empreendimentos progressistas, fase de respeito à lei e à Constituinte, fase de responsabilidade, justiça e de verdade. (Correio do Povo, 5 de abril de 1964). No que tange a questão do respeito à Lei Constituinte que se faz presente no texto acima é uma transfiguração da legislação. Quando Jânio Quadros renúncia, a fim de retornar nos braços do povo a única saída encontrada para evitar o agravamento da situação política e social do país foi o regime parlamentar. Nesse sentido, figurou-se como uma saída, a fim de evitar uma possível radicalização frente a tentativa de golpe, - evitada com a Campanha da Legalidade. Ou seja, se configurou, portanto, em uma excepcionalidade e não um ato de respeito à Constituição. Joao Goulart foi também comumente associado a práticas subversivas. No dia 7 de abril de 1964 com o artigo de Gustavo Corção “um estranho serviço”, o autor faz uso extensivo de termos depreciativos e apelativos ao se referir a João Goulart. E em contraposição enaltecem as qualidades do povo brasileiro, criando assim uma observável oposição entre os dois polos. Como podemos perceber abaixo, Vejam esse infeliz demagogo multiplicou as subversões julgando que teria o povo com eles, como se o povo amasse subversões... Que povo que gosta de desrespeito e de subversão, o pobre tolo queria contar com o Exército e com a Marinha. (Correio do Povo, 5 de abril de 1964). Gustavo Corção na época um dos líderes do movimento leigo católico, e inúmeras vezes deixou claro a sua percepção, de que o caminho a ser seguido posteriormente ao golpe não era o de um regime constitucional, muito menos de liberalismo, evidenciava que a solução para a situação brasileira apenas seria a intervenção militar. A sua atuação ajuda-nos a compreender a atuação de intelectuais católicos na “legitimação das bases antidemocráticas da 'democracia' do regime militar” (PAULA, 2012). Nesse sentido, havia por parte de Corção uma confiança na natureza das coisas, apontado a “derrota” de Jango e de Brizola em retomar a ideia da Campanha da Legalidade. Outro recurso utilizado foi a sensibilização do público leitor e o apelo a racionalidade. Em suma, a aparição e a definição de subversão já estavam mais ou menos esclarecidas, e foi paulatinamente sendo construído no discurso do jornal. Ainda se tratando de analisar os textos de Gustavo Corção, em 4 de janeiro de 1964, em seu editorial “Agitações Presidenciais”, o autor desconstrói a Reforma Agrária, um dos pontos de defesa de Goulart dentro das reformas de base e afirma que “teremos a prova de que no fundo dessa questão de

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desapropriação, o que se pretende não é difundir a propriedade, e sim eliminá-la, ou fazê-la convergir para o estado totalitário” (Correio do Povo, 04 de janeiro de 1964). Essa forma de ver o mundo estava presente em grande parte do material analisado, percebe-se uma convergência das análises macros, ou seja, da economia e do mundo, para as análises micro, na qual definem os políticos e as ações. Nesse sentido, utilizando ou não a palavra em si, subversão, seu objetivo era adjetiva-la. Sendo que em boa parte dos textos, os subversivos eram, grosso modo, disseminadores do comunismo, anticristãos. Dentro desta perspectiva a “revolução” de 1964 possuía uma percepção positiva de contrarrevolução e a democracia nesse sentido, assume um significado diferente da democracia representativa e liberal, tornando-se um modo de vida de acordo com os valores dos editorialistas e do “dono” do jornal. Segundo de Paula, “a militância de Corção, qual seja: democracia válida somente para os 'bons' homens, ou seja, os vencedores. Aos vencidos o caminho seria o expurgo, as punições e os castigos” (PAULA, 2012, p. 3). Nesse sentido, no dia 10 de setembro de 1964, Corção no artigo “os democratas da última hora” tece críticas a intelectuais que agora “alegam o princípio da liberdade” (Correio do Povo. 10 de setembro de 1964). A partida da questão “como se explicará cabalmente a incoerência desses intelectuais que tão apaixonados hoje pela liberdade da cultura, e tão desdenhosos dela meses atrás?” A partir disso podemos perceber que a missão de Corção e outro editorialistas, não terminava com a deposição de João Goulart, era preciso dar sequência ao projeto e auxiliar a partir da definição de sentidos e dos rumos a serem seguidos pela sociedade brasileira. É importante destacar que por natureza os artigos e editorias pertencentes a seção de colaborações, são opinativos, que diversas vezes trazem perguntas e respostas bastante contundentes sobre o tema proposto. Espaço que apresenta a opinião do dono no jornal, onde está mais nítido a linha editorial que seguem. Nesse intuito, a questão exposta neste artigo é: “como vinha se caracterizando as celebrações da grande data mundial do Trabalho em nosso país?”. Reforçando as práticas adotadas antes do golpe, o autor responde, Um luxo revoltante e repulsivo de demagogia. A ípica demagogia do comunopopulismo. Do falso trabalhismo. Daquele que, grosseiramente iludia o trabalhador com fantásticos salários mínimos pagos com a moeda falsa da inflação e com as mirabolantes promessas de um “paraíso nacionalista”, no qual até o poder estatal seria generosamente presenteado ao operário e ao camponês, e ao soldado e ao marinheiro. (Correio do Povo, 01 de maio de 1964) É interessante, pois neste único parágrafo é possível tecer inúmeras considerações e retomar discussões que estão bastante presentes na historiografia do tema. A começar por perceber a presença real da ideia de demagogia nas realizações de João Goulart. A criação e reprodução dessa crença não está descolada da linha editorial do jornal Correio do Povo que tinha como editor chefe e diretor presidente, Breno Caldas, um detentor de terras e também defensor dos interesses dos latifundiários. Destacamos também a disseminação frequente do comunismo como barganha para conquistar a opinião dos leitores. Diante da polarização entre capitalistas e comunistas e a crença de que os dois blocos econômicos estavam à beira de um choque bélico real, os editorialistas utilizavam desse medo presente na cultura da época. A ação dos editorialistas não era única, um grande número de reportagens, muitas oriundas de agências internacionais, corroboravam com a crença. Com isso, a associação de comunismo às práticas populistas presente no governo de Jango estarão nas análises que aqui serão realizadas. Importante salientar, porém, que sendo João Goulart um continuador das políticas de Vargas, não impediu que este último seguidamente fosse lembrado, não necessariamente por seu nome, mas por suas realizações. Portanto, nota-se que existe uma linha muito tênue que aproxima e simultaneamente afasta os dois governantes. Vargas na percepção do jornal conseguiu “doutrinar” as massas de trabalhadores, concedendo uma gama de benefícios que “se haviam

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legitimamente se transmudado em dia de festa nacional, mercê de progressiva incorporação dos direitos sociais ao constitucionalismo e a legislação contemporânea” (Correio do Povo, 01 de maio de 1964). Segundo o Correio do Povo, João Goulart passou a “desvirtuar torpemente, a dignidade de uma universal evolução histórica” (Correio do Povo, 01 de maio de 1964), define que em seu mandato o “cenário era de violências e tropelias, num clima de intolerância e opressão” (Correio do Povo, 01 de maio de 1964). João Goulart, enquanto “discípulo” de Vargas, pretendia dar sequência à política populista de apoio das massas. Nesse sentido, se enquadraria como um governo populista reformista, no sentido de ser contrário ao imperialismo e ao latifúndio, mas sem romper com o capitalismo; e populista por acenar a favor das Reformas de Base por meio de um programa distributivo que necessitava do apoio dos trabalhadores. Destarte, salienta Weffort, em O populismo na política brasileira, que em dado momento do governo Goulart esse apoio ou manipulação das massas entrou em crise e portanto, gerando uma grande mobilização popular em um momento cuja taxa de crescimento, renda e emprego estavam em baixa. O artigo em questão enaltece uma ideia de um falso trabalhismo, e que João Goulart teria se afastado daquilo proposto na fundação do Partido dos Trabalhadores do Brasil. Contudo, podemos contrapor essa opinião, a partir dos discursos de Alberto Pasqualini, advogado e ideólogo, que teve suas ideias incorporadas no programa do PTD, nesse sentido afirma que seu objetivo, não é a socialização dos meios de produção, mas a criação de um capitalismo sadio no qual o fim social se sobreponha ao egoísmo, ao interesse e ao proveito exclusivamente individual; de uma capitalismo que compreenda o papel preponderante dos trabalhadores e que, em consequência não lhes recuse a parte dos proveitos que lhes cabe por justiça. (MOREIRA, 2014. p. 54) Este falso trabalhismo posto em questão pelo editorialista, tem em verdade uma relação com os primórdios do trabalhismo. Podemos afirmar, portanto, que o Correio do Povo busca mudar o que se entendia de trabalhismo até o presente. Ou seja, desviam as origens do PTB na luta por um capitalismo mais humano. Quando afirmam que o dia do trabalho havia se convertido em “demagogia do comunopopulismo e do falso trabalhismo” buscam estabelecer que os “méritos da Revolução de 1964” trazem a luz agora poderá ser “celebrado com dignidade e decoro, com sinceridade e respeito” (Correio do Povo, 01 de maio de 1964). Encerrando o editorial “1º de maio sem demagogia” o autor conclui que dadas as condições denunciadas, não havia como “continuar a haver razões para que se festejasse e festeje o 1º de maio como uma das datas maiores da Pátria e da Humanidade (onde) a sanha da demagogia lhes desnaturava e aviltava as comemorações, por obra do veneno das insinuações e até claros incitamentos à luta de classes”. O artigo do dia 3 de março de 1964, com o título Autoridade Moral de Lucidio Ramos, traz à tona possibilidades de reflexão muito amplas. A primeira delas é questão da Reforma Agrária. Como o título já demostra, o objetivo do texto é deixar evidente a ausência de moral do presidente João Goulart. O autor primeiramente usa da própria História para defender a “evolução social do homem”, afirmando que é inevitável e necessária. Assegura que, “desde Platão até Carl Marx” contraditória ideia tem inspirado pensadores a preconizar mudanças e os rumos da sociedade. Sem expressar preconceitos, cita a Rússia e evidencia sua preocupação com a produção agrícola, frente as dificuldades em oferecer atendimento razoável ao homem. Porém aponta que a Reforma Agrária propalada por Jango não atende as necessidades do Brasil, sendo que suas ações “convenientemente se desgarram pelas veredas da demagogia, pela inépcia e por conceitos e práticas inócuas e vazias” (Correio do Povo, 03 de março de 1964). Afirma também que, O espirito inescrupuloso de certos reformadores, julga, logo que é muito campo para uma só pessoa, e, em vez de pensarem em razão da maior e melhor produção de carne, arroz, feijão, trigo, milho etc. pensam sempre em maiores possibilidades de emprego aos afilhados, ou no aumento se seu prestigio eleitoral. ... devemos lembrar, no entanto, aos homens de bom senso deste

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país, que as linguagens dos reformistas, quanto ao “latifúndio”, não visa e nem tende a solucionar problemas básicos, mas representa apenas demagogia. (Correio do Povo, 3-3-1964) É importante destacar que a ideia de processo, evolução e da necessidade de reformas estruturais na sociedade está presente desde a crise de 1929, quando diversas medidas foram tomadas a fim de alavancar o processo de industrialização. Foi durante o governo de Jango que tais reformas apareceram de forma mais contundente, “algumas das propostas de Reformas de Base tramitavam no Congresso desde 1956”. Nesse sentido, o livro Reformas de Base: estudos e soluções brasileiras para os prementes problemas nacionais é de suma importância. Ele representa os interesses e as preocupações de classe antes do golpe. Seu autor, Paulo da Cruz Mattos é ligado ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), e demonstra que reformas estruturais já eram pensadas desde antes de João Goulart [...] temos produzido e ofertado, no espaço e no tempo, às várias autoridades federais, alentados anteprojetos condensadores de meios propícios, medidas seletivas, polarizastes de reais soluções estruturais, reguladoras, essenciais e indispensáveis ao efetivo equacionamento, implantação, corporificação das chamadas Reformas de Base, ora reclamadas e exigidas por toda a Nação. (MATTOS, apud, MOREIRA, 2014, p. 244) Ou seja, setores conservadores também percebiam a necessidade latente de realizarem reformas. Não era necessariamente o comunismo que setores da sociedade queriam expulsar – embora a polarização Oriente/Ocidente estivesse presente na sociedade – a intenção era desestabilizar o projeto trabalhista de João Goulart. Visto que, tal projeto consistiam em superar o abismo social e conforme o discurso proferido por João Goulart, “emancipar o povo brasileiro das peias institucionais que o aviltam, pois o mantém divididos em dois grupos que se extremam em contraste: um, o reduzido núcleo de privilegiados; outro, a imensa massa de deserdados”. Os ataques proferidos a Jango como um governante despreparado e inexperiente chocam-se com a realidade e o tempo de amadurecimento em que as Reformas de Base vinha se gestando. Em vista disso, o Correio do Povo, não nega a necessidade de reformas, porém, defende que, depois de uma Revolução, repetimos, que se fez para libertar o Brasil da anarquia, dos abusos e dos desvarios de um misto de populismo, sindicalismo e peleguismo, estimulado pelo caudilhismo e pelo cunhadismo, há que realizar muitas tarefas de complexidade e responsabilidade consideráveis, mas essenciais à consolidação do movimento saneador. (Correio do Povo, 5 de maio de 1964) É possível perceber o jornal Correio do Povo, como defensor de um projeto de nação desenvolvimentista associado-dependente, nos moldes do governo de Juscelino Kubistchek. Se entendemos as políticas populistas como estimulo a indústria nacional, proteção do trabalhador, nacionalismo e a presença de uma figura carismática, percebemos o Correio do Povo realizando a defesa de tudo que se opõe e esse paradigma. Contudo, os pontos levantados neste artigo não se apresentam no intuito de enquadrar ou julgar as ações do Correio do Povo como propositalmente distorcidas ou manipuladas. Mas sim, afastar a ideia a muito tempo veiculada de que este órgão e a imprensa de uma forma geral, apenas veicula informações livres de disputas ideológicas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa, 2050 – 3ºandar: Terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). 283 f. Dissertações em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006.

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AS OPOSIÇÕES POLÍTICO-PARTIDÁRIAS NO RIO GRANDE DO SUL: DISSIDÊNCIAS E MOBILIZAÇÕES NA FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DA ALIANÇA LIBERTADORA (1924-1928) Rodrigo Dal Forno 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A década de 1920 no Rio Grande do Sul tratou-se de um período de intensa articulação e mobilização dos grupos contrários à política hegemônica de Borges de Medeiros e do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) no poder estadual. O início dos anos de 1920 representou um momento de tentativa de unificação e organização entre os diferentes setores oposicionistas regionais através de uma sequência de episódios históricos que convulsionaram a política naquele momento. No ano de 1922 ocorreu o agrupamento apressado das oposições em torno da figura de Joaquim Francisco de Assis Brasil 2 com o objetivo de disputar as eleições para presidente do estado no final daquele ano. Após a derrota nas eleições, os mesmos grupos reuniram-se para trocar as urnas pelas armas e desafiar os adversários através da luta armada no episódio que ficou conhecido como “Revolução de 1923”. Com a pacificação do estado e o término da guerra civil em dezembro de 1923, os oposicionistas engajaramse na tentativa de, através da formação da Aliança Libertadora (janeiro de 1924) que posteriormente convertera-se em Partido Libertador (março de 1928), consolidar a união iniciada nos anos anteriores e construir um partido coeso e mobilizado para combater o predomínio do PRR. Cabe destacar que a conjuntura do início dos anos 1920 representou uma ocasião especial, em que após diversas tentativas frustradas de alinhamento entre as forças das oposições 3, foi enfim possível unir e mobilizar todos os oposicionistas para um enfrentamento coletivo contra Borges de Medeiros (TRINDADE, 1979, p.159163). Cabe destacar que a atuação das oposições político-partidárias rio-grandenses, tanto no plano estadual quanto nacional, durante os anos posteriores ao término da guerra civil de 1923 até a deflagração dos acontecimentos de 1930 foi muito pouco estudada pelos historiadores. Segundo afirma José Kieling (1984), se por sua vez a conjuntura de 1921-1923 recebeu importante atenção por parte da historiografia, o mesmo não pode ser dito sobre as fases seguintes deste mesmo processo político, que representa uma página em branco nos estudos históricos (KIELING, 1984, p.4) Diante destes aspectos, este texto 4 tem como objetivo analisar a trajetória dos grupos oposicionistas, especificamente no período que compreende o término da guerra civil até a formação efetiva do Partido Libertador (1924-1928), com o intuito de compreender as dissidências e mobilizações na trajetória dos chamados “libertadores” 5. Partindo da consideração de que o ano de 1924 representou

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Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) 2 Joaquim Francisco de Assis Brasil (1858-1938), republicano histórico, rompeu com o PRR em 1891. Em 1922 aceitou o convite das oposições para concorrer ao cargo de presidente do estado (FRANCO, 2010, p. 28-30). 3 Segundo Hélgio Trindade, as tentativas de aproximações das oposições em nível partidário ocorreram em dois momentos significativos. Primeiro, em 1897 através de uma tentativa frustrada de Silveira Martins em fundir o Partido Federalista com o Partido Republicano Liberal; e depois em 1907-1908, na cisão de Fernando Abbot com Borges de Medeiros, onde os dissidentes tentaram aproximar-se dos federalistas, mas foram repelidos pela facção vinculada a Antunes Maciel (TRINDADE, 1979, p.154) 4 As reflexões propostas neste ensaio estão vinculadas com minha pesquisa de dissertação de mestrado defendida em junho de 2015 no PPGH/UFRGS. O estudo tratava-se de uma análise do “Álbum dos Bandoleiros”, álbum fotográfico publicado em homenagem as oposições e sua participação na guerra civil de 1923. Além disto, estas considerações também são um ponto de partida para uma novo projeto de pesquisa em fase de elaboração. 5 Conforme José Kieling (1984) o termo “libertadores”, inicialmente propagado nos anos de 1922/1923 foi utilizado como um mecanismo de apagar as diferenças que separavam os “democratas” e “dissidentes republicanos” dos “federalistas”, assim como era uma tentativa de produzir uma generalização que abarcasse todos

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um momento fundamental no movimento oposicionista, interessa analisar alguns aspectos e acontecimentos específicos deste contexto histórico. Para isto o texto foi estruturado em duas partes principais. Na primeira delas, realizo uma breve contextualização sobre os acontecimentos políticas em torno das eleições para presidente do estado em 1922 e a deflagração e solução da guerra civil de 1923. Em um segundo momento, procedo uma análise 6 sobre as articulações e conflitos dos setores oposicionistas pós-1923, com destaque para a fundação e atuação da Aliança Libertadora (AL), as mobilizações para as eleições federais de deputado e senador daquele ano e o envolvimento dos aliancistas com os levantes militares nacionais protagonizados pelos tenentes. AS ELEIÇÕES ESTADUAIS DE 1922 E A GUERRA CIVIL DE 1923. Para compreendermos as negociações políticas pós-1923 é necessário voltarmos alguns anos antes, especificamente nos anos de 1921-1922, momento que remete ao início de uma tentativa de unificação dos oposicionistas regionais através do apoio à candidatura de Assis Brasil. Durante as negociações para eleições de 1922 articularam-se três frentes de oposicionistas 7: oriundos do Partido Federalista (PF); seguidores de lideranças como Assis Brasil e Fernando Abbot, conhecidos durante a época como “democratas republicanos”; e dissidentes do PRR de um período mais próximo aos anos de 1920, como aqueles vinculados as famílias “Pinheiro Machado”, “Menna Barreto”, etc. Da mesma forma, cabe destacar que os três setores oposicionistas possuíam trajetórias de engajamentos e lutas políticas diversas, inclusive tendo se colocado como inimigos em dados momentos da Primeira República. Ademais, cada uma destas frentes possuíam suas próprias lideranças, alianças e redes de seguidores. Ou seja, as oposições político-partidárias daquele momento eram plurais e possuíam uma feição bastante heterogênea, inexistindo entre elas um consenso e um sentimento de coesão mais sólido e diante da qual, em certa medida, os únicos pontos de convergência de sua união momentânea eram o objetivo comum de combater o monopólio de poder de Borges de Medeiros (ANTONACCI, 1981, p. 73). As eleições de 1922 ocorreram de forma tumultuada e com contundentes reivindicações de fraudes advindas dos oposicionistas. Em janeiro de 1923, o anúncio oficial das eleições consagrou Borges de Medeiros como vencedor. As oposições, alegando que o resultado tratava-se de uma fraude, iniciaram uma guerra civil com o intuito de convulsionar o estado na expectativa de que o Presidente da República Arthur Bernardes intervisse e depusesse Borges do cargo 8. A luta armada se desenvolveu, principalmente, através da atuação dos “Generais Libertadores”, responsáveis por arregimentar e movimentar colunas armadas contra as tropas legalistas, eram eles: Honório Lemes, Zeca Netto, Estácio Azambuja, Leonel Rocha, Felipe Portinho e Menna Barreto. O conflito se encerrou em dezembro com a intervenção do governo federal através do envio ao estado do Ministro de Guerra Setembrino de Carvalho, responsável por mediar um acordo entre as partes divergentes. O tratado, chamado de “Pacto de Pedras Altas”, pôs fim a guerra civil e modificou alguns pontos importantes na política e no sistema eleitoral rio-grandense 9.

os oposicionistas (KIELING, 1984, p. 18). O termo era utilizado como referência ao objetivo de “libertar” o Rio Grande do Sul da “ditadura borgista” percebida pelos oposicionistas no governo do PRR 6 A análise se baseou, principalmente, em notícias e manifestos das lideranças oposicionistas publicados no jornal Correio do Povo de Porto Alegre durante o ano de 1924. Estas informações foram sendo cotejadas com dados retirados de livros de memórias de personagens que tomaram parte daquele momento histórico. 7 O Partido Federalista representava o único partido oposicionista formalizado no estado durante ao início dos anos de 1920, embora o partido já estivesse enfraquecido devido a dissidências internas. Segundo Rouston (2012), o partido era cindido por três alas: os seguidores de Raul Pilla, os de Rafael Cabeda e os de Francisco Antunes Maciel (ROUSTON, 2012, p.172). 8 A crença oposicionista em uma intervenção federal devia-se, principalmente, ao fato de que durante as eleições para presidente nacional em 1922, Borges de Medeiros havia apoiado o adversário de Bernardes, Nilo Peçanha durante a campanha da “Reação Republicana”. O candidato apoiado por Borges saiu derrotado e a relação entre PRR e o situacionismo nacional se tornou bastante frágil (LOVE, 1971, p.216-217). 9 Em linhas gerais, o acordo vedava a reeleição para presidente do estado e para intendentes municipais, previa eleições diretas para vice-presidente, previa a adequação das eleições municipais e estaduais a legislação federal,

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Com o término da guerra civil um novo momento político se abriu para os oposicionistas. Segundo Luiza Kliemann (1981), o movimento de 1923 demonstrou aos oposicionistas as possibilidades e necessidades de uma coligação mais profunda e estável para que fosse mantido aberto o caminho em direção ao poder (KLIEMANN, 1981, p. 92). Além disto, conforme afirma Céli Pinto (1986), as cláusulas do tratado de paz proporcionaram espaços mais amplos e legítimos na política estadual para os adversários do PRR (PINTO, 1986, p.95). Todavia, diante da nova conjuntura, os poucos elementos que haviam servido como fator de congregação do oposicionismo necessitavam ser atualizados com o intuito de alcançar solidariedades mais amplas, incorporar definitivamente todos os adeptos e combater em igualdade de condições o mobilizado e coeso PRR. DA ALIANÇA LIBERTADORA AO PARTIDO LIBERTADOR: MOBILIZAÇÕES E DISSIDÊNCIAS NA TRAJETÓRIA OPOSICIONISTA Após a pacificação do estado em 1923, as lideranças oposicionistas empenharam-se na formação de uma agremiação partidária oficial e efetiva 10. Com este anseio e vislumbrando a possibilidade de participar das eleições para senador e deputado federal de maio, surgiu a Aliança Libertadora, fundada oficialmente no dia 12 e 13 de janeiro de 1924 no município de São Gabriel. Em paralelo a fundação da agremiação diversos questionamentos se apresentaram para as lideranças do grupo: como definir os candidatos para os cargos de senador e deputado federal agradando a todos os correligionários e não ferindo o orgulho de nenhum dos setores oposicionistas? Como manter a coligação articulada com o mesmo ímpeto das lutas de 1922 e 1923? De que forma mobilizar diferentes partidários e evitar dissidências que atrapalhassem a coesão do grupo? Como é possível perceber, um conjunto de novos desafios apresentou-se no horizonte da recém formada AL. O primeiro deles surgiu ainda durante o encontro político de fundação da agremiação. O congresso convocado por Assis Brasil recebeu ampla cobertura do jornal Correio do Povo. A folha noticiou os bastidores das negociações ocorridas ao longo do encontro durante os dias 12 e 13 de janeiro e contou com a presença de 82 delegados representantes de diversos municípios e setores oposicionistas. As divergências do encontro se ocorreram em torno da organização da Comissão Executiva responsável pela chefia da agremiação. A ideia sugerida por Assis Brasil e Plinio Casado tinha como intuito designar um comitê de cinco nomes escolhidos pelo voto direto entre todos os correligionários presentes no evento. Outro partidário, Francisco Simões, propôs uma junta composta por dez nomes. Já deputado estadual Alves Valença e o general Zeca Netto defenderam a chefia unipessoal de Assis Brasil, que por sua vez recusou a proposta e enfatizou a necessidade de uma junta coletiva de comando. O deputado federalista Antunes Maciel sugeriu uma comissão de cinco nomes formada por Assis Brasil, Fernando Abbot, Firmino Torelly, Edmundo Berchon e Honório Lemes, este último representando todos os generais de 1923. A proposta foi repassada para o voto dos presentes e foi eleita, sendo responsável pela definição das candidaturas do próximo pleito eleitoral 11. Com a fundação oficial da agremiação, alguns casos dissidências surgiram nas fileiras oposicionistas, como por exemplo, no conflito entre as lideranças de Raul Pilla e Antônio Moraes Fernandes no interior do PF de Porto Alegre em decorrência das disputas pela liderança do grupo e do apoio aos aliancistas. Através de artigo transcrito pelo Correio do Povo, Raul Pilla procurou solucionar o caso para que os adversários não se utilizassem da dissidência para atacar o projeto de unificação das oposições 12 . Segundo ele, os federalistas, através de um congresso realizado na capital, haviam escolhido a chefia do diretório da capital, na qual a presidência coube a ele próprio. Além disto, a grande maioria dos presentes no evento optou pela completa solidariedade as deliberações da AL. Estas

garantia a representação das minorias na Assembleia e no Congresso e concedia anistia aos revolucionários (ANTONACCI, 1981, p. 110; LOVE, 1971, p.223). 10 Cabe destacar que durante a conjuntura 1921/1923, os setores das oposições se aliaram sem contudo consolidarem seus laços num partido oficial, o que viria a ocorrer apenas em 1924. 11 Correio do Povo, Porto Alegre, 13/01/1924, p.1 12 Segundo afirma Céli Pinto (1986), uma das estratégias do PRR foi tentar “desmascarar” a composição da AL e quebrar com a suposta ideia de unidade política das forças oposicionistas, apontando suas contradições e divergências internas (PINTO, 1986, p.95).

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decisões acarretaram na dissidência de Moraes Fernandes que fundou o Centro Federalista Raphael Cabeda, órgão autônomo ao partido e expressamente contrário a uma vinculação com a Aliança 13. Durante este contexto de desentendimentos entre os federalistas de Porto Alegre foi realizado um novo encontro da comissão executiva aliancista. Na reunião ocorrida no dia 14 de Abril em São Gabriel foi elaborada uma proclamação oficial com os nomes dos candidatos para o pleito federal: Assis Brasil para senador e para deputados Lafayette Cruz, Wenceslau Escobar e Plinio Casado no 1º círculo eleitoral 14, Arthur Caetano e João Baptista Lusardo no 2º círculo e Antônio Baptista Pereira, Arthur Pinto da Rocha e Francisco Antunes Maciel no 3º círculo. Diante dos riscos de conflitos que a definição dos nomes acarretaria, a comissão alertou que era “provável que algum digno correligionário não veja contemplado o nome, ou nomes de sua predileção”, mas que não era “possível contemplar todos os correligionários meritórios” 15. A chapa de candidaturas estipulada pela AL foi bem recebida na maioria das localidades, com exceção de alguns casos, como em Livramento, onde os nomes foram questionados em decorrência da ausência de federalistas como Paulo Labarthe e Gaspar Saldanha, além da presença do histórico rival da família Cabeda, Pinto da Rocha 16. Os seguidores de Cabeda que dominavam o diretório federalista naquele município, já haviam se negado em apoiar a candidatura de Assis Brasil em 1922 17. Em resposta à chapa da AL, os dissidentes federalistas de Porto Alegre e Livramento, lançaram de forma independente dois candidatos: “Senador: Paulino Vares; Deputado: José Júlio Silveira Martins” 18. Em entrevista, Assis Brasil se posicionou sobre a escolha dos candidatos e as dissidências ocorridas em torno da chapa eleitoral aliancista. Segundo ele, o voto entre os adeptos da Aliança era “verdadeiramente livre”, ficando ao encargo da consciência de cada um o significado do “enfraquecimento das forças da comunidade pela dispersão de votos pela mera predileção”. Sobre os rompimentos entre os aliancistas, Assis lamentou a discordância e argumentou que os dissidentes estavam no seu direito de afastamento da comunhão caso não concordassem com ela, mas que a AL não reconhecia nem “cabedismo” ou “assisismo”, e sim era formada por todos “os elementos da oposição ao despotismo imperante” 19. Para além de todos estes problemas e conflitos ocorridos ao longo das mobilizações da AL, a atuação do grupo também encontrou solidariedades, concordâncias e aspectos positivos, como por exemplo, a fundação e atuação de associações políticas locais, o prestigio dos antigos generais da guerra civil e as campanhas eleitorais realizadas pelos aliancistas por todo o estado. Uma das orientações definidas pela chefia da agremiação era que os correligionários deveriam investir no trabalho de criação de associações políticas municipais. Segundo Ricardo Pacheco (2004), após o “Pacto de Pedras Altas” as disputas eleitorais ganharam um novo significado, cabendo aos grupos partidários estabelecerem novas estratégias para a conquista dos votos. Um destes mecanismos foi a criação de associações políticas locais, que tinham por objetivo servir como instrumento de mobilização e arregimentação do eleitorado urbano através de atividades como: a inscrição e orientação dos eleitores, organização de reuniões de propaganda no interior das sedes, comícios e passeatas, a distribuição das “chapas” com o nome dos candidatos no dia do pleito, etc. (PACHECO, 2004, p, 183).

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Correio do Povo, Porto Alegre, 15/03/1924, p.1 Durante as eleições estaduais e federais o Rio Grande do Sul era dividido em três círculos eleitorais. O 1º perfazia os municípios da região de Porto Alegre, Caxias, Lajeado, Bento Gonçalves, São Leopoldo, etc. O 2º correspondia a zona de Passo Fundo, Cruz Alta, Santo Ângelo, Uruguaiana, Alegrete, entre outras. O 3º círculo era formado pelos arredores de Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel, Bagé, Pelotas, Dom Pedrito, São Lourenço, etc. 15 Correio do Povo, Porto Alegre, 20/04/1924, p.1 16 Correio do Povo, Porto Alegre, 16/04/1924, p.2 17 O mesmo grupo, no final dos anos de 1920, manteve-se intransigente sobre a dissolução do partido em aderência completa ao Partido Libertador (FRANCO, 2007, p.169) 18 Correio do Povo, Porto Alegre, 24/04/1924, p.1 19 Correio do Povo, Porto Alegre, 25/04/1924, p.6 14

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Em diferentes partes do estado os aliancistas passaram a trabalhar na fundação destas associações e clubes 20, além de se empenharam na realização de grandes caravanas de campanha política pelo interior do estado, como por exemplo, as excursões promovidas por Honório Lemes, Baptista Lusardo e Plinio Casado em cidades como Santiago do Boqueirão, São Sepé, Santa Maria, Encantado, Rio Pardo, Santa Cruz, Caxias, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Cachoeira 21 . Em Porto Alegre, a passagem de Lemes foi recebida com uma grande festa organizada pelas associações políticas locais. Em convocatória publicada no Correio do Povo, dezoito clubes e associações conclamaram os correligionários para a acolhida de chegada no cais do porto do “invicto ‘Tropeiro da Liberdade’ General Honório Lemes” 22. Entre os centros envolvidos com a manifestação estavam “Aliança Libertadora Assis Brasil”, o “Diretório Federalista de Porto Alegre” (vinculado a Raul Pilla) “Centro Federalista Raphael Cabeda” (vinculado a Moraes Fernandes), entre diversos outros. Ou seja, tratavam-se de setores conflitantes do oposicionismo de Porto Alegre, mas que durante aquele momento de celebração de um personagem tão significativo para o grupo, as desavenças eram esquecidas e as lideranças se uniam na organização conjunta de um evento. Cabe destacar que reunir e mobilizar todos os adeptos oposicionistas para a homenagem em torno de um líder especial significava também uma oportunidade de confraternização entre correligionários e simpatizantes, propiciando um momento de sociabilidade capaz de sedimentar e ampliar os laços de unificação entre as diversas tendências oposicionistas, além de enfraquecer as antigas divergências. Segundo Pacheco (2004), estas manifestações tratavam-se de um ato de apoio e comprometimento com determinadas lideranças, além de uma demonstração de lealdade partidária que contribuía na construção da percepção da legitimidade do grupo (PACHECO, 2004, p. 219-224). Como é possível de perceber, se existiam dissensos também haviam confraternizações e trabalhos em conjunto. Além das celebrações de recepção, os centros oposicionistas da capital também realizaram diversas reuniões coletivas com o objetivo de unificar os trabalhos eleitorais e reafirmar a “absoluta solidariedade” em relação a AL 23 . Através destas reuniões, definiam-se as atividades de propaganda política, os eventos a serem organizados, as estratégias de alistamento do eleitorado, mas sobretudo, estreitavam-se os laços entre os correligionários na busca pela almejada sedimentação dos vínculos entre todos os oposicionistas. Mesmo após o término dos períodos eleitorais, as associações continuaram atuando e sendo fundadas, como é o caso de um novo clube surgido em outubro e batizado como “Centro Libertador Arthur Caetano”. Durante a reunião de fundação deste centro, um dos principais assuntos tratados foi a necessidade dos oposicionistas em “manter-se unidos em torno da Aliança Libertadora” 24. O resultado das eleições federais de maio decretou a vitória de sete deputados da Aliança Libertadora contra onze do PRR, além da amarga derrota para senador de Assis Brasil (44.024 votos) frente a Vespúcio de Abreu (75.159). Embora o resultado não tenha sido o melhor cenário possível para os oposicionistas, as eleições indicaram a existência de um equilibro de forças no estado, ou conforme declarou o próprio deputado situacionista João Neves da Fontoura, naquele momento ficava claro que “o tempo das unanimidades ou quase unanimidades findara” (FONTOURA,1958, p.93). Alguns resultados apontam para esta tendência: no 1º círculo eleitoral os aliancistas alcançaram a maioria dos votos para todos os seus deputados indicados: Wenceslau Escobar (32.059 votos), Plinio Casado (31.604), Lafayette Cruz (28.212), enquanto que o adversário mais votado foi Lindolfo Collor (26.817

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Muitas destas instituições homenagearam os chefes militares da guerra civil, como por exemplo, o “Centro Cívico Zeca Netto” e “Centro Cívico Honório Lemes” em Porto Alegre, entre outros. Além disto, Embora nenhuma das lideranças militares de 1923 tenha sido indicada como candidatos, elas participaram ativamente de excursões pelos municípios gaúchos em campanha eleitoral (DAL FORNO, 2015, p. 158). 21 Correio do Povo, Porto Alegre, 29/02/1924, p.1; 15/03/1924, p.1; 16/04/1924, p.2; 16/04/1924. p.2; 21/03/1924, p.1; 25/03/1924, p.1; 20/03/1924, p.1; 22/03/1924, p.4; 05/04/1924, p.2. 22 Correio do Povo, Porto Alegre, 20/03/1924, p.1 23 Correio do Povo, Porto Alegre, 12/03/1924, p.1 24 Correio do Povo, Porto Alegre, 19/10/1924, p.5

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votos). Os demais oposicionistas eleitos nas outras regiões eleitorais foram Arthur Caetano, Pinto da Rocha, Maciel Júnior e João Baptista Lusardo 25. O ano de 1924 guardaria novos desafios aos aliancistas, mas desta vez longe das urnas. Em paralelo a posse dos deputados federais no Rio de Janeiro, eclodiram os levantes militares tenentistas 26. A nova onda de protestos armados colocou os aliancistas em uma encruzilhada: manifestar apoio a Bernardes, já que o presidente havia intercedido supostamente “a favor” dos libertadores em 1923, ou se colocar a favor dos rebeldes e aproveitar-se do movimento para realizar um novo levante contra Borges de Medeiros? A questão acarretou em diferentes opiniões sobre a conduta do grupo deveria frente a questão. Em um primeiro momento, permanecer ao lado de Bernardes parece ter sido a opção mais bem aceita pela maioria das lideranças. Segundo Glauco Carneiro (1977), os sete deputados eleitos pela oposição chegaram ao RJ com um drama: Bernardes ou não Bernardes? A ampla maioria optou por apoiar o presidente, ficando apenas Lusardo como defensor do movimento rebelde (CARNEIRO, 1977, p.248). O tema da eclosão do movimento em São Paulo tornou-se o principal assunto debatido pelos deputados aliancistas na câmara federal. Plinio Casado, líder da bancada, discursou defendendo a moção para o estado de sitio em São Paulo, reiterando que a AL era abertamente defensora da “República e da Constituição Federal” e da “lei e da autoridade legitima”, sendo que os libertadores gaúchos, “saídos de uma revolução” saberiam diferenciar que o movimento dos tenentes não passava de uma “revolta de quartéis” que “não triunfaria” 27. Segundo as notícias publicadas pelo Correio do Povo, alguns dos antigos chefes de 1923, logo após o surgimento das primeiras informações sobre o levante paulista, telegrafaram ao Presidente Arthur Bernardes “reafirmando solidariedade e oferecendo seus serviços”. De acordo com as notícias publicadas pelo jornal, Felippe Portinho, Leonel Rocha, entre outros, estariam “com autorização do governo federal”, arregimentando elementos para formar uma força que seria encaminhada ao centro do país para combater os rebeldes 28. Honório Lemes recebeu a orientação de alguns deputados para que formasse um “batalhão patriótico” de civis em auxilio ao governo federal, com isto, Lemes enviou uma mensagem ao Ministro Setembrino de Carvalho colocando seus serviços à disposição 29, Setembrino respondeu agradecendo e esclarecendo não ser necessário o apoio dos chefes gaúchos, já que a ordem encontrava-se restabelecida 30. Com o mesmo pretexto foram dispensados os serviços de outros chefes 31. No mês de outubro as guarnições militares no Rio Grande do Sul sublevaram-se, engrossando as fileiras da revolta no país. Em manifesto, Luiz Carlos Prestes comunicou a deflagração do levante nos quartéis pelo interior do estado, em comunhão com movimento iniciado em São Paulo e com adesão dos “chefes revolucionários Honório Lemes e Zeca Netto” que se encontravam invadindo o estado pela fronteira com o Uruguai 32. Outro manifesto trazia a assinatura de militares e adeptos da AL: Felipe Portinho, Leonel Rocha, Honório Lemes e José Antônio Netto (KIELING, 1984, p. 63-64). Com a adesão dos chefes de 1923 ao movimento, a bancada aliancista mudou sua postura e manifestou-se em favor dos revoltosos. Em discurso, Wenceslau Escobar relembrou aos demais deputados sobre a situação delicada vivida no estado devido ao não cumprimento, por parte do governo estadual, das cláusulas do tratado de paz, elementos que justificavam a postura da Aliança frente ao momento político nacional 33 . No mesmo sentido manifestou-se Arthur Caetano, afirmando que os

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Resultado eleitoral anunciado pela junta apuradora e transcrito no jornal A Federação. A Federação, Porto Alegre, 26/05/1924, p.1 26 No início do mês de julho, uma rebelião liderada por Isidoro Dias Lopes e Miguel Costa apoderou-se da cidade de São Paulo que permaneceu nas mãos dos revoltosos durante três semanas, quando as tropas se retiraram em marcha para o oeste da capital paulista. 27 Correio do Povo, Porto Alegre, 22/07/1924, p.6 28 Correio do Povo, Porto Alegre, 26/07/1924, p.3; 28/07/1924, p.1 29 Correio do Povo, Porto Alegre, 28/07/1924, p.3 30 Correio do Povo, Porto Alegre, 13/08/1924, p.1 31 Correio do Povo, Porto Alegre, 14/08/1924, p.1; 15/08/1924, p.3 32 Correio do Povo, Porto Alegre, 05/11/1924, p.3 33 Correio do Povo, Porto Alegre, 15/11/1924, p.1

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oposicionistas rio-grandenses “não distinguiam a hostilidade, quer contra o sr. Borges de Medeiros, quer contra o sr. Arthur Bernardes, a quem responsabilizamos pela grave situação no nosso Estado” 34. Após a realização de alguns pequenos combates e escaramuças, enfrentando a mesma inferioridade de material bélico e de recursos humanos que em 1923, os rebeldes no Rio Grande do Sul acabaram por dispersarem-se em dois grupos. O grupo comandando por Prestes, perseguido pelo exército legalista, deixou o sul e iniciou uma marcha em direção ao norte do país para juntar-se a outros revoltos. Por sua vez, o grupo vinculado aos chefes civis da AL 35 refugiou-se no Uruguai e Argentina 36, enquanto que Assis Brasil permaneceu exilado voluntariamente no Uruguai e apoiando os levantes militares no Brasil (LOVE, 1971, p.228). O principal líder aliancista retornaria à vida política estadual em 1927 com o objetivo de reorganizar os adeptos e a agremiação para novos pleitos eleitorais. Nas eleições federais disputadas no mesmo ano, os oposicionistas persistiram na denúncia sobre a falta de garantias e liberdades do sistema eleitoral do Rio Grande do Sul e do Brasil. Dispersos e com pouca força eleitoral foram às urnas para conseguir eleger apenas três deputados federais: Assis Brasil, Baptista Lusardo e Plinio Casado. Embora, o resultado tenha sido um retrocesso, os libertadores haviam conquistado uma projeção e prestigio nacional, graças a sua atuação nos levantes militares tenentistas (LOVE, 1971, p.242; KIELING, 1984, p. 77-87). No ano de 1928, após aproximações e distanciamentos, conflitos e solidariedades, os oposicionistas finalmente foram capazes de sedimentar seus laços partidários. Através de um congresso realizado no dia 3 de Março na cidade de Bagé nasceu o Partido Libertador com a presidência de Assis Brasil e vice-presidência de Raul Pilla. Segundo Mem de Sá: Chegara-se, porém, ao momento da decisão. Não era possível permanecer com uma simples Aliança, provisória e, portanto, precária. Impunha-se a criação de um partido. Federalistas de Gaspar e republicanos de Assis haviam cimentado, no sangue dos combates e nas agruras das campanhas eleitorais, mais do que sólida amizade, verdadeira coesão política. Estavam irmanados (SÁ, 1973, p. 67). Liderados por Assis e Pilla através de longos diálogos de mediação e conciliação com os correligionários foi possível sacramentar a fundação do partido e escrever um programa e estatuto que agradasse todos os adeptos 37 . Desta forma, segundo Mem de Sá, o partido já nascia “forte, coeso, comprovado na luta e com programa próprio” (SÁ, 1973, p. 69-70). ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Conforme demonstrei ao longo deste texto, através do processo iniciado no começo dos anos 1920 e completado ao final da década, as oposições passaram de uma coalizão heterogênea e transitória para a fundação e efetivação de um partido político. Com o término dos levantes tenentistas e o nascimento do PL, um partido unitário que ansiava por ser forte e romper com os limites estaduais de atuação 38, a política partidária oposicionista iniciou uma nova fase e traçou novos objetivos. Do outro lado, o PRR também passou por mudanças e renovações, com destaque para a ascensão de uma nova geração de líderes, como Flores da Cunha, Lindolfo Collor, Getúlio Vargas, entre outros. Além disto, o mandato de Borges de Medeiros na comandância estadual encerrou-se no final de 1927, proibido de pleitear uma nova reeleição pelas clausulas do tratado de 1923, o chefe do partido foi obrigado a indicar

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Correio do Povo, Porto Alegre, 05/12/1924, p.1 Correio do Povo, Porto Alegre, 27/12/1924, p.3; 28/12/1924, p.7 36 Durante os anos de 1925-1926. Honório e Neto, mesmo exilados, voltariam a realizar novas tentativas de invasões e ataques armados no interior do estado. 37 Para maiores informações sobre as nuances e orientações do programa partidário do PL, ver as contribuições de Mem de Sá (1973), Kieling (1984) e Franco (2012). 38 Desde seu surgimento, os libertadores mantinham vínculos com o Partido Democrático de São Paulo. Tratavase de uma antiga ambição de Assis Brasil de formar uma frente política nacional de oposição. Aliados aos paulistas, o PL formou o efêmero Partido Democrático Nacional (LOVE, 1971, p. 242) 35

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um novo nome para concorrer ao cargo (LOVE, 1971, p.233). Por sua vez, os libertadores, segundo os relatos de Baptista Lusardo, ele e Plinio Casado realizaram diálogos e encontros com os deputados federais do PRR, Lindolfo Collor e Flores da Cunha. Os líderes oposicionistas assinalaram a possibilidade do grupo se abster no processo eleitoral caso o nome indicado pelo situacionismo fosse “capaz de cumprir o Pacto de Pedras Altas” e levantar “bandeira do apaziguamento e penhor de tranquilidade no Estado”. O nome indicado, com a concordância de Borges de Medeiros e a abstenção do PL, foi Getúlio Vargas (CARNEIRO, 1977, p. 355-356). A ascensão de Vargas ao poder do estado ocorreu no mesmo momento em que o PL conseguira alcançar níveis satisfatórios de força e coesão para conquistar escaladas mais arrojadas na política gaúcha (KIELING, 1984, p. 98-100). O novo presidente estadual passou a atuar de forma conciliadora, mediando um diálogo aberto com as lideranças oposicionistas, aspecto que viabilizaria a formação da chamada Frente Única (reunindo PRR e PL) na composição da Aliança Liberal e a candidatura de Vargas ao cargo de presidente nacional em março de 1930 (GRIJÓ, 1998, p. 167). O Partido Libertador manteve-se atuante até a década de 1960, quando foi extinto pela ditadura civil-militar junto aos demais partidos brasileiros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES PRIMÁRIAS ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: as oposições & a Revolução de 1923. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. CARNEIRO, Glauco. Lusardo – O último caudilho. v.1: Revolução de 1923. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Porto Alegre: Globo, 1969. FRANCO, Sérgio da Costa. Dicionário político do Rio Grande do Sul 1821-1937. Porto Alegre: Suliani Letra & Vida, 2010. GRIJÓ, Luiz Alberto. Origens sociais, estratégias de ascensão e recursos dos componentes da chamada “Geração de 1907”. Porto Alegre: UFRGS, 1998. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. KIELING, José Fernando. Política oposicionista no Rio Grande do Sul (1924-1930). São Paulo: USP, 1984. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1984. KLIEMANN, Luiza H.S. A articulação da oposição gaúcha (1924-1930). Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: PUC, v. VII, n. 1-2, p. 89-100, jul.-dez. 1981. LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1971. NETTO, José Antônio. Memórias do General Zeca Netto. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983. PACHECO, Ricardo de Aguiar. A vaga sombra do poder: vida associativa e cultura política na Porto Alegre da década de 1920. Porto Alegre: UFRGS, 2004. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. ROUSTON JR., Eduardo. “Não só do pão do corpo precisa e vive o homem, mas também do pão do espírito”: a atuação federalista na Assembléia dos Representantes (1913-1924). Porto Alegre: PUC, 2012. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, 2012. SÁ, Mem de. A politização do Rio Grande. Porto Alegre: Tabajara, 1973. TRINDADE, Hélgio. Aspectos políticos do sistema partidário republicano rio-grandense (1882 – 1937). In: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sergius (orgs.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, P. 119-191.

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Fontes: Álbum dos Bandoleiros – Revolução Sul Rio-grandense – 1923. 8ª ed. Porto Alegre: Kodak/Fernando Barreto, 1924. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS) Correio do Povo, Porto Alegre, 1923, 1924. Núcleo de Pesquisa em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS).

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COMO SE FAZ UM PRESIDENTE, UMA VISÃO BRASILIANISTA SOBRE A CAMPANHA DE JK Tiago Conte 1 Juscelino Kubitschek e seu governo foram e continuam sendo temas de um grande volume de obras, tanto acadêmicas quanto voltadas ao público em geral. Entre artigos, monografias, biografias e até mesmo uma minissérie, exibida pela Rede Globo em 2006, a trajetória de Juscelino e as decisões tomadas durante seu mandato presidencial foram objeto de narrativas e análises, variando entre si conforme o enfoque dos autores. Numa avaliação mais geral, podemos diferenciar essa produção tanto pelos públicos aos quais se destinam quanto pelas abordagens em relação à JK e seu governo. Pois enquanto os trabalhos acadêmicos geralmente se concentram nas políticas econômicas e no sistema político vigente no período, a produção com vistas ao público não especializado destaca a trajetória de Juscelino até a presidência e suas características pessoais, realçando mais o indivíduo do que o contexto. Sem se excluírem mutuamente, essas abordagens remetem a diferentes aspectos que permearam as ações de JK. Por um lado, ao contextualizar sua presidência no período entre 1946 e 1964, a produção acadêmica salienta os sistemas políticos, econômicos e sociais daquele tempo, sistemas esses que definiram suas possibilidades de ação e ao mesmo tempo seus limites. Em outra perspectiva, os trabalhos sobre a vida e a carreira política de Juscelino realçam suas singularidades e diferenças em relação aos demais presidentes, tanto na adoção do Plano de Metas e sua política desenvolvimentista quanto pelo seu estilo de governar, muitas vezes associado a um período de conquistas e realizações. No campo acadêmico, há uma vasta bibliografia a respeito do governo Kubitschek e do período histórico no qual ele se deu. Sobre o sistema político do período, os trabalhos de Maria do Carmo Campello de Souza (1976), Maria Victoria Benevides (1981), Lucia Hippolito (1985) e Lucilia de Almeida Neves Delgado (1989) são referências a respeito do regime pluripartidário de então, assim como da atuação dos três maiores partidos. Surgidos após o fim do Estado Novo, ao mesmo tempo em que se formaram sob a influência de Vargas, o Partido Social Democrático (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a União Democrática Nacional (UDN) sintetizavam as posições e polarizações políticas daquele momento. Criados por Getúlio, o PSD e o PTB voltavam-se para eleitorados distintos: enquanto o primeiro se concentrava no interior, com a presença e influência dos antigos interventores do Estado Novo, o PTB representava os trabalhadores urbanos, cujo eleitorado era crescente no período. Por sua vez, a UDN representava essencialmente o antigetulismo, reunindo desde adversários civis do antigo presidente até chefes militares. Assim, percebe-se que mesmo num regime democrático, os posicionamentos políticos dos partidos ainda se davam em relação a Getúlio Vargas. Sobre a conjuntura econômica do período, as análises de Werner Baer (1966), Luiz Carlos Bresser-Pereira (1968) e Miriam Limoeiro Cardoso (1972) são alguns exemplos de estudos relacionando as políticas do governo JK com cenários e processos mais amplos. Considerada como uma transição entre um modelo de substituição de importações para um subdesenvolvimento industrializado, o desenvolvimentismo que norteou a campanha presidencial de JK e o Plano de Metas adotado durante seu governo são considerados conforme as bases materiais para sua realização. Afinal, ainda que o desenvolvimentismo apoiasse o desenvolvimento da indústria através de investimentos externos a fim de alavancar o crescimento econômico, grande parte do eleitorado brasileiro no período se concentrava no interior, predominantemente rural. Somado a isso, cabe destacar a filiação de Juscelino ao PSD, partido que detinha grande base eleitoral nessas regiões. Assim, percebe-se que o governo Kubitschek buscou um arranjo entre forças políticas e econômicas heterogêneas, numa composição que torna difícil caracterizar seu governo como eminentemente voltado às demandas dos setores urbanos, como por vezes é apresentado. Além desses trabalhos, um dos livros mais conhecidos a respeito do governo JK é de Maria Victoria Benevides (1979). Em sua análise, Benevides considera que o governo Kubitschek alcançou

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Graduado em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), mestrando na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista Capes/Prosup.

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um “ponto ótimo” de equilíbrio entre as diferentes forças que o compunham, tanto em relação ao congresso quanto em relação aos militares. Sem alterar as estruturas de poder no campo, o Plano de Metas conciliava o crescimento econômico através da indústria com paulatinos aumentos salariais, contanto que não comprometessem as taxas de crescimento econômico previstas. Além disso, a estabilidade nas Forças Armadas, sobretudo pela atuação do Ministro da Guerra Henrique Lott, foi fundamental para garantir a governabilidade no período, num arranjo de forças que não se alcançou nos governos posteriores. No entanto, apesar do grande volume de análises políticas e econômicas sobre o governo JK, das quais demos alguns exemplos, são poucos os estudos sobre a campanha eleitoral que conduziu Juscelino ao poder. Nesse sentido, um dos primeiros trabalhos a tratar do tema foi escrito por um historiador norte-americano. Em Como se faz um presidente, Edward Anthony Riedinger narra a trajetória de JK desde sua indicação como candidato por parte do PSD até a campanha eleitoral propriamente dita, incluindo a atuação dos demais candidatos. O próprio autor reconhece que sua obra trata de um assunto pouco abordado pela produção acadêmica até aquele momento, ao afirmar que O livro procura sanar uma lacuna da historiografia brasileira: a inexistência de qualquer estudo aprofundado de uma campanha presidencial. A campanha de 1910, na Velha República, mereceu considerável atenção, mas nenhum estudo completo. A de 1930, que precipitou o fim da Velha República, recebeu muito menos atenção que o golpe militar [...] O mesmo se aplica a 1955: os eventos militares de fim de ano ofuscaram os da campanha em si (RIEDINGER, 1988, p.11). A lacuna apontada por Riedinger refere-se à desproporção entre a quantia de trabalhos sobre o chamado “golpe preventivo”, que garantiu a posse de Juscelino, e os estudos sobre a campanha eleitoral propriamente dita. Neste ponto, talvez a diferença de origem dos historiadores tenha influenciado na escolha dos temas de estudo. Afinal, a maioria da historiografia brasileira considera o “golpe preventivo” e o mandato de JK num contexto mais amplo, entre o fim do Estado Novo e o golpe de 1964, sem dar a mesma ênfase aos antecedentes da campanha, as disputas pelas indicações dentro dos partidos, as negociações para a formação das alianças e o período da campanha eleitoral em si. Ao avaliar o resultado da eleição, a maioria dos trabalhos menciona a escassa votação pela qual Juscelino foi eleito, pois esse foi um dos argumentos levantados pela oposição da época para impedir a posse de JK. Nas análises sobre as causas da vitória, a coligação PSD-PTB é considerada fundamental e por vezes até inevitável, por conta da origem varguista comum aos dois partidos. Contudo, como o trabalho de Riedinger demonstra, as tratativas para a formação dessa aliança foram longas e encontraram resistências internas e externas aos partidos. Mas além dessas breves considerações sobre o tema de Como se faz um presidente, uma compreensão mais ampla da obra em relação à historiografia sobre o assunto também precisa levar em conta a nacionalidade do autor. Afinal, a obra de Riedinger surgiu num contexto específico da historiografia norte-americana e brasileira, cujas relações variaram conforme o contexto político do período. Por sua origem e pela temática de sua obra, Riedinger pode ser considerado um brasilianista, termo utilizado para se referir aos acadêmicos norte-americanos que tratam de assuntos brasileiros em sua produção. Trata-se de uma definição bastante ampla, pois abarca estudiosos de áreas distintas, como história, sociologia, antropologia e literatura, por exemplo. Ao mesmo tempo, apesar dessa amplitude seu significado esteve carregado de conotações políticas, por conta dos impulsos financeiros e institucionais que fomentaram a formação desses estudiosos. Sobretudo após a Revolução Cubana, em 1959, uma geração de pesquisadores norte-americanos se formou tendo a América Latina como campo de estudo, incluindo o Brasil. Entre os historiadores, alguns dos nomes mais conhecidos são Kenneth Maxwell, Thomas Skidmore, Warren Dean e Joseph Love, por exemplo. Num dos primeiros livros a avaliar o fenômeno, José Carlos Meihy (1984) distingue ao menos quatro fases na recepção do fenômeno. Depois de um primeiro período de identificação e conceituação por parte dos pesquisadores brasileiros, a produção brasilianista passou por uma fase de rejeição total e depois parcial ao longo da década de 1970, seguindo-se a uma avaliação mais concentrada sobre cada trabalho em específico a partir da década de 1980 (MEIHY, 1984, p.90). Apesar da recepção

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inicialmente se restringir aos meios acadêmicos, o debate em torno do brasilianismo acabou ultrapassando esses limites por conta da situação política que o Brasil passava quando os primeiros brasilianistas surgiram. Afinal, como aponta Paulo Roberto de Almeida em outro estudo, Entre o fim dos anos 60 e meados dos 70, quando o Brasil vivia uma das fases mais dramáticas de sua história política, com muitos pesquisadores brasileiros condenados ao exílio ou intimidados pela máquina da repressão, o brasilianismo americano viveu provavelmente seus momentos de maior prestígio e de inquestionável consagração acadêmica [...] (ALMEIDA, 2002, p.45). O contraste entre as condições que as duas comunidades acadêmicas atravessavam nesse período foi logo percebido pelos brasileiros, e até certo ponto condicionou as reações ao brasilianismo que se seguiram. Além disso, as bolsas de estudo que esses pesquisadores recebiam por parte de fundações mantidas por grandes empresas e relacionadas com o Departamento de Estado norteamericano colocou essa produção sob a suspeita ou acusação de servir aos interesses do governo dos Estados Unidos. Somando-se ao apoio declarado de Washington à ditadura militar recém-instalada no Brasil, a imagem negativa dos brasilianistas como fornecedores de dados a serviço do imperialismo firmou-se na avaliação de muitos brasileiros. A discussão em tornou do brasilianismo não se limitou às universidades, chegando até a imprensa. Numa reportagem publicada na revista Veja em 1971, Elio Gaspari menciona uma “torrente de publicações sobre o Brasil escritas por americanos”, destacando a disparidade de recursos e de acesso aos arquivos entre os pesquisadores brasileiros e norte-americanos. O próprio título da matéria, “A história do Brazil – O passado do país está sendo escrito em português”, explicitava a ideia de que a história do país estava sendo deixada a cargo de estudiosos estrangeiros. Não se tratava de uma avaliação isolada: em artigo sobre a cobertura dada ao brasilianismo na imprensa da época, Fernanda Peixoto Massi aponta para a imagem dos pesquisadores como um “exército” a vasculhar os arquivos muitas vezes inacessíveis aos pesquisadores nacionais. Tal comparação, ainda mais em plena ditadura militar, dava uma conotação pejorativa ao fenômeno, considerado como uma invasão de nossa cultura por aliados do regime vigente no Brasil. Além desse aspecto, outros traços comuns na crítica desse período eram a suspeita sobre “[...] os trabalhos “encomendados” de certos brasilianistas, a acumulação desnecessária de dados e o privilégio dos estrangeiros ao terem acesso a arquivos brasileiros” (MASSI, 1990, p.34). E mesmo profissionais reconhecidos, como José Honório Rodrigues, apontavam para o possível perigo que os brasilianistas representavam na formação dos historiadores brasileiros, ao advertir que “A visão norte-americana da história do Brasil não é a visão brasileira, e se deve limitar, em cada departamento de história, o número de professores estrangeiros”, pois do contrário “um sério perigo multinacionalizador ameaçaria a nossa mocidade” (RODRIGUES, 1976, p.194-195). Mas além das críticas de conotação política, outro aspecto distanciava as duas comunidades acadêmicas no período. Afinal, comparado com o arcabouço financeiro e institucional que apoiava os historiadores norte-americanos, a profissionalização da academia brasileira era muito incipiente, como observa Meihy: Ilhados em círculos universitários pouco abertos ao envio de nossos pesquisadores ao exterior, os brasileiros do raiar dos anos 60 se viam perplexos ante a multiplicação de tipos que se denominavam brazilianist. Nutridos com bolsas de estudos, que por pior que fossem eram boas se comparadas com os salários brasileiros, criavam-se situações que contrastavam as possibilidades das partes (MEIHY, 1990, p.38). Comparando as trajetórias, observa-se que a American Historical Association (AHA), associação profissional da categoria nos Estados Unidos, foi criada em 1884; em 1918, surgiu a Hispanic American Historical Review (HAHR), publicação dedicada à pesquisa acadêmica sobre a América Latina, enquanto que em 1936 surgiu o Handbook of Latin American Studies (HLAS), um guia bibliográfico das pesquisas sobre a região. Enquanto isso, a Associação Nacional de História (Anpuh), primeira entidade profissional da categoria no Brasil, foi fundada somente em 1961. Com isso não

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pretendemos explicar as diferenças apenas pela fundação das instituições oficiais, mas observar que a academia brasileira apenas começava a se constituir enquanto categoria profissional quando da chegada dos primeiros brasilianistas ao país. Dessa maneira, ao analisarmos o livro de Riedinger podemos observar que ele não se resume ao resultado de uma pesquisa conduzida pelo autor, mas também como produto de um contexto que permitiu sua atuação. Publicado inicialmente em 1978 como uma dissertação na Universidade de Chicago, Como se faz um presidente foi editado no Brasil dez anos depois. Cronologicamente, portanto, o trabalho se insere no período de maior destaque e discussões em relação ao brasilianismo. Além disso, outras informações contribuem para localizar a produção do autor dentro de um conjunto mais amplo. No prefácio da obra, Riedinger agradece a Ford Foundation, que lhe forneceu uma bolsa de estudos entre 1968 e 1972. Isso remete aos sistemas de subvenções que financiavam os estudos dos brasilianistas, muitos dos quais passaram pela mesma fundação. No âmbito oficial, a iniciativa mais importante nesse sentido foi a promulgação do National Defense Education Act (NDEA) pelo governo norte-americano em 1958. Especificamente no Título VI, a medida disponibilizava recursos federais para programas de estudos latino-americanos. Inicialmente esse financiamento se destinava ao ensino de línguas estrangeiras, mas logo se estendeu a outros campos considerados necessários para a compreensão da região, incluindo a História, a Sociologia, a Economia e a Ciência Política, por exemplo. Logo depois, com a eclosão da Revolução Cubana, o governo dos Estados Unidos incrementou ainda mais a necessidade de se formar quadros capazes de compreender a região a fim de explicar as origens de seus confrontos sociais, evitando uma possível expansão do comunismo. Contudo, seria uma visão por demais estreita reduzir o brasilianismo a uma estratégia política no cenário da Guerra Fria. Como José Meihy adverte em outro estudo, os incentivos para a formação de professores também atendiam às demandas dos chamados “baby boomers”, uma geração nascida logo após a Segunda Guerra e que cada vez mais buscava formação universitária. Desse modo, percebe-se a existência de objetivos acadêmicos e governamentais nessa fomentação ao brasilianismo: Para muitos jovens candidatos à profissionalização através da pesquisa acadêmica, o Brasil se mostrava como uma opção que combinava a oportunidade indicada pela política de Washington com o novo elenco de temas significativos para a geração que clama por mudanças. Assim, pela visão norte-americana que contextualizava o brasilianismo, era possível distinguir duas políticas: a do governo e a dos jovens da contra-cultura (MEIHY, 1990, p.48). Nessa afirmação também podemos destacar ao menos outro ponto, que é a tendência dos estudos norte-americanos a se concentrarem por regiões, naquilo que chamam de “area studies” ou estudos de área. Trata-se de uma distinção importante para dimensionar a importância do brasilianismo nos Estados Unidos, uma vez que esse ramo de estudos era uma tendência menor entre outras regiões de estudo, sobretudo se comparado ao México. Num levantamento sobre os trabalhos historiográficos de brasilianistas entre as décadas de 1930 e 2000, Judy Bieber aponta que até 1950 apenas oito dissertações haviam sido redigidas, enquanto quase 90% dessa produção foi concluída a partir de 1965. Outra tendência observada no trabalho é a grande concentração de estudos no período pósindependência, “[...] que responde por 72% de todas as dissertações produzidas” (BIEBER, 2002, p.214). Em relação a isso, notamos que o trabalho de Riedinger também se insere nessas tendências, sendo parte da historiografia produzida no período. Desse modo, na perspectiva norte-americana, o brasilianismo aparece não como uma legião de pesquisadores a ocupar o espaço dos acadêmicos brasileiros, mas como “[...] um campo subestudado nos Estados Unidos em comparação com outras regiões de América Latina, como o México” (BIEBER, 2002, p.197). Porém, não pretendemos analisar Como se faz um presidente apenas em relação ao brasilianismo em geral. Embora parte do objetivo deste trabalho seja avaliar em que grau a obra de Riedinger se insere nessa tendência mais ampla de estudos, também pretendemos fazer uma leitura comparada aos demais trabalhos referentes ao assunto. Além do breve levantamento anterior sobre os trabalhos produzidos no Brasil sobre JK e seu governo, as obras de outros brasilianistas sobre o tema também serão observadas, como nos livros de Thomas Skidmore e Alfred Stepan, por exemplo. A

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escolha dessas leituras em comparação a Como se faz um presidente não se deu apenas pela temática em comum, mas pelo fato de terem servido de referência bibliográfica na narrativa de Riedinger. Uma análise das possíveis influências e idiossincrasias do trabalho poderia ser mais facilmente observada num texto acadêmico, dadas as normas quanto a referências e notas de rodapé, mas a edição brasileira omite quase todas as menções nesse sentido. Assim, além de uma leitura comparativa do trabalho em relação às produções brasileiras e norte-americanas, outro aspecto a ser estudado serão os modos pelos quais Riedinger constrói sua narrativa, as alusões e possíveis respostas que ele oferece às interpretações de outros autores ao longo do texto, e de que maneiras ele apresenta os personagens e suas relações no decorrer do livro. Apesar de não ter obtido a mesma repercussão de outros autores, pelo menos a ponto de suscitar mais estudos acadêmicos 2, Como se faz um presidente se encontra inserido numa produção mais ampla, tanto pela origem do autor quanto pelo tema em questão. Sem pretender-se uma análise definitiva, este trabalho propõe uma leitura externa e interna da obra, tanto em consideração a outros autores quanto dos mecanismos pelos quais Riedinger apresenta a campanha presidencial de 1955 e a trajetória de Juscelino Kubitschek até a eleição, numa história concentrada em um período de pouco mais de um ano. Dessa forma, procuramos observar as características da narrativa ao mesmo tempo em que apontamos suas relações com as referências bibliográficas contidas no livro. Assim, a história da campanha, desde a nomeação dos candidatos até os comícios eleitorais, é narrada por Riedinger sem que o conhecimento produzido sobre esse período da história brasileira encontre uma avaliação definitiva a respeito. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Paulo Roberto de. “Tendências e perspectivas dos estudos brasileiros nos Estados Unidos”. In: BARBOSA, Rubens Antônio; EAKIN, Marshall C.; ALMEIDA, Paulo Roberto de (orgs.). O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BAER, Werner. A industrialização e o desenvolvimento econômico do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1988. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro: 1945-1965. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. __________. O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política, 1956-1961. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. BIEBER, Judy. História do Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000. In: BARBOSA, Rubens Antônio, EAKIN, Marshall C., ALMEIDA, Paulo Roberto (organizadores). O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento: jk-jq. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989. GASPARI, Elio. “A história do Brazil – O passado do país está sendo escrito em português”. Revista Veja, 24/11/1971. GOMES, Ângela de Castro. Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

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Um exemplo nesse sentido pode ser notado num guia de estudos brasilianistas feito Fernanda Massi e Heloísa Pontes. Abarcando o conjunto da produção de historiadores e cientistas sociais estrangeiros sobre o Brasil a partir de 1930, numa relação de quase cem autores, o nome de Riedinger e seu trabalho não constam no guia. Considerando que as autoras optaram por incluir apenas livros de autores que foram editados no Brasil, a ausência de Riedinger na lista deve ter se dado por outros critérios, talvez considerando seu trabalho de pouca relevância.

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HIPPOLITO, Lucia. De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira, 1945-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. MASSI, Fernanda Peixoto. “Brasilianismos, ‘brazilianists’ e discursos brasileiros”. Estudos históricos. Rio de Janeiro: v. 3, n. 5, 1990. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Introdução ao nacionalismo acadêmico: os brasilianistas. São Paulo: Brasiliense, 1984. _________. A colônia brasilianista: história oral de vida acadêmica. São Paulo: Nova Stella, 1990. _________. Introdução ao nacionalismo acadêmico: os brasilianistas. São Paulo: Brasiliense, 1984. NATIONAL DEFENSE EDUCATION ACT. Disponível em: . Visitado em 07/03/2015. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Desenvolvimento e crise no Brasil: 1930-1983. São Paulo: Brasiliense, 1994. PONTES, Heloísa André; MASSI, Fernanda Peixoto. Guia bibliográfico dos brasilianistas: obras e autores editados no Brasil entre 1930 e 1988. São Paulo: Editora Sumaré: FAPESP, 1992. RIEDINGER, Edward Anthony. Como se faz um presidente: a campanha de J.K. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. RODRIGUES, José Honório. Os estudos brasileiros e os “brazilianists”. Revista de história. São Paulo: USP, n.107, 3º trimestre de 1976. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-1964). São Paulo: Paz e Terra, 2000. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e partidos políticos no Brasil (1930-1964). São Paulo: Alfa-Omega, 1990. STEPAN, Alfred. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.

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DESTA VEZ TRAGO NOTÍCIAS DO LADO ESPANHOL: COMUNICAÇÃO POLÍTICA E ESPIONAGEM NOS DOMÍNIOS IBÉRICOS NA AMÉRICA, SÉCULO XIX Andréia Aparecida Piccoli 1 Em finais do século XVIII e inícios do XIX, os lusitanos mantiveram um serviço de inteligência voltado a monitorar os espanhóis na região platina, no extremo sul da América. A intercomunicação entre os oficiais portugueses e espanhóis, assim como as informações obtidas através da inteligência operacional (espias e bombeiros), estão relatadas a partir da correspondência comumente utilizada na época. Nos atemos à comunicação política ibérica a partir de missivas entre os responsáveis por administrar os postos de fronteira da capitania do Rio Grande de São Pedro e os territórios do vicereino do rio da Prata, principalmente a Banda Oriental. Nesta apresentação, enfatizamos brevemente o período da revolução de Buenos Aires, em 1810, o qual inicia seu processo emancipatório. Analisaremos a perspectiva da troca de correspondências de oficiais portugueses nos anos anteriores à revolução anticolonial de maio de 1810 e, no período, as missivas entre oficiais de Suas Majestades Fidelíssima e Católica, isto é, os reis de Portugal e de Espanha. Compreende-se que a rivalidade imperial e a necessidade de vigiar a fronteira avançaram para a cooperação entre os espanhóis de Montevidéu e os portugueses contra os revolucionários de Buenos Aires, aproximação que abriu caminho para a intervenção militar portuguesa de 1811 no território da Banda Oriental. Notaremos a formação de partidos definidos em torno de seus projetos políticos, seja a permanência da ligação com Madri, seja a expansão e proteção dos domínios portugueses, ou seja a autonomia das possessões hispânicas. Para tanto, utilizamos cartas e ofícios como corpo documental, os quais estão depositados nos fundos Autoridades Militares e Autoridades Militares do Rio da Prata do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. O primeiro diz respeito à parte portuguesa da comunicação e o segundo a espanhola. Seguimos a proposta de Adriana Angelita da Conceição, em que a carta é uma conversação entre ausentes, por isso “a sensação sonora da palavra permaneceu impregnada ao papel” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 44). Referimo-nos à capacidade sonora das letras, a qual desperta pela leitura o sentido da audição, desse modo gerando a expressão na ausência (idem, p. 56). A partir dessa dissociabilidade, Conceição invoca Garimberti, com contribuição à agradabilidade da fala e, portanto, da escrita (idem, p. 46). Devemos pensar isso lembrando que o continente de São Pedro na época era preponderantemente oralizado. Nesse contexto os vassalos de Suas Majestades Católica e Fidelíssima eram corteses uns para com os outros, existia uma grande formalidade e, de forma implícita, as desconfianças e cobranças (COMISSOLI, 2014b, p. 8). Ademais, os homens viviam próximos espacialmente, devido à fronteira, tratavam-se amigavelmente e com boa fé, porque em certas situações eles dependiam uns dos outros, mesmo para a troca de informações. Neste sentido, nota-se que o fenômeno de fronteira não é composto por total antagonismo entre as partes, mas igualmente por cooperações e trocas. Compreendemos a circularidade das missivas, a qual implica na sua constituição, porque o remetente considera os meios de circulação até o destinatário (CONCEIÇÃO, 2013, p. 74). No extremo sul da América portuguesa, a situação de espionagem foi possível porque a fronteira projetada pelas Coroas Ibéricas, com distinção política, existiu para os habitantes como um espaço social. Os vassalos dos Impérios “habitavam espaços contíguos e conviviam frequentemente, fosse por meio de ações destrutivas como a guerra e o roubo de gado, fosse por meio de comércio ou de devolução de desertores e escravos fugidos, como frequentemente os oficiais militares praticavam” (COMISSOLI, 2014a, p. 28). Assim, entendemos que para os portugueses do século XIX a fronteira platina era compreendida como

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Graduanda do curso de História Licenciatura da Universidade de Passo Fundo. Bolsista de iniciação científica – PIBIC-UPF. Esta investigação integra o projeto Os espias continuam a ser empregados para trazerem mais notícias: comunicação, espionagem e poder (séculos XVIII e XIX), o qual conta com recursos do CNPq.

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um espaço além da política formal. Diríamos uma fronteira porosa, baseamo-nos na interpretação de Comissoli sobre o assunto: A despeito da divisão política a fronteira é um fenômeno de porosidade, permitindo o trânsito de pessoas, mercadorias e ideias. Se de um lado a fronteira demarcava duas áreas de autoridades políticas diferentes, de outro criava uma zona comum. Em termos ideais as idas e vindas deveriam ser regradas por documentos oficiais que autorizassem a saída e entrada nos territórios. Contudo, o cotidiano da fronteira seguia padrões mais flexíveis (ou múltiplos) e a ausência de suficiente vigilância impedia a fiscalização do considerável número de pessoas a mover-se em ambos os sentidos (COMISSOLI, 2014b, p. 4). Portanto, os núcleos emissores de informações portuguesas, segmento que mais dispomos, são as regiões fronteiriças com quartéis militares de Rio Grande e Rio Pardo, a partir dos seus comandantes militares, respectivamente, Manuel Marques de Souza e Patrício José Correia da Câmara. A fronteira de Rio Grande controlava a porção meridional dos domínios enquanto Rio Pardo, a ocidental, contando a partir de 1801 com as Missões. Os trabalhos dos comandantes eram autônomos, mas eles comumente trocavam correspondências, desse modo conhecendo as ocorrências da outra fronteira. A maioria da correspondência foi redigida nesses locais, por esses comandantes, para o governador da capitania ou seu ajudante de ordens, o segundo mais frequentemente, alocados em Porto Alegre. A capital estava sob as ordens direitas do governador, a mais alta autoridade militar e administrativa da capitania. Sabemos que o trajeto das correspondências obedecia a hierarquia administrativa da monarquia portuguesa, ressaltando o seu caráter político de comunicação. Assim, os comandantes de fronteira estavam unidos a um sistema de informações estendido hierarquicamente com seus superiores e subalternos. Tratando-se dos espias, cuja missão expressa era acompanhar a evolução dos eventos e relatálos tão rápido quanto possível aos seus superiores, não encontramos correspondências de próprio punho. Igualmente indispomos de escritos de batedores avançados. Assim, percebemos que os informantes são acessados por meio das correspondências de seus oficiais superiores. Essa condição implica em uma abreviação dos relatos, na transposição às epístolas. Para atualizar o governador sobre as zonas de fronteira, os comandantes reuniam todas as notícias possíveis, muitas vezes opinando a respeito da confiabilidade delas. O governador separava as notícias, decidindo sobre quais elementos seriam tomadas as decisões. As comunicações poderiam, dependendo da relevância, serem levadas aos graus hierárquicos mais altos, tais como o vice-rei do Estado do Brasil e os secretários de Estado na Corte de Lisboa (do Rio de Janeiro, a partir de 1808). Esse serviço, segundo Comissoli (2014a, p. 25), não nasceu na primeira década do século XIX. Tratava-se de um expediente administrativo constantemente utilizado, proveniente do longo ciclo de confrontos entre as Coroas ibéricas pela supremacia na região. A comunicação foi prestada cotidianamente, permanentemente e em pequenas proporções, sustentando as autoridades superiores na tomada de medidas necessárias, inclusive as de grandes propósitos (COMISSOLI, 2014a, p. 37). Assim, a importância desses coletores de notícias, os quais em último grau abasteciam os centros decisórios da Coroa. Em concomitância, a informação significava controle, indispensável para governar, por isso vigiar a fronteira foi de importância política vital. No fundo Autoridades Militares, averiguamos que entre os assuntos recorrentes estavam ações militares e o desenvolvimento das disputas políticas dentro de Buenos Aires e Montevidéu. Por isso, compreendemos que essas missivas serviram para a organização de campanhas militares – notadamente a de 1801 e a de 1811 – sendo fundamentais para o sucesso de operações bélicas e patrulhas de fronteiras, pelo conhecimento adequado da situação e do posicionamento do inimigo. Além disso, para o acompanhamento de eventos significativos na região – bem como discernimento sobre eles – durante o processo de emancipação política dela, auxiliando na manutenção da ordem social (COMISSOLI, 2011, p. 5).

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Em carta datada do dia 16 de agosto de 1809, Francisco das Chagas Santos, comandante da província de Missões, escreve ao governador Paulo José da Silva Gama (1802-1809), citando a necessidade do monitoramento constante na fronteira: Sendo o principal objeto, que VExa justamente me recomenda a conservação da fronteira em um estado respeitável de defesa, tendo a maior vigilância em que não seja surpreendida, participado eu prontissimamente a VExa do menor movimento, ou novidade, que observar nos nossos confinantes, e requerendolhe quaisquer providências, que eu julgar mais eficazes para esse fim [...] Estas prevenções, ou sejam para se defenderem, ou para nos atacarem, já estão na sua fronteira; e quando eu souber, ou observar algum movimento contra nós, pode suceder, que não haja tempo de recorrer, e alcançar de VExa, ou mesmo do comandante da fronteira do Rio Pardo as providências e socorros necessários a esta fronteira [...] (AHRS, Autoridades Militares, maço 13, documento 72, 16 ago. 1809). Percebemos na passagem a preocupação com a manutenção da fronteira, desse modo, a vigilância portuguesa possibilitava acompanhar a movimentação inimiga, para saber como melhor conduzir as situações político-militares, a fim de manter a integridade territorial. Essa prática também conduz a uma estratégia de economia das forças bélicas visto que ao manter a vigilância se contornava um estado de guerra aberta. Em fevereiro do ano anterior, outro comandante de fronteira, Manuel Marques de Souza escreve a Paulo José da Silva Gama, participando-lhe a sua desconfiança sobre as intenções do capitão espanhol da marinha Dom Luis de la Robla, vindo de Montevidéu, que dizia estar em território lusitano para entregar um ofício do governador do Rio da Prata ao governador da capitania. Todavia, Marques de Souza conjectura que o capitão esteja procurando levantar informações sobre as defesas portuguesas, porque não é de costume empregar capitães, somente em assuntos de ponderação: “Desconfiei da visita deste oficial que seria unicamente para pesquisar e saber, dos nossos movimentos ou forças. Agora mesmo acabo de saber que vem reforço de tropa para o forte de Sta Theresa, o que mandei examinar” (AHRS, Autoridades Militares, maço 12, documento 2, 25 fev. 1808). Nota-se a desconfiança e a constante vigilância exigidas pela tensão de fronteira. Da mesma forma, ao obter informações de outras fontes percebe-se como os circuitos fluem em direção aos nodos que são os comandantes de fronteira, os quais procuravam se assegurar dos acontecimentos ao sobreporem notícias. Dessa forma, Marques de Souza oferecia ao governador o relato mais consistente e preciso de que julgava dispor. A partir desses documentos nós constatamos a rivalidade entre os impérios português e espanhol na região platina, bem como a preocupação com a manutenção fronteiriça. Esse panorama está presente na documentação do Fundo de Autoridades Militares anterior à revolução de Buenos Aires. Porém, quando nos atemos a documentação espanhola, presente no Fundo de Autoridades Militares do Rio da Prata, a partir de 1811, compreendemos que o quadro passou para um auxílio entre os realistas e os portugueses, tornando-se o inimigo os insurretos de Buenos Aires, isto é, os revolucionários. Em carta datada do dia 11 de setembro de 1811, Benito Chain (oficial de milícias) escreve a Dom Diogo de Souza (capitão-general governador do Rio Grande de São Pedro), despachando-o dois pliegos remetidos pelo vice-rei das Províncias, endereçados a Chain. Prossegue a correspondência esperando que Dom Diogo: “[...]se digne auxiliarme con alguna tropa, y a lo menos providenciar que las partidas de la costa del Rio Negro se adelanten hasta los pasos de bera [sic] Yapeyú donde tengo mis avanzadas a fin de que operemos de acuerdo, y nos socorramos en cualesquiera apuro” (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, S/N, 11 set. 1811). Percebemos a importância da ação conjunta das tropas da Espanha e Portugal, porque, desse modo, elas têm mais chances de sucesso caso aconteça um confronto com o inimigo. Assim, a integridade dos espanhóis depende do avanço da parte lusitana, para combaterem juntos.

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Ademais, os portugueses tiveram centralidade em inúmeras ações, um exemplo aparece em correspondência datada do dia 8 de setembro de 1811, escrita em Serro Largo, de Joaquín de Paz (comandante de Serro Largo) para D. Diogo de Souza. O remetente escreve: […] un individuo de nación portuguesa tiene voz activa en el territorio dependiente de una comandancia principal de mi cargo, ¿ que más indicante de que los dominios de mi augusto soberano el Señor D. Fernando 7° están en poder de los pacificadores en esta parte de frontera?” (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 207, 8 set. 1811). A hierarquia comumente empregada pelos espanhóis, na qual Paz tem o território de Serro Largo sob o seu comando, nessa situação extraordinária foi dissentida, passando o poder para o Exército de pacificação da Banda Oriental – antigo Exército de Observação –, isto é, o exército português. Ele foi primeiramente feito para prevenir as lutas no Rio da Prata de chegarem aos domínios portugueses, a partir da Capitania do Rio Grande de São Pedro. No momento, servia em territórios espanhóis vinculado aos interesses realistas, contra as forças de Buenos Aires e dos orientais unidos a Artigas. A fim de manter a comunicação, percebemos que muitas correspondências do fundo de Autoridades Militares do Rio da Prata são de oficiais espanhóis ligados à Montevidéu noticiando o governador do Rio Grande de São Pedro, Dom Diogo de Souza. Por exemplo, no dia 15 de dezembro do ano de 1811, Dom Gaspar de Vigodet (capitão-general e governador das províncias do Rio da Prata) escreveu para Dom Diogo, informando-o sobre a perseguição ao caudilho Artigas, bem como a necessidade de auxílio de tropas portuguesas, ainda enviou um exemplar de gazeta com os acontecimentos de Buenos Aires (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 106, 15 dez. 1811). No dia 21 do mesmo mês, Vigodet escreveu novamente para Dom Diogo, informando novidades sobre Artigas, Para el debido conocimiento de V.E, me dispensaré el honor de decirle que el comandante del Uruguay el teniente coronel D. José Ventura Quintas, me participa últimamente que, cuenta de 6. de este mes, el caudillo Artigas empezó a parar el salto con las tropas de su mando; y que dudaba si obligaría a ejecutar lo mismo a las familias que le siguen (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 107, 21 dez. 1811). Ainda, contamos com outra missiva que ele escreveu no dia 31 do mesmo mês, sobre a localização de Artigas, na qual cita correspondência entre eles, datada de 27 corrente mês. Na carta do dia 31, Vigodet possivelmente repassou na íntegra as informações extraordinárias que recebeu de Benito Chain, sobre as indicações dos movimentos de Artigas e informações sobre a junta de Buenos Aires. Ele transcreve de Chain: Artigas se halla pasando el Uruguay en el salto [...] me aseguran hasta la evidencia, que la junta de Buenos Ayres ha remitido a Artigas los despachos de gobernador de misiones, pero él parece que hasta la presente no está decidido en sus proyectos [...] (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, S/N, 31 dez. 1811). Então, percebemos que a mais alta autoridade do vice-reinado do Prata mantém comunicação constante com o governador da Capitania de São Pedro, o qual é informado sobre os assuntos de relevância político-militar. Ademais, encontramos uma solicitação do vice-rei do Rio da Prata, abrigado em Montevidéu, Dom Francisco Javier Elío, por tropas portuguesas para auxiliar na defesa da Banda Oriental, como segue: No hay duda que el deplorable estado en que se hallaba todo el país español comprendido en esta banda oriental del Río dela Plata, obligó a que el exmo. Señor Virrey D. Francisco Javier Elío demandase las tropas del mando de V.E, haciendo uso con aquella oportunidad de las reales ordenes que para un caso

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de esta naturaleza, se habían obtenido dela dignación de S. A. R. el serenísimo señor príncipe regente de Portugal (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, S/N, 3 dez. 1811).

Assim, a aproximação entre as partes aconteceu enquanto forças defensoras do status quo, isto é, da situação vigente, defendiam a manutenção da monarquia tradicional do Antigo Regime. É acessível que as ações portuguesas foram controladas no território espanhol, conjecturamos que elas foram cuidadosamente planejadas, bem como manejadas a partir de uma constante comunicação política. Em carta dos mesmos remetente e destinatário da missiva sobrescrita, datada de 23 de julho, portanto, alguns meses antes, aparecem os transmites necessários para os lusitanos adentrarem uma parte do território espanhol, isto é, uma introdução de militares portugueses dependeria previamente do conhecimento dos habitantes. Escreveu Paz: Tengo el honor de acusar a V.E. el recibo de un oficio con las dos proclamas que se digna dirigirme relativas al pacífico objeto de la introducción de VExa en el territorio Español con alguna parte de las tropas de su mando; y aunque considero producirá esta entrada los efectos de beneficencia a que se [rasgado], es de mi obligación reunir el vecindario de esta Villa [...] (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 196, 23 jul. 1811). Ressalta-se que a vila em questão é Serro Largo (ou Cerro Largo, parte da Banda Oriental. Atual Mello, território do Uruguai). A carta data do mesmo dia que Manuel Marques de Souza tomou essa vila. As correspondências entre as partes, no fundo Autoridades Militares do Rio da Prata, não indicam mais sobre o assunto. Mas além disso, na próxima carta entre ambos, datada de 29 de julho, Paz escreve elogiando as tropas portuguesas para D. Diogo de Souza, ademais a carta provém de Serro Largo (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 197, 29 jul. 1811). Assim, em certo sentido, a tomada pode ter sido positiva, porque a povoação ficara protegida dos rebeldes. No que tange aos assuntos entre as Coroas, atemo-nos as cartas de Bernardo de Velasco, governador da província do Paraguai, porque são bastante intensas em relatos e comunicações com os portugueses. A exemplo, há relatos de batalhas de forças vinculadas ao governador de Montevidéu contra os revolucionários de Buenos Aires. Veslasco enviou-as a Dom Diogo de Souza, visando a movimentação de tropas, bem como torná-lo ciente da situação conturbada dentro do vice-reino do Rio da Prata. Em 23 de março de 1811 ele escreve para Dom Diogo, enviando uma adjunta cópia, sendo a original enviada ao Vice-rei Francisco Javier de Elío, sobre a batalha do dia 9 de março de 1811, contra os revolucionários de Buenos Aires na costa sul do rio Taquari (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, S/N, 23 mar. 1811). Por sua vez, o rementente pede que a lealdade “de estos nobles provincianos”, como chama os contrarevolucionários, seja informada ao embaixador Marqués de Casa Irujo, para que em primeira ocasião seja comunicada ao governo soberano da Nação, prossegue “no dudando que V.E la elevará a S. A el Señor Príncipe Regente , y a nuestra Infanta la señora Doña Carlota Joaquina de Bourbon”. Assim, percebemos que os portugueses estão incluídos na rede de comunicação contrarevolucionária. Em correspondência datada do dia 29 de março de 1811, Bernardo de Velasco escreve a D. Diogo de Souza: Lo expuesta que está la correspondencia a ser interceptada sólo me permite decir a V.E. que según las últimas partes que se me han dado, los insurgentes evacuaron ya el pueblo de Candelaria, ignorando hasta ahora el xumbo[sic] a que se han dirigido, que en mi concepto será el de corrientes, o algún otro paraje de la costa del este del Paraná [...] tengo expedidas las convenientes órdenes al comandante en jefe de las costas del Paraná Don Fulgencio Yegros a fin de que con las tropas de su mando vaya avanzándose a los pueblos de la banda del sur de [?] río para que vuelvan al estado antiguo de subordinación a

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las autoridades legítimas, y ponga libres las vías de la comunicación por esa parte. No dudo de los buenos sentimientos que caracterizan a V.E, y de los particulares favores que le debo, me hará el honor de pasarme noticia de cuanto ocurra relativo a las medidas que toma el exmo. Señor Virrey Elío, y de los movimientos de las tropas de Buenos Ayres enemigas declaradas de las dos Coronas: de un momento a otro aguardo iguales avisos del Exmo. Señor Capitán General de Mato Grosso por la parte del Perú (AHRS, Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 178, 29 mar. 1811). Nessa missiva percebemos o panorama de grande aproximação entre espanhóis realistas e portugueses, por meio de Velasco e Dom Diogo. Velasco oferece notícias de diferentes partes da América a Dom Diogo, em contrapartida, ele espera por notícias do capitão-general e governador português do Mato Grosso sobre o Peru. Concluímos com parte da sobredita missiva, a qual é uma clara solicitação para a união dos lusitanos com as tropas paraguaias na defesa dos territórios do rei Fernando VII da Espanha: “Me lisonjeo que unidas las valientes del Paraguay con las lusitanas toda la América del Sur no es capaz de sustraer los territorios de mi mando de la dominación del Señor Don Fernando séptimo, y unión a la Metrópoli”. Assim, observamos o intento de ampla cooperação entre partes significantes da América do Sul, em um projeto para apoiar a Metrópole contra os revolucionários. Portanto, os documentos do fundo de Autoridades Militares do Rio da Prata evidenciam a aproximação entre realistas e o império português, ambos preocupados em conter as ideias revolucionárias de independência e contestação. A troca de correspondências demonstra como eles trabalharam juntos nas ações contrarrevolucionárias, possibilitando compreensões sobre como essas foram concordadas e conduzidas. Para isso, a comunicação política assumiu uma composição mais ampla do que a usual, ultrapassando os domínios das Coroas, incluindo os inimigos históricos Portugal e Espanha, porque esses eram os meios possíveis para tentar manter a vitalidade dos impérios. REFERÊNCIAS Fontes primárias manuscritas Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares, maço 13, documento 72. 16 ago. 1809. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares, maço 12, documento 2. 25 fev. 1808. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento S/N. 11 set. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 207. 8 set. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 106. 15 dez. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 107. 21 dez. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento S/N. 31 dez. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento S/N. 3 dez. 1811.

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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 196. 23 jul. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 197. 29 jul. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento S/N. 23 mar. 1811. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Autoridades Militares do Rio da Prata, maço 216, documento 178. 29 mar. 1811. Fontes secundárias: AMEGHINO, E. Nuestra gloriosa insurrección. La revolución anticolonial de Mayo de 1810. Trama política y documentos fundamentalesA. Nuestra. 1a ed. Buenos Aires: Imago Mundi, 2010. COMISSOLI, A. A circulação de informações e o sistema de vigilância portuguesa da fronteira do Rio da Prata (século XIX). Revista Eletrônica Documento/Monumento, v. 13, p. 23-40, 2014a. _____. Contatos imediatos de fronteira: correspondência entre oficiais militares portugueses e espanhóis no extremo sul da América (séc. XIX). Estudios Históricos (Rivera), v. 13, p. 1-19, 2014b. _____. Espadas e penas: o papel dos comandantes de fronteira nos circuitos de comunicação política da capitania do Rio Grande de São Pedro (século XIX). Postais Revista do Museu dos Correios, v. 3, p. 11-29, 2014c. _____. Tive ocasião de informar-me melhor: espiões, informantes e comunicação política na fronteira platina, início do século XIX, 2011. Projeto de pesquisa. CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. A prática epistolar moderna e as cartas do vice-rei D. Luís de Almeida, O Marquês do Lavradio – Sentir, escrever e governar (1768-1779). São Paulo: Alameda, 2013.

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ENTRE A OBRA E O AUTOR: JORGE AMADO, AS ELITES BAIANA E O PODER Carolina Rehling Gonçalo 1 Mario Marcello Neto 2 VIDA Pouco podia-se esperar de um filho de fazendeiro plantador de Cacau no interior baiano durante o início do século XX, o auge da economia cacaueira. Menos ainda podia se esperar de um menino criado por uma sociedade machista, acostumado desde cedo a frequentar bordéis. Este mesmo garoto acompanhou batalhas campais em nome do poder e do dinheiro, coisas as quais, estranhamente, vai tentar se distanciar ao longo de toda a sua vida. Esse menino é Jorge Amado. Filho de um coronel do Cacau, o pequeno Jorge narra suas memórias em diversos livros seus, mas deixando isso de forma explícita em “O menino grapiúna 3”. Suas convicções políticas e ideológicas não vêm de berço e nem foram conquistadas ao esmo, compactuadas por um certo romper de ideias. Jorge viveu sua infância na região de Itabuna, cidade do interior baiano a qual demonstra no livro ter grande apreço. Todavia, a sua grande ruptura, ou que ele considera a sua primeira “prisão” se dá quando aos 13 anos de idade é mandado para um colégio interno para estudar. Acostumado com uma vida leve e solta, na qual acompanhava seu tio por bordéis, no qual conversava com prostitutas e confessa que essas tinham para com ele uma “ternura de mãe”, não conseguia se habituar a uma vida regrada e opressora imposta por um internato católico. Todavia, foi lá que ele teve os seus primeiros contatos com a literatura, algo que marcou a sua vida de forma definitiva. Jorge Amado, antes de escrever suas histórias costumava vive-las, segundo Alberto da Costa e Silva (2010), Jorge não criava histórias, mas inventava personagens de acordo com aqueles que ele conhecia e depois encaixava uma história que permitisse aquele personagem existir. Sendo assim, após toda a sua percepção de infância da guerra pelo poder que os latifundiários do Cacau travavam, a sua saga pelo sertão nordestino após sua fuga do reformatório na Bahia em direção a seu tio, no Pernambuco. Ao voltar para a família, convence seu pai sobre a possibilidade de ir morar na capital Salvador, mais especificamente na região do Pelourinho, a qual ficou marcada como um dos lugares mais importantes das suas obras. Amado tinha como característica a escrita política, algo que só adquiriu quando foi cursar (e acabou se formando) direito durante sua juventude. Só então que Jorge Amado conhece algo que vai ser substancial para a sua trajetória: o comunismo. ENGAJAMENTO Segundo Machado (2006), as obras de Jorge Amado circularam pelo mundo inteiro, foram traduzidas para inúmeras línguas, ele viajou para inúmeros países (muitas vezes exilado, tanto pela ditadura Vargas quanto pelo regime civil-militar estabelecido em 1964). Todavia, é nítido que a sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro permitiu a tradução e circulação de sua obra nos mais variados círculos sociais mundiais. Nesta perspectiva, Jorge Amado cumpre um papel importante, afinal a trajetória entre um menino filho de latifundiário que vai morar numa zona periférica e portuária de Salvador, no qual a prostituição, a bebida, os negros e pobres são os sujeitos que fazem a essência daquele lugar, contrastando a isso a ilusória política carioca, muito centrada em sujeitos distantes de uma realidade tão cruel, como aquela que o povo baiano sofria (AMADO, 2006). Sendo assim, Jorge Amado passou a fazer aquilo que considerava o ideal para um escritor: entreter e politizar. Através de um discurso carregado pelos conceitos e forma de ver o mundo comunista, deixa claro as lutas de classes, as opressões que o proletário sofre entre outras questões. Porém, Jorge sempre foi um comunista não

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Mestranda em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Pelotas. Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. 3 Nome dado para que nasce na região de Itabuna, interior baiano. 2

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dogmático. Em suas obras sempre chamava a atenção o fato da dualidade das questões e das contradições entre grupos sociais comuns. Esta questão fica evidente na obra “Capitães de Areia” na qual Amado descreve as aventuras de um grupo de meninos de rua pela cidade de Salvador no início do século XX. Neste livro, os meninos, que são os protagonistas, roubam, estupram e tem atitudes extremamente duvidosas com relação ao seu caráter. Todavia, a igreja, os membros da elite se revezam entre os benfeitores e preocupados em ajudar e aqueles que só exploram os outros. Essas relações duais são significativas para diferenciar a obra de Jorge Amado de muitas outras feitas por intelectuais comunistas desta época. Todavia, é possível, sim, encontrarmos a influência do comunismo na obra de Jorge. Fica nítido não só na sua maneira de ser contar as histórias e abordagens, mas, também, pelos personagens que escolhe como protagonistas. Em toda a sua carreira literária, Amado tem como seus personagens centrais: meninos de ruas, trabalhadores de fábricas, prostitutas e senhores do cacau. Esses membros da economia cacaueira são os grupos de elites prediletos de Jorge, nos quais ambienta-se em regiões como Itabuna e Ilhéus e descreve a pobreza da população, a crueldade e hipocrisia de uma sociedade elitista baiana. O engajamento de Jorge Amado não se manteve apenas no ambiente literário, muito longe disso. O “irmãozinho”, como Dorival Caimy o chamava, sofreu tanta pressão para participar do pleito eleitoral de 1946 que acabou se candidatando a Deputado Federal. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Jorge afirma que sempre foi contra a Academia e seus dogmas e diz que apenas a idade permitiu que ele se candidatasse aquela vaga, mas que deseja que os jovens também se mantivessem contrários aos dogmas, pois eles são todo de pior que uma sociedade pode ter. Continuando, Amado (2006) afirma ter sofrido outra prisão simbólica ao ter que engravatar-se e ir trabalhar na Câmara de Deputados. Obteve uma votação estrondosa e acabou exercendo por pouco tempo a sua legislatura, pois em 1947 foi cassado seus direitos políticos devido a recolocação do Partido Comunista Brasileira na ilegalidade. Durante a sua estada em Brasília, Jorge Amado propôs uma das mais importantes leis federais da época, que ia completamente ao encontro de sua militância literária: a lei de livre culto as religiões. Em sua obra como “Pastores da Noite”, “O roubo da Santa” e já comentada “Capitães da Areia” fica marcado o preconceito e o estigma que as religiões afro-brasileiras passavam para poderem (quando podiam) se manifestar religiosamente. Sua lei está em vigor até hoje e, por ironia do destino, e a partir dela que religiosos fundamentalistas se apoiam para defender a posição de livre culto confundido culto religioso com crime de ódio. PERCEPÇÃO DA REALIDADE: ANÁLISE O romance é capaz de oferecer o fato perpetuamente potencial, uma vez que é inconcluso, ele pode ser visto como possibilidade, bem como, como iminência e como criador da realidade. Segundo Fuentes (2007) a pugna acerca da realidade foi superada poeticamente, ou seja, através da prática da literatura, de forma que muitas obras assumem a realidade visível, construindo assim uma nova realidade que antes de ser escrita era invisível. Ou seja, ao analisarmos a obra de Jorge Amado percebe-se o seu caráter histórico e seu compromisso com a realidade da época, ao mesmo tempo em que o autor levanta questões que não eram discutidas pelos poderes públicos como é o caso dos menores de idade que viviam nas ruas de Salvador no período em que Capitães da Areia foi escrito e lançado. Sua obra é permeada por questões de ordem política deixando bem claro a posição por ele escolhida a ser ocupada, sua militância convida e tem também como objetivo mostrar as pessoas formas de lutar por seus direitos. Uma vez que o próprio amado se reconhecia como um escritor das prostitutas, dos pobres e marginalizados percebe-se assim que sua obra busca representar aqueles que não eram ouvidos e mesmo os que na época não tinham voz ativa na sociedade. Jorge Amado usa então de seu poder como escritor para dar voz aos menos favorecidos, fazendo de sua escrita algo que denuncia as desigualdades por muitos silenciadas como afirma Fuentes:

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Dito de outra maneira: o ponto onde o romance concilia suas funções estéticas e sociais se encontra na descoberta do invisível, do não-dito, do esquecido, do marginalizado, do perseguido, fazendo-o, ademais, não em necessária consonância, mas, muito provavelmente, como exceção aos valores da nação oficial, às razões da política reiterativa e também ao progresso como ascensão inevitável e suposta. (FUENTES, 2007.p.22). O conteúdo de um romance é capaz de responder a pergunta de como traduzir a experiência da realidade, não é que a história do romance seja uma evocação a história, mas essa assume o papel de correspondente da história, fazendo com que este grande compromisso do romance com a realidade imaginada, com a narração da sociedade e de sua cultura assuma um compromisso de inventar verbalmente uma segunda história sem a qual a primeira ficaria ilegível, isso exige um campo bastante ampliado de recursos técnicos, bem como a vontade de abertura do autor e a construção da relação que envolve criação e tradição, como é percebido nas obras de Amado. Segundo alguns autores entre eles Machado (2006), Jorge Amado no decorrer de sua obra passou por duas fases de escrita, que ilustradas aqui podem auxiliar na compreensão das mesmas. Num primeiro momento de sua carreira como escritor, Amado, ainda jovem e militante pelo partido comunista acreditava que precisava mostrar as pessoas suas ideias, que precisava levar ao conhecimento dos demais as ideias as quais compartilhava, e com isso fez de sua literatura um veículo o qual alguns elementos em comum são identificados como: greves, jargões, ideias de revolução, entre outros. A tabela abaixo ilustra as fases de Jorge Amado segundo Machado: Tabela 1

Romances da 1ª Fase

Romances da 2ª Fase

O país do Carnaval (1931)

Gabriela, cravo e canela (1958)

Cacau (1933)

De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto (1959)

Suor (1934)

Os velhos marinheiros ou O Capitão-de-longo-curso (1961)

Jubiabá (1935)

A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1961)

Mar Morto (1936)

O compadre de Ogum (1964)

Capitães da Areia (1937)

Os pastores da noite (1964)

ABC de Castro Alves (1941)

As mortes e o triunfo de Rosalinda (1965)

O Cavaleiro da Esperança (1942)

Dona Flor e seus dois maridos (1966)

Terras do sem-fim (1943)

Tenda dos Milagres (1969)

São Jorge dos Ilhéus (1944)

Tereza Batista cansada de guerra (1972)

Bahia de Todos-os-santos (1945)

O gato malhado e a andorinha Sinhá (1976)

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Seara Vermelha (1946)

Tieta do Agreste (1977)

O amor do soldado (1947)

Farda, fardão, camisola de dormir (1979)

Os subterrâneos da liberdade:

O milagre dos pássaros (1979)

Os ásperos tempos (1954)

O menino grapiúna (1981)

Agonia da noite (1954)

A bola e o goleiro (1984)

A luz no túnel (1954)

Tocaia Grande (1984)

-

O sumiço da santa (1988)

-

Navegação de cabotagem (1992)

-

A descoberta da América pelos turcos (1992)

-

Hora da Guerra (2008) Fonte: Machado (2006)

Através de sua literatura Amado disse tudo que pensava e o que criticava, como pode-se perceber no trecho de Capitães da Areia ao se referir a um dos meninos de rua: “-Este menino promete. É pena que o governo não olhe essas vocações... –e lembravam casos de meninos da rua que, ajudados por famílias, foram grandes poetas, cantores e pintores.” (AMADO, 2008.p.81). Na mesma obra, o autor defende seu ponto de vista e sua ideologia criando personagens que são perseguidos por seus ideais como é o caso do Padre José Pedro, que chega a roubar da igreja para ajudar os meninos de rua ignorados pelo governo, como ilustra o trecho em que o padre é reprendido por seu superior: Cale-se – a voz do cônego era cheia de autoridade. – Quem o visse falar diria que é um comunista que está falando. E não é difícil. No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido as teorias deles...O senhor é um comunista, um inimigo da igreja... (AMADO, 2008.p.155) Capitães da Areia (1937), assim como Cacau (1933) trazem em sua trama a ideia de revolução que tem como primeiro passo a organização dos trabalhadores por alguém que vem de fora e organiza uma primeira greve, como percebe-se nos últimos capítulos de Capitães da Areia, um deles intitulado: “Companheiros” onde é narrado um movimento diferente na cidade, que faz com que o porto esteja parado pelo fato de os doqueiros terem ido prestar solidariedade aos condutores de bonde que estão em greve (AMADO, 2008, p.155). Pedro Bala um dos protagonistas da obra e líder do grupo de meninos que viviam pelas ruas da Bahia tem como destino a organização de greves, passando a ser um procurado pela polícia por lutar por direitos trabalhistas. Em Cacau, o protagonista conhecido como Sergipano, mais um nordestino que migrou em busca de melhores condições de vida e que acaba como escravo nas lavouras de cacau, ao fim da narrativa decide abandonar a vida sofrida nas lavouras pois a “luta de classes” o chamava, de forma que o personagem “vai a luta”. Este romance igualmente apresenta um capítulo intitulado: “Greve” (AMADO, 2000.p.123), sendo a partir dele as narrativas de lutas dos trabalhadores. A dita segunda fase do autor tem início com o romance Gabriela Cravo e Canela (1958), que apresenta algumas modificações no conteúdo da escrita, Jorge Amado embora tivesse se decepcionado com o comunismo, não deixa de acreditar no socialismo, continua a fazer suas críticas denunciar aquilo que não concorda e que é ignorado mas sem trazer a já conhecida “revolução”, as greves, jargões e revoluções desaparecem de sua obra, dando lugar a lutas diferentes mas sempre com alguma denúncia, como é narrada a chegada de Gabriela em Ilhéus, uma retirante, sertaneja encontrada por Nacib no “mercado dos escravos”: “[... vestida de trapos miseráveis, coberta de tamanha sujeira que era impossível ver-lhe as feições e dar-lhe idade, os cabelos desgrenhados, imundos de pó, os pés descalços.” (AMADO, 2012.p.107).

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Desta forma, as mulheres protagonistas de suas histórias passam a povoar seu universo literário, como é o caso de Tieta do Agreste (1977), Tereza Batista Cansada da Guerra (1972), Dona Flor e seus dois maridos (1966), todas grandes mulheres, assim como Gabriela, guerreiras. Seus romances adquirem um novo tom na escrita que passa também a mostrar ao mundo o modo e costumes de viver. Sem jamais abandonar o caráter político. DECEPÇÃO COM O COMUNISMO Um dos momentos mais significativos para os comunistas da metade inicial do século XX foi, sem dúvidas, as descobertas dos crimes cometidos por Stálin a partir de 1956 com o discurso de Nikita Kruschev na convenção nacional russa do Partido Comunista. Uma grande parte dos intelectuais do mundo inteiro tiveram suas concepções de mundo obliteradas por estas questões. A descoberta de todas as mortes, perseguições, campos de trabalhos forçados e outras artimanhas políticas utilizadas por Stálin em um Estado que era visto como um modelo de esquerda e que almejava o comunismo se corrói. Uma grande parte da intelectualidade de esquerda foi impactada pelas descobertas de algo que era, até 1956, escondido. Muitos desses pensadores de seu tempo tiveram desilusões com o comunismo, dissidências com o Partido Comunista de seu país até a mudanças mais drásticas como a alteração da forma de ver o mundo e acreditar na revolução. Segundo Hobsbawm (1995) Esse foi o caso ocorrido com Jorge Amado. Segundo o autor no seu livro autobiográfico “Navegação de Cabotagem”, em nenhum momento, dos diversos excertos escritos por Amado ele se dedica a falar exclusivamente de Kruschev ou das desilusões com o comunismo. Todavia, fica explicitado a sua euforia em tratar o novo governo soviético como “um período de liberdade” (AMADO, 1992), algo que não percebera nos tempos de Stálin. Embora eufórico com o novo governo, as desilusões com o governo do camponês Nikita Kruschev logo afloraram. Em outra passagem do livro supracitado, em uma viagem a Moscou, transcreve um diálogo seu com Pablo Neruda, no qual diz abertamente que esperava que o governo em questão fosse melhor, porém não dava carta branca a ninguém, e preocupava-os a sua aproximação ao polêmico estadista iugoslavo Josip Tito. Segundo Hobsbawm: Esse admirável diamante bruto, um crente na reforma e na coexistência pacífica, que aliás esvaziou os campos de concentração de Stálin, dominou o cenário internacional por poucos anos seguintes. Foi talvez o único camponês a governar um grande Estado. (HOBSBAWM, 1995, p. 239-240) Essas percepções de Amado surtiram, praticamente, em desilusões política e ideológicas do autor. Suas convicções literárias e suas formas de ver o mundo mudaram. A revolução, antes necessária e que deveria passar por uma guinada capitalista, um período de relações tensas, depois a tomada do poder pelo proletariado até chegar ao comunismo deram espaços a pensamentos mais fluídos, que não pensa tanto nas relações entre operários e patrões, mas permite pensar as donas de casa, as prostitutas, que já eram seu objeto de discussão, só que agora sobre outro aspecto. Não mais guiado por conceitos, por estreitamentos de ideias e a necessidade de um combate entre as classes, passa a atentar-se ainda mais pela diversidade humana, pelas relações desiguais, contudo, essas não necessariamente apontam para uma revolução e ou tomada de consciência. Muito mais arraigado num caráter denunciante e preocupado com a realidade que o cerca, Jorge Amado não deixou de ser utópico, mas passou a pensar o mundo, através da sua literatura, de forma mais ampla e fluída. Um episódio ao qual Jorge Amado faz referência no seu livro autobiográfico supracitado tem clara acepção com o que foi o governo Kruschev e as suas concepções sobre o processo de limpar as marcas deixadas pelo Stálin na URSS. Jorge Amado em 1951 é agraciado com um o mais importante prêmio das nações comunistas: o prêmio “Stálin da Paz”. Nomes como Mao Tse-Tung, Che Guevara, entre outros foram agraciados com tal prêmio. Todavia, com a posse de Kruschev e seu início de governo, um de seus projetos para apagar a memória negativa de Stálin foi trocar o nome do prêmio anteriormente “Stálin da Paz” para “Lênin da

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Paz”, tais questões implicaram em um pedido formal recebido por Amado solicitando a devolução da medalha de 1951 que possuía Stálin gravado, para que em seu lugar estivesse a nova medalha, “Lênin da Paz”. Jorge Amado fala deste episódio com certa tristeza, por ter sido coloca em um dilema ao qual se viu obrigado a negar o pedido de devolução, uma vez que sua carreira internacional decolou principalmente pelo recebimento de um prêmio que agora deveria ser devolvido. Essa questão comprova a gênese do que foi as decepções de Amado tanto com os crimes de Stálin quanto as práticas contraditórias de Kruschev que o levaram a tomar outro rumo em sua atuação política, se desfiliando do PCB e adotando novas posturas na forma em que concebe e pensa a sua literatura. PALAVRAS FINAIS Sendo assim, como forma de concluir este trabalho, podemos apontar brevemente que a obra e a vida de Jorge Amado são permeadas por elementos que se cruzam e impactam diretamente na história do Brasil do século XX. Sua trajetória política foi marcada pela sua inserção na Câmara dos Deputados, todavia sua atuação fora da política através de sua literatura e influência em meios políticos foram exercidas de maneiras claramente distintas em cada uma de suas fases. A perspectiva de desilusão com o comunismo fica claro quando se percebe na obra do autor uma maior maleabilidade nas abordagens, pensando as elites, por exemplo, de maneira não linear e apenas exploratória, mas de formas diversas e que apontam para um mundo em crescentes problemáticas, com difíceis soluções. Além disso, é preciso destacar que sobre o autor (e não a sua obra) existem muito poucas pesquisas dada a quantidade de fontes que há disponível. A Fundação Casa de Jorge Amado, localizada no centro do Pelourinho, na cidade de Salvador (Bahia) possui um acervo gigantesco sobre o autor. Lá constam arquivos gratuitos para pesquisa que vão desde manuscrito de livros, cartas até a coleção fotográfica de Zélia Gattai (esposa de Jorge) que possui centenas de fotos de Jorge Amado em suas viagens, com seus amigos e diversos outros momentos. Contudo, embora saiba-se da baixa incidência de pesquisas sobre Jorge Amado, é notório a sua mudança após o discurso de Kruschev em 1956, e diversas das suas ações posteriores foram tomadas de formas diferenciadas, a qual permite inferir que Amado pode ter a liberdade para escrever suas obras da segunda fase de tal maneira que nunca teria tido no período que corresponde a sua entrada no curso de direito no Rio de Janeiro (1930) até sua morte. Pois mesmo não mais acreditando no comunismo, Amado não deixa de acreditar no socialismo, suas obras após a desilusão adquirem um novo tom, continuam carregadas de elementos políticos, de críticas ao modelo de sociedade vigente, dando ênfase aos seus considerados heróis, malandros, operários, prostitutas, os renegados por todos. Assim, o que percebe-se em seus romances é uma mudança no conteúdo, onde as lutas de cada dia, os costumes e modos de viver serão mais valorizados adquirindo uma fluidez que a partir daí não precisa mais acabar com greves, revoluções, organizações políticas que chegam camufladas num meio remoto para transformar aqueles que necessitam da luta pelos seus direitos. Apenas os jargões e alguns pontos que de certa forma tornavam-se repetitivos desaparecem de suas obras, dando espaço à escrita sem amarras, sem restrições, livre e esperançosa de sempre. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2006. AMADO, Jorge, Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. AMADO, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Record, 2000. AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. AMADO, Jorge. Jorge Amado: Discursos. Salvador: Casa de Palavras, 1993.

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AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem. São Paulo: Círculo do Livro, 1992. AMADO, Jorge. O Menino Grapiúna. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006. AMADO, Zélia Gattai; AMADO, Paloma Jorge; AMADO, João Jorge. Um baiano romântico e sensual: três relatos de amor. Rio de Janeiro: Record, 2002. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. COSTA E SILVA, Alberto da. Prefácio. In: AMADO, Jorge. Essencial. São Paulo: Penguin Book, 2010. FERREIRA, Jorge (Org.). O Populismo e sua História: Debate e Crítica. Rio De Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2001. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia. (Org.) O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FUENTES, Carlos. Geografia do romance. (trad. Carlos Nougué) Rio de Janeiro: Rocco, 2007. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MACHADO, Ana Maria. Romântico, sedutor e anarquista: como e por que ler Jorge Amado hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

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INTELECTUAIS EM REDE PARA A CONSTRUÇÃO DE CONSENSO PRÓAMERICANISTA NA AMÉRICA LATINA: UMA HIPÓTESE DE PESQUISA Josiane Mozer 1

Historicamente, as bases para a construção da hegemonia norte-americana foram lançadas há muito, renovando-se e intensificando-se após o fim da segunda guerra mundial, espraiando-se rapidamente por diversas regiões na disputa político-econômica travada com a então União Soviética 2. Considerando a América Latina uma das regiões sob influência do poderio norte-americano, desnudar os caminhos e as estratégias aplicados na construção da hegemonia dos Estados Unidos na região é condição imprescindível para o entendimento de sua história política, econômica e social. No contexto de Guerra Fria, a região significou a possibilidade, para os Estados Unidos de, através de estratégias econômicas, políticas e militares, visíveis ou encobertas, assegurar a expansão de sua economia (garantia de mercado consumidor para produtos industrializados e mercado fornecedor de insumos). Tratados comerciais e de cooperação político-militar forneceram as bases para forjar alinhamento econômico e político sobre a região 3, e à medida que se radicalizou a tensão da Guerra Fria, ideias de caráter difuso, mas com potencial aglutinador (como democracia, liberdade, desenvolvimento e anticomunismo), foram utilizadas para formar a base legitimadora das ações construtoras da hegemonia norte-americana 4. Na primeira fase da Guerra Fria, especificamente durante a década de 1950, os Estados Unidos estavam mais preocupados com os perigos oferecidos pelos movimentos nacionalistas do mundo árabe, e a América Latina ocupava um lugar menor na escala de interesses estratégicos norte-americanos. O quadro mudou substancialmente a partir da Revolução Cubana. O aparato político e militar ganhou reforço e justificativa para recrudescimento nas ações efetivas, marcando um novo período de interferência do governo norte-americano na região. A estratégia envolvia programas de apoio ao desenvolvimento, como a Aliança para o Progresso, ações de divulgação cultural, além de ações encobertas entre as quais pressões a chefes de governo, propaganda ideológica, atentados, articulações golpistas e ajuda efetiva (financeira, militar, estratégica) a golpes de estado (MONIZ BANDEIRA, 2005; DREIFUSS, 2006). Embora menos evidente, as ações culturais foram de fundamental importância para a estratégia de influência dos EUA sobre a América Latina. O cinema, o rádio, a imprensa, a educação e editoras figuraram, nesse contexto, como instrumentos importantes para a produção de consenso, e o

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Doutoranda em História, UFRGS, bolsista CAPES. O conceito de hegemonia aqui adotado está ancorado no pensamento de Antonio Gramsci que, em linhas gerais, o entende como o poder exercido por um determinado grupo com o consenso e consentimento de parte dos subalternos, mas não sem enfrentar a luta de um grupo ou grupos contra-hegemônicos que colocam essa hegemonia em constante disputa. As bases históricas aqui referidas dizem respeito à política expansionista praticada pelos governos norte-americanos desde a independência e ideologicamente sustentadas pela doutrina ideológica denominada Destino Manifesto. 3 Doutrina Truman, Plano Marshal, Tratado Interamericano de Assistência Recíproca - TIAR, Doutrina de Segurança Nacional - DSN, Organização dos Estados Americanos - OEA, em especial. Sobre a legislação norteamericana autorizando invasões e ações secretas em países estrangeiros, informações consultadas em SAUNDERS, 2008, p. 54-55, 115. São elas: NSC-10/2 de 1948; NSC-68, de 1950. 4 Embora não fosse novidade enquanto discurso legitimador para o controle social, o anticomunismo, durante toda a Guerra Fria, foi usado de forma difusa e maleável, ajustável a qualquer necessidade de controle sobre movimentos sociais de base ou sobre movimentos intelectuais. Definição de anticomunismo pode ser consultada em RODEGHERO, 2007, p. 21. 2

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Departamento de Estado não poupou esforços e recursos, mobilizando agências de Estado na elaboração de um amplo programa de interferência cultural não só para a América Latina, mas para toda e qualquer região fora do bloco comunista. A cultura como recurso de propaganda ideológica teve, como se sabe, ampla utilização durante a Segunda Guerra Mundial. Dos escritórios norte-americanos montados para esse fim em tempos de guerra, especialmente o Office of Strategic Services e Office of War Information, vieram as bases e o know how necessários para as ações futuras das novas agências do Departamento de Estado em tempos de paz, especialmente a Central Intelligency Agency - CIA e a United States Information Agency - USIA. Criada pela Lei de Segurança Nacional em 1947, a CIA nasce com o propósito de coordenar as informações militares e diplomáticas e ser um braço executor dos interesses determinados pelo Conselho de Segurança Nacional. Os termos em que a CIA foi criada institucionalizaram os conceitos de “mentira necessária” e “desmentido plausível”, pondo em movimento um perverso sistema de abusos de poder dentro e fora do país (SAUNDERS, 2008, p. 47-48). Legitimada e aparelhada pelo governo norteamericano para intervir à margem da lei em assuntos de seu interesse, a CIA agiu secretamente em todas as esferas, do militar ao político-econômico, passando pela cultura. A sua intervenção cultural, no entanto, é menos conhecida, embora já objeto de algumas pesquisas de fôlego que revelaram as estratégias desenhadas pelo Departamento de Estado no seu objetivo de construção do “americanismo”, isto é, convencer o mundo ocidental que os modelos político, econômico e cultural propostos pelos Estados Unidos eram não só a melhor opção diante da investida soviética, como a única possível para promover o desenvolvimento e garantir a paz. E a estratégia, velada, era a interferência na produção e manipulação de ideias e valores de maneira sistemática e permanente, estratégia de guerra, a cultural war. Da produção cultural norte-americana, no pós-segunda guerra, pouca coisa escapou do princípio americanista. A política cultural secreta desenhada e praticada pelo Departamento de Estado alcançou praticamente todas as esferas da produção cultural, envolvendo um sem número de artistas das mais variadas formas de expressão (literatura, cinema, artes plásticas, música), produtores, professores, editores das mais diversas áreas do conhecimento, além da criação ou interferência em instâncias legitimadoras, como universidades, associações profissionais, galerias de arte e etc. Para isso, as agências de inteligência e informação (CIA e USIA, especificamente) contavam com recursos abundantes e sem a necessidade de prestação de contas ao Congresso. O consórcio construído pela CIA - composto pelo que Henry Kissinger 5 descreveu como ‘uma aristocracia dedicada a servir a esta nação em nome de princípios suprapartidários’ – foi a arma oculta da luta dos Estados Unidos na Guerra Fria, uma arma que, no campo cultural, teve amplas consequências. Gostassem ou não, soubessem ou não, poucos foram os escritores, poetas pintores, historiadores, cientistas ou críticos da Europa do pós-guerra cujos nomes não se ligassem de algum modo a essa iniciativa secreta. Não questionado nem detectado por mais de vinte anos, o establishment da espionagem norte-americana pôs em funcionamento uma frente cultural sofisticada e substancialmente financiada no Ocidente, para o Ocidente, em nome da liberdade de expressão. Definindo a Guerra Fria como uma ‘batalha pela mente dos homens’, ele acumulou um vasto arsenal de armas culturais: revistas, livros, conferências, seminários, exposições artísticas, concertos e premiações (SAUNDERS, 2008, p. 14). Soma-se à atuação cultural secreta da CIA, e em total sintonia com os princípios americanistas concebidos pelo Departamento de Estado, a atuação da USIA. Fundada em 1953, 6 anos após o surgimento

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Diplomata norte-americano. Atuou entre 1968 e 1976.

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da CIA, teve seu foco de atuação para o combate ao comunismo orientado para a divulgação dos valores culturais e promoção do american way of life, no âmbito da diplomacia pública. Sua atuação não deveria envolver, a princípio, ações encobertas como sempre foi o caso da CIA. Entretanto, também essa Agência usou do ocultamento de suas ações para atuação em países estrangeiros. A USIA foi responsável pela execução de 4 objetivos estratégicos na política de Estado publicamente declarados: 1) explicar e defender as políticas dos Estados Unidos para as culturas estrangeiras; 2) fornecer informações sobre as políticas oficiais dos Estados Unidos e suas instituições; 3) aproximar interesses de cidadãos e instituições norte-americanas aos seus homólogos estrangeiros; 4) assessorar o presidente e os formuladores de políticas dos Estados Unidos sobre os países de interesse. Para alcance desses objetivos, agindo ora abertamente, ora de forma encoberta, a Agência impulsionou um vasto leque de atividades: radiodifusão, formação de bibliotecas, publicação e distribuição de livros, divulgação e /ou produção de filmes, organização de exposições, ensino da língua e cultura norteamericanas. Paralelamente aos propósitos da política governamental norte-americana e em plena sintonia com ela surgem, nesse período, instituições e fundações culturais, sem fins lucrativos, destinadas a propagar ao mundo o estilo de vida norte-americano. Dentre as inúmeras instituições, Franklin Publications (1952) e Farfield Foundation (1952), criadas para acobertar ações das agências de Estado, além da Ford Foundation (1936) e Rockeffeler Foundation (1913), também envolvidas (SAUNDERS, 2008, p.152-153). Tem-se, portanto, a estrutura da política de intervenção dos EUA para a Guerra Cultural: duas agências de informação com amplos recursos e liberdade de ação, e a utilização de organizações privadas – existentes ou forjadas - para encobrir as suas ações. Dentro dessa estrutura surge o Congresso pela Liberdade da Cultura 6, que foi o grande recurso de atuação e interferência cultural da CIA no exterior. A rede de cooptação posta em marcha pelo CCF foi impressionante. Sua sede – secretaria executiva – ficava em Paris, mas contava com escritórios na Alemanha Ocidental, Grã-Bretanha, Suécia, Dinamarca, Islândia, Japão, Índia, Paquistão, Austrália, Líbano, Argentina, Peru, Chile, Colômbia, Uruguai, México, Brasil. Funcionou por 17 anos e recebeu dezenas de milhões de dólares (SAUNDERS, 2008, p. 119, 147). Cinco anos depois, em 1955, o CCF já estava estruturado com o grupo de presidentes de honra, um comitê executivo, um secretariado internacional, sediado em Paris, uma rede de publicações, diversos comitês em vários países e o comitê ciência e liberdade. Na agenda de financiamento estavam colóquios, viagens de intelectuais, ajuda a intelectuais e artistas perseguidos e uma rede internacional de periódicos, dirigida pelo alemão-suíço François Bondy. Financiadas pelo Congresso pela Liberdade da Cultura, e na maioria fundada pelo CCF, constavam, entre as mais importantes da lista: Preveus (1951), Cuadernos (1953), Encouter (1953), Forum, Cadernos Brasileiros (1959-1970), Jiju, Survey, Quadrant, China Quartely, Tempo Presente, Minerva, Comment, Hiwar, Black Orpheus, Sassangue, Transition, Mundo Nuevo e Monat (CANCELLI, 2012, p. 68). Os congressos e os periódicos orientavam-se por um discurso de defesa da liberdade e da democracia e na articulação entre pró-americanismo e combate ao totalitarismo. Para uma parcela da sociedade norte-americana – os WASPs 7 - os Estados Unidos estariam destinados a salvaguardar a humanidade com seus princípios caros: a liberdade e a democracia. Nesta

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O Congresso pela Liberdade da Cultura (Congress for Cultural Freedom – CCF) foi criado pela CIA em 1950 e organizado com a ajuda de intelectuais e artistas considerados de tendência à esquerda mas não comunistas, para promover a defesa do livre pensamento. O objetivo era combater a organização de uma rede internacional de intelectuais de esquerda comunista reunidos em torno do Congresso pela Paz Mundial. 7 White Anglo-Saxon Protestant.

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chave de compreensão de sua “missão universal” no pós-guerra, o combate ao comunismo tornou-se a principal bandeira. Numa campanha propagandística finamente orquestrada pelo governo norte-americano, o aliado comunista pela liberdade transformou-se, no imediato pós-guerra, no maior representante do terror. Saiu o nazi-fascismo, entrou o comunismo, o grande mal a ser combatido. A orientação teórica para estruturação das ações da guerra cultural empreendidas pelo Departamento de Estado partiu de Arthur Schlesinger Jr. 8. Em artigo publicado pela New York Times Magazine em abril de 1948, e depois em livro, publicado no ano seguinte, Schlesinger defendia a ideia da via do meio, o “Vital Center”, “união da esquerda não comunista, do centro e da direita não fascista, com vistas à liberdade e à democracia” (CANCELLI, 2012, p. 122). Tais ideias penetraram no Departamento de Estado norte-americano graças à influência de seu autor junto às esferas de comando do país. O termo totalitarismo, revisto no imediato pós-guerra, vem ao encontro desses objetivos e funciona como forte suporte ideológico aos propósitos norte-americanos: Embora criticado como sendo muito mais uma adjetivação do que um conceito, o termo totalitarismo se transformou figurativamente em uma espécie de símbolo político e intelectual que comparava os regimes nazista e comunista da União Soviética, fundamentalmente, embora houvesse também uma tendência, tendo em vista a própria história de criação do conceito, que o estendia aos regimes fascistas e autoritários, tão em voga no mundo inteiro, especialmente a partir dos anos de 1930. Além da literatura específica da área de humanidades que daria ênfase à questão do totalitarismo, especialmente à estrutura de Estado, a análise sobre o horror que este novo Estado – fundamentalmente antiliberal – havia engendrado, vinha acompanhada de uma severa crítica política e ética, à perda de liberdade do homem e ao extermínio em massa. Os trabalhos de Hannah Arendt, As origens do totalitarismo, de 1951; de Carl J. Friedrich, A ditadura totalitária, de 1957; e de Zbigniew K. Brzezinski, The Permanent Purge: Politics in Soviet Totalitarism, 1956, levaram a marca e repercutiram como exemplo de pensadores que não se alinhavam com a direita, mas que eram extremamente críticos sobre a realidade soviética e não hesitaram em utilizar o termo totalitário ao se referirem ao regime de Stalin. (CANCELLI, 2012, p. 123) Estavam dadas as principais diretrizes teóricas para implementação das estratégias de combate ao comunismo na guerra cultural: a cooptação de intelectuais de esquerda cuja posição demonstrava-se crítica aos caminhos políticos e econômicos da URSS, mas de maneira a parecer ser uma manifestação espontânea e articulada pelos próprios intelectuais. Daí o esquema de ação velada da CIA na organização do Congresso pela Liberdade da Cultura 9. Na América Latina, o Congresso para a Liberdade da Cultura começou a agir na década de 50, fundando as associações locais do Congresso e seus respectivos periódicos de divulgação em língua espanhola, a Cuadernos. A Associação Brasileira do Congresso pela Liberdade da Cultura foi fundada

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Pertencente à elite intelectual branca, anglo-saxônica e protestante. Serviu, durante a guerra, nos dois órgãos de inteligência e informação do exército norte-americano, o Office of War Information e o Office of Strategic Services. Tornou-se professor de História de Harvard em 1946. 9 A URSS desenvolveu estratégia semelhante e, através dos Congressos pela Paz Mundial (World Peace Congress), uma tradição do movimento comunista no mundo em ação desde a década de 20, enfatizava os limites e intolerância da democracia norte-americana, que erigia-se negando direitos civis a negros e condenando à miséria nações sob sua área de influência.

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em abril de 1958 com a presença de 48 intelectuais e com um periódico de divulgação, a Revista Cadernos Brasileiros, que circulou de 1959 a 1970 10. (JANNELLO, 2013; CANCELLI, 2012). Das ações realizadas pela USIA, destacam-se o programa de rádio Voz da América 11, sua vasta produção cinematográfica e um amplo programa de edição e distribuição de livros. Seus projetos e programas de propaganda ideológica contaram com uma estrutura própria e com a formação de redes de intelectuais. Utilizou-se amplamente de instituições aparentemente independentes para a realização velada de suas ações, já que presença aberta de um órgão do Departamento de Estado norte-americano em ações culturais estrangeiras costumava despertar desconfiança e repulsa. A instituição sem fins lucrativos, Franklin Publications, posteriormente rebatizada Franklin Book Programs, serviu de fachada para o programa de edição e distribuição de livros anti-comunistas e pró-americanistas e atuou por 26 anos em mais de 28 países, dentre eles o Brasil.

POR UMA AGENDA DE PESQUISA

O termo Guerra Fria Cultural vem ganhando espaço em diversos estudos e apresenta-se já como uma consolidada frente de investigação histórica. (JOHNSTON, 2010). Compreende, via de regra, as ações de propaganda e guerra psicológica travada entre Estados Unidos e União Soviética na disputa por hegemonia, lançando mão de ações explícitas ou veladas de controle de ideias e propagação de valores. Entretanto, cada vez mais abre-se espaço para investigações que priorizam as relações de poder entre os EUA e sua zona de “influência” durante a Guerra Fria. Autores como Francis Stonor Saunders (2008) e Nicholas Cull (2008) produziram, respectivamente, pesquisas de fôlego para demonstrar a extensão das ações veladas da CIA e USIA no campo cultural e, ao que tudo indica, há ainda muito a se conhecer sobre o assunto. O resultado de buscas por bibliografia em bases de dados demonstra ser um assunto com pouca produção científica. Isso em razão da dificuldade de acesso a fontes documentais: à medida em que documentos oficiais são desclassificados, aumentam as possibilidades para novas pesquisas. A lacuna maior diz respeito à produção científica que investiga a América Latina nesse contexto. Entretanto, a produção científica já existente revela não só aspectos relevantes para a compreensão ampliada da Guerra Fria, como a importância do envolvimento de intelectuais na construção do conflituoso século XX. Destaco alguns trabalhos por mim consultados. Louise Robbins, ao analisar as origens e atuação da Franklin Book Programs, associação independente e sem fins lucrativos destinada à publicação de livros para enaltecer a democracia e a liberdade norte-americanos em países considerados frágeis política e economicamente, relata a intrínseca relação havida entre a USIA, intelectuais, editoras e universidades norte-americanas na fundação da associação e na formulação de suas diretrizes, assim como o ocultamento da presença da USIA no seu financiamento. Sua atuação perdurou por décadas, ampliando substancialmente regiões de atuação, incluindo, além do Oriente Médio, a Ásia, África e a América Latina. (ROBBINS, 2007, p. 643). A análise que Mary Niles Maack faz da Franklin Book Programs evidencia outra faceta de seu modus operandi: a “parceria” com editoras sediadas nos países de atuação. Embora sua análise circunscreva-se à África, o histórico por ela levantado apresenta a estrutura e táticas de atuação que, tudo indica, seguiu um padrão: escolha de autores alinhados com os interesses norte-americanos e cuja obra valorizasse a sua cultura e o seu modo de vida, sugestão de títulos, preferencialmente de autores

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Chile e Uruguai em 1953. Argentina em 1955. Criado durante a Segunda Guerra Mundial como propaganda das forças aliadas em geral, e das tropas norteamericanas em específico. Transmitido em ondas médias, era captado nos campos do inimigo. Ver Cull, 2008, p. 14. 11

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norte-americanos e com temática anticomunista, tradução dos textos para a língua local, distribuição em bibliotecas (organizadas e mantidas pela Agência). Na América Latina alguns trabalhos de investigação apontam para a atuação dessa extensa rede de apoio à estratégia política orquestrada pelas agências de informação do Departamento de Estado com auxílio de embaixadas e organizações públicas e privadas. Karina Jannello (2013) investiga a produção editorial socialista argentina ligada à Associação Argentina do Congresso pela Liberdade da Cultura e ao Instituto Latinoamericano de Relaciones Internacionales – ILARI. Sua análise procura apontar o distanciamento do socialismo argentino da causa operária, no pós-peronismo, e uma aproximação ao liberalismo, adotando um discurso em defesa de ideais de liberdade e democracia e condenação de autoritarismos de esquerda. A autora, ao investigar as duas instituições e a linha editorial praticada por ambas, estabelece conexões entre esse socialismo argentino com o socialismo europeu, mostrando o intercâmbio estabelecido por uma extensa rede de intelectuais, orquestrada com a ajuda de Julián Gorkin 12, escritor espanhol, especialmente vindo da Europa para essa tarefa. Embora a autora não estabeleça nenhuma relação entre o Congresso e a CIA, seu artigo, mesmo sem esse objetivo, evidencia a articulação quando suas informações são cruzadas com informações provenientes de outras pesquisas. Jorge Nállim (2012), ao explorar os processos locais e transnacionais que originaram a Associação Argentina do Congresso pela Liberdade da Cultura, identificou o que chama de densa rede de relações pessoais, institucionais, ideológicas e políticas entre os intelectuais antiperonistas em formação desde a década de 30, com intelectuais estrangeiros que, sob a Associação, orientaram-se conjuntamente pelas temáticas da liberdade política e cultural, superioridade do mundo ocidental e anticomunismo. Além disso o autor, para quem ambas instituições configuraram uma estratégia de dominação cultural dos Estados Unidos através da ação velada da CIA, chama a atenção para dois pontos importantes: 1) a necessidade de revisar o lugar da América Latina no marco da Guerra Fria ao estudar “las complejas áreas de encuentro cultural entre la región y los Estados Unidos en las cuales los proyectos hegemónicos del Norte eran propiados, transformados y resignificados por los actores latinoamericanos”; 2) os estudos sobre o Congresso, que em sua grande maioria, focam a sua relação com a Guerra Fria e as discussões intelectuais na Europa, mas não consideram as suas filiais latino-americanas e as especificidades de sua atuação. Carlos Gonzáles-Chiaramonte (2008) procura demonstrar como se deu a articulação, pela CIA e demais instituições executoras da política externa norte-americana, de uma extensa rede de intelectuais latino-americanos alinhados aos interesses dos EUA. Elisa Servín expõe a intrínseca relação da imprensa mexicana, especialmente Excélsior e El Universal, os dois mais importantes jornais do país, com agências norte-americanas de produção de notícias. Essas agências, como mostra o texto, estão ligadas à USIA e à CIA, e é demonstrado o envolvimento da Embaixada na compra de espaço em periódicos mexicanos para a publicação de artigos pró-Estados Unidos. (SERVÍN, 2004, p. 22-23) Enfoque semelhante de pesquisa desenvolve Júlio Barnez Pignata Cattai em sua dissertação (2011), que investiga a atuação da USIA na inserção de notícias pró-Estados Unidos nos jornais brasileiros Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa e as suas transformações em importantes órgãos de divulgação do material produzido pela Agência, mas cuja autoria é atribuída à United Press International e Associated Press, braços da USIA, e as mesmas em operação na imprensa mexicana,

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Segundo Saunders e Cattai, Gorkin era Secretário para a América Latina do Congresso pela Liberdade da Cultura, portanto pago pela CIA. Na Argentina, além de ajudar a fundar e a articular a Associação local do Congresso com intelectuais latino-americanos, Gorkin estava encarregado de organizar, também, Cuadernos, uma revista filiada à Associação, exatamente nos mesmos moldes das revistas editadas pelo Congresso europeu. No Brasil, foi responsável pela edição da revista Cadernos do Povo e pela articulação fundadora da Associação Brasileira do Congresso pela Liberdade da Cultura.

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conforme nos mostra o artigo de Servín. Demonstra, ainda, o envolvimento de intelectuais e de funcionários da Embaixada na ação 13. No Brasil, as pesquisas sobre as ligações entre intelectuais e instituições brasileiros com o Congresso para a Liberdade da Cultura ou com a USIA, são poucas. O destaque vai para os trabalhos desenvolvidos por Elizabeth Cancelli (2012) e por Júlio Cattai (2011). Em geral, os trabalhos que tratam do período histórico sob o marco da Guerra Fria centram suas análises nas relações políticas e econômicas. Ainda assim, dentro do escopo de suas pesquisas, alguns trabalhos acabam por dar pistas da atuação das Agências no Brasil e do envolvimento de instituições e intelectuais brasileiros com elas. É o caso das pesquisas que passo a citar. René Dreifuss (2006), ao analisar a rede de relações sociais que possibilitaram o sucesso do golpe tendo como centro articulador, fundamentalmente, a ESG e o complexo IPES/IBAD, aponta as conexões dessas instituições (e dos intelectuais a elas ligadas) com instituições norte-americanas tais como a LAIC e o CDE 14, e menciona a USIA ao tratar do material de propaganda referente à Aliança para o Progresso que, segundo ele, foi produzido pela USIA e distribuído pelo IPES. Demonstra, também, a responsabilidade financeira e/ou editorial do IPES na publicação de um volume imenso de livros, revistas, folhetos e impressos. Dentre as publicações, a revista Cadernos Brasileiros, que o autor identifica como sendo responsabilidade editorial da Associação Brasileira do Congresso pela Liberdade da Cultura com financiamento do IPES. Ou seja: mesmo não sendo este o foco de sua pesquisa, a documentação trabalhada pelo autor indica os caminhos sinuosos da penetração das ações da CIA e USIA no Brasil 15. Laurence Hallewell procurou analisar a trajetória e a formação do mercado editorial brasileiro desde o período colonial até a década de 1980, e embora tenha focado sua análise em políticas e relações que ora facilitaram ou perturbaram a consolidação do mercado editorial, oferece informações interessantes sobre as conexões com as agências de informação norte-americanas, entre elas a USIA. Segundo este autor, na década de 1960 a situação do mercado editorial brasileiro era péssima, com impostos alfandegários e taxas do dólar tão altos que era mais barato importar livros que importar papel para produzi-los, assim como mais barato importar livros estrangeiros com tradução em Portugal que comprar os direitos de tradução e produzi-los no Brasil. E, segundo a análise do Grupo Executivo da Indústria do Livro – GEIL 16 , que o autor cita e nele baseia sua afirmação, esse difícil período foi superado graças à ajuda do governo norte-americano através de um programa específico da USIA. (HALLEWELL, 1985, p. 434-435). Mais adiante, informa ter havido vínculos do IPES e do Instituto Roberto Simonsen com o Franklin Book Programs na abertura e manutenção de bibliotecas. (HALLEWELL, 1985, p. 462-463). A relação descrita pelo autor entre o IPES, o Instituto Roberto Simonsen e o Franklin Book Programs é idêntica às relações do programa em outros países, conforme mostraram os artigos de Louise Robbins e Mary Niles Maack. Interessante que Hallewell, em sua análise, não percebe ter, no programa, qualquer propósito político ou ideológico. Vicente Gil da Silva, ao estudar a implementação da Aliança para o Progresso no Brasil, no capítulo dedicado a analisar a propaganda como recurso de convencimento sobre as benesses do

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Em uma passagem de sua dissertação, o autor demonstra a relação havida entre Stefen Baciu, romeno residente no Brasil desde 1948 e jornalista dos dois jornais em análise, com Julian Gorki, o secretário para a América Latina do Congresso para a Liberdade da Cultura. CATTAI, J.B.P., op. cit., p. 27-28, 42. 14 Escola Superior de Guerra, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, Latin American Information Committee e Committee for Economic Development, respectivamente. Estes dois últimos ligados ao grupo Rockefeller. 15 Dreifuss demonstra que em 1963 foram editados, pelo IPES, mais de 280 mil livros e distribuídos, ao todo, mais de 2.500.000 unidades impressas, sendo que a grande maioria não trazia explicitamente a relação com o Instituto. Dreifuss, op. cit., p. 254 e 305. No apêndice L, à página 736, ele relaciona os títulos de livros e revistas sob responsabilidade IPES. 16 Grupo Executivo da Indústria do Livro foi criado por decreto presidencial em 1959, por J.K. e alocado no Ministério da Educação com o objetivo de estudar os problemas da indústria do livro.

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programa, cita o trabalho da USIA na formulação e distribuição de folhetos e histórias em quadrinhos. O público-alvo era, basicamente, estudantes e trabalhadores rurais e urbanos. Cita, ainda, a presença da parceria da agência com o IPES, responsável pela distribuição, no Brasil, desses e outros materiais produzidos pela USIA, fazendo ele também a conexão com as informações presentes em Dreifuss. (SILVA, 2008, p. 105). Carla Simone Rodeghero (2007), ao analisar como os consulados avaliavam os trabalhos anticomunistas dos “aliados” brasileiros, encontrou e analisou documentos produzidos pelos consulados que citavam a necessidade de mais publicação de livros e maior presença dos trabalhos propagandísticos no combate ao comunismo e na produção de alinhamento aos interesses norte-americanos. A recomendação dos consulados para ampliar a publicação de livros anticomunistas, assim como para a necessidade de promover seminários e cursos para divulgar a cultura e os valores norte-americanos em parceria com instituições brasileiras como universidades, entidades estudantis e centros de formação de trabalhadores, eram recorrentes. Segundo os consulados, seriam ações importantes e a serem desenvolvidas pelas agências de informação do Departamento de Estado, especialmente a USIA, já que os recursos da Embaixada eram escassos diante do tamanho que tal ação deveria ter para lograr efeito 17. Procurei demonstrar, de forma sucinta e a partir de literatura produzida sobre o assunto, a atuação do que parece ser uma ativa rede de instituições, políticos, jornalistas, intelectuais, editores, funcionários de embaixada e etc., articulada, financiada e apoiada por agências de informação do Departamento de Estado norte-americano, focadas no campo cultural. No período da Guerra Fria esta rede usou diferentes mecanismos para exercer influências com o objetivo de consolidar ideias próamericanas e anticomunistas e, com isso, produzir um consenso capaz de apoiar um projeto conservador e pavimentar sua hegemonia. A partir do que já foi possível compreender sobre a complexidade e extensão das ações do Departamento de Estado no campo cultural, não parece exagero afirmar que estamos diante de um vasto circuito de produção de consenso consentido, a partir da produção cultural, cujas consequências ainda não foram plenamente analisadas e compreendidas, e nem estabelecidas todas as conexões possíveis com as esferas da política e da economia. A hipótese levantada e ainda a ser verificada por pesquisas, é que esse circuito para a produção de consenso teve papel fundamental na construção do projeto político autoritário que culminou nos golpes civil-militares latino-americanos nas décadas de 1960 e 1970. A Guerra Fria Cultural na América Latina, enquanto agenda de pesquisa, poderá oferecer novas chaves de compreensão sobre o papel da região na geopolítica norte-americana ao longo do século XX, e com isso, abrir espaço para trazer à tona questões que permanecem à espera de respostas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Os documentos analisados pela autora e que versavam sobre isso foram produzidos pelos consulados de São Paulo, Porto Alegre e Curitiba.

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GONZÁLES-CHIARAMONTE, Claudio. Expandiendo paradigmas, rediseñando fronteras: la diplomacia cultural norteamericana y la búsqueda de una comunidade interamericana de académicos. Florianópolis, Revista Esboços, v. 15, n. 20, p. 223-244. 2008. Disponível em: . Acesso em: 15/08/2014. HALLEWELL, L. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T.A Queiroz Editor; USP, 1985. JANELLO, Karina. Las políticas culturales del socialismo argentino bajo la Guerra Fría. Las redes editoriales socialistas y el Congreso por la Libertad de la Cultura. Papeles de Trabajo, v. 7, n. 12, p. 212-247, 2013. JOHNSTON, Gordon. Revisiting the Cultural Cold War. Social History, v. 35, n. 3, 2010. KIERNAN, V.G. Estados Unidos: o novo imperialismo, da colonização branca à hegemonia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2009. MAACK, Mary Niles. Books and libraries as instruments of Cultural diplomacy in Francophone Africa during the Cold War. Libraries and Culture, v. 36, n. 1, p. 58-84. 2001. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. NÁLLIM, Jorge. Redes transnacionales, antiperonismo y guerra fría: los orígenes de la Asociación Argentina por la Libertad de la Cultura. Prismas, v. 16, n.1, 2012. Versão online. Disponível em: . Acesso em 12/08/2014. ROBBINS, Louise S. Publishing American Values: The Franklin Book Programs as Cold War Cultural Diplomacy. Library Trends, v.55, n. 3, p. 638-650, 2007. RODEGHERO, Carla Simone. Capítulos da Guerra Fria: o anticomunismo brasileiro sob o olhar norteamericano (1945-1964). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. SAUNDERS, Frances Stonor. Quem pagou a conta?: a CIA na guerra fria da cultura. Rio de Janeiro: Record, 2008. SERVÍN, Elisa. Propaganda y Guerra Fría: la campaña anticomunista en la prensa mexicana del medio siglo. Signos Históricos, México, n. 11, p. 9-39, ene./jun. 2004. SILVA, Vicente Gil da. Aliança para o Progresso no Brasil: de propaganda anticomunista a instrumento de intervenção política (1961-1964). Dissertação. Porto Alegre: UFGRS, 2008.

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MEIOS DE COMUNICAÇÃO, POLÍTICA E PODER: UM BREVE ESTUDO DE CASO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A REVISTA VEJA E O GOVERNO CHÁVEZ Marília Santos Machado 1 ASCENSÃO DE HUGO CHÁVEZ A Venezuela, historicamente, é um país de grande desigualdade social, entre fins da década de 1950 até fins da década de 1990, o país vivia um sistema político democrático em que reinava um pacto entre elites chamado Pacto de Punto Fijo, por meio do qual os partidos representantes desses grupos se revezavam no poder. O sistema democrático venezuelano era tido como modelo pelos E.U.A. e tudo funcionava relativamente bem, com o país conseguindo obter lucros elevadíssimos com seu maior recurso natural, o petróleo. Colocando a situação Venezuelana em um contexto regional, ou seja, pertencente a América Latina, podemos entender melhor as mudanças ocorridas a partir da década de 90 que contribuíram para a ascensão de Hugo Chávez ao poder. Em fins dos anos 1980 e durante os anos 1990 os Estados Unidos, em aliança com organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC), impôs políticas de ajuste estrutural na América Latina. Logo, medidas como a queda do valor real dos salários; a precarização das relações de trabalho; o aumento do desemprego e do trabalho informal; a privatização de serviços públicos como o fornecimento da água, eletricidade e telefonia; o consequente aumento de tarifas; e a quebra de uma grande quantidade de pequenos e médios negócios, cujos produtos não conseguiram competir com os importados quando se deu a abertura indiscriminada das fronteiras nacionais para as multinacionais, deixaram a América Latina em um quadro de empobrecimento geral. O argumento utilizado para a adoção de tais medidas foi o de tornar a América Latina competitiva, capaz de retomar seu desenvolvimento e enfrentar a pobreza. Analisando os resultados de tais políticas, mesmo que se acredite nesse ponto de vista, percebe-se que as medidas foram um fracasso total. Porém, os argumentos apresentados eram apenas uma faixada que escondiam os reais interesses na adoção dessas medidas neoliberais, pois buscavam aprofundar a exploração da força de trabalho e dos mercados latino-americanos pelo capital internacional. Logo, sob esse prisma, os resultados obtidos foram bastante positivos. Vejamos alguns índices que o autor Silvio Bava nos traz: Em decorrência das políticas de ajuste, a situação social tornou-se ainda mais crítica. O número de latino-americanos abaixo da linha da pobreza aproximase de 230 milhões, cerca de 40% da população do continente; e os Estados não oferecem políticas sociais que ajudem a grande maioria a enfrentar essas dificuldades. A questão central, entretanto, é a da desigualdade. Em 2006, na América Latina, os 10% mais ricos da população concentraram 48% da renda total e os 10% mais pobres, apenas 1,6%. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD, a pobreza e a desigualdade permanecem acima dos níveis atingidos antes da crise da dívida externa da década de 80. E os anos recentes deterioraram ainda mais a situação. Se tomarmos a Bolívia como exemplo, em 1992, os 20% mais ricos ficavam com 56% da renda nacional; em 2001, ficavam com 58%. Nas mesmas datas, a porção da renda destinada aos 20% mais pobres caiu de 4,2% para somente 3,2% (BAVA, 2007, p. 1). Tendo em vista os altos níveis de desigualdade social que as políticas neoliberais geraram, foi fomentado no continente um forte sentimento anti-estadunidense. Esse foi expresso através de mobilizações populares contra os Tratados de Livre Comércio e manifestações críticas dos presidentes do Cone Sul durante a Cúpula de Mar Del Plata, ocorrida no ano de 2005, de encontro à Área de Livre Comércio entre as Américas (ALCA). Como reflexo de todo esse contexto, a partir de 1998 a população

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Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

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começou a expressar pelo voto a insatisfação com as elites nacionais que sustentaram as políticas de ajuste. Foram eleitos, então, em diversos países da América Latina, novos governos com viés político diferente do neoliberal. Em linhas gerais, esses novos mandatários buscaram defender uma agenda de desenvolvimento e uma integração autônoma. Assim, essas mudanças se fizeram sentir em países como Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Venezuela e Nicarágua. Nesse caso podemos ressaltar que um dos primeiros líderes eleitos a romper com a agenda neoliberal foi Hugo Chávez. No caso Venezuelano, as desigualdades sociais se intensificaram gerando para além do forte sentimento anti-estadunidense e a insatisfação com as elites nacionais subordinadas ao imperialismo yanke, alguns momentos sociais traumáticos como ficou conhecido o caracazo (1989), em que durante manifestação contra medidas neoliberais a população sofreu com uma violenta repressão policial gerando muitas mortes. O trágico evento marcou a história contemporânea Venezuelana como a expressão da crise social gerada pelo aprofundamento de medidas neoliberais que colocam o mercado acima das necessidades básicas da população. A vitória de Chávez obtida através do voto popular é tida também como uma forte expressão das insatisfações com a situação geral do país. O até então candidato Hugo Rafael Chávez Frias era um homem de origem humilde, não fazia parte dos tradicionais partidos venezuelanos que integravam o Pacto de Punto Fijo, era ex-militar expulso das forças armadas e preso por articular e executar a tentativa de um golpe de Estado contra então presidente Carlos André Perez, tinha uma forte oposição da imprensa nacional e principalmente tinha uma proposta política totalmente diferenciada, historicamente, dos projetos que até então tinham competido ou ganhado as eleições presidenciais daquele país. Hugo Chávez ascendeu ao poder com a promessa de tomar medidas para dificultar a prática da corrupção, lutar pela soberania do país enfrentando o imperialismo yanke que já se fazia presente há muito tempo, e buscar fortalecer regionalmente os governos vizinhos de corrente político-ideológica semelhante. REVISTA VEJA: Para a compreensão de como é construída e representada a imagem de Hugo Chávez e seu governo nas páginas da Revista Veja, tornam-se necessárias algumas análises a respeito do contexto de surgimento da Editora Abril e, posteriormente, da própria revista. Em 1950, a Editora Abril foi fundada por Vitor Civita, um ítalo-americano, tendo como principal atividade a distribuição de histórias em quadrinhos da Disney. O fato de o material ter origem estrangeira, correspondendo ao padrão de tiragem mundial, demarca uma forte característica da editora desde o seu princípio: inovar e modernizar as publicações, bem como, o mercado editorial brasileiro. As vendas dos exemplares tornaram-se um sucesso, possibilitando assim a ampliação das atividades da editora. Alcançada tal condição, logo a empresa lançaria novos títulos, direcionando-os sempre a públicos específicos, conseguindo captar verbas de diversos setores da burguesia (SILVEIRA, 2010, p. 22-23). Durante o período do Golpe Civil-Militar, iniciado no ano de 1964, pode-se observar que a editora manteve uma postura de conivência com o regime ditatorial de maneira indireta. Apesar de seus títulos não abordarem temas como política e economia, não havendo uma defesa explícita a respeito do golpe, os interesses da companhia harmonizavam-se com os do novo Estado, principalmente no que se refere ao claro objetivo de abrir a economia do país ao investimento estrangeiro e contribuir para o aceleramento do desenvolvimento capitalista brasileiro. No ano de 1968, a revista Veja foi lançada. Ostentando padrão internacional de jornalismo do período, já nos primeiros momentos o periódico apresentou um discurso alinhado politicamente aos interesses hegemônicos norte-americanos. Após 21 anos de Ditadura, novos investimentos foram feitos em sua diagramação e distribuição, dando uma dimensão ainda maior dentro do mercado midiático brasileiro tanto à Revista quanto à própria Editora. A publicação, aperfeiçoando seu discurso às necessidades das elites nacionais e estrangeiras, criou uma forte oposição pautada pelo caráter liberal (SILVEIRA, 2010, p. 22-23). Consequentemente com a consolidação do neoliberalismo em território sul-americano, entre final da década de 1980 e ao longo da década seguinte, a revista Veja se manteve buscando equilibrar os diversos

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interesses políticos nacionais envolvidos, colocando-se em defesa da manutenção do sistema econômico então vigente. MANIPULAÇÃO MIDIÁTICA: As desigualdades sociais intensificadas na década de 1990 continuam se fazendo presentes no cenário Latino Americano atual, apesar de amenizadas. Logo, o papel do Estado nesse contexto deve ser o de criar políticas públicas que promovam a inclusão e a distribuição de riquezas, considerando a participação cidadã no enfrentamento do problema. No entanto, para conseguir tal avanço, Maria Pía Matta nos atenta para o papel exercido pelos meios de comunicação atualmente, assim como a sua relação com a concentração do poder econômico nesses veículos: Num cenário como esse, é fundamental analisar a repercussão da liberalização e concentração econômica dos meios de comunicação sobre a liberdade de expressão cidadã, e o obstáculo que esses processos representam para o desenvolvimento do terceiro setor das comunicações. De acordo com o sociólogo Armand Mattelart, os processos atuais de concentração e monopólio dos meios de comunicação são determinados pela incorporação do capital financeiro, gestão empresarial, poder dos acionistas e integração das indústrias das telecomunicações com os meios e a cultura. Essa integração de caráter horizontal, vertical e multimídia constituiu polos regionais e nacionais das indústrias da cultura e da comunicação. As políticas estatais favorecem a construção de grandes grupos nacionais de comunicação (Clarín, Televisa, Globo) capazes de rivalizar com outros gigantes do mercado global e se inserir em outros âmbitos financeiros (MATTA, 2011, p. 1). Em uma sociedade ideal, no entanto, todos os cidadãos deveriam ter a possibilidade de se organizar com os demais a fim de formar seus próprios meios de comunicação. Portanto, todo cidadão deveria ter a liberdade de receber e transmitir informações e cultura. Porém, na lógica de mercado vigente, os meios de comunicação requerem grandes investimentos que só podem ser ofertados por um setor social. Este fato, por si só, já derruba o argumento muito utilizado pela imprensa atual quando lhe é conveniente: a defesa da liberdade de imprensa que é associada profundamente com a liberdade de expressão. Quando utilizam esse argumento, os veículos de mídia agem como se estivessem defendendo a liberdade dos cidadãos em geral, como se representassem os interesses da maioria e não estivessem originalmente atrelados e constantemente subordinados a grupos privados que defendem interesses pessoais. Pascual Serrano afirma que “a liberdade de imprensa é, na verdade, o direito do empresariado de operar num determinado setor, digamos assim. Não é nenhum direito da cidadania no geral” (SERRANO, 2013, p. 71-72). Levando em conta esses pressupostos, podemos afirmar que a mídia hegemônica atualmente veste um manto democrático que não lhe condiz. Nesse sentido, Serrano caracteriza-a como um “Quarto Poder”, extremamente forte e antidemocrático: Diferentemente dos outros três poderes, o poder midiático não tem nenhuma legitimidade democrática. Ninguém vota nele, ninguém o elege. No Brasil, ele chegou a ser denominado “coronelismo informativo”. Acho que o termo, levando-se em conta o que os coronéis significam na América Latina, é suficientemente eloquente. Sob o manto da liberdade de imprensa, o poder midiático conseguiu um nível de impunidade impressionante. A mídia hoje mente constantemente, manipula, insulta e destrói o prestígio e a trajetória de quem cruzar seu caminho. Sua intolerância a qualquer poder legítimo e democrático que ousar tocar seus privilégios é absoluta (SERRANO, 2013, p. 73). Matta acrescenta ainda que nesses veículos se constrói a visão e a representação das relações sociais, e ali também é construída a ideia de sujeito e de desenvolvimento democrático. Sobre essa questão a autora afirma:

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Os meios de comunicação não nos dizem o que fazer, mas apontam caminhos – e por isso constituem um campo de disputa social e política. Na estrutura atual do sistema de meios de comunicação, a indústria formou consórcios que privilegiam o lucro em detrimento do serviço, e instituiu uma forte padronização de formatos e lógicas uniformes na produção de conteúdos de entretenimento e informação (MATTA, 2011, p. 1). A estratégia utilizada pelos meios de comunicações hegemônicos é a coligação de uns com outros a fim de reproduzirem matérias semelhantes, muitas vezes simultaneamente – no mesmo dia ou semana – para reforçar os pontos de vista defendidos usando sempre de argumentos já petrificados no senso comum. Um exemplo disso é a parceria Veja e Jornal Nacional, que principalmente em momentos políticos decisivos, como eleições, atuam em sintonia. Luiz Carlos Azenha, que já foi repórter da empresa de telecomunicações Globo, esclarece como funciona esse tipo de parceria: Percebi pessoalmente, então, como funcionava o esquema: a Veja apresentava as denúncias, o Jornal Nacional repercutia e os jornalões entravam no caso no fim-de-semana. Era uma forma de colocar a bola para rolar. Depois, se ficasse demonstrado que as denúncias não tinham cabimento, o estrago estava feito. Quando muito, saia uma notinha aqui ou ali. Nunca, obviamente, no Jornal Nacional ou com o mesmo alcance (AZENHA, 2014, p. 1). Na mesma direção, Perseu Abramo nos atenta para a manipulação de informação que a grande imprensa utiliza para tratar de determinados assuntos. Segundo o autor o principal efeito que essa forma jornalística acarreta é a não transmissão da realidade. Embora o material criado tenha relação com a realidade, ela surge de maneira indireta. A criação jornalística, logo, tem o intuito de criar uma nova realidade, irreal, desenvolvida pela grande imprensa para ser fixada e apresentada no lugar da realidade real. Abramo nos explica mais detalhadamente como a manipulação costuma atingir o público em geral: Assim, o público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela imprensa e que se contradiz, se contrapõe e frequentemente se superpõe e domina a realidade real que ele vive e conhece. Como o público é fragmentado no leitor ou no telespectador individual, ele só percebe a contradição quando se trata da infinitesimal parcela da realidade da qual ele é protagonista, testemunha ou agente direto, e que, portanto, conhece. A imensa parte da realidade, ele a capta por meio da imagem artificial e irreal da realidade criada pela imprensa; essa é, justamente, a parte a realidade que ele não percebe diretamente, mas aprende por conhecimento. Daí que cada leitor tem, para si, uma imagem da realidade que na sua totalidade não é real. É diferente e até antagonicamente oposta à realidade. A maior parte dos indivíduos, portanto, move-se num mundo que não existe, e que foi artificialmente criado para ele justamente a fim de que ele se mova nesse mundo irreal. A manipulação das informações e transforma, assim, em manipulação da realidade (ABRAMO, 2003, p. 24). ANÁLISE DAS REPORTAGENS Partindo das discussões realizadas sobre mídia e poder, este trabalho pretende analisar as formas pelas quais a revista Veja recria a realidade no que diz respeito à imagem de Hugo Chávez e seu governo para o público brasileiro, fazendo um breve estudo de caso utilizando duas reportagens que estão dentro do período em que Chávez esteve no poder (1998 a 2013). Assim que Chávez foi eleito à revista publicou uma reportagem intitulada “Vitória da boina”, dedicando três páginas para tratar do acontecimento. Utilizando, o termo “golpista fracassado”, a revista relembra com mais detalhes a tentativa de golpe de 1992, fazendo a contabilidade dos mortos e afirmando uma suposta intenção de assassinato do então presidente Carlos André Perez. A revista segue afirmando que a vitória de Chávez foi devido à insatisfação com a política tradicional, porém, demonstra muitos receios com as propostas do candidato eleito. Vejamos o trecho:

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Numa trajetória espetacular de golpista frustrado (passou dois anos preso e foi anistiado) a político populista, ele elegeu-se presidente com 56% dos votos. Com Chávez estavam de volta as boinas vermelhas, mas dessa vez usadas pela multidão de civis entusiasmados com a promessa de purgar, com mão firme de soldado, o país de suas mazelas, incluindo aí os políticos tradicionais. O currículo de golpista comprovado e as promessas de campanha mais do que autorizam o receio de que no pacote boina vermelha esteja embutida a determinação de rasgar a Constituição e se declarar pai da pátria, à moda dos caudilhos que pontuam o passado da América Latina (Veja. Vitória da boina – Seção Internacional. Edição 1577. São Paulo, 16/12/1998, p. 68). Recordando com admiração o período do Pacto de Punto Fijo, Veja afirma não compreender como uma democracia modelo deu margem para que uma figura como Chávez tivesse tanta popularidade a ponto de se eleger presidente, e segue fazendo sucessivas recordações da tentativa de golpe de 1992. A revista reconhece a personalidade carismática do líder em questão e o uso estratégico da figura de Simón Bolívar, porém afirma que Chávez “martelou a perigosa ideia de que a democracia ‘tradicional’ não se mostrou à altura do desafio de reduzir a corrupção, a criminalidade e o abismo entre ricos e pobres” (Veja. Vitória da boina – Seção Internacional. Edição 1577. São Paulo, 16/12/1998, p. 68). A revista Veja reconhece, ainda, que a Venezuela, mesmo sendo o terceiro maior exportador de petróleo do mundo, possui um dos maiores índices de pobreza do continente. Em busca de explicar e justificar tamanha contradição, o periódico chama o economista e ex-ministro brasileiro Celso Furtado, que afirma: “O dinheiro era tão abundante que não se exigia nenhum sacrífico da população [...]. A História mostra que a ausência de um desafio às vezes retarda o desenvolvimento” (Veja. Vitória da boina – Seção Internacional. Edição 1577. São Paulo, 16/12/1998, p. 68). Nesse caso, a revista conclui que a abundante riqueza que o país gerava fez com que a população se acomodasse e não se interessasse em investir em setores produtivos alternativos. Podemos verificar que a perspectiva dessa justificativa culpa exclusivamente uma suposta acomodação pessoal da população Venezuelana, a qual vivia a abundância do preço elevado do petróleo. Logo, a perspectiva da revista deixa de lado o histórico de desigualdade social já existente na Venezuela, bem como sua longa relação de subordinação aos com os E.U.A. Na realidade, além disso, quem detinha o poder de consumo e potencial investidor eram as classes média e alta, que desfrutavam do seu tempo e de seu dinheiro através de gastos excessivos com produtos supérfluos no exterior, especialmente nos E.U.A. Vejamos uma das figuras presentes na reportagem:

Anexo 2: revista Veja, edição 1577 de 16/12/1998, p. 70

Tratando das medidas imediatas realizadas pelo novo presidente, a revista mostra-se surpreendida e elogia a moderação de Chávez ao não decretar moratória a dívida externa, afirmando que a mesma apenas seria renegociada. Além disso, o presidente também afirmou que não iria rever as privatizações já efetuadas, deu boas vindas aos investidores estrangeiros e prometeu um combate intenso aos corruptos. Essas medidas foram vistas muito positivamente pela revista, que afirmou:

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O abrandamento de Chávez chegou ao ponto de provocar autocomparações, adivinhem só, com o inglês Tony Blair e sua “terceira via”. Os Estados Unidos, que já lhe negaram visto, mandaram cumprimentos. Um enviado americano qualificou-o de aberto ao diálogo, além de “extremamente educado”, apesar de “pouco sofisticado” (Veja. Vitória da boina – Seção Internacional. Edição 1577. São Paulo, 16/12/1998, p. 70). Para concluir o artigo, a revista alega que Chávez é uma incógnita e que, independente de qualquer coisa, o futuro reservaria muitas surpresas. Na mesma página Veja dedicou um espaço intitulado “A sedução do populismo", em que Hugo Chávez é comparado a algumas personalidades que também tiveram um histórico golpista, ganharam popularidade e alcançaram o poder. Na reportagem intitulada “O FALASTRÃO CAIU”, a revista relata o golpe de Estado que afastou Hugo Chávez do cargo de presidente e o deixou desaparecido. Podemos perceber que na capa da revista que contém essa reportagem, a revista já noticia a saída de Chávez utilizando, para designar o presidente, o adjetivo “fanfarrão”. Vejamos o anexo:

Anexo 4: Capa da revista Veja, edição 1747 de 17/04/2002

Apresenta como subtítulo as seguintes palavras: “Multidões nas ruas e rebelião militar tiram Hugo Chávez da presidência da Venezuela”, já justificando os responsáveis pelo golpe. O começo da reportagem segue relatando que foram três anos e dois meses de “interminável retórica revolucionária”, ou, segundo a revista, em outras palavras, uma “sopa de lugares-comuns esquerdistas que o presidente Hugo Chávez chamava de ‘revolução bolivariana’”. Durante todo esse tempo a Veja indica ao leitor que

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Chávez culpava a Igreja católica, os empresários, a imprensa e os Estados Unidos por todos os males da Venezuela. Em contraponto a isso, ainda segundo o periódico, Chávez fazia “juras de amor a Cuba e a seu ditador, Fidel Castro, de quem o presidente venezuelano copiou a mania de proferir discursos que se prolongavam por várias horas” (Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002, p. 42). Assim, mais uma vez, a revista deslegitima os argumentos de Chávez, coloca a classe economicamente privilegiada da Venezuela como vítima de calúnias e aproxima Hugo Chávez de Fidel Castro de um modo caricato. Dando seguimento ao relatar dos acontecimentos a revista explica como se sucedeu o fato: Na quinta-feira passada, uma multidão de 200000 venezuelanos, arregimentados por sindicatos de patrões e empregados, marchou para o palácio presidencial e foi recebida a bala por partidários do presidente. Morreram 15 manifestantes e 350 ficaram feridos. Na madrugada de sexta, com a nação mergulhada em comoção cívica, uma rebelião militar forçou Chávez a renunciar e ele foi aprisionado num quartel na periferia de Caracas, a capital do país. O destino dramático do presidente contém certa dose de justiça: há dez anos, quando era tenente-coronel do corpo de paraquedistas, comandou uma sangrenta tentativa de golpe de Estado. Agora, sentiu na pele o peso da insubordinação nos quartéis (Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002, p. 43). Logo em seguida a revista comparou Chávez aos outros dois presidentes que, segundo a revista, nos últimos quatro meses também haviam sido corridos dos cargos pela multidão nas ruas – Fernando de La Rúa e Adolfo Rodríguez Saá. Ainda segundo o semanário os fatores que aproximavam Hugo Chávez desses personagens seriam: “em comum, eles presidiram países com a economia em frangalhos e optaram por oferecer ilusões demagógicas em lugar de políticas concretas para sanear as finanças públicas” (Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002, p. 43). Mais uma vez, portanto, a revista reafirma o discurso do presidente Chávez como “demagógico” deslegitimando-o, e, em contraponto a isso, sugere que o ideal seria que se tomassem ”políticas concretas”, porém não especifica quais deveriam ser elas. Fazendo uma avaliação do fato, a Veja afirma: “O ponto positivo na queda de Chávez foi a demonstração de que o oportunismo populista já não consegue enganar uma sociedade latino-americana por muito tempo” (Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002, p. 44). Seguindo com a avaliação, a revista elenca alguns fatores que fariam com que Chávez não devesse realmente permanecer no cargo, democraticamente conquistado. Afirma: Procurar briga com os Estados Unidos, que compram 60 % do petróleo venezuelano, e ficar amigo de Cuba foram ações contra a tradição do país. Até 1974, o petróleo venezuelano era explorado pelos americanos, que colocaram o país no mapa, nos anos 20. O beisebol é o esporte mais popular na Venezuela. Os venezuelanos jamais perdoaram Chávez por ter criticado os ataques americanos no Afeganistão. Por pouco, eles entravam no eixo do mal, a lista de países declarados inimigos pelos Estados Unidos (Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002, p. 44). Fica claro, através da citação, que na concepção da revista a subordinação aos Estados Unidos tem de ser maior do que a soberania da nação venezuelana. Logo, a aproximação dos Estados Unidos com a Venezuela, que estabeleceram uma relação histórica de exploração por parte dos estadunidenses aos latino-americanos, deve ser considerada uma tradição assim como os elementos de aculturação muito bem fixados durante todo o constructo dessa relação. O temor evidenciado pelo medo de que a Venezuela entrasse no “eixo do mal” demonstra o poder de intimidação que os Estados Unidos possuem em relação às outras nações, ou pelo menos aos seus vizinhos americanos mais fracos economicamente. A revista segue relatando todos os índices negativos apresentados pela Venezuela, culpando o “comportamento imprevisível de Chávez” pela situação do país. A revista ainda criticou a mudança no

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quadro de funcionários da estatal petroleira PDVSA que teria sido responsável pela greve geral ocorrida em 2001. Além do mais, relembra que através do “discurso populista” Chávez teria conquistado a classe mais baixa venezuelana cansada da “miséria, da corrupção e da velha política da Venezuela” e, assim, aproveitando-se do poder conquistado, o presidente centralizou todas as estruturas de poder em suas mãos. Com seu comportamento “imprevisível”, porém o presidente teria perdido até mesmo a maior base de apoio do seu governo, as classes baixas venezuelanas. Para finalizar a avaliação final da saída provisória de Hugo Chávez do poder, a revista encerra: “Sua queda foi recebida como boa notícia no mundo: melhorou o índice risco país da Venezuela, a bolsa de Caracas disparou (alta de 8%) e o preço internacional do petróleo caiu 9%” (Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002, p. 45). É importante ressaltar que em nenhum momento a revista utilizou o termo golpe de Estado para classificar o episódio. CONSIDERAÇÕES FINAIS: As reportagens analisadas sugerem uma postura autoritária e antidemocrática vinculada à imagem de Hugo Chávez. Logo, a revista Veja demonstra muito receio e desconfiança a respeito da figura de Chávez, buscando sempre construir sua própria imagem como a de um editorial que, acima de tudo, defenderia a democracia. Porém, sua postura no período das ditaduras civil-militares acaba por contradizer profundamente a imagem cultivada. Além do mais, na reportagem intitulada “O FALASTRÃO CAIU” Veja demostra satisfação com o golpe de Estado sofrido pelo presidente, e em nenhum momento naquela reportagem é utilizado o termo “Golpe de Estado”. FONTES: Veja. Vitória da boina – Seção Internacional. Edição 1577. São Paulo, 16/12/1998. Veja O FALASTRÃO CAIU – Seção Internacional. Edição 1747. São Paulo, 17/04/2002. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2003. AZENHA, Luiz Carlos. Testemunha ocular: como funciona a “venda casada” entre a Veja e o JN. Vi o Mundo: o que você não vê na mídia – Denúncias. 24 de Outubro de 2014. BAVA, Silvo. Para onde vai a América Latina? Le Monde Diplomatique Brasil Online – Editorial. 05 de Dezembro de 2007. MATTA, Maria. Mídia e democracia na América Latina. Le Monde Diplomatique Brasil Online – Alternativas. 02 de Agosto de 2011. SERRANO, Pascual. Democracia e liberdade de imprensa. In : Mídia, poder e contrapoder : da concentração monopólica à democratização da informação. São Paulo : Boitempo, 2013.

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MICROANÁLISE E AÇÃO SOCIAL: LIDERANÇAS POLÍTICAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA BRASILEIRA (1889-1903) Carina Martiny1 Este artigo trata das possibilidades de uso da metodologia micro-analítica no estudo da política nos anos iniciais da Primeira República no Brasil. O propósito geral do texto não é o de apresentar resultados de pesquisa em andamento. O esforço é o de fazer uma reflexão sobre o estado atual da historiografia sobre a temática, apresentando junto a isso minha proposta teórico-metodológica de análise. O artigo foi dividido em duas partes centrais. Na primeira, realizo um pequeno balanço da historiografia que trata da política nos anos iniciais da República, destacando algumas regularidades presentes em termos de temática e enfoque analítico. Busco destacar as contribuições destes trabalhos, mas também sinalizar problemas e limitações decorrentes de algumas leituras. Na segunda parte do texto, apresento como alternativa de análise a aplicação da metodologia de redução de escala de análise proposta, na década de 1970, por historiadores ligados à micro-história italiana. A proposta que apresentamos é a de abordar a estruturação do regime republicano a partir da análise das ações de lideranças republicanas, tendo por ponto de partida a ideia de ação social desenvolvida por Fredrik Barth (2000). Torna-se possível, através da identificação de ações e relações de lideranças republicanas, acessar práticas políticas que foram fundamentais no processo de estruturação do regime republicano. A PRIMEIRA REPÚBLICA NA HISTORIOGRAFIA Muito foi produzido sobre a Primeira República brasileira, sob os mais diferentes enfoques, com distintos interesses e fontes de pesquisa. 2 Estritamente em relação à temática política, foco de meu maior interesse, as abordagens variam entre discussões acerca do domínio da oligarquia cafeeira, da cidadania, do voto, das alianças estaduais e do funcionamento de práticas específicas ao período, como o coronelismo e a política dos governadores. Analisando mais atentamente esta historiografia, especialmente a que trata dos anos iniciais da República e de seus aspectos políticos, algumas regularidades podem ser observadas. Uma tendência marcante na historiografia que trata da Primeira República é a preocupação em periodizar, dividindo a Primeira República em fases distintas, cada uma com características próprias, capazes de diferenciar, algumas vezes de modo irreconciliável, uma fase da outra. Assim, os anos iniciais da República acabaram sendo divididos em duas fases distintas, balizadas pela oposição governos militares versus governos civis paulistas. A primeira fase, caracterizada pelo domínio de militares, seria marcada por grandes instabilidades. Configurava-se como um período de caos, segundo definição de Renato Lessa (1988, p. 15). A segunda fase, da hegemonia civil e especialmente dominada pela oligarquia paulista, foi marcada pela estabilidade alcançada graças à política dos Estados, implementada pelo presidente Campos Sales, e garantida pela aliança entre os dois grandes estados hegemônicos (São Paulo e Minas Gerais) na consagrada política café com leite. Esta fase teria se estendido até 1910, com a presidência do militar Hermes da Fonseca, que inaugurava um novo período de crise dos grupos oligárquicos. Note-se que, na maior parte dos trabalhos, é o governo Campos Sales o grande marco divisório entre a instabilidade e a estabilidade da ordem

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Aluna de Doutorado em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES. Para uma revisão historiográfica mais ampla sobre Primeira República ver: GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Marieta de Moraes. Primeira República: um balanço historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4,p. 244-280, 1989.

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republicana. Para muitos autores, o primeiro governo civil de Prudente de Moraes, dada as instabilidades políticas e financeiras, aparece vinculado ao período de caos. Criou-se assim, uma oposição período militar\instabilidade versus período civil de hegemonia paulista\estabilidade. No clássico A República Velha: evolução política, de Edgar Carone (1974), podese perceber a periodização marcada por esta oposição. O autor divide a obra em quatro partes, sendo que as duas primeiras – Os Governos Militares e O Fastígio do Regime – são determinadas em relação à saída dos militares da presidência em 1894. Ao caracterizar os anos iniciais, o autor os reduz ao domínio militar e às grandes instabilidades geradas pelas alianças envolvendo interesses e forças antagônicas – entre civis e militares – que garantiram a proclamação da República. Temos presentes na interpretação de Carone a ideia de caos e de domínio militar como chave explicativa dos primeiros anos. O segundo período, englobando os anos de 1894 a 1910, o autor denomina de Fastígio do Poder, correspondendo ao período de domínio paulista do poder, caracterizado por certa estabilidade. Renato Lessa (1988), mais de uma década depois, reafirmou esse entendimento sobre o período. O governo Campos Sales aparece como o fator estabilizador, aquele que garantiu “a implantação da ordem republicana”, como se lê no seguinte trecho, em que o autor explicita que o “objetivo central deste ensaio é o de analisar a gênese e a implantação da ordem política republicana, tomando como evidência a fórmula política aplicada no governo do Presidente Manoel Ferraz de Campos Sales, no período de 1898 a 1902” (LESSA, 1988, p. 15). O autor caracteriza os primeiros anos da República, que antecederam ao governo Campos Sales, pelo que qualifica, para designar o alto grau de desordem do período, como uma experiência política entrópica, dada a “ausência de mecanismos institucionais minimamente rotinizadores, pelo comportamento errático dos atores, que no tratamento das fontes de instabilidade acabaram por introduzir ainda mais incerteza e confusão” (LESSA, 1988, p. 15). Para Lessa, ainda o período correspondente ao governo Prudente de Moraes foi marcado “por enorme dose de caoticidade”, sendo somente os mecanismos implantados no modelo político de Campos Sales os geradores da estabilidade ao regime. A partir desta divisão, entende-se porque o autor denomina o período 1889-1898 como A década do caos. A análise proposta por Fernando Henrique Cardoso 3 (2006) é um tanto diversa, uma vez que o autor está preocupado com a institucionalização do poder. A mudança de regime, segundo Cardoso, obrigou uma mudança na institucionalização, não mais pautada no poder pessoal (Poder Moderador), mas no poder institucional. Os anos iniciais – especificamente os governos Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Moraes – são apresentados no âmbito de disputas entre militares e civis e entre os próprios civis republicanos. Para o autor, a institucionalização foi alcançada no governo Campos Sales: “Campos Sales, consciente de que assim seria na falta de partidos e convicto de que a direção ou a orientação de um processo político ‘é uma função que pertence a poucos e não à coletividade’, propôs um ‘Pacto Oligárquico’ [...]” (CARDOSO, 2006, p. 54). Assim, subsiste a ideia de estabilidade proporcionada pela política implementada por Campos Sales. Essa visão periodizante, difundida pela historiografia, ainda persiste em muitos trabalhos recentes. Margarida de Souza Neves (2010), muito apoiada na descrição de Renato Lessa sobre os anos iniciais, também aponta a instabilidade dos anos iniciais da República. Para ela, boa parte desta instabilidade teria sido determinada pela falta de unidade das tendências republicanas englobadas nos primeiros governos. Também para a autora, o processo de consolidação do novo regime ocorreu a partir do governo de Campos Sales, afirmando que foi “o governo de Campos Sales (1898-1902), [...] o grande arquiteto e o executor da obra de engenharia política que faria funcionar azeitadas as engrenagens da chamada República Velha, serenaria a turbulência da primeira hora republicana no Brasil” (NEVES, 2010, p. 33).

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Originalmente publicado em 1997.

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Visão semelhante é apresentada por Ana Luiza Backes (2004) em sua Tese de Doutorado. Analisando os mecanismos que permitiram ao presidente da República construir uma base parlamentar de apoio, a autora centra seu estudo no governo Campos Sales, acabando por imputar a ele a responsabilidade pela consolidação da República: “A primeira década após a Proclamação foi um período de disputa entre várias alternativas para fazer funcionar as novas instituições, até que Campos Sales promoveu o pacto que consolidou a República” (BACKES, 2004, p. 1). Se por um lado esta periodização é útil para compreendermos a fragilidade da aliança entre civis e militares, que proporcionou a proclamação da República, demonstrando as dificuldades iniciais enfrentadas pelo regime republicano, pouco revela sobre ações processuais mais complexas presentes naquele período. A simplificação explicativa provocada pela periodização acaba por homogeneizar os comportamentos de atores políticos. Tem-se a impressão de que: a) antes de Campos Sales, tudo era caos e qualquer esforço no sentido de construir e institucionalizar a República foi ineficaz; b) com o governo Campos Sales, todas as desavenças, discordâncias, posicionamentos distintos e a heterogeneidade dos republicanos teriam desaparecido. Promove-se, assim, uma visão do governo Campos Sales como salvacionista, a ponto de crer que sem Campos Sales a República não teria sobrevivido. Reduz-se todo o processo de consolidação da República a um único governo, ou a um único presidente e suas fórmulas políticas. Se a divisão expressa por muitos trabalhos pré e pós-governo Sales foi por muito tempo aceita, trabalhos recentes têm questionado parte desta fórmula explicativa. Para Cláudia Viscardi (2012), por exemplo, o governo Campos Sales não representou o corte indicativo do alcance da estabilidade que a historiografia lhe havia imputado. Em relação aos processos sucessórios presidenciais, a autora argumenta ter havido, até pelo menos o início da década de 1920, grande grau de instabilidade, sendo esta característica fundamental para a garantia da estabilidade do regime. Além do mais, é preciso considerar que o processo de consolidação da República vinha ocorrendo desde a proclamação. Instalada a República, através de um golpe, o passo seguinte era consolidá-la, garantindo sua sobrevivência. Nem todas as investidas neste sentido foram exitosas, mas certamente abriram caminho para que outras se tornassem possíveis. Não se pode, assim, imputar a um só governo, a obra de estabilização e consolidação do regime. Mas não foi somente a periodização uma tendência da historiografia. Especialmente anterior à década de 1990, observa-se a predominância de trabalhos de enfoque macro-analítico, cuja preocupação central é elaborar um modelo explicativo dos rumos políticos tomados pela República após a proclamação. A fórmula encontrada, e que por muito tempo perdurou na historiografia sobre o período, vincula as opções políticas às necessidades econômicas. Neste sentido, esta historiografia descreveu o estado republicano como fadado a atender às demandas dos estados produtores de café, delineando-se, assim, o domínio político da oligarquia cafeeira, especialmente a paulista. Este tipo de interpretação pode ser encontrada, por exemplo, nos trabalhos de Maria do Carmo Campello Souza 4 (1982), Bóris Fausto 5 (1982; 2006) e Fernando Henrique Cardoso (2006). Se esta leitura inspirou muitos outros trabalhos, também provocou reações. Os trabalhos de Joseph Love (1975; 2000), por exemplo, demonstram a impossibilidade de ater-se somente às questões de ordem econômica e a reduzir o entendimento da política ao domínio de uma oligarquia cafeeira. Explorando a fórmula federalismo/regionalismo, o brasilianista atentou não somente para as questões políticas estaduais, como também demonstrou a intrínseca relação entre política, economia e sociedade e a centralidade das alianças neste contexto. Nesta mesma linha está o trabalho de Ana Luiza Backes (2004) que, em sua Tese, explora o sistema federativo como marcante na definição da política do país. Sua leitura do federalismo, entretanto, é distinta da de Love. Para ela, mais forte que os fatores de dispersão regional eram os fatores

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Originalmente publicada em 1968. Originalmente publicadas em 1968 e 1997, respectivamente.

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agregadores de interesse nacional, uma vez que diante dos interesses regionais se sobrepunham as questões fundamentais da economia e política do país. Foi esta sobreposição que permitiu a formação de “alianças consistentes entre grupos de diferentes estados” (BACKES, 2004, p. 6-7). Assim como Love e Backes, Cláudia Viscardi (2012) também chama atenção para a importância das alianças entre oligarquias estaduais. Também contrabalançando a historiografia mais centrada nas questões econômicas e no peso determinante da oligarquia paulista, destacam-se as análises sobre cidadania e sobre o coronelismo. O fato da instituição da República ter provocado um influxo da participação eleitoral aguçou o interesse de muitos estudiosos. Clássico, neste sentido, é o trabalho de José Murilo de Carvalho (1987). Mas os aspectos da cidadania não se restringiram à participação eleitoral, como demonstra o próprio trabalho de Carvalho e os de Maria Emília Prado (2005) e Maria Tereza Chaves de Mello (2007). Também não escapou da análise de alguns autores questões ligadas ao imaginário republicano (CARVALHO, 1990; LEAL, 2006) e à análise dos modelos de República possíveis e em embate no contexto pré e pósproclamação (HOLANDA, 2009). Em relação ao coronelismo, a obra inaugural de Vitor Nunes Leal (1975) influenciou diversos outros trabalhos, alguns mais preocupados com a questão propriamente conceitual e outros com a dinâmica de funcionamento deste sistema. 6 Se as análises sobre coronelismo permitiram complexificar a explicação centrada apenas na hegemonia da oligarquia cafeeira, há de se considerar, que o fenômeno acabou adquirindo, no conjunto da historiografia, o status de força explicativa do período. Assumindo o coronelismo papel de destaque como característica desta fase da história brasileira, a ele outras características foram vinculadas, como a caracterização do processo político eleitoral pautado pela violência e fraudes eleitorais. O ônus disto está no fato de que o excessivo interesse por tais fenômenos pode ter obscurecido outras práticas tão ou mais importantes para a compreensão da dinâmica política. Ao elencar os enfoques pelos quais os primeiros anos da República foram analisados, é preciso lembrar dos inúmeros trabalhos que, a partir de um enfoque regional, possibilitaram uma visão mais complexa das dinâmicas políticas do período. A grande maioria destas pesquisas foi realizada em Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado que atentam para as práticas e disputas políticas na Bahia, no Mato Grosso, no Rio de Janeiro, ou seja, nos diversos estados da federação. 7 Apesar destes novos enfoques, o processo de estruturação do Estado republicano ainda é abordado de forma bastante tangencial. Se comparado com outros períodos da história brasileira, percebe-se uma evidente necessidade de aprofundar a discussão sobre o processo de estruturação da República. Como já evidenciamos, a produção sobre o período é extensa, mas, na maior parte das vezes, restrita ou a análises regionalizadas, ou ao estudo específico de algumas características da política, como o coronelismo. Se nas décadas de 1970 e 1980 muitos historiadores interessaram-se pela inauguração do regime republicano brasileiro, suas análises, de enfoque macro-analítico, delinearam a estruturação da República reduzindo sua explicação a fatores bem delineados (como o atendimento às necessidades econômicas) o que, como já apontamos, pouco revela da complexidade do período.

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Em relação à questão conceitual ver: CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual. In: CARVALHO, José Murilo. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 130-154. Quanto à dinâmica de funcionamento. Além do já citado clássico de Leal (1975) ver: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretação sociológica. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976, p.161-216. 7 Em relação à Bahia ver a dissertação de mestrado de Sílvia Noronha Sarmento (2009). Sobre o Pará, a dissertação de Marly Solange Carvalho da Cunha (2008). Sobre Mato Grosso, a tese de doutorado de Gilmara Yoshihara Franco (2014) e o trabalho de Fernando Antônio Faria (1993). Sobre o Rio de Janeiro, o trabalho de Surama Conde Sá Pinto (2011) e o de Marieta de Moraes Ferreira (1994). Sobre São Paulo ver o já citado trabalho de Joseph Love (1982). E, sobre o Rio Grande do Sul, além dos já referidos trabalhos de Joseph Love (1975), Gunter Axt (2001), a tese de Luiz Alberto Grijó (2005) e a dissertação de Tassiana Maria Parcianello Saccol (2013).

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Alguns trabalhos recentes sobre o período da Primeira República, apesar de não se aterem especificamente à temática da estruturação do Estado, sinalizam para a importância de, ao fazê-lo, levar em conta aspectos que não se limitam à dominação do Estado por uma elite (a oligarquia paulista). Disputas oligárquicas internas à política dos estados, o processo de formação das elites dirigentes, o enfrentamento entre teorias e práticas republicanas, as relações entre oligarquias regionais, entre tantas outras temáticas precisam ser integradas para que se dimensione a complexidade do processo. Neste sentido, faço referência aos trabalhos de Jaqueline Hermann (1996), Luiz Alberto Grijó (2005), Cristina Buarque do Hollanda (2009), Sílvia Noronha Sarmento (2009), Tassiana Maria Parcianelo Saccol (2013) e Gilmara Yoshihara Franco (2014). Enquanto Cristina Buarque de Holanda (2009) explora a continuidade do debate, após a proclamação da República, sobre o tema da representação política, o trabalho de Luiz Alberto Grijó (2005) chama a atenção para a necessidade de compreender a política para além das instituições propriamente governativas. Ao analisar a criação da Faculdade de Direito de Porto Alegre, o autor evidencia sua função política, como formadora de uma elite político-partidária estadual. As análises apresentadas por Sarmento (2009), Saccol (2013) e Franco (2014), destacam a importância de considerar a dinâmica estadual da construção da República e as disputas que esta envolvia. No trabalho de Hermann (1996), por sua vez, a necessidade de ampliar o debate sobre política para além da estrutura institucional de poder. Como aponta a autora, o combate a Canudos, para além da questão da resistência sertaneja, deve ser entendido no contexto das disputas políticas do período. Torna-se necessário, portanto, revisitar o tema da construção da República no Brasil, buscando integrar essa diversidade de questões. Assim, proponho uma análise do período inicial da República no Brasil que considere a relação entre Estado e as elites regionais, a interação entre as diversas instâncias de poder (federal, estadual e municipal), bem como os mecanismos que pautavam tais relações (negociações, barganhas, amizades, clientelismo, trocas de favores entre outros). Revisitando a construção da República: do macro ao micro Na década de 1970, um grupo de historiadores italianos propôs o que seria um novo método de pesquisa. Inspirados na Antropologia Social, Carlo Ginzburg, Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Carlo Poni propunham reduzir a escala de observação para estudar fenômenos históricos que haviam sido analisados em uma escala macro-analítica. Como apontam Ginzburg e Poni, este movimento era motivado pelas “dúvidas crescentes sobre determinados processos macro-históricos” (1991, p. 172). A redução da escala oferecia a estes historiadores a possibilidade de realizar outra leitura dos fenômenos sociais, políticos e econômicos, considerando a complexidade do comportamento humano. Inspirados nos trabalhos da micro-história italiana, proponho analisar o período inicial da República no Brasil questionando algumas ideias consolidadas na historiografia e que, acredito, podem tomar nova configuração quando mudamos a escala de observação. O primeiro passo é questionar algumas afirmações consagradas: foram os primeiros anos da República brasileira o caos que sugere a historiografia? Foi o governo Campos Sales o construtor da estabilidade do regime? O consagrado conceito de coronelismo como marca da Primeira República é suficiente para compreendermos as relações de poder que se desenvolveram neste período? Para responder a estas questões, proponho reduzir a escala de observação ao nível da ação e interação entre lideranças políticas que atuavam nos três níveis da estrutura de poder da República, quais sejam, o municipal, o estadual e o nacional. Observar a ação e a interação entre estas diferentes lideranças republicanas pode auxiliar a melhor compreender o processo de estruturação da República brasileira. A hipótese que guia esta proposta de análise é a de que a República, instalada através de um golpe militar e novidade enquanto regime político, dependeu das ações e articulações de lideranças, localizadas nestes três níveis, para se consolidar. Essas ações e interações, derivadas das microdecisões dos atores envolvidos, teriam ocorrido desde o início do regime, de modo que a estabilização da República não pode ser atribuída a um só governo.

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É importante que se considere que as ações das lideranças não são tomadas como conscientes e premeditadas no sentido de estabilizar ou mesmo consolidar o regime político. Sugere-se, com isso, que os atores (lideranças) não agiam sempre de forma consciente e articulada para promover a estabilidade da República. Entende-se, antes, que a sobrevivência e estabilidade do regime foram resultado de um conjunto desordenado de ações promovidas por diferentes atores com intenções distintas. Este entendimento deriva, essencialmente, da concepção de ação social de Fredrik Barth (2000) para quem cada ação individual, apesar de dotada de intencionalidade e de expectativas, gera um resultado que é inesperado. Isto porque, como observou Paul-André Rosental, o resultado das ações sociais “depende das ações paralelas, ou da reação, das outras pessoas” (ROSENTAL, 1998, p. 157). Assim, Barth (2000) formula que a ação social resulta da interação de dois aspectos distintos, quais sejam, ato e evento. O ato corresponde ao significado intencional e interpretado do comportamento humano. O evento, por sua vez, é o aspecto externo do comportamento. As ações humanas (atos), geridas de intencionalidades, resultam em eventos que podem ou não corresponder à intencionalidade dos atores sociais, dado que os efeitos dos atos são caóticos. Existe uma prescrição, um efeito esperado, mas diante da relação entre diversos atos e a existência de contingências, o evento acaba sendo desordenado. É nesta perspectiva que passo a compreender a estruturação da República, como resultado da ação social (ou práticas) dos atores políticos. Assim, o que se observa em relação aos anos iniciais do regime é que, se por um lado, logo após sua instalação houve certa instabilidade (política, econômica e social), por outro lado, já neste período, gestaram-se atos que tiveram por resultado, em grande medida inesperado se considerada a intenção de cada ato, o processo de estabilização da República, a qual a historiografia entende ter sido obra do governo Campos Sales. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo procurei realizar um balanço da historiografia existente sobre política no período inicial da Primeira República. Busquei apontar as tendências gerais tanto em termos de enfoque quanto de temática. Diante da constatação de algumas regularidades – como tendência à periodização, às macroanálises e à supervalorização de algumas características – que em grande medida simplificam o entendimento sobre o período, este artigo teve por objetivo propor como alternativa teóricometodológica a redução da escala de análise e o uso da ideia de ação social. Propõe-se, neste sentido, dar menos atenção aos resultados finais, como o fez a historiografia ao acentuar algumas características do sistema político (domínio oligárquico paulista ou coronelismo) ou criar uma oposição entre dois períodos (pré e pós-Campos Sales). Visa-se, com isso, acessar a complexidade do processo de construção da República brasileira, através da análise das ações dos atores políticos, especialmente lideranças republicanas. Com base nos pressupostos de Barth e nas proposições da micro-história, propomos pensar a República não como uma estrutura pré-existente, mas como resultado de microdecisões que precisam ser identificadas e analisadas em seu conjunto e em relação ao contexto em que se desenvolveram. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS AXT, Gunter. Gênese do estado burocrático-burguês no Rio Grande do Sul (1889-1829). 2001. 455 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2001. BACKES, Ana Luiza. Fundamentos da ordem republicana: repensando o Pacto Campos Sales. 2004. 218 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, 2004. BARTH, Fredrik. Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades. In: BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 167-186.

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NACIONALISMO E GÊNERO NA HISTÓRIA DA LITERATURA FRANCESA OITOCENTISTA Luiane Soares Motta 1 Em “Comunidades Imaginadas”, Benedict Anderson (2008) demonstra que, se de fato a nação é uma invenção política, ou em seus termos, uma construção imaginária e compartilhada, o discurso da nacionalidade não deixa de produzir efeitos nos indivíduos, que pensam pertencer e efetivamente criam experiências a partir do alastramento dessa formulação. Essa construção, que cria e estabelece vínculos e práticas, produz tecnologias e instituições que reforçam, mas também demandam a todo momento informações desse aparato, que não são totalmente dependentes, mas, na sua própria lógica, acabam por reafirmar essa interlocução com o Estado moderno (STOLER, 2002, p. 98). Nesse sentido, a síntese teórico-metodológica que Joan Scott (1995, p. 91) expõe, em seu mais que citado “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, acaba por demonstrar esse amálgama produzido pelo discurso político, incluindo o nacionalismo. O Estado impõe um significado para mulheres e estrangeiros que vem a criar uma solidarização em seu interior. Um desses mecanismos está no aparato jurídico, que acaba por discriminar indivíduos e criar, pela desigualdade, uma noção de privilégio, que gera coesão 2. O século XIX, mobilizando discursos ora republicanos ora monarquistas, mas justamente na instabilidade inerente a essa construção do “nacional”, acaba por ter refinado o seu discurso entoando representações do “povo”, ou para a “nação”, para manter-se. Não assistimos a isso apenas no dispositivo jurídico ou na panfletagem política. Os mecanismos e instrumentos estão também nas palpitantes ciências, a instituírem-se, buscando distinguirem-se e mostrarem-se úteis a esse Estado, ao mesmo tempo que delimitam seus campos. A construção da disciplina história da literatura parte desse momento, construindo uma aliança com o nacionalismo ao tornar-se um espelho “em que o espírito nacional pode mirar-se e reconhecer-se [...] um objeto assim tão estratégico para a sondagem e a identificação do caráter nacional [...] ocupa posição de relevo entre os mecanismos institucionais de salvaguarda dos valores das nações” (SOUZA, 2014, p. 60). Obviamente esse mecanismo possui sutilezas, mas sua conexão esteve no embrião da disciplina desde o início da modernidade clássica. Em Antoine Du Verdier ( 1544-1600) e FrançoisGrudé (1552-1592), autores de um levantamento de livros e escritores franceses, anunciam-se preocupações endereçadas à manutenção e à glorificação de sua comum mãe (subentende-se a nação), para estabelecer uma memória do elevado caráter do espírito francês 3. No entanto, é no século XIX que esse espírito nacionalista tende a se consolidar diante das transformações políticas ocorridas em torno do Estado. As fontes investigadas fazem parte dessa

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Doutoranda em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisa financiada pela agência CAPES. Segundo Scott (1995, p. 91): “[...] na implantação da política nazista na Alemanha ou no triunfo de Ayatolá Komehini no Irã em todas as circunstâncias, os governantes emergentes legitimaram a dominação, a força, a autoridade central e o poder dominante como masculinos (os inimigos, os forasteiros, os subversivos e a fraqueza como femininos) e literalmente traduziram esse código em leis que puseram as mulheres no seu lugar [...]. Essas ações não fazem sentido a menos que sejam integradas numa análise da construção e consolidação do poder. Uma afirmação de controle ou de força corporificou-se numa política sobre as mulheres”. 3 Na biblioteca de ambos autores encontramos esse testemunho sobre a valorização do Estado e da sua linhagem. Du Verdier (1585, p. XXV) assim coloca: "[…] je me suis employé à vouloir faire le semblable de noz François qui ont escrit em nostre langue, pour monstrer au monde combien nostre païs est abondant en bons esprits, e ainsi en quelque partie rendre graces à nostre commune mere, que pensant ne la pouvoir orner de quelque digne cõposition mienne, comme font aujourd’huy tant d’excellens enfans siens, au moins je luy face honneur estalant ses grandes richesses pour les faire voir a tous à sa gloire immortelie, qui a enfanté une telle, e si honnorable lignée”.[grifos meus] Um tal empenho parte do desejo de assegurar uma visão engrandecida de sua nacionalidade, ao mesmo tempo que os textos em língua-mãe assegurarão esse laço comum, construindo uma narrativa que os dignifique e os diferencie, sendo por isso, a própria linguagem, alvo de regulação. 2

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atmosfera ainda nebulosa, mas se engendram a partir de uma visão periférica contrarrevolucionária, bem como espacialmente mais distante. Os autores de “Mélanges biographiques et littéraires” (1828) e “Biographie des lyonnais dignes de mémoire”(1839) anunciam essa distância do núcleo da história da França no próprio discurso que fundamenta a produção de suas obras: "[…]combler, dans l'histoire littéraire de la France, cette lacune d'autant plus déplorable que notre département est un de ceux qui ont fourni un plus grand nombre d'hommes distingués dans tous les genres"(p.I). Essa disputa tem sua construção apontada já em séculos anteriores, nos quais os citadinos de Lyon afirmam que esta teria competido com Paris para sediar a Corte (BREGHOT DE LUT, 1828, p. 205). O desejo de afirmar a sua capacidade literária advém desse misto de disputa e prestígio pela cultura letrada da nação. A narrativa da história literária é disputa e manutenção dessa memória. Saindo do “Renascimento”, sustentando a nova França, se projetam elementos que corroboram com a restauração do Estado. Embora as duas obras não se configurem enquanto preocupadas somente com a cultura escrita publicada 4, foram produzidas por membros da Academia de Belles-Lettres de Lyon e possuem o tema como fundo por interesse e por formação. Nas obras constatam-se um recurso de engrandecer o passado, para auto-elevar sua imagem e a própria representação da cidade voltada à produção livreira, perceptível durante o século XVI, é reacesa, fazendo com que se enalteçam autores da “Renascença” e, inclusive, produtores que se encarregam da parte externa da mercadoria “livro”, como o “grande” ou o “melhor” editor, impressor e comerciante de toda a França 5. Ainda, quanto a essas celebrações, seguem-se outros temas e disputas. Inúmeras vezes, aparece a preocupação com as comemorações e os monumentos. Muitos estavam ligados a Luís XIV, e as discussões se davam por quem poderia escrever a homenagem, quem concorreu para escrevê-la, qual era o sentido. Tal discussão atesta não só os ritos de poder que desenvolveu o autodenominado rei Sol e sua eficácia, como a manutenção desses mecanismos para a produção da memória “oficial” em outros períodos, pois esses debates representam a mobilização pela qual se entende o Estado e quem nele pode, não só ser contado, mas como contar 6. Há, ainda, compilações de excertos de memórias, epígrafes de monumentos e menções, bem como referências aos “dignos” de Lyon. Além dessas honrarias, os autores frequentemente enaltecem e citam-se entre si, revelando a construção do acervo, proveniente muitas vezes de suas próprias famílias ou de outros colegas e particulares, construindo a história do lugar em função dos arquivos destes. Desse modo, a história literária realiza-se a partir desses acervos, abarcando, em seus valores estéticos e morais, a própria valoração que aqueles contém, produzindo a partir disso seus cânones. Para essa construção da disciplina, os discursos regionalistas e nacionalistas são meio e fim, mostrando-se maleáveis, pois naturalizam certas escolhas, justificam o por si, ao mesmo tempo que garantem o apoio político de outras instituições para manterem o fabrico de seu conhecimento. Além desses filtros, a composição da academia lionesa é de notáveis e membros da Igreja, inclusive, esta foi sua primeira protetora. Esses vínculos econômicos aqui apontados, indicam-nos a conexão e a necessidade da manutenção de certas relações para com os benfeitores da Alta Política (não é por acaso que muitos de

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Pois, segundo Roberto Souza (2014), a história da literatura (embora anterior ao século XVI já houvesse um conhecimento erudito que se configura como estudos literários, dos quais Du Verdier e De La Croix du Maine são exemplos) só toma forma própria com a apresentação da narrativa e da influência institucional, com métodos mais limitados, como noções de época e estilo, ocorrendo, isso, somente no século XIX. 5 Na defesa dessas personalidades, os acadêmicos estabelecem uma defesa da literatura enquanto um negócio louvável e digno de celebração, o que indica que era alvo de discussão acadêmica o desejo de estabelecer clivagens sociais nas aquisições e produções. 6 Quem mobiliza o discurso é a própria disputa, ou seja, não se dá unicamente pelo que se diz, mas por poder dizer. Como expõe Foucault (1971, p.10), em “A ordem do discurso”: “ (...) o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objecto do desejo o poder da fala; e porque — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos”.

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seus acervos são doações e compras dessa classe e por isso também referem-se majoritariamente a esses membro 7, algo quase circular, embora haja uma pretensa “neutralidade”). “ Mélange biographiques e litteráries” , assim como “Biographie des lyonnais dignes de memoires” são portanto propostas como conhecimento erudito, e se beneficiam do privilégio dos arquivos 8 para legitimar junto ao regionalismo sua importância e existência. Nisso expõe-se definições e reforços de papeis que sejam condizentes com as perspectivas mais úteis a sua conformação 9. Embora tenhamos que ter em mente que suas produções não sempre uníssonas (aparecendo destoantes que produzem paulatinamente outros sentidos e memórias), as personagens envolvidas e a maneira como seus autores escolhem discursos e participações, dizem algo do que está em jogo para os ideais que se atribuem às mulheres, seja afastando-as ou centralizando-as em determinados momentos, estão a mobilizar categorias que distinguem a produção, se feminina, dado que as relações entre gênero, classe não são isoladas na construção do regionalismo e do nacionalismo, tornando-se parte da sistematização que os efetivam 10. Dessa forma, queremos destacar que reativar essa memória nesse momento é também possibilitado pelo feminismo e suas considerações teórico-metodológicas, ou suas indagações para com a história 11. Encontramo-nos nessa fase da pesquisa deve-se principalmente ao fato de a cidade de Lyon ter apresentado vozes e lugares para um grupo de escritoras durante a “Renascença” 12 (um número expressivo diante dos silenciamentos de outras regiões). E essas autoras foram retomadas já no século XIX, sendo as reimpressões de obras de escritoras quinhentistas constantemente apontadas nos textos da academia lionesa 13. As autoras Louize Labé e Pernette du Guillet, por exemplo, aparecem citadas tanto na Biographie, quanto na Mélanges, onde repetidas vezes são mencionadas e somos re-informados das impressões e reimpressões que conterrâneos “dignos” realizaram de suas obras. Mas essas menções não aparecem apenas quantitativamente, são descritas entusiasticamente – como, “Lyonnaise [Louize Labé] célèbre par sa beauté et par ses talents littéraires” (BRÉGHOT DE LUT, 1839, p. 160), “elle [Pernette du Guillet] a de figurer parmi les belles lyonnaises” (BRÉGHOT DE LUT, 1828, p. 208) ou, ainda,

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Entre os quais, Padre Pernet, M. Cochard, M. Bréghot de Lut, e assim, por diante (p.102). A figura do arquivo é produção intelectual dos homens, a própria ciência arquivistica, que se descontrola, e se reforça o masculino como prioridade, tanto para descartar ou aceitar documentos, quanto por se identificar, pesquisar e controlar o arquivo. E, a partir disso, devemos também lembrar das próprias fontes que o arquivo, a esse momento, dispunha. 9 Demonstra, Maria Bernadete Flores, em “Tecnologia e estética do racismo: ciência e arte na política da beleza”, que há, ainda, um modelo estético excludente é apropriado pelo discurso médico, científico, demarcando o corpo, e se tornando questão política e motivo de apartamento social. Ainda, nessa linha de discussão Bonnie Smith vem a corroborar abordando o que toca ao saber historiográfico, em “Gênero e História: homens, mulheres e prática histórica”. 10 O artigo de Patrícia Mattos, “O conceito de interseccionalidade e suas vantagens para os estudos de gênero no Brasil” aborda o procedimento interseccional e levanta algumas categorias que podem encorajar uma pesquisa mais fluida sobre as diversas marcas que atravessam os indivíduos, para entender tanto o agenciamento, quanto a estrutura em que eles se localizam. Ainda na tentativa de afastarmo-nos do isolamento de categorias de análise, Anne McClintock realiza um projeto bastante inspirador no livro “Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial”. 11 Ver: HEMMIGS, Clare. Contando estórias feministas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 17(1): 215241, janeiro-abril/2009; SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 54, p. 281-300 – 2007; WOLFF, Cristina S. e GOMES, Maurício P. Uma trajetória nos estudos feministas: entrevista com Claire Moses. Revista Estudos Feministas. Florianópolis. 23 (1): 157-175, janeiro-abril, 2015. 12 No sentido que esse momento é mais uma profusão do saber do que sua redescoberta. Ainda, como mencionamos, o século XVI apresenta um número expressivo de autoras e publicações femininas, comparado aos imediatamente posterior e anterior, mas a invisibilização parece coincidir com as disputas religiosas, nas quais as argumentações sobre direitos, vão, constantemente, se opondo restrições ou se tornando limitações. 13 O que também deve nos dizer algo da possibilidade de estarmos a realizar essa problematização da história literária francesa hoje (pensando nos filtros que perpassam outras histórias da literatura). 8

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“elle [Louize Labé] possédait aussi ces belles formes celebrées pour Erasme" (BRÉGHOT DE LUT, 1828, p. 207), além de apresentar listagens de reedições contemporâneas a Bréghot. Chama a atenção que os adjetivos das mulheres festejadas são, seguidamente, primeiro, uma referência à beleza e, depois, a seu mérito. Mesmo assim, tais casos ativam e indicam um empreendimento em busca da memória que louve essa “Renascença” e, assim, dignifique a produção lionesa, ao mesmo tempo em que assinalam a importância de ambas para a história da literatura na modernidade clássica. Mas as representações não são sempre tão animadoras. O número de mulheres que aparecem nos recortes propostos pela Mélanges representa 1/5 do que nos foi apresentado nessa primeira leitura. A diferença da classificação quanto a apresentação de escritores e escritoras é de 28 para 11. No entanto, isso é relevante se levarmos em conta que são apresentados 74 homens e 18 mulheres. Ainda, é possível perceber que a presença das mulheres nessa historiografia só se corporeifica, enquanto “digna” de ser narrada, quando se dedicam às letras, pois o número é quase coincidente. Ou seja, elas adquirem presença histórica (levando em conta que Mélanges não trata apenas de história literária, como explicamos anteriormente) quando publicam textos literários. Contudo, houve um aspecto quantitativo observado nesse primeiro momento. Com exceção das escritoras Pernette du Guillet e Louïze Labé que teriam sido abordadas e constantemente lembradas do seu papel nessa sociedade letrada, outras mulheres, contemporâneas, quando trazidas são associadas a falhas e ridicularizações 14 (além de nenhuma contemporânea a essas obras ter sido observada como “louvável” em Biographie). O papel das renascentistas, parece-nos, é sublinhado porque tem, ambas, a possibilidade de colocarem a cidade no mapa das produções clássicas e demonstrarem a riqueza literata dessa sociedade e sua diversidade, já o presente desses acadêmicos, com suas relações e disputas por espaço mais frequentes 15, parece ser menos interessado para com as intelectuais, pois rechaçam-nas, não sustentando uma posição explicitamente favorável às mulheres na academia. Quanto à obra Biographie lyonnais..., encontramos uma abismal diferença, ou mesmo indiferença, as mulheres são em torno de 7% de toda a indexação na obra. Em termos de publicação, são pouco citadas (em torno de 1/5 delas). Já o número que aparece relacionado à Igreja e à particularidade de lá estarem realizando ações políticas, é bem expressivo, pois se há vinte e seis escritoras, lembradas e narradas 16 enquanto tais, as envolvidas com a vida religiosa aparecem numa importância de quarenta e três mulheres, sendo que algumas religiosas foram também escritoras. Já as musas, que servem de inspiração ou são indicadas somente pela sua “beleza”, formam um total de 35% dos números. Entre as inspiradoras, destacam-se personagens das perseguições aos cristãos, e nelas se reabilita não só a imagem de uma mulher mártir, mas apresentam a imagem da guerreira e da resistência. Em uma minoria, são apresentadas como fonte de sabedoria e admiração espiritual, mas sem indicações se são letradas ou escritoras. Surgem, também, discursos sobre mulheres aventureiras, que teriam se mobilizado a lutar pelos valores da sociedade, tanto em momentos da Reforma (praticamente, defendendo-se do “protestantismo”), quanto na Revolução Francesa a favor do poder monárquico, ou de um discurso mais moderado. A posição conservadora, não se deve somente ao fato de apresentarem mulheres mais alinhadas com discursos hegemônicos ou à desproporcional diferença entre agentes femininos e masculinos, como também em ambos os escritos não conter quaisquer críticas sociais 17, o

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O caso da Madame de Genlis (p. 2-3), por exemplo, assinala um detratamento sutil quanto à sua produção. Ainda, a constatação que “as musas lionesas não ocupam mais que um lugar modesto no anuário poético” (p. 37), bem como, a reprodução de que Labé passou “levemente” sua vida, é também, mesmo que defendida, coroada (p. 38), ou as alegações de adultério (p. 67), ou o desejo de mudar o gênero poesia e filosofia do feminino (p. 101), entre outras. Por que essa posição, numa obra que assinala o desejo de construir uma “boa” memória, as mulheres são descritas dessa forma? 15 Masculino/masculinizante como filtro para aceitação e percepção da escritura feminina. 16 Ou seja, gostaríamos de lembrar que nesse momento o conceito de representação (CHARTIER, 1990) se torna fundamental para abordarmos essa história oitocentista. Assim, longe de significar o real-passado, apresentam contornos mesclados às suas contemporâneas e complexas disposições. 17 Em Mélanges o autor M. Berchoux (p. 152), que parecia estar fazendo uma crítica social, contrapondo-se ao academicismo de certos temas e sua falta de utilidade, cita os sistemas de pesos e medidas que entram em discussão. Contudo, as suas críticas envergam para uma questão nacionalista e de “laissez-faire” para que não sejam estabelecidas tais universalizações. Os autores do compêndio não mencionam esse caráter, mas a questão

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que pode ser devido à coincidência com o momento da restauração francesa pós-Revolução, além de ser realizada por uma instituição que não é preenchida por membros de classes “populares”. Assim, outro aspecto que diz respeito a esse letramento feminino e os papeis desempenhados pelas mulheres, é a presença de um aspecto socioeconômico muito forte, a maioria, das que aparecem são pertencentes à aristocracia, casadas e com conexões em instituições religiosas. Não bastasse essas clivagens, o ideal de mulher vitoriana esteve muito propagado por toda a Europa durante o período oitocentista, como observa Bonnie Smith (2003), Peter Gay (2002), entre outros, seus elementos são pertencentes a outras associações de longa duração, que alguns indivíduos, vinculados às instituições, utilizam para manter seus privilégios. Porém, nessa representação em que há um levantamento de mulheres muito inspiradoras, mas pouco eruditas, estariam esses acadêmicos, cujas obras tem um cunho regionalista, como já mencionamos, envolvidos nesse mesmo programa, ou ao buscar elevar os “feitos” de seus cidadãos acrescentaram novidades às narrativas literárias sobre a produção feminina? A leitura de um dos escritores dessa historiografia lionesa, Nicolas Cochard, mantém a visão otimista do passado. Contudo, o “Renascimento” ocorre por ter sido o reino de François I fundamental para a difusão do ensino na França, encorajando pesquisas, fundando colégios, e, por sua vez, influenciando nas modificações na educação das mulheres: Les femmes participèrent à cette heureuse amélioration: leur éducation fut plus soignée, plus étendue, plus libérale; on ne se contenta pas de leur enseignerles arts d'agrément, on les initia de bonne heure dans les mystères des sciences : les progrès qu'elles y firent prouvent que le penchant à la frivolité, dont on les accuse, est plutôt l'effet des institutions que celui de leur caractère 18.[grifos meus] (COCHARD apud BREGHOT DE LUT, 1824, p. 23) Conforme o breve relato, há uma clareza que as próprias instituições inviabilizaram o progresso dessas mulheres, desnaturalizando a habitual frivolidade de que as acusam. Porém, o trecho desse autor, que prosseguiria com citação de uma listagem de escritoras renascentistas dessa região, constrói um ambiente em que as mulheres lionesas tiveram acesso à educação de viés formal e escreveram, por investimentos reais. O que parece notório é a apresentação dessa atmosfera francesa proporcionada pela monarquia. A fala do estudioso advém de um contexto no qual mesmo a iniciativa feminina é fruto das antigas configurações da França pré-revolucionária e que, naquele momento, estavam a ser restauradas. Essa retomada da defesa da monarquia para a promoção da cultura no Estado confirma o empreendimento do nacionalismo, dado à situação instável em que agora situava-se o poder monárquico, passava a vincular-se a melhorias extraordinárias que beneficiariam a nação. Parece-nos que, há uma emergência, durante a construção e sedimentação da disciplina e dos mecanismos nacionais e regionais, de uma preocupação em articular na imagem da mulher burguesa (para além do discurso do doméstico e da frugalidade, do ideal vitoriano) algo que envolvesse mais dinamicamente seu papel à alta política. Contudo, as referências a algumas mulheres que percorrem a academia são esparsas, fruto, ainda, de filtros estéticos e morais, pois há uma preocupação com o passado como patrimônio hipervalorizado, e, além disso, a prática estabelece laços e relações mais competitivas, revigorando restrições sobre o valor da produção contemporânea feminina, para manter o

gramatical que se impõe nas argumentações feitas por Berchoux, demonstram que o ponto não é “a falta do que pesar”, mas trazer uma universalização usando tais nomenclaturas e medidas comuns a outras nações, portanto há um discurso nacionalista utilizado. 18 Prossegue, ele, visibilizando outras autoras : Nos annales ont conservé les noms de Catherine de Vauzelles, de Louise Sarrasin, de Pernette du Guillet, de Claudine Péronne, de Jeanne Creste , de Jeanne Gaillarde, qui se distinguoient alors autant par les charmes de leur esprit que par la régularité de leur conduite, et qui toutes jouirent du rare avantage d'inspirer aux meilleures poètes du temps les meilleurs vers qu'ils aient mis au jour (...) Ajoutez à ces noms celui de Jacqueline de Stuard, et ceux de Claudine et Sibylle Sceve, célébrées Ver: BREGHOT DE LUT, C. Notice sur Labé. Par Perrin et al. Evvres de Louïze Labé Lionnoize, 1824. p. 23-24.

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privilégio dos acadêmicos (SMITH, 2003) de contar a História. Contudo, Mônica Jinzenji (2010) afirma que, em seu estudo sobre a sociedade brasileira, em que há uma importação de bens e cultura da França, as mulheres são alvos de discursos para sua pedagogização enquanto participantes da educação dos cidadãos de sua nação. Os arquivos e as próprias fontes, por mais que no caso de alguns escritores, como Cochard (1824), tenham feito um esforço para transcender aquilo que hegemonicamente se narra e se cria sobre as mulheres, é certo que o metodismo e positivismo dos autores os impedem de reproduzir um fenômeno muito destoante da misoginia institucional. Como Lévi-Strauss lembra (apud PROST, 2008, 95): “atrás da aparente e objetiva datação há uma presença inventiva de interesses”. Nesse caso, em que a região não visou competir com a nação, mas desejou colocar-se como relevante quanto à construção de tal, se acrescentou outras formas de nacionalismo. Nessa disputa, afirmando-o e garantindo-o, engendrou, contudo, um passado que consolidou sua história pela literatura estabelecendo-se através da escritura feminina renascentista. Talvez, essa negociação tenha acompanhado o desejo de edificação da educação das mulheres para a maternidade e outras atribuições “em função de” pois além do útil discurso de autoengrandecimento, também foi difundido debates sobre o corpo feminino tornando-se tema de atenção nas discussões literárias nacionalistas, para servir a parte do aparato estatal 19. Mas ao buscarem ser incorporados e tomarem as imagens de certas mulheres para compor parte do patrimônio imaterial do regionalismo lionês, tenderam a apresentar um papel mais dinâmico, ainda que secundário, às contemporâneas. Portanto, algo se explicita nessas representações (ainda que, nesse momento, expressemos mais quantitativamente). A marginalidade da presença feminina é constante em ambos, demonstrando a coesão do Estado e da academia, criada através do alijamento feminino e do privilégio masculino. Entretanto, se realiza uma espécie de ressignificação - pois se tomarmos os discursos produzidos no século XVII sobre a necessidade de que se evitasse ensinar às mulheres 20, há uma guinada diferente na elaboração do discurso nacional. Ao abordá-las entre os dignos de memória, os autores interpelaram seu presente, ainda que se isentando desse objetivo, pois demonstravam o cultivo das mentes femininas como “possível”, até louvável, ainda que não acessível. O lugar, representativamente, não alimentado, servia ao propósito de enquadrá-las e falar-lhes, sem, contudo, permitir tomar suas próprias palavras dentro do discurso nacionalista, afim de tentar manter sob controle sua participação. Felizmente, a inventividade da vida sempre consegue ultrapassar essas (e as nossas!) estáticas e limitadoras representações. FONTES: Antoine DU VERDIER. La bibliothèque d'Antoine DuVerdier. Ed. Barthélémy Honorât: Lyon, 1585. Antoine PERICAUD e Claude BRÉGHOT DE LUT (et al). Biographie des lyonnais dignes de mémoire. Boitel, Lyon, 1839. Claude BRÉGHOT DE LUT (et al). Mélanges biographiques et littéraires. Barret, Lyon, 1828. François GRUDÉ de la Crois-du-Maine. Le premier volume de bibliotheque du sieur La Croix-du Maine . Par Abel l'Angelier ; Paris, 1584. Nicolas COCHARD. Notice sur Labé. In : Claude BRÉGHOT DE LUT (et al). Evvres de Louïze Labé Lionnoize. Lyon : Par Perrin, 1824. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A própria questão da amamentação aparece como tema de obras de homens e mulheres e coincidem com a montagem desses corpos femininos como feitos para a manutenção da demografia estatal. Autores como Rousseau, Julien Laurecin, aparecem aqui mencionados e também possuem preocupações muito forte com a pedagogização e a nação (BREGHOT, 1839, p.166). 20 Um autor simplesmente adorado até hoje por sua produção teatral, como Molière, era ovacionado por ridicularizar senhoras que se colocavam a ler e escrever filosofia e poemas.

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O PAN-AMERICANISMO E AS REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DO BRASIL NO IHGB DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930) Gabriela Correa da Silva 1 Durante as primeiras décadas da República brasileira, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi palco de importantes debates para a definição do que era e o que devia ser a história (seus métodos, seus temas e problemas centrais, qual o papel do conhecimento histórico para a construção da República, etc.). Tal definição estava claramente associada ao traçado de projetos de futuros possíveis para modernidade do país. Para Ângela de Castro Gomes (2009), este foi um período de intensa busca da modernidade. Ao atentarmos às discussões em torno desta procura, podemos constatar a coexistência de diversas concepções acerca de como deveria ser pensada a nação, do modo que, por exemplo, paralelamente ao advento das novas formas de pensar a nação brasileira, progressivamente, as relações com as repúblicas vizinhas e com os Estados Unidos vão sendo ressignificadas. A nação passa, então, a ser imaginada de forma distinta no que se refere ao período anterior, o que não implica, evidentemente, na renúncia ao modelo europeu de nação. O fato é que, na transição entre regimes políticos distintos, novos heróis emergem e outros projetos de futuro passam a ser gestados. Dessa forma, propõe-se, como tema a ser desenvolvido neste texto, inicialmente, o apontamento, em linhas gerais, das ideias de nação no Brasil e, mais especificamente, no IHGB, quando do advento da República. Com isso, buscar-se-á explorar as seguintes questões: quais eram os projetos de nação que eram apresentados e defendidos no interior da instituição no período da Primeira República? Quais eram os rompimentos e eventuais continuidades em relação ao Império? Qual deveria ser a posição do Brasil diante da América como um todo? Tal discussão será fundamental para a compreensão dos rumos da escrita da história no IHGB no período republicano, bem como do advento das reflexões em torno do pan-americanismo. A fim de explorar as questões acima elaboradas, o presente texto proporá uma breve análise da publicação intitulada “Alexandre de Gusmão e o Monroísmo”, de autoria de um dos sócios do IHGB, Rodrigo Octávio Langgaard de Menezes (1866-1944).

A NAÇÃO NO BRASIL REPUBLICANO E O IHGB Se adotarmos o conceito de nação proposto por Benedict Anderson, devemos entendê-la como uma comunidade política imaginada intrinsecamente limitada e mesmo assim, soberana. Ao aderirmos a conceitualização proposta pelo autor, é pertinente atentarmos às particularidades da constituição da nação no Brasil. Assim, seria oportuno aqui ressaltarmos a longa duração do processo que possibilitou a emergência da imaginação desta comunidade. Nesta “comunidade imaginada” os indivíduos não conhecem todos aqueles que compõem o grupo mais extenso. Seus membros se sentem unidos a partir de experiências, símbolos e referências comuns. Eles se imaginam em comunhão coletiva. Certamente, foi um longo percurso até que, para além de saber da existência de outros indivíduos, os membros da comunidade se reconhecessem como parte do mesmo todo a fim de que comungassem entre si. Outro aspecto é fundamental para avançar na argumentação proposta neste artigo: a nação, para Anderson, compõe uma fraternidade, o que tornou possível que tantas pessoas tenham se disposto a morrer por ela. Talvez o autor mais citado para indicar os diversos projetos de nação que circulavam nos debates públicos quando da proclamação da república brasileira seja José Murilo de Carvalho (1990; 1998). É ele, portanto, quem será convocado aqui. Segundo este autor, uma das primeiras vezes em que o brado retórico de 1822, “morrer pelo Brasil”, tomou corpo, foi na ocasião da mobilização cívica em torno da

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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Bolsista CNPq.

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Guerra do Paraguai (1865-1870). Foi neste momento que milhares de brasileiros se voluntariaram para morrer pela pátria. Tal fenômeno lembra a consideração de Ernest Gellner (1983), segundo a qual o nacionalismo tem um caráter violento que, inclusive, pode levar a eliminação de outras culturas. Além disso, ele permite retomar uma consideração praticamente consensual na historiografia atual: no Brasil, o Estado antecede a nação. Tal afirmação, por sua vez, nos remete diretamente para outra indagação: afinal, desde quando somos uma nação? A resposta para este questionamento não é evidente, tampouco consensual. Acompanhemos a análise de Lúcia Lippi Oliveira (1990). Para a autora, a questão da nação como uma unidade própria emergiu em diferentes momentos do processo de autoconsciência dos intelectuais brasileiros 2 . Um destes momentos ocorreu na segunda metade do século XIX 3. Assim, a autora enfatiza este período como sendo central para o desenvolvimento da reflexão acerca da nação no Brasil. Para ela, o pensamento daqueles que produziram seus trabalhos entre 1870 e 1914 foi dominado pelo sentido de atualização, de modernização. Aos problemas nacionais, eles ofereciam uma reação “científica”. Seu projeto era superar o atraso nacional e acelerar sua marcha evolutiva. De modo geral, Oliveira aponta a existência de três mentalidades características deste período da história brasileira: a mentalidade católico-conservadora, a liberal (dividida entre monarquistas constitucionais e republicanos) e a cientificista, da qual o positivismo foi uma das expressões. De acordo com a autora: Entender o Brasil, construir o Brasil, era uma meta fundamental para esses homens que julgavam que o país deveria repetir, de forma acelerada, a experiência do ocidente. Neste contexto, a construção do sentimento brasileiro tinha uma importância fundamental, sendo a nacionalidade o critério básico de avaliação dos produtos literários e culturais. Eles apontavam a carência de originalidade na literatura brasileira e viam como saída o estudo etnológico e histórico. (OLIVEIRA, 1990, p. 85)

Neste ponto da reflexão, as considerações de alguns teóricos que compõem o grupo conhecido mundialmente como Subaltern Studies, de certa forma, auxiliam a pensar o caso brasileiro. Nesse sentido, Partha Chatterjee (2007) propõe algumas reflexões interessantes. Ao criticar a aplicabilidade plena do modelo de B. Anderson ao mundo pós-colonial, especialmente no que concerne à inexorabilidade da adesão à modernidade europeia, sobretudo no que diz respeito aos modelos de nação importados do Ocidente, este autor nos chama a atenção para os outros caminhos possíveis. Para o caso asiático e africano, a questão parece latente e atual. No caso brasileiro, a crítica possivelmente seja relevante ainda hoje para pensar projetos políticos de futuro. No entanto, para além da pertinência presente, a crítica nos coloca a seguinte questão: houve vários momentos em que a modernidade nos moldes europeus foi almejada tanto pelos políticos e burocratas, quanto pela intelectualidade nacional. Ademais, parece claro na citação acima transcrita que o período anterior e posterior à proclamação da república foi paradigmático nesse sentido. Sendo assim, será que houve possibilidades outras de pensar os rumos da nação? Se houve, quais foram elas? Seria possível sugerir que mesmo aderindo à busca pela modernidade, ao aparentemente irresistível discurso da falta, houve espaço para a reflexão autônoma? Além disso, é possível engessar a modernidade em uma definição unívoca? Será que todos aqueles que se propuseram a pensar a nação brasileira aderiram cegamente ao discurso do colonizador?

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Outra importante análise acerca do debate político-intelectual brasileiro na primeira década republicana é a de Ângela Alonso (2009). Já em relação ao percurso da questão nacional e identitária na escrita da história na América Latina, ver Cláudia Wasserman (2003). 3 Tal proposta de periodização, evidentemente, não ignora o esforço do IHGB desde a sua fundação, em 1838, para a constituição de um sentimento nacional, tampouco os empreendimentos literários que se realizaram bem antes da temporalidade analisada pela autora. Sobre o IHGB no século XIX ver Guimarães (1988).

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Nesse sentido, é instigante pensar aqui no conceito de modernidade de acordo com as considerações de outro teórico da pós-colonialidade, o argentino Walter Mignolo (2010). Para este autor, a modernidade inaugura aquilo que Edward Said (2006) define como o advento do “Supersujeito ocidental”, no sentido de que ela foi um processo ocidentalizante, ou seja, impôs às diferentes regiões do planeta certos padrões de desenvolvimento. Assim, para Mignolo, um lado incontornável da modernidade é a colonialidade, que se expressa, inclusive, no campo do saber. Esta é uma argumentação profícua em muitos sentidos, mas que também limita a compreensão das diferentes propostas de modernidade que podem ter tomado corpo em determinados momentos da história. Penso aqui em projetos de modernidades alternativas, que não necessariamente tenham a Europa como norte inexorável e que certamente não surgiram, pela primeira vez, por meio das formulações dos descolonialistas. Duvidar desta suposta homogeneidade da busca pela modernidade contribui para considerarmos o pan-americanismo 4 como uma das possibilidades de escrita da história da nação que teve forma no IHGB da Primeira República, em um período em que projetos distintos de modernidade (Gomes, 2009), coabitavam na instituição e no cenário intelectual nacional como um todo. Assim, ainda que uma representação da história nacional pautada pelo pan-americanismo englobasse os Estados Unidos – que vem a dar no mesmo que a Europa na argumentação de Mignolo – houve uma tentativa de pensar o Brasil no contexto da América hispânica também, e não podemos reduzir esta tendência a um projeto ocidentalizante. Avançar nestas questões pode ser uma forma de compreendermos de modo mais apropriado os debates travados entre a intelectualidade no período aqui adotado como recorte e os caminhos que se apresentavam e eram apontados naquele momento. Dessa forma, lembremo-nos daquilo que afirma Lúcia Lippi de Oliveira (1990): a primeira década da República brasileira foi de grandes agitações e a pergunta do dia era: Qual República? Quais seriam suas influências centrais? Liberal? Católica? Ibérica? Americanista? Se americanista, mais próxima dos EUA ou das repúblicas latino-americanas 5? Conforme José Murilo de Carvalho (1998), com a proclamação, a identidade americana do país, que já tinha alguns defensores ainda durante o Império, foi enfatizada. Em linhas gerais, este americanismo vinha acompanhado de um antilusitanismo. Exemplos de autores que defendiam um viés americanista para a nova república são Raul Pompéia e Manuel Bomfim. De início um tanto abstrata, aos poucos a ideia de América foi se identificando cada vez mais com os Estados Unidos. Nesse sentido, ao indicar a existência de um processo de construção e/ou ressignificação de sinais universais, de leitura fácil como as imagens, as alegorias, os símbolos e os mitos, J. M. Carvalho localiza um ambiente de reapropriação e constituição de certas versões sobre o passado nacional. Um dos pontos fundamentais deste texto refere-se à observação de que houve um processo semelhante a este que tomou forma no interior do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Uma das variáveis deste problema foi, como apontado acima, a constante busca da modernidade. É nesta chave que podemos pensar os distintos projetos de futuro para a república brasileira que circularam neste contexto.

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De acordo com Kátia Baggio (2000), a expressão pan-americanismo apareceu pela primeira vez na imprensa norte-americana, que começou a usar, alguns meses antes da Primeira Conferência Internacional Americana (188990), a expressão Pan-América. O termo difundiu-se e passou a denominar o conjunto de políticas de incentivo à integração dos países americanos, sob a hegemonia dos Estados Unidos. A partir da leitura das atas de sessão e dos textos publicados na Revista do IHGB é possível afirmar que a principal apropriação da expressão panamericanismo no interior da instituição se dá no sentido de buscar o estímulo à fraternidade entre os diversos países americanos, sob a inspiração dos Estados Unidos. As diferentes apropriações variam conforme as inclinações dos vários sócios do instituto: ora mais próxima dos vizinhos hispânicos, ora dos Estados Unidos. 5 Para uma análise que contempla o conceito de América Latina, ver BETHELL, Leslie. “O Brasil e a ideia de ‘América Latina’ em perspectiva histórica.” Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, nº 44, 2009, p. 289-321.

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Para tanto, é importante a remissão a um estudo essencial sobre a escrita da história no período republicano, desenvolvido por Lúcia Guimarães (2007). A historiadora procura compreender o papel desempenhado pelo IHGB na historiografia brasileira entre 1889 e 1938, principalmente através dos anais de seus Congressos. Ela acompanha as transformações na forma de fazer história na instituição por meio destas fontes, mas também utilizando outras, tais como a produção de alguns de seus sócios. A autora aborda as dificuldades pelas quais passou a instituição nos anos iniciais da República e sua progressiva recuperação, tendo se tornado verdadeira Escola de Patriotismo, voltada a uma escrita da história pragmática, direcionada para o cultivo das virtudes cívicas e reverência aos valores do passado 6. Assim, de acordo com Lúcia Guimarães (1997), no século XIX, os fundadores do Instituto haviam convertido a antiga metrópole em “mãe-pátria”. Subjacente a essa ideia forjou-se, ainda, o conceito de que a transição do estatuto de colônia para o de país independente foi um processo natural, caracterizado pela ausência de trauma ou rupturas. Esta seria uma marca singular, que diferenciava a nação brasileira dos seus vizinhos no continente. Com o advento da República, porém, o IHGB passaria por maus momentos, sobretudo nos anos posteriores à proclamação. Sem a proteção do Imperador, os recursos se tornaram escassos. Os primeiros indícios da recuperação apareceram por volta de 1908, quando assumiu a presidência do IHGB José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, que desde 1902 ocupava a pasta de relações exteriores. Paralelamente às reformulações implementadas pelo Barão, intelectuais, políticos e diplomatas do continente ascenderam aos quadros sociais do grêmio, a exemplo dos argentinos Ramon Carcano e Julio Fernandez, dos uruguaios José Salgado e Lucas Ayarragaray e, ainda, do norteamericano Henry Lang, passando a frequentar as suas sessões ordinárias com maior assiduidade. Um dos ápices desta colaboração se deu no I Congresso Internacional de História da América, realizado pelo IHGB entre os dias 7 e 15 de setembro de 1922. No relatório deste evento, Max Fleiüss, secretário perpétuo do instituto, afirma a importância de ocasiões como aquela enquanto meio para a formação de uma consciência comum entre as nações americanas 7. A preocupação com a problemática americana, evidentemente, esteve em pauta no referido evento. Com isso, os organizadores do Congresso de História da América pretendiam identificar nos domínios da história um denominador comum entre o Brasil e os demais territórios americanos. A fim de concretizar esta nova tendência, a direção do IHGB propôs um projeto coletivo de escrita da história da América intitulado “Anteprojeto de bases para a elaboração de História da América”. Planejava-se, então, a produção de uma grande síntese da “marcha evolutiva da civilização no continente americano”, acentuando, sobretudo, “os seus pontos comuns”. (GUIMARÃES, 1997, p. 224) A obra coletiva, a despeito dos esforços dos letrados brasileiros, não foi concretizada. Apesar disso, é possível observar que a existência do Congresso, os textos das comunicações, o tom das manifestações dos sócios do instituto sobre o evento e as iniciativas por ele ensejadas apontam para a expressiva presença de debates em torno do pan-americanismo no IHGB da Primeira República. O seu

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Outro estudo importante sobre o IHGB na Primeira República é o de Hugo Hruby (2007). O autor aborda o tema da busca pela cientificidade da história no período inicial da República (1889-1912), bem como aponta a associação entre pensamento histórico científico e pensamento religioso. Conforme Hruby, o advento da República levou ao choque entre espaços de experiência e horizontes de expectativas de atores diversos, como a Igreja Católica, os governos republicanos, os burocratas monarquistas e os homens de letras. No IHGB, diversos dos sócios eram fortemente cristãos ou pertencentes à carreira eclesiástica: cardeais, bispos, monsenhores e párocos. De acordo com Hugo Hruby (2009), entre 1889 e 1912, ingressaram vinte e três sacerdotes nos quadros do IHGB, média bastante superior a do período anterior. Houve debates sobre a laicização do estado, e o catolicismo foi associado a uma “escola de patriotismo”, no sentido de que, segundo Aquino e Castro, presidente do instituto quando da queda do trono, os sentimentos religiosos davam força e vitalidade ao fervor pátrio. Para ele, o “patriotismo ateu” era uma criação nova, absurda e monstruosa. Para estes sócios, o IHGB era o templo da história pátria. Por outro lado, havia outro grupo de sócios, designados pelo grupo “católico”, como sendo positivistas. Estes defendiam o cientificismo. Assim, as discussões sobre história, ciência e fé, marcaram os discursos dos sócios entre fins do século XIX e início do XX. 7 FLEIÜSS, Max. Revista do IHGB, 92 (146):582, 1922, apud GUIMARÃES, Lúcia, 2007, p. 161.

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desdobramento imediato era a necessidade de constituição de uma história comum para os povos americanos. A elaboração do anteprojeto, apesar de não ter sido efetivado, demonstra a grande relevância do problema da aproximação com as repúblicas americanas no âmbito dos debates que ali se travaram. Tal iniciativa buscou projetar uma nação mais atenta às suas relações com as repúblicas vizinhas, portanto, tomou corpo no IHGB da Primeira República. Nesse sentido, é pertinente mencionar brevemente a trajetória intelectual de um deles, uma vez que contribuiu para este esforço. Rodrigo Octávio Langgaard de Menezes (1866-1944) foi historiador, contista, jurista e diplomata. Ingressou no instituto no ano de 1900, tendo sido elevado a sócio honorário em 1916 e benemérito em 1917 pelos seus “serviços às letras históricas” 8. De acordo com Haroldo Valladão, na edição da Revista do IHGB sobre seu centenário, Rodrigo Octávio deu, em vida, “esplêndida demonstração de saber, de brasileirismo e de pan-americanismo” 9. O sócio do instituto foi também o representante brasileiro na Conferência Científica Pan-Americana de Washington (1916) e Secretario da mesa da III Conferência Interamericana do Rio de Janeiro, em agosto de 1906. Abordar sua trajetória é uma possibilidade de acompanhar as imbricações entre as iniciativas políticas em torno do panamericanismo e sua apropriação pelos sócios do Instituto como temática de cunho historiográfico. Um de seus trabalhos, “Alexandre de Gusmão e o Monroísmo”, publicado na Revista do IHGB em 1940 10 e na França em 1930, merece algumas sucintas considerações 11. O referido texto traça uma breve história da formação do território brasileiro a partir dos tratados entre Portugal e Espanha e, então, chega a 1750, quando menciona o Tratado de Madri e seu negociador, Alexandre de Gusmão. Sua tese é de que Alexandre de Gusmão foi um precursor do monroísmo, no sentido de evitar a intervenção europeia na América. Para comprová-la, o autor menciona o artigo 21 do Tratado de Madrid, o qual previa que em caso de conflito entre as coroas espanhola e portuguesa, não haveria envolvimento das colônias americanas. A argumentação é reveladora: E eu vos pergunto: - não é evidente que neste velho texto desconhecido se encontram definidos generosos princípios de alta política internacional que ultrapassam o sentimento do seu tempo? Não está nele fixado o sentimento de fraternidade americana sob os princípios de uma paz perpétua? Não se vê neles o mesmo espírito que meio século mais tarde inspirou Washington e os gloriosos formadores da grande nação norte-americana e se cristalizaram na palavra nítida e precisa de Monroe? [...]. Não se pode desconhecer, assim, que do dispositivo do Tratado de 1750 se desprendem os princípios fundamentais da mensagem americana de 1823: - a solidariedade continental pela concórdia e o alheamento da América das consequências das intrigas da política europeia, princípios fundamentais de onde decorreu o lema – A América para os Americanos. (OCTÁVIO, Rodrigo, 1940, p. 31-32)

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RIHGB, volume 182, 1944, p. 215. RIHGB, volume 284, 1969, p.124. RIHGB, volume 174, 1940, p 5-69. Tem relevância, para o estudo do autor, o texto de Lúcia Lippi Oliveira (1990, p. 142). Ela analisa o livro de autoria de Rodrigo Octávio intitulado “Festas Nacionais”, publicado em 1938. Confrontando autores como Raul Pompéia, Rodrigo Octávio e Afonso Celso, Oliveira aponta para a existência de duas correntes distintas acerca da nacionalidade. A versão de Octávio não teve a longevidade da versão de Afonso Celso, mas esteve preocupada com a questão da soberania republicana e recupera na história os movimentos precursores da República. Ainda sobre este assunto, é relevante o texto da autora de 1989, publicado na Revista Estudos Históricos.

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A propósito da citação, é importante retomar a constatação de Gomes (2009), visto que, de acordo com a autora, durante a Primeira República o desafio dos historiadores do IHGB era o de tornar palatável uma articulação entre Colônia, Império e República, sem obscurecer as tradições dos primeiros, mas sem ferir o desejo de legitimidade republicano. A tese de Rodrigo Octávio, pois, dá conta do recado, porquanto articula, através da figura de Alexandre de Gusmão, o período colonial ao momento presente, de tentativas de aproximação entre o Brasil e a América – Hispânica e do Norte. Por fim, ao analisarmos a fonte acima indicada, é possível observar uma espécie de continuidade de um esforço de aproximação entre o passado brasileiro e das repúblicas da América na obra de alguns dos sócios do instituto. Assim, por constatar a relevância da temática acima discutida em uma importante instituição no se refere à escrita da história do Brasil, o objetivo da pesquisa que originou este texto é acompanhar a trajetória da constituição do pan-americanismo em problema historiográfico no IHGB durante a Primeira República. Desse modo, no decorrer da investigação que atualmente se encontra em processo inicial de desenvolvimento, buscar-se-á aprofundar a análise de fontes tais como o estudo acima citado, bem como ampliar o espectro da análise para outros sócios da instituição, tanto brasileiros quanto estrangeiros. Nesse sentido, a revista do IHGB constitui-se em documentação privilegiada para o/a pesquisador/a interessado na temática. O avanço da pesquisa ora em curso possivelmente ensejará uma compreensão mais detalhada da escrita da história brasileira no período republicano e do papel que a problemática das relações com os demais países do continente, especialmente Argentina e Estados Unidos, desempenha neste empreendimento. REFERÊNCIAS ALONSO, Ângela. “Arrivistas e Decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na Primeira Década Republicana.” Novos Estudos, CEBRAP, 85, novembro de 2009, p. 131-148. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. SP: Companhia das Letras, 2008. [1983] BAGGIO, Kátia G. “Os intelectuais brasileiros e o Pan-americanismo: A Revista Americana (19091919)”. Anais Eletrônicos do IV Encontro da ANPHLAC, 2000. Disponível em: 03/08 http://anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/katia_baggio_0.pdf. Último acesso em /14. BETHELL, Leslie. “O Brasil e a ideia de ‘América Latina’ em perspectiva histórica.” Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, nº 44, 2009, p. 289-321. CARVALHO, José Murilo. Brasil: Nações Imaginadas. In: CARVALHO, J.M. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. ________________. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990. CHATTERJEE, Partha. La nación en tiempo heterogéneo y otros estudios subalternos. BA: Siglo XXI, 2008. [2007]. GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993 [1983]. GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de uma história nacional”. Estudos históricos, n. 1, p. 5-27, 1988. GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. “Um olhar sobre o continente: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Congresso Internacional de História da América.” Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, nº 20, 1997. _______. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007. 146

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Revista Estudos

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 3 INSTITUIÇÕES ASSOCIATIVAS E COOPERATIVAS

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A FORMAÇÃO DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA ................................................. 153 A MATRIOSCA MUNICIPÁRIA: ASSOCIATIVISMO PÚBLICO NO RIO GRANDE DO SUL (1979-1992) .... 161 COLÉGIO NOSSA SENHORA DE LOURDES, FARROUPILHA/RS: TECENDO HISTÓRIAS DE SUJEITOS E PRÁTICAS (1922-1954) ....................................................................................................................... 169 COOPERATIVISMO EN CHILE .............................................................................................................. 177

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A FORMAÇÃO DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA Tiago Arcego da Silva 1 INTRODUÇÃO O cristianismo teve um papel fundamental na composição da sociedade ocidental. Neste cenário a Igreja Católica e suas condutas, cisões, opções, durante os quase dois milênios de institucionalização, apresenta-se como grande norteadora dos caminhos por onde passa a religiosidade do cristão. É a partir dessa consciência histórica que vamos estabelecer uma tentativa de traçar um esboço da Igreja na América Latina, especialmente no Brasil, a partir, principalmente, do cenário pós Segunda Guerra Mundial, dando enfoque às condições para a elaboração da Teologia da Libertação. A ação da Igreja voltada para uma atuação também no campo social não é novidade. Mesmo que em pequena escala, diante do que foi a cristandade, houve os que mantiveram uma leitura de defesa dos pobres e oprimidos, ligando-as a prática de Jesus, descrita nos Evangelhos. Evidente que cada vulto ou movimento esteve ligado ao seu contexto histórico e por isso devem ser percebidos a partir de tal. Com a Teologia da Libertação, e sua formulação desde as bases na década de 1930, não é diferente. Sua formação de quadros se dá pela nova aproximação da geração de consciência política dos oprimidos, também a partir dos Evangelhos, e sua possibilidade de libertação. Nesse contexto os leigos e o clero progressista, passam a almejar e a reivindicar um papel mais ativo no centro da Igreja e na sociedade. Assim a Teologia da Libertação – TdL, é carregada de divergências, de amor e ódio, intra e extra eclesial. Seus principais agentes foram às comunidades e movimentos organizados em diferentes frentes de atuação, como veremos, e os grandes teóricos que a sistematizaram a partir da prática anterior. Sua influência e articulação se deram com força principalmente na América Latina. CENÁRIOS PARA UMA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO No Brasil, no final da década de 1920, a Igreja perdia sua força de influência entre as camadas intelectuais, que já demonstravam grande tendência ao secularismo, ao agnosticismo e ao positivismo, além do avanço da maçonaria. Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, ou Cardeal Leme, é figura que ganha grande destaque na Igreja do Brasil nesse período, mantém relações próximas com Vargas e através de sua influência tenta garantir alguns avanços em benefício da Igreja. O Cardeal elaborou um projeto de fortalecimento da Instituição - além do diálogo com o Governo - a partir da aproximação e evangelização das elites, especialmente dos intelectuais, e da visibilidade da Igreja com a organização de grandes eventos de massa. Com as elites o objetivo era criar base para atuação a partir de uma assessoria sólida de diferentes intelectuais e especialistas de distintas áreas. Ocorre então a intensificação de movimentos e organizações que consolidassem essa presença. Assim, mesmo sob a tutela da hierarquia, houve a organização de movimentos de leigos, dentro da Igreja. Deste modo, “enquanto a Hierarquia manobrava a volta do Poder sob o comando do cardeal do Rio de Janeiro, os leigos tentavam aprofundar a sua participação na vida da Igreja e do país” (ALVES, 1979, p. 37). No campo político, há o surgimento da Liga Eleitoral Católica - LEC, por exemplo, que ganha impulso e força para as eleições de 1934. Sua influência sobre os cristãos é grande, a partir de sua missão de direcionar votos para candidatos que defenderiam os interesses da Igreja e do Governo. A atuação no campo social é muito limitada a interesses ligados ao fortalecimento da instituição em todas as camadas sociais, mas especialmente entre os que tinham influência mais direta nos rumos do país. Para as camadas populares houve uma grande investida na organização de ações sociais, de cunho assistencialista, consideradas também de grande importância pelo Cardeal Leme para o “reestabelecimento da presença cristã na sociedade” (AZZI, 2008, p. 114).

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Discente do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado, pela Universidade de Passo Fundo UPF, sob a orientação do Professor Doutor João Carlos Tedesco. Financiamento 100% FUPF.

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Em 1932 é criada a Ação Católica Brasileira, que surge nos moldes do modelo italiano, ou seja: bem mais autoritário que o francês ou o belga. O movimento formava-se ao nível das dioceses e tinha ramos paroquiais. Não se dividia, como em França, segundo a origem social dos militantes — o que poderia parecer uma constatação da luta de classes, mas segundo a idade e o sexo (ALVES, 1979, p. 38). Se até a metade da década de 1940 a grande figura da Igreja era o Cardeal Leme, a partir desse período quem assume o posto é o então padre Hélder Câmara. Grande articulador e de boa circulação em espaços estratégicos, Hélder Câmara foi primeiramente impulsionador da estruturação nacional da Ação Católica. O padre reúne em torno de si um bom grupo de intelectuais que passam a pensar a Igreja para o novo contexto brasileiro. A partir dessas análises, em 1946 iniciam as Semanas Nacionais da Ação Católica, cuja primeira, tem como marco a publicação do “Manifesto do Episcopado Brasileiro sobre a Ação Católica”. Já em 1947, a Semana aponta como diretriz a elaboração de um secretariado geral nacional da entidade, além da fundação da “Revista Assistente Eclesiástico”, da qual Helder será o editor chefe. Em 1948, antes da realização do V Congresso Eucarístico Nacional, ocorre um amplo debate, em Porto Alegre, na III Semana Social da Ação Católica, sobre seu modelo de organização. Os debates e a grande pressão para uma maior participação leiga culminam na transição do modelo italiano para o modelo Belga-Francês de Ação Católica, com linhas de atuação específicas para os diferentes seguimentos sociais. Aqui se dá a organização dos ramos especializados da Ação Católica: JAC (Juventude Agrária Católica), JEC (Juventude Estudantil Católica), JIC (Juventude Independente Católica), JOC (Juventude Operária Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica). A organização da Ação Católica em ramos especializados proporcionou uma ampla aproximação da Igreja com diferentes seguimentos sociais, bem como a ampliação das possibilidades de participação dos leigos na Igreja. Como a Era Vargas havia fortalecido a organização de sindicatos e movimentos de trabalhadores que já almejavam amplas leituras da realidade nacional e procuravam alertar também a Igreja das necessidades de transformações, no início da década de 1950, a JOC, embora cheia de limites, passa a ser uma das mais influentes e importantes organizações de operários frente ao contexto desenvolvimentista instalado no Brasil. No quadro da América Latina, nesse período do pós Segunda Guerra Mundial, o contexto é marcado por grande presença de instabilidade econômica. A promessa de crescimento econômico era difundida, porém, para que fosse alcançada era necessário seguir à risca a cartilha do desenvolvimento proposto pelos países capitalistas ricos, especialmente os EUA, que queria se fortalecer no contexto da Guerra Fria. A política imposta levaria, teoricamente, os países subdesenvolvidos a alcançarem um ideal de uma sociedade industrial (Cf. GUTIÉRREZ, 1983, p. 75-76). O desenvolvimento industrial imposto, porém, veio casado com a “necessidade” da desnacionalização de empresas e indústrias, diante do avanço das instalações de multinacionais do território latino-americano. No campo da macroeconomia o Fundo Monetário Internacional - FMI surge como “a terapêutica [que] piora o doente para melhor impor-lhe a droga dos empréstimos e das inversões” (GALEANO, 1979, p. 239). Suas orientações se lançam para dentro da América Latina, com a promessa de estabilização econômica, mas evidentemente, sem estar desprovido dos interesses econômicos dos EUA, - onde nasceu, reside, e para quem trabalha - visando o seu domínio sobre o planeta diante de sua fragilidade política e econômica no cenário do final da Segunda Guerra Mundial e do início da Guerra Fria. Este contexto foi propício para a erupção e fortalecimento de movimentos de oposição. As forças sociais de resistência começam a fazer pressão e ganham corpo e proposta. Cuba, por exemplo, foi enfática e radical na organização de guerrilhas até a tomada de poder em 1959, o que assusta o projeto capitalista para América Latina, e também a Igreja Católica, que considerava uma ameaça o avanço do comunismo. Enquanto isso no Brasil, diversos movimentos também surgem no intuito da reivindicação de direitos.

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Diante deste pano de fundo de transformação nos contextos social, religioso, econômico e político, a Igreja também influencia e é influenciada. O historiador Michael Löwy, aponta esse contexto como o nascedouro da Teologia da Libertação. Para ele, muito mais do que uma proposta no seio da Igreja de manutenção de seu poder e influência - agora a partir das camadas populares - e mais também do que a “tomada de posse” dos leigos da Instituição Católica para uma ação a partir de suas necessidades, a TdL é a “articulação ou convergência entre as mudanças internas e externas a Igreja” (LÖWY, 1991, p.33), que não visa apenas compreender suas causas mais profundas da pobreza, mas também fazer com que os próprios pobres lutem contra essa condição. O processo não é uma ação da hierarquia para base e nem da base para a hierarquia, mas sim uma convergência de debates, movimentos, ações, “da periferia para o centro”, ou seja, as “categorias ou setores sociais, no campo religioso-eclesiástico que serão o motor da renovação são todas de certa forma marginais ou periféricas em relação à instituição” (Idem, p. 34). Cabe ressaltar que mesmo sendo predominante entre os cristãos católicos “a raiz histórica e política da teologia latino-americana explica, além do mais seu caráter ecumênico. Católicos e protestantes encontram-se em uma mesma prática política de libertação” (RICHARD, 1982, p. 181). O que se observa, contudo, é que os contextos, internos e externos a Igreja Católica, produziram um movimento de tentativa da produção da hegemonia a partir das camadas populares na América Latina. A Igreja dos Pobres aflora acompanhando e traduzindo as novas leituras e possibilidades teológicas que, principalmente, a Europa produzira no pós Segunda Guerra Mundial, para a realidade latino-americana de saída do desenvolvimentismo e entrada em um contexto que alguns sociólogos do período vão sintetizar através da teoria da dependência. Os teólogos da libertação e os estudiosos de outros campos, como Michel Löwy, convergem na análise desse período, marcado como o impulso da Teologia da Libertação. Löwy descreve que: De uma maneira simbólica pode-se dizer que a corrente cristã radical nasceu em janeiro de 1959, no momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus companheiros entraram em Havana enquanto que, em Roma, João XXIII lançava o primeiro chamado para a convocação do Concílio (LÖWY, 1991, p.35). Já Pablo Richard, de maneira não muito distante, descreve: Em janeiro de 1959 vivemos dois fatos que foram sinal e promessa daquilo que se passaria na América Latina até 1968: o triunfo da Revolução Cubana, a primeiro de janeiro, e o anúncio, pelo papa João XXIII, do Concílio Vaticano, a 25 do mesmo mês. Dois fatos aparentemente díspares, mas que nos anunciam, de maneira exemplar, o sentido de nossa futura evolução cristã e teológica: a Revolução ao Concílio (RICHARD, 1982, p. 183). O novo tipo de Instituição e de ação que a TdL propunha nesse meio, visavam a transformação da realidade. Seu discurso escatológico, por sua vez, significava uma antecipação do Reino definitivo anunciado por Jesus, já na Terra. O que se propõe com a TdL, não é apenas uma reforma no sistema vigente, mas uma transformação radical a partir da consciência de classe dos oprimidos e de uma profunda leitura da realidade, ligadas a ação social que supera as desigualdades, a partir de um método e modelo novo. Nesse sentido, a admissão do socialismo como caminho concreto para a uma sociedade justa e a leitura da realidade também a partir de analises marxistas, fazem a sistematização em terreno fértil para reavivar um campo de lutas no continente em que Igreja tem grande influência. Somente a superação de uma sociedade dividida em classes, somente um poder político a serviço das grandes maiorias populares, somente a eliminação da apropriação privada da riqueza criada pelo trabalho humano podem nos dar as bases de uma sociedade mais justa. É por isso que a elaboração do projeto histórico de uma nova sociedade envereda cada vez mais na América Latina pela senda do socialismo. Uma construção do socialismo que não ignora as deficiências de muitas de suas atuais realizações históricas, que tenta sair de

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esquemas e frases feitas e que procura criativamente os seus caminhos próprios (GUTIÉRREZ, 1981, p. 71). RADICALIZAÇÃO E ORGANIZAÇÃO Com o fortalecimento dos movimentos de oposição, ligados à esquerda e diante do êxito da Revolução Cubana, há uma nova investida no continente, no sentido de garantir o avanço do capitalismo. Assim, as décadas de 1960 e 1970 apresentam-se como uma era de golpes militares, derramamento de sangue e uma incansável tentativa de desarticulação de movimentos tidos como “subversivos”, provando que “a ótica desenvolvimentista se mostrou ineficaz e insuficiente para interpretar a evolução econômica, social e política do continente latino-americano” (GUTIÉRREZ, 1983, p.77). O período também fortaleceu organizações populares visando à transformação social. A TdL se estrutura a partir das bases firmadas anteriormente e do cenário que se apresenta nesse período. Já mencionamos que muitos foram os fatores que a impulsionaram a partir de um processo da periferia para o centro da Instituição Católica. Cabem ainda aqui alguns destaques que possibilitaram sua estruturação. No Brasil, a tomada de consciência, especialmente da juventude, de sua realidade e da realidade do país, fez com que diferentes olhos e olhares se voltassem para as grandes desigualdades geradas e intensificadas no período. Entre os católicos surgem novas leituras da realidade, que vão provocar grandes discussões, debates e posições nos próximos anos, a partir do surgimento do que ficou conhecida como a “esquerda católica”. Neste período os bispos deixam de ser ilhas solitárias e se unem até constituírem verdadeiros movimentos. Um dos sinais dos novos tempos foi a atitude tomada diante da reforma agrária. Em 1961 o padre Antônio Melo está à frente de dois mil camponeses que ocupam terras. Dom Hélder os apoia, assim como o cardeal Mota. Enquanto que D. Geraldo P. Sigaud se opõe e publica um “Catecismo anticomunista”, na linha do movimento “tradição, família e propriedade” (DUSSEL, 1986, p. 44). Entre os leigos também avançam outras leituras e possibilidades de atuação. A JUC, por exemplo, realiza um congresso Nacional em comemoração aos seus 10 anos, em 1960. A atividade aponta dois indicativos importantes para a mudança da organização que vinha sentindo que não conseguia se expandir entre os universitários e se sentia limitada em sua ação. O primeiro de que “a sociedade deveria ser radicalmente transformada” e o segundo, que “a doutrina social da Igreja não era o instrumento capaz de conduzir a esta transformação” (ALVES, 1979, p. 126). Nesse mesmo período o Nordeste passa a ganhar maior importância por parte da Igreja. As “Ligas Camponesas”, que surgem na metade da década de 1950 a partir da necessidade de pequenos agricultores dividirem os custos para aquisição de produtos, sementes e insumos, crescem cada vez mais. Logo, o sentimento de solidariedade se expande, mas o avanço e a proximidade das ideias marxistas com o movimento geram uma preocupação entre os bispos do Nordeste. Ocorre então a iniciativa de aproximação da Instituição as Ligas, reforçando-as no sentido de criar sindicatos rurais que estivessem ligados a lideranças da Igreja e distantes do “temido” Partido Comunista. Esta brecha permitiu uma aproximação maior da Igreja com o Estado, resultando na criação de um movimento que conseguisse chegar de forma rápida e clara aos agricultores – o Movimento de Educação de Base (MEB). A partir de 1963, ocorre a introdução na proposta do MEB do método de educação popular proposto por Paulo Freire, [...] capaz de alfabetizar ao mesmo tempo que abria os alunos para as realidades do mundo, [somado ao] anúncio da convocação do Concílio e as esperanças que despertava, a publicação, em 15 de maio de 1961, da encíclica Mater et Magistra, o clima político de abertura no Nordeste e no Brasil, tudo isso contribuiu para colocar a organização numa óptica bem mais radical que a desejada pelos seus fundadores. Em vez de praticarem um anticomunismo maniqueísta, as equipes do MEB dedicaram-se à “conscientização” do meio rural, quer dizer, à criação dos estimulantes intelectuais necessários à

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descoberta, pelos oprimidos, da realidade da sua opressão, das causas econômicas e políticas desta opressão e dos meios de a combater (ALVES, 1979, p. 138). Para Michael Löwy, a aproximação da JUC e do MEB, e a criação da Ação Popular que visava e lutava pelo socialismo a partir do método marxista, formam “a primeira teologia de origem latinoamericana e [que] foi a verdadeira precursora da teologia da libertação” (LÖWY, 1991, pp. 53-54). Acreditamos, porém, ser válido o acréscimo de outro movimento - que se revelará mais radical - ligado à Igreja, que também vai se basear na leitura marxista, para a formulação da teologia latino-americana o movimento de operários cristãos, que estão ligados a JOC e Ação Católica Operária – ACO. A radicalização da JOC e da ACO como movimentos de resistência ao regime civil-militar foi gradual em meio ao cenário das reformas prometidas por Jango e do Golpe Civil-Militar as ideias e posturas do movimento [...] ultrapassam em muito as apalpadelas da JUC quando do Congresso dos Dez Anos e todos os documentos que o movimento estudantil produziu depois. [...] A introdução às resoluções do Congresso da ACO-JOC consistia num resumo das teses de Marx sobre a evolução histórica dos modos de produção. Seguia-se uma exposição da história do Brasil que utilizava estas categorias para concluir que a grande penetração do imperialismo na economia nacional coincidia com o governo de Kubitschek (1955-1960) (ALVES, 1979, p. 155156). Em meio a essas discussões, outro marco para a consolidação da sistematização da TdL, foi a Conferência Episcopal de Medellín, que projetou a tradução radical das deliberações e documentos do Concílio para o continente. Nesta Conferência se deu a chegada da nova teologia, que nascia na periferia da Instituição, para o centro dos debates e da assimilação de boa parte da hierarquia eclesial, o que vai provocar um novo modelo de ação de muitas dioceses, que assumiram o proposto. A Conferência de Medellín também revela a abertura para uma ruptura de pensamento da própria ala progressista da Igreja, leigos, teólogos, religiosos, clero, assistentes e bispos. Ruptura essa, com a proposta teológica embasada no desenvolvimentismo, para uma proposta baseada no princípio de “libertação”. A grande marca apresentada pelo documento final de Medellín, intitulado “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”, é a “opção preferencial pelos pobres”. Libertação e opção pelos pobres, fortalecidos pela Conferência, passam a ser o ponto central do debate teológico nas próximas décadas no continente. Entre os anos de 1968 e 1970, multiplicam-se cursos, conferências, palestras, seminários, por toda América Latina e que abordam estes dois temas centrais. Nessa perspectiva em 1971, são publicadas importantes obras de sistematização da Teologia da Libertação. Tida por muitos como o marco fundador - escrito pelo teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, a obra “Teologia da Libertação: Perspectivas” é elaborada a partir da conexão de fundamentos históricos, filosóficos, sociológicos e teológicos, e não procura somente apresentar uma maneira prática de lutar no combate a pobreza, mas dedica-se, também, na tentativa de compreender suas causas mais profundas. O processo de libertação parte do principio utópico da religião, a partir da tradição judaica cristã, defendida e embasada em autores marxistas onde se destacam Ernest Bloch e José Carlos Mariatégui, sendo o segundo, latino-americano, uma das principais referências para Gutiérrez. O livro é um marco de ruptura e avanço no debate teológico no continente latino-americano e abre muitas possibilidades de novas abordagens a partir de todos os fundamentos que o autor apresenta. No mesmo ano, de 1971, Hugo Assmann e Leonardo Boff publicam, respectivamente: “Opressión-liberación: desafio de los cristianos” e “Jesus Cristo Libertador”. Tais referências dão suporte para a edificação, embasamento e sistematização da Teologia da Libertação. Essas e as demais publicações ligadas a TdL, vão ter como fundamento a tentativa de organização de uma nova humanidade a partir dos oprimidos (BOFF; BOFF, 2010, p. 123). O tema recorrente é o da “opção preferencial pelos pobres”, que deixa de ser somente de cunho assistencialista e, segundo os autores, passa a traduzir também uma opção de classe. A aproximação com os teóricos marxistas e a

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força que a TdL ganha no continente, não agradam a parcela conservadora da Igreja, muito menos as classes dominantes que se viam ameaçadas a partir do potencial de resistência, organização e formação que vinha de dentro da Igreja e que previa uma mudança sistêmica na sociedade. A transformação proposta se daria pela senda do socialismo. Como estratégia ocorre, então, um grande avanço na formação de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e Grupos de Reflexão (GRs), que são espaços privilegiados de organização e educação dos pobres. As pastorais sociais presentes nas diferentes realidades, a inserção da vida religiosa na periferia, o engajamento político em sindicatos de oposição, movimentos sociais, e a abertura da Igreja para uma participação mais efetiva dos leigos nas tomadas de decisão, caracterizam a assimilação da TdL e a efetivação de sua práxis. A proposta metodológica da TdL conquistou e despertou muitas lideranças da América Latina. Lideranças comunitárias, lideranças de movimentos sociais, sindicatos de oposição, partidos políticos, bispos, padres, religiosos se empenharam em efetivar a opção pelos pobres proposta. A grande investida, que provocou o surgimento de diferentes pastorais sociais, movimentos sociais e uma nova forma de participação dos leigos na Igreja, foram nas Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Elas foram um impulso e uma revolução no modelo de organização. São presença tanto nos meios urbanos, como rurais, e despertaram o senso missionário para a atuação nas realidades indígenas, quilombolas, periferias, boias-frias, sem casa, sem terra, e tantas outras realidades de discriminação e desigualdade nos lugares mais longínquos e de difícil acesso. Diante de um contexto de ditadura militar, a multiplicação e a descentralização de lideranças nas comunidades eram fundamentais para despistar o regime, além de ser um mecanismo de organização e participação que prevalecia diante da extinção e perseguição dos demais. Ocorre então uma atuação a partir de uma ótica revolucionária, ao mesmo tempo em que a ação pastoral e evangelizadora chegava mais rapidamente à base e atingia mais pessoas. Nas CEBs, com a TdL o método VER-JULGAR-AGIR, ganha uma dimensão mais ampla, a partir do que os teólogos vão chamar de “mediações”, e parte de leituras populares da bíblia e da realidade, embasadas na pedagogia de Paulo Freire. Em Teologia da Libertação fala-se nas três mediações principais: mediação socioanalítica, mediação hermenêutica e mediação prática. Diz-se “mediações” porque representam meios ou instrumentos de construção teológica. [...] A mediação socioanalítica olha para o lado do mundo do oprimido. Procura entender por que o oprimido é oprimido. A mediação hermenêutica olha para o lado do mundo de Deus. Procura ver qual é o plano divino em relação ao pobre. A mediação prática, por sua vez, olha para o lado da ação e tenta descobrir as linhas operativas para superar a opressão de acordo com o plano de Deus (BOFF; BOFF, 2010, p. 40). Na medida em que as CEBs se organizam, se ampliam os mecanismos de participação tanto na Igreja como na sociedade, por parte dos cristãos. A figura do padre deixa de ser central e decisiva para os encaminhamentos e tomadas de decisão, no modelo de Igreja das CEBs. As congregações religiosas, femininas ou masculinas, que optam pela inserção nas diferentes realidades de comunidades, também são fundamentais para o impulso e fortalecimento. As figuras que dinamizam essa organização são chamadas de agentes de pastoral, que geralmente são lideranças da própria comunidade e exercem ministérios leigos da Igreja mantendo os sacramentos, mesmo sem a presença contínua do clero. Outra dimensão que garante o caráter transformador das CEBs é o modo de compreender e celebrar a liturgia, as celebrações comunitárias passam a ser também celebrações de consciência política dos cristãos, que traziam para a comunidade todas as suas experiências de vida, seja o desemprego, a falta de estrada, de posto de saúde, de escola, etc., e procuravam debater e compreender suas realidades a partir da experiência bíblica. Embora com seus limites “os militantes das CEBs, com o apoio dos teólogos e bispos radicais, ajudaram a construir o movimento operário (urbano e rural) de massa, o maior e mais radical de toda a história do Brasil” (LÖWY, 1991, p. 58). Nesse sentido podem-se perceber as CEBs como a expressão privilegiada da proposta de que são os próprios pobres que organizam situações em que vencem sua condição de oprimidos e promovem novas relações sociais, ou seja, sua libertação diretamente ligados a uma atuação política, proposta pela TdL.

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Em 1979, a nova Conferência CELAM, realizada em Puebla, reafirma a opção preferencial pelos pobres e acrescenta também a opção pela juventude, embora os debates e a oposição, a compreensão do que isso significa a partir da TdL, sejam muita mais aflorados. Tais opções são encarradas como uma necessidade de presença assistencial da Igreja com os pobres, e sustentada na radicalidade pelas correntes progressistas, que visavam o processo metodológico de libertação, rumo ao socialismo, que fosse cada vez mais conduzido pelos próprios pobres. Evidentemente, houve combate ao modelo de Igreja da TdL por parte do Vaticano. A partir da década 1980, além da condenação ao silencio obsequioso de Leonardo Boff, por seu livro “Igreja, Carisma e Poder”, ocorre também uma renovação nas nomeações de bispos. “Essa política visa ‘desmantelar’ a Igreja brasileira, investindo bispos conservadores que frequentemente destroem ou enfraquecem as estruturas pastorais estabelecidas pelos seus predecessores” (LÖWY, 1991, p. 58). Sem dúvida, as investidas de João Paulo II, e a mudança no método pastoral a partir da Conferência Episcopal Latino Americana de 1992, em Santo Domingo, somado ao projeto norte americano de desarticulação da TdL, o neoliberalismo e a globalização da década de 1990, serviram para enfraquecer em muito as proposições da TdL. É nesse bojo de discussões e ações, internas e externas a Igreja, que a América Latina encontra novos argumentos de resistência ao novo modelo colonizador imposto no período pós Segunda Guerra Mundial. Assim como as bases para a sustentação do novo cristianismo da libertação apresentaram-se de maneira dinâmica, através de um processo da periferia para o centro da Instituição Católica, gerando um referencial sistematizado como Teologia da Libertação, os impactos sentidos e a organização da Igreja em todo o continente vão encontrar peculiaridades e semelhanças em cada localidade. De maneira breve apontamos alguns dos marcos que possibilitaram a organização e sistematização de um novo modelo de Igreja que só vai ser encontrado na América Latina. Referências ALVES, Marcio Moreira. A Igreja e a Política no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979. AZZI, Riolando. A Igreja na Formação da Sociedade Brasileira. Aparecida: Editora Santuário, 2008. BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 2010, 10 ed. DUSSEL, Henrique. História da Igreja Latino-Americana (1930-1985). São Paulo: Paulinas, 1986. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 6 ed. GUTIÉRREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes. 1981. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação - Perspectivas. Petrópolis: Vozes. 4 ed. 1983. LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez – Autores Associados, 1991. RICHARD, Pablo. Morte das cristandades e nascimento da Igreja. São Paulo: Edições Paulinas, 1982, 2 ed.

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A MATRIOSCA MUNICIPÁRIA: ASSOCIATIVISMO PÚBLICO NO RIO GRANDE DO SUL (1979-1992) Júlio César de Oliveira 1 “(...) la 'cultura sometida' tiene una postura, negocia e interrelaciona con la dominante; esto genera una serie de correspondencias bajo una percepción paternal, creando un estado de equilibrio, de continuidad sistémica”. Dias Perera (2004, p.291) Esta pesquisa tem como universo empírico, a organização das associações de servidores públicos municipais, localizada no Estado do Rio Grande do Sul, entidade de representação federativa (federações), estabelecida no espaço temporal compreendido entre os anos de 1979 e 1992, sendo o primeiro marco referente a constituição da Federação de Associações dos Servidores Municipais do Rio Grande do Sul (FASMERGS) e, o último, referente à transformação de entidade representativa de associações em entidade representativa de sindicatos, constituindo-se enquanto Federação de Sindicatos de Servidores Municipais do Estado do Rio Grande do Sul (FESIMERS). Durante todo o século XX a organização de associações de servidores públicos foi utilizada como espaço de representação da coletividade, de forma restrita (categorias) ou geral (servidores públicos). No Estado do Rio Grande do Sul a Associação Sul Rio-Grandense de Professores, sediada na cidade de Pelotas, fundada em 1926, serve como primeiro referencial institucional representativo dos servidores públicos. Entidade com atuação, destinada à uma ação endógena (classe) e exógena (instrução pública), o fazia em consonância com os interesses sociais e políticos da cidade, reconhecendo e respeitando os limites impostos pela organização social e política. A sua atuação, no entanto, não ficava restrita à cidade sede da instituição, constituindo sedes em outras municipalidades. Esta associação, além de proporcionar cursos de formação na área educacional, também costumava “intervir, sendo solicitada, na defesa dos direitos ou da reputação dos seus associados quando estes injustamente forem prejudicados; desde que essa ação não prejudique outros associados”(LEON, 2011, p. 176). Destinada à cobertura previdenciária dos servidores públicos municipais, surge em 1939, na cidade de Santa Maria, a União dos Funcionários Municipais (UFM). Assim como a Associação Sul Rio-Grandense de Professores, esta instituição também exercia a ação reivindicatória ao setor municipalista, já que “pleiteava a padronização dos estatutos dos municipários” e o “reajustamento e revisão dos quadros do funcionalismo”, além do direito à “representação social nos diversos setores do Estado” (SILVA JR, 2004). Em seus estatutos, a UFM tinha como finalidades “aplicar, tanto quanto possível as fórmulas de amparo social, com o exclusivo espírito de mutualismo dentro do território nacional”(UFM, 1939, p. 04). A presença de entidade associativa, destinada a caixa de pensões dos servidores municipais, tende a demonstrar a existência de uma consciência da necessidade de aglutinar a categoria em prol de suas necessidades emergenciais (pensão), assim como buscar melhorias nos locais de trabalho, por intermédio da representação frente as demandas de classe. Na década de 1940 surgem as primeiras instituições associativas de representação geral dos servidores Públicos. Entidades como a Associação dos Funcionários Municipais de São Leopoldo e o Grêmio dos Oficiais Administrativos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (GOAPPA), constituíram-se como entidades de ordem assistencial, beneficente e social. No entanto, também atendiam como representantes da categoria nos momentos de disputa com o Poder Público em assuntos referentes à salário e organização do espaço laboral. No final da década de 1950 surge a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), sendo entendida como entidade máxima de terceiro grau no sistema confederativo e representativa dos servidores públicos civis dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nos níveis federal, estadual e municipal. Esta instituição congrega confederações, federações, sindicatos e associações dos servidores 1

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e bolsista CAPES.

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públicos civis, de âmbito regional ou nacional. Esta instituição, de âmbito nacional, tinha como proposta representar as instituições de todos os níveis federativos, além de todos os poderes. A sua representação, no entanto, por tratar-se de entidade ampla, não poderia se referir a demandas locais, assistenciais ou beneficentes, constituindo-se como entidade de representação eminentemente político classista. Na década de 1960 se constituem outras associações no setor público, sendo criados o Grêmio dos Fiscais Municipais de Porto Alegre (GFM), a Associação dos Funcionários Municipais de Uruguaiana (AFMU), o Montepio dos Funcionários do Município de Porto Alegre, a Associação de Funcionários Públicos Municipais de Santo Ângelo (AFPSA). Em setembro de 1963 eclode na cidade de Porto Alegre um movimento paredista organizado por funcionários municipais que não compunham as entidades constituídas. O movimento que reivindicava 70% de aumento salarial demonstrava a existência de formas alternativas de associação, que não as constituídas e estruturadas legalmente. O Prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva, reivindicava a ilegitimidade do movimento, pois, além de serem organizadas por servidores alheios ao sistema de representação, as principais razões presentes nos debates (salário, vencimentos, direitos, etc.), estavam em dia ou em estudo (COELHO, 2009, p. 51). Esta ilegitimidade institucional seria contornada somente cinco dias depois do início do movimento, quando a Câmara Municipal de Vereadores e representantes da AFM se reúnem e decide pelo envio do presidente da Associação à Brasília, com apoio do prefeito municipal, para negociar empréstimo à cidade visando sanar a demanda da classe. A questão principal não estava na forma de resolutividade do conflito trabalhista, mas, principalmente, na tensão entre a representação e a participação dos funcionários municipais (COELHO, 2009, p. 55). Esta situação demonstra que a categoria dos municipários não estava restrita a ações assistenciais, mas também, de representação e na resolutividade de conflitos de trabalho. No entanto, a legitimidade da entidade também servia aos interesses dos gestores públicos, elegendo aqueles que melhor representam seus interesses. Na década de 1970 surgem outras entidades associativas no setor público municipalista. A constituição da Associação dos Servidores do Departamento Municipal de Agua e Esgotos (ASDMAE), da Associação dos Servidores Municipais de Itaqui (ASEMI) e da Associação dos Funcionários Municipais de Sapucaia do Sul (AFMSS), serviu como aporte institucional para a criação da Federação de Associações de Municipários do Estado do Rio Grande do Sul (FAMERGS), que juntamente com as outras citadas anteriormente, compuseram o rol institucional de entidades presentes no I Congresso de Municipários Rio-Grandenses, realizado de 15 a 28 de outubro de 1979, na cidade de Canoas, RS. A constituição de uma entidade com ampla representação, como o foi a FAMERGS, no ano de 1979, demonstra que a intenção de junção presentes nas demandas da UFM, manteve-se por quarenta anos de forma latente no associativismo gaúcho. Esta demanda represada pode ser verificada nas palavras do primeiro presidente da instituição, Nilton Leal Maria, que identifica a atuação da entidade como a busca pela gradual “participação da classe na incessante busca de amplas condições assistenciais, econômico-financeiras, previdenciárias e funcionais”, porém com uma atuação “ordeira”, “mas sem esmorecimento ou recuos de qualquer espécie, pautando sempre nossas atividades no sentido de representarmos autentica e permanentemente os legítimos e inquestionáveis interesses do segmento representativo a que estamos plenamente integrados.” (Jornal Fato Ilustrado, 01/10/1979, p. 01). Alguns teóricos aproximam o surgimento e crescimento do associativismo do setor público ao que se convencionou chamar de “Novo Sindicalismo”, no período compreendido entre os anos de 1978 e 1988. Autores como Boschi (1987), Silva (2001), Avritzer (2000), relacionam o aumento exponencial de associações civis nas cidades de Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre, à democratização no espaço político representativo característico do período. No entanto, essa forma de organização coletiva vai oportunizar o que Loner (2001) define como a necessidade de se organizar uma rede associativa, a congregação de “conjuntos diferenciados e múltiplos de indivíduos e sua organização, segundo modelos e formas que vão variar ao longo do tempo, mas que têm em comum, o caráter de resposta e afirmação daquele setor, grupo ou categoria, frente à sociedade”(LONER, 2001, p.94). A alteração do status assistencialista corporativo para reivindicatório, seria estabelecido pela greve dos professores da rede estadual de ensino de São Paulo, no ano de 1978, organizado por um comando de greve independente da APEOESP, atingindo 80 % da categoria naquele estado e que,

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posteriormente iria atingir professores de outros estados, como o Rio Grande do Sul, em 1979 (NOGUEIRA, 1996, p. 72 e 73). No período compreendido entre os anos de 1978 e 1986, os servidores públicos foram responsáveis por 24,6% das paralisações de trabalho, suplantando o número de paredistas do setor privado a partir de 1981. Nesse entendimento, o sindicalismo do setor público seria a evolução do sistema associativo presente até a década de 1980 e que a transição do associativismo para o sindicalismo no setor público advém da “reorganização do movimento trabalhista e sindical e da luta pelas liberdades democráticas em geral”, sendo que no período anterior a 1988 a categoria dos funcionários públicos era desorganizada, sendo a representatividade focada na ação reivindicatória somente após a sua estruturação enquanto sindicato (NOGUEIRA, 1996, passim). Assim sendo, a organização da categoria dos servidores públicos municipais em associações ou sindicatos é tida como referencial para uma atuação voltada ao assistencialismo ou a reivindicação de classe, retirando dos trabalhadores que compõem as entidades a condição, sine quo non, de atuarem como seres racionais, dotados de conhecimentos sobre sua condição de servidores públicos, assim como, deferindo à instituição um poder exclusivo em estabelecer a identidade da categoria e sua representatividade. Compartilhando o entendimento de Thompson (1987, p. 10), o qual defende que a classe acontece como resultante de experiências partilhadas, entendo as representações institucionais como resultado de desejos coletivizados, também estão sujeitas a alterações constantes, constituindo-se como entidades estáticas, no âmbito legal, mas mutantes, no espaço de lutas. A existência de associações que direcionavam sua representação a determinadas funções exercidas no espaço laboral público, demonstra que o entendimento referente à representatividade, no âmbito municipal, não pode ser entendido como unitário, visando à constituição exclusiva de uma classe ampla dos servidores públicos municipais. Apesar da federação se constituir como representante dos servidores públicos municipais, a exigência da ampla representação não se constituiu como preponderante, admitindo ao seu quadro de sócios, entidades que tinham relação com parte da categoria dos servidores públicos municipais, tais como professores, oficiais, fiscais, etc. Esta relação tenderá a estabelecer princípios para o debate acerca da estrutura sindical, definindo-a como defensora da unicidade ou pluralidade nos espaços de debates. Em confrontação com leituras sobre associativismo, verifiquei que a composição plural das instituições representativas se tratava de uma constante. No espaço público municipário, caso da pesquisa em tela, a constituição por categorias diferenciadas não obstaculizava o exercício da representação ante o Poder Público que, em cada caso demandado, tratava com a respectiva entidade reconhecida oficialmente pela categoria. O estabelecimento de um debate no âmbito institucional acerca da estrutura representativa, enfoca exatamente a percepção advinda de espaços utilizados pela categoria, nomeadamente a Assembleia do Conselho de Representantes e a Assembleia Nacional Constituinte. Como a organização, burocratização, financiamento, administração e regulamentação das associações de municipários, seguiam as mesmas atitudes, crenças e sentimentos que estavam presentes no associativismo, assim como no sindicalismo do setor privado - onde se organizavam greves, paralisações e manifestações, além de definirem pautas da categoria em assembleias e encaminharem suas reivindicações ao gestor, a fim de se estabelecer uma negociação entre patrão e empregados -, entendo que existia no associativismo público a constituição de um “pacto político” que configurou-se como o reconhecimento dos limites de atuação frente ao Poder Público, por parte dos dirigentes das associações, e a necessidade de se instituir um mecanismo de negociação com os servidores públicos municipais, por parte do gestor público. Entendo que, mesmo à margem da lei, o sistema associativo no setor público constituiu uma ação coletiva que utilizava da negociação e que se manteve até mesmo após a instituição do direito à sindicalização no setor público (Constituição Federal de 1988). A diferenciação na análise das instituições associativas, públicas e privadas, serve como critério de oposição à generalização desta categoria analítica. Muitos autores, citados anteriormente, entendem o associativismo como entidades circunscritas a um mesmo ritual burocrático institucional, assim como de definição exclusivamente corporativo-assistencialista, se referindo à representação de classe como algo negativo. Esta visão, oriunda do entendimento dos pesquisadores, desconsidera o propósito da instituição, assim como os anseios dos representados. Entendendo que o corporativismo e o

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assistencialismo pode ser uma tendência institucional, existe a possibilidade de direcionar as análises para uma função comprobatória e não questionadora do que encontraremos nas fontes. No entanto, definindo que as classes se constituem com a ação, seguindo os preceitos de Thompson, as entidades representativas também devem ser compreendidas como objetos em constante formação e transformação - mutatis mutantis-, de acordo com o contexto histórico social, as demandas da categoria, receptividade do poder público e a legislação, para citar alguns fatores geradores de mudanças. São exatamente as modificações e permanências que servem como instrumento de análise constitutiva de uma cultura política no associativismo público. Estes modelos e formas de representação, variáveis ao longo do tempo, tem em comum o caráter de resposta e afirmação da categoria frente à sociedade, sendo a sua gênese buscada no processo de transição prolongado no espaço temporal restrito ao século XX (NOGUEIRA, 1996). Assim sendo, a análise documental das associações procura desvendar a percepção dos próprios servidores sobre sua posição no espaço laboral restrito ao setor público, mas, também, em relação ao setor privado. Apesar de Kärner (1989, p. 19), em seu artigo “Movimentos sociais: revolução no cotidiano” definir que “há um processo crescente de alienação, acompanhado de uma perda real de confiança nas organizações políticas tradicionais”, entendo que o acesso a serviços e benefícios corporativos, encontra-se presente desde antes da instituição do sistema representativo sindical oficial oportunizado por Getúlio Vargas. Dessa maneira acompanho o entendimento de Viegas (1986), Silva Jr (2004), Nogueira (1996), Avritzer (1997), Coelho (2009), Ganança (2006) e Ramalho & Santana (2004), quando definem que a representação institucional associativa direcionava-se à intenção de ganhos materiais advindos de suas necessidades sociais. Neste mesmo direcionamento, entendo as ações definidas como assistências se constituem como benefícios secundários, definidores de ações exclusivamente destinadas a associados à entidade de classe. No entanto, como defende Silva Jr (2004, p. 28), a luta por demandas relacionadas a questões inerentes a categoria, de forma corporativa, não pode ser entendida como alienada do contexto de luta de classes presentes na disputa. Esta conclusão, definida em seu estudo sobre mutuais no Rio Grande do Sul, contraria o disponibilizado pelo estudo de Nogueira (1996, p. 48), que em sua tese de doutorado conclui que o associativismo público dedicava-se ao “assistencialismo, a busca por aperfeiçoamento profissional e a defesa dos interesses corporativos da categoria”, na qual seriam reflexos do entendimento dos funcionários públicos, “que achavam que viviam em um mundo à parte” e, com as alterações no espaço laboral público, foram inseridos no “difícil e inseguro mundo da classe trabalhadora no Brasil” (NOGUEIRA, 1996, p. 04). Procurando analisar as práticas que se constituíram durante a organização do associativismo do setor público municipalista no Brasil, em especial no Estado do Rio Grande do Sul, utilizo do conceito de habitus de Pierre Bordieu (1983, p. 65), buscando “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...]”. Esse habitus da classe é preponderantemente coletivo, disponibilizado àqueles que compõem a mesma em rituais, gestos, sinais, palavras, etc. que servem como referencial à atuação no meio associativo, mesmo antes da conquista do direito à sindicalização no setor público. No entanto, a apreensão do habitus advém da experiência e, como a classe social é construída historicamente, a experiência torna-se preponderante na sua constituição. A atuação dos dirigentes deriva de suas próprias experiências precedentes, assim como da composição de novas experiências incorporadas durante o processo. Essa, entendida por Thompson (1981, p. 194) como valores que “não são ‘pensados’, nem ‘chamados’; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas ideias”, serve como fundamentação à transformação do sistema associativo em sindical no setor público, sendo que as posições favoráveis e contrárias são oriundas de normas e regras, mas também de expectativas e desejos provenientes da ação contínua dos dirigentes da

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FAMERGS e das associações de municipários, determinando a existência de um espaço de decisão que conflitante em relação às determinações legais. No que tange à análise da questão identitária do servidor público, compartilho do entendimento de Ramalho & Santana (2004, p. 17), na qual as identidades coletivas podem ser entendidas como fundadas “primeiro, na profissão (o coletivo de trabalho) e que pode prolongar-se em comunidade de moradia (o bairro popular), em comunidade do modo de vida (o bar, [...], o pertencimento sindical e político)”. O múltiplo entendimento acerca do conceito de servidor público proporciona dúvidas nos trabalhadores que exercem seu labor no espaço público, principalmente quanto à sua identificação enquanto categoria ou classe social, assim como enquanto grupo profissional ou quadro funcional. A organização, burocratização, financiamento, administração e regulamentação das associações de municipários, seguiam as mesmas atitudes, crenças e sentimentos que se encontram presentes no sindicalismo do setor público atualmente, onde se organizavam greves, paralisações e manifestações, além de definirem pautas da categoria em assembleias e encaminharem suas reivindicações ao gestor, a fim de se estabelecer uma negociação entre patrão e empregados. A constituição de ações coletivas voltadas à manutenção ou aquisição de direitos e garantias econômicas constituíam a preponderância frente às demandas sociais e extraclasse. Os servidores públicos são vistos por alguns autores como compondo uma categoria que possui características da burguesia e da classe trabalhadora, em razão da sua composição múltipla. Para Freyer (1973) esta categoria se constitui como pertencente às classes dominantes, no entendimento de Mills (1951), uma parcela pertence à classe burguesa (maiores salários) e o restante à classe dos trabalhadores (menores salários) (MILLS, 1951, p. 64), para Pereira (2002), os servidores públicos se constituem como uma classe intermediária, a classe tecnoburocrática, e para Antunes (2009, p. 102), como a classeque-vive-do-trabalho. A configuração de uma categoria composta por várias profissões e exercendo funções que compõem um amplo espectro de atividades laborais, traz em sua composição elementos de diferentes estratos sociais. Essa composição diversa não possibilita a constituição de um parâmetro classista único, definido como trabalhadores, como desejam alguns teóricos. Também, assim como não podem ser entendidos como trabalhadores, também não podem ser enquadrados exclusivamente como capitalistas, especialmente por não deterem os meios de produção. Igualmente, a não exclusividade do exercício de atividade intelectual também não os configura como intelectuais orgânicos. Como executores de funções diversas, composta por agentes que executam trabalhos intelectuais ou braçais, me parece que o melhor conceito a ser utilizado seja o de “classe-que-vive-do-trabalho”, como parâmetro de análise das relações estabelecidas neste espaço laboral (ANTUNES, 2009, p. 102). Este abarca todos os que dependem do trabalho como meio de subsistência, independente de sua posição no estrato social. A utilização desse conceito, no setor público, se estabelece com o fim de assegurar a unidade prevista na própria constituição das entidades representativas que, no seu entendimento existem em razão dos servidores públicos estarem condicionados às mesmas regras organizativas, assim como, à mesma fonte pagadora, o Poder Público municipal. As modificações no mundo do trabalho, tais como reformulação nos modos de produção (fordismo, taylorismo e modelo japonês), na contratação e terceirização, além das políticas de qualidade e a globalização, também ocasionam alterações nos modelos de representação dos trabalhadores nas fábricas, empresas e, neste caso, no setor público. A passagem do Welfare State (Estado de bem-estar social) para o estado mínimo, uma das faces do neoliberalismo, atinge todos os ramos do trabalho, incluindo os servidores públicos municipais que, passaram a conviver com trabalhadores subcontratados pelo Poder Público. Ramalho e Santana (2004), que na obra “Sociologia do trabalho” analisam as mutações no mundo do trabalho, assim como o posicionamento dos trabalhadores e sindicatos, defendem que a organização representativa deriva da existência de cenários “de desregulamentação e flexibilização de todo o sistema social” e de representação classista, entendendo que a configuração atual de representação não contempla os interesses dos trabalhadores. A ampliação das formas de contratação, dentre outras modificações no mundo do trabalho, irá ocasionar a organização da política de múltiplas competências, que objetiva compor quadros funcionais polivalentes. A organização dos modelos de competência, segundo estes autores, se define como “o conjunto de competências implementados no trabalho,

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articulando vários saberes, que seriam advindos de múltiplas esferas”. No setor público, onde as funções se configuram como atividades previamente estabelecidas por formação e contratação estipulados nos editais de concurso, as múltiplas competências encontram a barreira da ilegalidade do desvio de função. A utilização do mesmo servidor para múltiplas tarefas esbarra na determinação legal de descrição funcional prevista no edital de concurso e nas legislações municipais que tratam do trabalho, tais como a Leis Orgânicas e os Regimes Jurídicos municipais. Diferentemente do sindicalismo do setor privado, onde a pressão da reestruturação industrial buscava alterar a ação sindical “para além do muro das fábricas, associando reivindicações econômicas a questões políticas, participando do processo de redemocratização do país e produzindo um tipo de sindicalismo que procurou romper como atrelamento ao Estado” (RAMALHO & SANTANA, 2004, p.24), no associativismo público a ação de pressão pela redemocratização estava no mesmo patamar das demandas de defesa pelo direito à sindicalização, recepção da contribuição sindical, isonomia de direitos privado/público, etc. As lutas sociais compunham parte da agenda de reivindicações, mas não a sua principal meta. Porém, dentro da mesma lógica utilizada por Hobsbawn (2000, p. 396), em sua obra “Mundos do trabalho”, uma coletânea de artigos que trata da organização da classe operária, mesmo que as demandas de cada categoria sejam percebidas como uma luta por melhores salários “dentro de cada trabalhador existe um ser humano tentando se libertar”, e essa libertação perpassa por conquistas de âmbito social que atinge trabalhadores de todas as categorias. No entanto, sendo que uma parcela dos servidores públicos trata-se de trabalhadores especializados, com formação superior (professores, arquitetos, médicos, enfermeiros, engenheiros, psicólogos, assistentes sociais, químicos, etc...), existe o problema da comparação entre a ação no setor público com o privado, regido por leis geralmente diferenciadas, tais como contratação, remuneração, vantagens, etc. A venda da força de trabalho, figura central da exploração capitalista e característica principal do trabalhador, é ofuscada pela “superioridade qualitativa da especialidade”. A configuração de uma categoria composta por trabalhadores que exercem trabalhos diferenciados quanto à sua execução, sendo material ou imaterial, propicia distanciamento entre os próprios servidores que se entendem diferentes na composição da classe. Ricardo Antunes (2009), na obra “Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho”, na qual trata das alterações no mundo do trabalho, da crise estrutural do capitalismo e sobre a centralidade do trabalho, entende que “é ilusório pensar que se trata de um trabalho intelectual dotado de sentido e autodeterminação: é antes um trabalho intelectual/abstrato”. Seguindo a mesma tese do autor, entendo que a ação intelectual da função especializada fica restrita a sua formação que, na atuação no setor público, passa a ser determinada pelo sistema, ou seja, a demanda do Poder Público e da população, sendo a atuação do profissional restrita ao serviço e não à produção intelectual. Torna-se quase um autômato. Assim sendo, acompanho o entendimento de Ferreira (2011, p. 54), em seu estudo sobre a relação entre os trabalhadores e o Estado capitaneado por Getúlio Vargas, na qual entende que os trabalhadores não exercem mera submissão, ocasionando a perda de sua identidade, mas, optam pela construção de um verdadeiro pacto entre Estado e trabalhadores, figurando a mesma ação no período em estudo, ou seja, a década de 1970 no setor público municipário. O pacto consistia em exercer a luta pelos interesses da categoria frente ao Poder Público, mesmo que em associações, mantendo certo nível de atuação nos serviços em prol da comunidade. Assim, a reciprocidade era o principal instrumento do pacto constituído entre Prefeitos e servidores públicos municipal. O estudo dessas alterações no mundo do trabalho tem por base as mesmas que ocorreram nos sistemas sociais, provenientes, como aponta Dubar (2005, p. 119), de socializações individuais, sendo estas as principais responsáveis pela construção da sociedade. Dessa maneira, a reformulação no mundo do trabalho, torna-se uma constante e seus reflexos perceptíveis em todos os espaços laborais. Numa acepção ao que tratou este autor, na qual entendia que a transformação das antigas corporações em associações profissionais, eram reconhecidas pelo Estado e amparados pela legislação vigente, a federação de associações torna-se a instituição de um novo tipo de entidade representativa, com suas formas e significações ao mesmo tempo diferenciadas e próximas da que a precede e sucede. Essas

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alterações são provenientes de determinações legais que impuseram a limitação da sua atuação enquanto movimento organizado como associação. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo, 2009. AVRITZER, Leonardo. Democratization and changes in associative pattern in Brazil. Latin American Politcs and Society. Fall. 2000. ______. Um desenho institucional para o novo associativismo. Revista Lua Nova, nº 39, 1997. BORDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. BOSCHI, Renato. A arte da associação. Rio de Janeiro: Vértice, 1987. COELHO, Gustavo. Entre a representação e a participação, entre o clientelismo e a autonomia: associações de bairro e política municipal de Porto Alegre (1962-1968). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2009. DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Fontes, 2005. FAMERGS – Hemeroteca. Jornal Fato Ilustrado, 01 nov. 1979, p. 01. 28 BOSCHI, Renato. A arte da associação. Rio de Janeiro: Vértice, 1987. FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular (1930-1945). Rio de Janeiro: Letras, 2011. FREYER, Hans. A Sociedade Estamental IN IANNI, Octávio. Teorias de Estratificação Social. São Paulo: Editora Nacional. 1973. GANANÇA, Alexandre Ciconello. Associativismo no Brasil. Características e limites para a construção de uma nova institucionalidade democrática participativa. Dissertação apresentada ao Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. 2006. HOBSBAWN, Eric J. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. LEON, Adriana Duarte. Identidade docente coletiva, associativismo e práticas de formação nas décadas de 30 e 40 do século XX. Cadernos de História da Educação – v. 10, n. 2 – jul./dez. 2011. LONER, Beatriz Ana. Construção de Classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas: Universidade Federal de Pelotas. Ed. Universitária: Unitrabalho, 2001. MILLS, C. Wright. White Collar. The American Middle Class. Nova York: Oxford University Press, 1951. NOGUEIRA, Arnaldo José França Mazzei. Trabalho e sindicalismo no Estado brasileiro. Experiências e desafios. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 1996. PEREIRA, Luis Carlos Bresser. Texto para Discussão n°.117 do Departamento de Economia da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, novembro de 2002. RAMALHO, José Ricardo & SANTANA, Marco Aurélio. Sociologia do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004. SILVA JR. Adhemar Lourenço da. As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas (estudo centrado no Rio Grande do Sul–Brasil, 1854-1940). Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de doutor junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004.

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COLÉGIO NOSSA SENHORA DE LOURDES, FARROUPILHA/RS: TECENDO HISTÓRIAS DE SUJEITOS E PRÁTICAS (1922-1954) 1 Gisele Belusso 2 Com a Nova História e sua ampliação do conceito de documento, as possibilidades de pesquisas se ampliam e objetos de pesquisa, até então impensados, ganham visibilidade. O conceito ampliado de documento admite que toda e qualquer produção humana pode vir a ser um documento histórico, o que possibilita um olhar para objetos de pesquisa, tais como as instituições escolares. Essas, desde os anos noventa, ganham um espaço cada vez maior no cenário nacional de pesquisa em História da Educação, conforme Gatti Júnior (2007) e Buffa e Nosella (2009). Em relação às iniciativas de escolarização na região de colonização italiana no Rio Grande do Sul nas colônias de Dona Isabel, Cond’Eu e Caxias pode-se citar os estudos de Luchese (2007), que em sua tese de doutorado, registra também a criação de instituições escolares, dentre elas algumas confessionais, e também as scalabrinianas. O objeto de estudo deste artigo vem ao encontro das instituições tratadas na pesquisa de Luchese (2007), visto o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Farroupilha,RS, ser uma instituição de ensino pertencente à Congregação das Irmãs de São Carlos Borromeo Scalabrinianas. Ressalta-se que no RS existem duas províncias: uma em Passo Fundo e outra em Caxias do Sul. O colégio Nossa Senhora de Lourdes vincula-se a esta última. A sede geral de todas as províncias dessa congregação é em Roma. O projeto sócio-pastoral scalabriniano e a educação Scalabriniana já despertaram a atenção de alguns pesquisadores, dentre eles, Signor (1984), Souza (1997) Bresolin (1998), e Lessa (2011), porém estes estudos não se referem especificamente à instituições escolares. Já no caso de pesquisadoras como Di Siervi (2002), Oliveira (2003) e Paz (2013), as pesquisas são específicas sobre instituições escolares scalabrinianas sendo elas: o Orfanato Cristovão Colombo, São Paulo; o Colégio Santa Teresa de Ituitaba, Minas Gerais e o Colégio São Carlos, Rio Grande do Sul, respectivamente. A pesquisadora Oliveira (2009) ainda ampliou sua pesquisa na tese de doutorado, voltando seu olhar para Educação Scalabriniana no Brasil. Este artigo apresenta reflexões a partir do desdobramento de pesquisa a respeito do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, seus sujeitos escolares e práticas escolares, entrelaçados nos tempos e espaços e mostra alguns aspectos da criação da congregação, sua atuação no Brasil e abertura das duas primeiras instituições escolares no Rio Grande do Sul. A CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS DE SÃO CARLOS BORROMEO SCALABRINIANAS O surgimento da Congregação das Irmãs de São Carlos Borromeo Scalabrinianas se dá em um contexto de industrialização e crise na Itália no final do século XVIII, o qual favoreceu os processos emigratórios de italianos principalmente da região sul da Itália para outros países e também para o Brasil, devido ao desemprego. O Brasil, por sua vez, necessitava de mão de obra para as fazendas de café e também de pessoas dispostas a colonizar as terras da serra gaúcha no Rio Grande do Sul, contexto que privilegiou o aumento do fenômeno migratório.

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Este trabalho foi originalmente elaborado para apresentação em comunicação oral no IV Simpósio Internacional XII Fórum de Estudos Ítalo-brasileiro, Fontes e acervos. Intitulado “Colégio Nossa Senhora de Lourdes alternativa educacional através da fé para migrante italiano (1917-1943), apresentado em Caxias do Sul/Rio Grande do Sul. Aqui adaptado e ampliado até o ano de 1954, apresentando resultados parciais neste momento de andamento da pesquisa. 2

Mestranda em Educação, Universidade de Caxias do Sul, pesquisa financiada pela Capes, orientadora: Professora Doutora Terciane Ângela Luchese.

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A igreja católica com o intuito de colocar em prática ações do ideário ultramontano 3, passa atuar de forma intensa a partir dos processos migratórios. Um dos sujeitos atuantes nesse projeto é o Bispo Italiano João Batista Scalabrini que por suas iniciativas passa a ser reconhecido como Apóstolo dos Migrantes, “sobretudo depois de 1887, quando escreveu ‘A Emigração Italiana na América’” (RIZZARDO, 1975 p.34). Ë possível compreender, claramente, o projeto da Congregação Scalabriniana como parte de um projeto de Restauração e Reforma da Católica no Brasil, em consonância como os objetivos do Estado Cristão, contexto em que a discussão do estado liberal se faz presente. (OLIVEIRA, 2009, p.57) A partir desta nova demanda Scalabrini almeja colocar em prática em terras brasileiras o apoio ao migrante. Para isso necessitaria de ajuda de mais religiosos “Em 1887 fundou a ‘Sociedade de São Rafael 4’, [...] Neste mesmo ano deu início ao ramo masculino da Congregação de São Carlos (28 de novembro) [...] ”(RIZZARDO, 1975 p.34). Em um período muito breve, apenas sete meses após a fundação da congregação, embarcam missionários rumo aos principais destinos de emigração italiana - Brasil, Estados Unidos e Argentina No Brasil, inicialmente, os padres carlistas atuaram nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo e São Paulo. No entanto, é em São Paulo que ocorre a instalação da primeira instituição de ensino idealizada pelo Padre José Marchetti. Ele, motivado pela emigração de grande número de paroquianos de Copignato e Lucca, havia procurado Scalabrini, entregando-se a Deus como Missionário de São Carlos 5, pois seu maior desejo era acompanhar o seu povo. Padre Marchetti transitava entre o Brasil e a Itália acompanhando imigrantes na travessia e resolvendo questões práticas da congregação. Durante uma das viagens o falecimento de uma jovem mãe o faz perceber da necessidade do apoio aos órfãos, padre Marchetti consola o pai e promete cuidar da criança, o que cumpriu. Retornando ao Brasil, motivado pelo fato ocorrido, mobiliza a comunidade para abertura de um orfanato, logo recebeu a doação de um terreno no alto do Ipiranga, além de tijolos para dar início à construção do Orfanato Cristovão Colombo 6. Com apoio da comunidade, do Cônsul e do Bispo de São Paulo, Padre José Marchetti 7 é responsabilizado por eles a cuidar de tudo pessoalmente: “O Cônsul italiano insistiu para que eu aceitasse a responsabilidade e a supervisão das obras e concordou comigo para colocar ali as irmãs! Eis um novo ninho para as minhas Colombinas 8de Jesus.” (FRANCESCONI, 1976, p.20)

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Movimento de caráter reacionário, caracterizou-se no âmbito intelectual como uma rejeição à filosofia racionalista e à ciência moderna, politicamente condenou a liberal democracia burguesa e reforçou a ideia de monarquia, externamente apoiou a centralidade em Roma na figura do Papa. (MANUEL, 2004, p.11 apud OLIVEIRA, 2009, p. 61) 4 A sociedade denominada como São Rafael era “[...] composta de sacerdotes e leigos para assistência humana, social e legal do embarque e desembarque.” (FRANCESCONI, 1971, p.12) 5 Conforme revista do Centenário da Congregação das irmãs Carlistas Scalabrinianas, 1995. 6 “O nome foi dado à fundação numa época em que se respirava ainda o clima festivo da celebração do IV centenário da descoberta da América, protagonizada por Cristovão Colombo, nascido em Gênova, Itália.” (SIGNOR, 2005, p.53) 7 Padre Jose Marchetti também passou pela experiência de ser órfão, ao perder o pai ainda muito jovem, ficando responsável pelo cuidado de seus irmãos menores. 8 “O termo, colombinas, com o qual o padre Marchetti identificaria as futuras irmãs de São Carlos, derivou da denominação dada a casa mãe de Piacenza, cidade onde passou a ser usual entre o povo chamar de colombinas os missionários de São Carlos.” (SIGNOR, 2005, p.53)

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Seria difícil cuidar de crianças sem a presença feminina, irmãs que pudessem auxiliar no trabalho do orfanato com os órfãos. Desta forma surge a necessidade da criação do ramo feminino da congregação, o que foi solicitado ao Bispo Scalabrini pelo Padre Marchetti. Em 23 de outubro de 1895, Padre Marchetti vai à Itália para realizar seus votos perpétuos e participa da criação da Congregação das Irmãs de São Carlos: Assunta Marchetti, Carolina Marchetti, Angela Larini e Maria Franceschini realizam os votos válidos por seis meses. Uma particularidade nesta congregação é a presença da mãe e irmã do Pe. José Marchetti. E assim que, em 1895, chegam as primeiras irmãs no Brasil para trabalhar no Orfanato. Padre Marchetti, para além da construção, cuidou pessoalmente da elaboração do programa de funcionamento do Orfanato, que atendia meninos e meninas, que eram organizados em alas separadas. Infelizmente, faleceu em 1896 e não pode acompanhar a expansão de Orfanato que devido ao aumento da demanda, necessita da construção de um segundo prédio, construído em 1904. Com as novas instalações prontas ficam no prédio do Ipiranga somente os meninos, e na Vila Prudente fica a sessão feminina, que neste ano já atendia a duzentas e sessenta alunas. Com relação ao orfanato, primeira instituição educativa onde as irmãs atuaram no Brasil, destaco algumas particularidades que acompanharão às escolas brasileiras nas décadas seguintes. O programa elaborado por Marchetti aponta questões de higiene, de preparação para o trabalho, de gênero (educação feminina e masculina com enfoques e conteúdos diferentes). A educação profissionalizante era realizada concomitante a formação humana e cristã. Scalabrini, em visita ao Brasil, inaugura pessoalmente a ala feminina do Orfanato Cristovão Colombo, além de visitar as comunidades em que estivessem atuando padres Carlistas. Em seu retorno à Itália, faz diversos relatórios contando sobre suas impressões, mostra-se satisfeito com a obra iniciada e projeta a continuação da mesma para atender os imigrantes. Mas o inesperado acontece. Após vinte e cinco dias da conclusão de seu último relatório sobre sua viagem, morre João Batista Scalabrini em 1905. Esse fato acarreta em um período de entraves e de reorganizações a nível congregacional. Um dos problemas enfrentados pelas primeiras irmãs foi o fato de não terem feito o noviciado, e sim apenas os votos temporários, ficando em uma situação delicada perante o Bispo de São Paulo e outro problema foi à tentativa de fusão, iniciada em 1900, da congregação, das Irmãs do Sagrado Coração, com a Congregação das Irmãs Scalabrinianas, o que gerou muito desgosto 9. Em 1912, a congregação reorganizada, com a sede do Governo Geral e o noviciado junto ao orfanato, e tendo como superiora Geral Madre Assunta Marchetti é possível iniciar o movimento de expansão da congregação. Com o noviciado instalado em uma das dependências do orfanato de Vila Prudente algumas das ex-alunas do Orfanato ingressam no noviciado, dentre elas, Ir. Barromea Ferraresi, Ir. Joana de Camargo, Ir. Josefina Oricchio (FRANCESCONI, 1975, p.88). Em 1915, com mais irmãs agora formadas no noviciado, Madre Assunta Marchetti pôde aceitar o convite do padre carlista de Bento Gonçalves. Para a nova missão, foram destinadas para Bento Gonçalves, região da serra gaúcha do Rio Grande do Sul, cinco irmãs que abriram o Colégio São Carlos em 1915, foram elas: Lucia Gorlin e Maria de Lourdes Martins e as alunas do orfanato que haviam ingressado no noviciado, agora irmãs, Ir. Barromea Ferraresi, Ir. Joana de Camargo e Ir. Josefina Oricchio. 9

“As irmãs de São Carlos presentiram a descaracterização de seu instituto e entenderam ameaçada a própria identidade congregacional assim que chegaram a São Paulo as seis primeiras irmãs apóstolas, [...]. Eram elas: Antonietta Fontana, Carmella Tomedi, Agnese Rizzieri, Elisa Pederzini, Assunta Bellini e Maddalena Pampana, todas da congregação de Clelia Merloni. As três primeiras haviam feito o noviciado em Piacenza, tendo freqüentes contatos com Scalabrini, enquanto as três últimas o fizeram em Castelnuovo Fogliani, com Clelia Merloni. Quando em setembro de 1907 ocorrer a separação dos dois instutos, irmã Antonietta Fontana e irmã Carmella Tomedi irão optar pela congregação das irmãs de São Carlos, scalabrinianas. (SIGNOR, 2005, p.89)

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A EXPANSÃO EM SOLO GAÚCHO: IRMÃS CARLISTAS NO RIO GRANDE DO SUL À convite do Padre Henrique Domênico Poggi 10, com autorização do Arcebispo de São Paulo Dom Duarte Leopoldo e Silva e do Bispo de Porto Alegre Dom João Becker, instalaram-se no Rio Grande do Sul as primeiras irmãs que assumem a missão de concretizar mais uma obra. Estabeleceram-se inicialmente cinco Irmãs na vila de Bento Gonçalves, em1915. Em uma casa particular, iniciaram o Colégio São Carlos. Mais tarde, o mesmo foi transferido para um prédio próprio, de alvenaria, construído com os investimentos particulares do Pe. Poggi (Carlista) e da comunidade. (LUCHESE, 2007, p. 231 232) O Colégio São Carlos, em breve denominado Colégio Nossa Senhora Medianeira, foi muito recomendado à sociedade, eram matriculados tanto meninos como meninas, primando por boa educação com aspecto formativo e religioso, pode-se afirmar que o Colégio, de cunho católico, elaborou um projeto educativo para preservar a italianidade, a cultura italiana e a fé católica. Ao mesmo tempo, pretendeu contribuir para a formação da sociedade brasileira, no contexto do Estado do Rio Grande do Sul, no período em que a República se consolidava e desenvolvia um projeto de moralização da sociedade. (OLIVEIRA, 2009, p.172). “Em Bento Gonçalves nos primeiros tempos da escola paroquial, a pedido do cônsul da Itália, as aulas eram ministradas em idioma italiano [...]” (SIGNOR, 2005, p.198). A escola é muito prestigiada pelas famílias da cidade, atendendo diversas famílias abastadas e além do currículo comum a todos oferece atividades voltadas à educação feminina: O anúncio de 1917, divulgando o período de matrículas, acrescentava que se ensinava música, piano e canto, ainda bordados em branco, seda, ouro, lã e o filó. 11 Além disso, leitura, análise gramatical, italiano, aritmética, geografia, história pátria, ciências naturais e físicas, desenho e o catecismo, sempre promovendo a ‘educação completa da juventude 12’”(LUCHESE, 2007, p.233). O Jornal Corriere D’Itália, de circulação na serra gaúcha, noticiava sobre os exames finais, nos quais eram exacerbados os bons resultados. “O histórico do colégio ressalta o quadro docente quase na totalidade por irmãs, com exceção de algumas contratações” (OLIVEIRA,2009, p.176). Com o passar dos anos, o Colégio Medianeira passa a atender à educação feminina em duas novas perspectivas: a possibilidade da vida religiosa através do noviciado e a possibilidade de ser professora através do curso normal. São estes apenas alguns aspectos para uma breve contextualização desta instituição scalabriniana pioneira no Rio Grande do Sul. O COLÉGIO NOSSA SENHORA DE LOURDES, SUJEITOS E PRÁTICAS No ano seguinte à abertura do Colégio em Bento Gonçalves, é a vez de Nova Vicenza, colônia de Caxias do Sul, criada na sesmaria de Feijó Junior, com grande potencial econômico. Comunidade que contava com a sede paroquial e com a nova igreja inaugurada em 1916. Apesar de contar com a quinta aula de Nova Vicenza, escola pública mista em funcionamento desde 1899, solicitada pela comunidade à Caxias do Sul em 1897 em correspondência feita com aval e assinatura do Padre Giacomo Brutomesso 13 e ainda de ser possível que já existissem outras aulas

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Em alguns escritos a grafia esta como Henrique e outros Enrique. Publicado em 12/01/1917. Jornal Corriere D’Itália, Bento Gonçalves, Museu Histórico Casa do Migrante. 12 Publicado em 12/12/1917. Jornal Corriere D’Itália, Bento Gonçalves, Museu Histórico Casa do Migrante. 13 Conforme pesquisa em andamento da mestranda Cassiane Curtarelli Fernandes no programa de pós-graduação em educação da Universidade de Caxias do Sul. 11

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isoladas e aulas particulares no território que, em 1934, virá a ser Farroupilha 14, a comunidade almeja ter uma escola paroquial e solicita, desta forma, permissão ao Bispo Dom João Becker para que as irmãs venham abrir uma instituição escolar em Nova Vicenza. Com autorização concedida e determinadas as condições pelo Bispo Dom João Becker, o pároco registra no livro tombo da paróquia o início das atividades das irmãs: “A cinco de março tivemos a felicidade de ver as cinco Irmãs de S. Carlos abrir o Collégio de N.S. do Rosário nesta sede” (Livro Tombo n° 1, p. 2). Provavelmente a instalação da escola foi próxima à igreja, mas não existem documentos que comprovem, com exatidão, qual o espaço físico que foi ocupado. Muitas perguntas ficam em aberto sobre este período: Quais foram às pessoas que assinaram essa solicitação? Porque uma escola tão próxima a Quinta aula de Nova Vicenza? Qual foi a estrutura física construída ou adaptada para a chegada das irmãs? Quais eram os conteúdos, disciplinas, materiais didáticos? Enfim muitas perguntas, e mais infinitas possíveis respostas, mas que, neste momento, não são possíveis de serem respondidas pela ausência de fontes documentais. Na região onde foi instalada a escola, estava ocorrendo o deslocamento de diversas famílias para região próxima à Estação Férrea, inaugurada em 1910 para transportar o excedente do plantio que poderia ser enviado a outros locais 15, mas também poderia receber produtos. No ano seguinte à inauguração da estrada de ferro, inicia a obra da estrada Julio de Castilhos, a qual tinha início em São Sebastião do Caí, passava por Nova Milano, Nova Vicenza, seguindo até Antônio Prado, fator esse que incentivou ainda mais o esvaziamento de outros núcleos e concretizou o inevitável deslocamento da população para as proximidades da Estação Férrea e da nova estrada. Esse fator acaba por motivar uma decisão de Dom João Becker, que, em visita pastoral em 1918, julga necessário o deslocamento da paróquia. Com o deslocamento da Paróquia, a mudança da escola foi consequência inevitável. A mudança ocorre em 1922, com a instalação provisória em uma casa na estrada Julio de Castilhos, esquina com a rua Independência. Após, novamente, transferida para um grande casarão de madeira ao lado da igreja. Só em 1943, ocorre nova mudança de local, instalando-se em novo prédio – construção essa que permanece até hoje atendendo aos alunos. Um prédio com três andares e espaços amplos para atender alunos do primário e jardim de infância, construção realizada com apoio da comunidade. O atendimento era realizado por irmãs, algumas, principalmente nos anos cinquenta, oriundas do noviciado de Bento Gonçalves.

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Estudos anteriores como a dissertação de mestrado de Carla Fernanda Carvalo Thoen, intitulada Representações sobre Etnicidade e Cultura Escolares nas Antigas Colônias de Imigração Italiana do Nordeste do Rio Grande do Sul (1905-1950), falam da existência das aulas isoladas e das aulas particulares em casa. 15 Ver sobre o comércio: a obra Lembranças que resistem ao tempo, história do comércio Farroupilhense. Sindilojas. Caxias do Sul: Maneco, 2013. Traz com detalhes o desenvolvimento do comércio ilustrado com muitas imagens.

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Colégio Nossa Senhora de Lourdes – prédio inaugurado em 1943.

Fonte: Arquivo da Província Imaculada Conceição, Caxias do Sul. O espaço novo, logo ficou pequeno, pois surge a necessidade de ter também o curso ginasial. Novamente, com o apoio da comunidade, o prédio é ampliado para atender alunas que freqüentariam o curso ginasial. Observo que as turmas do jardim de infância e do primário eram constituídas por meninas e meninos, porém o curso ginasial era exclusivamente feminino. Os meninos eram destinados ao Colégio São Tiago, instituição de ensino administrada pelos padres Maristas. Alguns indícios das práticas escolares são evidenciados nas memórias de ex-alunos entrevistados 16 pela autora, na pesquisa em andamento, como os cantos, a preparação com antecedência dos desfiles cívicos e os momentos de oração, trazem indícios de que a escola pretendia formar sujeitos religiosos e bons patriotas. Os estudos de Bastos (1994) e Quadros (2006), também apontam que a práticas cívicas fizeram parte do processo de nacionalização das escolas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu Scalabrinianas, contribuiu ativamente na abertura de diversas instituições no município de Farroupilha, não só no campo educacional. Além do Colégio Nossa Senhora de Lourdes em 1917, foram responsáveis pela abertura do Colégio Santa Cruz em 1924 e atuaram junto ao Sanatório Nova Vicenza a partir de 1935, o qual posteriormente, em 1945, recebe o nome de Hospital São Carlos em homenagem ao trabalho desenvolvido pelas irmãs junto aos doentes. Elas também são responsáveis pela abertura também de outras duas escolas neste município, da Escola Nossa Senhora de Caravaggio e Pio X. O que se percebe, até este momento da pesquisa, é a importante contribuição da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu Scalabrinianas no desenvolvimento do município de

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As entrevistas estão sendo realizadas pela autora, como procedimento de metodologia do projeto de pesquisa Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Farroupilha/RS: tecendo histórias de sujeitos e práticas (1922-1954).

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Farroupilha e outras localidades da serra gaúcha com a abertura outras escolas e instituições na área da saúde e do apoio ao imigrante. Essa congregação apresenta, portanto, nítido compromisso com o campo educacional desde sua vinda para o Brasil. E por fim, pensar no enraigamento das irmãs na comunidade, em que apoiaram iniciativas ao desenvolvimento do município e foram apoiadas e reconhecidas nas instituições por elas fundadas. O Colégio Nossa Senhora de Lourdes continua sendo referência em qualidade de ensino e atendendo o público farroupilhense. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS, Maria Helena Camara. O novo e o nacional em revista: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-1942). 1994. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós Graduação em Educação, São Paulo, 1994. BONI, Luís A. La América, Escritos dos primeiros imigrantes italianos. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul; Universidade de Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1977. DI SIERVI, Maria de Lourdes. Pão, educação e trabalho: Orfanato Cristovão Colombo e a educação profissionalizante de crianças na cidade de São Paulo (1895-1930). 2002. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica, Programa de Pós Graduação em História, São Paulo: 2002. FRANCESCONI, Pe. Mario C.S. João Batista Scalabrini, pai dos migrantes, traços biográficos e espiritualidade. Tradução: Ir. Lia Barbieri. Caxias do Sul: Editora São Miguel, 1971. ______, Pe. Mario C.S. Congregação da Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu Scalabrinianas, 1° vol. Caxias do Sul: Paulinas, 1976. GATTI JR, Décio. História e historiografia das instituições escolares: percursos de pesquisa e questões teórico-metodológicas. Revista Educação em Questão, Natal, v. 28, n. 14, p. 172-191, jan./jun. 2007. Disponível em: . Acesso em 16 ago 2015. LINS, Adriana. Lembranças que resistem ao tempo: história do comércio farroupilhense. Sindilojas Farroupilha. Caxias do Sul: Maneco, 2013. LUCHESE,Terciane Ângela. O processo escolar entre imigrantes da Região Colonial Italiana do RS– 1875 a 1930: Leggere, scrivere e calcore por esserealcunonellavita. 2007. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Vale dos Sinos, Programa de Pós Graduação em Educação, São Leopoldo, 2007. MONTEGUTTI, Ivo; GIACOMEL, Miriam Teresa; DALL’OSBEL, Simone Ana. Farroupilha Ontem e Hoje – subsídios – Caxias do Sul: Kessler,1993 NOSELLA, Paolo; BUFFA, Ester. Instituições escolares: por que e como pesquisar. Campinas/SP: Editora Alínea, 2009. OLIVEIRA, Lúcia Helena. Memória e História educacional: o papel do Colégio Santa Teresa no processo escolar de Ituiutaba no Triângulo Mineiro-MG (1939-1942). Dissertação de mestrado em educação. Uberlândia/MG: UFU, 2003. ______, Lúcia Helena Moreira de Medeiros. Educação Scalabriniana no Brasil. 2009. Tese (Doutorado) Doutorado em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. PAZ, Valéria Alves. História do Colégio São Carlos de Caxias do Sul (1936-1971). 2013. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Educação, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, 2013.

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QUADROS, Claudemir de. Reforma, ciência e profissionalização da educação: o Centro de Pesquisas e Orientações Educacionais do Rio Grande do Sul. 2006. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação em Educação, Porto Alegre, 2006. REVISTA do centenário das irmãs de São Carlos Borromeo Scalabrinianas (1895-1995) São Paulo, Loyola, Edição Histórica: 1995. REVISTA dos cento e dez anos a serviço dos migrantes e refugiados (1895-2005) Caxias do Sul, Lorigraf, publicação única 2005. RIZZARDO, Redovino. A longa viagem: Os carlistas e a imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1975. ______, Redovino. Raízes de um povo: Missionários escalabrinianos e imigrantes italianos no Brasil (1988/1938). Coleção Imigração italiana, sob n◦ 113. Passo Fundo: Gráfica e editora P. Berthier, 1990. SCALABRINI,João Batista. A Emigração Italiana na América. Trad. RedovinoRizzardo. Caxias do Sul: Centro de Estudo Pastoral Migratório; EDUCS, 1979. ______, oão Batista. Uma voz atual, páginas escolhidos dos escritos. São Paulo: Loyola, 1989. SIGNOR, Lice Maria. João Batista Scalabrini e a imigração Italiana, um projeto sócio pastoral. Porto Alegre: Palotti, 1984. ______, Lice Maria. Irmãs Missionárias de São Carlos, Scalabrinianas – 1895 - 1934. Brasília: CSEM, 2005. SOUZA, Wlaumir Donisete de. Anarquismo, Estado e Pastoral do Imigrante: das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem, O Caso de Idalina. São Paulo: UNESP, 2000. THOEN, Carla Fernanda Carvalho. Representações sobre Etnicidade e Cultura Escolar nas Antigas Colônias de Imigração Italiana do Nordeste do Rio Grande do Sul (1905 – 1950) .2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós Graduação em Educação, Caxias do Sul,2011. DOCUMENTOS ACESSADOS: Livro Tombo n° 1 da Paróquia Sagrado Coração de Jesus: Farroupilha/RS.

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COOPERATIVISMO EN CHILE Marcela Paz Carrasco Rodriguez 1 Claudia Catalina Bustamente Ahumada 2

El cooperativismo es, en alguna medida, convergente con el anarquismo y tributario de la corriente mutualista Proudhoniana: por su alternatividad al estado, la creencia en la fuerza de los trabajadores para resolver sus problemas, el énfasis en lo social por sobre lo político, la sociabilidad como criterio de organización social, el carácter educativo del cooperativismo y el valor de la ética en las relaciones sociales. Errico Malatesta INTRODUCCIÓN La instalación del neoliberalismo en Chile, desde la década del 80, trajo consigo cambios a nivel político, social y, por supuesto, a nivel económico. La propiedad privada, como base fundamental del modelo, pone en el centro del quehacer económico a las empresas privadas, tales como sociedades anónimas o empresas de responsabilidad limitada. Sin embargo, aún existen y perduran expresiones sociales y estrategias asociativas inmersas en la vida social y que escapan a lógicas de mercado, instalado tan profundamente por el capitalismo neoliberal. Es en este proceso donde muchas cooperativas dejan forzadamente de funcionar, dando término a la continuidad histórica del sector productivo. Las expresiones cooperativas, que tomaron protagonismo y que fueron levantadas desde el Estado a partir del año 1973, son las que hasta la actualidad funcionan como grandes consorcios y que dan respuesta a la nueva visión de mundo instalada desde el gobierno neoliberal, dejando la sensación de una historia político-económica, visualizada en el movimiento cooperativista, coartada de su impacto e influencia en el quehacer social de Chile y de Latinoamérica. ANTECEDENTES GENERALES El debate en torno a la cooperación como expresión histórica en la vida de grupos humanos y su carácter natural o cultural, es amplio y diverso. Comprenderemos la cooperación desde la teoría de KROPOTKIN (2009) sobre ‘apoyo mutuo’, en tanto construcción histórica que, por las formas de ayuda mutua, es posible de observar como el resultado de un proceso orgánico que va de lo natural a lo cultural. Es la expresión social, cotidiana e histórica, de una característica de la naturaleza y de todas sus especies. En ellas el ser humano es uno más, aunque el único con capacidad de crear cultura. Según KROPOTKIN (2009). La cooperación corresponde a una ley de la naturaleza que permite la sobrevivencia de las especies y que se proyecta por la cultura, el conocimiento, la sociabilidad y solidaridad en la vida social. Han existido expresiones de cooperación en diversas culturas y sociedades, en distintas épocas y lugares del mundo. Algunos ejemplos citados por RADRIGÁN y DEL CAMPO (1998) son: los sistemas de lechería en Armenia; las Asociaciones de Arrendamiento en Babilonia; las Sociedades de Drenaje, Riego y Construcción de Diques en la Germanía; las Asociaciones Queseras de Jura y Saboya; y las Colectividades Agrícolas en Rusia y España, entre otras. El cooperativismo como lo conocemos actualmente es una forma de organización económica y social, que surge en el contexto histórico de la revolución industrial como respuesta a la miseria y la crisis social generadas por la instalación del capitalismo industrial en Europa a mediados del siglo XVIII.

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Socióloga, bolsista CAPES Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural, UFPel. Trabajadora Social, Universidad de las Artes y Ciencias Sociales.

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El cooperativismo, según WILLIAMSON (1994), proviene de dos fuentes: de la tradición y de la experiencia histórica de la solidaridad humana, en especial de las clases oprimidas, y de las ideas de carácter socialista que expresaban movimientos culturales y sociales de la Europa de mitad del siglo XVIII en búsqueda de la transformación social de forma pacífica. De acuerdo a WILLIAMSON (1994), el cooperativismo es un modo de organizar, específica e históricamente, funciones económicas sobre la base del trabajo y el interés común, y ésta se basa en una asociación de personas, que de manera voluntaria se ayudan mutuamente para alcanzar objetivos y resolver necesidades comunes. El cooperativismo como ideología o pensamiento se nutre y se ve influenciado de las ideas de la revolución francesa, donde se proponía una forma federativa de organización expresada en una forma productiva por medio de la colaboración de cooperativas de diferentes rubros: productivas, de servicios, etc., donde fuesen los trabajadores quienes organizaran los medios para su propia subsistencia y desarrollo. Como forma de organización y producto del contexto, el cooperativismo intenta dar respuesta a las enormes transformaciones sociales, y estas transformaciones que son paulatinas van sucediendo a nivel político tras la revolución francesa y la posterior ola de revoluciones liberales en Europa, se suma además la innovación tecnológica que supone la revolución industrial, lo que produce el cambio de paradigma con la instalación del capitalismo industrial como forma de organización de las sociedades. Como bien sabemos, el capitalismo surge en Europa Occidental durante el siglo XVIII, y refiere a un modelo socioeconómico, en donde los medios de producción y distribución son de propiedad privada. Su lógica está basada en el consumo y la acumulación de activos capitales a manos de particulares dueños de los medios de producción. Este sistema pone acento en el reconocimiento de los derechos individuales, con la propiedad privada como máxima expresión de estos derechos. La organización de los Estados, como institución que resguarda y administra los derechos individuales, se transforma en un instrumento del modelo económico (capitalismo) para mantenerse y replicarse. La revolución industrial, antecedente a considerar en la génesis y desarrollo del capitalismo, pone un alto acento en la vida de la ciudad en base a la transformación demográfica que se produce cuando comienza la numerosa migración campo-ciudad (industrialización), dejando a esta última como centro de operaciones de las actividades capitalistas emergentes. De la misma forma, la acumulación excesiva de capitales en manos de los dueños de los medios de producción, y la lógica mercantil como racionalidad, conlleva problemáticas sociales importantes y decisivas: desigualdades sociales y económicas, depredación del medio ambiente y los medios naturales, precarización de las condiciones de vida de las clases trabajadoras. De modo que el capitalismo, como nuevo eje civilizatorio que se establece como “el paradigma de progreso”, deja como residuo a gran parte de la población. El capitalismo industrial, genera una forma de producción que gira en torno a la relación social que promueve la fábrica y el trabajo asalariado. De esta dinámica, surge el proletariado industrial, el cual vivencia las contradicciones de este nuevo orden económico. Durante este proceso es que emerge el cooperativismo como modelo solidario que da respuesta a las necesidades que el modelo de desarrollo parece olvidar. Este tipo de dinámicas sociales plantea la posibilidad de generar espacios de propiedad colectiva donde los trabajadores pueden responsabilizarse de su propia producción, tras la miseria a la que se habían visto sometidos. Dicho sistema se basa en fundamentos éticos como la ayuda mutua, la responsabilidad, la democracia, la igualdad, la equidad y la solidaridad (ACI, 1995). La forma en que se lleva a la práctica el modelo cooperativista es por medio de un desarrollo federativo, en sus más diversas áreas productivas y de servicios, sean estas campesinas, de agua potable, de ahorro y crédito, de servicio: salud, veraneo y comercio, transporte, cultura y trabajo. Lo importante es que una cooperativa es una organización democrática, solidaria y justa, que vincula a sus miembros de forma voluntaria y por un objetivo común (ABARCA, VERGARA, 2014). Si bien el cooperativismo no logró establecerse como una forma de organización productiva que reemplazara al sistema capitalista, el modelo cooperativo ha permanecido a través de diversas realidades

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políticas, niveles de desarrollo y características culturales, acarreando consigo importantes resultados entre los distintos sectores productivos, hasta nuestros días. (DECOOP, 2014). Actualmente, en Chile, existen 952 cooperativas activas, y más de un millón setecientos mil socios inscritos (DECOOP, 2014). Esto refleja la necesidad de que exista este tipo de organizaciones, con viabilidad y proyección como herramienta concreta de subsistencia para muchos trabajadores en diversas localidades y contextos. Por ende, las cooperativas pueden ser una alternativa económica real, entonces ¿por qué existe tan poca información respecto a ellas? ¿Qué hace que no se consolide como un modelo productivo a seguir? Una de las razones dice relación con que el modelo económico ha coaptado este medio alternativo para su beneficio y, tramposamente, ha generado formas de diversificar las cooperativas haciéndolas parte de su sistema de producción. Una imagen de ello son las grandes empresas como CAPEL, COOPEUCH, CALO, COLÚN 3, entre otras, que se establecen y son conocidas como cooperativas. Y es aquí donde cuestionamos ¿cómo pueden sostenerse, sobrevivir y, en algunos casos, ser viables e importantes económicamente en este contexto? Cuando hablamos de cooperativas, en la actualidad, existe un debate sobre las diversas expresiones que existen en este ámbito. Cooperativas que funcionan como grandes consorcios, coaptadas por el sistema, que no responden en su funcionamiento y en sus lógicas internas a los valores que inicialmente las promovían. Pues bien, si las cooperativas surgen en la revolución industrial como respuesta a la crisis, entonces sí es una alternativa viable para generar recursos, por esto, nos preguntamos críticamente ¿cómo se puede generar un contexto económico, político y social donde estas cooperativas puedan desarrollarse de mejor manera manteniendo los principios ético-políticos genuinos del cooperativismo? ¿Cómo las cooperativas pueden ser una alternativa económica viable para muchos trabajadores y trabajadoras que se ven explotados y vulnerados por el sistema laboral actual? En el capitalismo neoliberal, la competencia, la productividad y las ganancias son fundamentales; la explotación, el consumo y el individualismo son característicos del modo de vida en el cual estamos inmersos. De esta forma, las cooperativas plantean un espacio en donde existe la posibilidad de aproximar las decisiones a individuos y asociaciones locales, independientes del aparato de estado y de la centralización de las decisiones económicas (monopolios), políticas (Estado) y territoriales (centros urbanos principales); un espacio que busca la autonomía individual y social expresando las tendencias descentralizadoras y libertarias. Por ello, es necesario relevar el carácter político que pueda estar inmerso en las relaciones cooperativas, y si ello existe, resultaría fundamental para generar procesos de transformación social donde el trabajo social como disciplina debería situarse en estos contextos para conocer, investigar y generar conocimiento desde la praxis. No es simple pensar en un sistema de cooperativas cuando se encuentran inmersas dentro de la economía capitalista neoliberal, por lo que al momento de producir o generar capital entran en las lógicas del mercado, lo cual se torna inevitable. Sin embargo, el cooperativismo tiene fundamentos que lo hacen, al menos en la teoría, parecer mayormente positivo como propuesta de trabajo en el contexto actual. El cooperativismo está cimentado en siete principios fundamentales: membrecía abierta y voluntaria, control democrático de los miembros, participación económica de los miembros, autonomía e independencia, educación, formación e información, cooperación entre cooperativas, compromiso con la comunidad. Todos ellos se presentan como lógicas dicotómicas al modelo de libre mercado, y distanciados de las reglas del juego neoliberal. COOPERATIVISMO EN CHILE El desarrollo de las Cooperativas en el país tiene estrecha relación con la gestación del movimiento obrero a finales del siglo de XIX y principios del siglo XX, producto de las diversas desigualdades e injusticias sociales, de esta forma las primeras experiencias cooperativistas en Chile

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“Cooperativas” chilenas

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surgen vinculadas a la clase obrera, de manera espontánea, con una clara influencia de idearios políticos marxistas, socialista y anarquistas de finales del siglo XVIII y XIX (RADRIGÁN, DEL CAMPO, 1998). En 1853 la creación de la Sociedad de Socorros Mutuos de la Unión de Tipógrafos promovió hasta principios del Siglo XX otras sociedades mutualistas, que buscaban mejorar sus condiciones de vida y los primeros sindicatos, que reivindicaban derechos sociales y laborales. La primera organización cooperativa de la que se tiene documentación es la sociedad cooperativa de consumo, La Esmeralda, la cual nace en Valparaíso en 1887, vinculada a grupos de artesanos (RADRIGÁN, DEL CAMPO, 1998). En 1904, se funda en Santiago, la cooperativa de consumo de los trabajadores de los Ferrocarriles del Estado, siendo para algunos historiadores la primera cooperativa promovida por el Estado, a pesar de que su nacimiento se debió al impulso y la demanda de las/los trabajadoras/es. A inicios de los años veinte comienzan las primeras reformas sociales en el país, contrato de trabajo, seguro obrero, la famosa Ley de la silla, organización sindical. Así el cooperativismo ha estado presente en Chile aproximadamente hace 125 años (PÉREZ, RADRIGAN, MARTINI, 2003) Diversos autores han divido en etapas la evolución del Cooperativismo en la corta historia de nuestro país. Para este trabajo las dividiremos según el análisis que hace (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003) en las cuales se realiza un recorrido histórico donde dan cuenta de cómo los procesos políticos fueron marcado la historia de este sector productivo. 1. Etapa inicial: entre los años 1887 y 1924. Aquí se establecen que el origen del cooperativismo está asociado al movimiento obrero con la creación de la Sociedad de Socorros mutuos de la unión de tipógrafos. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). Desde la espontaneidad a la organización este recorrido inicial se vio marcado por la algidez social y las profundas desigualdades de la época. Entre 1904 y 1924 se registraron 40 sociedades cooperativas en distintos sectores: consumo, servicios, seguros, agrícola, ahorro y edificación y electrificación. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). No existía aun un marco jurídico que las amparara y regulara, pero sus fundamentos éticos y políticos estaban basados en la ayuda mutua y libre adhesión. 2. Etapa de iniciativa legal: en la década de los 20 se aprueba en Chile las primeras reformas del Estado de carácter liberal y social: contrato y seguro obrero, organización sindical, entre otras (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). Se promulga en 1924 la primera ley de Cooperativas. En 1927 se crea en departamento de Cooperativa (existente hasta nuestros días) dependiente entonces del ministerio de fomento. Los autores enmarcan esta etapa entre los años 1925 y 1963. Plantean que en esta época el cooperativismo fue impulsado desde dos aristas, una la creación de CORFO, que impulso el desarrollo industrial, esto favoreció el cooperativismo rural, con cooperativas agrícolas, pesqueras, vitivinícolas y de electrificación rural. Y por otro lado la Iglesia Católica que ayudo a fomentar el cooperativismo campesino por medio de la entrega de fundos a familias campesinas entre el 1961 y 1962, iniciativa que será un precedente de la reforma agraria. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). 3. Etapa de desarrollo desde el Estado: entre el año 1964 y 1970, las políticas reformistas de Eduardo Frei Montalva, marcaron esta etapa del cooperativismo en los años 60’ como el apogeo de su crecimiento, ya que fue motivado desde el Estado como proyecto político de desarrollo. Se crearon organismos Estatales como CORA (Corporación de la reforma agraria), INDAP (Instituto de desarrollo agropecuario), quien apoyo la creación de cooperativas campesinas y

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pesqueras. Y SERCOTEC (departamento de desarrollo cooperativo del servicio de cooperación técnica). (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). 4. Etapa de ambigüedad: entre los años 1971 y 1974, en la Unidad Popular el cooperativismo dejo de ser una cuestión prioritaria para el Estado. Si bien se reconoció el acuerdo entre la Unidad popular y la democracia cristina de no estatizar a las cooperativas que existían hasta ese momento, esta forma productiva y social chocó con el proceso de cambios estructurales al modelo socio económico que estableció el gobierno de Salvador allende. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). Según datos del Departamento de Cooperativas, Ministerio de Economía (DECOOP) en esta época igual se crearon 597 cooperativas y la Confederación General de Cooperativas de Chile (CONFECOOP) realiza el análisis que fue un periodo de unión e integración del cooperativismo en Chile, por el contexto adverso y de defensa frente a la estatización. El iniciar la dictadura militar (1973- 1989) las cooperativas fueron intervenidas en su proceso democrático interno. Y las cooperativas de orientación más popular fueron forzosamente cerradas y sufrieron represión política. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). 5. Etapa de crisis y replanteamiento: los años de la dictadura militar entre 1974 y 1989, fueron marcados por la instalación del modelo neoliberal. El cooperativismo inicia una etapa difícil dentro de su historia. La crisis provocada en los años ochenta por los primeros efectos del modelo económico implantado, provoco múltiples quiebras en el sector cooperativo. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). En esa época se disolvieron 1.258 cooperativas (DECOOP, 1992). Producto de los cambios sociales, políticos y económicos que arraigo la dictadura militar, el cooperativismo se reformula y se divide en dos vertientes, por un lado un sector que prioriza la dimensión económica, relegando la función social que caracteriza a las cooperativas, para insertarse en el libre mercado y la competencia. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003) y por otra parte la CONFECOOP. Que establecieron sus estrategias políticas en relaciones de trabajo con movimientos cooperativos internacionales y se articulan con plataformas políticas tras el retorno a la democracia. (PÉREZ, RADRIGÁN MARTINI, 2003) 6. Etapa actual: vuelta a la “democracia” hasta nuestros días. Esa etapa se caracteriza por la autonomía del sector cooperativo en relación al estado. La rigidez de la ley general de cooperativas de 1978 ha limitado los márgenes de acción de las cooperativas en el modelo neoliberal. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003) A inicios de la década de los 90, el sector cooperativo en Chile, se había reducido en más de 1.400 cooperativas, en comparación al año 1974, y a un 40% de su base social en el mismo período, y si bien los tres gobiernos de la coalición de gobierno actual, han planteado en su discurso diversas posibilidades para el desarrollo del sector cooperativo, los márgenes de maniobra en los últimos 12 años han sido bastante reducidos, en un marco general del modelo de economía de mercado, en el cual el sector cooperativo ha tenido que sobrevivir. Para analizar las relaciones entre el sector cooperativo y el Estado dice RADRIGÁN y Del CAMPO (1998) hoy en día se debe desarrollar una mirada que tome distancia y que preste atención a ciclos socio-económicos que ha vivido Chile desde la segunda mitad del Siglo XIX. Ello en miras de visualizar las posibles tendencias futuras. COOPERATIVAS DE TRABAJO Las cooperativas de trabajo tuvieron un importante impulso a fines de la década de los sesenta, a través de la creación de Servicio de Cooperación Técnica (SERCOTEC). En general fue una época de auge para el cooperativismo. Y las cooperativas de trabajo no quedaron al margen de este apogeo cooperativo. Entre 1971 y 1975, se crearon en Chile 50 cooperativas de trabajo. Pero tras la instalación del modelo neoliberal por parte de la dictadura Militar la situación se tornó muy dificultosa para este tipo

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de cooperativas, a pesar del apoyo del Instituto de la Autogestión, creado al amparo del Arzobispado de Santiago. Así, entre 1976 y 1982, se disolvieron 60 cooperativas de trabajo (DECOOP, 2014). Tras la vuelta a la democracia en 1990, el crecimiento de este sector cooperativo ha sido muy significativo, si bien no se ha manifestado un alza se puede decir que en Chile existen 68 cooperativas de trabajo en situación activa, cuando en 1990 solamente había 7 cooperativas con actividad. (DECOOP, 2014). Entre los años 1992-2001 se han creado 81 nuevas cooperativas de trabajo, especialmente artesanales, de servicios varios, y trabajo profesional. La mayoría son de tamaño pequeño más conocidas también como cooperativas de primer grado, que se caracterizan por su énfasis social (el promedio es de 23 socias/os por cooperativa) aunque hay que destacar el caso de la Cooperativa Forestal de Producción y Servicios, de la Región Metropolitana, que cuenta con 614 socias/os, un 39% del total de asociadas/os a las cooperativas de trabajo, que suma a la fecha 1576. (PÉREZ, RADRIGÁN, MARTINI, 2003). La perspectiva de este tipo de cooperativas es buena, manteniendo la tendencia de los últimos años, al ser una alternativa laboral, especialmente para grupos de jóvenes y mujeres, que no han logrado insertarse o cuestionan las actuales condiciones del mercado de trabajo en Chile, con una distribución de ingresos inequitativa, sueldos bajos y derechos laborales muchas veces restringidos. EL COOPERATIVISMO EN LA ACTUALIDAD En 1895 se crea la Alianza Cooperativa Internacional (ACI), ente máximo de representación de las cooperativas a nivel internacional que sigue en funcionamiento hasta el día de hoy, actuando como ente fomentador del sistema y representando al movimiento ante diversos organismos, siendo la organización de representación no gubernamental más grande del mundo (Del CAMPO, RADRIGÁN, 1998). En la actualidad el Marco legal que rige a las cooperativas, le precede la Ley de Cooperativas fue promulgada en 1924 (Ley N° 4.058), y desde aquella fecha ha habido sucesivas modificaciones. Las más relevante por su impacto económica fue la instaurada en dictadura militar 1978. La última fue en el año 2002 (Ley N° 19.832). (DECOOP, 2014). Actualmente se encuentra en trámite un proyecto de ley constitucional, que propone entre otros cambios, impulsar el emprendimiento de cooperativas facilitando su constitución, su gestión interna, resguardando su patrimonio, la transparencia de sus operaciones y su oportuna fiscalización, (DECOOP, 2014). Todos estos puntos eran determinantes a la hora de frenar la constitución de nuevas cooperativas ya que por exceso de burocracia todo este aparate se considera un factor de impedimento en la nueva creación de cooperativas. Sin embargo, aún se pueden dar saltos cuantitativos en el desarrollo del cooperativismo en Chile. Por ello es que se ha puesto fuerte interés en el trámite del proyecto de ley que modifica el Decreto con Fuerza de Ley N°5, más conocido como Ley General de Cooperativas. El actual gobierno, ha planteado impulsar empresas cooperativas buscando flexibilizar el proceso de constitución de cooperativas, sus mecanismos de funcionamiento y gobierno corporativo, y perfeccionar una serie de reglas que entrampan el accionar de diversos tipos de cooperativas (DECOOP, 2014). Es necesario comentar que estos nuevos cambios en la ley son pertinentes, y dan cuenta del proceso engorroso que deben vivenciar personas que deseen organizarse bajo la figura jurídica de una cooperativa, este exceso de burocracia responde también al modelo socioeconómico traducido en sus políticas públicas ya que si contrarrestamos el proceso de formación de una sociedad anónima versus el de una cooperativas son abismalmente opuestos, marcándose el de la cooperativa como un proceso lento, carísimo y engorroso, en este caso la política pública funciona como una limitante. En línea con lo anterior, en junio del 2014 se dio inicio al Consejo Consultivo Público-Privado de Desarrollo Cooperativo y de la Economía Social. Instancia liderada por la Subsecretaría de Economía, que tiene por objeto proponer políticas de fomento a la economía social y a las cooperativas y estudios aplicados que sirvan para el diseño de políticas públicas y/o programas que favorezcan el desarrollo de

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este tipo de economía, así como otras acciones que busquen mejorar el posicionamiento público de los aportes y sus proyecciones (DECOOP, 2014). RESEÑA ABARCA, S, VERGARA, L. Identidad organizacional en Cooperativas. Tesis de pre-grado. Santiago, Chile: Universidad de Chile, 2014 ALIANZA COOPERATIVA INTERNACIONAL (ACI). Principios y Valores Cooperativos. 1995. Disponible en: http://www.aciamericas.coop/Principios-y-Valores-Cooperativos-4456. Acceso el: 8 de jun.2014 KROPOTKIN, P. La ayuda mutua. Madrid: Consejo superior de investigaciones científicas, 2009 RADRIGÁN, M, DEL CAMPO, P. El sector cooperativo chileno: tradición, experiencias y proyecciones. Santiago, Chile: Confederación general de cooperativas de Chile, CONFECOOP, 1998 WILLIAMSON, G. El movimiento cooperativista campesino Chileno. Programa de educación rural PIIE. Temuco, Chile: Ediciones Universidad de la Frontera, 1994 Departamento de Cooperativas, Ministerio de Economía, DECOOP. El Cooperativismo en Chile. Unidad de estudio, Santiago de Chile: 2014. PÉREZ, E., RADRIGÁM, M., MARTINI, G. Situación actual del cooperativismo en Chile. Santiago, Chile: Red Universitaria de las Américas en estudios cooperativos y asociativismo, 2003.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 4 HISTÓRIA E FOTOGRAFIA

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A MUDANÇA VISUAL NA REVISTA SEMANAL VEJA NA DÉCADA DE 1970: A EDITORIA DE FOTOGRAFIA ............................................................................................................................................................. 189 AÇÃO CATEQUÉTICA DAS IRMÃS DE SÃO JOSÉ A PARTIR DE RETRATOS DE PRIMEIRA COMUNHÃO PORTO ALEGRE, DÉCADA DE 1940 ...................................................................................................... 197 HISTÓRIA E MEMÓRIA TRAUMÁTICA: OS ARDIS E POSSIBILIDADES DA MEMÓRIA NA RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA ATRAVÉS DA ANIMAÇÃO "VALSA COM BASHIR" .............................................................. 205 NOVO HAMBURGO VELHO: MODERNIDADE E IDENTIDADE .............................................................. 211 TORRES, UMA PRAIA DO LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL E SUAS REPRESENTAÇÕES FOTOGRÁFICAS.................................................................................................................................... 219 UM OLHAR SOBRE AS RUÍNAS: FOTOGRAFIA E IMAGEM POÉTICA .................................................... 229

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A MUDANÇA VISUAL NA REVISTA SEMANAL VEJA NA DÉCADA DE 1970: A EDITORIA DE FOTOGRAFIA Caio de Carvalho Proença 1 Durante o I Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-Americanos, tive a oportunidade de apresentar oralmente um assunto relacionado diretamente a minha pesquisa de Mestrado: a organização visual da revista Veja, ocorrida durante a segunda metade da década de 1970. Quando referencio a organização visual, abordo as questões relacionadas a mudança da equipe editorial da revista; a criação de uma editoria de fotografia; pesquisas com assinantes e as mudanças físicas nas páginas do periódico. Procuro, com este texto, abordar um assunto que será mais desenvolvido ao fim da Dissertação de Mestrado: quais mudanças visuais ocorreram na revista semanal de informação Veja durante a segunda metade da década de 1970? Adianto desde já que neste período a revista modificou-se, e, até certo ponto, atualizou-se perante um contexto da imprensa semanal internacional (quando folheamos as revistas Time, Newsweek, Der Spiegel, etc.). Houve a criação de uma editoria que seria responsável somente pelo trabalho fotográfico da revista, que antes de 1977 não existia. Isso significa que, o trabalho do fotógrafo seria afetado, o trabalho de diagramadores seria debatido e o trabalho de jornalistas das demais editorias seriam elaborados com um cuidado voltado, talvez pela primeira vez com mais atenção, para a imagem. Dos anos 1970 a 1980, a revista Veja modifica suas publicações de capa significantemente, diversas fotografias passam a incorporar a capa da revista, ao invés de ilustrações e montagens. Páginas são diagramadas em formatos de ensaios fotográficos, montando mosaicos de fotografias, algo que não acontecera antes de 1974 com tanto fôlego. Estes e outros pontos fazem parte da mudança visual ocorrida na revista, que passa a incorporar uma diagramação organizada (no espaço das páginas) e também com mais fotografias. Para compreendermos estas mudanças, precisamos primeiramente entender como era formada a equipe editorial de Veja, e quais suas modificações ao longo da década de 1970. A revista se dividia em editorias, organizando dentro de um espaço médio de 110 páginas assuntos relacionados à estas editorias. São elas: Brasil, Ambiente, Arte, Cidades, Ciência, Cinema, Literatura, Comportamento, Economia e Negócios, Educação, Entrevista, Especial, Esporte, Humor, Gente, Internacional, Música, Religião, Teatro, Televisão, Show e Vida Moderna 2. Estes assuntos podem ser agrupados em editorias maiores, que se repetem constantemente em praticamente todas as edições da revista. Dessa forma, Veja se organiza, dialogando com estes assuntos pelas suas páginas. As editorias que tratam de assuntos relacionados à sociedade, política e cultura do Brasil; àquela que aborda temas de relações internacionais e a que trata de assuntos da cultura em geral (música, teatro, literatura, cinema, show) concentram a maior quantidade de fotografias da revista. As fotografias de assuntos nacionais eram feitas por fotógrafos contratados da própria revista. De maneira geral, o uso de fotógrafos freelancers não era comum em Veja, priorizando o trabalho de fotógrafos do próprio periódico. A equipe de fotografia de Veja, em 1976, se organizava em um Chefe de fotografia (Darcy Trigo), que estaria responsável pela designação das pautas e pela distribuição das fotografias para os jornalistas textuais realizarem a seleção das imagens mais apropriadas para seu texto 3 , além de outras tarefas relacionadas à diagramação e contratos fotográficos. Os fotógrafos contratados para a revista, que formavam uma equipe (chamada pela revista como staff), eram contratados por regiões do Brasil. Por exemplo, Carlos Namba e Sergio Sade eram fotógrafos alocados em São Paulo, enquanto Walter Firmo 1

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, com apoio financeiro do CNPq. Email: [email protected] 2 Conforme percebido nas revistas dos anos 1977, 1978 e 1979. 3 Conforme aponta Sergio Sade, em entrevista realizada por Caio de Carvalho Proença em 18 de Maio de 2015. Acervo do LPHIS, PUCRS.

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era o fotógrafo responsável por pautas na cidade do Rio de Janeiro. Luis Humberto e Marcos Santilli cobriam situações de Brasília (principalmente no Congresso Nacional), Ricardo Chaves estaria contratado como fotógrafo na sucursal de Porto Alegre (alongando seu trabalho por todo o Estado e para o Uruguai em alguns casos) 4. Esta organização dava margem para a revista cobrir uma boa parte das pautas fotográficas pelo país, alocando seus fotógrafos próximo aos assuntos de cada região. Antes de 1976, praticamente nenhum fotógrafo era enviado para viagens internacionais. A prioridade era dada para jornalistas, e poucas vezes um fotógrafo foi enviado em pautas fora do Brasil. O que ocorria, antes de 1976, era a compra de imagens de Agências Internacionais (como Associated Press, Newsweek, Latin-Reuters, United Press Internacional, etc.). Por volta da segunda metade da década de 1970 5, uma pesquisa com assinantes de Veja é realizada pela Editora Abril. Esta pesquisa “visava saber quais reportagens eram mais lidas pelos assinantes”, e o resultado apontou que “àquelas com mais fotografias, com fotos grandes e que ocupavam grande parte da reportagem, chamavam mais atenção dos assinantes” 6. A partir deste momento, diversas questões começam a se modificar na equipe editorial da revista, procurando atender a demanda do resultado da pesquisa – que levaria à mais leitores e mais vendas para o periódico. Esta pesquisa, realizada pelo grupo Abril, dialoga com algumas questões apontadas pelo teórico Lorenzo Vilches (1997), ao apontar uma certa hierarquia do olhar em periódicos com fotografias impressas. Para Vilches, a paginação de periódicos é um ponto fundamental para observarmos a importância de uma fotografia, textos, legendas e manchetes. La lectura de la foto en el periódico está determinada por ciertos modelos productivos que se traducen en normas de conpaginación dominantes para una gran mayoría de diários. Estos modelos son esencialmente espaciales y tienden a distribuir las fotografías en forma uniforme entre sí variando especialmente sólo su aspecto cuantitativo. (VILCHES, 1997, p. 55). De certa forma, a mudança na distribuição de fotografias em capas e dentro do periódico modifica a sua expressividade. Um resultado inicial que podemos apontar é a diminuição de uso de ilustrações e fotomontagens em capas, em consequência do maior uso de fotografias únicas, sem cortes e edições, pela equipe da revista. O uso de ilustrações reforça a ideia da liberdade do artista em realizar caricaturas, utilizar sua liberdade do traço para realizar críticas à determinados assuntos, ou até a tornar mais sensacionalista algumas pautas da revista, dando uma série de significados para a imagem a partir do uso de cores e traços. A fotografia, por mais que não apresente uma realidade, também não é neutra e objetiva. Possui seus significados que podem levar o leitor à conclusões sobre um determinado assunto. Porém, o fato da diminuição do uso de ilustrações e fotomontagens pode nos levar à conclusões de que a revista estaria, neste período, mais preocupada com imagens que sintetizassem assuntos. Fotografias, e não ilustrações e montagens que poderiam transformar a pauta em um assunto sensacionalista. Assim, o uso da fotografia na capa do periódico aproximaria seu formato ao que já estaria sendo realizado em revistas internacionais. Colocaria a revista (dentre tantas em vendas em bancas de jornais e revistas nas ruas) em um patamar que era idealizado pelo jornalismo “investigativo” deste período: a constante busca pela verdade, pelo crível, em aspectos que procuravam ser apontados como reportagens neutras e objetivas, conforme aponta Marialva Barbosa (2007). O uso da fotografia, estaria então atrelado à presença da revista em um momento próximo do que fora fotografado, apontando inicialmente

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Estes fotógrafos não eram todos contratados deste ano. Em 1976 também faziam parte da equipe Chico Nelson, Célio Apolinário, Amilton Vieira, Clodomir Bezerra e Antonio Andrade. Ao longo da década, diversos fotógrafos entram e saem da revista. 5 Devido à falta de respostas do Grupo Abril, e a incerteza nas memorias dos fotógrafos entrevistados durante a pesquisa, uma data de realização ainda não é conhecida. 6 Conforme aponta o ex-editor de fotografia da Veja, Sergio Sade, em entrevista realizada por Caio de Carvalho Proença, 18 de Maio de 2015, acervo do LPHIS/PUCRS.

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que a revista possuía a fotografia de capa como um documento que atesta seu caráter de confiabilidade ao leitor. O uso contínuo de fotomontagens é algo que sempre prevaleceu na revista Veja, desde a sua fundação em 1968. Porém, ao longo da década de 1970, percebo que a quantidade de fotomontagens começa a perder espaço, em consonância ao de fotografias únicas, sem recortes e edições, conforme percebemos no Gráfico 1. De 1974 até 1976 temos uma superação de capas somente com fotografias. Algo bastante diferente da época em que não havia o departamento voltado para fotografia no periódico (de 1968 a 1971). Durante os anos de 1977 e 1978 retomam o status quo anterior, com um crescimento de fotomontagens e a diminuição de fotografias únicas nas capas. Estes dois anos (1977 e 1978) foram períodos onde houve a troca da equipe editorial da revista, assim como, foi neste período em que a Editoria de Fotografia foi implementada na revista. Gráfico 1: Presença de Fotomontagens e Fotografia Única nas capas da revista Veja (1970-1980)

Fonte: Resultado de pesquisa de mestrado de Caio de Carvalho Proença, PPGH/PUCRS, CNPq.

Vejo este período como um momento de adaptação e mudanças visuais no periódico. Tanto na sua diagramação, quanto nas capas 7. A partir da edição 453, maio de 1977, Sergio Sade assume o cargo de Chefe de Fotografia, e neste momento algumas mudanças começam a ocorrer. Quando o José Roberto Guzzo me procurou para oferecer o cargo de Chefe de Fotografia, eu comentei para ele que Chefe eu não queria ser. Mesmo com o grande trabalho feito pelo Darcy Trigo, eu percebia que a fotografia precisava de mais acompanhamento. Não um trabalho, apenas, de enviar revelarem filmes e mandar as fotos reveladas para as mesas dos editores. E o cargo de chefe de fotografia era mais ou menos isso, de direcionar a imagem para os editores. 8 Ao longo do ano de 1977, com Sade aceitando o cargo de Chefe de Fotografia por um ano, o trabalho do espaço dedicado aos fotógrafos seria repensado, levando em conta o que já era feito em revistas como Newsweek e Time, para se tornar Editor de Fotografia. Sendo assim, na edição 515, julho de 1978, Sade assume o cargo de Editor de Fotografia, e o cargo de Chefe é assumido por outro fotógrafo, que o auxiliaria nesta transição. Eu já sabia que existia a função de editor de fotografia em algumas revistas internacionais, como a Newsweek, a Time e a Spiegel, que eu acompanhava. Então eu disse para o [Sergio] Pompeu e para o [José Roberto] Guzzo que topava [...] Como todo o pessoal da redação, eles achavam que chefe e editor 7

Este aspecto do trabalho ainda está em desenvolvimento. Conforme aponta o ex-editor de fotografia da Veja, Sergio Sade, em entrevista realizada por Caio de Carvalho Proença, 18 de Maio de 2015, acervo do LPHIS/PUCRS. 8

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de fotografia tratava-se da mesma coisa. Eu insisti que havia uma diferença e apresentei uma proposta: queria participar das reuniões de pauta; queria que toda pauta de texto passasse pela editoria de fotografia, para que eu pudesse pautar o fotografo numa linguagem mais técnica e objetiva, de fotógrafo para fotógrafo; queria que as provas contatos viessem do laboratório fotográfico para mim antes de ir para a mesa dos editores, para eu selecionar o material que seria ampliado 9. (Grifos meus. BONI, 2011, p. 241) Portanto, realizando uma retrospectiva da seção de fotografia da revista, percebo esta construção de um espaço mais criterioso para os profissionais da imagem da revista (ver Fig. 1, 2, 3 e 4). Dos anos 1968 a 1971, apenas dois fotógrafos atuavam em Veja (Amilton Vieira e Carlos Namba). De 1971 a 1974, os fotógrafos que trabalham no periódico aumentam de 2 para 9, contando já com Darcy Trigo em cargo de Chefe de Fotografia desde meados de 1971. Após um período de estabilidade e com poucas mudanças no “departamento” fotográfico da revista, variando de 9 para 10 fotógrafos no período de 1974 a 1977, Darcy Trigo passa o cargo para Sergio Sade. Neste momento, Darcy Trigo sai da revista Veja em solidariedade à saída de Mino Carta, que estaria já na revista IstoÉ. Em 1978, Sade deixa de ser Chefe de Fotografia para tornar-se Editor de Fotografia, após a pesquisa realizada pelo grupo Abril apontar a importância da fotografia na revista. Sade trabalharia como editor com a parceria de um chefe de fotografia (cargo ainda existente neste período de mudanças) de Clodomir Bezerra.

Figura 1 (esq.): Editorial de Veja, n.122 de 1971. Cargos de fotógrafos deslocados no editorial, apenas com 2 profissionais. Figura 2 (dir.): Editoria de Veja, n.278 de 1974. Um espaço no editorial destacado apenas para os profissionais da imagem. Darcy Trigo já como Chefe de Fotografia.

Figura 3 (esq.): Editorial de Veja, n.454 de 1977. Sergio Sade assume o cargo de Chefe de Fotografia. Figura 4 (dir.): Editorial de Veja, n.515 de 1978. Sergio Sade assume o cargo de Editor de Fotografia.

Esta mudança não ocorre apenas em caráter de título, mas sim na prática da revista. Sergio Sade comenta que esta posição foi proposta para, principalmente, organizar o trabalho do fotógrafo (valorizando-o, de certa forma 10) e realizar uma seleção mais criteriosa das fotografias, que antes eram entregues aos jornalistas textuais para que escolhessem as fotos para seus textos. Sade consegue realizar algumas mudanças no trabalho do fotógrafo, como por exemplo, enviar ao fotógrafo um envelope para 9

Entrevista realizada por Paulo César Boni, publicada na revista Discursos Fotográficos, da UEL. Ver referencia BONI, 2011. 10 Neste ponto, a pesquisa ainda levará mais algum tempo para se desenvolver. Até então, com base em depoimentos de profissionais que atuaram nesta época, há alguns apontamentos de limites de atuação – mesmo com a criação da editoria de fotografia.

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descrições do trabalho feito. Isso possibilitava, entre outras coisas, o fotógrafo apontar para o editor quais fotografias dos filmes revelados poderiam ter ficado boas para publicação. Era o momento em que o fotógrafo poderia informar o editor o seu ponto de vista sobre o seu próprio trabalho, algo que não era possível (da mesma forma) anteriormente. Assim, em alguns casos, o trabalho do editor de fotografia precisava de respaldo da diretoria da revista, para melhor funcionamento. Muitas vezes vemos, na fala de fotógrafos, uma velha disputa entre jornalista textual e fotógrafos. Muitos percebem esse conflito devido ao estatuto institucional de ambas profissões (uma voltada para o âmbito acadêmico e universitário, e outra voltada para a parte técnica e prática neste período) 11. No caso de Veja, Sade comenta que, Algumas vezes o Pedrinho [Pedro Martinelli] comentava, “puxa, essa foto tem que entrar grande, Sade! “, e aí que entra o trabalho do editor. Era uma foto cheia de informação! Não era apenas uma carinha, um boneco. Era o cara fotografado na sua sala, com um monte de informação no segundo plano. Você não pode, quando tem tanta informação assim, cortar só a cara do sujeito. E aí, como já existia a pesquisa de leitura feita pela Abril, que quanto maior e mais informação as fotos possuíssem, mais as pessoas vão se interessar na leitura... Então algumas vezes na diagramação nós falávamos, “aumenta essa foto aí, coloca ela ali, etc.”. E o jornalista do texto ali do lado olhando. No fim se fazia um cálculo, “olha, sobraram 450 linhas de espaço para o texto”, e o jornalista “não, mas o texto tem 500 linhas”; “é por causa da foto”; “não, corta a foto”. Então nós falávamos, a foto não podia ser cortada, algumas nem para ser diminuídas na página. Daí era aquela briga, “não! Corta a foto!”, algumas vezes vinha o [José Roberto] Guzzo e confirmava o trabalho, “tira 50 linhas, não vai cortar essa foto não”. Cortar uma foto era bem fácil para muitos, agora, tenta tirar 50 linhas de um texto... Era um trabalhão para o jornalista reescrever o texto, etc. Por isso que eles ficavam muito bravos 12. (Grifos meus). A partir deste momento, a fotografia passava a valer mais para a editora Abril. Ao menos, no caso das publicações em Veja. A partir de 1976, quando Darcy Trigo ainda era Chefe de Fotografia, diversos fotógrafos começam a realizar pautas internacionais para Veja. Este seria o ano em que haverá uma certa valorização do trabalho do fotógrafo, assim como será aqui que as maiores mudanças na revista ocorrem. Leonid Streliaev, Zeka Araújo e Luis Humberto seriam enviados à Paris e Londres para cobrir fotograficamente a visita do Presidente-General Geisel à Europa. São feitas duas publicações, em duas edições, com fotografias coloridas e em preto-e-branco. Estas publicações, em formato de mosaico, ocupariam várias páginas da revista. Este seria o modelo que Sade seguiria para as futuras coberturas fotográficas feitas em 1978, 1979 e 1980. Chamado pelos fotógrafos como Portfolio, as publicações seriam feitas de maneira a privilegiar o trabalho fotográfico – onde o texto jornalístico viria em uma página praticamente anexa às fotografias – que tomariam relevo, chamando a atenção do leitor e assinante, conforme os resultados da pesquisa do grupo Abril. Ainda em 1976, Sergio Sade iria para o Japão cobrir a visita do Presidente-General Geisel ao país oriental. Se repetiria aqui, o modelo de Darcy Trigo, em realizar um mosaico fotográfico – em formato de ensaio – sobre a visita do presidente. Este modelo seria repetido diversas vezes, em diagramações

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Existe uma infinidade de depoimentos de jornalistas e fotógrafos sobre este tema. Procuro não me alongar sobre o assunto aqui neste texto, devido aos limites de paginação e espaço dedicado. Porém, é algo que nos leva de volta aos anos 1930 e 1940, onde a relação era de jornalistas donos de fotógrafos para realizarem suas pautas. Isso começa a se modificar a partir das revistas ilustradas, tanto brasileiras quanto às internacionais. É um momento que ocorre, de forma geral, em âmbito global. Culminará, em 1980, na formação de sindicatos e agências de fotógrafos reivindicando mais liberdades e direitos trabalhistas. Algo que pode ser lido em Louzada (2013); Costa (2012), Proença (2015) e Sousa Júnior (2015), dentre outros autores relacionados à literatura do fotojornalismo no ocidente. 12 Entrevista com Sergio Sade, realizada por Caio de Carvalho Proença em 18 de maio de 2015, transcrição por Caio de Carvalho Proença acervo do LPHIS/PPGH/PUCRS.

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bastante semelhantes. Assuntos internacionais não eram, até 1976, pautas para fotógrafos da revista, mas sim de agências internacionais. O exemplo disto é a cobertura dos conflitos no Líbano, em 1975, quando Veja recria um Portfolio apenas com fotos da Associated Press. A partir de 1976, se alongando até 1979, a equipe de Veja trataria de levar seus fotógrafos para ambientes internacionais. A pesar do formato de fotorreportagens e ensaios em estilo mosaico terem já aparecido em 1974, com a cobertura do incêndio do Edifício Joelma em São Paulo, será no intervalo dos anos 1976 a 1980 onde aparecerão a maior quantidade de fotografias deste estilo na revista. Será também o momento em que a revista irá enviar seus fotógrafos em pautas internacionais, e ampliará seus equipamentos fotográficos. Em 1979 veremos diversas fotografias feitas com lentes tele-objetivas (com objetivo de realizar zoom e desfocar o segundo plano da imagem, apontando ao leitor o foco do fotógrafo). Este equipamento era bastante caro, no período, e seria equiparado com os equipamentos utilizados pelas grandes agências internacionais e revistas de peso como Time e Newsweek. Veja também não veria problemas em investir dinheiro em grandes pautas, com uso de helicóptero, estadia para fotógrafos em hotéis, uma grande quantidade de equipamentos que eram na época de ponta, alimentação, transporte terrestre, etc. Pautas como a realizada por Ricardo Chaves, em 1979, paga pela Veja e não publicada – sobre a exploração do ouro na Amazônia. Esta pauta, seria posteriormente vendida para a revista Newsweek, e publicada na revista norte-americana. Assim, Veja teria realizado um grande investimento no trabalho de Ricardo Chaves, o levando para a Amazônia, alugando um helicóptero e pagando suas despesas, para futuramente não realizar a publicação da matéria. De forma geral, este investimento não foi um problema para a revista, e nos apresenta um pequeno exemplo da capacidade de mobilidade e investimento na fotografia. Em janeiro de 1979, Veja elogia Chaves pela sua atuação na Amazônia, após uma de suas fotografias virar capa da Newsweek, a partir da cobertura que Ricardo Chaves havia feito na Amazônia e não publicada na Veja. Ambas revistas [Veja e Newsweek] adotam a informação como razão de ser e, embora se expressem mais a partir do texto, isso jamais significou o descaso pela informação fotográfica – frequentemente mais esclarecedora e definitiva que as palavras. Esse, aliás, representa o verdadeiro sentido do bom fotojornalismo: informar e não apenas ilustrar o que está escrito. No caso de Veja, esta se torna uma tarefa possível, a cada semana, pela atuação de profissionais da melhor qualificação na equipe de repórteres fotográficos dirigida pelo editor Sergio Sade – como é o caso de Ricardo Chaves. (Editorial de VEJA, n.541, 1979). Desta forma, Veja iria avaliando o seu próprio trabalho a partir de publicações em revistas estrangeiras. Assim como, iria perceber o resultado de seus investimentos na editoria de fotografia, que se iniciam em 1976 e vão se concretizar em 1977, 1978 e 1979. Sergio Sade foi fundamental neste processo, assim como a possibilidade da Diretoria da revista, que procurava atender às demandas feitas pela editora Abril ao realizar uma pesquisa sobre as reportagens mais lidas, e apontar àquelas com mais fotografias. Ainda há bastante trabalho para ser realizado, problematizando os limites desta editoria, e as suas modificações no início da década de 1980 – que acontecem, em diversos âmbitos, para concretizar em seu fim, e retorno ao estilo de tratamento fotográfico visto nos anos 1971 e 1972. Este texto, portanto, serve como um material introdutório para este assunto. Procuro escrever sobre este passado, a partir da conversa que tive com estes fotógrafos e editores, assim como com um olhar mais crítico e voltado ao estudo da Cultura Visual, no âmbito da História. O acesso à revista Veja a partir de um acervo digital e aberto ao público possibilita, com grande alívio e facilidade, este tipo de trabalho. Portanto, o texto não se encerra com conclusões que finalizam uma história sobre fotografia, imprensa e fotojornalismo – mas sim com um espaço em aberto para gerar mais discussões e pesquisa sobre o tema. Iniciei o trabalho, e vou continuar trilhando por este caminho até conseguir saber o máximo que conseguir sobre a história da fotografia na imprensa semanal no Brasil dos anos 1970 e 1980. A produção em Veja faz parte desta história, mesmo representando apenas um olhar sobre um panorama muito maior.

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REFERÊNCIAS: BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa (Brasil 1900-2000). Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. COSTA, Helouise. BURGI, Sergio. As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre o Cruzeiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012. LOUZADA, Silvana. Prata da casa: fotógrafos e fotografia no Rio de Janeiro (1950/1960). Niterói: Editora da UFF, 2013. PROENÇA, Caio de Carvalho. FOTOJORNALISMO DE RICARDO CHAVES E OLIVIO LAMAS EM VEJA: imagens do caso do sequestro clandestino dos uruguaios em Porto Alegre (1978-1980). IN: Revista da Graduação PUCRS, EdiPUCRS, v. 8, n. 1, 2015. SOUSA JÚNIOR, Luciano Gomes. Engajamento político e prática fotográfica no Brasil dos anos 1970 e 1980. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História – UFF). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015. VILCHES, Lorenzo. Teoría de la imagen periodística. Buenos Aires: Paidós, 1997. IMAGENS: Acervo Digital Veja. . Acesso em 20 de Agosto de 2015.

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AÇÃO CATEQUÉTICA DAS IRMÃS DE SÃO JOSÉ A PARTIR DE RETRATOS DE PRIMEIRA COMUNHÃO - PORTO ALEGRE, DÉCADA DE 1940 Rita Magueta 1 Esta pesquisa tem por objetivo analisar a preparação para a primeira comunhão pelas Irmãs de São José (ISJ) a partir do Colégio Sevigné, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, na década de 1940. Para tanto, utilizo as memórias as ex-alunas da instituição, manuais de catecismo, e, principalmente as recordações fotográficas que remetem a este sacramento católico. Estes retratos são parte da coleção de imagens salvaguardadas no Memorial do Colégio Sevigné. A instituição foi local de ação educativa e evangelizadora da congregação, na cidade de Porto Alegre, desde os primeiros anos do século XX. A legitimidade da abordagem do passado a partir de imagens fotográficas, entendidas como representações deste passado, e, principalmente, a relação destas com a história da educação, motivaram este artigo que tem por intenção a valorização das fotografias como documento de pesquisa no campo da história da educação. Ao abordar fotografias para questionar o passado, o conceito de representação e cultura fotográfica são basilares para compreender os retratos analisados. A representação está ligada a uma coisa ausente, e pode ser considerada uma substituição por uma imagem. Esta imagem pode ser reconstruída na memória, a partir de um objeto ausente, com capacidade e o figurar com fidelidade. Assim, é ligada simbolicamente por um signo visível e seu referente. (CHARTIER, 2002). Esta conexão remete à relação simbólica presente neste conceito e neste sacramento dando a ver algo ausente. Deste modo, a partir do exposto acima, muitos dos símbolos utilizados nos retratos ora analisados estão ligados à tradição iconográfica cristã. Ao mesmo tempo, esta cultura visual católica é permeada pela demanda da cultura fotográfica, no que tange aos conhecimentos específicos da prática fotográfica (FRIZOT, 2012). Sendo assim, optei por apresentar o objeto empírico da pesquisa, sua relação com o sacramento da Igreja Católica, com a família e as escolhas realizadas por elas e pautadas na cultura fotográfica da época. No momento seguinte a ideia é observar alguns elementos da prática educava da congregação das Irmãs de São José (ISJ). Além de um breve contexto da congregação, manuais de catecismos e relatos de ex-alunas do Colégio Sevigné auxiliam aproximação com o objetivo proposto ao trabalho. RETRATOS E A PRIMEIRA COMUNHÃO Para a Igreja Católica, a eucaristia, ou também comunhão, relaciona o corpo e o sangue de Jesus Cristo materializados, respectivamente, em pão e em vinho (BROUARD, 2006). Os sacramentos são constituídos de práticas pessoais individuais – como nas orações, na confissão, etc. – e práticas comunitárias – como assistência da missa dominical, novenas, procissões e outras festas da Igreja – ou seja, atuam com outros atos religiosos. A eucaristia é um dos sete sacramentos considerados como necessários à manutenção da crença e da unidade eclesiástica. São eles “o batismo, a crisma, a eucaristia, a reconciliação, a unção dos enfermos, a ordem e o matrimônio correspondem a práticas religiosas que procuram dar significado às ações da Igreja” (SCHOLL; GRIMALDI, 2013, p.352). Por outro lado, para conferir graça à alma, o sacramento é considerado como rito ou sinal sagrado e sensível instituído por Jesus Cristo (BÍBLIA SAGRADA, 1964). De acordo com Philippe Ariès (2006), na França, o ritual de primeira comunhão foi introduzido por religiosos jesuítas, no século XVIII, e era organizado nos conventos e colégios. Neste período, conforme as proposições do autor, houve uma maior atenção ao recebimento da eucaristia pelas crianças, e a criação de uma comunhão mais solene. Naquela sociedade, a família tem grande importância na formação católica. Nas práticas familiares, logo sociais, existem etapas bem definidas como “o ingresso na adolescência marcado, na maioria das famílias, pela primeira comunhão [...]” (MARTIN-FUGIER, 1991, p.235). Assim, a primeira comunhão pode ser entendida como um dos grandes ritos da vida de

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Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: [email protected].

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um católico. Do mesmo modo, é uma das cerimônias mais importantes para a Igreja Católica, pois se constitui na iniciação de um dos sacramentos, a eucaristia. Enquanto momento importante, solene, a primeira comunhão era um evento a ser fotografado. Acerca da produção dessas imagens, uma publicação francesa sobre a primeira comunhão sugere que naquele país, na década de 1920, os retratos eram tirados em frente à casa, com a visita do fotógrafo e a colocação de uma lona ou cortina ao fundo da cena fotográfica. Revela ainda fotografias tiradas pelo próprio padre, no dia da primeira comunhão. Contudo, com mais frequência, a imagem não era feita exatamente no dia da cerimônia, e sim no estúdio fotográfico (MERGNAC, 2008). Entre os usos das fotografias de comunhão estava a sua oferta aos parentes distantes e aos formadores. Eram comumente entregues como regalos às catequistas, professoras, o que extrapola os limites familiares. Esta prática pode ser constatada, por exemplo, a partir da parte frontal e, mais frenquentemente, o verso das fotografias com mensagens manuscritas. Aparentemente, estas características são ainda resquícios da materialidade e função dos cartões de visita e gabinete, no século XIX. Para abordar especificamente a relação dos retratos fotográficos com o ritual da primeira comunhão, é importante compreender que “[...] a fotografia revela-se um poderoso instrumento de coesão social, pois oferece às camadas hegemônicas um repertório de imagens comuns” (FABRIS, 1991, p.44). No mesmo sentido, as imagens de primeira comunhão podem ser consideradas imagens-guia que povoam o que Ulpiano Bezerra de Meneses (2005) chamou de iconosfera entendida como “[...] o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage”, nos termos do autor. As imagens de catequizandos, em sua maioria, em poses e locais com forte carga simbólica, remetem o espectador da fotografia, de forma imediata, a um rito e a uma prática religiosa. Um aspecto surpreendente nesse conjunto de retratos que remetem aos ritos religiosos da vida privada é o fato de sua ambientação ser um simulacro do cenário sagrado. [...] nos estúdios fotográficos os figurantes reiteravam os gestos, poses e trajes, expressando uma intenção operatória de reproduzir e perenizar as imagens do culto (SCHAPOCHNIK, 1998, p.473). Na concepção do autor, a fotografia passa a um simulacro do ritual. Sobre isso, vale ressaltar as concepções de Michel Frizot (2012), ao sugerir a existência de uma cultura induzida pela fotografia, e que, nesse sentido, as imagens da primeira comunhão podem ser entendidas como um tipo de maquinaria cultural universal e globalizante para os católicos. Com base nestas premissas, podemos perceber padrões visuais nas imagens do ritual, que podem ser observados a partir da análise de séries fotográficas e a quantificação de descritores presentes nelas. Esta maquinaria cultural católica pode ser percebida nas roupas e nos acessórios com forte carga simbólica ao catolicismo, representadas em retratos de primeira comunhão em diferentes países. As imagens analisadas para este artigo somam 14 retratos, tirados em estúdio e em local não identificado. Os estúdios, escolhidos pelas famílias, na década de 1940, ainda tinham importância cultural e econômica. As imagens analisadas foram produzidas pelos estúdios da cidade de Porto alegre, a saber: Foto Elétrica, Foto Brasil, Vitória e Azevedo e Dutra. A relação com a prática educativa católica pode ser percebida pelos aspectos simbólicos ditos acima, mas também pelos cenários e poses dos catequizandos. CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS DE SÃO JOSÉ E SUA AÇÃO CATEQUÉTICA EM PORTO ALEGRE As ações da Congregação das Irmãs de São José estão disseminadas globalmente, em diferentes cidades e países. Surgem em meados do século XVII, na cidade de Le Puy, na França, contudo, a data precisa é desconhecida (BYRNE, 1986). Outra fonte indica o ano de 1816 como a baliza temporal de formação de uma congregação autônoma, as Irmãs de São José da cidade de Chambéry, também na França (ISJ, s.d.). A rigor, eram mulheres desejosas em seguir os ensinamentos de Jesus Cristo, encorajadas a iniciar um tipo de vida religiosa fora do monastério com ações junto ao povo, incomum

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aos padrões daquele contexto. As ações ligadas à educação, através de escolas e pensionatos, e à saúde, principalmente junto aos mais pobres, são apresentadas desde o início do percurso da Congregação (ISJ, s.d.). Aponta Rebecca Rogers inúmeros aspectos sobre a internacionalização da congregação, bem como na educação das elites locais com base na cultura francesa. Em suas palavras, entende que “as congregações, de fato trazem consigo um modelo de ensino que vai além das aulas de religião, sobretudo quando dirigido às elites” (ROGERS, 2014, p.60). De forma geral, o Brasil foi um dos lugares preferidos das congregações, especialmente francófonas, sobretudo na virada para o século XX. As ISJ chegam no país em 1858, e fundam em Itu, São Paulo, o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio. No Rio Grande do Sul se estabelecem no ano de 1898, na cidade de Garibaldi. Na cidade de Porto Alegre o trabalho da congregação inicia em 1904, a partir do Colégio Sevigné. Situado no centro da cidade, o Colégio Sevigné 2 inicia suas atividades em 1º de setembro de 1900, como iniciativa da família Courteilh, oriunda da França. O nome da instituição está ligado à escritora francesa do século XVII, conhecida pela alcunha de Madame Sevigné, homenagem realizada pela criadora da instituição (WERLE, 2005, 2008). Há um imediato reconhecimento do estabelecimento na sociedade porto-alegrense 3, mas também do interior do Estado, e o crescente número de alunas leva Emmelline Courteilh a solicitar auxílio das ISJ. A vinda das missionárias francesas à instituição de ensino ocorre no ano de 1904, porém, dois anos após, em 1906, passam definitivamente à direção da escola após o retorno do casal Courteilh à França. O local passa, então, a centro de irradiação apostólica e cultural, denominado assim no resgate histórico organizado pela congregação no Estado (ISJ, s.d.). As religiosas Madre Joseph Irénée Facemaz, Irmãs Maria Alice Rellier, Maria Angélica Galvani, Brigida Zancanaro e Blandina Gründ partem de Garibaldi no dia 26 de janeiro de 1904 e chegam em 29 do mesmo mês para formar a comunidade na capital. Assumem sua tarefa oito dias após sua vinda e recebem as alunas do Colégio no retorno das férias (ISJ, s.d.). Acerca das relações culturais travadas no âmago da instituição, entre religiosas e alunas, no contexto das primeiras décadas de funcionamento da instituição, a língua francesa estava presente no nome da escola, em seus fundadores, e também junto às religiosas. Isso porque, das sete convidadas em 1904, cinco delas tinham origem francesa. Nesse período, ofereciam um modelo de educação total, com internato, semi-internato e externato, bem como instrução religiosa. Concomitantemente, ofereciam “[...] o curso de primeiras letras e o de preparação para os exames de professor que eram prestados na Escola Normal” (WERLE, 2005, p.623). Nos relatos de ex-alunas, a transmissão da cultura e a formação moral e religiosa são constantemente destacadas (HISTÓRIAS DO..., 2000). A respeito da vida religiosa na instituição, na década de 1930, uma das principais transformações ocorreu no prédio do colégio. Sob orientação da Madre Louise Gabrielle e do construtor Dr. Antonio Mascarello, houve a construção da Capela de estilo neogótico. A partir de 25 de agosto de 1938, passou a ser o lugar de recolhimento, de oração e das celebrações da Congregação (WERLE, 2002), mas também da comunidade do centro da cidade. PREPARAÇÃO PARA A PRIMEIRA COMUNHÃO A formação religiosa católica se inicia em casa, junto à família, em diferentes momentos através do exemplo, ou seja, ao ver adultos nas práticas religiosas privadas, em imagens e na própria liturgia. A 2

O Colégio Sevigné ocupou o prédio do Antigo Ateneu porto-alegrense. Fundado por “[...] Emmeline Courteilh, membro da Academia de Ensino da França, esposa do agente consular da França em Porto Alegre, Sr. Octave Courteilh” (WERLE, 2002, cd ROOM). 3 Para entender esse processo rápido de aceitação, pode-se relacionar as afirmações de Santos (1997) em que há, no final do século XIX e início do Século XX, principalmente após a abolição da escravidão e o advento da República, uma transformação não somente na urbe, mas na própria mentalidade de seus moradores. Assim, os porto-alegrenses, seus lugares e indivíduos, necessitavam ser classificados e reconhecidos como aqueles que compartilhassem os padrões europeus nos planos cultural e social.

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formação para a primeira comunhão, porém, é um momento em que a criança em idade escolar é preparada sistematicamente para o sacramento da eucaristia, através do estudo nos livros de catecismo e outros materiais e também na frequência das aulas de catequese. Na década de 1940, a preparação para receber o corpo simbólico de Jesus Cristo era feita em escolas católicas e paróquias de forma oral, com base na memorização do conteúdo do livro de catecismo. De acordo com Evelyn Orlando (2013, p.162), o catecismo é uma classe de impresso utilizada pela Igreja Católica em suas práticas educativas, “[...] é um compêndio da doutrina da Igreja que expressa, de modo essencial, as verdades fundamentais da fé, necessárias à salvação”. Os catecismos possuem “[...] destinação pedagógica para a propagação e conservação da fé, da doutrina da Igreja” (ORLANDO, 2008, p.1), nas palavras da autora. Dentro das práticas de ensino católicas, “o texto de catecismo tem a função de sistematizar a ação catequética pelo ensino, adequando a metodologia utilizada à idade e às circunstâncias em que será aplicado” (ORLANDO, 2013, p.162). A catequese, lembra Orlando (2013, p. 162), é a “ação eclesial que conduz, tanto os indivíduos, quanto as comunidades, à maturidade da fé”. A catequista, neste sentido, tem o papel de explicar o livro às crianças. Os preceitos das Irmãs de São José aparecem na memória de ex-alunas e ex-funcionárias, e, logicamente, se mostram ligados à Igreja Católica. Ao reunir informações para compor os ensinamentos da preparação para a primeira comunhão, é justo ressaltar que a maioria desses ensinamentos era organizada e permitida pela Arquidiocese Metropolitana de Porto Alegre e destinada às escolas e paróquias, o que, de certa forma, controlava e unificava o conteúdo dos catecismos.

O caráter oral desta prática educativa, aliado a inexistência de registros no acervo permanente da instituição, deixa uma lacuna considerável a respeito da ação catequética das ISJ no Colégio Sevigné. De outro modo, na publicação 4 da comunidade escolar em comemoração ao centenário do Colégio Sevigné (HISTÓRIAS DO ..., 2000), as alunas narram suas lembranças e experiências a respeito da instituição. Dessas memórias, interessa-me saber a respeito da prática da catequese e primeira eucaristia. Baseada nessas narrativas para observar o passado, atento às acepções de Arlette Farge (2011) a respeito da disciplina histórica, para quem o testemunho é uma forma de reconstrução da memória e não simples reflexo do real (FARGE, 2011, p.22). Deste modo, estas narrativas nos aproximam do passado e sugerem possibilidades de interpretação. O contato com ex-alunas e com irmãs que no Colégio Sevigné trabalhavam nos anos 1940 oportunizou algumas informações sobre a prática religiosa, bem como sobre a cerimônia da primeira comunhão. Indicam que as aulas de catecismo eram denominadas de “preparação para a primeira comunhão” (informação verbal) 5 . Eram ministradas por irmãs do colégio no turno inverso às aulas regulares, ou seja, se o catequizando frequentasse aula regular pela manhã, assistiria a preparação à tarde, e vice e versa. No livro de memórias da comunidade das ISJ no Colégio Sevigné, espécie de relatório manuscrito da congregação, durante a década de 1940 e 1950, a preparação das crianças para a primeira comunhão era realizada pela Irmã Maria da Eucaristia, Irmã Vitorina 6, e pela Irmã Noely, que, além de alfabetizadora, atuava na preparação das crianças para a primeira comunhão (HISTÓRIAS DO ..., 2000). De acordo com este relatório, a Irmã Noely 7 entra para o Colégio em 1939 e ministra aulas para o pré-primário. Em uma das fotografias objeto da pesquisa, Cecília Venafre presenteia esta religiosa com um retrato, identificado através da dedicatória, em 1946: “Ofereço a Irmã Noeli como lembrança da minha primeira comunhão”.

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Refiro-me ao livro Histórias do Sevigné Centenário. Em conversa sobre a catequese, uma ex-aluna informou que chamavam de preparação para a primeira comunhão. 6 Verônica Miola era o nome de batismo da Irmã Vitorina, admitida ao noviciado em Garibaldi em 1929 (ISJ, s.d.). 7 Não foi possível encontrar mais referências sobre esta religiosa. Em pesquisa no Boletim Eclesiástico Unitas (1945, p. 48), existe uma relação nominal das catequistas diplomadas em dezembro de 1944. De acordo com a publicação, as catequistas deveriam prestar colaboração no ensino religioso, orientadas pelos párocos das zonas em que residiam. Como consequência, as páginas 50 a 51 trazem uma lista de nomes e endereços das catequistas do Colégio Sevigné. 5

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Sobre as aulas de preparação, uma aluna destaca que: Quando íamos fazer a primeira comunhão, minha irmã e eu, que ainda não frequentávamos a escola, lá passamos a conviver, durante o período de aulas de catequese. Esperávamos na aula da Irmã Noely e éramos aceitas como se já fizéssemos parte daquele colégio. E tive o privilégio de fazer a Primeira Comunhão na mais linda capela desta cidade, no querido Sevigné. (HISTÓRIAS DO ..., 2000, p.117). Esta narrativa indica, entre outros aspectos, a admiração com a escola, mas também que os ensinamentos eram destinados à comunidade em geral, ou seja, não somente às alunas da instituição. Já a Irmã Vitorina [2011] é destinada ao Sevigné em 1935. Segundo relato de uma religiosa da instituição, esta irmã não tinha uma classe em especial, era exclusivamente formadora dos catequizandos. Outra informação oportunizada por conversas com as ex-alunas está relacionada aos meninos na preparação e na cerimônia da primeira eucaristia. Vedada a participação de meninos nas atividades da instituição – pois, segundo os relatos, estes não eram autorizados pelas Madres superioras a entrarem no Colégio – as imagens fotográficas pertencentes ao acervo da escola, por outro lado, evidenciam sua participação. Aberta à comunidade em suas liturgias, a capela do Colégio Sevigné, logicamente, permitia a presença de fiéis do sexo masculino. Uma das possibilidades para explicar a presença de meninos na preparação para a comunhão e na cerimônia, contudo, deve estar relacionada às relações desses meninos com as alunas do Colégio, irmãos, primos, entre outras probabilidades. Isto porque, até os anos 1970, o Colégio destinou-se à educação feminina. Antes desta época, os meninos eram admitidos apenas no jardim de infância e na preparação para o primário. Como dito, inexistem registros sobre a cerimônia de primeira comunhão, no entanto, a quantificação de meninos e de meninas na cerimônia pode ser empreendida pelas imagens dos catequizandos enfileirados. Isto porque a primeira comunhão está relacionada ao sacramento da eucaristia, ou seja, trata-se da iniciação de um sacramento cotidiano. Assim, diferentemente do batismo e do casamento, por exemplo, que ocorrem apenas uma vez na vida do católico, a primeira comunhão não costumava ser registrada, já que o católico participa com frequência. Já sobre o período de realização da cerimônia na Capela do Colégio Sevigné, existem diversificadas datas. Em um relato no livro de comemoração do Sevigné, no trecho abaixo, uma religiosa da própria congregação relata suas memórias da década de 1930: No mês de outubro, mês do Rosário, era a Primeira Eucaristia. Quanta solicitude e carinho das catequistas na preparação daquelas crianças ... Chegado o dia, eu me esmerava em ornamentar os altares, especialmente o altar do Santíssimo, para que a lavoura das flores fosse, ao menos, um pequeno reflexo da inocência imaculada que Jesus ia encontrar naqueles corações! (HISTÓRIAS DO ..., 2000, p.196) Como vimos, neste contexto, a capela do Colégio Sevigné estava ligada à Igreja do Rosário. Deste modo, a conveniência da realização da cerimônia no mês de devoção à Nossa Senhora do Rosário, no caso, o mês de outubro. Contudo, em conversa com outra ex-aluna munida de sua lembrança de primeira eucaristia, em 1943, a data do rito é deslocada para agosto. Já na publicação das alunas da escola, periódico Idealista (1952, p.11) do mês de setembro a novembro, afirma que no dia 19 de outubro daquele ano foi realizada uma “bela e comovente cerimônia de 1º comunhão de 68 crianças do Sevigné”. A princípio, esta situação nos leva a inferir que não havia uma única época para a realização da cerimônia. Sobre o ritual na capela, uma ex-aluna enumera a primeira comunhão como um dos momentos felizes de sua participação na história do Colégio (HISTÓRIAS DO ..., 2000, p. 65). Outra ex-aluna evoca uma figura marcante em suas lembranças escolares, a lembrança da madre superiora na cerimônia de primeira comunhão, como no exemplo abaixo:

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Recordo com respeito a postura e o sorriso de MèreSainte Odile: foi quem tocou órgão durante a Primeira Comunhão de 1946. [...] Irmã Maria da Eucaristia foi a catequista que nos preparou para Primeira Visita de Jesus, orvalhando a plantinha de fé trazida da família (HISTÓRIAS DO ..., 2000, p.171). Já sobre a relação do Colégio com a Catedral metropolitana, uma ex-aluna indica que: Mas já não serão somente os corredores do Colégio a escutar os passos da Irmã Vitoriana. Da capela até a Catedral, pelas calçadas da Duque de Caxias, ei-la que vai, apressada, encontrar-se com mais outros pequeninos, na preparação para a Primeira Eucaristia: os chamados Anjinhos de Pio X. Eram os menores de todos, crianças com quatro e cinco anos, que o Papa autorizava a receberem a comunhão antes da idade até então estabelecida (HISTÓRIAS DO ..., 2000, p.219). Ao contrário do que esta narrativa nos leva a pensar, por sua proximidade geográfica, a capela do Colégio, naquela época, não estava ligada à Catedral, visto que esta não era considerada uma paróquia, o que a impedia de ter uma capela sob sua responsabilidade. Esta lembrança indica também que as Irmãs eram responsáveis pela formação dos catequizandos e, deste modo, atendiam também à comunidade do centro da cidade. Por último, evidencia a motivação exclusiva da Irmã Vitorina na preparação à primeira comunhão. Por fim, um momento marcante é preservado na fala das catequizandas, relacionado ao pósevento. Em jejum para receber o Corpo Cristo, os catequizandos e suas famílias, após a cerimônia, eram convidados para um café da manhã na escola, no refeitório utilizado pelas religiosas. Ali confraternizavam, trocavam lembranças, conhecidas como santinhos, com nome, local e data da cerimônia. CONCLUSÃO A fotografia, enquanto um tipo de imagem é considerada como uma representação de um tempo e de um espaço. Deste modo, o ato fotográfico, como uma fatia, como um corte de tempo e de espaço, é um verdadeiro golpe que recai sobre a duração e a extensão da fotografia. Os retratos de primeira comunhão, tanto em estúdio fotográficos como em residências e na própria igreja, estão carregados de significados. Cenários, roupas e acessórios podem ser percebidos dentro de uma cena, uma teatralização, uma encenação de um sacramento. Ao abordar fotografias de primeira comunhão do Colégio Sevigné algumas perguntas surgem: Como era a prática educativa católica para a primeira comunhão? Quem podia fazer catequese no Colégio Sevigné? Quem eram as formadoras? Como as imagens foram parar no colégio Sevigné? Infelizmente, não há informação sobre a duração da preparação da primeira comunhão, ou mesmo dados sobre os participantes. Os catecismos, por outro lado, evidenciam os anseios da Igreja Católica e nos possibilitam observar preceitos organizados pela Arquidiocese Metropolitana, e, certamente, aplicados na preparação da primeira comunhão pelas ISJ a partir do Colégio Sevigné. Assim, estes livros, acabam por regular ensinamentos. No Brasil, poucas pesquisas abarcam práticas educativas e o ritual da primeira comunhão católica. Deste modo, diversas associações com a produção historiográfica francesa sobre o rito foram promovidas. Este fato, evidencia, entre outros aspectos, a necessidade de pesquisas nesta temática, no qual esta pesquisa busca minimamente contribuir. REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução por Dora Flaksman. 2 ed., Rio de Janeiro: LTC, 2006. BÍBLIA Sagrada. Barsa: Rio de Janeiro, 1964. BROUARD, Maurice (Org.). Eucharistia: enciclopédia da eucaristia. Tradução por Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 2006.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA TRAUMÁTICA: OS ARDIS E POSSIBILIDADES DA MEMÓRIA NA RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA ATRAVÉS DA ANIMAÇÃO "VALSA COM BASHIR" Belisa Cassel Ribeiro 1 Priscilla Almaleh 2 Pensar a história a partir do cinema caracteriza um enfoque a partir da História Social e vem crescendo consideravelmente. O cinema, a partir de revisões historiográficas cresce o interesse do público em geral para a história, para tanto, é imprescindível tomar cuidados e reflexões, como: para que este filme foi criado? Para quem? Tem caráter histórico ou apenas ou apenas entretenimento? Enfim, essas são algumas problemáticas cinematográficas que fazem parte do desafio do historiador que usa o cinema como mediador na história, contudo, essas questões não serão respondidas neste artigo, visto que o intuito principal é trabalhar a memória em um determinado filme. Para este artigo o cinema é visto como uma representação e não nos interessa seu caráter histórico. Ele, portanto nos auxilia na memória e representação dos acontecimentos, com o poder de denunciar, relembrar e criticar, “além de ser um testemunho das formas de agir, pensar e sentir de uma sociedade”, conforme complementa Valim (2012). Contudo, o documentário animação “Valsa com Bashir” de 2008, também existente no formato de quadrinhos, de Ari Folman, coloca de forma sensível, envolvente e impressionante a busca por lembranças esquecidas há aproximadamente duas décadas a partir de relatos de terceiros. O recorte se dá dentro da Guerra do Líbano de 1982, mas a busca envolve principalmente o episódio fatídico do massacre de Sabra e Chatila entre dezesseis e dezoito de setembro de 1982, em que falanges cristãs adentram os campos de refugiados palestinos exterminando homens, mulheres e crianças absolutamente indefesos e rendidos. Neste contexto, as recordações do autor são reflexões, já no alto dos seus quarenta anos, de seu eu-passado com pouco mais de dezoito anos, soldado, vivendo o conflito como se estivesse em um filme que de tempos em tempos retorna para casa, preocupando-se mais com seu relacionamento com a namorada do que com a guerra em si. De forma curiosa, as memórias desse período estão mais do que intocadas, mas sim esquecidas e bloqueadas para Folman. A “presença” do esquecimento se pronuncia bastante tempo depois, quando comparando sua falta de memória com o excesso de detalhes que seus amigos (também soldados na época) tem do mesmo episódio. O estranhamento desacomoda o protagonista que passa a coletar dados a partir dos relatos de terceiros e até mesmo ajuda psicológica, contrapondo não somente seu esquecimento, mas também suas memórias que não condizem com os fatos ocorridos. A memória pode trazer grandes benefícios para a história, quanto pode “pregar peças” nos historiadores, isto porque a memória serve, em sua complexidade, para torna-se cada vez mais visível nos retratos brancos e pretos da história, ou seja, a memória traz cor à humanidade. Com isto a memória auxilia a história no sentido de preencher lacunas antes esquecidas ou sequer sabidas. Contudo, ela pode vir a ser esquecida. Esse esquecimento pode surgir por diversos motivos; o primeiro já descrito por Pollack (1992) como um esforço para diminuir ou negar o sentimento de culpa; o segundo motivo seria a memória como uma peça de trauma na vida das pessoas, ou seja, essa memória pode corroer e atormentar, como um fantasma as pessoas, portanto, para a autopreservação humana, ela é esquecida. Ambas as memórias são traumáticas. É neste ponto, no esmiuçar das intenções e das reflexões, que “Valsa com Bashir” nos possibilita o estudo e a flexibilização do conceito de memória em relação a eventos de natureza chocante e devastadora tanto no sentido político quanto psicológico. Entendemos que existe relação direta entre sistemas e eventos políticos de cunho repressivo e a memória traumática (muitas vezes deturpada) como guerras e ditaduras em geral, mas também entendemos que a memória mantém vinculo estreito e muitas 1

Graduada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Email: [email protected] 2 Graduada e mestranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

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vezes indissociável a questão patrimonial. Levantamos esse ponto a partir da premissa de Jay Winter (2006) e de outros tantos que trazem a discussão a atual e crescente produção sobre eventos a partir de relatos daqueles que viveram o referido, ou seja, a partir da memória. Na América Latina isso é ponto indiscutível tendo em vista as ditaduras que varreram os países na segunda metade do século XX e a produção cultural que surge com e desde o início das redemocratizações. Portanto, esse artigo se propõe a discussão da memória, mais especificamente daquela que se configura como trauma, em relação à “Valsa com Bashir” e de que forma podemos entender esta animação dentro de um contexto de memória e patrimônio. Como podemos usar a memória a favor da história? SOBRE MEMÓRIA A memória se coloca como um conceito de grande circulação no senso comum e com grandes desdobramentos no meio acadêmico. Dentro da história a ideia da memória ganha espaço principalmente ao longo do século XX, no entanto o uso como fonte ainda se mostra um desafio a ser enfrentado com uma série de precauções e cuidados. Como utilizar uma memória, possivelmente oriunda de um grande trauma na vida pessoal? Essa pergunta corresponde bem à utilização da memória, já que em sua maioria a memória é utilizada na história a partir de ocasiões traumáticas, de guerras e ditaduras. A subjetividade em que está inserida é meio e parte da mesma, fazendo com que o historiador que se propõe a analise adentre em um universo que não o pertence, mas que apresenta uma série de semelhanças com o seu universo particular ou de outrem. Essas teias de semelhanças na verdade se traduzem no conceito de verossimilhança, ou seja, a memória não é a verdade em si, mas a aproximação de um fato ocorrido a partir das lentes daquele que testemunhou o ocorrido. Se entendermos a memória como lentes de óculos, podemos pensar nas singularidades que compõe essa lente. Isso quer dizer que a memória do indivíduo se coloca a partir de seus códigos, seus valores, seus conhecimentos, além de suas percepções de vida em sociedade e suas visões de mundo. Um objeto desconhecido ao sujeito é decodificado para este como um objeto novo, mas semelhante a um objeto que já seja do seu conhecimento. Um novo sabor lembra um ou dois outros sabores já conhecidos misturados, por exemplo. Além dos (de)codificadores culturais, a memória ainda é criada e esquecida, fazendo com que se altere de um ser para outro. Os detalhes existentes (ou não) alteram a percepção da mensagem, pois faltam ou acrescentam informações. Sendo dúbia e muitas vezes confusa, a memória é absolutamente relativa. O relativismo da memória é o ponto que a torna fonte difícil de análise e a caracteriza como pouco confiável, se amparando mais na imaginação cheia de intenções do sujeito do que na concretude de papeis produzidos por sujeitos cheios de intenções. De qualquer forma, como toda e qualquer fonte, a memória também exige que sua análise se promova entre outras fontes que complementem e aproximem o que está sendo abordado a partir do relato em si, além da cruza de conceitos para trabalharmos o evento. De acordo com a historiografia, a memória pode ser utilizada, contudo, deve vir precedendo com uma fonte documental. Porém, nem sempre as fontes existem ou estão ao alcance do historiador, como é o caso das ditaduras e guerras, onde há interesse de um grupo em esconder e/ou manipular a visão sobre tal acontecimento. Para estes casos muito se é utilizado à memória coletiva. De acordo com Hallbwachs (1990) é possível dizer que há apenas uma história e distintas memórias sobre um acontecimento. Que a memória é passível de interpretações e duvidosa já sabemos, o que nos falta é fazer uma história qualitativa e quantitativa em cima dessas memórias coletivas, utilizar as várias memórias e identificar os pontos atrativos e dissociativos. Além disto, é imprescindível o contato com o que a historiografia tem a nos revelar sobre o assunto no qual estamos interessados. Além de prestigiar nossos pares, podemos obter informações preciosas e imprescindíveis. Há um grupo de historiadores que não defendem o uso da memória na história, pois acreditam como Hartog (1990, apud MOTTA, 2012, p.25):

Assim, é mais do que razoável admitir que a memória e a história não são sinônimos, pois, diferentemente da primeira, a história aposta na descontinuidade, visto que ela é, ao mesmo tempo, registro,

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distanciamento, problematização, crítica e reflexão; ela é manejada, reconstruída a partir de outros interesses e em direção diversa, e, para se opor à memória, a história tem ainda o objetivo de denunciar e investigar os elementos que foram sublimados ou mesmo ignorados pela memória.

Para Hartog (1990), a memória é alimentada por lembranças vagas, contraditórias e sem críticas ou reflexões. Contudo, não concordamos com essa lógica, pois acreditamos que a memória pode ser questionada e servir com uma fonte de denúncia e investigação, como acontece nos casos da ditadura e de guerras. Porém, é sempre válido a verificação da veracidade, neste caso, fazendo um mapeamento de memórias ou utilizando outras fontes em cruzamento. Os estudos de Michel Pollack sobre as memórias do nazismo são fundamentais para compreender a memória com um novo enfoque, aceitando a importância dos testemunhos e depoimentos, reconhecendo sua subjetividade, além de que o autor dá um enfoque especial a falta de veracidade dos depoimentos, vendo estes como uma fonte adicional de pesquisa e não uma desqualificação. A questão mais pertinente a historiografia, além da forma como a memória funciona, se dá em torno de como e a partir do que a dita memória se origina. Assim, se pensarmos a ideia da memória como uma construção, analisando os detalhes das estruturas percebemos a intenção que se teve ao se armazenar a informação ou ainda a distribuir de acordo com sua visão. A acumulação de memórias de um grupo, contadas de forma individual, compreende uma grande história de um todo bastante multifacetado. Conseguimos a partir disso cruzar as informações, verificar os pontos reincidentes e ter uma ideia, uma expectativa ou ainda mais, conseguimos obter os códigos culturais que são possivelmente recorrentes ao grupo, fala, período ou evento histórico que se esteja analisando. Da mesma forma como a imagem, a memória não deve se restringir a “ilustração dos fatos”. Um relato ou testemunho não deve se tornar prova cabal de um evento, legitimador ou assegurador de algum tipo de verdade absoluta. Sua configuração é complexa e enriquecedora ao trabalho do historiador, pois as reincidências citadas anteriormente e os traços que escapam a memória como a seleção do que é lembrado, questões controversas e até mesmo mentiras, ou seja, todos os pontos dúbios são rastros de mentalidade do período analisado. Assim sendo, a cruza de fontes e de conceitos não se dá em função de pouca credibilidade na fonte ou qualquer questão desse tipo, mas sim em função do trabalho do historiador e a forma como pesquisas passaram a se refletir como prática. Primeiramente com a cruza de áreas, depois de fontes e atualmente comungando e se interligando cada vez mais a novas possibilidades, a história, como a memória, se ressignifica com a prática e necessita cada vez mais ser conectada a outros campos para ser entendida e desmistificada. Além disto, a memória é utilizada na construção de identidades de grupos, onde os elementos pertencentes a estes grupos são alimentados constantemente com a história oral, passadas de geração a geração, além de folclores que dão vida a determinadas regiões e são fontes imensuráveis de turismo. SOBRE MEMÓRIA TRAUMÁTICA É no ponto em que se passa a entender a memória como uma fonte de pesquisa que passamos a elaborar metodologias, mas antes se faz necessário entender de quem é essa memória e em que espaço ela foi produzida. No caso de Ari Folman em “Valsa com Bashir” a memória é um fragmento de um tempo passado há algumas décadas e mais do que isso, sua memória se coloca como uma incógnita, um espaço vazio sem causa aparente. Além do bloqueio, Folman passa a ter um sonho repetitivo que num primeiro momento é entendido como uma lembrança que há muito não era acessada, mas que contrapondo com outras fontes (no caso dele, outros relatos) se revela como uma memória criada substituindo o espaço em branco do episódio. O sonho em que se vê numa praia com outros soldados à noite assistindo fogos de artifício estourando no céu da cidade é uma memória absolutamente criada. Em contato com outros relatos sua memória volta e Folman se recorda que esteve em cima das construções mais altas da cidade, seguindo

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ordens como outros soldados, soltando sinalizadores. Os detalhes do massacre de Chatila e Sabra em 1982 durante a Guerra do Líbano são complexos, mas ao anoitecer foram sinalizadores que iluminavam a cidade para os grupos de extermínio terem acesso à população. Portanto, a memória de Folman não se coloca simplesmente como uma memória habitual, mas sim com o caráter traumático: há um esquecimento e até mesmo a substituição de uma memória por outra em função de um período de pressão extrema, por culpa ou até mesmo ressentimento. A memória além de ser construída na lembrança, também pode ser construída pelo esquecimento, Motta (2012), explica: Em outras palavras, o processo de construção de memórias implica escolhas entre os fatos do passado que, por alguma razão, determinado grupo considera que devem ser lembrados e rememorados; e, ao fazer escolhas, o grupo também sublima, oculta ou esquece outros fatos. (MOTTA, 2012, p. 27.) O conceito de memória traumática se configura já depois da Primeira Guerra Mundial, onde se percebe um desgaste mental absurdo dos soldados. No entanto, como Winter (2006) pontua, esses desgastes não são mero acaso ou privilégio dos soldados, a classificação da memória traumática se estende a todos os personagens envolvidos em episódios dessa categoria, mas se populariza principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Na década de 80 é que se passa a usar o termo dentro da psiquiatria “post traumatic stress disorder”. Talvez não por acaso a data da aceitação do trauma como um caso clínico a ser tratado na década de 80 coincida com o fim da guerra no Vietnã, o que valida o direito à cuidados médicos e pensões aos veteranos. Também “naturalizou” o status dos veteranos do Vietnã. As cicatrizes mentais dos veteranos do Vietnã, uma vez legitimadas, podiam ser tratadas ao lado de outras vítimas da violência urbana, sexual, ou de trauma familiar. Em todos esses casos, a violência parecia deixar uma marca, que hoje chamamos de “memória traumática”. (WINTER, 2006, p. 85) A memória traumática é bastante habitual entre indivíduos que passam por pressão psicológica constante seja a nível de estresse ou outras causas mais danosas como tortura física e/ou psicológica. Pensando novamente dentro da historiografia, a memória traumática aparece com frequência em diários, registros pessoais e processos judiciais. Os espaços de produção dessas memórias são muitos e variados como processos ditatoriais, guerras, guerrilhas, etc. (e todos seguimentos que derivam dos mecanismos opressores desde torturas, interrogatórios, censura, medo, inseguridade constante, violência, etc.). Como exemplos que partem de relatos de memórias traumáticas temos na América Latina obras como “Brasil Nunca Mais” de 1985, “Batismo de Sangue” de Frei Betto adaptado para o cinema sob o mesmo nome em 2007, “O Que É Isso, Companheiro? ” de Fernando Gabeira também adaptado para o cinema em 1997. A peça do chileno Ariel Dorfman de 1990 “A Morte e a Donzela” adaptada para o cinema em 1994 não é exemplo de um relato direto, mas de memórias genéricas individuais. Ou seja, se vê reproduzido no cinema de forma ficcional atos que estiveram presentes durante os governos ditatoriais, mas não naquele personagem como figura representativa de uma questão autobiográfica ou inspirada nas memórias de uma pessoa em especial. Paulina Salas, a personagem principal da peça de Dorfman, é perseguida pelas lembranças das torturas a que foi submetida durante seu interrogatório se tornando uma pessoa paranoica e inquieta com a possibilidade de um novo golpe. Sua dor, seu medo e sua voz não são somente pelas torturas, mas pela reivindicação daqueles que não morreram, dos presos políticos silenciados. “Batismo de Sangue” parte de relatos reais e apresenta a história de Tito de Alencar Lima, mais conhecido como frei Tito, que se suicida já no exílio por não conseguir conviver com as lembranças das torturas vividas que o atormentam distorcendo a própria realidade. No exílio, sentia-se perseguido. Ouvia vozes do Fleury e imaginava o risco de novas torturas. Ainda pior era pensar que alguém de sua família poderia cair nas malhas da repressão. Na luta para negar a memória do absurdo e inverter a fome de morte do capitão Albernaz, frei Tito começou a frequentar o

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tratamento psiquiátrico. Melhorava e piorava, na agoniada alternância entre prisão e liberdade diante do passado. Ficava evidente que haviam feito o prometido: a sua humanidade estava “quebrada por dentro”. (RAMOS, 2004, p. 89) Tito é silenciado pelo sistema que o reprimiu e é consenso que a ditadura de 1964 foi seu assassino, deixando nublada a ideia que envolve sua morte. Tanto na obra quanto nos relatos que perpassam a figura do frei Tito, é lembrado coletivamente como uma figura da resistência, mas que em sua própria existência carregava seu calvário. Tito foi testemunha de seu próprio sofrimento e se viu ruir mediante as sequelas da tortura em não conseguir distinguir passado e presente. Ramos (2004) ressalta a importância da existência de Tito, sua presença e seu relato fazem com que não nos esqueçamos e, mais do que isso, que nas próximas gerações continue a ser lembrado para que casos como esse não se repitam. Sua morte e sua memória o aprisionam no fato, afinal “esquecer o torturador era, em certa medida, esquecer de si mesmo” (RAMOS, 2004, p. 92). Ainda assim, a história pode e deve se fazer a partir desse fragmento: Se frei Tito morreu porque não conseguiu vencer a memória, há memórias de sua vida e de sua morte que invertem o tempo: geram linhas de força que permitem o devir do passado e a escrita de uma história social. A vida de frei Tito é uma historicidade que pode emergir como memória do futuro. (RAMOS, 2004, p. 93) Ainda pensando nos exemplos, fora da América Latina encontramos outros eventos geradores de memórias traumáticas. A Segunda Guerra Mundial que vai de 1939 a 1945 é um dos eventos em que mais há produção de memória na atualidade. Como prova não somente a miríade de estudos acadêmicos sobre a duração, ao espaço, as etnias, a casos específicos em cada campo de concentração e/ou de extermínio, etc. mas também uma profusão de biografias, autobiografias, filmes, livros, histórias em quadrinhos entre outros que usam a memória em sua mais pura essência como relato, mas que também alimenta ficções diversas com a mesma licença poética em que Ariel Dorfman usou em “A Morte e a Donzela”. Ou seja, além de obras como o quadrinho “MAUS” de Art Spiegelman de 1980, o mangá “Hadashi no Gen” de Keiji Nakazawa publicado inicialmente no Japão de 1973 a 1974 e até mesmo “O Diário de Anne Frank” publicado em 1947 (todos de cunho biográfico ou autobiográfico), a Segunda Guerra Mundial dá ainda espaço para obras ficcionais bastante chocantes como o livro “O Menino do Pijama Listrado” de John Boyne, publicado em 2006 e adaptado para o cinema dois anos depois.

CONCLUSÃO A intenção primordial deste artigo é pensar como a memória pode ser utilizada pelo historiador. A partir do filme “Valsa com Bashir” percebemos o quão traumática e ilusória a memória pode vir a ser, e, portanto, ser prejudicial na análise do historiador. A partir disto tentamos explicar a importância da memória no uso da história e os cuidados que o historiador deve ter para utiliza-la, trazendo por fim, uma série de filmes que representam a memória em alguns momentos traumáticos. Por fim, cabe ressaltar que a memória, além de ser considerada por nós uma fonte inquestionável histórica, serve como identidade para muitos grupos, sendo ela verídica ou não. Para o historiador, indicamos uma série de cuidados, como: apropriação do tema e com isto uma boa leitura sobre o que a historiografia já abordou sobre o tema em questão; uma possível análise de séries, qualitativa e quantitativa e por fim, uma mescla com outras fontes. Assim, o historiador conseguirá obter bons resultados. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BARRETO, B.; BARRETO, L.; BARRETO, L.C. O Que É Isso, Companheiro? [filme-vídeo.] Produção de Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto, direção de Bruno Barreto. Brasil, 1997. 105 min. color. som. BOYNE, J. O menino do pijama listrado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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BRASIL NUNCA MAIS: Um relato para a História. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. DORFMAN, A. La muerte y la doncella. Chile: LOM Ediciones, 1997. FOLMAN, A. Valsa com Bashir. [filme-vídeo]. Produção e direção de Ari Folman. Israel, 2008. 87 min. color. som. FRANK, A. O diário de Anne Frank. Edição integral. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000. MOTTA, M. M. M. História, memória e tempo presente. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.) Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pgs. 21 – 36. NAKAZAWA. K. Gen - Pés Descalços: O nascimento de Gen, o trigo verde. V.1. Tradução de Drik Sada. São Paulo: Conrad Editora, 2011. RAMOS, F. R. L. História, memória e a terceira margem. In: ______. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2004. p. 83-103. RATTON, H. Batismo de Sangue. [filme-vídeo.] Brasil, 2006. 110 min. color. som. SPIEGELMAN, A. MAUS. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. VALIM, A. B. História e cinema. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.) Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pgs. 283 – 289. WINTER, J. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história. In: SELIGMANN-SILVA, M. (org.). Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006. p. 67-90.

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NOVO HAMBURGO VELHO: MODERNIDADE E IDENTIDADE Daniel Luciano da Silva 1 Cleber Cristiano Prodanov 2 O presente artigo busca compreender como se constituiu a identidade da cidade de Novo Hamburgo, quando ainda era o segundo distrito de São Leopoldo. Novo Hamburgo, no final do século XIX, começa a se destacar na região em virtude do progresso de suas indústrias coureiro-calçadistas e, por conseguinte, do comércio, desenvolvendo uma infraestrutura de cidade moderna, em oposição ao cenário colonial e rural dos distritos e municípios vizinhos. Acredita-se que as construções arquitetônicas, inspiradas na descendência europeia dos imigrantes alemães que habitaram a região, de características modernas, inspiraram o fotógrafo Max Milan a produzir os álbuns da cidade, que se encontram no Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, sem São Leopoldo. Essas fotografias servem como fontes históricas para análise das possíveis identidades, que nelas estejam representadas, ampliando o conhecimento sobre a história da cidade e a conservação de sua memória. Para análise das fotografias utiliza-se o método iconográfico e iconológico discutido pelos autores Ulpiano Bezerra de Meneses (2012), Peter Burke (2012) e Boris Kossoy (2009). Quanto ao embasamento teórico, esse trabalho desenvolve o tema da modernidade com os autores Marshal Berman (1989), Zygmunt Bauman (2001 e 2013) e Zygmunt Bauman e Benedeto Vecchi (2005). Para descrever sobre representação e identidade, utilizam-se os estudos de Stuart Hall (2005), Katrhyn Woodward (2000), Michel Foucault (2007), Roger Chartier (2002) e Stuart Hall (1997). Na relação de fotografia e cidade, descrevem-se as ideias de Charles Monteiro (2008 e 2013), Ana Maria Mauad (1996), Ciro Flamarion Cardoso e Ana Maria Mauad (1997), Zita Possamai (2008) e Susan Sontag (2004). Os eventos sociais, econômicos e políticos contribuem constantemente para transformações nos aspectos culturais dos indivíduos e da sociedade, alterando assim frequentemente suas identidades culturais. Tanto os indivíduos contribuem para essas alterações na sociedade, quanto às mudanças na sociedade contribuem para transformações socioculturais dos indivíduos. Os estudos sobre essas constantes mudanças, sob os aspectos das motivações e das causas, contribuem para o entendimento na formação das identidades culturais de um lugar em um determinado tempo. Sabe-se que a cidade de Novo Hamburgo é conhecida, desde seu surgimento, como pioneira em desenvolvimento industrial e comercial. Sua história de emancipação evidencia o envolvimento de cidadãos comprometidos com o progresso e o desenvolvimento socioeconômico da cidade, características intrínsecas na ideia de modernidade. Conforme Marshall Berman (1989) a vida moderna é um conjunto de experiências entre tempo e espaço compartilhadas por homens e mulheres anulando todas as fronteiras geográficas, raciais, de classe, de nacionalidade, de religião, ou de ideologia, acompanhada de grandes mudanças nas ciências, na tecnologia, na industrialização da produção, na formação de novos poderes corporativos, na expansão demográfica, etc; e que acaba unindo a espécie humana, mas ao mesmo tempo, gera desintegração, luta e contradição, ambiguidade e angustia; e complementa: “ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’” (BERMAN, 1989, p. 15). Berman (1989) ainda descreve sua interpretação sobre as ideias de modernidade de Karl Marx, em o Manifesto, onde Marx descreve que à medida que o mercado mundial cresce ele destrói os mercados locais e regionais, motivados pela necessidade de satisfação dos desejos e ambições humanas. Dessa forma, as indústrias locais entram em colapso, surgem poderios de comunicação, o capital fica cada vez mais nas mãos de poucos, e os camponeses e artesãos são despejados nas cidades, que crescem catastroficamente da noite

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Mestrando FEEVALE – Capes Prof. Dr. FEEVALE – Capes

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para o dia. Para Marx, segundo Berman (1989), a burguesia conseguiu atingir o sonho de modernidade, que antes eram dos poetas, artistas e intelectuais modernos, e diz: A burguesia “realizou maravilhas que ultrapassam em muito as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas”; “organizou expedições que fazem esquecer todas as migrações e as cruzadas anteriores”. Sua vocação para a atividade se expressa em primeiro lugar nos grandes projetos de construção física — moinhos e fábricas, pontes e canais, ferrovias, todos os trabalhos públicos que constituem a realização final de Fausto — que são as pirâmides e as catedrais da Idade Moderna (BERMAN, 1989, p. 90). Ainda sobre a modernidade, Berman (1989) descreve o pensamento de Baudelaire, considerado por muitos como o primeiro nome a ser lembrado ao falar de modernidade, que celebrava os burgueses enfatizando sua inteligência, força, criatividade na indústria, no comércio e nas finanças, para formar grandes empresas, grandes companhias, com o propósito maior do que apenas o dinheiro, mas sim, “para concretizar a ideia de futuro em todas as suas formas – políticas, industriais, artísticas” (BERMAN, 1989, p. 131). Demonstrava seu desejo no progresso humano infinito, não só na economia e na política, como também na cultura, pois sustentava que “os grupos mais dinâmicos e inovadores na vida econômica e política serão os mais abertos à criatividade intelectual e artística” (BERMAN, 1989, p. 132), de forma que essas mudanças econômicas e culturais permitiria o crescimento humano sem obstáculos. E mediante essas novas necessidades, causadas pela burguesia e pela modernidade, ocorre as grandes movimentações de pessoas para as cidades, para as fronteiras e para novas terras. Zygmunt Bauman (2001) concorda com a ideia de Marx e descreve a modernidade como líquida e fluída, pois os líquidos têm como principal característica se moldar ao local onde estão, e diferentemente dos sólidos, não mantém sua forma facilmente. Bauman (2013), também descreve sobre esse tema onde usa o termo “líquido” para descrever as constantes mudanças na cultura das sociedades, devido a uma série de processos que transformaram a modernidade de “sólida” para “líquida”, que é assim chamada porque não consegue manter a forma por muito tempo, e que as menores forças tem condição de alterá-la. Bauman (2001) descreve, de forma comparativa aos sólidos, que os líquidos precisam considerar sua relação com o tempo e com o espaço, pois “descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas” (BAUMAN, 2001, p. 8). Para Bauman (2001), a sociedade que vivia a ideia da modernidade se sentia congelada e estagnada no tempo e precisava se libertar dos “grilhões” para poder viver o “espírito da modernidade” substituindo os conceitos sólidos, “derretendoos no ar”, liquefazendo e destronando as ideias do passado e da tradição, para criar novos sólidos, e esses sim, aperfeiçoados e perfeitos e que não mais seriam alterados, e complementa: O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, étnicos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais “sólida” que as ordens que substituía, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse econômica (BAUMAN, 2001, p. 10). Para Berman (1989) e Stuart Hall (2005) essas mudanças sociais transformaram o sujeito individual em sujeito social, e posteriormente em sujeito pós-moderno. Para Hall (2005) o surgimento do indivíduo soberano e descentrado de Deus, proveniente das ideias do iluminismo e do pensamento cartesiano, é o motor da modernidade. Com as ideias racionais do iluminismo, a identidade do sujeito alcança a extensão em que sua consciência pode voltar pra trás, para pensamentos do passado. A evolução do pensamento transforma o sujeito individual em social com o surgimento de leis, politicas, comércio, etc. Os eventos que marcam essa mudança são a transformação do indivíduo em sujeito biológico e o surgimento de ciências sociais, como a psicologia e a sociologia. A descentralização do sujeito social o transforma em sujeito pós-moderno, que é resultado de fragmentos de identidades diferentes, móveis conforme somos representados e interpelados pelos sistemas culturais que nos rodeiam; diferentes culturas geram diferentes identidades, que na modernidade, estão em constantes

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mudanças, como nas ideias de Marx e Bauman, estão em forma líquida, e em um processo sem fim de rupturas com as identidades pré-estabelecidas. Para Bauman e Vecchi (2005), a dificuldade em estabelecer uma identidade cultural vem dessa variação líquida na sociedade. O surgimento da ideia de identidade vem da necessidade de pertencimento, que, com as formações de estados-nações, desenvolve a ideia de poder de exclusão, a diferenciação entre o “nós” e o “eles”. Para este estudo, a modernidade traz características mais acentuadas ao universo econômico, político e social, do que artístico. As mudanças estruturais nas cidades, motivadas pelas indústrias e pelo comércio, no crescimento vertical dos prédios e na extensão demográfica, bem como a infraestrutura financeira e educacional, são demonstrativos do apelo gerado pela modernidade. Essas mudanças transformam as imagens das cidades, e estão carregadas de representações da modernidade. Quanto à construção das identidades, Hall (2005), descreve que as identidades não são formadas quando os cidadãos nascem, e sim transformadas no interior da representação. As identidades nacionais não são apenas políticas, mas “algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia de nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica [...]” (HALL, 2005, p. 49). Também para Kathryn Woodward (2000) a representação utiliza-se das relações de significação e dos sistemas simbólicos para produzir significado, e assim dá sentido a experiência do que somos. São essas representações, que através da linguagem e dos sistemas simbólicos, constroem as identidades tanto individuais, quanto coletivas, simbólicas e sociais. Compreendem-se as representações como um processo cultural que pode responder questões como “Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar, [...] podem falar” (WOODWARD, 2000, p.17). Através da relação cultural das representações, as narrativas de imagens podem trazer novos significados para construir novas identidades em um determinado tempo e espaço histórico. Segundo Michel Foucault (2007) as culturas, em determinado tempo, deixam de pensar no que fizeram até então e passam a pensar em outra coisa e de outra forma, esse é para o autor o conceito para descontinuidade e que dá início ao processo de similitude. A similitude traz o risco de atribuir semelhanças a realidades diferentes em virtude da análise superficial que tem. Com o tempo, a ilusão de semelhança tornará os conceitos culturais misturados e sem regras formando “signos que se marcavam por devaneios e encantos de um saber que ainda não se torna razoável” (FOUCAULT, 2007, p.69), ou seja, um saber não verosímil e sim semelhante, porém é através desses signos que se podem descrever e entender as identidades e diferenças. Sãs os signos instrumentos de análise para interpretação das identidades. Hall (1997) descreve que o termo usado para: as palavras, os sons e as imagens, que tem sentido, é signo; e o signo representa os conceitos e as relações conceituais que dão sentido a nossa cultura. Contudo, a propriedade fundamental do signo é a de representação. Um signo, para que gere efeito, precisa, em uma relação de espaço e tempo, gerar significado. Conforme Foucault (2007, p.87), “o signo encerra duas ideias, uma da coisa que representa, outra da coisa representada; e sua natureza consiste em excitar a primeira pela segunda”. Para exemplificar essa constatação, Roger Chartier (2002) utiliza a linguagem como signos chamando-os de “sinais” e a representação/significado de “efeito produzido” no texto em que segue: Os autores não escrevem livros: não, eles escrevem textos que outros transformam em objetos impressos. A distância que é justamente o espaço no qual se constrói o sentido - ou os sentidos -, foi esquecida com demasiada frequência, não somente pela história literária clássica, que pensa a obra em si mesma como um texto abstrato, cujas formas tipográficas não importam, mas também pela Rezeptionsästhetik que postula, apesar de seu desejo de historicizar a experiência que os leitores têm das obras, uma relação pura e imediata entre os “sinais” emitidos pelo texto – que jogam com as convenções literárias aceitas – e o “horizonte de expectativa” do público ao qual são endereçadas. Em tal perspectiva; o “efeito produzido” não depende absolutamente das formas materiais que sustentam o texto. No Entanto, elas

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também contribuem plenamente para modelar as antecipações do leitor face ao texto e para atrair novos públicos ou usos inéditos (CHARTIER, 2002, p. 71). Conforme Foucault (2007, p. 87), para que o signo gere significado é preciso que ele, o signo manifeste a relação com o que ele significa, ou seja, precisa ser entendido e compreendido, e afirma: “é preciso que ele represente, mas que essa representação, por sua vez, se ache representada nele”. Contribuindo com Foucault, Chartier (2002, p.75) descreve que “a relação de representação, assim entendida como correlação de uma imagem presente e de um objeto ausente, uma valendo pelo outro” sustentam a teoria do signo. Contudo essa teoria levanta uma questão: quanto à incompreensão da representação, ou pela falta de preparo do leitor, ou por uma relação extravagante e arbitrária entre o signo e o significado. Complementando a relação de signo e representação Foucault (2007) diz: Se o signo é a pura e simples ligação de um significante com um significado [...], de todo modo a relação só pode ser estabelecida no elemento geral da representação: o significante e o significado só são ligados na medida em que um e outro [...] são representados e em que um representa atualmente o outro (FOUCAULT, 2007, p. 91). Por conseguinte, os signos presentes nas fotografias de Max Milan estão carregados de informações que, analisados, podem descrever as representações da modernidade da cidade de Novo Hamburgo. Mediante o levantamento bibliográfico, bem como o embasamento teórico, utilizar-se-á a iconografia e iconologia como método de análise das fotografias. Para Ulpiano Bezerra de Meneses (2012), a iconografia, junto com a semiótica, compartilha que as imagens são um suporte de signos possíveis de serem identificados por suas propriedades estáveis. Para Peter Burke (2004) e Meneses (2012), o enfoque nesse método de análise tem três níveis: pré-iconográfico – busca o significado natural na imagem, como identificação de objetos (árvores, prédios, animais, pessoas) e eventos (refeições, batalhas, procissões); iconográfico – propriamente dito, que analisa o significado convencional da imagem (reconhecer uma ceia como a Última Ceia ou uma batalha como a Batalha de Waterloo), bem como referência de outros conhecimentos da época e o “patrimônio cognitivo” do observador; e o principal, que é o iconológico – que analisa o significado intrínseco, “os principais subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, um período, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica” (BURKE, 2004, p.45), e, segundo Meneses (2012), procura por uma espécie de “mentalidade de base”, onde “o visível é sintoma do invisível, e todo o objeto, toda a imagem significam mais do que a aparência e podem conduzir a circunscrição de um inconsciente coletivo [...]” (MENESES, 2012, p. 245). Concordante com Burke (2004) e Meneses (2012), Boris Kossoy (2009) diz, que a iconografia busca detalhar e inventariar o conteúdo da imagem com aspecto literal e descritivo e sua análise não traz aspectos de interpretação. Já a iconologia busca a interpretação analítica do significado intrínseco no conteúdo de sua representação. Conforme Monteiro (2013), a fotografia é uma representação da realidade e contribui para reconstrução da história de grupos sociais, questões políticas e econômicas, e interculturais. Concordante com Monteiro (2013), Ana Maria Mauad (1996, p. 12.) descreve que “a fotografia comunica através de mensagens não verbais, cujo signo constitutivo é a imagem”, e por se tratar de um trabalho humano de comunicação, a fotografia é convencionada em códigos culturalmente comuns dando um caráter conotativo à mensagem. Reafirma, também, a relação da fotografia com o contexto histórico de espaço e tempo da comunicação realizada, através da narrativa, no contexto emissor, meio e receptor, servindo de testemunha do real. Ainda descrevem Cardoso e Mauad (1997), sobre a importância da fotografia como marca cultural não apenas por nos remeter ao passado, mas por trazê-lo à tona no presente, e revelando aspectos do passado que não seriam possíveis de descobrir, nem mesmo com uma descrição verbal detalhada, e complementa: Neste sentido, a imagem fotográfica seria tomada como índice de uma época, revelando a riqueza de detalhes, aspectos da arquitetura, indumentária, formas de trabalho, locais de produção, elementos de infraestrutura urbana tais como

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tipo de iluminação, fornecimento de água, obras públicas, redes viárias etc.; (CARDOSO; MAUAD, 1997, p. 406). Segundo Zita Possamai (2008), a fotografia foi concebida, incialmente, como espelho do real, e por isso foi convocada a dar conta de registrar as inúmeras mudanças que estavam acontecendo nas cidades, principalmente os monumentos urbanos, com o propósito de futura restauração. Juntamente com o crescimento e a modernização das cidades, o processo técnico de fotografia evoluiu, possibilitando, assim, maior facilidade e qualidade na produção das fotografias. Possamai (2008) ainda diz que: Graças à capacidade do processo fotográfico de engendrar uma grande quantidade de unidades visuais, surgiram os álbuns, forma que adquiriram as coleções de imagens fotográficas. De diversos formatos e modelos [...]. Reuniam retratos de famílias, ou temáticas diversas, entre as quais figuravam as vistas urbanas, produzidas em terras próximas ou distantes (POSSAMAI, 2008, p. 69). Nessa relação de fotografia e cidade, Possamai (2008), descreve a crescente movimentação tecnológica que abarcou o mundo no início do século XX, onde a dinâmica das cidades modernas se tornou mais complexas, transformando a fotografia em um instrumento capaz de construir a representação visual das cidades. Com isso cresce entre os fotógrafos o interesse por esse cenário urbano e moderno, e para que pudessem representar essa modernidade, no imaginário social, precisaram buscar novos artifícios, tanto técnicos, quanto estéticos. Mediante esse cenário, tornou-se importante o olhar do autor, bem como a representação através das escolhas em seus recortes visuais, e complementa Possamai (2008), onde diz: Dessas escolhas resultaram imagens que construíram uma visualidade que apontava para a modernidade desejada. Assim, amplas avenidas, altas edificações, monumentos, automóveis, iluminação elétrica e praças remodeladas foram fotografadas a partir de opções formais que comportam sentidos desejados (POSSAMAI, 2008, p. 73). Entende-se, através deste embasamento teórico, que existe uma relação entre a modernidade e a fotografia das cidades no início do século XIX. Nessa época, a fotografia começa a se modernizar juntamente com o crescimento do progresso, das indústrias e do comércio no cenário das cidades. Por conseguinte, através dessas imagens é possível compreender símbolos e signos, nelas representados, que corroboram para definição dos elementos que constituem as identidades culturais das cidades. Com base nessas informações, e utilizando-se das fotografias de Max Milan como fontes de pesquisa, acredita-se que a análise dessas fontes, pode contribuir para esclarecer o problema de pesquisa e atender aos objetivos propostos por esse trabalho.

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Figura 1 – Capa do Álbum Hamburgo Velho e Novo Hamburgo, de Max Milan

Fonte: Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo – RS Compreende-se com a figura 1, o que diz Zita Possamai (2008) sobre a confecção de álbuns das cidades. A facilidade da fotografia em produzir diversas vistas da cidade possibilitou o desenvolvimento desses álbuns, que atendiam tanto as necessidades pessoais de coleção e de memórias, quanto às públicas, que serviam como registros históricos pra futuras necessidades de restaurações. Figura 2 – Curtume Hamburguês Pedro Adams Filho & Cia.

Fonte: Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo – RS

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Figura 3 – Fábrica de Calçados Pedro Adams Filho & Cia.

Fonte: Museu Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo – RS Com as figuras 2 e 3, destacam-se os fios da rede elétrica, símbolo de modernidade para época, pois possibilitava o trabalho ininterrupto, tanto na indústria quanto nas casas. Também se percebe a ideia de profundidade atribuída às perspectivas geradas pelas ruas, proporcionando a ideia de prolongamento da cidade. Outro destaque são as edificações das indústrias da cidade, símbolo do progresso coureirocalçadista em oposição aos aspectos coloniais e rurais. Figura 4 – Força e Luz Pedro Adams Filho & Cia.

Fonte: Museu Visconde de São Leopoldo, São Leopoldo – RS Já a figura 4 traz a empresa de energia elétrica construída para alimentar as indústrias da cidade, que segundo Leopoldo Petry (1959) sempre foi um problema para a cidade, conseguir abastecimento de energia elétrica, visto que a indústria crescia constantemente, e as instalações não eram suficientes. Instalações que foram desenvolvidas pelos empresários devido à falta de investimento do governo nesse segmento, um dos motivos das inquietantes discussões entre as partes que balizaram o processo de requerimento de emancipação do segundo distrito.

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Portanto, as fontes, reveladas pelas fotografias de Max Milan, vão contribuir para compreensão, de como foi constituída a ideia de emancipação, e como os elementos modernos estavam presentes na cultura da cidade de Novo Hamburgo. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. A Cultura no Mundo Líquido Moderno. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ. Zahar, 2013. BAUMAN, Zygmunt; VECCHI, Benedetto. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2005. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2001. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 1. ed. São Paulo, SP: Cia de Letras, 1986. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC; 2004. CARDOSO, C. F.; MAUAD, A. M. História e Imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Domínios da História. [11. Ed.] Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1997. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. 1. ed. Porto Alegre, RS: UFRGS, 2002. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2005. HALL, Stuart. (ed.), Representation: Cultural Representations and Signifying Practices. London, Sage Publications, 1997. MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história – interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n °. 2, p. 73-98, 1996. MENESES, Ulpino B. História e imagem: iconografia/iconologia e além. In: CARDOSO, Ciro F; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, [2012] MONTEIRO, Charles. Pensando sobre História, Imagem e Cultural Visual. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 9, n.2, p. 3-16, julho-dezembro, 2013. PETRY, Leopoldo. O município de Novo Hamburgo: monografia. 2. ed. São Leopoldo, RS: Rotermund, 1959. POSSAMAI, Zita Rosane. Fotografia e cidade. ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 67-77, jan.jun. 2008. KOSSOY, Boris. Fotografia & história. 3. ed. rev. ampl. São Paulo, SP: Ateliê Editorial, 2009. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

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TORRES, UMA PRAIA DO LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL E SUAS REPRESENTAÇÕES FOTOGRÁFICAS Camila Eberhardt 1

INTRODUÇÃO O presente trabalho discorre sobre as produções iconográficas no município de Torres. O município está localizado no Litoral Norte do Rio Grande do Sul e é conhecido atualmente por suas belezas naturais. A cidade possui três torres (falésias) que se encontram junto ao mar proporcionando aos turistas e moradores da cidade uma bela paisagem. Paisagem está que foi registrada por meio das câmeras fotográficas do estúdio de Ídio K. Feltes desde meados do século passado e que ficaram registradas, além dos papéis fotográficos, na memória da população torrense e dos turistas que desde os anos de 1930 frequentaram Torres buscando aproveitar as praias do município. O estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes registrou as mais variadas e distintas temáticas, as quais são possíveis observar por meio de dois acervos iconográficos. O primeiro, o Acervo do Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres, 2 congrega fotografias do Litoral Norte, portanto, abrange um espaço de atuação de demais fotógrafos, entretanto, mesmo não sendo um acervo restrito ao município, o número de imagens que são provenientes do estúdio é relevante. O segundo acervo que foi analisado, reúne fotografias do município de Torres, foi organizado pela Casa de Cultura, e está disponível para a comunidade local e para pesquisadores, entretanto não está disponível online. Portanto, pretendem-se identificar nesses dois acervos, quais imagens fotográficas foram provenientes do estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes, haja vista que essas informações são foram realizadas a priori. Para tanto, inicialmente cabem algumas considerações sobre o estúdio Feltes, que contribuiu na constituição de uma memória e de uma cultura fotográfica específica e singular dos moradores de Torres e dos turistas que nos meses de verão frequentavam as praias do município, prática esta que ocorre até os dias de hoje.

IMAGEM FOTOGRÁFICA: POSSIBILIDADES A fotografia permitiu às sociedades das mais distintas culturas a possibilidade de capturar em uma base fixa de papel o recorte do momento desejado, do momento visualizado, e ainda, foi mais longe, possibilitou que essa imagem fosse reproduzida de acordo com as necessidades e desejos dos consumidores. Por meio da fotografia, é possível afirmar que a imagem adentrou na vida cotidiana de tal forma nunca antes vista. Amanhecemos e visualizamos imagens, passamos o dia e o encerramos com o contato com imagens, sejam por jornais, televisão, celulares, computadores, etc., ou seja, constantemente somos abarcados por esse mundo visual, e essas relações repercutem nas práticas nossas práticas sociais, interferem e agem sobre nossa vida cotidiana. Sontag (2004) propõe que vivemos em um mundo imagens, em que nossas relações são mediadas por meio delas. Cabe lembrar que a imagem, tem usos e apropriações que são muito antigas. Debray (1993) discorre sobre a origem do uso e as representações atribuídas a imagem. De acordo com o autor, a utilização da imagem como símbolo de uma ausência, como imago, ou seja, como duplo, e que adquiriu três momentos distintos. O primeiro decorrente do uso sagrado, a imagem nos ritos, a imagem

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Graduada em história pela Ulbra. Especialista em História, Cultura e Identidade pela Ulbra. Mestre em História pela PucRs. Doutoranda em História pela Unisinos. Bolsista de pesquisa Cnpq. Email: [email protected] 2 O acervo do Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres encontra-se disponível por meio do site:

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mitológica; o segundo, o olhar estético, as pinturas, a arte; e o terceiro momento, o olhar econômico, em que se insere a fotografia. Portanto, a imagem é uma das formas pelo qual o homem atribui representações e relacionase em sociedade (KNAUSS, 2006), os suportes e mecanismo alteraram-se ao longo da história, porém, em 1839 surge uma técnica que transformou profundamente a relação do homem com a imagem. Nesse sentido, é importante que o pesquisador desenvolva sua análise tendo em vista, questões de ordem teórica e metodológica, para que análise considere distintos fatores, lembrando o caráter polissêmico da fotografia.

O ESTÚDIO FOTOGRÁFICO DE ÍDIO K. FELTES As imagens realizadas pelo estúdio fotográfico Feltes capturam distintos cenários, pessoas, e foram imbuídas das mais diferentes motivações. Sua atuação prolongou-se por mais de cinquenta anos na cidade de Torres. Ademais, ao trabalho de fotógrafo, Feltes e sua família desenvolvia outra atividade paralelamente ao estúdio, ou seja, possuía um estabelecimento comercial em que vendiam ferramentas, produtos de caça e pesca, entre outros. Essa era uma maneira da família complementar sua renda, visto que, nem sempre a renda do estúdio era suficiente para a sobrevivência da família. Prática está muito comum aos estúdios fotográficos daquele período, de acordo com Possamai, que pesquisou estúdios fotográficos em Porto Alegre, essa prática era muito comum. Feltes trabalhava em família, mas também contratava jovens da cidade para a função de fotógrafos principalmente nos meses de verão, em que, possuía uma equipe de fotógrafos para poder atender a demanda nas praias da cidade. Assim, duplas de fotógrafos eram dispostas em cada praia, oferecendo o trabalho fotográfico as pessoas que estavam frequentando a praia. Após algumas imagens realizadas, as câmeras eram levadas ao estúdio para sua revelação realizada por Ídio, e, no fim do dia as pessoas iam até o estúdio para comprar as imagens. Nesse sentido, Feltes produziu muitas fotografias que foram utilizadas como cartões-postais. Portanto, nos acervos analisados, as imagens realizadas pelo estúdio apresentaram variadas temáticas visuais. Assim, iniciamos com a apresentação das temáticas propostas pelo Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres. O acervo possui vinte temáticas visuais. São elas: Cartão-postal (19 fotos); Cidade (362 fotos); Comércio (18 fotos); Etnia (5 fotos); Educação (413 fotos); Família (538 fotos); Festas (144 fotos); Folclore (26 fotos); Gênero (290 fotos); Hotéis (28 fotos); Mapas (1 foto); Paisagem (97 fotos); Política (39 fotos); Propaganda (9 fotos); Religião (228 fotos); Rural (90 fotos); Trabalho (35 fotos); Transporte (35 fotos); Turismo (84 fotos); Crianças (186 fotos). Em relação às imagens inseridas nessas temáticas foi possível observar que mil trezentas e cinquenta e oito fotografias são provenientes do estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes, conforme é possível observar no gráfico abaixo (Gráfico 1), a relação de imagens é significativa levando em conta que este acervo é composto de imagens de todo o Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Entre todas as temáticas analisadas, a temática família possui a maior proporção de fotografias do estúdio Feltes em relação a sua própria temática, ou seja, das quinhentas e trinta e oito fotos, quatrocentas e cinquenta e nove imagens foram produzidas pelo estúdio. O que demonstra que, apesar de Feltes ser reconhecido pelos seus trabalhos na cidade, capturando cenas e paisagens quase pictóricas de Torres, obteve grande reconhecimento entre a população local, que o requisitava sempre que havia a necessidade do registro imagético. Esses registros ocorriam com frequência durante casamentos, batismos, aniversários, etc. ademais essas imagens registram o tradicional padrão familiar, as imagens são compostas, na maioria das vezes, pelo casal, e pelos seus filhos. Geralmente fotografias externas, em que algo da propriedade era registrado na imagem, como a moradias, o carro, os animais de maior valor (Figura 1, 2, 3, 4, 5 e 5). Podemos concluir que essas imagens compõem cenas que corroboram o ideal de família burguesa instaurado no país e que foram inúmeras vezes se afirmando por meio do registro fotográfico.

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Gráfico 1 – Relação de fotografias do Banco de Imagens.

Estúdio Feltes

Demais imagens

31%

69%

Fonte: Produzido pela autora, 2015.

Figura 1 – Família

Fonte: Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres.

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Figura 2 - Casamento

Fonte: Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres.

Figura 3 - Família

Fonte: Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres.

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Figura 4 – Família Lothhammer

Fonte: Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres.

Figura 5 - Casamento

Fonte: Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres.

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Figura 6 – Casamento

Fonte: Banco de Imagens e Sons da Ulbra Torres O acervo da Casa de Cultura de Torres, conta com um significativo conjunto de imagens, com diferentes temáticas, que foram a priori classificadas. Expressam um acervo diverso, em que muitas das imagens que o compõe são provenientes do Estúdio fotográfico Feltes. Inicialmente, cabe demonstrar quais foram as temáticas visuais desenvolvidas pelo acervo, são elas: Aéreas (100 fotografias); Avenida Barão do Rio Branco (5 fotografias); Bailes e Festas (13 fotografias); Carrocinhas com cabritos (5 fotografias); Casa número 1 (3 fotografias); Cerimônias e Desfiles Cívicos (41 fotografias); Escolas (37 fotografias); Eventos religiosos (34 fotografias); Faróis (19 fotografias); Fatos marcantes (23 fotografias); Futebol (62 fotografias); Gruta Nossa Senhora das Lurdes (6 fotografias); Hotéis (8 fotografias); Igreja Matriz São Domingos (9 fotografias); Ilha dos Lobos (10 fotografias); Lagoa da Itapeva (2 fotografias); Lagoa do Violão (31 fotografias); Morro do Farol (21 fotografias); Músicos e Bandas (20 fotografias); Obras de Arte de Torres (10 fotografias); Personalidades (79 fotografias); Pescaria e pescadores (15 fotografias); Políticos (19 fotografias); Postais antigos Picoral (5 fotografias); Praia da Cal (26 fotografias); Praia da Guarita (72 fotografias); Praia Grande (118 fotografias); Prainha (29 fotografias); Rio Mampituba (24 fotografias); Rua José Picoral (112 fotografias); Rua Júlio de Castilhos (31 fotografias); Sapt (6 fotografias); Torre do meio (51 fotografias); Torres sul (5 fotografias); Tradicionalismo de Folclores (15 fotografias); Transportes (4 fotografias); Várias (30 fotografias). Dessas imagens, foi possível identificar que grande parte corresponde ao estúdio Feltes (Gráfico 2), as imagens que não perfazem essa origem, são, na sua grande maioria, decorrentes de um recorte temporal mais recente, em que o estúdio Feltes não atuava mais na cidade.

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Gráfico 2 – Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS

1

8

Estúdio Feltes

Demais imagens

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

Como é possível observar, a distribuição dessas fotografias por essas temáticas visuais, foram variadas e possuem um número muito superior de classificação, cada temática é estritamente específica. Por tratar-se de um conjunto de imagens com território delimitado, essas fotografias puderam ser alocadas dessa maneira, distintamente do acervo do Banco de Imagens e Sons, que necessitou, por sua vez, de uma distribuição mais generalizante, em que fosse possível a alocação de diferentes imagens. Em relação às temáticas do acervo da Casa de Cultura, algumas se destacam expressivamente, como, por exemplo, a temática visual Praia Grande. Praia Grande é uma das mais conhecidas praias de Torres, praia que desde o início do turismo na cidade era ocupada pelos turistas, é a praia com maior extensão territorial, inicia juntamente com os molhes no Rio Mampituba e termina junto a praia da Prainha. Essa praia possui o maior número de registros do Estúdio Feles em relação ao número de imagens da temática. Nas imagens Feltes e sua equipe acompanharam o desenvolvimento e a passagem de inúmeros períodos e modos e utilização da praia, conforme é possível observar nas imagens abaixo (Figura 7, 8, 9 e 10).

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Figura 7 – Praia Grande

Fonte: Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

Figura 8 – Praia Grande

Fonte: Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

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Figura 9 – Praia Grande

Fonte: Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

Figura 10 – Praia Grande

Fonte: Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS. Analisar e identificar, nesses dois acervos, as imagens que correspondem a atuação de um dos estúdios fotográficos mais reconhecido que atuaram no município de Torres, permite compreender como se constituiu a cultura fotográfica da população de Torres, e principalmente como essa população apropriou-se dessas imagens. As temáticas visuais permitem observar quais foram as preferências e os modos de representação que se constituíram em cada período. Assim, por meio dessas fotografias, parte da história e da memória desse local e dessa população é mantida.

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REFERÊNCIAS: DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004. KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. Artcultura, v. 8, n.12, p. 97- 115, 2006. POSSAMAI, Rosane Zita. Cidade fotografada: memória e esquecimento nos álbuns fotográficos – Porto Alegre, décadas de 1920 e 1930. 2005. Tese (Doutorado em história) – UFRGS, Porto Alegre, 2005.

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UM OLHAR SOBRE AS RUÍNAS: FOTOGRAFIA E IMAGEM POÉTICA Eduardo Roberto Jordão Knack 1

Bachelard (2008, p.3), partindo da seguinte pergunta: “como uma imagem por vezes muito singular pode revelar-se como uma concentração de todo o psiquismo?”, propõem uma fenomenologia das imagens poéticas que considere o “início da imagem numa consciência individual” para revelar a transubjetividade das imagens. Ou seja, para o filósofo, certas imagens são tão impactantes e produzem uma série de sentimentos no observador que configuram e transpõem sua subjetividade no momento da leitura (no caso de imagens literárias) ou da observação (no caso de imagens visuais). A partir da identificação de uma determinada imagem (uma casa ou uma ruína, entre outras) como imagem poética primordial, buscam-se as variações produzidas por uma “ação mutante da imaginação”, alterando detalhes, configurando novos significados. A imaginação é entendida como deformadora do real que produz (ou altera) imagens a partir dos devaneios de uma “consciência sonhadora” (BACHELARD, 2008, p.4). Os sonhos acordados são aqueles que interessam a fenomenologia das imagens propostas por Bachelard. Nessa elevação da consciência acordada, esses devaneios são tão vívidos que se tornam possíveis de serem escritos (ou pintados, ou fotografados, por exemplo), assim emergem as imagens poéticas. Didi-Huberman (2015, p.160-161) alerta para um problema que precisa ser abordado para o presente trabalho – as imagens poéticas da literatura estão em um nível de análise diferente das “nossas habituais familiaridades com o visível”. As imagens literárias “não descrevem algo anteriormente visto, escrevem um processo de olhar que as palavras assumem no próprio curso da sua composição.” Escrever e ler, são ações diferentes de olhar e ser olhado. Mas tanto o olhar quanto a escrita são entrelaçados pela imaginação, que altera aquilo que é observado (tanto na realidade visível, quanto no devaneio poético). “Incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas imagens.” (BACHELARD, 2008, p.19). O que leva a entender as imagens como agentes capazes de produzir transformações na sociedade. Em ambos os casos, a imaginação produz imagens, deformando o real. O devaneio não é uma propriedade particular dos escritores – o processo da composição de uma pintura necessita, evidentemente, de um domínio técnico (tal como a escrita, ou a fotografia), mas os resultados desses processos nem sempre configuram imagens poéticas, transubjetivas. Algumas se tornam apenas reproduções, mas em alguns casos a imaginação produz mutações, altera, transforma a realidade. A crítica de Didi-Huberman (2015, p.157) é direcionada para a redução da imagem ao imaginário. Mas não é intenção promover tal redução, apenas identificar a existência de determinadas imagens primordiais que permanecem, “sobrevivem” no olhar de artistas (sejam eles escritores – poetas, romancistas – ou das artes visuais – pintores, fotógrafos), continuam agindo, atuando na sociedade com uma força significativa. Ou mesmo observar que não é bem a imagem que sobrevive, mas o olhar sobre determinada imagem, porque certas imagens, quando as observamos, nos devolvem o olhar, perturbam os indivíduos, em uma relação pulsante, rítmica – “eis aqui o risco, o desafio, a cedência – de ser olhado por aquilo que se vê.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.158). E a imaginação tem papel atuante nessa relação, uma vez que só ela “é capaz de montar ou rearticular os elementos oferecidos pela observação” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.19). É delineado um processo dinâmico entre observador e objeto observado permitido pela capacidade de imaginar que produz as mutações referidas por Bachelard. As imagens não são meros

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Doutorando em História pela PUCRS, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 arquétipos, estáticos em uma constelação imaginária, pois nosso olhar as transforma, na medida em que somos transformados pelo que observamos. Partindo da análise de uma imagem poética em particular – a casa – as ruínas adquirem impacto profundo, uma vez que são a antítese desta. Inicialmente, podemos considerar a casa como a “topografia do nosso ser íntimo” (BACHELARD, 2008, p.20), nosso próprio corpo é percebido como uma morada. Também estão relacionadas à casa sentimentos de proteção, de refúgio das nossas lembranças de infância. “A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade.” (BACHELARD, 2008, p.36). A essas imagens iniciais, somase a de verticalidade, do porão como base e do sótão como ápice. Esses são alguns dos atributos essenciais da “casa onírica” descrita por Bachelard. Seria importante acrescentar, ao lado desses elementos o de “construção”, uma vez que a casa tende a “encerrar no seu íntimo um desejo recorrente do indivíduo controlar e determinar a totalidade de um ‘espaço habitacional’, seja este físico ou imaginado” (LEITE, 2015, p.12). O ato de construir, e as imagens a ele relacionadas, exprimem um senso de estabilidade, de controle, de concretização e realização individual ou coletiva. A necessidade de construção acompanha os indivíduos e a sociedade. A partir do conceito “casa”, Bachelard (2008) e Leite (2015) exploram as imagens, poéticas e visuais, desse sentimento de habitar, de construir. O outro lado da moeda são as ruínas, que estiveram presentes nas artes desde o Renascimento até a arte contemporânea. O olhar de vários artistas foi atraído para a decadência das construções. É possível afirmar a existência de um fascínio por esse motivo. Nesse sentido, a questão colocada por Canogar (2006, p.24) é pertinente: Cómo es posible que el motivo artístico de la ruina, aterrador testimonio del poder arrollador del tiempo o de la capacidad destructora del ser humano, nos produzca placer en su contemplación? Qué perversa satisfacción nos invita a embellecer el horror que hay detrás de toda ruina? La contestación a estas preguntas reside en los seiscientos años del uso artístico de la ruina que nos anteceden, siglos en los que este motivo ha respondido a distintas demandas sociales y políticas. O que promove constantes transformações no olhar sobre as ruínas está, como aponta Canogar, ligado as demandas sociais e políticas dos contextos em que foram produzidas. Mas não é apenas isso que energiza suas mutações. As mudanças nos regimes de historicidade (HARTOG, 2013), na percepção que os sujeitos têm do encadeamento das categorias temporais, produziram alterações no sentido atribuído às ruínas. Enquanto imagens poéticas, construções arruinadas estão essencialmente entrelaçadas com percepções temporais sobre passado, presente e futuro. Carena (1997, p.108) afirma que a ruína de um edifício “pode por um lado evocar o passado glorioso e a caducidade de todas as coisas”, mas também pode “dar lugar a um sentimento subtilmente crepuscular”; são diferentes experiências com o tempo que caracterizam essas percepções. Ao variar a forma como sentimos, experimentamos e elaboramos a passagem do tempo a visão sobre ruínas, sejam elas da Antiguidade ou do mundo contemporâneo, é alterada. A valorização que a ruína passa a ter no Renascimento, que se desenvolve especialmente na pintura e na poesia, “es debido a una transformácion en la percepción del tiempo” (CANOGAR, 2006, p.24). No Renascimento, com uma concepção temporal “baseada na evolução e no progresso” (KERN, 2010, p.12), imitando as fases biológicas da vida humana, as ruínas aparecem na pintura não como motivo central, mas como detalhes e/ou cenários. Nesse momento, o “valor histórico” dos monumentos da Antiguidade adquire “pela primeira vez uma reconhecida importância. ” (RIEGL, 2013, p.12). Ruínas de um mundo antigo passam a ser valorizadas pela sua potencial capacidade de informar sobre o passado como vestígio. Essa percepção está ligada à uma visão teleológica, presente, por exemplo, na história da arte de Vasari (DIDI-HUBERMAN, 2013), que apresentava um início (Antiguidade), meio (o esquecimento, oblívio em que caíram os artistas na Idade Média) e fim (o Renascimento). Assim, as ruínas emergem, inicialmente, timidamente, como detalhes na pintura renascentista.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 Amarante (2013) indica a obra “Adoração dos Magos” de Botticelli como um exemplar das ruínas na arte renascentista. Este mesmo motivo também é pintado novamente por Botticelli (CANEVA, 1992, p.74), tendo ruínas romanas como cenário. Os séculos XVI e XVIII assistiram uma profusão de pinturas e desenhos inspirados nos antigos monumentos e edifícios da Roma Antiga. Conhecido como o gênero veduta, obteve ampla divulgação e sucesso com a descoberta da técnica de gravura com água-forte (CORDARO, 1993, p.27). Mas é a partir século XVIII que as ruínas ganham espaço e valor particular entre pintores, poetas e escritores. Nesse momento, artistas dividiam-se entre aqueles que defendiam sua preservação para contemplação, e aqueles que procuravam restaurar construções arruinadas (SALDANHA, 1993, p.92-93). Com nomes como Giovanni Battista Piranesi, Giovanni Paolo Pannini, Hubert Robert (“Robert das Ruínas”), entre outros, as ruínas adquirem um sentido enquanto imagem poética, tanto do passado ou do futuro (como na pintura de Robert, em que a galeria do Louvre está em ruínas 2). Para Dubin (2010, p.2), a valorização das ruínas no século XVIII coincide com a decomposição de crenças próprias do Antigo Regime, bem como “the crumbling of the dictates of Classicism, modeled a capacity to tolerate uncertainity.” Essa percepção das ruínas leva a um olhar para os escombros do mundo antigo, que tanto valoriza as reminiscências da Antiguidade Clássica, como anuncia sua superação. É exemplar um quadro de Robert, exposto no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, chamado “Templo em Ruínas” (1770-1780), onde aparecem de forma grandiosa, tomando conta do quadro, ruínas em colunas e arcos, e ao fundo um mausoléu em forma de pirâmide, mas em primeiro plano, observa-se uma carroça puxada por dois burros, com uma mulher falando com uma criança, pessoas caminhando – a vida segue à sombra (ou apesar) das ruínas que engolem as pessoas. As ruínas atestam a majestade do mundo antigo, contrastam com a simplicidade das pessoas que transitam aos seus pés. É a presença de uma ausência figurada em imagem. Para Quintas (2011, p.274): Na imagem da ruína, será tanto mais relevante aquilo que está presente como aquilo que se encontra dela ausente, tornando-se quase que palpável a ausência que se faz presente, no sentido de uma alusão ao que foi. O vazio abre lugar para o que já foi, aquilo que já esteve e deixou um lugar. Por essa mesma razão, a imagem da ruína se rege pela concepção de um vazio fértil, um repositório para a memória e a projeção imaginativa do passado. A ruína resulta na materialização da nossa incompletude, da finitude humana, um alerta para a Morte. Caspar David Friedrich exemplifica esse olhar sobre as ruínas. Na transição do século XVIII para o XIX, Friedrich desafia nossa imaginação sobre a ausência de um passado a partir de edificações destroçadas, quer pelo próprio tempo, pela natureza, ou pela ação do homem. Esse olhar sobre as ruínas como objeto de contemplação, admiração por aquilo que já foi e que emerge com uma advertência da finitude dos homens e de suas obras, mas ao mesmo tempo como sinal de perenidade, de sobrevivência dos tempos de outrora, está associado a noção de individualidade da habitação, da “casa individual” (LEITE, 2015). É com o romantismo, enquanto movimento artístico e filosófico que a noção de propriedade individual da casa, associada ao sentimento de pertencimento, de identidade do sujeito aparece de forma marcante. Não espanta, portanto, Friedrich figurar nas ruínas uma solenidade, uma admiração religiosa, estendendo um sentimento de individualidade para além da vida terrena em algumas obras, mas também observando uma melancolia, uma espécie de vazio, de solidão proporcionada pela ausência 3. As imagens das ruínas devolvem ao olhar dos observadores as forças que as envolvem, que as produzem que simbolizam uma ausência máxima – a morte do indivíduo. Essa força de produção/atração é essencial para compreensão da ruína enquanto imagem poética. 2

Ver: http://newsletters.artips.fr/Robert_Louvre/, acessado em 10/06/2015, às 21:37. De acordo com Dubin (2010, p.1) “What makes Robert’s painting an exercise in prescience is its execution in a culture that understood itself to be modern by virtue of its capacity to envision its own destruction.” 3 Como exemplo, os quadros “Abadía en el encinar”, “La tumba de Hutten” e “El mar glacial” (HOFMANN, 1992, p.131, p.211).

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 Ontem, como hoje, as ruínas mantiveram sempre um fascínio e uma atracção especial, tão duradoura quanto a sua própria existência ao longo dos tempos. Serenas ou tempestuosas, melancólicas ou grandiosas, idílicas ou épicas, as ruínas fizeram sempre parte do dia a dia dos homens, e, tal como as próprias edificações, elas tanto são o resultado da acção da Natureza e do Tempo, como fruto da própria destruição humana. (SALDANHA, 1993, p.91) Existem as ruínas, mas elas resultam de processos, da ação dos homens ou do tempo. Nesse sentido, é importante notar dois elementos no olhar sobre as ruínas – a imagem e as forças que produzem tais imagens. A entropia (a ação degenerativa do tempo) é a primeira e primordial dessas forças; a guerra aparece como força destrutiva, transformando edifícios, cidades e homens em escombros; o abandono, seja qual for a razão, também figura como elemento arruinador (nesse princípio também estão associadas as forças da natureza, que engolem paisagens e construções); catástrofes naturais, tais como terremotos, maremotos, furacões, erupções vulcânicas, etc.; a modernização urbana, no caso das cidades, também deixa ruínas, que são transitórias, mas estão ali por alguns momentos. Simmel (2013) atribui as forças da natureza como elemento destruidor um encanto primordial, melancólico para as ruínas, indicando que as ações dos homens que arruínam edificações e espaços não causam a mesma impressão. Simmel centra sua atenção na oposição entre controle/descontrole, vida/morte, que impressionam os homens. Porém, forças desencadeadas pelos homens produzem impacto tão grande quando as forças naturais. As fotografias de guerras, mostrando cidades inteiras destroçadas causam profundo impacto, a guerra em si é uma força impressionante, desencadeada exclusivamente por homens. As remodelações urbanas, colocando abaixo quarteirões inteiros também configuram uma imagem marcante, especialmente grandes reformas urbanas pelas quais as metrópoles ocidentais passaram entre 1800 e 1900. Essas forças atraíram o olhar de fotógrafos, desde a emergência dessa forma de captar uma imagem em meados do século XIX. Como Soulages (2010, p.13) indica, toda foto é uma imagem que possibilita interrogar o passado e o presente, o contínuo e o descontínuo. A observação de uma ruína já remete ao passado, ao que existia enquanto construído (em um plano vertical), bem como a indagar qual a força destrutiva que deixou tal edificação naquele estado no presente. São questões que conduzem a imaginação ao passado e as descontinuidades provocadas em determinado momento que levaram ao colapso de uma estrutura. A ruína é um vestígio dessas forças. A fotografia “é um vestígio, é por isso que é poética” (SOULAGES, 2010, p.14), como afirma Entler (2006, p.46) “há ali um passado, e a imagem só é capaz de nos lembrar que está definitivamente esquecido. Há, portanto, a presentificação de uma ausência”. A ruína, enquanto imagem poética, abre a imaginação daquele que a observa para outro tempo, para a impotência dos sujeitos frente forças potencialmente destrutoras. A foto de uma ruína é, portanto, o vestígio de um vestígio de uma força destrutiva que já aconteceu em algum momento, mas que atinge o observador no presente. É uma presença (está aqui, enquanto objeto) de uma ausência (a foto é a ausência) de uma ausência (a ruína é também ausência). Mas a fotografia não é apenas um vestígio, um índice de que algo aconteceu. Ela é resultado de um olhar do fotógrafo, um recorte, uma produção marcada por códigos culturais de um determinado contexto. “Ser fotografado é, portanto, ser aprendido por categorias estéticas e epistemológicas” (ENTLER, 2007, p.30). Nem mesmo remete apenas ao passado, mas a uma “transcendência”, a “imagem parte de um lugar sempre situado no passado, mas aponta também na direção de uma virtualidade, isto é, constitui uma encenação quase atemporal” (ENTLER, 2007, p.30-31) onde é possível inserir uma vastidão de temas, objetos, atores e cenários. É claro que ao fotografar uma ruína, como qualquer outro motivo, o olhar de determinado fotógrafo é carregado por esses códigos que podem ser observados levando em consideração uma pesquisa sobre sua formação, história de vida, tecnologia disponível, influência dos instrumentos disponíveis, entre outros elementos. Mas o olhar sobre as ruínas sofreu mutações além desses fatores, bem como gerou sobrevivências, reconfigurando-se a partir de novas formas de produção

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 de imagens. Assim, a fotografia no século XIX, própria de uma temporalidade em aceleração, explora essa imagem poética e suas forças produtoras. As fotografias de ruínas produzidas por Charles Marville e Eugène Atget, inseridas em um contexto de transformação urbana da velha Paris, trazem consigo um olhar para velhos edifícios em demolição, juntamente com as sociabilidades que as envolviam. Essas ruínas, produzidas pela ação dos homens, resultam da força de um processo de modernização que reduzia antigas edificações a nada mais que escombros. Como Monteiro (2013, p. 5) indica, “a fotografia criou uma relação totalmente nova e moderna com a experiência do tempo.” Essas fotografias são exemplos dessa nova experiência, inclusive no que tange a própria “possibilidade de inscrição do movimento na imagem sob a forma de um ‘borrão’, conforme o objeto se desloque no espaço selecionado.” (ENTLER, 2007, p.32). Na fotografia de Marville, “3. Ancienne prison de l’Abbaye en cours de démolition lors du percement du boulevard Saint-Germain, 1854” (THÉZY, 1996), o antigo edifício ocupa o centro da imagem, mas uma carroça se desloca aos seus pés, movimento que anuncia a própria demolição da construção. Movimentos captados por práticas modernas, movimentos presentes que anunciam uma ausência próxima. Uma cidade em ruínas que logo dará espaço para uma nova e moderna Paris. Outra imagem, exemplar dessa experiência é a fotografia intitulada “Percement de l’avenue de l’Ópera à travers la Butte des Moulins, vers 1877” (THÉZY, 1996), onde a abertura de uma avenida em meio a um bairro cria uma paisagem desoladora, com inúmeras construções em curso de demolição e cavalos, bem como trabalhadores em um primeiro plano, aparecem desfocados, borrões em virtude do movimento captado pelo obturador. Os trabalhadores se enfileiram em cima dos prédios, destruindo-os de cima para baixo. Marville olha para as ruínas dessa cidade prestes a desaparecer, mas suas fotos não documentam apenas construções e espaços, elas captam as forças que os produzem. “In Charles Marville’s photographs of Old Paris, he deliberately set out to record areas of the city that were about to be demolished during Haussmanns rebuilding.” (MIRZOEFF, 1999, p.70). Ao captar edifícios em demolição nas décadas finais do século XIX, Marville encontra com seu olhar a força propulsora que encarna a modernização de outros espaços urbanos em outras sociedades. Suas fotografias são uma imagem poética dessa força. Eugène Atget também expressa esse encontro com o tempo e com a modernização como força destrutiva. Na foto “La maison nº 5 de la rue Thouin (5e arr.), 10 août 1910. Le jour de sa démolotion” (KRASE, p.48), a edificação em processo de demolição, também de cima para baixo, divide espaço com duas pessoas, uma parada e outra em movimento, captada apenas como um borrão, um fantasma da antiga cidade. Embora se considerasse um fotógrafo que buscava documentar a velha Paris, seu olhar extrapola uma simples documentação: os “documentos de Atget, muito mais que elementos históricos de uma sociedade em transição, são já o reflexo de uma nova era de conceitos artísticos.” (FUNDAÇÃO, 1981, p.8). Não é por acaso que muitos de seus clientes eram pintores conhecidos. O olhar de Marville e Atget explora o lado melancólico, fantasmagórico e solene das ruínas produzidas pela força das reformas urbanas. Mas as forças da modernização urbana que afetaram o olhar sobre as ruínas no século XIX não produziram imagens apenas das metrópoles e seus espaços urbanos. “O interesse pelo fragmento arqueológico, pelas ruínas da Antiguidade Clássica, pela decifração dos restos de civilizações perdidas no tempo, desenvolveu-se em larga escala neste século.” (MEDEIROS, 2011, p.167). A possibilidade de miniaturizar o mundo fornecida pela fotografia somou-se a atração por mundos antigos, uma busca por estabilidade, continuidade frente às intensas transformações pelas quais as grandes cidades europeias passavam. Exemplo desse interesse são as grandes expedições de estudiosos da antropologia e arqueologia ao redor do mundo, em busca de povos “primitivos”, do pitoresco e de ruínas de antigas civilizações. 4 Algumas fotografias de Fox Talbot estão imersas nesse olhar que busca uma espécie de “sentimento de grandiosidade”

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Medeiros (2011) cita o álbum editado por Noel-Marie Lerebours, com desenhos de paisagens, edifícios e ruínas de vários lugares, reunidos entre 1841 e 1864. Uma versão encontra-se no seguinte link: http://artmuseum.princeton.edu/collections/objects/14821, acessado em 17/06/2015 às 12:57.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 (MEDEIROS, 2011, p.171), presente, por exemplo, nas pinturas de Piranesi e Robert, mas acentuado com Friedrich no XIX. A foto “The Tomb of Sir Walter Scott, in Dryburgh Abbey”, de 1844, publicada no álbum “Sun Pictures in Scotland” 5, de 1845, é exemplar dessa compreensão das ruínas, mergulhada em uma experiência temporal própria da modernidade. A guerra também ganha destaque como uma das forças que transformam o mundo dos homens em ruínas. Seguindo com exemplos do século XIX, a Comuna de Paris e as fotografias de Bruno Braquehais do cerco entre 1870-1871 são marcantes. 6 As fotografias de prédios abandonados, arrasados por incêndios, atestam a capacidade destrutiva das guerras realizadas pelos homens e seu resultado – ruínas, sejam elas escombros de edifícios, ou escombros humanos. Ao visualizar prédios como carcaças vazias, tais imagens nos devolvem com seu olhar forças incendiárias, caóticas, que podem arrasar cidades inteiras. As fotografias de ruínas são imagens poéticas que concentram forças que escapam ao nosso controle, mesmo aquelas que não derivam da ação da natureza. Essas imagens fendem os observadores, abrem a percepção para um destino, um fim inevitável da vida individual e coletiva. Tal percepção não se limita à compreensão da ruína como vestígio, ou indício fotográfico de um acontecimento passado, também lança ponderações ao futuro, para ruínas ainda não contempladas. REFERÊNCIAS AMARANTE, Bruno. A estética da ruína como poética. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte: Escola de Belas Artes/UFMG, 2013. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. CANEVA, Catarina. Botticelli Catalogue complet des peintures. Paris: Jeanne Mettra, 1992. CANOGAR, Daniel. El placer de la ruina. In: OLIVARES, Rosa. (Dir.). Exit-Imagen y Cultura. Madrid: Olivares y Asociados, 2006. CARENA, Carlo. Ruína/restauro. In: ROMAND, Ruggiero. (Dir.). Enciclopédia Einaudi. Porto: Impr. Nacional-Casa da Moeda, 1997. CORDARO, Michele. A veduta em Roma, de Giovan Battista Falda a Giuseppe Vasi. In: BARROS, Ana Mafalda Távora de Magalhães Barros. (Coord.). Giovanni Battista Piranesi Invenções, Caprichos, Arquiteturas 1720/1780. Lisboa: Secretria de Estado da Cultura, 1993. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada ao fim de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013. DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas ensaios sobre a aparição 2. Lisboa: KKYM, 2015. DUBIN, Nina L. Futures & ruins: eighteenth-century Paris and the art of Hubert Robert. Los Angeles: Library of Congress, 2010. ENTLER, Ronaldo. Testemunhos silenciosos: uma nova concepção de realismo na fotografia contemporânea. In: ARS, São Paulo, v.4., n.8, 2006. ENTLER, Ronaldo. A fotografia e as representações do tempo. In: Revista Galáxia, São Paulo, n.14, dez. 2007. FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN. Eugène Atget fotógrafo 1857-1927. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981.

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Ver: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1997.382.4, acessado em 17/06/2015 às 13:15. Algumas fotografias do album “Siege de Paris: 1870–1871 (O cerco de Paris: 1870–1871)” está disponível no seguinte endereço eletrônico do acervo digital da Biblioteca Nacional http://www.wdl.org/pt/item/1240/#contributors=Braquehais%2C+Bruno%2C+1823-1875, acessado em 19/08/2015, às 01:06. 6

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 HARTOG, Françoise. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. HOFMANN, Werner. (Dir.) Caspar David Friedrich Pinturas y dibujos. Madrid: Museo del Prado, 1992. KERN, Maria Lucia. Imagem, historiografia, memória e tempo. In: ArtCultura, v.12, n.21, 2010. KRASE, Andreas. Eguène Atget’s Paris. Köln: Taschen, 2001. LEITE, António Santos. A casa romântica uma matriz para a contemporaneidade. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2015. MEDEIROS, Margarida. Fotografia, melancolia e a substância do objceto melancólico. In: ACCIAIUOLI, Margarida; BABO, Maria Augusta. (Coords.). Arte & Melancolia. Lisboa: Instituto de História da Arte, Estudos de Arte Contemporânea, 2011. MIRZOEFF, Nicholas. An Introduction to Visual Culture. London and New York: Routledge, 1999. MONTEIRO, Charles. Pensando sobre História, Imagem e Cultura Visual. In: Patrimônio e memória, São Paulo, v. 9, n. 2, 2013. OLIVEIRA, Márcia Carnaval de. A Retórica do Cadáver: as ruínas de Paris após a derrocada da Comuna de 1871. In: História, imagem e narrativas. Nº 18, 2014. RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos e outros ensaios. Lisboa: Edições 70, 2013. SALDANHA, Nuno. G.B. Piranesi e a poética da ruína no século XVIII. In: BARROS, Ana Mafalda Távora de Magalhães Barros. (Coord.). Giovanni Battista Piranesi Invenções, Caprichos, Arquiteturas 1720/1780. Lisboa: Secretria de Estado da Cultura, 1993. SIMMEL, George. Las ruinas. In: SIMMEL, George. Filosofía del paisaje. Madrid: Casimiro Libros, 2013. SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. THÉZY, Marie de. Charles Marville. Paris: Centre National de la Photographie, 1996. QUINTAS, Alexandra Ai. A percepção estética da ruína: a presença da ausência. In: ACCIAIUOLI, Margarida; BABO, Maria Augusta. (Coords.). Arte & Melancolia. Lisboa: Instituto de História da Arte, Estudos de Arte Contemporânea, 2011.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 5 O IMAGINÁRIO E O COTIDIANO A PARTIR DA IMPRENSA E DA LITERATURA

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NEGRA NA REVISTA RAÇA BRASIL .................................................. 241 A REPRESENTAÇÃO DAS FIGURAS MATERNA E PATERNA NOS CONTOS DE GRIMM (INÍCIO DO SÉCULO XIX) ..................................................................................................................................................... 249 ANARQUISTAS, SOCIALISTAS E AS CRITICAS AO COTIDIANO PORTO-ALEGRENSE ATRAVÉS DOS PERIÓDICOS A LUTA E A DEMOCRACIA (1905-1911) .......................................................................... 257 AS DEVOÇÕES MARIANAS SEGUNDO A IMPRENSA SUL-RIO-GRANDENSE: DE MARIAZINHA PENNA À MARIA ELIZABETH DE OLIVEIRA ......................................................................................................... 267 DERROTAS, MILITARIZAÇÃO E CONTESTAÇÃO: O FUTEBOL BRASILEIRO NA IMPRENSA ALTERNATIVA DO PERÍODO DA DITADURA MILITAR (1974-1978)............................................................................. 275 ERGUEM-SE ESCURAS BANDEIRAS, ENTOAM-SE CANÇÕES DE PROTESTO: PINCELADAS SOBRE O IMAGINÁRIO ANARQUISTA DO 1º DE MAIO ...................................................................................... 283 FICÇÃO E HISTÓRIA: AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NAS CRÔNICAS DE NIREU OLIVEIRA CAVALCANTI ........................................................................................................................................................... 293 GÊNERO MARAVILHA: NARRATIVA E REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO NAS HISTÓRIA EM QUADRINHOS DA MULHER-MARAVILHA ................................................................................................................... 299 IMPRENSA, ARTE E IMAGINÁRIO: TECENDO RELAÇÕES SOBRE A PINTURA RODEIO, DE PEDRO WEINGÄRTNER ................................................................................................................................... 307 DANIEL DEFOE E A SUA HISTÓRIA GERAL DOS PIRATAS: UM EXEMPLO DE HISTÓRIA PÚBLICA ANTES DA HISTÓRIA ............................................................................................................................................ 315 O HORROR EM QUADRINHOS: A REPRESENTAÇÃO DA SHOAH EM MAUS (1986-1991) ................... 323 “O QUE PELOTAS NÃO TEM E DEVERIA TER”: OS PROBLEMAS URBANOS DA PRINCESA DO SUL SOB A ÓTICA DA IMPRENSA .......................................................................................................................... 331 REPRESENTAÇÕES DO IMPÉRIO DO BRASIL NO PERIÓDICO PORTENHO EL MOSQUITO DURANTE A OCUPAÇÃO DO PARAGUAI PÓS-GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA (1870-1876) ................................... 337 “VALENTÕES E BÊBADOS MANDADOS PARA OS LADOS DE TORRES”: UMA ANÁLISE DO COTIDIANO IMIGRANTE EM TEMPO DE SOLIDÃO, DE JOSUÉ GUIMARÃES ........................................................... 347

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NEGRA NA REVISTA RAÇA BRASIL 1 Larissa Adams Braga 2 A REVISTA RAÇA BRASIL A Raça Brasil surgiu no ano de 1996, consequência da chamada nova imprensa negra. Segundo Santos (2007), isso é resultante da ampla consciência etnicista que ocorreu nos anos 1960 e teve suas forças retomadas a partir de 1990. Somado a isso, nessa mesma década, a identificação de uma significativa classe média negra no Brasil favorece o surgimento da revista que objetiva suprir esse público. Aborda temas como o racismo, discute a conscientização e valorização do negro na sociedade, bem como incentiva a autoestima positiva. Além disso, contempla temas relacionados ao mercado de trabalho, a moda e comportamento, caracterizando-se como uma revista de variedades voltada para os negros. Em circulação há vinte anos, a revista já passou por três editoras 3, sendo que em 2015 iniciou uma nova fase e está sob a responsabilidade da Editora Minuano. Sobre a proposta de representar o negro de maneira positiva, Santos (2007) assevera: A revista Raça Brasil produz valores sobre o negro que são partilhados na sociedade brasileira, através da ampla exposição de textos e imagens positivas de afrodescendentes. Além disso, principalmente na primeira fase, apresenta um discurso contundente, de afirmação de valores positivos sobre o negro. (SANTOS, 2007, p.09) Segundo o autor, a representação positiva do negro na revista ocorre independente de gênero, no entanto, seu público alvo é o feminino, principalmente a partir do ano 2000, momento em que a revista agrega assuntos mais voltados à moda e estilo. O pesquisador ainda ressalta uma alteração no conteúdo das edições anteriores ao ano 2000, destacando o enfoque mais político e preocupado da revista com problemas sociais. A partir de então a Raça Brasil volta-se mais ao consumo e à moda. Isso se confirma, ao ler o texto informativo no site da atual editora 4, que resume a configuração da revista da seguinte forma: Com uma linguagem direta e acessível RAÇA BRASIL eleva a autoestima e resgata a dignidade do leitor, produzindo matérias de comportamento, beleza, esporte, saúde, moda, cultura, variedades, turismo, relações familiares, vida dos famosos, entre outros temas, sempre destacando a participação do negro na sociedade brasileira, como referência para aqueles que já conquistaram um alto poder de consumo, são exigentes e sempre querem o melhor e buscam identificação com a revista para se sentirem valorizados. (EDITORA MINUANO, site. Acesso em julho de 2015) Cabe ressaltar algumas críticas que são tecidas sobre o público alvo no momento atual, ou seja, “aqueles que já conquistaram um alto poder de consumo.” Alguns críticos mencionam o poder de consumo como um fator negativo da revista, levando em consideração que a maioria dos negros brasileiros possuem baixo poder aquisitivo, como afirmado por Suzana Tavares (2010), dizendo que ao escolherem uma linguagem mercadológica para falar de autoestima, cidadania e consciência racial, podem acabar esquecendo o grande problema que assola a maioria dos negros brasileiros: o baixo poder aquisitivo, já que boa parte sobrevive com um salário mínimo ou está desempregada.

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Trabalho submetido para o I Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-americanos, da UNISINOS (RS). Ocorrido em agosto de 2015. 2 Bacharela em Moda e mestranda em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade FEEVALE. (RS). Bolsista PROSUP/CAPES. E-mail: [email protected] 3 A Editora Símbolo lançou a revista no ano de 1996 e a Editora Escala foi responsável pela revista até o ano de 2014. 4 Site da Editora Minuano, disponível em: , acesso em julho de 2015.

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Contudo, Tavares (2010) não expõe somente críticas, ela pondera ao mencionar que, embora tenham levantado a discussão sobre a questão do consumo retirando o foco inicial da revista, a Raça Brasil foi e é um importante veículo que oportuniza a presença do negro nos meios midiáticos. IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO: AS MULHERES NEGRAS NA REVISTA Entende-se neste estudo que as imagens e textos da Revista Raça Brasil constituem representações as quais podem ser relacionadas à uma produção coletiva e individual (Pesavento, 2008). Sendo assim, a mídia impressa colabora e influência na construção de representações acerca das mulheres. De acordo com Tania Regina de Luca (2012), “especialmente a partir das três últimas décadas do século XX, a lógica do mercado passou a encarar as mulheres como sujeitos segmentados e plurais, que compõem parcelas crescentes da força de trabalho” (De Luca, 2012, p.458). Para a autora, as mudanças ocorridas desde então, alterando padrões socioculturais não passaram despercebidas pela mídia impressa, pois “o mundo dos impressos periódicos não permaneceu alheio” a tais alterações. Bebel Nepomuceno (2012) no texto intitulado “Mulheres Negras”, destaca também as conquistas das mulheres ao longo dos anos, ressaltando a conquistas de direitos e menciona que as “mulheres de boa parte do mundo, e em particular do Brasil, alçaram voos de dimensões então inimagináveis”. (NEPOMUCENO, 2012. p.382) Contudo, a autora assevera que tal trajetória não se aplica homogeneamente posto que, mulheres de diferentes grupos sociais vivenciaram essas mudanças em ritmos e de maneiras distintas. Nesse sentido, ressalta a situação de desigualdade entre as das mulheres negras. Segundo a autora: Às mulheres negras não coube experimentar o mesmo tipo de submissão vivido pelas mulheres brancas de elite no início do século XX. Tampouco seu espaço de atuação foi unicamente o privado, reservado às bem nascidas, uma vez que, pobres e discriminadas, se viram forçadas a lançar mão de uma gama de estratégias para sobreviver e fazer frente aos desafios cotidianos. (NEPOMUCENO, 2012. p.383) Além disso, Nepomuceno (2012) chama atenção para outras dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras, tais como: trabalho, educação, família, mobilização e visibilidade. A mesma autora aborda também o enegrecimento da luta feminista, do movimento da consciência negra e de como essas lutas são importantes para a mulher negra ganhar visibilidade e romper com o “protagonismo ignorado” 5. Sobre a luta das mulheres negras no Brasil, Matilde Ribeiro (1995) diz que o movimento feminista e o negro ressurgiram no país em meados dos anos 1970, coincidindo com a ditadura militar, tendo como eixos básicos a luta pela democracia e contra as desigualdades sociais. A autora, porém, acrescenta que em ambos os movimentos as mulheres negras aparecem como sujeitos implícitos nessas lutas, partiu-se de uma suposta igualdade entre as mulheres, assim como não foi considerado pelo movimento negro as diferenças entre homens e mulheres. Segundo Ribeiro (1995, p.447): Para nós, o racismo constitui uma sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos de violência sobre a mulher negra. O engendramento da mulata e da doméstica fez-se a partir da figura da mucama. A doméstica nada mais é do que a mucama permitida a dar prestações de bens e serviços. (RIBEIRO, 1995, p.447)

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Artigo da autora é intitulado “Mulheres negras: protagonismo ignorado”.

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Ainda de acordo com Ribeiro (1995), as mulheres presentes nesses dois movimentos (feminista e negro), buscavam desmascarar suas exclusões sociais. Embora esses movimentos tenham surgido em 1970, é a partir do ano de 1985 que começaram a perceber uma organização específica de mulheres negras a nível nacional, sendo que, na década de 1990, como Santos (2007) afirma, as políticas de afirmações ficaram ainda mais fortes e ganharam visibilidade no Brasil. Sendo assim, coincidindo com esse período histórico de lutas por igualdades sociais e raciais, a revista Raça Brasil surge não por mero acaso, mas como um importante meio para a divulgação do sujeito negro, em um contexto histórico cuja luta dos negros (homens e mulheres) ganhava mais espaço em meio à sociedade. Faz-se importante entender a Raça Brasil, como um veículo de comunicação que entra em cena trazendo uma representação (ou representações) acerca dos sujeitos negros homens e mulheres, bem como contempla em suas matérias elementos políticos vinculados à uma proposta de afirmação e valorização dos negros e negras no cenário nacional. No tocante ao entendimento sobre representação Roger Chartier (2002) aponta dois sentidos para representação: a) intenção de representar algum objeto ausente, fazendo uma ligação com a memória; b) intenção seria de representar, simbolicamente, um objeto presente, valendo-se dos signos e significados atribuídos às coisas. Para Chartier (2002) a representação de um grupo, pode também remeter à ideia de identidade, pertença e unidade: nesta última podemos pensar nas representações midiáticas, pois as mulheres negras não têm muita visibilidade. [...] As diversas relações que os indivíduos ou grupos mantêm com o mundo social: primeiramente, as operações de recorte e classificação que produzem as configurações múltiplas graças às quais a realidade é percebida, construída, representada; em seguida, os signos que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto, uma ordem, um poder; enfim, as formas institucionalizadas através das quais “representantes” encarnam de modo visível, “presentificam”, a coerência de uma comunidade, a força de uma identidade. (CHARTIER, 2002, p.169) Conforme abordado por Stuart Hall (1997), a representação conecta o significado e a linguagem à cultura. A representação significa o uso da linguagem para dizer algo com significado ou representar o mundo significante para outras pessoas, sendo assim, podemos entender que representação é parte essencial do processo pelo qual o significado é produzido e permutado para os membros de uma cultura. E isso envolve o uso da linguagem, de sinais e imagens que representam as coisas. Entende-se que ao pensar em representação é relevante trazer à tona a percepção sobre imaginário social. Maffesoli (2001) explica o imaginário como uma construção mental coletiva e diz que não existe o imaginário de um indivíduo, pois, todos sofrem pelo imaginário do grupo o qual estão inseridos. O imaginário, de acordo com o autor, compõe a imagem e é a partir dele que as atmosferas sociais vão criando forma. Maffesoli, menciona que o imaginário funciona pela interação. Para o autor: O imaginário é alimentado por tecnologias. A técnica é um fator de estimulação imaginal. Não é por acaso que o termo imaginário encontra tanta repercussão neste momento histórico de intenso desenvolvimento tecnológico, ainda mais nas tecnologias de comunicação, pois o imaginário, enquanto comunhão, é sempre comunicação. (MAFFESOLI, 2001, em: Revista FAMECOS p.80) A comunicação, principalmente em massa- é de extrema importância para a construção do imaginário social, servindo como um meio para disseminar ideias coletivas e fixar representações (BACKZO, 1995). Pensando nos meios de comunicação e principalmente na Raça Brasil, como um veículo de comunicação, é pertinente relacionarmos ao entendimento de representação e imaginário, a perspectiva em torno da identidade

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Patrick Charaudeau (2009), diz que na contemporaneidade se tem tratado a identidade como o fundamento do ser: é o que permite ao sujeito tomar consciência de sua existência. Ainda salienta que é o que se dá através da tomada de consciência de seu corpo, de seu saber, de seus julgamentos e de suas ações. A identidade, portanto, implica a tomada de consciência de si mesmo. Na construção da identidade, afirma Pollak (1992), há três elementos essenciais: a unidade física, a continuidade dentro do tempo e o sentimento de coerência. Para melhor entender: Há a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do copo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados. ( POLLAK, 1992,p.5) Charaudeau (2009) traz outra questão pertinente à discussão sobre identidade, dizendo que se constitui uma identidade de si em diferença de “ser o que não é o outro”. É o chamado de princípio de alteridade, a relação com o outro se institui através de trocas que fazem com que cada um dos parceiros se reconheça semelhante e diferente do outro. Segundo o pesquisador, as diferenças são extremamente necessárias para a construção de uma identidade, mas ao tomar consciência do outro, pode-se acontecer rejeição e não aceitação da diferença. Complementa: O risco está no fato de que, ao rejeitar o outro, o eu não disponha mais da diferença a partir da qual se definir; ou, ao torná-lo semelhante, perca um pouco de sua consciência identitária, visto que esta só se concebe na diferenciação. Daí o jogo sutil de regulação que se instaura em todas as nossas sociedades (mesmo nas mais primitivas) entre aceitação e rejeição do outro, valorização ou desvalorização do outro, reivindicação de sua própria identidade contra a do outro. (CHARAUDEAU, 2009, p.2) A identidade social tem como particularidade a necessidade de ser reconhecida pelos outros, é o que confere ao sujeito seu “direito à palavra” e o que o torna legítimo. Esse processo pelo qual o sujeito ou um grupo é legitimado é o de reconhecimento de um sujeito por outros sujeitos, em nome de um valor aceito por todos. Portanto, a legitimidade depende de normas institucionais, que regem cada domínio da prática social e que atribuem funções, lugares e papéis aos que são investidos através de normas estabelecidas. (Ibidem, p.4) Pollak (1992) concorda e afirma que ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se faz por meio da negociação direta com outros. Ainda ressalta que a memória e identidade são negociáveis e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. Compreendido que identidade está relacionada ao sentimento de pertença e unidade, porém, não é sólida e nem imutável, destaca-se uma capa da Revista Brasil, a partir da qual podemos constatar a presença de uma representação da mulher negra:

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Figura 1 – Capa Edição 02

Fonte: Revista Raça Brasil, editora Símbolo nº 02, ano 1, outubro de 1996. A capa selecionada apresenta no lado esquerdo as seguintes matérias: Cabelos – tratamento para você ficar linda 6, Moda – tendências para primavera/verão; Entrevista- Glória Maria abre o jogo e fala de preconceito e seu trabalho na TV; Geração Black – Homem negro é mesmo imbatível na cama?; e em maior destaque a imagem de Camila Pitanga e em letras maiores destacando-se a frase: “Tenho orgulho de ser negra”. A fala da atriz somada à imagem de Camila Pitanga junto com o pai (como coadjuvante, pois seu nome aparece em letras reduzidas), indica que a chamada principal da revista está voltada para o público feminino. Nota-se também a chamada para a entrevista de Glória Maria, jornalista e apresentadora da TV Globo. Pode-se pensar que as mulheres negras apresentadas na capa, a atriz e a jornalista passam uma imagem de sucesso profissional e trazem relatos de orgulho de sua cor. A mesma edição contempla seis colunas que podem ser classificadas como “moda e beleza”, e aqui escolhidas para representantes da mulher na revista, são elas: 1) Arrase neste verão (a partir da página 54 da revista); 2) Esta moda vai virar – inspirações no Rap (página 96); 3) Cabelos lindos, leves e soltos (página 47); 4) Besame mucho- dicas de batons e maquiagem (página 62), 5) Arco-íris na cabeça (na página 72); e 6) Negra gata (página 95); O termo “moda” que utilizamos aqui, é explicado por Georg Simmel (2014), que em seu estudo Filosofia da Moda, traz as diversas facetas do mundo fashion, transcende o senso comum que caracteriza a moda como algo fútil, posto que o autor atribui à moda um sentido antropológico. Simmel (2014) salienta que a moda, fazendo uso do vestuário e qualquer adorno, enfeite ou pintura corporal, tem a capacidade de incluir ou excluir um sujeito de um grupo, pois é um constante estado de devir. Através das roupas e demais adornos, portanto, um sujeito pode se identificar de 6

Destaque para a palavra “linda”, usada no feminino – destinando-se às mulheres leitoras da revista.

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diversas maneiras. Assim aconteceu na história, roupas já diferenciaram classes, culturas, religiões e rituais. Ou seja, a moda pode atuar como uma afirmadora de identidade de um grupo. Nesse sentido, pode-se pensar que a revista, ao se apropriar de colunas de moda e beleza, enaltece a identidade negra. Nas colunas mencionadas, se têm dicas de vestuário, de penteados de cabelo e opções de maquiagem, todas elas respeitando as características físicas da mulher afrodescendente, ou seja, há penteados e tratamentos especiais para cabelos cacheados, bem como dicas de maquiagens específicas para o tom da pele negra. Quanto ao vestuário, a revista se propõe em trazer as tendências mundiais do mundo da moda, utilizando modelos negras e mostrando como essas tendências podem ser aplicadas no dia-a-dia. Ademais, há um editorial inspirado na cultura das ruas, utilizando elementos do rap nacional, neste editorial de moda aparecem homens e mulheres posando juntos. A coluna “Negra Gata” desta edição, traz a modelo e cantora baiana Simone Moreno, que concede uma entrevista explicando seu sucesso e suas preferências pessoais, enaltecendo seu sucesso profissional e enfatizando sua beleza negra. O DISCURSO MIDIÁTICO Charaudeau (2013) explica em seu livro “Discurso das mídias” as seguintes questões: a) a mídia é um importante meio de informação, sedução e formação de opinião; b) toda imagem ou texto tem um poder de evocação, passível de interpretação de quem as lê; c) as mídias são manipuladoras e manipuladas, ao mesmo tempo; d) as mídias exercem também um poder político e social. De acordo com o autor: Por um lado, as representações da instância midiática sobre o alvo da informação, sobre o interesse e a afetividade do alvo, representações que tendem a privilegiar a emoção sobre a razão e a construir esse alvo como um conjunto homogêneo de valores e crenças. Por outro lado, as representações da instância midiática a respeito de si mesma quanto a seu próprio engajamento, que se presume neutro do ponto de vista político, mas engajado do ponto de vista da moral social. (CHARAUDEAU, 2013, p.258) Seguindo o entendimento do autor, fica claro essa intenção de informar, mas também de captar a emoção do leitor a quem a mídia se destina. Um discurso midiático vai além da informação, pois pretende alcançar a emoção ou algum posicionamento de seu público. Neste sentido, destaca-se que a revista Raça Brasil é destinada para um público alvo muito bem definido, isso faz com que seu discurso midiático seja específico, como Rudiger (2013) aponta em um de seus estudos, “o público se forma junto com a opinião elaborada por eles e é assim que “o jornalismo o leva aonde quiser” (TARDE Apud RUDIGER, 2013,p. 43), e acrescenta que deve ser entendido que a opinião que é elaborada por ele (veículo) não é senão a do próprio público. As pessoas escolhem e compram os jornais ou revistas que satisfazem suas aspirações, desejos e reafirmem suas crenças e ideologias. De acordo com Charaudeau (2013), é possível verificar que o discurso midiático pode tanto convencer (como aponta o discurso político), quanto seduzir (discurso publicitário). Estabelece-se aqui que a revista Raça Brasil, tem mais do que discursos informativos, pois apresentam matérias sedutoras 7 como dicas de beleza e um apelo à moda e ao consumo de identidade, tudo muito sedutor, afinal, quem não quer ficar linda? Assumir seus cachos? Ter a beleza e identidade negra consagrada? Ter orgulho de ser o que se é? Com certeza faz um apelo à estética para uma valorização positiva do ser negra. Ademais, ao ver essa aproximação com a moda e estética, esse depoimento pode complementar: […] a moda se adapta ao comportamento da sociedade. O que ocorre na moda não é diferente de outras áreas: ainda há poucos políticos negros, poucos executivos negros em cargos de diretoria e poucos negros até mesmo na 7

Destaca-se o termo proposto por Charaudeau (2013), uma vez que as instâncias midiáticas podem buscar seduzir o leitor. Ao fazer uso da emoção ou convicções pertinentes ao seu público.

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publicidade tradicional. Na atualidade, o discurso por inclusão e diversidade é muito forte, e nada mais natural e urgente do que a moda abraçar esta causa e abrir espaço para que todos os biótipos possam trabalhar, e para que o público tenha diferentes referenciais. (JUNIOR. Revista Afro. Online, acesso em julho de 2015) Nessa citação da Revista Afro, pode-se ver a importância da moda no papel social. A revista Raça Brasil reafirma positivamente a identidade do ser negra. Esse tipo de abordagem midiática é muito importante para uma representação positiva e pode ser entendida como um caminho de luta contra preconceitos. Como afirma o sociólogo Guimarães (2007) em uma entrevista: Seria difícil listar políticas concretas de combate à discriminação, mas, a guia de exemplo, direi que todas as medidas que abram o mercado de trabalho aos negros, principalmente, na mídia e nos postos de exposição e visibilidade, são mais eficientes, porque afirmativas, que a criminalização do racismo, que é apenas negativa e punitiva. Em curto prazo, funcionam as políticas de ação afirmativa; em longo prazo, funcionam políticas que efetivamente universalizem o acesso a bens e serviços. (ENTREVISTA Fry e Guimarães, 2007) A partir da percepção do pesquisador, pode-se afirmar que a representação midiática dos negros, e nesse caso das mulheres negras, como um consumo de identidade a disseminação do orgulho étnicoracial, vai muito além de matérias de entretenimento, pois busca um papel importante na luta contra o racismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por se tratar de um estudo em andamento, o qual se desdobrará em forma de dissertação de Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, destaca-se somente alguns elementos obtidos a partir da investigação inicial da Revista Raça Brasil, dentre os quais podemos elencar: a) A revista Raça Brasil surgiu em um contexto histórico nacional no qual os movimentos de afirmação (negro e feminino) ganhavam forças, não por mero acaso, a revista veio como um importante canal para a comunidade negra brasileira; b) A revista em estudo tem grande parte do seu público voltada ao feminino, ainda que seja uma revista de variedades; c) Em suas chamadas na capa ilustrada aqui neste trabalho, aparenta que a revista tem matérias de moda e beleza que possibilitam uma afirmação do ser negra; d) Como um veículo midiático, a revista tem um papel importante em disseminar um discurso positivo para seus leitores; e por fim e) A revista tem grande impacto na sociedade brasileira, uma vez que é um meio de comunicação massivo, com circulação nacional. Essas considerações, embora parciais, demonstram a importância da revista para os estudos sobre a representação das mulheres negras em nossa sociedade, principalmente mostrando a relevância de desconstruir estereótipos constituídos em um processo histórico em que a marca latente era (e ainda é) uma insistente desvalorização dos negros e negras brasileiros. REFERÊNCIAS BACKZO, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et all. Anthropos-homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto. 2013 CHARAUDEAU, Patrick. Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da competência comunicacional. In: PIETROLUONGO, Márcia. (Org.) O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 309-326. CHARTIER, Roger. À Beira da falésia. A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 2002. EDITORA MINUANO. Site. Disponível em: , acesso em julho de 2015.

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ENTREVISTA Peter Fry e Antônio Sérgio Guimarães falam sobre ações afirmativas. 2007. Disponível em: Acesso em julho, 2015. HALL, Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,2006 HALL, Stuart. The work of representation. In:____.Representation: cultural representations and signifying practices. London/The London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage/The Open University, 1997. (trad. Ricardo Uebel) JUNIOR, Paulo Jorge. O momento das modelos negras na moda mundial. Revista Afro. (online) Disponível em: Acesso em 10 de julho de 2015. LUCA, Tania Maria de. Mulher em Revista. In: PINSKY, Carla B; PEDRO; Joana Maria (orgs.) Nova História das Mulheres no Brasil: São Paulo: Contexto, 2012. p.447-468. MAFESSOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. (entrevista). Revista FAMECOS. Porto Alegre, nº 15, agosto de 2011. NEPOMUCENO, Bebel. Mulheres negras: protagonismo ignorado. In: PINSKY, Carla B; PEDRO, Joana M(organizadoras). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. PESAVENTO, SANDRA. História O mundo da imagem: território da história cultural. In: PESAVENTO, Sandra; SANTOS, Nádia Maria W.(orgs.) NARRATIVAS, Imagens e Práticas Sociais. Percursos em História Cultural Porto Alegre: Asterisco, 2008.p.99-122. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. RAÇA BRASIL. São Paulo: Editora Símbolo. Nº 02, ano 1. Outubro de 1996. RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: De Bertioga a Beijing. Revista Estudos Feministas Nº 2, 1995 RÜDIGER, Francisco. As teorias da imprensa do liberalismo tardio na era do jornalismo de massa. 9º Encontro Nacional de História da Mídia. Anais... Ouro Preto: UFOP, 2013. SANTOS, João Batista Nascimento dos. O negro representado na revista Raça Brasil. Revista IDENTIDADE! Vol. 11, 2007. Disponível em: Acesso em maio de 2015. SIMMEL, Georg. Filosofia da moda. 2 ed. Lisboa, Portugal: Edições Texto e Grafia, 2014. TAVARES, Suzana. Revista Raça Brasil: Identidade, afirmação e polêmica. 2010. Disponível em: Acesso em julho de 2015.

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A REPRESENTAÇÃO DAS FIGURAS MATERNA E PATERNA NOS CONTOS DE GRIMM (INÍCIO DO SÉCULO XIX) Cláudia Gisele Masiero 1 “Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.” Schiller INTRODUÇÃO Este estudo visa refletir sobre a maneira como são representadas as figuras materna e paterna nos contos de Grimm, considerando-os como produtos culturais, o que possibilita que, em parte, se compreenda, através deles, o contexto histórico-social do qual são oriundos. Para tanto, toma-se para análise os contos dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, publicados no início do século XIX, cujo acesso se deu através da obra traduzida por David Machado Junior, intitulada Contos de Grimm, publicada em 2008. Os contos são analisados através da metodologia da análise de conteúdo. A delimitação do corpus documental seguiu duas considerações básicas, primeiro, estar entre os contos mais conhecidos dos referidos autores, conforme assim se julgou; segundo, que entre os seus personagens houvesse a figura materna ou paterna, ou ambas. Os dez contos que constituem o corpus documental são: Cinderela, A Bela Adormecida, João e Maria, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Polegar, Rumpelstiltskin, Os sete corvos e Bicho Peludo. Pretende-se analisar como as figuras materna e paterna, individualmente, são representadas nesses contos através de cinco categorias, como se verá adiante, que possam resultar em uma síntese sobre o que os textos falam sobre elas. Escolheu-se os contos de Grimm porque foram publicados no início do século XIX, como já se disse, quando houve uma grande eclosão de estudos sobre a infância. Sobretudo, segundo Heywood (2004), quando os pais passaram a receber uma carga maior de orientação de médicos e outros profissionais para a criação dos filhos e, quando então, esses autores compilam vários contos de fadas acrescentando-lhes a magia e a fantasia pensando também na criança. É nesse novo contexto que se torna interessante refletir sobre como a figura dos pais foi representada, pois estavam eles passando por um momento de mudanças no exercício de seus papéis. Considerando que, “cada história, em sua versão, agrega em si valores particulares, ligados à história e ao contexto do autor que a escreveu ou transcreveu, somados os valores universais, que estão na espinha dorsal ou na estrutura desses contos” (CANTON, 2009, p. 8). Ainda neste sentido, Martin Dreher (2014), diz que o prefácio da obra dos irmãos Grimm, aponta para os inúmeros recursos e informações contidas nos contos populares. Nos fala, ainda, da possibilidade de uso de tais contos como fonte não só para a mentalidade camponesa alemã, mas também para a situação de miserabilidade em que se encontrava a população autora dos contos. Considerar um texto literário como fonte histórica nem sempre foi possível, este não era considerado como um documento oficial, capaz de conter a “verdade histórica”. Foi preciso compreender que “a história também comportava dimensões subjetivas, imaginárias, oníricas e ficcionais, tão importantes quanto os acontecimentos políticos sociais e econômicos” (FERREIRA, 2009, p. 84). Além de colocar o conceito de “verdade” em discussão. Enfim, isso moldou uma história voltada para a compreensão da complexidade e da totalidade das experiências humanas, exigindo uma postura interdisciplinar, aproximando-a das áreas de conhecimento vizinhas, conforme afirma Ferreira (2009). Ainda, segundo ele, nas últimas décadas os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados ao entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo.

1

Mestra em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale.

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Para analisar os dados obtidos por meio da análise de conteúdo, sobre a qual se falará posteriormente, faz-se uso do conceito de representação, segundo Chartier (2002). Segundo esse autor, tal conceito está ligado ao entendimento do modo como, em diferentes momentos históricos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Trata-se de entender os processos pelos quais se constrói um sentido. Todas as práticas ou estruturas são permeadas por tais representações. O autor acredita que As representações do mundo social são assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 2002, p.17). Para a análise da representação das figuras materna e paterna nos contos se procurará ver essa problemática, moldada através das falas que as constroem e a estruturam dentro de cada narrativa, conduzindo, obrigatoriamente, a uma reflexão sobre a mentalidade da época e dos próprios escritores. OS CONTOS DE GRIMM Sabe-se que os contos de fadas há milênios estão presentes na cultura de diversos povos, “surgem nos primórdios da tradição oral, passando por manuscritos medievais - a maioria deles, anônimos - e chegando a partir da invenção da prensa até a Literatura” (CANTON, 2009, p. 8). Ao longo do tempo foram se modificando, novas histórias e novas versões foram surgindo. Mesmo com o advento da tecnologia continuaram a ser passados de geração para geração e ainda estão presentes em nosso cotidiano como “um veículo transmissor de conhecimento e de valores culturais, e levantam questões com as quais todo indivíduo se vê confrontado” (MESQUITA NETO; BERVIQUE, 2010, p.1). Robert Darnton (1986) afirma, também, que os contos populares são documentos históricos. Diz que surgiram ao longo de muitos séculos e que sofreram diferentes transformações em diferentes tradições culturais, as quais sugerem a própria mudança de mentalidade. Até o século XII os contos eram essencialmente narrados oralmente e se destinavam a pessoas de qualquer idade, “em sua essência, não eram destinados ao universo das crianças, uma vez que as histórias eram recheadas de cenas de adultério, canibalismo, incesto, mortes hediondas e outros componentes do imaginário dos adultos” (SCHNEIDER; TOROSSIAN, 2009, p. 134). Eles eram parte do lazer e da distração, contados tanto em tabernas e nas simples rodas de amigos, quanto nos salões da alta nobreza. Mas “os contos de fadas, outrora narrados por camponeses ao pé da lareira para afugentar o tédio dos afazeres domésticos, foram transplantados com grande sucesso para o quarto das crianças onde floresceram na forma de entretenimento e edificação” (TATAR, 2004, p. 10). O francês Charles Perrault, no século XVII, ao recolher, na forma escrita, uma produção que, até aquele momento era de natureza popular, é o responsável pelo primeiro impulso à literatura infantil, segundo Hillesheim e Guareschi (2006). Já os irmãos Grimm, no século XIX, contribuem para que se estabeleçam os contornos do que seria uma obra voltada às crianças. Os irmãos Grimm, como são conhecidos Jacob Ludwig Grimm (1785 - 1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786 - 1859), formaram-se em direito, mas se dedicaram realmente ao magistério, foram professores nas universidades de Göttingen e Berlim, além de se inclinarem também aos estudos linguísticos, folclóricos e históricos, assim como à Literatura. O primeiro livro que publicaram foi “Kinder und Haus Märchen”, primeiro volume em 1812 e segundo em 1815, originalmente em língua alemã. Registraram aproximadamente duzentos e dez contos e, em seus livros, no decorrer das diversas edições que publicaram e modificaram aos poucos, os irmãos Grimm criaram um estilo muito próprio de contar histórias. Cada vez mais Jacob e Wilhelm utilizaram uma forma mais direta e terna de escrever, usando diminutivos e palavras carinhosas, aproximando-se do seu público leitor (CANTON, 2009, p.35).

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Dentre os contos que compilaram e publicaram, nota-se a preferência por aqueles que apresentam mensagens positivas, ficando clara a intenção moralista e educativa dos contos. Segundo Hillesheim e Guareschi (2006), se a desobediência, a maldade, a mentira e todos os vícios são castigados, já a bondade, a obediência, enfim, as virtudes são recompensadas nesses contos. As autoras ainda acrescentam que a omissão dos detalhes eróticos e as palavras grosseiras, se explica porque na modernidade, especialmente nos séculos XVIII e XIX, a família e escola retiraram as crianças do mundo dos adultos, imbuídos por uma nova concepção de infância que estava sendo consolidada. E, que o sofrimento e as cenas violentas permaneceram, possivelmente para marcar a importância da obediência aos princípios educativos. A REPRESENTAÇÃO DAS FIGURAS MATERNA E PATERNA NOS CONTOS DE GRIMM ANÁLISE DE CONTEÚDO Para analisar a forma como as figuras materna e paterna foram representadas nos contos de Grimm, a metodologia escolhida foi a análise de conteúdo, como dito anteriormente. Segundo Bardin, o termo “análise de conteúdo” designa um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (2004, p. 42). Não é uma simples técnica de análise de dados. Representa uma abordagem metodológica com características e possibilidades próprias, pois “uma boa análise de conteúdo não deve limitar-se à descrição. Sua vertente mais atual, ou seja, a qualitativa 2 , não se preocupa apenas com aspectos quantitativos, mas permite inferências. Desse modo, as informações e os dados quantificados também serão interpretados. É importante que procure ir além, atingir compreensão mais aprofundada do conteúdo das mensagens mediante inferência e interpretação” (MORAES, 1999, p. 24). Segundo Bardin (2004), as fases da análise de conteúdo organizam-se em três pólos cronológicos: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados, quando da inferência e da interpretação destes. A primeira fase é quando se dá o encontro com a fonte e a sua delimitação e a exploração do material, que é a segunda fase, “não é mais do que a administração sistemática das decisões tomadas” (BARDIN, 2004, p. 101). Nesse momento, fez-se o tratamento do material, administrando a técnica sobre o corpus, que são os documentos tidos em conta para serem submetidos aos processos analíticos. A técnica que se julgou mais apropriada para esse estudo foi a análise categorial, não porque é a mais antiga e na prática a mais utilizada, mas porque foi a que melhor correspondeu aos propósitos do estudo. Sabe-se que “as categorias representam o resultado de um esforço de síntese de uma comunicação, destacando neste processo seus aspectos mais importantes” (MORAES, 1999, p. 19). Assim, durante a análise do corpus, estabeleceram-se algumas categorias temáticas, de modo que as unidades do texto, ou seja, a maneira como foram representadas as figuras materna e paterna nos contos, fossem submetidas a elas. Primeiramente analisou-se a figura materna e posteriormente a paterna. Através da tabela 1 se tem o resultado da exploração do material considerando a figura materna.

2

Segundo Bardin, “na medida em que a análise de conteúdo é utilizada como um instrumento de diagnóstico, de modo que se possa levar a cabo inferências específicas ou interpretações causais sobre um dado aspecto (...), o seu procedimento não é mais quantitativo” (2004, p.21).

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Tabela 1 - Resultado quantitativo da análise de conteúdo dos contos de Grimm considerando a figura materna.

Contos de Grimm

1. Mãe amorosa e presente

Cinderela A Bela Adormecida

4. Mãe como geradora do conflito e perigo na narrativa

5. Não citada ou inexpressiva na narrativa

X X

João e Maria

X

Rapunzel

X

Chapeuzinho Vermelho

X

Branca de Neve

X

Polegar

X

Rumpelstiltskin

X

Os sete corvos

X

Bicho Peludo

2. Mãe ausente/relapsa

3. Figura materna falece, inclusão da figura da madrasta

X

Em seis contos a figura materna foi representada como sendo amorosa e bondosa e em quatro deles a mãe falece e aparece a figura da madrasta, que sendo má, desencadeia o conflito na narrativa. Refletindo sobre os resultados obtidos através da análise de conteúdo e buscando uma interpretação dos mesmos, pode-se dizer que a figura materna é apresentada de maneira bastante positiva na maioria dos contos analisados. Seis deles já estão classificados na primeira categoria, ou seja, mãe presente e amorosa, ou seja, exercendo o seu papel socialmente construído. Ainda, em dois dos quatro restantes, que foram classificados na terceira categoria, cita-se Cinderela e Branca de Neve, apresentamna também como desejosa de seu filho e bastante afetuosa. O que pode ser percebido através das breves falas sobre elas, antes do seu falecimento. A morte precoce da mãe em quatro dos contos é um número considerável. Sobre isso, Heywood (2004) diz que trazer crianças ao mundo era um empreendimento arriscado até o século XIX, tanto para a mãe como para o bebê. Pode-se ver que, na época, ainda era uma situação comum morrer ao dar à luz, fato representado em dois contos: Cinderela e Branca de Neve. Na história de João e Maria, esses dois personagens têm pouca idade e já possuem uma madrasta. Em Bicho Peludo a mãe adoece e morre jovem, mas esse episódio acontece anos após o nascimento de sua filha. A figura da mãe, mesmo morta, continua a se fazer presente nos contos visto que as personagens órfãs dela sempre se recordam. No conto Cinderela, por exemplo, a mãe falecida é que ajuda a garota a enfrentar suas dificuldades. Segundo Badinter (1985), no fim do século XVIII, o amor materno parece um conceito novo. Não se ignora que esse sentimento existiu em todos os tempos, se não todo o tempo e em toda parte. Mas o que é novo é a exaltação do amor materno como um valor ao mesmo tempo natural e social, favorável à espécie e à sociedade. Em seus estudos, a autora, revela a ideia de que o amor materno é uma construção social, que se afirma pouco antes do período em que os irmãos Grimm publicaram a sua obra. As personagens mães, representadas nos contos selecionados, já carregam tal característica.

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Com a morte da mãe a figura da madrasta aparece, geralmente, assumindo na família o lugar de esposa, mas sem se importar com os filhos do cônjuge. Assim sendo, a criança, tal como acontece em Cinderela, João e Maria e Branca de Neve, por exemplo, não é assistida por essa mulher que entra em sua vida e por ela ainda é desprezada. Considerando a pouca instrução da maioria das mulheres da época e a carência de recursos, não é difícil concluir que essa representação da figura da madrasta esteja bem próxima do que realmente era. Parece claro que diante da pobreza, as madrastas buscavam primeiramente suprir as suas necessidades e as necessidades dos seus filhos legítimos, deixando em segundo plano os enteados. Já na tabela 2, por meio das mesmas categorias aplicadas anteriormente, se tem o resultado da análise dos contos considerando a representação da figura paterna. Tabela 2 - Resultado quantitativo da análise de conteúdo dos contos de Grimm considerando a figura paterna.

Contos de Grimm

1. Pai amoroso e presente

Cinderela

2. Pai ausente/rela pso

3. Figura paterna falece, inclusão da figura do padrasto

4. Pai como gerador do conflito e perigo na narrativa

X

A Bela Adormecida

X

João e Maria

X

Rapunzel

X

Chapeuzinho Vermelho

X

Branca de Neve Polegar

X X

Rumpelstiltskin Os sete corvos Bicho Peludo

5. Não citado ou inexpressiv o na narrativa

X X X

Cinco dos dez contos representam a figura do pai como sendo amoroso e presente. Um deles o retratam como ausente e indiferente ao destino do filho. Dois deles mostram o pai como gerador do conflito da narrativa, como que uma ameaça. E, por fim, em um deles essa figura não aparece e, em outro, é inexpressiva, sendo apenas citada. Dessa forma se vê, a exemplo da representação da figura materna, que na maioria dos contos os pais foram também representados como amorosos e presentes. Porém, avaliando os demais, há uma diferença considerável, já que nesses a figura paterna é apresentada com uma conotação negativa ou nem aparecem na história. Sabe-se que, nesse contexto, Longas jornadas de trabalho e salários baixos também cobravam o seu preço, pois os pais estavam cansados ou deprimidos demais para dar muita atenção aos filhos. A ideologia do homem provedor os estimulava a deixar grande parte do cuidado dos filhos nas mãos das mulheres. Ainda assim, muitos pais tiveram um grande interesse na forma como seus filhos estavam se

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desenvolvendo, e todos tiveram sempre a possiblidade de ter de assumir a qualquer momento, se a mulher ficasse doente (HEYWOOD, 2004, p. 119). Assim, embora mereça destaque a quantidade de contos que mostram a figura paterna como presente na criação dos filhos, tanto pela citação acima, como pelo que se percebe através da análise do corpus, as mães assumiam de maneira mais efetiva o seu papel na criação e educação dos filhos no contexto em estudo. E, na falta dela, geralmente padeciam nas mãos da madrasta. Badinter (1985) afirma que por mais longe que remontemos na história da família ocidental, deparamos com o poder paterno que acompanha sempre a autoridade marital. É certo que isto se reflete também na representação deste personagem em algumas das narrativas analisadas. Em outras, à exemplo de Rapunzel e João e Maria, o homem cede aos caprichos da mulher, mas a autoridade, ainda assim, está implicitamente representada, uma vez que elas precisam persuadi-los para conseguirem o que queriam. A figura masculina é que teria o poder de decisão. Se por um lado a autoridade paterna continua estabelecida, ainda segundo Badinter (1985), no século XVIII um novo modo de vida aparece, desenvolvendo-se no curso do XIX, a família se volta para a intimidade, o que ajuda a conservar cálidos os laços afetivos e se recentra em torno da mãe, que adquire uma importância que jamais tivera. De certa forma, esse processo está implícito nos contos, pois as mulheres não são mais meras coadjuvantes, têm fala e atitude. A figura paterna no conto intitulado Bicho Peludo é caracterizada pela deturpação de sua função. Ao invés do zelo o pai se torna uma ameaça quando quer desposar a própria filha, ainda bastante jovem, após ficar viúvo. Cabe considerar que o choque gerado nos demais personagens frente a essa decisão demonstra a desaprovação e, possivelmente, que esse não era um comportamento recorrente. Em Rumpelstiltskin, o pai, um moleiro pobre, coloca em risco a filha para parecer importante diante do Rei, afirmando que ela fazia fios de ouro fiando palha, o que não era verdade. Sabe-se que, segundo Ariès (1981), o sentimento de família, que emerge assim nos séculos XVIXVII é inseparável do sentimento de infância, não é senão uma forma, uma expressão particular desse sentimento mais geral, afirma que a família transformou-se profundamente na medida em que modificou suas relações internas com as crianças. Ao analisar os dados obtidos percebe-se que esse sentimento de família e subentende-se de uma participação mais afetiva dos pais, continua se consolidando no século XIX, quando os contos foram registrados. Vê-se que na maioria dos dez contos a figura materna é apresentada como amorosa e presente e na metade deles a figura paterna também é vista dessa forma, confirmando a ligação e preocupação com as crianças que já se construía. Porém, outras questões podem ser analisadas, que apontam para a fragilidade dessas relações. Heywood (2004), diz que as pessoas casadas, de todas as épocas geralmente esperavam ter filhos, mas não muitos. Esclarece que nem todos os nascimentos eram bem-vindos, mesmo no âmbito do casamento. As famílias pobres, por exemplo, sempre lutavam para alimentar bocas extras que surgiam e as mães costumavam se sentir desgastadas por dar à luz repetidas vezes e que o nível de abandono em determinadas cidades era muito impressionante, em particular durante o final do século XVIII e início do século XIX. O ato de abandonar os filhos é uma situação apresentada no conto João e Maria, quando as crianças são largadas na floresta pelo pai e pela madrasta, esta última faz de tudo para convencer o marido a realizar tal ato, alegando que não havia comida suficiente para todos. Nessa versão a madrasta é na verdade uma bruxa, com a qual se encontram na floresta. O pai se arrepende e vive atormentado até que as crianças retornam salvas. Mas a representação do papel dos pais nesse conto alerta para esse problema ainda bastante recorrente, visto que proporcionar alimentação suficiente às crianças era o problema geral para os pais entre os “estratos inferiores” até o século XIX. Mantê-los aquecidos era mais um desafio (HEYWOOD, 2004, p. 96). Dreher (2014), também considerando o conto João e Maria, expõe também a situação de miserabilidade do mundo rural alemão do século XIX, época em que os contos foram compilados pelos irmãos Grimm. Segundo o autor a falta de terras e de alimento, os impostos e as dívidas a pagar e, ainda, a morte a rondar a todos eram alguns dos percalços pelos quais passavam. Estima-se que 45% dos nascidos morriam antes de atingir 10 anos, sendo que, poucos eram os que, ao se tornarem adultos, ainda tinham ambos os pais. Na sua conclusão, muitos morriam antes do final da vida fértil e, assim, madrastas

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e padrastos eram comuns. Dessa forma, inseridos nesse contexto, os pais e mães nem sempre exerceram os seus papéis tal como idealizamos hoje, mas expuseram os seus filhos. Alguns contos representam essa situação como já visto anteriormente. Pode-se destacar ainda que quaisquer que fosse a sua relação com seus filhos homens, o principal papel da mãe era o de preparar as filhas para a vida de esposa e para a maternidade, já os pais, enquanto isso, tinham a expectativa de assumir a criação de seus filhos homens, como explica Heywood (2004). Esse fato também pode ser notado nos contos de Grimm, uma vez que em Cinderela, A Bela Adormecida, Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho, as personagens principais que são do sexo feminino dialogam mais com as mães ou com as madrastas. Já em Sete Corvos vê-se um garoto recebendo ordens do pai. Em Polegar, o personagem principal, que é um menino, possui uma relação bem mais estreita com a figura paterna e o ajuda nos afazeres. Para Chartier “as estruturas do mundo social não são um dado objetivo, tal como não o são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras” (2002, p. 27). Assim, os contos de fadas e, especificamente, os contos de Grimm, podem ser pensados como um modelador desse “sentido” de uma nova constituição familiar que caminhava para a consolidação, como se viu. Por meio da representação dos pais como amorosos e cada vez mais responsáveis com a educação dos filhos como na maioria dos contos. É claro que, condutas adversas também são representadas como o abandono dos filhos a própria sorte, deixar uma menina cruzar sozinha uma floresta, desejar que os filhos virem corvos ou ainda, querer desposar a própria filha. Sendo que, algumas dessas situações repercutem dentro da própria narrativa, quando há o arrependimento por atos como esses. Mesmo que a maioria das personagens tenha abandonado a casa dos pais, não se pode afirmar que esse não era um lugar seguro para as crianças e jovens da época, tanto que algumas acabam por voltar alegremente. Na verdade, essa é uma característica dos contos de fadas, ou seja, a personagem abandona a casa dos pais para alcançar sua independência e superar seus medos, sendo vitoriosa em sua jornada. Apesar dos conflitos, então, todos os contos terminam bem, as personagens conseguem superar os obstáculos que lhes são impostos. Quanto a esse aspecto Bettelheim (1980) explica que o conto deve ter um final feliz para que possa produzir o seu efeito benéfico para a criança, pois assim mostra para ela como será o seu desenvolvimento saudável, apesar de todas as dificuldades que possam surgir. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao se refletir sobre a representação das figuras paterna e materna nos contos de Grimm, não se deixa de estar pensando também sobre a história da família e de suas relações. Assim, se vê, majoritariamente, pais desejosos de ter filhos, como no conto Cinderela, em que a mãe planeja ter uma filha branca como a neve e com os lábios vermelhos como sangue. Pais desesperados em proteger a vida dos filhos como em Rumpelstiltskin, quando a mãe faz de tudo para que seu bebê não seja levado pelo malvado anão e, também, em A Bela Adormecida, em que os pais se empenham para que a maldição dada à filha de dormir cem anos não se cumpra. Porém, também, se vê pais que não foram representados com todo esse zelo como em Bicho Peludo, em que o pai queria casar com a própria filha. Porém a maioria dessas personagens foi representada como amorosa e participativa na vida dos filhos, retratando, talvez, as novas concepções e orientações trazidas pela modernidade. Os contos são mais que simples histórias, mais que narrativas educativas ou terapêuticas, são bons exemplos de produtos culturais de cada época em que foram registrados ou reescritos e, assim, acabavam se modificando. Isso porque, como se viu, mesmo sendo muito antigos, cada versão dos contos é moldada pelo contexto histórico do período do qual é fruto. Esse fato não é novo, mas através da análise que se fez, se tem um exemplo claro dessa afirmação, pois muitas vezes a maneira como as personagens foram representadas espelhava o pensamento da época. Assim, se poderia realizar uma análise ainda mais aprofundada, buscando verificar de que modo é representada a relação das figuras paterna e materna com os filhos, ou ainda, qual era o modelo de família tido como “ideal”. Os quais podem ser futuros temas de pesquisa.

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REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 13ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CANTON, Kátia. Os contos de fada e a arte. São Paulo: Prumo, 2009. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 2002. DARNTON, Robert. O Grande Massacre dos Gatos. E outros episódios da História Cultural da França.4ªEdição.SP:Graal,1986. DREHER, Martin N. Os contos de Grimm: fonte para acompanhar crianças na emigração para o Brasil. In.: DREHER, Martin N. 190 anos de imigração alemã no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Oikos, 2014. FERREIRA, Antonio Celso. A fonte Fecunda. In. PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O Historiador e Suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2009. GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos de Grimm. Belo Horizonte: Itatiaia, 2008. Tradução: David Machado Junior. HEYWOOD, Colin. Uma História da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2004. HILLESHEIM, Betina; GUARESCHI, Neusa Maria de Fátima. Contos de Fadas e Infância(s). Revista Educação e Realidade. Nº 31 (1), p. 107 – 126, jan/jun de 2006. MESQUITA NETO, Rui; BERVIQUE, Janete de Aguirre. A influência dos contos de fadas na compreensão do mundo pela criança. Revista Científica Eletrônica de Psicologia. Ano VIII – Nº14, Maio de 2010. Disponível em . Acesso em de 22 de jul. 2012. MORAES, Roque. Análise de Conteúdo. Educação, Porto Alegre: Faculdade de Educação. PUCRS/Curso de Pós-Graduação, 1999, p. 5-31. SCHNEIDER, Raquel Elisabete Finger; TOROSSIAN, Sandra Djambolakdijan. Contos de fadas: de sua origem à clínica contemporânea. Psicologia em Revista. Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 132-148, ago. 2009. TATAR, Maria. Contos de Fadas: Edição Comentada e Ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. Tradução: Maria Luiza Borges.

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ANARQUISTAS, SOCIALISTAS E AS CRITICAS AO COTIDIANO PORTOALEGRENSE ATRAVÉS DOS PERIÓDICOS A LUTA E A DEMOCRACIA (19051911) Eduardo da Silva Soares 1. INTRODUÇÃO Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado do autor. A investigação da qual faz parte este trabalho está sendo realizada a partir da orientação da professora Doutora Glaucia Vieira Ramos Konrad. E neste artigo em especial, verificou-se como Porto Alegre vivenciou as transformações no início do século XX. Entre as mudanças que ganharam ênfase nesta produção estão: a organização mais consistente do movimento operário de tendência anarquista e socialista, a publicação de jornais e a construção de imaginários referentes a realidade social. Deste modo, os trabalhadores desta cidade protagonizaram alguns atos de solidariedades e rivalidades através das sociedades operárias. Neste sentido, estudar os anarquistas e os socialistas detémse em verificar as aproximações e os distanciamentos ideológicos e metodológicos. Porém, deve-se levar em conta sempre que existiram muitas trocas de experiências, de textos e ideias que fomentaram a difusão de uma cultura com traços peculiares a cada corrente delas. O que em síntese nos leva a pensar como Suriano (2001, p. 28) quando este autor tratou o seu estudo em relação à(s) cultura(s) anarquista(s) argentina como uma espécie de um mosaico, o qual se complementaria na medida em que se relacionaria com outras tendências culturais. Aqui se falou também da cultura associativa proporcionada através do protagonismo operário em eventos realizados pelos e para os trabalhadores. Neste sentido, foi possível identificar bailes, quermesses, assembleias e rememorações, como no caso do 1º de Maio. A partir deste breve levantamento, tornou-se viável investigar sobre o cunho pedagógico destas ações, as quais alcançavam as suas famílias, e por si só já visavam (in)formar a classe sobre as condições de exploração existente no período. As fontes são os jornais A Luta (anarquista) e A Democracia (socialista) 2. E estas coleções foram estudados a partir da relação com o contexto, ou seja, a partir das condições específicas da cidade. Neste sentido, eles acabaram sendo considerados como reflexo de seu tempo. Porém, tornou-se pertinente pontuar que estes jornais observavam o passado e o presente visando um futuro diferente, ou melhor, uma sociedade transformada. A respeito destes grupos, utilizou-se das nomenclaturas anarquistas e socialistas no mesmo sentido de Isabel Bilhão, que disse: Ao me referir, ao longo dessa tese, aos “socialistas” ou aos “anarquistas”, estarei tratando de militantes que postulavam versões difusas das duas linhas teórico-ideológicas, cujo acesso ocorria pela leitura de obras variadas de teóricos e especialmente de tradutores e divulgadores. Os dois grupos assemelhavam-se, entre outras coias, pela defesa dos direitos operários, com Ênfase na conquista da jornada de oito horas de trabalho, pelas campanhas em prol do “alevantamento moral” da classe, através da educação, bem como pela condenação aos vícios e à vida desregrada, além de defenderem a organização sindical dos operários e a declaração de greve como um meio eficaz de pressão e conquista de demandas. entretanto, divergiam pela opção político parlamentar e partidária dos primeiros, a qual os segundos se contrapunham com suas táticas de ação dreta, no campo econômico, e com a organização

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Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFSM e bolsista CAPES. Estes periódicos podem ser encontrados no Núcleo de Pesquisa em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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autônoma de entidades operárias, especialmente escolas e sindicatos (BILHÃO, 2008, p. 13). Entretanto, aqui foram analisados os textos referentes ao cotidiano nas fábricas, as publicações de dramas e as intencionalidades em suas composições. Isto possibilitou identificar os elementos que compunham as narrativas e as relações deles com a sociedade. Logo este trabalho propendeu a colaborar com os estudos da imprensa e do cotidiano dos operários, focando-se em perceber os imaginários (re)construídos a partir da escrita e difusão de ideias em seus eventos. Para isso, este artigo foi dividido em dois capítulos. O primeiro objetivou analisar a vida cotidiana dos trabalhadores a partir do ambiente de trabalho e das leituras que eles realizaram da relação entre trabalhador versus patrão. Já no segundo foi visto as leituras sociais que os anarquistas e socialistas apresentaram nos jornais A Luta e A Democracia ao público que os contemplava. DE SOL A SOL: A JORNADA DE TRABALHO E O COTIDIANO DOS OPERÁRIOS Inicialmente, reforçou-se a discriminação a respeito dos grupos que enfrentavam a exploração em Porto Alegre. Então, para resistir contra o avanço da opressão capitalista existiram aqueles que se organizaram em torno de duas grandes correntes ideológicas atuantes no movimento operário: os anarquistas e os socialistas. Os primeiros praticavam a ação direta e rejeitavam a existência do Estado. Eram contra a propriedade privada e investiam as suas forças nas organizações de classe. Enquanto que os segundos mantiveram a hegemonia entre os trabalhadores organizados no Rio Grande do Sul até 1911. Após este ano os socialistas iniciaram um processo de aproximação com o Partido Republicano RioGrandense (PRR), tendo por líder Francisco Xavier da Costa, militante que havia se notabilizado pela liderança nas negociações da primeira greve de grandes proporções do estado, a greve generalizada de Porto Alegre de 1906. A partir de 1912, ele ocupou o cargo de conselheiro municipal pelo partido oficial (OLIVEIRA, 2009, p. 42). As influências das lideranças seriam primordiais para nortear ideologicamente a sociedade operária. E Francisco Xavier da Costa foi o líder mais expressivo da primeira década do século XX na capital gaúcha. A sua força se fez representar a partir de “outubro de 1906” data a qual “milhares de trabalhadores e trabalhadoras ocuparam as ruas e praças de Porto Alegre reivindicando a adoção da jornada de oito horas nas fábricas e oficinas da cidade” (SCHMIDT, 2005, p. 9). A principal luta da greve foi a manutenção da jornada de trabalho para 8 horas, o que era reivindicado desde o final do século XIX pelos socialistas 3. Se os socialistas mantinham em seu domínio grande parte das associações de classe, foi a partir de 1906 que os anarquistas [...] atuantes no Rio Grande do Sul desde o final do século XIX, conquistaram maior visibilidade na cena pública. Para isso contribuíram, entre outros fatores, a criação do jornal A Luta e da Escola Eliseu Reclus, ambos no mês de setembro. O A Luta contava, entre seus redatores, com José Rey Gil e com Stefan Michalski, dirigentes do Sindicato dos Marmoristas, entidade em vias de organização (SCHMIDT, 2005, p. 41). Estas questões eram retratadas nos jornais que os anarquistas e socialistas escreviam. Era neles que as representações dos problemas e das iniciativas próprias foram apresentadas ao público. Neste sentido, os trabalhadores porto-alegrenses vivenciaram na virada do século XIX para o XX as transformações que a cidade sofria. Disso, ocorreram mudanças que fomentava a construção de bairros operários e a remodelação do centro urbano. Neste sentido, as fábricas e as residências dos trabalhadores se avizinhavam e muitos dos operários eram acordados com os apitos das fábricas. 3

O que se supõe, já que o Programa do Partido Socialista (1898) tratava desta questão (Petersen; Lucas, 1992, p. 94).

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Além da proximidade havia o emprego de mão-de-obra de crianças e mulheres, e estes eram dotados de salários mais baixos que o homem adulto. Para ilustrar o contexto até aqui apresentado, utilizou-se o Catálogo da Exposição Estadual de 1901, o qual pôde exemplificar através da Companhia Fabril Porto-Alegrense que “se acha em Navegantes” (Catálogo da Exposição Estadual de 1901, 1901, p. 166). E a Fiação e Tecidos que empregava “cerca de 300 operários, homens, mulheres e crianças, estas maiores de 12 anos, encontram trabalho nas oficinas da companhia, quando estas funcionam com toda atividade” (p. 163). Percebeu-se então que além das fábricas serem vizinhas as casas dos operários, elas empregavam toda a mão-de-obra possível. Estes elementos foram denunciados pelos anarquistas e socialistas na imprensa. E a Companhia Fabril Porto-Alegrense que mantinha “com regularidade, [...] 160 pessoas, entre elas homens, mulheres, moças e crianças” (p. 166) trabalhando, foi alvo de criticas dos libertários. Em suma, o que para o referido Catálogo é visto como progresso, para o jornal A Luta será modelo de exploração: Hoje vamos trazer para aqui algumas notas do que se passa na Companhia Fabril (Fábrica de Meias). Nessa fábrica 3 quartas partes do pessoal é feminino, havendo cerca de 25 crianças de 7 a 10 anos de idade. Os salários que tiram os operários por semana, são insignificantes; há alguns trabalhadores ganhando, por semana, cerca de 36$000, o que a primeira vista, é um bom ordenado, se soubermos porém que das férias de cada um é descontado o preço das agulhas que emprega no trabalho, e que às vezes chegam a pagar 10$000 de agulhas numa semana, vemos aquele salário baixar a uma soma irrisória. As mulheres e as crianças, como é de praxe, ganham uma diária mesquinha (A LUTA, 15 de dezembro de 1906, p. 2). A exploração era compreendida como a relação social em que alguns produziam excessivamente enquanto outros ganhariam apenas o lucro deste trabalho. Neste ponto, o trabalho infantil e feminino era encarado como tal. Assim, a denúncia do A Luta fazia sentido, já que tanto a mulher quanto a criança recebiam remuneração mais baixa do que os homens adultos. Esta situação servia para criticar o sistema e daria forças para a luta contra este modo de produção. Mas não bastava denunciar, era necessário criar formas de resistência. E neste sentido foi que surgiram as associações, grêmios, uniões e sindicatos operários. Elas ofereciam alguns serviços. Deles foi possível discriminar alguns, tais como: “remuneração para os dias parados momentos de doença, assistência médica, farmacêutica e jurídica, passando pela pensão por invalidez ao associado ou para seus dependentes em caso de morte, além do auxílio-funeral” (CASTELLUCCI, 2014, p. 48). Neste sentido, existiam fatores materiais objetivos para fazer com que a classe se unisse. Era imprescindível haver meios de lutar contra a ausência de amparo social. Então, os “serviços” destacados por Castellucci (2014) foram encontrados entre os Estatutos das sociedades operárias porto-alegrenses e eles ilustravam perfeitamente os anseios mais emergentes da classe operária. Porém, se estes são os ganhos materiais por associar-se, existiam ainda os subjetivos que, Não há como separar o surgimento das primeiras sociedades de artesãos do processo de valorização dos ofícios qualificados e da visão positiva do trabalho como um elemento que, além de distinguir os trabalhadores dos pobres, associados ao ócio e ao vício, foi determinante na definição de uma identidade de classe operária, ligada ao trabalho regular e à organização (CASTELLUCCI, 2014, p. 48). Para exemplificar estas colocações em uma sociedade fundada em Porto Alegre, utilizou-se dos Estatutos da Federação Operária do Rio Grande do Sul para elucidar estas preocupações. Então, estão entre as questões:

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a) Promover a união dos trabalhadores salariados para a defesa dos seus interesses morais e materiais, econômicos e profissionais; b) Estreitar os laços de solidariedade entre o proletariado em geral, dando força e coesão às lutas pelas suas reivindicações; c) Estudar e propagar os meios de emancipação do proletariado e defender em público as suas reivindicações, servindo-se para isso de todos os meios de propaganda conhecidos (ESTATUTOS DA FEDERAÇÃO OPERÁRIA DO RIO GRANDE DO SUL, 1911). Aqui se viu que havia realmente as pautas a respeito do que poderia ser fator objetivo quanto subjetivo para a união da classe. No mais, através desta Federação, pretendiam “cultivar relações de solidariedade com o proletariado não só do Brasil como de toda a parte do mundo”. Logo, no interior destas associações o trabalho se tornaria um elemento socialmente positivado. Este conceito seria tratado como sinônimo de progresso. Tanto a imprensa operária quanto a burguesa assim o retrataria. A sua valoração chegava a referir-se, como apontou Isabel Bilhão (2008) como um identificador moral. Com isso, existe através desta edificação uma estratégia de reforço da honorabilidade dos operários, que não apenas contribuíam para o progresso da cidade com sua força de trabalho, mas que também, muitas vezes, dedicavam suas poucas horas de descanso ao cultivo das atividades intelectuais, opondo-se àqueles que preferiam desperdiça-las em “locais pouco recomendáveis” (BILHÃO, 2008, p. 78). Além desta “honorabilidade” da classe, existiria outro fator muito pertinente para identificar os fins das associações. No caso, a ideologia seria a orientação que guiaria as atividades, os discursos e os posicionaria na luta de classes. Neste sentido, em Porto Alegre houve sindicato que seguia a tendência anarquista ou socialista. As lideranças destas ideologias disputaram estes espaços, pois o concebiam como formadores de opiniões. Eles também viam nestas sociedades as ferramentas mais adequadas para capacitar os trabalhadores para a luta de classes. E foram a partir da leitura que faziam da sociedade que produziram os seus jornais. Então, mesmo que resumidamente, foram estes elementos aqui tratados que se (re)apresentarão no segundo capítulo na forma literária e dos imaginários de um novo mundo possível. E no próximo momento fora acrescidos o debate sobre a cultura associativa como ferramenta de luta contra esta exploração. Aqui, a imprensa operária foi percebida como ideologicamente identificada. E mais, elas tinham os seus posicionamentos e o defendiam. Além de que havia criticas aqueles que abordavam sobre os periódicos jornalísticos como neutros, ou ainda, imparciais. Logo, a partir da lógica a que utilizavam tanto os anarquistas quanto os socialistas descreveram a realidade conforme os seus imaginários, as suas ideologias e ambições para o futuro. A imprensa não era, de fato, apenas uma ferramenta de informação, mas sim um meio que garantiria um projeto para o futuro. E neste sentido que se passou para o próximo capítulo. IMAGINÁRIOS (D)ESCRITOS: LITERATURA E DENÚNCIA DA REALIDADE Conforme os exemplos do primeiro capítulo foram perceptíveis que existiam certos elementos na sociedade que indignavam os anarquistas e socialistas porto-alegrenses. E isto fazia com que eles se motivassem a combater o que eles compreendiam como injustiças sociais. Então, eles não poupavam palavras para criticar e denunciar aqueles que oprimiam a classe trabalhadora. E um exemplo pôde ser identificado na seguinte citação: O que é fato indiscutível é que com a aurora de 13 de Maio, o Brasil saiu das Trevas e entrou para a Luz em todos os sentidos operou a sua Redenção.

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Nem por isso, porém, a Liberdade, nele, está completa. No seu território, é verdade, não há mais senzalas, mas há cadeias; não há mais cito, mas há penitenciárias; não há mais registro servil, mas há cadastro policial. É preciso varrer tudo isso com uma vassoura luminosa, como a 13 de Maio outras coisas, feias e tristes, que entravam e entristecem a sociedade, foram riscadas com uma pluma de arminho. É um impossível, é uma utopia, é uma loucura isso – dirão os juristas atuais; porém nós, com as doutrinas que vem despontando, lhes responderemos: antes de 13 de Maio não faziam outras objeções, os escravocratas... É preciso que a Liberdade resplandeça inteiriça, sem manchas e sem jaça, como um diamante, ou como um sol ideal. Na Terra não deve, não pode haver presos, como não pode nem deve haver escravos. Luz para todos – Liberdade para todos! (A DEMOCRACIA, 04 de junho de 1905, p. 2) Como ficou perceptível, era defendido que ocorresse uma “limpeza” revolucionária na sociedade atual. Alegavam também a necessidade de criarem eventos históricos tão impactantes quanto o 13 de Maio 4. E o curioso foi que a utilização da comparação com o período escravocrata se dava para afrontar os defensores da República (BIONDI, 1995) 5. Neste exemplo, os socialistas criticavam os aparelhos repressores que o Estado utilizava para controlar e coibir as manifestações que a “classe perigosa” expressava. A luta pela Liberdade só seria satisfatória quando ela fosse com o viés socialista. Então, apenas o socialismo garantiria a construção da plena liberdade entre as pessoas. Seria esta condição social que oportunizaria que ninguém fosse preso a terra e submisso a exploração. Além disso, comparar o período republicano com o escravocrata ainda criava o mal-estar de dizer que todos os avanços do novo período histórico foi o de criar os novos meios de dominação, iludindo então a todos aqueles que acreditavam nesta nova fase brasileira. Então, resumidamente parecia que o sistema política era novo, mas os problemas eram velhos. As criticas não se limitavam ao jogo político. Na verdade muitas iam de encontro a moral existente entre os burgueses. E um diálogo publicado pelos anarquistas pôde ilustrar essa relação critica. Este texto se chamou Dois homens honrados e havia duas personagens que se encontraram em um restaurante. Neste estabelecimento eles travaram um diálogo que seguia as seguintes linhas: - O senhor é com certeza proprietário... - Graças à minha perseverança, economia e trabalho. - É industrialista? - Industrialista, e comerciante... - Ah! - E o amigo a que negócios se dedica? Parece-me corretor. - Pois não pareço aquilo que sou: dedico-me a roubar. - A roubar!... - Sim, senhor. - E di-lo com orgulho?!...

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A referência correspondia ao 13 de maio de 1888, dia este que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea decretando a abolição da escravatura no Brasil. 5 Luigi Biondi em sua produção escreveu sobre a imprensa anarquista italiana no Brasil, entre 1904 e 1915. O seu espaço ficou delimitado para o estado de São Paulo. E entre as conclusões do autor estão a da existência da comparação do trato brasileiro com os trabalhadores, a qual se equivaleria com a da relação escravocrata.

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- Com o mesmo que mostra o senhor dizendo-se industrialista e comerciante (A LUTA, 23 de maio de 1908, p. 3). Como ficou em evidencia, o diálogo retrata a conversa entre um industrialista e comerciante com um ladrão. E se o proprietário se sentiu surpreso com o orgulho exaltado pelo ladrão, houve então, na sequência a justificativa deste sentimento: “- [...] Eu roubo tendo contra mim a lei; o senhor rouba ao abrigo da própria lei. Não dá o peso certo quando vende, não repara que está envenenando a freguesia quando...” (A LUTA, 23 de maio de 1908, p. 3). E com este teor seguiram as comparações: - Mas ao que chama o senhor roubar? - Rouba, aquele que se apodera violentamente do que não é seu. - Bem. De maneira que entre o ladrão e o comerciante há esta diferença: o ladrão rouba violentamente ao passo que o comerciante rouba pacificamente. Confesse que o comerciante é uma degenerescência do ladrão. Os senhores constituíram exércitos de mercenários sem valor para roubar de empreitada. Legalizaram a falsificação e o escamoteio. Direi melhor: perverteram a arte de roubar; ora, ao menos por antiestéticos quando não por outra coisas, mereciam a condenação. O ladrão e o comerciante levantaram-se da mesa sem se cumprimentar. Daí a um ano, um estava na cadeia, fora da lei, por ter roubado uma carteira e o outro fazia leis no parlamento. Tendo jogado na baixa, de combinação com o ministro de Estado, ganhará muitos milhões, e pôde representar a nação, com a ajuda do dinheiro arrancado a inúmeras famílias que ficaram na miséria 6 (A LUTA, 23 de maio de 1908, p. 3). Finalmente, a construção discursiva anarquista visava indagar à sociedade sobre os valores morais existentes. E neste exemplo ficou exposto que havia como questionar o papel dos comerciantes na sociedade. E mais, criticavam ainda o sistema político, o qual permitia esta “espécie de ladrão” protegido pela lei criar o regime jurídico. Isso, automaticamente significaria a proteção de classe. Em outras palavras, a condenação de uns se dava porque havia aqueles outros que se abrigavam entre os governantes, os gestores da “coisa pública” e de seus “braços”. O retrato destes dois tipos de ladrão era um demonstrativo que existia a luta pela mudança da estrutura social. Para os anarquistas não deveria existir Estado e nem propriedade privada. Eles desejavam construir um sistema onde a produção, a divisão e o consumo fossem justos 7. Neste sentido, através da percepção de que havia a necessidade dos trabalhadores “se escravizarem” para sobreviver é que foi publicado o Canto dos Operários. No Canto os elementos a respeito da escravidão e exploração tornam-se temas contrastantes ao operário. Este último era apresentado como o produtor das riquezas sociais. Em suma, Neste inferno proletário Nossa vida se consome, Ó escravos do salário, Açoitados pela fome; Não é livre quem depende De potentes monstros d’aço. Não é livre quem se vende, Só dispondo do seu braço (A LUTA, 1 de maio de 1910, p. 1). Mas esta colocação não significaria que a situação não pudesse ser modificada. Era necessário lutar contra os opressores da classe trabalhadora. Precisar-se-ia combater através do conhecimento e da união os inimigos dos operários. Assim, a mensagem seguiria o sentido de fortalecer a ideia de união e

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Grifo no original. Justos no sentido igualitário, ou seja, em um modo onde todos poderiam arrecadar o quanto necessitassem.

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prestígio entre os trabalhadores: “tudo, tudo produzimos; / mas dispersos, nada temos! / Separados, sucumbimos; / só unidos, venceremos!” (A LUTA, 1 de maio de 1910, p. 1). A demonstração de força proletária se fazia presente neste Canto. Mas há outra canção publicada pelos socialistas que também demonstraria o interesse de fortalecer a identidade e a consciência de classe. Neste caso, foi a Marselhesa Operária que lhes serviu de inspiração. Diz a letra: O capital que nos explora Não seja mais nosso senhor! - Quem direitos possui não implora Mas combate o egoísta opressor! (bis) Lembrai que enquanto o proletário Trabalha e sofre todo o mal, A custa dele o argentário Vive feliz, goza, afinal! (A DEMOCRACIA, 7 de abril de 1907, p. 3). Assim, os trabalhadores produziriam em seu proveito uma única coisa, o capital, ou em outras palavras, o salário. Ser “escravo” desta condição facilitaria a exploração capitalista. Aos trabalhadores restaria a triste lógica de que nada mais tinham a oferecer do que os seus braços. Neste sentido, O Canto dos Operários valoriza os trabalhadores afirmando: Vossos braços, Fortes laços Sempre vivos, Enlaçai! Vida! Vida Decidida! Eia, uni-vos! Despertai! Desprezados, Embalados na esperança, Ficais sós! Luta! Luta Resoluta! Confiança Só em vós! (A LUTA, 1 de maio de 1910, p. 1). Dotados de “braços fortes”, unidos pelo mesmo ideal. Era esta a vontade dos anarquistas e socialistas. Porém, havia discordância entre eles, tanto de teoria quanto de método. Logo, a luta de classes seria vista de vários modos por estes militantes. Mas o que eles concordavam era narrado na Marselhesa Operária: Alerta companheiros Por nosso bem-estar Avante! Avante! Que os bons obreiros Não deixem se aviltar. (A DEMOCRACIA, 7 de abril de 1907, p. 3). Estes “bons obreiros” eram aqueles que lutavam em prol da “[...] liberdade / contra o egoísmo que ora impera” (A DEMOCRACIA, 7 de abril de 1907, p. 3). Também seriam estes que colocariam os trabalhadores em “alerta”, os conscientizaria que eram os “[...] pobres explorados. / Párias da nova sociedade!” (A DEMOCRACIA, 7 de abril de 1907, p. 3). E com esta consciência os elevaria de forma unificada “à vitória da igualdade” (A DEMOCRACIA, 7 de abril de 1907, p. 3). Com este tom dramático e trágico foi que os anarquistas e socialistas escreveram. O sentido destas publicações era duplo: o de denúncia e de formação ideológica. Para estes redatores se fazia necessário apresentar a realidade de forma a contrastar as experiências proletária e patronal. Assim, seriam

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apresentadas as lacunas existentes entre uma classe e outra. Neste sentido, os operários (re)conheceriam que eram eles quem mantinham o luxo dos ricos. E enquanto que os “outros” viviam com fartura, sobrava a estes trabalhadores a pobreza e a miséria. Enfim, a grande questão apresentada foi a da necessidade da união da classe. A lógica era a de que para dar certo o processo de melhorias sociais, as lutas deveriam ser apenas pela e para os trabalhadores. Então, as lutas em relação a equiparidade de salários entre homens e mulheres, a relutância da permanência de crianças no ambiente de trabalho e as melhorias salariais em geral estavam contrastando com as publicações a respeito da luta de classes. Neste ponto, as lutas específicas estavam inseridas naquelas gerais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Encerrou-se este artigo (re)afirmando que a classe trabalhadora porto-alegrense se organizou através de sociedades operárias. Estas associações buscavam traçar objetivos que valorizavam a classe com elementos materiais e subjetivos. Então, a conquista de melhores salários, caixa de dinheiro e farmácia para auxiliar os necessitados eram fatores que poderiam determinar a participação dos operários no sindicato. Porém, havia aquelas condições que fazia com que os trabalhadores se identificassem com a sociedade operária. Deles, existia a honorabilidade e valorização do trabalhador enquanto produtor social da riqueza. O prestígio social de participar de uma organização também era uma característica daquela realidade. Ainda poder-se-ia somar a identificação ideológica como um coeficiente. Neste ponto, soube-se da existência de muitos que foram os indivíduos identificados com o anarquismo e o socialismo, o que, porém não representou a maioria do operariado local. A assimilação ideológica percorria vários caminhos, entre eles estava a construção de um imaginário coletivo a respeito da realidade experimentada pelos trabalhadores. Disto destacaram-se algumas poesias, contos e crônicas que narravam à realidade em tom trágico, distinguindo as personagens de forma binária, ou seja, o bem contra o mal. Entretanto, as intenções de conscientização de classe compõe a estética literária destes anarquistas e socialistas e as enriquecem na medida em que demonstra ao leitor um pouco do que eles pensavam e desejavam. Portanto, esta literatura não era apenas interativa, ela era recheada de intenções. Destarte, a composição dos textos seguia a lógica de que os operários eram, em sua condição, os produtores da riqueza social. Nesta perspectiva, seriam eles que transformariam o proletariado na principal força revolucionária de então. Isso porque o interesse maior de socialização das riquezas partiria deles. Por outro lado, o patronato era apresentado como aqueles que exploravam, em outras palavras, eram eles os egoístas que a tudo desejavam para si. Nas publicações também ficou perceptível que os patrões eram representados como os inimigos da liberdade plena, pois se esta existisse aos moldes anarquistas e socialistas, eles já não mais poderiam viver do “suor” dos operários. REFERÊNCIAS A Democracia, 7 de abril de 1907, p. 3. A Democracia, 4 de junho de 1905, p. 2. A Luta, 15 de dezembro de 1906, p. 2. A Luta, 1 de maio de 1910, p. 1. A Luta, 23 de maio de 1908, p. 3. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Catálogo da Exposição Estadual de 1901, Porto Alegre: Officina typographica de Gundlach & Becker, 1901. Estatutos da Federação Operária do Rio Grande do Sul, 1911 (Manuscrito).

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BILHÃO, Isabel Aparecida. Identidade e trabalho: uma história do operariado porto-alegrense (1898 a 1920). Londrina: EDUEL, 2008. BIONDI, Luigi. La stampa anarchica italiana in Brasile: 1904-1915. Roma, Tese (de laurea), Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, 1995. CASTELLUCCI, Aldrin A. S. O Associativismo mutualista na formação da classe operária em Salvador (1832-1930). In: CORD, Marcelo Mac. BATALHA, Claudio H. M. Organizar e proteger: Trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. Oliveira, Tiago Bernardon de. Anarquismo, sindicatos e revolução no Brasil (1906-1936) / Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2009. PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. LUCAS, Maria Elizabeth. Antologia do movimento operário gaúcho (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS/Tchê!, 1992. SCHMIDT, Benito Bisso. De mármore e de flores: a primeira greve geral do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, outubro de 1906). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. SURIANO, Juan. Anarquistas: cultura y política libertaria en Buenos Aires (1890 – 1910). Buenos Aires: Ediciones Manantial SRL, 2001.

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AS DEVOÇÕES MARIANAS SEGUNDO A IMPRENSA SUL-RIO-GRANDENSE: DE MARIAZINHA PENNA À MARIA ELIZABETH DE OLIVEIRA Franciele Moreira Cassol 1 INTRODUÇÃO O campo das religiosidades atual e das devoções populares as “santas locais” é parte de um processo amplo, longo e complexo, que tem de levar em consideração o latente pluralismo religioso, bem como, o processo de modernidade vinculado ao processo de secularização da sociedade, visto que, após esse processo, tanto a fé quanto as práticas religiosas entraram em declínio. A princípio parece que a secularização teria como consequência: a racionalidade do homem e a “evolução” da sociedade. Nesse contexto, a crítica às religiões (sejam estas católicas, espíritas, afro-brasileiras, etc.), como um todo, se encontrariam no fato de que estas seriam desprovidas de racionalidade, de coerência interna em seu sistema de pensamento, mas, por outro lado, é notável que as diferentes tradições religiosas encontramse em permanente processo de reinvenção e rearticulação. No entanto, defendemos o estudo das devoções e dos rituais intrínsecos a estas, por acreditar que o pensamento do devoto em relação a seu santo protetor, até pode ser mítico, mas também é ao mesmo tempo coerente e obediente a sua própria lógica; e que atualmente pode estar sincretizado com práticas de comércio, mercado e turismo 2. Além disso, devemos compreender as consequências do processo de secularização na sociedade brasileira, pois este tende a questionar a natureza e o próprio lugar do sagrado nas sociedades contemporâneas. Não obstante, objetivamos neste, evitar a visão de cultura que entende a religiosidade das pessoas e seu pensamento “místico, mágico ou religioso” como algo arcaico e retrógrado, posto o ideal de sociedade avançada, racional e moderna. E nesse contexto, perceber que a migração do sagrado para o profano, ou do campo do religioso para o turístico é um processo comumente encontrado nas culturas e nas devoções populares contemporâneas. DO BEM SIMBÓLICO QUE SÃO AS DEVOÇÕES Maria Elizabeth de Oliveira nasceu na cidade de Passo Fundo, no dia 6 de fevereiro de 1951. Entretanto, seus pais, Leda de Oliveira e Alcides de Oliveira eram naturais do município de Lagoa Vermelha. Em função dos estudos Maria Elizabeth veio morar em Passo Fundo com seus avós, tendo estudado no Ginásio Menino Jesus e mais tarde no Grupo Escolar Protásio Alves. A breve vida de Maria Elizabeth segundo registros destacou-se, entre outros, por participar de modo intenso da vida religiosa citadina e da moral pregada pelo catolicismo, visto que, além de participar de coral religioso, também auxiliava os padres, na Igreja Matriz Santa Terezinha. Em 1965 ano de seu falecimento, também os pais de Maria Elizabeth mudaram para a cidade, vindo a residir na Avenida Presidente Vargas, avenida esta que viria a ser o lugar onde a menina sofreria um acidente em 28 de novembro daquele ano. No dia de sua morte, Maria Elizabeth encontrava-se com um grupo de amigas, na esquina das ruas Padre Valentin com a Avenida Presidente Vargas, quando em torno das 15hs de um domingo, uma Kombi, dirigida por Gentil Lima subiu a calçada desgovernadamente, atropelando o grupo de jovens que ali se encontravam. Maria Elizabeth chegou a ser levada ao hospital local São Vicente de Paulo demonstrado em seu corpo externamente apenas um ferimento no pé, todavia, internamente a mesma encontrava-se com uma séria hemorragia, que a levou a morte.

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Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo, bolsista pela Fundação Universidade de Passo Fundo. 2 Entendemos o turismo como sendo o conjunto de atividades realizadas pelos indivíduos durante as suas viagens e estadias em lugares diferentes daqueles do seu entorno habitual por um período de tempo. Em grande parte das vezes, a atividade turística é realizada com o objetivo do lazer, embora também exista o turismo por razões de negócios. O turismo, tal como compreendemos hoje, nasceu no século XIX, na sequência da Revolução Industrial, que possibilitou as deslocações tendo por função o descanso ou ainda motivos sociais ou culturais. Entretanto, mesmo antes, ou já na antiguidade podemos supor a existência de um tipo de turismo, ou seja, a partir das viagens, ou peregrinações a lugares santos, entre outros.

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A morte brusca de uma jovem passo-fundense, com menos de quinze anos, segundo os jornais e pessoas contemporâneas ao fato relatam que este acidente chocou a cidade inteira. Logo após o ocorrido, a história de que Maria Elizabeth de Oliveira havia previsto sua própria morte, escolhido seu caixão e a roupa que “usaria por toda a eternidade” e a aceitado abnegadamente espalhou-se rapidamente. Já na biografia escrita em 1988 sobre Mariazinha Penna, a autora da mesma destaca a personalidade e as qualidades da biografada enquanto viva como meio para motivar o leitor a conhecer sua história. O livro, “Mariazinha Penna – a predestinada”, Abelin (ABELIN,1988) reconstitui a vida da santa popular santa-mariense por meio de entrevistas com cerca de 250 fieis, mas também, com pessoas próximas da mesma, incluindo sua mãe – Aida Penna, vizinhos e até mesmo um pároco. A partir do livro, podemos entender parte da devoção a Mariazinha, visto que, a autora salienta a postura de vida singular da mesma, evidenciando o final da doença em que a mesma além de aceitar seu fim fatídico (“uma heroína na dor” ABELIN,1988), também confortava seus amigos e familiares a respeito de sua dor e consequente morte. Dizem os reatos, que a moça recebia os visitantes sempre com “um sorriso no rosto”; que sempre “pedia não por si, mas pelas pessoas que sofriam mais do que ela”. A história da suposta santidade de “Mariazinha” Penna reside em seu exemplo perante o enfrentamento de um câncer. Abelin tornou-se ciente da história envolvendo Mariazinha Penna em 1960, quando então residia em Passo Fundo, pois, mesmo poucos anos depois da morte da mesma, “comentavam que era intensa a romaria de pessoas à sua sepultura, pedindo ou agradecendo intercessões”. Ao estudar a história das crenças nas “santas” “Mariazinha” Penna e Maria Elizabeth de Oliveira se objetiva também entender o lugar que estas expressões culturais do patrimônio de uma parcela da sociedade ocupam na atualidade. Nesse contexto, o presente estudo justifica-se na medida em que enfatiza o estudo dos estilos de fazer e lidar com as vicissitudes que fazem parte do cotidiano, investigando como o Brasil realmente é. Ao analisarmos estas duas devoções e as memórias dos devotos sobre as mesmas buscamos compreender diferentes lógicas que estão em jogo na ação e representação de diversos grupos sociais. Ademais ainda precisamos realocá-los no interior dos processos sociais dentro dos quais estas devoções funcionam e ganham sentido, podendo assim, compreender como determinados locais e tempo surgiram e se desenvolveram tais devoções. Outro fator a se levar em consideração no estudo das devoções e dos rituais contemporâneos diz respeito à inserção da ideia de mercado. Nesse contexto, A racionalização do sagrado se realiza pela sua mercantilização: ou adeptos se tornam clientes que escolhem os produtos segundo suas necessidades; as religiões, colocadas em situação concorrencial, desenvolvem práticas racionais de gestão eficiente dos cultos, esvaziam de sacralidade suas mensagens e adotam técnicas de convencimento do tipo publicitário (MONTEIRO, 1994, p.85). Algumas das perspectivas de leitura da comercialização das e nas devoções apresentadas consistem na investigação dos pontos e dos bens simbólicos que fomentam as devoções hoje. As peregrinações aos túmulos como evento com um enfoque para estes bens de mercado que auxiliam na conquista do fiel e que são práticas já largamente utilizadas pela Igreja Católica, entretanto, como se percebeu o comércio da fé tem sido também amplamente utilizado por outras esferas, assim como o Poder Público Municipal, entre outros, o que em nossa opinião caracteriza as práticas religiosas atuais também como possuidoras de um caráter multifuncional do turismo religioso 3. 3

No Brasil, a obrigatoriedade histórica de uma religião oficial durante a colônia até o fim do império foi o fator primordial para manutenção dos valores católicos em toda extensão do território brasileiro. Em países de formação religiosa católica, a dinâmica que caracterizou a sua formação tem características que os fizeram diferentes entre si, apesar de terem as origens comuns na Igreja Católica Apostólica Romana. Essas diferenças foram construídas inicialmente a partir da instalação de Ordens Religiosas (Salesianos, Franciscanos, Beneditinos, entre outras), que fizeram sedimentar este ou aquele aspecto da religiosidade local ou regional, os quais com o passar dos anos e séculos, tornaram-se características culturais das comunidades. O turismo religioso, portanto é uma das modalidades do turismo brasileiro que mais tem se desenvolvido devido a vários fatores, dentre os quais se pode citar: a formação histórica do povo brasileiro, ligada diretamente à Igreja Católica, e a diversidade de organizações

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DO CAMPO DO RELIGIOSO PARA O PROFANO: O COMÉRCIO DA FÉ O turismo religioso ocorre quando a festividade, o lazer e o consumismo transcendem o campo do sagrado, da espiritualidade, encontrando-se na junção de vários elementos, como a cultura popular, a urbana e a religiosa, presentes todos eles em apenas um local. Para Andrade, o conjunto de atividades com a utilização parcial ou total de equipamento e a realização de visitas e receptivos que expressam sentimentos místicos ou suscitam a fé, a esperança e a caridade aos crentes ou pessoas vinculadas a religiões, denomina-se como turismo religioso (ANDRADE, 2000, p. 77). Dito isso entende-se que a conexão turismo-religiosidade é nodal para refletir-se sobre algumas das mudanças culturais mais amplas da sociedade. Para Steil, o significado do turismo religioso se dá quando o sagrado migra como estrutura para o cotidiano, para as atividades festivas, o consumo, o lazer, quando, enfim, os turistas passam a vivenciar esses eventos, como as páscoas e os natais, não mais somente vinculados às tradições religiosas, mas como uma experiência singular, espiritual e ao mesmo tempo consumista (STEIL, 1998). Diversos grupos de sujeitos frequentam os mesmos espaços já que celebrações dessa natureza incitam os mais diferentes públicos. A simples atração pelo festejo gera uma demanda para a localidade em que ocorre, seja em uma área urbana ou rural, pois também será conhecida e lembrada pelo evento (RIBEIRO, 2004, p. 48). Sendo assim, o turismo religioso funcionará ou não como uma forma de estímulo à construção de uma identificação positiva da comunidade, configurando-se como uma fonte de autoestima para ela. Nesse percurso, pretende-se perceber que a forma de relacionar-se que visitantes e habitantes, bem como romeiros e turistas desenvolvem com o ‘bem’ cultural, no caso sua devoção, é fundamentalmente diverso. Para que a memória em determinada santa continue existindo, muitas vezes necessita-se de lugares de memória, assim, no caso das devoções a Maria Elizabeth e “Mariazinha” Penna esses locais são seus próprios jazigos, visto que estes os locais de peregrinação dos devotos. A respeito da utilização do patrimônio nas construções históricas, Gonçalves pensa que: A luz dessa categoria (patrimônio imaterial), aquelas instituições ritos e objetos podem ser percebidos simultaneamente em sua universalidade e em sua especificidade; reconhecidos ao mesmo tempo como necessários e contingentes; adquiridos (ou construídas reproduzidas no tempo presente) e ao mesmo tempo herdados (recebidos dos antepassados, de divindades, etc.); simultaneamente materiais e imateriais; objetivos e subjetivos: reunindo corpo e alma; ligados ao passado, ao presente ao futuro; próximos, ao mesmo tempo que distantes; assumindo tantas formas sociais quanto formas textuais (por exemplo, nas etnografias e nos ensaios em que foram representados). O sentido fundamental dos ‘patrimônios’ consiste talvez em sua natureza total e em sua função eminentemente mediadora (GONÇALVES, 2005, p.30). Um local de romaria vai se transformando em receptivo turístico na medida em que o processo mais amplo de modernização avança, criando condições, serviços e representações sociais e simbólicas do turismo que lhe deem sustentação. A visita ao templo, ao pagar a promessa, a viagem para a realização de um milagre, de devoção transformam-se em turismo. Assim, participamos do pensamento de Guidolin; Winter; Zanotto quando analisam as Romarias de Passo Fundo/RS, pois percebemos que o mesmo ocorre em Santa Maria, pois o crescimento da romaria do seu início até os dias de hoje é evidente, transformando essa manifestação religiosa em um evento turístico-religioso. Em que as mudanças fazem parte de um processo contínuo, que é necessário para a existência e o sucesso da Romaria (GUIDOLIN; WINTER; ZANOTTO, 2011, p.206-207). No caso de Santa Maria e a devoção a “Mariazinha” Penna, além da fé do povo, que na verdade encaramos como o maior bem, nos últimos vinte e sete anos o Poder Público Municipal corroborou a fé local e auxiliou no processo de santificação dando o nome de “Mariazinha” a uma Rua no Bairro Traquedo Neves, por meio da Lei número 3028/88, de 21 de setembro de 1988 e por meio do então religiosas católicas que se estabeleceram no país nestes 500 anos. Nas principais cidades históricas do Brasil, os principais atrativos são as igrejas construídas em diversas épocas da colônia e do império, construções que estão ligadas à história da população local em cada cidade (Cf. http://br.geocities.com/geoturuff/turismoreligioso.html)

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prefeito José Haidar Farret e a uma Praça no Bairro Passo da Ferreira, além do fato de que, ao lado de seu túmulo a família conseguiu comprar um terreno a fim de colocar as várias placas de agradecimento por graças alcançadas, assim, como, no Bairro Camobi foi construída uma ermida para a mesma, visto que, é o Bairro de seu nascimento. Nesse contexto para Carneiro, o turismo, como um campo dinâmico, apresenta sempre novos desafios, resultados das formas de organização do trabalho, da possibilidade de novas experiências no contato com a realidade, associadas ao desenvolvimento das tecnologias de comunicação, bem como da emergência de preocupações sociais e ambientais (CARNEIRO, 2004, p. 75-78). Dessa forma, o turismo afirma-se não só como fenômeno de consumo, mas também como fenômeno de produção. Essa maneira de conceituá-lo permite incorporar ao debate tanto a noção de produto turístico como a figura dos agentes produtores. Até mesmo o sentido etimológico da palavra peregrino remete ao estrangeiro, aquele que vem de fora, que é de outro lugar. E esse é um dos enfoques possíveis sobre o comportamento turístico, pois se assenta na ideia de que o turismo poderia ser lido como uma atualização da peregrinação, ao qual se acarretam sentidos e valores que em outros momentos foram rechaçados de serem vividos nesta experiência religiosa. As peregrinações nas sociedades contemporâneas têm influenciado expressivamente um dos mais significativos setores da vida social, afetando diretamente a área do turismo. Assumindo o pressuposto de que alguns elementos da peregrinação foram absorvidos pelo turismo moderno, também o é que o turismo parece ter canalizado parcela da mística da peregrinação para si. Neste sentido, pode-se influir que boa parcela das experiências de peregrinação é permeada por um sofisticado sistema de turismo que lhe fornece suporte material e visibilidade, ao mesmo tempo em que muitas atividades turísticas têm como motivação elementos religiosos 4. No caso de Maria Elizabeth, a comercialização de sua imagem corre a favor da divulgação da própria cidade, visto que, também é motivo e atrativo de visitantes e visitação. Além disso, no catálogo de visitação ao Cemitério Vera Cruz, em Passo Fundo o túmulo da “santa” popular encontra-se em evidência, além do fato de que é o primeiro jazigo quando se entra no referido cemitério. Não obstante, existe em frente ao cemitério onde Maria Elizabeth se encontra sepultada, uma floricultura de propriedade de sua família, local em que os devotos, visitantes ou turistas podem adquirir objetos sagrados/profanos comercializados como lembranças da “santinha” local. Entre estes objetos podemos destacar:

Imagem 1- “Fitinha” de pulso com proteção de Maria Elizabeth.

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SILVA, Alexandra BEGUERISTAIN. As Práticas Humanizadoras de hospitalidade nos eventos programados em Santa Maria – estudo de caso: Romaria de Nossa Senhora Medianeira. (Monografia) Trabalho Final de especialização em Gestão do Turismo Sustentável, UNIFRA, 2010, p.67.

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Imagem 2- “santinho” com reprodução da imagem de Maria Elizabeth.

Imagem 3 e 4 – Chaveiros com imagem de Maria Elizabeth. As transformações ocorridas no transcorrer dos anos de devoção e peregrinação aos túmulos fazem das mesmas não só um patrimônio imaterial, mas um lugar de atrativo turístico que propicia diversificação de negócios, em que os transportes se multiplicam, as empresas de ônibus e áreas criam e revitalizam novas e antigas rotas, surgem mais empregos, o comércio cresce, enfim, uma série de mudanças passa a ocorrer e que podem significar a revitalização da economia local de muitos municípios

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de pequeno e médio porte no Brasil 5. Por outro lado, para Silveira, o pluralismo religioso intensificouse a partir das décadas de 1980 e 1990, tendo em vista que nesse período a modernização industrial e a urbanização explodiram no Brasil, além de caracterizar-se como a década da construção do mercado turístico nacional 6 . O governo brasileiro, por meio da EMBRATUR 7 , investiu em programas de incentivo ao turismo e emprestou dinheiro para a construção de extensas redes hoteleiras e, assim, as agências de turismo espalham-se. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, em pesquisa feita no ano 2007, o Brasil é um dos países com maior número de católicos do mundo, com uma população que se identifica por vivenciar diversificada religiosidade popular. A partir desse dado é possível declarar que o turismo religioso pode vir a ser uma área com grande potencial a desenvolver-se, o que só ocorrerá se for bem planejado e organizado. Sendo assim, pode-se dizer que diversas manifestações religiosas, que fazem parte da cultura, vêm se transformando em verdadeiros ‘espetáculos’, mobilizando para si a cada ano milhares e milhares de pessoas. Cada grupo de pessoas possui suas próprias motivações – diferentes e pessoais – para participar de uma peregrinação: agradecer os pedidos que já foram alcançados; pagar promessas; fazer promessas; manter a tradição da família; lazer; comércio; política; superar obstáculos; entre outros. Essa demonstração sociocultural divide espaço com a participação de sujeitos procedentes de diferentes classes econômicas, de crianças, de jovens, de idosos, de mulheres, de homens, mostrando a diversidade do público fiel. Dessa forma, pode-se inferir que as possibilidades de experimentação turística de determinada estrutura da sociedade se devem a fatores como o seu potencial político-econômico, a singularidade do ritual e de sua divulgação consistente e sistemática, por meio da imagem que se pretende projetar. Quanto às manifestações de cunho cultural-religioso, como no caso das devoções “as Marias”, a sua concepção está centrada nos devotos e nos grupos de agentes sociais que participam dessa esfera ora sacra, ora profana. Nesse contexto, para Prats 8 o patrimônio como recurso turístico pode ser sistematizado de três formas distintas: a) O patrimônio pode se constituir em um produto turístico per se capaz de integrar junto à oferta hoteleira, um motivo de compra autônoma; b) O patrimônio pode ser apresentado como ‘associado’ a um produto turístico integrado (pacote de viagem), sendo parte integrante do produto e; c) O patrimônio pode se construir em um valor agregado para destinos turísticos que não possuem no patrimônio o atrativo principal ou o motivo de compra. Das inúmeras manifestações religiosas existentes, ao menos três tipos podem tornar-se objeto turístico: as do patrimônio arquitetônico (igrejas barrocas, templos budistas, protestantes, etc.), as do ritual (Semana Santa, ritos celebrativos ou de comemoração, etc.) e as de eventos (festas religiosas, festivais de música, etc). Para ser considerado como um produto turístico, os bens de devoção e seus locais de culto foram analisados como basilares para atrair para os municípios de Passo Fundo e Santa Maria não somente os romeiros e/ou peregrinos, mas também outros grupos sociais. A partir daí os eventos começam a sofrer alterações com um possível redimensionamento de seus espaços e de seus serviços oferecidos antes, durante e depois da celebração. Tendo em vista que, no momento em que as devoções passam a interessar a agentes privados/públicos que normatizam sua comercialização, ela vai passando a compor conjuntamente a outros eventos/elementos um produto socioturístico em sua região de abrangência. A tendência do campo cultural-religioso contemporâneo caracteriza-se por um crescente pluralismo que entendemos estar se deixando influenciar pela mercantilização das várias formas do sagrado. O campo religioso bem como o político e o cultural é altamente competitivo internamente assim 5

SILVEIRA, Emerson Sena da. Por uma sociologia do Turismo. Porto Alegre: Zouk, 2007. Idem. 7 A EMBRATUR é a autarquia especial do Ministério do Turismo responsável pela execução da Política Nacional de Turismo no que diz respeito a promoção, marketing e apoio à comercialização dos destinos, serviços e produtos turísticos brasileiros no mercado internacional. Trabalha pela geração de desenvolvimento social e econômico para o País, por meio da ampliação do fluxo turístico internacional nos destinos nacionais. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2013. 8 PRATS, Llorenç. Antropologia y patrimônio. Barcelona: Arial, 1997. 6

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como o mercado capitalista. O fenômeno religioso tem se mostrado bastante ambíguo e extremamente marcado por visões contraditórias, graças a sua (relativa) autonomia. As sociedades influenciadas pelo capitalismo adaptaram as religiões as suas ideologias em vez de reprimi-las. O capitalismo e sua ideologia foi mais hábil que os comunistas em instrumentalizar amplos setores das religiões para fins de justificar o status quo. [...] As Igrejas, em grande parte, suspiraram aliviadas com o ressurgimento religioso, mas logo se deram conta, frustradas, que o que voltou veio transformado por um mergulho no ‘novo mundo neoliberal’, de onde saiu com um compromisso com o aqui e agora, sem a dimensão utópica e sem céus e infernos no além morte. 9 Nesse contexto, podemos entender que o que passa a ter valor na sociedade contemporânea e ser dominante é o presentísmo 10 e, assim, o que se pode comprar, como uma experiência turística, por exemplo. Além disso, o assistir ao evento sem uma relação mais íntima de apropriação do patrimônio pelo turista não-devoto nos traz mais uma das perspectivas das contemporâneas relações entre devotosturistas-romeiros. A mística da peregrinação hoje nos demonstra “uma reação que traz a religião do espaço privado para o público”. 11 BIBLIOGRAFIA ABELIN, Leyda Tubino. Mariazinha Penna: a predestinada. Porto Alegre: Ed. Nova Dimensão, 1988. ANDRADE, José Vicente. Turismo Fundamentos e Dimensões. São Paulo: Ática, 2000. BOBSIN, Oneide. Contemporaneidade e religiões. Revista Textual, vol. 1, nº 19, maio de 2014. CARNEIRO, Sandra Maria Corrêa de Sá. Novas peregrinações Brasileiras e suas interfaces com o turismo. Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre, ano 6, n. 6, out., 2004. GUIDOLIN, Camila; WINTER, Murilo D.; ZANOTTO, Gizele. Plasticidade ritual: um estudo de caso das romarias de Passo Fundo. In: BASTITELLA, Alessandro (Org.). Patrimônio, memória e poder: reflexões sobre o patrimônio histórico-cultural de Passo Fundo (RS). Passo Fundo: Méritos, 2011, p.206-207. GONÇALVES, José Reginaldo. Ressonância, Materialidade e Subjetividade: as culturas como patrimônios. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, jan./jun., 2005. MONTERO, Paula. Magia, Racionalidade, Sujeitos Políticos. Portal das Ciências Sociais Brasileiras. RBCS, n.26, Ano IX, Outubro de 1994. Disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=211:rbcs26&catid=69:rbcs&Itemid=399 SILVA, Alexandra BEGUERISTAIN. As Práticas Humanizadoras de hospitalidade nos eventos programados em Santa Maria – estudo de caso: Romaria de Nossa Senhora Medianeira. (Monografia) Trabalho Final de especialização em Gestão do Turismo Sustentável, UNIFRA, 2010. SILVEIRA, Emerson Sena da. Por uma sociologia do Turismo. Porto Alegre: Zouk, 2007. STEIL, Carlos Alberto. Peregrinação e turismo: o Natal em Gramado e Canela. Anais do XXII Reunião Anual de ANPOCS, 1998. RIBEIRO, Marcelo. Festas Populares e turismo cultural – inserir e valorizar ou esquecer¿ Passos: Revista de turismo y patrimônio cultural, v. 2, 2004. PRATS, Llorenç. Antropologia y patrimônio. Barcelona: Arial, 1997.

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BOBSIN, Oneide. Contemporaneidade e religiões. Revista Textual, vol. 1, nº 19, maio de 2014, p. 5. Tese que diz que o que tem valor é o hoje e o agora. 11 Ibidem, p. 9. 10

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DERROTAS, MILITARIZAÇÃO E CONTESTAÇÃO: O FUTEBOL BRASILEIRO NA IMPRENSA ALTERNATIVA DO PERÍODO DA DITADURA MILITAR (1974-1978) Guilherme Kichel de Almeida 1 A presente pesquisa está sendo desenvolvida no curso de mestrado em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ainda se encontra em sua fase inicial e por isso não apresento aqui resultados conclusivos. A proposta, portanto, é de apresentar o problema de pesquisa, o marco teórico e os objetivos, contextualizando historicamente a problemática desenvolvida. Sinteticamente, pretendo pesquisar as análises produzidas pela imprensa alternativa sobre o futebol brasileiro entre os anos 1974-1978. Traduzi essa intenção com a seguinte pergunta: como as análises sobre o futebol brasileiro, sejam elas localizadas no âmbito cultural ou no âmbito político-institucional foram trabalhadas pela imprensa alternativa durante o quadriênio de 1974 a 1978? CONTEXTO HISTÓRICO: DITADURA, IMPRENSA ALTERNATIVA E FUTEBOL A ditadura militar brasileira utilizou de diferentes meios para colocar em prática seu projeto autoritário baseado na Doutrina de Segurança Nacional (ALVES, 1984). Entre esses meios estava a interferência no chamado setor de comunicação, que, segundo Aquino (1999), gerou constantes preocupações para os militares. Controlar a informação a ser divulgada era necessário: “[...] para preservar a imagem do regime, num exercício de ocultação que passa, inclusive, pela negação de visibilidade, ao leitor, de suas próprias condições de vida.” (AQUINO 1999, p.15). Dentro dessa lógica, a censura aos meios de comunicação, especialmente após o AI-5, tornou-se um importante pilar para o governo ditatorial e um marco do período repressivo (FICO, 2007). Além disso, o expressivo apoio das classes dominantes aos golpistas, também por meio da grande imprensa, fez com que o campo da liberdade jornalística fora se tornando gradualmente estreito para possíveis contestações à ordem vigente. Assim, notadamente durante a década de 1970, foi que a chamada imprensa alternativa proliferou no Brasil. Sobre a denominação dada a esse tipo de imprensa 2, segundo Kucinski, a designação do termo “alternativa” é pertinente, pois ele corresponde a quatro significados elucidativos para entender o que foi esse fenômeno histórico: [...] o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos 60 e 70, de protagonizar as transformações sociais que pregavam. (KUCINSKI, 1991, p. XIII).

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Mestrando em História (PPGH – UFRGS). Bolsista Capes. Aquino (1999) mapeia com precisão as diferentes opiniões sobre o conceito e papel histórico da “imprensa alternativa”. A autora vê como fundamental a distinção entre “imprensa convencional” e “imprensa alternativa”. A primeira seria baseada em torno dos princípios liberais, que se estrutura como uma empresa capitalista e que, nos casos das empresas de grande porte também pode ser chamada de “grande imprensa”. Já a segunda seria “[...] uma opção na medida em que ocupa, de variadas formas, o espaço deixado pelo tipo de imprensa que segue o modelo convencional [...] A alternativa não se pretende neutra, assumindo-se a serviço da defesa de interesses de grupos como, por exemplo, partidos, sindicatos, associações, minorias raciais e sexuais, e mesmo entidades religiosas. Faz um jornalismo engajado, orientado a não separar a informação da opinião.” (AQUINO, 1999, p.122). 2

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Depois do surgimento de O Pasquim, em 1969, como o primeiro grande jornal alternativo do período, outros periódicos de destaque foram aparecendo gradualmente 3. Sendo que nos anos de 1975 e 1976, a imprensa alternativa alcançava seu apogeu (KUCINKSI, 1991, p.90-91). Jornais como Opinião (1972-1977) e Movimento (1975-1981) tiveram a capacidade de aglutinar diferentes segmentos políticos e sociais, servindo de referência aos que se levantavam contra a ditadura. Opinião apresentava um quadro complexo tanto pela sua própria concepção pluralista como pelas disputas ideológicas internas. O dono e idealizador do periódico foi Fernando Gasparian, empresário do ramo têxtil (proprietário da empresa América Fabril, antes do golpe) e muito bem relacionado com nomes da intelectualidade brasileira como Fernando Henrique Cardoso e Celso Furtado. Segundo Kucinski (1991, p. 250) o acontecimento definitivo para a criação do jornal foi a morte de seu amigo Rubens Paiva. Para chefe de redação, Gasparian buscou Raimundo Pereira 4 , jornalista já de renome, com experiência na VEJA e também em jornais clandestinos de menor porte. A composição do Opinião, assim, se caracterizou pela diversidade de seu quadro. O proprietário do jornal queria uma publicação de intelectuais, além de ter adquirido os direitos de veiculação de jornais prestigiados como o Le Monde e o The Guardian. Já Raimundo Pereira, almejava algo que se opusesse a VEJA, um jornal feito por jornalistas. No fim, surgiu um amálgama, cujo resultado assegurou ao periódico um lugar de destaque na imprensa brasileira. O semanário, portanto: “De todos os jornais alternativos da época era o de perfil mais intelectual. Reunia numa convivência nem sempre harmoniosa, jornalistas, militantes políticos organizados e intelectuais muitas vezes de renome internacional.” (ARAÚJO, 2000, p.24). Dessa maneira, ainda que o periódico possa ser considerado como de esquerda, a união contra um inimigo em comum (a ditadura) correspondeu, na prática, a uma diversidade de diferentes pensadores e pautas que dialogaram em suas páginas. Na situação específica de Movimento, formado de um racha do Opinião¸ também tinha Raimundo Pereira como editor-chefe e foi a tentativa de construir o “Jornal dos jornalistas”. Além disso, o periódico buscou atuar politicamente, por isso os objetivos programáticos em defesa da democracia, de espaços legais de atuação e das classes populares 5, seguindo assim uma orientação de esquerda em termos oposicionistas. Dessa maneira, o jornal praticava um jornalismo engajado, sem a pretensão de objetividade “imparcial” da imprensa liberal e, por último, sua forma de organização era coletivista, com eleições entre os associados (AQUINO, 1999). No programa do semanário estava o resumo do seu posicionamento: “[...] pelas liberdades democráticas; pela melhoria da qualidade de vida da população; contra a exploração do País por capitais estrangeiros; pela divulgação da cultura popular; pela defesa dos recursos naturais.” (AZEVEDO, 2011, p.29). A partir da fundação da editora Edição S/A e a construção de uma importante rede de contatos o jornal teve meios para ser operacionalizado e em sete de julho de 1975 sua primeira edição ganhou as bancas. Além do seu conteúdo combativo, a equipe de Movimento teve que esforçarse diariamente e em vários níveis para tornar a publicação possível. Um dos traços mais marcantes de seus três primeiros anos de existência foi a presença constante da censura prévia governamental que limitou bastante suas publicações e atuação política.

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Entre esses estão: Opinião (1972); Movimento (1975); Versus (1975); Em Tempo (1978). A trajetória política de Raimundo Pereira, a partir dos anos 1970, esteve ligada à esquerda clandestina. Mantinha conexões estreitas com a AP (Ação Popular) - que em 1971 juntara-se com as diretrizes do PC do B - através de Carlos Azevedo. A relação era tão estreita que o grupo AP/PC do B até tinha certa influência nas publicações do semanário. (KUCINSKI, 1991, p. 245-258). 5 Apesar de o jornal ter como um dos seus públicos-alvo as classes populares, especialmente a parte ligada às bases dos movimentos sociais, o periódico, por privilegiar assuntos políticos, textos longos e contribuições de intelectuais e jornalistas acabou tendo dificuldade de atingir esses segmentos da população. Para suprir essa demanda, o jornal criou um suplemento Assuntos, de oito páginas, que teria notícias mais breves e com linguagem mais acessível, porém, por dificuldades financeiras e de sobrecarga de trabalho a ideia não ganhou desenvolvimento (AZEVEDO, 2011, p. 214-220) 4

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O auge dos jornais de oposição 6 enquadrou-se, então, no início de uma nova fase da ditadura, quando Ernesto Geisel (1974-1979) assumiu o governo federal. Nesse momento, o “milagre” já mostrava seus limites (ALVES, 1984, p.145-156) e os militares já sentiam a sua base de apoio em parte da imprensa e na classe média sofrer abalos. Dessa forma, inicia-se, assim, o projeto da distensão lenta, gradual e segura. Segundo Alves, o projeto de distensão pretendia: “[...] assegurar um afrouxamento da tensão política.” (ALVES, 1984, p.185), desmantelando gradualmente os mecanismos repressivos e buscando legitimidade no sistema eleitoral para garantir o controle do governo no processo de abertura. Porém, com os expressivos e consecutivos bons resultados do MDB nas eleições nacionais e estaduais de 1974 e 1978 e nas municipais de 1976, os dirigentes arenistas se depararam com um crescimento da oposição e um claro desafio da população ao regime. Tal situação provocou a reação dos militares com a Lei Falcão (1976) e o Pacote de Abril (1977). Ademais, as mortes de Vladimir Herzog (1975) e Manuel Fiel Filho (1976) revoltaram a sociedade civil e provocaram mudanças dentro dos quadros do governo ditatorial (SILVA, 2007, p.265-266). Concomitantemente, nesse cenário, diferentes setores da sociedade criaram coragem para enfrentar as imposições dos militares. Por conseguinte, destacaram-se a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), no combate no âmbito jurídico aos pressupostos legais da ditadura, a Igreja Católica com a representação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos), na batalha pelos direitos humanos e, por último, a ação da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) destacara-se na defesa contra a censura dos meios de comunicação 7. A imprensa alternativa, pois, participou ativamente na luta pela legalidade, por espaços abertos e públicos de atuação política. Também nesse contexto, a esquerda brasileira passava a rever suas diretrizes, especialmente após o fracasso da luta armada e a vivenciar e problematizar a crise política do socialismo e a crise teórica dos paradigmas marxistas (ARAÚJO, 2000, p.13-23). Dentro do contexto sociopolítico já apresentado, o futebol brasileiro viveu uma importante fase durante o intervalo de 1974 a 1978. Quadriênio em que o Brasil perdeu duas Copas do Mundo após o triunfo do tricampeonato no México, em 1970. Sem Pelé e os principais craques de 1970, a seleção canarinho ficou aquém do esperado em 1974 e acabou sendo derrotada pela Holanda que apresentara um futebol bonito e eficiente. Segundo Gil (1994) esse momento inaugurou uma crise simbólica do estilo nacional brasileiro (futebol- arte) em nome da europeização (futebol-força) como solução para as “deficiências” do nosso futebol que já não conseguiria acompanhar as principais potências europeias 8. De forma similar, Helal (1997) nota, no ano de 1974, o aumento vertiginoso das contestações à organização do futebol brasileiro em nível institucional e profissional 9 . Fato que explicitaria as denúncias sobre a crise do futebol brasileiro após a derrota na Copa da Alemanha. Assim, a lógica da militarização da Seleção (FRANCO JÚNIOR, p.142-146), já presente a partir da preparação para a Copa do tri (após o fracasso de 1966), refletia tanto o momento histórico por qual passávamos quanto a importância dos resultados do time verde-amarelo para os ideais ideológicos e propagandísticos do governo 10 . Nas Copas seguintes, mesmo com a diminuição das 6

“A imprensa alternativa tem sua fase áurea no momento em que a repressão política leva à formação de uma ‘frente’ oposicionista que [...] une-se para fazer oposição ao regime militar, formando um grande bloco progressista no que diz respeito à análise das circunstâncias históricas do Brasil.” (AQUINO, 1999, p. 123). 7 Cf. ALVES, 1984 8 Basicamente a diferenciação entre os dois estilos seria caracterizada da seguinte forma: futebol-força: competitivo, eficiente, racional, coletivo, organizado; enquanto o futebol-arte: artístico, espetacular, individualista, habilidoso e intuitivo (DAMO 1999, p. 91). 9 Nosso problema privilegiará as discussões em torno da seleção brasileira de futebol, especialmente em relação às participações da mesma nas duas Copas do Mundo e às problematizações sobre as representações da identidade nacional brasileira. Porém, inevitavelmente, o universo institucional e organizacional do futebol brasileiro (campeonatos, clubes, profissionalismo x amadorismo, etc.) tangenciará e participará da futura pesquisa. 10 No governo Médici (1969-1974) a Copa do Mundo de 1970 foi utilizada como meio para propagação dos ideais da ditadura na constante tentativa de ligar os feitos do selecionado com a imagem do governo. Para tanto, foi essencial a criação da Aerp (Assessoria especial de relações públicas) (FICO, 1997). Segundo Franco Júnior (2007, p.143): “A propaganda embalou a seleção desde sua partida para o México. A marchinha “Pra frente Brasil” era tocada nas rádios, nos programas de televisão, nos desfiles militares e nas escolas. Os cartazes de

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utilizações publicitárias do futebol 11, o pensamento militar- tecnocrata acabou se intensificando: em janeiro de 1975, o almirante Heleno Nunes assumiu o comando da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e em fevereiro de 1977, o militar Cláudio Coutinho passou a ser o treinador da Seleção 12. Sob seu comando, na Copa de 1978, o time brasileiro teve uma participação decepcionante e cercada por polêmicas. Coutinho definiu a equipe brasileira, após o torneio, como a “campeã moral” (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 150). Desse modo, um ponto central do trabalho serão as duas Copas do Mundo (1974 e 1978) e a repercussão das derrotas brasileiras em ambos os momentos. Como salienta Guedes (1998), a Copa do Mundo um momento privilegiado para a investigação científica, dado que a derrota ou o mau desempenho na principal competição esportiva do mundo: “[...] desencadeia um processo de acusações, de culpabilizações, que se constitui em riquíssimo material de análise, pois tem o potencial de atualizar tudo que divide a sociedade brasileira.” (GUEDES, 1998, p.54). Além da militarização da Seleção e das derrotas, a realização da Copa de 1978 na Argentina, país que era governado por uma das ditaduras mais sangrentas da história do cone sul, também serve como marco relevante para a nossa investigação, pois poderá produzir interessantes análises e críticas da ligação entre futebol, sociedade e política, visto o viés de esquerda dos jornais a serem pesquisados. NAÇÃO E IMPRENSA: O FUTEBOL RELACIONADO COM A SOCIEDADE Como parte importante da pesquisa está a relação entre futebol e sociedade. Nesse caso, a conexão entre o esporte bretão e a formação na nação moderna ocidental é essencial para entendermos o primeiro. Sobre a definição do conceito de nação, parto da já clássica acepção de Anderson: “[...] ela é uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana.” (ANDERSON, 1989, p.14). Ainda que o autor enfatize o aspecto cultural da nação e da sua formação, ele reconhece a comunidade como política e que, portanto, só pode ser entendida através de sua vontade de soberania, expressada pela existência de um Estado. Esse é um importante elemento para o entendimento do conceito de nacionalismo. Para Ernerst Gellner, este se exprime por ser: “[...] essencialmente, um princípio político que defende que a unidade nacional e a unidade política devem corresponder uma à outra” (GELLNER, 1993, p.11). Dessa maneira, o nacionalismo caracteriza-se, sobretudo, por sua vontade política de formar um Estado soberano. Como salienta Hobsbawm, ao seguir a mesma linha do antropólogo francês, a nação: [...] é uma entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o “Estado-nação”; e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora dessa relação [...] Em uma palavra, para os propósitos de análise, o nacionalismo vem antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto. (HOBSBAWM, 2013, p. 1819). À vista disso, a comunidade imaginada não existe a priori, pois ela só é possível a partir da ação do Estado moderno e do nacionalismo 13 . Entre as funções do primeiro está a de construir o

propaganda do regime confundiam-se com o sucesso do escrete nacional. Na semana da Pátria o slogan era “Ninguém mais segura este país.” 11 No governo Geisel a utilização da Seleção para propaganda praticamente não existiu em razão da própria orientação de seu governo em relação à propaganda estatal. Cf. FICO, 1997, p. 104. 12 Cláudio Coutinho, militar e preparador físico, esteve presente nas comissões técnicas nas Copas de 1970 e 1974. Assumiu o cargo de treinador da seleção brasileira em 1977 com a intenção de “modernizar” o futebol brasileiro baseando-se nos primados do “futebol-força”, pois após a derrota de 1974 necessitaríamos, segundo boa parte da crônica especializada, abandonar os preceitos do “futebol-arte” e aprimorar nosso futebol de acordo com o paradigma europeu. Cf. GIL, 1994. 13 A estruturação do Estado durante as revoluções francesas e o século XIX atuou como elemento fundamental na formação, primeiramente do “princípio de nacionalidade” e depois, em sua transformação, no “nacionalismo” do crepúsculo do século XIX. Através de sua expansão técnico-administrativa, o Estado chegou aos lugares mais afastados, por intermédio da polícia, dos impostos, das escolas públicas etc. (HOBSBAWM, 2013, p.115-118). A formação da “nação”, portanto, passa pela institucionalização crescente dos Estados e pelo fortalecimento do

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sentimento de pertencimento que permitirá às pessoas que nunca se conheceram verem-se e verem aos conterrâneos de seu país como próximas, unidas pelo senso de comunhão. Esse sentimento foi possível de ser disseminado e massificado no final do XIX e início do XX devido também ao que Hobsbawm (1997) classificou como: “a invenção de tradições”. Segundo o autor, numa nova conjuntura histórica de composição dos Estados- nação europeus: “Grupos sociais, ambiente e contextos sociais inteiramente novos, ou velhos, mas incrivelmente transformados, exigiam novos instrumentos que assegurassem ou expressassem identidade e coesão social e que estruturassem relações sociais.” (HOBSBAWM, 1997, p.271). Concomitante a essas tradições que estavam sendo criadas, participando e influenciando nesse processo estava o mercado editorial, mais especificamente a imprensa. A consolidação dos jornais como fonte de informação de massa ou, na própria delimitação de Anderson (1989), os chamados “best-sellers por um dia”, foram importantes, pois ajudaram a criar uma nova forma de enxergar o tempo e o espaço em que a simultaneidade seria a regra e, também, traziam em suas páginas, diariamente, em um único e uniforme idioma, o sentimento de comunidade que partilha uma mesma realidade. Nesse contexto, o futebol pode ser tomado como um relevante exemplo. Não só fazia parte dessas tradições “inventadas” 14 , como teve na imprensa (escrita e, posteriormente, na audiovisual) um elemento de propulsão para sua popularidade. Assim, aos poucos o esporte bretão foi desvinculando-se de seu caráter elitista, em jogo mútuo de influência entre a progressiva massificação e a ação da imprensa, para ir tornando-se um esporte de massas 15. No caso brasileiro, o jornalismo e a crônica esportivos atuaram de forma importante na construção da identidade nacional brasileira. Especialmente a partir da década de 1930 (FRANCO JÚNIOR, 2007), em que a integração nacional proporcionada pelos anos Vargas, somada a nova etapa do capitalismo brasileiro gerou a possibilidade da imprensa como um todo ampliar seu alcance e relevância. A imprensa escrita, por exemplo, no bojo das ideias de Gilberto Freyre de valorização do que seria a miscigenação racial brasileira, passou a reproduzir esses discursos. A partir da participação e desempenho do Brasil na Copa de 1938, o nosso futebol já começava a ganhar status de singularidade em comparação aos europeus, perspectiva que se ampliaria nas décadas seguintes, se consagrando nos doze anos em que a Seleção foi três vezes campeã mundial, nas Copa de 1958, 1962 e 1970. Nomes como Mário Filho e Nelson Rodrigues (CAPRARO, 2007), além da força diária representada pelas notícias esportivas são exemplos da exaltação dessa relação. O futebol, portanto, é um fenômeno social mais complexo e que merece, por isso, análise mais cuidadosa e que faça jus a essa mesma complexidade. Essa forma de interpretação ganhou uma importante guinada, no Brasil (LOVISOLO, 2011), com a publicação, em 1982, do livro Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira (DAMATTA, 1982). Nele, o antropólogo Roberto DaMatta, argumenta que o esporte deve ser estudado em conjunto com a sociedade e não em contraste com ela, por isso critica o uso da ideia do “ópio do povo” como guia para a pesquisa científica no caso desportivo. No mesmo livro, Flores (1982) e Vogel (1982) corroboram com a orientação de DaMatta em não reduzir o futebol a instrumento de manipulação do bloco dominante. Além de, no caso do segundo, ter o mérito de utilizar a Copa do Mundo (de 1950 e de 1970) como ponto de observação para melhor entender a comunidade nacional brasileira.

nacionalismo como um fator decisivo nas mobilizações de massa, especialmente, entre o último quarto do século XIX e o início do XX. 14 O futebol, portanto, foi um desses novos instrumentos, que segundo o autor, pertencia à categoria de “nãooficiais”, por ter sido gerado em grupos sociais sem organização formal e cujos objetivos não eram conscientemente políticos (HOBSBAWM, 1997, p. 271) 15 A caracterização desse esporte como da “classe operária” não é gratuita. Mesmo com sua origem elitista, o futebol, rapidamente, passou por um processo de massificação e popularização. Somado a isso, a formação das competições internacionais, dos clubes e federações, certamente contribuiu para que o sentimento nacional fosse espraiado e solidificado. Por conseguinte: “Tanto o esporte de massas quanto o da classe média uniam a invenção de tradições sociais e políticas de uma outra forma: constituindo um meio de identificação nacional e comunidade artificial.” (HOBSBAWM, 1997, p. 309).

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Entre os objetivos principais do trabalho, assim, está o de entender essa complexidade através da Imprensa Alternativa. Por conseguinte, a escolha da problemática também se deu com o objetivo de buscar outras perspectivas acerca do esporte mais popular do Brasil, especificamente o olhar de parte da esquerda brasileira de então. Pois as pesquisas referentes ao assunto “futebol e ditadura militar” ainda concentram-se no período do governo Médici (1969-1974), sem muitas problematizações para além da denúncia, necessária e correta, do uso político feito por seu governo da campanha do tricampeonato 16. Além de, seguidamente, o senso comum relacionar o pensamento de esquerda, negando de saída as diferenças que a própria definição abriga, com a ideia de que o futebol seria alienador e serviria apenas para enganar as massas. Dessa feita, acredito que outros olhares e outros recortes temporais podem contribuir para uma melhor compreensão do futebol brasileiro, da ditadura e da sociedade em que ele construiu-se como referência simbólica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes primárias. Jornal Opinião (1972-1977) – Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional: http://hemerotecadigital.bn.br/ Jornal O Movimento (1975-1981) - Núcleo de Pesquisa em Ciências da Comunicação (NUPECC), da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pelo site http://www.pucrs.br/famecos/nupecc BIBLIOGRAFIA AGOSTINO, Gilbero. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2002. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1984 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática. 1989. AQUINO, Maria Aparecia de. Censura, imprensa, Estado autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999. ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. AZEVEDO, Carlos. Jornal Movimento: uma reportagem. Belo Horizonte: Editora Manifesto, 2011. BARTHOLO, Tiago; SALVADOR, Marco Antonio; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. Copa de 70: o planejamento México. In: GASTALDO, Édison, e GUEDES, Simoni L. (Org.). Nações em Campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p.103- 123. CAPRARO, André. Identidades Imaginadas: futebol e nação na crônica esportiva brasileira do século XX.2007, Tese (Doutorado em Historia) Universidade Federal do Paraná, Curitiba (PR). COUTO, Euclides de F. Da ditadura à ditadura: uma história política do futebol brasileiro (19301978). Niterói: Editora da UFF, 2014. 16

Em relação à pesquisa da história do futebol no Brasil, destacamos os livros de Gilberto Agostino, Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional (2002), Hilário Franco Júnior, A dança dos deuses: futebol, sociedade e cultura (2007) e de José Miguel Wisnik, Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008). Os três possuem um caráter generalista e, de formas distintas, perpassam o período da ditadura militar brasileira (1964- 1985). Justamente por suas propostas, acabam emprestando poucos espaço e reflexão para o intervalo que vai de 1974 a 1978. Ainda são raros os livros como o de Euclides Couto Da ditadura à ditadura: uma história política do futebol brasileiro (1930-1978) que busca aprofundar outros perspectivas sobre a ditadura militar.

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DA MATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DA MATTA, Roberto; BAETA NEVES, Luiz Felipe; GUEDES, Simoni Lahud e VOGEL, Arno. O universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p.19-42. DAMO, Arlei. Ah! Eu sou gaúcho! O nacional e o regional no futebol brasileiro. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, vol. 13, nº 23, 1999, p.87-117. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.167195. ______. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. FLORES, Luiz Felipe Neves. Na zona do agrião. Algumas mensagens ideológicas do futebol. In: brasileiro In: DA MATTA, Roberto; BAETA NEVES, Luiz Felipe; GUEDES, Simoni Lahud e VOGEL, Arno. O universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p.43-58. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Dança dos Deuses: futebol, cultura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 GELLNER, Ernerst. Nações e nacionalismos: trajectos. Lisboa: Gradiva, 1993. GIL, Gilson. O drama do “Futebol-Arte”: o debate sobre a seleção nos anos 70. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.9, n.25, 1994, p.100-109. GUEDES, Simoni. L. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói: editora da UFF, 1998. HOBSBAWM, Eric. A produção em massa de tradições: Europa, 1879 a 1914 In: HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (org). A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. Nações e nacionalismos desde 1780. São Paulo: Paz e Terra; 2013. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa; São Paulo: Página Aberta; 1991. LOVISOLO, Hugo. Sociologia do esporte (futebol): conversões argumentativas. In: HELAL, Ronaldo; LOVISOLO, Hugo & SOARES, Antonio J. G; Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p.11-31. SILVA, Francisco C. T. Crise na ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.243282. VOGEL, Arno. O momento feliz: reflexões sobre o futebol e o ethos nacional. In: DA MATTA, Roberto; BAETA NEVES, Luiz Felipe; GUEDES, Simoni Lahud e VOGEL, Arno. O universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p.75-115. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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ERGUEM-SE ESCURAS BANDEIRAS, ENTOAM-SE CANÇÕES DE PROTESTO: PINCELADAS SOBRE O IMAGINÁRIO ANARQUISTA DO 1º DE MAIO Caroline Poletto 1 Esse artigo pretende abordar alguns aspectos das rememorações do 1º de Maio visualizados nas páginas de jornais e revistas da imprensa libertária e anticlerical de Buenos Aires, Barcelona e São Paulo buscando demonstrar que o descontentamento e o espírito combativo se faziam presentes nesses artefatos impressos e o 1º de Maio acabou se tornando, principalmente nas primeiras décadas do século XX, um momento de tensão entre operários e autoridades estatais e policiais dessas cidades e países. Dessa forma, pretende-se abordar algumas das estratégias empregadas pelos veículos da imprensa subalterna em relembrar a data fatídica do 1º de Maio - não enquanto festa dos trabalhadores - mas sim enquanto momento de reflexão e de luta por transformações e melhorias sociais. Dentre essas estratégias pedagógicas empregadas pela referida imprensa, se destaca a utilização constante de imagens e canções de protesto, as quais serão o objeto central dessa análise que tentará esboçar a simbologia desses traços e dessas palavras – alegóricos ou não – e, ao mesmo tempo, verificar ou apontar (mesmo que sucintamente) circulações, repetições, (re) criações, (re) adaptações e permanências na estética libertária constituída em torno do 1º de Maio. Dentre os artefatos simbólicos utilizados pelos libertários nessa data emblemática, a bandeira vermelho-negra merece destaque e será o centro dessa análise, juntamente com as canções de protesto entoadas e divulgadas nesses momentos de ebulição social. Convida-se, portanto, o leitor a entrar em contato com a apaixonante experiência de criação de toda uma simbologia em torno do dia que ficou conhecido como Dia do Trabalho. A primeira imagem surgida no periódico anarquista argentino La Protesta data de maio de 1898 e apresenta a suposta vitória dos trabalhadores sobre o governo burguês, transmitindo, portanto, uma mensagem positiva e esperançosa do futuro; futuro esse no qual reinaria a sociedade libertária, desprovida das injustiças e mazelas do capitalismo. A legenda que acompanha o desenho reforça a crença na organização do operariado e na possibilidade de, através dessa organização dos trabalhadores, destruir seus opressores, ao mesmo tempo em que clama por essa emancipação operária: “Hurra por la emancipación del proletariado”. Percebe-se, através da legenda, a importância que a mesma apresenta para a imagem, uma vez que destaca e reforça a informação contida na mesma. Percebe-se também a utilização da bandeira como elemento de identificação com a luta anarquista. Uma observação mais atenta da imagem deixa transparecer o caráter internacional do desenho, uma vez que a palavra em inglês “anarchy” visualizada na bandeira erguida pelo trabalhador indica, provavelmente, que a origem da mesma poderia remeter a um jornal de língua inglesa – é possível que seja uma imagem proveniente da imprensa estadunidense, palco do atentado dos mártires de Chicago e, portanto, um testemunho da imprensa contemporânea ao feito – sendo, portanto, reproduzida novamente no periódico argentino La Protesta. Percebe-se também que a imagem aparece na primeira página do periódico, ocupando um lugar de destaque na publicação libertária. A bandeira, inicialmente vermelha e, posteriormente, agregada com a coloração negra, foi constantemente utilizada tanto nas imagens libertárias como nas passeatas dos trabalhadores, de maneira que as cores vermelha e negra têm uma identificação com as massas populares ao mesmo tempo em que são odiadas pelas autoridades. A bandeira vermelha aparece já nos primórdios do movimento operário, mas é apenas no 1º de Maio de 1890 que ela se oficializa enquanto símbolo popular. [...] A própria bandeira vermelha, cuja ascensão como o símbolo da revolução social, e mais tarde do operariado, parece ser irresistivelmente espontânea: de fevereiro de 1848, quando surge nas barricadas em toda parte, até as greves francesas de 1871 e 1890, onde “vermelho, quando aparece é quase sempre à guisa de improviso”, até a demonstração de 1º de Maio que – na França pelo menos – institucionalizou a bandeira vermelha. (HOBSBAWM, 2005, p.110)

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Doutoranda em História na Unisinos. Bolsista Prosup-Capes.

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Essas bandeiras já aparecem durante a primeira comemoração do 1º de Maio na França, em 1890 e durante a primeira manifestação encabeçada pelos anarquistas na Argentina, durante o ano de 1901. Enquanto Perrot apresenta o cenário reivindicatório que se monta na cidade francesa de Troyes em 1890, Suriano narra, com base nos relatos do periódico La Protesta, a manifestação de 1901: […] Fanfarras e tambores são várias vezes assinalados, principalmente entre os mineiros. Alguns estandartes, mas em geral frequentemente bandeiras tricolores, muito raramente negras – em Vienne (Isère), por exemplo -, e principalmente vermelhas. Nas ruas, nas salas, em lampiões, em faixas, na botoeira ou em braçadeiras, é a vitória do vermelho; esse Vermelho difamado pelas autoridades é incontestavelmente o símbolo de classe mais popular”. (PERROT, 1988, p.153) Respetando el carácter alegórico inaugurado con la Revolución Francesa, dos mujeres portando banderas rojas encabezaban la columna, ubicándose detrás de ellas la banda musical “El Colmo de la Desgracia” tocando himnos revolucionarios que la multitud entonaba. […] Más atrás, otro grupo con banderas y a continuación la multitud entre la cual se podían distinguir pancartas de sindicatos y centros libertarios. (SURIANO, 2011, p.82) Ainda de acordo com Suriano a bandeira “es un signo de unión y de vitoria, de identificación, de reconocimiento y de autoafirmación”(SURIANO, 2001, p.306). A bandeira era, portanto, uma arma de combate e de identidade do movimento libertário, estando intimamente relacionada com o ideal ácrata. Além disso, a sua ostentação também significava uma oposição à bandeira nacional e ao próprio sentimento de pertencimento pátrio, sentimento esse que os estados nacionais se empenhavam em fortalecer nas décadas iniciais do século XX. Figura 1: Bandeira vitoriosa da anarquia

Fonte: La Protesta Humana 1º de mayo de 1898 nº34 p.01 A imagem masculina observada na figura 1, que representa o trabalhador, faz alusão a atos de coragem, de luta e de força; é, portanto, uma representação positiva do operariado. A necessidade da destruição e, de certa forma, do emprego da violência também é evidenciada na imagem, uma vez que

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o inimigo se encontra derrotado ao chão e é pisoteado pelo seu oponente, o trabalhador. Existe, nas representações libertárias, certa exaltação da destruição, certo frenesi da violência e agressão, de forma que a vitória anarquista passa, necessariamente, pela morte e aniquilação dos pilares da sociedade que a antecede. Somente essa destruição possibilitaria o advento da idade de ouro, a concretização da utopia libertária. El mismo utopismo de los anarquistas promueve su creencia en la posibilidad de apresurar la llegada de la edad de oro en una explosión de destrucción apocalíptica. De allí, la exaltación dionisiaca de la violencia, su asociación con la espontaneidad de la revolución y el romanticismo de la violencia heroica. (LITVAK, 2001, p.388) Figura 2: Bandeira esperançosa da anarquia

Fonte: A Plebe 1º de maio de 1922 nº180 p.01 Uma representação bastante similar é encontrada no exemplar paulista do jornal A Plebe, no ano de 1922; ou seja, mais de duas décadas depois da aparição da imagem no La Protesta de Buenos Aires. Tal representação icônica apresenta igualmente o trabalhador segurando a bandeira da anarquia (com o nome da anarquia estampado na mesma, mas agora em língua portuguesa) e em igual movimento comemorativo e glorioso estampando e girando seu chapéu ao ar. Ambas as imagens trazem o pensamento utópico presente no discurso anárquico, ou seja, fazem alusão à crença num futuro melhor e na efetivação da revolução social. A legenda que acompanha a imagem apresenta um tom vitorioso, tratando a vitória do operariado sobre a “hydra burguesa” como algo inquestionável: “a verdade triunfa contra os embustes tiranos. Eis porque o ideal anárquico faz tremer a hydra burguesa em seus domínios, impelindo-a para o abismo de que se aproxima”. E não é por casualidade que a legenda se refere à burguesia como “hydra burguesa”, uma vez que tal associação tende a desumanizar o outro, transformá-lo em monstro, já que a denominação “hidra” se refere a um animal fantástico da mitologia grega, que tem corpo de dragão e múltiplas cabeças de serpente e é portadora de um veneno poderoso. Com essa desumanização, ficaria muito mais fácil aceitar e mesmo tornar a destruição burguesa como algo natural e estritamente necessário. Assim, criaturas ferozes, monstruosas ou macabras, a maioria delas ressurgidas da mitologia grega, são (re)

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significadas no imaginário libertário e estão ligadas aos inimigos do operariado: ora os burgueses, ora as figuras eclesiásticas, ora os governantes tiranos. A Figura 2 apresenta um fundo incrementado em comparação à imagem do La Protesta, uma vez que retrata a sociedade em ruínas e os trabalhadores em movimento de reconstrução da nova sociedade; no entanto, o destaque da imagem continua sendo o operário erguendo a bandeira da anarquia. Nas duas imagens acima, o trabalhador que está erguendo a bandeira da anarquia não apresenta traços individualizantes, de forma que poderia se tratar de qualquer trabalhador mundial. Figura 3: Uma bandeira com traços regionais

Fonte: Ideas y Figuras, 1º de mayo de 1911 nº48 p.01 Já na representação acima, estampada na capa da revista argentina Ideas y Figuras (portanto, o desenho não está subordinado a nenhum texto, não cumprindo a função de ilustração), a figura masculina que está segurando a bandeira negra apresenta um elemento da indumentária regional: trata-se do lenço característico dos “gauchos argentinos”. Essa vinculação do trabalhador com o criollismo é uma marca específica da imprensa libertária argentina, no entanto, não se pode afirmar que tal marca se apresenta de forma constante e majoritária nas imagens dessa imprensa; pelo contrário, apenas se evidenciou essa marca de regionalismo nas imagens das revistas libertárias Martín Fierro e Ideas y Figuras, ambas dirigidas por Alberto Ghiraldo; o jornal La Protesta carece de imagens individualizantes, mas apresenta textos com vulgarizações linguísticas que procuram se aproximar da linguagem dos criollos, principalmente nos exemplares posteriores à 1920, quando Alberto Ghiraldo fazia parte do grupo editorial do referido periódico. Essa ligação com o criollismo pode ser entendida como uma estratégia

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de cooptação do leitor local, nativo, não imigrante. Além disso, ao trazer à tona a figura do “gaucho” se estaria retomando tanto o passado heroico deste como seus elevados valores de justiça, persistência e revolta. A aproximação do criollismo pretendia “atacar lo que el anarquismo consideraba como males endémicos, la injusticia y la desigualdad, poner énfasis en la libertad como un valor del que el gaucho también se vanagloria, al igual que de su coraje, y dar cuenta de la soledad en que se encuentra el pobre” (MINGUZZI, 2007, p.49). Figura 4: Bandeiras da paz

Fonte: Tierra y Libertad 28 de abril de 1915 nº256 p.01 No entanto, nem sempre a bandeira retratada nas imagens libertárias fazia alusão à anarquia. A imagem acima, divulgada no periódico espanhol Tierra y Libertad em 1915, retrata uma situação em que a bandeira da anarquia é substituída pela bandeira da paz, tendo em vista o contexto da Primeira Guerra Mundial e a postura fortemente contrária dos libertários frente a esse combate bélico que em nada contribuiria para a revolução social. Não só a bandeira da anarquia é substituída, como também a figura masculina é trocada pela feminina e infantil, uma vez que em tempos de guerra eram esses sujeitos – mulheres e crianças – que estariam em condições de protestar, já que a massa masculina estaria na guerra. A indumentária das mulheres e crianças se resume a trapos, de forma que a representação visual também critica a pobreza que a guerra produzia. O que demonstra que a estética e a significação das imagens libertárias estão intimamente ligadas ao contexto de sua produção e circulação, variando conforme o tempo e as circunstâncias locais. Interessante notar também que a palavra “paz” é estampada nas bandeiras em diversos idiomas, aludindo à própria noção de internacionalismo dos libertários, uma vez que esses acreditavam na necessidade de união de todos os povos, independente das nações a que se vinculavam por nascimento, para enfrentar o período crítico da Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, abrir caminhos para a Revolução Social. O desenho conferia assim certo status de

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produção de solidariedade e comprometimento internacional, criando ligações simbólicas que aglutinavam os libertários do mundo inteiro contra o combate belicista da 1ª Guerra Mundial. A circulação de ideias, de artefatos culturais, de notícias, de formas de ação e de modelos organizacionais, bem como a mobilidade constante de ativistas, indicam o compartilhamento da noção de pertencimento a um mesmo projeto transnacional, produzindo laços entre organizações e ativistas de vários países, alimentando redes que sustentavam o movimento e criando ligações simbólicas entre episódios políticos ocorridos em diferentes localidades do globo. (DIANI apud GODOY, 2013, p.28). Figura 19: Bandeiras de Gori

Fonte: Tierra y Libertad 27/04 de 1934 nº153 p.01 O mesmo jornal, ao se aproximar o 1º de Maio de 1934, se utiliza novamente da representação iconográfica da ostentação de bandeiras de luta. A imagem apresenta trabalhadores do sexo masculino erguendo bandeiras escuras e caminhando para a emancipação social, numa espécie de marcha emancipatória. Não há marcas que individualizam os trabalhadores retratados, de forma que é a coletividade, o poder da multidão que se destaca na imagem, procurando demonstrar que todo e qualquer trabalhador poderia se inserir nessa multidão poderosa que se encaminhava para a revolução social, para o enfrentamento dos tiranos. Os trabalhadores estão descalços e singelamente vestidos e o contraste do escuro das bandeiras com o claro do restante da representação também confere maior dramaticidade à mesma. O texto que acompanha a imagem e que cumpre a função de legenda apresenta uma linguagem curiosa, uma vez que se utiliza do vocabulário cristão – “Páscoa de los produtores” – e confere ao mesmo conotações políticas e profanas ao invés de religiosas e termina fazendo alusão ao esplêndido sol que surgiria após a revolução social de Maio, iluminando a nova sociedade. A legenda é, na verdade, um pequeno fragmento de uma das peças teatrais mais conhecidas e difundidas na imprensa ácrata sobre o 1º de Maio: trata-se da peça “Il Primo Maggio” de autoria de Pedro Gori, militante italiano e um dos principais nomes do anarquismo mundial. O texto, ou seja, o fragmento da peça que acompanha a imagem trata-se de uma parte de um poema que é entoado pelos personagens em certa passagem da encenação teatral e foi escrito para ser cantado e é, por isso mesmo, um dos hinos mais importantes da imprensa libertária. Eis a legenda: “ven, oh Mayo, te esperan las gentes, te saludan los trabajadores. Dulce Páscoa de los productores, ven y brille tu esplendido sol”. Sobre a incorporação do vocabulário religioso na literatura libertária é importante apontar para a crença fervorosa dos anarquistas na revolução social, a qual se justificava por uma devoção quase religiosa, apesar da sua postura antireligiosa e anticlerical; por isso, conferir novos valores e interpretações a um vocabulário já consolidado pela religião (um vocabulário popular) era uma estratégia importante de cooptação entre as massas operárias.

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A estrofe do “Il Primo Maggio” que acompanha a imagem no periódico espanhol Tierra y Libertad apresenta uma tradução bastante fiel do hino original escrito em italiano: “Vieni, o maggio, t’aspettan le genti, ti salutano i liberi cuori, Dolce Pasqua dei Lavorati, vieni e splendi Allá gloria del sol”. A mesma fidelidade é verificada na tradução do hino visualizada nas páginas do jornal argentino La Protesta no 1º de Maio de 1932; no entanto, o lugar da solitária estrofe é ocupado por todo o hino. É importante assinalar que tal fidelidade verificada nos jornais de língua espanhola – Tierra y Libertad e La Protesta – no que concerne à tradução do poema de Gori não acompanhará as traduções em português do hino, as quais omitirão certas expressões de cunho mais religioso, substituindo-as por expressões mais brandas. A estrofe, de autoria de Gori, que acompanha a imagem acima, aparece reproduzida, juntamente com o restante do hino (como ocorre no La Protesta em 1932), já no ano de 1913, no jornal paulista A Lanterna e, outra vez mais, no 1º de Maio de 1922 na Revista Liberal de Porto Alegre; mais um indício da intensa circulação dos poemas/ canções na imprensa subalterna e das inúmeras traduções, versões e adaptações que os mesmos sofriam. O poema também foi entoado diversas vezes por grupos de teatro libertário que encenavam a peça “Il Primo Maggio”, principalmente em eventos de rememoração ao Primeiro de Maio. Essas encenações teatrais poderiam ocorrer tanto em locais públicos como em espaços reservados e com a sua divulgação realizada anteriormente através dos jornais libertários e anticlericais. Há indícios de encenações públicas de “Il Primo Maggio” nos três países aqui estudados: Espanha, Argentina e Brasil. Importante ressaltar também que o próprio Gori, autor da referida obra, esteve realizando pessoalmente o proselitismo de suas peças em solo portenho durante sua estada nesse país em princípios do século XX, mais precisamente entre os anos de 1898 e 1901, tendo influenciado diretamente nomes que, posteriormente, se tornariam atores centrais do movimento anarquista argentino como, por exemplo, a figura de Alberto Ghiraldo. Resumidamente, a peça Il Primo Maggio de Gori conta a história de uma camponesa (Ida) que, após a visita de um misterioso estrangeiro (peregrino) que está voltando à sua terra natal, ao país utópico em que a igualdade reina e a miséria inexiste, decide seguir viagem com este e, nesse caminho, persuadida já das ideias do estrangeiro, Ida convence o operário e o marinheiro que estão a caminho dos seus trabalhos (a história se passa num Primeiro de Maio) a se ausentar do trabalho naquele dia e a seguir viagem com eles. Ida também procura persuadir o jovem, filho de uma aristocrata, e o seu próprio pai, um velho camponês a seguir viagem com eles. No entanto, ambos não a seguem: o jovem devido à sua fraqueza que o impossibilita de enfrentar a mãe aristocrata; e o seu velho pai devido ao servilismo vil que o consome e o cega perante as injustiças que sofre. Finalizando a peça encontramos Ida, o estrangeiro, o marinheiro e o operário seguindo corajosamente para o país do estrangeiro. Escuta-se um hino, um canto de protesto, no início da peça, pois, como a história se passa num 1º de Maio, os operários que paralisaram o trabalho estão entoando o referido canto pela cidade. Esse hino é a canção de protesto que aparecerá em diversas publicações libertárias. Na canção de protesto exibida nas páginas do jornal La Protesta, A Lanterna e da Revista Liberal é importante ressaltar a existência da indicação da melodia específica que deveria acompanhar a canção: tratava-se da ópera Nabuco de Verdi, uma melodia bastante difundida e conhecida na Europa e, principalmente, na Itália. Embora se trate de uma valsa, ritmo que normalmente não se presta à mobilização, a melodia de Verdi tem uma característica fundamental para a sua utilização enquanto hino revolucionário: “[...] a melodia tem um crescendum: inicia-se com o murmúrio de um lamento e chega ao ápice com os clamores de justiça, retornando ao início” (HAGEMEYER, 2005, p.66). Dessa forma, os propagandísticos libertários realizavam uma (re) apropriação de artefatos culturais, nesse caso específico das melodias, criadas em outros contextos e com outras finalidades, para servirem agora às causas da Revolução Social. Da mesma forma que poemas de circunstância que circulavam na França do século XVIII e que criticavam o rei Luís XV já eram entoados com melodias do passado, conhecidas e populares. De forma que tal preferência por melodias já populares em detrimento de novas e originais possa ser entendida como uma estratégia: “quando uma letra nova é cantada numa melodia já familiar, as palavras transmitem associações que foram agregadas a versões anteriores da canção” (DARNTON, 2014, p.85).

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Uma leitura atenta do hino de Gori permite notar que o mesmo transborda noções de internacionalismo e metáforas primaveris ao mesmo tempo em que procura realizar a persuasão do trabalhador no que concerne à necessidade de ausentar-se do trabalho e de enfrentar, de entrar em atrito com seus inimigos. Uma das funções do hino é, sem sombra de dúvida, conferir ânimo e coragem àqueles que o entoam e, possivelmente por essa razão, tenha sido impresso nas páginas do 1º de Maio de 1913 no jornal anticlerical paulista, em 1922, na revista anarquista de Porto Alegre, em 1932 no periódico libertário argentino e, em outros primeiros de maio mais, nos mais diversos periódicos subalternos. O PRIMEIRO DE MAIO Vem, ó Maio, saúdam-te os povos, Em ti colhem viril confiança; Vem trazer-nos cerúlea bonança, Vem, ó Maio, trazer-nos dias novos! Vibre o hino de esperanças aladas Ao grão verde que o fruto madura, À campina onde a messe futura Já flori sobre as negras queimadas! Desertai, ó falanges de escravos, Da lavoura, da negra oficina; Um momento de trégua à faxina, Ó abelha roubadas dos favos! Levantemos as mãos doloridas, E formemos um feixe fecundo; Nós queremos remir esse mundo Dos senhores da terra e das vidas, Sofrimentos, ideais, juventudes, Primaveras de túrbido arcano, Verde Maio do gênero humano, Dai coragem aos ânimos rudes! Enflorai ao rebelde caído, Com os olhos fixando o nascente, Ao obreiro que luta fremente, Ao poeta gentil, esvaído. Original italiano de Pedro Gori, para Se cantar com a ária do côro da ópera Nabuco, de Verdi (A Lanterna, 1º de Maio de 1913, nº189 p.01) HIMNO DEL PRIMERO DE MAYO Ven ¡oh Mayo! Te esperan las gentes, Te saludan los trabajadores; Dulce Pascua de los productores Ven y brille tu espléndido sol. En los prados que el fruto sazonan Hoy retumban del himno los sones Ensanchando así los corazones De los parias e ilotas de ayer.

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Desertad, oh falanges de esclavos De los sucios talleres y minas, Los del campo, los de las marinas, Tregua, tregua al eterno sudor! Levantemos las manos callosas, Elevemos altivos las frentes, Y luchemos, luchemos valientes Contra el fiero y cruel opresor. Del tirano, del ocio y del oro Procuremos redimir al mundo, Y al unir nuestro esfuerzo fecundo Lograremos al cabo vencer. Juventud, ideales, dolores, Primavera de atractivo arcano, Verde Mayo del genero humano Dad al alma energía e vapor. Alentad al rebelde vencido Cuya vista se fija en la aurora, Y al valiente que lucha y labora Para el bello y feliz Porvenir Aria del coro de la ópera NABUCO, de maestro Verdi La Protesta, 1º de Mayo de 1932 nº6763 p.01) A menção ao internacionalismo aparece logo na primeira linha do hino “saúdam-te os povos” enquanto que as metáforas primaveris (relacionadas com os ciclos da natureza e com a possibilidade de renovação e mudança) percorrem todo o poema: “colhem viril confiança”; “ao grão verde que o fruto madura”; “já flori”; “enflorai ao rebelde caído”; a tentativa de persuasão para a paralisação e a luta proletária transparece nas seguintes passagens: “desertai, o falange de escravos”, “enflorai ao rebelde caído”, “ao obreiro que luta fremente. De forma que o hino apresenta uma preleção didática em dois sentidos: em favor da ausência do trabalho (desertar da lavoura, da oficina) e da luta por novos dias (o trabalhador que luta fremente, as mãos doloridas que se elevam). É importante apontar para a diferença da tradução do hino para o espanhol, que segue fielmente o hino original em italiano, para a tradução em português, uma vez que nessa tradução expressões de caráter mais religioso como “Dulce Páscoa de los productores” são suprimidas, bem como a alusão ao mito solar “ven y brille tu esplendido sol” é substituída por uma frase menos alegórica: “vem, oh Maio, trazer-nos dias novos”. Ainda são suprimidas passagens fortes como “y luchemos, luchemos valientes contra el fiero y cruel opresor”, assim como aquelas que identificam claramente os inimigos sociais que precisam ser destruídos: “del tirano, del ocio y del oro procuremos redimir al mundo”; ao invés do tirano, do ócio (Igreja) e do ouro (burgueses), a tradução portuguesa do hino combate “os senhores da terra e da vida”. Essas pequenas alterações na grafia do Hino do Primeiro de Maio indicam a ocorrência de certa manipulação por parte do tradutor português, o qual procurou suavizar tanto os termos religiosos empregados por Gori como as expressões que aludiam diretamente à luta e, ao mesmo tempo, tornar o canto de protesto menos alegórico. A supressão de certas palavras ou sua substituição por outras, também se justifica, no caso das canções, pela necessidade de adaptações de vocábulos à melodia, de forma que pequenas alterações sejam necessárias a fim de manter o ritmo e a musicalidade da canção. No entanto, acredita-se que a supressão específica da expressão “Páscoa de los produtores” e daquela que conclama diretamente à luta “Y luchemos, luchemos valientes” tenham sido mais uma opção

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ideológica do tradutor do que uma simples supressão visando à adaptação da melodia de Verdi, de forma a tornar a suavizar a canção de protesto. Percebe-se assim que a trajetória tanto da “bandeira negra” ou “vermelha-negra” como do hino “Il Primmo Maggio” não foi marcada por mera reprodução e passividade, mas sim por apropriação, recriação e alteração de acordo com as intenções de seus criadores e o contexto em que esses se inseriam. A constante utilização da bandeira e dos mesmos hinos na imprensa libertária reforça a tentativa da construção de um imaginário próprio em torno do 1º de Maio e com um viés internacionalista. REFERÊNCIAS: DARNTON, Robert. Poesia e Política: redes de comunicação na Paris do Século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. GODOY, Clayton Peron Franco de. Ação Direta: Transnacionalismo, visibilidade e latência na formação do movimento anarquista em São Paulo (1892-1908). Tese de Doutorado (USP). São Paulo, 2013. HAGEMEYER, Rafael Rosa. Entre a trégua e a guerra: dois hinos anarquistas no movimento operário argentino. Métis: história & cultura; Vol. 4, nº 7, 2005. p. 66. HOBSBAWM, Eric. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre a história operária. São Paulo: Paz e Terra, 2005. LITVAK, Lyli. Musa Libertaria: Arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (18801913). Madrid: Fundación Anselmo Lorenzo, 2001. MINGUZZI, Armando V. Martín Fierro: Revista popular ilustrada de crítica y arte (1904-1905). Buenos Aires: Academia Argentina de Letras, 2007. PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SURIANO, Juan & ANAPIOS, Luciana. Anarquistas en las calles de Buenos Aires (1890-1930). In: LOBATO, Mirta Z. (editora). Buenos Aires: Manifestaciones, fiestas y rituales en el siglo XX. Buenos Aires: Biblos, 2011. SURIANO, Juan. Anarquistas: cultura y política libertaria en Bueno Aires. Buenos Aires: Manantial, 2001.

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FICÇÃO E HISTÓRIA: AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NAS CRÔNICAS DE NIREU OLIVEIRA CAVALCANTI Cláudia Santos Duarte 1 INTRODUÇÃO Este estudo analisa um conjunto de textos presentes na obra Crônicas Históricas do Rio Colonial (2004), escrita por Nireu Oliveira Cavalcanti, sob o viés das representações do negro no Brasil Colonial. O trabalho procura identificar e problematizar os elementos que apresentam abordagens diferenciadas em relação aos discursos comuns ligados aos negros no período da escravidão, presentes nas crônicas do capítulo intitulado A escravidão e suas contradições. Esse aspecto é apresentado a partir dos estudos de Paulo Roberto Staudt Moreira, Andreas Hofbauer e Maria Regina Celestino de Almeida. A análise discursiva da obra coloca, ainda, em destaque a construção do conhecimento histórico por meio da ficção, ressaltando que a pesquisa do autor em fontes históricas possibilitou a produção de textos literários publicados na imprensa carioca cerca de dois séculos depois do registro dos episódios nos documentos oficiais. Para tanto, esse trabalho utiliza como referenciais teóricos a produção de Linda Hutcheon e Paul Ricoeur. No que se refere ao campo das representações, esta breve análise vale-se das perspectivas apontadas por Roger Chartier acerca das representações sociais. A justificativa para essa abordagem relaciona-se ao entendimento de que a produção cultural, em geral, e, nesse caso específico a Literatura, exerce um papel fundamental na produção e difusão de representações. Essas representações partem dos imaginários 2 coletivos, mas também atuam, livremente, na apresentação de novas possibilidades de identificação. E, desse modo, são fator relevante na mudança de posicionamentos que se tem em relação a determinado grupo social ou na própria visão que esse grupo tem de si mesmo. CRÔNICAS, HISTÓRIAS E REPRESENTAÇÕES Nireu Cavalcanti escreveu suas crônicas com base em documentos dos arquivos jurídicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, recordando fatos acontecidos na, então, capital do Brasil, entre os séculos XVIII e XIX. Este estudo analisa três episódios apresentados no livro que se referem a relações ocorridas durante o período escravocrata brasileiro, sendo elas: Um bom negócio, Invasão de domicílio e O escravo proprietário na Rua da Ajuda. No livro, Nireu Cavalcanti discorre sobre suas intenções: Nossas crônicas revelam situações vividas nesse intrincado sistema da sociedade colonial no Rio de Janeiro, por sua população, trazendo as diversas facetas daquele cotidiano. Para melhor apreciá-las, sugerimos ao leitor deixar de lado seus preconceitos, suas verdades e, sobretudo, sua visão contemporânea de situações semelhantes ocorridas no presente, para participar com liberdade do espetáculo narrado e interpretado por nossos antepassados. (CAVALCANTI, 2004, p. 19). As contradições mostradas nas representações das crônicas denunciam a complexidade das relações sociais durante o período escravocrata brasileiro e, com base nelas, segundo o autor do livro,

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Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Universidade Feevale. Entende-se, aqui, o imaginário na perspectiva de Juremir Machado da Silva (2006, p. 11-12) que o classifica como um “reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo (...) Motor, o imaginário é um sonho que realiza a realidade, uma força que impulsiona indivíduos ou grupos. Funciona como catalisador, estimulador e estruturador dos limites das práticas”. Dessa forma, os imaginários reúnem sentimentos, valores, emoções, símbolos e imagens, e também são impulso para ações, o que acaba permeando as construções culturais de um povo.

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“é possível entender-se como os negros escravos adotavam estratégias de sobrevivência e convívio, utilizando a própria regra do jogo” (CAVALCANTI, 2004, p. 163). Desse modo, é admissível que se rompa com uma das mais recorrentes representações acerca do negro durante a escravidão brasileira: as crônicas mostram os negros, de alguma forma, como agentes de suas vidas, abandonando, em parte, a caracterização que os coloca repetidamente como passivos diante de suas trajetórias. Independente da forma de ação e dos resultados obtidos, os negros representados nas narrativas aparecem como agentes indispensáveis na construção da vida que almejavam ou da sua sobrevivência. Entretanto, é importante destacar que, ao mesmo tempo, quando mostram as relações de dependência e de exploração da dignidade humana, as crônicas permitem identificar, mesmo nas ativas participações dos negros nesses episódios, as marcas dos abusos cometidos em favor daqueles que ocupam estratos privilegiados da sociedade. Assim, as possibilidades de atuação dos negros na sociedade estariam comumente submetidas aos interesses econômicos de certos setores e marcadas, desde o período escravocrata, pelas relações de dominação ou superioridade mais ou menos intensas em cada ocasião. É por meio das representações, muitas vezes realizadas por produtos ficcionais que os indivíduos constroem e reconstroem seus sistemas simbólicos, afirmando-se como pertencente a um grupo cultural, bem como estabelecendo distinções entre si mesmo e os outros. Assim, a noção de "representação coletiva" autoriza a articular, sem dúvida, melhor que o conceito de mentalidade, três modalidades de relação com o mundo social: de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais "representantes" (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe (CHARTIER, 2002, p. 73). Desse modo, é possível perceber a cultura como um processo dinâmico que produz práticas sociais coletivas, comportamentos e significados, e que permite a realização de produtos culturais como as obras literárias, cujas representações realizadas por meio da ficção atuam como uma ressignificação, um sentido que os sujeitos dão aos fatos, às informações e às experiências. Nesse sentido, as crônicas de Nireu Cavalcanti apresentam esses novos significados e permitem que possamos reavaliar as representações do negro no período da escravidão brasileira e que possamos encontramos perspectivas que nos conduzam a distintas interpretações Embora este estudo ocupe-se apenas de três crônicas do livro Crônicas Históricas do Rio Colonial, o capítulo A escravidão e suas contradições conta com vinte e uma narrativas que apresentam perspectivas pouco comuns no que se refere ao tema da escravidão em nossa produção cultural. A partir delas, é possível avançar nas discussões acerca da importância das relações entre a ficção e a História que se manifesta como “um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto” (HUTCHEON, 1991, p. 157). A crônica Um bom negócio, envolve Maria Antônia do Rosário, uma moça solteira que “gostava de comprar a preço baixo e revender a mercadoria com bons lucros”, e Lucrécia, uma escrava de 50 anos, que trabalhava incessantemente para comprar sua alforria. Ao se tornarem amigas, Lucrécia propôs um negócio: Lucrécia propôs à nova amiga que lhe comprasse ao seu senhor Caetano com a condição de liberá-la para que pudesse trabalhar para si, durante um ano, no máximo, para obter o valor pago por Maria do Rosário acrescido de mais 6$400 réis a título de lucro pela aplicação feita. Como boa mulher de negócio,

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a amiga branca fez as contas; se emprestasse 34$000 réis a juros, receberia por um ano de aplicação 1$700 réis, já que o juro oficial era de 5%. A proposta de Lucrécia era tentadora: renderia mais do que o triplo! Correria no entanto um risco. E se a amiga não conseguisse naquele prazo juntar o dinheiro necessário? Ponderou: mesmo que ela demorasse dois anos, estaria, ainda sim, obtendo um bom lucro. Topou o negócio (CAVALCANTI, 2004, p. 178). Se, por um lado, a ajuda da amiga branca, Maria Antônia, negociante de escravos, poderia ter sido maior, inclusive pagando a alforria da escrava para que ela pudesse desfrutar de sua velhice com mais dignidade; por outro lado, o empréstimo do dinheiro para que Lucrécia pagasse com juros por meio do trabalho intenso durante três anos significou a atuação determinante da escrava na conquista de sua liberdade. A apreciação desse exemplo pode destacar a “compreensão das atuações políticas de atores individuais e coletivos segundo seus próprios códigos culturais, privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências e suas sensibilidades” (ALMEIDA, 2012, p. 157). Nesse sentido, esse tipo de abordagem confere ao negro escravizado um papel atuante na trajetória histórica nacional, destacando as formas de resistência que, muitas vezes, não foram privilegiadas pela historiografia, mas, segundo Paulo Roberto Moreira (2006), tiveram um valor muito significativo na maneira como o cativeiro seria suportado ou, ainda, na cooperação para o desgaste do sistema escravocrata. Esse episódio, em especial, aciona aquilo que a historiografia atual busca abordar: o escravo/negro como agente/ator social e construtor de história. A relação entre Lucrécia e Maria Antônia aparece pautada numa espécie de negociação. Infere-se nessa relação a possibilidade de que Lucrécia tenha avaliado, diante das condições que dispunha, ser melhor para ela pertencer à amiga e construir o caminho até a sua liberdade do que continuar ligada ao outro senhor, que talvez não lhe possibilitasse a compra de sua alforria. Essas representações do negro sugerem a forma plural com que as interações entre negros e brancos poderiam ser estabelecidas durante o período da escravidão. Assim, a tradicional vitimização desse grupo social dá espaço, por vezes, a um protagonismo que denota “uma própria estratégia significativa capaz de deixar marcas duradouras na realidade política que, embora não sejam suficientes para impedir as formas de dominação, conseguem condicioná-las e modificá-las” (LEVI, 2000, p.45). Entretanto, de forma ambígua, a passagem, apontada anteriormente, também retrata a exploração do menos favorecido e a satisfação do lucro expresso no rosto da personagem Maria Antônia. Em Invasão de domicílio, Joana Maria da Conceição reúne um pequeno grupo para reclamar a captura de um de seus escravos por um grupo de capitães do mato. A curiosidade reside no fato de Joana e seu marido serem “pretos forros” que eram proprietários de escravos. Como o marido costumava se ausentar de casa, cabia à “Joana tocar o sítio com a ajuda de seus dois escravos: Antônio, de nação guenguela, e uma crioula de nome Luzia”. Nesse sentido, a narrativa insere no campo das representações um componente pouco comum no que se refere à forma como os negros do período escravocrata são retratados com frequência. Essa passagem evidencia que “o quase-passado da ficção torna-se assim o detector dos possíveis ocultos no passado efetivo” (RICOEUR, 1997, p. 331). É por meio desse tipo de passagem literária, que aqui é instaurada pelas crônicas, que podemos discutir as visões do passado, e seus ocultos, que perpassam pela questão do negro e outras tantas temáticas. Assim, a relação entre a História e a ficção presta o serviço de recuperar determinadas discussões e revigorar as disputas pela memória dentro dos grupos nacionais, reforçando elementos relevantes para a identidade 3 nacional, partindo da premissa de que “cada época recupera e atribui ao popular um sentido, que, em princípio, resulta da disputa ou das

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Como identidade entende-se aquilo que “permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado socialmente” (CUCHE, 2002, p. 177). Em diferentes lugares e grupos podemos relacionar uma série de itens peculiares que reforçam características comuns de determinadas sociedades. São traços que permitem uma identificação interna entre membros de um determinado grupo.

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relações no interior dos discursos, na medida em que estes discursos se propõem estabelecer determinados imaginários” (MONTENEGRO, 2001, p.11). Dando sequência à narrativa, outra questão curiosa apresenta-se na forma como Joana impõemse ao grupo de capitães do mato a fim de reclamar a captura de um escravo que lhe pertencia. Ela acompanha, junto a duas vizinhas, a comitiva que leva seu escravo e encontra o mandante da captura equivocada. Joana explica, por meio de um escândalo em frente à casa do senhor, a situação e, com coragem, obtém a vitória em relação ao convencimento de que a situação estava errada. Dessa forma, ela consegue reaver o escravo que lhe pertencia. Por outro lado, o desfecho da situação revela que, mesmo ocupando uma posição diferenciada em relação a outros negros, Joana ainda sofre as sanções da “afronta” que teria cometido contra o pedreiro Manoel que, por engano, havia solicitado a captura do escravo. A crônica encerra apontando que “o destempero verbal de Joana rendeu-lhe muita dor de cabeça na justiça, pois foi presa em decorrência da denúncia de Manoel Fernandes de que fora ofendido em público, praticando grave crime ao chamálo de ladrão”. Esse trecho denuncia um desafio enfrentado pelos negros libertos, pois, de forma contraditória, embora, judicialmente, estivessem fora da condição de escravos, eram privados de ocupar espaços efetivos na sociedade brasileira ou, ainda, eram relegados a uma condição de inferioridade em relação aos brancos. A elite intelectual e as lideranças políticas perguntavam-se até que ponto seria possível e desejável introduzir o princípio da “igualdade entre os cidadãos”, com todas as suas consequências, num país cuja população era composta, majoritariamente, por “mestiços” e “raças inferiores”. (HOFBAUER, 2006, p. 198). Assim, mesmo que busquemos algumas representações que ratifiquem a atuação protagonista dos negros na sociedade do período escravocrata, é evidente que as relações sociais do período estavam fortemente determinadas pelas questões de poder, de hierarquia e de interesses econômicos que pautavam a convivência dos indivíduos nesse momento histórico. Na terceira crônica selecionada do livro de Nireu Cavalcanti, temos a história do escravo Simião que, casado com a negra forra Juliana, passa a morar na casa de seu dono, o padre da cidade. Tal narrativa também insere informações pouco difundidas em nossa historiografia: a possibilidade de um casamento dessa natureza e, ainda, a concessão feita pelo dono de que dois negros, em situação social diferente, pudessem morar em sua residência. No entanto, as novidades no campo das representações não param por aí. O casal conseguiu acumular fundos para adquirir um terreno na Rua da Ajuda, no Rio de Janeiro. Juliana, livre, recebia “uns trocados” do padre para realizar o trabalho doméstico na casa paroquial. Simião, nos dias de folga e com a permissão de seu dono, realizava vários serviços que lhe rendiam “alguns tostões”. Cabe ressaltar que, nesse período, além do dinheiro para realizar uma compra, o escravo também necessitava da permissão do seu senhor para adquirir qualquer bem. “No caso de Simião, a permissão não deve ter sido difícil de obter, já que servia um homem de boa índole e que lhe tinha amizade”. Por fim, Simião, escravo do padre, e sua esposa Juliana, forra, conseguiram, além da permissão para comprar um terreno, obter autorização para construir nele duas casas. Com a venda de uma delas, Simião comprou a sua alforria. Analisando tal situação é possível perceber que “a escravidão impunha um sistema de relações sociais e se refletia na formação do mundo das ideias. Longe de ser homogêneo, esse fenômeno econômico, político, social e cultural tinha várias faces” (HOFBAUER, 2006, p. 145). Assim, cabe ressaltar a importância de diferentes formas de relação estabelecidas nessa conjuntura. As negociações e as tomadas de decisão, por exemplo, tiveram grande influência no manejo da convivência entre escravos e senhores no período escravocrata brasileiro. Dessa forma, é possível avançar na leitura que restringe tais relações à simples posição de dominadores e dominados e, assim,

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incorporando as ideias de pacto, negociação e cultura política para a análise de suas relações sociais. Trata-se, na verdade, de uma leitura antropológica das relações de poder, no sentido de buscar significados distintos para acordos e estratégias comuns entre grupos cultural, social e etnicamente diversos. Valorizam-se cada vez mais os fatores subjetivos e culturais nas práticas políticas desenvolvidas pelos atores, por meio de análises interdisciplinares que permitem identificar culturas políticas de grupos subalternos construídas nas relações de conflitos e acordos com os demais agentes com os quais interagem. (ALMEIDA, 2012, p.157). Ou seja, houve resistência física, política e, sobretudo, cultural e, de forma alguma, os negros mantiveram-se passivos à escravidão como algumas referências fazem crer. Tais abordagens ratificam o profundo desconhecimento de grande parcela da população do país acerca dos processos de luta, resistência, negociação e organização dos africanos e de seus descendentes em território brasileiro. Essas e outras crônicas inseridas no capítulo A escravidão e suas contradições, do livro Crônicas Históricas do Rio Colonial, parecem fazer um alerta para que façamos uma interpretação minuciosa das imagens históricas com as quais temos contato, pois elas carregam muito mais do que inicialmente podem aparentar. Para Roger Chartier (2002), as representações são fundamentais, visto que o social só tem sentido dentro das práticas culturais e nos símbolos que dão coerência e explicação para a realidade. Assim, os produtos culturais exercem um papel muito importante na difusão de representações e, sobretudo, na mudança de posicionamentos ligados à visão que determinado grupo social tem perante os demais. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta de estudo dessas crônicas parte de um enfoque historiográfico que coloca o escravo/negro como agente/ator social e construtor de história. As crônicas ressaltam o diálogo entre diferentes gêneros textuais, ressignificando imaginários e propondo novas formas de concepção do cotidiano vivido pelos escravos no período colonial brasileiro. Ao falar de negociação e de resistência cultural, por exemplo, estes textos introduzem elementos significativos no que se refere à construção da identidade negra no país. Dessa forma, é possível entender as práticas empreendidas pelos negros, enquanto escravos, como elementos imprescindíveis para que a escravidão fosse desgastada e superada e, para além disso, para que esses sujeitos pudessem, na atualidade, ter sua história revisitada. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. História e antropologia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. CAVALCANTI, Nireu Oliveira. Crônicas históricas do Rio colonial. Editora Record, 2004. CHARTIER, Roger. A História Cultural entre Praticas e Representações. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 2002. _____. O mundo como representação. Estudos Avançados, v. 5, n. 11, p. 173-191, jan./abr. 1991. CUCHE, Denys. Cultura e Identidade. In A Noção de Cultura em Ciências Humanas. Bauru: Edusc, 2002. HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. Unesp, 2006. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. História, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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MATTOS, Hebe e RIOS, Ana Lugão. Memórias do Cativeiro – Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 2001. MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o cativeiro: a cultura de resistência escrava. In: H. PICCOLO. História Geral do Rio Grande do Sul – Império. Passo Fundo: Méritos, p. 215-231, 2006. RICOEUR, Paul. O entrecruzamento da História e da ficção. In: Tempo e narrativa. Tomo III. Campinas: Papirus, 1997. SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2006.

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GÊNERO MARAVILHA: NARRATIVA E REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO NAS HISTÓRIA EM QUADRINHOS DA MULHER-MARAVILHA Thuanny de Azevedo Bedinote 1 Pegue como exemplo alguns dos seriados de maior sucesso nos anos 50 e 60, como Beaver, I love Lucy e Papai sabe tudo. O papel feminino era, individualmente, o da mãe e dona de casa perfeita, cozinhando biscoitos e passando o aspirador de pó na sala, usando colar de pérolas e salto alto. Parece que antes da Mulher-Maravilha, a única personagem feminina na tevê que andava por aí totalmente livre e lendo as próprias aventuras era a Lessie! (CARTER, Lynda,2008, p. 6-7) CARACTERIZAÇÃO DA PERSONAGEM E CONTEXTO HISTÓRICO Os Estados Unidos entrou oficialmente em batalha quando ocorre o ataque a Pearl Harbor, acarretando o contra ataque ao Japão, esse que fazia parte do Eixo. A partir desse momento, tropas norteamericanas são enviadas para batalha, o que trouxe um impacto significativo para a estrutura da sociedade norte-americana. Na falta do que seria o “mantenedor” da família, a mulher passou a ocupar os lugares dos homens, deixando o aspecto de “dona de casa” para tornar-se a força que a América, precisava, então “À mulher coube o papel de ocupar estes empregos para evitar uma recessão econômica, além de abastecer o exército com armamento.” (CAIXETA, 2012, p. 10). A adesão dos Estados Unidos ao conflito acarreta o surgimento de múltiplas plataformas para conquistar as massas, a fim de angariar voluntários para o front e disciplinar o restante da população. Como afirma a autora: No mercado editorial, a ação se repetiu na defesa do American Way of Life, os super-heróis lutando contra as forças do eixo do mal que desejavam destruir a ordem mundial. E aqui surge uma heroína que abandona suas origens para se aliar aos Estados Unidos em favor do bem: a Mulher-Maravilha. (CAIXETA, 2012, p. 04). As Histórias em Quadrinhos 2 também se mostraram como ferramentas importantes para o que os Estados Unidos propagassem tal ideologia. De forma que em 1938 na primeira edição da revista Action Comics, os autores Joe Shuster e Jerry Siegel apresentam o super-herói intitulado de Superman. Esse é um dos métodos utilizados na comunicação de massa, pensando que os leitores tinham acesso facilitado a essas mídias, principalmente pelo baixo custo. Em 1941, o psicólogo William Moulton Marston cria uma das mais poderosas heroínas das Historias em Quadrinhos, a Mulher-Maravilha, aparece para incentivar e motivar as mulheres norteamericanas. A personagem encontra-se imersa nesse sistema, apresentando uma mulher com características diferentes “Ao invés de frágeis e indefesas, uma heroína capaz de superar qualquer adversidade com força, inteligência e beleza.” (CAIXETA, 2012, p. 10). É nesse cenário que personagem aqui estudada, apresenta um enredo complexo desde sua criação, afirmando, entre outras coisas, que as mulheres podem e devem ajudar na manutenção do país. Sua estreia é na revista All Star Comics (Figura 1), edição número 8 em janeiro de 1941, depois de algumas aparições da revista que passou a ser da DC Comics, a heroína ganha sua própria revista seis meses depois, tem como primeiro desenhista Harry Peter. Foi Marston que escreveu as histórias da 1

Graduada em História, Licenciatura e Bacharelado – Unilasalle. [email protected] “As histórias em quadrinhos são, essencialmente, um meio visual composto de imagens. Apesar das palavras serem um componente vital, a maior dependência para descrição e narração está em imagens entendidas universalmente, moldadas com a intenção de imitar ou exagerar a realidade. Muitas vezes, o resultado é uma ideia trabalhada com elementos gráficos.” (EISNER, 2005, p. 5).

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personagem com o pseudônimo de Charles Moulton, na primeira fase da Mulher Maravilha, até seu falecimento em 1947. O psicólogo em entrevista na época criticou “[...] o fato de a maioria dos superheróis serem homens e das mulheres nas HQ serem relegadas a papéis secundários.”. (CASTRO, 2011, p.9). Revelando, talvez uma premissa de seus pensamentos e estudos, “Jung falava de arquétipos e mitos universais, que se abrigam na inconsciência humana”. (FERNANDES & KRESS, 2005, p.1).

All Star Comics #8. Figura 1; DC Comics (Dez.1941/Jan.1942). Fonte: http://www.guiadosquadrinhos.com/edicaoestrangeira/ShowImage.aspx?id=21527&path=192908_215 27.jpg&w=400&h=554 A princesa Diana Prince é filha de Hipólita, rainha das amazonas na Ilha Paraíso. Sua mãe a molda no barro, então Afrodite concede a vida para menina, recebendo dons dos deuses olimpianos, não houve, seu nascimento, intervenção masculina, pois somente mulheres viviam em Themyscira. No decorrer da história um piloto esbarra na Ilha Paraíso, recorrendo a pouso forçado, onde é capturado pelas guerreiras do local, entre elas Diana, que logo se interessa pelo discurso do rapaz. A rainha entende a importância de enviar uma representante para viver entre os mortais, assim procurando amenizar as injustiças e se necessário lutar para que bem prevaleça. Um torneio acontece para que a melhor guerreira acompanhe o Steve Trevor e se torne embaixatriz nos Estados Unidos. A princesa luta e vence o torneio, ganhando sua roupa feita com referências da bandeira do país de destino, braceletes e o laço da verdade. Na década de 1940 na primeira fase da personagem, podemos perceber a forma como a MulherMaravilha é apresentada a sociedade dos Estados Unidos. Na imagem que inicia a história (Figura 2), apresenta a princesa Diana como um mito, que são “[...]. narrativas transmitidas de geração para geração e, muitas vezes, ocupam o lugar na História, quando um povo assume a explicação mítica para sua origem.”. (FERNANDES & KRESS, 2005, p.1). A Mulher-Maravilha passou por fases distintas na sua evolução como personagem, entendendo que da mesma maneira que no contexto que foi criada o movimento feminista vivia o último momento da primeira onda.

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A Mulher-Maravilha chega à América, publicada originalmente em Sensation Comics 1,Jan.1942.(Figura 2) Fonte: As Maiores histórias da Mulher-Maravilha: coleção DC 70 anos, p.10.Jul.2008. Percebemos no texto do enunciado a mitificação da personagem que é agraciada por dons distintos, quando ligados à força e agilidade física, são doados por figuras masculinas (Mercúrio e Hércules). Aspectos da beleza e sabedoria ficam aos cuidados de figuras femininas (Atena e Afrodite), aliados em um só corpo para “[...]. salvar o planeta das animosidades e guerra do homem, num mundo feito pelos homens!”. (Coleção DC 70 anos, 2008, p.10). Assim o mito da Mulher-Maravilha, apresenta também a visão sexista existente na década de 1940/50, onde a força física é derivada do homem, sendo a beleza e a sabedoria, atributos colocados em segundo plano e apenas representados por mulheres. Essa ideia apresenta o que os autores Fernandes & Kress (2005, p.1) entendem dos estudos de Jung e Freud, onde “[...]. os mitos podem ser encarados como sublevações humanas, expressões puras do inconsciente coletivo da humanidade.”. As revistas de Histórias em Quadrinhos sofreram algumas mudanças, novos posicionamentos políticos ideológicos e econômicos, são transferidos também para as criações artísticas e culturais. Logo, as HQ’s, foram atingidas pelo Comics Code Authority, assim que a revista passasse por revisão, ganharia um selo quando o conteúdo fosse aprovado, esse selo servia como “[...]. um sistema de censura sobre o material produzido e veiculado nas revistas, dentro dos Estados Unidos.”. (CHACON, 2010, p. 31). Sobre essa questão a autora Castro (2011, p.12) corrobora: Nessa atmosfera conservadora, o psicanalista judeu-alemão, Dr. Frederic Wertham lança em 1954 o livro Seduction of the Innocent, no qual acusa as HQ de serem prejudiciais à educação das crianças. Por causa da campanha de Wertham muitos heróis são aposentados e outros remodelados. E os próprios editores criam o Comics Code Authority. (CASTRO, 2011, p. 12. grifos do autor) As HQ’s entram em uma nova fase, em meados dos anos de 1950 e 1960, modificando algumas histórias e personagens. Mudanças ocorreram também no campo político, ideológico e econômico. Onde os movimentos socioculturais tiveram impacto significativo na sociedade americana da época. Neste momento o mundo encontrava-se em Guerra Fria, eventos como a Guerra do Vietnã e a Crise dos Mísseis, trariam tensão suficiente para separar o mundo em dois blocos (socialista/capitalista). Para os Estados Unidos qualquer país que assimilasse uma política esquerdista, seria considerado inimigo. Nas edições da Mulher-Maravilha não encontramos mais os detalhes da amazona idealizada. Na nova fase a personagem adquiriu novos hábitos e tendências românticas. Conflitos sobre a postura da heroína e do seu alterego Diana Prince, torna-se costume e seguidas de crises de consciência, ao

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falhar com seu amado Steve Trevor (Figura 3). Essas histórias usam uma caracterização moderna, ela usa roupas da moda, comprada em butique, frequenta o salão de beleza e se produz para ficar mais sensual. Apresentando uma imagem destorcida do que realmente personificava a guerreira amazona. A autora Nogueira conclui: Tendo por base a ideia de que os quadrinhos de super-heróis produzidos entre os anos de 1950-70 incorporam imagens idealizadas da mulher, que são na verdade representações de desejos, fetiches e mesmo do moralismo machista dos desenhistas e escritores norte-americanos, que vendem um modelo de mulher que ao mesmo tempo é forte e frágil, destemida e insegura, sempre necessitando do auxílio masculino, [...]. (NOGUEIRA, 2010, p.7)

A rival da Mulher-Maravilha, publicada originalmente em Wonder Woman 178, set/out de 1968. Fonte: As Maiores histórias da Mulher-Maravilha: coleção DC 70 anos, p.112. Jul.2008. Não apenas com questões estéticas, mas a personagem é descaracterizada na sua representação 3 de mito, pois passa a ser mais humana e fisicamente perde os poderes que usufruía. O movimento feminista ganha força mais uma vez e outras vertentes surgem para dar apoio, assim “A vida de MM sofre reviravolta total entre 1969 e 1972, quando finalmente, após campanha liderada por Gloria Sleinem, [...]. e a ação de outras lideranças do movimento feminista, [...].” (CHACON, 2010, p.74).

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“As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. [...]. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social – como julgou uma história de vistas demasiado curtas - , muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais” (Chartier, S/D, p, 17)

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Em 1973, a Mulher-Maravilha retorna pela Dc Comics, em edições intituladas de New Adventures of the Original Wonder Woman, # 204. Onde Diana Prince, retorna as origens de guerreira amazona, especialmente a caracterização da personagem, trajes e o laço da verdade 4 (Figura 4).

Faça um pedido, publicada originalmente em Wonder Woman 214, set/out de 1974. Fonte: As Maiores histórias da Mulher-Maravilha: coleção DC 70 anos, p. 120. Jul.2008.

Enfim, temos um importante momento para a volta por cima da personagem, mas que não se define nas edições apresentadas. Depois dos anos de 1970 a Mulher-Maravilha passar por altos e baixos, participando de algumas edições do Superman e Batman, ainda passa a integrar a Liga da Justiça. Apenas nos anos de 2000 que a personagem retorna em HQ’s solo e de qualidade. Na revista Hiketeia de 2002, temos a heroína mostrando exatamente o que copõem a personagem. Inserida na realidade da mitologia, vivendo em dois espaços em um mesmo instante. A história desse HQ, nos traz o direcionamento para o caráter e perfil honrado da amazona, que sobre juramento de Hiketeia um antigo ritual grego (capa, figura 5). Uma garota desconhecida bate à porta da embaixada de Themyscira, oferecendo lealdade e suplicando por cuidados da MulherMaravilha. No momento que a embaixatriz aceita, fica comprometida a cuidar de sua suplicante, sendo que, deve haver respeito mútuo e segurança e proteção a todo custo. Nessa história é apresentado outro universo da DC Comics, quando surge o Cavaleiro das Trevas, reconhecendo a garota suplicante como uma assassina que fugiu de Gothan City, onde decidido sai à procura da garota, Danielle Wellys. A garota cometeu os crimes, com a suposta intenção de fazer justiça, pois os homens assassinados teriam tirado cruelmente a vida de sua irmã. Na busca, os caminhos de ambos os personagens se cruzam e a Mulher-Maravilha precisa honrar o juramento. Se a lei não for seguida, quem paga cruelmente e com a vida é o mestre suplicado, as fúrias deixam claro para Diana que era sofrerá caso não cumpra com seus deveres. A Mulher-Maravilha consegue imobilizar Batman, que não desiste de tentar prender Danielle, a princesa pede ao homem-morcego que pare, pois ela não usou metade da força que tem para conte-

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“A vestimenta é simbólica. Ela consegue transmitir instantaneamente a força, o caráter, a ocupação e a intenção de quem a usa. A maneira como o personagem a usa também pode transmitir uma informação ao leitor. Nos quadrinhos, assim como acontece nos filmes, objetos simbólicos não narram apenas, mas ampliam a reação emocional do leitor.”. (EISNER, 2005, p.26)

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lo. De maneira emblemática, Diana contêm Batman pressionando sua face contra o chão apenas com sua perna. (Figura 6). O Cavaleiro das Trevas, sendo um dos personagens mais poderosos em termos de inteligência, acaba sendo subjugado pela força da amazona. Em uma última tentativa, Batman de maneira perspicaz suplicar os cuidados a Diana, na intenção de ganhar sua proteção e poder ir atrás da fugitiva. Ele suplica proteção a Diana, usando de informações superficiais, “eu o uso como seu ancestrais usaram, como fizeram Licaão e Aquiles.” (Hiketeia, 2002, p.88). Acabando com a pequena interferência, a princesa responde “então você não conhece a Ilíada como deveria. Aquiles renegou Licaão.Como eu renego você.” (Hiketeia, 2002, p.88).

Fonte: http://issuu.com/lasquei/docs/mulher-maravilha_-_hiketeia (Figura 5, capa). Fonte: http://issuu.com/lasquei/docs/mulher-maravilha_-_hiketeia (Figura 6, p.86). A escolha dessa edição é justamente pela referência e imagem proposta da personagem MulherMaravilha. A mesma deve ser interpretada como um símbolo, com uma utilidade cultural, apresentando as complexidades onde as histórias são ambientadas. Agora não mais usada como incentivo para mandar as mulheres para guerra, como ocorreu no período da Segunda Guerra, mas propaga a ideia de uma mudança no perfil feminino. Abordado também na historiografia, contribui a autora, “A MulherMaravilha vem representada como uma mulher forte e auto-suficiente, que como no código das amazonas não admite a ajuda dos homens, mostrando todo o espírito feminista representado na personagem.” (NOGUEIRA,2010, p.6) A personagem que apresentamos nessa pesquisa preliminar, mostra um símbolo criado para manifestar, ou servir como voz para as mudanças dentro de uma sociedade machista. Não somente nos Estados Unidos, mas em outros países, indicando o HQ como um material de fácil acesso e eficaz para passar uma mensagem sujeita a interpretação. Assim é entendido e estudado no campo teórico das histórias em quadrinhos, “Quando é empregada com veiculo de idéias e informação, essa linguagem se afasta do entretenimento visual desprovido de pensamento. E isso transforma os quadrinhos numa forma de narrativa.” (EISNER, 2005, p. 10). CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Podemos inferir inicialmente que as histórias em quadrinhos podem ser utilizadas para compreender uma realidade, já que sua criação remete a um anseio ou propósito especifico. O objeto de estudo, mesmo de forma breve, denota as mudanças sociais ocorridas nos EUA e seus reflexos nos quadrinhos. A representação da personagem, Mulher Maravilha, pode ser utilizada como material historiográfico para mostrar um contexto em determinada época, também a sua representatividade para o movimento feminista.

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A partir dos HQ’s mencionados, temos a mostra de um arquétipo feminino idealizado de uma guerreira amazona. A princesa Diana Prince, nas suas diferentes fases leva seu teor ideológico para quem consome o conteúdo das histórias narradas. Na primeira fase elevada a mito, como a princesa guerreira e destemida que encara os vilões e espiões que tentam atacar os Estados Unidos. A personagem passa de um cartaz feminino e propaganda ideológica na Segunda Guerra, a uma brava guerreira para continuar nas HQ’s, pois depois do termino da guerra e a volta dos soldados as mulheres são orientadas a voltar ao papel de boa mãe e esposa. Nos anos de 1960 a Mulher-Maravilha perde seus poderes e referências de guerreira amazona, assim como seus trajes. A partir dos anos de 1970 é que a Mulher-Maravilha retorna ao seu perfil de guerreira amazona, entendendo que uma terceira onda do movimento feminista surge, necessitando de símbolos para o ativismo. Entende-se que as histórias em quadrinhos conseguem prestar uma importante contribuição cultural, no momento que oportunizou o aparecimento das heroínas como representantes de uma minoria nas sociedades ocidentais, as mulheres. REFERÊNCIAS FONTE: As maiores histórias da Mulher-Maravilha. DC coleção 70 anos. Vol. 3. Julho 2008. Mulher-Maravilha,Hikitéia. DC. 2002. Disponível em Acesso em: 23/08/2015. REFERÊNCIAS: CAIXETA, Sharmaine P. Anos Dourados: a mulher-maravilha e o papel da mulher norte-americana durante a 2° Guerra Mundial. Revista Temática. Ano VIIII, n.04. Abril. 2012. Disponível em . Acesso em:20/08/2015. CASTRO, Susana. O mito moderno da Mulher Maravilha. Revista Redescrições. Ano 3. N°.2.2011. Disponível em: . Acesso em; 20/08/2015. CHACON, Beatriz da C. A Mulher e a Mulher-Maravilha: Uma questão de história, discurso e poder (1941 a 2002). SP. 2010, p.205 . Dissertação (mestrado em História Social). Universidade de São Paulo, USP. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa. DIFEL EISNER, Will. Narrativas Gráficas de Will Eisner. São Paulo: Devir, 2005. FERNANDES, Evanildo R. KRESS, Érika. Da mitologia à pós-modernidade: a narrativa das histórias em quadrinhos. 2005. Disponível em: . Acesso em: 22/08/2015. NOGUEIRA, Natania A. Representações femininas nas histórias em quadrinhos da EBAL. História, Imagem e narrativas. Vol. 10. Abril. 2010. Disponível em: . Acesso em: 22/08/2015.

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IMPRENSA, ARTE E IMAGINÁRIO: TECENDO RELAÇÕES SOBRE A PINTURA RODEIO, DE PEDRO WEINGÄRTNER Luciana da Costa de Oliveira * I Problematizar a imagem do gaúcho na pintura brasileira e, mais especificamente, na pintura sulrio-grandense, oportuniza a abertura de um leque de possibilidades de análise. Pensá-lo não apenas no âmbito das artes visuais, mas percebê-lo como importante elemento de uma rede de múltiplos significados, oferece ao pesquisador, igualmente, inúmeras questões e indagações de pesquisa. Nesse sentido, partindo dessas questões, o presente estudo objetiva analisar os entornos que permearam a produção, a recepção e a crítica elaborada acerca da pintura Rodeio, de Pedro Weingärtner (1853-1929). Apesar de ter sido encomendada pelo governador Carlos Barbosa, no ano de 1908, tal pintura não foi adquirida pelo poder público. Dentre as muitas justificativas que foram veiculadas no jornal A Federação, periódico oficial do governo, ganhou destaque o fato de o artista não ter seguindo à risca elementos básicos da tradição sul-rio-grandense e, também, ter cometido sérios problemas de execução plástica. Para que seja possível o estabelecimento dos nexos apontados acima, importa mencionar a relevante contribuição de Aby Warburg no que se refere aos aportes teóricos e metodológicos para a análise de imagens. Ao considerar o viés antropológico e a especificidade das mesmas, Warburg considerou diversos elementos para fundamentar um estudo com fontes imagéticas. Em linhas gerais, importava para o estudioso não apenas a busca das referências do artista, mas sua relação com o meio intelectual em que estava inserido. Além disso, a questão dos encomendantes e, também, dos aspectos cotextuais, constituem-se como elementos fulcrais para a percepção da obra como um todo. Com isso, problematiza-se a imagem a partir da ampla teia de significados que lhe é própria. II. Corria o ano de 1908. Na primeira página do jornal Correio Paulistano, do dia 27 de setembro, circulava uma pequena nota informando, dentre outras coisas, o agradecimento que o governador Carlos Barbosa fazia ao ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, no momento em que foi informado de que um dos cruzadores da marinha brasileira receberia o nome de Rio Grande do Sul. Para retribuir tal homenagem, (...) O dr. Carlos Barbosa, em vez de, como é praxe nos Estados Unidos, offerecer ao futuro vaso de guerra as baixellas precisas, encarregou o pintor Pedro Weingärtner de pintar um quadro de costumes rio-grandenses e que, na opinião de s. exa., testemunhará melhor o apreço do Rio Grande do Sul a essa representação material da integridade e da cohesão [sic] da nossa pátria”. (CORREIO Paulistano, 1908, p.01). Ao se problematizar a questão da encomenda, ou seja, ao se perguntar o porquê do pedido do governador para que Pedro Weingärtner realizasse uma pintura com temática relacionada aos costumes do Rio Grande do Sul, algumas hipóteses podem ser consideradas. Dentre elas, uma das mais relevantes centra-se, pois, na trajetória e consagração do artista no panorama artístico brasileiro e europeu. Em 1878, quando sai de Porto Alegre para estudar e dedicar-se à arte na Europa (Alemanha, França e Itália), o artista não só aprimorou suas técnicas e plástica, como também primou pela construção quase artesanal de suas figuras na tela. Além disso, deve-se atentar ao fato de que, segundo Ângelo Guido, diferentemente de Manoel de Araújo Porto Alegre, considerado pelo autor como o primeiro grande artista do Rio Grande do Sul e que, ao ir para o Rio de Janeiro, não mais retornou à terra natal, Pedro Weingärtner, mesmo morando na Itália, nunca deixou de vir ao Brasil e ao Rio Grande *

Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Bastos Kern. Bolsista CAPES.

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do Sul (GUIDO, 1956, p.126). Essas vindas ao Estado favoreceram, por exemplo, a elaboração das suas primeiras pinturas de cunho regional, onde se consagra como o primeiro intérprete do Rio Grande do Sul. Ainda segundo Guido, Embora durante o primeiro período da sua produção em Roma andasse empolgado por vários outros assuntos, não esqueceu, entretanto, que o Rio Grande do Sul poderia fornecer-lhe motivos sumamente interessantes para pinturas de um caráter diferente das que estava fazendo. (GUIDO, 1956, p.59). São desse período as obras Chegou tarde (1890), Kerb (1892), Fios emaranhados (1892) e Charqueada (1893). Apesar de, nessas três primeiras pinturas, o artista focar sua temática em cenários, costumes e elementos específicos da zona de imigração alemã, o fato é que “(...) o Rio Grande do Sul encontrava, afinal, o pintor que pela primeira vez procuraria fixar-lhe os aspectos vários [de costumes, paisagens e gentes] com alma e com talento”. (GUIDO, 1956, p.63). Já a obra Charqueada, como o próprio título indica, apresentava ao público uma cena bastante conhecida: os diversos momentos da produção do charque. Sobre esta, vale mencionar ainda, que quando foi exposta, produziu “(...) excelente impressão, recebendo o pintor os mais entusiásticos aplausos da imprensa”. (DAMASCENO, 1971, p.203). Assim, considerando o artista que possuía uma aprimorada e tradicional plástica e que, ainda, voltava-se cada vez mais aos temas de sua terra natal, é possível perceber sua projeção no panorama artístico sul-rio-grandense. Junto a isso, é importante sublinhar a importância das outras obras que havia produzido (sendo algumas ofertadas ao Imperador Pedro II), bem como o teor elogioso que a crítica do período lançava sobre seu trabalho. É, portanto, gozando de grande prestígio nos círculos artísticos nacionais e europeus que Weingärtner chega ao fim do século XIX. Nas palavras de Athos Damasceno, Pedro Weingärtner chega assim, triunfalmente, ao final da centúria, após vinte e um anos de brilhante e fecunda vida artística – período de intenso labor, ao longo do qual erguera bem alto seu nome no Rio Grande, no Brasil e na Europa, onde, tanto na Alemanha, quanto na Itália e na França, se impusera como pintor de porte (...). (DAMASCENO, 1971, p.211). Um outro ponto que deve ser levado em consideração é o referente à formação e plástica de Pedro Weingärtner. Os anos de formação do pintor na Europa, afora lhe proporcionarem o aprimoramento do desenho, igualmente forneceram elementos que seriam constantes em seus trabalhos. Em primeiro lugar deve-se mencionar sua plástica notadamente tradicional. Apesar de ter entrado em contato, tanto na Alemanha quanto na França, com as pinceladas impressionistas, o artista, em nenhum momento, voltouse a tal movimento. Pelo contrário, “(...) permanecia fiel àquele detalhismo que é característico de uma grande parte da pintura de gênero de orientação acadêmica (...)”. (GUIDO, 1956, p.27). Além disso, sua ida à Itália está relacionada, também, a essa predileção pela pintura de viés tradicional. Se, por um lado, a França impulsionava a produção das vanguardas artísticas, especialmente o impressionismo, por outro, Roma mantinha-se fiel aos postulados acadêmicos. A respeito de tal questão, Flávio Krawczyk é bastante pontual: “Não é a toa que Weingärtner escolhe Roma – grande centro europeu do academicismo – para instalar seu atelier a partir de 1886. Lá, exerce sua profissão, optando pela arte acadêmica. ” (KRAWCZYC, 1996: 5). O que se pode apreender desse momento de formação de Pedro Weingärtner, iniciado na Alemanha e, de certa forma, finalizado na França e na Itália, é seu traço fundamentalmente tradicional. Por tal motivo, muitos estudiosos que se debruçam sobre a sua obra o associam, também, à tradição verista. Pelo fato de buscar, no detalhamento de cenas, paisagens e tipos humanos, tanto a singularidade dos elementos quanto os pormenores da composição, o artista “(...) com seu agudo senso de exatidão, [procurava] fixar o que via com uma grande acuidade”. (AVANCINI, 2010: 336). Assim, tendo em vista os diversos elementos que estiveram, também, no entorno da consagração de Weingärtner, onde se destaca o fato de ser nativo do Rio Grande do Sul, ter a proximidade com temas regionais e, também, elaborar imagens a partir de traços e técnicas bastante tradicionais, é que se pode

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considerar o pedido feito por Carlos Barbosa. Com isso, o texto referente à justificativa da não aquisição da obra pode ser analisado e questionado como problema de pesquisa. III. Formalizada a encomenda em 1908, cabia a Pedro Weingärtner, de seu atelier em Roma, realizar uma pintura de costumes sul-rio-grandenses. Na realidade, mais que realizar uma cena de costumes, o artista deveria, a partir de seus precisos traços e cores, elaborar uma obra que, de fato, “representasse” o Rio Grande do Sul. E o tema escolhido para tal ocasião foi uma parada de rodeio. Como já colocado, Pedro Weingärtner havia fixado residência em Roma desde o término de sua formação na França. No entanto, mesmo que sua presença no Rio Grande do Sul fosse frequente, no ano de 1909 esteve no Estado para, além de entregar algumas obras que lhe haviam sido encomendadas, recolher material para a pintura do governo. Segundo Guido coloca, Pedro Weingärtner já tinha pintado diversos quadros com motivos do Rio Grande do Sul; agora, porém, tratava-se de pintar uma tela de típico assunto de costumes gaúchos e de regulares dimensões. Encontrava-se longe da nossa campanha, mas não lhe faltavam estudos para em seu atelier compor uma cena gaúcha de parada de rodeio, pois esse foi o motivo que se propoz [sic] pintar (...). (GUIDO, 1956, p.113). Mesmo realizando a obra na Itália, Weingärtner nunca deixou de informar ao governo sobre o andamento da mesma. Tal questão é atestada em duas notas veiculadas em A Federação, uma no mês de outubro e outra em dezembro, do ano de 1908. Na primeira delas, afirma o autor da notícia, que havia sido vista “(...) uma excellente [sic] reprodução photographica [sic], em miniatura, do bellissimo quadro – O rodeio (...)”. (A FEDERAÇÃO, 1908a, p.02). Além disso, é informado ao leitor, em pormenores, os elementos compositivos da pintura bem como são tecidos elogios às cores e formas com a qual o artista trabalha em Rodeio. De acordo com a nota, “(...) a palheta magica do illustre [sic] pintor patrício illumina [sic] o quadro com aquele colorido e expressão própria do local, no estudo minucioso dos mínimos detalhes, que é o que dá raro destaque aos trabalhos de Weingärtner” (A FEDERAÇÃO, idem). Já na pequena nota veiculada no mês de dezembro do mesmo ano, era informado que, em carta enviada por Weingärtner ao gabinete do governo, a obra já se encontrava em vias de finalização, pois o pintor mencionava que iria colocá-la em uma “(...) moldura entalhada, de cor escura, o que dará maior realce ao conjunto” (A FEDERAÇÃO, 1908b, p.02). Importante colocar que, mais uma vez, o artista enviou uma fotografia da obra para apreciação tanto do encomendante quanto do público, pois a mesma seria, em breve, exposta no Trocadero. De acordo com a nota, O nosso illustre patrício e insigne artista Pedro Weingärtner enviou aos nossos distinctos [sic] amigos dr. Carlos Barbosa, presidente do Estado, e Borges de Medeiros, chefe do partido republicano, photographias [sic] do quadro de costumes Riograndenses, pintado por aquelle artista em Roma, por encommenda [sic] do Governo do Estado e destinado ao scout Rio Grande, em construcção na Inglaterra. (...). O dr. Ezequiel Ubatuba [official de gabinete do Presidente do Estado] expoz [sic] a photographia em questão no Trocadero. (A FEDERAÇÃO, idem). A importância de se atentar às notas do jornal, especialmente quando se referem ao teor temático da pintura, é considerar que tanto o público leitor do periódico quanto o comitente, tinham ideia do que Pedro Weingärtner estava produzindo. Essa questão, no entanto, terá maior importância quando tais notas forem comparadas com o texto crítico de Arthur Toscano. Passados menos de seis meses do envio desta última carta, Pedro Weingärtner, em junho de 1909, envia a pintura de Roma aos cuidados de seu irmão, Miguel Weingärtner. Antes de ser entregue oficialmente ao governo, a obra foi exposta, segundo Ângelo Guido, em uma vitrine da Rua dos Andradas (GUIDO, 1956, p.113). Foi precisamente nessa ocasião que, pela primeira vez, o público porto-alegrense viu Rodeio. E, mais que apreciá-lo, criticou-o veementemente.

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Pedro Weingärtner. Rodeio. Óleo sobre tela, 50 X 100 cm. Coleção particular. 1909. Nesta situação, a crítica feita à pintura não foi positiva, uma vez que não havia sido “(...) bem aceita pela crítica e pelo público, devido a supostos erros na representação dos hábitos dos gaúchos” (GOMES, 2008, p. 199). Pelo fato de Weingärtner ser um artista de renome entre os sul-rio-grandenses e, ainda, de sempre ter suas obras envoltas em grandes elogios, especialmente provindas do Rio de Janeiro e São Paulo, os comentários acerca Rodeio foram recebidos, por intelectuais como Ângelo Guido, com certo estranhamento. Para Ângelo Guido, a crítica negativa que recaiu sobre o trabalho de Weingärtner possuía outro sentido, para além, por assim dizer, dos elementos compositivos e temáticos presentes na obra. Segundo o autor, “Parece que houve alguém particularmente interessado em empanar o brilho do renome de Weingärtner e cuja critica impressionou ao dr. Carlos Barboza [sic].” (GUIDO, 19556, p. 114). De fato, como aponta o autor, a negativa com relação à pintura Rodeio ganhou enormes proporções, chegando ao ponto de, em função de diversos problemas relacionados às tradições sul-rio-grandenses e às técnicas pictóricas, o governo ter decidido não mais adquiri-la. Em A Federação do dia 15 de maio de 1909, em texto crítico assinado pelo jornalista Arthur Toscano, era oficialmente divulgado que o governo não mais faria a aquisição da pintura. Segundo o texto, e após elencar todas as qualidades técnicas e consagratórias de Weingärtner, coloca Toscano: “Sentimos, extraordinariamente, ter de dizer que, apesar de todos esses requisitos e aprestos, o quadro do sr. Pedro Weingartner está consideravelmente distanciado das joias artísticas que o seu pincel tem até agora produzido”. (TOSCANO, 1909, p.01). Ao tecer tal comentário, o jornalista passa a justificar, a partir de dois grandes eixos, o motivo pela qual a obra não se adequou aos auspícios governamentais. O primeiro deles estava relacionado a tradição, ou seja, “(...) a scena [sic] pintada pelo Sr. Weingartner não representa um rodeio, tal como esse quadro da vida campeira do Rio Grande do Sul é conhecida e se passa”. (TOSCANO, idem). A outra razão centrava-se, pois, na execução plástica da obra: Quanto á execução, sem pretendermos exhibir [sic] conhecimentos technicos [sic] que, na especialidade, nos falham mas guiando-nos apenas pela impressão recebida, como é direito de qualquer pessoa diante de uma obra exposta á apreciação pública, entendemos que a tela do sr. Pedro Weingärtner tem lacunas e defeitos lamentáveis. (TOSCANO, idem). No que tange às tradições, após informar ao leitor no que consistia verdadeiramente uma parada de rodeio, Arthur Toscano passa a fazer uma contraposição ao que foi visualizado na obra de Weingartner. Ao afirmar que “(...) no quadro do sr. Weingartner, o que se vê é uma tropinha de bois que

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parecem encaminhar-se para um matadouro” (TOSCANO, idem), bem diferente do ambiente barulhento, movimentado e cheio de imprevistos que caracterizava, na sua visão, uma parada de rodeio, é que o jornalista desenvolve uma análise pormenorizada do quadro. Em primeiro lugar, ele chama a atenção para o peão que está no primeiro plano e que, com um laço preso ao pulso, prende uma rês que está à sua frente. Após, aponta que os peões que estão no segundo e terceiro planos, juntos ao rebanho, encontram-se “(...) n’uma attitude que não se pode entender e definir bem” (TOSCANO, idem). Ainda pontuando a função dos gaúchos e da lida campeira na pintura, ele destaca a ação de “(...) dous [sic] homens [que] parece que vão curar uma rez deitada de ventre para o ar, á vontade, sem um laço ou qualquer outro empecilho aos movimentos” (TOSCANO, idem). A respeito disso, de forma bastante irônica, ele assim se reporta à cena: Na rez, que, lançada ao chão sem liame algum, parece que vae ser curada ou qualquer outra cousa [sic] por dois peães [sic], o erro é ainda maior como escolha de detalhe e como execução. Como escolha de detalhe, foi de péssimo gosto preferir logo aquella espécie de curativo e exhibil a num quadro de tal ordem, quando outros, por exemplo, a marcação, seriam muito mais característicos e discretos. Como execução, porque o illustre artista não será capaz, mesmo com o auxílio de peães athletas [sic] de lançar no chão um boi de ventre para cima e cural-o [sic] – sem previamente o haver ligado muiro solidamente por laços de confiança. Nem uma ovelha se deixaria curar de outro modo. (...). (TOSCANO, idem). Na sequência do texto, o autor passa, então, às notas a respeito dos erros de execução da obra. Dentre alguns aspectos, importa citar os que ele afirma serem da ordem do uso de cores por Weingärtner. Ao observar os animais no terceiro plano da pintura, ele afirma que “(...) o artista mostra-nos na sua tela animaes bovinos de pellos meramente phantasistas (...). Há alguns delles, talvez o maior número, de um encarnado que desconcerta (...)”. O uso do vermelho, no entanto, não fica restrito aos animais, mas igualmente a um pedaço de pano, quase imperceptível, que recobre uma carreta que está à esquerda do observador. Para Toscano, “em um rodeio, ou qualquer outro trabalho de campo onde se haja de lidar com aquelles animaes – nunca se utilisam [sic] pannos de cor rubra, como a que cobre a carreta á esquerda (...)”. Para finalizar, o último ponto levantado e problematizado por Toscano refere-se à forma com a qual Weinärtner utilizou a perspectiva em sua obra. Na realidade, sem considerar a totalidade da pintura, o jornalista centra sua crítica em apenas um plano, à esquerda do observador. Segundo o texto, “(...) é notável e flagrante a desproporção entre o tamanho daquelles [animais que compõe a tropa] e o do cavalo e cavaleiro á esquerda, dada a distância que o artista figura para o observador”. (TOSCANO, idem). E, assim, apontando tais erros na execução da pintura, conclui seu texto: O sr. Pedro Weingärtner não foi feliz pintando um quadro de costumes peculiares, complexos, que se não traduzem com uma enscenação [sic] ad hoc nem com o auxílio de vistas photográphicas. Seria preciso ao artista viver aqui, sentir o seu assumpto, identificar-se com a tradição e observar minuciosamente os elementos com que poderia traduzil-o [sic] com fidelidade ao menos relativa. (TOSCANO, idem). IV. Muitas relações podem ser elaboradas quando se compara o texto de Arthur Toscano com as demais notas que circularam, igualmente, em A Federação. As problematizações que podem ser feitas dizem respeito, também, à forma com a qual era vista a tradição e o gaúcho nesse momento, bem como as articulações e o desenvolvimento do campo artístico e da crítica de arte em Porto Alegre. Primeiramente, é interessante perceber a relação do gaúcho com o círculo intelectual portoalegrense e com o entorno do regionalismo e das identidades. Na construção do discurso identitário, cuja busca por especificidades regionais se faz necessária, “(...) concorrem contribuições culturais de várias ordens” (GOMES, 2006, p. 10), entre as quais a literatura e as artes plásticas têm papel destacado.

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Apesar de ambas as manifestações contribuírem sobremaneira para o desenvolvimento do regionalismo no Rio Grande do Sul, é importante frisar que elas não andaram lado a lado. Durante o século XIX, quando se iniciavam as atividades do Partenon Literário, os intelectuais a ele ligados buscavam evidenciar aspectos peculiares da cultura e da paisagem local. Por tal motivo, Maria Eunice Moreira afirma que, com o “(...) Partenon [abriu-se] a fase de ordenação literária no Estado e, principalmente, o ciclo da literatura regionalista”. (MOREIRA, 1982, p. 25). Dos escritores que mais se notabilizaram nesse momento, tem destaque a figura de Apolinário Porto Alegre. Ao publicar o romance O Vaqueano, em 1872, o intelectual não só contribuiu para a literatura regional, mas igualmente contestava a já divulgada obra de José de Alencar, O Gaúcho. Esta obra que, inicialmente, havia agradado os regionalistas sul-rio-grandenses, descontentou Apolinário pelo fato de ser infiel “tanto com relação à linguagem, como à representação do tipo” (MOREIRA, 1982, p. 26). E tais tipificações foram elaboradas por ele no romance em questão ao apresentar o próprio vaqueano como personagem central de sua trama. No que se refere ao campo da arte, como já foi colocado anteriormente, na época em que Weingärtner entregava seu Rodeio para o governo, Porto Alegre via-se adentrando à modernidade. Com inovações como o cinematógrafo e a fotografia, (GASTAL, 2007, p.40), as artes plásticas igualmente passavam por transformações. Durante as primeiras décadas do século XX, onde o pintor despontava como o artista mais importante no contexto regional, outros artistas apresentavam-se no campo da pintura. Tal é o caso de Augusto Luis de Freitas, Oscar Boeira, Affonso Silva, Leopoldo Gotuzzo, Libindo Ferrás e João Fahrion. Mesmo que Weingärtner tenha dominado “(...) toda a primeira década dos novecentos, em termo de pintura” (DAMASCENO, 1971, p. 139), tais pintores já mostravam, com traços e cores, elementos novos na pintura sul-rio-grandense. Importa mencionar, também, a atuação da crítica de arte nesse início de século XX. Sua função, voltada também à educação do público, difundia, muitas vezes, ideias e concepções de quem as elaborava. Tais textos, assinados em grande parte por jornalistas e escritores, circulavam nos periódicos da época auxiliando, muitas vezes, na formação da opinião pública. Segundo Maria Lúcia Bastos Kern, A crítica, através da imprensa, detém uma modalidade de poder, porque ao mesmo tempo em que informa, ela forma a opinião e a visão de arte do público leitor. A crítica, ao deter a autoridade do saber estético, atua como porta-voz de seus anseios, preocupando-se em preservar e cultivar as tradições regionais e/ou nacionais para criar coesão entre os discursos das artes e das obras literárias com certos projetos políticos. (KERN, 2007, p.53). Além dessa questão, é relevante apontar que, por não terem uma formação artística, muitos dos estudiosos que se debruçavam na elaboração da crítica de arte, difundiam sua própria concepção e análise do objeto artístico. Muitas vezes apegados aos cânones miméticos, tais escritores percebiam o valor da obra a partir da capacidade de representação da realidade, desconsiderando, por certo, todo seu entorno de produção. A respeito disso, Maria Lúcia Kern esclarece que Verifica-se que a crítica resiste às práticas artísticas que se distanciam dos cânones figurativos da mímesis, devendo assim o artista se manter fiel à realidade. No entanto, ao defender a fidelidade ao real, os críticos não se questionavam sobre as possibilidades de representação do mesmo, porque a sua visão está condicionada pelas convenções clássicas, nas quais a ordem, o equilíbrio e a perfeição são considerados como verdade absoluta e eterna. (KERN, idem). Tendo isso em vista importa, ainda, colocar duas questões. Em primeiro lugar, quando o jornalista fala em “tradição” e expõe os erros cometidos pelo artista, especialmente a forma com a qual elaborou a parada de rodeio, é possível estabelecer um paralelo com os ideários que despontavam com o Partenon Literário. A partir do momento em que se coloca o pertencimento e as vivências como fator basilar para a interpretação e elaboração de personagens e imagens representativas do Rio Grande do Sul, por mais que Weingartner fosse natural do Estado, seu distanciamento teria afetado a forma com a qual se

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apropriou da atividade típica do gaúcho. E isso, de certa forma, é comentado por Arthur Toscano quando afirma que seria necessário ao artista “viver aqui e sentir o assumpto, identificar-se com a tradição (...)” (TOSCANO, idem.). Em segundo lugar, quando o jornalista fala a respeito dos problemas de execução plástica, notadamente as cores utilizadas e a perspectivação do espaço e dos personagens, dois elementos são importantes para a discussão: o referente às cores, ligados, ainda, à tradição regionalista e, também, a ideia da arte como representação fiel da realidade. Quando o autor coloca que o artista jamais deveria ter colocado um pano vermelho na cena – por mais que este seja imperceptível – mais uma vez ele relaciona o desconhecimento do artista acerca das tradições. Junto disso, trazer esse elemento como um erro de execução plástica em função, também, do distanciamento da realidade de uma parada de rodeio, é considerar a pintura dentro dos cânones tradicionais de representação fiel da realidade. Por mais que Pedro Weingärtner fosse um artista acadêmico, de pincelada tradicional e preocupado com essa proximidade do real, o fato é que, em meio a critica, sua formação plástica não foi considerada. Seu erro, para seguir nas palavras de Toscano, não foi usar o vermelho para elaborar os bois ou para cobrir a carreta, mas sim por não mostrar fidedignamente como se dava a tal atividade. Por mais que, em periódios como o Correio do Povo, se questionasse a validade da crítica do texto de Arthur Toscano, respostas pontuais a esse respeito não foram oferecidas. Mesmo que seu texto fosse uma forma de responder pelo governo – e, assim, levar seu ideário e concepção acerca da obra ao público – “(...) Pedro Weingärtner não deixou de saber de onde partira a crítica mais ferina feita ao seu trabalho” (GUIDO, 1956, p.115). Nesse caso, um estudo centrado nas relações entre o governo e o desenvolvimento do campo das artes em Porto Alegre poderia, por assim dizer, trazer novos elementos ao caso da pintura Rodeio. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVANCINI, José Augusto. A pintura de paisagem gaúcha na Primeira República. Análise de obras de Pedro Weingärtner e Libindo Ferraz. Anais do XXX Colóquio CBHA. Rio de Janeiro, out. 2010, p.335-344. DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio Grande do Sul (1755-1900). Porto Alegre: Globo, 1971. DR. CARLOS Barbosa. A Federação. Porto Alegre, 26 out. 1908, p.02. GASTAL, Susana. Arte no século XIX. In: GOMES, Paulo (Org.). Artes plásticas no Rio Grande do Sul. Uma panorâmica. Porto Alegre: Lathu Sensu, 2007. GOMES, Carla Renata Antunes de Souza. De rio-grandense a gaúcho. O Triunfo do avesso. Um processo de representação regional na literatura do século XIX (1874-1877). Porto Alegre: Editoras Associadas, 2009. GOMES, Paulo. Cronologia da vida, carreira e obra de Pedro Weingärtner. In: VEEK, Marisa (Prod.). Pedro Wingärtner. Obra gráfica. Porto Alegre: [s.e.], 2008. GUIDO, Ângelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Divisão de Cultura, 1956. KERN, Maria Lúcia Bastos. A emergência da pintura modernista no Rio Grande do Sul. In: GOMES, Paulo (Org.). Artes plásticas no Rio Grande do Sul. Uma panorâmica. Porto Alegre: Lathu Sensu, 2007. KRAWCZYK, Flávio. O lugar das formas. In: PEDRO Weingärtner. Porto Alegre: Alto da Bronze, 1996. MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1982.

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NOTAS. Correio Paulistano, São Paulo, 27 set. 1908, p.01. NOTAS. A Federação, Porto Alegre, 03 dez. 1908, p.02. TOSCANO, Arthur. Rodeio, quadro de Pedro Weingärtner. A Federação, Porto Alegre, 15 mai. 1909, p.01.o

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DANIEL DEFOE E A SUA HISTÓRIA GERAL DOS PIRATAS: UM EXEMPLO DE HISTÓRIA PÚBLICA ANTES DA HISTÓRIA Nicássio Martins da Costa 1 As discussões que envolvem os aspectos do termo História Pública são recentes, porém crescentes. Nas últimas décadas do século XX e neste início de século XXI são diversos os autores, do meio acadêmico, que discorrem longamente em seus textos sobre os aspectos positivos e negativos desta prática. As dúvidas sobre o empenho nas pesquisas, a qualidade o material produzido e a pouca profundidade das análises são algumas das contrapartidas, criticadas pelos cientistas da história, para o crescente interesse de públicos mais abrangentes para os assuntos de história. Contudo, nosso objetivo neste texto não é de fazer coro a estas abrangentes discussões – muito bem organizadas e fundamentadas por grandes pesquisadores da História na Academia. Trata-se de algo mais pontual que nos faz retroceder mais de dois séculos deste período de embate emblemático entre historiadores acadêmicos e públicos e que talvez possa nos ajudar a afirmar que esta temática já pudesse estar sendo trabalhada há mais tempo. Podemos trabalhar como História Pública, a luz da recente bibliografia que compõe este debate, uma obra produzida durante o século XVIII, antes mesmo de a história e enraizar do lado de dentro dos muros da Academia? Passemos, antes de responder a nossa questão, por alguns aspectos importantes que compõe o referido debate. Quando falamos em História Pública (Public History), temos a certeza de que estamos entrando em um campo de discussões polêmicas, que dividem opiniões no ambiente acadêmico. Principalmente, quando se trata da história produzida por profissionais de áreas que não são a História, como ressalta Jurandir Malerba: “Um ponto fundamental a se considerar na busca de uma definição categórica de Public History é a questão da formação de seus praticantes” (MALERBA, 2014, p. 30). Em meio a essas discussões, encontramos questões como as que envolvem a qualidade do material produzido e os modos de categorização do campo, bem como, algumas nada empíricas, como o sentimento de inveja 2. Porém, mesmo que seja de difícil categorização e encontre entraves específicos dentro da Academia é indubitável que o campo da História Pública se encontra em uma crescente que vai ao encontro dos anseios de públicos diferentes pelo consumo de história: O crescimento desse campo sem fronteiras muito definidas que se chamou de Public History articula-se de modo orgânico com a recente explosão ruidosa de formas populares de apresentação do passado. (MALERBA, 2014, p. 31) Neste sentido podemos afirmar que o frenético crescimento do consumo dos mais diversos veículos culturais de massa (cinema, literatura romanceada, video games, revistas em quadrinhos, séries televisivas, entre outros) 3 acarretou um diretamente proporcional e crescente interesse do público em geral por conhecimento histórico. Portanto, se um indivíduo assiste, por exemplo, a um filme ou lê um romance, que cai no seu gosto, isto provoca nele uma curiosidade sobre o assunto, levando-o às livrarias e colocando-o frente a frente com o best seller (de História Pública) mais recente sobre sua área de interesse: “A história pública explora e apresenta o conhecimento histórico – em uma variedade de formas – para além dos foros acadêmicos tradicionais.” (ZAHAVI, 2011, p. 53). É valido frisar que nem todo o livro considerado como História Pública é necessariamente escrito por um “aventureiro”, por alguém de uma área de atuação distinta da História (em sua grande maioria, profissionais do Jornalismo). No caso do Brasil, um exemplo bastante conhecido de autores “não aventureiros” que pode ser citado é a historiadora Mary Del Priore. 1

Mestrando em História – Unisinos. [email protected] Marjorie Garber Instintos Acadêmicos. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2003. Nesta obra, a autora discorre longamente acerca do que chama de Inveja das Disciplinas, que causaria, segundo ela, muitas vezes, estranhamento entre profissionais de áreas diversas, o que acaba por impedir a interdisciplinaridade. Pode-se aplicar esta reflexão à livre produção de profissionais de outras áreas sobre temáticas históricas que acabam por receber reconhecimento desproporcional se comparado ao recebido pelo historiador acadêmico. 3 Nós os entendemos como veículos que se valem, muitas vezes, de panos de fundo históricos para enriquecer e contextualizar seus enredos. 2

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Sobre o surgimento da História Pública, Jurandir Malerba diz: (...) o conceito de “história pública” surgiu com a grande crise de empregos da década de 1970 nos Estados Unidos, quando o historiador Robert Kelley, entre outros, procurou conceituar esse fenômeno do surgimento (ou criação!) de carreiras ou de um potencial mercado de trabalho alternativos à carreira acadêmica para historiadores que não conseguiam ingressar nos postos das universidades. (MALERBA, 2014, p. 28) As definições para o termo “História Pública” são, portanto, trabalhadas desde a década de 1970, mas, o que podemos dizer sobre a História Pública antes da História? Não no período diretamente anterior à década referida da criação do termo, mas, sim, antes da História propriamente dita, isto é como disciplina, dentro dos muros da Academia. Não faz muitos anos que o interesse do grande público por história se intensificou, porém, esta situação não denota que ele tenha simplesmente surgido do nada e seja característica exclusiva de indivíduos nascidos nos séculos XX e XXI. É possível, portanto, dizer que a História Pública não surgiu no nosso mundo a partir dos anos 1970. Assim, mesmo antes de termos a definição categórica da História como ciência, podemos citar obras que preenchem os requisitos para que sejam definidas como Public History. Para melhor esclarecer a nossa argumentação, nos valemos de Jacques Revel, que fala sobre o nascimento da História como disciplina acadêmica: Em 1876 foi publicada em Paris a primeira edição da Revue Historique. O nascimento do periódico é comumente visto como um marco inaugural. A história era, a partir daquele momento, definida como uma disciplina profissional com requerimentos metodológicos mais precisos e dotados de explícita cientificidade, com formas de treinamento codificadas e específicas e um forte sentido de comunidade acadêmica. (REVEL, 2012) Para responder as questões propostas até aqui, partimos então para a análise de alguns aspectos relevantes da obra que selecionamos. É importante ressaltar que, mesmo que tenhamos escolhido uma única obra para compor o artigo, se faz necessário que seja visualizada como um ponto de partida para esta discussão e não como definitiva ou singular. Futuros esforços em realizar um mais extenso levantamento, podem e devem nos colocar em contato com uma boa quantidade de outras obras que venha a responder as nossas questões de maneira positiva. HISTÓRIA PÚBLICA NO SÉCULO XVIII: A HISTÓRIA GERAL DOS PIRATAS DE DANIEL DEFOE Para desenvolvermos nossa reflexão acerca da História Pública, optamos por analisar uma obra que reúne textos do século XVIII, escritos por Daniel Defoe 4, e que recebeu o título de A General History of the Pyrates. Os textos foram, primeiramente, publicados separadamente em periódicos durante o ano de 1724 e compilados, pela primeira vez, em forma de livro, em 1973. A obra foi reeditada e organizada novamente no mesmo formato em 1999, sob a coordenação de Manuel Schonhorn, e editada duas vezes em português brasileiro. A primeira, no ano de 2003, sendo que os textos foram organizados por Eduardo San Martin 5 e a segunda, em 2008, por Luciano Figueiredo 6. Os títulos dados foram, respectivamente, Piratas: Uma História dos Roubos e Crimes de Piratas Famosos e Uma História dos Piratas. Em relação à obra, cabe ressaltar que existe uma controvertida questão envolvendo a autoria destes textos. A primeira edição e aquela que foi organizada por Luciano Figueiredo creditam a escrita a Daniel Defoe, já a organizada por Eduardo San Martin atribui a autoria ao misterioso Capitão Charles Johnson. (DA COSTA, 2014). Para conhecimento dos leitores, inserimos as imagens das capas das duas edições mais

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O inglês Daniel Defoe foi jornalista e escritor durante o século XVIII. Além de sua carreira como jornalista, foi autor de diversos romances, dentre os quais, está Robinson Crusoé. 5 Eduardo San Martin é jornalista e tradutor; reside atualmente em Nova York. Entre outros, foi autor de Terra a Vista – História de Náufragos. 6 Luciano Raposo Figueiredo é professor do Departamento de História da UFF (Universidade Federal Fluminense).

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recentes, bem como a da primeira edição compilada dos textos, organizada por Manuel Schonhorn, em 1973 e reeditadas no mesmo formato em 1999. Figura 1: Edição brasileira organizada por Luciano Figueiredo (2008)

Fonte: Imagem digitalizada da capa do livro original Figura 2: Edição brasileira organizada por Eduardo San Martin (2003)

Fonte: Imagem digitalizada da capa do livro original

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Figura 3: Primeira edição compilada dos textos organizada por Manuel Schonhorn (1999)

Fonte: www.goodheads.com

Independentemente dos títulos dados às três edições, optamos por nos referir à obra a partir do título dado por ocasião de sua primeira edição compilada, portanto: A General Hitory of the Pyrates. Não descuidaremos, porém, das notas feitas pelos editores e nem de destacar o que foi mantido do texto original em todas as versões das edições brasileiras. Antes mesmo de abrir e folhear cada um dos livros, em busca da narrativa, cabe destacar algumas peculiaridades encontradas tanto nas capas, quanto em suas fichas catalográficas. Em relação a elas, constatamos que a ficha catalográfica da edição organizada por Luciano Figueiredo está disposta da seguinte forma: 1. Piratas – Obras anteriores a 1800. I. Schonhorn, Manuel. II. Figueiredo, Luciano, 1961 -. III. Título. Enquanto a da edição organizada por Eduardo San Martin é esta: 1. Piratas – História. I. Título. Constata-se, assim, que o livro organizado por um não-historiador é o único que, curiosamente, categoriza a obra com “História”. Esta contradição na ficha catalográfica da edição organizada pelo jornalista Eduardo San Martin se confirma e intensifica em meio às primeiras páginas do livro, onde o editor faz comentários acerca do caráter dos textos do autor. Texto de apresentação, curiosamente, nomeado como Clássico da historiografia popular (e um pioneiro do jornalismo histórico [grifos meus]). San Martin faz menção ao modelo sensacionalista dos escritos: Tanto em 1700, quanto em 2003, esse tipo de texto “dá leitura” (no jargão jornalístico), com sua linguagem folhetinesca contando casos mirabolantes de proezas e malvadezas de piratas medonhos. São detalhes de cenas brutais e sangrentas de assassinatos, roubos, traições, paixões, mulheres piratas, extravagâncias, sexo, perversões, violência – todos os ingredientes do “thriller” e do jornalismo popular sensacionalista, que continuam rendosos nichos do mercado editorial do Ocidente. (SAN MARTIN, 2003, p. 8) Em relação aos títulos, o jornalista manteve o mesmo da versão de Manuel Schonhorn, isto é, História Geral (General History), enquanto que Luciano Figueiredo optou pelo título Uma História dos Piratas, modificando o título da obra original que, segundo ele:

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(...) nasceu na Inglaterra em 1724 com o quilométrico e sensacionalista título de História geral dos roubos e assassinatos dos mais conhecidos piratas, e também suas regras, sua disciplina e governo desde o seu surgimento e estabelecimento na ilha de Providence em 1717, até o presente ano de 1724. Com as notáveis ações e aventuras de dois piratas do sexo feminino, Mary Read e Anne Bonny antecedida pela narrativa do famoso capitão Avery e de seus comparsas, seguida da forma como ele morreu na Inglaterra. Era assinado por certo capitão Charles Johnson, o que ajudou a sustentar a versão de que fora escrito por um marinheiro ou por um ex-pirata. (FIGUEIREDO, 2008, p. 7) Quanto ao conteúdo da obra, trata-se de uma clara tentativa de “fornecer subsídios críticos bem fundamentados para o propósito de eliminação definitiva dos piratas. Daniel Defoe promove um verdadeiro ajuste de contas com o passado da Inglaterra. O reino que dependera tanto da pirataria (...).” (FIGUEIREDO, 2008, p. 8). Com a publicação dos textos é perceptível que este propósito não se resumia, simplesmente, à caçada [e extermínio] de piratas no mar, mas consistia em atacá-los de uma forma a desconstruir toda e qualquer simpatia que a população tivesse por eles. Em razão disto, os textos apresentam uma contextualização histórica do período, com base em cartas diplomáticas trocadas entre governantes, que dão destaque aos problemas que os piratas causavam e que afetavam diretamente as finanças dos Estados envolvidos e prejudicados pelos ataques. Porém, acreditamos que a descrição deste cenário é somente uma porta de entrada para o enredo principal do livro: uma série de biografias, extremamente parciais, de piratas que fizeram fama entre os anos de 1717 e 1724. Fica bastante claro que, para Daniel Defoe, os textos não deviam satisfazer apenas a vontade que o Rei tinha de difamar ao máximo os piratas. Eles faziam parte de sua profissão e precisavam cativar seu público leitor da melhor maneira possível, sem fugir de seu propósito primário. Propósito este que, definitivamente, se desenhou de forma torta, caminhando diretamente no sentido contrário ao almejado. Ao descrever os piratas, Defoe acabou por ressaltar sua impetuosidade, coragem, sagacidade e brutalidade, tornando-os personagens extremamente atraentes ao público leitor. Seus textos acabaram provocando nos leitores o fascínio por estas figuras quase épicas, se comparadas aos pouco atraentes oficiais da Marinha Britânica que perseguiam e capturavam os piratas. Neste sentido, a obra adquiria o status de leitura para o entretenimento do público, o que nos remete ao questionamento feito por Jill Liddington: “(...) se isto é meramente história-comoentretenimento, será que deveríamos lamentar a passividade dos milhões de espectadores?”. (LIDDINGTON, 2011, p. 43). Através dele, Liddington nos provoca a reflexão sobre o comportamento do público que assimila sem questionamentos algumas publicações de caráter “histórico”. No caso de A General History of the Pyrates, se o consideramos como um livro de História Pública, que “evoca a ideia de acesso irrestrito, isto é, de um conhecimento histórico franqueado a todos” (ALBIERI, 2011, p. 19), seu leitor não só o leu, como, em decorrência de sua passividade, não conseguiu compreender e se identificar com o propósito para o qual foi escrito, produzindo um segundo resultado, que não estava inicialmente planejado pelo autor. (...) ler não significa apenas submissão ao mecanismo textual. Seja lá o que for, ler é uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores dos textos ou dos produtores dos livros. Ler é uma resposta, um trabalho, ou, como diz Michel de Certeau, um ato de “caçar em propriedade alheia” (...). (CHARTIER, 1991, p. 214) Defoe procurou, por várias vezes, esclarecer quais eram seus objetivos ao escrever sobre piratas e para frisar onde deviam se encontrar na história: em lugar nenhum. Presumo não ser necessário nos desculparmos por atribuir o nome de História às páginas que se seguem, embora elas não contenham senão os feitos de um bando de ladrões. São a bravura e a estratégia na guerra que fazem com que ações mereçam ser relatadas. Neste sentido, pode-se pensar que as aventuras narradas aqui merecem esse nome. Plutarco é muito circunstancial quando

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descreve as ações de Spartacus, o escravo, e faz da vitória sobre ele uma das maiores de Marcus Crassus. (DEFOE, 2008, p. 15) Para finalizar estas reflexões, podemos dizer que, embora estejamos tratando de uma obra produzida mais de um século antes de a História nascer como Ciência, em A General History of the Pyrates, encontramos alguns aspectos que iriam se constituir nos paradigmas utilizados por historiadores do século XVIII. Como podemos ver no trecho selecionado e transcrito acima, Daniel Defoe faz questão de ressaltar que figuras como os piratas, por sua condição de verdadeiros párias sociais, não mereciam ter suas trajetórias e atividades relatadas como registro histórico. Para Defoe, somente as ações daqueles que os perseguiram e os derrotaram, os verdadeiros heróis, mereciam ser valorizadas. Contudo, o autor apresenta, apesar de declarar que estava fazendo História, características próprias de um escritor de literatura ficcional, campos que eram muito próximos antes da guinada científica da História. Sobre esta questão, Claudio Pereira Elmir faz a seguinte ponderação: (...) talvez seja possível afirmar que a reiterada tentativa de inscrever a história no campo das ciências, desde meados do século XIX, com a constituição dos paradigmas positivista e marxista, fez que, até certo ponto, a atenção dos historiadores descurasse dos aspectos de escritura também próprios a esse campo de saber. (ELMIR, 2004, p. 95) Por conta de suas opções narrativas, Defoe apresenta em seus relatos, alguns aspectos que são, hoje, alvos das críticas dos historiadores acadêmicos em relação à boa parte daqueles denominados de historiadores públicos. Dentre estes aspectos, está o estilo da narrativa – às vezes jocoso e extravagante –, que funciona como um chamariz para atrair, reunir e fidelizar leitores, apesar da questionável qualidade das obras. Jurandir Malerba se une à voz dos críticos: Essa história produzida por leigos costuma ser uma história muito ruim. A história social, processual, interpretativa, estrutural, analítica, crítica, não chega ao grande público, e sim a história paroquial, episódica, factual, pitoresca, anedótica, biográfica, das grandes batalhas, em rápidas narrativas dramáticas inflamadas. (MALERBA, 2014, p. 32) Para exemplificar o tipo de narrativa escolhida por Daniel Defoe para suas biografias, recorremos a sua descrição de Edward Teach – o famoso Capitão Barba-Negra: A barba era efetivamente negra, e ele a deixou crescer até um comprimento extravagante. De tão ampla, batia-lhe nos olhos. Costumava amarrá-la com fitas, em pequenos cachos, lembrando as perucas em estilo Ramilies, contornando com eles as orelhas. Quando em ação, ele trazia uma funda sobre os ombros, onde carregava à bandoleira três braçadeiras de pistolas, dentro dos seus coldres. E prendia mechas de fogo no chapéu, de cada lado do rosto, o que lhe dava uma tal figura – que naturalmente já era tão feroz e selvagem, pela expressão do olhar – que não se poderia imaginar uma fúria do próprio inferno mais aterrorizante. (DEFOE, 2008, p. 72) Se não podemos cobrar de Defoe, que escrevia em 1724, o rigor e a autocrítica que Malerba está cobrando de seus pares e daqueles que se propõem a escrever História, podemos, sim, criticar editores e organizadores que publicaram ou venham a publicar novas edições de A General History of the Pyrates sem a inclusão de notas e advertências ao leitor para que ele possa se inteirar melhor sobre o texto com que está entrando em contato. Isto, aliás, é o que o historiador Luciano Figueiredo faz com maestria e, por isto, a edição por ele organizada é a que recomendamos aos interessados nos escritos de Daniel Defoe. Se pensarmos friamente, na atualidade, a História produzida na Academia garante não mais do que uma fugaz legitimidade, ao reclamar a invasão do campo da história por produções de qualidade duvidosa: “A história não é mais exclusivamente dos historiadores. Agora há mais jogadores no jogo.” (REVEL, 2012). Como podemos ver, as reclamações são lançadas em um sentido que não está diretamente ligado a exclusividade ou ao domínio do campo somente por parte dos historiadores.

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Provavelmente nem poderiam tendo em vista o apoio recorrente que a interdisciplinaridade recebe no meio acadêmico. Essas reclamações estão muito mais direcionadas para as questões que envolvem a qualidade do material produzido e difundido. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos ver, os debates sobre o tema “História Pública” são relativamente recentes, se pensarmos em tempo histórico, e, mais recente ainda é o processo de intensificação da popularidade e difusão de obras classificadas como tal. A crescente globalização coloca cada vez um número maior de indivíduos em contato com diversos contextos históricos. Então, para contentar este público em crescimento, as demandas por produções do gênero se intensificam e cada marco de importantes acontecimentos que são expostos em grandes mídias de massa ou tem suas datas de aniversário recheadas por numerosas obras sobre os mesmos. Certamente, o crescimento do interesse de uma maior gama da população sobre história só pode ser visto como algo positivo. Porém, hoje, ainda não existe uma concordância ou um apoio mútuo entre historiadores acadêmicos e a maior parte dos historiadores públicos – a quantidade é pequena, mas, existem historiadores no meio acadêmico que se dedicam de alguma forma em contribuir na produção de História Pública. Foi possível concluir, a partir das reflexões que propusemos neste texto, que obras com características de História Pública são produzidas há bem mais tempo que propriamente do período em que se deu o surgimento do termo. A General History of the Pyrates de Daniel Defoe foi nosso exemplo para esta questão. Portanto, talvez seja possível dizer que se este debate já viesse acontecendo há mais tempo, as discussões hoje poderiam estar em uma situação diferente, possivelmente de maior cooperação entre as partes. Poderiam ser obtidas narrativas acessíveis a todos os públicos, porém, aliadas a pesquisas que não colocassem em cheque a qualidade do material produzido. Quanto maior é o público, maiores são as chances de termos preenchidas por novos apaixonados as salas de aula das faculdades de História. REFERÊNCIAS ALBIERI, Sara. História pública e consciência histórica. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de & ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p. 19-28. CHARTIER, Roger. Textos, Impressão e Leituras. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. DA COSTA, Nicássio Martins. Uma História dos Piratas: O Princípio da Construção do Estereótipo do Pirata Caribenho que Povoa o Imaginário Popular Contemporâneo. In: EPHIS - I Encontro de Pesquisas Históricas PUCRS, 2014, Porto Alegre. Suplemento Especial - I Encontro de Pesquisas Históricas - PUCRS (EPHIS). Oficina do Historiador. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014. p. 1669-1682. DEFOE, Daniel. A General History of the Pyrates. Edited by Manuel Schonhorn. Dover Publications, 1999. 800 p. DEFOE, Daniel. Uma História dos Piratas; seleção e apresentação à edição brasileira Luciano Figueiredo, trad. Roberto Franco Valente. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2008. 262 p. ELMIR, Cláudio Pereira. O enredo como categoria e como método de análise. In: A história devorada. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 95-109. FIGUEIREDO, Luciano. Apresentação a Edição Brasileira. In: DEFOE, Daniel. Uma História dos Piratas. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2008. p. 07-10. GARBER, Marjorie. Instintos Acadêmicos. Rio de Janeiro: UERJ, 2003. 174 p. JOHNSON, Charles. Uma História Geral dos Roubos e Crimes de Piratas Famosos: A Política Interna, a Disciplina de Bordo, as Façanhas e Aventuras de 19 Criminosos Célebres da Era de Ouro da Pirataria, (1717 – 1724); trad. Eduardo San Martin, 2ª ed., Porto Alegre RS, Artes e Ofícios, 2004, 430 p.

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LIDDINGTON, Jill. O que é história pública? In: Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p. 31-52. MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História?: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre Public History. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 15, p. 27-50, agosto 2014. REVEL, Jacques. Public uses of History: expectations and ambiguities. Social Sciense Research Council. Public Sphere Forum, 2012. Trad. Ismael Silveira Calvi. Disponível em: http://publicsphere.ssrc.org. Acesso em 02 de janeiro de 2015. SAN MARTIN, Eduardo. Clássico da historiografia popular (e um pioneiro do jornalismo histórico). In: JOHNSON, Charles. Uma História Geral dos Roubos e Crimes de Piratas Famosos: A Política Interna, a Disciplina de Bordo, as Façanhas e Aventuras de 19 Criminosos Célebres da Era de Ouro da Pirataria, (1717 – 1724); 2ª ed., Porto Alegre RS, Artes e Ofícios, 2004, p. 0713. ZAHAVI, Gerald. Ensinando História Pública no Século XXI. In: Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p. 53-62.

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O HORROR EM QUADRINHOS: A REPRESENTAÇÃO DA SHOAH EM MAUS (1986-1991) Thiago Soares Arcanjo 1 A FRÁGIL REPÚBLICA DE WEIMAR E A ASCENSÃO DO NAZISMO: O final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) abala as estruturas políticas do velho continente e, consequentemente, do restante do mundo. No caso alemão, o Tratado de Versalhes 2 e a criação forçada da República de Weimar 3 são as mais notórias consequências. O período inicial do pós-guerra é marcado por um aumento descomunal na taxa de desemprego. Tal panorama é agravado com a hiperinflação ocorrida em 1923. A instabilidade econômica e política proporciona o clima perfeito para a ascensão dos partidos de extrema direita (NASDP) e de extrema esquerda (KPD). O primeiro é fundado em 1919 por Anton Drexter. Com a entrada de Adolf Hitler em 1921 o partido é reformulado e assume contornos mais organizados, almejando a tomada de poder, primeiramente, por golpe e depois por voto popular. O processo que culmina na ascensão de Hitler é paulatino. 4Tal crescimento foi alcançado por intermédio de um aparato propagandístico perspicaz, por meio do qual os nazistas explanavam uma série de promessas dirigidas aos mais diversos setores sociais. O aumento da popularidade do partido nazista, ao lado dos ecos da Quinta-Feira Negra, juntamente com as maquinações e interesses de setores não tradicionais, acabam por pressionar o presidente Hindenburg a nomear o antigo Cabo austríaco e preso político Adolf Hitler como chanceler em 1933. TRANSFORMAÇÕES BIOLÓGICA.

SOCIAIS

E

O

ANTISSEMITISMO

COMO

FERRAMENTA

Com a chegada ao poder, Hitler e os seus começam com mudanças sociais importantes para preservação de um cenário propício para a criação do Reich de mil anos. Aqui as bases do estado totalitário nazista são forjadas. Geary (2010) salienta que o regime despótico alemão fundamentou sua política não em classes, mas sim por critérios raciais. 5 Tal critério adivinha da visão maniqueísta do governo nazista. Separar a sociedade por arianos e não arianos permitia não somente atribuir uma nova identidade ao povo alemão como também possibilitava a exclusão e futura aniquilação dos ditos “não sociáveis” para o governo. 6

1

Thiago Soares Arcanjo é licenciado em História pela UNISINOS e graduando em História Bacharelado pela UniLasalle. [email protected] 2 Tratado de Versalhes: “Segundo os termos desse tratado, as potências centrais (a Alemanha e a Áustria-Hungria) foram as únicas responsáveis pela erupção da guerra, em agosto de 1914.” (GEARY , 2010, p. 25). 3 “Não pode haver dúvida de que a República de Weimar nasceu sob circunstâncias difíceis, de fato numa situação de derrota e humilhação nacional. Isso por si só era suficiente para condená-la aos olhos da direita alemã, que acusou os políticos democratas e socialistas de ‘apunhalar a Alemanha pelas costas’”. (GEARY, 2010, p. 25). 4 Durante os anos de 1920, mais precisamente a partir de 1925, o partido nazista angaria mais eleitores, chegando a 27.000. Por sua vez, em 1928 /108.000, em 1929/176.000 eleitores, 1930/389.000, em 1931/806.000, e por fim, em 1932/1 414.000 de eleitores. (LENHARO, 2006). Esse aumento de eleitores representa a dissonância que assolava a sociedade alemã nos anos de 1920 e 1930. 5 “O fato de que a sociedade nazista tenha passado por mudanças significativas como resultado da política racial é indiscutível. As oportunidades de vida de seus cidadãos dependiam mais de sua raça e ‘pureza racial’ do que de qualquer outro fato isolado.” (GEARY, 2010, p. 82). 6 “Todos aqueles que os nazistas consideravam ‘doentios’ deveriam ser removidos da Comunidade Ariana ‘racialmente pura’. Assim, não foram apenas os judeus e os ciganos que se viram excluídos das maternidades e

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Este processo é reforçado por apropriações de antigos estigmas, dentre eles o antissemitismo. Lenharo (2006, p. 82) exemplifica que o antissemitismo já era exercido anteriormente por setores conservadores na Europa. Todavia, o movimento nazista transforma esse posicionamento originalmente tradicional em uma eficaz propaganda social. Segundo Rabinovitch (2004, p. 57), os nazistas construíram através das ações violentas dos grupos da SS, ou por meio dos decretos antissemitas, ou ainda pela propaganda ferozmente disseminada nos mais diversos meios de comunicação, ferramentas que possibilitaram o distanciamento dos “não arianos” da sociedade. Inicia-se, por meio desses procedimentos, o processo de desumanização dos “inimigos” do Reich, ao qual tornou possível a higienização e a futura aniquilação de milhões de vidas humanas. A PRODUÇÃO DE CADÁVERES: As transformações sociais encabeçadas pelos nazistas, tanto por sua propaganda, quanto pelo terror, conceberam as engrenagens do extermínio de milhões de vidas. Trata-se de um evento limite sem dúvida, mas como podemos nomeá-lo? Inicialmente, abandonaremos as expressões utilizadas pelos algozes do Terceiro Reich, tais como “solução final” e, principalmente, o nome de um dos principais campos de extermínio, Auschwitz. Empregar esses termos é tornar-se cúmplice da retórica nazista. 7 Pode-se utilizar o termo “genocídio” - criado em 1944, pelo jurista Raphaël Lemkin - porém acabaríamos por restringir “[...]. ao genos – família, tribo ou raça. Sabemos que a existência dos campos de extermínio, no coração da Europa, não afeta apenas este ou aquele grupo humano, mas altera, de modo radical, a própria idéia de humanidade.” (DANZIGER, 2007, p.1). Utilizar “Holocausto” ou “Churban” remeteria ao misticismo e até a banalidade desse evento limite. O primeiro tem origem bíblica, “[...]. que designa as práticas do sacrifício e da oferenda na devoção antiga.” (RABINOVITCH, 2004, p.18). Já o segundo, “[...]. significa, em hebraico, destruição e não é isenta de conotações religiosas, pois situa o massacre atual num plano divino de expiações.” (DANZIGER, 2007, p.3). Ou, ainda, a palavra holocausto confere que os eliminados dentro dos campos entregaram-se voluntariamente para a morte. Danziger (2007, p.2) salienta que “[...] relegar o empreendimento criminoso nazista ao plano místico e renunciar à tentativa de compreendê-lo como fenômeno histórico significa esquivar-se de um corajoso e doloroso exercício de autoconhecimento.” O termo mais aceito, difundido e doravante utilizado, será o “Shoah/Shoá” (devastação ou catástrofe em hebraico). Tal escolha, mesmo apresentando um caráter religioso, mostra-se a mais plausível por melhor exprimir “[...] o campo junto ao qual esse texto se inscreve, uma vez que ‘Holocausto’, terminologia que muitos ainda insistem em adotar, diz respeito a uma imolação, um sacrifício ou uma penitência, o que definitivamente não foi o caso.” (MÜLLER, 2008, p. 49). Os argumentos acima mencionados definem brevemente a complexidade do tema e a dificuldade em nomeá-lo. Mesmo com todos os embustes e maquinações dos nazistas, mesmo com a destruição e degradação de inúmeras vidas, mesmo com a destruição dos fornos crematórios ou até com a transformação de um crime cometido contra a humanidade em algo rentável, ainda há o testemunho dos que sobreviveram. (Idem ibidem). A LITERATURA DE TESTEMUNHO: Como foi referido anteriormente, mesmo com o aperfeiçoamento da produção da morte em escala, o testemunho ainda persiste. Apesar do refinamento do processo mortífero utilizado nos campos, os dos auxílios à infância, dos cuidados pós-natais, dos benefícios de bem-estar e dos ‘benefícios de inverno’, mas também todos os alemães que os nazistas consideravam oponentes políticos, os ‘doentes hereditários’, os ‘associais’ e os ‘criminosos habituais’.” (GEARY, 2010, p. 80). 7 “Cada vez que abordamos os terrenos tenebrosos do nazismo tropeçamos na questão da linguagem, da decisão léxica. As palavras aqui são desafiadas ao mesmo tempo a não desrespeitar as vítimas e aclarar, por certo, tenuemente, a noite na qual a pessoa está se arriscando a entrar.” (RABINOVITCH, 2004, p. 13).

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nazistas não conseguiram destruir a memória dos que sobreviveram. Neste ponto, é importante ponderar como é realizado o trabalho de pesquisa com o testemunho de tais vítimas. A literatura de testemunho - inserida no alvorecer do século XX, ou seja, na era das catástrofes busca o teor testemunhal presente em todas as obras 8. O conceito de testemunho, por sua vez, vincula uma experiência limite ao verbo, representando o ocorrido por meio de palavras. Pode-se ainda utilizar das palavras de Giorgio Agamben (2008, p.27) para melhor delimitar o que é o testemunho. Segundo o autor, podemos dividir em dois termos derivados do latim para representar tal conceito. O primeiro, testis, refere-se ao termo testemunha, carrega o significado de alguém que se coloca como um terceiro entre um processo ou litígio. Já o segundo conceito, superstes, é atribuído àquela pessoa que viveu uma experiência até o final da mesma, sendo assim capaz de dar o testemunho do ocorrido. 9 A literatura de testemunho, em suma, tem o intuito de representar 10 algo vivido utilizando a palavra escrita, ou ainda, interpretar as experiências vividas, em um processo que almeja reavivar a memória - a literatura de testemunho emprega como Waldmann (2010, p.86) apresenta uma espécie de acordo, ou ainda um pacto. Esse pacto, pode muitas vezes representar um grande trauma ocorrido em um evento limite. Deste modo, vemos que o testemunho busca dialogar com o passado, mesmo que esse não seja um exercício pacífico, ele apresenta um forte caráter aglutinador para as pessoas que sofreram individualmente, porém compartilham de uma dor coletiva. Nesse ponto, em relação a Shoah, vemos que a literatura de testemunho visa prestar um serviço de guardiã dessa lembrança. (SELIGMANNSILVA, 2009, p 3.). LITERATURA DA SHOAH: A literatura que aborda a Shoah pode ser dividida em dois momentos. O primeiro, voltado mais para uma busca de justiça dos crimes cometidos nos doze anos do regime nazista. Neste contexto, vemos a obra do químico italiano Primo Levi – É isso um homem? (1988). O segundo momento, caracterizase de forma mais individual, concebendo o processo, ou melhor, o ato de testemunhar como um meio de reorganizar o trauma, neste ponto o conceito de superstes fica mais acentuado. (Idem ibidem) É prudente compreender que o foco dessa literatura não se relaciona com a morte individual de cada vítima, mas sim no extermínio de várias minorias. Desse modo, cabe aos pesquisadores da Shoah, encontrar esses vestígios de memória e torná-los evidentes, a fim de transpor a barreira que trata a Shoah como algo inenarrável e intangível, confrontando diretamente a postura dos campos de calcinar a memória das vítimas que só podiam encontrar a liberdade - como escreveu Levy (1988, p.36) - “[...] pelas chaminés”. Cabe a esses estudiosos a árdua tarefa de compreender que há uma grande ânsia, uma 8

“Lembrando duas expressões que se tornaram famosas nos últimos anos, respectivamente de Hobsbawm e de Shoshana Felman, podemos dizer que à “era das catástrofes” corresponde a “era dos testemunhos”. As catástrofes, na mesma medida em que explodem o referencial simbólico do Iluminismo, revelando seus ocos e contradições, geram um gigantesco acúmulo de dor e morte. [...]. Por outro lado, o conceito de testemunho só foi receber maior atenção após a segunda etapa da “Guerra dos 30” anos que marcou o século XX.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 82) 9 Reforçando os conceitos apresentados na obra de Giorgio Agamben, Márcio Seligmann–Silva salienta que: “No teor testemunhal encontramos estes dois elementos – o testemunho da história no sentido de testis (equivalente ao paradigma da cena tribunal) e o testemunho da experiência, no sentido de superstes - , mas eles se apresentam em diferentes dosagens, variando conforme o autor e a ‘onda de memória’ em que o testemunho é feito.” (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 3. grifo do autor). 10 Gomes (2009, p.19), compreende que as produções artísticas de uma determinada época apresentam um discurso, ou ainda, uma memória de uma sociedade, sendo que as mesmas podem assumir com o tempo uma identidade de um grupo. Deste modo, esta pesquisa encontra-se inserida na História Cultural. O conceito aqui utilizado será o de representação, que segundo Muylaert (2011, p.1664), permite que os historiadores trabalharem melhor com o conceito de cultura, em contraponto com o conceito de mentalidade, possibilitando assim a compreensão das articulações históricas. Ou ainda: “Oriunda do latim, a palavra representatione designava o ato de expor, trazer à luz, reproduzir ou re-apresentar.” (MÜLLER, 2008, p. 49. grifo do autor)

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necessidade gritante de se fazer ouvir, de pronunciar, de escrever, sobretudo de não esquecer o que ocorreu dentro dos campos. Os testemunhos das vítimas foram motivados por inúmeras razões, Agamben (2008, p. 25-26), salienta que podem ser tanto por uma razão de vingança, quanto como registro da sobrevivência em si, ou ainda, por permitir que a memória não acabe no esquecimento. Outras nuances que englobam a literatura de testemunho serão abordadas juntamente com a obra de Art Spiegelman – Maus, na terceira e última parte desse artigo. Compreendendo que esta representa um trabalho autobiográfico em relação ao autor, mas que também representa uma biografia do pai sobrevivente do horror dos campos de concentração, tal obra pode ser compreendida como um forte teor testemunhal. Apresentando assim uma vasta possibilidade de análises pelas quais podem ser cruzados conceitos da literatura de testemunho com a teoria de quadrinhos. BREVE APRECIAÇÃO SOBRE AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: O uso das histórias em quadrinhos, no ambiente acadêmico, é muito recente. Anteriormente, esse produto literário, era visto com reservas, pelos setores intelectualizados da sociedade e considerados como leitura desnecessária, já que teria como efeito o afastamento das leituras escolares. (MOYA, 2013, p. 33). Por apresentarem elementos que não eram do imaginário brasileiro, as histórias em quadrinhos, não eram bem vistas, ora pelo governo – pois apresentavam ideais não nacionais –, ora pela igreja – tendo em vista que algumas páginas continham imagens consideradas obscenas ou demasiadamente violentas. No entanto, outros pesquisadores encararam “aquele cineminha de papel”, como definiu Cirne (2013, p. 41), com maior criticidade. Destacam-se dentre eles, um dos mais famosos quadrinistas, Will Eisner que estabeleceu padrões para analisar a mídia dos quadrinhos definindo técnicas ainda hoje utilizadas. Assim como Scott McCloud, autor que buscou de forma inovadora desvendar, desenhar e reinventar os quadrinhos. 11 Estes esforços foram necessários para que outros estudiosos entendessem que uma história em quadrinhos possui muito mais que meros balões e imagens cômicas. Mas um questionamento se faz imprescindível, o que é uma História em Quadrinhos? Will Eisner (2005, p. 5) compreende que as histórias em quadrinhos, são mídias visuais compostas de textos e imagens, que objetivam compor uma realidade, ou ainda, recriar a mesma. Scott McCloud, por sua vez, transcende os estudos realizados por Eisner, afirmando que o termo Arte Sequencial 12 não abrange a totalidade desse veículo midiático. Deste modo, McCloud, apresenta uma ampliação gradual do conceito. O pesquisador desconstrói e reconstrói o termo consagrado por outros estudos, chegando a um mais preciso e hermético. Ele compreende que as histórias em quadrinhos, são: “Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador.” (MCCLOUD, 1995, p. 9). MAUS POR ART SPIEGELMAN: O TEMPO QUE NÃO PASSA. Art Spiegelman 13 consagra-se como artista por seu traço inventivo e sua narrativa provocadora. É com a publicação da história intitulada Maus - anteriormente rascunhada na Funny

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Já no Brasil, destacam-se os nomes de Álvaro de Moya, Antonio Luiz Cagnin, Moacy Cirne, Sonia Bibe Luyten e Waldomiro Vergueiro. Estes autores e autoras, por meio da abertura de pesquisas e disciplinas, problematizaram os quadrinhos nas principais universidades do Brasil, desconstruindo de forma exemplar os estereótipos depreciativos que os quadrinhos apresentavam. 12 Segundo Eisner, a arte sequencial pode ser definida como “[...]. um veículo de expressão criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística e literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia.” (EISNER, 1989, p. 5) 13 “Spiegelman, nascido em Estocolmo, imigrou com seus pais bem garoto para os Estados Unidos. Publicou vários trabalhos de cartuns no New York Times, Playboy, e The Village Voice. Tornou-se coeditor e colaborador constante da revista underground Raw, e pelo seu trabalho em Maus recebeu o Pulitzer, além do prêmio Yellow Kid em Lucca e também o Prêmio Editorial Playboy, em 1982. Resta acrescentar que Maus não é uma narrativa

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Animals em 1972 - que o artista alcança maior notoriedade. A primeira parte da obra foi lançada em 1986 e a segunda parte em 1991. No Brasil o primeiro volume foi lançado em 1986 e o segundo em 1995. Somente em 2005 que a obra chegou as principais livrarias com as duas partes reunidas no mesmo HQ. Maus é impregnado de tramas e camadas complexas, por um lado sua criação advém da tentativa de aproximação de Spiegelman com seu pai, Vladek, sobrevivente dos campos de concentração e de extermínio. As conversas sobre a juventude de Vladek, sobre como ele conheceu Anja (sua futura mãe), como os dois sobreviveram aos primeiros momentos da perseguição nazista, como passaram seus dias no campo de Auschwitz e, por fim, sua libertação. Vemos o teor testemunhal e a presença de um passado imerso no presente da vida familiar dos personagens da obra logo na cena de abertura. O recurso gráfico e narrativo empregado por Spiegelman, utiliza a prática de conquistar a atenção e reter a mesma ao longo da história, isso provoca emoções fortes, permitindo que o leitor identifique-se com os fatos mostrados na cena de forma afetiva. 14 Tal técnica desperta certa empatia do leitor que deverá ao longo do texto partilhar das experiências/sensações sejam elas boas ou ruins. 15 Nas primeiras páginas vemos uma passagem da infância de Art, na qual, o futuro quadrinista patina com amigos, em pleno verão nova-iorquino, em 1958. Subitamente um de seus patins quebra e os outros meninos deixam-no para trás. Triste, o jovem Art começa a chorar e vai ao encontro de seu pai que está na frente de casa consertando algo. De forma brusca, Vladek pergunta o que aconteceu, e seu filho relata brevemente o ocorrido. Vladek diz: “Amigos? Seus Amigos... Se trancar elas em um quarto sem comida por uma semana... Aí ia ver o que é amigo!..” (Spiegelman, 2005, p.6.grifo do autor). Nesta passagem, segundo Curi (2009, p.85), o quadrinista almeja “[...] mostrar para o leitor (e para si) até que ponto sua existência foi influenciada pela sobrevivência do pai a Auschwitz.”.

Fonte: SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. 2005. p. 5-6.

miserabilista, mas tem aquele humor amargo e crítico que caracteriza os autores judeus.” (GOIDANICH, 2011, p. 446, grifo do autor) 14 “Nos quadrinhos, o controle sobre o leitor é conseguido em dois estágios: atenção e retenção. A atenção se consegue com imagens provocantes e atraentes. A retenção é obtida através de uma organização lógica e inteligível das imagens.” (EISNER, 2005, p. 55). 15 “Talvez a mais básica das características humanas seja a empatia. Essa peculiaridade pode ser usada como o principal condutor na transmissão de uma história. O narrador pode contar com ela como um de suas ferramentas do narrador.” (EISNER, 2005, p. 51). E ainda: “Há uma coisa muito particular que acontecesse ao leitor enquanto ele ‘partilha’ a experiência do ator. A palavra-chave é ‘partilhar’ porque os sentimentos do protagonista são compreensíveis para o leitor, que teria emoções similares nas mesmas circunstâncias.” (EISNER, 2005, p. 90).

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Art Spiegelman com a criação de Maus recupera as memórias de seu pai Vladek – memórias essas, que estão inseridas em uma memória coletiva, a memória dos sobreviventes da “Shoah” – desencadeando inúmeras lembranças pessoais. Quando Vladek é interrogado sobre seu passado, outras memórias afloram. A infância de Art e o relacionamento com seu pai é revisitado/relembrado com o projeto do quadrinista. Neste sentido, a obra de Spiegelman evoca ao mesmo tempo, um passado que não é seu, ancorado nas lembranças do próprio pai, e o seu próprio passado ligado a esta memória que não é sua (HALBWACHS, 1990, p. 54). Esse processo, como salienta Halbwachs (1990, p. 26), é visto quando realizamos o ato de lembrar, sempre quando o fazemos, ficamos imersos em um passado dividido com outras pessoas, ou seja, nunca estamos totalmente sozinhos. Mesmo que essas memórias não tenham sido vivenciadas pelo próprio artista, elas são o seu legado, ou como afirma Halbwachs, elas são emprestadas, ou ainda, são como “[...]. sinais reproduzidos através do tempo [...]” (HALBWACHS, 1990, p. 55). Essa transmissão de herança é representada nas cenas inicias e ficam mais evidentes no decorrer da leitura. Desse modo, o processo de recordação que perpassa a obra ancora-se indubitavelmente no tempo presente (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 5). Valle (2011, p. 4), reforça tal afirmação salientando que a reconstrução do passado – permitida pela escrita de Maus – inicia-se com reflexões e informações que partem do presente. Por fim vemos que “O testemunho também é, de certo modo, uma tentativa de reunir os fragmentos do ‘passado’ (que não passa), dando um nexo e um contexto aos mesmos” (SELIGMANSILVA, 2005, p. 87). Este recurso demonstra a qualidade artística tão presente na obra e denota a presença de seu teor testemunhal. Nesta passagem, de apenas duas páginas, o legado de Auschwitz é ratificado na vivência da família, comprovando que a passagem pelos campos de morte não ficou encapsulada no passado, seus ecos reverberam no presente, afetando todos a sua volta. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A partir das leituras e reflexões aqui realizadas consideramos que é possível representar os horrores da “Shoah” por meio das histórias em quadrinhos. A obra realizada por Art Spiegelman enquadra-se, pertinentemente, nas produções literárias de testemunho, sem cair na falácia da banalização, ou ainda, no processo hollywoodiano de glamorização dos eventos ali ocorridos e, sobretudo, sem transformar em heroicas ou espetaculares, as experiências vividas pelos personagens da obra. As páginas analisadas apresentam a história de Art e de Vladek de forma gráfica e visceral, demonstrando que há um eco persistente dos traumas vivenciados pelo pai de Spigelman e a transmissão desta memória ao filho. Eis o trunfo de Maus, narrar de forma tão profunda, um acontecimento por vezes saturado, de modo crítico e atual. Comprovando que, por meio dos quadrinhos, pode-se sim representar o processo de construção do horror, sem cair nas armadilhas do sensacionalismo. FONTE: SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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“O QUE PELOTAS NÃO TEM E DEVERIA TER”: OS PROBLEMAS URBANOS DA PRINCESA DO SUL SOB A ÓTICA DA IMPRENSA Mariana Couto Gonçalves 1 A cidade de Pelotas, localizada no interior do Rio Grande do Sul, tornou-se próspera a partir do estabelecimento da primeira charqueada no final do século XVIII pelo português José Pinto Martins 2. A produção de carne salgada passou a ser a principal fonte econômica da urbe até meados do século XX. Ademais, proporcionou a ocupação de moradores e contribuiu para o desenvolvimento de uma urbanidade com “ares europeus” através de uma elite 3 aristocrática e escravocrata. No que tange aos aspectos urbanos, no decurso das décadas de 1840 e 1850, observa-se algumas construções significativas para o desenvolvimento da urbe pelotense: o início da construção do Mercado Público (1845); iluminação pública a partir de lampiões a azeite (1846); a fundação da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas (1848); a fundação do Asilo de Órfãs (1848); criação da imprensa (1851); inauguração do cemitério da Santa Casa (1855); da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1857); entre outras. Mario Osório Magalhães (1993, p.108) aponta que Pelotas alcançou o seu auge entre os anos de 1860 a 1890, constatando isso a partir da pujança econômica e social do período, por intermédio do acúmulo e da circulação monetária proveniente do charque. Igualmente, nesse período ocorreu a modernização do perímetro urbano, com a iluminação a gás, os bondes com tração animal, o abastecimento de água através da caixa d’água e de quatro chafarizes importados da Europa, enfim, a riqueza proveniente do charque gerou melhorias para a cultura, o lazer e o cotidiano da elite pelotense. Neste momento, Pelotas recebeu a alcunha de Princesa do Sul a partir de versos do poeta Antônio Soares da Silva, recitado em 1863 e atualmente incorporado à bandeira da cidade. Com todas essas particularidades, Pelotas tornou-se convidativa e atraiu diversos visitantes como, por exemplo, o naturalista Auguste Saint-Hilaire, o Imperador Dom Pedro II, a Princesa Isabel, o artista Jean-Baptiste Debret, o mercador Nicolau Dreys. A passagem deles contribuiu para aumentar o prestígio de Pelotas frente a outras cidades da Província, proporcionando a vinda de diversos estrangeiros que atuavam em diversas áreas – pintores, fotógrafos, professores, escritores, redatores, comerciantes, maestros, construtores – ampliando o leque e a troca cultural na cidade. Como destaca Marcos Hallal dos Anjos (2001), a comercialização de produtos e a presença de estrangeiros era vista como sinônimo de qualidade. Além disso, em certa medida, os estrangeiros foram os responsáveis por manter o vínculo cultural de Pelotas com a Europa. A concentração de capital, oriunda das charqueadas, possibilitou um diversificado número de manufaturas e oficinas artesanais. A cidade contava com uma produção de sabão, couro, tecidos, cervejas, lãs, chapéus, vidrarias, funilarias, produtos químicos e farmacêuticos, oficinas e fábricas de carruagens, entre outros serviços. Com isso, Pelotas formava no final do século XIX, juntamente com Rio Grande, o principal pólo industrial do estado. Todavia, com a concorrência do contrabando, a falta de uma política de proteção industrial e a crise das charqueadas – ocasionada pela Abolição dos escravos (1888) – levaram a cidade a uma estagnação econômica intensificada com o advento da Proclamação da República (AQUINI, LONER, 2012, pp.112-115). Com isso, a urbe conheceu uma nova fase econômica. Se no século XIX contava com 43 charqueadas (LOPES NETO, 1912), na virada do século XX, o declínio dos estabelecimentos era 1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharel em História pela Universidade Federal de Pelotas. Bolsista CAPES/PROSUP. E-mail: [email protected] 2 Ele dedicou-se a produção de charque no nordeste do Brasil, após a grande seca ocorrida nos anos de 1777, 1779 e 1792, e decidiu ir para o extremo sul do Brasil onde instalou a primeira charqueada pelotense. 3 Segundo Heinz (2006, p. 07-15), o termo elite é empregado em um sentido amplo e descritivo, fazendo alusão a grupos ou categorias que aparentam ocupar o “topo” de estruturas de autoridade ou distribuição de recursos. Sendo assim, podemos apontar como elite, por exemplo, pessoas influentes na sociedade, dirigentes políticos, presidentes e vice-presidentes das Províncias, entre outros, enfatizando a distinção social que esses indivíduos possuem perante os outros que não compõem essa camada social.

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aparente: em 1911, 16 charqueadas; em 1919, apenas 5 saladeiros (GILL, 2007). Apesar desse decréscimo, Pelotas conseguiu articular algumas propostas econômicas – como a produção arrozeira e indústria conserveira – somadas com o aumento populacional, melhorias urbanas e criações de indústrias. Tendo em vista essas transformações econômicas, políticas, culturais, urbanísticas e sociais da urbe, o presente artigo tem como objetivo analisar a série de crônicas intituladas “O que Pelotas não tem e deveria ter” publicada no jornal Opinião Pública a fim de compreende os diferentes discursos sobre a modernização e o progresso de Pelotas no início do século XX. A Intendência Municipal buscou contemplar essas melhorias urbanas através de duas publicações: Álbum de Pelotas 4 e do Almanach de Pelotas 5 . Ambas apresentavam fotografias, artigos, textos, anúncios, demonstrando as benfeitorias da administração pública. A edição de 1916 do Almanach apresenta um artigo intitulado Progresso de Pelotas, na qual evidencia os aspectos progressistas que a urbe contemplava, afirmando que elas estavam de acordo com as melhorias urbanas que aconteceram no Rio de Janeiro – a capital passava por uma série de transformações a partir do governo de Rodrigues Alves (1902-1906) e do prefeito Pereira Passos (1906). Não obstante, o Album de Pelotas publicou uma série de fotografias para contemplar o progresso que a cidade passava. Para o presente artigo, será utilizada apenas uma imagem com o objetivo de servir como base na análise da imprensa sobre as melhorias de Pelotas.

Figura 01: Vista panorâmica da Praça da República, o mais belo e formoso jardim da América do Sul

(35 x 10 cm). Fonte: Álbum de Pelotas (1922). Acervo: BPP É possível observar, na figura 01, alguns dos principais elementos que contemplam o progresso pelotense, tais como: os jardins, a praça, a pavimentação, o calçamento e a iluminação. No entanto, outros elementos podem ser compreendidos como sinônimo de modernidade, mas que a imagem não

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A ideia do Álbum de Pelotas nasceu a partir dos festejos em torno do centenário da Independência do Brasil (1822-1922). Em 1921, o álbum começou a ser organizado por Clodomiro C. Carriconde a fim de contribuir para a exposição que seria realizada na cidade do Rio de Janeiro em virtude da data comemorativa. A obra contou com o apoio do governo municipal e diversos colaboradores de prestígio local. Para a sua confecção, o álbum esteve orçado em 35.000$000 demonstrando o caráter luxuoso que a obra teria. Entre os meses de outubro e novembro de 1921 teve início os trabalhos fotográficos contando com a colaboração do fotógrafo Carmello dos Santos Lopes, porém na publicação não consta o seu nome. A capa do álbum é dura, de cor vermelha e com letras douradas. A obra apresenta o formato 31 x 45 cm, contemplando 255 páginas e 473 fotografias impressas em papel acetinado, levemente brilhoso e com uma espessura delicada. O material foi impresso em tipografia com clichês fotográficos pela Livraria do Globo de Porto Alegre. 5 O Almanach de Pelotas foi publicado entre os anos de 1913 e 1935.

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contempla: o ruído e a presença de indivíduos, o movimento, os automóveis, a presença do bonde e os trilhos e postes para o funcionamento dos bondes (MICHELON, 2004, pp.125-146). Esta imagem simbolizava o poder econômico, político e intelectual do século XIX, uma vez que apresenta os casarões dos charqueadores inspirados na arquitetura europeia ao redor da praça, a Prefeitura Municipal e a Bibliotheca Pública Pelotense. Ademais, o local trás consigo a ideia de socialização de seus indivíduos, ainda mais em uma cidade interiorana na qual um passeio obrigatório para moças e rapazes era desfrutar das belezas naturais da praça. Nesse sentido, a praça tornou-se o centro da comunidade e por isso os principais acontecimentos da urbe eram ali realizados (PARADEDA, 2003). Apesar disso, o que se torna mais evidente na imagem acima é a arborização da praça, referenciada até mesmo na legenda da imagem. Os seus jardins atuavam como espaços de sociabilidade, abrigando a população do calor e cumprindo aspectos estéticos. Esta questão foi tão representativa que ganhou destaque no Almanach de Pelotas: “o arborisamento, que se vai estendendo pelo centro e arredores, de maneira encantadora e útil, dando à população, desde já e para o futuro, o prazer de gozar as tardes e as noites amenas do estio sub tagmine fage” (ALMANACH DE PELOTAS, 1916, p.331). O ajardinamento da Praça da República e das demais praças da cidade era uma preocupação constante dos intendentes, pois trazia reflexos positivos ou negativos para o governo municipal. Para contribuir com a sociabilidade da população e para a modernização do entorno da praça a iluminação era primordial, o que também fica destacado na imagem. Desde o decênio de 1840, Pelotas contava com iluminação pública, nesta época, dava-se pelos lampiões a base de azeite e óleo de mocotó. Contudo, em 1915, com a criação da The Rio Grandense Companhia Light & Power Syndicate Limited a iluminação passou a ser elétrica e ela passou a ser indispensável em uma cidade que pregava o progresso e a modernidade. Para coroar o visual da Praça da República, além dos jardins, dos bancos de pedra e da iluminação, no centro encontra-se localizado um chafariz importado da França conhecido como “Fonte das Nereidas”, instalado em 25 de junho de 1873. Durante o século XIX, o poder público importou uma caixa d’água e quatro chafarizes da França para embelezar a cidade. O chafariz francês demonstra a opulência do século anterior na qual a importação de produtos para o poder público era uma constante, assim como para o lazer dos pelotenses, simbolizando o ideal europeizado que os pelotenses apreciavam. No mesmo sentido, uma cidade que buscava aspectos europeus necessitava de pavimentação e calçamento, imprescindíveis para a locomoção dos meios de transporte, escoamento da água e para facilitar o trânsito da população. “A pavimentação representava a imagem da salubridade, do conforto e da modernidade da cidade” (PARADEDA, 2003, p.188). Não obstante, a imagem referida acima não contempla os bondes e os automóveis. Esses veículos “conjugaram ordem e progresso no movimento do ir e vir da cidade e estabeleceram sua presença na indiscutível proeminência dos mecanismos que servem, que se designam indispensáveis e que dominam a paisagem e a corrente da vida [...]” (MICHELON, 2001, p.260). O bonde apresenta-se como um transporte coletivo e o carro como um meio individual, reforçando a disparidade social que existia em Pelotas, a eterna oposição entre a elite e os “populares”. A partir dos meios de transportes, houve um crescimento nas condições dos indivíduos circularem com mais agilidade entre o bairro e o centro. Clodomiro C. Carriconde – autor e editor do Álbum de Pelotas – ao selecionar as fotografias, cria uma narrativa com base nos aspectos urbanos e modernos da Princesa do Sul: a iluminação, pavimentação, meios de transporte, prédios, arborização, entre outros, busca construir sentidos. Ao analisar apenas essa fonte histórica, o historiador/leitor pode ficar com a sensação que a cidade vivia em harmonia e todo esse processo de urbanização e melhoramentos chegou a todos os pelotenses. No entanto, aprofundando a análise na imprensa a partir de crônicas e notícias é possível contrastar a narrativa imagética. O jornal Opinião Pública, circulou na cidade durante os anos de 1896 a 1962, foi fundado por João Moura (gerente) Theodosio de Menezes (redator) e Arthur Hameister (noticiarista). Apresentandose como um “órgão dos interesses gerais”, o periódico noticiou diversas matérias sobre a cidade de

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Pelotas, ressaltando uma parte do cotidiano pelotense entre o final do século XX e até a metade do século XX. No ano de 1920, o jornal publicou uma série de seis crônicas – entre os dias 13 de março a 18 de março – intituladas “o que Pelotas não tem e deveria ter”. Nessa série de artigos, o jornal se ocupa de apresentar ao leitor as precariedades que a cidade apresentava. Primeiramente, eles afirmam que seus apontamentos não atingem diretamente a figura do Intendente Cypriano Barcellos, mas sim a administração na qual ele é chefe. “Os homens públicos estão todos sujeitos a uma crítica, que deve ser elevada e comedida, visando unicamente o bem geral” (OPINIÃO PÚBLICA, 13/03/1920, p.01). Ademais, a publicação ressalta que o seu papel enquanto periódico diário era assinalar os senões administrativos, lembrar as medidas prometidas e ponderar as soluções apontadas. Por conta disso, afirmavam que eles apenas demonstram as falhas observadas e possibilitam algumas soluções, em sua ótica, justas. “Não nos movem interesses subalternos, não somos pretendentes a coisa alguma, podendo, portanto, expressar-nos com isenção de ânimo. Cingimo-nos à diretriz traçada por este jornal, desde o primeiro número” (OPINIÃO PÚBLICA, 15/03/1920, p.01). A partir dessa premissa, o periódico começa a discorrer sobre os aspectos urbanos da Princesa do Sul. A primeira crítica fica por conta do calçamento, segundo a publicação, a cidade era uma das mais progressistas do país e, por conta disso, a sua visualidade e o deslocamento dos transeuntes era importante para reforçar tal argumento. Na medida em que a administração pública deixa isso de lado, compromete o discurso das melhorias urbanas e do progresso pelotense. Na ótica do jornal, a urbe “apresenta um aspecto desolador no que respeita ao calçamento. O deplorável estado das vias públicas se acentua de ano para ano, sem uma providência” (OPINIÃO PÚBLICA, 13/03/1920, p.01). A presença da pavimentação e calçamento também eram imprescindíveis para a locomoção dos meios de transporte, escoamento da água e para facilitar o trânsito da população. “A pavimentação representava a imagem da salubridade, do conforto e da modernidade da cidade, apesar de ser, nas décadas de 1920 e 1930, restrita ao centro da cidade” (PARADEDA, 2003, p.188). Além disso, a pavimentação e o calçamento auxiliavam no deslocamento dos transeuntes pela a cidade, contribuindo para o embelezamento da urbe e facilitando a circulação de bondes e carros. No mesmo sentido, a Opinião Pública critica o acúmulo de lixo e capim nas vias públicas, impossibilitando o deslocamento dos indivíduos e influenciando negativamente no embelezamento de Pelotas. Apresentando os “deslizes da administração municipal” (OPINIÃO PÚBLICA, 15/03/1920, p.01), eles destacam que o saneamento estava a céu aberto, ou seja, era necessário reformar as sarjetas e extinguir as valetas a fim de evitar a proliferação de doenças que acometiam as crianças e os adultos – a cidade já houvera sofrido com o surto de gripe espanhola em 1918. Ademais, enfatizam o problema no que tange a iluminação pública, na medida em que eles observam que a cidade encontrava-se completamente às escuras. Portanto, apesar de Pelotas se distinguir das demais cidades pelos seus aspectos “morais” – aristocracia, cultura, sociedade – a materialidade da cidade estava comprometida. Reiteradamente o periódico apresenta como pressuposto o fato da população contribuir com impostos que deveriam ser destinados as melhorias urbanas como, por exemplo, as elencadas por eles. “No entanto a verba para a iluminação pública existe. Não foi suspensa. E porque não é aplicada?” (OPINIÃO PÚBLICA, 16/03/1920, p.01). Para finalizar, na última crônica publicada, o jornal opta por rebater as críticas apresentadas pelo jornal Diário Popular – jornal fundado em 1890 e após a saída de seus fundadores, que criaram a Opinião Pública, alinhou-se ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) – seu oposicionista e o “porta-voz” da administração municipal. O Diário Popular reconhece o problema do calçamento da urbe, mas afirma que o Intendente está fazendo o possível para sanar esses pormenores. No que tange a iluminação pública, o “porta-voz” da intendência afirmou que o problema estava com a empresa que fornecia a energia – a Light & Power – e não a falta de investimento municipal. Para a Opinião Pública fica claro que suas queixas e críticas foram confirmadas pela Intendência, na medida em que o Diário Popular as responde e confirma que a urbe passava por alguns problemas urbanos. “Cumpre-nos apresentar ao ilustre e honrado Dr. Intendente os nosso mais sentidos pêsames

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pela inabilidade da pena que defendeu a sua honesta administração” (OPINIÃO PÚBLICA, 18/03/1920, p.01). A partir desses apontamentos, percebe-se que os discursos – da imprensa local e das imagens do Álbum e do Almanach – são completamente diferentes e opostos, por isso a necessidade de compará-las e percebê-las enquanto discursos criadores de exaltação e de invisibilidade. A partir da análise das crônicas intituladas “o que Pelotas não tem e deveria ter”, torna-se possível vislumbrar uma outra Princesa do Sul, diferente da representada na figura 01 que a Intendência Municipal buscou “silenciar”. Ao analisar apenas as imagens, o historiador pode ficar com a sensação que a cidade vivia em “harmonia” e todo esse processo de urbanização e melhoramentos chegou a todos os cidadãos, sem embates de ideias e conflitos. As crônicas, por intermédio de uma linguagem mais acessível, apresentam as sensibilidades e representações sobre as sociedades em uma determinada época. Deste modo, podese perceber a história sob outro aspecto, sob outro olhar, a partir do “rés-do-chão”. FONTES: Bibliotheca Pública Pelotense: - Almanaque de Pelotas, Pelotas/RS, 1916. - Álbum de Pelotas, Pelotas/RS, 1922. - Opinião Pública, Pelotas/RS, 1920. - Revista do 1º Centenário de Pelotas, Pelotas/RS, 1912.

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REPRESENTAÇÕES DO IMPÉRIO DO BRASIL NO PERIÓDICO PORTENHO EL MOSQUITO DURANTE A OCUPAÇÃO DO PARAGUAI PÓS-GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA (1870-1876) Bruno Félix Segatto 1 INTRODUÇÃO A guerra entre Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) e Paraguai, mais longo e sangrento conflito armado ocorrido na história latino-americana, já foi objeto de estudo de uma vasta bibliografia, ainda que se tenha dado maior ênfase aos anos de duração do conflito, sendo relegado a um segundo plano o período de seis anos que se seguiram à morte de Solano López em Cerro Corá. Embora oficialmente terminada em 1870, a Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai seguiu influenciando o cenário político argentino, pois as consequências econômicas, sociais e políticas daquele conflito se faziam sentir. Ocupado política e militarmente até 1876, o país derrotado foi cenário de intensas disputas entre as facções surgidas com o fim da guerra, as quais protagonizaram tentativas de golpes de Estado e insurreições ao compasso dos desacordos entre as autoridades aliadas em solo paraguaio. Os eventos ocorridos no turbulento Paraguai pós-Cerro Corá tiveram considerável repercussão na capital argentina, onde a imprensa os utilizava com o fim de exercer influência nas disputas entre nacionalistas e autonomistas, as duas principais facções portenhas surgidas durante a década de 1860. Este trabalho, parte de uma pesquisa que se encontra em andamento, visa a contribuir para o estudo da política e da imprensa argentinas durante o Pós-Guerra da Tríplice Aliança (1870-1876) através da análise das representações do Império brasileiro presentes nas páginas do periódico satíricoilustrado El Mosquito, de modo a perceber como este jornal se inseriu nas disputas políticas em voga na Argentina daqueles anos. BUENOS AIRES, IMPRENSA E OPINIÃO PÚBLICA Os anos que se seguiram à derrota de Juan Manuel de Rosas em Caseros, em 1852, estiveram marcados pela proliferação de periódicos nas capitais das províncias que passariam a compor a Confederação Argentina e o Estado de Buenos Aires. Hilda Sabato considera que nas décadas seguintes os jornais se converteram em uma peça chave do sistema político, pois era através deles que o diálogo e a discussão entre personagens e grupos políticos tinham lugar. Os diários foram porta-vozes e foros daqueles que competiam pelo poder e cada vez mais também o foram de qualquer indivíduo que aspirasse a fazer ouvir sua voz e exercer influência na cidade (SABATO, 2007, p. 195). Ainda conforme a historiadora, La prensa siguió siendo un actor central de la vida política. Los principales órganos partidarios adaptaron sus formatos y sus contenidos para ampliar su alcance y, si bien se mantuvo la práctica de publicar algunos periódicos de combate, los diarios de mayor circulación se convirtieron en artefactos bastante más complejos. (SABATO, 2012, p. 212). No entanto, Fábio Wasserman destaca que, com a queda de Rosas, não passou a vigorar na província de Buenos Aires uma ampla e quase irrestrita liberdade de imprensa, pois uma série de práticas coercitivas e de cooptação da atividade jornalística foi utilizada pelos governos bonaerenses ao longo da década de 1850. Ao analisar a relação entre imprensa e poder político portenhos o autor considera que a experiência política local se caracterizou por gozar de “una extendida libertad de imprenta dentro de ciertos limites infranqueables, siendo el más obvio de éstos la reivindicación del pasado rosista que concitaba un unánime repúdio público.” (WASSERMAN, 2009, p. 146).

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Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista CNPq.

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Miguel Angel de Marco afirma que, após a vitória portenha na batalha de Pavón em 1862, se registraram importantes mudanças nos órgãos de imprensa de Buenos Aires e também das províncias do interior: Nuevas tecnologías contribuyeron a mejorar las tareas de impresión, mientras la adaptación a las innovaciones del periodismo europeo y norteamericano produjeron cambios en el modo de tratar las noticias y llamar la atención de los lectores. Además, se registró la aparición de semanarios satíricos muy bien ilustrados, como consecuencia del perfeccionamiento del arte litográfico y de la calidad y chispa de los dibujantes, y el advenimiento de revistas culturales y de interés general igualmente beneficiados por este sistema. (DE MARCO, 2006, p. 247). A respeito da atuação da imprensa e dos movimentos associativos em ascensão na segunda metade do século XIX, Hilda Sabato conclui: La prensa y el movimiento asociativo se consideraban, además, los pilares del mundo moderno y del progreso, y por lo tanto, se veían a sí mismos como partícipes de la misma empresa civilizatoria. Estaban convencidos de su papel como forjadores de la opinión pública y desde ese lugar promovieron y contribuyeron a gestar un conjunto de prácticas de movilización que fueron características de la vida porteña. (SABATO, 2007, p. 196). A respeito da noção de “opinião pública”, Jürgen Habermas (2014) ressalta que a esfera pública é resultado de um processo gradual que ocorre em simultaneidade à consolidação dos Estados nacionais de base territorial e que está vinculado à consolidação do capitalismo. Este processo é marcado pelo afastamento entre sociedade e Estado, na medida em que aquela se contrapõe à autoridade deste. A crítica se apresenta, então, como “opinião pública”, não é mais exercida em caráter privado, sendo a imprensa uma instância privilegiada de interpelação do poder público. A imprensa ganhou cada vez mais espaço na sociedade portenha pós-Caseros, havendo quarenta e três periódicos circulando pela capital em 1873, os quais eram impressos nos vinte e seis estabelecimentos impressores da cidade (DE MARCO, 2006, p. 337). Hilda Sabato, por sua vez, apresenta os seguintes dados a respeito do público alfabetizado da capital: em 1869, 50% dos homens e 43% das mulheres sabiam ler e escrever, contabilizando um total de 63% da população adulta da cidade (SABATO, 2007, p. 186). Reforçando a ideia do intenso crescimento econômico por que passou a capital portenha durante as décadas pós-1852, Roy Hora afirma que em 1887 existiam na cidade aproximadamente 100 livrarias e 200 cafés (HORA, 2010, p. 132). Enquanto os cafés constituíam os espaços de sociabilidade por excelência das elites letradas urbanas, as pulperías eram um dos ambientes de sociabilidade mais frequentados pela população plebeia da cidade e do campo. A pulpería era o estabelecimento comercial onde se ofereciam bebidas, alimentos, tecidos, artigos de mercearia, roupas, tabaco, cigarro, papel e também periódicos, tal como se percebe na litografia de 1864 de León Pallière:

Imagem 1: Interior de pulpería, litografia de León Pallière, 1864 (HORA, 2013, p. 139).

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Nesta litografia, o pulpero é retratado lendo um número do diário portenho La Tribuna, o que evidencia o quanto o hábito da leitura de jornais havia ultrapassado os círculos letrados urbanos. A transmissão de informações, ademais, não se dava somente pelas leituras dos periódicos, fossem individuais ou coletivas, mas também por meio da oralidade, prática comum em ambientes em que predominava o analfabetismo (MOREL, 2010, p. 67). Graciela Batticuore e Klaus Gallo (2013) afirmam que entre as décadas de 1840 e a de 1870 as práticas de leitura e escrita haviam se tornado extensivas a um conjunto variado e heterogêneo da população da cidade e da província. Conforme os autores, Las tasas de alfabetización habían aumentado considerablemente como resultado de las políticas educativas que sobrevinieron a partir de Caseros, lo que explica en parte no solo los periódicos sino también los libros y en general los impresos estuvieran más próximos o al alcance de un público que comenzaba a crecer y a diversificarse. Y que se formaba en la cultura de las librerías porteñas y las bibliotecas populares distribuidas en la ciudad o las afueras, y a las que acudían también iletrados para hacerse leer (BATTICUORE; GALLO, 2013, p. 338). Era nesta Buenos Aires em pleno processo de transformação social, econômica e política, marcada por uma cultura de mobilizações de uma esfera pública em formação, por intensas disputas que frequentemente transbordavam para episódios de violência e pela intensa atividade de uma imprensa que contava com um grande público leitor que os eventos ocorridos no Paraguai ocupado tinham repercussão e eram instrumentalizados politicamente. Considerável atuação nestes anos teve o periódico satírico-ilustrado El Mosquito, cujo editorgerente e desenhista era Enrique Stein 2. O acúmulo destes dois cargos em uma única pessoa não era exclusividade de El Mosquito, pois esta era uma prática comum naquele contexto em que a profissão de jornalista ainda estava em vias de constituir-se na Argentina (WASSERMAN, 2013, p. 8) e também o era no Brasil, tal como evidenciado por André Toral (2001). Devido à força visual das suas ilustrações, El Mosquito se tornou em um periódico importante no cenário político argentino, pois suas caricaturas circulavam e se tornavam conhecidas, gerando algumas representações que podem ter marcado o imaginário coletivo portenho, tais como as do General e ex-presidente argentino Bartolomé Mitre e as de Dom Pedro II e/ou do Império brasileiro, como se verá adiante. O PÓS-GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA E A ARGENTINA A guerra com o Paraguai exerceu considerável influência na política interna argentina antes mesmo do seu término. Em 1868, Bartolomé Mitre não conseguiu eleger seu candidato Rufino de Elizalde, sendo derrotado por Domingo Sarmiento nas eleições presidenciais. Tanto os liberais mitristas como os federais se enfraqueceram com o conflito internacional: Mitre perdeu seu capital político acumulado nos anos anteriores, enquanto Urquiza passou a ser contestado por outras lideranças federais pela posição adotada durante a contenda. A chegada de Sarmiento à presidência da República não significou o fim da hegemonia portenha, mas foi a primeira vez em que uma aliança de facções de diversas províncias elegeu um presidente através dos mecanismos eleitorais com o decisivo apoio de chefes militares que participaram da guerra com o Paraguai e que se encontravam dispersos pelas províncias (BRAGONI; MÍGUEZ, 2010, p. 25). Durante a década de 1870 a proposta de federalização da capital Buenos Aires dividiu a elite política argentina: de um lado, os seus defensores, os nacionalistas ou mitristas, liderados por Bartolomé Mitre, os quais desejavam colocar a província portenha sob jurisdição da nação; de outro lado, os autonomistas, liderados por Adolfo Alsina, que rechaçavam dita proposta. Preocupados com as rendas da aduana portenha, principal fonte de ingressos da província mais rica, os autonomistas estavam 2

El Mosquito, “periódico satírico y burlesco de caricaturas”, vinha a público todos os domingos e custava 5 pesos o número solto e 20 a suscrición mensal, em 1870. Em 1874, o número solto custava 3 pesos e a suscrición mensal 12. Os números consultados do periódico integram a Coleção Ernesto Celesia da Biblioteca do Archivo General de la Nación Argentina (AGN).

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relacionados principalmente com os proprietários rurais, enquanto os nacionalistas estavam voltados aos setores ligados ao comércio e ao setor financeiro (ROCK, 2006, p. 35). Ambas as facções possuíam seus jornais representantes ou afins: enquanto os nacionalistas contavam com La Nación, periódico de Mitre, os autonomistas tinham La Tribuna como principal órgão difusor. Os editores e colaboradores destes jornais, diretamente envolvidos nas disputas políticas que agitavam o país, instrumentalizavam os eventos ocorridos no Paraguai ocupado, de modo a exercer influência na política local. Em janeiro de 1869 as tropas aliadas ocuparam Assunção, e, em março de 1870 Solano López foi morto na batalha de Cerro Corá. Embora este episódio tenha significado o término da guerra, a morte do inimigo em comum entre brasileiros e argentinos trouxe como uma de suas consequências o recrudescimento da rivalidade entre estes aliados. Conforme Francisco Doratioto, os governantes do Império brasileiro temiam pela independência paraguaia, pois sua situação de debilidade poderia levar à incorporação, voluntária ou não, à Argentina. Desde a ocupação de Assunção até a retirada das tropas em 1876, após a assinatura dos tratados de paz e limites entre Argentina e Paraguai, a ação do Império neste último se orientou a estabilizá-lo politicamente e evitar que políticos “argentinistas” ocupassem cargos públicos importantes no Estado, que estava por reestruturar-se (DORATIOTO, 2004, p. 210). A pressão e influência brasileira perante os governos paraguaios era tanta que a historiadora argentina Victoria Baratta afirma que, entre “1869 y 1874 el Paraguay fue prácticamente un protectorado del Imperio” (BARATTA, 2015, p. 30). A pressão que exerciam as autoridades brasileiras sobre a política interna paraguaia foi alvo de constantes críticas por parte dos periódicos argentinos e até mesmo da nascente imprensa independente assuncenha, como denunciava o periódico La Voz del Pueblo: Porque hemos dicho que soldados brasileros atacan una casa con la idea de echar una imprenta a la calle; […] Toda nuestra oposición es á la política del Consejero Paranhos, como seria a la del Ministro Argentino si lo viésemos influyendo en lo mas minimo en los asuntos locales del Gobierno Provisorio del Paraguay. (La Voz del Pueblo, 19 de Julho de 1870, Ano I, Nº 48, p.1). As críticas à ingerência brasileira nos assuntos internos do Paraguai foram uma constante nas ilustrações do periódio El Mosquito, nas quais o Império brasileiro era representado através da figura de Dom Pedro II. Considerando que “não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido a seu mundo” (CHARTIER, 2002, p. 66) e que estas representações “são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1988, p. 17) este trabalho analisa as representações do Império brasileiro que elaboraram e difundiram os editores do periódico ilustrado. Dos seis anos compreendidos entre a morte de Solano López e a retirada das tropas aliadas de Assunção, o ano de 1872 foi o mais angustiante de todos. Contrariando o Tratado da Tríplice Aliança de 1865, o qual estipulava, entre outras coisas, que a assinatura da paz se daria de forma conjunta entre os três aliados com o Paraguai, o Império brasileiro assina em separado os Tratados de Paz, Limites, Extradição e de Amizade, Comércio e Navegação com o país derrotado. Com estes tratados o Brasil alcançava todos os seus objetivos em relação ao Paraguai: as fronteiras foram estipuladas nos termos defendidos pelo Império, a livre navegação dos rios internacionais foi assegurada e foi permitida a presença das tropas brasileiras em território paraguaio por tempo indeterminado, as quais respaldavam o controle que a diplomacia imperial buscava exercer sobre a política interna paraguaia (DORATIOTO, 2014, p. 52). Ainda conforme Doratioto, o “governo imperial aliou-se, no pós-guerra, ao vencido, o Paraguai, contra um vencedor, a Argentina, para manter a independência paraguaia e a soberania de Assunção sobre o território do Chaco.” (DORATIOTO, 2004, p. 234). A assinatura deste tratado em separado com o Paraguai e o apoio brasileiro a este país frente às reivindicações argentinas tiveram considerável repercussão em Buenos Aires, onde alguns órgãos de imprensa chegaram a propor guerra ao Brasil. Deste modo, resulta compreensível que grande parte das ilustrações referentes ao Império brasileiro foram publicadas ao longo de 1872, conforme se vê adiante.

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Imagens 2, 3 e 4: El Mosquito, 04/02/1872, 14/04/1872, 19/05/1872. Como se percebe, o Império brasileiro é representado por um Dom Pedro II em traços de macaco ostentando uma coroa. Na primeira imagem, o imperador aparece recolhendo uma fruta na qual está escrito “Paraguay” enquanto ao fundo os argentinos aparecem distraídos em pleno processo de eleição para a Província de Buenos Aires: “Aproveitemos do que elles estâo de brincadeira”, diz a legenda. Na segunda imagem Dom Pedro II é descoberto tentando apossar-se da ilha do Cerrito, importante posição estratégica localizada na afluência dos rios Paraguai e Paraná. Na terceira imagem o presidente Sarmiento é retratado abraçando um Dom Pedro II novamente retratado como um macaco. Na ilustração o argentino segura o seu Mensaje enquanto Dom Pedro II o seu Discurso, em alusão aos pronunciamentos realizados por ambos nas Câmaras legislativas de cada país. A ironia da ilustração se refere a que nos discursos e nos pronunciamentos oficiais ambos os chefes de Estado se tratam com respeito, mas na prática desconfiam um do outro. Outro personagem muito visado pelos editores do periódico era o ex-presidente Mitre, então líder do partido nacionalista. Mitre foi retratado em inúmeras ilustrações como um político submisso a Dom Pedro II ou como seu amigo próximo, cúmplice, o que o tornava traidor à causa argentina.

Imagem 5: El Mosquito, 11/08/1872. Na ilustração acima, Mitre aparece à mesa junto a Dom Pedro II, sendo indagado quanto a um fio de cabelo em um prato no qual se lê “Paraguay”. Mitre nega ser seu e alega ser de Sarmiento, o que era uma ironia, pois Sarmiento nestes anos já possuía poucos fios de cabelo. Embora Mitre fosse o alvo principal dos editores de El Mosquito quando o assunto era Paraguai, o então presidente Sarmiento não ficava imune às críticas, como se percebe abaixo:

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Imagem 6: El Mosquito, 18/08/1872. Nesta ilustração, Dom Pedro II é retratado tomando mate com erva paraguaia, utilizando a cabeça de Sarmiento como cuia e Mitre como bombilla. A legenda da imagem denota a ironia de um imperador que se utiliza dos presidentes argentinos para usufruir de recursos do país derrotado e ocupado: “EN SAN CRISTÓBAL. ¡Qué rica yerba la del Paraguay!”. Ainda em 1872, Dom Pedro II é retratado coordenando um grupo de macacos que trabalham na produção de armamentos e munições. A legenda “Trabajemos, muchachos, ocupémonos de las armas, mientras ellos se ocupan de...... Montes de Oca”, em conjunto com a imagem, denunciava que o Império de Dom Pedro II se armava, enquanto os políticos argentinos se ocupavam com questões inúteis.

Imagem 7: El Mosquito, 28/04/1872.

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Em 1874, após ser derrotado por Nicolás Avellaneda nas eleições presidenciais, Mitre encabeçou uma revolta contra o governo nacional, a qual terminou derrotada em fins do mesmo ano. Na ilustração seguinte, Mitre é retratado como o responsável pela divisão da República Argentina, estando, de um lado os governistas e de outro, os apoiadores de Mitre, dentre eles um Dom Pedro II sorridente e em traços de macaco:

Imagem 8: El Mosquito, 01/11/1874. Representar Dom Pedro II como um macaco era uma constante nas ilustrações de El Mosquito, mas em algumas ocasiões o próprio Mitre era assim representado, de modo a denunciar uma suposta proximidade e cumplicidade do político em relação ao Império brasileiro, como se vê adiante:

Imagem 9: El Mosquito, 08/08/1875. Nesta ilustração, Dom Pedro II é retratado montado sobre Mitre com corpo de macaco e portando uma boleadeira, na qual estão as cabeças dos presidentes uruguaio, chileno e paraguaio. As críticas vão direcionadas a Mitre, submisso às políticas do Império brasileiro, e a este último, o qual estaria utilizando as questões pendentes que Uruguai, Chile e Paraguai tinham com a Argentina (representada por um avestruz com cabeça de Nicolás Avellaneda), de modo a enfraquecê-la. Percebe-se, portanto, que apesar de não manifestar adesão à causa autonomista, os editores de El Mosquito assumiram uma posição crítica ao mitrismo, ao Império brasileiro e à guerra que recém terminava. Ainda que Adolfo Alsina, líder da facção autonomista, também fosse alvo de provocações do jornal, Mitre foi o político argentino mais atacado ao longo dos anos de ocupação do Paraguai. Além do jornal aqui analisado, periódicos como La Tribuna e El Nacional também endureceram as críticas ao ex-presidente durante aqueles anos, o que pode ter sido determinante para o declínio da trajetória política do mesmo a partir do final da guerra com o Paraguai.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise das ilustrações do periódico El Mosquito concernentes ao Paraguai e ao Império brasileiro permite inferir que, apesar de não ter assumido uma postura autonomista ou pró-Alsina, El Mosquito adotou uma postura crítica a Bartolomé Mitre, ao Império brasileiro e à guerra internacional recém terminada. O jornal endossou, deste modo, uma campanha anti-mitrista que também era realizada por outros periódicos portenhos, como El Nacional e La Tribuna. O Império brasileiro era representado através do imperador Dom Pedro II, quase sempre em traços de macaco ou então aparentando uma postura belicosa, ardilosa e covarde. Dom Pedro II representava, portanto, uma nação monarquista, escravista, belicosa e traidora. Bartolomé Mitre, por outro lado, era representado como um amigo submisso e cúmplice do Império brasileiro, o que o tornava traidor à causa argentina. Mitre foi associado a uma guerra impopular e desgastante e a um aliado incômodo, no qual não se poderia confiar, pois tentava controlar a política interna paraguaia de modo a enfraquecer a Argentina. REFERÊNCIAS BARATTA, María Victoria. ¿Aliados o enemigos? Las representaciones de Brasil en el debate público argentino durante la Guerra del Paraguay (1864-1870). In: Revista de História, São Paulo, n. 172, p. 1-34 2015. BATTICUORE, Graciela; GALLO, Klaus. Ideas, literatura y opinión pública. In: TERNAVASIO, Marcela (Org.). Historia de la provincia de Buenos Aires: de la organización provincial a la federalização de Buenos Aires: 1821-1880. Buenos Aires: Edhasa, Gonnet; UNIPE; Editorial Universitária, 2013. BERNALDO, Pilar González. Espacios y formas de sociabilidad. In: TERNAVASIO, Marcela (Org.). Historia de la provincia de Buenos Aires: de la organización provincial a la federalización de Buenos Aires: 1821-1880. Buenos Aires: Edhasa, Gonnet; UNIPE; Editorial Universitária, 2013. BRAGONI, Beatriz; MÍGUEZ, Eduardo (Coords.). Un nuevo orden político. Provincias y Estado Nacional, 1852-1880. Buenos Aires: Biblos, 2010. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2002. _______. A História Cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. DE MARCO, Miguel Angel. Historia del Periodismo Argentino: desde los orígenes hasta el Centenario de Mayo. Buenos Aires: Educa, 2006. DORATIOTO, Francisco. A ocupação político-militar brasileira do Paraguai (1869-76). In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Orgs.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. _______. O Brasil no Rio da Prata (1822-1994). Brasília: FUNAG, 2014. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora Unesp, 2014. HORA, Roy. Historia económica de la Argentina en el siglo XIX. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. MOREL, Marco. Para além das letras. Apontamentos sobre imprensa e oralidade na primeira metade do século XIX. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 63-80, jan./jul. 2010. ROCK, David. La construcción del Estado y los movimientos políticos en la Argentina, 1860-1916. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. SABATO, Hilda. Historia de la Argentina, 1852-1890. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2012.

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“VALENTÕES E BÊBADOS MANDADOS PARA OS LADOS DE TORRES”: UMA ANÁLISE DO COTIDIANO IMIGRANTE EM TEMPO DE SOLIDÃO, DE JOSUÉ GUIMARÃES Welington Augusto Blume 1 O texto ora apresentado visa perceber e analisar o cotidiano dos imigrantes alemães na obra Tempo de Solidão, de Josué Guimarães. Para tanto, ele foi dividido em três partes: vida e obra de Josué Guimarães, apreciação historiográfica de textos produzidos acerca do romance e da temática e, por fim, a análise do cotidiano na obra Tempo de Solidão. Salienta-se que no decorrer das leituras e do levantamento de fontes bibliográficas para a elaboração das reflexões contidas nesse texto, deparei-me com uma gama considerável de artigos que versam sobre o romance de Guimarães. Esses, por sua vez, foram produzidos, principalmente, por pesquisadores que direcionaram sua formação para a área da literatura. Destaco, dessa forma, que o conteúdo desses artigos contribuiu para que eu pudesse me aproximar da obra de Guimarães, pois as reflexões acerca dos personagens, ambientes e possibilidades que por eles foram elaboradas, deram-me maior aporte crítico para a leitura do livro em questão. Todavia, precisei recorrer a autores que concebem as produções literárias como fontes históricas. Dentre eles, destacam-se Valdeci Rezende Borges e Antonio Celso Ferreira. Em artigo intitulado de História e Literatura: algumas considerações, Borges destaca a emergência da história cultural, que estaria interessada em estudar, “dentro de um contexto social, os mecanismos de produção dos objetos culturais” com o qual as “intencionalidades, dimensão estética, a questão da intertextualidade ou do diálogo que um texto estabelece com o outro” passam a ser observadas pelo pesquisador que utiliza como objeto de pesquisa a literatura. O autor também faz menção a Le Goff, que reflete, sobretudo, acerca das “condições históricas” das produções que estão sendo observadas, no qual a figura do autor, do “lugar social de onde se produz, como se produz, as intenções do produtor” e as “relações de poder que cercam e atravessam a produção e o produto” devem ser cuidadosamente avaliados pelo historiador. (BORGES,2010, p.94-95) Dentro dessa perspectiva, Ferreira enfatiza: nas últimas décadas os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, os valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo. (FERREIRA, 2011, p.61) Analisando o texto conforme os pressupostos levantados por Borges e percebendo a amplitude de sua carga simbólica e social sob a perspectiva de Ferreira, delimitei uma problemática para a pesquisa, que se resume na pergunta que segue: qual cotidiano imigrante Josué Guimarães pretendeu nos mostrar na obra A ferro e fogo: Tempo de Solidão? Para responder a essa pergunta e demonstrar a variedade de lacunas e possibilidades que passam a surgir a partir dela, contextualizarei aspectos importantes da vida social do autor, para, posteriormente, apresentar e discutir parte dos trabalhos que já foram efetuados acerca de Tempo de Solidão e, por fim, selecionando alguns trechos da obra, problematizarei as tensões do cotidiano que emergem nas entrelinhas do romance de Guimarães. JOSUÉ GUIMARÃES E SEU TEMPO Em 1988, Guimarães escreveu Escrever é comunicar-se. Faço isso desde os 19 anos de idade, embora como jornalista, batendo milhares de palavras por dia. Agora, o que escrevo em jornal é como folha de outono, o vento carrega. Largando o jornalismo (...) 1

Graduando em História e bolsista de Iniciação Científica UNIBIC, vinculado ao Núcleo de Estudos TeutoBrasileiros ( NETB ) do Programa de Pós Graduação em História ( PPGH ) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos ( UNISINOS ), sob a orientação de Marcos Antônio Witt. E-mail: [email protected].

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comecei a encontrar hora para botar no papel aquilo que sempre quis fazer: ficção. (GUIMARÃES, 1988, p.7) O autor nasceu em São Jerônimo, no Rio Grande do Sul, em 7 de janeiro de 1921. Em 1939 mudou-se para o Rio de Janeiro onde, no Correio da Manhã, iniciou-se como jornalista, profissão que exerceu até o final de sua vida. Como homem público foi chefe de gabinete de João Goulart na Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul, no governo de Ernesto Dornelles; foi vereador em Porto Alegre pela bancada do PTB e entre os anos de 1961 a 1964 foi diretor da Agência Nacional a convite do então presidente João Goulart. A fonte consultada aponta, inclusive, que Guimarães foi perseguido no período da Ditadura Militar 2 e, portanto, precisou escrever sob pseudônimo 3. Sobre essa informação, destaca-se a utilização do alônimo “Philleas Fog”, que foi utilizado no período em que manteve a coluna "A Volta ao Mundo", do jornal Zero Hora. (MOURA, 2011) Dentre as principais obras publicadas pelo autor, destacam-se: Os Ladrões, Depois do Último Trem, A ferro e fogo – Tempo de Solidão, A ferro e fogo – Tempo de Guerra, Lisboa Urgente, Tambores Silenciosos, Cavalo Cego, É tarde para saber, Dona Anja, Enquanto a noite não chega, dentre outros. Destaque especial foi dado a Tambores Silenciosos, por Vanessa dos Santos Moura, em sua dissertação de mestrado, na qual a autora evidenciou a militância política encontrada na composição dessa obra, que poderia ser lida como sendo um romance “satírico-surrealista”, que denunciou algumas peripécias do regime militar. (MOURA, 2011, p. 102) Ainda na análise de Moura, têm-se algumas suposições importantes para se pensar a composição da obra Tempo de Solidão. A autora investiga, principalmente, qual relação de amizade Guimarães possuiu com intelectuais de sua época. Dessa forma, surge como nome exponencial a figura de Erico Verissimo, que teria sido, para Guimarães, “um de seus melhores amigos e profundo admirador, além de leitor, crítico, conselheiro, entre tantos outros “postos” ocupados, dialogou e contribuiu significativamente” para o consolidar “dentro do campo intelectual” (MOURA, 2011, p. 91). A pesquisa efetuada por Moura não contribuiu apenas para conhecer Guimarães de forma mais ampla, mas também para que se possa compreender as escolhas feitas pelo autor no momento em que passa a pensar e refletir sobre as obras que escreveu e viria a escrever. Dentro dessa perspectiva, a autora destaca: De forma análoga ao processo de “canonização” de Erico Verissimo com sua trilogia O tempo e o vento, que narra a saga da formação do Rio Grande do Sul, é possível ver uma tentativa de estabelecer Josué Guimarães como seguidor fiel de Verissimo, narrador da saga da imigração alemã no estado em A ferro e fogo. (MOURA, 2011, p. 68) Dessa informação que encontrei surgiu outra pergunta: além de ler as obras de Érico Verissimo, manter contato com o mesmo e ainda se inspirar nele, quais outros autores Josué Guimarães leu para compreender o processo de imigração de forma mais ampla e problemática? Essa lacuna que surgiu no decorrer da pesquisa, ainda se encontra com respostas muito incertas. Suponho, ao comparar a forma de escrita de Carlos Henrique Hunsche com a de Guimarães, que o autor em questão pode ter aprofundado seu conhecimento acerca da imigração lendo alguns estudos de Hunsche 4. Levanto essa suposição ao comparar os estudos de Hunsche ao romance de Guimarães, destacando que ambos, por estarem 2

Vanessa dos Santos Moura salienta “por estar trabalhando para o governo de Jango como diretor-geral da Agência Nacional no momento do golpe, este período inicial de repressão o atingiu em cheio: os alvos iniciais da repressão militar consistiam, justamente, nos apoiadores de Jango.” (MOURA, 2011, p. 71) 3 Mora destaca que “após uma série de fugas (...) ele passou a viver na clandestinidade, em Santos, sob o pseudônimo de Samuel Ortiz, o mesmo utilizado no período da Legalidade. Apesar do cuidado, em 1969 acabou sendo descoberto pelos órgãos de segurança, respondendo ao inquérito policial em liberdade. (MOURA, 2011, p. 72) 4 Isso se mostra de forma mais evidente em um trecho retirado de um artigo de Hunsche, no qual o autor, introduzindo um documento de reclamações escrito por imigrantes descontentes, destaca “é um documento comovedor, um grito de desespero, que demonstra a situação deplorável e as experiências amargas pelas quais teve que passar essa pobre gente, aliciada em promessas que, depois, não foram cumpridas”; se comparado à escrita geral da obra de Guimarães, pode-se perceber a proximidade entre as duas escritas. [O texto de Hunsche se encontra nos Anais do 2º Simpósio de História da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul]

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inseridos em um período impar para os estudos sobre a imigração e seus desdobramentos, possuem narrativas que se aproximam muito das epopéias românticas e sofridas que dão a ideia de vidas difíceis, de muitas batalhas e sofrimentos. Para tanto, é preciso pensar em qual conjectura o livro de Josué Guimarães foi lançado. Saliento, num primeiro momento, que o romance de Guimarães foi escrito e difundidoem um período no qual estudos acerca da temática da imigração eram um tabu 5, como aponta Martin Dreher (2014).Sua obra, entretanto, não apresentou um estudo que visava problematizar a imigração, mas sim, de narrar, através do mundo imigrante por ele criado, o cotidiano de imigrantes radicados na Província de São Pedro de 1824. No ano de 1974, dois anos após a impressão da primeira edição do livro, ocorreram as comemorações do sesquicentenário da imigração alemã e a partir de então, os estudos que possuíam como objeto de pesquisa a imigração, voltaram a ser realizados no Brasil. E nesse instante surge outra pergunta: como o livro de Guimarães pode ser publicado em plena ditadura militar, levando-se em consideração todos os estigmas que foram criados àqueles que se detinham a refletir e escrever sobre a imigração? Essa é uma lacuna que poderá ser preenchida com novos estudos sobre esse problema. Nessa trama de tensões e possibilidades, Moura destacou que Guimarães foi um homem público de grande visibilidade e de influência sobre seus pares, sendo que a escrita, por sua vez, fez parte de sua vida enquanto profissional e foi o recurso utilizado pelo escritor para denunciar, em certa medida, as atrocidades pelas quais passavam os brasileiros no período da ditadura militar. (MOURA, 2011). Agora, salientar quais opções foram utilizadas por Guimarães para escrever o romance Tempo de Solidão e apontar quais intenções ele possuiu enquanto tal, poderiam me levar a algum equívoco e, para tanto, precisei me aproximar de produções bibliográficas de cunho literário para compreender a obra de forma mais ampla. Nesse sentido, passo para a segunda parte desse texto, que visa refletir sobre significativas produções que foram feitas acerca do romance de Guimarães e que serviram de referência para os meus questionamentos. PROBLEMAS E POSSIBILIDADES: ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DE ESTUDOS QUE VERSAM SOBRE O ROMANCE DE JOSUÉ GUIMARÃES Daiane Antunes Dias, ao pensar no autor e sua obra, destaca que as narrativas de Guimarães “são marcadas por temática recorrente da dor, destruição e morte”, no qual apresenta “homens e mulheres que pesquisou, descobriu e reinventou, os quais, situando-os num determinado momento histórico, destaca, alcançando, muitas vezes, o mágico e o humor” (DIAS, 2002, p.78-79). Tal perspectiva pode ser percebida também no estudo de Enéias Farias Tavares, que, sob a alcunha de Intervenções do texto bíblico no romance Tempo de Solidão, investiga de que forma Guimarães insere questões de religiosidade em seu romance. Percebe-se que Tavares procura nas entrelinhas da narrativa, desnudar a forma pela qual Daniel Abraão, personagem fictício de Tempo de Solidão, se apropria da religião e dos textos bíblicos em meio à trama criada por Guimarães, destacando “num ambiente em que homens roubam, estupram, destroem, matam e são mortos” as “orações e recitações religiosas são inúteis” (TAVARES, 2011, p. 108). Outra autora que possui reflexões que se aproximam das que foram acima mencionadas é Ivânia Campigotto Aquino, que salienta Josué assume, sim, uma postura crítica, de denúncia, perante a saga da colonização, mostrando o cotidiano das famílias alemãs, voltando-se para os sentimentos, desejos, costumes e objetivos desse povo, sendo que eles estavam concentrados na luta pela sobrevivência em uma terra hostil em meio a tanto sofrimento e privações. (AQUINO, 2011, 263) A mesma autora tece uma reflexão bastante pertinente em artigo intitulado de A força do feminino em A ferro e fogo. Trata-se de uma análise de gênero, feita com o auxílio de Mariana Cardoso Marsaro, no qual as autoras mostram algumas leituras possíveis acerca da atuação da mulher no século XIX. 5

Dreher salienta que “nos anos posteriores à [Segunda] Guerra [Mundial] até 1974, os estudos sobre a imigração eram tabu. O discurso do Estado Novo, através dos órgãos de imprensa e propaganda, buscara desqualificar de tal maneira as populações descendentes de imigrantes que a mera abordagem da temática imigração suscitava medos e ressentimentos e ao pesquisador se recomendava que tivesse “cuidado”. (DREHER, 2014, p. 19)[Grifo meu]

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Utilizando as figuras de Sofia e Catarina, personagens fictícias criadas por Guimarães, as autoras ampliam o leque de possibilidades acerca da atuação das mulheres através de algumas passagens significativas encontradas em Tempo de Solidão. A personagem Catarina, por exemplo, é vista como uma mulher forte, pois é “ela quem toma decisões tanto no lar quanto nos negócios, responsabilizandose por todos os afazeres domésticos, ocupando-se, assim, até das atividades que, no caso das famílias patriarcais gaúchas, seriam destinadas apenas aos homens naquela época”. (AQUINO; MARSARO, 2011, p. 263). Nesse sentido, o artigo das autoras levanta novas perguntas e questões para se pensar e desenvolver análises do cotidiano utilizando a literatura. Outra contribuição significativa pode ser encontrada em texto intitulado de A literatura e a formação do estado em A ferro e fogo: narrativa da imigração, escrito por Aquino. A autora propõe uma discussão que desnuda os personagens que estão inseridos no romance de Guimarães, no qual procura, através de seus protagonismos e eventos do quais estavam envolvidos, evidenciar a participação dos imigrantes na formação do Estado. Ao fazer isso a autora resume a ideia que Guimarães tentou passar aos futuros leitores: o sofrimento e a solidão. Isso se percebe no seguinte trecho: A ferro e fogo se faz uma história de vidas. Não de vidas passivas diante dos propósitos do mundo e dos outros, mas de vidas bem conduzidas por seus donos, vidas determinadas pela resistência e coragem, pelo espírito que não se dobra, pelo esforço contínuo; e bem cobradas por tudo isso, cobranças medidas pelo sofrimento que advém das circunstâncias produzidas numa nova terra onde devem se fixar. (AQUINO, 2011, 1664) Se compararmos esse trecho com alguns artigos produzidos na década de 70, sobretudo àqueles contidos nos Anais do 1º Simpósio de História da Imigração e Colonização do Rio Grande do Sul, encontraremos vestígios que nos levam a leituras semelhantes com a análise que Aquino fez da obra de Guimarães. Nesse sentido, saliento que a obra de Guimarães ganha mais amplitude e sentido quando contraposta a produções de cunho historiográfico que foram produzidas na mesma década em que o autor lançou seu livro. Os problemas e análises levantadas por Dias, Marsaro e Aquino, contribuíram para que eu pudesse refletir com maior amplitude sobre quem era o escritor que está sendo analisado e o que ele pretendeu mostrar aos leitores que viriam a ler sua obra. Com exceção dos estudos de Aquino, os demais textos consultados não possuem grande profundidade historiográfica, estando mais voltados para que se possa pensar na obra e seu enredo, e não em problematizar personagens, acontecimentos e intencionalidades de Guimarães, todavia, constituem-se como materiais riquíssimos que suscitam novas perguntas e abordagens possíveis. Passarei para a terceira parte do trabalho, que visa pensar qual cotidiano imigrante Guimarães procurou reinventar e quais problemas e indagações podem vir a aparecer quando se faz a leitura de seu romance. A LEITURA DO COTIDIANO EM TEMPO DE SOLIDÃO Esta história começa com a chegada, no Rio Grande do Sul, do bergantim Protetor, em julho de 1824, trazendo no seu precário bojo de madeira 38 colonos alemães destinados à extinta Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, hoje São Leopoldo. Depois deles, outros tomaram o mesmo caminho, trazidos a tanto por cabeça, por um aventureiro internacional, o Major Jorge Antônio Schaeffer. Muitos conseguiram sobreviver. Bem, mas então temos a história de homens e mulheres em solidão que plantaram as suas raízes, a ferro e fogo, nas fronteiras movediças dominadas por castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses. (GUIMARÃES, 1882, p. 5) A menção feita ao convite que Josué Guimarães faz ao leitor em Tempo de Solidão, não é apenas proposital, sendo também provocativa. Percebe-se, na passagem, que Guimarães ilustra alguns detalhes do cotidiano, dentre eles o navio, as gentes a bordo do mesmo, o ambiente encontrado no momento em

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que os imigrantes chegam à Real Feitoria do Linho Cânhamo e a forma pela qual Guimarães alcunha o Major von Schaeffer. No que concerne o primeiro aspecto, o autor desnuda as precariedades encontradas nas embarcações das quais os imigrantes vinham, pois ao destacar que eles vinham em um “precário bojo de madeira”, Guimarães se distancia de uma narrativa que beira o fantástico, no qual os imigrantes estariam vindo ao Brasil em navios de boa estrutura e com boas condições de navegação. Tal aspecto ganha ainda maior relevância quando utilizamos o relatório de bordo do Inspetor Ladwig, que pode ser encontrado no livro Degredados de Mecklenburg-Schwerin e os primórdios da Imigração Alemã no Brasil, no qual Ladwig descreve, diariamente, sob ventos favoráveis, as peripécias pelas quais as gentes a bordo do navio estavam sujeitas. Destaco que a referência feita ao navio pode parecer de pouca relevância ou até mesmo, para alguns olhos, imperceptível, mas que pode ganhar amplitudes de pesquisa significativas quando contrapostas a documentos que versam sobre o mesmo assunto. No que diz respeito ao segundo aspecto, destaca-se o cuidado do autor com a ideia de mobilidade, no qual enfatiza que “depois deles [os 38 colonos alemães], outros tomaram o mesmo caminho”. Nesse sentido, salienta-se que Guimarães poderia estar preocupado em destacar a constante ida e vinda de imigrantes para o Brasil e de volta para a Alemanha. Tal problemática pode ser encontrada no livro Imigração na América Latina: história dos Fracassos, que dá conta, além de apresentar o panorama frustrante de alguns imigrantes e dos projetos migratórios tanto públicos quanto privados, de evidenciar o constante movimento no qual os imigrantes estavam inseridos. Ao que tange a terceira passagem, Guimarães toca em um ponto muito caro para a historiografia que se detém a discutir a imigração alemã: a tese do isolamento 6. Talvez sem se dar conta, o autor destacou aquilo que viria a ser abordado por Marcos Justo Tramontini (2000) e Marcos Antônio Witt (2008), respectivamente em suas teses de doutoramento: os imigrantes, diferentemente do que alguns autores clássicos da imigração sugeriram, estiveram em constante contato (e conflito) com os demais homens e mulheres das mais variadas etnias que estavam radicados no Brasil; Guimarães, quando dá ênfase ao encontro do imigrante com “castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses”, distancia-se da ideia de enquistamento étnico, no qual imigrantes alemães estariam fechados em seu mundo, não estando a dialogar com os demais grupos que estavam em constante movimento pela Província de São Pedro. No que abarca o quarto aspecto, percebe-se a posição assumida por Guimarães em relação ao Major von Schaeffer, o aventureiro internacional. O trecho em questão pode ser interpretado de duas formas: o autor pode ter alcunhado o Major de aventureiro para dar certo tom pejorativo ao personagem ou escreveu sob a forma de metáfora, no qual Guimarães poderia estar pensando nas constantes viagens que o Major fazia entre o Brasil e alguns países europeus com o intuito de atrair imigrantes para o então Império brasileiro, e por isso, a designação de aventureiro internacional. Entretanto, no decorrer da leitura, se percebe que o autor transforma o Major no culpado por todas as mazelas pelas quais passavam os imigrantes que optaram em emigrar para o Brasil. Isso fica mais claro nas falas criadas por Guimarães para o respectivo personagem. - Então aquela gentinha que cacei pelos arredores de Hamburgo, toda ela agora revoltada contra seu criador. (GUIMARÃES, 1977, p. 49) - Prometi a essa gente tudo aquilo que me foi autorizado. Agora essa conversa de Constituição não permite isso, não permite aquilo. Deviam ter dito antes. Agora que se danem. Sabe, que se danem. (GUIMARÃES, 1977, p. 50) Todavia, quando a suposição acerca do insucesso dos imigrantes feita por Guimarães é posta lado a lado com as atuais pesquisas de cunho historiográfico, pode-se, no mínimo, realizar uma reflexão mais 6

Marcos Antônio Witt argumenta: “de maneira resumida, pode-se dizer que os defensores da tese do isolamento propagaram a falsa ideia de que determinadas Colônias deixaram de prosperar porque estavam isoladas de outros núcleos coloniais ou de centros consumidores maiores (...) da mesma forma, as dificuldades enfrentadas pelos colonos, como estradas ruins, foram usadas para justificar o isolamento de certas comunidades”. (WITT, 2009, p. 196)

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ampla sobre a questão do fracasso e dos problemas enfrentados pelos imigrantes. Como destacou Débora Bendocchi Alves, os imigrantes constantemente estavam procurando a “culpa “de sua desgraça” nos outros, nas instituições, nas autoridades, colocando-se no papel de vítima” pelo malogro do movimento migratório (ALVES, 2014, p.15). Isso fica evidente na narrativa de Guimarães. Entretanto, as posições acerca do tema mudam conforme a documentação consultada. Alves, que utilizou o relato de Friedrich von Weech (1828), “no seu guia para emigrantes alemães com destino ao Brasil”, suscitou uma nova possibilidade para o problema do insucesso, que, segundo Weech, estaria na própria figura do imigrante. Weech argumenta com as seguintes palavras: com desgosto é preciso registrar aqui que, dentre os que imigraram até agora, só alguns poucos obtiveram um êxito razoável. Seria injusto atribuir toda culpa ao país, aos habitantes ou a alguns homens que foram particularmente incumbidos pelo governo de zelar pelo bem-estar das colônias. As acusações justas atingem os membros das mesmas, assim como aqueles que sobrevivem por conta própria, de que são eles mesmos, em parte, causadores de seus infortúnios. (WEECH, 1828, p. 8) [Grifo meu] Portanto, a alusão que Guimarães faz ao Major von Schaeffer deve ser lida e pensada dentro do campo de possibilidades que o autor possuía na época em que escreveu seu livro, lembrando sempre que a maioria dos trabalhos e publicações que foram feitas a partir do sesquicentenário da imigração alemã, possuíam, como uma de suas características, o louvor ao imigrante trabalhador, pioneiro e desbravador. Dessa forma, a atribuição de Guimarães pode ser mais uma dentre tantas críticas que foram feitas ao Império e seus enviados. O cotidiano dos imigrantes acompanha o leitor durante praticamente todo o romance de Guimarães, sendo que alguns episódios, indagações e suposições levantadas pelo autor merecem maior atenção. Dentre elas, destaco alguns momentos de sociabilidade que o autor recriou em um espaço denominado de bodega. A bodega (hoje, o bar), espaço frequentado pelas mais diversas pessoas, é um local que ganha algumas páginas no romance de Guimarães. Em uma perspectiva ampla, argumenta-se que esses estabelecimentos constituíam-se como lugares de passagem, “onde trabalhadores de ofícios diversos esqueciam ou atenuavam a dura labuta diária, compravam pequenos gêneros alimentícios e interagiam com seus pares e assemelhados.” (MOREIRA, 2009, p.239). Circunscrito em um ambiente em que imigrantes alemães e seus descendentes estavam radicados, a bodega ganha ainda outra atribuição: a de espaço político. Além de transitarem por aquele ambiente para deliberar sobre o cotidiano, tomar aguardente e jogar carta, os imigrantes alemães se utilizavam deste espaço público para fazer negócios e repartir suas novidades e posicionamentos. (WITT, 2009) Esse último elemento é percebido nas palavras de Carlos Frederico Jacob Nicolau Gründling, personagem fictício criado por Guimarães, que expressa sua opinião sobre o negro e o índio, afirmando digo a vocês agora que Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e carregar água. Não há sol que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles têm tais cascos que fazem a inveja de quanto mula existe por aí, da Feitoria às bandas do Uruguai [...] Para domar o cavalo xucro, camperear, marcar boi, castrar bicho e servir mate, que vocês pensam que o diabo inventou? Digam, se forem capazes. Pois eu digo, seus imbecis, que para isso o diabo inventou o índio, o bugre, que forma com o cavalo um só corpo, que segue o rastro de gente e de bicho, que tem um nariz capaz de cheirar um tigre e uma légua de distância. (GUIMARÃES, 1977, p. 7-8) Este trecho desnuda não apenas um ato do pelo qual o imigrante toma partido acerca de uma visão sobre determinada etnia, mas nos diz também quem é o homem que fala e quais ideias ele carrega consigo. Neste sentido, se adentrarmos no pensamento político e social do XIX, encontraremos, das mais variadas formas, as palavras destacadas pelo personagem da obra de Guimarães. O preconceito étnico e racial, presentes na fala de Gründling, foram uma constante nos debates políticos que se estenderam ao longo do século XIX, sem deixar de fora que resquícios deste pensamento ainda perpassaram o século XX e se fazem presentes em alguns discursos contemporâneos. Para tanto, supõe-

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se que essa cena do cotidiano, narrada por Guimarães, pode ter sido uma dentre tantas das quais os imigrantes e seus descendentes estiveram a discutir sobre as demais etnias com as quais eles conviviam. O conflito e os estigmas, que ganharam evidência em Tramontini (2000) e Witt (2008), também figuram no cotidiano de Tempo de solidão. Além de a bodega figurar como espaço onde os imigrantes tomavam partido sobre determinados acontecimentos, era lá, também, que ocorriam as lamentações e bebedeiras, seja na embriaguez ou nos xingamentos. Esse elemento transparece no seguinte trecho: No dia seguinte Schneider se fazia de surdo aos destemperos de Catarina, sua mulher, filha mais velha de Cristiano e de Maria Isabel Klumpp, de LüdesseHanover. Depois das bebedeiras com dois ou três amigos e mais o estranho Gründling, na miserável cervejaria da Praça do Cachorro, ele se remordia de vergonha, ficava incapaz de fitar a mulher nos olhos. (GUIMARÃES, 1977, p. 11) [Grifo meu] Tal bebedeira teria ocorrido em decorrência da insatisfação do imigrante com o não cumprimento das promessas Imperiais. Esse elemento, que demonstra a inserção social do imigrante aos ambientes nacionais e, também, sua manifestação de indignação que foi traduzida na bebedeira, foi abordado também por Tramontini (2000), que percebe nesses momentos de rebelião, certa tomada de consciência por parte do imigrante em decorrência do momento social em que se encontravam. Entretanto, Guimarães narra essa passagem de forma trágica, desconsiderando o caráter político e simbólico do acontecimento em questão. O lócus de análise para se pensar o cotidiano em Tempo de Solidão é bastante profícuo e pode render muitos trabalhos que problematizem a obra em sua plenitude. Análises que repensem a trajetória dos personagens, fictícios e históricos, além de estudos de gênero, família e trabalho, podem mostrar, com maior amplitude, as intencionalidades que Guimarães possuiu ao escrever o romance. CONSIDERAÇÕES FINAIS O cotidiano imigrante apresentado por Josué Guimarães assume, sobretudo, um tom de epopeia. Narrando a vida dos sofrimentos, desgostos, mazelas e incertezas dos imigrantes, Guimarães desnuda, principalmente, a história de sofrimento dos primeiros imigrantes. A narrativa, por sua vez, detém características particulares de sua época, pois foi produzida em um período nebuloso para todo aquele que quisesse escrever sobre algum tema que abarcasse a imigração. Possui, dessa forma, certo tom de denúncia, de protesto, de defesa para os primeiros imigrantes. Trata-se de uma versão, de um romance, de um registro importante para se pensar a vida social dos homens e mulheres do XIX. Salienta-se, todavia, que a grandeza da obra em questão só pode ser percebida em sua plenitude, quando outros documentos e, principalmente, trabalhos recentes que versam sobre a imigração, são correlacionados às informações contidas no romance de Josué Guimarães. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, Ivânia Campigotto; MARSARO . A força do feminino em A ferro e fogo. Todas as Musas: Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte (Online), v. 02, p. 262-276, 2011. ________, Ivânia Campigotto. A literatura e a formação do estado em A ferro e fogo: narrativa da imigração. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), v. 40, p. 1660-1672, 2011. BORGES, V. R. História e literatura: algumas considerações. Revista de Teoria da História, v. ANO 1, p. 94-109, 2010. DIAS, Daiane Antunes. Os imigrantes e o sonho de uma nova terra. In: Revista Idéias: Revista do curso de Letras. Santa Maria, 2002. DREHER, Martin N. 190 anos de imigração alemã no Rio Grande do Sul: esquecimentos e lembranças. 2.ed. São Leopoldo: Oikos, 2014.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 6 CULTURA E SOCIEDADES INDÍGENAS NA AMÉRICA ESPANHOLA

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ESTAR CATIVO ENTRE OS INDÍGENAS, UMA EXPERIÊNCIA FELIZ? CONSIDERAÇÕES SOBRE O TESTEMUNHO DE FRANCISCO NÚÑEZ DE PINEDA Y BASCUÑÁN Marcelo Augusto Maciel da Silva 1 Nos últimos anos a historiografia colonial americana vem sendo renovada por estudos que contrastam com o que havia sido produzido anteriormente. Os indígenas deixaram de ser reduzidos a personagens secundários e a-históricos, compreendidos em um processo de aculturação que os descaracterizava ou apresentavam-nos como grupos que, ao resistirem à cultura de seus invasores, foram dizimados. Atualmente, as análises historiográficas os apontam como sujeitos atuantes e conscientes das apropriações que fizeram para poderem coexistir com os invasores de seus territórios, e também interessados nas novidades que os europeus trouxeram consigo: as ferramentas de metais, facas, armas de fogo, assim como adornos, vestimentas, o uso dos cavalos, e outros modos de preparo do alimento. Fosse para a guerra ou para as relações diplomáticas que exerciam entre si ou em meio aos espanhóis, os indígenas do período colonial buscaram adaptar-se à colonização através do uso daquilo que lhes era benéfico. Estas constatações somente puderam ser observadas a partir do momento em que os documentos oficiais deixaram de carregar em si a verdade dos acontecimentos, e passaram a ser criticados a partir de novos aportes teóricos e metodológicos. Através destes novos olhares os nativos americanos tiveram suas vozes sacadas das entrelinhas das fontes oficiais, assim como outras formas de escrita tornaram-se objeto de estudo dos pesquisadores. Quanto mais os estudos sobre as sociedades coloniais distanciam-se da abordagem eurocentrista, melhor nos aproximamos da realidade do período em questão. Um dos avanços foi identificar, naqueles que habitavam entre dois mundos – o das populações autóctones e os dos europeus – os chamados “intermediadores culturais”, influenciando uma e outra destas sociedades através das relações que promoviam ou em que se inseriram. A historiografia atual tem se ocupado deste tema especialmente presente nas regiões limítrofes da ocupação espanhola. Na região austral do continente americano encontramos além das autoridades hispanocriollas, missionários, soldados, comerciantes, renegados, “indígenas amigos” 2, e cativos. Estes últimos vivenciaram as duas realidades, e experimentaram diversos tipos de maus tratos, fosse quando sob às vontades de um amo, ou quando do retorno à sociedade de origem. Muitas vezes eles se depararam com desconfiança. Tidos por indianizados seus conterrâneos os acusavam de ter o cristianismo afetado e de estarem persuadidos pelos maus hábitos indígenas. Contudo, para os homens, essa desconfiança poderia ser afastada ao tornaram-se intérpretes e guias para as ofensivas militares. Os testemunhos deixados por estes cativos costumam conter informações que geralmente relegam aos seus captores um caráter selvagem e cruel. Construiu-se a concepção de que os cativos eram severamente maltratados e sofriam inúmeros abusos, sendo violentamente castigados quando tentavam uma fuga, que se malograda, poderia resultar em danos físicos, ou até a morte. O objetivo deste artigo é apresentar a análise de um caso de cativeiro indígena, que, em oposição aos demais relatos sobre a vida nestas circunstâncias, afirmou-se como uma “experiência feliz”. Francisco Núñez de Pineda y Bascuñán foi cativo no início do século XVII, na região da

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Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/Cnpq. 2 Trata-se de parcialidades indígenas que prestavam serviço aos espanhóis.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 Araucania entre os indígenas mapuches 3, sendo resgatado cerca de seis meses depois. Nos últimos anos de sua vida, escreveu o “Cautiverio Feliz y razón individual de las guerras dilatadas del reino de Chile”. A questão que moveu este trabalho foi buscar compreender por que este cativeiro fora feliz, enquanto que outros relatos da época apenas davam notícias de sofrimento. Núñez de Pineda y Bascuñán nasceu por volta de 1607, provavelmente na cidade de Chillan no Chile, em uma família era bem conhecida, pois era formada em sua maioria por militares e religiosos. Sua mãe era descendente de um respeitado conquistador; seu pai Don Alvaro Núñez de Pineda y Bascuñám foi um militar espanhol, que estivera por quarenta anos a serviço da Coroa espanhola. O autor de Cautiverio feliz estudara por nove anos entre padres jesuítas, onde aprendeu latim, leu as sagradas escrituras, assim como outras obras produzidas por padres e teólogos da Igreja. Ele ingressou na carreira militar aos dezoito anos de idade, e embora tivesse recebido de imediato um cargo de capitão, devido à estima que o governador tinha por seu pai, este o admoestou a iniciar como soldado raso. O mestre de campo alegou que sem experiência não era possível dar ordens a soldados antigos, e isso seria somente motivo de atenção e falatórios. No entanto, quando foi raptado, em 1629, provavelmente quatro anos após este fato, já tinha alcançado o posto de capitão 4. A obra “Cautiverio feliz y razon de las guerras dilatadas de Chile” [1673] é uma publicação de 1863, inserida no terceiro tomo de uma coleção de documentos sobre a história nacional chilena, e recebeu pela editora que a publicou, pequenas modificações que teriam o intuito de “facilitar a leitura”. Foram desfeitas as abreviações e atualizados os caracteres conforme a grafia contemporânea. As apreciações sobre o livro e seu autor ficaram ao encargo do historiador chileno Diego Barros Arana, que escreve apenas uma introdução em que apresenta o ex-cativo e outras breves considerações. O objetivo de Núñez de Pineda y Bascuñán era de “escribir algunos sucesos de este reino com verdaderas experiencias” (Núñez, 1863 [1673], p. 2). Segundo ele, a maioria das obras de história que estavam sendo escritas naquele momento traziam acontecimentos muito distantes da realidade, redigidas por cronistas lisonjeiros que por dinheiro atestavam em favor dos governantes (Núñez, 1863 [1673], p. 2). Além de narrar os acontecimentos vividos durante o cativeiro, cada lembrança do escritor é acompanhada de comentários morais, religiosos e filosóficos, embasando suas opiniões a partir de passagens bíblicas ou escritos de teólogos renomados, em que observamos dados da sua formação junto aos jesuítas. Nossa análise consistiu em a) identificar os motivos pelos quais o cativeiro de Francisco Núñez de Pineda y Bascuñán fora feliz segundo seu próprio entendimento; b) exercer a crítica sobre seu testemunho e trazer considerações que possam contextualizar historicamente o período de seu cativeiro. Contudo, ao longo da investigação foi possível encontrar propósitos paralelos na obra deste cativo, que descobrimos ser bastante discutidas por alguns autores. Logo, também esclareceremos nossas opiniões sobre esta constatação. Ao que tudo indica, o relato não teve por único intento demonstrar como sua estada entre os mapuches fora feliz, fazendo prevalecer a bondade de seus captores em detrimento do egoísmo dos espanhóis que governavam o Chile. CAUTIVERIO FELIZ Do início ao fim o livro é permeado de referências ao bom caráter de Don Alvaro Núñez de Pineda y Bascuñán - pai do jovem cativo. Desde o relato da captura até seu resgate, o autor destaca características enobrecedoras a seu pai. Ele demonstra crer que a afeição dos caciques 3

Utilizaremos as nomenclaturas indígenas segundo elas são apresentadas na fonte analisada. Logo, mapuche será utilizado para fazermos menção aos indígenas que intercederam pelo autor, dando-lhe abrigo e proteção diante dos serranos ou indígenas da cordilheira, como são chamados os indígenas que intencionavam sua morte. 4 Esta questão remete, certamente, ao sistema de privilégios e benefícios que marcava a sociedade colonial hispano-americana.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 mapuches por seu pai teria sido um dos motivos do bom tratamento que recebeu, sendo tratado sempre por “pichi Alvaro” (pequeno Alvaro). No momento de sua captura ele fora reconhecido por um indígena que lhe desejou a morte: “muera, muera luego este capitan sin remision alguna, porque es hijo de Alvaro Maltincampo [...] que tiene nuestras tierras destruidas, y a nosotros aniquilados y abatidos” (Núñez, 1863 [1673], p. 22). No entanto, o reconhecimento de outro nativo, Lientur, da hombridade de Alvaro, por quem teria muita estima, o levou a interceder pela vida do branco junto ao captor. Lientur havia vivido entre os espanhóis e se afastara destes devido aos muitos insultos recebidos. Sua palavra era respeitada e em favor do cativo discursou ao cacique que o tomara dizendo: Tú solo, capitan esforzado y valeroso, te pudes tener en la ocasion presente por feliz y el mas bien afortunado, y que la jornada que habemos emprendido, se ha encaminado solo a tu provecho; pues te ha cabido por suerte llevar al hijo del primer hombre que nuestra tierra ha respetado y conocido [...] Este capitan que llevas es el fundamento de nuestra batalla, la gloria de nuestro subceso, y el sosiegode nuestra patria; y aunque te han persuadido y aconsejado rabiosos, que le quites luego la vida, yo soi y seré siempre de contrario parecer (Núñez, 1863 [1673], p. 25-26). Para ele, segundo Núñez, o mestre de campo Alvaro era homem honrado, pois embora tivesse matado a muitos, o tinha feito em batalha, “con las armas en las manos y peleando”. Quando capturou cativos a nenhum destes “dió la muerte; ántes sí les hizo siempre buen paraje solicitando a muchos el que volviessen gustosos a sus tierras” (Núñez, 1863 [1673], p. 26). Durante seu relato, Núñez de Pineda y Bascuñán muitas vezes afirma ter sido bem quisto entre os indígenas em respeito ao seu pai, de cujas características se apropria diversas vezes mostrando-se humilde, motivo pelo qual teria conquistado a amizade dos caciques e seus familiares. Ele relata que nos últimos dias de seu cativeiro recebera a visita de um cacique forasteiro 5 que, ao vê-lo e confirmar sua identidade, logo levantou-para abraçá-lo. Este cacique, após falar sobre como em sua juventude seu sangue fervia inclinando-o a guerrear pelas fronteiras, narrou que há muito tempo havia sido capturado pelos espanhóis durante uma batalha, e tomado cativo os “índios amigos” o solicitaram em parlamento 6 para matá-lo - porque era filho do toque 7 principal da parcialidade 8 de Villa Rica, Naucuante. Seria entónces este capitan de siete a ocho años, poco mas o menos, y habiéndome visto maltratado, lleno de sangre de uma herida que me habian dado en la cabeza, desnudo en cueros, como tengo referido, llorando amargamente mi desdicha (que yo era también muchacho, sentia com extremo el saber que me pedian los indios amigos para darme la muerte), llegó este niño y me preguntó la causa de mi alficcion y llanto, y dándole razon de mi trabajo y pena, me consoló grandemente con decir que no moriria, porque me tenia mucha lástima: quitó a su muchacho una manta nueva que llebava, y me la hizo poner encima, con que pude me abrigar, y al instante fué a su padre Alvaro y le pidió que me sacasen de entre los captivos [...] a este capitan hijo del Malticampo Alvaro debo la vida que tengo, los regocijos, los aplausos y los gustos que hoi poseo (Núñez, 1863 [1673], p. 285-286). Percebemos que, para Alvaro Núñez de Piñeda y Bascuñán, sua sorte devia-se, além da influência do pai e da humildade com que se colocava diante dos caciques, de uma boa dose de 5

Conforme no livro analisado o termo forasteiro indica que se trata de um cacique que pertencia a uma região distante – Villa Rica - da que o cativo se encontrava. Segundo seu testemunho os caciques dali nunca haviam visto tal cacique por aquelas regiões. 6 Reuniões em que os caciques indígenas decidiam sobre a guerra, a paz, e também desavenças internas. 7 Nomenclatura designada para referir-se ao cacique principal de cada parcialidade 8 Parcialidades era o termo pelo qual os europeus identificavam as divisões dentro das etnias indígenas.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 favor divino. Ele se descreve realizando ações meritórias como a acima apresentada, afirmandose fiel a Deus, e inclusive, ensinando às crianças indígenas orações em sua própria língua e batizando-as. Ele também demonstra sua fidelidade ao rejeitar as tentações sexuais representada pela oferta de mulheres, especialmente filhas de caciques. Tal atitude causava estranheza aos seus anfitriões por ser incomum entre os espanhóis que, além de aceitar as mulheres oferecidas, ainda roubavam outras, levando-as cativas. Ela também reforçava para os caciques a boa índole do jovem, que vivia o bom comportamento que verbalmente expressava. Em relação ao seu papel de católico fiel, tomaremos por exemplos as narrativas de quando ensinou ao filho do cacique Luancura a rezar em sua própria língua, ou do papel que desempenhou em mais de um rancho por onde passou, batizando meninos e meninas. Uma destas crianças, Ignácio - nome dada a ela por Núñez de Piñeda y Bascuñán homenageando o santo do dia – mostrava algum conhecimento prévio da doutrina que aprendera com outro espanhol que tinha vivido em sua casa. Após ser perguntado se sabia rezar, afirmou que sim. Então: dió principio a recitar el Padre nuestro en castellano idioma, que repitió hasta cerca del medio bien recitado. Preguntéle si entendia algo o sabia lo que queria decir lo que habia aprendido, y me respondió que no. Pues yo os enseñaré (le dije) en vuestro lenguaje las oraciones, para que entendiendo lo que contienen, las aprendais com mas gusto (Núñez, 1863 [1673], p. 155). Da escrita de Francisco Núñez de Pineda y Bascuñán nota-se que ele confere aos caciques indígenas com quem se relacionou bom coração, bom entendimento e boa razão, aspectos que os afastava da condição de selvagens que lhes era constantemente atribuída. Ele menciona que o cacique Aremcheu havia se ajustado a viver como cristão, vivendo apenas com uma mulher e rezando todas as noites as orações do Pai Nosso e a Ave Maria (Núñez, 1863 [1673], p. 226). Francisco Núñez de Piñeda y Bascuñán, como sempre justificando seus argumentos através de escritos bíblicos os compara muitas vezes aos povos hebreus da Antiguidade. POR QUE FELIZ? Distantes da época em que ocorreu o rapto, e da guerra realizada contra os indígenas no Chile, podemos exercer uma crítica diferenciada cujo entendimento resulta pouco diverso daquela que nos expôs o ex-cativo Núñez de Piñeda y Bascuñán. Sabemos que seu cativeiro ocorreu em um período que as relações entre os indígenas e os espanhóis encaminhavam-se para uma relativa paz. Com isso, os indígenas araucanos passavam a investir seus “malones” 9 para o outro lado da cordilheira, nas regiões da pampa bonaerense resultando no processo hoje referido por Araucanía (OPERÉ, 2001, p. 84). Em meados do XVII, depois de um período de intenso conflitos, as relações entre os povos da cordilheira e os hispano-criollos começaram a oscilar entre a guerra intermitente e o comércio. Podemos observar em “Cautiverio feliz” esta inclinação entre os mapuches ao abordarem - no Parlamento 10 em que decidiam sobre a estratégia que seria posta em prática para efetuar o câmbio -, as vantagens de agirem com outros cativos do mesmo modo como estavam agindo com o jovem capitão. Nesta ocasião, Mollbunante, realizador das negociações que estipularam os termos da permuta de Núñez de Pineda y Bascuñán em troca de seu cunhado , repreende: que no fuesen los fronterizos tan crueles ni tan inclinados (pasada la refriega) a derramar sangre de españoles; que la fortuna era vária, y se trocaban los tiempos por instantes; que hoi nos hallábamos alegre y 9

“Malones” eram as incursões indígenas aos territórios espanhóis no intuito de adquirir gado ou cativos. Podia também ser uma afirmação de poder, e representava para os jovens o rito de passagem para a condição de adultos e guerreiros. 10 Parlamentos eram cerimônias utilizadas pelas lideranças indígenas para se estabelecer relações diplomáticas. Entre outras coisas, decidiam sobre fazer a guerra ou estabelecer tratados de paz.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 contentos, y mañana doloridos y tristes, hoi libres y dueños de nuestras acciones, y mañana cautivos, presos y sujetos a voluntades ajenas (Núñez, 1863 [1673], p.491). Ainda neste mesmo parlamento, o cacique Tureupillan solicita ao jovem capitão que “no os olvideis de nosotros, significando a los españoles vuestros hermanos y compañeros, que no somos tan malos ni de inclinaciones tan perversas como nos hacen” (Núñez, 1863 [1673], p. 491). E prossegue rogando que, cuando esteis entre los vuestros, os compadezcais de los cautivos, soliciteis sus rescates, no permitais que los vejen ni que a sangre fria los ahorquen ni entreguen a los indios amigos, como suelen hacerlo, para quitarles la vida atrozmente; haced com ellos, finalmente, lo que con vos habemos hecho (Núñez, 1863 [1673], p.492). O temor de serem entregues cativos aos indígenas amigos dos espanhóis, resulta de que o rapto era prática comum entre os nativos, e o tratamento dos cativos dependia das relações existentes entre eles. Carlos Ávila (1994, p. 196) afirma que muitos indígenas amigos foram reavidos através de negociações com as parcialidades araucanas, dentre estes cativos era comum encontrar também negros, mulatos e mestiços. Muitos dos caciques mapuches que abrigaram o jovem cativo eram de idade bastante avançada, e nesta etapa da vida preferiam viver afastados da guerra. Os caciques menos velhos com quem Núñez de Pineda y Bascuñán conviveu tinham em algum momento exercido boas relações com os espanhóis e ambicionavam alguns dos bens – principalmente roupas – produzidos por estes. Conta o autor que quando se encontrava no forte em que a troca foi realizada, presenteouos com “mas de ochocentos pesos de ropa y jéneros” (Núñez, 1863 [1673], p. 515). Dentre os itens encontravam-se vestidos de pano azul, chapéus, calças, capas, grandes comprimentos de cintas coloridas para as mulheres, além de outros adornos, pentes e agulhas de prata (Núñez, 1863 [1673], p. 515). Um dos indígenas da parcialidade de Quilalebo aproximou-se em segredo e lhe solicitou negociar uma capa azul - pois estas eram muito estimadas entre os indígenas para usarem em suas festas – por um “tejillo de oro [...] y que se acordaria” do capitão por toda a vida (Núñez, 1863 [1673], p. 516). Embora, Núñez de Pineda y Bascuñán não dispusesse mais de nenhuma capa, sabendo da importância que os nativos davam aos produtos espanhóis, tratou de adquirir uma entre os soldados do forte e presenteou ao indígena que ficou muito agradecido. Segundo Fernando Operé, no tempo em que “Núñez de Pineda y Bascuñán entró en contacto com las tribus mapuches, el processo de tranculturación era um hecho” (2001, p.72). Ele afirma ainda que muito disto estava relacionado à presença de cativas espanholas nos ranchos indígenas, que acabaram por modificar a dieta. Também o regresso de mulheres indígenas que haviam vivido entre os espanhóis e conseguiram retornar a suas moradas, contribuiria neste sentido (OPERÉ, 2001, p.72). O cacique principal da região de Imperial, Quilalebo era um dos que tinha entre suas esposas uma espanhola e também uma filha mestiça – que inclusive havia oferecido a Núñez de Pineda y Bascuñán, demonstrando o tamanho de seu interesse em aparentarse com o jovem capitão. Fernando Operé afirma que o “ Cautiverio Feliz” foi um testemunho de exceção (OPERÉ, 2001, p. 85). Esta é uma reflexão com a que corroboramos. De fato, a obra de Francisco Núñez de Pineda Y Bascuñán é repleta de mostras de bons tratos recebidos por ele dos caciques com que teve contato. Por outro lado, é possível contemplar a desemelhança com que outros cativos foram tratados. Embora seu colega soldado que havia ficado servo do cacique Colpuche não tenha sido alvo de agressões físicas – ao menos isto não está narrado-, ele não aparece no relato compartilhando da companhia deste cacique principal, sendo agraciado com refeições e “chicha” como ocorreu com o jovem capitão. Entre as diferenças no tratamento há ainda o fato de que Núñez de Pineda y Bascuñán somente trabalhava a terra quando os caciques também a isso se

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 dedicavam, diferentemente do soldado cativo que realmente era tratado como servo. Inclusive, muitas são as passagens em que o cativo capitão ouve do cacique que não é um servo. Todavia, no que concerne ao desejo dos caciques serranos, Núñez de Piñeda y Bascuñán teria sido morto logo após a captura, sendo que estes tentaram até o dia de seu resgate, adquiri-lo para levarem isto a cabo. Os caciques da cordilheira planejavam arrancar sua cabeça e com ela correr os ranchos agregando parcialidades para uma grande ofensiva contra os espanhóis. Para esse fim, um deles ofereceu sua filha em troca do jovem capitão; outros ofereceram, além um outro cativo espanhol, colares, ovelhas da terra (lhamas), cavalos e outros itens que alcançavam no total valor suficiente para adquirir dez cativos espanhóis. Nesta ocasião, estes caciques – entre eles o que havia capturado Núñez de Piñeda y Bascuñán - torturaram e executaram um outro soldado espanhol. Maulicán – o captor – “dió en el celebro um tan gran golpe, que le echó los sesos fuera [...] Al instante los acólitos que estaban com cuchillos en las manos, le abrieron el pecho y le sacaron el corazon palpitando (Núñez, 1863 [1673], p. 43). Segundo Núñez de Pineda y Bascuñán, o cacique Maulicán e alguns dos outros caciques presentes teriam realizado o sacrifício do soldado por costume e convenção, mas era possível perceber nestes que não havia prazer naquele ato. Quando inquirido a negociar o jovem Núñez de Pineda y Bascuñán ele teria se esquivado da oferta argumentando que pretendia expor o sucesso de sua participação ao seu pai Llancareu. Mas, isso comprovou-se somente uma forma de ganhar tempo até estarem em suas terras, quando negou-se a entregar o cativo aos caciques serranos. Há de se salientar que entre a parcialidade de Maulicán também houve quem fosse favorável à morte de Núñez de Pineda y Bascuñán. Embora “Cautiverio feliz” não afirme que a vida em cativeiro fosse uma experiência tranquila para todos os cativos, a insistência em demonstrar boa acolhida e contínuas festas regadas à bebidas e comilança, podem levar o leitor desprovido de crítica histórica a apreender que os indígenas eram todos muito amigáveis, desconsiderando a transitoriedade das relações naquele contexto histórico. Ou ainda, a fama de Alvaro de Pineda y Bascuñan e a capacidade de adaptação dos caciques indígenas que viram aí a possibilidade de alcançar relações mais favoráveis no futuro. SEGUNDAS INTENÇÕES Na introdução de “Cautiverio feliz”, Diego Barros Arana alerta que a leitura poderia se tornar cansativa, devido às muitas digressões do autor. Ele chega a apontar que após o estudo da obra, lhe parecera que o verdadeiro intento de Núñez de Pineda y Bascuñán seria justificar seus méritos e obter recompensas. Contudo, o historiador afastou-se desta posição por crer que se assim o fosse, o autor teria privado de seu livro a maior parte de seu mérito. No entanto, cremos que havia segundas intenções no testemunho de Francisco Núñez de Pineda y Bascuñán. Além de sustentar a opinião de que os indígenas não eram pessoas de mau coração - que assim como existiam pessoas más entre os cristãos também haveria de existir em meio àqueles -, ele faz contínuas queixas tanto aos primeiros conquistadores - que teriam semeado a guerra, arrebatado cativos e traído a confiança dos indígenas -, quanto aos governadores de sua época. E aqui temos que considerar, segundo suas próprias palavras que, a imitacion de mis padres he continuado esta guerra mas de cuarenta años, padecido en cautiverio muchos trabajos [...] y con todo esto me tuviera por premiado si llegase a alcanzar um pan seguro con que poder sustentarme, y remediar en algo la necesidad de mis hijos (Núñez 1863 [1673], p. 5). Francisco Núñez de Pineda y Bascuñán encontrava-se pobre até sua promoção a mestre de campo em 1674 – um ano após concluir seu testemunho. Destarte, são recorrentes as passagens em que ele desmerece os governantes chilenos. O texto traz muitas considerações religiosas em que ele comparou os nativos com os hebreus da Antiguidade, ou utilizou-as para justificar-se como um bom cristão. Frequentemente sua escrita atribuindo aos espanhóis um péssimo governo

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 e extrema cobiça, motivos pelos quais estes sempre teriam atuado em interesse próprio, e a guerra no Chile jamais teria fim. Em uma das passagens em que ressalta o valor de seu pai, ele pondera que se o governador o tivesse escutado e não promovido aquela que foi posteriormente conhecida como batalha das Cangrejeras, uma derrota poderia ter sido evitada (Núñez 1863 [1673], p. 14). Sobre o interesse de Núñez de Piñeda y Bascuñán, Fernando Operé afirma que o excesso de retórica e a recorrência a citações jurídicas turvaram os propósitos que moveram o autor e dividiram a crítica (OPERÉ, 2001, p. 88). Em seu trabalho sobre cativos na América hispânica, ele afirma que, embora o cativo tenha demonstrado interesse pelos costumes e pelas práticas de guerra dos indígenas, perguntando e dialogando com eles, seu testemunho é também o relato de um cativo “criollo” (2001, p. 70). Isto é, o criolismo implica em uma tomada de posição desgostosa e contrária às disposições da Coroa. Nesta direção, Sonia Lopez Baena (2014) entende que, se por um lado Núñez de Piñeda y Bascuñán estava criticando a administração dos governadores do Chile, por outro criticava também a própria Coroa espanhola por designar tais governadores, que segundo ele, continuavam a guerra com o propósito de justificar seus próprios interesses. A autora acrescenta ainda que é perceptível no testemunho do jovem capitão detectar uma visão tipicamente eurocentrista. Neste sentido, complementamos que os indígenas com inclinação ao cristianismo eram os que Núñez de Piñeda y Bascuñán considerou sendo os de bom coração, boa razão e bom entendimento, enquanto que aos que não compartilhavam desta prontidão à religiosidade católica, ele referia como selvagens. Todavia, é importante ressaltar que ele afirma que os indígenas – mesmo os não cristãos – quando atacavam suas cidades não investiam contra suas igrejas por ódio a religião cristã, mas sim por perceberem nesta ação uma maneira de atingir os espanhóis, ferindo-os simbolicamente através do dano àquilo que mais lhes importava (Núñez 1863 [1673], p. 196). Sonia Lopez Baena aponta também para o fato de que a voz indígena intermediada pelo cativo tinha o propósito de legitimar sua experiência de ter sofrido padecimentos a serviço da Coroa. Logo, o texto seria uma espécie de Carta de Probanza de Mérito 11 (BAENA, 2014, p. 104). Neste caso, temos que ressaltar que, segundo Diego Barros Arana, até a publicação do livro em 1863, não fora encontrado entre as cartas de probanza do arquivo de Sevilla nenhuma que estivesse assinada por Núñez de Pineda y Bascuñán. Todavia, isto não impede que a circulação regional de Cautiverio Feliz y razón individual de las guerras dilatadas del reino de Chile não tenha surtido efeito similar. CONCLUSÕES Não temos a pretensão de afirmar que o cativeiro de Francisco Núñez de Pineda y Bascuñan não foi como ele relatou. Entretanto, parece-nos que ele pode ter valorizado o bom trato recebido pelos indígenas. Acreditamos que sua narrativa se destinou a vários propósitos. Primeiramente demonstrar como teve maior sorte entre os indígenas que entre os espanhóis. Secundariamente, esclarecer porque ele vivia uma situação de pobreza, assim como todo o reino do Chile. Portanto, cremos que sua condição, quando escreve, deve ter influenciado na evocação de memória do acontecimento, assim como, na representação que ele fez de seus contemporâneos. Todavia, não queremos supor que Núñez de Piñeda y Bascuñán não tivesse a integridade moral que afirmou ter, e tão pouco amenizar a má conduta dos governadores a quem ele se referiu. Observamos apenas que seu relato do cativeiro se contextualiza em um testemunho mais amplo, talvez não intencional, que apresenta de maneira positiva seus serviços prestados à Coroa. FONTE HISTÓRICA Cautiverio feliz y razon de las guerras dilatadas de Chile, por Don Francisco Nuñez de Pineda y Bascuñán [1673]. In: Coleccion de historiadores de Chile y documentos relativos a la historia 11

“Cartas de Probanza” de Mérito eram documentos através dos quais os conquistadores procuravam atestar seus feitos em nome da Coroa espanhola, esperando serem recompensados de alguma maneira.

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I COLÓQUIO DISCENTE DE ESTUDOS HISTÓRICOS LATINO-AMERICANOS – ISSN 2447-6277 nacional. Tomo III. Santiago: Imprenta del Ferrocarril, 1863. Disponível em: .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Carlos Lázaro. Los cautivos en la frontera araucana. Revista Española de Antropología Americana, 24. Madrid: Editora Complutense, 1994, pp. 191 – 207. BAENA, Sonia Lopez. La memoria indígena en Cautiverio Feliz y razón individual de las guerras dilatadas del reino de Chile de Francisco Núñez de Pineda y Bascuñán. Revista de estudios literarios y culturales. Universidad Complutense de Madrid. Diciembre, 2014, p. 101120. Disponível em: . OPERÉ, Fernando. Historias de la frontera: el cautiverio en la América hispánica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. 2001, 285p.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 7 ORGANIZAÇÕES, TRAJETÓRIAS E O PROTAGONISMO NEGRO

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A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NAS PÁGINAS DO JORNAL O TAQUARYENSE ................................... 375 A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA INFLUÊNCIA DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS E DO MOVIMENTO NEGRO PARA A FORMULAÇÃO DA LEI FEDERAL Nº 10.639/03 E DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFROBRASILEIRA ...................... 381 CORPO DE IMPERIAIS MARINHEIROS E A COMPANHIA DE APRENDIZES MARINHEIROS: ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DA ARMADA PARA CONSOLIDAÇÃO DO IMPÉRIO................................................. 387 DOS CLUBES PARA AS RUAS: REVISITANDO OS CARNAVAIS DE GUAÍBA/RS, UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE RECREATIVA IMPÉRIO SERRANO (1926 – 1971) .................................... 397 “MORENO REI DOS ASTROS A BRILHAR, QUERIDA UNIÃO FAMILIAR”: TRAJETÓRIA E MEMÓRIAS DO CLUBE NEGRO FUNDADO EM SANTA MARIA, NO PÓS-ABOLIÇÃO ..................................................... 403 O A ALVORADA NA DEFESA DA ETNIA NEGRA (1933-1934) ............................................................... 413 O TAMBOR REPINICA PELAS LEMBRANÇAS DOS VELHOS .................................................................. 419 PROTAGONISMO NEGRO ESTENDIDO A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA LEI 10.639/03 ................. 425 TRAÇANDO ESTRATÉGIAS NA DIÁSPORA: FRAGMENTOS DA TRAJETÓRIA DE AUGUSTO E MANOEL LUIS LEAL EM DESTERRO/SC (1850-1879) .................................................................................................. 433

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A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NAS PÁGINAS DO JORNAL O TAQUARYENSE Karen Daniela Pires 1 Neli Teresinha Galarce Machado 2 O jornal O Taquaryense é o segundo jornal mais antigo em circulação no Rio Grande do Sul. Foi lançado em 1887, na cidade de Taquari-RS, num cenário jornalístico marcado pela transição de uma tendência político-partidária para uma informativa-moderna no estado. Entre 1887 e 1888, o semanário publicou matérias, sobretudo sobre a abolição da escravatura no Vale do Taquari-RS. As publicações mencionam as liberdades concedidas, possibilitando o conhecimento de nomes e, em certos casos, da quantidade de escravos e de seus respectivos senhores nos municípios em que a mão de obra escrava era utilizada. Este artigo tem como objetivo analisar a visão do jornal O Taquaryense a respeito da abolição da escravatura no Brasil e no Vale do Taquari, desde o lançamento do periódico, em julho de 1887, até o mês da promulgação da Lei Áurea, em maio de 1888. Questiona-se a respeito da existência ou não de preocupações expressas no semanário sobre a condição socioeconômica dos negros na região. Considera-se a hipótese de que o jornal veiculou notícias e argumentos favoráveis ao processo de abolição da escravatura e silenciou em relação às questões sociais e econômicas relativas ao negro. A partir das características jornalísticas observadas no jornal e do uso do conceito de campo jornalístico, de Pierre Bourdieu, percebe-se que O Taquaryense tinha elementos modernos, pois não dependia de um partido político para se manter, sendo que havia assinaturas e publicidade. Para Bourdieu (1997), mais que o campo político e o campo econômico, e muito mais que o campo científico, artístico ou literário ou mesmo jurídico, o campo jornalístico está permanentemente sujeito à prova dos vereditos do mercado. Ou seja, depende da aceitação e consumo da comunidade. Assim, considera-se que o semanário, já nos primeiros anos de circulação, continha elementos importantes para se constituir num jornal atuante no campo jornalístico, pois não estava atrelado a partidos políticos nem a propostas essencialmente literárias, além de se preocupar com a conquista de maior número de leitores. Metodologicamente, utiliza-se as recomendações de Marialva Barbosa (1998), Cláudio Elmir (1995) e René Zicman (1985) sobre o uso da imprensa como fonte e objeto de estudo para a história. De acordo com os autores, é preciso levar em conta a subjetividade da produção de notícias, a caracterização geral do periódico estudado, a diferença entre a emissão e a recepção do conteúdo das publicações, a importância de se examinar uma quantidade significativa de matérias e a confrontação dos dados fornecidos pelo periódico com uma literatura crítica sobre o tema. Em setembro de 1887, O Taquaryense publicou uma matéria contendo elogios à atitude praticada pelo Sr. Villa Nova, um morador da cidade de Taquari, que entregaria uma carta de alforria a um escravo em comemoração à independência do Brasil: O Sr. Tenente-coronel José de Azambuja Villa Nova vai render um preito ao dia commemorativo de nossa independencia entregando carta de liberdade à sua escrava Belisiaria, parda, de 40 annos de idade. O acto que vai praticar o Sr. Tenente-coronel Villa Nova é tão humanitario e por si recommenda-se tanto, que dispensa-nos de elogios (O Taquaryense, 05/09/1887, p.01). Ainda em setembro de 1887, o jornal publicou duas outras matérias noticiando a libertação de escravos e opinando favoravelmente a ela. Primeiramente, no dia dez, o periódico estampou a seguinte nota: “Conforme noticiamos em nosso ultimo numero, realizou o Sr. Tenente-coronel José de Azambuja 1

Licenciada em História pelo Centro Universitário Univates. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento da Univates. [email protected]. 2 Doutora em Arqueologia pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História, do Programa de Pós Graduação em Ambiente e Desenvolvimento e do Programa de Pós Graduação em Ensino do Centro Universitário Univates. Coordenadora do Setor de Arqueologia do Museu de Ciências Naturais da Univates. [email protected].

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Villa Nova a promessa da entrega da carta de liberdade à sua escrava Belisiaria” (O Taquaryense, 10/09/1887, p. 03). Além de noticiar a respeito da libertação, a nota do dia quinze expressou apoio à abolição: “No dia 4 do corrente o Sr. José Pereira Pacheco, residente no município de Santo Amaro, concedeu plena liberdade à sua escrava [ilegível], satisfazendo assim a última vontade de sua esposa. É com prazer que registramos actos destes” (O Taquaryense, 15/09/1887, p.02). Os discursos abolicionistas irão surgir em meados do século XVIII, no contexto da ilustração europeia, com questionamentos em relação à legitimidade da escravidão. Deste então, por diferentes maneiras, partindo da emancipação escrava no Haiti, em 1794, até a abolição definitiva da escravidão no Brasil, em 1888, a instituição escravista foi legalmente extinta em praticamente toda a Afro-América (RIOS; MATTOS, 2004). Durante o período do Segundo Império (1840-1889), o tema abolição começou a ser discutido, pois existia uma pressão da Inglaterra sobre o Brasil, sendo que os ingleses queriam o cumprimento da lei antitráfico, de sete de novembro de 1831. O Império optou pela conciliação, ao invés de uma solução, contornou o problema, que não parou de crescer. (LOPEZ, 1982). A campanha a favor da abolição da escravatura foi inicialmente promovida pela Associação Central Emancipadora e pela Sociedade Brasileira contra a Escravidão. Em meio à discussão a respeito da abolição no cenário brasileiro, em alguns lugares do Vale do Taquari se formavam comissões abolicionistas, como no atual município de Taquari. Na matéria de outubro de 1887 do Taquaryense se conhece os nomes das pessoas que formavam tal comissão: A commissão nomeada para proceder neste município à abolição immediata da escravidão é composta dos seguintes nomes: Conego Manuel Joaquim Tostes, presidente da camara José Portirio da Costa, collector Leocadio Antonio Villa Nova, brigadeiro Albino José Pereira, Antonio Porfirio da Costa. Sociedade Emancipadora, Franklin dos Santos Praia, Geraldo Caetano Pereira e major Antonio José Vianna (O Taquaryense, 25/10/1887, p.03). Uma comissão foi formada no município de Santo Amaro-RS, também para tratar da liberdade dos escravos, conforme a publicação do semanário. Os nomes dos participantes eram citados, juntamente com a função que desenvolviam na comunidade, como pode ser observado abaixo: A commissão abolicionista nomeada para em Santo Amaro tratar da liberdade dos escravos, é composta dos cavalheiros: Vigario Vicente Florio, presidente da camara Jeronymo Gomes dos Santos, collector Antonio Soares de Azambuja, Nicolau Panicchi, capitão Luiz Fernandes da Silva, Geraldo Pinto Rangel, Zozimo Feliciano Barreto e Antonio Joaquim de Sá Brito (O Taquaryense, 30/10/1887, p. 2). No ano de 1850, tem-se a Lei Eusébio de Queiroz, que aboliu o tráfico negreiro, tendo como objetivo beneficiar o latifundiário. Entre os aspectos que se destaca nesta situação, estão o encarecimento dos escravos e as dívidas dos latifundiários para com os traficantes. Percebe-se que a situação econômica influenciou o rompimento do tráfico, uma vez que aliviava as dívidas dos comerciantes (LOPEZ, 1982). Na continuação das matérias que expõem as liberdades concedidas na região do Vale do Taquari, destaca-se um exemplo ocorrido na cidade de Taquari: O sr. Faustino José de Oliveira concedeu, no dia 30 do passado, liberdade plena à sua escrava Luzia, parda, de 27 annos de idade. Actos destes (liberdade plena, bem entendido) muito depõem em favor de quem os pratica. Não concordamos com as liberdades condicionaes, que são um prolongamento da escravidão, e, portanto, a taboa a que se agarram os escravagistas. Apezar de lento, o movimento abolicionista vai se operando em Taquary, e temos registrado serão um estimulo áquelles que ainda tem o absurdo direito de propriedade sobre creaturas humanas (O Taquaryense, 05/01/1888, p.02).

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Percebe-se nesta matéria a posição crítica do jornal à prática de concessão de liberdade condicional aos escravos, então quando um senhor concedia a liberdade plena, algumas palavras eram publicadas elogiando tal atitude. Outra informação que a matéria repassa é as abolições que estavam ocorrendo em Taquari, como as liberdades praticadas por alguns senhores poderiam servir de exemplo para outros senhores, e desta forma os escravos iam aos poucos recebendo a liberdade. As ideias de libertação do escravo negro no Rio Grande do Sul não sofreram as mesmas resistências que em outras regiões do país, Franz (2009) comenta que tal atitude estava relacionada com o sistema de produção que não dependia apenas da mão de obra escrava. E falando em liberdade, citase o ocorrido em São Jerônimo-RS: O Taquaryense publicou a notícia: “Em S. Jeronymo o promotor público trata de promover a libertação de 50 ou 60 escravos, matriculados com filiação desconhecida” (O Taquaryense, 05/01/1888, p. 2). Outra nota, intitulada Liberdade Plena, é exposta pelo jornal em relação à libertação de escravos no município de Taquari: O sr. David Canabarro concedeu no dia 31 de Dezembro findo liberdade incondicional ao seu escravisado Theodoro, preto de 22 annos de idade mais ou menos e o ultimo que possuia. O sr. Jeronymo Francisco de Vargas, morador neste município, entregou também cartas de liberdade plena a dois de seus escravos. Actos destes registra-se sem commentarios, porque patenteal-os é nobilitar quem os pratica (O Taquaryense, 12/01/1888, p. 2). O semanário menciona a concessão da liberdade sem prestação de serviços por parte do escravo, nota-se com isso a satisfação em noticiar tais atos, pois estes eram apoiados e representados em seu discurso abolicionista. Novamente, o jornal menciona em suas páginas a condição de liberdade condicional que o Sr. Adriano Saraiva da Fonseca, em São Jerônimo, concedeu aos seus escravos e coloca a opinião favorável a tal atitude. “Communicam-nos que em S. Jeronymo o nosso honrado assignante sr. Adriano Saraiva da Fonseca, libertou, com a condição de prestação de serviços por espaço de 3 annos, aos seus escravos Jeronymo, de 21 annos, e Belmira, de 35. Muito bem” (O Taquaryense, 12/01/1888, p. 2). No Brasil, o fim da escravidão e a inserção social no pós-abolição do ex-escravo tiveram contornos regionais específicos. Ou seja, cada região do país estabeleceu condições específicas para a escravidão. Como colocam Rios e Matos (2004), no nordeste o trabalho escravo se “dissolveu” mais cedo do que no centro-sul, além também do deslocamento de escravos das regiões nordestinas, principalmente para o sudeste, baseado no tráfico interno. A situação desumana dos negros escravos, para Monteiro (2012), impulsionou a criação das leis abolicionistas, iniciadas do conjunto de manobras sociais empreendidas entre o período de 1870 a 1888 em favor da libertação dos escravos, entre elas, a Lei do Ventre Livre de 1871, a Lei dos Sexagenários de 1885. Tais leis proporcionaram algumas mudanças no cenário da servidão negra. Importante ressaltar também a constituição de 1824, criada no período do Império, que mencionava a igualdade entre as pessoas. No entanto, os maus tratos aos escravos não foram interrompidos na sociedade escravagista. Será A Lei Áurea de treze de maio de 1888, sancionada pela princesa Isabel, que extinguirá a abolição no Brasil. Se em um primeiro momento a Lei Áurea significou a libertação dos escravos do domínio de seus senhores, para Monteiro (2012), no momento seguinte, fez com que os escravos fossem vítimas do sistema, uma vez que se encontravam livres, porém, não possuíam estudo, documentos, dinheiro, moradia, emprego, escola e nenhuma outra espécie de assistência social proporcionada pelo Estado. E ao comentar a respeito das leis abolicionistas, cita-se a publicação pelo Taquaryense de nomes de libertos da escravidão, porém condicionados à obrigação de serviços aos seus senhores por mais alguns anos. Conforme abaixo: Temos o prazer de registrar mais as seguintes liberdades: Dia 7. O sr. Sabino Garcia de Azevedo concedeu liberdade com a obrigação de serviços por 3

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annos, à sua escrava Joaquina, de 35 annos de idade. Dia 11. Os srs. José Antero de Siqueira, Theophilo Siqueira e Augusto Siqueira concederam liberdade plena ao escravo Adão, de 40 annos de idade. Dia 12. O sr. Antonio Joaquim de Siqueira Junior passou contracto por 3 annos, aos seus escravos Amaro, Felisbina e Victoria. O sr. Joaquim Bento de Moraes também concedeu liberdade, com a obrigação de serviços por 4 annos, à sua escrava Balbina. O sr. Antonio José da Costa passou contracto, também por 4 annos, aos seus escravos Camillo e Manuel. O sr. Hortencio R. Da Silva, por 4 annos, ao seu escravo Felisberto, de 18 annos de idade. D. Ignes Candida de Vargas, por 3 annos, ao seu escravo Antonio. Muito bem (O Taquaryense, 15/01/1888, p. 2). Na verdade a Lei Áurea não teve a preocupação com a situação do negro, sobre a forma que sobreviveria na sociedade, que então o escravizava. Monteiro (2012) comenta que alguns ex-escravos se dedicaram a pequenas roças de subsistência, outros não quiseram permanecer na atividade agrícola, então migraram dos campos para os grandes centros à procura de emprego, mas os trabalhos que encontravam eram precários, inaugurando, dessa forma, a mão de obra marginalizada. Monteiro (2012) continuará falando na falsa promessa de liberdade do negro, diz que a lei apenas decretou a liberdade, entretanto, na prática a situação não favorecia os ex-escravos, para que se sentissem realmente livres. A autora ressalta ainda que a liberdade concedida de direito não se concretizou na prática social, não se pode falar em liberdade de fato, de igualdade entre as pessoas, tampouco do reconhecimento da dignidade da pessoa humana dos escravos libertos. Outra notícia do semanário trata da concessão de liberdade aos escravos mediante a obrigação de serviços, isto se relaciona com a ideia do autor acima, em que menciona a falsa promessa de liberdade ao negro: O sr. Candido José Cardoso concedeu liberdade, mediante a obrigação de serviços por espaço de 4 annos, aos 7 escravos que possuia. Os srs. Capitão Tristão Gomes da Rosa, Miguel Francisco Dornelles e D. Francisca Maria da Silva, libertaram 1 cada um, também com a obrigação de serviços por 3 annos (O Taquaryense, 25/01/1888, p. 2). Além dos ex-escravos não terem uma estrutura para se manterem na sociedade, não conseguiram se desvencilhar da identidade escrava. Weimer (2007) enfatiza que se o pós-abolição era um campo de novas possibilidades para antigos escravos, colocá-los na condição de “ex” e relacioná-los com o passado era uma maneira de prendê-los a ele. Pode-se considerar que, após obter a liberdade o escravo não obteve uma identidade nova na sociedade que estava se inserindo. O semanário menciona uma lista com nomes de proprietários e de ex-escravos, se referindo aos contratos de locação de serviços, informações estas que demonstram a permanência dos laços de trabalho: João Duarte Martins, supplicante; o juizo, supplicado. Mandou-se fossem os autos apresentados à superior instancia. Foram julgados por sentença os entre: Manuel Duarte da Silva Pacheco e sua escrava Joaquina; Marcos José de Souza e sua escrava Eva; Ludovina Maria Fagundes e sua escrava Lucinda; João Baptista Martins e seu escravo Manuel; Israel Rodrigues Bizarro e seu esvravo Cezino; João Fernando Hass e seu escravo Domingos; Silverio Rodrigues da Silva e seus escravos Manuel e Theodora; Justiniano Pereira Duarte e seu escravo Alberto; Maria José Martins e seus escravos João, Balbina, Presciliana e Emilia; Joaquim Rodrigues da Silva e seu escravo Bento; Tristão Garcia da Rosa e seu escravo Manuel, Francisco Maria da Silva e seu escravo Pedro; Boaventura Martins da Silva e seus escravos Maximiano, Domingos, Joaquim, Benedicto e Helena. Os escravos referidos ficaram livres com condição de serviços (O Taquaryense, 25/02/1888, p. 2).

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A carta de alforria concedida a muitos escravos não representava um ato de generosidade do senhor, mas sim um ato comercial. Considerando que nem sempre o escravo era declarado livre imediatamente, pois havia uma série de condições que retardavam o pleno gozo da liberdade (FRANZ, 2009). Tal ideia é demonstrada na citação anterior, em relação aos contratos de serviços, ou seja, a liberdade dos escravos não foi completa. Novamente o semanário coloca uma nota relativa aos contratos de locação de serviços, demonstrando que não houve a liberdade total de muitos escravos, pois permaneceram submetidos aos seus senhores, após a abolição, em maio de 1888: Placido Cardoso da Silva e a escrava Justa, supplicantes; o juizo, supplicado. Fez-se contracto entre os supplicantes, ficando a escravisada restituida à liberdade, com o onus de serviços até o fim de 1890; e mandou-se fossem os autos conclusos ao sr. dr. Juiz de direito da comarca (O Taquaryense, 10/05/1888, p. 1). Mais uma vez, tem-se a demonstração do pagamento em serviço por parte dos escravos aos seus senhores, lembrando com isso a posição do jornal perante a atitude de concessão de liberdade condicional, e aqui se percebe que não foram acrescentadas palavras de elogios, apenas se noticiou o fato. Relembrando o objetivo geral deste artigo, que é analisar a visão do jornal O Taquaryense sobre a abolição da escravatura no Brasil, desde o lançamento do periódico, em julho de 1887, até o mês da promulgação da Lei Áurea, em maio de 1888, é que se apresenta considerações envolvendo o conteúdo das matérias. O semanário publicou informações sobre as liberdades concedidas por senhores da região do Vale do Taquari e, ao divulgar isso, elogiava tais atitudes e pedia que outros senhores também fizessem o mesmo. Além disso, tem-se a existência de comissões abolicionistas, como a de Taquari, Santo Amaro e Estrela, com destaque para os nomes dos integrantes que possuíam cargos de certa importância. Outro aspecto interessante nas notícias expostas se refere à prestação de serviços que o exescravo mantinha com o seu antigo dono, recebia a alforria, no entanto, precisava pagá-la. Conclui-se, que o jornal em análise expõe um discurso favorável ao processo abolicionista no período denominado, ou seja, os anos de 1887 e 1888. REFERÊNCIAS BARBOSA, Marialva. Jornalismo e História: um olhar e duas temporalidades. In: MOREL, Marco; DEVES, Lúcia M. B. P. das (Orgs). História e Imprensa: homenagem a Barbosa Lima Sobrinho 100 anos: anais do colóquio. Rio de Janeiro: UERJ/IFCH, 1998. BOURDIEU, Pierre; A influência do jornalismo. In: MACHADO, Maria L; Sobre a televisão. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1997. ELMIR, Claúdio P. As armadilhas do jornal: algumas considerações metodológicas de seu uso para a pesquisa histórica. Cadernos do PPG em História da UFRGS, Porto Alegre, nº13, p.19-29, dez.1995. FRANZ, Eloisa. O Negro Taquariense: do escravismo ao abolicionismo. Monografia. Curso de História, Centro Universitário Univates, Lajeado, 2009. JORNAL O TAQUARYENSE, Comissão abolicionista. Nº18, 25/10/1887, p.03. JORNAL O TAQUARYENSE, Horrível. Nº31, 05/01/1888, p.02. JORNAL O TAQUARYENSE, Liberdade plena. Nº31, 05/01/1888, p.02. JORNAL O TAQUARYENSE, Liberdade. Nº10, 15/09/1887, p.02. JORNAL O TAQUARYENSE, Liberdade. Nº8, 05/09/1887, p.01. JORNAL O TAQUARYENSE, Liberdade. Nº9, 10/09/1887, p.03.

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JORNAL O TAQUARYENSE, Libertações. Nº33, 15/01/1888, p.02. JORNAL O TAQUARYENSE, Não sabíamos. Nº32, 12/01/1888, p. 01 e 02. JORNAL O TAQUARYENSE, Libertação. Nº35, 25/01/1888, p.02. JORNAL O TAQUARYENSE, Parlamento. Nº56, 10/05/1888, p. 02. LOPEZ, Luiz Roberto. História do Brasil imperial. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982. MONTEIRO, Patrícia F. C. Discussão acerca da eficácia da Lei Áurea. Revista Meritum, Belo Horizonte, v.7, n. 1, jan. /jun. 2012. Disponível em: . Acesso em: 26. nov. 2014. RIOS, Ana M; MATTOS, Hebe M. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. TOPOI, Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004. Disponível em: . Acesso em: 19 de nov. 2014 WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os nomes da liberdade. Experiências de autonomia e práticas de nomeação em um município da serra rio-grandense nas duas últimas décadas do século XIX. São Leopoldo, 2007. Dissertação de mestrado. Disponível em: . Acesso em: 20. nov. 2014. ZICMAN, Renée B. História através da imprensa: algumas considerações e metodológicas. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História/PUCSP. São Paulo: PUCSP, n. 4, 1985.

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A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA INFLUÊNCIA DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS E DO MOVIMENTO NEGRO PARA A FORMULAÇÃO DA LEI FEDERAL Nº 10.639/03 E DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFROBRASILEIRA Wagner dos Santos Chagas 1 INTRODUÇÃO Este artigo tem o objetivo de apresentar a influência dos Organismos Internacionais como a ONU e a UNESCO, bem como a luta dos Movimentos Sociais Negros no século XX para a formulação da Lei Federal nº 10.639/03 que alterou a LDB nº 9.394/96, incluindo no currículo oficial das Redes de Ensino a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Na primeira parte do texto intitulado “As influências dos organismos internacionais na formulação da Lei Federal nº10.639/03”, busco apresentar a discussão acerca da influência dos organismos internacionais na formulação das políticas antirracistas no Brasil, por meio das convenções e conferências organizadas tanto pela ONU quanto pela UNESCO, como a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino, organizada pela UNESCO em 1960, e as três Conferências Mundiais Contra o Racismo, que ocorreram em 1978, 1983 e 2001, organizadas pela ONU. Já na segunda parte do texto intitulado “A luta do Movimento Negro para a formulação da Lei Federal nº 10.639/03”, busco apresentar a trajetória histórica da luta do grupos do Movimento Negro como a Imprensa Negra, a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro e o Movimento Negro Unificado para a utilizar a educação como arma de luta contra o racismo. Luta essa materializada pela promulgação da Lei Federal nº 10.639/03. AS INFLUÊNCIAS DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS NA FORMULAÇÃO DA LEI FEDERAL Nº 10.639/03. Desde a década de 1970, o FMI e o Banco Mundial 2 exercem um papel central na disseminação das ideias neoliberais, exercendo uma grande influência nos rumos políticos e econômicos dos países em desenvolvimento, principalmente na América Latina. Nesse período, os países latino-americanos, seguindo a orientação dos pressupostos neoliberais, iniciam um conjunto de reformas que visam a reestruturar o papel do Estado. As características desse processo de reestruturação do papel do Estado nas áreas econômicas e políticas, segundo Corsetti (2004, p.62), podem ser destacadas pela “diminuição da intervenção do Estado na economia da adoção de políticas sociais de caráter compensatório e o abandono das práticas de bem-estar social” As duas décadas seguintes, 1980 e 1990, foram emblemáticas para o fortalecimento das reformas políticas e econômicas nos países latino-americanos, onde o Estado, conforme escreve Corsetti (2004), passou a ter um caráter subsidiário, destinando-o fundamentalmente à regulação e desenho das políticas sociais, enquanto o setor privado foi assumindo um papel destacado no oferecimento dos serviços sociais. Mas a escassez de recursos econômicos para construir e por em prática essas políticas sociais, fizeram com que as nações da América Latina buscassem no Banco Mundial os recursos financeiros necessários para a formulação e efetivação de tais políticas. Através desses empréstimos, o Banco Mundial passa a exercer uma forte influência nos rumos da economia e na formulação das políticas dos países mutuários, pois uma das principais condicionalidades impostas pelo BM ao conceder um

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Professor de História da Rede Municipal de Ensino de Esteio. Doutorando em Educação pelo PPGEdu/ UNISINOS como bolsista do CNPQ. Integrante dos seguintes grupos de pesquisa vinculados ao PPGEdu/Unisinos: GP Estudos Feministas e o Conceito de Amanualidade e GP Educação Digital. 2 O Fundo Monetário Internacional tem a função de conceder empréstimos de curto prazo para questões macroeconômicas, estabelecer normas de conduta política para os países credores e definir condicionalidades para a oferta de créditos aos mutuários. Já o Banco Mundial atua como organismo de financiamento e de assistência técnica para projetos na área econômica e social de países em desenvolvimento.

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empréstimo é a sua participação na formulação e definição das políticas de longo prazo nas áreas financiadas. Outra condicionalidade muito importante imposta pelos organismos internacionais é a ratificação dos países credores aos compromissos definidos pelas convenções organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Da mesma forma que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional exercem grande influência na formulação das políticas setoriais no Brasil, outros organismos internacionais também têm um papel de destaque no que diz respeito à formulação dessas políticas. Podemos destacar a influência de convenções e conferências organizadas tanto pela ONU quanto pela UNESCO, como a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino, organizada pela UNESCO em 1960, e as três Conferências Mundiais Contra o Racismo, que ocorreram em 1978, 1983 e 2001, organizadas pela ONU. Esses eventos definiram o significado dos conceitos de racismo, preconceito racial e discriminação, da mesma forma que contribuíram para a elaboração de um plano de ação por parte dos países participantes das conferências, plano este contendo estratégias e práticas realizáveis para combater o racismo e todas as formas de discriminação, bem como o estabelecimento de medidas de proteção a todos os povos que sofrem com o flagelo do racismo. A Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino, organizada pela UNESCO, no ano de 1960, foi a primeira iniciativa que reuniu vários países para discutirem e problematizarem sobre racismo e a discriminação nas escolas de todo o mundo. O artigo IV dessa Convenção demonstra a pressão exercida pela UNESCO na formulação das políticas educacionais das Nações participantes, pois fica estabelecido nesse artigo que os Estados, partes na presente Convenção, comprometem-se à formular, desenvolver e aplicar uma política nacional que vise promover a igualdade de oportunidades, tratamento em matéria de ensino e, principalmente, tornar obrigatório e gratuito o ensino primário. Para monitorar a formulação, o desenvolvimento e a aplicação de políticas educacionais em âmbito nacional, a UNESCO estabelece que os países que ratificarem a Convenção, deverão enviar um relatório que apresentará à Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, nas datas e sob a forma que ela determinar, as disposições legislativas regulamentares e as outras medidas que tomarem para a aplicação da presente Convenção, inclusive as tomadas para formular e desenvolver a política nacional definida no artigo IV, assim como os resultados obtidos e os obstáculos encontrados em sua aplicação. Com a pressão exercida pela UNESCO através dos relatórios, as Nações que participaram da Convenção de 1960 procuram implementar as reformas educacionais em seus sistemas de ensino nacionais. Caso não tenham recursos econômicos para executar a reestruturação das políticas educacionais nacionais, os países recorrem a empréstimos junto ao Banco Mundial que, através de suas condicionalidades, influenciam os rumos da produção dos textos políticos educacionais. Aliada a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino, a ONU organizou nos anos de 1978 e 1983, em Genebra (Suíça), as duas primeiras Conferências Mundiais para o Combate ao Racismo e à Discriminação Racial. Essas duas conferências trataram da luta contra todas as formas de discriminação, o fim das teorias baseadas na superioridade racial e condenaram o regime de segregação racial da África do Sul (Apartheid). Ambas as conferências formularam medidas específicas que assegurassem a implementação de instrumentos das Nações Unidas para a eliminação de práticas racistas e discriminatórias. A terceira Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, organizada pelo ONU, na cidade de Durban (África do Sul), no ano de 2001, apresentou algumas diferenças das conferências anteriores, pois apresenta, segundo o texto da Declaração de Durban (2001), estratégias para alcançar a igualdade plena e efetiva, abrangendo a cooperação internacional e o fortalecimento das Nações Unidas e de outros mecanismos internacionais no combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlatas.

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Essas estratégias, segundo a própria Declaração de Durban, devem ser compostas pela implementação de programas, políticas e legislações em níveis nacionais, regionais e internacionais contra o racismo e toda a forma de discriminação, reconhecendo a importância da colaboração entre os Estados, as instituições financeiras internacionais e as organizações não-governamentais. Para a efetivação dessas estratégias, os países que participaram do encontro teriam que seguir o Programa de Ação estabelecido na própria declaração da conferência, que tinha a finalidade de transformar as estratégias em ações concretas, práticas e realizáveis. No decorrer do texto do Programa de Ação, podemos identificar algumas orientações que exemplificam a influência dos organismos internacionais na formulação das políticas locais dos países participantes da Conferência em Durban. Em um desses exemplos, a Declaração de Durban (2001) insta os Estados, em seus esforços nacionais e em cooperação com outros Estados e com instituições financeiras regionais e internacionais, a promoverem o uso de investimentos públicos e privados com consulta às comunidades atingidas, a fim de erradicar a pobreza, particularmente naquelas áreas em que as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata. A partir dessa solicitação de cooperação entre os Estados e as instituições financeiras internacionais, o Programa de Ação da Declaração de Durban (2001) insta os Estados a promoverem a inclusão da história e da contribuição dos africanos e afrodescendentes no currículo educacional com o intuito de influenciar a produção de políticas alinhadas aos interesses dos organismos internacionais. Além de propor aos Estados o desenvolvimento de programas destinados à melhoria e acesso de serviços nas áreas da saúde, economia e infraestrutura habitacional financiada pelo capital estrangeiro, para a população afrodescendente, o Programa de Ação da Declaração de Durban é um exemplo de tratado internacional que influenciou a criação de políticas educacionais de ação afirmativa no Brasil. Essa influência fica explicita no item 10 do Programa de Ação, que aborda a inclusão da história e da contribuição dos africanos e afrodescendentes nos currículos educacionais, visto que em janeiro de 2003 e em outubro de 2004 foram promulgadas, respectivamente, a Lei Federal nº 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A LUTA DO MOVIMENTO NEGRO PARA A FORMULAÇÃO DA LEI FEDERAL Nº 10639/03 No Brasil, podemos identificar as ações propostas pelos movimentos sociais negros em vários momentos do século XX como iniciativas de ação afirmativa para a população afro-brasileira. Essas iniciativas de ação afirmativa serviram como práxis para romper com o processo de invisibilidade social imposto pela escravidão. Os movimentos sociais negros passaram a conferir valorização a educação formal, que se consolidou como uma das mais importantes formas de luta pela igualdade racial. Dentre os principais movimentos sociais negros do século XX estão a Imprensa Negra, a Frente Negra Brasileira (FNB), o Teatro Experimental do Negro (TEN) e o Movimento Negro Unificado (MNU). Nas primeiras décadas do século XX, em São Paulo, foram criados os primeiros jornais vinculados às associações negras como associações beneficentes, sociedades dançantes, clubes recreativos, clubes de futebol, entre outros. Esses primeiros jornais, embriões da imprensa negra no Brasil, tratavam de assuntos restritos às suas associações, como bailes, seus associados e eventos esportivos. Segundo Santos (2007), esse quadro muda a partir da segunda década do século XX, pois esses jornais passaram a divulgar não somente acontecimentos sociais, mas também assuntos de natureza social e econômica da sociedade e, principalmente, assuntos de natureza política. Consequentemente, passaram a discutir a questão racial e acabaram combatendo a discriminação racial, por meio de denúncias e protestos publicados nesses periódicos negros. Essa mudança na linha editorial desses jornais, que agora têm objetivos de discutir problemas ligados ao preconceito racial e às condições sociais da população negra no Brasil, marca a formação da Imprensa Negra. Conforme escreve Santos (2007), nos jornais da imprensa negra paulista do começo do século XX, que datam dos anos 1920 ao final dos anos 1930, encontram-se artigos que incentivam o estudo, divulgam escolas ligadas a entidades negras, dando-se destaque àquelas mantidas por professores negros. Encontram-se também mensagens contendo exortações aos pais para que

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encaminhem seus filhos à escola e aos adultos para que completem ou iniciem cursos, sobretudo os de alfabetização. A Imprensa Negra se constituiu como um dos principais instrumentos de expressão e luta da comunidade negra, não apenas contra a discriminação racial e pelo incentivo a educação escolar dos afrodescendentes, mas também pela articulação entre os editores e produtores desses veículos de comunicação, que foram fundamentais para a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931. A Frente Negra Brasileira se consolidou como uma das mais importantes instituições de luta afrobrasileira contra o racismo do início do século XX. Além de São Paulo, a FNB fundou núcleos em diversos Estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, entre outros. Essa organização, que se tornou partido político em 1936, alcançou o status de grande referência da população negra brasileira como instrumento de expressão dos ideais dessa comunidade na época. Os militantes da FNB entendiam que a defesa dos negros e dos seus direitos seria alcançada a partir da participação mais ampla e direta nas esferas social, econômica, educacional e política brasileira. Para Munanga e Gomes (2006), a principal proposta dos frentenegrinos fundamentava-se em uma filosofia educacional, acreditando que o negro venceria à medida que conseguisse firmar-se nos diversos níveis da ciência, das artes e da literatura. Cabe aqui citar que na escola da FNB também frequentavam as aulas crianças brancas pobres e filhos de imigrantes japoneses. Os frentenegrinos escolarizados se propuseram a ministrar aulas de “outros cursos preparatórios, entre os quais, de inglês e de admissão em outros níveis educacionais” (SANTOS, 2007, p.81). Em 1937, com a instauração do regime ditatorial do Estado Novo pelo presidente Getúlio Vargas, a Frente Negra Brasileira e os demais partidos políticos brasileiros foram extintos. A mobilização dos movimentos sociais negros sofre uma interrupção no processo de “inclusão da questão racial na agenda pública brasileira, bem como o projeto de escolarização de parte da população negra por parte da solidariedade sócio-racial da elite negra da época” (Idem, 2007, p 83). As tentativas de inclusão da questão racial na agenda pública brasileira retomam o seu curso com a fundação do Teatro Experimental do Negro (TEN) pelo ex-militante da Frente Negra Brasileira, Abdias do Nascimento, em 1944. O TEN, como todos os movimentos negros que o antecederam, tinha a educação uma de suas principais bandeiras de luta. Foram organizados cursos de alfabetização nos quais operários, empregadas domésticas, pessoas sem profissão definida e funcionários públicos foram alfabetizados. Segundo Santos (2007), eles usaram o palco como tática desse processo de educação da população negra, oferecendo uma nova atitude, um critério próprio que lhes habilitavam também a ver e a descobrir o espaço que ocupavam dentro do grupo afro-brasileiro no contexto social. O teatro e a educação não foram os únicos meios de combate à discriminação racial utilizados pelo TEN. Seus integrantes organizaram ou patrocinaram vários congressos e conferências nacionais com a finalidade de proporcionar espaços de discussão e reflexão sobre questões como racismo e a discriminação sofrida pela população negra no Brasil. O Teatro experimental do Negro se destacou como um dos mais importantes movimentos sociais negros do século XX, por apresentar as primeiras propostas de ações afirmativas aos afro-descentes na área da educação e por combater o racismo. Da mesma forma que a Frente Negra Brasileira teve as suas atividades suspensas com a instauração da ditadura de Vargas, o TEN foi extinto em 1968, no período da Ditadura Militar no Brasil. No final da década de 1970 e início da década de 1980, os movimentos sociais negros voltaram a ganhar força. É nesse contexto de retomada da efervescência dos movimentos sociais contra a ditadura que ocorreu uma grande manifestação, na cidade de São Paulo, organizada por vários movimentos negros. “Reunidos nas escadarias do Teatro Municipal protestaram contra a morte, sob torturas, do trabalhador negro Róbson Silveira da Luz e a discriminação sofrida por quatro atletas juvenis negros, expulsos do Clube de Regatas Tietê” (MUNANGA; GOMES, 2006, p.129). Durante a manifestação, que levou à rua mais de duas mil pessoas, se deu a unificação das várias organizações negras presentes,

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dando origem ao Movimento Negro Unificado (MNU). O MNU tornou-se uma das principais entidades negras da atualidade, possui um caráter nacional, com sedes em Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e em outros estados. A luta contra a discriminação racial, as propostas para a superação do racismo na educação escolar, a discussão da questão racial dentro dos partidos de esquerda brasileira e a formação de lideranças políticas negras para atuar nas esferas são algumas das muitas ações do MNU desde a sua fundação. No ano de sua fundação, em 1978, o Movimento Negro Unificado valorizou o ato em homenagem a Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, realizado pelo Grupo Palmares, em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 1971, propondo assim que esse dia se tornasse o Dia Nacional da Consciência Negra. Em 1986, ano de mobilização da sociedade brasileira para a elaboração da nova Constituição que entraria em vigor no ano de 1988, o MNU, juntamente com outros movimentos negros, enviou para os membros da assembleia constituinte uma longa lista de reivindicações retirada da Convenção Nacional do Negro pela Constituinte. E na primeira metade da década de 1990, o MNU, juntamente com outros movimentos negros, organizou um dos mais importantes eventos de protesto e luta contra o racismo e seus derivados, a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. A mobilização dos movimentos sociais negros tencionando os governantes em âmbito federal, estadual e municipal para a criação de leis com a finalidade de combater o racismo, segundo Vieira (2003, p.93), demonstram o “pioneirismo das organizações da sociedade civil na implementação de ações afirmativas”. A expressão máxima desse pioneirismo se materializou no dia 9 de janeiro de 2003, após anos de intensa luta pelos movimentos sociais negros contra o racismo e pela melhoria das condições de vida da população negra, quando foi sancionada, pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei nº 10.639/03, que inclui o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira em todos os currículos das escolas de Ensino Fundamental e de Ensino Médio do país. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse artigo buscou apresentar as influencias dos Organismos Internacionais e a luta dos Movimentos Sociais Negros que resultou na formulação e promulgação da Lei Federal nº 10.639/03. Esses organismos internacionais exerceram grande protagonismo na luta contra o racismo e seus derivados durante o século XX. Da mesma forma, o Movimento Negro representou a luta dos afrobrasileiros pela valorização da História e Cultura Africana e Afrobrasileira nos currículos escolares brasileiros e a educação como instrumento de ascensão social. Na primeira parte do texto, ao contextualizar a ação da ONU e da UNESCO por meio de suas conferências, principalmente na Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata em Durban, fica clara a sua influência direta para a criação de políticas educacionais de ação afirmativa no Brasil. Pois dois anos após a sua realização, foi promulgada a Lei Federal nº 10.639/03, que introduzia nos currículos nacionais o ensino de História e Cultura Africana e Afrobrasileira e, tempos depois, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Esse impacto na formulação das políticas antirracistas no Brasil aconteceu, pois tanto o FMI quanto Banco Mundial concedem empréstimos para que os países signatários, nesse caso específico o Brasil, possam pôr em prática os programas de ação impostos nas referidas convenções. A fim de garantir que todos os itens dos programas de ação sejam cumpridos, essas agências de fomento político e econômico estabelecem normas de conduta política para os países credores, definindo condicionalidades para a oferta de crédito, assistência técnica para a formulação e implementação dos projetos nas áreas econômica e social dos países signatários dessas conferencias. Na segunda parte do texto, ao apresentar a trajetória histórica da luta do grupos do Movimento Negro, fica claro que esses grupos que tencionaram e tencionam o Estado pela formulação e

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promulgação de leis que combatam o racismo e seus derivados (Imprensa Negra, pela Frente Negra Brasileira, pelo Teatro Experimental Negro e pelo Movimento Negro Unificado), representam a influência dos atores nacionais na luta pela valorização da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares brasileiros. A Lei Federal 10.639/03, que inclui nos currículos oficiais das redes de ensino de todo o Brasil a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, representam a materialização, em forma textual, de mais de cem anos de luta do Movimento Negro. REFERÊNCIAS CHAGAS, Wagner dos Santos. Do contexto da influência ao contexto da prática: Caminhos percorridos para a implementação da Lei nº 10.639/03 nas escolas municipais de Esteio-RS. 2010. 119f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale do Rio do Sinos, 2010. CORSETTI, Berenice. Reflexões sobre globalização, política educacional e a reforma do ensino no Brasil. In: ZARTH, Paulo Afonso. Ensino de História e Educação. Ijuí:UNIJUI. 2004. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA. Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino organizada pela UNESCO. Paris. 1960. Disponível em . Acesso em: 17 dez. 2009 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, DiscriminaçãoRacial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Durban. 2001. Disponível em: Acesso em: 17 dez. 2009 SANTOS, Augusto Sales dos. A Lei nº 10.639/03 como Fruto da Luta Antirracista do Movimento Negro. In: Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. p. 21-37. VIEIRA, Andréa Lopes da Costa. Políticas de educação, educação como política: Observações sobre a ação afirmativa como estratégia política. In: SILVA, Petrolina Beatriz Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). Educação e ações afirmativas: Entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: INEP/MEC, 2003. p. 81-97.

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CORPO DE IMPERIAIS MARINHEIROS E A COMPANHIA DE APRENDIZES MARINHEIROS: ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DA ARMADA PARA CONSOLIDAÇÃO DO IMPÉRIO Cosme Alves Serralheiro 1 As Companhias de Aprendizes Marinheiros não surgiu por um acaso, fez parte relativo a um projeto ousado da criação de um conjunto de dezoito Companhias instituídas na Corte e em dezessete províncias do Império, durante vários períodos. A criação dessas instituições era uma tentativa das autoridades brasileiras de criar Marinheiros oferecendo-os algum tipo de atividade técnica/profissional para servir à nação, em substituição ao recrutamento compulsório na qual se constituía quase que exclusivamente na única fonte de captação de pessoal para os serviços da Armada imperial. Tudo isso foi num momento em que o Brasil se deparava com tensões de conflitos em algumas provinciais. Com essas celeumas se foi necessário criar instituições com intuito de (re)criar uma Armada forte. O recrutamento compulsório fazia parte de um mecanismo de controle e coerção social para o trabalho. Concedia à Marinha imperial contingentes de trabalhadores, retirar das ruas aqueles elementos considerados socialmente desclassificados, através do atributo de reprimir, vadios e criminosos: negros livres ou alforriados. Foi com esses ideais políticos/sociais que usar as Companhias se tornou imperativo para consolidação do Império. Para entendermos melhor a criação das Companhias de Aprendizes partimos do ano de 1836 que permite compreender o quanto os ideais das autoridades sobre a questão da nacionalização da Armada Imperial trouxe uma nova organização a essa instituição brasileira. Desta maneira poderemos entender como surgiu os centros de formação de Marinheiros. Relatos nos mostram a diversidade de tripulantes estrangeiros e negros a bordo, tendo como principal interesse a nacionalização das guarnições. A heterogeneidade da tripulação dos nossos Navios de Guerra, que infelizmente não podemos ainda destruir, e talvez causa de não poucos males, que tenhamos sofrido. Qualquer que seja a habilidade dos Marinheiros Estrangeiros, e claro, que tomarão, como nós, tanto interesse pelo país, á que servem; e ninguém ignora os prodígios, de que e capaz o entusiasmo pela Glória Nacional, e quanto mais vezes dele e depende a sorte dos combatentes. (MARINHA, 1831, p. 5) 2 Essa heterogeneidade diz respeito aos Marinheiros estrangeiros a bordo dos vasos de guerra, pois naquele momento as tripulações da Armada brasileira eram formadas em sua grande parte por estrangeiros principalmente portugueses. Muitos desses por questões de se não alto afirmarem nacionais praticavam o desleixe com os afazeres diários e a insubordinação para com seus subordinados. Mesmo assim, uma minoria de “nacionais” e escravos, muitos deles libertos para esse fim, também tripularam os navios da Armada nos verdes anos do Império (JEHA, 2011, p. 51). A nação brasileira ainda não estava formada por completa. Nação pode ser definida como um grupo de indivíduos que se sentem unidos pela origem comum, pelos interesses comuns e, principalmente, por ideais e aspirações comuns (AZAMBUJA, 1999, p. 31). Já Benedict Anderson nos traz outro conceito de nação e nacionalismo: Parto de que a nacionalidade, ou como talvez se prefira dizer, devido às múltiplas significações dessa palavra, nation-ness, bem como o nacionalismo, são artefatos culturais de um tipo peculiar. Para compreendê-los adequadamente é preciso que consideremos com cuidado como se tornaram entidades históricas, de que modos seus significados se alteraram no correr do tempo, e por que, hoje em dia, inspiram uma legitimidade emocional tão profunda. (1991, p. 12)

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Mestrando em História Pela Universidade Federal de Pelotas A partir desse momento as citações desse período serão atualizadas para o português atual.

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A definição de nação para Anderson envolve as noções de soberania e limite, sempre situado para além da fronteira geopolítica, diretamente ligadas à construção do “outro”. A partir das observações do autor, é possível perceber como a construção da nação possui a peculiaridade de estar desvinculada do lado empírico e encontra no imaginário seu principal veículo de elaboração. Poderíamos trabalhar com vários conceitos de nação e nacionalismo seria uma forma de implementar esse trabalho, contudo ficaremos com esses autores acima citados que mais se encaixam na nossa temática 3. A dominação colonial tinha sustentado vários atrasos na indústria fabril e deviam-se aos obstáculos invencíveis que encontrava todos os gêneros do progresso no antigo sistema colonial. Sabe-se também que várias províncias não aderiram imediatamente ao Imperador D. Pedro e ainda para piorar a situação algumas delas se revoltaram contra ele naquele momento. Muitos habitantes mostravam aversão e desprezos pelo português, carregavam em si o ranço colonial no país, resultando em conflitos que alteraram as vidas das cidades coloniais, no primeiro e no segundo reinado como por exemplo, a Revolução de Pernambucana de 1817; Confederação do Equador, em 1824; acorrida em Pernambuco; a Cabanagem, Farroupilha e as revolta dos Malés, em 1835, ambas em Pará, Rio Grande do Sul e Bahia; Sabinada, em 1837, na Bahia; e Balaiada, em 1838, no Maranhão. 4 Diante da instabilidade política, os políticos viram na Armada imperial o grande instrumento de preservação da unidade nacional, por isso, colocaram a responsabilidade sobre ela. A força naval foi ampliada e seu contingente aumentado, contratando-se inclusive estrangeiros, de alta patente, como os almirantes John Taylor, Labatut, Cochrane e Greenfeld. Porém, foi nesse mesmo período, que, experiências e ideias começaram a ser utilizadas no sentido de também militarizar e nacionalizar e as guarnições. (NETO, 2001, p. 59) Outra a questão importante que permeia a nacionalidade da Armada é que na atualidade muitos historiadores navais brasileiros têm uma aceitação bastante explícita de que a Marinha Imperial nasceu adulta, formada como parte da Marinha portuguesa, com suas tradições, procedimentos, pessoal e espírito Lusitano (BITTENCOURT, 2007, p. 86). Para alguns historiadores a criação dela se deu no momento da transferência da corte em 1808. É uma interpretação aceitável, porém questionável, pois a Marinha que chegou aqui em solo brasileiro, era portuguesa, assim se manteve até 1822, quando na Independência o Brasil tinha assinado seu desmembramento político e até social com a metrópole, afluindo assim à vontade de criar uma Armada exclusivamente brasileira. Com uma marinhagem portuguesa a bordo dos navios brasileiros, esse pessoal incomodava de certa forma as autoridades nacionais, foi então a necessidade de nacionalizar nossa Armada com a criação das Companhias Fixas de Marinheiros. Cumpre, pois criar, Companhias fixas de Marinheiros, aonde se obriguem a servir, como Aprendizes Marinheiros todos os rapazes sem meios de subsistências, e os que se não aplicarem assiduamente a algum Oficio ou ocupação: estes Corpos devem ser organizados de tal forma, que se tornem aptos para todo o serviço de Mar, e aprendam conjuntamente o manejo da artilharia, de fuzil, e de todas as armas, que se usam nos combates de terra. Deste modo conseguiremos formar uma Marinha numerosa, e respeitável pela qualidade das tripulações, e converter em hábeis, e bravos defensores da Pátria, indivíduos, que pelas desgraçadas circunstancias, em que achavam na sociedade, seriam impelidos a viver na ociosidade, e no crime. (MARINHA, 1836-1, p. 8) A falta de uma Marinha profissional já incomodava as autoridades imperiais somada com uma larga costa marítima e imensa quantidade de valiosos produtos principalmente de agricultura. A defesa desses empórios do comércio e a preservação do inabalável trono Imperial, buscava manter a ordem social, a tranquilidade, obediência as leis, vista do funestíssimo exemplo da tenaz e sanguínea rebelião, que naquela fase assolava algumas províncias, eram motivos bastante relevantes naquele período colonial. Dentre as várias necessidades de autonomia surgidas após independência 1822, a de controle 3

Ver CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 1986, MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre o dom: Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, 1974. 4 FRAGA, Rose Maria do N. A Praieira em jornais do século XIX - constituição discursiva e identidade sociais, Tese do Doutorado apresentado no programa de pós-graduação em letras da Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2008.

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da extensa faixa litorânea era uma das mais urgentes. O governo do novo Império sabia da importância do domínio marítimo. Para isso, foi necessário distribuir suas forças pelo litoral, deixando-as prontas para defesa. Para tripular esses navios “dispersos” pelo litoral era necessário ter homens capazes para fazer a manutenção e a condução das atividades marinheiras a bordo daquelas belonaves. Com a proposta sobre a fixação de forças inspirado pelas ideias de Rodrigues Torres, a Assembleia Geral Legislativa na sessão ordinária de 1836 pelo Ministro da Marinha vigente na época, Salvador José Maciel, foi elaborada uma estratégia para suprir o engajamento dispendioso representado pelos estrangeiros e Marinheiros mercantes e pescadores. Se fazia necessário recrutar esses jovens tendo em vista que eram considerados indesejados, assim fazer a inserção deles nas Companhias seria forma de tirá-los do ócio e os dando uma absoluta subordinação, julgando ser esta a solução para o problema das deserções. Ainda nesse ano de 1836, por meio de decreto, foram criadas quatro Companhias de Marinheiros, formando assim o Corpo das Companhias Fixas de Marinheiros. Segundo seu regulamento de 1837, estariam destinados a formar uma Escola de Marinheiros Nacionais para o serviço da Armada 5. Esses jovens seriam inicialmente levados para o interior dos navios da Armada de maneira compulsória do recrutamento ou voluntária. Por outro lado, era nas Companhias de Aprendizes é que se dava a formação Militar devida para ocupar os cargos de Marinheiros nos navios de guerra, onde receberiam instruções de primeira letra e formação de marinharia com o intuito de conduzir e manter os navios prontos para operar. É mister frisar que a trajetória desses jovens sublevados dentro desse braço Militar se fez com uma formação muito rigorosa pelos seus estigmas e seu pelo status quo, isto é “predominantemente mestiços e negros, estes quase sempre escravos que haviam obtido alforria” (MATTOS, 1987, p .121). Ficou clara a ideia de que a preocupação não era só organizar um corpo de Aprendizes-Marinheiros, mas também retirar das ruas aqueles de alguma maneira ou de outra que nada faziam, isto é, viviam na vagabundagem e na criminalidade, estabelecendo algum tipo de mal a população naquele momento. Veja que inserir jovens negros e pardos não seria de forma voluntária e sim uma obrigação para atender a demanda da instituição que necessitava formar, profissionalizar e aumentar o efetivo da armada. É a partir da criação das Companhias de Marinheiros que se funda ineditamente no Brasil, instituições inteiramente públicas voltadas para os menores que não podiam estar sob os cuidados de seus responsáveis ou de hospitais. (VENÂNCIO, 2000, p. 199). Consequentemente são com essas finalidades de proteção da longa costa brasileira e formação de uma marinhagem nacional, que muitos políticos passam a pensar na possibilidade de criar centros de formação de Marinheiros seria uma medida cabível diante da necessidade de armar e conduzir as belonaves que necessitavam de um contingente amplo para manutenção da paz e soberania nacional. Analisando os Relatórios Ministeriais verifica-se que progressivamente a proposta enviada ao governo em tempo ordinário seria elevar o número de aprendizes que anteriormente sugerida não chegou a sua totalidade, mas sim a 2.500. Então foi elaborada outra proposta paliativa em tempo ordinário, isto é, elevar o número de praças para 4.500. Somada a isto criar 12 Companhias de Imperiais Marinheiros com 106 praças, cada uma, com idade entre 10 e 17 anos 6. Cabe ressaltar que havia uma desigualdade muito grande entre Marinheiros e Artilheiros pelas devidas dificuldades em obter homens com intuito de servirem a Armada. O motivo dessa desigualdade provinha que era melhor empregar os soldados artilheiros juntos com serviço marinheiros devido a sua melhor instrução, idade e robustezes necessárias para cumprir as atividades exigidas. A sugestão nos debates naquele momento seria mais do que nunca a nacionalização por completo da Marinha: “Por muito convir o nacionalizar o mais que for possível a nossa Armada, pois não é em ser nacional a

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Decreto de 1º de julho de 1837, disponível no sítio do Senado Federal, consultado em 15/06/2015, por meio do endereço eletrônico http://www.legis.senado.gov.br/siscon/ 6 MARINHA, p.1. Art. 4º e 5º da Lei 148 de 27/08/1840 convém lembrar que segundo seu regulamento de 1837, estariam destinados a formar uma Escola de Marinheiros Nacionais para o serviço da Esquadra. As Companhias foram instaladas em navios desarmados que receberiam os novos marujos, oriundos do recrutamento forçado e do voluntariado, ali receberiam instruções e formação necessária para o serviço na Esquadra.

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madeira, de que se fabricam os navios do país, e o filete das bandeiras, que está a nacionalidade, mas sim nas suas guarnições (...)” 7. Naquele ano os debates se acirraram quanto à desproporcionalidade do corpo de Marinheiros em relação aos Artilheiros. Mesmo com falta de profissionalização dos homens para as atividades para o mar, muitos estrangeiros e negros que compunham a Marinha estavam divididos entre Marinheiros e Artilheiros a desproporção causava um clima de tensão, por entenderem que os Artilheiros tinham mais força física mesmo estando em pequeno número do que a marinhagem: (...) O Marquês de Paranaguá entende que o Sr. Ministro tem dado muito boas razões para se guardar a proporção que o projeto apresenta, e julga que os nobres Senadores laboram em um equívoco, qual o de suporem que as 1.800 praças de que trata o artigo 1°, são todas de marinheiros; que segundo a sua inteligência esse número compreende marinheiros, Oficiais de Marinha, Fazenda e artilheiros, etc. Deseja ser informado pelo nobre Ministro sobre quais as forças que atualmente a de marinheiros e artilheiros(...) 8 À vista destas razões fica claro que essa diferença numérica acontece pela amazônica costa brasileira, a prioridade da navegação de cabotagem e a grande dificuldade em obter homens para vida do mar através do recrutamento, isso de certa forma consolidada a prioridade em ter mais Marinheiros em vez de Artilheiros. Devido os debates, questionamentos, reflexões e tensões ficou decidido na sessão de 09 de junho de 1836 que o Artigo 5º da lei de fixação de força sobre a questão do corpo de artilheiro, que uma medida paliativa seria fazer uma emenda da lei. Com isso ficou decidido que para preencher o corpo de Artilharia da Marinha bastaria ter servido ao exército, ou no dito corpo, o ainda estar como praça, Ficou igualmente autorizado a conceder uma gratificação aos paisanos que voluntariamente quisessem entrar no serviço. Para preencher a força designada para o corpo de Artilharia da Marinha, o Governo fica desde já autorizado a convidar para o serviço os indivíduos, que, tendo já servido no exército, ou no dito corpo, obtiveram suas baixas, e a contratar com os que existem ainda com praça, e estão no caso de terem baixa, por haverem acabado o seu tempo de serviço, a continuar no mesmo serviço, dando a uns e a outros, como gratificação, além do soldo que lhes pertencer, enquanto forem praças de pret, uma quantia igual ao mesmo soldo. Fica igualmente autorizado a conceder uma gratificação igual à metade do respectivo soldo, aos paisanos que voluntariamente quiserem entrar no serviço 9 Toda essa ideia reforçou o governo a autorizar com que muitos civis, ex-militares do Exército e até da Armada que já tinham passado por uma certa formação militar, pegassem em armas. Tiveram uma doutrina de caserna, com certo incentivo financeiro caso viessem a retornar para a Armada; isso de antemão era uma forma de recrutar jovens para o servo ativo do corpo de Artilheiro da Armada. Com isso fica eminente que era a forma encontrada de conter a evasão e/ou baixas estabelecidos pelos militares de artilharia da Armada. Então criar as Companhias fixas de Marinheiros se tornava uma prioridade ímpar, mesmo usando de meios diversos para compor as fileiras militares, profissionalizar jovens e homens, através de uma missão árdua para os parlamentares.

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Interpelamento do Sr. Bento Barroso Pereira presidente da Câmara do Senado na sessão de 18/06/1836, na qual questiona o Ministro sobre a nacionalização da Armada, p. 193, disponível em , consultado em 15/06/2015. 8 Idem, p.194 9 Ibidem, p.197.

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Em 1838, quando Joaquim José Rodrigues Torres 10, futuro visconde de Itaboraí, foi considerado o mais importante, pois estava em seu terceiro mandato, dos quatro durante a Regência, e dos seis que esteve à frente da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha. Argumentava a Assembleia Legislativa as seguintes propostas enviadas por meio de seu relatório: Não estou porém em que devam estas dificuldades fazermos dar de mão a um designo, a que com o andar ao tempo pode responder o sucesso; e por isso é minha opinião que em lugar de criarmos já Companhias de Marinheiros, as formemos de Aprendizes de Marinheiros, onde sejam admitidos moços de 10 a 16 anos, ou 18 anos, os quais, recebendo desde tenra idade a educação e instrução apropriada, poderão formar, em chegado a idade viril, Companhias e corpos permanentes de Marinheiro, conseguindo (...) não só formar homens próprios para o serviço de nossa Marinha Militar (...) senão também dar-lhes a organização mais conveniente, ao fim que ela destina 11. Retornando ao relatório do Ministério da Marinha em 1837, Rodrigues Torres viu a necessidade de ampliar a força naval de 1500 homens para 3000 praças. As leis de fixação da força naval no período estabeleciam sempre que marujos deviam ser alistados a prêmio, preferindo sempre os nacionais aos estrangeiros. Isso era a forma de aos poucos ir expurgando-os da Armada e a atenção naquele momento estava concentrada na nacionalização das guarnições; deviam recrutar a força, quando não preenchessem as fileiras militares, o que sempre ocorria, mas também na economia que se pretendia fazer e no controle da disciplina que se pretendia promover. Com a questão da fixação de forças inicialmente foram criadas quatro Companhia de Aprendizes nas províncias. O Ministro José Rodrigues Torres no relatório de 1838 propõe aumentar para dez Companhias Fixas de Marinheiros, ele também propunha tripular o máximo possível de Marinheiros os navios de guerra, porém com uma ressalva “(...)cujas tripulações não deverão exceder a 3.000 praças de todas as classes” (MARINHA, p.31). Vemos que de um ano para outro a nomenclatura não muda a questão era ter e não exceder. Manter um Marinheiro era muito oneroso: alimentação, soldo e uniforme custava aos cofres públicos uma soma que no final sairia muito caro. Não adiantava em relação a esse investimento se o recrutamento não era visto com bons olhos para população as deserções e as expulsões atrapalhavam de certa forma a organização do corpo de praças da Armada. Com base na decisão de 23 de novembro de 1837, o Ministério da Marinha mediante ofício as presidências das províncias ordenando que atuassem no sentido de efetuar engajamentos e recrutamentos para manter a composição das guarnições da Marinha: Sendo da maior urgência armar quanto antes algumas embarcações de guerra, e sendo um dos obstáculos que se opõe à celeridade de semelhantes armamentos a falta de marinheiros que as guarneçam, ordena o Regente Interino [...] que V. Ex. faça remeter com toda a brevidade ao arsenal de Marinha desta Corte o maior número possível de indivíduos aptos para este serviço, que tenham a idade de 14 a 36 anos, e a precisa robustez, ordenando, outrossim o mesmo Regente que, caso não haja nesta província quem voluntariamente por tempo determinado queira se engajar, que poderá ser de um a dois anos, faça V. Ex. proceder ao recrutamento na forma das leis em vigor 12 As revoltas e os movimentos de cunho separatistas e liberais que estavam acontecendo naquele período, como foi citada no início desse trabalho tornava a urgência ter homens a bordo para guarnecer os navios, para manter a soberania e a ordem do Império. As dificuldades em ter jovens, voluntariamente, para compor as tripulações se tornava um empecilho para autoridades e agentes 10

Joaquim José Rodrigues Torres foi um político fluminense, fez parte da trindade Saquarema e esteve à frente da pasta da Secretaria de Estado e Negócios da Marinha nos períodos (1831-1832) (1832-1834) (1837-1839) (1840) (1843) (1843-1844). 11 Relatório do Ministro Joaquim José Rodrigues Torres, 1838, p. 29, disponível em brazil.crl/bsd/bsd/u2056/000029.html in http://www.crl.edu, consultado em 13/06/2015. 12 Decisão tomada em 13/11/1837. Referido por Arias Neto (2001, p. 58), com base em Caminha (1986, p. 415).

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naquele momento. De certa forma ter homens somente por ter não era o objetivo e sim tê-los em idade e saúde para praticar as atividades solicitadas pelos comandantes navais, com isso recrutar escravos se tornava mais viável para as autoridades devido a facilidade de obtê-los nas ruas das cidades. Os Relatórios dos Ministros da Marinha tinham um cunho organizacional e administrativo apropriado para seus fins de concorrer para manutenção da integridade, da independência, e da honra nacional; favorecer a indústria, o comércio protegendo-os era a missão da Força Naval que muito as autoridades clamavam em causa da ordem. Para isso a disciplina era um instrumento usado para coagir todo ato de contravenção e insubordinação cometido por aqueles que maioria eram formados por negros e pardos que não aceitavam esse tipo de instrumento. Mediante os debates acirrados em anos anteriores o Império chega à conclusão que para nacionalizar e profissionalizar esses homens se tornaria algo imperativo e para isso seria necessário iniciar a construção de Escolas de Marinha em forma de companhias, tendo no decreto de n° 14 de 1840 a fundação da primeira Companhia de Aprendizes Marinheiro do Brasil, sediada na Corte. Com ela, após um intervalo de quinze anos, surgem gradativamente mais 18 escolas de preparação de marinheiros como disposto na tabela: Tabela 1 – Companhias de Aprendizes Marinheiros. Província

1

Rio de Janeiro

Data de criação

Obs

Decreto de criação

1840

Lei 148 de 27 de Agosto de 1840

Pará

1855

Decreto nº 1517 de 4 de janeiro de 1855

Bahia

1855

Santa Catarina

1857

Decreto nº 2003 de 24 de outubro de 1857

1857

Decreto nº 2003 de 24 de outubro de 1857

2

3

4

5

Pernambuc o

Obedece as diretrizes do dec. criação da Companhia do Pará

Decreto nº 1543 de 27 de janeiro de 1855

Mato Grosso

1857

Decreto 1.987 de 7 de outubro de 1857

6

Rio Grande do Sul

1861

Decreto 2725 de 12 de janeiro de 1861

7

Maranhão

1861

Decreto 2725 de 12 de janeiro de 1861

8

9

Espirito Santo

1862

Incorporada a E.A.M da Bahia Dec.9371 de 14/02/1884

Paraná

1864

Decreto nº 3347 de 26 de novembro de 1864

Ceará

1864

Decreto 3347 de 26 de novembro de 1864

Santos

1868

0

Decreto nº 4112 de 8 de fevereiro de 1868

1 Incorporada e

Decreto 4112 de 29 de fevereiro de 1868

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2

E.A.M da Corte Dec. 9371 de 14/02/1884 Sergipe

1868

Paraíba

1871

Amazonas

1871

Incorporada a E. A.M do Pará Dec. 9371 de 14/02/1885

Decreto nº 4680 de 17 de janeiro de 1871

Rio Grande do Norte

1872

Incorporada a E. A.M da Paraíba Dec.. 9371 de 14/02/1885.

Decreto nº 5309 de 18 de junho de 1873

3

Incorporada a E.A.M da Bahia Dec. 9371 de 14/02/1885.

Decreto nº 4142 de 29 de fevereiro de 1868

Decreto nº 4680 de 17 de janeiro de 1871

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Piauí

1874

Decreto nº 5847 de 2

Alagoas

1874

Decreto nº 5847 de 2 de janeiro de 1874

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Fonte: (CAMINHA, 2002, p.11) Convém mencionar que a companhia da corte era a única naquele momento. Em 1840, foram transformadas no Corpo de Imperiais Marinheiros anexadas as Companhias de Aprendizes Marinheiros. O Corpo representava a proposta de um núcleo militarizado e profissional na Marinha de Guerra (ele não era a única formação do corpo da armada, pois existia a marinhagem avulsa e o Corpo de Artilheiros). (ANTUNES, 2007, p.63) As reformas que começaram a partir de 1840 foram decisivas pelo atual Ministro José Joaquim Torres, pois segundo Arias Neto: Ele deu início à implementação do programa de reformas do partido moderado, mas também, porque imprimiu uma direção política que terminou por conduzir a importantes alterações na configuração da Armada Nacional ao final da Regência e início do Segundo reinado. Durante os nove anos que separaram o sete de Abril da Maioridade, Rodrigues Torres foi presença dominante na Marinha tendo ocupado a pasta durante quatro anos e nove meses, no primeiro e no quarto gabinete da Regência de Araújo Lima, e voltou ainda uma vez ao ministério, por um ano, no terceiro gabinete do Segundo Reinado. (NETO, 2001, p.43) Torres fez parte ideologicamente de três correntes políticas: moderado em 1832, regressista (Luzias) em 1837 e por último conservador (Saquarema) em 1840, com isso em 1851 ele fez parte de um seleto grupo de Ministros denominados trindade saquarema/conservadora (Justiça Eusébio, Estrangeiro Paulino e fazenda o próprio Torres) mais conhecidos como oligarquia fluminense. Esses deram direção política e consolidação à Monarquia Imperial a partir de 1848, conforme Ilmar Mattos, (1987). O Brasil vinha passando por períodos conturbados na política, nesse momento os regressistas assumiram a denominação de partido conservador e os progressistas de partido liberal. Esses dois grupos dominaram toda a vida política brasileira durante todo o segundo reinado, contudo, os caminhos deixados pelas interpretações sobre a política imperial, dentro de um emaranhado político, sobretudo, promovido pelas correntes políticas conservadoras e liberais foram decisivas para Armada Imperial. Seja em seus projetos administrativos burocráticos de nação, engendrados pelas elites políticas, ou pelos

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projetos militares para agências administrativas do Estado imperial brasileiro, como caso das Companhias de Imperiais Marinheiros e Escolas de Aprendizes-Marinheiros. Esses embates entre partidos e suas ações dentro de parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais, como fazendeiros, comerciantes, capitalistas, membros da alta burocracia, tabeliães, engenheiros, advogados, professores, médicos, jornalistas, literatos, servidores públicos ou não, se juntaram em forma de classe para difundiram-se em um tipo de adesão aos princípios constitutivos de ordem e civilidade, sendo agrupado como agentes históricos. Com isso, essa mensuração de pessoas trazia uma proposta de usar as Companhias de Aprendizes como elementos disciplinador nos remete ao conceito grupo de classes. A classe ocorre como fenômeno histórico, além de se caracterizar como oposição de um conjunto de pessoas a outro, com objetivos diferenciados. (THOMPSON, 1987). A adoção de um procedimento construtivista não se esgota na recuperação e restauração dos conceitos de Estado, classe social e dirigentes como categorias históricas. (MATTOS, 1986, p.4) A política imperial entre conservadores e liberais e suas dissidências como um projeto de nação colocou as forças armada em cheque e a Armada foi a “menina dos olhos desses políticos”. Se houve uma mudança de direção na política imperial, ela se encontra nas disputas políticas entre os dois grupos já bem definidos pela historiografia, conservadores e liberais formados pela elite agrária e de comerciantes urbanos. Usar as companhias de Marinheiros para civilizar aqueles desclassificados sociais também era uma resposta dada pelo parlamento a sociedade, pois esses eram considerados como indigentes, contudo o militarismo com sua doutrina disciplinadora dava uma melhor oportunidade de corrigir seus erros e de alguma maneira melhorar a vida daqueles expurgados da sociedade 13. As autoridades promoviam medidas de expurgar aqueles homens que nenhuma contribuição davam a sociedade, como colocá-los nas obras públicas e o recrutamento forçadamente realocando-os dentro das Companhias de Aprendizes para receberem algum tipo de instrução. A coroa estabelecia vários esforços para administrá-los com muito empenho, dando a eles um sistema escolar não só primeiras letras, mas aula de marinharia para depois servir os navios. Muitas vezes eram homens “ferozes, sem moral, sem religião, sem instrução”: bárbaros, em suma; e os habitantes do litoral, civilizados. (MATTOS, p.112) As ideias do saquarema Torres era, portanto, fazer uma reforma na Armada, tomando algumas medidas cabíveis objetivando uma melhor eficácia dos aparelhos administrativos, em seu viés, profissionalizar e nacionalizar a instituição naval tornava sua medida um aparelho de coação daqueles indivíduos que estavam à margem da sociedade. As Companhias de Aprendizes Marinheiros e os Corpos da Marinha foram idealizadas para exercerem a conversão de grupos estigmatizados, pertencentes ao mundo da desordem, em Marinheiros a serviço da Armada e do Estado Imperial, prontos para a defesa da integridade territorial e unidade nacional, assimilando o principal atributo para o trabalhador militar: ser disciplinado e subordinado. A proposta da criação dessas Companhias de Aprendizes não era somente dar uma boa organização administrativa na instituição Armada Imperial, e sim civilizar e instruir expurgando das ruas uma parcela de negros alforriados com intuito de controlá-los e militarizá-los fazendo com que a trajetória deles se tornasse mais amarga devido às circunstâncias em que se realizava aquele recrutamento. REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional, São Paulo: Ática, 1989 (traduzido do original em inglês Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Londres: Verso, 1983). AZAMBUJA, Darcy. Introdução à Ciência Política. 12 ed. São Paulo: Globo, 1999. BRASIL. História Naval brasileira. Rio de Janeiro: SDGM, 3 v. 2002. 13

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DOS CLUBES PARA AS RUAS: REVISITANDO OS CARNAVAIS DE GUAÍBA/RS, UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE RECREATIVA IMPÉRIO SERRANO (1926 – 1971) Ricardo Figueiró Cruz 1 INTRODUÇÃO Ao estudar a Sociedade Recreativa Império Serrano, estamos discutindo a história da formação da cidade de Guaíba/RS, pois essa análise se dará em um período que compreende em torno de quatro décadas do século XX. Sendo a agremiação carnavalesca mais antiga em funcionamento da cidade, esse é o ponto de partida para a rememoração da formação dos clubes e do carnaval da cidade. Esse estudo será apresentado como um propulsor da história local. Percebe-se uma escassez de fontes quando se faz um levantamento bibliográfico sobre a história e formação do município, evidenciando o turismo local e como forma de mostrar a importância da comunidade, que a agremiação está inserida, assim como motivar o interesse da sociedade pela sua própria história e a sua construção identitária. O objetivo geral desse estudo é rediscutir os carnavais de Guaíba/RS, através de um estudo sobre a formação da Sociedade Recreativa Império Serrano, partindo da emancipação política de Guaíba no ano 1926, até a fundação da Escola de Samba mais antiga em atividade da cidade, no ano de 1971. Tendo como objetivos específicos: a) Investigar a formação dos clubes localizados no centro da cidade; b) Analisar o contexto de formação da Sociedade Recreativa Império Serrano; c) Entender a formação da agremiação através da memória de seus frequentadores. Metodologicamente partiremos por uma pesquisa bibliográfica, fazendo uma revisão para identificar produções historiográficas e publicações realizadas sobre o carnaval no Rio Grande do Sul, Porto Alegre e Guaíba, também o levantamento de obras memorialísticas realizadas sobre a cidade de Guaíba, como forma de identificar pontos de partidas para esse levantamento de memória local, e por fim, a identificação de pessoas para a realização de entrevistas sendo utilizada a metodologia de história oral, e obtenção de documentos como: atas, fotos, circulares internas, etc., juntamente com a Sociedade Recreativa Império Serrano. Desta forma, serão utilizados materiais como jornais e livros, disponibilizados na Biblioteca Pública Municipal Darcy Azambuja, Guaíba/RS, fotos, arquivos pessoais, doados ao Museu Municipal Carlos Nobre, Guaíba/RS. As entrevistas, que utilizará a metodologia da história oral, problematizando as informações fornecidas devido à imprecisão das informações, serão obtidas junto à direção da agremiação, assim como materiais de acervos pessoais e documentos administrativos da agremiação. EMBASAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO A realização desta pesquisa torna-se viável principalmente devido às modificações nas concepções de história depois dos Annales, e mais especificamente pelas contribuições da História Cultural, que permite o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. Segundo Burke (2008), existem grandes dificuldades em tentar responder à pergunta “o que é história cultural”, uma vez que, nos últimos tempos, tem sido apresentada aos leitores uma série de diferentes temas de estudo. Além das problemáticas quanto à delimitação, existem as problemáticas quanto aos métodos utilizados, que variam de historiador para historiador. Ao trabalhar com a Sociedade Recreativa Império Serrano, se tem uma série de símbolos e ritos que fazem parte do processo de formação da agremiação. A preocupação com as interpretações do simbólico é o terreno comum dos historiadores culturais:

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Especialização em História Regional, Étnica e das Relações Internacionais (UNIASSELVI), Licenciado em História (PUCRS); Bacharel em Administração (UNIASSELVI) e Bacharelando em História (UFRGS).

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O terreno comum dos historiadores culturais pode ser descrito com a preocupação com o simbólico e suas interpretações. Símbolos, conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte à vida cotidiana, mas a abordagem do passado em termos de simbolismo é apenas uma entre outras. (BURKE, 2008, p. 10) A intenção não é realizar uma história da historiografia, mas sim ver as novas possibilidades da história que resultam para esse estudo. Como nos mostra Fiorucci (2010), [...] é importante destacar que as novidades apresentadas pela nova história cultural, com as mentalidades e as representações marcando posição na França, pela historiografia inglesa, com a “história dos de baixo” [...]. Esse contato com o passado traz a discussão sobre a utilização da memória na construção do conhecimento histórico. Segundo Catroga, para desempenhar seu papel social, a memória se utiliza de liturgias próprias, que se desenvolvem a partir do reavivamento dos traços, que são qualquer vestígio humano, deixados no passado. Sendo assim, o conteúdo da memória é inseparável da objetivação e da transmissão, que acontecem a partir da linguagem, imagens, lugares, relíquias, escritas e monumentos. Em busca dessas representações 2, a utilização desses símbolos é de suma importância, pois para Pesavento (2006), o entendimento de cultura e representação não pode estar distante do conceito de memória, entendido por Le Goff (2013), como propriedade de conservar certas informações, remetenos em primeiro lugar a funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passada. Pois através da memória, pode-se recuperar essa ausência do tempo, através da evocação, imagens do vivido. Sendo assim, ainda corroborado por Pesavento (2006), é essa evocação da memória que permite a recriação mental de um objeto, pessoa ou acontecimento ausente. Desta forma para Nora (1993), “o que nós chamamos de memória é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar”. Nora evidencia a importância da memória, pois ele vem com a discussão de que tudo que hoje é chamado de memória não é, mas sim já é história. E tudo que é chamado de clarão de memória é a finalização de seu desaparecimento no fogo da história. No entanto, a necessidade de memória é uma necessidade da história. O preenchimento das lacunas criadas na história do objeto em análise é o que se busca revisitar, onde partes desses “não-ditos” não caiam no esquecimento, como nos evidencia Pollak (1989), “as fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento”. Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais freqüência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante. (POLLAK, 1989, p. 5) Para Halbwachs o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupos, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito. Pois o sujeito para Halbwachs é um sujeito atrelado ao coletivo, logo não há memórias individuais, mas coletivas. Para corroborar Candau (2011) afirma que as noções de “identidade” e “memória” são ambíguas, pois ambas estão subsumidas no termo representações, um conceito operatório no campo das Ciencias Humanas e Sociais, referindo-se a um estado em relação à primeira e a uma faculdade em relação a segunda.

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“As representações são também portadores do símbolo, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, construídos social e historicamente, se internalizam ao inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão.” (PESAVENTO, 2005, p. 40)

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Neste sentido, Candau (2011) aprimora o conceito de memória coletiva ao reduzir a possibilidade de confusão entre memórias individuais e coletivas, angústia que pode eventualmente surgir. Candau (2011) evidencia que as duas primeiras memórias, a protomemória (configurada como memória social incorporada aos gestos do corpo) e a memória (propriamente dita), constituem faculdades individuais e não podem ser compartilhadas. Para ele, só a terceira memória, a metamemória, aquela que se refere à memória coletiva, pode ser compartilhada, pois é um conjunto de representações da memória. Para Candau (2011), existem três palavras-chave da consciência contemporânea: identidade, memória e patrimônio, sendo este último pertencente à memória, é a memória que vem fortalecer a identidade, tanto no nível individual quanto no coletivo: assim, restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir o passado. Candau (2011) afirma que a memória é, de fato, uma “força de identidade”. Candau (2011) retoma a ideia da Pesavento, quando coloca que é quase banal constatar que, no quadro de estratégias identitárias, os indivíduos operam escolhas sempre no interior de um repertório flexível e aberto a diferentes meios: representações, “mito-história”, crenças, ritos, saberes, heranças etc., ou seja, no interior de um registro memorial. De fato, memória e identidade se entrecruzam indissociáveis, se reforçam mutuamente desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução. Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento identidade, pelo menos individualizado. (CANDAU, 2011, p.19) Como metodologia dessa pesquisa, será utilizada a história oral. Pois a história oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea. Mas como salienta Alberti (2013, p.37): Fazer história oral não é simplesmente sair com um gravador em punho, algumas perguntas na cabeça e entrevistar aqueles que cruzam nosso caminho à disposição de falar um pouco sobre suas vidas. Essa noção simplificada pode resultar em um punhado de gravações de pouca ou nenhuma utilidade, que permanecem guardadas sem que se saiba muito bem o que fazer com elas. Sendo assim, para Selau (2004) a técnica de história oral como metodologia contribui para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos metodológicos que auxiliam a produção do conhecimento em história. A manutenção da história dos grupos esquecidos, a história oral é de suma importância para dar voz a estes grupos na construção de sua identidade, como nos mostra Ferreira (2002) na recuperação da história dos excluídos, os depoimentos orais podem servir não apenas a objetivos acadêmicos, como também constituir-se em instrumentos de construção de identidade e de transformação social. Partindo dos diversos embasamentos teórico-metodológicos e utilizando um referencial vindo da história cultural, passando por uma metodologia da história oral, observa-se que, partindo de um estudo maior, que é o carnaval, direcionando para uma análise mais local, vamos trazer uma identidade para uma comunidade local, revisitando a memória de seus participantes, pois nesse sentido temos a dimensão de como fora constituída a Sociedade Recreativa Império Serrano, e essa investigação se dá através de um campo ainda não explorado na cidade. Sendo assim, será de extrema importância para a comunidade acadêmica e para a identidade e memória local. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DE GUAÍBA/RS O carnaval de Guaíba, pela primeira vez em 1927, era festejado até 14 de outubro de 1926, no 7º Distrito de Porto Alegre, que em 1925, passa a ser 9º Distrito. No ano de 1925, é realizado um movimento no município para encaminhar ao então Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros, um memorial solicitando a emancipação política de Porto Alegre, como nos mostra Worm (1974). Um mês antes da assinatura do decreto que torna o distrito de Pedras Brancas

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um município, é realizado um plebiscito para a escolha da sede, que em primeiro momento era composto de outros dois distritos. Diante disso, podemos observar uma lacuna de historiografia cultural local, pois é possível identificar a presença de clubes na região central do município, mas a periferia da região central fica descoberta de uma análise histórica. Podemos ter uma dimensão da formação dos clubes no município, onde entende-se a importância desses centros sociais no desenvolvimento da cultura local. Na análise de Sant’anna (1997), primeiramente tinham-se três clubes que realizavam o carnaval, Clube dos Mandins e 20 de Setembro, e também o Clube Comercial, que realizava seus bailes no Cinema Gomes Jardim. Passando para a década de 40, existe a fundação de outros clubes, já que os anteriores não funcionavam mais; podemos destacar dentre os clubes o da Celupa, que superlotava durante as três noites de carnaval. Na década de 50 e 60, podemos ver o crescimento dos blocos carnavalescos, onde o carnaval começa a ganhar as ruas, com marchinhas e fantasias elaboradas para desfiles. O IMPÉRIO SERRANO E O CARNAVAL EM GUAÍBA O carnaval e a formação de um clube são entendidos dentro da perspectiva da história cultural, pois as representações de símbolos são partes fundamentais para a interpretação dessa análise. O objeto dos clubes para as ruas é o estudo de como esse carnaval sai às ruas carregadas de simbologias e interpretações para a constituição da identidade da escola de samba. Para DaMatta (1997), o “carnaval de rua”, em oposição ou contraste com um “carnaval de clube”. Na rua, o carnaval assume um encontro aberto, dominado no Rio de Janeiro, pelo desfile das escolas de samba, e um contraponto é os carnavais de clubes, pois se trata de um ambiente mais marcado, pois o próprio espaço físico é privado. Mas essa ideia não pode ser levada de forma engessada, pois para DaMatta (1997), os desfiles de escolas de samba ou de blocos provocam um fechamento do espaço carnavalesco, já que temos associações de pessoas que se reúnem para promover os desfiles. Pela mesma lógica, no “carnaval de clube” o fechamento é muito relativo. Primeiro porque os ingressos são sempre comprados, como é típico do carnaval, já que os clubes fechados e exclusivos deixam de reunir-se por meio de convites que seguem a mesma lógica política social moral para serem dominados pelo plano econômico que, no carnaval, se torna abertamente abrangente 3. (Idem, p. 109) Desta forma, o carnaval no Brasil ainda é majoritariamente entendido por uma visão “riocêntrica”, pois como nos mostra Rosa (2008), boa parte da bibliografia a respeito do tema acabou reafirmando o processo de invenção do carnaval da “cidade maravilhosa” como algo representativo de toda a nação. Nesse sentido, o carnaval do Rio Grande do Sul não segue os padrões estéticos e financeiros dos carnavais do sudeste do país. O carnaval de Porto Alegre reúne uma parcela pequena da sociedade, cujos participantes são responsáveis pela construção de uma identidade do carnaval gaúcho. Os agentes que atuam neste processo de construção identitária são tradicionalmente ligados às comunidades carnavalescas 4. Dentro dessa análise, o carnaval realizado em Guaíba/RS não foge a essa perspectiva. Com a participação de 30 mil pessoas 5, o carnaval de 2015 devolve à cidade um panorama de grande festa popular que, em tempos passados, fazia a festa dos foliões da cidade, primeiramente com a formação dos clubes, passando pelos blocos e por fim com a criação das escolas de samba.

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Neste sentido para DaMatta (1997), porque os bailes de carnaval nos clubes é uma fonte de arrecadação financeira para os mesmo. 4 Nesse cenário é analisado somente o Carnaval das Escolas de Samba que é realizado no Porto Seco, deixando de fora os Blocos de Rua. 5 http://www.guaiba.rs.gov.br/Noticias/2015/20150305_carnaval/index.htm - acessado em 03/05/15.

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A historiadora Iris Germano nos mostra que o carnaval de rua de Porto Alegre, hoje realizado no Complexo Cultural do Porto Seco 6, é associado aos segmentos negros da população, e a trajetória estaria relacionada ao grupo social dentro da cidade. Partindo da análise de Germano, sobre Porto Alegre, podemos analisar o carnaval de Guaíba. Em Porto Alegre, nos dias atuais, o carnaval de rua caracteriza-se pela pouca participação da população branca. Diferentemente de outros centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, aos quais é geralmente associado pela atual forma de organização dos carnavalescos em Escolas de Samba, não congrega indivíduos de origens étnicas diversas, mas reúne, majoritariamente, os segmentos negros da população. (GERMANO, 1999, p. 9) ENTREVISTAS Em depoimento 7 as senhoras Maria da Conceição e Marieta (2015), relatam que o Império Serrano surge por volta do ano de 1969, na dissidência de três dos seus fundadores, Liberato Garcia, Jairo dos Santos e Irajá Silvério, do clube Academia do Samba, ao fundar a Escola de Samba Império Serrano, na mesa de um bar, escolhem esse nome por gostarem da agremiação de mesmo nome do Rio de Janeiro, mas o registro oficial da escola foi realizado em 31 de novembro de 1971. Neste mesmo depoimento a senhora Maria da Conceição 8 (2015), relata que nunca teve problema ao frequentar os clubes que localizavam no centro da cidade, seu marido Liberato Garcia, saiam em um bloco trajados de mulher e acessavam os outros redutos de carnaval de Guaíba. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Com base nos estudos realizados de forma prévia sobre a Sociedade Recreativa Império Serrano, podemos realizar algumas considerações parciais. Dentre uma das análises podemos identificar que o ano de criação da entidade carnavalesca é anterior ao ano de 1971, como já sabido ela nasce antes e ganhar uma formatação jurídica somente nesse ano. Também se observa que a criação não é a busca por resistência de outros clubes no localizados no centro da cidade. Para esse fato utilizamos as entrevistas de história oral, pois as senhoras entrevistadas, mostram em seu depoimento que a fundação se dá por dissidência de outra entidade já formada. Nesse percurso de análise podemos identificar que a agremiação não tem sua história formalizada, sendo assim objeto de um estudo inédito para alicersamento da sua identidade como uma entidade social e carnavalesca, sendo a única ainda em funcionamento no município. Percorridos formalmente desde 1971, passando por várias crises internas. Sendo assim, buscamos entender como se deu essa formação de modo memorialístico e também buscando essa ideia de identidade de grupo. FONTES ORAIS Maria da Conceição da Silva Garcia – realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de junho de 2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano. Marieta Ribeiro Almeida – realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de junho de 2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.

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É um centro de eventos localizado na zona norte da cidade de Porto Alegre, onde ocorre os desfiles das escolas de samba do município. 7 Depoimentos recolhidos por mim, no dia 14/06/2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano. Maria da Conceição da Silva Garcia (63 anos), esposa do fundador Liberato Garcia (falecido) e Marieta Ribeiro Almeida (71 anos), amiga da família Garcia. 8 Maria da Conceição da Silva Garcia (63 anos), esposa do fundador Liberato Garcia (falecido).

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“MORENO REI DOS ASTROS A BRILHAR, QUERIDA UNIÃO FAMILIAR”: TRAJETÓRIA E MEMÓRIAS DO CLUBE NEGRO FUNDADO EM SANTA MARIA, NO PÓS-ABOLIÇÃO Franciele Rocha de Oliveira 1 O presente trabalho procura reunir algumas reflexões desenvolvidas no Trabalho de Conclusão de Graduação intitulado “Moreno Rei dos Astros a Brilhar, Querida União Familiar: Trajetória e Memórias do Clube Negro Fundado em Santa Maria, no Pós-Abolição” 2, que aponta trajetórias de uma população que na cidade trabalhou, fundou clubes e escolas de samba e teve como moradia vilas operárias, tendo como pilar a fundação do Clube União Familiar, criado oito anos após a Abolição da escravatura no Brasil, e a suspeita da existência de uma rede que o cerca 3. NASCE O MORENO REI “Acaba de ser fundada nesta cidade, sob a denominação de União Familiar, uma sociedade de baile, composta de homens de cor”. Foi com essas poucas palavras que o jornal O Combatente noticiava, em 15 de março de 1896, a fundação do Clube União Familiar. De acordo com os documentos oficiais do Clube, como carteirinhas de associados e convites, o registro da fundação é do dia 10 de maio do mesmo ano, fazendo-nos pensar a origem do União Familiar sob a possibilidade de que, em um primeiro momento, existira na informalidade, isto é, com reuniões para o lazer de uma parte da Comunidade Negra e, num segundo momento, existindo sob aspectos formais, com registro de fundação, organização burocrática/administrativa e sede social 4. Esta seria, portanto, uma forma de explicar os conflitos encontrados nessa pesquisa com relação às datações do Clube manifestadas em alguns jornais. Com sede à Rua Barão do Triunfo, n° 855, o Clube pertencia à periferia da cidade na época de sua criação, como pode ser notado na Planta Municipal de 1902, elaborada pelo agrimensor José Nehrer, na qual fica evidente a posição afastada do Clube, nas imediações das ruas 24 de Maio (atual Silva Jardim), Venâncio Aires e Visconde de Pelotas. Por volta de 1910, a Sociedade vai pertencer a um loteamento composto por cerca de cinquenta chalés de madeira, a Vila Operária Brasil. A existência do Clube nessa localidade da cidade evoca-nos uma série de inquietações, entre elas, Porque ali? Quem ali vivia? Por que um clube? Para que o clube e, principalmente, para quem? Tais perguntas foram centrais à pesquisa, na qual se desenvolveu respostas, baseadas na síntese interpretativa de acervos iconográficos e documentais particulares, bem como relatos orais em entrevistas realizadas com antigos sócios do Clube e moradores da Vila Brasil, além de documentos oficiais do Clube encontrados no Cartório de Registros Especiais de Santa Maria e a pesquisa em jornais do Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria - AHMSM, da Casa de Memória Edmundo Cardoso e do acervo online da Hemeroteca Digital Brasileira. REALIDADE DE EXCLUSÃO E DESEJO DE PARTICIPAÇÃO Parece consenso entre muitos pesquisadores do assunto, que o cerne da fundação de muitos Clubes Sociais Negros está na exclusão e, ao mesmo tempo, no desejo de participação. A exclusão vinda 1 Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria, bolsista CAPES. Orientada pelo prof. Dr. Diorge Konrad e Co-orientada pela Prof. Dr.ª Beatriz Ana Loner. 2 OLIVEIRA, Franciele Rocha de. “Moreno Rei dos Astros a Brilhar, Querida União Familiar”: Trajetória e Memórias do Clube Negro Fundado em Santa Maria, no Pós-abolição. Santa Maria: UFSM, 2014. 3 O título da pesquisa faz referência a uma marcha do Clube. Assim, tem-se no texto a própria linguagem dos protagonistas do Clube, ou seja, como se referendavam ao mesmo, por meio da categorização “moreno”, que pode ser vista como “eufemismo” ou a busca pelo distanciamento da categoria “preto” associada à escravidão, ou ainda como discute Weimer (2013, p. 406), como categorias interligadas. 4 Situação parecida é constatada por Giane Escobar ao tratar do Clube Treze de Maio. Por meio da ata nº 1 do clube, a autora destaca que os primeiros movimentos eram reuniões na casa de um dos cidadãos, o senhor Sisnande Antonio de Oliveira e assim o foi até 1911 (2010, p. 100).

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de diversas formas em relação a inúmeros direitos quando se reporta ao histórico escravista e pósescravista e o desejo de participação no sentido de que ainda proibidos ou impedidos, queriam organizar seus espaços de sociabilidade, lazer e encontro entre os seus, assim como os brancos tinham. Para a realidade pelotense, Lorena Gill e Beatriz Loner (2009) percebem como organizações iniciais àquelas do período imperial, apresentavam forte e exclusiva presença negra e mestiça e, em grande maioria, eram mutualistas, criadas no momento inicial da campanha abolicionista, bem como relacionadas às irmandades locais, como no caso da Irmandade do Rosário. Escobar (2010) também fala das origens dos Clubes Negros no Brasil, isto é, como associações anteriores à Abolição. Adotando a concepção de que, de certo modo, foram “contraponto à ordem social vigente”, bem como, locais de sociabilidade para negros que “eram impedidos de frequentar os tradicionais clubes sociais brancos” (Idem, p. 57-58). A autora defende que os clubes foram meios para obter melhorias nas condições de vida de muitas famílias negras, sendo, portanto, fundamentais na denúncia da escravidão e uma quebra da discriminação racial. Tinham como objetivo angariar fundos para o pagamento da liberdade dos trabalhadores negros escravizados, auxiliar nas despesas com funeral, defesa de direitos e na educação de seus associados, atuando de forma incisiva na luta contra a escravidão e a discriminação racial (ESCOBAR, 2010, p. 58). Fernanda da Silva (2011) centra sua pesquisa na compreensão da constituição de uma identidade negra positiva por meio dos Clubes Sociais Negros de Pelotas. Ela também percebe a necessidade da associação entre os negros, no período que precede a Abolição, como fundamental para alcançarem melhores condições de vida. O apoio social entre os cativos era de fundamental importância para alcançar melhorias nas condições impostas pela escravidão, as quais afetavam diretamente a vida dos escravos. A condição social proporcionada pelo cativeiro e /ou em uma sociedade discriminatória como a vivenciada no Brasil colonial e imperial, quanto à cor dos indivíduos imputava aos negros a necessidade de associar-se (SILVA, 2011, p. 32). Nesse sentido, a exclusão estabelecida pela escravidão e vivenciada cotidianamente pelos negros e negras auxiliou ou levou a “busca pelo apoio social entre escravos e libertos” (Idem, p.33). As organizações criadas passaram a ser possibilidades de encontro, de estarem entre os seus, os quais apresentavam “costumes em comum ou objetivos semelhantes” (Ibid.). Em sua obra, Fernanda Silva vê o pós-Abolição como um momento de busca pela efetivação da liberdade. Elencando como característica, a proliferação de espaços associativos negros, alguns vinculados a irmandades, outros não, criados pela necessidade de novos espaços de atuação negra, os quais focaram suas atividades em novos objetivos, concentrados em inserir os libertos e livres no mercado de trabalho com condições dignas e busca pela cidadania. A Proclamação da República no Brasil, em 1889, despertou no meio negro a possibilidade de um sistema igualitário. Mas a derrocada do sistema monárquico seguida pela adoção de medidas eugenistas com base no darwinismo social pela República fez com que estes homens resolvessem lutar através da conscientização de seus irmãos de cor... E foi nesse contexto de medidas discriminatórias, por parte dos governos e de luta e reivindicação, por parte dos negros, que surgiu uma série de associações negras voltadas à defesa dos direitos dos negros, de caráter os mais variados possíveis (SILVA, 2011, p. 84). Segundo Lorena Gill e Beatriz Loner (2009), as sociedades negras e toda a sua completa rede associativa (clubes sociais, teatrais, carnavalescos, futebolísticos, mutualistas...) foram formas de reação à exclusão que sofriam, especialmente quando se tem consolidada uma ideologia conservadora e elitista,

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como no caso de Pelotas, em que, “em algumas de suas praças, negros não podiam sentar, assim como não tinham ingresso em cafés, cinemas, teatros e outros estabelecimentos públicos” (Idem, p. 147). O clube União Familiar de Santa Maria está inserido dentro da mesma lógica apresentada pelos Clubes Sociais Negros pelotenses do período pós-Abolição. Se o mesmo teria relações com a Irmandade Nossa Senhora do Rosário, que na cidade foi criada em 1873, dissolvida em 1875 e recriada pela Comunidade Negra em 1889, como Sociedade Beneficente Religiosa Irmandade do Rosário 5, não é possível saber no momento, devido à escassez de fontes iniciais do Clube, mas era fato que o mesmo tinha forte relação com o mundo do trabalho e a busca pela dignidade ou inserção social, expressos por meio de seu público frequentador, trabalhadores e moradores da Vila Operária Brasil, das regras comportamentais e das suas práticas, da recreação e promoção da cultura ao caráter beneficente constatado nos estatutos posteriores. De acordo com as entrevistas realizadas, percebe-se a forte presença de trabalhadores no Clube, dos mais diversos segmentos, confirmada depois por meio de documentos como o processo crime n° 136, de 1926, encontrado no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul - APERS 6 e os estatutos de 1958 e 1963 do Clube União Familiar, encontrados no Cartório de Registros Especiais 7, além da análise referente aos moradores da Vila Brasil e participantes do Clube, que mostram uma permanência do perfil trabalhador ao longo dos anos no quadro de seus frequentadores: alfaiates, padeiros, pedreiros, soldados, militares, músicos, domésticas, doceiras, lavadeiras, pintores, ferroviários, etc. É o caso de Nelly Silva, 87 anos, filha de Antônio da Silva, militar, com Marcelina Gonçalves da Silva, doméstica e lavadeira; Eloá Oliveira Bueno, 86 anos, filha de Gonçalo Bueno, trabalhador da estação de trens com Fausta Oliveira Bueno, que era doméstica; Marcos Aurélio Marques, 71 anos, filho de Francisco de Assis Marques, músico do Exército, com Cecília Martins Marques, doméstica; Maria Rita Py Dutra, 65 anos, filha de Albertino Py, mensageiro na estação de trens, com Lucília de Lima Py, lavadeira e Alcione Flores do Amaral, 61 anos, filha de Agenor Alves do Amaral, militar com Zilda Flores do Amaral, bordadeira. Todos pertencentes a famílias frequentadoras do Clube União, compondo o rol dos entrevistados para essa pesquisa. Giane Vargas Escobar (2010) estabelece uma relação entre o trabalho e a organização desses clubes, observando que boa parte deles, fundados no pós-Abolição ou anteriormente, eram “oriundos de profissões e empresas, em especial públicas, que viabilizaram a mobilidade social aos negros, embora os cargos ocupados por estes não fossem os mais altos e os mais bem remunerados” (Idem, p. 70). Como foi o caso do Clube Treze de Maio que passara a ter forte ligação com a ferrovia, tornando-se um clube ferroviário negro, além de outros que tiveram forte participação de militares do Exército e brigadianos. Para a autora, a questão do trabalho remunerado entre a população negra foi um importante passaporte para tornar-se parte de uma elite empoderada: Assim, pode-se afirmar que estar empregado, ser um profissional assalariado, significava mobilidade social para a população negra, até então alijada dos mecanismos de acesso ao trabalho remunerado e pelo processo político de branqueamento imposto pela sociedade brasileira, corroborada pelas teorias racistas dos séculos XVIII e XIX. O trabalho livre e a organização destes profissionais negros viabilizaram a formação de uma verdadeira “elite negra empoderada” (Ibid., p. 71). Entendo que o Clube União Familiar, esteja nessa esteira das organizações determinadas pelo pós-Abolição, alinhando negros e negras à luta pelo reconhecimento em sociedade, pelo acesso a direitos muitas vezes negligenciados, sendo o lazer um deles, incorporando o festejar, o dançar, o beber, o

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Sobre a Irmandade do Rosário em Santa Maria ver em: GRIGIO, Ênio. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em Santa Maria (1873-1915): uma trajetória de conflitos. Santa Maria: UFSM, 2003. 6 APERS, Processo Crime movido pela Justiça contra Pedro Antonio Silva. Santa Maria, Juizo Districtal da Séde, 2ª Escrivania do Crime, a. 1926, n.° 136, m. 66. 7 Os estatutos estão guardados no Cartório de Registros Especiais da cidade de Santa Maria, localizado na Rua Venâncio Aires, nº 2199.

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socializar, podendo garantir melhorias para a vida de seus frequentadores. Simbolizando, também o poder de organização, bem como uma espécie de afronta social por mostrarem que “também podiam”. É nesse sentido também, que Silva (2011) compreende as sociedades negras como contraponto, especialmente na medida em que procuram o afastamento e a negação de estereótipos, bem como buscam uma identidade positivada, mantendo espaços seus em que não passassem por constrangimentos, ao mesmo tempo em que incorporavam comportamentos e regras presentes também nos clubes sociais brancos mostrando que também podiam. Configurando aquilo que Lorena Gill e Beatriz Loner (2009) consideram de modo geral, uma “busca, contraditória, mas efetiva, pela inserção e participação na sociedade brasileira” (Ibid., p. 145).

Imagem 1 - Membros da Sociedade União Familiar. Fonte: Acervo particular de Alcione Flores do Amaral.

Imagem 2 - Adão e Maria Marques, vestidos para o carnaval no Clube União. Fonte: Acervo particular de Marcos Aurélio Marques. Imagem 3 - Crianças no Clube União. Fonte: Acervo particular de Alcione Flores do Amaral.

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A VILA BRASIL: MORADIA, LAZER E CONFLITOS Uma das primeiras referências encontradas com relação à Vila Brasil vem do Álbum de Santa Maria, editado em 1914 e publicada no livro Santa Maria: relatos e impressões de viagem, que traz uma imagem da Vila Operária e a seguinte descrição: A foto mostra a Vila Operária Brasil, loteamento localizado no quarteirão delimitado pelas ruas Venâncio Aires, Andradas, Barão do Triunfo e Visconde de Pelotas. O projeto original – que, na época, poderia ser taxado de faraônicoprevia a construção de 180 moradias, ruas calçadas e arborizadas, um mercado, uma praça e um grande reservatório de água. Do total de moradias projetadas, foram construídos 50 chalés de madeira e parte deles, mais tarde, integrou o Beco do Sabão, hoje desaparecido (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997, p. 161).

Imagem 4 - Vila Operária Brasil. Extraído do Álbum de Santa Maria, 1914. Fonte: MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997. Conhecida tal referência, estudar a Vila Brasil passava a ser um eixo importante à pesquisa do Clube União Familiar, uma vez sendo impossível deixá-la de lado por saber que o Clube estava situado exatamente onde a Vila fora construída. Também no mesmo livro, uma foto panorâmica da cidade, usada pelos autores para ilustrar os relatos de Simões Lopes Neto, traz em sua legenda outras informações acerca da Vila, especialmente a de que era idealizada por Perfecto Leirós, composta por casas populares, reduto de cozinheiras e doceiras e cuja maior tradição era o Carnaval, representado pela figura do Bloco Carnavalesco Rancho Succo. Eis, portanto, um forte indício da relação Clube-Vila Operária. Estavam relacionados, sendo que o primeiro fazia parte do segundo e o segundo passou a ser reconhecido pelas ações do primeiro. A noção de que o Clube fazia parte da Vila Operária será defendida por muitos antigos sócios e ainda moradores da localidade, especialmente imbuídos da ideia de que a própria sede do União era uma das casas de madeira da Vila, um dos famosos chalés. Nelly da Silva, 87 anos, moradora da Rua Visconde de Pelotas com a travessa Mendes Nunes (antigo Beco do Sabão), conta que, com a morte do pai, por volta de 1928, sua mãe, Marcelina, ela e o irmão vieram morar na Vila. ... A minha mãe já estava viúva e veio... A mãe comprou aqui, era um chalé... Tinha umas economiazinha e nós viemo pra cá e eu moro até hoje aqui. Olha...

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A gente passou [trabalho] por que a mãe ficou viúva, meu pai era militar, só vinha a tal pensão e depois ela era pouco, que ela trabalhava pra fora pra... Pra nos cria ela deu comida pra fora, aí não pagavam, aí ela parou. E... depois lavava pra fora... Lavava pro exército, só que era roupa de cama do quartel. Lençol e fronha. Então a mãe nos criou trabalhando, por que a pensão era pouquinha (NELLY DA SILVA em entrevista concedida a Franciele Rocha de Oliveira em sua residência, em 17/10/2013). A Vila também recebe destaque na obra de João Rodolpho Flôres. Além de referenciar a sua criação, o autor é um dos primeiros a levantar a relação entre o Clube e a Vila, sendo caracterizados como espaços de predominância negra e trabalhista da cidade, de articulação cultural e moradia. Esse loteamento foi idealizado pelo espanhol Perfecto Leirós, e abrigava famílias operárias do setor industrial e trabalhadores ferroviários. Caracterizava-se como local típico de convivência comunitária, sendo muito conhecido pelo trabalho de suas cozinheiras e doceiras, e também pela alegria de seus moradores que participavam do bloco carnavalesco “Rancho-Succo”. (2007, p. 186). Nas proximidades dessa Vila já existia desde o ano de 1896 a “Sociedade Clube União Familiar”, com sede a “Rua Barão do Triunfo”, o que demonstra que o local era tradicionalmente um espaço ocupado pela população operária, a qual aproveitava seu tempo de lazer para recreação social. A comprovação disso encontramos nas palavras do Sr. Agenor Alves do Amaral, presidente do Clube União Familiar no ano de 1957, ao afirmar que os sócios (...) são na sua totalidade pessoas de poucos recursos, vivendo a maioria de pequenos salários... (Ibid., p. 186). Marcos Aurélio Marques, 71 anos, morador da Rua Hermes Cortes, também antiga Vila Brasil, ajuda, por meio de suas recordações de infância, entender o formato da Vila, caracterizando seus moradores, os quais, apesar de serem etnicamente diversos, os negros sobressaíam: “Tinha de tudo. Tinha negro, tinha branco, era tudo misturado, mas a raça sempre predominou. Sempre predominou”. (MARCOS MARQUES em entrevista concedida a Franciele Rocha de Oliveira, em sua residência, em 09/01/2014). Nelly e Marcos tiveram sua história de vida atrelada não só á Vila Brasil. Ambos eram também frequentadores do União Familiar. A primeira, de maneira mais restrita, tendo participação em algumas festas chegando a ser convidada para oradora em uma solenidade e o segundo, de maneira mais atuante foi associado do Clube desde criança por seus pais, Cecília e Francisco, que eram dirigentes do Bloco Carnavalesco Rancho Succo. Ambos entrevistados colaboram na compreensão da relação entre o Clube e a Vila, especialmente no que tange a dinâmica de vida dos moradores/frequentadores. ... Eu sou de 43, né. A minha mãe já era envolvida com o Familiar. Ela começou envolvida com o Rancho Succo. A minha avó... Aquela turma mais antiga... Depois ela veio e... Se envolveu nisso ai. Sempre envolvida na diretoria, na organização, nos baile, aquela coisa toda... Então, eu me criei indo ali. Mesmo quando não tinha uma festividade a gente ia lá pra... Pra limpa, pra arrumar, consertar, limpar salão (MARCOS MARQUES em entrevista concedida a Franciele Rocha de Oliveira, em sua residência, em 09/01/2014). Maria Rita Py Dutra, diferente dos dois primeiros entrevistados, não morou na Vila, mas foi sócia do União Familiar, o que a permitiu guardar lembranças a ponto de realizar uma descrição mais detalhada sobre a infraestrutura do Clube, levando-nos a mais indícios de que a estrutura que abrigava a sociedade era uma das casas da Vila: ... O União Familiar era muito simples. Era um lugar pobre, mas ele era muito aconchegante, era muito limpinho. E a gente sempre lidou com uma coisa de

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autoestima assim... (MARIA RITA PY DUTRA em entrevista concedida a Franciele Rocha de Oliveira em sua residência, em 21/01/2014). Era muito simples... As cadeiras eram de palha... As toalhinhas eram de xadrez, agora ainda usam né, toalha xadrezinha. Eu me lembro assim: O clube de madeira, uma área na frente, não sei como a gente chama... É por que ali, ali naquela região, tinham várias... Várias casa nesse estilo... Era um chalé grande e tu entrava assim, tinha área... Um espaço, dai depois entrava na porta. Então eu me lembro do clube assim de madeira e depois... Quando ele foi construído, ele foi... Que a gente foi lá, a Mariazinha dava a alma pelo clube, sabe? E a minha relação era muito com a Mariazinha. Só que o que aconteceu comigo, foi o seguinte... Fomos... Casei no dia 30 de dezembro de 72, então até 72 eu frequentei o clube... (MARIA RITA PY DUTRA em entrevista concedida a Franciele Rocha de Oliveira em sua residência, em 21/01/2014). Na Hemeroteca Digital Brasileira foi possível encontrar fontes acerca do projeto da Vila Operária Brasil, como no caso do jornal A Federação, de Porto Alegre, que em 27 de Junho de 1911 noticiou com detalhes a sua construção. Apesar do tom propagandista da notícia, ela é a única fonte primária que se teve acesso em se tratando do projeto que originou a Vila Operária, na qual se encontra descrita a posição das casas e algumas especificidades, bem como os demais recursos urbanísticos previstos na época para a construção, levando-nos a pensar, por meio deste documento, que a Vila poderia estar em sintonia com as políticas de higienização e reformas urbanas da cidade. A pesquisa em outros jornais da Hemeroteca nos permitiu notar diferentes situações que também abarcam o cenário da Vila Brasil. Na busca, foram encontradas dezessete menções sobre a Vila, todas elas do jornal A Federação, em notícias de diversas categorias. Entre elas, chama atenção às relacionadas a crimes, delitos e ações de violência (quatro casos de assassinatos), sendo um deles dentro do próprio Clube União Familiar, apreensões (dois casos), furtos (um caso), brigas ou tentativas de assassinatos (quatro casos) e a ação higienista na Vila, bem como políticas de fiscalização (quatro casos) 8. Abrindose, portanto, um leque de possibilidades para melhor compreender o cotidiano dos seus moradores ou dos frequentadores do Clube. Os casos noticiados, apesar de pertencerem a uma única fonte, isto é, ao jornal A Federação, de Porto Alegre, ajudam entender algumas questões referentes à vida dos moradores da Vila Brasil, podendo, por exemplo, problematizarmos, a partir das divulgações jornalísticas da época, as relações familiares, as práticas de lazer e consumo (casa de jogos, o clube, botequins e armazéns), os problemas de ordem ambiental (infestação de gafanhotos, problemas com sarjetas e prejuízos com ventania), práticas delituosas (furtos, brigas e assassinatos), bem como a falta de segurança em um local que rapidamente explodiam brigas, até banais, mas que poderiam terminar em risco de vida e as relações de trabalho, como, por exemplo, a influência da Brigada Militar e do 7º Regimento de Infantaria na vida dessas pessoas. Sidney Chalhoub (1986) consegue problematizar perfeitamente, no campo da história social, as questões relacionadas ao universo dos trabalhadores, sem separar os espaços de ações cotidianas dos lugares de política, no Rio de Janeiro do Século XX, vendo esses indivíduos enquanto protagonistas em

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1. Os gafanhotos. A Federação. 3 de setembro de 1917; 2. Uma tragedia. A Federação. 10 de julho de 1917; 3. Jogo e Sangue. A Federação. 12 de dezembro de 1917; 4. Seguro fraudulento. A Federação. 19 de dezembro de 1917; 5. Scenas de Sangue. A Federação. 20 de novembro de 1919; 6. Os Gatunos. A Federação. 24 de setembro de 1919; 7. Furto. A Federação. 9 de março de 1920; 8. Intendencia de Santa Maria. A Federação. 25 de outubro de 1924; 9. Para Hygiene Municipal foram visitadas as casas... A Federação. 29 de maio de 1925; 10. Scenas de Sangue. A Federação. 11 de maio de 1926; 11. Pelos fiscaes da Hygiene foram visitadas... A Federação. 16 de novembro de 1926; 12. Attendendo as constantes reclamações de moradores da Villa Brazil. A Federação. 18 de abril de 1927; 13. Encontrado Morto. A Federação. 18 de novembro de 1927; 14. Ventania e prejuizos. A Federação. 30 de setembro de 1927; 15. Entre irmãos. A Federação. 15 de março de 1928; 16. Desastre e morte. A Federação. 12 de março de 1929; 17. Santa Maria. A Federação. 14 de abril de 1932.

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um universo de atuação total, seu mundo de trabalho e cotidiano de vida, marcado por relações étnicas, de rivalidades, de tensões e também de formas de solidariedade e ajuda mútua. De forma geral, nota-se a Vila Brasil sob vários olhares. Para além de um projeto urbano, um espaço de convivência de trabalhadores da cidade e como toda e qualquer convivência, fora marcada por conflitos, rivalidades e tensões, sem deixar de ser também um espaço de lazer, festividade e moradia. Como no caso do União Familiar, uma parte dela. CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM CLUBE EM REDE? Este trabalho apresentou resumidamente algumas discussões realizadas no Trabalho de Conclusão de Graduação da autora, em especial no que consiste o segundo capítulo da obra, no qual discuti sobre a origem do Clube, visando responder questões referentes à fundação e seus sujeitos fundadores. Assim, aponta-se que um dos grandes fatores de mobilização de clubes como o União foi à realidade de exclusão e o desejo de participação analisados também em outros clubes negros do país. Sobre os frequentadores do clube, delimita-se fundamentalmente uma classe trabalhadora negra e procura-se discutir sobre a realidade dessa comunidade, suas, profissões e locais de moradia. Compreendendo, portanto, a Vila Brasil como um espaço essencial para o entendimento sobre o Clube, uma vez sabendo que o Clube estava situado exatamente onde a Vila fora construída. Assim, a mesma passa a ser reconhecida para além de um projeto urbano, um espaço de convivência de trabalhadores da cidade, marcada por tensões e também espaços de lazer, festividade e moradia. Importante colocar que a pesquisa relativa ao Clube União Familiar levou ao estudo de outras organizações negras que existiram a partir dele ou ligadas ao mesmo, cujas relações pretende-se impulsionar, através da ampliação da pesquisa em nível de pós-graduação. Assim focando nas trajetórias individuais, familiares e coletivas/associativas, que tiveram como espaços principais de atuação, o Clube União Familiar e a rede negra que o cercava, envolvendo a Irmandade do Rosário, de 1889; a Vila Operária Brasil; o Bloco Carnavalesco Rancho Succo; o Jornal negro O Succo, e por fim, a primeira Escola de Samba de Santa Maria, a Vila Brasil. Compreendendo que tais organizações e trajetórias fazem parte, muitas vezes, de estratégias maiores de resistência que se relacionam e interligam-se, em que os sujeitos buscam, de variadas formas, melhorias nas suas condições de vida e trabalho, conforto para si, suas famílias e seus entes queridos. REFERÊNCIAS CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro na Belle Epoque. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. DUTRA, Maria Rita Py. Maria Rita Py Dutra: depoimento [Jan. 2014]. Entrevistadora: Franciele Rocha de Oliveira. Santa Maria: Residência da entrevistada, 2014. Entrevista concedida para a pesquisa monográfica. ESCOBAR, Giane Vargas. Clubes Sociais Negros: lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. Santa Maria: UFSM, 2010. Dissertação (Mestrado em Patrimônio Cultural) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2010. FLÔRES, João Rodolpho Amaral. Fragmentos da História Ferroviária Brasileira. Santa Maria: Pallotti, 2007. GILL, Lorena; LONER, Beatriz Ana. Clubes carnavalescos negros na cidade de Pelotas. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 145-162, jan/jun. 2009. GRIGIO, Ênio. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em Santa Maria (1873-1915): uma trajetória de conflitos. Santa Maria: UFSM, 2003. (Monografia de Curso de Especialização em História) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2003. MARCHIORI, José Newton Cardoso; NOAL FILHO, Valter (orgs.). Santa Maria: Relatos e impressões de viagens. Santa Maria: Ed. da UFSM, 1997.

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MARQUES, Marcos A. M. Marcos Aurélio Marques: depoimento [Jan. 2014]. Entrevistadora: Franciele Rocha de Oliveira. Santa Maria: Residência do entrevistado, 2014. Entrevista concedida para a pesquisa monográfica. OLIVEIRA, Franciele Rocha de. “Moreno Rei dos Astros a Brilhar, Querida União Familiar”: Trajetória e Memórias do Clube Negro Fundado em Santa Maria, no Pós-abolição. Santa Maria: UFSM, 2014. SILVA, Fernanda O da. Os negros, a constituição de espaços para os seus e o entrelaçamento desses espaços: associações e identidades negras em Pelotas (1820-1943). Porto Alegre: PUCRS, 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. SILVA, Nelly da. Nelly da Silva: depoimento [Out. 2013]. Entrevistadora: Franciele Rocha de Oliveira. Santa Maria: Residência da entrevistada, 2014. Entrevista concedida para a pesquisa monográfica. WEIMER, Rodrigo de Azevedo. A gente da Felisberta: consciência histórica, história e memória de uma família negra no litoral rio-grandense na pós-emancipação (c. 1847 – tempo presente). Niterói: UFF, 2013. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.

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O A ALVORADA NA DEFESA DA ETNIA NEGRA (1933-1934) Ângela Pereira Oliveira 1 O A Alvorada era um jornal semanário de circulação na região sul do Estado, editado na cidade de Pelotas. Visando fazer frente ao espaço de invisibilidade que era imposto a população negra pelotense nos meios de comunicação e, como forma de possibilitar que ela reivindicasse as suas mazelas, o jornal nasceu na cidade de Pelotas, no ano de 1907. Além do mencionado, o jornal também buscava denunciar o preconceito sofrido pela gente negra que morava pela região. Esse periódico que “circulava semanalmente todo sábado” (TAVARES, 2007, p.07) foi ganhando visibilidade e conquistando o seu espaço. E, esse espaço se fazia tão necessário que o jornal durou quase 58 anos, tendo circulado em Pelotas e região, com algumas interrupções, até o ano de 1965. Sobre o A Alvorada se pode inferir que “além de um órgão de caráter político foi significante também para a afirmação da autoestima da etnia, pois neste jornal eles eram representados através de fotos, homenagens, tributos, o que não acontecia nos demais jornais diários” (Idem, p.07-08). E, tinha por foco a luta contra a discriminação racial, a defesa do operariado pelotense e a divulgação de ideias. Não apenas na cidade de Pelotas, mas em se tratando da imprensa negra que circulou em todo o país, se destaca que “tornaram-se uma imprensa alternativa aos jornais de grande circulação, uma vez que os negros não se viam representados nas suas páginas” (SANTOS, 2011, p.157). Muitas pesquisas já foram feitas com o uso dessas fontes, observando e discutindo diferentes questões. Ainda assim, a imprensa negra no estado do Rio Grande do Sul continua apresentando muitas possibilidades de estudo a respeito do protagonismo do negro na história sulina. Sem mencionar que é uma preciosa fonte que possibilita entender muitas questões sociais a que estavam condicionados estes sujeitos e que ela, como bem lembra Santos (2011), é uma “fonte de pesquisa privilegiada para a construção interpretativa de uma outra história do negro no Rio Grande do Sul” (Idem). A respeito da imprensa negra é sabido que o primeiro estudioso desse precioso material como fonte histórica se deu pelo francês Roger Bastide. Mesmo tendo reproduzido alguns estereótipos o pesquisador foi imprescindível para que os estudos com essas fontes se integrassem as pesquisas acadêmicas. Os usos acadêmicos e políticos que fizeram alguns pesquisadores da imprensa negra, no sentido de afirmar a capacidade intelectual e organizativa dos negros, comprovaram a legitimidade desses jornais como fonte de pesquisa (Idem, p.158). E, mesmo tendo incorrido em alguns erros o autor não pode ser desconsiderado. Bastide (1983) nos aponta que a imprensa negra “nasceu do sentimento de que o preto não é tratado em pé de igualdade com o branco; sua primeira tarefa será, pois, ser um órgão de protesto” (BASTIDE, 1983, p.134). Nesse mesmo sentido outro pesquisador importante para os estudos de imprensa negra, Petrônio Domingues, informa a respeito dessa fonte que eram “jornais publicados por negros e elaborados para tratar de suas questões” (DOMINGUES, 2007, p.104). Ainda, com base em José Correia Leite, o referido autor destaca a “necessidade de uma imprensa alternativa”, que transmitisse “informações que não se obtinha em outra parte” (Idem). Os redatores do A Alvorada tinham outras ocupações, não estando somente vinculados ao jornal. Esse jornal mantem uma rede associativa na qual dialoga com outros espaços como clubes culturais, sindicatos e com a própria comunidade local através de colunas de fofocas, por exemplo. O valor cobrado pela assinatura do periódico não era excessivo, se tratava de valores bem modestos, se compararmos aos valores de ingressos em tetros e cinema que constam no jornal, veremos que esses custavam em média três a quatro vezes mais que a assinatura do jornal. Logo, se pode concluir que o jornal não tinha objetivos econômicos e sim ideológicos, não visava lucro, mas alertar a população negra a fim de conscientizá-la em relação ao tratamento que lhes era 1

Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), bolsista Capes.

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condicionado na cidade de Pelotas. É importante salientar que esses jornais classificados como imprensa negra apresentam como característica comum, por exemplo, a “superação dos complexos e estereótipos que os inferiorizavam na busca da mobilidade social” (SANTOS, 2011, p.157). A pesquisa que vem sendo desenvolvida utiliza-se desse jornal de imprensa negra e operária e, tem por objetivo fomentar o debate sobre as colocações feitas em prol da valorização desses sujeitos promovida pelos próprios articulistas do semanário. Desse modo, se busca estabelecer um diálogo constante com a fonte, apontando os textos e notas que são assinadas por Creoulo Leugim, dentro do jornal A Alvorada. Uma vez que o próprio jornal publica que as notas assim assinadas buscam valorizar a gente negra. O que chama a atenção é o nome utilizado pelo articulista na sua assinatura. Vale lembrar que os negros se articulavam na construção de “certa identidade social a partir de vocábulos, conceitos e ideias legados do passado” (GUIMARÃES, 2003, p.251). No que se refere ao perfil adotado por estes escritores do jornal é possível traçá-lo ao observar a forma como eles escreviam e pelas ideias que defendiam. O que se pode facilmente concluir quando é feita uma leitura atenta das colunas assinadas por estes articulistas. No A Alvorada havia diferentes notas explicativas apontando do que se tratava a escrita proferida por Creoulo Leugim, uma delas, por exemplo, aponta que ele procurava valorizar a gente negra através de suas colocações e a partir dai o interesse pelo personagem surgiu. A fim de entender de que forma ele conseguia realizar este diálogo. Por exemplo, se aponta um trecho de um texto assinado por ele no qual coloca “quem não está conosco, está contra nós, e assim contra a Frente Negra e quem é contra a Frente Negra é contra a raça, e quem é contra a raça, é contra si mesmo” (A Alvorada, 07/01/1934, grifo meu). É possível notar não apenas nessa, mas em tantas outras colocações que há uma defesa da Frente Negra como um elemento importante para a raça negra o tempo todo. Sobre a Frente Negra Brasileira (FNB) se destaca que sua fundação se deu no ano de “1931, em São Paulo” (DOMINGUES, 2007, p.105). E, logo em seguida muitas outras Frentes Negras começaram a ser fundadas por todo o país com o “propósito de promover a integração do negro à sociedade mais abrangente” (Idem, p.107). O mesmo ocorre para a cidade Pelotas, que no ano de 1933 passa a possuir a Frente Negra Pelotense que fundada na cidade, passa a ter um vínculo com os objetivos buscados pela Frente Negra Brasileira e mantem-se ligada a ela por meio de políticas e ideologias. Já no que se refere à palavra “raça”, em destaque no texto pela autora, se pode inferir que ela se repete com muita frequência no texto produzido por este articulista. Sobre o seu uso, inicialmente, se destaca que “a questão principal não é o que vem a ser “raça”, mas o modo como o termo é empregado” (CASHMORE, 2000, p.448). Nesse sentido a atenção se volta para o entendimento no modo como a palavra tem o seu emprego no jornal A Alvorada por este articulista em específico. Na imprensa negra o uso de palavras, tais como é o caso da palavra “raça”, adquiriu um duplo sentido na sua inferência. O uso de raça pela imprensa é uma forma de utilizar o “sentido biológico que lhe fora empregado no século XIX e isso ocorre, pois esses grupos entendem sua utilização como forma de “marcar a inferioridade que lhes foi atribuída” (GUIMARÃES, 2012, p.23). Desse modo, é notório que estando à palavra raça impregnada de um forte sentido negativo produzido pela ciência moderna e, que fora condicionada a gente negra, o seu uso serve para mostrar aos demais companheiros o quanto ela pode ser uma “categoria possível de auto identificação” (GUIMARÃES, 2002, p.49). Além disso, se pode mencionar que o termo também é usado como forma de “agrupar os descendentes africanos” (GUIMARÃES, 2003, p.253). A respeito do termo se entende que: Tanto “raça” quanto “negro” foram palavras que fizeram um completo percurso histórico de reversão de sentido. Usado pelos europeus primeiro, para designar pessoas de cor mais escura “negro” tornou-se, depois, designação de pessoas e povos de status social ou constituição biológica inferior, escravos ou povos submissos; para, num terceiro momento, servir de autodesignação desses mesmos povos em seus movimentos de libertação colonial e de recuperação de auto estima. (GUIMARÃES, 2012, p.29)

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Não se pode ignorar que atualmente há um debate bastante grande sobre a utilização ou não da palavra raça dentro do meio acadêmico e do movimento negro não havendo um consenso defendido por estes. O que se pode apontar é que raça não é entendida com o mesmo sentido do que fora expresso na década de 1930 na qual o trabalho se debruça. Hoje ela passa a ser vista de duas maneiras, ou como uma categoria discursiva ou como uma categoria analítica e, seu uso se faz com o auxílio de aspas, uma vez que não existem raças, somos todos frutos de uma única, a humana. Retomando as colocações do jornal feitas por este articulista. Aponta-se que referente à sua disposição no jornal ele se faz presente quando não na capa, o que é mais comum, está nas duas primeiras folhas do jornal. Seus textos por vezes são subjetivos e não deixam muitas vezes claro aonde ele busca chegar. No entanto, por outros momentos ele é bastante específico e dialoga com o seu leitor. A fim de discutir alguns pontos de seu texto, de antemão se pede licença para transcrever uma parte de uma escrita que ele realiza no jornal. Creoulo Leugim escreve: Todos juntos, unidos, tu sofres o que eu sofro, todos sofrem a minha e a tua dor. - porque não unir, se somos todos tratados igualmente? - porque não organizar uma barreira que intercepte e detenha, a avançada do preconceito contra nós? Cor de minha cor! Escuros ou claros somos todos iguais, diante dos “puros”. Temos nossa tradição escrava de submissão. Escravos sim, mais revoltados como Zumbi e Palmarinos. Trabalhemos por um futuro melhor. Não se trata de questão pessoal, os empecilhos que encontramos a todo o momento é sim uma questão coletiva. - não te debatas com teu irmão de raça, porque enfraqueces a ela, que é a união. (A Alvorada, 23/09/1934, grifo meu) Através desse texto torna-se notória a forma como ele dialoga com o seu leitor, utilizando palavras que o incluam na mesma situação vivida por quem o lê. O que ele proporciona é uma interação com o assinante do jornal ao mesmo tempo em que busca uma identificação comum, demonstrando o quanto é importante à união entre os negros. Para isso Crioulo faz uso do “nós” quando busca uma identificação comum e, utiliza “teu irmão de raça” quando quer proporcionar uma interação entre a gente negra e ai novamente o uso de “raça” se faz presente. A preocupação de que os negros tomassem consciência da situação de preconceito vivenciada por eles próprios fica evidente no jornal. Isto porque, eles vão denunciar diferentes maneiras com que o preconceito de cor se manifesta nessa sociedade seja através da elite, das escolas e demais espaços públicos. Da mesma maneira vão positivar o ser negro demonstrando aos demais que não neguem a sua cor e, sim, que se assumam e reafirmem o ser negro uma vez que possuem um legado de lutas e de coragem. Algo bastante frequente é a ligação direta estabelecida entre o preconceito e a falta de educação. Por exemplo, depois da criação da Frente Negra se teve uma forte campanha em prol desta para a gente negra, a fim de que, esses não dessem motivos para os brancos serem preconceituosos com eles. E, para que se mostrassem mais civilizados que os brancos. Mas também para que denunciassem e soubessem se comportar demonstrando que as atitudes preconceituosas não passavam de falta de civilidade da gente branca para com os negros. Novamente se destaca o quanto esses textos escritos por Creoulo Leugim beiram a coletividade. Esse coletivo, na visão do articulista seria organizado em prol de melhorias para os negros que sofriam o preconceito e eram destratados além de estigmatizados pela sociedade. Sobre a coletividade e a forma como o negro era construído pela sociedade Creoulo Leugim coloca:

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Criados, em uma escola de negação, onde nos ensinam, a desprezar a nossa cor, onde nos ensinam a desprezar nossos pais, onde nos ensinam a adorar um Deus que também é branco, chegou nossa raça a odiar-se a si própria. Nosso programa é coletivo, não trata da vida de cada um em particular e si da vida de todos, da vida de nossa raça. (A Alvorada, 18/03/1934, grifo meu) Essa situação expressa pelo articulista é bastante comum dentro de uma sociedade que adquiriu uma visão negativa do negro e que constantemente o estigmatiza. Logo, o que passa a lhe ser imposto são costumes e crenças de uma sociedade branca a fim de que esse ignore suas próprias crenças e cultura em detrimento de outrem. No entanto, não se pode cair no erro de achar que eles absorviam tudo o que lhes era imposto. É de conhecimento que “eles se apropriavam dos signos culturais impostos, mas os adaptando de acordo com suas leituras de mundo, suas perspectivas, suas experiências de vida” (AL-ALAM, 2008, p. 41). Também é perceptível a influência principalmente da religião católica que lhes era imposta ante a assumir comportamentos religiosos de matrizes africanas. E, novamente a questão da coletividade é tratada no texto desse personagem que além de propor uma positivação do ser negro ainda promove uma identificação com uma coletividade e uma união entre os negros. Em outra inferência feita por Creoulo Leuguim a questão de uma coletividade também aparece, ele aponta “não podemos ficar entregues a própria sorte, como vencidos eternamente, por um destino adverso (...) Dá-nos lástima, dor e lágrimas, esse sofrimento coletivo, tivemos a abolição e pensamos ter tudo. (A Alvorada, 18/02/1934). É importante não cair no erro da ideia já superada de Florestan Fernandes (1978) de que os negros foram largados a própria sorte. E, entender o pós-abolição dentro de uma conjuntura das diferentes estratégias da luta negra. No entanto, não se pode desconsiderar que com o fim da abolição novas formas de controle sobre a população negra se deram e que estes se depararam com serias dificuldades de inserção na sociedade que criava barreiras para sua ascensão. Constantemente o jornal aborda sobre a abolição, seja através da data 13 de maio, seja através de importantes personalidades negras que servem de exemplo para seus irmãos pela sua luta. Ainda assim é comum encontrar críticas à situação que o negro passou a viver com o fim da abolição: preconceito racial, preconceito de cor, falta de oportunidades e de direitos entre outros. Por fim, não é algo muito comum, mas o personagem também escreve para as mulheres. E, ao contrário de articulistas que possuem uma visão mais conservadora ele apresenta as mulheres que se destacam na sociedade negra, seja aquelas que integram a Frente Negra Brasileira prestando-lhe algum serviço como, por exemplo, a divulgação do ensino. Creoulo Leugim apresenta a mulher moderna que se emancipou e que estuda e trabalha. Chama a atenção um texto que ele coloca a elas no qual está transcrito um trecho abaixo: A ama negra acostumou-se a dar a outra raça, o seu leite, o seu sangue, que percorre por estas e outras formas, no sangue brasileiro; roubando a ela o alimento forte e puro de sua raça, e a seu filho, para dar aos filhos de outrem, doentios, que alimentados, criados, com o sangue negro, puro e forte; mais tarde viriam dar de chicote em seu próprio filho, seu irmão de criação. (...) A mulher negra atual, pouco mudou a forma de seu viver, a maioria continua serva, continua na cozinha e continuará, enquanto não procurarem educar-se. (A Alvorada, 02/07/1933) Como fora posto anteriormente há uma cobrança para que a mulher negra se eduque, cobrança essa que ganha força depois da campanha pela educação proposta pela Frente Negra e absorvida pelas demais Frentes existentes no país. Esses articulistas que escrevem na imprensa negra, assim denominada, por Roger Bastide e Florestan Fernandes, apresentam em comum muitas características uma delas que se vê nesse articulista muito fortemente é a questão da autoafirmação de uma identidade negra. Buscando, através da escrita

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desse articulista entender como ele promove essa identificação com o seu leitor foi possível perceber, dentro da sua escrita, algumas palavras que são essenciais na construção dessa identidade. Também se pode observar um pouco mais sobre os diálogos promovidos entre escritor e leitor que tornam essa imprensa uma ferramenta de extrema importância nessa construção do associativismo negro dentro do cenário de pós-abolição. Uma vez que se pode observar o censo de coletividade existente nessa escrita. A grande quantidade de analfabetos que existia ainda nesse momento, entre a população negra principalmente, não desmerece o empenho desse jornal em dialogar com a população negra. Assim como toda a imprensa é preciso problematizar as discussões que são apresentadas e entender os interesses existentes entre quem escreve e buscar o porquê escreve e para quem escreve. Algo que se tentou de alguma forma deixar expresso e contemplado ao longo do presente texto. FONTES Jornal A Alvorada. Centro de Documentação e Obras Valiosas da Biblioteca Pública Municipal de Pelotas. 1933-1934. REFERÊNCIAS AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Edição do autor; Sebo Icária, 2008. BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de São Paulo. Estudos Afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, pp.129-156, 1983. Acesso em dezembro de 2013. Disponível em: http://moodle.stoa.usp.br/file.php/1416/A_imprensa_negra_no_Estado_de_Sao_Paulo.pdf CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo negro, 2000. DOMINGUES, Petronio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo [online]. V.12, n.23, pp.100-122, 2007. Acesso em março de 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978, v. 1. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raça e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio a Universidade de São Paulo, 2002. __________. Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra de São Paulo e Rio de Janeiro, 1925-1950. Afro-Ásia. Universidade Federal da Bahia. n.30, pp.247-269, 2003. Acesso em março de 2015. Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/770/77003007.pdf __________. Preconceito racial: modos, temas e tempos. São Paulo: Cortez, 2012. Coleção Preconceitos, v. 6, 2 ed.144p. SANTOS, José Antônio dos. Uma arqueologia dos jornais negros no brasil. Historiæ, Rio Grande, 2 (3): pp.143-160, 2011. TAVARES, Viviani dos Santos. DR. Pescadinha em cena. Pelotas, 2007. 18 f. (Pós-graduação em História do Brasil – Universidade Federal de Pelotas). Disponível em: Núcleo de Documentação histórica (NDH-UFPel).

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O TAMBOR REPINICA PELAS LEMBRANÇAS DOS VELHOS Andréa Witt 1 INTRODUÇÃO As manifestações culturais sofrem modificações que permitem que as mesmas se reinventem, ou que apenas se adaptem às transformações que a sociedade sofre. A comunidade quilombola dos Teixeiras se localiza a aproximadamente 5km do centro do município de Mostardas, no litoral do Rio Grande do Sul. Outrora, outras comunidades quilombolas próximas a Mostardas, como Casca e Tavares, já professavam sua crença por meio desse ritual, mas, com o passar do tempo, pela falta de manutenção, ou seja, a falta da entrada de novos dançantes, a grande maioria dos membros do grupo, hoje, é pertencente à comunidade quilombola dos Teixeiras 2. O Ensaio de Pagamento de Promessas é um ritual afro-católico, uma congada 3 que tem como orago Nossa Senhora do Rosário, a entidade sagrada da manifestação. O Pagamento de Promessas, ao contrário de outras congadas, ocorre apenas em um dia, ou seja, numa única noite, que inicia ao entardecer, por volta das 18 horas e termina ao amanhecer, em torno das 6 horas. Durante toda essa noite os integrantes do grupo dançam e cantam em louvor a Nossa Senhora do Rosário, como forma de pagar a promessa realizada pelo promesseiro 5. 4

No ritual, alguns momentos são extremamente marcantes, dentre eles a salvação da casa, quando o promesseiro, a Rainha Ginga 6 e a capelona 7 recebem os dançantes em frente ao local designado para o ritual. Depois disso, eles se dirigem até um recinto onde permanecerão durante essa noite. Aproximadamente às 22 horas os dançantes convidam os presentes, juntamente com o promesseiro, a Rainha Ginga e a capelona a rezarem um terço. Depois desse momento um jantar é servido, sendo que os dançantes são os primeiros a se alimentar. Por volta da uma hora da manhã, é oferecida a sobremesa a todos os presentes. Desse momento em diante, até o amanhecer, os dançantes se revezam para cumprir o ritual até o fim. Para compreender a importância dessa manifestação, foi elaborado o texto a seguir, que objetiva apresentar algumas reflexões sobre a memória individual e coletiva, pois essa exerce papel essencial para a manutenção e efetiva existência do ritual afro-católico conhecido como Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi. A memória dos mais velhos é subsídio para fortalecer a devoção em Nossa Senhora do Rosário, pois, por meio dela, rememoram-se as lembranças do mito fundador que alicerçam a fé e a crença que 1

Mestranda em Processos e Manifestações Culturais na Feevale, sob orientação da prof. Dra. Magna Lima Magalhães. Especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira pela Fapa. E-mail: [email protected]. 2 Esta comunidade ainda não possui o reconhecimento legal concedido por meio de laudo antropológico as comunidades Remanescentes de Quilombo. 3 Manifestação religiosa que possui como elemento fundamental a coroação de reis do Congo (região africana de onde se originam os antepassados dos adeptos desta manifestação). 4 Santo ou padroeiro de uma determinada região /localidade ou, neste caso, uma etnia. Nossa Senhora do Rosário é a padroeira dos negros, de acordo com as crenças afro-católicas. 5 Indivíduo da comunidade ou não que, realiza uma promessa, na qual, se for aceita, ele se compromete a pagar os custos de uma noite de Ensaio. Esta noite consiste, para o promesseiro, oferecer o local, bem como a alimentação dos dançantes e convidados, desde o café de recepção, janta, sobremesa e café da manhã (café de despedida). 6 Representação da Rainha Nzinga Mbândi Ngola Kiluanji que se tornou rainha de Angola e Matamba em 1623, conforme Bittencourt (2006, p. 235). Por ter se convertido ao catolicismo e, portanto, de certa forma proteger seus súditos, ganha destaque além-mar nas festividades conhecidas como congadas. 7 Possui a função de levar a imagem, também conhecida como "Caixinha" de Nossa Senhora do Rosário.

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os antepassados nutriam pela santa. Portanto, entender o papel da memória como força motriz para a renovação da crença é compreender que a oralidade é um aspecto marcante nessa manifestação cultural. MANIFESTAÇÃO CULTURAL E FAMÍLIA RITUALÍSTICA Por meio da célebre frase de Turner (1974, p.15) “a vida “imaginativa” e “emocional” do homem é sempre, em qualquer parte do mundo, rica e complexa”, percebe-se que o que envolve a dinâmica das relações sociais e culturais do homem vem de uma infinidade de contextos e tem variadas explicações, sendo que, muitas vezes, foge das explicações materiais e surpreende por suas ligações com o plano sobrenatural. As manifestações culturais, dentre as quais se pode destacar o Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi, são produtos das dinâmicas culturais que estão presente na sociedade e a ressignificação de ritos, danças, cânticos, enfim, as alterações de um dado elemento cultural, constituem novos “produtos” culturais, ou seja, surgem a partir das inferências que são agregadas a partir de manifestações existentes, dessa forma elaborando novas manifestações. De acordo com Durhan, [...] estes “produtos” não constituem uma criação cultural original e inovadora mas, frequentemente, simples reordenação de imagens, símbolos e conceitos presentes na cultura popular ou erudita. Retirados de seu contexto original, perdem necessariamente muito de seu significado e podem ser assim manipulados para compor novos conjuntos, cuja amplitude de alcance parece estar diretamente condicionada ao empobrecimento prévio de seu conteúdo (2004, p. 234). O Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi vem sendo adaptado às novas realidades vigentes, muitas vezes de forma dura e abrupta, como quando ocorre a perda inesperada de algum dançante, cuja renovação é essencialmente necessária. Não são somente as eventuais perdas que exigem que haja mais dançantes, mas também, o fato de que é necessário um número mínimo de pessoas para que o Ensaio ocorra do início ao fim, sem interrupções, e possibilite intervalos de descanso a cada um dos membros. A falta de um grupo extenso leva os integrantes dos Teixeiras de Quicumbi a ter que solicitar a presença de dançantes de outros Ensaios, como do dos grupos de Casca, Tavares e Rincão que, outrora, tinham diversos membros, mas, hoje,contam apenas poucos dançantes. Dançantes do Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi 8

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador

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Ensaio realizado na Comunidade Quilombola Beco dos Colodianos em 24/01/2015.

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Os laços que são estabelecidos por meio desse ritual ultrapassam as questões de parentescos e territorialidade, pois os mesmos buscam se estabelecer a partir de um sentimento de pertença étnica identitária que acaba estruturando uma rede familiar ritualística, em que o elo que os mantém unidos vai além do ser negro e quilombola, mas, sim, ser devoto de Nossa Senhora do Rosário. De acordo com Corrêa (2006, p.65), que, ao falar de comunidade religiosa em seu estudo sobre o Batuque no Rio Grande do Sul, analisa que "a comunidade se estabelece como uma grande rede de relações sociais, composta, por sua vez, pelas redes similares menores que cada templo estende em torno de si e nas quais os indivíduos se movem", utilizando-se da sua compreensão e adaptando ao que chamo de rede familiar ritualística, percebe-se que os indivíduos que ali se encontram para manifestar sua crença por meio do Ensaio de Pagamento de Promessas se conectam uns aos outros em torno de uma mesma ideia, que é sua fé, sua devoção, rompendo, assim, os limites estabelecidos por convenções espaciais, religiosas e étnicas, entre outras. ORALIDADE E MEMÓRIA A história é o fruto da vivência e das experiências passadas de indivíduos que, de alguma forma, contribuíram para que o enredo histórico se compusesse. Esses indivíduos, que aqui chama-se de personagens históricos, desenvolveram, em sua existência, ações, pensamentos, modos de agir que produziram efeito em uma sociedade, que naquele momento, os enalteceu e os destacou em meio a uma multidão de outros personagens. Suas trajetórias, vivências, ações são repassadas de geração em geração por meio da memória, seja ela individual ou coletiva, que tem a função primordial de manter viva a lembrança de outros tempos, de outros momentos históricos. Nem sempre as linhas teóricas do campo histórico se preocuparam em abordar temáticas ligadas aos costumes, à vida cotidiana, à cultura; somente com o advento da Nova História é que estudos relacionados a esses temas ganharam lugar de destaque. Para que a Nova História pudesse se dedicar a tais temáticas, foi necessário que ocorresse uma grande crise nos estudos da História, crise essa que gerou mudanças no cenário das pesquisas históricas. Nesse contexto de mudanças na forma de pratica a pesquisa histórica, percebese um aumento da tendência para as histórias culturais, destacando-se o resgate das memórias coletivas e individuais, permitindo o desdobramento metodológico e proporcionando com isso uma diversidade de leituras e representações do passado pesquisado. (SANTOS, 2001, p.1). Anteriormente, as fontes de pesquisas históricas eram documentos oficiais, registros, ou seja, fontes materiais que auxiliam na reconstrução de um passado desconhecido. Somente com o olhar direcionado a outras fontes, como entrevistas, vestimentas, utensílios, a cultura passou a ser enfocada e, dando destaque às lembranças, as memórias puderam ser utilizadas de forma expressiva na reconstituição das vivências dos personagens históricos. Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto no individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 5). A memória é, sem dúvida, um aporte metodológico muito utilizado pelos pesquisadores, principalmente por historiadores e antropólogos, pois é com as informações nela contidas que pode-se recriar momentos passados, bem como reconstruir a história individual ou, até mesmo, coletiva de pessoas e acontecimentos de outro tempo. Desde os tempos mais remotos a história do Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi é repassada de geração em geração pelos mais velhos. São eles os detentores dos saberes espirituais. A devoção a Nossa Senhora do Rosário acompanha a comunidade e seus integrantes, entre eles, os dançantes e suas famílias.

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Os ensinamentos transmitidos acerca dos cânticos a entoar, a sequência do ritual que deve ser seguido, destacam-se como elementos que os mais velhos buscam enfatizar aos mais jovens. De acordo com Pollak (1992, p. 05), pode-se, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto no individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. A necessidade de manter vivas as lembranças reside no fato de que, por meio das histórias, revivem-se as escolhas feitas, cada um se identifica com a imagem que faz de si mesmo ao recordar o passado, portanto, existe a necessidade de conhecer os tempos remotos, seus acontecimentos, seus mitos, suas tradições, pois, somente assim, pode-se compreender o desenvolvimento humano. A história oral contribui para a reconstrução de um passado distante, mantendo viva e dinâmica a história por meio de relatos e entrevistas que possibilitam a interpretação a partir, não apenas de fatos, mas de sentimentos e sensações. Mas o quê lembrar? A memória não detém todos os detalhes, nem os fatos e datas que de que gostar-se-ia, pois a seletividade da memória é uma premissa que deve ser compreendida como sendo um de seus atributos. O passado encanta a todos, quando lembrado por pessoas que presenciaram situações e que se enchem de orgulho ou, até mesmo, de certa melancolia, por reviver uma história da qual fizeram parte. A pesquisa historiográfica que conta com a oralidade para compor sua análise se torna rica em detalhes, pois contempla, em sua descrição, o fator humano, a sensibilidade do narrador, tornando, dessa forma, uma história mais próxima, mais viva, buscando recriar momentos que definem cada um como indivíduo e, simultaneamente, momentos em que fazem parte de um grupo. Como afirma Halbwachs (1990, p.27) “[...] outros homens tiveram essas lembranças em comum comigo. Muito mais, eles me ajudam a lembrá-las: para melhor me recordar”. Portanto, a partir desse trecho percebe-se a importância dos outros na reconstrução de uma lembrança. O autor complementa dizendo “encontro em mim muito das idéias e modos de pensar a que não teria chegado sozinho” (HALBSWACHS, 1990, p. 27), ou seja, de acordo com ele, os indivíduos são fruto dos relacionamentos de uns com os outros. Nos estudos sobre memória, Pollak (1992, p.2) diz que “a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa”, mas não se deve esquecer de que todos são parte de um coletivo, portanto, a memória tem informações individuais, mas, também, coletivas. Quando se fala sobre a memória de um grupo, de uma crença, fala-se de memória coletiva, pois ambas estão interligadas. Como aponta Bastide (1989, p. 344), "a memória coletiva é um conjunto de imagens mentais ligadas, de um lado, a mecanismos motores, os ritos, se bem que os ultrapassando, e de outro, as estruturas morfológicas e sociais". A memória coletiva da família ritualística é acessada sempre que o ritual, neste caso específico, o do Ensaio de Pagamento de Promessas, é feito pelos dançantes. Os preceitos religiosos, os cânticos, enfim, o processo ritualístico é rememorado sempre que uma promessa é paga, portanto, a memória individual, bem como a coletiva, é fundamental para a perpetuação dessa manifestação cultural e religiosa. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi realizado no município de Mostardas, litoral do Rio Grande do Sul, forma um elo entre os indivíduos da comunidade e o plano sagrado. As promessas são realizadas com o intuito de obter bênçãos divinas, pois, conforme Eliade (2010, p.19), o profano seria o mundo “natural” onde a doença habitaria e o sagrado o mundo espiritual onde se encontra a cura. A promessa, portanto, estabelece o elo entre esses dois mundos por meio do ritual do Ensaio. Essa união fortalece ainda mais a devoção a Nossa Senhora do Rosário, pois é em busca das dádivas, conceito trabalhado por Mauss (2003), concedidas pelo plano sagrado que os fieis renovam suas crenças. O vínculo estabelecido entre os dançantes e a comunidade que participa do Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi alicerça ainda mais essa rede, que aqui denomina-se como rede familiar ritualística, sendo que a família ritualista é aquela que se une e busca, por meio da fé

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compartilhada, a obtenção dos desígnios sagrados. Nessa família ritualística, os mais velhos detêm o saber, ou seja, são os guardiões dos preceitos religiosos e, portanto, têm o dever de transmitir aos novos integrantes os ensinamentos a respeito do ritual do Ensaio de Pagamento de Promessas. O tambor repinica por meio das lembranças, ou seja, pela memória dos mais velhos, pois somente por meio da oralidade e do relembrar dos acontecimentos é que o Ensaio ainda hoje continua sendo realizado no litoral do Rio Grande do Sul. É por meio dos ensinamentos repassados pela oralidade e pelo acesso irrestrito da memória dos mais velhos que o Ensaio de Pagamento de Promessas dos Teixeiras de Quicumbi se configura como uma rede familiar ritualística, em que a fronteira territorial não alcança a identidade ética e não abarca nem mesmo o sofrimento e as humilhações que os antepassados sofreram. Apenas tais explicações não dariam conta da força que os mantém e os organiza enquanto manifestação cultural e religiosa. REFERÊNCIAS BASTIDE, Roger. As religiões africanos no Brasil: Contribuição a uma sociologia das Interpretações de Civilizações. 3. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. CORRÊA, Norton F. O Batuque do Rio Grande do Sul: Antropologia de uma religião Afro-RioGrandense. 2. ed. São Luís: Editora Cultura & Arte, 2006. DUHRAM,Eunice. A dinâmica da cultura. Ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004. 477p. Disponível em: . Acesso em jun de 2015. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. 3. Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 1990. MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Disponível em: http://reviravoltadesign.com/080929_raiaviva/info/wp-gz/wpcontent/uploads/2006/12/memoria_e_identidade_social.pdf Acessado em: 20/10/2014. _________________. Memória, esquecimento, silêncio. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf Acessado em: 20/10/2014. SANTOS, Zeloi Aparecida Martins dos. História e Literatura: uma relação possível. Revista Cientifica. 2001, p. 1-11. Disponível em: http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/RevistaCientifica2/zeloidossantos.pdf Acesso em: 18 Ago 2015. TURNER, Victor W. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

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PROTAGONISMO NEGRO ESTENDIDO A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA LEI 10.639/03 Bianca Lopes Brites 1 Gilvan Moraes 2 INTRODUÇÃO Santa Maria é uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul - Brasil, “originada de um reduto militar do século XVIII, constituído por portugueses e afro-brasileiros, já no século seguinte torna-se uma ‘colônia germânica”. (FLORES, 2010, p.20). Como vemos, a cidade de Santa Maria é constituída de vários grupos étnicos, culturais e sociais, cada qual com sua importância e influência. Um dos grupos que compôs esse mosaico étnico santa-mariense, foi o grupo dos afro descendentes. Por muitos anos esse grupo foi estigmatizado pela sociedade brasileira que tinha no modelo europeu de civilização o ideal de modernidade e progresso, deixando a cultura negra à margem da sociedade. Repensar a trajetória histórica da população negra, em especial da população negra da cidade de Santa Maria, é salvaguardar a memória de parte da população da cidade, e assim preservar a memória de um dos grupos socioculturais que compõe a estrutura social da cidade: Muito ainda se tem a levantar e analisar sobre os potenciais históricos de Santa Maria, naquilo que apontamos como suas “raízes” de humanidade e cultura. Felizmente sua comunidade tem retomado as preocupações com o necessário resgate de elementos do seu passado. Nota-se, então, que a maior riqueza dessa polis é o seu povo, constituído pelas diferentes etnias, grupos sociais, nativos, estrangeiros, visitantes e todos aqueles que de uma forma ou de outra aportaram e hoje cada vez mais se fazem presentes no cenário da cidade. (FLORES, 2010, p.39) Perceber a importância desse grupo étnico é trazer a tona os meandros que permearam a resistência cultural da qual esses afro descendentes foram agentes. Salvaguardar essa história é fundamental para que se compreendam quais mecanismos de defesa e ação social os negros de Santa Maria se apropriaram para legitimar seu espaço, construir sua consciência e afirmar a sua identidade étnico-cultural. METODOLOGIA O artigo em questão utilizou como ferramenta de apoio no desenvolvimento da pesquisa o uso da técnica da História Oral e a pesquisa bibliográfica como principal veículo para o desenvolvimento deste trabalho. A técnica da História Oral foi escolhida como um dos principais procedimentos de pesquisa por ser um mecanismo de operação capaz de guiar a pesquisa nesse território ainda pouco explorado aqui em Santa Maria, que são meandros do combate ao preconceito étnico racial na cidade. O uso da História Oral é uma técnica que permite ao pesquisador ir além do meio acadêmico. Segundo Hey (2007) uma oportunidade de dar “voz aos excluídos”. Além de tratar assuntos não oficiais, o uso da História Oral ainda traz o cunho pessoal para a pesquisa, o testemunho e a passionalidade do entrevistado que muitas vezes demonstram contextos que não seriam analisados por pertencerem a camadas marginalizadas ou por não se considerarem de relevância para a pesquisa acadêmica. O embasamento teórico da pesquisa bibliográfica foi fulcral para a realização deste artigo, pois é a partir das leituras chave de textos que contextualizem o tema, que o pesquisador terá condições de inserir-se na pesquisa. O uso da História oral como método, apoiado nas pesquisas bibliográficas, foi fundamental no desenvolvimento desta pesquisa, pois seu uso permitirá que futuramente se realize um estudo ainda mais aprofundado desse tema de tamanha vigência em Santa Maria.

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Graduanda do Curso de História UFSM – Bolsista PIBID/CAPES. Mestrando do PPGH/UFSM – Bolsista CAPES/DS.

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O NEGRO INSERIDO NA SOCIEDADE: O CONTEXTO BRASILEIRO DO SÉCULO XIX E A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE CULTURAL FERROVIÁRIA TREZE DE MAIO No final do século XIX o Brasil vivencia o esgotamento do sistema escravista tendo em vista a ação dos movimentos abolicionistas, da modernização da sociedade brasileira como um todo que, gradualmente, gerava mudanças dentro de sua estrutura. Nesse sentido, a modernização do país, desde a chegada de Dom João VI, em 1808, possibilitou uma abertura econômica e quebra do monopólio que caracterizava as relações comerciais entre a colônia e a metrópole. Tendo em vista o cenário das guerras Napoleônicas 3 na Europa e o comprometimento comercial de Portugal firmado com a Inglaterra decorrente da vinda da Corte ao Brasil para fugir da invasão de Napoleão, o Brasil passou a estabelecer sólidas relações de comércio com este país. Assim, o Brasil buscava modernizar-se e se transformava, ainda mantendo o trabalho escravo, as suas relações internas e pressionado pela influência do capital estrangeiro – Inglaterra – para o fim do tráfico internacional de escravos 4. Devido à entrada do capital externo houve a expansão de empresas inglesas e da abertura para o comércio estrangeiro e para o trabalho livre. Quando promulgada a Lei Eusébio de Queirós, que finalizou o tráfico externo, permanecendo o interno até a abolição, a substituição pela mão de obra imigrante foi cada vez mais utilizada uma vez que as elites avistavam no horizonte fim do trabalho escravo e necessitavam reestruturarem-se sem perderem seus privilégios. Em simultaneidade, já havia fortes movimentos de oposição ao regime escravista em virtude dos projetos liberais que almejavam implementar dentro dos blocos políticos em articulação e da mobilização dos próprios escravos que ora beneficiavam-se de medidas protetoras, como a Lei do Ventre Livre 5, ora de suas fugas e mudanças de consciência ocasionadas por eventos históricos como a Guerra do Paraguai 6. Em nenhum momento foram criadas condições para que os negros, que seriam libertos em questão de tempo, fossem inseridos nessa nova ordem para conquistarem um lugar na sociedade que estava se reestruturando. Pelo contrário, articulavam-se formas de isolar o negro, por meio da Lei de Terras 7, por exemplo, que impedisse possibilidades de mobilidade social dentro da sociedade tendo em vista o contexto do imperialismo e seus mecanismos de dominação pela subjugação dos negros e mulatos pela discriminação étnico-racial 8. No contexto do pós-abolição caracterizado pela passagem do modo de produção escravista para o modo de produção propriamente capitalista e trabalho assalariado houve a necessidade do negro buscar mobilidade social. Diante das possibilidades, quando encontradas, de mobilidade social houve a necessidade de uma afirmação como cidadão detentor de direitos e que participe ativamente como tal dentro das relações sociais e nos espaços de sociabilidade. A situação de exclusão vivenciada pelo negro

3 As guerras Napoleônicas, conforme Neves; Machado (1999) foram os conflitos desencadeados na Europa, em virtude da posse de Napoleão como imperador da França, que por meio das guerras, expandia as ideias revolucionárias francesas e anexava territórios, em uma grande campanha militar. 4 O tráfico internacional de escravos, segundo Albuquerque; Filho (2008) caracterizou-se pelo processo sistemático de comercialização de cativos de diversas regiões da África, como a Costa da Mina, o Reino de Benin, entre outras, para troca desses para trabalharem como mão de obra escrava nas colônias americanas para aqueles que os compravam. 5 Lei que, segundo Moura (2014), possibilitou a libertação dos cativos que nascem a partir da promulgação da lei, porém sob certas condições, uma vez que os nascidos deveriam prestar serviços ao senhor de terra até completarem 18 anos. 6 Conflito cujo envolvimento, conforme Moura (2014), permitiu aos negros perceberem a realidade de outra forma, pois eram tratados como iguais e necessários no exército, adquirindo noções de cidadania. 7 Ato que tornou a terra no Brasil Império segundo Moura (2014) uma propriedade adquirida mediante compra, não mais concedia pela Coroa, caracterizando as relações capitalistas insurgentes e impossibilitando aos segmentos mais empobrecidos, como os negros, adquirirem propriedade de terra uma vez que não possuíam capital e que suas oportunidades de trabalho eram tolhidas devido a exclusão que eram submetidos. 8 Entende-se Discriminação Racial a partir de Gomes (2005) como prática de racismo e efetivação do preconceito que derivam de formas indiretas ou diretas dessa prática. A prática indireta refere-se aos estereótipos sobre o negro estratificados em práticas administrativas e institucionais e a prática direta implica na exclusão pela cor de pele de espaços ou relações sociais.

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neste processo de transição que apresentava remanescentes da estrutura da sociedade escravista. Esses aspectos possuem exemplificações de discursos ideológicos que advém do contexto imperialista, pois atuando concomitantemente no plano ideológico e político, as elites intelectuais elaboraram e desenvolveram a ideologia do racismo como arma justificadora dessa estratégia, qualificando o trabalhador nacional não branco, de um modo geral, e o negro em particular, como incapazes de enfrentar os desafios da nova etapa de organização do trabalho que se apresentava com o fim da escravidão (MOURA, 2014 p. 151). Nesse sentido, a cultura afro-brasileira torna-se uma cultura de resistência articulada pelas pessoas negras em virtude da opressão que sofriam que culminava, muitas vezes, na formação de espaços de protagonismo negro e empoderamento étnico-racial. A cidade de Santa Maria se constitui como exemplar desse processo. A partir da implementação da viação férrea ,por uma empresa belga, a partir do contexto de modernização do Brasil, da abolição da escravatura e da proclamação da república em seguida. Dessa forma, há mudanças no mercado do trabalho, que culminam no crescimento da classe trabalhadora no meio urbano e, por conseguinte, é um dos espaços que possibilita a ascensão do negro como trabalhador na sociedade de classes e na ordem competitiva capitalista. Entremeios, a Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio fora criada num sentido de tornar o negro não apenas um empregado, mas um cidadão o que revela a preocupação com o bem estar da comunidade negra. Além disso, promove o negro como agente histórico, membro da cultura e fonte para a história. O Clube exerceu papel aglutinador da cultura negra na cidade (MACEDO, 2007, p. 94) uma vez que buscava curar os traumas deixados pela escravidão, especialmente das pessoas que lá frequentavam. A organização fora uma reação à exclusão do negro, que surgiu no contexto segregatório de Santa Maria relacionado à questão étnico racial. Essa clamava pela valorização da cultura negra, constituindo num desafio ante essa realidade que sobrevivia graças ao ímpeto dos fundadores unidos pelo sentimento de autoafirmação e identidade. Historicamente, os clubes sociais negros estão associados desde a luta contra a escravidão a qual oportunizou aquilo que a sociedade lhes negava, característica da segregação que é a situação de separação que ocorre nos espaços e relações sociais tendo como critério a cor de pele. O Clube social fora um lugar em que se desenvolveram concursos de beleza, tendo em vista a valorização da estética negra em contraposição a ideologias racistas. Também se constituiu como um lugar de sociabilidade onde ocorria a fruição dos outros e de si mesmo (ESCOBAR, 2008, p 286), ocorria bailes, jantares dançantes entre outras confraternizações que reuniam, em festividade, os associados, trabalhadores da ferrovia e membros de uma possível “elite negra” que se constituiu no município de Santa Maria-RS. Embora a ferrovia tenha fechado, o clube permaneceu com suas atividades tendo em vista a importância sociocultural que adquiriu parar a comunidade negra frequentadora. No entanto, seu funcionamento finalizou por volta da década 80 devido à desestruturação e abandono conforme Escobar (2010), provocado por vários fatores, entre eles o desinteresse dos associados, a crise econômica, clubes brancos abrindo portas para os negros, composição de pessoas não negras na diretoria, o que causou crises internas e o surgimento de outras sociedades com maior infraestrutura além do uso do espaço para outras finalidades que não correspondiam com a proposta do Treze. Ainda que tenha finalizado suas atividades por motivos de crise, mais tarde surgiria um projeto de revitalização do prédio, ressignificando-o numa ação patrimonial. A LEI 10.639/03: DEFINIÇÃO E IMPORTÂNCIA A promulgação da lei 10.639/03, mediante a construção do movimento negro e grupos adeptos a causa, foi sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva em 2003, redefinindo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tornando obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro brasileira. Dentre os parâmetros gerais e propostas cujos aspectos abrangem questões de consciência política (BRASIL, 2005) enfatizando à igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos; à compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos,

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que possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem, na nação brasileira, sua história. Além disso, ao conhecimento e à valorização da história dos povos africanos e da cultura à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas, objetivando eliminar conceitos, ideias, comportamentos veiculados pela ideologia do branqueamento 9, que tanto mal fazem a negros e brancos. Assim, resultando num diálogo, via fundamental para entendimento entre diferentes, com a finalidade de negociações, tendo em vista objetivos comuns, visando a uma sociedade justa. A necessidade de existir um projeto que componha a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional é vinculada aos discursos pseudojustificativos oriundos do período da colonização das Américas e retomado como ciência no período imperialista e do neocolonialismo europeu no século XIX. Construções que advém de concepções católicas estão presentes como base do pensamento científico europeu e compõe as teses de destacados intelectuais do século XIX que legitimam as práticas coloniais e a escravidão do povo africano classificando-os como seres que só poderiam ser escravizados, por ordem natural, por apresentarem cultura e práticas primitivas e selvagens e que só poderiam ser “salvos” pelos europeus e sua civilização. Destaca-se Voltaire, como um dos pensadores do período No seu estabelecimento de etapas de desenvolvimento, Voltaire situa na base da escala evolutiva os brasileiros (índios) que, segundo ele, foram encontrados num estado de “pura natureza”, no clima mais bonito do universo, sem leis, e nenhum conhecimento da divindade, preocupados com as necessidades do corpo, tendo indiferentemente relações sexuais com suas irmãs, mães e filhas e, além do mais, antropófagos e governados pelo instinto. Em um nível pouco mais alto que o índio vem o negro, vivendo ora no primeiro grau de estupidez, ora no segundo, ou seja, planejado as coisas pela metade, não formando uma sociedade estável, olhando os astros com admiração e celebrando algumas festas sazonais na aparição de certas estrelas. Evidentemente, no topo desta escala evolutiva vem o branco europeu, com a astronomia e todas as características de sua superioridade. (MUNANGA, 1988, p. 11) Tendo em vista que essa construção teve início a partir da expansão ultramarina, o pensamento europeu incidiu fortemente na realidade colonial portuguesa no Brasil. A existência de um discurso ideológico de inferiorização do negro por meio do processo de colonização português foi, então, da mesma forma, sistemática uma vez que a aventura colonial dos povos europeus, a partir do século XV, não foi apenas um ato de expansionismo geográfico, com o objetivo de conseguir novas áreas de dominação e rotas comerciais e marítimas. Este foi o aspecto horizontal e visível desse processo violento. Mas foi, também, um complicador étnico porque [...] o componente africano que veio apenas dinamizar demograficamente essas áreas, mas, também, involuntariamente, consolidar, com o seu trabalho, o escravismo nessas colônias. Multilador e estrangulador cultural porque impôs pela violência, direta ou indireta, os seus padrões culturais e valores sociais usando para isto desde a morte e a tortura até a catequese refinada chamada evangelização para dominar os povos escravizados (MOURA, 2014, p.175).

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Diante da transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado no Brasil, inicia-se uma campanha promovida pelo governo para provocar a vinda de imigrantes europeus para trabalharem no país e substituírem o trabalho escravo. Assim, entende-se ideologia do branqueamento, segundo Azevedo (1987), como o princípio que vem a afirmar a superioridade do europeu em relação ao africano e a necessidade de haver essa substituição de mão de obra para que os postos de trabalho sejam ocupados pelo europeu baseado nessa premissa de “purificação” da civilização brasileira.

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Nesse sentido, a construção do racismo 10·, tanto a nível mundial quanto a nível local, no caso o país, desde aquele período ocorreu no cotidiano da sociedade colonial, postumamente imperial e é vigente ainda na contemporaneidade. Na sociedade brasileira, as diferentes etnias, especificamente a afro-brasileiro tem de lidar com práticas dissimuladas de preconceito e estereótipos sobre sua fisionomia, capacidade intelectual, forma de ser e agir. A partir dessas questões relativas ao “ser negro” na sociedade brasileira evidencia-se a presença das pautas anteriormente levantadas pelo Movimento Negro ao longo do século XX. Via-se a necessidade de, a partir da percepção de inferiorização ainda presente após inserção do negro na sociedade de classes, a implantação da lei. Ações a nível educacional de combate ao racismo e discriminações (BRASIL, 2008) são imprescindíveis para ocorrer o processo de conscientização política e fortalecimento de identidade, questões já inscritas no plano de implementação da lei pelo MEC. MUSEU COMUNITÁRIO TREZE DE MAIO: CRIAÇÃO E AÇÕES EDUCATIVAS Depois de mais de duas décadas após o fechamento da Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio, o mesmo ressurge, no ano de 2001, porém por meio de um projeto de Museologia. A partir da iniciativa de alunos do Centro Universitário Franciscano - UNIFRA e das iniciativas do movimento negro, que se inspiram no modelo de ecomuseu de Hugues de Varine e na ideia de patrimônio social inicia-se o processo de construção do Museu. O objetivo deste projeto conforme Escobar (2007) era de patrimonialização da antiga sede do Clube buscava a releitura da história do povo negro e, nesse contexto, era voltada a comunidade negra e sua autoafirmação étnica, cultural e identitária. Consoante prevê a existência dos núcleos de atividades como diretriz do estatuto do Museu Treze de Maio (MTM) inserido nas metas de ações promovidas pelo museu treze de maio, um deles é o Núcleo de Ação Cultural e Educativa - NACE. Esse núcleo tem como objetivo promover ações pedagógicas e capacitação de professores, desenvolvidas pela equipe e coordenadoria do núcleo, na perspectiva da lei 10.639/03. Suas atividades estenderam-se ao longo de oito anos, 2003-2015, e ainda mantêm-se ativas, dentro das escolas de todo município de Santa Maria – Rio Grande do Sul, com expansão para cidades do estado, tamanha a repercussão dos projetos e ações. Nesse sentido, entre os projetos de ação pedagógica e formação de professores, implementados pela equipe técnica do museu e da coordenadoria, do núcleo está o projeto de Literatura Infantil da Professora Maria Rita Py Dutra, aplicado logo no início das atividades, entre 2003-2008. Conforme entrevista 11 cedida pela professora Maria Rita, a capacitação de professores era realizada em escolas do município de Santa Maria e regiões próximas por meio de palestras, oficinas, aulas públicas e eventos organizados pelo Museu Treze de Maio. Como objetivo geral foi proposto construir a igualdade racial através do trabalho e publicação da Coleção “Histórias da Vó Preta”, visando incluir histórias e personagens afro-brasileiros no cotidiano escolar, combatendo o racismo e o preconceito racial na escola e na sociedade em geral, contribuindo na formação da identidade e autoestima do aluno negro. Nos anos subsequentes, muda-se o coordenador do NACE, Maria Rita é sucedida por Gilvan Silveira Moraes ano de 2009, e posteriormente Vilnês Gonçalves Flores Júnior 12, entre 2010 e 2014. O desenvolvimento de ações para formação de professores e das ações pedagógicas se preservaram uma vez que as intervenções em escolas se mantiveram. Inúmeras foram as atividades, que assim como as gestões anteriores, expandiram-se para outros municípios. Oficinas de turbante, trança, dreads, entre outras, misturam elementos da cultura negra estão entre as atividades aplicadas nas escolas, uma delas foi a Escola Municipal São Carlos 13 . Essa escola, situada na periferia da cidade, conforme os mapeamentos realizados a partir do que se previa o projeto de aplicação das atividades pelo NACE, onde a maioria da população é negra.

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Racismo, segundo Gomes (2005), é um comportamento que resulta em aversão, relacionado a cor de pele, tipo de cabelo, os quais seriam classificados, segundo a autora, como atributos raciais. 11 Informações obtidas através da entrevista com a professora aposentada Maria Rita Py Dutra 12 Entrevistado em 08 de Agosto de 2015. 13 Conforme entrevista, foi uma das escolas que mais chamou a atenção do entrevistado e que se lembrara no relato.

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Na atual gestão do NACE está a Andressa Messias. O NACE tem desenvolvido atividades junto ao grupo de danças afro brasileiras Ewá Dandaras a partir de apresentações nas escolas e interatividade com os adolescentes, a fim de ensinar sobre a cultura de dança e capoeira afro. Atualmente, há a tramitação de um projeto, que foi enviado para capitalização de recursos da Fundação Nacional de artes – FUNARTE, cujo objetivo é construir referências identitárias junto a crianças e adolescentes negros (as) sobre a história e cultura afro-brasileira em Santa Maria e região, a partir das atividades realizadas pela Cia de Dança Afro Euwá-Dandaras. Entre os impactos percebidos pelos entrevistados 14, pode-se concluir que a lei 10.639/03 não é aplicada nas escolas e municípios que foram desenvolvidas atividades pela equipe do Museu Treze de Maio. Também se percebeu que as atividades desenvolvidas para crianças e adolescentes, especialmente os negros, transformaram suas realidades a partir de observações empíricas dos oficineiros que evidenciaram mudança de postura dos alunos negros; pois segundo um dos entrevistados: E a avaliação da intervenção inclusive, porque a lei 10.639 também trabalha a questão da ética e da dignidade né. Os meninos e as meninas que chegavam na primeira intervenção, curvados, depois de três meses eles estavam num posição ereta né,[...] No final de três meses nós tivemos um desfile, né, com os meninos e as meninas negras nas escolas, e que de fato incite na postura e que não é só a postura física como dos alunos do fundo da sala, na primeira conversa, nem todo mundo interagiu, depois eles vêm pro meio da sala e depois eles chegam na frente da sala ,e que essa posição do corpo que era curvado, a gente tem certeza, que isso vai influenciar no rendimento escolar, no aprendizado[...](GONCALVES, 2015) Além disso, constatou-se que existe uma prática de racismo que passa despercebido pelas pessoas e que afetam a juventude negra de forma incisiva. Nesse sentido, reforça-se a necessidade de aplicação das diretrizes que estão previstas pela lei por meio de práticas pedagógicas, pois essas se inserem como aquelas que implicam justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira. Isso requer mudança nos discursos, nos raciocínios, nas lógicas, nos gestos, nas posturas, no modo de tratar as pessoas negras. (GOMES, 2005 p. 29) Outro aspecto também discutido como tendência geral sobre a inaplicabilidade e resistência das escolas a adesão das diretrizes da lei, conforme relatado nas entrevistas corrobora com a afirmação de Nilma Lino Gomes, pois segundo a mesma: Ainda encontramos muitos (as) educadores (as) que pensam que discutir sobre relações raciais não é tarefa da educação. É um dever dos militantes políticos, dos sociólogos e antropólogos. Tal argumento demonstra uma total incompreensão sobre a formação histórica e cultural da sociedade brasileira. E, ainda mais, essa afirmação traz de maneira implícita a idéia de que não é da competência da escola discutir sobre temáticas que fazem parte do nosso complexo processo de formação humana. Demonstra, também, a crença de que a função da escola está reduzida à transmissão dos conteúdos historicamente acumulados, como se estes pudessem ser trabalhados de maneira desvinculada da realidade social brasileira.(GOMES, 2005 p.146) Assim, a ação dos coordenadores do NACE e de toda a equipe do Museu Treze de Maio, vinculada a educação étnico-racial, é mais que urgente em uma realidade em que ainda não há uma sistematização desse processo. No município de Santa Maria ainda tenta-se articular por iniciativa do movimento negro e da equipe técnica do museu projetos de implementação da lei em conjunto com a 8ª Coordenadoria Regional de Educação com a Secretaria de Educação Municipal. No entanto, ainda não há resultados 14

Informações obtidas a partir das informações dos entrevistados e que executaram ações pedagógicas pelo NACE.

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consolidados quanto a esse processo e elaboração de GTs da lei 10.639, conforme relatado em entrevista com o atual diretor do Museu, João Heitor Macedo (2015), é uma iniciativa que visa justamente essa finalidade de estender o protagonismo que o antigo Clube exercia e o atual museu agora exerce, para o âmbito educacional em consonância com as pautas reivindicadas pela militância negra nacional. CONSIDERAÇÕES FINAIS No caso de Santa Maria, perceber as sinuosidades que cercam a resistência urbana da cultura negra é fulcral para o entendimento social desse grupo que compõe o mosaico étnico dessa cidade. Acreditamos que a pesquisa acerca dos processos de legitimação do negro nos espaços da cidade, a busca por respeito e respaldo à sua identidade, são itens fundamentais para a compreensão da História do negro da cidade de Santa Maria. No que tange a questão territorial, acreditamos que a busca pela legitimação dos espaços é um ato político, portanto, a criação do Museu Treze de Maio em um período aonde era notada a crescente onda de retaliações às culturas não europeias, se mostra com um ato político que denota o desconforto dos cidadãos para com essa situação de opressão, a busca por respeito, igualdade de direitos e sua integração com a sociedade. Acreditamos que os espaços sociais são construídos a partir do interesse e do litígio entre determinadas comunidades, por um determinado território. A luta contra o preconceito étnico racial e a construção de um espaço social de respeitabilidade tornam legítimos os anseios da comunidade negra de Santa Maria, ato político que fica expresso pela criação do Museu Treze de Maio. Cientes da importância dessa luta política e dessa ação de resistência frente às adversidades e opressões sofridas pela comunidade negra, acreditamos ser indispensável que se continue a pesquisa para que cada dia mais a voz dessa importante comunidade de nossa cidade, que foi alvo de marginalizações e estigmas, estejam a cada dia mais sendo ouvida. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de, FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites — século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. BRASIL. Lei nº10639 de 9 de Janeiro de 2003. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. MEC/SECAD. 2005. BRASIL. Contribuições para a Implementação da Lei 10.639/2003. Brasília, 2008. ESCOBAR, Giane Vargas. Museu Treze de Maio: Lugar de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. In: Nas Trilhas da Negritude: Consciência e Afirmação. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,2007. _____________________. Clubes sociais negros: lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. Dissertação de mestrado, UFSM, 2010. _____________________. A face afro-brasileira do patrimônio: a reivenção do Clube Social Negro Treze de Maio de Santa Maria em Museu Comunitário. In : Nova História de Santa Maria: Outras contribuições recentes. Santa Maria: Câmara Municipal dos Vereadores,2012. FLORES, João R. A. Santa Maria: Terra de Humanidade e Cultura. In: WEBER, Beatriz; RIBEIRO José I. (Orgs). Nova História de Santa Maria: Contribuições Recentes. Santa Maria – RS. 1.ed. Gráfica Editora Pallloti, 2010. GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação,2008.

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TRAÇANDO ESTRATÉGIAS NA DIÁSPORA: FRAGMENTOS DA TRAJETÓRIA DE AUGUSTO E MANOEL LUIS LEAL EM DESTERRO/SC (1850-1879) 1 Carolina Corbellini Rovaris 2 Na cidade de Desterro, capital da Província de Santa Catarina, em meados do século XIX, dois homens que vieram da Costa da África aprisionados para que aqui fossem escravizados conquistaram sua liberdade. A partir desta tal liberdade, buscaram reorganizar seus modos de viver para melhor escapar das armadilhas de um contexto escravista para aqueles que carregavam a insígnia da cor. Este trabalho é uma tentativa de compreender quais eram estas práticas empreendidas por estes sujeitos em condição de liberdade. Alguns fragmentos da trajetória de vida desses sujeitos são possíveis de descortinar a partir da análise dos Processos de Inventário e de Arrecadação de bens 3, abertos pelo Juízo de Órfãos e Ausentes de Desterro a fim de identificar seus bens e se possuíam herdeiros. Além de apresentarem indícios das suas experiências e redes de relações, a análise destes documentos possibilita apontar as práticas e modos de viver desses africanos no contexto da cidade na segunda metade do século XIX. Apesar de serem documentos oficiais do Estado, isto é, são produtos de terceiros sobre Augusto e Manoel, pensamos que em meio aos discursos acerca do outro, por vezes preconceituosos e baseados na indiferença, é necessário, e possível, estabelecer uma mudança de olhar ou uma leitura a contrapelo, como nos aconselha Benjamin (1994). Evidentemente, pensamos de acordo com Ginzburg (2002) que os documentos nos deixam apenas um ponto de vista sobre a realidade, pois se constituem de maneira seletiva e parcial, dependendo das relações de força que os permeiam. Porém, através de um método interpretativo atento aos indícios, é possível evidenciar múltiplas vivências ou aspectos de uma visão de mundo de determinado sujeito ou de uma sociedade (GINZBURG, 1989). Aliás, pensamos consoante com Maria Odila (1998), que através de uma história do cotidiano podemos elaborar mediações entre pormenores significativos e processos sociais mais amplos. Isto é, o que é possível perceber entre as estruturas já consolidadas na sociedade e a ação dos sujeitos frente a elas. Como explicar, por exemplo, o fato de que Augusto morava com mais cinco pretos em uma casa na Rua da Palma, apesar de o Código de Posturas de 1845 proibir tal ajuntamento. O estudo do cotidiano, então, compreende para além do poder já estabelecido, considerando modos de viver, estratégias de sobrevivência, sempre reinventados pela experiência dos sujeitos. O conceito de experiência, por sua vez, abarca uma maneira de analisar as práticas cotidianas, os costumes, comportamentos, valores e conflitos, desenvolvido por Edward Thompson (1981), no qual é possível percebermos a autonomia e agência dos sujeitos dentro de determinado espaço, onde permeiam relações de poder, discursos e hierarquias. Destarte, para a escrita de uma história mais sensível às experiências dos sujeitos, a abordagem micro-histórica nos servirá como um método. Apropriamo-nos de Revel (1998) quando afirma que uma 1

Este artigo é resultado da pesquisa realizada no âmbito do projeto intitulado “Homens e mulheres de cor e de qualidade. Um estudo acerca das identidades/identificações das populações de origem africana em Desterro/Florianópolis, 1870/1910”, coordenado pela professora Doutora Claudia Mortari, da FAED/UDESC. A pesquisa visa apreender e evidenciar as diversas maneiras pelas quais as populações de origem africana se identificavam, criavam laços de afeto e de solidariedade e constituíam suas famílias no contexto da segunda metade do XIX e primeiros anos do pós-abolição em Desterro/Florianópolis. Contou com a participação de Gabrielli Debortoli e Vinícius Pinto Gomes, ambos acadêmicos do curso de História da UDESC e membros do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC). 2 Graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. 3 O Inventário de Augusto e o Processo de Arrecadação de Bens de Manoel são processos que compõem um conjunto de documentos digitalizados, pertencentes ao Acervo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, e que foram gentilmente cedidas pelo Professor Henrique Espada Rodrigues Lima Filho, do Departamento de História da UFSC, a quem agradecemos. Os documentos transcritos e analisados são respectivamente: Processo de Autos de Arrecadação dos Bens de Manoel Luiz Leal, 1879, Desterro, Capital da Província de Santa Catarina. Inventário de Augusto, Africano Livre, 1861, Desterro, Capital da Província de Santa Catarina.

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mudança na escala de observação nos permite modificar a forma e trama da História, uma vez que a análise do social torna-se mais diversificada e mais móvel. Neste sentido, através da micro-análise é possível observarmos como identidades e modos de viver coletivos pré-estabelecidos se deformam a partir da experiência do sujeito-indivíduo. O contexto, consequentemente, se torna mais complexo e dialógico: sem dúvida, as relações de poder e de força estão presentes, mas a partir delas ou contrariamente a elas, são os sujeitos que determinam suas escolhas. É preciso salientar ainda, que uma análise micro não supõe uma hierarquia de problemáticas históricas entre níveis local e global: a experiência de um indivíduo, permite perceber uma modulação particular da história global (REVEL, 1998). Este trabalho pretende, portanto, contribuir para a escrita de uma história atenta aos indícios que se torna mais concreta a partir das experiências e trajetórias de indivíduos em determinados contextos. Diversas discussões acerca das experiências de populações de origem africana em Desterro no século XIX já foram realizadas 4. No entanto, ainda temos poucas pesquisas que se debruçaram sobre trajetórias de sujeitos específicos para compreender este contexto 5. Seguimos então, para estas histórias. No dia 25 de junho de 1861, o mar de Desterro virou a canoa do preto africano de nome Augusto, afogando-o em suas águas. Dezoito anos depois, o mesmo se sucedera com o africano liberto Manoel Luis Leal, no dia 7 de janeiro, provavelmente quando se transportava para sua residência no Saco dos Limões. Terminara para estes sujeitos uma vida de estratégias e estabelecimento de vínculos de solidariedade para escapar das armadilhas de um contexto escravista para aqueles que carregavam a insígnia da cor. Augusto e Manoel aparecem nos inventários como africanos. Maximiano, negociante com quem Augusto mantinha alguns serviços, afirmou que ele era “africano”, ao passo que Joaquim, companheiro de moradia de Augusto, declarou que “pelas marcas e língua sabia que era preto Mina”. Manoel foi descrito por Joaquim Amaro de Sousa, com quem vivia, como “africano de nação Mina”, da “Costa da África”. Tais identificações surgiram e foram ressignificadas na Diáspora, movimento fundamental para 4

Para maior aprofundamento sobre esta historiografia ver os trabalhos e pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiras da Universidade do Estado de Santa Catarina e pelo Laboratório de História Social e da Cultura da Universidade Federal de Santa Catarina, essenciais para compreendermos as experiências das populações de origem africana em Desterro/Florianópolis. Entre eles: CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em Desterro: Experiências de populações de origem africana em Florianópolis na segunda metade do século XIX. Itajaí: UDESC; Casa Aberta, 2008; MORTARI, Claudia. Os Homens Pretos do Desterro. Um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000; MALAVOTA, Claudia Mortari. Os africanos de uma vila portuária do sul do Brasil: criando vínculos parentais e reinventando identidades. Desterro, 1788/1850. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007; RASCKE, Karla Leandro. “Divertem-se então à sua maneira”: festas e morte na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, Florianópolis (1888 a 1940). Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013. POPINIGIS, Fabiane. Aos pés dos pretos e pretas quitandeiras: experiências de trabalho e estratégias de vida em torno do primeiro mercado público de desterro 1840-1890. Afro-Asia, v. 46, p. 193-226, 2012. PENNA, Clemente Gentil. Escravidão, Liberdade e os arranjos de trabalho na Ilha de Santa Catarina nas últimas décadas de escravidão (1850-1888). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti; VIDAL, Joseane Zimmermann (Org.). História diversa: africanos e afrodescendentes na ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013; LIMA, Henrique Espada. Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade. Caderno AEL, v. 14, n.26, 2009. 135-177. 5 A partir deste viés, alguns trabalhos de conclusão de curso foram apresentados nos últimos anos: SOUZA, Maysa Espíndola. Africanos livres em Desterro: tutela, trabalho e liberdade. 2012. 60p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012; VIEIRA, Jurama Bergmann. O filho ilegítimo de Antonio Manoel Victorino de Menezes, traficante de escravos, com a escrava parda Maria Margarida Duarte. 2014. 69p. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em História) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014; DEBORTOLI, Gabrielli. Fios que tecem as tramas de vidas em diáspora: fragmentos das trajetórias de Ritta Pires, Joaquim Venancio e outros sujeitos de origem africana na Ilha de Santa Catarina (1815-1867). 2015. 66 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

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compreendermos as experiências de nossos protagonistas. Este conceito, conforme teorizado por Hall (2003), significa uma ideia de deslocamento. Contudo, não tem uma compreensão somente espacial. O sujeito diaspórico tem uma sensação constante de deslocamento, uma vez que o sentimento de pertencimento a algum lugar ou cultura surge a partir da construção de uma comunidade imaginada. No entanto, é difícil estabelecermos fronteiras ou limites para estes sentimentos, pois eles são, a todo o momento, mutáveis e reconfigurados a partir de conjunturas históricas e geográficas que se cruzam. Isto porque, a cultura é uma produção: “estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2003, p. 44). Neste sentido, as identidades também não se encontram prontas e acabadas: elas moldam-se e são reapropriadas dependendo dos locais, das relações de poder e dos significados que permeiam os sujeitos a que se referem. O próprio termo africano é um conceito moderno, construído para se referir a uma imensa variedade de povos de África e aqueles que foram levados pelo tráfico para outros espaços geográficos. Na diáspora brasileira, junto à terminologia bastante genérica de africanos, outro termo foi incluído: de nação. Esta denominação também foi apresentada para identificar a “naturalidade” de Augusto e Manoel. Este termo, por sua vez, segundo Malavota (2007), não possuía correlação com as formas por meio das quais os africanos costumavam identificar-se em África. Geralmente, referia-se ou a portos de embarque, a região de onde eram provenientes, ou a uma identificação dada pelos próprios traficantes em razão de algumas semelhanças atribuídas aos africanos escravizados, de forma que somente é possível apontar regiões de procedência destes e não exatamente aos grupos étnicos que pertenciam. Desta maneira, compreendemos porque Joaquim, ao responder sobre a naturalidade de Augusto, afirmou saber que ele era preto mina por causa das marcas que o acompanhavam e da língua que falava. O termo mina, por sua vez, refere-se à Costa da Mina, ou Costa do Ouro, região correspondente à África Ocidental. É fundamental atentarmos, também, para a referência à cor, que pode sugerir diferentes origens e condições jurídicas. No primeiro caso, conforme explicita Malavota (2007), o termo preto, referia-se geralmente aos africanos, como é o caso de Augusto e Manoel denominados de pretos na documentação consultada. No segundo, o termo preto geralmente aparece na referência à escravos, libertos ou livres. Para diferenciá-los, muitas vezes vinham acompanhados da condição, como por exemplo, preto liberto. Como é o caso de Manoel que assim foi identificado por Bernardo Luiz de Espindula, dono da chácara que havia comprado. Por outro lado, para se referir a Augusto no inventário, o escrivão Vidal Pedro Moraes utilizou a denominação preto Augusto africano livre, talvez para evidenciar seu caráter de estrangeiro e sua condição de livre, e ao mesmo tempo enfatizar sua procedência africana. O olhar sobre o outro, aqui, nos revela o desconhecimento ou a indiferença em relação aos diversos povos e etnias que compõem o continente africano. O Coronel, ao falar em seu depoimento da relação entre Augusto e o negociante Maximiano, afirmou que “tanto mais quando é sabido a causa natural que os escravos sempre se achão [sic] com os seus senhores e somente com quem está mais em confiança e familiaridade é que se compreende se”. Augusto, mesmo sendo livre, foi comparado ao status de escravo pelo Coronel. Percebemos, portanto, a identificação homogeneizante dada a estes sujeitos: a insígnia da escravidão sempre atrelada à cor e a procedência. Tal fator revela, também, o fenômeno da colonialidade 6 que se abatia sobre Augusto e Manoel, em um período no qual a noção de raça estava sendo discutida por intelectuais brasileiros. Neste mundo permeado pela colonialidade, a sobrevivência de nossos personagens em Desterro dependia, em grande parte, do estabelecimento de vínculos de solidariedade e da criação de estratégias de sobrevivência.

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A colonialidade é um fenômeno de imposição e hierarquização de modos de fazer, de saber e do ser, formulado nos processos de colonização empreendidos por Estados-nação europeus em outros continentes. Pressupõe, neste sentido, a subjugação do que é diferente dos modos de viver, ser e saber dominantes. Para maior aprofundamento sobre esta abordagem, ver: MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 23-76; QUIJANO, Anibal. Colonialidade, Poder, Globalização e Democracia. Novos Rumos. n° 37, 2002. P. 4-28.

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Segundo o Coronel Espíndola, Augusto recebia do negociante Maxiamiano José de Magalhães Sousa sessenta mil réis mensais, já havia dois anos, pelos serviços que prestava ao mesmo no porto, na costa de uma Polaca 7. A capital da Província de Santa Catarina caracterizava-se pela sua geografia cercada por morros e cortada por riachos e fontes de água. Localizada no caminho entre a Província do Rio de Janeiro e Buenos Aires, tinha como ponto central o porto, de onde partiam e chegavam embarcações dos mais diversos destinos. Era um local no qual Africanos e afrodescendentes apareciam vendendo e carregando mercadorias pelo cais do porto, ou exercendo funções relacionadas às atividades marítimas. Visto que a característica da capital da Província era evidentemente litorânea, com precárias ligações terrestres, as atividades relacionadas ao porto tanto eram essenciais como incentivadas, principalmente entre os homens. Possivelmente, na década de 1850, Augusto andava pelo cais do porto, trabalhando para sobreviver. Maximiano e Daniel Antonio da Silva Sousa (que fora mencionado pelo Coronel em seu depoimento) afirmaram que Augusto “era preto muito trabalhador diligente, activo e econômico”, tanto que suas boas maneiras e qualidades eram reconhecidas pelos comandantes dos navios em que trabalhava, recebendo deles suprimentos e roupas. Maximiano reconheceu em seu depoimento a economia, zelo e fiscalização que Augusto tinha para com seu dinheiro. Afirmou que o mesmo pagava determinada quantia diária para o Coronel, a quem ele chamava de senhor. Disse que o preto era tão diligente e dedicado ao trabalho e econômico que não perdia tempo trabalhando sempre e de tudo fazendo dinheiro, sendo que em despesa quase nenhuma gastava pois alem d’elle respondente dou-lhe comida e vestir como geralmente é sabido, ocorre que suprimentos iguais sabia elle pelas suas boas maneiras e qualidades dos comandantes dos navios que trabalhava, e que a sua economia era tal que muitas vezes ate para comprar sigarro ele pedia dinheiro emprestado. 8 O Coronel Manoel José de Espíndola ainda afirmou que Augusto vivia sob sua direção e poder, “mas que morava e assistia fora, e que de noite vinha dormir em sua casa”. Em troca de alguns serviços, ele lhe dava de comer e beber e deixava-o dormir em sua casa. Apesar de Maximiano afirmar que Augusto chamava o Coronel de senhor, este se apresentou como amo dele ao Juízo de Órfãos e Ausentes. Em seu depoimento, o Coronel Manoel José de Espíndola justifica o seu vínculo com Augusto: é que no porto lhe foi distribuído no ano de mil oito centos e cinquenta pelo presidente da Provincia das Alagoas, de numero de um bando de cento e setenta que na qualidade de contrabando, foi apreendido no desembarque pela força de governo, sendo que por isso o governo fez a respectiva distribuição, tocando a elle respondente o mencionado africano. 9 A condição de livre de Augusto nos indica que o mesmo nunca fora escravizado, porém estava subjugado às hierarquias e relações de poder do contexto escravista da época. O fato de ser livre no Brasil, no entanto, não o tornava um cidadão, porém um estrangeiro tutelado 10. Por tal razão, o Coronel afirmara que Augusto vivia sob sua direção e poder. Augusto, portanto, se configurava nos moldes de um bom trabalhador, talvez como estratégia de sobrevivência, diante do controle e poder que a sociedade impunha sobre ele. Ser reconhecido pelos comandantes e estabelecer vínculos com os mesmos, poderia lhe trazer certo prestígio e até funcionar 7

Tipo de embarcação marítima de três mastros de velas latinas e proa muito aguda; vela que serve de estai de traquete e que se iça só por ocasião temporal ou quando se capeia. “Polaca”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, Acesso em 26 jul 2014. 8 Acervo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Inventário de Augusto, Africano Livre, 1861, Desterro, Capital da Província de Santa Catarina, p. 12. 9 Ibid, p. 10. 10 Sobre a categoria jurídica de africanos livres ver: MAMIGONIAN, Beatriz G. Do que 'o preto mina' é capaz: etnia e resistência entre africanos livres. Afro-Ásia (UFBA), Salvador, v. 24, p. 71-95, 2000.

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como uma proteção aos olhos vigilantes de policiais e demais autoridades. Suas “boas maneiras” ainda garantiam que ele recebesse daqueles a quem prestava serviços, suprimentos básicos para sua sobrevivência, como comida, bebida e um local para dormir. Tanto o negociante quanto o Coronel disseram que ouviram de “voz pública” que Augusto deveria ter alguns réis guardados, mas não sabiam quanto. A quantia foi descoberta quando o subdelegado da polícia Antonio Morais da Costa e o escrivão José Marcelino da Silva juntamente com as testemunhas Antonio Caetano de Sousa e Jacinto Vera, se dirigiram para casa onde morava Augusto para arrecadar seus bens: e sendo ahi pelo preto Roque foi apresentado um banquinho com gaveta, [ilegível], disendo pertencer ao preto Augusto Affricano livre que hontem se virou no mar e morrera afogado, e procedendo se por ordem do dito Subdelegado a abertura da gaveta, se encontrou dentro da mesma gaveta, em ouro três moedas de 20/000r, e uha de 10/000r; em prata trinta e tres moedas de 1/000, quarenta de 500 reis; em papel, duas notas de 10/000 rs, onse de 5/000 rs, desassete de 2/000 rs, e dusentos e seis de 1/000 rs; somando tudo em quatro contos e trinta e oito mil reis. (grifo nosso). 11 O dinheiro que economizava permitia que ele pagasse parte do aluguel de uma casa na Rua da Palma, na qual vivia com mais cinco companheiros: Roque (o mesmo que apresentou o banquinho às autoridades), Gregorio, Francisco, Joaquim e João, todos pretos; e ainda possibilitou que pudesse obter uma pequena fortuna. Segundo consta no inventário, Joaquim era preto liberto e Francisco estava na condição de escravizado; mas desconhecemos a condição jurídica de João, Gregorio e Roque. Isto evidencia uma rede de solidariedades composta por relações horizontais e verticais, pois temos sujeitos com condições jurídicas diferenciadas. Para cada um deles, viver com os pares poderia trazer maior autonomia e liberdade em graus variados. Até porque o Código de Posturas de 1845 proibia tal ajuntamento. A possibilidade de alugarem um espaço próprio e lá permanecerem pode indicar que estes homens, pelo reconhecimento de seus trabalhos e boas maneiras, obtiveram a permissão de seus senhores ou ex-senhores para lá viverem (SOUZA, 2012). Pode indicar também, que assim como Augusto, mantinham boas relações com negociantes e comerciantes da cidade, o que lhes possibilitou alugar um imóvel. Manoel Luis Leal, por outro lado, não possuía nenhuma fortuna. Contudo, na documentação consta como bem imóvel do espólio deste, uma chácara situada em Pontadas do Norte, na cidade de São José. Esta teria sido comprada de Bernardo Luiz de Espindula e sua mulher D. Maria Rosa de Jesus, moradores daquela cidade, em 1878, por sessenta mil réis, valor do qual segundo Bernardo, o comprador havia lhe pago na mesma data em moeda corrente. A avaliação e venda da chácara foi feita em um longo período, de 1880 a 1892. Ela possuía vinte e cinco braços (55 metros) de frente, com oitenta braços (160 metros) de fundos e foi arrematada e vendida somente em 1892, para José Antonio da Cunha pelo valor de 55 mil réis. Como descrito no seu inventário, a chácara possuía árvores frutíferas, como cafeeiras, laranjeiras e bananeiras. Estaria o africano comercializando estes produtos? Possivelmente esta seria uma forma de Manoel, na condição de liberto, ganhar dinheiro para sua subsistência, visto que na Desterro da segunda metade do século XIX, populações de origem africana e brancos pobres vendiam diversos produtos pelas ruas da cidade que eram produzidos nas inúmeras propriedades ao redor do centro urbano e em outras freguesias da ilha e do continente. Foi Joaquim Amaro de Sousa quem apresentou os bens de Manoel às autoridades. Na documentação não há mais referências sobre este seu companheiro. Contudo, seu nome aparece nos registros de batismo em 1848, como crioulo liberto e padrinho 12. Estabelecer um vínculo com Joaquim, sendo este nascido no Brasil e liberto, poderia garantir maior autonomia e melhor sobrevivência para Manoel naquele contexto. No processo consta ainda a petição de Antonio Manoel da Rocha como representante de sua mãe Maria Angelica da Conceição, moradora no Rio de Janeiro, que afirmara ser irmã do finado Manoel e, 11

Acervo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Inventário de Augusto, Africano Livre, 1861, Desterro, Capital da Província de Santa Catarina, p. 3. 12 Acervo da Cúria Metropolitana de Florianópolis. Livro Batismo do Desterro, Escravos, 1840-1850, p. 78.

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portanto, herdeira dos seus respectivos bens. Antonio afirmara também que o tio morava na casa de Fernando de Sousa, o qual mesmo sendo intimado a comparecer para dar depoimento, não o fez, visto que não consta seu depoimento no processo. Os nomes de Antonio e Maria Angelica não aparecem mais no inventário, o que indica também que Fernando não compareceu para depor a favor dos dois. Antonio apresenta uma relação de bens diferente daquela apresentada por Joaquim Amaro de Sousa. Diante do que foi apontado, o Juiz de Órfãos e Ausentes de Desterro, Antonio Augusto da Costa Barradas, abriu um edital para chamar aqueles que se declarassem como herdeiros ou sucessores de Manoel naquele juízo por si ou por seus procuradores no prazo de trinta dias. Contudo, como é indicado mais adiante na documentação, não houve nenhuma declaração. Quando questionado se conhecia Antonio José da Rocha ou Manoel José da Rocha (o escrivão, provavelmente referia-se a Antonio Manoel da Rocha), Joaquim Amaro de Sousa respondeu afirmativamente, dizendo que Manoel, crioulo, aparecia por vezes na sua casa, porém depois do falecimento de Manoel Luis Leal, “é que o dito Rocha andou a dizer que era sobrinho do dito finado”. Não conseguimos ainda identificar a relação de Maria Angelica e Antonio com o africano Manoel. Duas hipóteses nos parecem prováveis: ou os dois primeiros estavam utilizando uma estratégia para conseguir ficar com os bens de Manoel, de modo a melhor sobreviver naquela sociedade ou possuíam realmente algum vínculo que não foi considerado na partilha dos bens. Nas trajetórias de Augusto e Manoel a noção de liberdade transita por entre suas práticas, estratégias e vínculos. Sidney Chalhoub (2011) buscou compreender os sentidos da liberdade para os sujeitos escravizados nas últimas décadas da escravidão na Corte. A partir deste estudo, apontou algumas considerações que nos servem de base para pensarmos a condição e as práticas de nossos sujeitos. Os sentidos desta tal liberdade foram construídos atrelados à noção de escravidão. A liberdade se constituía como um horizonte de expectativa dos sujeitos escravizados. Na maioria das vezes, o caminho para alcançá-la era longo e quando a conquistavam, ainda eram condicionados a fazer determinados trabalhos para o então ex-senhor por determinado tempo. No entanto, segundo o autor, a liberdade proporcionava o viver sobre si e ser dono de si próprio, isto é, deixar de ser propriedade de alguém. Em certa medida, isto significava viver do modo como escolhessem, ainda que sofressem as violências impostas àqueles que carregavam a insígnia da cor; porém com maior mobilidade e autonomia que aqueles na condição de escravizados. Ser africano no contexto escravista da segunda metade do século XIX em Desterro implicava em uma reconfiguração de identidade, estabelecimento de vínculos de solidariedades e estratégias de sobrevivência. Augusto e Manoel Luis Leal foram dois homens que tiveram experiências nestas condições: tornaram-se africanos na Diáspora, através do olhar do outro, e a partir deste fizeram rearranjos e escolhas que os possibilitou melhor sobreviver em um cotidiano excludente, injusto e recheado de perversas armadilhas para aqueles que carregavam a insígnia da cor. A partir de suas trajetórias, delineadas pelos inventários feitos após suas mortes, nos permitiram enxergar a agência africana em Desterro, contribuindo para uma visão menos racializada e simplista desta população, a fim de romper com o preconceito e desigualdade presentes entre os diversos povos no século XXI. Ao invés de enxergá-los como meros sujeitos silenciados pelas hierarquias, violências e relações de poder próprias do sistema escravista, os entendemos como seres humanos ativos que trilharam os próprios passos e enfrentaram os obstáculos de sua própria história. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Teses sobre a história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994 CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em Desterro: Experiências de populações de origem africana em Florianópolis na segunda metade do século XIX. Itajaí: UDESC; Casa Aberta, 2008. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do Quotidiano Na Historiografia Contemporânea. Revista Projeto História, São Paulo, Online, v. 17, 1998. p. 223-258.

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GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: ______. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,1989. p. 143 -180 _________________. Retórica de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. HALL, Stuart. Pensando a Diáspora. In.: ______. SOVIK, Liv (orga.). Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. p. 25 – 50. MALAVOTA, Claudia Mortari. Os africanos de uma vila portuária do sul do Brasil: criando vínculos parentais e reinventando identidades. Desterro, 1788/1850. Tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2007 MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 23-76. MORTARI, Claudia. Os Homens Pretos do Desterro. Um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Dissertação no Programa de Pós-Graduação em História. 2000 PENNA, Clemente Gentil. Escravidão, Liberdade e os arranjos de trabalho na Ilha de Santa Catarina nas últimas décadas de escravidão (1850-1888). Florianópolis: UFSC, 2005. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História). QUIJANO, Anibal. Colonialidade, Poder, Globalização e Democracia. Novos Rumos. n° 37, 2002. P. 4-28. REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In.: _____ (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 15 – 38. SILVA, Alberto da Costa e. Um Rio Chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed. UFRJ, 2003. SOUZA, Maysa Espíndola. Africanos livres em Desterro: tutela, trabalho e liberdade. 2012. 60p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012 THOMPSON, Edward. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 8 ÍNDIOS E ESCRAVOS NA REGIÃO DO PRATA: EXPERIÊNCIAS DE TRABALHO, ESCRAVIDÃO E LIBERDADE (SÉCULOS XVIII-XIX)

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CLASSIFICATIVOS SOCIAIS E EXPLORAÇÃO DA MÃO-DE-OBRA SERVIL INDÍGENA: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DOS BATISMOS DE CURITIBA (1737-1764).......................................................................... 445 POBRES E ESCRAVISTAS: LAVRADORES COM PEQUENAS PROPRIEDADES DE CATIVOS NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO ................................................................................................................................... 455

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CLASSIFICATIVOS SOCIAIS E EXPLORAÇÃO DA MÃO-DE-OBRA SERVIL INDÍGENA: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DOS BATISMOS DE CURITIBA (17371764) Isadora Lunardi Diehl 1 O presente artigo pretende discutir o significado e os usos dos classificativos sociais em uma área de ocupação luso-brasílica “tardia” na colônia portuguesa na América. Assim, analisou-se o léxico presente no 4º Livro de Batismos da freguesia de Nossa Senhora da Luz 2, em Curitiba 3, buscando através das categorias sociais em que as mães dos batizandos foram enquadradas compreender os lugares sociais ocupados pelos indígenas naquela localidade. A região de Curitiba, atualmente no território do estado do Paraná, foi ocupada a partir da expansão bandeirante, no final do século XVII. Primeiramente, os paulistas assentaram-se na região litorânea de Paranaguá. A área havia atraído um grande número de vicentinos que ao se dedicarem a captura de nativos da região acabaram por descobrir a existência de minas de ouro. A exploração do ouro era difícil ali e, por isso, com a descoberta das minas em Cataguazes e Cuiabá a tentativa de exploração de Paranaguá arrefeceu (BALHANA, et al, 1969), mas o povoamento do planalto curitibano ganhou fôlego. A criação de gado, a lavoura e a mão de obra indígena – ainda que esta altura já minguante- atraiu os povoadores para a área. A carta do Ouvidor Pires Pardinho ao Rei João V demonstra a existência destes atrativos: Dizem aqueles moradores, que tem penetrado o sertão para o poente, que todo é de campo seus capões, e restingas de matos, com boas águas e férteis currais, e criações das quais se poderão fazer grandes fazendas se para eles se largarem os gados: que gentio é muito pouco por ele se acham apenas alguns pequenos lotes. Os mesmos campos vão correndo pelo pé dos matos da Serra de Piracicaba; e alguns dizem ser fácil abrir por eles caminho da vila de Laguna, donde se lhes podem introduzir gados, que se conduzam, e tragam pelas praias do Rio Grande de São Pedro, com que brevemente se estabeleceram neles grandes fazendas de currais. 4 Logo, a fundação da freguesia de Curitiba pode ser entendida como fruto da expansão paulista em busca de ameríndios (MONTEIRO, 1994, p.79-81). Entretanto é difícil compreender as formas como estes indígenas entenderam este processo de integração forçada a esta sociedade. Na Curitiba colonial não restaram relatos dos próprios indígenas sobre estes processos. Na falta destes escritos sobre o passado, o subterfugio encontrado por mim foi o de buscar nos registros paroquiais indícios dos lugares sociais ocupados pelos indígenas incorporados àquelas nascentes povoações mestiças.

1

Mestranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPQ. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. 3 A freguesia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais (Curitiba) era freguesia de Paranaguá desde 1654 e seu distrito desde 1660. Não se sabe exatamente a data de fundação da capela da localidade. Certo é que sua jurisdição, até a década de 1750, tinha como limites as localidades de São Francisco e Laguna ao sul e Iguape ao norte. Durante o século XVIII, foram fundadas paróquias em São José dos Pinhais, muito próximo à Curitiba, Santo Antônio da Lapa e Santana do Iapó (Castro) reduzindo a abrangência da paróquia de Nossa Senhora da Luz. A freguesia estava submetida ao Bispado do Rio de Janeiro. Em 1693, Curitiba foi elevada à vila, fazendo parte da Capitania de São Paulo até o seu desmembramento, em 1853. Sobre o assunto ver: BURMESTER, Ana Maria de O. A População de Curitiba no século XVIII – 1751-1800, segundo os registros paroquiais. Curitiba: UFP, 1974. (Dissertação de mestrado). p.15. 4 Carta do Ouvidor Rafael Pires Pardinho ao Rei D. João V, 30 de agosto de 1721. Revista Monumenta, vol.03, nº10 apud MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.p. 27. 2

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Os registros paroquiais há muito utilizados em trabalhos de história demográfica e social (BASSANESI, 2009) permitem resgatar uma parte da história de todos os indivíduos inseridos nas comunidades cristãs. Evidentemente isso exclui uma grande parte de sujeitos que não partilham destes preceitos, notadamente os indígenas. Ainda sim, como a catequese e os ritos católicos foram de suma importância para o projeto colonial, me parece bastante razoável buscar compreender através destas fontes, na falta de outras, as relações estabelecidas com e pelos indígenas. Como aponta John Monteiro, o aspecto religioso foi de fundamental importância para a transformação dos indígenas em escravizados. Através dos batismos, os índios eram introduzidos na cristandade e os senhores podiam por meio dela reafirmar a lógica de dominação: Se a transformação de índio em escravo exigiu ajustamentos por parte da camada senhorial, também pressupunha um processo de mudança por parte dos índios. (...) Um dos elementos centrais deste processo foi a religião que, em certo sentido, servia de meio para se impor uma distância definitiva entre escravos índios e a sociedade primitiva da qual foram bruscamente separados. Portanto, para senhores, o sentido da conversão ia muito além das justificativas insistentes que empregavam na defesa da escravidão (MONTEIRO, 1994, p. 159). Nas fontes eclesiásticas, assim como em grande parte da documentação do período colonial, é possível visualizar uma sociedade altamente hierarquizada. Os registros de batismo trazem uma série de informações que poderia ser considerada padronizada, mas que permite entrever classificativos sociais inseridos pelo padre naqueles registros. Como aponta Sheila de Castro Faria, esse classificativos, ainda que anotados pelos padres nos contam sobre concepções partilhadas pelos membros da sociedade e permitem, desta forma, identificar os lugares sociais ocupados por aqueles sujeitos: A interpretação e a redação final, entretanto, ficavam a cargo do pároco. Era ele que designava o “preto angola, mina, guiné” etc., o “pardo escravo de...” e o “crioulo”. Nitidamente o vocabulário classificatório transcendia as informações dadas pelos cativos. (...) Acho que o comum, entretanto, foi, no registro, constarem nomes e indicações do conhecimento não só dele [pároco] como também da comunidade (...) Os padres transmitiam o que ouviam. (...) Com base nestas considerações, quero afirmar que a redação dos registros não se reduzia às informações dadas pelos envolvidos e, nem mesmo pelos próprios padres. Representava, através das escrituras dos padres, o que as pessoas indicavam sobre elas próprias e o que a comunidade local sabia ou murmurava sobre elas. Explica-se, assim, o motivo de se considerarem, neste trabalho, as referências contidas nos registros paroquiais como definidoras dos lugares sociais ocupados pelos envolvidos na comunidade local, certamente passando pelo crivo da dominação (FARIA, 1998, p. 310-312). Certamente a ideia de distinguir os seres humanos uns dos outros através de classificações permeia todas as sociedades humanas e já estava presente entre os nativos do continente americano antes da chegada dos europeus. Entretanto, na Europa do Antigo Regime, tais classificações são estruturantes de todas as relações sociais, já que são essenciais para a inteligibilidade de um mundo que necessita enquadrar os sujeitos segundo seus “privilégios”. Segundo Hespanha (2010a, p.57-58), as sociedades europeias modernas estão estruturadas na ideia de ordem. Em uma das noções cristãs, a criação estaria ordenada como um corpo “em que cada órgão competia uma função, e que estas funções estavam hierarquizadas segundo a sua importância para a subsistência do todo”. Disto deriva a noção de que algumas pessoas eram mais dignas do que outras, em função dos ofícios que lhes eram incumbidos. Logo, alguns “órgãos” deste corpo, cumpriam funções mais importantes que outros. Tais distinções de papeis sociais legavam aos indivíduos diferentes “privilégios” ou “direito particular”, traduzidos em “estados” diferenciados. A divisão mais comum deste corpo era três ofícios sociais: a milícia, a religião e a lavrança. Entretanto, para Hespanha, nos diversos planos jurídicos (direito penal, fiscal, político...) os estados eram mais abundantes. Nesta

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ordenação, a mobilidade social era excepcional e indesejável, pois no plano ideológico buscava-se a estabilidade. No mesmo sentido, Giovanni Levi (2009, p.53) procura, através do conceito de equidade, caracterizar as sociedades mediterrâneas de Antigo Regime como comunidades que buscavam a confirmação de uma estrutura social hierárquica. Estas eram coletividades que se alicerçavam em desigualdades estratégicas, que eram aceitas e racionais, e que não partilhavam o preceito moderno de igualdade entre os membros. Assim, o autor propõe que as áreas mediterrâneas no Antigo Regime entendiam que o direito formulado de maneira absoluta era um erro, e que o equitativo era o justo em cada caso. Esse era, portanto, um sistema de justiça distributiva, ou seja, “uma justiça que aspira a garantir a cada um o que lhe corresponde segundo o seu status social”. Logo, o papel da lei aí era o de acentuar as desigualdades sociais existentes, através dos sistemas de privilégio e de classificação social. Portanto, os classificativos sociais tinham um papel chave nestas sociedades já que era através deles que se poderia identificar a que “estado” pertencia cada sujeito e com isso fazer valer os privilégios que lhes cabia. Ou, como coloca Levi (2009, p. 63), a respeito dos esforços classificativos: eram “despedidos justamente para definir de maneira estável condições sociais às quais se reconhecem privilégios específicos”. Se esta complexa organização hierárquica baseada em categorias sociais é tributária da sociedade europeia de Antigo Regime o contato com o Novo Mundo só complicou ainda mais estes classificativos e impôs a necessidade de invenção de novas ordens classificatória, seja pela mestiçagem biológica e cultural, seja pelas modalidades de trabalho criadas ou intensificadas na colônia. Acredito que as vivências coloniais criaram lugares sociais e organizações políticas totalmente novas que ainda que discursivamente pretendessem se organizar conforme um molde europeu não passaram incólumes pelo encontro com a cultura indígena e africana, pelas diferentes paisagens e recursos encontrados na América. Como aponta Hebe Mattos, a situação colonial impôs a diversificação das categorias de classificação: De fato, a contínua expansão e transformação da sociedade portuguesa na época moderna tendeu a criar uma miríade de subdivisões e classificações no interior da tradicional representação das três ordens medievais (clero, nobreza e povo), expandindo a nobreza e seus privilégios, redefinindo funções, subdividindo o “povo” entre estados “limpos” e “vis” (ofícios mecânicos). (...) Para que a concepção corporativa de sociedade predominante no Império português pudesse informar os quadros mentais e sociais de sua expansão, era necessária a existência prévia (ou a produção) de categorias de classificação que definissem a função e o lugar social dos novos conversos, fossem mouros, judeus, ameríndios ou africanos. (MATTOS, 2001, p. 144) Podemos, grosso modo, dividir as categorias sociais existente em “qualidades” e “condições jurídicas”. As condições jurídicas são: livre, escravo e forro; mas há ainda duas subcondições: a de coartado- escravo em período de libertação e que detinha certos “direitos” como não poder ser vendido ou alugado durante o período de coartação- e a de administrado (PAIVA, 2015, p.34). Essa última condição interessa muito aqui, pois nos permite compreender melhor como viviam os indígenas em Curitiba no século XVIII. A administração indígena foi uma prática bastante ambígua, baseada na noção de que, ainda que os indígenas fossem juridicamente livres, deveriam servir aos colonos sem remuneração. O funcionamento de tal sistema não estava especificado na legislação régia, ao menos até 1696 5, mas era de “uso e costume da terra”. Como aponta Brighente (2012, p.76): “O administrado não era nem um homem livre e nem um escravo no que diz respeito ao seu estatuto jurídico, mas 5

Neste ano foi emitida uma Carta Régia que autorizava a administração particular de índios, desde que este vivessem em aldeias, mas reiterava a liberdade absoluta deles. Logo, tal lei não desambiguava a condição do administrado. Sobre o assunto ver : FREITAS, Ludmila Gomide. A Câmara Municipal da Vila de São Paulo e a escravidão indígena no século XVII (1629-1696). Campinas: UNICAMP, 2008. (dissertação de mestrado).

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pertencia a um outro estado ou condição, precisamente o de administrado”. Alguns autores tendem a aproximar a administração particular da escravidão africana 6, outros frisam as diferenças entre as duas formas de exploração da mão-de- obra 7. Entretanto, como coloca Moreira, ainda que os lugares sociais dos indígenas não estivessem consolidados indubitavelmente a incumbência deles na sociedade colonial era o trabalho: Naturalmente, o lugar social e o estatuto jurídico dos índios não estavam plenamente constituídos e consolidados e eram, além disso, objeto de acirrada disputa na colônia e na metrópole (...). os testemunhos históricos oferecem sólidas indicações de que a principal função e dever ( officium) dos índios era trabalhar para o Estado, para particulares e para si próprios (...). O que mais oscilava na legislação, portanto, não era o officium dos índios, mas o melhor modo de eles exercerem as funções que lhes eram reservadas no mundo colonial, e se deveriam trabalhar como homens livres ou como cativos (MOREIRA,2013. p. 139-140). As “qualidades” eram muitas e se manifestavam em termos como “bastardo”, “mulato”, “pardo”, “servo”, “crioulo”, “mina”, “tape”, “preto”, “catecúmena”, “negro de Guiné”,etc. Por vezes, tais “qualidades” se manifestavam através de conotativos ligados a cor; mas não podem ser reduzidas a elas. Segundo Hespanha (2010b, p.02) as representações de cor no mundo do Antigo Regime eram uma construção social que provinham da relação interdependente entre identificação cromática física e ordem cromática social; não se tratando de um mero jogo de representação objetiva do mundo físico. As cores expressavam simbolismos ligados às emoções e às formas de percepção carregadas de sentido social, pois tais atribuições possibilitavam a localização e identificação de determinadas coisas e o reconhecimento delas perante o mundo social. No entanto, como aponta Guedes (2014, p.142), ainda que os livros de batismo (no seu caso da Freguesia da Sé) estejam divididos entre brancos e forros de um lado e pretos de outro a realidade não era assim bipartida: Relações pessoalizadas de dominação, noções de casa e de família patriarcal, bandos políticos, parentelas, aspectos religiosos, redes sociais, mestiçagens, etc. adicionaram parâmetros de hierarquia social na América portuguesa de Antigo Regime para além de segmentações jurídicas escravistas manifestas na qualidade de cor. Logo, o que se percebe é que os classificativos manifestos nos registros eclesiásticos são frutos de complexas interações entre fenótipo, ascendência, língua falada pelo sujeito, relações de trabalho, etc. Como coloca Paiva (2015, p.33). As qualidades, portanto, diferenciavam, hierarquizavam e classificavam os indivíduos e os grupos sociais a partir de um conjunto de aspectos (ascendência familiar, proveniência, origem religiosa, traços fenotípicos, tais como cor da pele, o tipo de cabelo e o formato do nariz e da boca), pelo menos quando isso era possível. Quando não era possível essa conjunção, os elementos mais aparentes e/ou convenientes eram acionados para que a identificação se efetuasse, o que certamente variou de região para região, de época para época, em uma mesma época e em uma mesma região. No quarto livro de registros de batismos de Nossa Senhora da Luz 8, de Curitiba, encontramos todas as condições jurídicas, menos a de coartada assim explicitada, entre as mães de batizandos. Este

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Ver: MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.144. Para uma discussão mais aprofundada sobre as aproximações da administração indígena com a escravidão ver DIEHL, 2012. 7 Ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 8 Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764].

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livro era destinado ao “assento dos servos” 9 daquela freguesia e por isso é uma amostra que privilegia o extrato subalterno da população. Contudo, como aponta o Gráfico 1, grande parte (23%) dos 1271 registros de mães de batizandos é composto por mulheres que puderam ser consideras livres. Foram consideradas livres todas aquelas que não tinham classificativos que indicassem servidão (escrava, serva, administrada.) e que não tivessem senhores ou senhoras informados. CONDIÇÃO DAS MÃES

PORCENTAGEM

NÚMERO

Mães escravas

42%

540

Mães livres

23%

288

Mães administradas

24%

311

Mães sem classificativo definido

4%

56

Mães forras

6%

76

100%

1271

Total de mães nos batismos

Tabela 1. Condição das mães. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. Certamente a população livre listada neste livro de servos trazia consigo alguma marca da servidão, seja em seu próprio passado, seja em sua ascendência. Logo, seria um erro considerarmos estas mulheres “brancas”. Tal afirmação já é temerosa para aqueles arrolados nos livros de “batizados de brancos” 10 ou de “batizados de gente branca” 11, já que historiadoras e historiadores têm contestado a relação do uso do classificativo com a questão exclusivamente fenotípica (BOIXADÓS E FARBERMAN, 2009, p. 89).

Condição das mães 4%

6%

mães escravas 43%

24%

mães livres mães administradas mães sem classificativo definido

23%

mães forras

Gráfico 1.Condição das mães. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. Assim, dentre as mães consideradas livres (Gráfico 2) a maioria (74%) recebeu algum classificativo que marcava sua origem indígena e/ou africana. Assim essas mães receberam as qualidades de “índia” (1%), “carijó” (1%) e mulata (2%), mas principalmente de “bastarda” (70%).

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Termo de abertura do 4º Livro de batismos [1737- 1764]. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 10 Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 3º Livro de batismos. [1734- 1754]. 11 Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 5º Livro de batismos. [1755- 1772].

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Classificativos das mães livres 1%

2% mães livres mulatas

27%

mães livres bastardas mães livres índias

1% 70%

mães livres sem classificativo mães livres carijó

Gráfico 2. Classificação das mães livres. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. O termo bastardo designavam os filhos de pais brancos e mães indígenas. Ao contrário da associação comum com a ilegitimidade, nas regiões povoadas pelos paulistas o termo bastardo no setecentos designava qualquer um de descendência indígena. Este classificativo foi frequentemente confundido com o termo mameluco, que também designava os frutos da mesma mestiçagem. No entanto, antes do século XVIII, os mamelucos eram aqueles que tinham a paternidade do pai branco reconhecida, enquanto os bastardos não, e seguiam vinculados às origens indígenas maternas. Posteriormente, o vocábulo mameluco parou de ser usado em São Paulo e o classificativo bastardo generalizou-se, sendo usado para classificar todos os mestiços indígenas (MONTEIRO, 1994, p. 167). No entanto, em Minas Gerais, a expressão mameluco continuou aparecendo no século XVIII (PAIVA, 2015, P.188). Estranhamente o termo não aparece nenhuma vez nos registros paroquiais curitibanos. Da mesma forma, “cabra”- que designa a mescla de índios e negros- também não parece nos registros do quarto livro de batismos da Paróquia. Não que na freguesia de Nossa Senhora da Luz o uso do termo “bastardo” não tivesse alguma conotação primordial com a filiação ilegítima. A alta taxa de ilegitimidade encontrada nos batismos atesta para uma forte disseminação da bastardia, no uso clássico da palavra. Em 398 (31%), dos 1271 registros de batismo, os batizandos eram frutos de relações não legitimadas pela Igreja. Entretanto, certamente o uso do termo “bastardo” nas paragens curitibanas, assim como em São Paulo, transcendia a filiação ilegítima e estava mais relacionado às origens indígenas. Se a “qualidade” que marcava a ancestralidade indígena estava fortemente presente entre as mães livres, não era diferente entre as forras e libertas (Gráfico 3) 12. Entre elas as “bastardas” e as “forras bastardas que foram administradas” figuram em mais da metade dos registros (62%). Também observamos outras “qualidades” entre as forras que marcam suas origens indígenas, como carijó (4%) e mulata (14%).

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Apenas uma das mães aparece como liberta, todas as outras congregadas aqui receberam do padre o designativo “forra”.

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Classificativos das mães forras 1% 4%

forra carijó

18%

forra bastarda

5% 14%

57%

forra mulata forra bastarda que foi administrada

Gráfico 3. Classificação das mães forras. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. O termo mulato na São Paulo colonial designava a “prole de uniões afro-indígenas” (MONTEIRO, 1994, p. 155). Nos registros de Nossa Senhora da Luz ainda não foi possível identificar com clareza se todos esses mulatos têm alguma ascendência indígena. A primeira vista pode parecer mais comum que a “qualidade” de mulato seja mais frequentemente aplicada àqueles reconhecidos socialmente como tendo origens africanas. O registro de batismos dos filhos e filhas de Antônia, Raquel, Tereza, Eugênia e Bernarda 13 nos explicita outra realidade. Estas mães são designadas ao mesmo tempo “administradas”- categoria jurídica que nos remete atribuição de uma identidade indígena- e “mulatas”termo comumente associado, no século XVIII, aos mestiços de africanos e brancos. Assim, na comparação entre administradas e escravas com o designativo de “mulata” temos exatamente o mesmo número de mães desta forma designadas nas duas categorias jurídicas: 5. Entre as escravas, as mulatas são apenas 1% de 523 mães 14; entre as administradas elas 2% do total de 311. Na categoria mães “indefinidas” agreguei aquelas sem uma condição jurídica passível de precisar. Aí aparecem mães que foram administradas ou que constam como “bastarda que foi administrada”. A condição jurídica neste caso é difícil de identificar, já que elas não são forras, pois oficialmente não eram escravizadas 15. Não que a expressão forra não esteja associada a indígenas (ver Gráfico 3), mas é menos comum. Mais comum (15 casos entre os 56 “indefinidos) é que apareçam designadas “administrada que foi” e o nome do antigo senhor ou senhora. Ou ainda que apareçam agregados os classificativos que denotam mestiçagem (bastarda) e a passagem pela situação de cativeiro. É o caso dos pais de Tomé neste registro: Aos dez dias do mês de Abril de mil de setecentos e cinquenta e sete anos, nesta Igreja Matriz de Nossa Senhora da Lux, da vila de Curitiba, batizei, e pus os santos óleos a Thomás inocente, filho de Antônio Palhano, e de sua mulher Andreza ambos bastardos e (que) foram administrados de Luis Palhano(...). 16 Ainda entre as mães que não foi possível precisar a condição jurídica encontramos 3 “servas”, uma delas designada “serva bastarda”. O termo servo, segundo o dicionário de Antônio de Moraes Silva Batizado de Leonor, 11/05/1741, f.28v; Batizado de Antônio, 20/08/1741, 30v; Batizado de Francisca, 25/11/1750, f. 80v; Batizado de Antônia, 15/03/1749, f. 144; Batizado de Salvador, 16/11/1751, f.85v. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. 14 A maioria das mães escravas não recebeu nenhuma “qualidade” (98%). Além das 5 mulatas, 3 escravas aparecem como “crioula”, 3 como “gentio da Guiné” e 1 como “mina”. 15 No total de registros de mães indefinidas (56) consta apenas uma foi designada “escrava que foi”. Isso porque suponho as mães que foram ex-escravas possivelmente foram designadas “forras” pelo padre. Entretanto, surpreende que entre as forras também predomine o termo “bastarda” ao lado da condição jurídica (Gráfico 2). 16 Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764], f. 128v. 13

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(1789), é sinônimo de escravo ou designa aquele que condenado à morte é privado de todo o seu direito civil 17. No entanto, como há uma pequena incidência desta designação não foi possível ainda precisar quem era desta forma designado. Ainda que o uso do termo “índio”/ “indígena” tenha se disseminado nas colônias ibero-americanas ainda no século XV, seu emprego na freguesia curitibana parece ter sido pouco comum. O vocabulário era também bastante incomum para designar os indígenas na São Paulo do século XVII, como aponta Monteiro (1994, p.155): O próprio termo índio- redefinido no decorrer do século- figura como testemunho deste processo: na documentação da época o termo referia-se tãosomente aos integrantes dos aldeamentos da região, reservando-se para a vasta maioria da população indígena a sugestiva denominação “negros da terra”. Na Curitiba do século XVIII o termo “negro da terra” não aparece nenhuma vez nos registros. Entre as mães administradas aparece o termo “gentio terra” para 8 das administradas (3%) ( Gráfico 4). O termo gentio está associado a ideia de “bárbaro” e “selvagem”(PAIVA, 2015, p.193). Na categoria jurídica de “administrada” 17% das mães (53 indivíduos) foram designadas como “carijó”. O classificativo “carijó” era inicialmente usado para designar pessoas dos grupos Guarani, alvo principal das bandeiras paulistas de apresamento até aproximadamente 1640. Curiosamente, foi apenas após cessar o fluxo de cativos guarani e heterogeneizarem-se os plantéis paulistas de escravos índios que o termo passou a ser usado com mais frequência naquela região. Esse processo de classificação das indígenas como carijó, uma vez mais nos aponta não para a efetiva origem étnica dos membros desta sociedade e sim para um processo de associação da condição jurídica a uma “qualidade” que reforçava a posição de cativo: Em suma, o enquadramento da população cativa numa categoria étnica padronizada representava muito mais do que uma política expressa da camada senhorial ou um simples exercício semântico; tratava-se, antes, de todo um processo histórico envolvendo a transformação de índios em escravos (MONTEIRO, p. 166). O Gráfico 5 aponta para evolução da mestiçagem nos campos curitibanos e para a formação de uma população livre e pobre com fortes elementos indígenas. Assim, observa-se que nas décadas de 1730 e 1740 predominam as mães administradas “carijó”. A partir de 1750 passam a predominar as administradas e forras bastardas. Na década de 1770 os dois termos praticamente desaparecem, demonstrando um “apagamento” das identidades indígenas. Logo, através da análise do léxico empregado nos batismos para classificar as mães, foi possível, em primeiro lugar, atestar para a forte presença indígena na região sul, ainda pouco salientada pela historiografia do Brasil colonial. Depois relacionar estes classificativos ao mundo do trabalho e observar a massiva utilização de administradas em Curitiba. Ainda foi possível salientar as dinâmicas de transformação de uma sociedade na qual a mestiçagem e a concessão da liberdade tiveram um papel crucial na composição de uma população livre, mas marcada pelo estigma da servidão.

17 SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/2. p. 695.

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Classificativos de mães administradas 4% 2% Total de adm. bastardas 17%

Total de adm. mulatas 3%

Total de adm. carijó Total de adm. gentio da terra

75%

Total de adm. sem classificativo

Gráfico 4. Classificação das mães administradas. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764].

adm. carijó

adm. bastarda

1777.

1763.

1762.

1761.

1760.

1759.

1758.

1757.

1756.

1754.

1753.

1750.

1749.

1746.

1745.

1743.

1742.

1741.

1740.

1739.

1738.

10 8 6 4 2 0

1737.

Uso do termo "carijó" e "bastarda"

forra bastarda

Gráfico 5. Uso do termo "carijó" e "bastarda" para classificar as mães nos batismos. Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. 4º Livro de batismos. [1737- 1764]. BIBLIOGRAFIA ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BALHANA, Altiva Pilati, MACHADO, Brasil Pinheiro, WESTPHALEN, Cecília Maria. História do Paraná- 1º Volume. Curitiba: Grafipar, 1969. BASSANESI, Maria Silvia. Os eventos vitais na reconstituição da história. In: PINSKY, C. B e LUCA, T. R. (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 141-172. BOIXADÓS, Roxana. e FARBERMAN, Judith. Una aproximación a la diversidad étnica y social en Los Llanos. IN: FARBERMAN, Judith; RATTO, Silvia (coord). Historia mestizas em el Tucumán colonial y las pampas, siglos XVII-XIX. Buenos Aires: Biblos, 2009. p. 79-107. BRIGHENTE, Lilian Ferraresi. Entre a liberdade e a administração particular: A condição jurídica do indígena na vila de Curitiba (1700-1750). UFPR, Curitiba: 2012. (Dissertação de mestrado) BURMESTER, Ana Maria de O. A População de Curitiba no século XVIII – 1751-1800, segundo os registros paroquiais. Curitiba: UFP, 1974. (Dissertação de mestrado).

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POBRES E ESCRAVISTAS: LAVRADORES COM PEQUENAS PROPRIEDADES DE CATIVOS NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO Luciano Costa Gomes 1 INTRODUÇÃO Há um número significativo de relatos, de fins do século XVIII e início do XIX, que qualificam os lavradores como produtores pobres ou miseráveis. Ao longo do século XX, diferentes autores utilizaram tais relatos para definir como homogênea a condição econômica deste grupo produtivo 2. Helen Osório demonstrou, por sua vez, que a estrutura econômica da capitania não se resumia à existência de peões soltos, lavradores e estancieiros, enquanto grupos socialmente definidos, fechados e homogêneos. Em realidade, entre os mais ricos e os mais pobres existia uma miríade de condições econômicas, sendo comum a coexistência de atividades agrícolas e pecuárias nas unidades produtivas do período. A autora demonstrou, também, ser comum a posse de escravos por lavradores (OSÓRIO, 2007a; OSÓRIO, 2007b). Eis o nosso problema e ponto de partida: os lavradores do Rio Grande de São Pedro eram, ao mesmo tempo, senhores de alguns escravos e frequentemente qualificados como pobres. Para demonstrar a pertinência do tema, retomamos as palavras do governador Sebastião Xavier da Câmara segundo o qual, em carta ao vice-rei de 28 de junho de 1780, a Fazenda Real devia a quase todos os lavradores e que a farinha retirada e não paga é indispensável a “estes mizeraveis para seu sustento, de suas mulheres, filhos, e escravos” 3. Para dar uma alternativa de resposta ao problema, analisaremos um momento da vida de uma família de açorianos moradores de Porto Alegre que recebeu data de terras no início da década de 1780. Antônio Machado Neto e Maria Antônia, casados, eram proprietários de 5 escravos em 1782. Possuíam terras, porém, não apresentavam nem animais nem lavouras no ano de 1784. A princípio, ao levarmos em consideração que a área urbana da freguesia estava em desenvolvimento, imaginamos que houvessem desistido das atividades agrícolas e se dedicado às urbanas ou ao trabalho no porto. Antônio Machado faleceu em 1790. Cinco anos depois, a viúva faleceu e não deixou testamento por ser pobre. Temos, aqui, um caso concreto de uma família escravista, cuja chefa do domicílio, ao falecer, foi qualificada como pobre. Tentar explicar a história desta família pode ajudar-nos a entender o problema geral ao qual nos dedicamos. Ao analisar um problema histórico a partir do ponto de vista de uma pessoa ou família, temos aberta a possibilidade de visualizar a ocorrência dos atos sociais do ponto de vista mais próximo daqueles que o vivenciaram e assim observar as contradições, incertezas e informalidades das relações sociais, das estruturas econômicas ou das instituições políticas. Tal abordagem permite também contemplar os diferentes graus de liberdade individual e a complexa relação estabelecida entre sujeito e estrutura (DUBY, 1987, p. 104ss; LEVI, 1996, p. 173, 179s). A construção da explicação a partir da história dos ilhéus em foco dependeu do levantamento de dados, por meio de pesquisa nominal, relativos aos fatos vitais de elementos dessa família (como nascimento, casamento e óbito), à composição doméstica dos núcleos familiares pertencentes à família mais ampla e às vinculações extra-familiares criadas por meio do compadrio e do casamento. Foram utilizados róis de confessados, os livros de batismo, óbito e casamento, a relação de moradores de 1784 e alguns instrumentos de pesquisa nominal, particularmente os Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre era um pequeno povoado pertencente à freguesia de Viamão, elevado à condição de freguesia e de capital do Rio Grande de São Pedro no ano de 1772. Apesar da diminuta população em 1

Mestre em História, PPGH-UFRGS, Capes. Como ressalva, há o caso da obra de Fernando Henrique Cardoso, que apontou a possibilidade de lavradores terem comprado cativos. Fizemos essa discussão em outra oportunidade (GOMES, 2014b). 3 CÂMARA, Correspondência ao vice-rei. Arquivo Nacional, Códice 104, v. 2, fl. 130. 2

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1782, verificou-se já ser uma localidade bastante movimentada, formada por indivíduos e famílias oriundos de diferentes localidades. O núcleo urbanizado, onde se encontrava o porto, concentrava a maior parcela da população. Os escravos eram muitos, pois sua população variou de 30 a 40% do total entre 1780 e 1802, como muitos também eram os senhores de escravos. Entre 1779 e 1792, pelo menos metade dos domicílios apresentava ao menos um cativo. Tais proprietários possuíam, majoritariamente, escravarias com até quatro membros. A ampla disseminação de cativos em Porto Alegre é semelhante à encontrada tanto em áreas com núcleos urbanizados quanto em economias voltadas para a produção de alimentos para o mercado interno (GOMES, 2012, GOMES, 2014a; FREITAS, 2011, p. 128ss, 143ss; SCOTT, SCOTT, 2013, p. 11ss). CASOS DE FAMÍLIA Nossa história começa com o casal Manuel Jacinto e Antônia Maria, ele da Ilha da Madeira e, ela, filha de Antônio Machado Neto, natural da Ilha Terceira (Açores). Entre 1763 e 1773 o casal gerou 6 crianças. Com o nascimento de Inácia, em agosto de 1773, provavelmente surgiram complicações que levaram ao falecimento da mãe, registrado no mesmo mês e ano, no livro de óbitos. Um ano depois, encontra-se, no mesmo livro, o falecimento de Manuel Jacinto. Temos, aqui, o fato fundamental de nossa história: 6 crianças ficam órfãs de pai e mãe em menos de um ano, todos muito jovens. No ano de 1779, no registro do domicílio de Antônio Machado Neto e Maria Antônia, encontramos todas as crianças. Os avôs, já em idade avançada, tornaram-se responsáveis pelo cuidado dos netos. A família é a instituição universal das sociedades humanas. Dela depende, em grande medida, a geração, educação e conservação das crianças, bem como seu destino social. Ao mesmo tempo, é uma instituição que apresenta fragilidades, pois eventos inesperados podem afetar profundamente tanto seu funcionamento quanto a sorte de cada um de seus membros. Talvez aí esteja uma das primeiras chaves para solucionar a associação entre escravidão e miséria entre os lavradores: ainda que pudessem possuir alguns escravos, a falta dos principais responsáveis pela organização e trabalho da família poderia levar ao real perigo de colapso do núcleo. A doença, a morte ou o alistamento paras milícias eram possibilidades constantes, ainda mais em uma fronteira militarizada do século XVIII. De acordo com as condições efetivas de suas existências, as famílias podem a acumular recursos econômicos, sociais, simbólicos, relacionais, espirituais, que podem ser manipulados em diferentes situações. Estes recursos podem abrir leques de variados tamanhos para garantir a reprodução familiar, enfrentar situações difíceis ou, mesmo, permitir a ascensão social. No caso ora analisado, parece-nos que um recurso fundamental que garantiu a manutenção da família extensa de Antônio Machado Neto foi a escravidão. Conforme o rol de confessados de Porto Alegre de 1779, seu domicílio era composto por 4 crianças com seis anos ou menos (duas, escravas), 2 jovens com dez anos, 5 jovens e adultos com idade entre quatorze e trinta anos (duas escravas) e 3 idosos com sessenta anos ou mais (um escravo). Neste grande domicílio com 14 pessoas, nada menos que metade de seus membros estava fora da idade produtiva. Os jovens com dez anos e os idosos deveriam prestar algum nível de ajuda, seguramente, mas a maior parte do sustento da família deveria recair sobre os cinco jovens e adultos, sendo duas as escravas. Elas, seguramente, deveriam representar a principal fonte de renda para o domicílio. A família de Antônio Machado, portanto, vivia sob uma situação limite que, economicamente, poderia ser qualificada como de sobrevivência. Sem os cativos, no entanto, a situação poderia tornar mais grave, próxima a se tornar insustentável, obrigando, por exemplo, a distribuição das crianças aos cuidados de outros parentes e vizinhos. Tal situação reforça a posição de alguns autores para os quais a escravidão não transformava radicalmente o funcionamento das famílias dos proprietários de pequenas posses de cativos. Ao investir em escravos, tais famílias tinham por principal objetivo garantir a continuidade de sua organização e não simplesmente obter lucro (CASTRO, 2001, p. 339; OSÓRIO, 2007a, 173ss; FARINATTI, 2010, p. 427ss) 4. 4

Apesar disso, nossa posição é a de que a presença de tais cativos criava algumas transformações não apenas nas famílias (ainda que sua lógica de operação não se transformasse em empresarial) como, especialmente, em suas comunidades (GOMES, 2012, p. 153ss).

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Ao mesmo tempo em que as crianças parecem ter representado um fardo, há bons motivos para acreditar que, talvez, fossem elas o principal valor da família. Antônio Machado Neto e Maria Antônia eram já idosos, enquanto as crianças, de fato, tornar-se-iam as responsáveis pela reprodução e continuidade dessa parte da família. Convém salientar que não eram elas desabonadas. Herdaram de seus pais uma data de terras e, quem sabe, algum dos escravos que porventura fossem mantidos após o falecimento da avó Maria Antônia. As meninas teriam, assim, algum dote para casamento. Além disso, os pais das crianças foram ciosos em escolher bons padrinhos e madrinhas para seus filhos. Os jovens Jacinto, Manuel e Laureana tiveram por padrinho o Capitão Domingos de Lima da Veiga e sua filha Ana Maria de Araújo Lima. Domingos, conforme Fábio Kühn, “pertence à estirpe dos senhores de Ponte de Lima, que foi rico-homem e escrivão da Fazenda Real no Continente” (2006, p. 356). Em Rio Grande, no período anterior a invasão espanhola, foi muito procurado como padrinho pelos ilhéus, de modo a demonstrar seu prestígio, em partes explicado pelo fato de ter participado do processo de distribuição de datas de terras na região (HAMEISTER, 2006, p. 167). Pelo visto, esse prestígio se manteve quando o capitão passou a residir em Viamão. Por sua vez, o jovem Vicente teve como padrinho a José Tomaz de Aquino e Catarina Isabel, moradores do núcleo urbanizado de Porto Alegre, senhores de 5 cativos em 1781. José teve por padrinho a Francisco Antônio da Silveira, lavrador vizinho, possuidor de 9 cativos em 1782. Por fim, Inácia possuía como padrinhos o casal José Garcia e Caetana de Jesus, também moradores do núcleo urbanizado, proprietários de 8 escravos em 1782. Relacional e espiritualmente falando, os jovens órfãos estavam bem amparados. Provavelmente a convergência entre os recursos econômicos herdados e a interferência de seus bem colocados padrinhos explique, ao menos, o destino das meninas, ainda que dos meninos nada possamos falar, por ora. A menina mais velha, Laureana, casou-se com Inácio Manuel Vieira, natural do Desterro, no ano de 1781. No rol de confessados de 1781, o casal aparece como únicos moradores de seu domicílio, ele com 23 anos e, ela, com 13. O fato de ela se casar tão jovem, mesmo para os padrões coloniais, indica alguma urgência em encaminhar a garota para a formação de uma família. Inácio, por sua vez, um forasteiro sem recursos, mas provavelmente com conhecidos na área, pode ter encontrado em Laureana uma oportunidade para vincular-se à região e fazer parte do círculo de amizades de sua família. Na pior das hipóteses, era ela uma jovem menina cuja família possuía data de terra e alguns escravos, além de ser afilhada do Capitão Domingos de Lima. Onze anos depois, o casal aparece acompanhado por dois filhos, três escravos e dois agregados. Em 1802, sem constar a presença de Lauriana (não conseguimos detectar se faleceu ou não), Manuel Inácio aparece com quatro filhos e cinco escravos. Visível é o crescimento econômico do casal. Os padrinhos dos filhos do casal eram destacados na localidade. Dentre os padrinhos, temos o provável comerciante Francisco José Cidade, um alferes, Antônio José de Alencastre (foi eleito vereador e ocupou o cargo de Almoxarife da Fazenda Real) e do próprio Inácio Osório Vieira, provedor da Fazenda Real. No instrumento de busca do AHRS (1995), seu nome foi encontrado como receber de sesmaria no Cerro Pelado, tabelião em Rio Grande na década de 1790 e como escrivão em Santo Antônio da Patrulha na década de 1810. Resta-nos saber se os diferentes registros referem-se ao mesmo indivíduo mas, contanto com tantos compadres destacados, não seria estranha a confirmação. A órfã mais jovem, Inácia, casou-se com, Francisco Furtado Fanfa, natural da Ilha Terceira, Açores, em 1788. Por sua naturalidade, a mesma do avô materno de Inácia, é possível que o noivo não fosse um total desconhecido. Na relação de moradores de 1797, Furtado Fanfa aparece como proprietário, junto a outros herdeiros, da data de terras que pertenceu a Manuel Jacinto. Registram-se dois escravos, 2 carros, 1 casa, 1 curral, vários arvoredos, alguns de espinho. No rol de 1802, o casal aparece acompanhado, na seguinte ordem, de uma filha, dois escravos, uma agregada e 5 cativos abaixo da agregada. No instrumento de busca do AHRS (1995), seu nome foi encontrado como recebedor do cargo de correio da Secretaria da Junta. Semelhante ao casal formado pela irmã órfã Lauriana, Francisco e Inácia possuíam terras, escravos e o marido obteve uma ocupação pública. Os dois casais, por sinal, tornaram-se compadres com o batismo da filha de Lauriana e Inácio Manuel.

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CONCLUSÃO Os seis órfãos, filhos de Manuel Jacinto e Antônia Maria, viveram sua infância sob o risco constante de separação. Não o foram porque seus avôs deles se responsabilizaram. Apesar de idosos, contavam com o trabalho de alguns cativos para garantir o sustento da casa. Essa história mostra-nos como a escravidão não impedia a pobreza. A miséria era um risco constante para aqueles que dependiam do trabalho familiar. Mas, seguramente, ter escravos abrandava as dificuldades enfrentadas e deveria facilitar a resolução dos problemas. Apesar da miséria, a família dos netos de Antônio Machado Neto conseguiu se reproduzir enquanto escravista, provavelmente manipulando uma série de recursos. Os órfãos possuíam algum patrimônio para ser herdado, o que deve ter sido utilizado como oferta de dote para o casamento das meninas. Por outro lado, os padrinhos, política e/ou economicamente bem colocados, podem ter dado um importante apoio aos seus afilhados. Puderam, inclusive, ter ajudado a encontrar noivos promissores para as meninas e cargos para seus maridos. Uma das prendas das meninas não pode ser desprezada: sabiam elas lidar com escravos desde jovens, o que seria um predicado nas famílias que viriam a formar. A escravidão, portanto, era capaz de se reproduzir, mesmo sob o signo da miséria. FONTES DIGITAIS E DOCUMENTOS DE PESQUISA ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, vol. 11. Porto Alegre: Corag, 1995. NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (Org.). Projeto Resgate de Fontes Paroquiais: Porto Alegre e Viamão (século XVIII) – Batismos e Óbitos. Porto Alegre: UFRGS, 2000. [CD-ROM]. REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS Róis de confessados de Porto Alegre dos anos de 1779, 1780, 1781, 1782, 1790, 1792 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (Arquivo Histórico da Curica Metropolitana de Porto Alegre - AHCMPA) Primeiro e segundo livros de batismos de Viamão (AHCMPA). Primeiro e segundo livros de batismos de Porto Alegre (AHCMPA). Primeiro livro de casamentos de Porto Alegre (AHCMPA). Relações de moradores de Porto Alegre e Gravataí de 1785, os borradores de 1785 e 1797, Códice F1198A, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRS). Relação de moradores que têm campos e animais no Continente, Códice 104, v. 6, 7 e 8. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Registro de datas de terras passadas aos casais – Porto dos Casais. F1231, AHRS. NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (Org.). Projeto Resgate de Fontes Paroquiais: Porto Alegre e Viamão (século XVIII) – Batismos e Óbitos. Porto Alegre: UFRGS, 2000. [CD-ROM]. BIBLIOGRAFIA CASTRO, Hebe Matos de. Campesinato e escravidão. In: TEIXEIRA DA SILVA, F; CASTRO, H.; FRAGOSO, J. (Org.). Escritos sobre história e educação: homenagem à Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Mauad; FAPERJ, 2001. p. 331-350. CARDOSO, Fernando. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 [1ª ed. 1962]. CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Editora Globo, 1970.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 9 PROCESSOS DE CONSTITUIÇÃO E PATRIMONIALIZAÇÃO DE ACERVOS

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ARQUIVO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE OS PROCESSOS DE CONSTITUIÇÃO DE ACERVOS ............................................................................................................................................ 465 DE BUENOS AIRES PARA O RIO DE JANEIRO: A TRANSFERÊNCIA DA COLEÇÃO DE ANGELIS PARA A BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL ..................................................................................................... 471 GUARDAR PARA LEMBRAR: DO EPISTOLÁRIO AO ACERVO PATRIMONIALIZADO .............................. 479 LOS ARCHIVOS DE MEMORIA ENTRE LA DESARTICULACIÓN, EDICIÓN E INSTITUCIONALIZACIÓN SOBRE LO OCURRIDO .................................................................................................................................... 487 O PATRIMÔNIO CULTURAL NAS INSTITUIÇÕES MUSEOLÓGICAS ....................................................... 495 PATRIMONIALIZAÇÃO DOS DOCUMENTOS FAMILIARES: UM ESTUDO DE CASO ............................... 501 “QUE ACERVO É ESSE?” UMA REFLEXÃO SOBRE A NECESSIDADE DE HISTORICIZAÇÃO DOS ACERVOS DOCUMENTAIS E INSTITUIÇÕES ARQUIVÍSTICAS E DE MEMÓRIA HISTÓRICA .................................... 509 RECORTES DE JORNAL E ARQUIVO PESSOAL: UMA PROBLEMÁTICA DE ANÁLISE .............................. 515

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ARQUIVO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE OS PROCESSOS DE CONSTITUIÇÃO DE ACERVOS Camila Silva * O passado é um país estrangeiro, nos lembra Lowenthal, e a memória uma das formas através das quais o conhecemos (LOWENTHAL, 1998, p. 66). Por meio dela, o tempo transcorrido (irreversível) é recuperado pelo recurso da imaginação (PESAVENTO, 2006, p. 2). Por tanto, ela não deve ser meramente compreendida como um conjunto de experiências acumuladas em um “depósito”. Inventar, selecionar e esquecer, são algumas das ações operadas pelo presente na criação de representações sobre uma determinada realidade, ou, como diz Catroga, na “re-presentificação” do passado (CATROGA, 2001, p. 46). Enquanto diálogo de um determinado presente com o passado, a memória exerce papel fundamental na construção identitária de um grupo, na medida em que assegura a sua continuidade no tempo histórico. Atualizando o passado, o presente encontra as condições para conhecer (e reconhecer) a si próprio no tempo, de situar-se nele e de projetar-se no futuro. Dentre as diferentes perspectivas sobre a dinâmica da memória está a incontornável reflexão do sociólogo Maurice Halbwachs, que afirma: “não podemos pensar em nós mesmos, senão pelos outros” (HALBWACHS, 1990, p. 20). Este fundamento, cunhado na noção “memória coletiva”, prevê que nenhuma memória, mesmo a mais pessoal, pode ser estritamente individual. Nesta concepção, nossas lembranças permanecem coletivas “mesmo que não se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos”, pois “temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem” (HALBWACHS, 1990, p. 26). Interessa-nos destacar especialmente uma das expressões da memória coletiva, denominada pelo teórico como “memória histórica”. Segundo Halbwachs, certas lembranças impessoais nos são conhecidas pelo exterior, porque ouvimos dizer, lemos no jornal, ou assistimos no teatro e no cinema determinada representação do passado (HALBWACHS, 1990, p. 54-55). Nesta esteira, Pollack lembra que dentre os elementos que constituem a memória coletiva estão os acontecimentos “vividos por tabela”, compartilhados por aqueles que não participaram diretamente do ocorrido, mas que guardam um sentimento de pertença pelo grupo que detém determinada memória. Conforme o autor, São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada (POLLACK, 1992, p. 201). Relativa às lembranças de um acontecimento vivido direta ou indiretamente, a memória coletiva está, desta forma, atrelada ao sentimento de pertença que garante a coesão entre os membros de um dado grupo (familiar, político, regional, etc.). Neste processo, são fundamentais os suportes da memória, através dos quais o passado torna-se tangível ao presente. Sobre esta questão, Pomian lembra que a reconstrução do passado se funda em vestígios, objetos, imagens, que quando saem do circuito de atividades do presente tornam-se relíquias e conferem espessura ao tempo, formando “através de uma série de operações a memória coletiva e o documento/monumento que se torna o seu suporte” (POMIAN, 2000, p. 509-511). Dentre os artefatos mediadores entre passado e presente, estão os monumentos, as sepulturas, as obras de arte, a literatura, os museus, apenas para mencionar alguns espaços de recordação.

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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira. Bolsista CAPES/PROSUP.

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Nesta trilha, também os arquivos são ações e resultados de tradições das lembranças, constituindo elementos fundamentais na busca de identidades e inserção temporal, como inspira Mastrogregori (2008, p. 70). Cabe aqui retomarmos a fundamental reflexão de Marc Bloch, em Apologia da História: A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui ou ali, por efeito de não se sabe qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca, longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através das gerações (BLOCH, 2001, p. 83). Dentro desta perspectiva, o presente artigo procura traçar um itinerário teórico a partir das reflexões que se desenvolvem em uma investigação sobre o processo de formação de um acervo privado, composto por documentos referentes ao decênio farroupilha 1. Para tanto, abordaremos as relações entre arquivo, história e memória, buscando problematizar a dinâmica entre tais categorias e as suas influências no processo de constituição de conjuntos documentais. *** Com o desenvolvimento da técnica escrita, a memória, até então dependente dos “portadores vivos”, passa a ser guardada em “sistemas de registros que agem como armazenadores externos”, conforme Assmann (2011, p.367). Sobre esta questão, Choay observa que o valor da escrita no processo de rememoração deve-se à capacidade do alfabeto em cristalizar as possibilidades auditivas de organização e em fornecer uma forma classificatória eficaz (CHOAY, 2014, p. 84). Nas sociedades antigas os documentos utilizados para fins comerciais e administrativos constituíram um resíduo passível de ser coletado e preservado. Assim, é a partir da formação do arquivo como memória da economia e da administração que “surge o arquivo como testemunho do passado” (ASSMANN, 2011, p. 367). Uma das principais mudanças na estrutura dos arquivos está ligada à Revolução Francesa que, ao romper com o passado feudal, invalida os documentos que legitimavam a ordem anterior e passam a receber valor de fonte histórica (ASSMANN, 2011, p. 368). Em trabalho conjunto, Delacroix, Dosse e Garcia, lembram que se a história é filha da Revolução, como afirmou Febvre, também a invenção do arquivo (nos moldes que conhecemos) está vinculada à ruptura na consciência histórica. Segundo os autores, “a Revolução cria o arquivo” e os “documentos se tornam, pelo novo olhar lançado ao passado, elementos do patrimônio” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012, p. 15-18). Apesar da íntima relação entre arquivo, história e memória, o historiador e arquivista Terry Cook nos chama a atenção para a dificuldade em iluminar o conhecimento sobre a dimensão das funções arquivísticas. O autor atribuí a este quadro a redução do papel do arquivista à figura de um guardião imparcial e do documento à noção de evidência, compreendido como um resíduo “natural” do passado (COOK, 2012, p. 154). Neste sentido, Salomon sublinha que também “o discurso metodológico e o discurso teórico da história pressupõe os arquivos como dados, e evitam a todo custo uma reflexão sobre sua construção e sobre sua produção” (SALOMON, 2011, p. 14). No entanto, recentemente outras abordagens teóricas vem modificando a noção de arquivo e influenciando uma série de estudos que não se limitam ao conteúdo que os arquivos contém em suas fontes, percebendo-os, antes, como um lugar de práticas e construções sociais. Este movimento está associado principalmente às reflexões dos filósofos Michael Foucault e Jacques Derrida.

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A Tese de Doutorado investiga a trajetória de constituição e patrimonialização da Coleção Varela, um dos principais conjuntos documentais sobre a Revolução Farroupilha, atualmente custodiada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. A análise busca desnaturalizar o seu processo de acúmulo através do entendimento dos agentes (individuais e institucionais) que interviram na seleção e preservação dos seus documentos.

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Em Arqueologia do saber, Foucault sugere uma forma imaterial para o arquivo, onde este deixa de ser visto unicamente como uma instituição, e passa a ser compreendido como um sistema que estabelece e legitima enunciados configuradores do real. Nesta definição, o arquivo passa a ser compreendido como “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”, chamando a atenção para a estrutura de poder nele investida (FOUCAULT, 2000, p. 149). Para Assmann, ao desconsiderar a materialidade do arquivo, a interpretação foucaultiana acaba por excluir o aspecto da sua preservação (2009, p. 370-371). Marcando sua acepção, Foucault introduz o uso da palavra “arquivo” no singular (archive), para um termo até então escrito, de acordo com o idioma francês, no plural (archives). Segundo Heymann (2012, p. 24) e Nedel (2013, p. 6), esta expressão foi posteriormente adotada por outros intelectuais que refletiram sobre a problemática do arquivo, como Arlette Farge, Jacques Derrida, Michel de Certeau e Paul Ricoeur. Na mesma esteira, Jacques Derrida discute a ideia de originalidade e autenticidade tradicionalmente vinculadas ao arquivo. Na obra Mal d’archive, o filósofo retoma o sentido etimológico da palavra arquivo, que em grego significa arkheîon, isto é, aquilo que é antigo, arcaico; ou ainda, o lugar de origem, a casa ou endereço dos arcontes, os primeiros guardiões (DERRIDA, 2011, p. 7). Assim, Derrida relaciona o sentido de arquivo ao começo das instituições de controle, ao lugar onde se exerce a autoridade que dispõe o arquivo. De acordo com o teórico, no processo de arquivamento o ato de guardar, selecionar, ordenar e classificar geram sentidos e ordenam o passado. Para Derrida, tais gestos caracterizam o arquivo como um “lugar de uma grande violência” e esclarece que: Não há arquivo que não implique em poder de destruição, de seleção ou de exclusão. A conservação não ocorre sem uma exclusão; é um poder eminentemente político que se exerce como poder de legitimação. [...] A partir do momento em que há arquivamento, está não somente em jogo o passado, mas o futuro. O ato de arquivamento, que deve conservar, é também um ato de amnésia. A amnésia está em curso na memória guardada, no ato que deposita. Na guarda arquivística, há tanto de esquecimento (ativo ou não) como de memória (DERRIDA apud HEYMANN, 2012, p. 25). Guardadas as particularidades entre as concepções expostas, observamos que ambas convergem para uma importante questão, relacionada as interfaces entre arquivo e poder na construção de memórias e identidades sociais. Seja por sua dimensão imaterial, como sugere Foucault ao destacar o papel do arquivo na programação das afirmações culturais, seja pelas ações que formam a sua materialidade apontadas por Derrida. Citando novamente o filósofo, “não há poder político sem o controle sobre os arquivos, sem o controle sobre a memória (DERRIDA, 2001, p. 16). Com isso, nos reportamos às proposições de Anheim e Poncet sobre uma sociologia histórica dos arquivos. O arquivista e o historiador, respectivamente, defendem uma necessária diferenciação entre arquivos e documentos e afirmam: [...] as fontes arquivadas disponíveis para o historiador foram fabricadas em dois tempos: o primeiro enquanto documento, o segundo como arquivo, isto é, como documentos preservados, classificados e inventariados 2 (ANHEIM & PONCET, 2004, p. 3). Deste modo, os autores chamam a atenção ao que denominam como “mise en archives”, etapa da construção simbólica e material do arquivo, operação que “altera as lógicas documentais para criar

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“Les sources archivées dont dispose l’historien ont été fabriquées en deux temps: une première fois en tant que documents, une seconde en tant qu’archives, c’est-à-dire des documents conservés, classés et inventoriés” (tradução nossa).

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outras, afetando cada documento, ordenando-os em séries, fundos e lugares - elementos que se tornam indissociáveis dos arquivos” 3 (ANHEIM & PONCET, 2004, p. 3). Dentro desta perspectiva, a Arquivologia passa a ser refletida como uma disciplina histórica e não somente como um conjunto de técnicas de conservação, ou uma ferramenta auxiliar da História. Os autores sugerem, portanto, uma abordagem interdisciplinar, na qual a Arquivística, entendida como uma “ciência que fabrica arquivos” pode fornecer ao historiador os meios para melhor compreender como ele mesmo “fabrica a história” (ANHEIM & PONCET, 2004, p. 3). Na crítica sócio-histórica indicada por Anheim e Poncet encontramos, então, elementos para que o arquivo possa ser compreendido para além da sua dimensão textual, voltando nossa atenção para a sua materialidade. Dialogando com esta concepção, Heymann ressalta que, Nessa nova perspectiva os arquivos são tomados como construtos sociais capazes de revelar valores e padrões de comportamento; são analisados como artefatos produzidos ao longo de uma série de investimentos de naturezas distintas, resultantes da ação da entidade produtora do arquivo, mas também de seus organizadores e custodiadores, os quais, muito antes do trabalho seletivo empreendido pelo historiador, realizam – em diferentes tempos e circunstâncias – suas próprias seleções, classificações e monumentalizações (HEYMANN, 2012, p. 38). Nessa direção, retomamos às indagações de Cook: Por que temos os documentos que temos em fundos de arquivos? Por que os descrevemos da forma que o fazemos? Por que adotamos uma mitologia profissional de guarda passiva ao invés da mediação ativa com o passado (COOK, 2012, p. 144). Ao questionar os principais parâmetros da prática arquivística, o autor reclama aos arquivistas um novo olhar sobre o seu objeto de trabalho, mediante o qual a tradicional equivalência entre arquivo e produto, seja substituída pela noção de processo. Assim como em mise en archive, a ideia de processo preocupa-se em iluminar as ações que precedem a formação dos arquivos, fazendo emergir questões pertinentes aos estudos que privilegiam as trajetórias de constituição destes artefatos, tais como a interrelação de grupos e interesses na construção do arquivo, os critérios da dinâmica da seleção e do arquivamento, e as vinculações entre arquivo e memória. Assim como a memória pressupõe o esquecimento, o arquivo, enquanto um espaço de recordação, envolve práticas de seleção e extinção. Segundo Assmann, os arquivos podem cumprir uma memória de armazenamento ou uma memória funcional - se não as duas. A última estaria associada aos arquivos de regimes repressivos, que exercem um controle central sobre a memória social e cultural. A autora alerta, porém, que quando há perda de valor funcional, se impõe a necessidade de uma interpretação crítica da documentação para que a mesma não se reduza a um repositório material. Já a memória de armazenamento está intimamente ligada com uma das principais funções do arquivo: a seleção. Guardar implica selecionar e, inclusive, descartar. No entanto, Assmann adverte: “o que é lixo para uma geração pode ser informação preciosa para outra”, e nisto reside a importante tarefa dos arquivistas para a preservação da “herança cultural” (ASSMANN, 2011, p. 369-370). Em um primeiro plano, a “não-memorização” 4 está associada a própria impossibilidade de tudo guardar. No entanto, seria um equívoco supor que a definição do que deve ou não ser inserido no arquivo, e a classificação daqueles que devem ser considerados permanentes e patrimônios públicos são decisões 3

“La mise en archives des documents est une opération à part entière, qui bouleverse des logiques documentaires pour en créer d’autres, qui affecte à chaque document des coordonnées dans des séries, des fonds, des lieux – autant d’éléments qui sont ensuite indissociables du document” (tradução nossa). 4 Nos reportamos a expressão utilizada por Colombo ao tratar do processo de seleção na continuidade entre memória humana e arquivos eletrônicos. Ver: COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 87.

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arbitrárias. Contribuição fundamental para este debate é a noção de “legado”, proposta por Heymann, a partir da qual a historiadora destaca a dimensão social presente no processo de “transformação de registros em fontes históricas” (HEYMANN, 2005, p.1). A autora chama a atenção para os investimentos sociais presentes na atualização de memórias, alertando para “as disputas entre diferentes grupos e diferentes projetos em torno de uma mesma memória” (HEYMANN, 2005, p. 3). Estas reflexões permitem inferir que a memória (consubstanciada no arquivo) não apenas atualiza o passado, como também projeta sua continuidade, através da guarda, preservação, disponibilização, publicação, dentre outras ações que podem ser empreendidas por indivíduos ou instituições. Os arquivos, como vimos, não são desinteressadamente constituídos e organizados. Ao contrário, eles por si só possuem uma história. Se o ofício do historiador se baseia na observação dos testemunhos do passado, muitas vezes reunidos em arquivos, é primordial que os mesmos sejam tomados como vestígios ou rastros do passado, e não somente como um depósito de documentos. A partir deste breve roteiro teórico, notamos que vem ganhando espaço as abordagens que privilegiam a história dos próprios arquivos, interessadas nas dimensões textuais e simbólicas e nos efeitos que deles decorrem em outras dimensões da vida social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANHEIM, Étienne; PONCET, Olivier. Fabrique des archives, fabrique de l’histoire. Revue de Synthèse. Paris, tome 125, 5ème série: 1-14, 2004. ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011. BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CATROGA, Fernando. Memória e História. In.: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001. CHOAY, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2014. COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991. COOK, Terry. Entrevista. Revista de Ciência da Informação e Documentação, Ribeirão Preto, v.3, n.2: p. 142-156, jul./dez. 2012. DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick. Correntes históricas na França: séculos XIX e XX. Traduzido por Roberto Ferreira Leal. Rio de Janeiro: Editora FGV; São Paulo: Editora Unesp, 2012. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe B. Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HEYMANN, Luciana Quillet. De “arquivo pessoal” a “patrimônio nacional”: reflexões acerca da produção de “legados”. I Seminário PRONEX Direitos e Cidadania.Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2005. Disponível em: http://cpedoc.fgv.com.br/producao_intelectual/arq/1612.pdf. Acesso em: 08/04/2015. ____________________ . O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012. LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, n. 17: 63-148, 1998. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/11110/8154. Acesso em: 07/07/2015.

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DE BUENOS AIRES PARA O RIO DE JANEIRO: A TRANSFERÊNCIA DA COLEÇÃO DE ANGELIS PARA A BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL Deise Cristina Schell 1 INTRODUÇÃO Em 1852, o segundo governo de Juan Manuel de Rosas chegava ao final e o italiano Pedro de Angelis estava fora da vida pública após anos de serviços prestados ao general como periodista oficial de seu regime 2. O erudito editava, então, um catálogo de livros impressos, obras manuscritas e uma série de documentos e mapas. Intitulada “Colección de obras impresas y documentos que tratan principalmente del Río de la Plata, formada por Pedro de Angelis” (1852, sem indicação de imprensa), o material era um índice das obras impressas e dos documentos manuscritos que o erudito italiano possuía, muitos dos quais havia coletado ao longo de sua estadia em terras americanas. O catálogo então organizado por Pedro de Angelis demonstrava a importância e a extensão da biblioteca e do acervo que o erudito mantinha na casa onde vivia com sua esposa, a francesa Melanie Dayet, em Buenos Aires: estão relacionadas, ali, 1.559 obras impressas, 195 publicações periódicas, 1.241 manuscritos e grupos de manuscritos, 51 planos e mapas, em um total de 3.046 registros 3. Segundo Graciela Batticuore, à época em que De Angelis atuou no Prata, havia um verdadeiro afã entre os protagonistas culturais da região, entre eles o próprio erudito italiano e homens como Florencio Varela, Santiago Viola e José Rivera Indarte, para que fossem “reputados como dueños o propietarios de libros y bibliotecas bien munidas” (2007, p. 78). Ter uma biblioteca em casa, além de permitir ao seu dono o poder de estudar, consultar e contatar os livros a seu próprio tempo e em sua privacidade (CHARTIER, 2009, p. 137-138), ainda concederia prestígio e proporcionaria um certo “exhibicionismo libresco” ao proprietário: “la biblioteca condensa el ideal de una subjetividad que se precia de ser ilustrada” (BATTICUORE, 2007, p. 79). Josefa Sabor afirma que a biblioteca de Pedro de Angelis era “sueño y orgullo” (1995, p. 159) de seu proprietário. Ela guardava, afinal, obras únicas, como o primeiro livro publicado no Rio da Prata, De la diferencia entre lo temporal y lo eterno, do Padre Nieremberg (BATTICUORE, 2007, p. 76) e chegou a ser considerada, posteriormente, por Guillermo Furlong a mais importante da região em meados do XIX, sendo, segundo ele, muito superior às que possuíram outros estudiosos argentinos, como Manuel Ricardo Trelles, Juan Maria Gutierrez ou Bartolomé Mitre (DÍAZ MOLANO, 1968, p. 176). É possível que De Angelis não só se orgulhava do patrimônio que acumulara, como tinha consciência do poder que construíra em torno de si com sua coleção de escritos. Desta forma, ele detinha o conhecimento e a informação necessários aos governantes dos Estados Nacionais que, então, emergiam na América, o que lhe possibilitou publicar fontes históricas e escrever a história da Argentina em nome do governo de Juan Manuel de Rosas 4, bem como sobreviver em tempos de dificuldades 1

Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES. 2 Chegado em Buenos Aires em 1827 durante o governo de Bernardino Rivadavia, Pedro de Angelis foi o principal periodista do regime de Juan Manuel de Rosas, e também arrendatário da Imprenta del Estado, o que o fez um dos mais qualificados tipógrafos e impressores do Prata. Incentivado financeiramente e com a prensa pública em suas mãos, foi no longo período em que a Província de Buenos Aires foi comandada por Rosas (1829-1832) e (18351852) que De Angelis realizou a maior parte do seu trabalho. Assim, enquanto editava e redigia os periódicos La Gaceta Mercantil, El Lucero, Le Flaneur, El monitor, Los Muchachos, El Restaurador de las Leyes e o mais importante deles, o Archivo Americano (no qual se posicionava a favor e mesmo defendia a política de Rosas em nome do governo), aventurava-se na escrita da história, influenciado pela prática colecionista que mantinha com paixão. 3 O catálogo pode ser visualizado na Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Disponível em: . Acesso em: 05/09/2014. 4 Um exemplo é a edição e a publicação, de 1835 a 1837, da Colección de obras y documentos relativos a la historia antigua y moderna de las provincias del Río de la Plata. A obra é uma coletânea de documentos ao estilo

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econômicas, através da venda de seus livros e documentos ao Império Brasileiro. A transferência do acervo de Pedro de Angelis de sua casa em Buenos Aires para a Biblioteca Nacional do Brasil localizada no Rio de Janeiro é o tema central de nossa comunicação. Antes, no entanto, devemos pensar como Pedro de Angelis conseguiu se apropriar de tantas obras impressas e tantos documentos manuscritos que tratavam, em sua maioria, da história do espaço platino. PEDRO DE ANGELIS E O COMÉRCIO DA HISTÓRIA 5 Não há como saber quando De Angelis iniciou a coletar e a guardar escritos para si. Talvez esse tenha sido um interesse que o acompanhou desde o Velho Mundo; é possível mesmo que tenha trazido ao Prata vários exemplares que já detinha na Europa. Nas sessões “Poligrafía, Filosofía e Bellas Artes e “Derecho Público y Economía Política” de seu catálogo há diversos títulos que não são rio-platenses e que tem a data de publicação anterior ao ano de sua chegada na América, como dicionários, enciclopédias, tratados de filosofia e de direito e obras que tratam a história e a arte europeias (ANGELIS, 1852a, p. 119-130; SABOR, 1995, p. 161), o que pode indicar o traslado de alguns de seus livros para esse lado do Atlântico. Certo é que desde que chegou em Buenos Aires, em 1827, Pedro de Angelis iniciou um esforçado trabalho de busca por obras e papeis que pudessem fazer parte de sua coleção, passando a interessar-se especialmente pelos materiais que possibilitassem o estudo da América e da região do Rio da Prata. Por esta razão, a maior parte de sua biblioteca era dedicada à história platina. Mas como De Angelis teria conseguido reunir em suas mãos um número tão grande de livros e fontes históricas sobre o passado da região que o recebeu? A história da formação da coleção americana deste erudito é envolta em polêmica. Muitos de seus contemporâneos acusaram-no de ter roubado as obras e o conjunto de documentos que possuía dos arquivos e bibliotecas públicas durante o governo de Juan Manuel de Rosas, do qual, como já afirmamos, De Angelis havia sido funcionário; daí os epítetos de “bribón”, “mal italiano” e “ladrón” que as plumas de Florencio Varela e José Rivera Indarte, por exemplo, atribuíram-lhe (DÍAZ MOLANO, 1968, p. 303). Com esse último, Pedro de Angelis chegou a realizar uma discussão pública a respeito da origem de sua biblioteca. Ao passo que Rivera Indarte imputava ao italiano a acusação de roubo no jornal El Nacional de Montevideo em julho de 1843 6, De Angelis se defendia e devolvia a mesma denúncia ao membro da Geração de 1837 em uma série de escritos publicados de julho a setembro do mesmo ano nos periódicos buenairenses La Gaceta Mercantil e Archivo Americano y Espíritu de la Prensa del Mundo. Não é possível, com as fontes que dispomos, afirmar ou refutar a hipótese de que De Angelis furtou documentos. Temos a sua palavra contra a de seus denunciantes. O que podemos observar através dos textos do italiano é uma eloquente tentativa de demonstrar os gastos e investimentos pessoais que da Monumenta Germanie Historia, publicada na Alemanha em 1826, da Colección de Documentos para la Historia de México, lançada em 1858 no México por Joaquin García Icazbalceta, e tantas outras compilações monumentais editadas no decorrer do século XIX. Nela, Pedro de Angelis selecionava aquilo que faria parte e o que seria excluído do corpus histórico nacional (WASSERMAN, 2008), “olvidando” certos documentos em detrimento de outros, “o no haciéndolo” (BOUZA, 1998, p. 49). A Colección de obras y documentos foi impressa por De Angelis na Imprenta del Estado, sob os auspícios e com o patrocínio de Rosas; ao patrocínio e apoio, o erudito retribuiu no Primeiro Tomo da obra com uma homenagem – um retrato do governante com uniforme e os dizeres “General Rosas” – e uma reverente dedicatória. 5 Entre abril e junho de 2013, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro promoveu uma exposição chamada “Pedro de Angelis e o comércio da história”. Nela, estavam expostos os mais raros e expressivos manuscritos e mapas da Coleção De Angelis. Sobre o nome da exposição não havia grande explicação, a não ser alguns parágrafos no material de divulgação e nos banners que iniciavam a visitação. Eles diziam que aqueles documentos haviam sido adquiridos pelo Império Brasileiro do italiano Pedro de Angelis, que desde a metade do século XIX eram propriedade da nossa Biblioteca Nacional e que, hoje, estavam custodiados no seu setor de Manuscritos e Cartografia. Tomo emprestado o titulo da exposição para nomear a seção desta comunicação na qual busco compreender as formas de apropriação da coleção de documentos por Pedro de Angelis e narrar a história de sua venda ao Brasil. 6 O artigo de Rivera Indarte foi publicado ao longo de muitos números do El Nacional e foi intitulado “Acusaciones y calumnias del degollador Rosas contra extranjeros, publicadas en el British Packet y La Gaceta Mercantil”. As partes dedicadas especificamente às criticas à Pedro de Angelis estão nos números 1363 (1° de julho de 1843), 1364 (3 de julho de 1843) e 1365 (4 de julho de 1843).

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realizou na compra de sua biblioteca. No número 5.942 de La Gaceta Mercantil, editada em 19 de julho de 1843, Pedro de Angelis afirma que: Hay muchos pocos en Buenos Aires que ignoran que yo he gastado sumas ingentes para formar mis colecciones. Tengo cuentas y recibos de mis libreros de Londres y París, que importan lo que me hubiera alcanzado a poblar una estancia. Lo que tengo he adquirido con mi dinero, sin pararme en gastos. Lo que digo de los libros y papeles, comprende también a mis muebles. 7 Já no Archivo Americano de número 7, publicado em 30 de setembro de 1843, De Angelis, que era editor do periódico, ironiza as denúncias de Rivera Indarte utilizando passagens de sua história de vida e, mais uma vez, defende a legitimidade da obtenção da coleção que guardava em casa (não só de documentos e obras, mas de medalhas antigas 8): El Editor del Archivo fue ayo de los hijos del Rey Murat 9, ergo robó las alhajas de la Reina: tiene papeles, ergo los ha robado a los Archivos públicos: ¡tiene medallas, ergo las ha sustraído del Museo! Por este estilo podría declarar mal habido todo cuanto existe en nuestra casa en que, gracias a Dios, nada ha entrado que no haya sido adquirido legítimamente. Sobre documentos hemos dicho lo suficiente para manifestar su origen […]. (ANGELIS, [1843] 2009, p. 103) No legajo “Archivo de Pedro de Angelis” do Archivo General de la Nación de Buenos Aires, encontramos uma série de correspondências destinadas ao erudito italiano e algumas escritas por ele, nos quais se evidenciam esse “comércio” de obras e de documentos históricos. Há, por exemplo, um conjunto de cinco cartas endeçadas à De Angelis por Casimira Ximénez de Cabrer entre os anos de 1843 e 1844. Casimira era a viúva de José María Cabrer, um engenheiro militar, geógrafo e demarcador dos limites entre Portugal e a Espanha durante o Vice-Reinado do Rio da Prata, falecido em Buenos Aires em 1836. Na missiva datada em 20 de julho de 1843, ou seja, um dia depois da publicação do citado artigo de Pedro de Angelis em La Gaceta Mercantil, Casimira de Cabrer pede que De Angelis intervenha para que ela receba a parte que lhe cabe nas negociações de alguns documentos que pertenciam ao seu marido e que o erudito havia comprado de um intermediador, a quem a viúva se refere como “Sr. Fischer” 10. A partir daí, aparentemente, De Angelis passa a negociar documentos com a própria Casimira de Cabrer, provavelmente motivada pelas dificuldades e enfermidades pelas quais relata estar passando na carta já citada 11. Desta forma, a viúva avisa em missiva de 22 de julho de 1843 estar enviando ao italiano mapas confeccionados por Cabrer 12 e apenas quatro dias depois envia nova correspondência à De Angelis agradecendo-lhe o envio de 600 pesos (“el precio que V. ha puesto es el más justo”, enfatiza ela) referentes ao pagamento de um caderno pertencente ao seu esposo 13. Esses são os vestígios de somente uma das transações que Pedro de Angelis realizou com as famílias de sujeitos que participaram de empresas de demarcação de limites nos últimos anos do domínio espanhol, como a de Cabrer, e também a de Cerviño e a de Zizur (PODGORNY, 2011, p. 35; CRESPO, 2008, p. 301). De Angelis articulava uma rede de sociabilidade em torno de sua coleção, comprando, trocando e ganhando manuscritos, obras, saberes e práticas, através de correspondências com outros intelectuais e eruditos. Segundo Sabor (1995), Crespo (2008) e Podgorny (2011), as obras e os manuscritos eram oriundas não somente das negociação das heranças de funcionários da administração 7

La Gaceta Mercantil, Buenos Aires, n. 5.942, 19 de julio de 1843. Segundo Buonocore, Pedro de Angelis era um “apasionado coleccionista de papeles, libros, cuadros, reliquias históricas, medallas, monedas, grabados, muebles” (1959, p. 287). 9 Na Itália, o erudito havia sido professor de italiano e geografia dos filhos do rei Joaquín Murat. 10 Carta de Casimira Ximénez de Cabrer a Pedro de Angelis, 20 de Julio de 1842. Archivo de Pedro de Angelis. Archivo General de la Nación, Buenos Aires. Sala VII. 11 Idem. 12 Carta de Casimira Ximénez de Cabrer a Pedro de Angelis, 22 de Julio de 1842. Archivo de Pedro de Angelis. Archivo General de la Nación, Buenos Aires. Sala VII. 13 Carta de Casimira Ximénez de Cabrer a Pedro de Angelis, 26 de Julio de 1842. Archivo de Pedro de Angelis. Archivo General de la Nación, Buenos Aires. Sala VII. 8

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colonial, mas também das compras realizadas através de livreiros — “el librero John Russel Smith era su mayor proveedor” (CRESPO, 2008, p. 303) — e de exaustivas pesquisas realizada por Angelis em outras coleções e bibliotecas pessoais, como as de José Joaquín de Araújo, do padre Saturnino Segurola, de Tomás Manuel de Anchorena, de Baldomero García, de Luís de la Cruz. Além disso, Pedro de Angelis realizava buscas em depósitos e arquivos públicos, como a Biblioteca Pública, os arquivos do Fuerte de Buenos Aires, o Archivo General de la Provincia de Buenos Aires (os únicos e caóticos existentes em Buenos Aires naquele período), e o Departamento Topográfico. Sem dúvidas, a proximidade com o governo de Juan Manuel de Rosas facilitou o acesso de Pedro de Angelis às instituições de guarda de obras impressas e de documentos administrativos. Foi isso, aliás, o que levantou mais suspeitas em relação à possível apropriação de papeis públicos realizada pelo italiano. Em 1840, De Angelis foi nomeado por Juan Manuel de Rosas segundo arquivista do Archivo General de la Província de Buenos Aires, onde trabalhou até 1852 (SABOR, 1995, p. 172). Ademais disso, diversas vezes o colecionador obteve a permissão do governante para retirar os materiais que desejasse dos órgãos do governo de Buenos Aires, ainda que com prazo definido para devolução dos itens. Segundo Sabor, enquanto realizava pesquisa para escrever a “Memória histórica sobre los derechos de soberania y domínio de la Confederación Argentina a la parte austral del Continente Americano”, obra encomendada por Juan Manuel de Rosas para sustentar “la defensa y seguridad de los derechos de la República” (DE ANGELIS, 1852b, p. 243) argentina à posse da região austral que fazia limite com o Chile e que foi publicada em 1852, Pedro de Angelis solicitou diversas vezes ao governo que autorizasse seu acesso aos documentos do Departamento Topográfico (SABOR, 1995, p. 172). Uma troca de cartas ocorrida entre o erudito e Rosas quatro anos antes da edição da “Memoria Historica” demonstra um destes pedidos e sua respectiva aprovação, agora sobre a utilização de uma obra guardada na Biblioteca Pública de Buenos Aires. Em 23 de janeiro, De Angelis relatava ao seu superior que estava ocupado de “terminar la memoria sobre el Estrecho de Magallanes” e que para este trabalho precisaria “lo mas pronto que sea disponible una obra que existe en la Biblioteca Publica, y cuyo título es ‘Historia de Chile del Dr. Vicente Carvallo y Goyeneche” 14 . Juan Manuel de Rosas escreveu em resposta, em 15 de fevereiro do mesmo ano, que estava remetendo uma “orden para que el encargado de la Biblioteca entregue à V. la obra enunciada”. Antes de terminar a correspondência, o governador reafirmou o empréstimo de obras à De Angelis: “Cualquiera obra, ú obras, que V. necesitase, diciendome V. las que fueren, pondré iguales ordenes” 15 É importante ressaltar que nem todos os manuscritos que constavam na coleção de Pedro de Angelis e que aparecem em seu catálogo se tratam dos documentos originais. Se não há como confirmar se o erudito devolvia os materiais que lhe eram emprestados, podemos verificar que era uma prática sua procurar e consultar as peças existentes nas outras bibliotecas pessoais e nas instituições públicas de guarda de documentos, e encomendar a realização de cópias manuscritas das fontes históricas que lhe interessavam. No texto publicado por De Angelis em 1843 no periódico La Gaceta Mercantil, já citado anteriormente, o colecionador informa que “por muchos años he tenido dos y tres amanuenses para sacar copias de los documentos que ahora forman parte de mi Colección; y esto no lo hacen los que roban” 16. Em 1835 o erudito já havia feito referência à utilização do trabalho dos copistas em sua tarefa de coletar de documentos. Em uma carta enviou ao seu amigo Florentino Castellanos, De Angelis comentava as atividades que realizava e as dificuldades que enfrentava para editar sua principal obra, a Colección de obras y documentos relativos a la historia antigua y moderna de las provincias del Río de la Plata. Dizia o italiano: La obra que he emprendido [a “Colección de obras y documentos] me tiene ocupado incesantemente, porque á mas de mi intervencion como editor, o impresor, tengo que decir algo por mi cuenta, y hacer mis recherches, para 14

Apuntaciones cambiadas entre Don Pedro de Angelis y el gobernador Don Juan Manuel de Rosas, relativas a la memória sobre el Estrecho de Magallanes, y préstamo de libros de la Biblioteca Pública. In: BECÚ, Teodoro; TORRE REVELLO, José. La Colección de Documentos de Pedro de Angelis y el Diario de Diego de Alvear. Buenos Aires: Talleres S.A. Casa Jacobo Peuser Ltda., 1941, p. p. XLVII. 15 Idem. 16 La Gaceta Mercantil, Buenos Aires, n. 5.942, 19 de julio de 1843.

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acertar con lo que tengo que decir. Agregue Ud. la escasez de obras que consultar de hombres versados en esta clase de disquisiciones; y por fin la brega que tengo con los amanuenses, los impressores, los lenguaraces, los vocabularios imperfectísimos de idiomas indios, y decida Ud. si sobran motivos para enloquecer á un viviente. 17 [grifo nosso]. O trabalho de classificação, ordenação e análise de documentos e obras sob a forma de coleções ou de catálogos realizado por Pedro de Angelis teve para o erudito uma utilidade bastante pessoal. De Angelis sabia que “colecciones sin catálogos se volvían inservibles, frágiles y poco valiosas o, más precisamente, valían como mero lote de papel” (PODGORNY, 2011, p. 38) O catálogo de obras de 1852 de que falamos logo no início do artigo, intitulado “Colección de obras impresas y documentos que tratan principalmente del Río de la Plata”, formada por Pedro de Angelis”, foi redigido e editado por ele, provavelmente, para facilitar a venda de sua coleção e de sua biblioteca, em um momento em que não tinha mais ofício em Buenos Aires após a queda de Juan Manuel de Rosas. A venda ocorreu em fins de 1853 e o destino final do acervo foi o Rio de Janeiro. Esse foi o desfecho de um longo período de negociações iniciado em 1837, quando o napolitano contatou pela primeira vez o diplomata russo no Brasil, Henri Jules Walleinstein com o intuito de dar início às suas relações com a elite ilustrada do lado de cá do Rio da Prata. Na correspondência trocada entre De Angelis e Walleinstein, pode-se verificar que Pedro de Angelis intentava negociar há muito tempo a sua biblioteca, além oferecer os seus trabalhos como pesquisador ao Império Brasileiro 18. A relação era intermediada pelo diplomata, que, àquela época, somente conseguira incluir o erudito italiano à lista de sócios honorários do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. As negociações foram reiniciadas em fins de 1852 ou já em 1853, conforme indicam uma série de correspondências trocadas entre o desembargador Rodrigo Pontes, que então vivia em Buenos Aires, ao ministro Paulino de Souza 19. Em 8 de abril de 1853, Pontes escrevia a Souza informando: Fiz constar a Dom Pedro de Angelis, como creio já haver participado a V. Exa., quanto V. Exa. me tinha escrito relativamente ao negócio da Biblioteca; e passo a transcrever o que a tal respeito me disse êle em carta de 2 do corrente, que me foi entregue óntem. Falando daquele negócio disse pois: “... je dois vous prier de faire tout ce qui sera en votre pouvoir, pour engager S. Ex. Mr. le Ministre Paulino de m’accorder as protection. Je place em lui toutes mes esperances: sans cette resource il me serait imposoble de me deraciner de ce mauvais terrain, où je ne fais que m’abroutit. Je lui em aurais une reconnaissance eternelle”. (apud: SOARES DE SOUSA, 1946, pp. 60-61) Esta carta citada por Rodrigo Pontes foi respondida pelo diplomata no dia 3 de maio do mesmo ano. Nela, ele afirmava: “Tenho presentes duas cartas suas. De uma copiei eu algumas expressões que transmito ao Sr. Paulino, e a outra, que foi a última, remeti ao mesmo Senhor, no próprio original: Em ambas estas ocasiões advoguei a causa de V. Ex. com todo o interesse e amizade” (apud: SOARES DE SOUSA, 1946, p. 61). Sobre isto, em 4 de julho, Pedro de Angelis escrevia a Duarte da Ponte Ribeiro: Dignou-se o sr. Ministro Paulino de me oferecer a sua valiosa proteção... As perdas que sofri nêstes últimos tempos me obrigaram a desfazer-me de minha biblioteca, e o que tem mitigado um pouco a minha dor, foi poder coloca-la

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Carta de don Pedro de Angelis, a Don Floro Castellanos, sobre sus tareas editoriales, la publicación de documentos históricos y envio de algunos impresos. In BECÚ, Teodoro; TORRE REVELLO, José. La Colección de Documentos de Pedro de Angelis y el Diario de Diego de Alvear. Buenos Aires: Talleres S.A. Casa Jacobo Peuser Ltda., 1941, pp. XLIV-XLV. 18 A correspondência entre De Angelis e Walleinstein se encontra na Biblioteca Nacional e foi estudada por Jaime Cortesão na introdução do primeiro tomo da Coleção de Angelis (CORTESÃO, 1951). 19 As correspondências foram redigidas por José Antônio Soares de Sousa em um artigo intitulado "Como se adquiriu a Livraria de Pedro de Angelis" publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasiliero em 1946.

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em mãos do ilustrado Governo Brasileiro. (apud: SOARES DE SOUSA, 1946, p. 61) Em dezembro de 1853, De Angelis veio ao Brasil para fechar a negociação. Neste momento, Paulino de Souza já havia deixado o Ministério, e a finalização da compra da coleção de Pedro de Angelis foi conduzida pelo ministro Limpo de Abreu. Uma sessão na sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na qual Angelis fora lisonjeiramente recebido pelo imperador D. Pedro II, pela imperatriz D. Tereza e pelos ministros da Corte, selava os trâmites 20. O Império Brasileiro adquiria então, ao preço de oito mil pesos (SABOR, 1995, p. 133), 1.785 obras impressas e 1.291 documentos manuscritos e mapas, planos e plantas (CORTESÃO, 1951, p. 45). A maior parte da coleção foi acondicionada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde até hoje é um dos acervos mais estimados da instituição, sob o título de “Coleção Pedro de Angelis”. Certos documentos foram destinados ao Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, evidenciando a importância que aqueles papéis tinham para os interesses políticos do Império e para a demarcação das fronteiras do Estado Nacional, enquanto que algumas obras duplicadas foram encaminhadas ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em um relatório redigido em 1854, o Secretário do IHGB Joaquim Manoel de Macedo comemorava a chegada dos exemplares: [...] assignalamos o notável favor, com que o governo de sua magestade honrou o nosso instituto mandando engrossar a sua bibliotheca com diversas obras que, provenientes de uma abundante livraria ultimamente comprada, sobravam à biblioteca nacional: recebemos pois, graças a essa patriótica doação, não menos de 112 volumes. Entre as obras assim obsequiosamente concedidas ao instituto figuram algumas bem raras edições dos séculos XVI e XVII, cujos exemplares não será fácil encontrar ainda em algumas bibliothecas de apaixonados biblióphilos. (MACEDO, 1854, p. 22) Festejados no Rio de Janeiro, a concretização da venda e o deslocamento da coleção de Pedro de Angelis ao território brasileiro foram acontecimentos lamentados em Buenos Aires e em Montevidéu. Afinal, até então tratava-se de um dos maiores conjuntos de documentos, manuscritos e obras impressas sobre a história colonial e pós-independentista do Rio da Prata sob a guarda de um colecionista daquele território. Em carta escrita a Paulino de Souza em 31 de dezembro de 1853, o historiador uruguaio e colecionador de documentos Andrés de Lamas afirmava: Meu querido Sr. Paulino. Já sabe que me enfermava a leitura do Catálogo dos documentos que vendia o Sr. Angelis. É uma perda gravíssima para o Rio da Prata, a que faz com esta coleção, e uma prova de suas profundas desgraças. As sensações que nos faz a vista dessa coleção, aos que, como eu, passaram os seus melhores anos, buscando, inùltimente, alguns dos seus documentos ou notícias que nela se encontram, não podem ser mais amargas. V. Exa. teve a bondade de me dizer que não seria impossível obter a leitura de alguns dêsses documentos. Seja, pois, V. Exa., o meu negociador. Desejaria que se me facilitassem agora – mediante competente recibo e obrigação de devolução – os que assignalo na adjunta nota.” (apud: SOARES DE SOUSA, 1946, p. 61). Em Buenos Aires, propagou-se que a venda da coleção havia sido uma deslealdade de De Angelis à pátria que o adotara. Os documentos históricos, afinal, eram importantes não só para a escrita da história de cada um dos países que, então, se formavam, mas para a delimitação dos territórios das nações sul-americanas, tão disputados no decorrer do século XIX. Quase cem anos depois, Jaime Cortesão chegou a afirmar que a obtenção da biblioteca de Angelis pelo Império Brasileiro foi “um magnífico despojo da batalha de Caseros” (1951, p. 57). Para Josefa Sabor o fato é “lamentable [...] porque se trataba sin duda de la más importante colección de obras y documentos reunida hasta el 20

Em uma carta do dia 21 de dezembro de 1854 enviada a seu amigo Florentino Castellanos, Pedro de Angelis relatou a recepção de ilustres que havia recebido no Rio de Janeiro: “La reunión era bastante numerosa y escogida, No creo que había muchos sabios pero abundaban los caballeros. Caso no había casaca que no estuviera adornada con cruces y medallas” (apud SABOR, 1995, p. 133).

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momento en estas latitudes y que, con sus característica particulares, jamás será repetida” e “porque la colección de documentos que atesoraba era - y es - fundamental para muchas investigaciones relacionadas con la historia argentina” (SABOR, 1995, p. 159-160). CONSIDERAÇÕES FINAIS Até os dias de hoje se lamenta, na Argentina, o fato de a coleção de Pedro de Angelis ter passado às mãos do governo brasileiro. Em novembro de 2011, o Ministério da Cultura do Brasil e a congênere argentina assinaram um acordo no qual se comprometeram a digitalizar e disponibilizar na web o acervo da coleção de Angelis que está acondicionado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os depoimentos da Ex-ministra da Cultura do governo brasileiro Ana de Hollanda e do então Presidente da Fundação Biblioteca Nacional Galeano Amorim revelam uma espécie de “dívida” do Brasil em relação à posse dos documentos argentinos. Para a imprensa, Hollanda afirmou que “[...] antes, se discutia muito a posse dos acervos – agora, com esta iniciativa, fica muito mais fácil o acesso a toda esta história”, e Amorim arrematou: “Se um dia este acervo saiu da Argentina, esta é a ocasião para devolvê-lo” 21. A importância da Coleção Pedro de Angelis para a Biblioteca Nacional pode ser atestada em um outro acontecimento recente: em fins de agosto de 2012, o Secretário da Cultura do governo de Cristina Kirchner esteve no Brasil em visita oficial. Em retribuição e como forma de simbolizar a cooperação entre os governos, o Secretário Jorge Coscia recebeu das mãos da então Ministra da Cultura do Brasil Ana de Hollanda uma cópia certificada do mapa das Malvinas retirada do acervo de Angelis 22. Durante o período em que Pedro de Angelis formava sua biblioteca e produzia as suas obras, não havia, no Prata, um espaço formal destinado à prática historiográfica e à guarda de documentos históricos (BUCHBINDER, 1996). Acreditamos que, mesmo nessas condições de produção, tendo que buscar os manuscritos como podia partir de redes privadas e apelando aos desorganizados arquivos públicos existentes no país – sendo, inclusive, acusado de apropriar-se indevidamente de materiais públicos –, De Angelis construiu, por meio de sua biblioteca e de sua coleção e da publicação de coletâneas e de catálogos de obras e documentos, uma espécie de “lugar de memória”. Não é à toa que, até hoje, o seu conjunto de fontes históricas e livros seja referência para muitos historiadores que estudam a região platina, que o repositório de documentos que o pertenceram ainda leve o seu nome na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e que o conjunto documental lá custodiado continue sendo alvo de disputas e acordos entre os governos do Brasil e da Argentina. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Apuntaciones cambiadas entre Don Pedro de Angelis y el gobernador Don Juan Manuel de Rosas, relativas a la memória sobre el Estrecho de Magallanes, y préstamo de libros de la Biblioteca Pública. In: BECÚ, Teodoro; TORRE REVELLO, José. La Colección de Documentos de Pedro de Angelis y el Diario de Diego de Alvear. Buenos Aires: Talleres S.A. Casa Jacobo Peuser Ltda., 1941, p. XLVII. BATICCUORE, Graciela. Lectores, autores y propietarios. Las bibliotecas románticas. In: GAYOL, Sandra; MADERO, Marta (ed.). Formas de historia cultural. Buenos Aires: Prometeo Libros; Los Polvorines; Univ. Nacional de General Sarmiento, 2007, p. 71-80. BUONOCORE, Domingo. El libro y los bibliógrafos. In: Historia de la literatura argentina. Buenos Aires: Peuser, 1959, vol. IV, p. 227-350. Carta de don Pedro de Angelis, a Don Floro Castellanos, sobre sus tareas editoriales, la publicación de documentos históricos y envio de algunos impresos. In BECÚ, Teodoro; TORRE REVELLO, José. La Colección de Documentos de Pedro de Angelis y el Diario de Diego de Alvear. Buenos Aires: Talleres S.A. Casa Jacobo Peuser Ltda., 1941, p. XLIV-XLV.

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Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2011). 22 Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012.

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GUARDAR PARA LEMBRAR: DO EPISTOLÁRIO AO ACERVO PATRIMONIALIZADO Cristiéle Santos de Souza 1 Quando preservadas da ação do tempo, as cartas, assim como os demais documentos que testemunham a história, passam a organizar e a compor histórias em migalhas, revelam sujeitos, descrevem situações e indiciam relacionamentos. As cartas são, nesse sentido, objetos resultantes de uma prática de escrita socialmente estabelecida e integrada às permanências e rupturas resultantes de uma vida em sociedade. Partindo dessas premissas, cabe afirmar que no estudo da escrita epistolar, [...] convém primeiramente indagar sobre o próprio processo da conservação e de construção desse objeto inserido no tempo e no espaço social, desde o nascimento, uma a uma, das cartas singulares, até sua comunicação aos historiadores pela família, como um todo indissociável (DAUPHIN,1994, p.1926). Preservadas por famílias, indivíduos ou instituições, as cartas passam a integrar narrativas memoriais apoiadas em uma lógica específica de organização que, assim como o exercício de lembrar, seleciona e organiza as informações, compondo um todo indissociável. Cabe questionar, contudo, quais são as forças que atuam no sentido de conferir propriedades que passam a caracterizar o que antes era um conjunto de cartas escritas com finalidades diversas para um grupo ainda mais diverso de correspondentes, em um “lugar de memória” (NORA,1993), ou seja, em um conjunto indissociável de documentos que testemunham uma época, um lugar e/ou um sujeito. Em seu sentido mais primitivo, a carta tem a finalidade de estabelecer um fluxo de comunicação entre remetente e destinatário. No entanto, ao longo do tempo, o espaço da carta foi utilizado para discutir ideias e teorias, para confessar sentimentos, para influenciar decisões ou mesmo para diminuir os efeitos da distância. As cartas entre escritores, por exemplo, são tidas como um “tipo especial de criação artística, acompanhando a evolução literária e antecipando futuras particularidades de gênero e de estilo” (ANGELIDES, 2001, p.15). Da mesma forma, está entre as principais singularidades da carta o fato de ela ser um documento de foro íntimo escrita apenas para quem se destina, no entanto, sabe-se que a leitura pública de cartas ou mesmo sua publicação como obra literária foi uma prática constante no final do século XVIII e início do século XIX, onde não raro as cartas eram lidas em voz alta e escritas com a finalidade de serem publicadas 2. No ambiente clerical as cartas ocuparam um espaço fundamental desde o cristianismo primitivo, no sentido de divulgar e difundir a fé cristã. 3 Mais tarde, com o surgimento e a ampliação de ordens religiosas voltadas para o trabalho missionário surgiu um novo ambiente propício para a produção e circulação de cartas. As trocas epistolares estabeleceram pontes entre a Cúria Romana e os mais distantes lugares do mundo. As chamadas cartas edificantes (SCABIN, 2010, p.4), escritas por missionários eram divulgadas na comunidade católica como um incentivo à missão. Neste contexto, mesmo as cartas pessoais passaram a ter uma função de doutrina. Documento público ou privado, as cartas circulam nos mais diversos ambientes e viabilizaram diálogos à distância. No entanto, a relação de confiança que se estabelece entre remetente e destinatário extrapola os limites do diálogo, pois a carta é também o espaço da confissão e da narrativa. Se, como 1

Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural – UFPel. De acordo com ANGELIDES (2001, p.17) um bom exemplo dessa prática está na análise da correspondência de Turguêniev e de seu grupo literário, onde as cartas, muitas vezes escritas com o propósito de serem publicadas, eram lidas em voz alta e continham comentários da vida social, exposição de ideias, convicções políticas, etc. 3 Cartas Paulinas são cartas do Apóstolo Paulo as comunidades cristãs primitivas, dentre as quais no Cânone do Novo Testamento são resguardadas as cartas dirigidas aos Romanos, Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses, Timóteo, Tito, Filêmon, e aos Hebreus. 2

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afirma Arendt (2007), o objetivo do diálogo é o consenso, sua existência está condicionada ao desfecho do ato de persuadir. Sendo assim, a escrita epistolar constitui um diálogo que vai além dos limites da persuasão, pois apoiada no compromisso estabelecido pelo “pacto epistolar” (GOMES, 2004, p.19) ela se mantém e se justifica mesmo após a obtenção do consenso entre as partes. O pacto estabelecido entre os correspondentes configura o sustentáculo da relação epistolar construída, ou seja, institui, ainda que de forma flexível e mutável, o compromisso de receber, ler, responder e guardar as cartas recebidas. A definição e a efetividade do pacto epistolar, que para Angela de Castro Gomes (2004) está relacionado à prática da correspondência, seja ela entre amigos ou não, para Anne Vincent-Buffault (1996) está associada a declaração de amizade e a libertação dos elementos formais. Sendo assim, se por um lado o pacto epistolar liberta os correspondentes do uso dos elementos formais, por outro estabelece entre eles outras formalidades, construídas sob a responsabilidade de mantê-lo. Guardar as cartas recebidas e copiar as cartas enviadas são práticas resultantes do pacto epistolar e fundamentais para o uso das correspondências como fonte histórica. O modo como esses conjuntos epistolares são preservados influencia diretamente na leitura que se faz do acervo. De acordo com Venancio (2004, p.111) “para que [as cartas] se tornem “fontes de memória” e objetos de análise histórica precisam ser seriadas, ordenadas em sequências cronológicas e/ou temáticas”. No entanto, a forma como foram preservadas e organizadas por seus remetentes, destinatários ou apenas guardadores, faz parte da narrativa que as cartas, enquanto acervo, constroem, ou seja, as escolhas, anotações e seleções feitas ao longo do processo de guardar trazem elementos relevantes para a leitura das cartas como um todo indissociável. Assim, ao ordenar, seriar ou conferir qualquer sequência às cartas, o pesquisador precisa observar e registrar as características originais do acervo. Da mesma forma, o processo de patrimonialização de acervos epistolares pode infringir às cartas sucessivas organizações e inevitáveis descaracterizações da ordem original. Reside neste fato a necessidade de se pensar essas patrimonializações e os diversos contextos em que elas acontecem. O EPISTOLÁRIO DE DOM JOAQUIM Publicada pela primeira vez em 1963 nos Cadernos do Cariri, a biografia “Dom Melo” escrita por Monsenhor Silvano de Souza é a principal fonte bibliográfica referente a vida do 2º Bispo de Pelotas, Dom Joaquim Ferreira de Mello. 4 A obra, que é uma homenagem póstuma ao bispo, aborda, dentre outros temas, a existência de um epistolário mantido por Dom Joaquim, mencionando, inclusive, o número aproximado de cartas existentes. Tivemos notícias de onze mil cartas que teria escrito em 42 anos de atividade sacerdotal, e que equivale a 261 cartas por ano, todas copiadas e selecionadas na ordem do tempo. Seria um acontecimento literário e histórico a publicação desta correspondência embora unilateral. O sr. Dom Joaquim tinha grande cultura e bom estilo na exposição de suas idéias. Era claro, correto e algumas vêzes espirituoso na arte de expressar o seu pensamento. Resulta dessas qualidades intelectuais o interêsse de suas cartas, publicadas poderiam dizer o valor de quem as escreve e falar com autoridade do meio religioso e social de sua diocese (SOUZA, 1964, p.79). Como bem advertiu Monsenhor Souza, o acervo de cartas escritas e organizadas por Dom Joaquim constitui mais do que documentos históricos isolados. Em conjunto, podem dizer muito sobre seu autor e sobre o ambiente em que ele vivia e trabalhava. Para compreender sua relevância, contudo, é necessário conhecer mais sobre a vida de Dom Joaquim. Joaquim Ferreira de Mello nasceu em 31 de agosto de 1873 no povoado Sítio São José, localizado entre o Crato e o Juazeiro, no estado do Ceará. 5 Em 1890, aos 17 anos, ingressou no Seminário Menor 4

Mais tarde (2006) o conjunto de cartas foi utilizado como fonte em outra obra, a saber: “Dom Joaquim Ferreira de Melo, 2º Bispo de Pelotas e a Fundação do Seminário São Francisco de Paula” de autoria de Fábio Ranieri Mendes. 5 Os dados referentes ao nascimento de Joaquim Ferreira de Mello provêm de seu registro de batismo disponibilizado na obra biográfica Dom Joaquim Ferreira de Melo 2º Bispo de Pelotas e a fundação do Seminário

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São José na cidade do Crato, onde deu início aos estudos preparatórios para o sacerdócio. O referido seminário fechou as portas no ano seguinte forçando a transferência de seus internos para outros seminários na região. Diante dessa situação, Joaquim foi transferido para o Seminário Episcopal de Olinda, onde concluiu os estudos preparatórios e iniciou o curso de Teologia. No ano de 1897, Joaquim recebeu a primeira tonsura, as ordens menores e o diaconato 6, para no ano seguinte ser ordenado sacerdote pelo então Bispo da Diocese de Olinda, D. Manuel dos Santos Pereira. Após a ordenação, regressou ao Ceará, onde assumiu uma paróquia no sertão nordestino. Por sete anos trabalhou como pároco na região de Inhamuns, hoje conhecida como paróquia de Tauá. Em 1905 deixou a paróquia e passou a lecionar História e Português no Colégio Beneditino da Serra do Estevão. O desacordo dos monges em relação à reforma do ensino empreendida por Rivadávia Correa 7, fez com que a congregação deixasse a escola e entre eles, Pe. Joaquim. Em retorno a cidade do Crato, fundou junto a dois amigos, também padres, o Colégio São José que funcionou de 1909 a 1913. De acordo com Mendes (2006, p.61), durante o mesmo período, padre Joaquim “fundou e dirigiu, juntamente com os colegas de direção do colégio, o Semanário Católico A Cruz, considerado o jornal mais importantes da região do Cariri nesse período. ” Em março de 1915 foi nomeado Vigário Geral da Diocese do Ceará, que no mesmo ano foi elevada a Arquidiocese de Fortaleza, onde permaneceu por seis anos, até que, em março de 1921, foi nomeado Bispo da Diocese de Pelotas. Escrever cartas era uma exigência do cargo que Dom Joaquim veio a ocupar, uma vez que somadas aos telegramas, as cartas configuravam a principal forma de comunicação entre os membros do clero local e da Diocese com a Nunciatura Apostólica. No entanto, o hábito de manter uma vasta correspondência, copiada e arquivada cronologicamente, acompanhava Dom Joaquim desde os tempos em que ocupava o cargo de Vigário Geral, visto que as primeiras cartas arquivadas datam de 1915. Ao mudar-se para Pelotas, o novo Bispo trouxe em sua bagagem parte de sua correspondência arquivada em livros copiadores de cartas, os quais hoje compõe seu acervo pessoal. O epistolário de Dom Joaquim é composto por treze livros copiadores de cartas que reúnem cópias de cartas escritas entre os anos de 1915 e 1940. O acervo pode ser observado a partir de duas partes distintas: a primeira compreende os onze primeiros livros, os quais reúnem cópias de cartas escritas entre 1915 e 1934 e parte do conjunto de cartas escritas entre 1935 e 1938. Contendo, em sua maioria cartas manuscritas, esses livros são compostos por páginas numeradas no canto superior direito, precedidas por um índice em ordem alfabética. O papel é translucido e não apresenta margens ou qualquer outra marca impressa com exceção da numeração e do alfabeto que orienta a elaboração do índice. As evidencias deixadas no processo de cópia e arquivamento das cartas indicam que o procedimento utilizado para produzir as cópias foi bastante simples: entre a folha epistolar a ser remetida e a folha do livro copiador era inserida uma folha de papel químico que permitia o decalque das palavras grafadas, assim ficava registrada no livro a cópia da carta enviada. A segunda parte do acervo é composta por dois livros, os quais reúnem parte das cópias de cartas escritas entre 1935 e 1938 e das cartas escritas em 1939 e 1940. Ao contrário dos livros anteriores estes não são livros apropriados para a cópia de cartas e documentos. As cópias de cartas são datilografadas, São Francisco de Paula, 2006. No mesmo registro consta como celebrante Padre Cícero Romão Batista. Este dado não consta na primeira biografia de D. Joaquim publicada em 1963. 6 Após o Concílio Vaticano II são reconhecidos três graus da ordem clerical, a saber: o diaconato, o presbiterado e o episcopado. Anterior a isto, porém, havia as chamadas ordens menores através das quais os candidatos ao presbiterado eram iniciados no estado clerical, sendo a Primeira Tonsura um ritual de introdução do candidato ao clericato, bem como, seu comprometimento com uma diocese e ou ordem religiosa. Com as modificações Conciliares, as ordens menores foram extintas, dando lugar a ministérios, os quais não conferem grau ao candidato, bem como não o introduzem no estado clerical, o que acontece somente com o diaconato. 7 A Reforma Rivadávia Corrêa, Lei Orgânica do Ensino Superior e Fundamental foi implementada em 5 de abril de 1911 pelo decreto n° 8.659. Esta Reforma adotava a liberdade e a desoficialização do ensino no país, retirando da União o monopólio da criação de instituições de ensino superior. (Cf. CHAGAS, 1979)

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perfuradas e encadernadas com capa dura e presas por hastes de metal. Nelas não há índice e as folhas não são numeradas. As poucas anotações nas margens são manuscritas e semelhantes à mesma caligrafia das cartas anteriores. As cartas datilografadas que nos primeiros anos do epistolário eram raras e de difícil cópia, passaram a compor a totalidade dos livros nos últimos anos de vida de Dom Joaquim. No entanto, foram mantidas as anotações nas margens e mesmo algumas rasuras comuns em várias cartas. As cópias de cartas enviadas a partir de março de 1921 foram marcadas com uma numeração manuscrita em sentido crescente no canto esquerdo superior da página. 8 A numeração corresponde apenas às cartas que teriam sido enviadas, enquanto que nas demais a marcação se resume a inscrição “carta não expedida” por vezes acompanhada da assinatura de Dom Joaquim. Assim, deduz-se que esta seja uma segunda intervenção com o intuito de organização do epistolário, provavelmente empreendida pelo próprio escrevente, ou a pedido dele. As evidências apontam para uma prática de arquivamento preocupada com a preservação das cartas escritas no exercício da função de bispo, no entanto, o epistolário reúne sob a mesma organização, cartas pessoais e institucionais. Dentre uma gama diversa de assuntos tratados, as cartas abordam, em sua maioria, temas relacionados a gestão da diocese, tais como: gestão do clero, relação com as ordens religiosas, relação com a comunidade leiga, formação sacerdotal e educação cristã. Mas também, há cartas destinadas aos amigos deixados no Ceará, nas quais Dom Joaquim descreve de forma minuciosa e, por vezes, irreverente, o seu cotidiano como bispo. Ainda que a temática das cartas seja de extrema relevância para o entendimento do epistolário e do contexto em que ele foi produzido, o interesse deste trabalho incide sobre o processo de constituição do acervo e de sua patrimonialização. Da mesma forma, este estudo propõe pensar a relação estabelecida entre o registro e a seleção de informações empreendidas por Dom Joaquim ao longo do processo de constituição do epistolário e a construção dos diferentes discursos memoriais que embasaram sua patrimonialização. O ACERVO PATRIMONIALIZADO Em um primeiro momento é preciso compreender a escrita epistolar como parte de uma “produção de si” e, portanto, como uma narrativa de si resultante de um processo de ordenamento empreendido por aquele que escreve. Esse ordenamento é, ao mesmo tempo, uma forma de filiação com o passado, já que as narrativas construídas falam sempre de acontecimentos passados e de expectativas futuras, cuja existência só é possível graças ao conhecimento que se tem do que passou e do momento presente. 10 Assim, as diferentes formas de escritas de si, dentre elas a escrita epistolar, envolvem necessariamente, a memória. 9

A memória, cuja noção “remete tanto aos mecanismos de acumulação, vinculando-se às formas de conservação, atualização e reconhecimento de uma lembrança, quanto aos processos de compartilhamento de representações sociais” (FERREIRA, 2011, p.102), é a base para discursos patrimonializantes fundamentados na ideia de que os processos de compartilhamento de representações sociais constituem, simultaneamente, a relação que o sujeito estabelece com o mundo por meio dos significados que atribui às diferentes experiências vividas, e as formas de interação pelas quais expõe as

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A numeração das cartas a partir de março de 1921 perece obedecer a critérios relativos à nomeação episcopal, visto que apenas as cartas referentes à Diocese de Pelotas são numeradas, até que em novembro do mesmo ano todas as cartas recebem a numeração correspondente. 9 De acordo com Gomes (2004, p.11) “Essas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando um diversificado conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas à escrita de si propriamente dita – como é o caso das autobiografias e dos diários –, até a da constituição de uma memória de si, realizada pelo recolhimento de objetos materiais, como ou sem a intenção de resultar em coleções”. 10 Conforme Miller, Greg et al. (2007) no artigo intitulado “Neurobiology: a surprising connection between memory and imagination”, a capacidade humana de criar expectativas em relação ao futuro está relacionada a faculdade da memória.

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representações sociais 11 resultantes dessa relação. Nesse sentido, as diferentes formas de escritas de si seriam textos relativos ao indivíduo que os produz, mas também relativos à filiação desse indivíduo com o seu passado e com o grupo social ao qual pertence, como parte de um discurso memorial que embasa a curto ou a longo prazo, um discurso de patrimonialização. Se a escrita epistolar se caracteriza como uma escrita de si, no sentido de incorporar o discurso e a imagem que o remetente concebe de si e tenciona transmitir para outro, o processo de guarda e sistematização do conjunto de textos produzidos também o faz, como um “arquivamento de si”. Nas palavras de Artiéres (1998. p. 11), “arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor a imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência”. Artières também entende que esse “arquivar a própria vida” é consequência de uma série de injunções sociais que condicionam indivíduos ou grupos a registrar sua vida, seja por meio de documentos, escrituras, contratos, ou ainda por meio de escritos autobiográficos ou autorreferenciais. Assim, os atos de guardar, selecionar, ordenar e classificar, que a princípio parecem um procedimento objetivo, mostram-se como movimentos subjetivos, uma vez que atribuem sentidos e hierarquizam significados. Este movimento de arquivar a própria vida requer um esforço de seleção relativo ao que se pretende lembrar e esquecer, visto que os objetos não selecionados para compor o acervo pessoal, tem o descarte como destino. Assim, o ato de guardar objetos pessoais, constitui, ao mesmo tempo, uma busca pela memória e um ato em prol do esquecimento. As intenções de quem arquiva, bem como a lógica utilizada para o arquivamento ficam impressas nas características do próprio acervo, constituindo, assim, o que Priscila Fraiz (1998, p.60) denominou “meta-arquivo”. O meta-arquivo reúne todos os indícios ou ferramentas pelas quais é possível compreender a lógica empreendida na constituição e organização do arquivo. Essas ferramentas podem ser índices, tabelas, textos autobiográficos, listas, etc. Para além dos indícios deixados pelo arquivista, cabe também observar a constituição do arquivo como parte da biografia do arquivista, uma vez que as razões pelas quais um indivíduo arquiva a própria vida são tão diversas quanto às experiências vividas por esse indivíduo ao logo de sua vida. Nesse sentido, Schellenberg (1973, p. 244) chama a atenção para o fato de que o conjunto de escritos e objetos produzidos por um indivíduo deve ser ordenado de acordo com suas múltiplas atividades e funções, pois “essas atividades, provavelmente, são a base pela qual seus papéis são agrupados e organizados durante a sua vida”. No entanto, nem sempre os arquivos pessoais são preservados em sua forma original, seja na transmissão por herança ou na incorporação desse acervo a uma coleção museológica ou arquivística, ele perde parte de suas características originais e recebe, por vezes, novas e sucessivas organizações. Cabe destacar, no entanto, que o discurso preservacionista baseado em um desejo de memória não é exclusivo dos indivíduos que demonstram interesse em preservar seus escritos pessoais, pelo contrário, nas últimas décadas as pesquisas relacionadas às histórias de vida e seus legados documentais, tem despertado o interesse de pesquisadores de diversas áreas: Literatura, História, Educação, Sociologia, Antropologia, entre outras. Ao mesmo tempo, esses legados documentais, que na maioria das vezes constituem pequenas coleções organizadas por seus autores ou por familiares, passam a integrar coleções museológicas ou arquivísticas, nas quais recebem uma nova organização e são resignificadas por um processo de patrimonialização. No prefácio à obra Escrita de si, escrita da história (2004), Ângela de Castro Gomes afirma que a denominação produção de si, só pode ser compreendida se observada a partir da relação que se estabeleceu entre o indivíduo moderno ocidental e seus documentos. Essa relação, segundo autora, acontece por meio de práticas culturais, pelas quais o indivíduo constrói sua identidade através de seus documentos. De acordo com Gomes (2004, p.11):

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Neste estudo entende-se representação na perspectiva apontada por Roger Chartier: “[...] esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.” (CHARTIER, 1990, p.17).

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Embora o ato de escrever sobre a própria vida e a vida de outros, bem como de escrever cartas, seja praticado desde há muito tempo, seu significado ganha contornos específicos com a constituição do individualismo moderno. A chave, portanto para o entendimento dessas práticas culturais (produção de si) é a emergência histórica desse indivíduo nas sociedades ocidentais. No entanto, cabe questionar se o fenômeno hodierno de produção de si e sua publicização podem ser compreendidos em um contexto de busca memorial, ou de obsessão contemporânea pela memória na perspectiva de Andreas Huyssen, segundo o qual: No cabe duda: El mundo se está musealizando y todos nosotros desempeñamos algún papel en este proceso. La meta parece ser el recuerdo total. ¿Es La fantasía de un encargado de archivo llevada al grado de delirio? ¿O acaso hay otro elemento en juego en ese deseo de traer todos estos diversos pasados hacia el presente? Un elemento específico de la estructuración de la memoria y de la temporalidad en nuestros días que no se experimentaba de la misma manera en épocas pasadas? (HUYSSEN, 2000, p.5) Ainda segundo Huyssen (Ibidem), essa obsessão contemporânea pela memória que constitui um dos fenômenos políticos e culturais mais relevantes dos últimos anos, demonstra uma mudança no modo como os indivíduos se relacionam com o seu passado, a relação que antes se baseava na busca por futuros presentes, agora se baseia em pretéritos presentes. Essa busca pela memória, que tem na patrimonialização a sua manifestação mais evidente, também é discutida por François Hartog (2006) em seu artigo intitulado Tempo e Patrimônio, no qual defende que a relação do homem ocidental contemporâneo com o tempo e com o patrimônio apresentase como um indício de que o Ocidente vive após a queda do muro de Berlim (1989) um novo regime de historicidade, ou seja, uma nova forma de compreender e de tratar o seu passado. Esse novo regime de historicidade é baseado no presente como uma categoria dominante, “um presente massivo, invasor, onipresente, que não tem outro horizonte além dele mesmo, fabricando cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem necessidade” (HARTOG, 2006, p. 270) se impõe, dentre outras formas, pela patrimonialização obsessiva e pela sua consequente universalização. Assim, os diferentes processos de patrimonialização, que em sua maioria resultam de políticas de memória ou de estratégias de esquecimento, estariam diretamente relacionados às necessidades impostas pelo presente. Por certo, a crescente publicização dos acervos privados, seja pela publicação de pesquisas acadêmicas e obras literárias, ou pela musealização dos acervos reunidos no espaço privado, pode ser compreendida nesse contexto de construção de passados e futuros possíveis. Dessa forma, tanto as políticas de memória, quanto a sua manifestação mais evidente, a patrimonialização, estariam inseridas em um projeto necessário de elaboração do passado, promovido por alguns em função de uma memória para todos. Partindo desses pressupostos, o conjunto de cartas escritas e preservadas por Dom Joaquim pode ser pensado como uma escrita de si e, portanto, como produto resultante do contexto vivido pelo autor e do modo como ele percebia este contexto. Da mesma forma, a intenção de preservar este conjunto de cartas de forma organizada demonstra que Dom Joaquim conhecia a relevância desses documentos como parte de sua memória. Assim, cabe questionar quando, realmente, começa o processo de patrimonialização de um acervo? Afinal, não seria ato de guardar e organizar, também, uma forma de reconhecimento patrimonial? Depois da morte de Dom Joaquim todos os seus pertences permaneceram sob a custódia do Seminário São Francisco de Paula, que foi planejado e erigido durante seu bispado. O acervo ocupou diversos espaços na instituição, e foi utilizado como fonte de pesquisa em ao menos duas obras relacionadas à história da diocese e à biografia de Dom Joaquim. Em 1989 por ocasião da comemoração dos 50 anos de função do Seminário, foi inaugurado um museu onde foram expostos alguns dos pertences de Dom Joaquim que sobreviveram ao tempo a as diversas mudanças na administração do

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Seminário, dentre esses pertences estavam os 13 livros copiadores de cartas. O termo de abertura do museu traz o seguinte texto: Este livro serve para registro das visitas à sala-museu Dom Joaquim Ferreira de Mello, inaugurado por ocasião do Jubileu de Ouro do Seminário de São Francisco de Paula. É uma memória e homenagem ao fundador desta casa, que não mediu esforços para realizar esta obra que completa hoje seus 50 anos de fundação. (Termo de Abertura da Sala-Museu Dom Joaquim Ferreira de Mello, 1989) Ao longo dos 49 anos em que ficou sob a custódia do Seminário São Francisco de Paula sem, contudo, compor o arquivo da instituição, o epistolário sofreu sucessivas tentativas de organização, graças a isso, hoje é impossível identificar, com precisão, o que teria sido sua organização original. Da mesma forma, o processo de musealização o inseriu em uma nova lógica de organização, que inclui nova numeração e disposição em relação ao conjunto do acervo. Neste novo contexto de patrimonialização, o epistolário de Dom Joaquim passou a compor um novo discurso memorial, ou seja, passou a fazer parte de um espaço de homenagem à memória de seu autor e de preservação da memória da instituição criada por ele. Se patrimonializar significa, resumidamente, atribuir valor histórico, artístico, cultural ou mnemônico a um bem, seja ele material ou imaterial, a patrimonialização do acervo epistolar de Dom Joaquim poder ser compreendida como um processo que teve início com a intenção do autor de organizar e preservar sua correspondência ativa por mais de vinte anos. De outro modo, a inserção do epistolário em um novo discurso de memória que sustenta a organização de um espaço musealizado também constitui um processo de patrimonialização, baseado, também, no ideal de guardar para lembrar. REFERÊNCIAS ANGELIDES, Sophia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense, 2007. ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos, vol.11, n. 21, p.9-34, 1998. CHAGAS, V. Didática Especial de Línguas Modernas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre Práticas e Representações. Lisboa. Difel/ Bertrand Brasil, 1990. DAUPHIN, Céline; LEBRUN-PEZERAT, Pierrette; POUBLAN, Danièle. Une correspondance familiale au XIX e siàcle. In. BOSSIS, Mireille(Dir.). La lettre à La croisée l’individuel et Du sicial. Paris: Kimé, 1994. FERREIRA, Maria Letícia M. Políticas da Memória, Políticas do Esquecimento. Revista Aurora, 10, 2011. Disponível em www.pucsp.br/revistaaurora. Último acesso em 10/07/2015. FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, nº 21, p. 59-87, 1998. GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, Escrita da História: a título de prólogo. In: Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, Vol. 22, nº 36: p. 261273, 2006. HUYSSEN, A. En busca del tiempo futuro. Medios, política y memoria. Revista Puentes. Argentina. Traducción: Silvia Fehrmann. año 1, N° 2, diciembre 2000.

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LOS ARCHIVOS DE MEMORIA ENTRE LA DESARTICULACIÓN, EDICIÓN E INSTITUCIONALIZACIÓN SOBRE LO OCURRIDO 1 Anabel Diaz Cabal * INTRODUCCIÓN El conflicto armado en Colombia es una confrontación bélica de orden interno que ha tenido una duración de más de 50 años. Sus orígenes pueden ser identificados a mediados del siglo XX, en las luchas partidarias entre liberales y conservadores que buscaban tanto permanecer en el poder, como poseer tierras; todo esto conseguido a través de la violencia. Estas dos variables históricas continúan presentes, como uno de los principales motivos de la confrontación actual en el país. Además de la precariedad del Estado, “precariedad que sirve de contexto a la recurrencia de la guerra” como lo señala Pécaut (PÉCAUT, 2001). Algunos rasgos de ella se pueden observar en la débil legitimidad en las instituciones estatales, la falta de ejercicio de la autoridad en vastas regiones del país, en los fuertes desequilibrios regionales y sociales, así como en una participación política históricamente excluyente. En Colombia se inició un proceso de justicia transicional formalmente mediante la ley 975 de 2005 o de Justicia y Paz, que permitió el desarrollo de una serie de políticas tendientes a respaldar el proceso de desmovilización y reinserción de los grupos paramilitares. Igualmente promovió la creación de la Comisión Nacional de Reparación y Reconciliación (CNRR). Tras su creación, la comisión diseño los fundamentos de su trabajo, y una de sus líneas era la búsqueda y esclarecimiento de la verdad judicial y verdad histórica. Por esta razón, se creó el grupo de Memoria Histórica (GMH) integrado por académicos ampliamente reconocidos por su trayectoria de investigación sobre la violencia en el país. Su marco de acción se construyó entre los límites y procedimientos que prescribían dicha ley y un supuesto o pretendido carácter de independencia académica adjudicado por venir de la academia (Aranguren, 2012:38). En el año 2012 el GMH se integro al Centro Nacional de Memoria Histórica (CNMH). El trabajo de construcción de una narrativa sobre la memoria histórica del conflicto armado en Colombia, recae sobre las diferentes áreas de trabajo del Centro de Memoria. Para propósitos de esta reflexión se va a trabajar con el área de Construcción de la Memoria Histórica, que se encarga de coordinar las investigaciones por medio de las cuales se reconstruye la historia del conflicto armado, haciendo énfasis particular en la experiencia de la población victimizada, y el Archivo de Derechos Humanos encargado de reunir la documentación sobre las violaciones de los derechos humanos ocurridas con ocasión del conflicto armado interno, así como los testimonios orales, escritos y de toda índole con el fin de integrar un archivo de derechos humanos y memoria histórica. ESPACIOS DE ENUNCIACIÓN EN LA CONSTRUCCIÓN DE UNA NARRATIVA Seis años después de la creación de la ley de Justicia y Paz (975 de 2005), y del establecimiento de la CNRR y el GMH, entró en vigencia la ley de Victimas y Restitución (1448 de 2011), derogando algunos aspectos de la ley 975, provocando la desaparición de la CNRR y la reubicación del trabajo realizado por el GMH en el Centro Nacional de Memoria de Histórica (CNMH). Así, pues, como señala Martha Herrera las actividades del grupo de Memoria Histórica y del recién creado Centro de Memoria (de aquí en adelante, nos referiremos del CNMH como Centro de Memoria) se inscribieron para responder el derecho a la verdad en torno del conflicto armado, tanto para las víctimas como para la

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Artículo de Reflexión a partir del trabajo que viene desarrollando en la tesis sobre los sentidos y las disputas en torno a la memoria emblemática en Colombia, a partir de la prensa, sobre los informes de los casos emblemáticos del Centro Nacional de Memoria Histórica. Texto base para la presentación oral en ST 9: Processos de Constituição e Patrimonialização de acervos en el I Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-americanos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos del 20 al 27 de Agosto de 2015. * Becaria Capes del doctorado en História de la Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected], [email protected]

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sociedad en general, y al derecho a la reparación simbólica y satisfacción de las víctimas, marco desde el cual se apunta al deber de la memoria (HERRERA; CRISTANCHO ALTUZARRA, 2013). Esta reflexión está lejos de cuestionar la relevancia social del Centro de Memoria. Se busca comprender las tensiones alrededor de la construcción de la memoria y de los contextos de producción de las investigaciones sobre las experiencias de violencia. Para llevar a cabo este ejercicio reflexivo, se trabajó con algunos de los informes publicados por el Centro de Memoria: los informes revisados fueron: Silenciar la Democracia. Las Masacres de Remedios y Segovia (2011), La masacre de El Tigre. Un silencio que encontró su voz (2011), El Salado. Una guerra que no era nuestra (2009), Recordar y narrar el conflicto. Herramientas para reconstruir memoria histórica (2009), El Camino de Nuestro Archivo Caja de Herramientas para Gestores de Archivos de Derechos Humanos, DIH y Memoria Histórica (2015). Claves Conceptuales. Caja de Herramientas para Gestores de Archivos de Derechos Humanos, DIH y Memoria Histórica (2015). Los tres primeros hacen parte de la colección de informes de casos emblemáticos sobre la violencia en Colombia, el cuarto es una cartilla pedagógica referente a herramientas para narrar el conflicto y el informe final de varios trabajos ya presentados, y los dos últimos hacen parte del material de trabajo del archivo de derechos humanos. A partir de esta selección, se pretende dar cuenta de las formas de construcción de la narrativa histórica del CNMH. El trabajo realizado inicialmente por el Centro de Memoria se orientó en dar a conocer y situar las víctimas como objeto de reflexión y de política pública a través de una narrativa que no privilegia el acontecimiento histórico, sino el conocimiento sobre las memorias de las víctimas y las disputas por los pasados que de allí emergían. La mejor forma de narrar lo acontecido fue a partir de informes de casos emblemáticos y temáticos del conflicto armado. Los primeros informes se publicaron bajo esta metodología, que buscaba reconstruir una narrativa histórica anclada en eventos o situaciones concretas, de tal manera que los casos emblemáticos no eran necesariamente eventos o situaciones conocidas 2 La metodología de casos emblemáticos buscaba reconstruir una narrativa histórica anclada en eventos o situaciones concretas, de tal manera que los casos emblemáticos no eran necesariamente eventos o situaciones conocidas. Estos tipos de informes, no se pueden asociar a marcos ni casos en el sentido propio de la palabra, se hace referencia a procesos y narrativas de recuperación, condensación y concentración de procesos múltiples, que se distinguen no sólo por su naturaleza como hechos, sino por su carácter explicativo de los conflictos nacionales. Es necesario llevar en cuenta que el caso emblemático responde a una estructura histórica y no aún caso juridicial (SÁNCHEZ GÓMEZ, 2009, p. 19–26). La elaboración de cada informe esta con base en el trabajo de campo que realizan los equipos de investigación del Centro de Memoria con las diferentes comunidades o poblaciones a partir de los talleres de memoria, como el principal método en la reconstrucción de las memorias. Estos talleres buscan transformar los espacios públicos de reunión y sociabilidad de las comunidades que, por causa del conflicto dejaron de frecuentar, por las desconfianzas, temores y sufrimientos que los actores armados establecieron en estos lugares. Entre los métodos a trabajar, encontramos la elaboración de mapas (mentales, del entorno, de rutas o recorridos del pasado/andantes), líneas de tiempo y biografía visual, colchas de memoria e imágenes, mapas del cuerpo, entrevistas, las historias de vida o biografías sociales, fotos y otros objetos del y para el recuerdo. Si bien estos métodos de recuperación parten de indagar cómo se simboliza la memoria, su ejecución busca activar el proceso grupal de construcción de la memoria, que logre dignificar la memoria de las víctimas y sobrevivientes (SÁNCHEZ GÓMEZ, 2009, p. 78).

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El Grupo de Memoria Histórica de la CNRR en su momento, hoy el Centro Nacional de Memoria Histórica desde su fundación ha tenido como director general a Gonzalo Sánchez Gómez y desde el principio contado con el mismo equipo de trabajo de investigadores. Inicialmente GMH tenía la tarea de elaborar una narrativa y reconstruir la memoria histórica del conflicto colombiano en un periodo que se extendía desde 1964 (año de creación de las FARC) hasta el proceso de Justicia y Paz que se inició en el 2005 con los grupos paramilitares. Sin embargo en la actualidad, el CNMH no tiene un periodo de trabajo sobre las causas de las violaciones ocurridas en el marco del conflicto armado, como anteriormente estaba establecido en el grupo de memoria.

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Es así como, el trabajo de construcción de la memoria histórica que ha hecho el CNMH ha sido posible por la participación de diferentes comunidades, redes, organizaciones que de una u otra forma se han visto afectadas por el conflicto. La labor realizada en medio de las comunidades ha servido de insumo para el material que el Centro de Memoria pública y presenta a las comunidades y sociedad. Cada informe presenta una serie de conceptos y apuesta discursivos en torno a la construcción de las memorias. Entendiendo la memoria como un campo de tensión donde se construye, refuerza, retan y transforman jerarquías, desigualdades y exclusiones sociales. Por ende, construir memoria es un acto político y una práctica social, porque son las personas, desde sus memorias las que confieren distintos grados de legitimidad o ilegitimidad a los diferentes actores colectivos, armados e institucionales (SÁNCHEZ GÓMEZ, 2009, p. 34). Indiscutiblemente, estos procesos de reconstrucción de la memoria, ayudan no solo a las víctimas, sobrevivientes y familiares sino al resto de la sociedad. También permite identificar los responsables por los hechos, quiénes lo hicieron, por qué y a qué intereses respondían. Identificar los daños y las pérdidas de seres humanos y de esta forma, poder recuperar las historia de vida de aquellas personas que fueron asesinadas y con ello su dignidad. No obstante en la realidad la memoria histórica y la memoria jurídica se confunden en una misma narrativa y hasta en un mismo texto: la sentencia judicial. Por tanto, el derecho a la verdad de las víctimas y de la sociedad se ve satisfecho formalmente (en la medida en que la memoria histórica aparece en la sentencia judicial, la vuelve memoria jurídica), pero materialmente no se satisfacen plenamente los requisitos o asuntos por resolver, de hecho, solo se resuelve, en el mejor de los casos, el asunto del contexto histórico, pero quedan sin respuesta las otras preguntas propias de los juicios penales. La memoria histórica satisface el derecho a la verdad (UPRIMNY SALAZAR, 2010, p. 342–343). DECANTADO, ORDENADO E ARCHIVANDO EL PASADO. El trabajo que viene haciendo el Centro de Memoria, parte del presupuesto que conocer y recordar el pasado es garantía de que los hechos no se repitan en tanto que la memoria que se está construyendo sirve como un mecanismo de empoderamiento tanto de las víctimas como para la sociedad. Los informes escritos buscan condensar la pluralidad de voces, pese a ello existen unas voces principales, la del relator o relatores que las clasifica, analiza y las edita. En los informes, se pueden encontrar tres tipos de voces: la voz del CNMH, la del sujeto colectivo y la del Estado. Por tanto, los informes buscan reivindicar las voces de las víctimas y, en consecuencia, mostrarlas como el eje fundamental de las preocupaciones del Estado 3. Dichas voces, no obstante, pasan por un ejercicio de clasificación y administración por parte de los investigadores que seleccionan los testimonios más relevantes y lo usan como representación de unos hechos. Este ejercicio, en ocasiones no permite percibir la voz propiamente de los que narran, sino que esta, se utiliza para contrastar con otros documentos. Los testimonios por si solos no logran validar la narrativa que viene construyendo el informe. Las experiencias y situaciones narradas por las o sobre las víctimas, sobrevivientes y familiares resultan más una plataforma de legitimidad pública o internacional de los informes (ROMERO, 2012). Donde se busca que dichos trabajos responden más a unos contextos transicionales donde el Estado Colombianos se ha comprometido. De lo anterior, se podría señalar que los informes, tienen el carácter de archivo en tanto que consigna aquello que debe ser recordado como pasado en su sentido temporal (CASTILLEJO CUÉLLAR, 2009). Varios de los informes del CNMH, lo que hacen es condensar múltiples manifestaciones de la violencia como objeto, pero a través de un hecho emblemático, haciendo una reconstrucción de la memoria de las víctimas. Si bien es cierto, la mayor parte de los trabajos del Centro de Memoria no responden a esa tipología, la mayor parte de los escritos responden y tienen la misma estructura de los casos emblemáticos.

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En varios de los informes CNMH considera pertinente el reclamo de las víctimas sobrevivientes acerca de la necesidad del esclarecimiento histórico de la de los hechos de violencia acontecidos, como parte de la reparación, de las garantías de no repetición y de la restitución de la dignidad de las comunidades afectadas.

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Con eso quiero señalar al estructura esquemática que terminan siendo los informes, en la medida que imponen una matriz interpretativa teórico-institucional que dirige la investigación. Es decir, los conceptos mismos que sostienen la clasificación y nominación del pasado, o lo que se identifica como tal. Un ejemplo, es estructurar el trabajo a partir de un contexto con fuentes judiciales, bibliografías, clasificación de tipo local, y regional. Otra forma, es presentando la memoria como herramienta para la democracia y componente de la reparación integral (CASTILLEJO CUÉLLAR, 2009; JARAMILLO MARÍN, 2009, p. 49). Los primero, señala las memorias en igualdad de condiciones a la escena política, como si están fueran escuchadas de por igual y fueran los mismas formas de violencias y los mismo actores armados. Lo segundo, considerando la memoria en sí misma como una forma de justicia, ya que permite responsabilizar, aunque sea fuera del ámbito judicial, a los perpetradores y hacer visibles las impunidades y los silencios, sustituyendo las obligaciones de responsabilidad del Estado. Varios de los informes están construidos desde perspectivas distintas, cada uno hace énfasis en el impacto diferencial que tiene la guerra sobre los distintos grupos sociales. Donde lo importante no es sólo la naturaleza del hecho sino la capacidad explicativa. De ahí que en los informes se pueda encontrar un tipo de evento victimizante, territorialidades, heterogeneidad de actores, discursos y representaciones, casualidades, mecanismo de apropiación de los actores, temporalización del hecho, los daños producidos por el evento y unas expectativas de futuro. Estos elementos de identificación están articulados en unos campos de preguntas referentes a la construcción del pasado, evaluación del impacto de la guerra, el presente del pasado y del futuro y perspectivas de futuro (SÁNCHEZ GÓMEZ, 2009, p. 75–76). Algunos informes conservan las características estructurales de historias nacionales, estas se caracterizan por estar escritas en clave de cronología lineal, lo que hace evidente la primacía del método científico a la hora de reconstruir y narrar. Varios de los informes, son trabajos, no sólo por manifestar situaciones de violencia, sino porque los hechos han impactado a la sociedad en su totalidad generando indignación. Estas historias inmersas en los informes tienen la intención de reivindicar los hechos en una narración oficial, con la respectiva aprobación de que son verdaderos. Porque además de estar inmersos en una estructura académica consignan las voces de otros que nunca han sido reconocidos (SÁNCHEZ GÓMEZ, 2009). El Centro de Memoria por medio del Archivo de Derechos Humanos y Memoria Histórica, trabajan en la promoción de gestores y gestoras de archivos en medio de las regiones, comunidades y organizaciones. Se pretende que los archivos sean recuperados como herramientas para el ejercicio de os derechos y como fuente para reconstruir la historia del conflicto (OSORIO SÁNCHEZ; GUERRERO MATEUS; HUEPA SALCEDO, 2015a, p. 13). Por tal motivo se creó una caja de Gestores y Gestoras de Archivos de Derechos Humanos, que puede verse como un conjunto de instrumentos que tienen como objetivo contribuir a que la comunidades reconozcan las distintos modos de registrar su experiencia frente a la guerra. Además de fortalecer la capacidad de acopiar, proteger los archivos conforme con sus necesidades. En el proceso de formación de los gestores se destacan dos procesos y conceptos centrales en la creación de archivos. En primer lugar, el documentar como aquel procedimiento de coleccionar documentos, libros, fotografías, publicaciones de prensa, etc. Es decir, la recolección de materiales por el interés individual, comunitario e institucional o académico. El segundo termino archivar tarea de recopilación, cuidado, protección de todo tipo de documento en función de recordar, exigir los derechos, reconstruir la memoria histórica (OSORIO SÁNCHEZ; GUERRERO MATEUS; HUEPA SALCEDO, 2015a, p. 23). Durante el proceso de construcción y consolidación de un archivo de derechos humanos y memoria histórica, el Centro de Memoria ha hecho énfasis en tres momentos: acopio, protección y usos sociales, etapas que hacen parte de la espiral de la memoria en el marco de la construcción de los archivos de Derechos Humanos y Memoria histórica. De Acopio: aquel momento en el que se recopila y organiza de manera detallada los diferentes documentos, testimonios, fotografías, comunicados, entre otros. Se relaciona con las siguientes sobre el ¿ tipo de información que se quiere reunir? ¿dónde se puede obtener la información que se necesita?

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¿cómo recopilar y organizar esa información?. De protección: se establece las condiciones de cuidado, conservación y seguridad que requieren los archivos de derechos humanos y memoria histórica. En ese sentido podemos vincular este proceso con la siguiente pregunta: ¿cómo podemos proteger la documentación? Por ultimo, usos sociales: cual es el sentido de los archivos de derechos humanos y memoria histórica; lo que significa imaginar las diferentes posibilidades, que tenemos a la hora de usar los archivos. Nos plantea interrogantes como: ¿qué usos sociales tiene o puede tener mi archivo (OSORIO SÁNCHEZ; GUERRERO MATEUS; HUEPA SALCEDO, 2015b, p. 72) Los informes al final de la narración llaman la atención sobre el hecho que la violencia en los lugares referenciados continúa y merece la atención urgente de todas las organizaciones y del Estado. También hace una serie de exhortaciones, recomendaciones finales y perspectivas de futuro. Sin embargo, resulta paradójico que lo potencia de los informes, se sustenta precisamente en la posibilidad de señalar puntos críticos al Estado desde una narrativa en cierto sentido oficial, pero independiente, y que al mismo tiempo esta condición sea una restricción para poder indicar con vehemencia tales puntos críticos. Independencia y autonomía entre los límites impuestos por un marco normativo que define un vínculo institucional con el Estado. La narrativa académica que faculta a los investigadores se ve limitada por un orden institucional que define el carácter de los informes, que es la reconstrucción de la historia del conflicto armado, haciendo énfasis particular en la experiencia de la población victimizada. Al generar procesos de construcción de narrativas sobre las memorias se busca que aquellos que han sido sometidos a la violación de sus derechos, junto con la sociedad en su conjunto, asuman el legado histórico de recordar. Lejos de comprender la memoria histórica como un fin en sí misma, desde varias organizaciones y desde el mismo CNMH se busca posicionar una apuesta estratégica dentro del proceso de exigibilidad de verdad, justicia, reparación y garantías de no repetición. Siendo la memoria un referente para entender qué es lo que ha pasado en el país, por qué ha sucedido, quienes lo han sufrido y sus responsables, “permite reconocer el entramado que ha generado todas las victimizaciones de gente que ha sufrido crímenes de las formas más demenciales que uno se puede imaginar” (GUZMÁN; GIRALDO SJ., 2013). Desentrañar y articular las memorias de las víctimas implica reconocer cómo se han planeado, desarrollado, instaurado y mantenido en la impunidad, los mecanismos de represión en la sociedad. Los textos han permitido dar cuenta de ciertas circunstancias y hechos que son de pleno conocimiento entre las víctimas y comunidades, que circulan como memoria, pero que carecen de una investigación o condena judicial. Pese a ello, tanto víctimas como organizaciones han logrado emplear el informe como un recurso para ganar visibilidad y poder discutir en el ámbito público los hechos de violencia y las condiciones de complicidad e impunidad por parte del Estado y la fuerza pública. No cabe duda que a través de los informes, se empezó a conocer un proceso histórico sobre la violencia en Colombia, con interpretaciones muy discutibles, pero que permite avanzar en temas que anteriormente no se pensaban. No cabe duda, que a partir del trabajo de recopilación, registros, sistematización, análisis y presentación de una u otra forma, se está contribuyendo a conocer la verdad y en cierta medida la no repetición de hechos victimizantes. Y a la vez a la “elaboración de memorias desde las victimas, convirtiéndolas en sujetos históricos a partir de su testimonio, y en agentes activos de su propio cambio” (Martínez y Silva, 2012). De ahí la importancia del acto mismo de testimoniar, y la escucha atenta por parte de las diferentes instituciones de memoria, en este caso del CNMH (MARTÍNEZ; SILVA, 2012 Martinez y Silva (2012:148) “apuntan a que las organizaciones de la sociedad civil, asociaciones de víctimas o comisiones del sector oficial, pueden ser consideradas instituciones de memoria en la medida en que agencian políticas de la memoria sobre el conflicto armado. [...] Las instituciones de memoria promueven y agencian las políticas de la memoria del conflicto armado mediante diversidad de estrategias, las cuales, de acuerdo con su carácter institucional, se manifiestan en leyes, proyectos, eventos académicos, comunitarios y artísticos). CONCLUSIONES La memoria es la temática fundamental de los informes, prevalece una consciencia sobre el pasado o recordarlo, esto como garantía de no repetición. Las narraciones de los informes dan cuenta de

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esto. Se supone que recordar permite la reconciliación con el pasado traumático y genera un tipo de perspectivas de futuro. De ahí que el reconocimiento de las memorias de las víctimas las dignifique. Los informes del Centro Nacional de Memoria, dan cuenta de acontecimientos que generan disputas por su interpretación. Estos artefactos pueden ser considerados como vehículos de la memoria, porque construyen una memoria emblemática y una memoria rememorativa. Ambos “surgen desde esfuerzos múltiples y conflictivos, con el fin de dar sentido a la violencia en la cual vive el grupo” (STERN, 2002, p. 22). Que conlleva a la construcción de una narrativa que produce formas de nombrar un acontecimiento y designar el pasado, incluyendo recuerdos, silencios y olvidos. Los informes de forma implícita establecen significados de la violencia para cada momento de acuerdo a un proyecto de sociedad, de individuo y de Estado compatibles. No sólo lo marcos interpretativos de los informes sino los marcos desde los que se producen los significados se transforman con el proceso social, según las rupturas históricas. De ahí, la importancia de entender que el conflicto colombiano es, también, un duelo de relatos, donde ha prevalecido los testimonios del Estado, los victimarios, los medios de comunicación y la academia. Dando por cabida al sujeto colectivo que ha sobrevivido en medio de la confrontación, haciendo de su narración una estrategia de visibilidad. BIBLIOGRAFÍA BELLO ALBARRACÍN, Martha Nubia; CANCIMANCE LÓPEZ, Jorge Andrés, La masacre de el Tigre, Putumayo: un silencio que encontró su voz, Bogotá: CNRR-Grupo de Memoria Histórica, 2011. BELLO ALBARRACÍN, Martha Nubia, Bojayá: la guerra sin límites, [s.l.]: CNRR-Grupo de Memoria Histórica, 2010. CASTILLEJO CUÉLLAR, A. Los archivos del dolor: ensayos sobre la violencia y el recuerdo en la Sudáfrica contemporánea. [s.l.] Ediciones Uniandes, 2009. GUZMÁN, F. A.; GIRALDO SJ., J. Paz sin crímenes de Estado. Memoria y propuestas de las víctimas. Bogotá: Movimiento Nacional de Víctimas de Crímenes de Estado, 2013. HERRERA, M. C.; CRISTANCHO ALTUZARRA, J. G. En las canteras de Clío y Mnemosine: apuntes historiográficos sobre el Grupo Memoria Histórica. Historia Critica, v. 50, p. 183–210, 2013. JARAMILLO MARÍN, J. res proceso emblemáticos de recuperación de pasados violentos en América Latina: Argentina, Guatemala y Colombia. antropol.sociol, v. 11, p. 29–59, 2009. MARTÍNEZ, N.; SILVA, O. La visibilización del sujeto víctima, las instituciones y las luchas políticas por la memoria como categorías de análisis para el estudio de la memoria. Revista Colombiana de Educación, v. 62, 2012. OSORIO SÁNCHEZ, C.; GUERRERO MATEUS, L.; HUEPA SALCEDO, J. Claves Conceptuales. Caja de Herramientas para Gestores de Archivos de Derechos Humanos, DIH y Memoria Histórica. Bogotá: Centro Nacional de Memoria Histórica, 2015a. OSORIO SÁNCHEZ, C.; GUERRERO MATEUS, L.; HUEPA SALCEDO, J. El Camino de Nuestro Archivo Caja de Herramientas para Gestores de Archivos de Derechos Humanos, DIH y Memoria Histórica. Bogotá: Centro Nacional de Memoria Histórica, 2015b. PÉCAUT, D. Orden y violencia: evolución socio-política de Colombia entre 1930 y 1953. [s.l.] Editorial Norma, 2001. ROMERO, J. P. A. La gestión del testimonio y la administración de las víctimas: el escenario transicional en Colombia durante la Ley de Justicia y Paz. [s.l.] Siglo del Hombre Editores, 2012. SÁNCHEZ GÓMEZ, G. (ED.). Recordar y narrar el conflicto: herramientas para construir la memoria histórica. [s.l.] Comisión Nacional de Reparación y Reconciliación (CNRR), 2009.

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STERN, S. J. De la memoria suelta a la memoria emblemática: Hacia el recordar y el olvidar como proceso histórico. In: Las Conmemoraciones: las disputas en las fechas “in-felices”. Memorias de la represión. [s.l.] Siglo XXI de España Editores, 2002. v. 3p. 11–33. UPRIMNY SALAZAR, C. Saberse algo de memoria en el proceso transicional colombiano. International Law: Revista Colombiana de Derecho Internacional, 2010. VILLAMIL CARVAJAL, Ronald Edward; MELO MORENO, Vladimir, Silenciar la democracia: las masacres de Remedios y Segovia, 1982-1997, [s.l.]: CNRR-Grupo de Memoria Histórica, 2010.

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O PATRIMÔNIO CULTURAL NAS INSTITUIÇÕES MUSEOLÓGICAS Cinara Isolde Koch Lewinski 1 Este presente trabalho tem o intuito de promover uma discussão sobre o patrimônio dentro das instituições museológicas, considerando sua ressignificação e o sentido que lhe é conferido dentro desses espaços 2. Entretanto, trata-se apenas de uma tentativa de argumentar, a partir e especialmente da minha prática como historiógrafa no espaço museológico, questões sobre a patrimonialização 3 dos bens a serem preservados e suas implicações resultantes das políticas públicas no sentido de universalizar o acesso à informação e o direito de grupos sociais de salvaguardar a sua identidade e cultura material. Então, para desenvolver esse assunto usarei como exemplo o patrimônio cultural ferroviário 4 para explicar os motivos que levaram a construção de seu acervo e os critérios de seleção dos objetos que perderam as suas atribuições funcionais e passaram a ser ressignificados como patrimônio. Vários museus ferroviários foram criados no Brasil durante a execução do Programa Nacional de Desestatização 5 e após extinção da estrada de ferro brasileira 6,instituindo-se espaços de legitimação e organização das relações sociais em um mundo globalizado em constante transformação. Tornaram-se instituições profícuas para a reflexão sobre a metodologia de produção de sentidos e conceitos, concentrando e comunicando ideias em seu espaço. Pois, é a partir do processo de seleção dos bens a serem preservados que os grupos sociais determinam a respeito da sua história e da historicidade. Sendo assim, os museus que salvaguardam o patrimônio ferroviário estabeleceram e formulam valores e sentidos, expressando uma profunda mudança dos sistemas produtivos exauridos pelo capitalismo industrial, representando a própria sociedade em constante transformação. Enfim, o Museu é um lugar de legitimidade da sociedade e/ou de grupos sociais específicos, onde a preservação do patrimônio cultural 7 representa a manutenção da memória coletiva 8 e é também um espaço para ser apropriado e concebido como representativo da sua identidade enfim, um ambiente de conhecimento, reflexão e fortalecimento da cidadania. A ressignifação dos bens ferroviários como patrimônio cultural Para analisar a ressignificação e o sentido do patrimônio cultural ferroviário é necessário entender diversos conceitos desenvolvidos no campo da historiografia pela história cultural, dentre eles 1

Mestranda em História, UNISINOS. Bolsista da CAPES/PROSUP. O Decreto da Constituição Brasileira de 1937 instituiu como patrimônio “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. 3 As sociedades históricas sempre se encontraram com os remanescentes materiais das civilizações passadas. O encaminhamento dado a esses remanescentes é uma intervenção realizada em relação a sua continuidade e transmissão às sociedades futuras ou ao desaparecimento do existente não mais considerado funcional ao tempo presente. A patrimonialização parece ser um recurso atual ao abordarmos com os remanescentes dos sistemas de produção passada, principalmente aqueles mais contemporâneos provenientes do capitalismo industrial. 4 Conforme definição do IPHAN (BRASIL, 2014), o universo que compreende o Patrimônio Cultural Ferroviário engloba bens imóveis, bens móveis e acervos documentais, além do patrimônio imaterial representado pelos costumes, tradições e outras influências. 5 Programa Nacional de Desestatização (PND) executado pelo Governo Federal promoveu várias mudanças para tornar as malhas ferroviárias atrativas para as concessionárias. Dentre várias ações governamentais implantadas pelo referido plano, uma delas era destinação dos bens operacionais para o DNIT e dos bens não operacionais para diversos órgãos ou entidades, como o IPHAN. 6 Oficialmente extinta por força da MP nº 353, de 22 de janeiro de 2007, convertida na Lei Federal n° 11.483, de 31 de maio de 2007. 7 O artigo 216 da Constituição conceitua patrimônio cultural como os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. 8 Segundo Monastirsky, o valor simbólico que é conferido aos objetos provém da importância que lhes impõe a memória coletiva que conduz a ver o passado em relação ao presente e a inventar o patrimônio dentro dos limites possíveis. 2

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a representação e a ideologia. Então, o primeiro conceito a ser explicado será o das representações, que diz respeito às reproduções inseridas num contexto, cujas motivações estão aprofundadas nas lutas pelo poder e pela dominação refletidas nas representações no mundo humano. Estas lutas geram inúmeras 'apropriações’ possíveis das representações, de acordo com os interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, com as motivações e necessidades que se confrontam no mundo humano (BARROS, 2003, p.21). Além disso, as representações podem ainda se adequar ou transmitir uma ideologia que se apresenta através da ação, com atitudes e posicionamento dos homens nas suas interações sociais e políticas, com a finalidade de produzir determinados resultados sociais. Logo, através do saber historiográfico ligado pela noção de cultura, é possível fazer uma apreciação crítica sobre a temática proposta, levando-se em consideração a ideologia e as representações. Sendo assim, para entender o processo de patrimonialização dos bens ferroviários, é preciso explicar a ideia de democratização do patrimônio que se potencializou nas últimas décadas do séc. XX no Brasil, num momento de transformações na sociedade promovidas pela globalização. As mudanças ocorridas também promoveram modificações na noção de patrimônio, ou seja, as compreensões tradicionais de conhecimento histórico determinados numa perspectiva positivista de história, em torno das grandes narrativas que destacavam fatos liderados pelas elites da nação e de seus heróis, foram sendo trocadas por pesquisas históricas ressaltando as construções e apropriações cotidianas de fenômenos sociais. Com a democratização do patrimônio, se ampliaram os bens compreendidos como patrimônio, os quais passaram a vincularem-se a sujeitos comuns e demais objetos do cotidiano. Casanelles i Rahóla (2007 apud Moraes, 2014) afirma que a introdução de novos valores e a incorporação da arqueologia, proporcionou uma abrangência maior aos tipos de bens a serem valorados. Para o autor, superando a lógica de patrimônio anterior, o século XX forneceu importantes elementos para a compreensão do patrimônio industrial: o valor do objeto como testemunho de uma época e o valor do bem como documento (MORAES, 2014, p. 156). Então, com a incorporação de novas concepções nas práticas de tombamento através da democratização da cultura e com os efeitos da globalização 9 na sociedade brasileira, o patrimônio da ferrovia no Brasil passou a pertencer ao inventário dos bens a serem tombados. Assim sendo, a ferrovia que por mais de um século era símbolo de modernidade e progresso estava sendo ressignificada como patrimônio cultural, onde grupos sociais passaram a buscar uma representação de uma identidade coletiva inserida no território nacional. A PRÁTICA DISCURSIVA DO PRESERVE Nos últimos anos de 1980, o governo federal, através do Ministério dos Transportes, criou um projeto com a proposta de preservar a memória dos transportes no Brasil, o PRESERVE (Programa de Preservação do Patrimônio Histórico). O projeto transformou-se em programa e tinha como finalidade reunir a memória do desenvolvimento dos meios de transporte no Brasil, por meio da preservação de bens avaliados históricos e representativos de cada modal. Porém, o programa foi levado adiante somente com o modal ferroviário. A continuidade do programa com o transporte ferroviário foi possível, pois, o material para a preservação ainda estava disponível e dos quais alguns ainda faziam parte de bens ativos operacionais da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S. A). Adotando as diretrizes do PRESERVE, A Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA) passou a desenvolver vários projetos para criar os centros de preservação da história ferroviária e os núcleos, com 9

Segundo Antonio Inácio Andrioli, essa forma de globalização significa a predominância da economia de mercado e do livre mercado, uma situação em que o máximo possível é mercantilizado e privatizado, com o agravante do desmonte social. Concretamente, isso leva ao domínio mundial do sistema financeiro, à redução do espaço de ação para os governos – os países são obrigados a aderir ao neoliberalismo – ao aprofundamento da divisão internacional do trabalho e da concorrência e, não por último, à crise de endividamento dos estados nacionais.

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o intuito de abrigar todo o acervo histórico da ferrovia. Com esta finalidade, o PRESERVE se engajou na busca de preservar o patrimônio histórico, artístico cultural da ferrovia, através dos critérios de seleção que definiram o que seria representativo para a construção da memória e a história da ferrovia e se manteria preservado. Entretanto, era um programa do governo e por isso, representava o esforço de criar uma imagem de si mesmo, desconstruindo a ideia de centralismo político e propondo uma representação mais democrática. Partindo deste ponto de vista, deliberou sobre a conservação desses objetos e símbolos do passado, a partir de interesses políticos e sociais, em nome de interesses públicos, ou seja, a prática discursiva do Programa ficou materializada nos espaços organizados por meio dele. Esse ‘patrimônio urbano’, assim nomeado pela primeira vez por Giovannoni, adquire seu sentido e valor não tanto como objeto autônomo de uma disciplina própria, mas como elemento e parte de uma doutrina original de urbanização. Durante muito tempo se escamoteou a importância de Giovannoni em razão de paixões políticas e ideológicas. Por isso mesmo, é necessário restituir-lhe o lugar que merece no campo da história (CHOAY, 2006, p.195). Logo, o Programa de Preservação do Patrimônio Histórico fortemente influenciado por questões políticas e ideológicas, não deu atenção patrimonial a todos os bens ferroviários e por isso, se valeu de critérios para selecionar os exemplares que se tornaram patrimônio ferroviário. Por sua importância na construção de memórias individuais e coletivas, as edificações ferroviárias foram consideradas de grande valor histórico pelos agentes do PRESERVE. Ou seja, foram atribuídas as edificações ferroviárias antigas um grande valor histórico e tomada como referência pelas comunidades, pois muitas cidades desenvolveram e outras surgiram com a implantação da ferrovia. Portanto, as estações ganharam status como sendo o símbolo do desenvolvimento urbano. Sendo assim, antigas construções ferroviárias foram restauradas e adaptadas para receber os vários centros de preservação da história da ferrovia no Brasil, inclusive o Museu do Trem de São Leopoldo-RS 10.

Arquivo do Museu do Trem-SL 10

No dia 26 de novembro de 1976, foi inaugurado o Museu do Trem, sendo estabelecido num convênio entre a R.F.F.S.A. (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) e o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo. O Museu ficou instalado na Estação ferroviária de São Leopoldo, que ainda estava em funcionamento. O prédio tornouse unicamente sede do Museu em 1980, quando a estação ferroviária foi desativada. Dois anos mais tarde, a R.F.F.S.A. inicia um longo processo de restauro a fim de recuperar o Museu, já bastante alterado, visando devolvêlo a seus moldes originais. Em 1985 o Museu do Trem foi reinaugurado e passou a ser denominado Centro de Preservação da História Ferroviária no Rio Grande do Sul pelo PRESERVE.

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Então, várias edificações foram restauradas, levando-se em consideração as técnicas, os materiais e os padrões da arquitetura ferroviária, com a finalidade de abrigar todo o acervo histórico da ferrovia. Por suas próprias características, os antigos prédios das estações, oficinas, casas para empregados, etc., do final do século passado e princípio do presente, utilizavam novas técnicas de construção, materiais e padrões da arquitetura, na maioria das vezes importados de outros países, que direta ou indiretamente, influenciaram o espaço urbano e o” modus vivendis” das populações que os circundavam (PRESERVE 1991, p. 04). Portanto, o patrimônio ferroviário na década de 1970 e 1980 privilegiava a necessidade de se resguardar a memória da história da arquitetura ferroviária no Brasil, fortemente influenciada por padrões europeus e norte-americanos, incutindo implicitamente a ideia de representação, ideologia e poder da dominação estrangeira, em um momento de mudanças conjunturais promovidas pela globalização. A ATUAÇÃO DO PRESERVE NO RIO GRANDE DO SUL O PRESERVE instituiu vários centros de preservação da história ferroviária no Brasil. No Rio Grande do Sul, a escolha recaiu sobre o Museu do Trem de São Leopoldo. A escolha recaiu naturalmente sobre a Estação Ferroviária de São Leopoldo, em razão de seu significado para a história da ferrovia gaúcha. Foi ela a primeira estação e sua construção remonta à época da primeira linha que ligou a Capital da então Província de São Pedro à Colônia de São Leopoldo (PRESERVE, 1991, P. 9).

Arquivo do Museu do Trem-SL Com o objetivo de tornar o espaço ideal para a guarda do acervo que vinha sendo recolhido no RS e salvaguardar a memória da ferrovia foi criado o sexto Centro de Preservação da História Ferroviária do Brasil no Museu do Trem-SL, em 1985. As realizações, as experiências, as lutas e os legados dos que nos antecederam empregando outros métodos de trabalho e vivendo outro estágio tecnológico ainda não se apagaram e puderam ser resgatados a fim de que possamos transmiti-los às gerações que nos sucederem. E para isso, cria-se o CENTRO DE PRESERVAÇÃO DA HISTÓRIA DA FERROVIA DO RIO GRANDE DO SUL, que em São Leopoldo e em sua Estação Ferroviária pioneira

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abrigará a memória deste meio de transporte em solo gaúcho (PRESERVE 1991, p. 12). Deste modo, visando conservar o patrimônio histórico e cultural da ferrovia no RS foi levado para São Leopoldo àquilo que consideravam significativo para representar o modal ferroviário gaúcho: o acervo documental, bibliográfico, audiovisual e tridimensional referente aos departamentos da VFRGS/RFFSA. Porém, temos que ponderar se os processos de identificação dos bens culturais estão relacionados à memória coletiva ferroviária. Embora a participação da sociedade na seleção dos bens destinados a preservação ainda ocorra de forma pontual através de algumas classes organizadas, como a dos ferroviários, ainda predomina a decisão baseada numa legislação que permite aos órgãos de proteção ao patrimônio cultural à atribuição de valores, autenticidade, legitimidade e identidade a determinados bens (CARMO, 2014, p.46). Por isso, a seleção do patrimônio preservado, no caso à Estação Ferroviária de São Leopoldo (hoje Museu do Trem), foi legitimada por critérios determinados por administradores e consequentemente, a preservação foi produzida pelas relações de poder entre os agentes envolvidos com a preservação. Enfim, o Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul- Museu do Trem de São Leopoldo se tornou o espaço de representação, de comunicação da história e da memória ferroviária. Logo, o Museu do Trem-SL se transformou no símbolo da preservação do patrimônio da ferrovia gaúcha. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os comentários citados acima demonstram a importância de se fazer uma análise mais aprofundada sobre a construção de centros de preservação do patrimônio ferroviário enquanto política de governo. Pois, através das representações de relações de poder e ideologias simbolizadas por meio do acervo e pelas práticas desenvolvidas em torno do mesmo se organizou o patrimônio cultural da instituição do Museu do Trem-SL. E assim como em outros estados, o projeto elaborado para o Rio Grande do Sul também privilegiou a preservação da arquitetura das edificações. Sendo assim, devemos refletir se a memória e a história ferroviária poderiam ser representadas somente por meio das edificações sabendo que existe um acervo ferroviário muito amplo com relevância em diferentes campos como econômico, o social, o tecnológico e o urbano. Também precisamos analisar a existência dos centros de preservação do patrimônio histórico como uma reinvindicação da sociedade por maior democracia, universalização do direito e do acesso à informação. A partir disso, houve a promoção de políticas públicas que promoveram a participação pontual de grupos sociais nos espaços culturais, que outrora não eram representados. Dessa forma, esses grupos sociais passaram a garantir o direito de preservar o patrimônio material e imaterial, perpetuando dessa forma, a sua memória e a sua história coletiva. Portanto, o Museu do Trem de São Leopoldo-RS se tornou um desses espaços de representação e a partir de sua própria história podemos ponderar como o papel de um Estado historicamente marcado pela concentração de poderes soube fazer uso desta instituição para legitimar sua representação, ideologia e simbolismo, através de um Programa de Preservação do Patrimônio Histórico (PRESERVE). Enfim, o Centro de Preservação da História Ferroviária no Rio Grande do Sul (Museu do Trem-SL) nos faz pensar como as instituições museológicas se estabelecem como lugar legítimo de constituição, exposição e reflexão do mundo, das relações entre os objetos e formas simbólicas, conferindo significado comum e organizando relações sociais e simbólicas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRIOLI, Antonio Inácio. Efeitos culturais da globalização. Revista Espaço Acadêmico- ANO III- Nº26 – Julho de 2003- Mensal ISSN 1519.6186 BARROS, José D’Assunção. História Cultural: Um Panorama Teórico e Historiográfico. TEXTOS DE HISTÓRIA, Brasília, vol. 11, nº 1/2, p. 145-171,2003.

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CARMO, Mônica Elisque do. Trilhos e Memória (Preservação do Patrimônio Ferroviário em Minas Gerais). 2014.178 f. Dissertação (Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável) - Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. CARVALHO, Maria Cecília de Alvarenga. Memória social e patrimônio ferroviário em Além Paraíba. 2010. 161 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. CHOAY, Françoise, 1925- A alegoria do patrimônio. 3ª ed. - São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006. 288 p. il. CONGRESSO INTERNACIONAL DE REABILITAÇÃO DO PATRIMÔNIO E EDIFICADO, 12.,2014, Bauru. A dimensão do cotidiano do patrimônio e os desafios para a sua preservação: anais do XII Congresso Internacional de Reabilitação do Patrimônio e edificado São Paulo: UNESP, 2014,1945p. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil.2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ; Minc-.Iphan, 2005, 295p. O PRESERVE/ PRESERFE. Disponível em: . Acesso em 23 de agosto de 2015. Lei nº 9491- Presidência da República que altera procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9491.htm. Acesso em 23 de agosto de 2015. Lei nº 11.483- Presidência da República que dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário. Disponível em:. Acesso em 23 de agosto de 2015. Página- IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em: . Acesso em 23 de agosto de 2015. MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES- PRESERVE; REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A. – SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL PORTO ALEGRE. Centro de Preservação da História da Ferrovia no Rio Grande do Sul. 1. ed. Porto Alegre: Ed. Gráfica Metrópole, 1985, p. 115. MONASTIRSKY, Leonel Brizolla. Ferrovia: Patrimônio Cultural - Estudo sobre a ferrovia brasileira a partir da região dos Campos Gerais (PR). 2006. 203f. Tese (Doutorado em Geografia)Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. PROCHNOW, Lucas Neves. O Iphan e o patrimônio ferroviário: a memória ferroviária como instrumento de preservação. 2014. 177 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural) - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiros. MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES-SECRETARIA DE POLÍTICA NACIONAL DE TRANSPORTES Manual de preservação de edificações ferroviárias antigas. 1. ed. Rio de Janeiro: Rede Ferroviária Federal S.A,1991,61p.

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PATRIMONIALIZAÇÃO DOS DOCUMENTOS FAMILIARES: UM ESTUDO DE CASO LIRIANA ZANON STEFANELLO 1 INTRODUÇÃO Objetiva-se com este trabalho refletir sobre o processo de construção/seleção da identidade e memória feito tanto por Padre Luiz, na construção do acervo do CPG, especialmente no que tange as famílias Pigatto e Pippi assim como, no acervo particular da família Pippi, elaborada por Maria Neli de forma que, esta documentação como tal organizada, torna-se patrimônio familiar, pois carrega consigo uma carga simbólica de representar no presente o passado de cada família. Levando em consideração, para isso, a renovação historiográfica ocorrida a partir da década de 1980, em que as categorias até então estabelecidas para se estudar a sociedade, tendo como protagonistas as classes, os grupos sociais e o estado, se transferem para os atores reais desse processo: os indivíduos. Indivíduos estes, que são responsáveis por sua história, que reelaboram sua memória, mas que acima de tudo se compreendem como atores sociais e como tais, responsáveis pela sociedade em que vivem. ACERVOS E FONTES Os documentos familiares que são trabalhados neste artigo são relativos a duas famílias de imigrantes italianos estabelecidos na Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana do Rio Grande do Sul-Brasil. Pertencem a dois arquivos distintos: os documentos relativos a família Pigatto encontram-se sob a guarda do Centro de Pesquisas Genealógicas (CPG) de Nova Palma (RS-Brasil) arquivados ali, por Padre Luiz Sponchiado e, os relativos a família Pippi encontram-se no acervo do CPG e no acervo particular da família em Nova Palma, tendo como guardiã a senhora Maria Neli Donatto Pippi. Esta reflexão da documentação familiar como patrimônio cultural está inserida num estudo mais aprofundando e amplo que está sendo desenvolvido na tese de doutorado e se propõe, através das trajetórias destas duas famílias, compreender quais as estratégias usadas por estes imigrantes para se inserirem na sociedade receptora (sul-rio-grandense) a fim de identificar as ações e o modo como se deu a construção da memória destes imigrantes. Assim, procuro ressaltar, neste conjunto documental, os processos de reelaboração da memória, realizados por Padre Luiz Sponchiado e por Maria Neli Donatto Pippi, que confere identidade familiar. Entender como, a partir de uma situação particular, os indivíduos produzem este mundo social, é apreender as redes mais complexas de sustentação cultural, afetiva e de poder. O fio condutor desta investigação histórica, então, recai sobre o indivíduo, suas estratégias e relações o que possibilita perceber nos pormenores e nas peculiaridades o que o particular tem de coletivo. Segundo esta ótica de estudar o indivíduo, como ser social, que faz escolhas, que age, está explícito que os historiadores mudam seu foco de análise para a sociedade como um todo e, que fazer escolhas e agir, neste estudo, está no princípio de qualquer análise sobre o processo. No CPG, padre Luizinho se preocupou com a preservação da memória familiar, ressaltando suas distintas temporalidades, seu lugar na sociedade, seus personagens e sentimentalidades, quando iniciou seus trabalhos de pesquisa sobre os imigrantes italianos e seus descendentes na Quarta Colônia Imperial de Silveira Martins. Se propôs ser o “guardião desta memória” familiar, no entanto, é preciso ressaltar que toda e qualquer coleção familiar passa por um processo de seleção e, neste caso não foi diferente. Com este objetivo, pesquisando em diversos arquivos no país, fazendo entrevistas e visitas às famílias coletando documentos antigos, fotografias, objetos, além da colaboração contínua destas

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Autora do trabalho, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS e de Lingue, Culture e Società Moderne pela Universidade Ca`Foscari de Veneza/It.

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famílias, ele construiu a partir de 1973 um acervo que conta com aproximadamente 1850 sobrenomes italianos, catalogados em 75 livros de genealogia. Além desta genealogia, que é um mapa dos nascimentos, casamentos e óbitos de todos os indivíduos, imigrantes e descendentes, seus respectivos cônjuges, filhos, netos, bisnetos, tataranetos, e assim por diante, este acervo conta com a cronologia. Esta é composta de blocos de papel (rústicos) datilografados, os quais possuem dados desde o século XVI até o século XX. A partir de 1870, esses documentos estão dispostos por ano, meses e dias, o que somam aproximadamente um total de 52.850 páginas. Neste material estão registrados acontecimentos históricos regionais, nacionais e internacionais priorizando as informações locais sobre as famílias pertencentes à Quarta Colônia, como por exemplo, os batizados, casamentos e óbitos, que posteriormente são transcritos para a genealogia. Também, a partir dos anos 60, do século XX, há os registros diários da vida pessoal de Pe. Luiz Sponchiado. A Biblioteca conta com aproximadamente 5.000 títulos entre livros, revistas, monografias, teses, jornais que tratam especialmente sobre a imigração. Também compõem esta biblioteca as pesquisas genealógicas realizadas pelas famílias, além dos livros de atas e caixas de empresas familiares que existiam na região, livros de ata e caixa das comunidades da paróquia dentre outros, assim como muitos mapas e plantas dos municípios e da colônia Silveira Martins. Outra forma de pesquisa que originou importante acervo são as fitas cassetes, usadas para gravar entrevistas, documentários e pesquisas, bem como as fitas de vídeo, utilizadas com o mesmo objetivo, que contam com um número aproximado de 350 unidades. Para este trabalho detenho-me especialmente na parte do acervo denominada caixas de família ou caixas de documentação que somam aproximadamente 2000 unidades. No geral elas são compostas de correspondências que o padre recebia, de cartas que os imigrantes e seus familiares trocavam com parentes da Itália; de documentos das famílias dentre os quais podemos citar: passaportes, certidões, escrituras de terras, entre outros do município de Nova Palma, da Região e de outros municípios do estado. Além disso, existem fotografias de época e alguns álbuns de famílias mais recentes e, histórias de família que o padre escrevia por ocasião das festas de família. A documentação relativa a família Pigatto consta de aproximadamente de 500 documentos que podemos assim classifica-los: Lembranças de óbito, aniversário, primeira eucaristia e missas; Fotografias; Convites de formatura, casamento, primeira eucaristia e homenagens; Recortes de jornais; Escritos: que são o resultado de pesquisas em arquivos, jornais, entrevistas, depoimentos feitos por Padre Luiz sobre a referida família; Cartões de aniversário, postais, de ano novo; Coletânea de imposto territorial e sobre empréstimos; Certidões civis e religiosas de nascimento, casamento e óbito; Notas promissórias, fiscais e recibos; Correspondências sobre pesquisas e históricas da família; Escrituras de terras, contrato de Compra e Venda (C/V) de terras, transmissão de propriedade, extratos e título de propriedade; Talão de transcrição de imóveis; Atestados, convocações, procuração, nomeação, regulamento e declarações (trata de cargos ocupados pela família, convocações para assembleias de cooperativa e para esclarecimentos na polícia, declarações de negócio, declaração de funcionamento de comissões, etc); Propagandas eleitorais, cédula de votação e propaganda de empresa pertencente à família; Caderneta militar, título de eleitor, passaporte, boletim escolar; Diploma da obra das vocações da Diocese de Santa Maria e folheto da obra pontifícia da Santa Infância; Planta de uma área de terras; Um termo de encerramento de livro, selo de verba sobre um livro copiador e caderneta de gado vendido. Este conjunto documental demostra uma trajetória familiar de sucesso de influência política e econômica, mas vai muito além disso. No mesmo acervo encontra-se a documentação relativa a família Pippi, porém muito singela em relação a família Pigatto. Na caixa encontramos em torno de 70 documentos que relacionamos da seguinte forma: atestados, certificados de compra e venda (C/V) de terras, certificado eleitoral, recortes de jornais, lembranças, Escritos: que são o resultado de pesquisas em arquivos, jornais, entrevistas, depoimentos feitos por Padre Luiz sobre a referida família, documentos de nascimentos, casamentos, óbitos e notas.

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Fato este que não seria relevante se a família Pippi tivesse doado a documentação sob sua guarda ao acervo do CPG. É interessante perceber que esta família está presente na colônia desde o início do processo de colonização (1878), sendo o primeiro imigrante Próspero Pippi importante comerciante da época. No entanto, a documentação arquivada no CPG não possibilita a visualização desta trajetória e sim fragmentos. O que intriga à primeira vista, é que levando em consideração somente o que estas caixinhas nos mostram, sem nenhuma dúvida diremos que a família Pippi não tinha nenhuma expressão política e econômica na sociedade novapalmense. No entanto, consultando outras fontes e mesmo estudando um pouco mais atentamente a história da região identificamos que esta família tem e muita expressão econômica. Então o porquê isto não está explícito no local que concentra a memória da imigração na região? Bem para responder esta inquietação precisamos entender como se constrói a memória, que ela é seletiva, ou seja, que passa por uma ação política de eleger o que deve ou não ser rememorado. Então compreender o papel do padre como selecionador do que será arquivado representará, através do acervo do CPG, a história desta família e a de outras, o que é um dos nossos objetivos. No entanto, ao rastrear a trajetória desta família tivemos acesso a uma documentação particular pertencente à senhora Maria Neli Donatto Pippi. O arquivo de Maria Neli é organizado em pastas por casal desde os imigrantes até as gerações sucessivas e, também temáticas. Inclui-se neste arquivo outros sobrenomes dos quais são oriundas as esposas, como por exemplo Moretto e Giacomello. Ressalta-se que em todas elas, exceto as temáticas, a pasta inicia com a genealogia da família uma forma de situá-los no tempo e no espaço e, depois têm a documentação referente aquele ramo especifico. Para este estudo, nos detivemos na análise das pastas específicas da família Pippi as quais descrevemos a seguir: Pasta II A- Bruno Pippi e Mafalda Casarotto (Este é o sogro da detentora do arquivo); Pasta III A- José Pippi e Júlia Copetti; Pasta III D- Amâncio Pippi e Pasqualina Giacomello Pasta IV A – Bruno Pippi e Angela Moretto; Pasta Livro 1- Relações Comerciais; Pasta Livro 2- Bens e Propriedades; Pasta Política – Aborda as eleições de 1982, 1993, 1996, 2000, 2004, 2006 (presidente e governador), 2008 e 2012; Pasta Política – Especificamente em Nova Palma na década de 1990; Pasta Administração NP- Relativa a Administração Municipal de 1993 a 1996 – em que Bruno Pippi Filho (marido de Maria Neli Donatto Pippi) é secretário Municipal de Educação e Cultura; Pasta “Amarela” – Trajetória de Bruno Pippi Filho no CPERS (Sindicato do Professores do Estado do Rio Grande do Sul). Esta documentação é muito rica e possibilita outra visão completamente oposta a permitida a partir do acervo do CPG. Encontramos em torno de 1300 documentos que poderíamos classificar como documentos de nascimentos, casamentos e óbitos; Convites de casamento e formatura, cartões postais, convites em geral; Entrevistas orais, cartas e históricos; Fotografias; Lembranças de casamento, primeira comunhão, óbito; Título de eleitor, carteira de reservista do serviço militar, cadastro de pessoas físicas; Atas, processos, decretos, atestados, certificados; Propagandas políticas, planos de governo; Recortes de jornais; Escrituras de terra e imóveis, talão de imposto, talão de transmissão, extrato de compra e venda; Recibos, comprovantes de débitos, notas promissórias, memorandos, notificações, balanços contábeis e relatórios.

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Quando se aborda a questão das fontes, sob esta perspectiva histórica contata-se que as fontes oficiais mantidas pelo governo, já não dão conta da totalidade das ações por isso, ampliação das fontes. Segundo Febvre A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem [...]. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (FEBVRE, 1949, p. 428 apud LE GOFF, 2003, p. 530). Ou seja, tudo que exprime, demonstra e pertence ao homem são fontes. Neste sentido, novos fundos documentais passam a ser consultados por historiadores, como por exemplo, a documentação eclesiástica (nascimento, casamento, óbito), notarial (processos judiciais, protocolos) e particular das famílias (diários, memórias, iconografia, testamentos). Neste caso, é esta documentação particular das famílias, que compõem a nossa pesquisa, o caminho para estudar as memórias produzidas, mas é importante que se questione a partir de que perspectiva se rememora e se elege o que deve ou não, ser rememorado para a história familiar. A PATRIMONIALIZAÇÃO DOS DOCUMENTOS FAMILIARES No que tange a memória, parto do princípio de que é um fenômeno construído tanto individual como coletivamente. Neste sentido, na dialética da memória e do esquecimento, seleciona-se o que se pretende solidificar como memória, seja de um grupo ou de um momento histórico, como também esta seleção não é homogênea, ou seja, distintas memórias sobre um mesmo processo histórico, são construídas. Seguindo esta linha de raciocínio, então não percebendo a memória representada através da documentação do CPG como a de sua família, Maria Neli Donatto Pippi cria seu acervo particular. O não se sentir representada a faz reagir e corrobora com a perspectiva de que a história é um ato de representação. E, representação é uma construção elaborada a partir do real e envolve a percepção, a identificação, o reconhecimento, a classificação, a legitimação e a exclusão (PESAVENTO, 2008, p.40). Assim, indivíduos e grupos constroem sobre a sua realidade representações que dão sentido ao mundo. A esse conjunto de ideias e imagens de representação que estes constroem para si em distintas épocas denomina-se imaginário. Este “comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito” (PESAVENTO, 2008, p.43). Nesta perspectiva, a história cultural propõe por meio das representações feitas, interpretar a realidade do passado procurando “chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo” (PESAVENTO, 2008, p.42). Esta coesão/conflito se identifica nestes dois acervos, ambos construídos com a finalidade de identificar as famílias, através da construção de uma memória permitida pela documentação ali arquivada. Para entender esta disputa pela memória rapidamente relataremos a trajetória destes dois grupos familiares de imigrantes italianos. O primeiro integrante da família Pippi a vir para o Brasil foi Próspero Pippi, que participou na fundação da Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana 2, em 1878, nasceu em Fabbriche di Vallico

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A Colônia Silveira Martins fundada em 1877 foi inicialmente colonizada com russo-alemães, mas estes não se adaptaram ao local e a abandonaram no início. Com isso, a administração imperial decidiu povoar o Núcleo com italianos. Foram construídos, para isso, mais dois anexos ao Barracão de Val de Buia. “A 10 de janeiro de 1878 chegava a 1ª turma seguida de mais três” que se alojaram nos mesmos. O primeiro núcleo criado ficou a 35 km ao norte da sede, o atual município de Ivorá. O Engenheiro Siqueira Couto demarcou os lotes 33, 34 e 35, que ficou conhecido como o núcleo Soturno (depois Barracão, hoje Nova Palma), no encontro do Arroio Portela com o Rio Soturno. Em 1885, a comissão demarcou um lote (367) para ser ocupado pelo denominado povoado de Geringonça,

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(atualmente Fabbriche di Vergemoli), na Província de Lucca, região da Toscana – Itália. Com apenas 12 anos de idade imigra sozinho para a América Latina. Desde o início trabalhou como comerciante e, conforme amplia seus negócios, traz seus irmãos Flávio Bruno, Giuliano e Gotardo Dionizio, para o auxiliarem nas filiais de sua empresa. Desta forma, ele cria uma rede de casas comerciais administradas pela família e, que passam de geração em geração. Este poder econômico, proporciona um poder político que por gerações em distintos municípios que estão se formando, vai ser expressivo. Os Pigattos que imigraram para a mesma Colônia, especificamente para o Núcleo Soturno (criado em 1884), hoje Nova Palma, são naturais da Frazione di Ancignano, pertencente na época a Comune de Dueville, na Província de Vicenza, Região do Vêneto, ao norte da Itália. Luigi e sua esposa Lucia Catterina Mazzardo imigram juntamente com Vicenzo Pigatto, irmão de Luigi, em fins de 1887 início de 1888. Se estabelecem no referido núcleo e ali Luigi e seus filhos dedicaram-se a atividade comercial. Vicenzo também investe em uma casa de comércio em “campo do meio”, hoje cidade de Faxinal do Soturno. As duas famílias são importantes política e economicamente. Nestes dois casos partimos da compreensão do “indivíduo como um sujeito ativo, que toma decisões, traça estratégias, e assim, a família adquire um papel importante pois é nela que as decisões são tomadas e as estratégias traçadas para a sobrevivência” (RAMELLA, 1995, p.14), é no âmbito das relações pessoais que as informações são passadas. Compreende-se assim, estes migrantes como atores racionais, que perseguem objetivos e mobilizam todos os recursos de que dispunham para tal fim. Desta forma, o método nominativo possibilita o trato com indivíduos reais, como é o caso deste estudo, com nomes e sobrenomes pois, “la decisión de cada individuo de migrar, sus posibilidades de encontrar pareja, empleo, viviendas, etc, en la sociedad de inserción, solo parecen ser explicables a partir del estudio de cada caso, de cada indivíduo (MIGUEZ, 1995, p.95). Assim, os vínculos pessoais são o canal de transmissão da informação que garante, por exemplo, a informação sobre o trabalho, que determina quem ficará com qual trabalho e a inserção deste indivíduo na sociedade receptora, por isso, a força dessa relação se baseia no reconhecimento dessas relações recíprocas e não pela proximidade dos indivíduos. Neste sentido, os arquivos paroquiais e civis, as histórias de família, de vida, as fotografias, os diários, a genealogia são fundamentais para a reconstrução dessas teias de relações sociais. E, no caso da construção da memória estas alianças e relações se refletem, tanto que as relações de proximidade que o Padre Luiz nutre com a Família Pigatto se reflete na documentação, da mesma forma que o distanciamento em relação a Família Pippi. A memória insere os indivíduos “em cadeias de filiação identitária, distinguindo-os e diferenciando-os em relação a outros” (CATROGA, 2001, p.50) de modo que a identidade é uma construção social. Na modernidade é a família o elo que possibilita a identificação, a diferenciação e a transmissão dessa memória. Neste contexto, construir representações que conferem sentido a sua história através do imaginário, a documentação familiar tanto arquivada no CPG, quanto do acervo particular, conferem uma identidade familiar e, o patrimônio documental familiar nesta perspectiva, materializa a identidade que antes de tudo, já está constituída no imaterial, ou seja, na memória de cada indivíduo. Assim, estudar o patrimônio significa entender na construção de identidades coletivas, o papel da memória e o uso simbólico que os distintos grupos sociais atribuem a seus bens como forma de referendar o passado. Por isso, segundo Gonçalves: Os patrimônios culturais são estratégias por meio das quais grupos sociais e indivíduos narram sua memória e sua identidade, buscando para elas um lugar público de reconhecimento, na medida mesmo em que as transformam em “patrimônio”. Transformar objetos, estruturas arquitetônicas e estruturas depois de Novo Treviso. Em 19 de outubro de 1890, ocorreu a fundação do núcleo Ijui-Grande (SPONCHIADO, 1996: 68)

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urbanísticas em patrimônio cultural, significa atribuir-lhes uma função de “representação”, que funda a memória e a identidade. Os diálogos e as lutas em torno do que seja o verdadeiro patrimônio são lutas pela guarda de fronteiras, do que pode ou não pode receber o nome de “patrimônio”, uma metáfora que sugere sempre unidade no espaço e continuidade no tempo no que se refere à identidade e memória de um indivíduo ou de um grupo. Os patrimônios são, assim, instrumentos de constituição de subjetividades individuais e coletivas, um recurso a disposição de grupos sociais e seus representantes em sua luta por reconhecimento social e político no espaço público. Na medida em que torno público um conjunto de objetos que, até então, tinham apenas existência privada altero as fronteiras entre um e outro domínio, altero minha posição em relação a interlocutores situados no espaço público (Gonçalves apud OLIVEIRA, s.d, p.10-11) Portanto, a continuidade no tempo e o reconhecimento tanto político quanto social, buscado por grupos sociais distintos, são permitidos pelo patrimônio. Eis aqui o exemplo, pois a documentação familiar contida nestes dois acervos se propõe a ser: o patrimônio documental familiar no qual os descendentes destes imigrantes italianos se identifiquem, se apropriem e atinjam assim, o reconhecimento. CONCLUSÃO Os documentos familiares são legados que permitem a construção de uma memória/história que se transmite e se partilha o que possibilita entender a historicidade do privado pensando o indivíduo como integrado na sociedade. Por isso, que tanto a construção pelo Padre Luiz do acervo do CPG em especial no que tange a família Pigatto e Pippi, quanto o acervo particular de Maria Neli, está inserida neste processo desencadeado na modernidade pela compreensão da diversificação das fontes e do estudo de todos como sujeito histórico. Sujeito este preocupado com a construção de sua memória, que no processo de seleção destes símbolos de pertencimento, são reveladores dos choques de interesse, do que deve ou não ser elegido como patrimônio documental familiar. Mas, que analisados em seu conjunto permitem a compreensão desta documentação como patrimônio, pois carregam consigo uma carga simbólica de representar no presente o passado de cada família. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARQUIVO do Centro de Pesquisas Genealógicas (CPG) de Nova Palma. Sala da Documentação de Famílias, Caixa Família Pigatto; _____________. Sala da Documentação de Famílias, Caixa Família Pippi; ARQUIVO Privado de Maria Neli Donatto Pippi. Família Pippi, Nova Palma; CATROGA, Fernando (2001). “Memória e História” In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: UFRGS. p.43-69; Gonçalves (1996) apud OLIVEIRA, Alberto T [s.n]. Memória, Patrimônio, O Arqueólogo e a Cidade: Arqueologia Urbana e Preservação do Patrimônio Arqueológico. Comunicação, [S.l.:]. p.10-11; LE GOFF, Jacques (2003). “Documento/Monumento” In:______. História e Memória. Bernardo Leitão .(trad.). 5ª Ed. Campinas, SP: UNICAMP. p.525-541; MÍGUEZ, Eduardo(1995). “Microhistoria, redes sociales e historia de lãs migraciones: ideas sugestivas e fuentes parcas”. M.Bjerg e H. Otero. Inimigración y redes sociales em La Argentina Moderna. Tandil(Argentina), Centro de Estudios Migratorios latinoamericanos (CEMLA). pp.23-34; PESAVENTO, Sandra Jatahy (2008). História e História Cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica;

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RAMELLA, Franco (1995) “Por um uso fuerte Del concepto de red em los estúdios migratórios”. M.Bjerg e H. Otero. Inimigración y redes sociales em La Argentina Moderna. Tandil(Argentina), Centro de Estudios Migratorios latinoamericanos (CEMLA). pp.9-21; SPONCHIADO, Breno (1996). Imigração e Quarta Colônia: Pe. Luizinho e Nova Palma. Santa Maria: UFSM..

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“QUE ACERVO É ESSE?” UMA REFLEXÃO SOBRE A NECESSIDADE DE HISTORICIZAÇÃO DOS ACERVOS DOCUMENTAIS E INSTITUIÇÕES ARQUIVÍSTICAS E DE MEMÓRIA HISTÓRICA Rodrigo Luis dos Santos ∗ REFLEXÕES INICIAIS Quando o documento se anima a ponto de levar a crer que ele se basta a si mesmo, sobrevém inevitavelmente a tentação de não se desgrudar dele e de fazer um comentário imediato a seu respeito, como se a evidência de seu enunciado não devesse ser reinterrogada. Disso decorre uma escrita da história, descritiva e plana, incapaz de produzir outra coisa que não o reflexo (e mesmo o decalque) do que foi escrito há duzentos anos (FARGE, 2009, p.73). As palavras da historiadora francesa Arlette Farge nos alertam para um risco constante pelo qual pode passar o historiador: o de enamorar-se pela fonte na qual trabalha. Com isso, a capacidade crítica de analisar esta fonte (documental, fotográfica, tridimensional, entre outras) acaba sendo prejudicada, correndo-se o risco de se meramente reproduzir as informações ali descritas, sem uma reflexão profunda sobre o discurso ali presente e o contexto na qual foi escrita ou produzida. As reflexões de Arlete Farge também podem ser direcionadas para o local onde estas fontes estão salvaguardadas: os museus, centros de pesquisa, arquivos, bibliotecas, entre tantos outros que podemos elencar. Em não raros momentos, percebemos estas instituições apenas como espaços de guarda e acumulação de documentos. E não nos damos conta de questionar: como estes documentos chegaram até aquele local? Ou diante de uma determinada forma de arranjo e organização dos mesmos, de nos perguntarmos sobre como fora esta organização? Por quem? Qual a trajetória daquele acervo, museu, centro de pesquisa? Enfim, esquecemos que há a necessidade de historicização destes locais. Tem sido crescente no Brasil, no decorrer dos últimos anos, o processo de patrimonialização e ressignificação de memórias. Dentro deste panorama, os acervos documentais também passaram a ter influência deste processo. Ao mesmo tempo, há uma tomada de consciência de que, na grande maioria dos casos, não se tem uma noção exata de como se originaram e se estruturaram estes acervos documentais, assim como as próprias instituições que custodiam e salvaguardam estes acervos. Por serem locais que permitem constantes significações e ressignificações do uso da memória, cabe refletirmos sobre as assertivas de Pierre Nora sobre o tema. Para este historiador francês, [...] os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais [...]. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los, eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos [...] (NORA, 1993, p.13). Deste modo, se torna importante a reflexão e a articulação de ações no sentido de buscar uma historicização dos acervos documentais, das instituições arquivísticas e de memória histórica. Saber como estes acervos foram constituídos, por quem, em qual contexto e intencionalidade, assim como ∗

Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista FAPERGS/CAPES. Vinculado ao Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros (NETB) da UNISINOS e historiador voluntário e coordenador de Estágios do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo.

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entender a criação e organização das instituições onde estão inseridos (arquivos, centros de documentação, museus, entre outros), constitui um elemento importante para uma qualificação nos usos da memória e do patrimônio. Além disso, tornar visível a história dos acervos e das instituições colabora para fortalecer o movimento visando à preservação e manutenção dos mesmos e reconhecimento de sua importância por parte da sociedade. Tendo este foco, nos propomos a colaborar com esta reflexão, lançando algumas questões e considerações através deste texto. A QUESTÃO DA HISTORICIZAÇÃO DE ACERVOS Desde os primeiros meses do ano de 2015, vem ocorrendo um debate acerca da unificação do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Em linhas gerais, a grande discussão em torno desta proposta localiza-se em torno do modo em que deve ocorrer, se oficializada, esta unificação. A mesma ocorrerá na padronização da classificação documental? Envolverá também o espaço físico dos dois arquivos, que se encontram em locais diferentes na cidade de Porto Alegre? O que ocorrerá com os fundos privados existentes no Arquivo Histórico, se serão realocados e custodiados pelo Arquivo Público? Estas perguntas ainda estão sendo discutidas, em um trabalho que envolve arquivistas, historiadores e o poder público estadual. A sociedade, de forma geral, ainda desconhece essa questão, ou pelo menos emprega-lhe irrisória importância, diante de outros aspectos, principalmente econômicos, pelo qual passa o estado do Rio Grande do Sul neste momento. Embora nossa proposta não seja fomentar uma reflexão diretamente voltada para a questão da unificação dos dois arquivos, esse episódio se mostra oportuno para analisarmos o processo de constituição destas instituições. O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul foi criado no ano de 1906, por meio do decreto estadual de número 876, datado de 8 de março, assinado pelo então presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros. Este arquivo, vinculado à Secretária de Estado dos Assuntos do Interior, integrando a Repartição de Arquivo Público, Estatística e Biblioteca do Estado do Rio Grande do Sul, tinha por finalidade de conservar e ordenar, através de uma classificação sistemática, documentos relacionados como aspectos de legislação, da administração pública, sobre história e geografia sul-rio-grandense, além de assuntos concernentes às artes e à industrialização do estado. Funcionalmente, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul foi dividido em três seções, a partir de 1913, quando Borges de Medeiros retorna ao Executivo estadual, após o quinquênio de Carlos Barbosa Gonçalves 1. A divisão em seções se deu da seguinte forma: 1ª Seção - Administrativa: mensagens presidenciais, anais da Assembléia dos Representantes, relatórios dos secretários de Estado, balanços do Tesouro Estadual e Tesouros Municipais, livros de registros de nomeação e posse dos funcionários; 2ª Seção - Arquivo Histórico e Geográfico: coleção do jornal A Federação, documentos relativos a fatos (guerras, batalhas, etc.) e personagens; 3ª Seção - Arquivo Forense: cartas de concessão de sesmarias, autos findos de jurisdição, inventários, registros de nascimento, casamento e óbito. No ano de 1925 ocorreu a divisão das seções que compunham o Arquivo Público. A 2ª Seção, de Arquivo Histórico e Geográfico, foi integrada ao Museu Júlio de Castilhos 2. A instituição do Arquivo 1

Carlos Barbosa Gonçalves foi presidente do Rio Grande do Sul entre 1908 e 1913. Durante este período, foi construído o Prédio I do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, localizado até hoje na Rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, cuja conclusão se deu em 1912. Em 1919, ainda tendo Borges de Medeiros como presidente estadual, foi inaugurado o Prédio II. O Prédio III foi concluído e inaugurado em 1950. Porém, entre 1950 e 1999, este prédio não fora utilizado pelo Arquivo Público, mas por outras instâncias do Governo Estadual e pela Junta Comercial, passando a ser utilizado pelo Arquivo Público apenas em 1999. 2 O Museu Júlio de Castilhos foi fundado em 30 de janeiro de 1903, através do decreto de número 589, assinado pelo presidente estadual Antônio Augusto Borges de Medeiros. A primeira denominação foi Museu do Estado. A denominação de Museu Júlio de Castilhos foi atribuída em 1907, como homenagem a Júlio Prates de Castilhos, falecido em 1903, aos 43 anos de idade. Júlio de Castilhos foi líder unipessoal do Partido Republicano Riograndense (PRR), por mais de 13 anos, até sua morte. Também foi presidente do Rio Grande do Sul em duas oportunidades: em um breve período entre julho e novembro de 1891, por meio de eleição indireta na Assembleia dos Representantes (correspondente a atual Assembleia Legislativa) e, posteriormente, através de eleição direta, entre 1893 e 1898.

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Histórico do Rio Grande do Sul como instituição independente do Museu Júlio de Castilhos se deu em 1954, quando foi criada a Divisão de Cultura da Secretaria de Estado da Educação e Cultura, no período em que era governador do Rio Grande do Sul o coronel Ernesto Dornelles. Hoje o Arquivo Histórico encontra-se subordinado à Secretaria de Estado da Cultura. Mesmo com estes dados históricos, que apresentam um panorama mais genérico do processo de constituição e de divisão dos dois arquivos vinculados ao governo estadual do Rio Grande do Sul, ainda faltam elementos que efetivem uma compreensão mais verticalizada da trajetória histórica destas instituições. Quais as razões que fizeram com que a seção de Arquivo Histórico e Geográfico fosse desmembrada e vinculada ao Museu Júlio de Castilhos? Quem eram os agentes históricos envolvidos? Quais os interesses que estavam em pauta? Algumas pesquisas apontam para o papel que integrantes do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) tiveram na questão, a partir da ação de alguns de seus membros. Fundado em 5 de agosto de 1920, através da iniciativa de um grupo formado por Octavio Augusto de Faria, capitão Manoel Joaquim de Faria Corrêa, tenente Emílio Fernandes de Souza Docca, Afonso Aurélio Porto e o Pe. João Batista Hafkemeyer, SJ., juntamente com o Desembargador Florêncio de Abreu e com apoio dado por Borges de Medeiros, que no período exercia seu quarto mandato como presidente do Estado. A primeira diretoria do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul era composta por: Florêncio Carlos de Abreu e Silva, presidente; Delfino Riet, vice-presidente; Francisco de Leonardo Truda, primeiro secretário; Eduardo Duarte, segundo secretário; Amaro Baptista, tesoureiro; Armando Dias de Azevedo, bibliotecário e Emílio Fernandes de Souza Docca, orador. Alguns indícios bastante significativos apontam para um papel importante dos membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul na divisão entre os dois arquivos. Inicialmente, desde os primeiros tempos, o apoio dado pelo governante estadual, Borges de Medeiros, se mostrou intenso. Além do fato da primeira reunião do grupo fundador ter ocorrido no Salão do Arquivo Público do Estado, em 5 de agosto de 1920, durante muito tempo, as reuniões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul ocorriam em salas do Museu Júlio de Castilhos e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, após a divisão de 1925. Essa proximidade dos membros da instituição com o presidente estadual evidencia a rede de influência que havia aí estabelecida. Além disso, ao observarmos a trajetória de alguns de seus membros, veremos que as relações entre a política e a atuação dos membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul eram conectadas. Vejamos aspectos da trajetória de dois desses membros: Florêncio de Abreu e Silva e Eduardo Duarte, respectivamente presidente e segundo secretário das diretorias da instituição ao longo da década de 1920. Florêncio Carlos de Abreu e Silva nasceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de janeiro de 1882. Mudouse ainda criança para o Rio Grande do Sul. Iniciou sua formação em Direito na Faculdade de Direito de Porto Alegre, bacharelando-se pela Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, em dezembro de 1905. Retornou ao Rio Grande do Sul, sendo nomeado Juiz Distrital do município de Taquara e Juiz de Comarca em São Borja. Atuou também nas cidades de Rio Pardo (1913) e Santa Maria (1917). Exerceu o cargo de Desembargador do Supremo Tribunal do Estado. Foi Procurador-geral nos períodos de 1924 a 1927 e de 1932 a 1934. Desempenhou ainda as funções de diretor do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul entre 1919 e 1920, ano em que foi fundado o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Também exerceu mandato de deputado federal constituinte, entre 1933 e 1934. Faleceu em 20 de fevereiro de 1969, no Rio de Janeiro. Eduardo Mafra Duarte nasceu em Porto Alegre, em 4 de fevereiro de 1924, falecendo em Veranópolis em 9 de dezembro de 1962. Formou-se em Medicina em Porto Alegre, no ano de 1919. Antes disso, atuou como professor e inspetor escolar. Concomitante com estas funções profissionais, foi cronista e poeta. Em 1916 tornou-se funcionário público do Estado do Rio Grande do Sul. Foi responsável pelas Revistas do Arquivo Público (1921-1925) e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (1927-1930). Foi chefe da 2º Seção do Arquivo Público e responsável pela organização do Arquivo Histórico a partir de 1925. Também foi vice-diretor do Museu Júlio de Castilhos e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul desde sua fundação, em 1920, ocupando diversos cargos em sua diretoria.

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Aspectos da trajetória de Florêncio de Abreu e Silva e de Eduardo Martins evidenciam a relação entre a esfera política (a atuação dentro do Arquivo Público do Rio Grande do Sul) com a intelectual. Além desta relação imbricada, também há outro fator que se insere neste contexto: a forma de se escrever a história do Rio Grande do Sul. Devemos ter ciente o tipo de historiografia produzida no período e o próprio momento histórico e cultural pelo qual o país passava neste período. A década de 1920, após a eclosão e término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), faz florescer novamente no Brasil ideias nacionalistas, que se manifestam tanto no meio cultural como político, atingindo também a produção histórica. Desse modo, as narrativas produzidas, em sua maioria, têm um tom laudatório, de grande valorização de elementos tidos como determinantes na formação social brasileira, de esquecimento ou ressignificação de episódios históricos que poderiam “manchar” essa história nacional. Essa construção histórica nacionalista seria ainda mais intensa nas décadas de 1930 e 1940, com o advento do Estado Novo no país (1937-1945). Outrossim, a construção histórica sul-rio-grandense, vinculada a partir de 1920 com a intelectualidade filiada ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, também estava em sintonia com esse momento histórico e cultural brasileiro. Estabelecer as bases de uma história do Rio Grande do Sul que valorizasse determinados aspectos e acontecimentos em detrimento de outros estava, de forma bem estruturada ou até mesmo subjetivamente, na agenda política do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. E para a construção dessa história, assim como para a seleção do que poderia ou não ser contado, era preciso que as fontes que possibilitassem essa edificação estivessem mais próximas da intelectualidade disposta a escrever e reescrever a história sul-rio-grandense. A desvinculação da seção de Arquivo Histórico e Geográfico do Arquivo Público e sua incorporação ao Museu Júlio de Castilhos favoreciam essa aproximação, ainda mais quando temos membros atuantes do Instituto Histórico e Geográfico Do Rio Grande do Sul em seus quadros diretivos e técnicos. Documentos, fotografias e objetos passam por um processo de seleção, de exposição ou de silenciamento. São perpassados pelas pretensões humanas e pelas construções sociais e culturais adjacentes destas pretensões. Ao analisarmos o argumentado até o momento, encontramos elementos políticos, culturais e intelectuais presentes na trajetória de constituição dos dois arquivos que utilizamos como base concreta de nossa reflexão. Esses elementos entrelaçados, estabelecem um caminho profícuo pra compreendermos, no caso específico, razões plausíveis para a divisão dos Arquivos Público e Histórico no Rio Grande do Sul, além de permitir que passemos a historicizar a constituição dos mesmos e suas trajetórias até o presente. A partir de uma pesquisa histórica mais profunda, poderemos também compreender critérios de seleção e descarte de documentos, de organização e de descrição dos mesmos. Detalhes que podem passar despercebidos ganham outro sentido, mais complexo e profundo, quando passamos a historicizar estes acervos e os locais onde estão depositados. O caso do Arquivo Público e Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul é um entre tantos outros no estado e no país. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sem nos darmos conta, subjetivamente acabamos por ver os arquivos meramente como locais físicos, repletos de estantes, onde encontramos (ou não) os documentos necessários para nossas pesquisas. Ou, ao trabalharmos nestes locais, sejam eles arquivos, centros de pesquisas ou museus, acabamos nos acostumando com os mesmos. Nossa relação com estes se torna mecanizada ou, por outro extremo, demasiadamente sentimental. Conforme Arlette Farge, terminamos “absorvidos pelo arquivo a ponto de nem saber mais interrogá-lo” (FARGE, 2009, p.71). Reduzindo estes espaços como algo dado, como se sempre tivessem existido e que não passaram ou passam por mudanças, perdemos a oportunidade de ampliar a capacidade histórica destes locais. Os acervos e os locais onde os mesmos estão depositados são, antes de tudo, esforço de algum tipo de ação, visando, por conta dos mais diferentes objetivos e interesses, a preservação ou segurança destes documentos. E por conta disso, as ações decorrentes desta intenção de preservação também precisam ser analisadas pelos historiadores com um olhar mais crítico e refinado.

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Vejamos um caso para melhor compreendermos isso. Uma determinada família, após o falecimento do patriarca, que exerceu cargo público em uma cidade, decide doar os documentos do mesmo a um museu existente na localidade 3. Em um primeiro momento, a explicação mais provável é que a família meramente gostaria de se livrar dos “papeis velhos” que ocupavam espaço na casa. Mas, se analisarmos com mais cuidado, não seria mais fácil simplesmente descartar o material no lixo? Doar a um museu não pode significar que a família tem intenção que a memória de seu patriarca seja preservada e até perpetuada, através da doação feita? Houve uma seleção prévia, pela família, entre os documentos que deveriam ser doados e outros que poderiam ser descartados? Podem parecer até perguntas óbvias, mas que muitas vezes não são feitas pelos historiadores e nem por aqueles que atuam nestas instituições arquivísticas, museus, centros de pesquisa e memória. Por outro lado, a origem dos documentos e a forma como são organizados e disponibilizados permitem percorrer um caminho histórico, no mínimo, interessante. Retomando o exemplo dos documentos doados pela família ao museu, após uma análise mais detalhada nos documentos, foi possível rastrear uma intensa rede política e intelectual estabelecida pelo patriarca da família. E essa rede política e intelectual também estabeleceu o que podemos denominar de rede documental, pois foi possível mapear a existência de documentos direta ou indiretamente relacionados aos doados em outras instituições do país, como no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Sem uma tentativa de historicizar a trajetória do titular da documentação doada e da própria documentação, não seria possível ampliar as possibilidades de análise sobre a mesma e, consequentemente, fazer com que a própria instituição receptora (e agora, de salvaguarda do acervo) tenha uma visão mais histórica sobre o material recebido. Entender a construção histórica ao longo do tempo se dá além da análise do que é visto nas linhas escritas de um documento, da imagem de uma fotografia, dos detalhes de um objeto. O caminho percorrido pelos documentos até chegar àquele local, a forma como foram armazenados, catalogados e identificados, o acesso aos mesmos, as pessoas que ali trabalharam, como ocorrera a fundação daquele local, tudo isso carrega uma forte carga histórica. Esta, muitas vezes vista sem maior importância, mas que hoje se faz necessária. O caso que abordamos, da unificação dos Arquivos Público e Histórico do Rio Grande do Sul, se torna emblemático. Pois um desconhecimento de vários elementos de sua trajetória acaba dificultando até mesmo uma valorização da mesma. E com isso se corre o grave risco de, por conta dos interesses políticos e econômicos, de se perder um importante espaço de conservação e pesquisa histórica para o estado e o país. Situações como estas indicam cada vez mais para a importância de historicizarmos nossas instituições arquivísticas e de memória histórica, de saber como foram constituídas, assim como os acervos das quais são depositárias. Tanto para se compreender melhor o passado e o presente, mas para se lutar por sua preservação no futuro. E neste ensaio não tivemos a pretensão de lançar grandes questões conceituais sobre o tema, mas contribuir para uma percepção mais prática dessa necessidade. E nós, historiadores, temos um papel importante na execução desse processo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009. ______________. Lugares para a História. Lisboa: Editorial Teorema, 1999. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.ihgrgs.org.br/, acesso em 23/08/2015. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed. Campinas: Unicamp, 2003. NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

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Esta narrativa é baseada em uma doação real, feitas a uma instituição no Rio Grande do Sul.

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SILVEIRA, Daniela Oliveira. “O passado está prenhe do futuro”. A escrita da história no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008. Dissertação [Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS, 2008.

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RECORTES DE JORNAL E ARQUIVO PESSOAL: UMA PROBLEMÁTICA DE ANÁLISE Biane Peverada Jaques 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Durante sua trajetória, tanto individual quanto pública, o Senhor Maximiano Pombo Cirne; jornalista, vereador, advogado entre outras atribuições; nascido no ano de 1910 em Portugal e falecido em 1992 na cidade de Pelotas-RS, guardou diversos tipos de documentação sobre a sua vida. Dessa forma, constituiu-se propositalmente, e isto é importante de ser ressaltado, um rico arquivo privado que compreende aproximadamente os anos entre 1930 a 1992. Tanto a documentação quanto seu conteúdo é extremamente variado, no entanto o elevado número de recortes de jornal chama a atenção, estes são sempre identificados com o título do jornal e a sua data de publicação. Sendo assim, este trabalho possui por objetivo tratar acerca da constituição do arquivo privado do Senhor Maximiano Pombo Cirne bem como problematizar a composição e análise destes recortes de jornal. *** No ano de 1910 nascia no distrito de Aveiro em Portugal Maximiano Pombo Cirne. Logo no inicio da década seguinte emigrou com a mãe e a chamado do pai para o sul do Brasil, onde fixaram residência em Pelotas no Rio Grande do Sul. Tão logo chegou à cidade passou inicialmente como leitor, a ter forte contato com o jornal Diário Popular. Devido seu anseio por iniciar o curso de Direito desentendeu-se com seu pai e teve de retornar a Portugal em 1928. Lá, na Universidade de Coimbra, começou sua formação acadêmica enquanto Bacharel em Direito. Mesmo distante fisicamente de Pelotas Maximiano mantinha contato com uma jovem senhorita brasileira. Este se dava através de poemas escritos pelo próprio Maximiano direcionados a ela 2 e publicados no jornal A Luz. Estes foram cuidadosamente recortados das páginas do jornal e constituem as primeiras documentações do acervo pessoal privado de Maximiano. Seu retorno a Pelotas se deu no ano de 1934 quando passou a colaborar voluntariamente com o Diário Popular, um dos principais jornais diários da cidade com circulação até a atualidade. Uma de suas colaborações, do dia 6 de julho, quem sabe a primeira, jaz em forma de recorte no acervo sob o título “Motivos de arte que são motivos da vida”. Em 1935 além de ser efetivado como funcionário do jornal, considerou prudente, devido a questões burocráticas relacionadas à sua formação acadêmica, recomeçar o curso de Direito em Pelotas. Infelizmente não existem referências a este primeiro período efetivamente profissional de Maximiano no acervo. Nos anos seguintes Maximiano presencia a crise financeira instaurada no jornal Diário Popular, bem como, seu fechamento pelo Governo Vargas. Sendo assim, inicia suas atividades profissionais na Associação Comercial de Pelotas, passa a diretor geral da Associação e finalmente em 1938 atua como intermediário na reabertura do jornal, o qual deixa de ser um órgão do Partido Republicano. Neste momento, devido sua atuação como mediador na reabertura do jornal, passa a atuar profissionalmente como Gerente do Diário Popular. Deste período de sua trajetória foi salvaguardado o cabeçalho do jornal onde consta seu nome como gerente, e diversas reportagens que, supõe-se dirigidas por ele, uma vez que sua imagem aparece em praticamente todos os registros fotográficos. Ainda que se

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (PPGHUFPel), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected] 2 Se este contato entre ambos, naquele momento, excedia os versos dos poemas nas páginas do jornal não temos como saber. No entanto, é sabido que provavelmente a futura esposa de Maximiano tenha sido esta mesma jovem senhorita.

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trate de recortes do jornal observa-se que todas são notícias consideradas pela diretoria como relevantes, afinal, além da presença do gerente, ocupam grande parcela da página do jornal. Logo no início da década de 1940 Maximiano requisita sua naturalização, por motivações profissionais. Em seguida entre aos anos de 1940-41 ocorre sua formatura como Bacharel em Direito, evento fortemente noticiado no jornal Diário Popular, mas observa-se também, no seu arquivo pessoal, referencias ao assunto tanto no Correio Portugues quanto no Progresso da Murtusa. Para acompanhar o processo de naturalização ele deixa a cidade de Pelotas e seu cargo no jornal e muda-se para o Rio de Janeiro. Antes de sua viajem é oferecido um jantar em “homenagem ao distinto jornalista”, o qual é noticiado pelo Diário Popular. O recorte do jornal onde consta a reportagem sobre aquela festividade foi salvaguardado no arquivo de Maximiano. Mesmo atuando como advogado no Rio de Janeiro observa-se no arquivo a existência de reportagens de sua autoria no Diário Popular. No mesmo ano em que o processo de naturalização é deferido, 1945, ele passa a correspondente do mesmo no Distrito Federal. Retorna a Pelotas em 1949, candidata-se a vereador da cidade em 1951 e novamente em 1956, quando torna-se vereador titular. No mesmo ano passa a atuar também como vice-cônsul, motivo pelo qual torna-se alvo de homenagem no Jornal de Estarreja e O Conselho de Murtusa de Portugal; O tempo de Rio Grande, Correio do Povo de Porto Alegre e por diversas vezes no Diário Popular de Pelotas. Os recortes de jornal, salvaguardados por Maximiano referentes as últimas décadas de sua vida, tratam principalmente de questões pessoais e profissionais nostálgicas. Tais como, sua condecoração pelo governo português (1969), a denominada “Caravana da Saudade” (1971), o recebimento do título de Cidadão Pelotense (1972-73), uma homenagem de 25 anos de vice-consulado (1981), a notícia sobre os 50 anos da formatura de sua turma do direito (1990). Existe ainda uma nota de falecimento (1992) provavelmente recolhida por seu filho no jornal O Conselho de Murtosa. Pode-se afirmar, portanto, que desde as primeiras décadas de sua vida o Senhor Maximiano Pombo Cirne passou a salvaguardar grande parte dos registros de sua trajetória. Maximiano tornou-se um indivíduo extremamente influente na sociedade Pelotense do século XX. Sendo assim, a constituição de seu arquivo pessoal deu-se em meio a diversas questões públicas referentes a ele. Dessa forma, um dos principais e mais recorrentes tipos de documentação encontrados no acervo constitui-se de recortes de jornais, nos quais Maximiano ou é o autor da reportagem ou protagonista nela. O arquivo pessoal privado de Maximiano esta sendo organizado de acordo com os seguintes eixos temáticos: correspondência, documentação referente a Associação Comercial de Pelotas, Lions Clube, Sociedade Portuguesa de Beneficiência de Pelotas, política, documentação pessoal e diversos. Além destes eixos temáticos, o fundo documental mais extenso consiste, como já foi mencionado acima, em recortes de jornal. Estes estão sendo organizados priorizando a ordem cronológica em detrimento da temática. Na década de 1970 era relativamente pequeno o número de trabalhos que utilizavam revistas e jornais como fonte para a pesquisa histórica do Brasil. Foi a partir da uma grande renovação temática com novos problemas, novas abordagens e novos objetos, bem como com o fortalecimento da História Cultural e estudo das práticas e representações sociais que foi alterada a concepção tradicional de fonte. Neste sentido, o “[...] estatuto da imprensa sofreu deslocamento funcional ainda na década de 1970: ao lado da História da Imprensa e por meio da imprensa o próprio jornal tornou-se objeto da pesquisa histórica 3 ” (LUCA, 2005, p. 118). Atualmente a fonte periódica tornou-se extremamente valiosa, pois possibilita múltiplas possibilidades para o pesquisador. Existem peculiaridades de análise para os diversos tipos de fontes periódicas, Ana Luiza Martins (2003) buscou conceituar o gênero impresso revista. Quanto a pesquisa em anúncios expostos nos periódicos uma das principais referências é Marcia Padilha (2001), já Ana Maria Mauad (2008) trabalha com fotografia.

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Foi mantido o grifo original do texto.

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Ainda que, de uma forma geral o suporte teórico metodológico de análise para recortes de jornal não diferencie-se do utilizado para as fontes impressas periódicas. Trabalhar com este tipo de fonte, estas provenientes de um arquivo pessoal privado, consiste em levar em consideração alguns aspectos específicos. Os quais serão abordados na sequência deste artigo utilizando como referência os recortes do arquivo do Senhor Maximiano. É fundamental ao menos tentar observar como teria se dado o processo de constituição do acervo, afinal, o objetivo desta composição esta intrinsecamente relacionado com a recordação pessoal e a forma como o indivíduo pretendia ser representado para a posteridade. Sendo assim, se considerarmos “[...] não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é deles” (CHARTIER, 1991, p. 177). Luciana Heymann propõe uma “[...] ‘desconstrução’ da representação dos arquivos privados pessoais por meio do acompanhamento do processo sociológico de constituição destes arquivos” (HEYMANN, 1997, p. 42). Para Roger Chartier (1997) são as estratégias simbólicas que determinam tanto as posições quanto as relações que constroem as identidades. Sendo assim, as representações criadas a partir dos recortes de jornal e salvaguardadas no arquivo pessoal privado de Maximiano, possuem por objetivo, ainda que de forma subjetiva, idealizar uma imagem adequada e coerente do titular. “As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p. 26-27). Dessa forma é preciso ter claro que a unidade do arquivo pessoal é conferida primeiramente pelo próprio indivíduo que o constituiu. “É a pessoa, a partir de seus critérios e interesses, que funciona como eixo de sentido no processo de constituição do arquivo” (HEYMANN, 1997, p. 42). Dessa forma é possível afirmar que foi o Senhor Maximiano que decidiu o que deveria ou não ser guardado e arquivado, bem como de que maneira deveria ser procedido. No caso, recortando apenas a parcela do jornal que lhe convinha, a partir de certos acontecimentos considerados por ele como significativos. De fato, são as características gerais dos arquivos [como, por exemplo, os recortes de jornal], desde seu conteúdo até sua apresentação final sob forma de inventário, que vão não apenas delimitar o universo ‘pesquisável’ nesta fonte específica, como também orientar concretamente o pesquisador que usa a documentação (HEYMANN, 1997), p. 52). Trata-se de um grande equívoco imaginar o arquivo pessoal privado como sendo um reflexo da trajetória do titular ou mesmo como uma espécie de “memória pessoal”. Os arquivos privados possuem um caráter extremamente arbitrário, pode-se observar isso claramente no caso da seleção dos recortes de jornal no acervo de Maximiano. Estes tratam apensas de questões positivas a seu respeito, no entanto é válido ressaltar que esta característica de subtração de elementos é extremamente comum nestes tipos de arquivo. No caso do arquivo pessoal privado do Senhor Maximiano Cirne o fundo dos recortes de jornal não possuem uma lógica de conteúdo, tão pouco um período específico. Tratam-se de uma rede complexa de temáticas diversas as quais não possuem necessariamente uma linearidade coerente. No que se refere ao recorte temporal da documentação, ainda que existam alguns datados anteriormente e outros posteriormente, consiste principalmente no período de atuação profissional pública de Maximiano basicamente entre as décadas de 1930 e 1980. O ponto de convergência em relação aos recortes de jornal consiste na referência direta ou indireta a Maximiano. Um fator importante de ser ressaltado novamente consiste na dimensão física dos recortes. Percebe-se que a grande maioria trata-se de reportagens consideradas relativamente relevantes pela diretoria dos periódicos, pois nota-se o grande volume reservado a elas nas páginas dos jornais. De fato os jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas empreendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos coletivos, por agregarem pessoas em torno de ideias, crenças e

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valores que se pretende difundir a partir da palavra escrita (LUCA, 2005, p. 140). É preciso ter um extremo cuidado quando se retira um texto de seu contexto original de concepção. No entanto esta questão é ainda mais complexa quando se trata de recortes de jornal provenientes de arquivos pessoais privados. Neste caso, será o objeto de pesquisa do historiador o qual irá definir se o contexto do documento será o jornal como um todo ou o acervo para o qual ele foi transferido posteriormente. Conforme Luca: O pesquisador dos jornais e revistas trabalha com o que se tornou notícia, o que por si só já abarca um espectro de questões, pois será preciso dar conta das motivações que levaram à decisão de dar publicidade a alguma coisa (LUCA, 2005, p. 140). Ainda que as reportagens do arquivo de Maximiano encontrem-se recortadas do seu conjunto original percebe-se o cuidado do titular do arquivo para a manutenção de uma determinada coerência. Sendo assim, todos os recortes possuem o nome e a data de publicação do jornal. O que constitui-se enquanto referencia importante na ordem cronológica do acervo. Ainda que existam recortes de diferentes periódicos o mais expressivo, e portanto, não deve ser negligenciado é sem duvida o Diário Popular. Afinal, “[...] o conteúdo em si [dos recortes] não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação na história da imprensa, tarefa primeira e passo essencial das pesquisas com fontes periódicas” (LUCA, 2005, p. 139). O período de atuação de Maximiano no jornal Diário Popular coincide com o momento em que a imprensa brasileira passava por uma grande transformação. Neste caso o jornalismo de cunho políticopartidário cede lugar a uma outra forma de jornalismo, a qual é composta por grandes empresas que obedecem a uma lógica industrial de produção e são ligadas diretamente à ascensão da burguesia (RÜDIGER, 1998). Neste contexto, deve-se compreender “[...] a imprensa como interventora da vida social, manipuladora de interesses e ideologicamente engajada, tal e qual classificamos o Diário Popular [...]” (CAETANO, 2014, p. 26). Através do esboço da trajetória de Maximiano a partir de seu arquivo, exposto nas considerações iniciais deste artigo percebe-se o amadurecimento profissional do sujeito. Como já foi mencionado, os primeiros recortes fazem referência a temáticas extremamente pessoais e românticas. No entanto, conforme os anos avançam observa-se uma mudança gradual nas espécies de recortes salvaguardados. Como, por exemplo, artigos de sua autoria referentes a diversas questões políticas relevantes, tais como, Segunda Guerra Mundial, Governo Vargas, entre outros. Não foi feita até o momento uma análise aprofundada sobre as questões ideológicas e posicionamentos políticos de Maximiano, o que será feito durante o desenvolvimento da dissertação de mestrado, na qual este texto constitui parte da pesquisa. No entanto, todo o seu período de atuação no jornal “[...] foi dirigido por ‘jornalistas independentes’, ligados a faculdade de direito de Pelotas (como professores e ex-alunos) que traziam de bagagem o conservadorismo político da República Velha” (CAETANO, 2014, p.239). O que se pode concluir, após estas breves considerações acerca da problemática existente na análise histórica de recortes de jornal provenientes de arquivos pessoais privados consiste inicialmente na inexistência de “[...] um roteiro rígido e tampouco espécie de fórmula ou elixir aplicável a quaisquer impressos, circunstâncias ou períodos” (LUCA, 2005, p. 130). Se levarmos em consideração a inexistência de um modelo teórico-metodológico fixo na análise dos recortes de jornal e permitirmos que as discussões acerca da fonte fluam, certamente a pesquisa que se valer deste tipo de documentação será pertinente para o conhecimento histórico. Ainda que em alguns aspectos sejam necessárias algumas peculiaridades de análise quando se trabalha com recortes de jornal a crítica feita a documentação permanece a mesma. Assim como é a definição do objeto e objetivo da pesquisa o qual irá definir a melhor forma de analisar a fonte. No caso exposto neste artigo, o objeto é o Senhor Maximiano e o objetivo da pesquisa consiste em uma análise de caráter biográfico do mesmo. Sendo assim, a questão mais relevante de ser problematizada neste caso

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consiste em observar os motivos pelos quais ele salvaguardou os recortes bem como quais as relações de representação impostas por ele. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAETANO, Rosendo da Rosa. O nazi-fascismo nas páginas do Diário Popular: Pelotas, 1923-1939. Pelotas: UFPel, 2014. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pelotas, 2014, 248p. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1990. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, 1991, vol.5, n.11, pp. 173191. HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, Memória e Resíduo Histórico: Uma reflexão sobre Arquivos Pessoais e o Caso de Filinto Müller. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, nº 19, v. 10, p. 41-66, 1997. LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In.: PINSKY, Carla (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 111-154. MAUAD, Ana Maria. O olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da cultura visual. ArtCultura. Uberlândia, nº 16, v. 10, pp. 33- 50, jan-jun, 2008. MARTINS, Ana Luiza. Da fantasia à História: folheando páginas revisteiras. História. São Paulo, nº 22, v. 1, pp. 59-79, 2003. PADILHA, Marcia. A cidade como espetáculo: publicidade e vida urbana na São Paulo nos anos 20. São Paulo: Annablume, 2001. RUDIGER, Francisco. Tendência do Jornalismo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 10 DESLOCAMENTOS E TRAJETÓRIAS: UMA ANÁLISE SOBRE AS E/IMIGRAÇÕES NO CONE SUL

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A “PÁTRIA” E O TRATAMENTO AOS “SÚDITOS DO EIXO”: A CAMPANHA DE NACIONALIZAÇÃO NAS PÁGINAS DO JORNAL CORREIO DE SÃO LEOPOLDO (1942-1945)....................................................... 525 MIGRAÇÃO E PROJETOS CATÓLICOS DE INTEGRAÇÃO NO NOROESTE DO RIO GRANDE DO SUL NO INÍCIO DO SÉCULO XX......................................................................................................................... 533 O BIÊNIO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO RIO GRANDE DO SUL: AS DIMENSÕES POLÍTICAS DAS COMEMORAÇÕES .............................................................................................................................. 543 O EMPRESÁRIO, O COLECIONADOR, O TEUTO BRASILEIRO: BENNO F. MENTZ (1896-1954) ............. 551 O TRABALHO E A IMIGRAÇÃO: OS POLONESES NA PORTO ALEGRE DOS IMIGRANTES NO INÍCIO DO SÉCULO XX.......................................................................................................................................... 561 OS FESTEJOS DO CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA NA QUARTA COLÔNIA (1975-1984) ......... 569 PADRE REINALDO WIEST: O SIMBOLISMO E A REPRESENTATIVIDADE LOCAL ATRAVÉS DO PRCESSO DE SANTIFICAÇÃO ................................................................................................................................... 579 UMA FAMÍLIA EM MIGRAÇÃO: OS SILVA TAVARES E OS FLUXOS MIGRATÓRIOS NO EXTREMO SUL DO BRASIL (c. 1780 – c. 1860) .................................................................................................................. 585

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A “PÁTRIA” E O TRATAMENTO AOS “SÚDITOS DO EIXO”: A CAMPANHA DE NACIONALIZAÇÃO NAS PÁGINAS DO JORNAL CORREIO DE SÃO LEOPOLDO (1942-1945) Paulo Sérgio de Souza de Azevedo 1 INTRODUÇÃO A proclamação da República no Brasil, em 1889, além de ter representado um rompimento com o modelo monárquico (carregado de significância pelo atrelamento ao governo português) abriu caminhos para um período de intensos debates a questão nacional no Brasil. Nas primeiras décadas do século XX podemos observar vertentes que tratam do nacional, a exemplo do ufanismo – representado por Afonso Celso, Olavo Bilac e outros intelectuais. Segundo Lúcia Lippi Oliveira (1990, p.24), Para esta corrente a nacionalidade é pensada não como resultado dos regimes políticos, mas sim como fruto das condições naturais da terra [...] O ufanismo - juntando às qualidades da terra os valores das três raças originárias - operava assim a paz dos espíritos prometendo dias melhores no futuro, já que a natureza dava fundamento a tais esperanças Essa visão mais idealizada acerca da identidade nacional brasileira e de uma suposta superação de divergências políticas, e também diferenças sociais e raciais, representava a busca pela “coesão”, sempre presente nos discursos nacionais. Entretanto, para além dessas reflexões mais centradas no meio das “letras”, podemos observar interferências do Estado brasileiro com a intenção de se fortalecer diante de identidades que supostamente representariam “ameaças” para o Brasil. Já no período da Primeira Guerra Mundial podemos observar medidas que objetivavam dar contornos mais definidos ao “ser brasileiro”, e definir como seria o “brasileiro ideal”. Especialmente a partir de 1917, ano em que o governo brasileiro abandona a posição de neutralidade, rompe relações diplomáticas com o Império Austro-húngaro e a Alemanha e se posiciona ao lado da Tríplice Entente (liderada por Reino Unido, França e Império Russo), observamos ações voltadas, especialmente, aos alemães e descendentes de alemães residentes no Brasil, encarados, por vezes, como inimigos potenciais da nação brasileira. Diferentemente do final do século XIX, quando observamos um período de intensa vinda de imigrantes europeus para o Rio Grande do Sul 2. Este movimento imigratório primeiramente foi incentivado por políticas de estado, com a implantação de uma série de colônias, como Jaguari (1889), a já referida Ijuhy (1890), Guarani (1891), entre outras. O início da Primeira Guerra Mundial assinala modificações nas ações governamentais com relação à imigração, ao menos no plano oficial. Nesse intervalo de tempo tivemos o decreto 2098, de 13 de julho de 1914, que assinalaria o “fim da imigração oficial para o Rio Grande do Sul” (IOTTI, 2001, p.35). O conceito de nação é essencial para compreendermos esse contexto histórico. Embora tenha um enfoque maior em casos europeus, podemos nos apropriar de reflexões trazidas por Eric Hobsbawm (1990), em sua obra Nações e nacionalismos, especialmente no que diz respeito à periodização acerca do nacionalismo e seu impacto sobre os estados. Para Hobsbawm, os anos entre 1918 e 1950 representam o período em que as questões nacionalistas, presente desde o final do século XIX influenciam de maneira decisiva a organização dos estados. Neste artigo tratamos justamente de um período de fortalecimento do discurso nacional no Brasil, com um estado fortemente centralizado, o Estado Novo Varguista, sem falarmos no contexto internacional de Segunda Guerra Mundial. Durante o Estado Novo (1937-1945) podemos constatar uma série de medidas para fortalecer a identidade nacional brasileira, como o controle de órgãos de imprensa, promoção de ritos de culto à pátria brasileira, nacionalização do ensino, entre outras. O D.I.P, departamento de imprensa e

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Mestrando em História pela UFRGS. Contato: [email protected] No ano de 1892 teriam entrado no estado do Rio Grande do Sul 8462 imigrantes de acordo com informações contidas no livro Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Povoadores do Rio Grande do Sul, 1892. Porto Alegre: Edições EST, 2004.

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propaganda, foi fundado em 1939 com a intenção de controlar serviços de publicidade e propaganda e servir como “porta-voz autorizado do regime”. 3 Neste trabalho primeiramente serão abordados alguns aspectos mais gerais do jornal Correio de São Leopoldo, logo depois trataremos da questão nacional durante o Estado Novo e por último nos deteremos às representações que o jornal Correio de São Leopoldo construiu acerca dos “súditos do eixo”, especialmente dos alemães e seus descendentes 4. O recorte cronológico se concentra entre os anos de 1942-1945, período em que verificamos hostilizações aos imigrantes e descendentes germânicos, além de italianos e japoneses que, entretanto, não serão tratados de forma mais detalhada neste artigo. O JORNAL CORREIO DE SÃO LEOPOLDO Na leitura de exemplares do Correio de São Leopoldo 5 temos indícios de como os acontecimentos arrolados durante a Segunda Grande Guerra serviram para modificar o discurso jornalístico acerca da relação da identidade nacional brasileira com os possíveis “inimigos do patriotismo” no Brasil, especialmente os germânicos. Justamente é interessante verificar como ao mesmo tempo em que o jornal teve por objetivo disseminar a campanha de nacionalização de Vargas, que foi se tornando cada vez mais ofensiva com relação aos possíveis “súditos do eixo”, procurou adaptar seu discurso a um público leitor, constituído essencialmente pela comunidade leopoldense, que embora tivesse um legado dos germânicos, se constituía também por outras etnias, por pessoas vindas de outras localidades. Dentre as questões a serem pensadas, quero destacar inicialmente as relações estabelecidas entre o poder político constituído em São Leopoldo e o governo de Vargas, as quais servem para compreender o forte discurso de caráter nacionalista presente no jornal Correio de São Leopoldo. Para compreender os motivos pelos quais considerei de extrema relevância verificar a relação entre poder local constituído, em termos políticos, e o Estado Novo varguista é necessário ter em mente algumas peculiaridades do jornal em análise. O Correio de São Leopoldo foi fundado em 4 de abril de 1932, e teve circulação até o ano de 1952. 6 Seu público alvo era a comunidade leopoldense, e foi criado como um órgão da imprensa de apoio ao prefeito da cidade, Theodomiro Porto da Fonseca, que governou durante um extenso período de tempo (1928-1944). Observamos uma imensa quantidade de notícias que dão conta das realizações de Theodomiro no município de São Leopoldo. Circulava semanalmente, sempre aos sábados, e tinha sua sustentação econômica pelos anúncios e pelas assinaturas de leitores, que podia ser anual, semestral ou pela compra de exemplares avulsos. Recorrentemente, nas páginas desse órgão da imprensa se faz presente a nacionalização, seja de maneira explícita, seja de modo mais velado, como tentativa de sobrepor a identidade nacional brasileira à forte ligação que a comunidade possuía com o germanismo. Importante para a análise proposta neste trabalho é o conceito de etnicidade, tendo como referência a obra Teorias da etnicidade, de Poutignatt & Streiff-Fenart (1998). As reflexões dos dois autores possibilitam uma compreensão acerca de como a identidade forjada pelos grupos étnicos – a exemplo dos teuto-brasileiros – se constrói de forma dinâmica, modificando-se em determinadas circunstâncias, e relacional, em contraste com aquele que é encarado como “o outro”. No discurso presente no Correio de São Leopoldo percebemos como, por vezes, o elemento “germânico” da comunidade é visto como pertencente à identidade nacional brasileira, e em outros momentos as “origens germânicas” são colocadas em oposição ao “ser brasileiro”. Embora não fizesse parte do recorte cronológico apontado para análise consultamos jornais anteriores ao advento do Estado Novo (1937). Boa parte dos jornais da década de 30 apresenta um discurso que em diversas situações exalta a contribuição dos alemães e teuto-brasileiros não somente 3

Ver https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/DIP Este artigo traz à tona e busca expandir reflexões apresentadas em meu trabalho de conclusão de curso intitulado “PELA PÁTRIA!”: A Campanha de nacionalização repercutida nas páginas do jornal Correio de São Leopoldo durante a Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: UFRGS, 2011. 5 Os exemplares do Correio de São Leopoldo consultados encontram-se disponíveis no Museu Visconde de São Leopoldo. 4

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para o município de São Leopoldo, mas também para o estado e o país. Exemplo dessa circunstância foi a edição publicada em 1º de maio de 1934, em “homenagem ao trabalho da colonização alemã no Rio Grande do Sul”, devido aos 110 anos da imigração no município, e que ainda reforçava a celebração ao dia do trabalhador. Nas páginas dessa edição percebemos um discurso descrevendo o “colono alemão” como aquele que fortaleceu o caráter trabalhador do povo gaúcho. Diversos são os elogios à contribuição dos imigrantes alemães e seus descendentes, como a matéria intitulada “A solidariedade e o espírito associativo entre os germano-riograndenses”, “Desenvolvimento da colônia alemã no Rio Grande do Sul”. Além disso, são mencionadas personalidades de ascendência germânica e com destaque no cenário gaúcho, como é o caso de Carlos Trein (diretor de terras e colonização), Arno Phillip (poeta e jornalista), Rodolfo Gliesch (naturalista), Carlos Wallau (médico), Oscar Simm (violinista), entre outros. (CORREIO DE SÃO LEOPOLDO, 1934, p.2) A ligação do periódico Correio de São Leopoldo com a figura de Theodomiro Porto da Fonseca faz com que seja importante considerar alguns aspectos que dizem a respeito à trajetória política desse personagem que governou o município de São Leopoldo durante cerca de dezesseis anos. Nesse aspecto, a proximidade entre o prefeito e o governador Flores da Cunha, colegas no Partido Republicano Liberal, se transforma em uma dissidência antiflorista, noticiada no jornal Correio de São Leopoldo, de 8 de maio de 1937 (p.1), e em exemplares posteriores. A partir daí verificamos uma aproximação cada vez maior do prefeito de São Leopoldo com a figura de Getúlio Vargas, que desde 1932 vinha num processo de desgaste nas relações com Flores da Cunha. Essa constatação de que o jornal possuía um posicionamento político bastante claro o diferencia de alguns importantes órgãos de imprensa do estado que adotavam uma postura calcada no discurso da “neutralidade”, como era o caso do Correio do Povo. No Correio de São Leopoldo comumente tínhamos estampadas na capa notícias ocupando espaços enormes e que davam conta das obras realizadas pelo prefeito e das homenagens que recebia de diferentes setores sociais, as quais pareciam ser superdimensionadas, como se representassem os anseios de toda a comunidade. Entretanto, embora tivesse sua própria existência vinculada ao prefeito e seus aliados políticos, o jornal que me propus a analisar atendia não apenas a interesses políticos, mas também comerciais, visto que não era distribuído gratuitamente e sim mediante assinaturas, como já fora comentado neste trabalho. Contava ainda o Correio de São Leopoldo com o apoio de setores industriais e comerciais, que publicavam seus anúncios no periódico, dos quais os nomes mais recorrentes são os de Arno Mohr e Amadeo Rossi. Na sessão a seguir trataremos mais detidamente de alguns aspectos relacionados com a questão nacional durante o Estado Novo e as influências da Segunda Guerra Mundial, no período da “neutralidade” (1939-1941) e posteriormente a tomada de posição do Brasil no conflito (1942-1945). QUESTÃO NACIONAL, “NEUTRALIDADE” E “OS SÚDITOS DO EIXO” Como referido na introdução deste artigo já na época da Primeira Grande Guerra observamos preocupações com a questão nacional. Especialmente as regiões que receberam considerável contingente de imigrantes europeus foram alvo de medidas nacionalizadoras por parte do estado brasileiro. O trabalho de Celso Acker (1996) abordou a relação entre serviço militar e as medidas nacionalizadoras promovidas pelo governo brasileiro, visando atingir populações de imigrantes, e seus descendentes, concentradas em Ijuí. Entretanto, ao nos referirmos à campanha de nacionalização estamos tratando do conjunto de medidas promovidas pelo Estado Novo brasileiro, sob a liderança do então presidente Getúlio Vargas, com o propósito de consolidar a nacionalidade brasileira através de um conjunto de medidas que atingiu especialmente os imigrantes e seus descendentes – os denominados “quistos étnicos” (GERTZ, 2005). A atuação do Estado brasileiro para disseminação da nacionalização ocorreu em diversas frentes, além da imprensa, podemos mencionar a propaganda e o controle de meios de comunicação – como jornais e revistas, a promoção e ampla divulgação de ritos cívicos, as ações no campo da educação, o serviço militar entre outras formas de fortalecer esse movimento de valorização da identidade nacional brasileira em detrimento de outras.

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Benedict Anderson (2008, p. 215) se refere ao amor patriae, como um sentimento quase que irracional de afeição pela pátria, em grande parte ligada ao idioma vernáculo – talvez daí se tenha a proibição, durante o Estado Novo, de escolas bilíngues, inclusive com o “aportuguesamento” de certas instituições 7. Esse tipo de situação se faz presente ao menos nos discursos construídos pelo jornal Correio de São Leopoldo. A nação, para Anderson (2008), é encarada como uma “comunidade imaginada”, além de “intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana” (p. 32). Para o autor, de forma resumida, a ideia de “imaginada” remete para a noção de que pessoas pertencentes ao que denominamos de nação nunca conhecerão todos os membros dessa comunidade, mesmo guardando um sentimento de união. No contexto sul rio-grandense a nacionalização se intensificou durante a interventoria de Cordeiro de Farias, entre os anos de 1938 e 1943. Outro personagem importante na disseminação de ideias de fortalecimento da nacionalidade brasileira, em detrimento de outras, foi o chefe de polícia Aurélio Py, que escreveu o livro A quinta coluna, publicado no ano de 1942. De certa forma, a postura pouco ofensiva por parte do periódico, num primeiro momento do conflito internacional, reflete um posicionamento indeciso, porque não dizer, do governo brasileiro com relação às potências do Eixo. Para uma melhor compreensão dessa complexa questão, devemos pensar que as ideologias autoritárias apregoadas pelo nazismo alemão e o fascismo italiano convergiam em muitos aspectos com o Estado Novo brasileiro, e que provavelmente a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial se deu bem mais por fatores econômicos e diplomáticos, que de incompatibilidade ideológica. Dentre as obras de destaque sob essa perspectiva, gostaria de mencionar O Brasil vai à Guerra: o processo de envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial (SEITENFUS, 2003), que inclusive possui um capítulo em que o autor comenta que durante a Segunda Guerra Mundial houve momentos em que o governo Vargas mostrou inclinação para o lado germânico, como no discurso de 11 de Junho de 1940, pronunciado em Minas Gerais. A neutralidade brasileira, que ocorre em parte pelas decisões da Conferência do Panamá, mas principalmente pela falta de condições para que o país pudesse atuar de maneira efetiva no conflito internacional, é inclusive mencionada em algumas colunas do Correio de São Leopoldo. Exemplo disso é a nota “A neutralidade brasileira” referente à edição publicada no dia 16 de setembro de 1939, em que é divulgado um pronunciamento que vem do diretor da secretaria do Interior, M. Bernardi direcionado ao prefeito da cidade. Se levarmos em conta o conteúdo das notícias, colunas e editais divulgados pelo jornal Correio de São Leopoldo, entre o início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, e o alinhamento brasileiro com as potências aliadas, no ano de 1942, perceberemos que a “neutralidade” teve impacto no periódico, ao passo que não verificamos hostilidades, nos exemplares consultados, com relação aos países do eixo, ou aos aliados. Mais importante que esta questão envolvendo o que ocorria no exterior, é perceber que os próprios “quistos étnicos” – neste trabalho, mais pertinente os descendentes de alemães – não são, pela análise dos jornais, alvo de campanhas ofensivas, por mais que sua postura diante da pátria brasileira pudesse ser eventualmente “contestada”. A nacionalização do Estado Novo parece se voltar bem mais para a integração das diferentes regiões brasileiras, embora fossem tratadas questões atinentes à assimilação dos imigrantes. Apesar disso, mesmo nesse período de “neutralidade”, o discurso nacionalista não deixa de ser algo bastante visível no periódico. A figura de Getúlio Vargas é constantemente elogiada e tem pronunciamentos seus divulgados, como no primeiro jornal do ano de 1940, editado em 6 de janeiro. Na ocasião, o “chefe da nação”, para utilizar a expressão mais recorrente que o periódico utilizava para designar Vargas, alerta para o fato de ser necessário, mesmo em “meio as festividades”, para a necessidade mantermos “o amor pelo Brasil”, até para a “construção de uma Patria [...] mais próspera e mais feliz” (CORREIO DE SÃO LEOPOLDO, 6 de jan. 1940, p. 1). De um modo geral, esses pronunciamentos eram bastante repetitivos, baseados em mensagens simples e que apelam para o lado emocional, algo característico da estratégia de persuasão nacionalista.

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A Sociedade esportiva palestra Itália em 1942 se tornou Sociedade esportiva Palmeiras.

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A diferenciação com relação ao período de neutralidade é perceptível no discurso adotado pelo jornal a partir de 1942. A tomada de posição do Brasil durante a 2ª guerra mundial será determinante para nos depararmos diante de uma “pressão violenta contra descendentes de outras nacionalidades” (ACKER, 1996, p. 157). No Correio de São Leopoldo percebemos, sobretudo nas edições entre 1942 e 1945, uma ofensiva contra possíveis inimigos da nação brasileira. O discurso de defesa do Brasil, potencializado em tempos de guerra, também pode ser encontrado em outros jornais e revistas de ampla circulação na época, como é o caso do Correio do Povo e da Revista do Globo. Apesar das similaridades no discurso promovido por esses periódicos é importante assinalar algumas diferenciações entre um jornal de circulação mais restrita à cidade de São Leopoldo, considerando o território do município na década de 30 e 40, e a disseminação da campanha de nacionalização, e de “ódio” contra os “súditos do eixo”, em órgãos de imprensa de maior circulação. Um dos fatores determinantes para a organização de uma campanha contra os germânicos, e descendentes foi o torpedeamento de navios brasileiros, em agosto de 1942, supostamente por submarinos alemães. Este acontecimento serviu, possivelmente, como uma das motivações para a declaração de guerra à Alemanha e Itália feita pelo governo brasileiro. O Correio de São Leopoldo concede espaços generosos em suas edições de agosto e setembro de 42, como no título de reportagem anunciando que “A alma cívica de São Leopoldo vibrou no comício em regozijo pela declaração de guerra do Brasil contra a Alemanha e Itália” Na mesma edição temos títulos de colunas anunciando uma missa pela suposta “barbárie do eixo”, que teria vitimado diversas “almas”. (CORREIO DE SÃO LEOPOLDO, 20 de ago. de 1942). A repercussão do torpedeamento dos navios brasileiros, do rompimento de relações diplomáticas e da declaração de guerra às forças do eixo pelo governo do Brasil se fez presente também em periódicos como o Correio do Povo e a Revista do Globo. Além disso, esses órgãos da imprensa fizeram uma ampla cobertura às hostilizações dos supostos “súditos do eixo”, inclusive com eventos ocorridos na cidade de Porto Alegre, como a depredação a estabelecimentos comerciais de propriedade de alemães e italianos. Esses acontecimentos possibilitam reflexões acerca de questões identitárias. Constantemente os imigrantes europeus e seus descendentes foram representados em periódicos como aqueles que teriam trazido o “trabalho” e a “ordem” para o Brasil. O próprio jornal Correio de São Leopoldo em boa parte da década de 30, especialmente os anos anteriores ao Estado Novo, ressaltou a importância da influência “germânica” na região. A representação da comunidade leopoldense construída pelo Correio de São Leopoldo modificou-se especialmente se compararmos a década de 30, sobretudo no período anterior a 1937, com a tomada de posição do Brasil na Segunda Guerra, em agosto de 1942. Se anteriormente os vínculos da população local com uma suposta origem teuta eram vistos com bons olhos, quase que encarados como motivo de orgulho, na década de 40 a estratégia adotada pelos colunistas do periódico é ressaltar os aspectos brasileiros dos habitantes da região. Em uma das notícias podemos perceber, além dos aspectos relacionados com a mobilização de determinados setores da sociedade local, a presença do prefeito Theodomiro Porto da Fonseca e dos subprefeitos de São Leopoldo. A elite política constituída naquela localidade se aproximava da “cruzada” contra os “inimigos” que afundaram navios brasileiros, como foi o caso do próprio “Itagiba” (CORREIO DE SÃO LEOPOLDO, 6 de set. de 1942, p.3). Bastante peculiar no discurso do jornal que me proponho a analisar é o fato de, como foi anteriormente mencionado, mostrar a comunidade local como plenamente integrada ao sentimento de brasilidade. Ao tratar de assuntos mais “delicados”, como quem seriam os “maus brasileiros”, parece que a estratégia empregada no periódico foi a de divulgar notícias com referências a exemplos de outras localidades, ou seja, o que não deveria ser feito vinha sempre de fora. De um modo geral, esses casos de atentado contra a pátria são vistos como esporádicos, sendo constantemente realçado o caráter bem sucedido da campanha de nacionalização. O jornal Correio de São Leopoldo ao mesmo tempo em que nos revela determinados aspectos da campanha de nacionalização, obscurece determinadas questões. Se por um lado conseguimos, através da análise de exemplares desse jornal, perceber o alinhamento entre o governo local e a política apregoada pelo Estado Novo e, além disso, encontrar um discurso que tende

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a ressaltar a integração da comunidade leopoldense com a causa nacional, por outro lado são levemente tocados os aspectos que dizem respeito às hostilidades contra os indivíduos que não aderiam à “causa nacional”. As violências promovidas contra imigrantes alemães no Rio Grande do Sul não são mencionadas, apesar de percebermos, em alguns momentos, um forte repúdio aqueles que, supostamente, não se identificavam plenamente com o sentimento de brasilidade, ou que ao mesmo tempo sentiam-se germânicos, sendo por vezes rotulados de “maus brasileiros”, de “sabotadores” ou tachados de “traidores”. Um exemplo do uso dessa estratégia pode ser identificado na coluna de Péricles do Correio de São Leopoldo de 31 de janeiro (1942, p. 3), intitulada “Mais um derrotista”, em que o autor se refere a um episódio ocorrido na cidade de Ijuí, localizada no noroeste do Rio Grande do Sul. Os relatos se baseiam em informações de outros jornais, não sendo citados nomes, sendo simplesmente mencionado o fato de serem provenientes da serra gaúcha. A notícia daria conta de um reservista que, ao apresentarse ao Delegado da Junta Local, teria se declarado como alemão, e não brasileiro, mesmo tendo nascido em Cadeado, segundo distrito de Ijuí – fato que gera forte indignação por parte do colunista que relatou o caso. Vale relembrar que a campanha de nacionalização foi mais intensa em regiões que tiveram forte contingente populacional oriundos das imigrações do século XIX e XX, a exemplo da própria localidade de Ijuí, que em sua origem foi colônia uma “colônia mista”, recebendo diversas etnias, como poloneses, alemães, italianos, austríacos, entre outros. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Neste trabalho busquei identificar os mecanismos utilizados pelo jornal Correio de São Leopoldo no tratamento aos “súditos do eixo”, como um dos aspectos pertencentes à campanha de nacionalização, promovida pelo Estado Novo, com enfoque no período correspondente à tomada de posição do governo brasileiro na Segunda Guerra Mundial. Foi possível verificar que alguns elementos da nacionalização foram amplamente divulgados, enquanto que outros foram silenciados, fato que está relacionado com uma estratégia que visava adaptar um discurso calcado no nacionalismo brasileiro em uma região em que uma parte considerável da população possuía ascendência germânica – fazendo parte, desta forma, dos denominados “quistos étnicos”, os quais eram vistos como empecilhos para a consolidação de uma identidade nacional brasileira. A análise de notícias, colunas, editoriais, entre outras sessões do jornal, permitiu-me constatar uma postura extremamente conservadora, algo justificável pelo seu alinhamento com o poder político constituído e suas relações com importantes setores econômicos do município. A tônica do discurso proferido pelo Correio de São Leopoldo se centrava nas realizações do prefeito Theodomiro Porto da Fonseca, com grande ênfase também na figura do “Chefe da Nação”, denominação dada ao presidente Getúlio Vargas. O discurso do Correio de São Leopoldo fazia, entretanto, com que não fossem divulgadas notícias alusivas às violências contra os teuto-brasileiros, como confisco de bens, abusos por parte da polícia, e especialmente as depredações de estabelecimentos comerciais, ocorridas em cidades do Rio Grande Sul após os bombardeios dos navios brasileiros por submarinos alemães, situadas cronologicamente em agosto de 1942. Aqui cabe ressaltar que essa postura não dizia apenas respeito à questão da nacionalização, e sim estava atrelada à própria “forma de ser” do jornal, a ponto de nem sequer as notícias relacionadas com a violência cotidiana no município serem publicadas. Neste trabalho foi igualmente importante considerar a dinâmica na postura do jornal em análise, até por ter sido este objeto de pesquisa. Os dados que obtive acerca do jornal foram oriundos das análises do conteúdo deste, e ainda das generosas contribuições do historiador Germano Moehlecke, que já utilizou o periódico em seus trabalhos, só que de forma subsidiária. Possivelmente, a forma como foi representada a população de São Leopoldo oculta questões importantes acerca dos problemas que envolviam a nacionalização em regiões de forte contingente germânico, como era o caso do município. A comunidade era comumente descrita como “ordeira” e “trabalhadora”, marcas em geral identificadas com o “sangue alemão”, entretanto, ao mesmo tempo, buscou-se criar uma imagem de vinculo incondicional dos leopoldenses com a identidade brasileira.

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Esse ponto pôde ser identificado na análise das notícias que davam conta das manifestações cívicas, sempre descritas de uma forma que dava a impressão de que todos os habitantes da cidade eram patriotas, uma estratégia jornalística de dimensionar excessivamente determinados fatos, a fim de modificar determinadas práticas sociais, o que nesse caso se relacionava com a necessidade de fazer com que as pessoas se identificassem plenamente com a nacionalidade brasileira, sem sentimentos de pertencimento concomitantes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ACKER, Celso Henrique. Serviço militar e nacionalidade: os tiros de guerra no Rio Grande do Sul: o tiro de guerra 337 de Ijuí (1917-1944). Porto Alegre: UFRGS, 1996. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. AZEVEDO, Paulo Sérgio de Souza de. “Pela Pátria!”: A Campanha de nacionalização repercutida nas páginas do jornal Correio de São Leopoldo durante a Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: UFRGS, 2011. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Estado Novo, o DOPS e a ideologia da segurança nacional. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. ELMIR, Claudio. As armadilhas revisitadas: o jornal e a pesquisa histórica. Conferência de abertura do colóquio Fontes Periódicas: imprensa política e cultura latino-americana. Inédito, 2007. FACHEL, José Plínio Guimarães. As violências contra os alemães e seus descendentes, durante a Segunda Guerra Mundial, em Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Ed. UFPEL, 2002. GERTZ, René E. Cidadania e Nacionalidade: História e Conceitos de uma época. In: MÜLLER, Telmo L. (Org.) Nacionalização e imigração alemã. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994b. ____________________. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005. HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo Desde 1780. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. LUCA, Tânia Regina de. História nos, dos e pelos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezzi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. MOEHLECK, Germano. São Leopoldo era assim: o passado pela imagem. São Leopoldo: Rotermund S.A, 1982. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1990. POUTIGNATT, Philippe STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Trad. Elcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. SEITENFUS, Ricardo. A Entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. SEYFERTH, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. SILVA, Haike Roselane Kleber da. Entre o Amor ao Brasil e ao Modo de Ser Alemão: a história de uma liderança étnica (1868-1950). São Leopoldo: Oikos, 2006.

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MIGRAÇÃO E PROJETOS CATÓLICOS DE INTEGRAÇÃO NO NOROESTE DO RIO GRANDE DO SUL NO INÍCIO DO SÉCULO XX Wesz, Mauro Marx 1; Quevedo, Julio Ricardo 2. Neste artigo pretendemos demonstrar as relações entre duas comunidades que se desenvolveram no noroeste do Rio Grande do Sul ou região das Missões, na primeira metade do século XX. As relações sociais mantidas entre essas comunidades rurais permite identificar a presença de jesuítas, colonos de origem diversa e também a população cabocla, grupos sociais que permeiam nossos estudos no projeto intitulado “Colônia Rondinha/Santa Lúcia: missioneirismo e colonização na região noroeste do Rio Grande do Sul no início do século XX”. Os elos mantidos entre a colônia Serro Azul (atual Cerro Largo) e a Vila Santa Lúcia (atual Caibaté), acima de tudo no que diz respeito ao aspecto religioso e assim, aos vínculos que os jesuítas procuraram manter e estender nas duas colônias são pertinentes para compreender a ordem discursiva que foi sendo paulatinamente construída na região. O interesse eclesiástico neste espaço aumentou de forma significativa quando o Pe. Carlos Teschauer 3, historiador orgânico da Companhia de Jesus, afirmou ter encontrado o “Caaró”, local onde teria ocorrido o “martírio” de dois dos três padres jesuítas missionários Roque Gonzáles de Santa Cruz, Afonso Rodriguez e Juan Del Castillo que ocorreu em 1628. 4 Posteriormente esta tese seria reafirmada pelo Pe. Luiz Gonzaga Jaegger S.J. 5 na legitimação do local enquanto sagrado. Iniciaremos a abordagem a partir de alguns aspectos do contexto histórico da criação destas duas colônias, formadas principalmente por indivíduos ligados à posse da terra, e na sequência analisaremos através da documentação, alguns dos agentes envolvidos na construção da vila Santa Lúcia e do Santuário do Caaró e que mostram também o processo de apropriação territorial existente no local entre os anos 1920 e 1930 bem como a dinâmica de relações sociais vigentes. POVOAMENTO COM DESCENDENTES DE IMIGRANTES EM SERRO AZUL E SANTA LÚCIA A colônia Serro Azul foi inicialmente composta por descendentes de imigrantes europeus provenientes de vários locais do Rio Grande do Sul, mas principalmente Tupanciretã. O interesse pela colonização do local, foi desde o início uma das propostas do Bauerverein 6 (associação de colonos católicos). Após a aprovação deste projeto, em 1902 a maioria dos colonos vindos que eram de Tupanciretã além de jesuítas e outros indivíduos ligados à Bauerverein criaram condições para a 1

Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestrando do PPGH em História da UFSM e bolsista Capes. 2 Professor Titular do Departamento de História e do PPGH em História na UFSM. Doutor em História Social pela USP. Orientador. 3 TESCHAUER, C. Vida e obras do Venerável Roque Gonzáles de Santa Cruz primeiro apóstolo do Rio Grande do Sul. 2 ed. Rio Grande do Sul: Edição da Livraria Americana, 1913. Emérito historiador da Companhia de Jesus, Carlos Teschauer (1851-1930) foi membro da Academia Rio-Grandense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. 4 Devemos referir alguns estudos sobre este acontecimento: OLIVEIRA, Paulo Rogério de. O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província Jesuítica do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque Gonzáles nas tierras de Ñezú. 2009. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. QUADROS, Ezeula Lima. A defesa do modo de ser guarani. O caso de Caaró e Pirapó, em 1628. 162 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS. 5 JAEGER, L, G. Os três mártires rio-grandenses. Porto Alegre: Livraria, Selbach, 1951. Emérito historiador da Companhia de Jesus, Luiz Gonzaga Jaeger (1889-1963) foi membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, além de professor do Colégio Anchieta em Porto Alegre e também fundador do Instituto Anchietano de Pesquisas. 6 O Bauerverein como ficou conhecida a Associação de Agricultores, tem a ver com o novo conceito dos termos “trabalho e colono” publicado por Amstad nos dois primeiros anos do Bauernfreund. Em uma série de publicações que intitulou “O A-B-C do Bauerverein”, trazia formação e informação e propostas aos colonos. SANTOS, Alba Cristina dos. As Marcas de Amstad no Cooperativismo e no associativismo gaúcho: as Rememorações da Associação Theodor Amstad e da Sicredi Pioneira. Sescoop, Porto Alegre, RS, 2014.

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manutenção e desenvolvimento de Serro Azul. Seu primeiro diretor foi o Cel. Jorge Frantz, tendo como cura espiritual o Pe. Max von Lassberg 7S.J. Neste local a influência da paróquia se ramificava para uma série de outras pequenas comunidades, em Serro Azul a paróquia terminou de ser construída em 1919 e já em 1928 o Seminário de Jesuítas. Roche (1969) confere alguns detalhes acerca da composição das origens de seus moradores entre 1926-1927: Cerro Azul foi fundada em 1902 pelo rio-grandense Bauerverein e era essencialmente católica (91% das 1.260 famílias de 19270. A origem dos chefes de família de 1925-1927 era a seguinte: Cerro Azul – Alemanha 8%, Colônias velhas 87%. O papel da imigração estrangeira fica cada vez mais reduzido enquanto cresce o das migrações internas, a partir das colônias mais antigas. (ROCHE, 1962, p. 130) Distante cerca 30 km de Cerro Largo, a vila Santa Lúcia foi assim denominada a partir de 1927, o nome anterior do local era Rondinha 8, onde não houve povoamento sistemático. Com a chegada de descendentes de imigrantes europeus o local passou a levar o nome de colônia. O povoamento com colonos passou a ocorrer a partir de 1920 quando os herdeiros do antigo proprietário Joaquim Gomes Pinheiro Machado venderam suas partes hereditárias, que regularizadas foram colocadas à venda como lotes coloniais de 20 a 30 hectares de terra. É importante mencionar que apesar de diferentes formas de povoamento nos dois locais, ambas fazem parte dos desdobramentos do processo de colonização com imigrantes germânicos iniciada no sul do Brasil em 1824. O movimento migratório do qual tratamos ocorreu com intensidade nas primeiras décadas do século XX, e deu origem a muitas localidades que se desenvolveram principalmente através da agricultura. Dentre as fontes utilizadas para este artigo estão trechos contidos na transcrição dos livros tombo da Paróquia Sagrada Família de Nazaré e do Seminário São José de Cerro Largo, que vai desde 1902 até 1954. Vamos analisar principalmente a presença da religião nestas comunidades e as formas de integração nestes locais. Outros relatos jesuíticos como o livro de memórias do Pe. Ambros Schupp S.J. e do Pe. Johaness Rick S.J. também serão usados justamente por terem relação direta com o tema do auxílio à colonização da então chamada Região de Matas do Rio Grande do Sul. As origens do município de Caibaté nos remetem primeiramente ao século XIX, quando tropeiros denominaram por “Rondinha” um local propício para a pastagem e descanso do gado, porém a explicação para o povoamento do atual núcleo urbano do município encontra-se no loteamento das terras do antigo proprietário pelos seus herdeiros, acima mencionados, e a regularização para venda em lotes coloniais pelo engenheiro Henrique Leopoldo Seffrin, que ocorreu a partir de 1921. Com a chegada de descendentes de imigrantes europeus o local passou a ser referido como colônia Rondinha. Como mencionado anteriormente, em 1927 foi localizada a primeira sede distrital, naqueles anos a região fazia 7

“O padre Max von Lassberg, nasceu no dia 13 de fevereiro de 1857 em Detmold na Baviera, Alemanha. Prestou seus estudos no Ginásio Stella Matutina, onde apresentou grande interesse para a vida religiosa; terminou seus estudos teológicos ainda no Brasil em 1888 e recebeu a ordenação sacerdotal na cidade de Montevidéu/Uruguai. Com participação ativa na vida das comunidades teuto-brasileiras, onde atuava como pastor e mentor para os mais variados problemas, Lassberg tornou-se um homem de confiança para os imigrantes. Ele foi considerado um dos maiores “experts” em termos de implantação e consolidação de projetos de colonização na primeira metade do século XX, colaborando para a colonização de Colônias como Serro Azul, no Rio Grande do Sul, San Alberto e Puerto Rico, na Argentina e Porto Novo em Santa Catarina.” BLUME, W; WITT, M. Organização social e mobilidade espacial: estudo sobre imigrantes alemães e descendentes no Brasil e na Argentina. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 16, n. 2, p. 97-111, jul./dez. 2014. 8 “Por Ato nº128, de 31 de dezembro de 1926, assinado pelo Intendente de São Luiz Gonzaga, Virgilino Martin Coimbra, foi criado o 8º Distrito com sede em Santa Lúcia (atual cidade de Caibaté), tendo saído uma pequena área do 7º Distrito de São Lourenço das Missões para incluir Caaró na área do município. A instalação do 8º Distrito, conhecido como “Colônia Rondinha” e com sede no povoado de Santa Lúcia ocorreu dia 06 de janeiro de 1927, sendo primeiro Juiz Distrital o Sr. Hiran Ribas Pinheiro; primeiro escrivão o Sr. Eugênio Thomas e o primeiro subprefeito o Sr. Cristiano Teixeira Machado. Nesse mesmo ano foi instalado o Cartório da Justiça de Paz.” WILLERS, Charlei K. Rondinha, Santa Lúcia, Caibaté – A caminhada de um município. 2004. 41 f. Monografia (Licenciatura em História) – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Santo Ângelo.

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parte do 8º distrito de São Luiz Gonzaga e a procura pelos lotes coloniais disponíveis vinha ao encontro de questões em andamento no Rio Grande do Sul a principal delas era a intensa movimentação de descendentes de imigrantes que buscavam novas terras para a prática da agricultura, e assim, acomodar satisfatoriamente suas respectivas famílias que normalmente contavam com muitos integrantes. As características econômicas da região neste período e os indivíduos que buscaram a compra de propriedades em Santa Lúcia fazem parte da “enxamagem” conforme definiu Jean Roche (1969), e pode ser explicado por vários fatores. O modelo de pequena propriedade, o desgaste do solo praticado pelas primeiras gerações de imigrantes, fatores cujas consequências com o decorrer do tempo foram de ordem demográfica, econômica e social, o que para este autor, teria modificado o equilíbrio do Rio Grande do Sul. Deste contexto migratório, a então vila Santa Lúcia abrigou uma grande variedade de famílias, com diferentes histórias e diferentes origens. Esta característica lhe confere a denominação de colônia mista, devido à heterogeneidade de seus habitantes. Um dos aspectos fundamentais para o entendimento da trajetória histórica da comunidade de colonos de Santa Lúcia é a ação empreendida pela Companhia de Jesus na região. Na documentação os próprios jesuítas se reportam à comunidade como sendo Caibaté e Santa Lúcia a capela curada vinculada a São Luís Gonzaga, de Caibaté. Os jesuítas constatam que: “até poucos anos atrás não ocorrera aos colonos melhorarem a situação financeira por meio de um manejo metódico da terra [...] os descendentes continuaram a proceder da mesma forma” (SCHUPP, [1912], 2004, p.209). Mas, o jesuíta também busca o entendimento desse marasmo, dessa apatia nas estruturas de poder político da época ao afirmar sobre a Região das Matas: “Pelo que sabemos, até 1900 não aconteceu nada em favor da proteção das matas por parte das autoridades oficiais” (SCHUPP, [1912], 2004, p.209). A fim de superar esse problema, os jesuítas propõem ações concretas e constroem discurso que: “preocupavam-se muito com o bem estarmaterial dos colonos”, como alude Ambros Schupp, S.J., em sua crônica. Numa perspectiva de economia solidária, os jesuítas e as comunidades de colonos organizaram as Assembleias Gerais dos Católicos. Os jesuítas passam então a organizar os lavradores da Região das Matas, entre eles os que viviam na Colônia Rondinha/ vila Santa Lúcia, conforme discurso do Pe. Ambros Schupp, escrita em 1912, na qual situa e evidencia a atuação do Pe. Amstad na Assembleia Geral dos Católicos, quando se fundou a Associação dos Agricultores, com princípios cooperativistas para organizar o trabalho dos lavradores. O P. Amstad podia ler nos rostos que suas palavras caíam em solo fértil e, quando no final a assembléia em peso irrompeu num sonoro Viva!, pôde permitir se fazer a proposta da criação de uma associação que tivesse como objetivo o entendimento aos múltiplos interesses dos colonos [...] E como a proposta encontrou aceitação geral, apresentou numa reunião extraordinária os estatutos e o plano de organização [...] 400 homens se inscreveram na lista de sócios. Todos eles retornaram depois para as suas picadas e começaram a procurar adeptos para a nova associação, de forma que ela evoluiu promissora e rapidamente. (SCHUPP, [1912], 2004, p.213). O grande alcance desses projetos ficam evidentes neste relato. Neste caso uma associação de agricultores, que desde o início já contava com 400 integrantes dessa forma que os projetos não ficavam restritos, estes jesuítas dispunham de grande circularidade nestas comunidades ou onde quer que fosse para formar parcerias e viabilizar planos discutidos nas associações. O padre Max von Lassberg é também citado ao entregar a cópia ao pároco de Santa Lúcia, padre Paulo Antônio Weng da documentação referente à compra da propriedade em Caaró, este fato demonstra a ação prática desde jesuíta em meio à consolidação da Romaria do Caaró. Em outra fonte histórica datada de 1938, que faz referência as comunidades da região, Caibaté é mencionado e pode-se perceber até mesmo pelo caráter da fonte, a presença religiosa nas comunidades da região: Desde que a sede do decanato (área pastoral) veio de São Luís [Gonzaga] para cá, fazemos muito mais reuniões. Fazem parte: Serro Azul, São Luis, Caibaté, Campinha, Porto Lucena e Pirapó. Precisaríamos mais um padre. Os trabalhos aumentam cada ano. (SPOHR, 2013, p.58).

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A REPRESENTAÇÃO DO PASSADO HISTÓRICO NA REGIÃO ATRAVÉS DA PERSPECTIVA JESUÍTICA E A ATUAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS JUNTO AOS COLONOS Dessa forma, é importante notar alguns aspectos intrínsecos à organização da vila Santa Lúcia. O primeiro, o fato de um grupo de jesuítas demonstrarem interesse em desenvolver o projeto de ocupação da Região das Matas, coincidentemente Região das Missões, desde o final do século XIX, mas que encontrou as condições objetivas nos primórdios do século XX, durante o governo republicano do Estado Brasileiro de regime político republicano e presidencialista, conforme a Constituição de 1891. Esse interesse está acompanhado da ação de organizar o trabalho dos colonos em associações católicas inspiradas nos modelos alemães. Outro aspecto inerente à organização de Santa Lúcia, ou Caibaté, diz respeito à organização das romarias aos santos mártires – três jesuítas de 1628 que passam a ser ressignificados a partir de 1928 na região – nas quais se percebe o empenho dos padres naquele momento em preservar, resguardar, valorizar e propagar os acontecimentos do século XVII, definindo-os em sua pertinácia e importância à História do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, os intelectuais jesuítas construíam o pensamento de disputa pelo passado histórico sul-rio-grandense, além de ratificarem o catolicismo oficial em detrimento do catolicismo popular, posto que, provavelmente a devoção aos santos mártires deveria se constituir em práticas de religiosidade popular na região. Pela ordem do discurso jesuítico, percebe-se o empenho dos mesmos em organizar a devoção aos santos mártires, organicamente ligados à Companhia de Jesus: Os padres Provincial e Kurzo foram a Caaró. O Provincial benzeu mais uma vez a cruz, no lugar do martírio de Roque Gonzales e Afonso Rodrigues. A seguir, foi celebrada missa solene. Uma grande multidão esteve na celebração, Caaró está situado um pouco fora da nossa paróquia [Santa Lúcia], sob a jurisdição o pároco de São Luiz Gonzaga, Mons. Estanislau Wolski, o qual promoveu toda esta solenidade com muito zelo. Nesta ocasião foi erigida uma grande cruz de madeira esperamos que em breve surja lá uma capela. (SPOHR, 2013, pp.44/45). Na formulação do discurso jesuítico sob os paradigmas do pensamento ultramontano, o passado histórico da região das Missões estava sendo reescrito, a partir de seu fato fundante – o empenho e o martírio dos missionários jesuítas do século XVII em evangelizar os Povos indígenas – dessa forma, o evento de 1628 deveria ser marcado em seus elementos emblemáticos como a definição precisa do local do martírio, da sacralização do primeiro grande milagre – a relíquia do coração – a cruz, transformandoo num lugar de memória missioneira. Para além do lugar de memória cristã. Assim a presença dos jesuítas também se consubstanciava a partir de suas elaborações mentais, dos seus paradigmas impregnados no pensamento jesuítico. Muitos estudos tratam de entender a ação das companhias de colonização no âmago do processo histórico da colonização no Rio Grande do Sul, porém, aqui nos interessa a presença dos jesuítas enquanto incentivadores da migração junto aos colonos. Esses jesuítas envolveram-se em organizações e cooperativas de agricultores, as intenções para além de aprimorar o conhecimento das técnicas de cultivo mais eficientes para as colônias era também disseminar o catolicismo e disponibilizar da forma mais acessível possível o acesso ao batismo, comunhão e casamento. As comunidades rurais isoladas dos maiores centros comerciais, como no caso de Santa Lúcia e Serro Azul, tinham dificuldade para receber auxílio estatal, como apoio logístico, mas as ordens religiosas procuraram outras formas de organização no interior dessas comunidades, propondo integração e auxílio mútuo para suprir as necessidades materiais. Nesse sentido, Vogt e Radünz (2013) buscaram entender a relação entre a ação dos jesuítas junto às cooperativas de crédito nas colônias e a origem dessas organizações na Alemanha: A preocupação com o bem-estar material dos colonos ficou refletida no Terceiro Congresso Católico, realizado em 1900 em Santa Catarina da Feliz. Naquela ocasião, sob a inspiração de Teodoro Amstad, e tendo como estereótipo os Bauerverein existentes na Alemanha, houve a fundação da Associação Rio-Grandense de Agricultores, cujo nome inicial também foi Bauerverein. Essa entidade, embora criada por católicos, tinha caráter

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ecumênico e étnico. Pretendeu ser uma espécie de federação que congregaria associações locais de agricultores. (VOGT, RADÜNZ, 2013, p. 279.) Em um livro de 1966, uma das primeiras obras sobre a história de Cerro Largo, que foi lançado em virtude das comemorações do 11º aniversário de emancipação do município, o autor menciona o Bauerverein como grande agência empreendedora da criação de Serro Azul, e o Pe. Max von Lassberg S. J. é apresentado como fundador da colônia. Destacamos a presença do padre Max, pois se trata de um jesuíta reconhecido por sua atuação junto aos colonos: O Pe. Max conquistou não poucos méritos na questão da imigração e colonização, na medida em que respondia aos inúmeros questionamentos em parte teorizando em palestras, pronunciadas em ocasiões as mais diversas, em parte fora dele. De modo parecido agiam também outros padres, quando a questão era posta. Mas era principalmente pelo suporte direto dado aos colonos quando começaram a trabalhar seus lotes. (SCHUPP, [1912], 2004, p.210). Também deve ser dito que em algumas análises mais críticas sobre o tema, Lassberg é entendido como um agente colonizador de fato, pois sua atuação de nenhuma forma se restringia ao âmbito religioso, mas sim, perpassava os muitos sentidos que a colonização com imigrantes e emigrantes poderia assumir. Blume e Witt (2014) constatam o sentido das ações de Lassberg: O agente em questão transitou pelas mais diversas áreas do solo rio-grandense, estabelecendo diálogos com sociedades de imigrantes que estavam descontentes com sua situação socioeconômica. Esses imigrantes estavam no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e a atuação de Lassberg possibilitou a mobilidade espacial deles. (...) Pode-se afirmar que o Pe. Max von Lassberg foi, senão o maior, pelo menos um dos maiores "experts" em termos de implantação e consolidação de projetos de colonização na primeira metade do século XX. (WITT; BLUMEN, 2014, p. 24). Além de Lassberg, outro jesuíta que dispunha de extensa rede de contatos e buscava se articular através de cooperativas era o Pe. Theodor Amstad S.J, que muito aparece na documentação referente à colônia de Serro Azul e também na obra A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul onde se destaca entre os jesuítas mais atuantes no Rio Grande do Sul. Werle (2011) na análise sobre as redes de contato entre as cooperativas e os descendentes de imigrantes em Porto Novo, Santa Catarina, evidencia a presença de Amstad e seu protagonismo frente às associações: A primeira destas Caixas foi fundada em 1902, cinco anos antes, portanto, de ser promulgada no Brasil, a primeira lei de cooperativa do País. Naquele tempo era secretário geral da União Popular, o Pe. Thedoro Amstad, de saudosa memória, natural da Suíça, o apostolo sem par do cooperativismo no Sul do Brasil. A essa caixa seguiram-se, aos poucos, novas fundações e com o correr dos anos, até hoje, se formou esta pujante família de crédito cooperativo integradas pelas 47 Caixas existentes. Os resultados foram surpreendentes e a prova cabal do acerto no sistema adotado como modelo pela União Popular: o clássico sistema Raiffeisen, que prega a fórmula da constituição sem capital, sem distribuição de lucro e com a responsabilidade solidária e ilimitada do associado, bem como a gratuidade do associado. Poder-se-á imaginar fórmula mais ideal e cristã para o manejo do dinheiro? (WERLE, M J. 2011, p.7) 9

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Fundação de uma Cooperativa de Crédito. A voz de Chapecó. 27 de fevereiro de 1949, nº224, p.5. Arquivo Biblioteca Pública Estadual Florianópolis – SC. IN: WERLE, M J. Aspectos históricos nas relações entre construções socioculturais e meio ambiente. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011.

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A existência destas cooperativas revela o planejamento estratégico e as alternativas econômicas utilizadas nas colônias recém-fundadas nas primeiras décadas do século XX. Ainda sobre este tema, Roche nos confere alguns detalhes sobre a organização e o funcionamento das caixas rurais: Bastar-nos-á apontar alguns pormenores sobre a Caixa Rural da União Popular da Nova Petrópolis, a mais antiga, visto que foi fundada em 1903 pelo P. Th. Amstadt, cujo entusiasmo e tenacidade o fizeram pioneiro das caixas rurais nas colônias alemãs, que conhecia a fundo por ter sido nelas, o responsável pelo cuidado das amas, durante longos anos. Seus diretores exercem suas funções a título gratuito; não possui sede nem empregados. Só o gerente, que tem a seu cargo o escritório, a correspondência e a contabilidade, recebe uma gratificação pro labore, fixada pela Assembléia Geral. Em 1933, compreendia mais de quatrocentos membros, tinha perto de 2 milhões de cruzeiros em depósito, um quinto do qual em caixa e o resto em empréstimos, concedidos pelo prazo máximo de dez anos, à taxa de 6%, enquanto as contas do depósito percebem um juro de 5%. As condições não somente eram muito mais favoráveis que as dos bancos, mas também a escassa margem de lucro bem mostra o fim para o qual a caixa foi criada. A distribuição profissional de seus sócios é igualmente característica: agricultura, 90,2%; comerciantes, 2,7%; industriais, 1,4%%; profissões liberais, 1,2%; proletários 4%; diversos, 0.5%. A seriedade com que são autorizados os empréstimos (letras avalizadas e garantias hipotecárias) limita, sem dúvida, o volume das transações, mas garante a solidez de uma organização que continua essencialmente cooperativa. (ROCHE, 1969, p 453-454.) Dessa forma em nossa análise sobre as relações entre essas comunidades vizinhas, ressaltamos a presença desses indivíduos que são representados na documentação selecionada como lideranças nessas pequenas comunidades e que mediavam a relação com outros núcleos urbanos e pregavam coesão e harmonia entre diferentes grupos sociais. Também provavelmente serviam como interlocutores entre os novos moradores das colônias, descendentes de imigrantes, e os grupos historicamente presentes no local, assim as formas iniciais de integração ocorriam a partir do catolicismo. A influência do discurso religioso nos mais variados assuntos do cotidiano dessas pessoas é demonstrada pelas transcrições dos Livros Tombo da Paróquia Sagrada Família Nazaré de Serro Azul: 22.11.1934 – Carta ao P. Max von Lassberg, SJ ao provincial. Esteve dia 15/11 em Caaró, na festa. Continuaram as tratativas para a compra de terras e construção de igreja lá. Alguns parecem ter dito ao dono que sabemos haver ouro lá... A 18/11, sermão do pároco sobre escola sem religião; grupo, depois reunião acalorada. Dia a dia aparecem mais as finalidades dos instigadores: diminuir a influência da religião, dos padres, afastar os jesuítas, passar a direção a outras mãos. (SPOHR, 2013, p.48). Segundo a análise do discurso jesuítico com relação a este período, nota-se que esta região historicamente ligada aos jesuítas constava nos projetos da Companhia de Jesus e que imbuídos dessa consciência, atuavam para que esta relação continuasse a existir, agora com outros referenciais. Como escreve o Pe. Ambros Schupp: Apenas no começo dos anos 1880 veio a ideia de repovoar de novo a antiga região das Missões ao longo do Uruguai. O Pe. Steinhart e o Pe. Schleipen foram destacados para uma viagem até lá, quando, não sabemos por que razões, os superiores se declararam contra a execução do plano. A questão voltou de novo à tona mais tarde. O Pe. Max von Lassberg ofereceu-se para acompanhar os colonos em busca da região do rio Uruguai. Presume-se que foi algo de caro ao coração dos jesuítas a tarefa de verem povoadas novamente por mãos cristãs aquela terra que fora regada com suor e sangue de seus predecessores e da qual haviam sido expulsos de uma forma tão humilhante. (...) a comissão realmente se deslocou para lá, e o Pe. Max von Lassberg a

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acompanhou. O parecer da comissão, e aquele posterior a este último soou positivo e, como conseqüência, já em setembro de 1902, um grupo de colonos partiu para Serro Azul, sob a coordenação do citado padre. (SCHUPP, [1912], 2004, p.211). Nesse fragmento do discurso jesuítico nota-se o projeto de retomada da região das Missões, cujo cerne era: “repovoar de novo a antiga região das Missões”, por isso, também não é por acaso que seguidamente os padres se referem à Santa Lúcia como Caibaté. Num outro documento que trata da Romaria do Caaró em 1939, temos a seguinte informação: “Recorte do jornal “Deutsches Volksblatt” [que circulava entre os alemães]. A Romaria do Caaró serviu de preparação para o congresso dos católicos, previsto para 16-18 de fevereiro de 1940 [...] Foram recebidos em Caibaté (= Santa Lúcia) pelo pároco Pe. Paulo Weng. Pernoitaram lá, nas famílias. De manhã, missa e partida. Chegada em Caaró um pouco depois das 12:00.” (SPOHR, 2013, p.61). É necessário dizer que os jesuítas assumiram a Paróquia São José em Serro Azul somente em 1926, no entanto, sua presença na fundação daquela colônia a partir de jesuítas como o Pe. Max von Lassberg e o Pe. Teodoro Amstad já sublinhava sua atuação. A partir dos relatos do Seminário São José pode-se compreender que além de uma grande preocupação em fazer as colônias prosperarem economicamente, também existiu interesse pela região de Caaró cerca de 12 km do centro da vila Santa Lúcia, onde teria ocorrido o assassinato em 1628 de Roque, Afonso e João. Para agentes colonizadores com muitas redes de contato, tanto Lassberg quanto Amstad devem ser entendidos como indivíduos preocupados com as aspirações da Companhia de Jesus e seu conjunto de ações em diversos espaços e diversas situações demonstram isso. Na documentação referente aos Livros do Tombo da Paróquia de Serro Azul, Lassberg durante o tempo que foi pároco entre 1931 e 1934, aparece constantemente envolvido com atividades relacionadas ao Santuário do Caaró. Essa fonte também confirma o apoio de ambas as comunidades quando algum religioso por lá passava: “06.01.1933: O P. Fernando Muller, SJ, benzeu a Igreja em Butiá Superior. Nestes dias, veio o P. Luiz Gonzaga Jaeger, SJ pra continuar suas pesquisas em Caaró, apoiado pelos habitantes de lá e daqui”. (SPOHR, 2013, p.43). Assim como vários outros clérigos que buscavam auxiliar na melhoria dos métodos do cultivo da terra para os colonos recém-chegados nessas regiões muitas vezes ainda em processo de desbravamento, esses jesuítas estendiam sua influência e consolidavam sua presença espiritual na região. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo procurou demonstrar a constituição inicial de duas colônias na região noroeste bem como, na medida do possível, alguns dos agentes envolvidos em ambas comunidades, Serro Azul e Santa Lúcia. Estas questões permitem constatar a dinamicidade de relações existentes na região noroeste no início do século XX, principalmente neste caso, as ações promovidas pelo catolicismo e suas formas de integração com as comunidades no interior do Rio Grande do Sul. Compreender as diversas frentes de influência cultural nestes locais nos auxilia ainda mais a explicar a existência do missioneirismo e seus desdobramentos, assim, o Santuário do Caaró apresenta-se como elemento fundamental para entender o sentido das ações jesuíticas e seu interesse na região. A população que se fixou em Santa Lúcia, principalmente a partir da década de 1920, teve como elemento relacional as representações formuladas a partir dos paradigmas do missioneirismo, explicativos do passado histórico da região. Essa compreensão fora mediada por jesuítas e demais setores do catolicismo, os quais se tornaram fulcrais nas construções identitárias e se consolidaram nas subjetividades e sentimentos de pertencimento da população da região. O contexto de intensa migração interna resultante da colonização com europeus no Rio Grande do Sul deu origem a novas formas de sociabilização e criação de espaços economicamente produtivos. Assim, são vários os temas que podem ser abordados nesta área como a criação de colônias, agentes empreendedores que trabalhavam para companhias de colonização, o avanço do capitalismo a partir da grande oferta e demanda por propriedades rurais e suas variações, enfim, a especificidade do objeto aponta para qual caminho seguir. No caso de Santa Lúcia, a visibilidade proporcionada a esta comunidade pelo Santuário do Caaró nos permite pensar as formulações do discurso desta cidade e sua identidade missioneira e ainda a correspondência desse fenômeno com a história do crescimento deste local e seus primeiros moradores. Vários elementos abordados neste artigo podem ser aprofundados a

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partir da ampliação das fontes disponíveis, entendemos que as transcrições dos Livros Tombo da Paróquia Santa Lúcia e da Sagrada Família de Nazaré de Serro Azul permitem identificar a circularidade dos padres católicos na região e uma série de outros elos com as comunidades vizinhas, assim, procuraremos intensificar a análise de outros registros históricos na sequência da pesquisa, para que não fiquemos restritos somente às fontes eclesiásticas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. BARTH, Fredrick. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. CATEN, Sonia Ten; HOFFMAN, Irene. Apostila de Pesquisa sobre a História de Caibaté. Caibaté: 1991. DEWES, M J. A História de Cerro Largo. Editora da Alvorada: Porto Alegre, 1966. MARIN, Diosen. A consolidação da Romaria do Caaró a partir da mídia impressa: 1937-1945. 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria/RS. OLIVEIRA, Paulo R.M. O Encontro entre os guarani e os jesuítas na Província Jesuítica do Paraguai e o glorioso martírio do venerável Roque Gonzáles nas tierras de Ñezú. 2009. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre. POMMER, Roselene M. G. Missioneirismo: história da produção de uma identidade regional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2009. QUADROS, Ezeula l. A defesa do Modo de Ser Guarani: o caso do Caaró e Pirapó em 1628. Porto Alegre: Edigal, 2012. SANTOS, Alba Cristina Couto dos. As marcas de Amstad no cooperativismo e associativismo gaúcho: as rememorações da Associação Theodor Amstad e da Sicredi Pioneira. Porto Alegre, RS, Sescoop, 2014. SILVA, Marcio Antônio Both da. Babel do novo mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul (1889-1925).; Guarapuava: Unicentro, 2011. _____________. De nacionais a colonos regulares: ou sobre como formar os “cidadãos operosos do amanhã”. IN: MOTTA, Márcia; OLINTO, Anselmo (Orgs). História Agrária: propriedade e conflito. Guarapuava, Unicentro, 2008. ______________. Positivismo e colonização no Rio Grande do Sul da Primeira República (18891930). In: TEDESCO, João C; NEUMANN, Rosane M. Colonos, colônias e colonizadoras: aspectos da territorialização agrária no Sul do Brasil Porto Alegre: Letra&Vida, 2013. SCHUPP, Ambros. Pe, S.J. A missão dos jesuítas alemães no Rio Grande do Sul. (1912, 1. ed.). São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2004. SPOHR, Pe. Inácio (S.J.). Cerro Largo-RS. [Coletânea de documentos referentes] Paróquia Sagrada Família de Nazaré, Seminário São José, Presença dos Jesuítas: 1902 a 1956. Porto Alegre: BRM Província do Brasil Meridional da Companhia de Jesus, 2013.

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O BIÊNIO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO RIO GRANDE DO SUL: AS DIMENSÕES POLÍTICAS DAS COMEMORAÇÕES Tatiane de Lima 1 As cidades do mundo em que vivemos não são cercadas por muralhas. Suas “portas” são as estações rodoviárias e ferrovias, os portos e aeroportos, por onde passam diariamente milhares de pessoas: turistas – com seus rostos alegres e máquinas fotográficas; homens de negócios – com suas fisionomias sérias e maletas escuras; migrantes – com suas caras cansadas, malas encardidas e corações cheios de esperança e temor. (MATTOS, 1995, p.06) INTRODUÇÃO Pode-se dizer que manter as “portas” do estado do Rio Grande do Sul abertas a viajantes e migrantes revelou-se uma estratégia posta em prática desde o período imperial brasileiro, devido especialmente à política imigratória do século XIX. Tal promoção da imigração por parte do governo brasileiro ia ao encontro da “alternativa” que a emigração representava na Europa, pois para esses imigrantes, o Brasil era imaginado como uma terra de promessas e como uma oportunidade de sanar todos os seus problemas (OLIVEIRA, 2001, p.13). Na sua grande maioria esses imigrantes vieram para o Brasil recrutados por agentes das empresas colonizadoras ou agentes nomeados pelo governo imperial, num sistema de imigração subsidiada em grande parte pelo Estado (como se observa na legislação sobre colonização e nos decretos de contratação dos serviços dos agenciadores e de autorização das atividades das empresas a partir da concessão de terras públicas). (SEYFERTH, 2002, p.121) De modo geral, estes imigrantes representavam uma mão de obra alternativa em relação à mão de obra escrava, sendo de grande importância na formação econômica e social do país. Sayad (1998, p. 5455) afirma que é a característica de trabalhador, aliada a sua condição provisória de estadia que dão ao imigrante a sua razão de ser: Afinal, o que é um imigrante? Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, neste caso, quase um pleonasmo), mesmo nasce para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. Neste estudo propomos entender o ser imigrante para além do fornecimento de mão de obra, considerando-o também como pioneiro e desbravador das terras que deram origem ao estado do Rio Grande do Sul. Para eles, emigrar significava iniciar uma nova vida, já que a condição provisória de instalação na nova pátria de acolhida a cada dia tornava-se definitiva. Sendo assim, passaram a se estabelecer e tomar estas terras como um novo lar, trabalhando para o desenvolvimento e prosperidade da mesma. Por este motivo, muitos anos após a vinda dos primeiros imigrantes, tendo como objetivo homenagear as correntes imigratórias que se instalaram no estado, o governo do Rio Grande do Sul promoveu as comemorações do Biênio da Colonização e Imigração. As comemorações, em um sentido geral, além de festejar grandes feitos de homens ou de grupos também se propõem a homenagear. No evento em questão, as homenagens são dedicadas aos mais variados grupos de imigrantes que aportaram no Rio Grande do Sul. Vindos de lugares distantes, traziam 1

Bolsista de Mestrado (CAPES/PROSUP) no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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em suas bagagens e memórias, objetos e lembranças do mundo e das pessoas que foram deixadas para traz. Para alguns, havia o sonho de voltar a sua terra natal, para outros nem a mais remota possibilidade deste retorno. Os objetos, trazidos conjuntamente com as tradições linguísticas, gastronômicas e o modo de viver, ao serem resignificados e tornados relíquias ajudaram a compor as comemorações e o processo de rememoração. Sendo assim, tudo o que fora trazido nas bagagens, fazia parte desde já de uma memória que mais tarde viria a ser resgatada por meio das comemorações do Biênio da Colonização e Imigração. Tais comemorações, dentro do contexto da imigração, podem ser entendidas como uma forma de releitura e renovação de sua história, acontecendo geralmente em datas simbólicas. Estas datas emblemáticas mostram-se como momentos propícios para revisitar e tomar de novos sentidos esta história imigrante, a fim de homenagear determinados grupos, ao mesmo tempo em que se apresentam novas perspectivas na maneira de percebê-los. Assim, entendemos o sentido atribuído às comemorações como sendo o de evocar o passado a partir de recortes feitos pelo presente, e de certa maneira reviver este passado preservando-o, mas também como uma estratégia de exaltação, revisão e salvaguarda da memória da imigração. O BIÊNIO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO E SUAS DIMENSÕES POLÍTICAS Ao propor um estudo sobre o Biênio da Colonização e Imigração no Rio Grande do Sul, entendemos o sentido das comemorações através de Catroga (1996, p.547) que as define como formas de viver e manifestar-se simbolicamente, reafirmando a continuidade histórica dos povos e da humanidade. Para o autor é importante relacionar as comemorações ao seu dever de combate a amnésia coletiva, e também, como forma de luta pela produção (e reprodução) de uma nova memória, assim elevada a uma espécie de garantia da necessária articulação entre o passado, o presente e o futuro. Nesta perspectiva de articulação de tempos, a aproximação dos anos simbólicos – 1974 e 1975 para alemães e italianos que respectivamente comemoravam seu Sesquicentenário e Centenário de Imigração, motivou o governo estadual a criar este universo “comemoracionista”. Promovidas por meio do Decreto nº 22.410, de 22 de Abril de 1973, as comemorações do Biênio da Colonização e Imigração buscavam reforçar a identidade imigrante do estado através de expressões de gratidão 2, e da homenagem aos grupos que aqui se instalaram durante o processo imigratório. Alemães e italianos receberam maior destaque no decorrer das festividades do Biênio juntamente com os açorianos por estes terem dado início à colonização do que hoje é o Rio Grande do Sul. Também fizeram parte das homenagens às demais correntes imigratórias 3, índios e negros. O Biênio da Colonização e Imigração mobilizou o estado de maneira geral, e obteve grande visibilidade estadual, nacional e internacional. Contou com a participação ativa daquelas regiões do estado mais intimamente ligadas ao processo imigratório totalizando uma média de 90 4 cidades envolvidas. Queremos neste estudo problematizar as dimensões políticas das comemorações, ao analisar o papel desempenhado pelos agentes promotores destes festejos durante o processo de organização e execução dos atos comemorativos. A documentação consultada – atas de reuniões, discursos, decretos, telegramas, correspondências e relatórios – nos permite dizer que as comemorações foram pensadas e promovidas por grupos organizados da sociedade civil em conjunto com o poder público dos mais variados âmbitos, através de 2

Simmel (1983, p.211) vê a gratidão como uma “... memória moral da humanidade, uma ponte que a alma sempre encontra para aproximar-se do outro (...)”, propiciando assim a permanência nas relações sociais dos grupos. 3 As comemorações do Biênio foram organizadas em dois momentos: o ano de 1974 foi dedicado a homenagear os lusos, alemães, árabes, negros, argentinos, franceses, uruguaios, espanhóis e ingleses. Já o ano de 1975 foi dedicado a comemorar a imigração italiana, polonesa, japonesa, israelense e os indígenas. 4 O levantamento foi realizado a partir das referências documentais, já que não há levantamento oficial do número de cidades participantes dos festejos. De acordo com ele, temos a contabilização de 90 cidades participantes, mas acreditamos que sejam mais, já que dentre estas 90 estão contempladas apenas as correntes imigratórias alemã, italiana, polonesa e os indígenas.

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Comissões 5 e Subcomissões 6 Executivas. Sobre a organização desta festa e a legitimação do papel desempenhado pelas Comissões Gutman (2012, p.42) afirma que toda conmemoración es una construcción social. Porque un aniversario es, básicamente, una ventana de oportunidad y solo se transforma en una conmemoración cuando las sociedades, advertidas de las vísperas, se constituyen en sus agentes promotores y construyen activamente sus sentidos y modalidad. Assim, podemos afirmar que a participação do estado do Rio Grande do Sul nas comemorações do Biênio não se deu somente na esfera de promoção e organização da festa, mas também demarcando sua presença na teia de significações que perpassaram as comemorações, ao tomar decisões quanto às representações e sentidos vinculados nos rituais. O poder público fez-se presente por sua autoridade constituída, já que as manifestações públicas foram organizadas por agentes autorizados, que por conta de sua posição social e política ganharam autoridade e destaque na festa. Assim, durante as comemorações estes agentes sociais foram revestidos de um simbolismo capaz de legitimar valores e memórias que através do imaginário uniu o povo em um espírito público de gratidão aos imigrantes. Como contraponto, a participação ativa dos grupos de descendentes de imigrantes nas Comissões e Subcomissões significava, para além de acordos políticos, uma forma de partilhar memórias de seus antepassados. Deste modo, o pertencimento étnico de cada uma das Comissões pode ser observado, e é através da memória social que buscam identificar seu grupo e dar sentido a um passado que lhes é comum. Acreditamos que as motivações destes descendentes em resgatar a memória de seus antepassados através de atos de engrandecimento e reconhecimento de feitos, demonstra que essa comemoração foi tão importante para a salvaguarda da memória imigrante, quanto para a perpetuação de determinados nomes junto aos festejos do Biênio. Segundo Poutignat (1998, p.28), as identidades étnicas aparecem na contemporaneidade como forma de “sobrevivência de suas tradições culturais específicas”. No caso das comemorações do Biênio da Colonização e Imigração os indivíduos que tomam parte na constituição das Comissões Executivas foram movidos a participar das organizações também como forma de partilhar memórias de seus antepassados. Nessa perspectiva, em seu estudo sobre memória social, Fentress (1992, p.) afirma que “... a experiência passada recordada e as imagens partilhadas do passado histórico são tipos de recordações que tem particular importância para a constituição de grupos sociais no presente”. Assim, concordamos com Catroga (2001, p.59) ao afirmar que como instância solidificadora de identidades, compreende-se que a expressão coletiva da memória, ou melhor, da metamemoria, não escape à instrumentalização dos poderes através da seleção do que se recorda e do que consciente ou inconscientemente se silencia. Entendemos que a seleção de memórias empreendida durante as comemorações do Biênio parece ter construído uma narrativa acerca da imigração que foi configurada a partir dos seus agentes promotores, no caso, as Comissões Executivas. Cabe aqui afirmar que nestes momentos de comemoração se utilizam estratégias de seleção de memórias onde, segundo Ricoeur (2007, p.455) “pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diferentemente

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Ao todo foram constituídas nove Comissões: Comissão de Honra, Comissão Coordenadora, Comissão Executiva para celebrar o pioneirismo da colonização luso-brasileira, Comissão Executiva para as celebrações do Sesquicentenário da Imigração Alemã, Comissão Executiva para as celebrações do Centenário da Imigração Italiana, Comissão Executiva para celebrar a contribuição das demais correntes imigratórias no desenvolvimento do Estado, Comissão Executiva para as promoções esportivas, Comissão Executiva de Homenagem ao Negro e Comissão Executiva de homenagem ao Índio. 6 Cada uma das Comissões foi dividida em três Subcomissões: Subcomissão de Festividades, Subcomissão para assuntos Históricos e Culturais e Subcomissão para Relações e Intercâmbio.

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os protagonistas da ação assim como os contornos dela”. Isso demonstra o quanto as comemorações estão perpassadas por sentidos políticos, principalmente ao serem selecionadas determinadas memórias. Da mesma forma, os discursos criados em torno das comemorações, e destinados a acionar o povo, são problematizados por Chartier (1990, p.17) que afirma que através deles se impõe autoridade a fim de justificar suas escolhas sendo “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.” As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isto esta investigação sobre as representações supõenas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações tem tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. (CHARTIER, 1990, p.17) Problematizando as comemorações dos Bicentenários na América Latina, Fernando Carrión (2012, p.57-70) entende que as datas comemorativas podem ser percebidas como momentos significativos para a História, sendo dotadas de sentidos e conteúdos sociais, indo além das efemérides de protocolos, devido a existência de sujeitos e atores que reivindicam memórias, o que torna as comemorações um local de disputas. As comemorações são, para ele, campo de disputas políticas acerca dos fatos ocorridos e tem ganhado espaço no mundo acadêmico através de conferências, seminários e publicações. Para Carrión (2012, p.60), metodologicamente, as comemorações precisam ser entendidas enquanto um processo de reconhecimento, de uma construção para o futuro, de uma expressão plural, e de uma manifestação de disputa histórica: Generalmente, los eventos políticos que trascienden el significado inicial de una emblemática fecha llegan al futuro con una carga simbólica de alto contenido social, que con el paso del tiempo se la relee, interpreta y es motivo de actuación por parte de nuevos actores que le dan nuevos contenidos y sentidos. Ao selecionarmos esta comemoração como nosso objeto de estudo, estamos trabalhando com as disputas de memórias entre descendentes de imigrantes, com a configuração de identidades étnicas e sociabilidade no contexto das festas. Mais do que isso, o estudo discute os sentidos e a interpretação da história da imigração no presente, os usos políticos do passado da imigração atribuídos no presente pelo governo do estado. Hartog (2013, p.156) afirma que são as dinâmicas sociais que ocorrem no presente que conservam o passado e o recuperam assegurando a identidade. Esta manifestação se dá através da memória, do patrimônio e da comemoração, que, segundo ao autor tenta “conciliar memória, pedagogia e mensagens políticas do dia”. A memória encontra-se imbricada no processo de comemoração estando relacionada ao que Pollak (1989, p.10-11) chama de “enquadramento da memória”, ou seja, um controle memorial que é feito por atores pré-determinados e autorizados que definem os grandes personagens e objetos materiais e imateriais que farão parte da rememoração, buscando integrar sentimentos de filiação e origem, já que “o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo”. Durante vários momentos, memórias foram selecionadas para estarem presentes, ou não, durante as comemorações. Esta seleção perpassou todo o planejamento das comemorações do Biênio pelas distintas Comissões Executivas, como também durante os atos comemorativos e discursos proferidos. Destituída a ideia de que as memórias contempladas são meras seleções aleatórias, concordamos com o que afirma Traverso (2012, p.24) “a memória, individual ou coletiva, é uma visão do passado que é

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sempre filtrada pelo presente”. Complementando com a fala de Abreu (2001, p.05), que afirma que: “as peças de imaginária podem servir para legitimar tanto grupos organizados da sociedade civil, quanto a própria ação dos grupos sociais que controlam as agências estatais, celebrando, portanto, a ação do Estado”, vemos que tais iniciativas governamentais estão associadas ao financiamento e utilização do espaço urbano, enquanto que a ação da sociedade civil está associada a doações ou subscrições. Ambos estão desta forma consagrando o passado, mas também legitimando-se através desta ação. Os atos desempenhados pelas Comissões e Subcomissões, como a busca de auxílio financeiro tanto na esfera pública quanto na privada, as sugestões e propostas para as comemorações e a participação de indivíduos escolhidos pelo estado para integrarem as Comissões faz parte dos “usos políticos do passado” que de acordo com Lavabre (2001, 233-252) são “filtros e seleções [que] remetem justamente às formas de apropriação da memória, expressas tanto na multiplicidade de experiências e lembranças, quanto na capacidade da memória coletiva de homogeneizar as representações individuais do passado”. Ainda de acordo com a autora, a vontade política expressa nos usos políticos do passado tem como fim a produção de representações compartilhadas, de uma identidade comum. Ou seja, tais “usos” não são arbitrários, mas sim instrumentais. CONCLUSÃO As comemorações, entendidas como atos de rememorar o passado, estão presentes desde há muito na sociedade. Primeiramente, entre os séculos VII e IX, imbricadas à religião, funcionavam como fortalecedoras da cultura religiosa, fazendo contraponto às festividades pagãs. Populares, em princípios do século XV, as festas se repetiam a cada três dias. Lograram seu espaço também as festas cívicas (laicas, republicanas e urbanas) trazendo à tona sua dimensão político-educativa, com a finalidade de criarem representações simbólicas que funcionariam como lições vivas através do ato de rememorar (PEREZ, 2011). A forma moderna de se comemorar, através da criação do novo calendário civil pela Revolução Francesa no século XVIII, conferiu a estas comemorações o sentido de que através de representações simbólicas se unificariam as memórias por meio de consensos (ARRUDA, 1999, p.09). Neste sentido percebemos a relevância do tema das comemorações principalmente na oportunidade de alargar o leque de possibilidades de investigações no âmbito da história da imigração no Rio Grande do Sul. Cremos que a realização deste estudo permitirá explorar a complexidade do fenômeno de organização e execução das comemorações, cujas histórias, memórias e representações do passado são alvos de disputas. Traverso (2012, p.10) afirma que “o passado transforma-se em memória colectiva depois de ter sido seleccionado e reinterpretado segundo as sensibilidades culturais, as interrogações éticas e as conveniências políticas do presente”. Assim, entendemos que as festas ocorridas entre 1974 e 1975 no Rio Grande do Sul tiveram na figura de seus representantes a definição de objetivos, e também a tarefa da materialização dos atos comemorativos que se seguiram. Foram estas comemorações pensadas e promovidas por grupos organizados da sociedade civil, bem como pelo poder público dos mais variados âmbitos, e vinculadas às memórias dos grupos imigrantes, de seus descendentes e das cidades intimamente ligadas à empreitada imigratória. Consideramos que é através da memória que se reforça e/ou se constitui a identidade pessoal ou coletiva que permite aos sujeitos pensarem-se como parte de um determinado grupo (CANDAU, 2009, p.47), ficando a cargo dos organizadores do Biênio atrelarem as memórias da imigração à identidade destes grupos de descendentes. REFERÊNCIAS ABREU, Marcelo. Coleção Urbana: imaginária urbana e identidade da cidade. Revista Primeiros Escritos, n.7, julho de 2001. p. 05. ARRUDA, José Jobson de Andrade. O trágico 5º Centenário do Descobrimento do Brasil: comemorar, celebrar, refletir. SP: EDUSC, 1999. p. 09. BRASIL. Decreto nº 22.410, de 22 de Abril de 1973. Institui o Biênio da Colonização e Imigração. Disponível: . Acesso em: 15 de janeiro de 2013.

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O EMPRESÁRIO, O COLECIONADOR, O TEUTO BRASILEIRO: BENNO F. MENTZ (1896-1954) Rosangela Cristina Ribeiro Ramos 1

O presente texto deriva da pesquisa de mestrado, cujo tema foi o Acervo Benno Mentz 2. No decorrer dos estudos, foram traços biográficos de Benno F. Mentz, os quais serão apresentados neste espaço. Benno F. Mentz era o segundo filho de Frederico Mentz e Catharina Ritter Trein, nascido em 12 de fevereiro de 1896, em São Sebastião do Caí, e falecido em 31 de julho de 1954, em Essen, na Alemanha. Iniciou seus estudos no Ginásio Farroupilha 3 de Porto Alegre. Em 1919, partiu em viagem de estudos pelos Estados Unidos – na Academia de Comércio de Poughkeepsie, em Nova York, onde estudou Propaganda e Organização – retornando em 1921, quando assumiu a chefia do escritório da firma Frederico Mentz & Cia, tornando-se procurador geral dos negócios do seu pai. Figura 1 – Desenho de Benno F. Mentz. Sem autoria

Fonte: Acervo Benno Mentz (DELFOS/PUCRS) s.d. Conforme Singer (1977), os Mentz,  Marquadt e  Trein  foram famílias teuto-brasileiras bastante importantes no circuito econômico sul-rio-grandense. À guisa de exemplificação: uma sociedade formada por Frederico Mentz, Germano Marquadt, Frederico Trein, Henrique Augusto Koch, Curt Mentz e Benno Mentz, demonstra a imbricação familiar em meio aos negócios.  Benno  Mentz era filho de Frederico Mentz, irmão de Curt, genro de Augusto Koch, sobrinho de Frederico Trein e cunhado de Germano  Marquadt, uma vez que ele era casado com Elly Mentz, também filha de Frederico Mentz

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Bolsista FAPERGS. Mestra em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: rosangelaramos. [email protected] 2 O Acervo Benno Mentz se encontra no DELFOS (PUCRS). Site: http://www.pucrs.br/delfos/ 3 Fundado em 1886 pela Associação Beneficente Alemã, uma entidade criada para auxiliar os imigrantes alemães e seus descendentes, o Colégio Farroupilha tem suas origens na Escola de Meninos, conhecida na época pelo nome de Knabenschule des Deutschen Hilfsverein (Escola de Meninos da Associação Beneficente Alemã). (COLÉGIO FARROUPILHA, [2013?]).

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Figura 2 - Fotografia de família, (data provável)

Fonte: Acervo Benno Mentz (DELFOS/PUCRS [entre 1923 e 1931]). Pode-se afirmar que os Mentz fizeram parte da elite, pois travaram relações com políticos e outros empresários de grande porte até meados do século XX. A elite teuta era representativa na conjuntura regional, pois foi através dessa liderança que a classe empresarial se organizou a fim de defender seus interesses. Pesavento (1988) analisa a formação empresarial dentro de outras associações, principalmente as alemãs. Os  Mentz destacaram-se tanto que é possível localizar, dentre as correspondências de Frederico Mentz, a solicitação do então intendente de Porto Alegre, Otávio da Rocha, para que ele integrasse a comissão responsável pelo Plano de Melhoramentos e Embelezamento da Capital (1924). Outro fato que comprova seu destaque às autoridades é a visita de Washington Luiz e Borges de Medeiros, respectivamente, o Presidente do Brasil e o Governador do Estado, conforme a fotografia abaixo comprova. (MIRANDA, 2013). Figura 3 – Visita à empresa dos Mentz, em 1926

Fonte: Acervo Benno Mentz (DELFOS/PUCRS, 1926).

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Portanto, a partir do estudo da família de Benno Mentz, aos poucos, se delineia uma complexa rede familiar que se estende ao âmbito socioeconômico.  Ao trazer e relembrar o papel de determinados personagens, novos fatos se apresentam e permitem um avanço na compreensão dos processos históricos, que envolveram uma comunidade (ou família) e influenciaram na construção de suas identidades, “especialmente atribuindo a eventos históricos um grau de complexidade que vai além do evento histórico em si mesmo e o redimensiona com novos significados”. (BAHIA, 2010, p. 167). Não é possível deslocar Benno Mentz de sua imbricação familiar, suas redes, assim como dos momentos de tensão e conflitos vividos por este agente histórico. O objetivo desta primeira parte da dissertação foi apresentar um pouco de quem teria sido Benno Mentz, pois afirmar ou alegar baseandose nos registros seria um despropósito. Mesmo que o porquê não seja uma reposta tangível, é possível perceber alguns traços de sua personalidade a partir de elementos que as fontes colocam, sim, fontes que se mantiveram conservadas, depois de selecionadas. Percebe-se que houve um cuidado no tratamento desta documentação e conforme Gomes (2004, p. 11) Essas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando um diversificado conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas à escrita de si propriamente dita - como é o caso das autobiografias e dos diários, até a da constituição de uma memória de si, realizada pelo recolhimento de objetos materiais, com ou sem a intenção de resultar em coleções. É o caso das fotografias, dos cartões-postais e de uma série de objetos do cotidiano, que passam a povoar e a transformar o espaço privado da casa, do escritório, etc. em um ‘teatro da memória’. Um espaço que dá crescente destaque à guarda de registros que materializem a história do indivíduo e dos grupos a que pertence. Em todos esses exemplos do que se pode considerar atos biográficos, os indivíduos e os grupos evidenciam a relevância de dotar mundo que os rodeia de significados especiais, relacionados com suas próprias vidas, que de forma alguma precisam ter qualquer característica excepcional para serem dignas de serem lembradas Após situar um pouco em relação à formação de Benno Mentz, cabe fazer um breve relato de sua pessoa. Nesta parte do texto, serão apresentados alguns fatos da biografia de Benno Mentz, como empresário e descendente de teuto-brasileiros. A documentação reunida, durante a pesquisa vai de correspondências, fotografias, anotações pessoais até papéis relacionados às empresas da firma Mentz. Mesmo que não se possa depreender todas as nuances da vida de Benno Mentz, as fontes mostram alguns traços de sua personalidade e registros de seus hábitos e idiossincrasias. Ao longo de sua vida, Benno Mentz se envolveu em algumas atividades, em que claramente os vínculos socioeconômicos foram fundamentais para seu êxito. Pode-se dizer que ele tinha o que Bourdieu (1980, p. 67 apud SANTOS; SILVA, 2007, p. 2) define como capital social, ou seja, “um conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão vinculados a um grupo, por sua vez constituído por um conjunto de agentes que não só são dotados de propriedades comuns, mas também são unidos por relações permanentes e úteis”. O termo capital social surgiu no século XX para designar os meios pelos quais as vidas de determinados agentes históricos se tornam mais produtivas por meio de suas relações. O capital social não é desvinculado do capital econômico e cultural de um indivíduo ou do grupo ao qual ele está ligado, ao passo que as trocas entre eles exigem um mínimo de homogeneidade para que se institua a confiança mútua e a capacidade de multiplicar tais capitais. O volume de capital social de um indivíduo depende da extensão de sua rede de relações e do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico) possuído por cada membro desse grupo. (BOURDIEU, 1980). Segundo Santos e Silva (2007, p. 3), [...] capital social para Bourdieu é um ativo individual que determina as diferenças de vantagens extraídas do capital econômico que um indivíduo possui, adquirido através das redes de conhecimentos, de influências que ele estabelece ao longo de sua vida. Um mínimo de capital econômico é o prérequisito crucial para que ele possa inserir-se em um grupo, mas, uma vez que isto ocorra, é criado um círculo virtuoso que o desprende da dependência do capital econômico. O capital social é capaz de gerar uma maior

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participação cívica, já que permite a inserção dos indivíduos nas altas camadas de poder político, econômico e social. Permite uma maior mobilidade social, através da rede de relações na qual o indivíduo é capaz de inserir-se. É inegável que Benno Mentz tenha sabido mobilizar os grupos ao seu alcance e, para exemplificar tal, a seguir serão citados exemplos do que Pianta (1962, p. 36) define como “atuação, em múltiplos setores da vida rio-grandense”. Inicialmente, com o relato de Santos (2013) sobre o desempenho de Benno Mentz, a partir de 1937 na Comunidade Evangélica de Hamburgo Velho, quando chega um novo pároco: o pastor Wilhelm Pommer, que, ao perceber a situação financeira da instituição, resolve promover uma tômbola (loteria de caráter beneficente) para arrecadar fundos e organizar as finanças. Ainda naquele ano, depois de sua aprovação, foi formada uma comissão, cujo presidente foi Benno Mentz e, conforme Santos (2013, p. 47), “Empresário conceituado no Rio Grande do Sul, Benno Mentz realiza um trabalho de mediação em prol da tômbola junto ao empresariado rio-grandense. Entre os apoiadores, estão seu tio, A.J. Renner, e o irmão de A. J., Alfredo Renner.” Como alguns pastores não se empenharam para a divulgação da tômbola - eles não concordavam com o apoio cedido pelo governo federal, o recém-inaugurado Estado Novo, que iniciara a campanha nacionalizadora. Assim, diante da perspectiva de fracasso, o pastor Wilhelm Pommer, Benno Mentz e Alfredo Renner viajam para Rio de Janeiro e São Paulo, a fim de divulgar a tômbola nas principais comunidades evangélico-luteranas desses estados e angariar fundos com alguns membros do empresariado fluminense e paulista, pois Benno Mentz e Alfredo Renner possuiam boas relações com aqueles grupos por estarem inseridos nos mais influentes grupos empresariais do Rio Grande do Sul da época. Também há uma conotação política ao utilizar o poder empresarial dos Mentz e Renner. Essas lideranças empresariais rio-grandenses tinham influência junto ao governo estadual e poderiam facilitar 4 a relação tensa dos dirigentes da escola com o governo. (SANTOS, 2013). Dentre as ações rastreadas, também houve a doação do terreno ao Educandário São Luiz. Conforme consta em seu breve histórico o estabelecimento teve início em 1947, numa casa de madeira, na Avenida General Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Como o espaço era pequeno, começou a procura de um outro lugar mais amplo e surgiu na Vila Ipiranga a localização ideal, partir da doação "dos proprietários da área, Irmãos 5 Benno e Frederico Mentz da Urbanizadora Mentz, estariam loteando suas terras e doaram um terreno para a Edificação do Educandário São Luiz", sendo a nova sede inaugurada em 28 de outubro de 1952. A citação anterior apresenta erro, pois, conforme Pianta (1962, p. 36) “Foi por indicação do ilustre rio-grandense que a Urbanizadora Mentz doou extensa área de terra, naquela zona, para a construção de um educandário localizando na Vila Ipiranga e que é hoje um estabelecimento modelar de Assistência Social a meninos.” O mais provável é que tenha ocorrido uma confusão, pois Benno adicionou Frederico ao seu nome, passando a se chamar Benno Frederico Mentz, contudo não foi encontrado um documento que esclareça quando isto ocorreu, mas foi posteriormente ao falecimento de Frederico Mentz, de modo a homenageá-lo. (KERSTING. 2004, p. 158). Anteriormente a estes fatos, quando da comemoração do centenário da colonização alemã, no Rio Grande do Sul, Benno Mentz percorreu 6 o interior do Estado em busca de donativos para a construção dos monumentos comemorativos em São Leopoldo e Novo Hamburgo. Tal feito foi citado por Pianta (1962) na sua obra Personalidades Rio-Grandenses e no Correio de Povo, de 15 de junho de 1924, em que relata o retorno de Benno Mentz à capital para percorrer as casas comerciais e cita os valores doados por algumas firmas, além de elogiar Benno Mentz, a comissão dos festejos, dentre outros. Também destaca que “o governo do Estado abrirá um crédito de 100 contos de réis para auxiliar as comissões

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Através de visitas e petições feitas pelo pastor Pommer, Benno Mentz e Alfredo Renner junto ao empresariado do Sudeste, sobretudo os evangélico-luteranos, é arrecadado uma valor aproximado de 620 contos. SANTOS (2013) 5 Tal citação foi extraída do site do Educandário São Luiz. 6 Este fato também é mencionado em As comemorações da imigração alemã no Rio Grande do Sul, de Roswithia Weber (2004).

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allemão, sendo que também o município de S. Leopoldo abriu um crédito de cinco contos de réis destinado à creação dos monumentos.” (CORREIO DO POVO, 1924, p. 3). Mesmo que não tenha sido mencionado anteriormente, os Mentz tinham ligação com Jacobina Mentz Maurer, líder do movimento Mucker 7. É interessante apontar que Benno Mentz esteve envolvido no estudo elaborado por Leopoldo Petry sobre o movimento. Tal pesquisa trouxe uma nova perspectiva sobre o tema, ao explicar as possíveis razões para a eclosão do conflito, em abordagem diferente da fornecida pelo Padre Ambrósio Schupp 8. No ABM, está o esboço da obra 9, na qual há um agradecimento especial a Benno Mentz, em que é feita a menção sobre o seu prematuro falecimento em 1954. Esta homenagem apresenta uma posição destacada no texto, tanto que aparece separada do restante dos agradecimentos. No livro Narrativas aotobiográficas 10 de Bertholdo Klinger estariam reproduzidas palavras de Benno Mentz, em que o parentesco com Jacobina não seria motivo de constrangimento. Nesta obra, Klinger faz um relato autobiográfico e, logo após, agradece Benno Mentz pela contribuição com dados sobre genealogia da família Ritter. Dele foi extraído o seguinte trecho: E comclue o meu amavel parente: ‘Completei a ârvore jenealójica de minha família MENTZ, ce veio em 1824 para o BRAZIL, e ce já conta maes de 3.000 desendentes brasileiros, em 700 famílias, muintas ligadas á história de nósa Pátria, notadamente nas gérras de 1825 a 28, 1865 a 70 e na dos ‘Mucker’, poes ‘Jacobina, a Santa’ éra uma MENTZ’. (KLINGER, 1944, p. 29). Benno Mentz deixou alguns registros manuscritos e outros papéis datilografados, presumivelmente de sua autoria, mesmo que não tenha sido um escritor, literato ou cronista. Também se encontram registros de outras atividades, como a colaboração 11 no Anuário Genealógico Latino (1953) e no Livro Comemorativo dos 75 anos da Sociedade Leopoldina (figura 5), nas poucas ocasiões em que ele aparece como autor. Contudo, é sempre na temática das pesquisas genealógicas que ele se destacou, pois não se pode negar que Benno Mentz tencionou reunir e preservar documentos que tratassem de suas origens. São comuns apontamentos que listam vários integrantes das famílias Ritter, Trein ou Mentz, em uma espécie de catalogação, como na figura 4.

7 O episódio dos Mucker foi um movimento de conotações religiosas que tensionou a região de Sapiranga, no início da década de 1870 e foi suprimido pelo exército imperial. Muitas famílias, marcadas como Mucker, sofreram perseguição nas décadas seguintes. 8 Foi um jesuíta que chegou ao Brasil, quando findava o conflito dos Mucker e escreveu a obra “Os Muckers Episódio Histórico Ocorrido Nas Colônias Alemãs do Rio Grande do Sul” que por muitos anos foi referência sobre o tema. 9 Na versão datilografada da obra, há uma mesura especial para Benno Mentz, nos agradecimentos, porém, quando da publicação, ela não aparece. 10 A autora optou por não fazer a correção ortográfica, pois Bertoldo Klinger inicia sua obra fazendo a defesa de sua forma mais “racional” de ortografia, que ele denomina OSB (Ortografia Simplificada brasileira). 11 Na página 135 da Revista Genealógica Brasileira, em1946, em uma das publicações do Instituto Genealógico Brasileiro, Benno Mentz é citado como um dos colaboradores de Porto Alegre.

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Figura 4 - Listagem com integrantes da família Ritter.s.d.

Fonte: Acervo Benno Mentz (DELFOS/PUCRS)

Figura 5 - Organizadores do Livro comemorativo do Leopoldina, 1938, p. 17

Fonte: Museu Histórico Visconde de São Leopoldo (1938). Benno Mentz também foi um notório colecionador, tanto que, em junho de 1931, foi um dos fundadores da Sociedade de Filatélica do Rio Grande do Sul (SFRG), aliás, é possível vê-lo no canto esquerdo da figura 6. Conforme Kersting (2014, p. 9), é sabido que havia uma boa coleção de selos (filatelia), porém, quando o ABM chegou à UFRGS, a maior parte deles havia desaparecido, sendo possível encontrar alguns “perdidos” em meio a outros materiais. Há um pequeno folheto (em inglês) que faz referência ao fato de Benno Mentz fazer parte de uma rede mundial de colecionadores e possuir mais de 5.000 cartões, reunidos em cinco anos. O colecionismo pode ser visto como um fenômeno social, ao passo que “[...] poderá ser visto como atividade humana e também ser considerado uma das formas de reconhecimento e de

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interatividade do sujeito no mundo”. (ESPÍRITO SANTO, 2009, p. 24). O ato de colecionar estabelece um tipo especial de relação entre uma pessoa e os objetos de sua predileção, pois reflete do “querer” do sujeito, sendo mais que coletar, reunir e arranjar peças num determinado espaço. Há dispositivos culturais que interferem nesta apropriação. Conforme Lopes (2010), o hábito 12 de colecionar remonta aos primórdios da humanidade e serve para a interação social dos sujeitos desde que a primeira imagem foi desenhada. Ainda, segundo este autor, há uma conotação civilizadora no ato de colecionar, pois “as práticas individuais de colecionar, que exercitam a discriminação dos objetos dispostos no mundo para o desenvolvimento da inteligência, transmutam-se pela comunicação entre os indivíduos [...] para o desenvolvimento da razão e do discurso, como práticas sociais civilizatórias”. (LOPES, 2010, p. 380). Figura 6 - Fundação da Sociedade Filatélica do Rio Grande do Sul, 21/06/1931

Fonte: Sociedade Filatélica do Rio Grande do Sul (1931). Além da coleção filatélica ou dos cartões postais, Benno Mentz pôde investir tempo e dinheiro em outras coleções, fossem de jornais, almanaques ou quaisquer outros objetos. O que interessa é o fato de que Benno Mentz possuía condições de subsidiar a coleta dos itens para suas coleções, assim como dispôs de locais para a guarda destes materiais, que foram se “acumulando” e paulatinamente, passaram a compor o ABM. Devido às circunstâncias de sua formação, é importante ressaltar o aspecto da identidade de Benno Mentz, como um teuto-brasileiro. Mesmo que ele nunca tenha usado esse termo em seus escritos (ou pelo menos ainda não foi visto), não se pode afirmar como ele se sentia em relação à sua pátria ou cidadania. Ele dominava tanto o alemão quanto o português, pelo menos na comunicação escrita. Viajou para os E.U.A e Europa, mas, nas fotografias, dos álbuns de viagens, o destino mais comum eram cidades da Alemanha. Certamente, ele tinha conhecimento sobre as noções do germanismo, vigentes naquela época, mas o que pode indicar que ele estava imbuído de tais concepções? Quando muito, sua criação entre teuto-brasileiros fez com que, naturalmente, aprendesse o idioma alemão, enquanto, pelo fato de terem sido prósperos empresários, foi inerente a aprendizagem da língua portuguesa. Se dependesse de uma avaliação das correspondências e anotações, não é possível fazer distinção, pois ao se corresponder com os pais, ele o fez sempre em alemão; as comunicações sobre as empresas estão em português. Já as cartas com outros parentes ora são em um ou outro idioma, quando não são nos dois. Por exemplo, em carta de 1940, na qual relata uma série de intrigas entre Benno e seu irmão, Curt, a narrativa está em português, porém sempre que se cita a fala da Mama é feita uma transcrição em alemão do que ela teria dito. Segundo Kersting (2014), 13 junto com as fichas do arquivo genealógico, havia bandeirinhas do Brasil, e, ele acredita que isso tem a ver com as perseguições durante a Segunda Guerra Mundial e também faz referência aos problemas ocasionados pela denúncia de Hans Seidl. Hans Seidl foi um advogado judeu-alemão de Hamburgo, que fugiu para o Brasil na década de 1940 e foi contatado por 12

Ver: BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003. O autor analisa o impacto da Revolução Industrial no hábito de colecionar. 13 Entrevista realizada com Eduardo Kersting em 12 de abril de 2014, em Porto Alegre.

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Benno Mentz, pois possuía contato com várias firmas alemãs. Entretanto devido a desentendimentos, ele denunciou Benno Mentz ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) 14 como nazista. Em contrapartida Benno Mentz elaborou um dossiê (não encontrado), no qual se defendia. Depois, não se sabe quando, mas Hans Seidl teria sido transferido para o Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre, e, infelizmente, esta parte da história ainda necessita de pesquisa mais aprofundada. No decorrer deste trabalho, se buscou esboçar o contexto no qual Benno Mentz foi criado e se desenvolveu, e, por mais que tenham prevalecido os tons de solidariedade familiar e certa bonança de Porto Alegre, sempre é pertinente afirmar que Benno Mentz nasceu no que vulgarmente se chama berço de ouro, teve oportunidade às quais a maioria da população não possuía acesso, inclusive, uma boa parte dos descendentes de imigrantes, como ele. Ao longo de sua vida, Benno Mentz teve papel destacado em diversos segmentos e por mais que se especule sua motivação para se dedicar à que ele imaginava ser a história da colonização alemã, não é possível sair do terreno das hipóteses. Pode-se apenas considerar que tal empenho facilitou o acesso às diversificadas fontes, que em maior ou menor grau foram preservadas para os estudos históricos ou não. Na condição de rico empresário e aparentemente um entusiasta da história da colonização alemã, Benno Mentz buscou e organizou documentos e fontes para um melhor entendimento desta temática. Tanto que parte de sua produção se enquadra no ramo da Genealogia 15. E, mesmo que na sequência do texto tenha sido possível perceber um pouco de sua vivência, como um agente histórico que se empenhou para legar às outras gerações o que viria a se tornar o Acervo Benno Mentz; investiu recursos humanos e financeiros para obter materiais para suas coleções. Ainda assim, não é legítimo afirmar, categoricamente, que ele se identificava com a causa germânica, mesmo que muitos dados indiquem que sim. As práticas de escrita de si podem evidenciar, assim, com muita clareza, como uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por sucessão. Também podem mostrar como o mesmo período de vida de uma pessoa pode ser ‘decomposto’ em tempos com ritmos diversos: um tempo da casa, um tempo do trabalho, etc. E esse indivíduo, que postula uma identidade para si e busca registrar sua vida, não é mais apenas o ‘grande’ homem, isto é, o homem público, o herói, a quem se autorizava deixar sua memória pela excepcionalidade de seus feitos. Na medida em que a sociedade moderna passou a reconhecer o valor de todo indivíduo e que disponibilizou instrumentos que permitem o registro de sua identidade, como é o caso da difusão de saber ler, escrever e fotografar, abriu espaço para a legitimidade do desejo de registro da memória do homem ‘anônimo’, do indivíduo ‘comum’, cuja vida é composta por acontecimentos cotidianos, mas não menos fundamentais a partir da ótica da produção de si. (GOMES, 2004, p. 13). Gomes (2004) relata que a sociedade contemporânea tem necessidade de exibir, por isso investe em tentativas de preservar suas ações e, de certo modo, legá-las às outras gerações, como em uma tentativa de não cair no esquecimento.

REFERÊNCIAS BAHIA, Joana. Imigração judaica e ativismo político nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. In: FERREIRA, Ademir P. (Org.). A experiência migrante: entre deslocamentos e reconstruções. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 163-182

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O DOPS foi instituído em 17 de de abril de 1928 pela lei nº 2304 que tratava de reorganizar a polícia do Estado brasileiro. 15 Para muitas das pessoas que ainda hoje buscam arquivos e sites de família, em busca de suas origens, no caso das famílias teutos, já houve caso de alguém se referir a Benno Mentz como o “papa das pesquisas genealógicas”.

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O TRABALHO E A IMIGRAÇÃO: OS POLONESES NA PORTO ALEGRE DOS IMIGRANTES NO INÍCIO DO SÉCULO XX Rhuan Targino Zaleski Trindade 1 INTRODUÇÃO A temática que abarca imigração e trabalho é um assunto passível de estudo a partir, por exemplo, da convergência das questões que envolvem as categorias de etnicidade e classe. Segundo Fortes (2004, p. 119) pouca atenção se tem dado aos “problemas derivados do impacto das diferenciações culturais, linguísticas e mesmo políticas associadas a diferentes origens geográficas, assim como as distintas formas de identificação relacionadas às ideias de povo e nação entre os trabalhadores”, existindo desta maneira, suposta “neutralização” da questão étnica no seio do operariado no Brasil, muito em especial, do pós-1930. Para enfrentar a questão, pretendemos observar a matéria da imigração/trabalho e etnicicdade/classe por dois ângulos do espaço urbano do Rio Grande do Sul, em especial Porto Alegre, no período do bojo imigratório do final do século XIX e início do XX, em que levas de estrangeiros aportam na região em busca de trabalho e terra. O primeiro ponto é respectivo ao patronato de Porto Alegre, conformado em sua maioria de alemães, os quais constituíram suas indústrias e fábricas de diferentes ramos, sejam frutos do comércio, artesanato ou de fundos provenientes da Europa. Os patrões teutos faziam reuniões em instituições étnicas e empregavam o montante da mão de obra imigrante, em grande parte, de seu próprio grupo, constituindo relações que poderiam envolver aspectos étnicos, seja na escolha, permanência e hierarquização dos trabalhadores. O segundo ponto opera com a questão do operariado, constituído em boa medida de imigrantes europeus dentre os quais alguns portavam experiência de labor urbano e de movimentos sociais contestatórios da exploração capitalista, quais sejam anarquistas, socialistas, etc. Além disso, a sociabilidade étnica na nova terra conformou uma série de sociedades de auxílio e de encontro de imigrantes por nacionalidade e grupo étnico, as quais podem ter envolvido o tema do trabalho. Com o intuito de atingir nossos objetivos, nos valemos das noções dos estudos étnicos, assim como proposto por Weber (1994), Barth (1998) e Streiff-Poutignat (1998), pressupondo como importante a constituição de identidades étnicas em espaços de interação social de indivíduos e grupos. O mote é a dialética constante do autorreconhecimento e o heterorreconhecimento de determinado grupo na dinâmica social de lutas simbólicas e representações, de maneira que existe a possibilidade da construção identitária de um “nós” sempre em oposição aos “outros” 2, esta conformação permite o desenvolvimento de relações internas de solidariedade e vínculos econômicos próprios, isto é, a consecução de ações comunitárias com interesse comum. Em meio a estes apontamentos gerais, pretendemos dar enfoque ao caso dos poloneses na Porto Alegre do início do século XX, buscando confrontar a situação daquele grupo, tanto do ponto de vista étnico como do classista, entendendo estas relações como importantes para a história do trabalho. PATRÕES O primeiro ponto de análise é quanto ao lado patronal dos imigrantes, neste ponto, verificamos o exemplo do caso alemão, em que há “o surgimento de uma burguesia enriquecida em razão, em grande parte, do comércio ‘colonial’ [...]” (SILVA, 2006, p. 76). Deste modo, no Rio Grande do Sul, se constitui uma elite econômica alemã ligada à indústria em diferentes setores.

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Bolsista CAPES. Segundo Streiff-Poutignat (1998) no estabelecimento das relações de etnicidade a partir da constituição da identidade, categorias positivas e negativas de rotulação conformariam os grupos étnicos, que poderiam ser cada vez mais gregários ou segmentários e construídos de acordo com as “necessidades” do contexto interacional.

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Estes industriais teutos se reuniam em organizações/associações étnicas, as quais acabavam se tornando também organizações classistas, posto que articulavam os interesses econômicos daquele grupo. Pesavento (1988, p. 20) concorda ao apontar que foi a liderança, de base migrante, vinculada a entidades de classe, que viabilizaria os interesses do empresariado regional. Os empresários muitas vezes eram lideranças da colônia alemã, em especial nos núcleos urbanos como Porto Alegre, sendo portanto donos ou sócios de clubes, jornais diários, escolas, associações, igrejas, etc., pertencentes à comunidade germânica. Fortes (2004) ressalta este fato, entendendo a sociabilidade étnica, desenvolvida em sindicatos, sociedades mutualistas e beneficentes, como passíveis de relações de classe, neste caso, também entre trabalhadores. As relações étnico-classistas existentes entre os patrões nas sociedades e demais instituições étnicas, poderia existir dentro das fábricas, entre empregador e empregado. O caso de Aloys Fridriechs é alegórico, posto que o industrialista desloca mão de obra de sua terra natal, Merl, na Alemanha, para o trabalho na sua marmoraria. Guardado o fato de uma presumida necessidade de mão de obra especializada, existia nesse ato a valorização da “operosidade e capacidade do trabalho do imigrante alemão” (SILVA, 2006, p. 76), motivos principais para a “importação” daqueles trabalhadores. Outro exemplo é o caso das empresas Varig e Renner, onde existiria uma hierarquia étnica, em que altos cargos de chefia permaneceriam nas mãos de alemães (FORTES, 2004). Bak aponta que “em Porto Alegre, muitos dos proprietários das oficinas e fábricas eram imigrantes alemães ou seus descendentes, junto com alguns poucos italianos” e “os empresários, freqüentemente, contratavam seus conterrâneos, dividindo o mercado de trabalho local em linhas étnicas para o benefício do capital, acentuando a solidariedade étnica e camuflando as diferenças de classe” (2003, p. 200). A valorização do trabalho migrante inspirava a necessidade de buscar os trabalhadores nas colônias ou na Europa como assevera Bak (2003), sendo o trabalhador nacional preterido. De fato, existia na relação empregados/empregadores de mesma nacionalidade, um estímulo em ver o patrão como um conterrâneo, um patrício, benevolente com os “seus”, de maneira a “disfarçar” a exploração de classe (exemplo do conhecido paternalismo alemão delineado por Fortes). Obviamente, as relações étnicas, pelo menos no período de greves, eram suprimidas por outras, mas podemos encontrar mesmo aí impulsos étnicos como no exemplo de Bak (2003, p. 189), quando do despontar da greve de 1906 3 na marmoraria de J. Aloys Fridriechs: A greve dos marmoristas forneceu a primeira amostra de interação entre a formação de classes e as identidades étnicas. O novo sindicato era liderado pelo imigrante italiano anarquista Henrique Faccini, membro de uma das famílias da antiga Colônia Cecília (Borges, 1993, p. 77-79). Sua oposição a um empresário de origem alemã acrescentou uma dimensão de fricção étnica à greve. Aloys Friedrichs não era só um membro da comunidade de fala alemã, ele era também um líder importante dessa comunidade. (2003, p. 189) Em suma, a imigração e o trabalho são temas que se relacionam diretamente quando tratamos de uma “burguesia gaúcha”. Neste contexto, os imigrantes e descendentes ocuparam o espaço disponível no país receptor, principalmente no comércio, de maneira que seu enriquecimento permitiu a formação da indústria gaúcha. Ao mesmo tempo, estabeleceram relações étnicas entre eles, ou seja, os patrões e também com seus empregados, nas fábricas (e talvez também em sociedades culturais), buscando mão de obra especializada dentro de seu próprio grupo étnico, o que gerava a agregação pela origem comum como nos atenta Weber (1994). Contudo esta agregação tinha limites diante da exploração vivida pelos trabalhadores e poderia ser olvidada em situações de exceção.

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Greve ocorrida em 1906 em Porto Alegre, em que grande parte da massa operária era de imigrantes e descendentes das mais distintas origens, iniciada na marmoraria do já citado Aloys Fridriechs.

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EMPREGADOS Assim como os patrões, muitos dos trabalhadores no Brasil do início do XX eram imigrantes ou descendentes de europeus 4, em especial no Rio Grande do Sul 5. As ideias de branqueamento e as condições econômicas e sociais da Europa e do Brasil levaram a intensos fluxos imigratórios de pessoas em busca de terra e trabalho. Os labutadores, apesar da situação oposta a dos patrões, também constituíam vínculos étnicos nas suas relações cotidianas do trabalho como uma adaptação às mudanças que ocorriam, como o aumento da industrialização e a concorrência capitalista. Uma das maneiras mais interessantes eram as sociedades mutualistas. No entanto, como aponta para o caso gaúcho Silva Jr. (2004, p.144): “Ocorre que são poucas as mutuais etnoclassistas profissionalmente diferenciadas; para ser mais preciso, são apenas o Musterreiter (caixeiros-viajantes), a Societá Protettrice Dei Cambisti Italiani (vendedores de loterias) e a San Giuseppe/Falegnami (carpinteiros)”, ou seja, se havia organizações da classe dos trabalhadores baseadas na etnia, estas faziam parte das sociedades propriamente étnicas ou nacionais, divididas por diferentes origens, quais sejam, alemã, italiana, polonesa, etc 6. Assim que, do mesmo modo que os empresários alemães, muitas vezes a conjunção dos interesses de classe e étnicos era composta com a preponderância deste último elemento. Roediger (2013) alerta, para o caso dos Estados Unidos, a importância das questões que aqui tratamos. Mais do que a etnia, os problemas raciais influíam muito para a constituição dos trabalhadores enquanto grupo de interesses (COHEN, 1974). Para o autor, os “brancos têm sido vistos como ocupando não apenas uma posição central na classe trabalhadora norte americana, mas também uma posição natural” (1997, p. 31), assim que o movimento operário acabou por sofrer forte influência desta condição, a ponto de que “talvez nenhum movimento social nos EUA tenha resistido tanto a se identificar com os movimentos por justiça racial dos anos 1950 e 1960 quanto o movimento operário organizado” (2013, p. 34). Os próprios brancos europeus, do sul e leste do continente e/ou irlandeses, sofreram com a exclusão do movimento operário e da própria “brancura” dos norte-americanos (2013, p. 42), aí talvez apareçam as questões raciais, mas também étnicas mais claramente. Frager (1999) dá exemplos parecidos para o Canadá, onde existiu uma competição baseada etnicamente (1999, p. 224), em que muitos europeus orientais e imigrantes asiáticos (chineses e indianos) sofriam um rebaixamento na hierarquia dos trabalhadores, além de serem motivo de revoltas entre os brancos anglo-saxões, quando estes eram preteridos pelos primeiros 7. Estes exemplos, ajudam-nos a entender a importância da etnicidade entre os trabalhadores e principalmente, o quanto ela influenciou nas relações intraclasse para além da extraclasse. Nesse sentido, no contexto rio-grandense de interação social étnica aparecem muitas variáveis dependendo do local, grupo étnico, etc. Os poloneses, maiormente localizados na faixa “empregados”, 4

Obviamente dependendo da cidade, pois Pelotas e Rio Grande, por exemplo, têm um perfil diferente. Cf.: LONER, Beatriz. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas: EdUFPEL, 2001. 5 A imigração no Brasil se concentrou na região sul-sudeste, portanto lá que encontraremos as massas operárias de estrangeiros e descendentes. 6 Para o caso de Porto Alegre em 1906, Joan Bak aponta a existência de sociedades classistas e étnicas como base daquela greve geral. Além da anarquista União Operária e do Sindicatos dos Marmoristas, dos Pedreiros e dos Fabricantes de Chapéus, havia, agora, também duas organizações étnicas de trabalhadores – uma alemã e uma polonesa – bem como organizações de tipógrafos, gráficos, metalúrgicos, padeiros e carpinteiros (A Luta, 13 set. 1906, p. 3). Sobre essas poucas organizações foi construída a greve geral. 7 Castellucci (2010: 87-88) também discute a questão da cor, segundo ele, “negros e mestiços disputaram espaço no mercado de trabalho de São Paulo em condições desvantajosas, quando comparadas com as dos imigrantes”, assim que “o processo ao qual se convencionou chamar de “transição do trabalho escravo para o livre” não ocorreu de forma linear e uniforme em todo o Brasil [...] [o] fenômeno imigratório de massa dirigido para Pernambuco, semelhante ao que ocorreu em São Paulo, fracassaram em função do clima desfavorável, da escassez de terras públicas, da indisponibilidade de recursos para subsidiar as passagens dos imigrantes e, fundamentalmente, dos baixos salários oferecidos”. De tal modo, atenta para não confundirmos o trabalho livre no Brasil com a mão de obra imigrante, quase que restrita às regiões sul e sudeste.

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em sua singularidade, são um destas variáveis a serem exploradas na sequencia, as quais ilustram os apontamentos da literatura internacional citados acima. OS POLONESES Em meio a este entrelaçamento de classe e etnicidade, o qual verificamos dentro de um contexto histórico complexo, procuramos nos deter brevemente para um exemplo das condições de adaptação dos trabalhadores às mudanças que ocorriam na sociedade: o caso dos poloneses. Este grupo imigrou para o Novo Mundo acompanhando as levas de europeus no final do século XIX e início do XX. Muitos procuraram lotes de terra no Brasil, outros, trabalhos urbanos, em grande medida nos EUA. Até então, pouco sabemos sobre as relações de classe e etnicidade entre os poloneses, em virtude dos estudos sobre esta etnia ainda serem muito incipientes, se comparados aos existentes sobre os alemães e italianos, tema discutido por Weber e Wenczenovicz (2012). Além disso, afora alguns apontamentos de Fortes (2004) e Grzeszczak (2010) sobre os “polacos” no 4º Distrito de Porto Alegre, enfocando as relações dos poloneses internamente e com outros grupos eslavos, temos muito pouca bibliografia acadêmica sobre o assunto. O premente é que os imigrantes vindos da Polônia ao chegarem no Novo Mundo logo encontraram problemas no contexto de interação étnica, posto que já na Europa, o país sofrera com a dominação das nações vizinhas mais poderosas (Impérios Russo, Alemão e Austro-Húngaro), além de uma série de constrangimentos a sua nacionalidade e religião, os quais eram elementos identitários importantes para este grupo (TRINDADE, 2013). Quando da chegada nos países receptores, logo sofreram com a emergência de um preconceito (GRITTI, 2002), o qual foi substantivado através da palavra, então pejorativa: “polaco”, carregada com um série de sentidos e estereótipos desabonadores aos membros daquela etnia. Jogados na disputa por emprego, muitos poloneses sofreram com este preconceito. Como ilustra Frager para o caso canadense, existiu inclusive uma greve de trabalhadores da Steel Company of Canada em 1912, com o objetivo da retirada de dois operários poloneses (1999, p. 241). Muito provavelmente, no Brasil e no Rio Grande do Sul, ocorreram casos parecidos, ainda que não tenhamos fontes que confirmem tais hipóteses. Doutra parte, Gritti (2002), em sua tese, aponta para o preconceito antipolonês no Rio Grande do Sul, exemplificando inúmeros episódios, os quais poderiam afetar as relações de classe. Os poloneses que imigraram especificamente para Porto Alegre buscaram ofícios urbanos, fato que podemos perceber quando tratamos dos estrangeiros que aportam no Brasil com alguma especialização ou recursos, em que a imigração poderia ser mais espontânea e individual, não acompanhando os fluxos massivos de imigrantes subvencionados em busca de lotes rurais. Segundo Gardolinski (1958, p. 96), em 1896, já existiam 400 famílias polonesas na cidade, fato corroborado por Figurski 8 em sua crônica, dizendo que os poloneses aqui eram, “operários e artesãos que tentavam uma melhor sorte na capital. Eles forneceram, na época da implantação e na fase inicial de nossa indústria, a mão-de-obra”, somando que segundo o mais antigo calendário polonês de Porto Alegre 9: “400 famílias já residiam nos diversos bairros, principalmente do 4º distrito, possuindo suas casas e estabelecimentos”. A concentração no 4º distrito está ligada ao grande número de fábricas e indústrias nesta região (GRZESCZAK, 2010, p. 17). Muitos poloneses trabalhavam nas empresas alemãs, até porque, boa parte dos imigrantes era oriunda da região ocupada pela Alemanha desde 1795 (então Prússia) e recebiam educação na língua germânica, fato que lhes garantia vantagens na relação com os patrões e em detrimento de outros grupos e imigrantes que não dominavam o idioma (FORTES, 2004). Neste caso, apresentavam-se em condições vantajosas de concorrência apesar do preconceito étnico.

Manuscritos de Jan Pitoń deixados na Igreja Polonesa em língua polonesa, depois traduzidos e datilografados por Janina Figurski (Sociedade Polônia de Porto Alegre). 9 Kalendarz Polski, Porto Alegre, 1989. 8

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Na medida em que se instalavam no Brasil, uma das características e preocupações dos poloneses em diferentes regiões foi a criação de sociedades para encontros e atividades culturais, esportivas e educacionais entre a comunidade polonesa (WACHOWICZ, 1974), em Porto Alegre não foi diferente. Dentre as muitas associações étnicas (Zgoda, Sokól, Orzeł Biały, etc.), destacamos a Towarzystwo Naprzód, criada em 1905 com objetivo de congregar e socorrer os trabalhadores poloneses. Um artigo em polonês, sem autor, de 1973 inclusive aponta Associação dos Trabalhadores “Avante” A Emigração polonesa em Porto Alegre consistiu de classe trabalhadora, derivado de Lodz, Zyrardów, em grande parte tecelões. Trabalhadores poloneses, segundo as estatísticas, foram da classe no Rio Grande do Sul, 7%, São Paulo - 16%, Rio de Janeiro, 35%. Trabalhadores e artesãos constituíram o núcleo da organização polonesa. No ano de 1912, um delegado da Sociedade participou do Congresso Geral dos trabalhadores do Brasil no Rio de Janeiro, Stefan Burzynski. Os trabalhadores do Rio Grande até passaram a escrever sob o título de "Avante" [Naprzód] no ano 1905, muito bem editado, o rosto do socialista 10. O artigo identifica alguns fatores interessantes, os quais corroboram nossos apontamentos anteriores. Primeiro, a presença de poloneses trabalhadores em Porto Alegre e sua especialização laboral e qualificação profissional na medida em que eram em geral artesãos (como tecelões). Segundo, muitos destes imigrantes provinham do que poderíamos chamar de cidades industriais da Polônia, como Łódz, conhecida por suas fábricas têxteis (WACHOWICZ, 1974). Por fim, quiçá também tivessem alguma tarimba nas questões de reivindicações classistas, pois as greves na cidade de Łódz eram comuns 11. Confirmado isto, é importante ressaltar que apesar do envolvimento étnico que caracterizava o Towarzystwo Naprzód, os seus representantes participavam das manifestações classistas, como o caso do Congresso Geral de Trabalhadores do Brasil. Dessa forma, podemos observar a complexidade destes dois fenômenos sociais, classe e etnicidade, dentre os trabalhadores, por um lado unidos em razão da sua origem comum (polonesa) e de outro, pela sua condição social comum (trabalhador). A atenção dada no artigo à vinculação com o socialismo é importante, para o caso de entendermos as ações da sociedade em diferentes situações, estudo este que necessita de mais pesquisa, lembrando que o socialismo é internacionalista. Apesar disso, segundo Fortes (2004), muitas vezes os poloneses, talvez pelo vínculo com o catolicismo, vão ser mais bem vistos em Porto Alegre pelos patrões, que outros eslavos, estes sim, considerados socialistas e comunistas. Afora o Naprzód, na bibliografia sobre as questões do trabalho encontramos diversos sobrenomes presumidamente poloneses nas organizações classistas de trabalhadores que aparecem quando se trata, por exemplo, da greve de 1906, como: Martinewski, Michalski, Masareck, Nalepinski, Kolorynsky 12 e Maciejewski (SCHMIDT, 2004), vinculados inclusive ao socialismo, anarquismo e diretamente às ações grevistas. Nalepinski e Masareck estiveram também envolvidos na administração do Naprzód. Segundo 10

Artigo, em polonês, intitulado 1896- Os Poloneses de Porto Alegre na Glória do Jubileu de Diamante- 1973, sobre a colonização polonesa no Rio Grande do Sul, especialmente em Porto Alegre, as sociedades culturais e os religiosos poloneses. (Anexo: lista com nomes de poloneses ilustres em Porto Alegre). s.l. [1973]. (dat.) (Arquivo Edmundo Gardolinski); Towarzystwo Robotnicze Naprzód Emigracja polska w Porto Alegre składała się z klasy robotniczej, pochodzącej z Łodzi, Żyrardowa, w dużej mierze tkaczy. Robotnicy polscy, wedle statystyk, stanowili klasę w Rio Grande do Sul 7%, São Paulo – 16%, Rio de Janeiro, 35%. Robotnicy i rzemieślnicy stanowili główny trzon polskich organizacji. W 1912 delegat tego towarzystwa wziął udział w ogólno brazylijskim zjeździe robotniczym w Rio de Janeiro, Stefan Burzyński. Robotnicy z Rio Grande nawet wydawali pismo pod tytułom “Naprzód” w 1905 r., bardzo dobrze redagowane, oblicze socjalistyczne. [tradução Rhuan Trindade]. 11 Filme Ziemia Obiecana [Terra Prometida], 1975, de Andrzej Wajda, retrata as greves do século XIX em Lodz. 12 Esta é uma análise baseada no conhecimento sobre sobrenomes poloneses, contudo, muitas vezes judeus e russos utilizavam o y ao invés de i no sufixo ski, justamente para se diferenciar do grupo polonês. Apesar disto, os nomes podem aparecer mal grafados nas fontes e reproduzidos incorretamente, o que queremos apontar é apenas a existência destes indivíduos presumidamente poloneses.

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Petersen (2001), o primeiro parece ter sido o mais importante entre os trabalhadores poloneses em Porto Alegre no período em questão. Quanto ao lado patronal, não identificamos grandes empresas de poloneses na Porto Alegre do início do XX. Grzesczak (2010, p. 18) aponta que a maioria dos imigrantes poloneses trabalhava nas fábricas da região, como mão-de-obra barata, em trabalhos exclusivamente manuais. Segundo Nievinski Filho (2002, p. 85), “muitos poloneses com formação técnica ou possuidores de algum tipo de ofício procuraram em Porto Alegre possibilidades de exercer sua profissão”, sendo que ainda nas primeiras décadas do século XX alguns desenvolveram seus próprios negócios, como “a Fábrica de Sapatos dos Irmãos Mendelski, a Oficina de Stanislaw Jarzynski”, a “Funerária Majewski, fundada em 1916 por José Zórawski”, o “cinema Thalia, administrado por João Paluszkiewicz na década de 1910” e ainda o “cinema Orpheu, construído pelos irmãos Mendelski, quando estes mudaram de atividade no início dos anos 1920”. Segundo Gardolinski (1958, p. 96), ainda no final do século XIX, “91 famílias (23%) já administravam ou dirigiam seus próprios estabelecimentos, inclusive várias casas comerciais”. Estes imigrantes, em geral, não criaram empresas com muitos empregados, apenas alguns pequenos negócios familiares voltados a um público de âmbito local. Por que, contudo, na maioria dos casos, os poloneses não se tornaram patrões? A resposta remonta a Polônia novecentista, quando se criou um sentimento de refração ao comércio e ao urbano no camponês polonês, que acostumado a um regime de servidão, por séculos interpretava o comércio como algo dos judeus, a muito explorando esta atividade naquele país. De acordo com o sociólogo Simmel (1986, p. 716), “El extranjero […] que viene hoy y se queda mañana, es, por decir-lo así, el emigrante en potencia, que, aunque se haya detenido, no se ha asentado completamente” ao se fixar num determinado círculo espacial, sua posição dentro dele “depende esencialmente de que no pertenece a él desde siempre, de que trae al círculo de cualidades que no proceden ni pueden proceder del círculo”. O estrangeiro penetra como supernumerário num ambiente em que os postos econômicos estão ocupados, por isso, ocupa os espaços possíveis utilizando as qualidades que tem, nesse caso, o comércio é muitas vezes uma opção plausível diante das possibilidades. O próprio Simmel exemplifica esta sua hipótese com o caso dos judeus. Dentro de um contexto de interação cultural e étnica, tal fato pode dar pistas das vinculações de certos grupos com respectivas profissões, além disso, pode ser uma explicação para os poloneses terem se concentrado no meio rural, onde ainda existiam espaços, e menos no ambiente urbano, dominado por alemães e, em menor medida, italianos. A burguesia polonesa ao longo da Idade Moderna, afora casos isolados em Cracóvia, jamais floresceu, podada por sua nobreza rural, que delegava a função comercial aos judeus. Somado a isto, o afastamento da vida urbana, segundo Wachowicz (1974, p. 88), se dá muito em função da exploração que os camponeses poloneses sofreram diante da nobreza e depois dos invasores estrangeiros, fatos que criaram um ser arredio, principalmente com relação a qualquer pessoa de condição superior a sua. Além disso, o imigrante polonês veio para a região sul do Brasil, basicamente, em busca de terra, essa fundamental para sua reprodução como camponês. De acordo com Woortmann, ainda que destacando os imigrantes alemães, “a migração é a solução mais coerente com o que se poderia chamar uma identidade camponesa: ela permite a reprodução, enquanto camponeses, não só daqueles que migram, mas igualmente daqueles que ficam; ela significa a busca de novas terras, em outro lugar, e a preservação da terra no lugar de origem”, sendo importante o parentesco como fator de expulsão e a migração de grupos de parentes (1995, p. 116). Assim, muitos imigrantes ao ingressarem no Brasil, buscaram acumular mais terras para redistribuir aos seus filhos, e assim sucessivamente, reproduzindo o fenômeno da “enxamagem” que descreveu Jean Roche, no qual uma colônia “velha” produziria novas colônias a partir da reimigração. Segundo o periódico polono-brasileiro Kalendarz Lud de 1948, a imigração polonesa consistiria em 95% de camponeses, 3,5% de operários e artesãos, 1% de comerciantes e 0,5% compondo a intelligentsia. Wachowicz (1974, p. 179) atenta também para a interiorização que se produziu entre os poloneses e descendentes no Paraná, quando ao se aproximar o ambiente urbano das colônias, muitos iam avançando no sertão em busca da manutenção da vida rural: “As novas gerações, apesar da proximidade com a capital [Curitiba], voltaram as costas para a urbanização e embrenharam-se nas

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matas em direção a oeste”. Ou seja, o imigrante polonês, na sua maioria, pequenos camponeses, preferiu manter-se no âmbito rural, de maneira que apenas alguns poucos iriam se tornar proletários e menos ainda, empresários. Este processo é mais tardio nesta etnia e não será discutido neste texto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Trabalho e etnicidade são elementos que se entrelaçam de acordo com os contatos interétnicos que se estabelecem. Isso é visível no seio de uma cidade importante, como Porto Alegre do início do século XX. Alemães, poloneses, italianos, nacionais, entre outros grupos, travam um contato constante que envolve, para além das nacionalidades e pertencimentos étnicos, questões de classe, relações patrão e funcionários/operários, etc. Essas relações podem ser acentuadas ou atenuadas em função da etnicidade; e assim, produzirem embates ou relações de confiança e reciprocidade entre empregados e empregadores; e não podem ser esquecidas quando se trata das questões vinculadas ao trabalho e movimentos sociais, quanto mais para períodos recuados em que a imigração era um fenômeno recente e constante. Como coloca Frager, “Ethnic and gender relations within the working class have taken shape, of course, in a capitalist context where workers have been forced to compete sharply with one another for jobs and wages. 13” (1999, p. 223), levando portanto a diferentes modos de adaptação e resistência a este contexto de interação étnica e relações de classe num momento muito particular de avanço do capitalismo na América e na Europa. Em suma, buscamos neste breve texto apresentar de maneira sucinta algumas discussões acerca da história do trabalho, pensando este e a etnicidade a partir de dois vieses distintos e complementares: empregados e empregadores, procurando apresentar argumentos para inseri-los na discussão mais geral da constituição de grupos étnicos, profissionais, classistas e de mútuo auxílio, demonstrando a interligação de tais temáticas e a complexidade da questão, vinculando estes temas com relação a um grupo étnico específico, os poloneses, espacial e cronologicamente definido, Porto Alegre, início século XX. REFERÊNCIAS BAK, Joan. Classe, etnicidade e gênero no Brasil: a negociação de identidade dos trabalhadores na Greve de 1906 em Porto Alegre. Métis: história e cultura, v. 2, n. 4, 2003. CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Classe e cor na formação do Centro Operário da Bahia (1890-1930). Afro-Asia (UFBA), nº 41, p. 85-131, 2010. COHEN, A. The Lesson of Ethnicity. In SOLLORS, W (ed.). Theories of ethnicity: a classical reader. New York: University Press, 1996. FIGURSKI, Janina. Crônica da Sociedade Polônia. Datilografado. FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Caxias do Sul : EDUCS, : Garamond, 2004. FRAGER, Ruth A. Labour history and the interlocking hierarchies of class, ethnicity, and gender: A canadian perspective. International review of social history, n. 44, 1999. GRITTI, Isabel Rosa. Imigração e colonização polonesa no Rio Grande do Sul. A emergência do preconceito. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2004. GRZESZCZAK, Ademir José Knakevicz. Os Espaços de Sociabilidade da Comunidade Polônica do Quarto Distrito de Porto Alegre nas décadas de 1960 e 1970. São Leopoldo, Especialização em História-UNISINOS, 2010.

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As relações de gênero e etnicidade têm tomado forma, claro, num contexto capitalista onde os trabalhadores têm sido obrigados a competir fortemente um com o outro por empregos e salários.

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OS FESTEJOS DO CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA NA QUARTA COLÔNIA (1975-1984) Juliana Maria Manfio 1 O presente trabalho faz parte do projeto de doutorado vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), no Doutorado em História, a qual recebe o incentivo da bolsa CAPES/PROSUP. A pesquisa é envolta das comemorações do Centenário da imigração italiana na Quarta Colônia de Imigração Italiana, tendo como interesse o de mapear as comunidades que realizaram as comemorações, bem como a forma de organização para o Centenário da Imigração Italiana na Quarta Colônia. Tais comemorações foram estabelecidas em 1973, quando o governador do Estado do Rio Grande do Sul anunciou o Decreto 22.410, que instituía o Biênio da Colonização e Imigração, com o intuito de abrir as comemorações dos aniversários das etnias que auxiliaram na formação do Estado. O Decreto foi promulgado com o objetivo de transmitir a mensagem “do dever cívico exaltar a obra daqueles que, após lutas longas e ásperas, ocuparam e povoaram a área que constitui o território deste Estado, incorporando o à Pátria comum” (RS: DECRETO 22.410, 22 de abril de 1973). Dessa forma, os eventos cívicos realizados tinham a preocupação em homenagear os que colonizaram e auxiliaram na construção do Rio Grande do Sul. A partir do decreto estadual, as comunidades do Rio Grande do Sul começaram a se organizar para as festividades dos aniversários da imigração e colonização de cada etnia. Em março de 1975, foi aprovada a programação oficial do Centenário da Imigração italiana no Estado, “para os dias 19, 20, 21 e 22 de maio, por ocasião do ponto culminante dos festejos, em homenagem aos pioneiros peninsulares que ajudaram na colonização do Rio Grande do Sul” (A Razão, de 28 de março de 1975, p.2). Tais comemorações aconteceram nas cidades da Serra Gaúcha 2, onde estavam localizadas as primeiras colônias de imigração italiana, e em Porto Alegre, na capital do RS. Na região central, a antiga colônia Silveira Martins 3, atualmente chamada de Quarta Colônia, também se preparou para as comemorações dos 100 anos da imigração italiana na região. O espaço estudado é a Colônia Silveira Martins, assim batizada devido ao parlamentar gaúcho que viabilizou a instalação dessa colônia nas proximidades de Santa Maria da Boca do Monte, foi emancipada em 1886 e, tripartida entre três municípios: Santa Maria, Cachoeira do Sul e Júlio de Castilhos. Nesta colônia, houve a chegada de inúmeros imigrantes italianos no final do século XIX, como também outros colonizadores de etnias distintas, destes destacam-se os alemães e os nacionais. Ao chegaram à região, o governo garantiu com que eles se estabelecessem em lotes de terras, financiados pelo estado. Como forma de uma melhor compreensão, esse trabalho foi dividido em duas partes: 1) Quarta Colônia: um breve histórico – que procura discutir a formação da colônia, para compreender a ocupação desse espaço, a partir de seus colonizadores; 2) As comemorações do Centenário da Quarta Colônia; como forma de identificar as cidades que tiveram festejos, bem como as formas de comemoração.

QUARTA COLÔNIA: UM BREVE HISTÓRICO Em 1876, criou-se o Núcleo Colonial de Santa Maria da Boca do Monte, que em 1877 se tornou a Colônia Silveira Martins. Tal recebeu como seus primeiros imigrantes os russo-alemães, assim denominados. Segundo Relatório da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, “os russos em número de 200,000 resolverão immigrar em parte para o Brasil, trazendo já alguns delles o paquete

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Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS; bolsista CAPES/ PROSUP. Mestre em História pela UFSM. Licenciada em História pela UNIFRA. 2 As três primeiras colônias de imigração foram: Cond’Eu (Garibaldi), Dona Isabel (Bento Gonçalves), Campos dos Bugres (Caxias do Sul). 3 Foi o quarto núcleo de colonização italiana no Rio Grande do Sul, criada em 1876 e, recebeu os primeiros imigrantes italianos em 1877.

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Donati” 4. Dessa forma, o engenheiro responsável pela distribuição de lotes de terras, providenciou as instalações desses imigrantes em terras de lhes fossem escolhidas, sendo seu destino uma colônia no interior do Estado. No entanto, tanto Simonetti (2011) quanto Sponchiado (1996) atribuíram aos fatores climáticos o “fracasso” dessa imigração. A chegada desses imigrantes coincidiu com a grande seca. Além disso, Sponchiado (1996) constatou ainda a falta de alimentos e a disseminação de doenças. Dessa forma, “cerca de quatrocentos immigrantes russos que se achavão estabelecidos em o núcleo colonial de Santa Maria da Bocca do Monte, abandonarão-n’o e vierão para a capital onde permaneceram” 5. Sobre a presença dos russo-alemães ainda existe uma lacuna na historiografia sobre a Colônia Silveira Martins e a imigração. Alguns fatos encontram-se nebulosos, como por exemplo, onde esses imigrantes teriam se instalado 6. Em Sponchiado (1996), vemos a possibilidade de três localidades: em Arroio Grande, onde se providenciou a medição de 800 lotes; em Val de Buia, onde teria chegado a quarta leva e; Linha Pompeia, local onde teriam ocupado lotes de terras. Assim, constatam-se ainda existem espaços em branco sobre a imigração dos russo-alemães na Colônia Silveira Martins. Com a possível saída dos russo-alemães, viabilizou-se a instalação de imigrantes italianos, no final de 1877. Dessa forma, a colônia passou a ser denominada de Quarto Núcleo Imperial de Colonização Italiana no Rio Grande do Sul, passando no ano seguinte a ser chamada de Colônia Silveira Martins, devido ao Senador Gaspar Silveira Martins ter auxiliado sua criação (VENDRAME, 2007); (PADOIM; ROSSATO, 2013). A viagem e o estabelecimento no Brasil se davam com várias etapas, ao se encontrarem no Rio Grande do Sul, muitos chegavam a Porto Alegre e eram destinados à região central, realizando o trajeto em carroças, a pé e em alguns casos de barco pelo rio Jacuí. A partir de 1885, com a construção da via férrea que ligava a capital a fronteira, criou-se a estação colônia, em Camobi (atual bairro de Santa Maria), na qual, foi criada a possibilidade de fazerem parte do caminho de trem e em carroças até a sede da colônia (ZANINI, 2006). Os imigrantes que chegaram à colônia Silveira Martins receberam auxilio do governo, como alimentação, moradia, trabalho remunerado, remédios, bem como alugueis de casas e de oficinas e instrumentos – que indicava que os imigrantes já instalados recebiam pagamento através do trabalho e serviços prestados ao Estado. A historiadora Juliana Manfio (2015) analisou alguns recibos emitidos pela Comissão de terras da Colônia Silveira Martins que constaram que, os imigrantes já estabelecidos alugavam suas casas aos imigrantes que estavam chegando. O pagamento era realizado pela comissão de terras. Isso coube pensar em muitos imigrantes hospedavam seus conterrâneos não pela solidariedade com o outro, mas devido a possibilidade de uma renda extra enquanto o lote ainda não produzia ou produzia pouco. Entretanto, o fluxo constante de chegada nesse local provocou o esgotamento de lotes de terra na colônia Silveira Martins. Tal fenômeno foi denominado por Sponchiado (1996) de imigração espontânea, pois o Governo Imperial já havia suspendido a concessão de benefícios da colonização. Enquanto aguardavam o recebimento das terras, os italianos permaneciam instalados em barracões, ou ainda em casas de imigrantes já estabelecidos que fossem alugadas pela comissão de terras. Na Província de São Pedro, ainda havia a execução de favores em torno da colonização de terras.

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Colonisação. In: Relatório da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Palácio do governo em Porto Alegre, 21 de maio de 1877, p. 6. 5 Optou-se por manter a grafia do documento. Relatório da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Palácio do Governo em Porto Alegre, 10 de fevereiro de 1878. 6 Segundo Fernanda Simonetti (2011, p. 1070), “a primeira leva de russo – alemães não se fixou na região onde por vários motivos, por exemplo, não adaptação aos relevos, falta de subsídios, a grande seca do ano de 1877 que acabava com suas esperanças de colher algo. E assim sucessivamente se dirigiam para outras localidades, como Paraná, Ijuí e até Buenos Aires na Argentina”.

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Neste contexto, o agrimensor José Siqueira Couto, buscou junto ao governo provincial, a desapropriação de terras particulares com o intuito de colonização, como será ilustrado abaixo. Nos arredores da Colônia Silveira Martins juntamente com o núcleo de Arroio Grande (1877) e Vale Vêneto (1878), outros núcleos foram formados, como Núcleo Norte (atual Ivorá), 1883; Núcleo Soturno (atual Nova Palma), 1884; Núcleo Geringonça (localidade de Faxinal do Soturno, Novo Treviso em 1885). A região circulada em vermelho refere-se às medições iniciais da Colônia, ao passo que as setas mostram os núcleos formados posteriormente, com o trabalho do agrimensor Siqueira Couto.

Figura 1: Núcleos da Colônia Silveira Martins Fonte: Sponchiado, (1996, p. 52). Com esse breve histórico, percebeu-se a constituição da Quarta Colônia 7, enquanto espaço voltado à imigração e colonização predominantemente italiana. Levando em conta que a maioria da população era descendente de imigrantes italianos, houve a necessidade de comemorar esse processo vivenciado pelos antepassados. Dessa forma, as comunidades iniciaram os preparativos para a festa do Centenário da Imigração italiana na Quarta Colônia, assunto que será abordado no próximo capítulo.

AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DA QUARTA COLÔNIA Em 1973, o governador do Rio Grande do Sul Euclides Triches instituiu o Biênio da Colonização e Imigração, “com o fim de celebrar, nos anos de 1974 e 1975, o feito dos pioneiros, o sesquicentenário da imigração alemã, o centenário da imigração italiana e a contribuição das demais correntes imigratórias que se fixaram no Rio Grande do Sul (RS: DECRETO 22.410, de 22 de abril de 1973. Art.

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Termo que passou a denominar a região a partir de 1950. Ver mais em MANFIO (2015).

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nº1). A ideia era a de homenagear os grupos étnicos que contribuíram na formação e na construção do Estado Gaúcho 8. Sobre as comemorações da imigração italiana no Rio Grande do Sul, e as festividades aconteceram nos dias 19, 20, 21 e 22 de maio de 1975, nas cidades da Serra Gaúcha como Farroupilha, Garibaldi, Bento Gonçalves Caxias do Sul e na capital Porto Alegre. Esses dias de festejos foram marcados por inaugurações, culto ecumênico, discursos de autoridades brasileiras e italianas, almoços e jantares, atrações artísticas e entrega de medalhas. Dessa maneira, é possível perceber que tal programação oficial abarcou apenas as três primeiras colônias de imigração italiana e a capital do Estado e ainda, dando a essa comemorações os traços oficiais e políticos. Na Quarta Colônia, ao que tudo indica, as festividades aconteceram em virtude do Decreto 22.410, do governador do Rio Grande do Sul. Mas, no entanto, essa região não foi contemplada para as comemorações da programação oficial que ocorreram no Estado. Apesar disso, a Diocese de Santa Maria, na figura do bispo Dom Ivo Lorscheiter (Provisão. 7 de outubro de 1975) 9, encarregou-se de organizar os festejos, pois [...] considerando que nos anos de 1975, assinalará o 1ª centenário da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul, considerando que a Nossa Diocese muito deve aos Imigrantes italianos, fixados inicialmente em Silveira Martins, e dali emigrados para outras, hoje florescentes localidades. Considerando que estes pioneiros nos legaram egrégias lições de fé e operosidade, o que recomenda uma celebração também religiosa e pastoral desse centenário, sob a coordenação deste Bispado. Resolvemos criar a COMISSÂO DIOCESANA DO CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA, para programar convenientemente a comemoração religiosa do mesmo, em estreita coordenação com os órgãos pastorais da Diocese. É importante salientar que na Quarta Colônia, as comemorações do centenário ganharam traços religiosos se comparado a programação oficial. A Igreja católica utilizou-se da figura do imigrante, para construir a imagem a partir de sua religiosidade diante da comunidade atual. Além disso, é ela que toma a frente para a organização dessas festividades na região, as quais foram iniciadas a partir de 1975. No entanto, os festejos ultrapassaram os anos de 1974 e 1975, que compreendiam o Biênio da Colonização e Imigração, estendendo-se, pelo menos, até 1984. A partir das fontes, utilizando inicialmente os jornais locais 10, foi possível identificar que as comemorações ocorreram nas seguintes cidades e localidades: Silveira Martins, Val de Buia, Val Feltrina, Arroio Grande, Ivorá Vale Vêneto, Novo Treviso, Faxinal do Soturno e Nova Palma. Dessa forma, é plausível um mapeamento inicial dos centros de festividades do Centenário da Imigração Italiana na região central do Rio Grande do Sul, devido às poucas ou quase inexistentes produções sobre as comemorações no centro do RS. Abaixo, mapa que localiza as comunidades que realizaram as festividades.

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É necessário investigar sobre o que motivou a instituição do Biênio da colonização e imigração no RS, por parte do governador. No entanto, segundo Hohlfeldt; Valles (2008, p.36), o resultado de dois anos de mobilização, “levando-se em conta contratos, negociações, reuniões e tantos outros aspectos que mobilizaram centenas de pessoas em âmbito regional, nacional e internacional, ficou o registro de um estado que, ao buscar conservar suas origens culturais, atraiu muitos outros interesses socioculturais ao redor do continente e do mundo”. 9 In: Centro de Pesquisas Genealógicas de Nova Palma (RS). Sala do documentação, Caixa a Matriz. 10 Os jornais utilizados foram: A Razão, de santa Maria, disponível no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria – RS; O Radar, de Faxinal do Soturno, encontrado na Prefeitura Municipal de Faxinal do Soturno – RS.

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Figura 2: Mapa das comemorações da Colônia Silveira Martins Fonte: adaptado De forma breve, será apresentada as comunidades e os tipos de festejos realizados para o Centenário da Imigração Italiana. Primeiramente iniciamos com o município de Silveira Martins que, foi a sede do quarto núcleo de colonização dos imigrantes italianos, onde estabeleceram a partir de 1877. No período das comemorações, Silveira Martins ainda pertencia ao município de Santa Maria, sendo emancipada política-administrativamente apenas em 1987. Sobre as comemorações, “no âmbito estadual, o Centenário da Imigração Italiana é em 1975, e, em Santa Maria, será em 77. Apesar da diferença de dois anos, em nossa cidade, as comemorações iniciarão este ano, estende-se até o ano em que aqui chegaram os primeiros colonos italianos” (A RAZÃO, 13 de fevereiro de 1975, p.7). Tal trecho do jornal A Razão, atribuiu que as solenidades em Silveira Martins teriam iniciado em 1975, junto com o programa oficial do centenário da imigração italiana do Estado. Apesar disso, eles se estenderiam até 1977, ano que oficialmente marcava os 100 anos da antiga colônia Silveira Martins. Segundo o programa de festejos da imigração italiana em Santa Maria, segundo o jornal A Razão, a comunidade de Silveira Martins viveu em 1975, as comemorações dos 100 anos da imigração, a partir de festas religiosas relacionados aos santos padroeiros locais, como, Santo Antônio, Nossa Senhora da Pompéia e a Nossa Senhora da Saúde. Tais celebrações contaram com a presença de Dom Ivo Lorscheiter, idealizador da comissão de diocesana dos festejos (A Razão, 28 de maio de 1975, p.3). Dessa forma, a Igreja Católica auxiliou na organização das colônias de imigração e, a figura do padre era vista como uma forte liderança política capaz de articular e estabelecer redes de relações entre os indivíduos da comunidade (VENDRAME, 2013). Por isso, identificamos a presença marcante da Igreja Católica e seus representantes nesses festejos 11. A localidade de Val Feltrina atualmente pertence ao município de Silveira Martins. No entanto, no ano do centenário ainda pertencia à cidade de Santa Maria-RS. Nessa comunidade foi realizada a festa da Uva, em miniatura em relação à mesma festa na cidade de Caxias do Sul. A festividade contou com “uma tenda enorme, desde a manhã até o anoitecer, vendeu uva e vinho, de todas as qualidades, até esgotar o estoque” (A RAZÃO, 18 de fevereiro de 1975, p.7) Tal trecho do jornal exibe a fartura do evento, que exaltava a figura do imigrante italiano e o seu trabalho com a terra e, consequentemente a produção agrícola. Juntamente com a Festa da Uva, ocorreram outros festejos populares em Val Fetrina, como indicou o jornal A Razão: “além do churrasco, e de jogos no estilo de quermesses, a grande atração da festa foi um torneio de futebol que reuniu mais de trinta equipes de várzea [...] (A RAZÃO, 18 de fevereiro de 1975, p.7). Dessa forma, percebe-se que o evento em Val Feltrina tornou-se um momento de sociabilidade entre os participantes. Segundo Jancsó & Kantor (2001), as festas e as manifestações da cultura popular têm como acesso às experiências do cotidiano de uma comunidade, a qual é retratada em atividades que apresentadas no evento.

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Leva-se em conta que, no final do século XIX, houve conflitos entre padres e a maçonaria em Silveira Martins. Ver mais em: Vendrame (2007; 2013) e Véscio (2001).

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Na comunidade de Arroio Grande festejou os 100 anos da imigração italiana com baile para a escolha da rainha da imigração. Além disso, houve missas em homenagem ao santo padroeiro, São Pedro, com a presença de Dom Ivo Lorscheiter (A RAZÃO, 28 de maio de 1975, p.3). A subcomissão dos festejos de Arroio Grande foi provocada a erguer uma grande cruz de pedra (mais ou menos 12 metros de altura) na localidade de Val de Buia. Para tal empreendimento a Subcomissão poderá contar com toda a assistência técnica por parte da comissão municipal. Este monumento, que há de ser um ponto turístico para Santa Maria tem motivos suficientes para ser criado, quando é tão importante preparar o futuro quanto reverenciar o passado (A RAZÃO, 25 de janeiro de 1975, p.16). Percebemos que, os empreendimentos dos festejos do Centenário da Imigração Italiana na antiga Colônia Silveira Martins já visavam à organização de um turismo local. Na localidade de Val de Buia, foi inaugurado o monumento do Imigrante em 1977, local possível de onde teriam se estabelecidos os primeiros imigrantes italianos no quarto núcleo de colonização. Um agricultor aposentado, chamado de Valentim Aita, foi o responsável por doar o terreno para a construção do monumento. O monumento da cruz se propôs a representar a fé, bem como a religiosidade dos imigrantes italianos e seus descendentes instalados na Quarta Colônia mesmo levando em conta os conflitos religiosos existentes nos primeiros tempos da colônia 12. No entanto, constatou-se que as comemorações na Quarta Colônia tiveram traços religiosos, que exaltaram a figura do imigrante diante do trabalho e em relação a sua religião católica. Na localidade de Vale Vêneto, pertencente ao município de São João do Polêsine, recebeu seus primeiros imigrantes a partir de 1878, com a chegada de um grupo de italianos liderados por Paulo Bortoluzzi (VENDRAME 2007; 2013). Em 1975, Vale Vêneto comemorou o Centenário da Imigração Italiana, o qual a comunidade fez a “maior polenta da história”, que “media 9 metros e 40 centímetros de circunferência” (O RADAR, 16 de agosto de 1975), que antes de ser oferecida ao povo, foi benta por Dom Ivo Lorscheiter, marcando mais uma vez a presença do bispo dos eventos relacionados ao Centenário da Imigração Italiana. A quantidade de polenta buscou representar a fartura da mesa dos imigrantes e descendentes, adquirida através do trabalho na propriedade rural. Logo após a benção da polenta, foi servido um jantar “típico” italiano. A ideia é apresentar ao público presente as características alimentares dos imigrantes italianos que permaneceram na região, bem como a fartura da alimentação dos seus descendentes. Além disso, inaugurou-se o Museu do Imigrante Padre João Iop, (O RADAR, agosto de 1975. nº 2) considerado o primeiro museu sobre imigração italiana, bem como o maior acervo do estado sobre a temática, existindo mais de 4 mil peças. Dessa forma, a criação do museu está ligada ao Centenário da Imigração e colonização italiana no sentido de preservar a história dos antepassados que eram imigrantes italianos. O acervo guarda mais de 3 mil peças, entre utensílios domésticos, objetos do trabalho agrícola, paramentos litúrgicos, moveis e roupas, que auxiliam na salvaguarda da memória local da imigração. A localidade de Novo Treviso, pertence ao município de Faxinal do Soturno. A comunidade recebeu seus primeiros imigrantes italianos a partir de 1885, quando o local foi denominado inicialmente de Geringonça. Entretanto, as comemorações do Centenário aconteceram em 19 de outubro de 1975, com missa solene e procissão com a imagem de Nossa Senhora do Rosário – no qual teria sido recitado o terço do sufrágio aos imigrantes falecidos (O RADAR, agosto de 1975, nº 2). Dessa forma, percebe-se que mais uma vez as festas dos santos padroeiros foram incorporadas às festividades dos 100 anos da imigração, recordando sempre a presença dos “pioneiros” na formação da comunidade. A celebração católica teve a presença do então Bispo da Diocese de Santa Maria, Dom Ivo Lorscheiter. Organizado para à tarde da tarde, o desfile a italiana apresentava a comunidade presente os imigrantes italianos que haviam chagado naquela localidade, o qual foi valorizado na apresentação o 12

Ver mais em Vendrame (2007; 2013) e Vescio (2001).

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indivíduo, a família, o trabalho agrícola, o transporte do grupo familiar e da produção, a religiosidade e os costumes. “Seguirá então um segundo desfile em homenagem a todos os imigrantes que, ao redor do monumento, cantarão o hino Noi sian partiti 13” (O RADAR, setembro de 1975, nº 2). Junto ao desfile, ocorreu a inauguração da Praça do Imigrante de Novo Treviso. O desfile histórico percorreu o entorno da nova praça, sendo parte do espetáculo a instituição de um novo espaço público para o local. Além disso, o nome designado a praça remete aos imigrantes italianos. Dessa forma, constatamos que, as comemorações da imigração italiana aconteceram também na localidade de Novo Treviso e, percebendo o envolvimento da Igreja católica e a exaltação da figura do imigrante italiano. A comunidade de Ivorá, que no período das comemorações ainda era distrito de Julio de Castilhos também se integrou às comemorações alusivas ao centenário da Imigração Italiana, a qual a paróquia desenvolveu o programa de festejos entre os dias 24 de maio até o dia 1º de junho. Segundo o jornal A Razão (22 de maio de 1975, p. 16) foram realizadas celebrações eucarísticas todas as noites na Igreja Matriz, que foram seguidas de festejos populares no salão paroquial. Além disso, houve inauguração de uma igrejinha histórica, que teve o intuito de expressar a fé e a religiosidade dos colonos italianos. Tal momento contou com a presença de autoridades políticas, bem como do Bispo Diocesano Dom Ivo Lorscheiter. E em um terceiro momento houve a inauguração de um monumento erguido em frente da igreja matriz, seguido de celebração eucarística e almoço. Na parte da tarde realizou-se um grande desfile com carros alegóricos, em alusão ao Centenário da Imigração Italiana em Ivorá. No município de Faxinal do Soturno, até então foi possível apurar que para o Centenário da Imigração italiana houve um concurso para eleger a Rainha do Centenário da Imigração Italiana. Foram eleitas a rainha e suas duas princesas, conforme apresenta o jornal O Radar, de setembro de 1975. Encontram-se ainda lacunas a respeito das festividades em faxinal do Soturno devido à falta de fontes. Por fim, no ano de 1984, o município de Nova Palma viveu as comemorações do Centenário da Imigração Italiana, pois em 1884, o núcleo Soturno foi oficialmente inaugurado, passando a receber os seus primeiros imigrantes. As festividades do Centenário da Imigração no município deram início ainda no ano anterior, estendendo-se por todo o ano de 1984. Em 1983, houve a organização de como as comemorações iriam acontecer através da elaboração de uma programação oficial dos festejos. Além disso, foi realizado um movimento de restauração de capitéis que, segundo Manfio (2015, p.102): Para expressar a fé dos imigrantes italianos no ano do Centenário, foi proposta à comunidade a restauração dos capitéis – pequenos oratórios dedicados aos santos que foram construídos ao longo das estradas do interior de Nova Palma. O reparo dos oratórios fez parte das comemorações do Centenário da Imigração Italiana, como uma forma de apresentar a população local a importância e a presença da Igreja Católica e da fé do imigrante. Em Nova Palma, a organização dos festejos estava por conta da Igreja católica, na figura de Padre Luiz Sponchiado e, no conselho paroquial. No ano de 1984, as comemorações iniciaram já no primeiro dia do ano, indicado por padre Luiz Sponchiado: “a meia noite de primeiro de Janeiro de 1984, na matriz da SS Trindade, foi oficialmente aberto o ano do Centenário, com o lema – votado pela comunidade – Nova Palma: cem anos de colonização, fé e trabalho” (MANFIO, 2015, p. 99). Houve ainda as festas dos Santos padroeiros do município que foram incorporados as festividades dos 100 anos da Imigração, as quais tiveram a presença do Bispo Diocesano Dom Ivo Lorscheiter. Além disso, foi inaugurado o Centro de Pesquisas Genealógicas, fruto da extensão das pesquisas de Padre

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Tal canção foi representativa para essas comunidades colonizadas por italianos. A comunidade de Vale Vêneto chegou a lançar um pequeno livro de cantos em dialeto italiano, o qual consta essa música. Apresentam canções que exaltam a figura do imigrante, da sua religiosidade e do seu trabalho.

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Luiz Sponchiado sobre as famílias de imigrantes e descendentes de italianos que circularam na região da Quarta Colônia. O ponto alto dos festejos foi realizado no mês de dezembro, onde ocorreu o I encontro da família Rossato 14. Além dessa festa, aconteceu um importante desfile histórico na cidade, que deu conta de apresentar o processo imigratório, a instalação dos primeiros imigrantes e desenvolvimento local. Constata-se que, a região da Quarta Colônia viveu as comemorações do Centenário da Imigração Italiana, apesar de não ter sido incluída nos festejos oficiais do Rio Grande do Sul. Suas festividades iniciaram em 1975 e se estenderam até 1984, obedecendo, em alguns casos, os 100 anos da ocupação do núcleo colonial. As celebrações que adquiriram os traços religiosos, exaltavam a figura do imigrante italiano, através do trabalho, da fé e da religiosidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A partir de 1975, aconteceram na região da Quarta Colônia, as festividades em alusão ao Centenário da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul. O movimento festivo iniciado a partir de um decreto estadual organizou uma programação oficial que não incluía a antiga colônia Silveira Martins nos festejos. Dessa forma, a Igreja católica tomou frente dos festejos nessa região, organizando as comunidades para que realizassem as comemorações centenárias. Assim, constatou-se nessas festividades, a presença de Dom Ivo Lorscheiter, bem como a incorporação de festas de santos padroeiros às comemorações. Percebeu-se assim, os traços religiosos nessas celebrações festivas. Além disso, mapeou-se nove localidades que organizaram-se para comemorar o centenário da imigração italiana. Dessa forma, podemos constatar que tais comunidades identificavam-se com o passado da imigração italiana ocorrida na região. Um passado que estava relacionado com o presente, que precisava ser recordado através dessas festividades. Assim, a intencionalidade dos festejos era a exaltação do imigrante italiano, como o colonizador e precursor dessa região, no qual criou-se a imagem de que, apesar as dificuldades, o imigrante manteve sua fé e religiosidade para alcançar o êxito final, através do seu trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: JANCSÓ, István & KANTOR, Íris. (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Hucitec; Edusp; Fapesp, 2001. 2v. MANFIO, Juliana Maria. Entre o sacerdócio e a pesquisa histórica: a trajetória de Padre Luiz Sponchiado na Quarta Colônia de Imigração Italiana. (Dissertação de Mestrado). Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2015. PADOIN, Maria Medianeira; ROSSATO, Mônica. Gaspar Silveira Martins: perfil biográfico, discursos e atuações na Assembleia Provincial. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2013. SIMONETTI, Fernanda. A Imigração Russo- Alemã, na Região Central do Rio Grande do Sul, século XIX. In: Anais Eletrônicos do I Congresso Internacional de História Regional. Passo Fundo, 2011. Volume I (p. 1065- 1076). SPONCHIADO, Breno Antônio. Imigração e 4º Colônia: Nova Palma e Pe. Luizinho. Santa Maria: EDUFSM, 1996. VENDRAME, Maíra Inês. Ares de vingança: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre imigrantes italianos no sul do Brasil (1878-1910). Tese de doutorado. Porto Alegre, 2013. VENDRAME, Maíra Inês. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos imigrantes italianos na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Santa Maria: Edufsm, 2007.

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As festas de família são encontros nos quais participam pessoas que são descendentes e/ou que possuem laços de parentesco com determinado sobrenome (MANFIO, 2015, p.103).

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VÉSCIO, Luiz E. O Crime do Padre Sório: Maçonaria e Igreja Católica no Rio Grande do Sul (1893-1925). Porto Alegre: Editora da UFRGS; Santa Maria: Editora UFSM, 2001. ZANINI, Maria Catarina C. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria-RS. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2006.

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PADRE REINALDO WIEST: O SIMBOLISMO E A REPRESENTATIVIDADE LOCAL ATRAVÉS DO PRCESSO DE SANTIFICAÇÃO Garcia, Ticiane Pinto 1 Cerqueira, Fábio Vergara 2 Este artigo se propõe a apresentar as principais ideias correspondentes à elaboração de um projeto para uma futura pesquisa, que pretende difundir a representatividade local através da figura do Padre Reinaldo Wiest. Padre Reinaldo, nasceu no dia 15 de julho de 1907, em Dois Irmãos. Seus pais Felipe Wiest e Carolina Kieling Wiest, eram colonos conceituados, laboriosos e profundamente cristãos. Ele era o 11° de 15 filhos, dos quais três se consagraram ao serviço eclesiástico. Em 1921, Reinaldo se matriculou no Seminário Menor de São Leopoldo, e no dia 3 de dezembro de 1933, dom Joaquim F. de Mello lhe conferiu a Ordenação Sacerdotal na Matriz de São Miguel em Dois Irmãos. No início do ano seguinte, foi nomeado coadjutor da Catedral de Pelotas, iniciando assim sua missão sacerdotal. Dedicava-se particularmente a catequese, à assistência aos doentes e às visitas as famílias da periferia da Paróquia. Em maio de 1936, dom Joaquim lhe conferiu a Paróquia de Piratini. Reconstruindo a Igreja Matriz incendiada e dedicou-se a assistência espiritual, moral e material dos paroquianos. Segundo relatos, viajava constantemente as escolas e famílias do interior do vasto Município. Sempre demonstrando grande interesse pelas vocações sacerdotais, esmerando-se na formação de seminaristas oriundos da sua Paróquia. Vivendo na mais absoluta pobreza, e repartia os poucos bens e recursos que possuía com a população mais humilde. Em 1953, apesar dos protestos do povo de Piratini, dom Antônio Zattera resolveu transferi-lo para a Paróquia de Sant´Ana da Colônia Maciel em Pelotas. Como em Piratini, na nova localidade percorria ao lombo do cavalo todo o interior da Paróquia visitando as comunidades, as escolas e as famílias. Para uma análise biográfica, foi possível o auxílio do texto intitulado “O Vigário da Campanha” de Padre Johannes, amigo próximo de Wiest e defensor da causa de beatificação. No texto é expressiva sua forma de dissertar sobre, demonstrando imenso carinho diante da figura. Segundo Padre Johannes (apud GUIMARÃES, 2001, p.24) 3 “foi um grande amigo e meu ideal foi sempre o de procurar ser como ele”. A comunidade lembrasse constantemente da figura do Padre, levantando poeira pelas estradas de chão batido da região. No dia 27 de fevereiro de 1967, tendo encilhado seu cavalo para ir celebrar a missa numa comunidade vizinha, sentindo-se mal. Levado ao hospital de Canguçu veio a falecer horas depois. A CONTURBADA SAÍDA DA CIDADE DE PIRATINI Em 1953, ao receber o aviso de que iria sair de Piratini, a comunidade revoltou-se. Sendo que o próprio Bispo de Pelotas dom Antônio Zattera teve de ir buscá-lo. O carro que transportava o Bispo foi cercado, sendo necessárias várias horas para que fosse possível levá-lo. Após a morte de padre Reinaldo, Piratini e Colônia Maciel travaram uma rápida disputa pelo corpo do “filho” querido. Wiest pediu em vida para ser enterrado em Piratini, onde atuou por mais tempo e ajudou a reconstruir a igreja incendiada, mas a comunidade da Maciel reclamou seus restos 1

Licenciada em História pela UFPEL e graduanda no curso de Bacharelado na UFPEL. Pós doutor em História, professor adjunto do departamento de História da UFPEL 3 Disponível no Diário Popular de 21 e 22 de abril de 2001, p. 24-25. http://srvnet.diariopopular.com.br/26_01_07/p0301.html. 2

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mortais. Coube ao bispo auxiliar dom Ângelo Mugnol dar o veredito: “É costume sepultar o padre em sua última paróquia”. Seu túmulo hoje é o mais visitado no cemitério da localidade, principalmente aos domingos, após as celebrações das missas. Está sempre florido e com agradecimentos por graças alcançadas. O jazigo é ocupado também por outros dois padres que atuaram na região, monsenhor Jacob Lorenzet e padre José Flávio Weizenmann. A FÉ QUE PODIA CURAR E AJUDAR São muitas as histórias que dos dons e da solidariedade praticados por Padre Reinaldo. Histórias essas que estão disseminadas dentro da comunidade tornando-as vivas. Uma das demonstrações vem da família da produtora rural Nair Belletti, de 65 anos. Ernesto Belletti, pai de Nair, era devoto ao vigário. A filha conta que quando o patriarca da família recebeu a notícia da doença de sua esposa a tristeza tomou o lar. A mãe de Nair portava câncer na região da bexiga, em estágio bastante avançado. O médico estimou que restariam à paciente cerca de três meses de vida. Assustado, Ernesto agarrou-se na fé. Pediu ajuda a Cappone e recebeu como conselho orar para o padre Reinaldo Wiest. Foi o que Ernesto fez. Dias e noites, agarrado ao terço. "Depois disso, lembro que a mãe conseguiu sobreviver mais dois anos", conta Nair, ao lado do marido. Segundo matéria publicada no dia 31 de março de 2015, no Jornal Diário Popular, o caso do condutor do caminhão de cebola, que chegou ao seu destino apesar de estar com o motor do veículo fundido, é uma das razões que fazem o sacerdote ser chamado de santo. O empresário Pedro Antônio Casarin precisava levar carga de cebola em seu caminhão, mas o veículo teimava em não funcionar. Padre Cappone conta o caso: quando Wiest deparou-se com a dificuldade do motorista, propôs que rezassem um mistério do terço ao redor do veículo. Ao final da prece, o líder religioso ordenou que Casarin entrasse no veículo, fizesse a entrega da cebola e levasse o caminhão a um mecânico. "E quando ele entrou o caminhão ligou e funcionou", sorri Cappone. Posteriormente, na oficina, ninguém acreditava como o empresário havia realizado o trajeto com o motor fundido. O caminhão ficou oito dias em reparos. Outro relato que está na ponta da língua da comunidade é a gravidez milagrosa de uma mulher que seria estéril. O conto popular narra que após anos de frustração, o casal sem filhos desistia de ampliar a família. Até padre Reinaldo, em uma de suas visitas, encarar a mulher e prever: "Tu vais ficar grávida. Vocês vão ter um filho". Pouco depois de um ano, nasceu o bebê do casal. Tereza Scaglioni Belletti guarda esta história há 51 anos, idade da tão aguardada filha Maria de Lourdes, hoje professora. Antigamente, Tereza morava com o marido João na região da campanha, mas trocou a Maciel pela zona urbana. Aos 92 anos, ela é de poucas palavras. Viúva há nove anos, ela fala com delicadeza das cicatrizes de seu casamento. Jovem casada, aos 28 anos engravidou. Felicidade a caminho. Eram trigêmeas. Infelizmente, porém, as crianças ainda não estavam preparadas para vir ao mundo. O nascimento também significou a morte dos bebês prematuros. O luto de Tereza e João repercutia na casa, na lavoura, na fala, ao responder os questionamentos de vizinhos e encarar os olhares de compaixão. Em certo ponto, ela se convenceu de que o problema estava em seu corpo, causado por alguma atividade hormonal. Na época, parecia a resposta mais próxima. Durante 13 anos o casal viveu entre a esperança e a decepção. "Família só com dois é complicado, né? Não parecia completa", ela recorda. Quando a produtora rural chegou aos 40 anos, com a certeza de que a maternidade não seria sua sina, padre Reinaldo visitou ela e o marido: "E aí ele disse que eu ia ter um filho. Um ano depois ela nasceu", sorri Tereza, ao fazer referência à Maria de Lourdes. "Eu não cheguei a ser batizada pelo padre Reinaldo, conheço pouco a história dele", conta a filha. Apesar de serem lições inesquecíveis aos mais velhos, os feitos do Wiest ameaçam se perder no tempo, sem um registro oficial de suas graças.

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O PROCESSO DE CANONIZAÇÃO A Diocese de Pelotas, garante que o caso “não morreu” e irá se consolidar. A Igreja acompanha e registra a fé em torno da imagem de Wiest, bem como as graças dedicadas a ele. Nota-se, inclusive, uma veneração maior. São manifestações necessárias para sustentar um futuro pedido de beatificação. O Bispo de Pelotas, Dom Jaime Chemello acredita que em Pelotas existem pessoas capacitadas para “advogar” a causa. A maior dificuldade seria encontrar um relator em Roma, mas é preciso paciência. Padre Anchieta (1534-1597), lembra, um dos maiores nomes católicos do País, só foi beatificado em 1980. A canonização pode demorar décadas e deve-se provar o poder de conceder graças do postulante. O trabalho de um “advogado” do candidato é essencial. Cabe a esta pessoa registrar através de documentos os testemunhos e os milagres. É um processo por etapas. Padre Reinaldo, por exemplo, se tivesse seu caso aceito pelo Vaticano, seria elevado primeiramente a servo de Deus. Os postos seguintes que ocuparia seriam venerável, beato e, finalmente, santo. Quem analisa o pedido é a Congregação para as Causas dos Santos, no Vaticano, e na Santa Sé a solicitação é avaliada pelas comissões Histórica, dos Consultores Teólogos e Congregação de Cardeais e Bispos. “A PREMONIÇÃO DE BARBOSA LESSA”? Um dos maiores nomes do tradicionalismo gaúcho, então com 20 anos de idade, preencheu em 1950 três páginas da Revista do Globo com o trabalho do padre Reinaldo, cuja fama já chegava a novas fronteiras. Coincidentemente, dez anos após a morte de Wiest o escritor publicaria um pequeno conto no Diário Popular sobre a beatificação, antecipando-se à campanha. Ao saber da iniciativa, Barbosa enviou uma carta à sua prima Eliza Lessa da Rosa (uma das fiéis que defende o processo) e mostrou-se feliz com a idéia: “Que coincidência, agora! Que premonição!”, ainda brincou. Tanto tempo depois, a professora aposentada de Direito e uma das pessoas que costuma registrar “os milagres” de padre Reinaldo relê a carta e o caderno onde guarda os episódios e os nomes de cada um que a procura para falar dos pedidos. Nas igrejas da comunidade ela costuma distribuir cartazes com seu telefone para aqueles que acreditam terem sido abençoados. Abaixo o conto de Barbosa Lessa 4: Não sei bem se foi o seu Bibico ou o Noquinha. Mas sei que a idéia, por um deles lançada, ganhou corpo. Mesmo aqueles de Piratini que jamais se envolviam em assuntos de igreja, dessa vez se envolveram. Até que o Solon, o Adão, o Homero e o Olivan acharam melhor que se resolvesse a questão com todo mundo presente. Daí a reunião, num sábado de tarde, à sombra do centenário umbu do sobrado da Dourada. Saiu na frente o Clayr: - Por onde vamos começar o movimento? - Ora, eu acho que antes de tudo é necessária uma proposta ao papa. - Como? - A gente escreve uma carta e todo mundo assina. - E se a carta se extravia até lá? Saltou o Renê: - Deixem por minha conta, que eu chamo o Negro Donato. Não há chasque que ele não entregue, monta a cavalo e está em Roma. É uma confiança o crioulo! Mas seu Godo, de mansinho, achou que não bastava o mandalete ativo. Isso de canonização ele nada entendia, mas, pelo visto, devia requerer ponchadas 4

Disponível em: http://galpaodapoesiacrioula.blogspot.com.br/2013/01/barbosa-lessa.html Acesso em 31/ 08/15

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de dinheiro. E Piratini, embora linda, terra de povo bueno, para tanto era mui pobre. - Pobre demais para consagrar um santo - concluiu. Foi aí que o Dorvalino, entre um e outro sorvo de erva-mate, se pôs como Advogado do Diabo. Argumentou: talvez o falecido não pudesse resistir ao crivo infernal do Tudo-Certo. Padre Reinaldo, em vida, cometera tantas faltas! Em vez de enfeitar com rosas e volta a igreja, plantara couve para dar aos pobres. Fora avarento: tinha uma batina só, só, a ponto de, para secar ao sol, ter de ficar nu - pelado, sim senhor! - em plena sacristia. E certa feita em plena Quinta-feira Santa, varado de fome que ele andava, tinha cometido o sacrilégio de churrasquear quase inteira uma paleta, que, herege, um fazendeiro lhe alcançara. Fez-se silêncio profundo. A dúvida inicial se tornara um acachapamento. Até que o Osvaldo, realista, suspirou ponto final ao sonho: - Não vai dar, mesmo, pra gente fazer nada. Mas veio um vento calmo e, com o vento, uma voz doce sussurrou - todos ouviram: “Não se preocupem mais, meus filhos... Acho que desta vez Deus errou, pois não mereço: um dia desses me chamou para prosear e já disse que eu sou santo.” O PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO Para descrever o mecanismo da representação a partir da figura do pároco foram feitas análises a cerca dos registros encontrados no acervo da Paróquia de Sant’Ana. Paróquia onde o Padre foi lotado após sua vinda de Piratini na localidade da Vila Maciel, Distrito do Rincão da Cruz Pelotas. Foi também utilizado o acervo fotográfico e oral do Banco de imagens e sons do Museu Etnográfico da Colônia Maciel. Além das diversas matérias encontradas desde os anos 70 no Dário Popular. Através da pesquisa gerada a partir dessas fontes, vemos a rememoração sendo propiciada aos moradores, para que a memória local seja exercitada e evidenciada. “(...) as diversas relações que os indivíduos ou os grupos mantêm com o mundo social: primeiramente, as operações de recorte e classificação que produzem as configurações múltiplas graças as quais a realidade é percebida, construída, representada; em seguida, os signos que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto, uma ordem, um poder; enfim, as formas institucionalizadas através das quais “representantes” encarnam de modo visível, “presentificam”, a coerência de uma comunidade, a força de uma identidade, ou a permanência de um poder”. (CHARTIER, 2002, p.169) Portanto, o trabalho de canonização do vigário que está em processo de recolhimento de materiais, pode servir de estímulo para a comunidade, juntamente com a pesquisa acadêmica associada à figura deste. Gerando o realce das discussões, colaborando assim para auto-estima social e para a movimentação do processo na Diocese de Pelotas e posteriormente no Vaticano. “O poder simbólico como poder de constituir um dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)”. (BOURDIEU, 2010, p.14) Os sinais da Representação e do poder simbólico diante da figura do Padre são muito perceptíveis dentro das comunidades, principalmente na Colônia Maciel, onde nas casas da maioria das famílias existem quadros com a imagem do Padre, como forma de devoção. Além disso, foi distribuído e é muito comum dentre a população folhetos que contém a oração em favor da beatificação e pedindo a colaboração para que sejam enviadas a diocese de Pelotas as graças recebidas por intermédio do referido

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vigário. A população realiza visitas frequentes ao túmulo e decora com flores e placas com mensagens em agradecimento por graças alcançadas, os famosos milagres.

Foto: Ticiane Garcia A carência de pesquisas acadêmicas associadas à figura do pároco, leva ao esquecimento de tal historicidade que a figura carrega. A afirmação da identidade ocorre através de diferentes ações que estimulem a construção coletiva do conhecimento, o diálogo entre os agentes sociais e a participação efetiva da comunidade, sendo um instrumento para a afirmação da cidadania. Vemos como um dos maiores resultados desta pesquisa, a constituição de uma historicidade local da preservação dos relatos e da memória dos habitantes das localidades em que o Padre atuou. REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO ANJOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e Modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do Século XIX. Pelotas: Ed. Universitária/ UFPel, 2000. CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. BOURDIEU, P. Sobre o poder simbólico. In: __________. O poder simbólico. – 14º Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. pp.7-15. BURKE, P. Testemunha Ocular. Bauru, São Paulo: EDUSC. 2004 CHARTIER, R.. À Beira da Falésia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. GARCIA, Ticiane Pinto. Possibilidades da Educação Patrimonial para o ensino de História: Relato de experiência no Museu Etnográfico da Colônia Maciel. Pelotas: Trabalho de conclusão do curso em História pela UFPEL, 2014. GRUNBERG, E. Educação Patrimonial: Utilização dos bens culturais como recursos educacionais. In: Cadernos do CEOM, Chapecó: Argos, n.12, 2000, pp.159–180, HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, 2006. HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997. PEIXOTO, L. Memória da imigração italiana em Pelotas / RS - Colônia Maciel: lembranças, imagens e coisas. 2003. Monografia de conclusão do curso de Licenciatura em História – UFPEL, Pelotas. POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 5, n.10, 1992, pp.200-212. RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007. http://srv-net.diariopopular.com.br/26_01_07/p0301.html - Acesso em 21/7/15.

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UMA FAMÍLIA EM MIGRAÇÃO: OS SILVA TAVARES E OS FLUXOS MIGRATÓRIOS NO EXTREMO SUL DO BRASIL (c. 1780 – c. 1860) Leandro Rosa de Oliveira 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho se propõe a analisar os fluxos migratórios que resultaram na ocupação da parcela meridional do atual estado do Rio Grande do Sul através da trajetória de migração da família Silva Tavares. Formada em Rio Grande na segunda metade do século XVIII, essa família se deslocaria em direção ao sul ao longo do Oitocentos, integrando tais fluxos migratórios e, portanto, sendo parte constituinte desse contexto. Seguindo os passos dessa família, buscamos averiguar os locais de origem dos grupos populacionais nos quais os Silva Tavares se inseriram em distintos momentos do século XIX, buscando melhor compreender como se caracterizou esse movimento migratório. Para tanto, utilizamos dados obtidos principalmente a partir de registros paroquiais, nos quais localizamos informações sobre a origem dessas pessoas. UMA FAMÍLIA EM MIGRAÇÃO Aos trinta dias do mês de novembro de 1783, José da Silva Tavares e Joana Maria dos Santos compareceram à Igreja Matriz de São Pedro do Rio Grande. Frente ao Reverendo Vigário José Inácio dos Santos Pereira, esse casal contraía, naquela data, o matrimônio, em uma conjuntura um tanto peculiar: o casamento ocorria em um momento no qual essa localidade estava sendo reocupada após ter sido invadida por tropas espanholas e recuperada pelo Império Português em 1776. Filha de um casal formado naquela povoação em 1757, Joana fora batizada na capela de Estreito, no ano de 1766, o que demonstra o impacto da invasão espanhola no cotidiano dessa família e de grande parte dos habitantes de Rio Grande, os quais se retiraram da vila em 1763 2. O já referido casamento de Joana nos permite inferir o retorno da nubente e seu estabelecimento naquela povoação, juntamente com seu cônjuge, o açoriano José da Silva Tavares, migrante recémchegado a Rio Grande. Os registros paroquiais dessa Matriz demonstram a permanência do casal nessa localidade pelo menos até 1792, ano de nascimento de João da Silva Tavares, último filho por eles registrado. Desde seu casamento, em 1783, até o nascimento de João, outros quatro filhos foram registrados pelo casal nessa povoação: Joaquim, nascido e batizado em 1785; Maria Joaquina, em 1786; José, em 1788, e Serafim, no ano de 1790. De acordo com o inventário de José da Silva Tavares, datado de 1813, esses foram os únicos filhos do casal 3. Tais registros encerram-se em um momento inicial de expansão rumo ao sudoeste de Rio Grande, o qual visava, mais especificamente, os campos localizados ao sul do rio Piratini, área que atualmente constitui a parcela oriental da extremidade meridional do estado do Rio Grande do Sul. A partir do estabelecimento do Tratado de Santo Ildefonso, tal região teria sido designada como parte integrante da faixa territorial neutra a ser demarcada e estabelecida entre as possessões lusitana e espanhola no sul da América. A indefinição desse território teria sido um dos motivos para que se iniciasse, na década de 1790, um movimento de ocupação de tal região, o qual ganharia força a partir do início do século XIX, especialmente com o término da Guerra das Laranjas, em 1801(CAMARGO, 2001; FRANCO, 1980; OSÓRIO, 1990; OSÓRIO, 2007). Analisando os matrimônios realizados naquela localidade entre 1794 e 1812, Maria Luiza Queiroz percebeu esse movimento, verificando a ocorrência de casamentos realizados em Oratórios na região ao sul daquela vila, algo que não havia ocorrido nos registros anteriores a 1794, com exceção daqueles 1

Mestrando do PPGH da PUCRS. Bolsista CNPq. Informações nesse parágrafo disponíveis em: https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-14558-1767 153?cc=2177295&wc=M78N-Y68:371568201,371568202,372210101#uri=https%3A%2F%2Ffamily search.org%2Frecapi%2Fsord%2Fwaypoint%2FM78X-3NR%3A371568201%2C371568202 %3Fcc%3D2177295>. Acesso em 11 de agosto de 2015. 3 ARQUIVO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL. Inventário post mortem de José da Silva Tavares, Autos 22, Maço 1, Estante 97, Cartório de Órfãos e Ausentes, Jaguarão, 1813. 2

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realizados na Capela Filial do Povo Novo. Nesse ano, já ocorrem registros de matrimônio nos oratórios de São Francisco de Paula do Piratini e do Herval. A estes, acrescentam-se até 1801 os de São Domingos de Canguçu, do Espírito Santo do Piratini, da Guarda do Arroio Grande e da Fazenda do Capitão Vieira, como alguns exemplos (QUEIROZ, 1987). Esse deslocamento pode ser observado também pela lista de criadores com marca de gado registrada ao sul do rio Piratini, datada de 1807 (FRANCO, Op. Cit., p. 34-35). Tal lista constitui uma amostragem de pessoas que estavam desenvolvendo a pecuária nessa região, cuja ocupação pelos súditos do Império Português era ainda recente no início do Oitocentos, dentre as quais encontra-se José da Silva Tavares. Esse documento, único registro que encontramos dessa família desde o nascimento do caçula João, em Rio Grande, no ano de 1792, nos permite inferir sua migração para a área em questão, a qual vinha sendo ocupada por indivíduos oriundos das mais diversas partes do Império Português. No intuito de melhor demonstrar o que colocamos acima, buscamos averiguar o local de nascimento daqueles presentes na já citada lista de criadores estabelecidos na região ao sul do Piratini. Localizamos tais informações para 59 dos 90 listados, as quais apresentamos dispostas no quadro abaixo. Tabela 1: Procedência dos indivíduos presentes na lista de criadores de 1807. Local de Origem

Quantidade de indivíduos

%

Açores

13

22

Portugal

5

8,5

Uruguai

1

1,7

Brasil

9

15,2

Rio Grande do Sul

31

52,6

Total

59

100

Fonte: Para uma melhor disposição dos dados, optamos pelas categorias “Rio Grande do Sul” e “Brasil”, nas quais estão incluídos os indivíduos nascidos, respectivamente, na Capitania de São Pedro do Rio Grande e nas outras Capitanias correspondentes ao território colonial português na América do Sul. Os dados demonstram, em primeiro lugar, a predominância de pessoas nascidas no território correspondente ao atual Brasil, as quais correspondem a 67,3% dos migrantes em questão. Dentre esses, a maioria é composta por indivíduos nascidos na própria Capitania (53,9% do total), os quais apresentam os seguintes locais de origem, de acordo com a região 4: 7 (22,5%) oriundos da região “Capital”; 4 (12,9%) da região “Rio Pardo” e 20 (64,6%) da região “Porto-charqueadora”. Ou seja, dentre os migrantes nascidos na Capitania de São Pedro, predominam aqueles nascidos em Rio Grande e arredores, os quais estariam em maior número mesmo que separássemos a localidade de Rio Grande como uma única categoria na tabela acima citada. É importante ressaltar ainda o percentual significativo de açorianos, os

4

As regiões aqui descritas estão de acordo com a categorização por nós utilizada em trabalho anterior. Partindo do modelo proposto por Luís Augusto Farinatti, organizamos os locais de origem segundo critérios geográficos, no intuito de melhor visualizar as principais áreas de afluxo, e não apenas as localidades. Essas áreas seguem as seguintes especificações: Rio Pardo: da região central da província, que englobava as localidades de Rio Pardo, Cachoeira, Caçapava e Encruzilhada; Jacuí: localidades de Triunfo, Santo Amaro, Camaquã e Taquari; Capital: Porto Alegre, Viamão e Santo Antônio da Patrulha; Piratini: Piratini e Canguçu; Porto-charqueadora: Rio Grande, Pelotas, Estreito, Mostardas e Povo Novo. MATHEUS; OLIVEIRA, 2014.

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quais perfazem quase um quarto do total dos indivíduos aqui analisados, dentre os quais está José da Silva Tavares. A amostragem apresentada acima permite que tenhamos uma ideia sobre a variedade de regiões das quais eram oriundos os migrantes que estavam ocupando essa parte da estremadura meridional da América Lusa no início do século XIX. É importante ressaltar que essa lista de criadores diz respeito a apenas uma parcela dessa população migrante. Por certo, os indivíduos listados realizaram tal movimento migratório acompanhados de suas famílias, cujos membros não listados, por vezes de origens diversas daqueles presentes na lista, também fariam parte da ocupação do espaço aqui analisado e da caracterização de sua população. É o caso da própria família de José da Silva Tavares, açoriano, o qual certamente migrou para o sul do Piratini acompanhado de sua esposa Joana Maria, nascida no Estreito, e por pelo menos quatro dos seus cinco filhos nascidos em Rio Grande (VIEIRA, Op. Cit., p. 79). Outros casos nos permitem ilustrar o proposto acima, como por exemplo os do comerciante Inácio José de Leivas, do tenente Antônio Francisco dos Santos Abreu e o de Bonifácio José Nunes, também presentes na lista de criadores de 1807. Naturais, respectivamente, da “Ilha de Santa Catarina”, de Viamão e de Rio Pardo, esses três indivíduos registraram filhos legítimos na vila de Rio Grande antes de 1800. Em tais registros, suas respectivas esposas foram descritas como sendo naturais, respectivamente, de São Carlos de Maldonado (localidade do atual Uruguai), Viamão e Santo Antônio da Patrulha 5. Os dados relativos a essas mulheres e crianças, portanto, quando localizáveis, servem para exemplificar ainda melhor o quão diversas eram as origens das pessoas que ocuparam a região ao sul do Piratini no início do século XIX. Acompanhados por suas famílias, esses indivíduos se estabeleceram em uma área de fronteira, levando seus escravos (ALADRÉN, 2012; MATHEUS, 2014), e sendo resguardados pela presença de acampamentos militares portugueses. Esses criadores, localizados inicialmente em um espaço de fronteira determinado apenas por sua posição meridional em relação ao rio Piratini, foram gradativamente se aglomerando em torno de três localidades que surgiram na região aqui analisada, conforme afirma Sérgio da Costa Franco: Arroio Grande, Herval e Jaguarão (FRANCO, Op. Cit). Seguindo agora os rastros de João da Silva Tavares, haja vista o falecimento de seu pai, José, em 1813, procuramos visualizar sua fixação, juntamente com sua família, na localidade de Herval. Isso no foi possível, principalmente, a partir da documentação proveniente do processo de requerimento de autorização para a edificação de uma capela naquela localidade e sua posterior elevação à freguesia, nas quais João se faz presente. Esses documentos são a subscrição anexa ao requerimento para erguer capela, do início da década de 1820, e o "Mapa dos Cabeças de Casal, Brancos, Escravos da Nova Freguesia de São João Batista do Herval, suas Divisas e Léguas" 6, solicitado pela Coroa em virtude do andamento do processo acima citado e elaborado no ano de 1824. Com a intenção de averiguar a origem dos indivíduos presentes nessa documentação, elaboramos uma única listagem dessas pessoas, a partir do cruzamento das listas nominais da subscrição e do “Mapa”, a qual totalizou 243 indivíduos. Frente à impossibilidade de acessar os registros paroquiais referentes a Herval, cruzamos esses dados com os registros paroquiais da vila do Rio Grande, utilizando a mesma metodologia aplicada anteriormente à lista de criadores de 1807. Em virtude disso, conseguimos designar a origem apenas para 62 (25,5%) daqueles incluídos na listagem total. Cremos que essa amostragem, apesar de reduzida, nos permite realizar uma aproximação do que seriam os percentuais de procedência para aquela localidade. Isso se corrobora na comparação dos dados da lista de criadores de 1807 com os percentuais apresentados abaixo para as localidades de Herval e Jaguarão, os quais mantém um padrão próximo ao visualizado para aquele momento. Além disso, os dados de 5

Informações obtidas em: , acesso em 11 de agosto de 2015. VIEIRA, Op. Cit.. 6 ARQUIVO NACIONAL. “Mesa de Consciência e Ordens”, Código 4J, Seção de Guarda Codes/SDE: caixa 283, Criação de Freguesias e Capelas – "Mapa dos Cabeças de Casal, Brancos, Escravos da Nova Freguesia de São João Batista do Herval, suas Divisas e Léguas".

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Herval para a década de 1820 permitem que se estabeleça uma comparação com outras localidades formadas também a partir da ocupação efetiva da metade sul do atual estado do Rio Grande do Sul, ocorrida a partir do início do século XIX. São essas localidades, além de Herval, Alegrete, Bagé e Jaguarão, estando essa última na mesma região aqui contemplada através da lista de criadores de 1807. Apresentamos os dados referentes a essas localidades no quadro abaixo. Tabela 2: Percentuais gerais de procedência – Alegrete, Bagé, Herval e Jaguarão. Alegrete 7 1816-1827

Bagé 8

Herval 9

Jaguarão 10

1828-1835

1829-1835

Década de 1820

1814-1826

Rio Grande do Sul

29%

37%

61,4%

62,9%

73,7%

Missões

46%

28%

1,6%

0

0,1%

Brasil

12%

18%

14%

12,9%

6,7%

Europa

7%

8%

14%

21%

8,2%

Região Platina

5%

8%

7%

3,2%

11,3%

África

1%

1%

2%

0

0

Total

100%

100%

100%

100%

100%

Fonte: Ver especificações relativas a cada localidade nas notas de rodapé. Os percentuais acima demonstram, de maneira similar àqueles apontados a partir da lista de criadores de 1807, a presença majoritária de indivíduos oriundos das zonas de colonização lusobrasileira do Rio Grande de São Pedro, não só para as localidades de Herval e Jaguarão, surgidas na mesma área onde aqueles criadores estavam inseridos, como também para as localidades de Bagé e Alegrete. Sobre esta última, se faz necessário destacar o percentual majoritário de indivíduos oriundos das Missões para o primeiro período demonstrado na tabela, explicado pelo fato de aquela localidade ter sido erguida em uma parcela dos antigos territórios missioneiros (FARINATTI, 2014). A população oriunda de localidades do atual estado do Rio Grande do Sul, naquela localidade, além de apresentar percentual superior às outras origens no primeiro período, tende a se tornar majoritária ao longo do tempo, como os percentuais demonstram. Para além disso, os percentuais apresentados para as outras localidades vão ao encontro da hipótese sugerida por Luís Augusto Farinatti em sua análise acerca da capela de Alegrete. Conforme demonstra o autor, a “onda populacional” que participara da conquista e ocupação daquele território teria sido composta, majoritariamente, por indivíduos nascidos no Rio Grande de São Pedro (FARINATTI, 2014). A partir da comparação dos dados apresentados, cremos que seja possível afirmar a validade dessa proposição para as outras localidades aqui analisadas, conforme já havíamos sugerido em trabalho anterior, relativo à capela de Bagé (MATHEUS; OLIVEIRA, Op. Cit.). Frente a isso, passamos à comparação dos dados relativos a essas quatro localidades, considerando apenas os percentuais referentes à parcela oriunda de regiões pertencentes ao atual estado do Rio Grande 7

Dados percentuais aproximados relativos aos indivíduos do sexo masculino que batizaram seus filhos nessa localidade durante o período especificado. Obtidos em: FARINATTI, 2014. 8 Dados percentuais relativos aos indivíduos do sexo masculino que batizaram seus filhos nessa localidade durante o período especificado. Obtidos em: MATHEUS; OLIVEIRA, Op. Cit. 9 Informações obtidas em: 10 Percentuais obtidos através da quantificação de dados gerais de indivíduos de ambos os sexos que registraram seus filhos nessa localidade durante o período especificado. Obtidos em: FRANCO, Op. Cit.

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do Sul. Tais dados foram divididos de acordo com as categorias anteriormente apresentadas neste trabalho. As localidades de Herval e Jaguarão apresentam percentuais majoritários (80% e 93%, respectivamente) para indivíduos oriundos da região “Porto-Charqueadora”, seguindo a tendência verificada para a área na qual estavam localizadas em 1807. Já para Alegrete, o percentual majoritário é relativo a pessoas advindas da região “Rio Pardo” (52 a 55% entre 1816 e 1844). Bagé, por sua vez, apresenta uma maioria de indivíduos oriundos dessa mesma área (39,1%), tendo a região “Piratini” um percentual também significativo para essa localidade (30,4%). Os dados apresentados, cruzados com uma sugestão cartográfica presente em trabalho anterior (MATHEUS; OLIVEIRA, Op. Cit.), nos permitiram elaborar uma nova sugestão para as principais rotas migratórias que compuseram a ocupação inicial das capelas aqui analisadas, a qual está representada no mapa a seguir: Mapa 1: Principais rotas migratórias para as capelas de Alegrete, Bagé, Herval e Jaguarão - primeira metade do século XIX 11

Fonte: http://www.casadosmapas.com.br/imagem/cartogramas/rs.jpg (adaptado). Como se pode ver, as áreas que fornecem mais indivíduos para as novas localidades são aquelas limítrofes às regiões ocupadas pelas novas localidades, algo que corrobora a hipótese elaborada também por Luís Augusto Farinatti, a partir de sua análise sobre os fluxos migratórios para Alegrete (FARINATTI, Op. Cit.). Para as outras localidades aqui analisadas, observa-se a mesma tendência, tendo sido tais povoações alimentadas por pessoas advindas majoritariamente de ao menos uma de suas áreas limítrofes, algo que pode estar demonstrando uma característica do processo de ocupação da metade sul do atual Rio Grande do Sul durante as primeiras décadas do século XIX, qual seja, o avanço para áreas imediatamente contíguas às regiões de ocupação mais antiga. Como pudemos ver, a família Silva Tavares seguiu essa tendência nos primeiros anos do Oitocentos, assim como outros inúmeros indivíduos que se deslocaram de Rio Grande para a região ao sul do rio Piratini. Esse não seria, entretanto, o único movimento migratório realizado por João da Silva Tavares e seus familiares ao longo do século XIX. Com a eclosão da Revolução Farroupilha, em 1835, João da Silva Tavares posiciona-se em defesa do Império do Brasil. Durante o conflito, circula ativamente entre o norte do Uruguai (em especial na região de Cerro Largo) e o sudeste da Província (Rio Grande, Pelotas, Herval, Jaguarão), sendo essa 11

As áreas em destaque no mapa são representações aproximadas das principais regiões de afluxo anteriormente descritas neste trabalho. Para destaca-las, utilizamos as seguintes cores: preto para “Missões” (estando representada aqui apenas a área aproximada dos Povos localizados na margem oriental do rio Uruguai), verde para “Rio Pardo”, roxo para “Jacuí”, azul para “Capital”, laranja para “Piratini” e amarelo para “Porto-charqueadora”. Os pontos vermelhos representam as localidades analisadas, quais sejam, da esquerda para a direita: Alegrete, Bagé, Herval e Jaguarão.

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última região sua principal área de atuação durante o decênio de guerra. Essa circulação pode ser confirmada a partir dos nascimentos e óbitos de alguns de seus filhos, registrados, durante o conflito, nas localidades de Herval, Pelotas e Rio Grande. Com o findar do decênio Farroupilha, João da Silva Tavares adquire, no ano de 1847, a estância do Serro Alegre, situada na localidade de Bagé, sendo a escritura de compra registrada em Rio Grande. (VIEIRA, Op. cit., passim). Após a compra da propriedade, Silva Tavares e sua família migram para a então vila de Bagé, restabelecendo sua vida naquela localidade. Com o intuito de melhor compreender o contexto no qual o movimento migratório dessa família ocorre, analisaremos a seguir os dados relativos à procedência dos indivíduos que compareceram à pia batismal na capela de São Sebastião de Bagé, os quais encontram-se expressos no gráfico abaixo: Gráfico 1: Variação temporal dos percentuais gerais de procedência (Bagé, 1829 – 1860)

Fonte: Arquivo da Diocese de Bagé. Registros de Batismo da Igreja de Bagé. Livros 1, 2, 3 e 4B.

Como se pode ver, a tendência apresentada pelas localidades analisadas anteriormente neste trabalho permanece, ao longo das décadas de 1830, 1840 e 1850, para a vila de Bagé, apresentando um aumento percentual durante o período Farroupilha, mas tendendo a estabilizar nos períodos posteriores. Para uma melhor visualização de como é composta essa população natural da província de São Pedro do Rio Grande que se encontra em Bagé no período em questão, distribuímos esses dados seguindo a mesma periodização acima apresentada. Dividimos tais dados, porém, de acordo com as seguintes categorias: “Principais áreas”, com os percentuais referentes aos indivíduos oriundos das áreas que apresentaram afluxo majoritário para Bagé durante o período entre 1829 e 1835 (Rio Pardo e Piratini); “Outras áreas”, cujos percentuais dizem respeito às demais regiões de afluxo (Jacuí, Capital, Portocharqueadora e Missões); “Novas áreas”, com percentuais referentes àqueles oriundos das áreas mais recentes de ocupação, dentre as quais as localidades aqui analisadas anteriormente (Alegrete, Herval, Jaguarão, entre outras); e, finalmente, “Bagé”, com o percentual de indivíduos nascidos na localidade analisada. Dispomos tais percentuais no gráfico abaixo:

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Gráfico 2: Variação temporal dos percentuais de procedência de indivíduos oriundos de áreas do atual estado do Rio Grande do Sul (Bagé, 1829 – 1860)

Fonte: Arquivo da Diocese de Bagé. Registros de Batismo da Igreja de Bagé. Livros 1, 2, 3 e 4B.

Com a nova divisão dos percentuais, podemos visualizar não só o peso dos indivíduos oriundos das áreas mais antigas de afluxo para Bagé, ao longo do tempo, mas também os dados relativos a indivíduos oriundos de localidades que não encontram-se contempladas pelas categorias utilizadas anteriormente neste trabalho, quais sejam aqueles procedentes das áreas mais antigas de afluxo migratório. Além disso, é possível visualizar, através do crescente percentual da categoria “Bagé”, o enraizamento da população naquela localidade, como não poderia deixar de ser, haja vista o período decorrido desde a fundação daquela povoação. É interessante observar o decréscimo dos percentuais de indivíduos com origens nas áreas mais antigas de afluxo. Tal diminuição é mais acentuada para aqueles oriundos das “Principais áreas”, a qual é inversamente proporcional ao percentual de indivíduos nascidos na localidade de Bagé. Além disso, chama a atenção o aumento percentual, ao longo do tempo, de indivíduos procedentes das “Novas áreas”. Apesar de pouco significativo, esse percentual demonstra a circulação de indivíduos nessa área de ocupação mais recente, a qual pode ser percebida, na capela de São Sebastião de Bagé, a partir do período da Revolução Farroupilha. Mesmo com o término desse conflito, esses percentuais seguem aumentando ao longo do tempo. Um movimento parecido, é importante ressaltar, também pode ser percebido na vila de Alegrete. Cremos que grande parte dessa circulação tenha ocorrido em virtude das circunstâncias da Guerra dos Farrapos, considerando que a metade sul da Província de São Pedro do Rio Grande foi a mais afetada pelos combates desse conflito, fator que pode ter influenciado o deslocamento de algumas parcelas das populações da região em questão. Por sua vez, o aumento desses percentuais em Bagé, nos períodos posteriores, pode estar demonstrando não só a fixação de alguns desses indivíduos que teriam se deslocado em virtude do conflito, mas também um novo processo migratório, ocorrido em virtude das consequências de dez anos de conflitos bélicos internos. Esse é o caso da família Silva Tavares: de acordo com seus biógrafos, João da Silva Tavares teria perdido suas posses em Herval durante a Revolução Farroupilha, em virtude de ter se posicionado ao lado das forças legalistas na Província de São Pedro (VIEIRA, Op. Cit.. MEDEIROS, Op. Cit.). Considerando esse caso, cremos que é possível que essa uma das explicações para o crescente aumento de indivíduos oriundos dessas novas áreas na localidade de Bagé, haja vista a possibilidade de boa parte dessas migrações terem sido motivadas por razões semelhantes àquelas que levaram a família Silva Tavares a migrar para Bagé. Essa, entretanto, é uma hipótese, a qual só poderá ser melhor averiguada em pesquisas posteriores e mais aprofundadas sobre esses contingentes populacionais e seus fluxos migratórios.

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CONCLUSÃO A partir da análise da trajetória de João da Silva Tavares e sua família, cremos ter sido possível visualizar alguns dos movimentos migratórios que caracterizaram a ocupação da parcela meridional do atual estado do Rio Grande do Sul durante as primeiras décadas do século XIX, dos quais essa família também fez parte. A partir dos dados apresentados para as localidades de Herval e Jaguarão, os quais puderam ser comparados àqueles relativos à Alegrete e Bagé, esperamos ter contribuído com os estudos relativos à ocupação da região analisada neste trabalho, acrescentando novos elementos às propostas já existentes para a visualização das principais rotas de afluxo migratório para a área em questão neste trabalho. Da mesma forma, esperamos também ter sugerido, a partir da análise dos dados para Bagé, algumas hipóteses para os fluxos populacionais ocorridos durante e após a Revolução Farroupilha, os quais provavelmente decorreram das consequências desse conflito. Tais consequências podem ter influenciado a ocorrência de rearranjos populacionais, não só na localidade de Bagé, mas também nas demais localidades da Província de São Pedro do Rio Grande. As proposições acima colocadas, é importante frisar, ficam aqui registradas enquanto hipóteses a serem averiguadas em trabalhos futuros. REFERÊNCIAS ALADRÉN, Gabriel. “Sem respeitar fé nem tratados”: escravidão e guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Rio de Janeiro: PPGH/UFF, 2012. (Tese de Doutorado) CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801: A Guerra das Laranjas e suas implicações na América Meridional. Passo Fundo: Clio Livros, 2001. FARINATTI, Luís Augusto. Gente de todo lado: deslocamentos populacionais, registros de batismo e reordenação social na fronteira meridional (Alegrete, 1816-1844). In: SCOTT, Ana Sílvia et al. (Orgs). História da Família no Brasil Meridional: temas e perspectivas. São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2014. FARINATTI, Luís Augusto. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010. FRANCO, Sérgio da Costa. Origens de Jaguarão. Caxias do Sul: UCS, 1980. GULARTE, Gustavo da Silva. Intrusos em terras fronteiriças: ocupação e povoamento das terras da margem oriental do rio Jaguarão, 1801-1814. Porto Alegre: UFRGS/IFCH – Departamento de História, 2010. (Trabalho de Conclusão de Curso) MATHEUS, Marcelo. OLIVEIRA, Leandro Rosa de. Das migrações para a fronteira (BAGÉ, c.1830c.1860). In: História, Verdade e Ética: anais / XII Encontro Estadual de História de 11 a 14 de agosto de 2014 / Organizadores: José Carlos da Silva Cardozo; Jonathan Fachini da Silva; Denize Terezinha Leal Freitas. - Porto Alegre: ANPUH-RS, 2014. MATHEUS, Marcelo. Texto de Qualificação do Projeto de Tese “A produção da diferença: escravidão e hierarquia social no extremo sul do Brasil meridional (Bagé, c.1830-c.1870)”. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS-PPGH, 2014. (Qualificação de doutorado) MEDEIROS, Manoel da Costa. História do Herval. Caxias do Sul: UCS, 1980. OSÓRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. Porto Alegre: UFRGS/IFCH – PPGH, 1990. (Dissertação de mestrado) OSÓRIO, Helen. O Império Português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737,1822. Rio Grande: FURG, 1987. VIEIRA, José Cypriano Nunes. O Fundador do Herval. Bagé, 2010.

SIMPÓSIO TEMÁTICO 11 COMPANHIA DE JESUS: NOVAS ABORDAGENS E TEMÁTICAS DE PESQUISA

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A PRESENÇA JESUÍTA NO GRÃO-PARÁ INDÍGENA DO SÉCULO XVIII ................................................... 599 “FACTOR MAXIMO DE LOS ACONTECIMIENTOS DE MAYO”: UMA ANÁLISE DO TEXTO CORNELIO SAAVEDRA DE GUILLERMO FURLONG SJ. ........................................................................................... 605 “LA ACTUACIÓN DE LOS JESUITAS TIENE TAMBIÉN SU LADO BUENO, QUE EN JUSTICIA NO SE PUEDE IGNORAR”: A PRODUÇÃO INTELECUTAL DA COMPANHIA DE JESUS NA OBRA “VIAJE AL PARAGUAY EN LOS AÑOS 1818 A 1826”, DE JOHANN RENGGER ............................................................................... 613 O USO MEDICINAL DE PEDRAS BEZOARES NA OBRA PARAGUAY NATURAL ILUSTRADO DE JOSÉ SANCHEZ LABRADOR S.J. (1771)......................................................................................................... 623 PEDRO LOZANO: O PRIMEIRO HISTORIÓGRAFO DA COMPANHIA DE JESUS? .................................... 631

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A PRESENÇA JESUÍTA NO GRÃO-PARÁ INDÍGENA DO SÉCULO XVIII Eduardo Gomes da Silva Filho 1 Amaury Oliveira Pio Júnior 2 INTRODUÇÃO Desde meados do século XVI, os primeiros portugueses já desembarcavam em terras tupiniquins. O marco inicial de sua presença no Grão-Pará se dá com fundação do Forte do Presépio em 1616, tendo como ponto de partida a construção da cidade de Belém, na época Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Por outro lado, em 1621 foi criado o Estado do Grão-Pará e Maranhão (com capital em São Luís), separado do estado do Brasil (com capital em Salvador), cuja criação tinha o objetivo de melhorar o contato da região com sua metrópole, além de incentivar a coleta das chamadas “drogas do sertão”. Por conseguinte, em 1637, uma expedição comandada por Pedro Teixeira parte de Belém até chegar a Quito, no Equador. Ao voltar, ele toma posse, em nome de Portugal, de todas as terras na margem esquerda do Rio Napo até o Oceano Atlântico, ou seja, quase toda a Amazônia. Na segunda metade do século XVII foi criada a Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão. A união com o Maranhão é desfeita em 1774, ao mesmo tempo em que a região sofria com uma estagnação da economia local. À época da independência, o Grão-Pará é uma das regiões onde há conflito armado contra o domínio lusitano. Os primeiros seis jesuítas vieram para o Brasil com o primeiro Governador Geral, Tomé de Souza, em 1549, para atividades missionárias na colônia. A presença da Companhia de Jesus pode ser observada só a partir de 1607. Em 1615 3, os Padres Manuel Gomes e Diogo Nunes já realizavam pregações no Grão-Pará, só sete anos depois em 1622, os primeiros jesuítas fixam residência no Maranhão. Entre os anos de 1636 e 1643, ocorreram as primeiras tentativas de estabelecimento das primeiras missões, por intermédio de Luís Figueira. Somente em 1652 a missão no Maranhão foi retomada, quando o padre Antônio Vieira que recebeu ordem da Companhia de Jesus. A COMPANHIA DE JESUS: COMÉRCIO E RELAÇÕES DE PODER No século XVIII, a Companhia de Jesus tornou-se uma congregação religiosa muito rica e poderosa no Norte do País, articulando a exploração comercial das drogas do sertão, com outras iniciativas muito lucrativas, como por exemplo, a exploração de escravos africanos. 4 De acordo com João Lúcio D’Azevedo: Pelo o que particularmente respeita ao Grão-Pará, a história desta parte da terra brazílica [sic] de modo nenhum se pode escrever sem a dos jesuítas. A lucta entre elles e a população leiga é o facto central, em torno de que todos os mais gravitam. Quaesquer [sic] que sejam os acontecimentos de ordem política ou econômica que, por dignos de menção tenhamos de considerar: abusos dos governantes, insubordinações dos povos, introducção [sic] de leis de fomento ou repressivas, descobertas, conquistas, escravidões; tudo quanto o civilizado praticou como colonizador no immenso [sic] território, que o rio mar e seus innumeráveis [sic] braços sulcam; tudo se prende a feitos, idéas [sic] e propósitos da Sociedade de Jesus. (D’AZEVEDO, 1901, p. 13).

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Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas e Professor Ministrante Departamento do Centro de Mídias – CEMEAM-AM. 2 Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Amazonas e Professor Ministrante Departamento do Centro de Mídias – CEMEAM-AM. 3 (Ano da expulsão dos franceses no Maranhão). 4 Desde meados do século XVI, a Companhia de Jesus (fundada por Santo Inácio de Loyola em plena Contrarreforma, no ano de 1534), espalhou-se por Portugal e adquiriu prestígio tanto com a coroa, quanto com o alto clero.

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A Companhia de Jesus não era simplesmente uma ordem religiosa como as outras, (franciscanas, carmelitas, beneditinas, etc.), seus combativos integrantes tinham uma organização quase militar: consideravam-se soldados da Igreja e achavam que deviam infiltrar-se em todas as atividades sociais e culturais, a fim de eliminar aqueles que pusessem em risco os princípios do catolicismo. As ordens religiosas, com suas atividades educativas e de catequese como no caso da implantação de colégios e seminários, reforçavam o modelo que convinha aos interesses dos grupos estabelecidos nos espaços de poder. Na América, a Igreja Católica formou um imenso patrimônio e construiu um sistema educativo que lhe garantiu posição privilegiada na formação de opinião e de influência na sociedade da época. E é nesse contexto que o contato interétnico entre indígenas e jesuítas se estreita, principalmente a partir das práticas de catequese. A Companhia de Jesus, em seu processo de expansão, contou com o apoio dos reis católicos. Mas eles também sofreram resistências, tanto dos colonos, quanto de outras ordens religiosas. A existência da mão-de-obra escrava na região apresentou-se como uma imposição dos colonos para o crescimento econômico dos seus negócios, e não era algo apreciado pelos padres da Companhia, e isso significava em parte um grande empecilho para a autorização da sua missão na Amazônia. Por outro lado, os trabalhos já desenvolvidos por esta ordem em outras terras brasileiras, funcionavam como uma referência positiva, além de uma possibilidade muito promissora para os empreendimentos da própria Coroa Portuguesa. AS ESTRATÉGIAS DE CONTATO Os missionários jesuítas, de um modo geral foram muito habilidosos na utilização do índio como força de trabalho. Nas aldeias, os índios eram envolvidos por uma mentalidade ideológica religiosa, todavia não era tratado como uma simples máquina de trabalho desprovida de humanidade. A propriedade comunal da terra era mantida, embora sob novas condições na divisão do trabalho, isso ocorreu na medida em que foram concedidos novos lotes para o cultivo individual, o que nem sempre era obtido sem o uso de meios repressivos. Corroborando com esse entendimento, John Monteiro (1994) nos ajudou a compreender esta investida colonial, na medida em que esse sistema conseguia produzir excedentes e exportá-los, aumentando assim a ira dos colonos que não dispunham de meios para a compra de número suficiente de escravos e nem podiam contar com a “colaboração” dos indígenas. Dessa maneira, a utilização de técnicas de sedução e convencimento, que incluía a música, o teatro e outras estratégias pedagógicas, que contavam com a ajuda de outros índios que já haviam sido por eles influenciados, de certa forma, esta estratégia foi responsável por verdadeiras migrações populacionais das aldeias em direção as missões. Naquele ambiente de constantes lutas e disputas, as missões significavam muitas vezes a única alternativa de sobrevivência, embora representassem uma forma a mais de trabalho braçal para os colonos. No que diz respeito aos índios, eles não tinham praticamente outra alternativa de vida, se não o retorno a sua fase anterior, ou seja, o modo de vida comunal. Os que por questões de resistência não se submetiam ao processo colonizador e de catequese, passavam a viver a margem deste processo, que invariavelmente favorecia muito mais aos brancos. Dessa maneira, embora continuassem no mesmo território, - não necessariamente em seu território tradicional - eles foram submetidos a costumes estranhos aos seus padrões, que atendia aos interesses do colonizador. E foi nesse contexto que os missionários de maneira totalmente anacrônica viam os indígenas como portadores de atitudes selvagens e alvo da doutrinação cristã. Para atingir este propósito nada ortodoxo, utilizavam-se do ensino de orações e cantos, assim como da vigilância quanto a um modo de vida condizente com a moral cristã católica. AS MISSÕES NO GRÃO-PARÁ DO SÉCULO XVIII: EXPECTATIVAS, CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES. Nas missões, embora os índios fossem inicialmente bem tratados, até como forma de desestimular as fugas, eles também eram explorados. De acordo com José Ricardo Pires de Almeida

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(1988), cada missionário tinha aproximadamente direito a um quantitativo de 25 índios, que trabalhavam para ele em tempo integral, fazendo geralmente serviços pessoais para os religiosos. Nessa ótica, as pesquisas realizadas por Serge Gruzinski (2003), nos apontam aspectos reveladores em relação ao encontro cultural que ocorreu na América. O autor nos revela a existência de uma ampla margem de liberdade de ação e reação que tiveram os diversos grupos indígenas subjugados. Do ponto de vista espacial eles constituíam o que o autor caracteriza como uma “rede furada” que eram frutos da incompreensão do colonizador frente ao universo indígena e da capacidade que estes tiveram em realizar sucessivos ajustes e adaptações ao chamado novo mundo colonial. Como vimos anteriormente, a análise do trabalho missionário jesuítico do século XVI no Brasil sugere que eles são os principais representantes de uma postura um tanto quanto etnocêntrica. Doravante, voltamos a nossa atenção agora para as missões jesuíticas no Estado do Maranhão e Grão– Pará em meados do século XVIII, com o objetivo problematizar os aspectos mais relevantes encontrados na atuação missionária no Brasil, e em particular ocorreram na Amazônia, debruçando-nos no período que antecedeu a expulsão da Companhia de Jesus de todo o Império Português, a partir da ação Pombalina. A partir dessa conjuntura, é válido salientar as estratégias de preservação cultural indígena, que segundo o inaciano João Daniel (2004), esses costumes envolviam a adoração da Lua, do Sol e das Estrelas. Essas afirmações podem ser melhor compreendidas nas palavras deste autor abaixo: Tudo isto presenciei eu mesmo, achando-me no campo com alguns, não só batizados, mas também ladinos; porque gritando que via um a lua, os mais, que estavam recolhidos em uma grande barraca, todos saíram a festejá-la; e alguns, entre as mais ações de alegria, estendiam os corpos, puxavam-se os braços, mãos, dedos, como quem lhe pedia saúde e forças em tanto que cheguei a desconfiar que estavam idolatrando. E se assim faziam os mansos educados, e doutrinados nos dogmas da fé de Cristo, que farão os bravos, e infiéis? (Daniel, 2004, vol. 1, p. 322). O relato acima enfatiza a possibilidade de os nativos ocultarem todo um conjunto de crenças e práticas que compõe sua cosmologia, dificilmente decifrável ou até mesmo imperceptível ao olhar do colonizador. Porém, de acordo com Sarah dos Santos Araújo: No Grão-Pará do século XVIII ocorreu a conhecida última Visita do Santo Ofício, que já havia estado presente em Pernambuco e Bahia de tempos idos. Esse era o aparelho utilizado pela Igreja Católica para vigiar a fé nas colônias distantes da metrópole Portuguesa, promovendo os ideais cristãos e contribuindo para reafirmar o poder português nas novas terras. (ARAÚJO, 2013, p. 01). A afirmação da pesquisadora estabelece uma interface entre as missões no período citado e a visitita do Santo Ofício, como instrumento de vigília e manutenção da fé católica. Ainda de acordo com Araújo (2013) “O Édito da fé e o tempo da graça eram instituídos, e, as pessoas estavam à mercê das inquirições, tanto quanto estavam dispostas a denunciar antes de serem denunciadas” (ARAÚJO, 2013, ibid. p. 02). A CONVERSÃO DO GENTIO. Segundo o professor Almir Diniz de Carvalho Júnior (2005), em seu trabalho denominado “A Conversão dos Gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769)”: As regras para o processo de conversão foram instituídas inicialmente por Antônio Vieira e [...], permaneceram até a expulsão da Companhia de Jesus daquele território. Sob o título de: “Regulamento das Aldeias indígenas do Maranhão e Grão-Pará” e conhecida também como a “Visita de Vieira”, estabelecia diretrizes que abrangiam desde questões religiosas e catequéticas, até a organização espacial, social e econômica das aldeias. Além disso,

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relacionava cuidados que deveriam ser tomados pelos missionários. (CARVALHO JÚNIOR, 2005, p. 158). Ainda de acordo com o autor “Uma primeira constatação que se faz no Regulamento das aldeias é a preocupação de Vieira com a preservação moral dos missionários. [...] exercícios espirituais; que as residências tivessem uma quantidade grande de livros [...]” (Ibid. p. 159). O autor continua descrevendo o processo de catequese à luz de Beozzo apud Vieira (1983), onde o mesmo afirmara que na ausência dos missionários, muitos índios treinados assumiam este papel. Carvalho Júnior (2005) ainda nos alerta para a forma como era feita a confissão e os batismos, além de nos chamar a atenção para algumas diretrizes apontadas na esfera religiosa, como por exemplo: “Batizar, confessar, casar e ajudar a bem morrer – tarefas básicas ao bom missionário”. (Idem, p. 165). O autor ainda exemplifica que: [...] é possível observar uma série de episódios que destacam técnicas de conversão, estratégias políticas de relacionamento com autoridades coloniais, atividades cotidianas dos missionários etc.. A tônica comum compartilhada pelos jesuítas está relacionada à necessidade de salvação das almas. Desde o seu princípio, a preocupação com a sua salvação foi parte constitutiva da missão da Companhia de Jesus. Os índios, considerados infiéis, deveriam ser salvos de sua gentilidade, da barbárie e dos erros em que viviam. Essa gentilidade fazia com que esses índios vivessem no erro, caberia ao missionário, portanto, conduzir os índios para a verdade através da conversão. (CARVALHO JÚNIOR 2005, p. 172-173). Nesse sentido, José Oscar Beozzo (1983), especificou o chamado regimento das missões, assim como a sua funcionalidade perante as especificidades eclesiásticas da época. As conversões eram praticadas junto aos índios do Grão-Pará, inclusive aos índios tidos como principais. Segundo Fernando Roque Fernandes “Nos aldeamentos, os índios Principais também tinha grande influência sobre os outros índios, além de terem sua influência baseada no prestígio [...]” (FERNANDES, 2015, p. 131). 5 O ACIRRAMENTO DAS TENSÕES: O MARQUÊS DE POMBAL E A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS. Mesmo com a situação aparentemente controlada, os jesuítas passaram a sofrer forte oposição, que surgiram principalmente ao longo do século XVIII. Entre elas, destacam-se duas bulas papais de 1741 que proibiam aos missionários qualquer comércio e o exercício de autoridade secular, foram reafirmadas pelo Marquês de Pombal. Em 1750, o Tratado de Madri obrigou Portugal a ceder a Colônia do Sacramento ao estuário da Prata, mas em compensação recebeu os atuais estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o atual Mato Grosso do Sul, a gigantesca área que ficava no alto Paraguai e mais algumas extensões de terras abandonadas. A capital brasileira foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro; a posse da Amazônia foi cedida para Portugal e o Rio Uruguai foi escolhido como fronteira entre o Brasil e a Argentina.

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De acordo com Carvalho Júnior: Em 1o de agosto de 1659, o rei D. Afonso IV recebia um parecer de seu Conselho Ultramarino referente a uma solicitação de mercês feita por um índio do Maranhão de nome Jorge Tajaibuna. Este índio era Principal da aldeia do Camucy e solicitava a mercê do Hábito de Cristo assim como a tença correspondente. Para justificar o seu pedido, alegava atos de obediência e diversos serviços prestados por ele e seu pai a Coroa Portuguesa. Cf. CARVALHO JÚNIOR 2005, p. 2015.

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Figura 01 - Mapa do Tratado de Madri de 1750.

Fonte: Disponível em: http://www.tiberiogeo.com.br/AssuntoController/buscaAssunto/11. Acesso em: 25/08/2015 às 22:00 h. Em 1755 as mudanças impostas pelo Marquês de Pombal, na época ministro de D. José I, em relação às populações indígenas no Brasil, foram concretizadas em um documento intitulado “Diretório que se deve observar nas povoações de índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”, de 1757, mais conhecido como “Diretório dos Índios”. As mudanças descritas neste Diretório davam continuidade a outras duas leis de 1755: a primeira restituía a liberdade aos índios e a segunda retirava dos missionários o poder temporal sobre as aldeias. Essas leis já conferiam o tom do discurso que já teria o Diretório, com a diminuição do poder dos religiosos sobre os índios, principalmente os jesuítas, que seriam expulsos em 1759, e promovendo mudanças nas relações entre índios e não índios. De acordo com a política Pombalina, as aldeias deveriam ser transformadas em vilas e lugares com nomes portugueses administrados por um governo civil. As ações descritas pelos artigos do Diretório deixava claro o objetivo assimilacionista do Império Português, ao incentivar à presença de não índios nas aldeias, os casamentos interétnicos e a extirpação dos costumes indígenas, de maneira a

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transformar esses grupos em vassalos do rei de Portugal sem distinção em relação aos demais. Em 1758, o Diretório dos Índios foi estendido ao resto do Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após as mudanças as regiões ficaram sendo observadas para que se o resultado fosse positivo pudesse então ser colocada em pratica nas outras regiões. Em 1798 o diretório é revogado através da Carta Régia. Marques de Pombal já não era mais o primeiro ministro português, e os objetivos principais já tinham sido alcançados, ou seja, os índios de uma região que era pouco explorada agora trabalhavam diretamente para a coroa e povoavam a região, garantindo a consolidação das fronteiras conquistadas em acordos políticos. REFERÊNCIAS ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil (1500-1889): história e legislação. Tradução Antonio Chizzotti. São Paulo: EDUC; Brasília: INEP/MEC, 1988. ARAÚJO, Sarah dos Santos. Vestígios do sentimento: representações do medo durante a visita do Santo Ofício ao Grão-Pará. Anais do II Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais – Salvador, setembro de 2013. BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões - Política Indigenista no Brasil, São Paulo: Edições Loyola, 1983. CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios Cristãos: A Conversão dos Gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769). Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. Campinas-SP: UNICAMP, 2005. 402 f. DANIEL, J. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro, Contraponto, vol. 600, 2004, 624 p. D’AZEVEDO, João Lúcio. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Bosquejo histórico com vários documentos inéditos. Lisboa: Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 1901. FERNANDES, Fernando Roque. O Teatro da Guerra: Índios Principais na Conquista do Maranhão (1637-1667). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Amazonas, Amazonas. Manaus-AM: UFAM, 2015. 177 f. GRUZINSKI, S. A colonização do imaginário: Sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol (séculos XVI-XVIII). São Paulo, Companhia das Letras, 2003, 463 p. MONTEIRO, John M. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes Nas Origens de São Paulo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 320 p. “REGULAMENTO das Aldeias Indígenas do Maranhão e Grão-Pará: padre Antônio Vieira – 16581661” In: BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões – política indigenista no Brasil, São Paulo: Edições Loyola, 1983, pp. 188-208.

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“FACTOR MAXIMO DE LOS ACONTECIMIENTOS DE MAYO”: UMA ANÁLISE DO TEXTO CORNELIO SAAVEDRA DE GUILLERMO FURLONG SJ. Mariana Schossler ∗ Mestranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS INTRODUÇÃO A presente comunicação apresenta um fragmento de meu projeto de dissertação de mestrado que venho desenvolvendo junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS, desde março do ano passado. O projeto prevê a análise da obra Cornelio Saavedra 1: padre de la patria argentina (1979), escrita pelo historiador jesuíta e membro da Academia Nacional de la Historia da Argentina Guillermo Furlong (1889-1974), inserindo-a em seu respectivo contexto de produção e vinculando-a ao processo de construção de uma memória sobre a Revolução de Maio de 1810, que caracterizou a historiografia argentina do século XX. Pretendo, aqui, analisar o texto intitulado Cornelio de Saavedra, publicado em 1960 na revista Estudios em uma edição especial em comemoração ao sesquicentenário da Revolução de Maio. Tal texto serviu como esboço para o livro publicado em 1979 e consiste em uma breve biografia de 18 páginas do prócer argentino. Pretendo investigar como se deu a inserção da revista – que era editada pelo Colegio del Salvador, um dos principais centros de formação da Companhia de Jesus na Argentina do século XX – neste momento de comemoração pátria. Ao mesmo tempo, gostaria de me deter no conteúdo da biografia, procurando responder aos seguintes questionamentos: como Furlong se utiliza das fontes para a escrita da biografia? Como se dá a escrita da mesma? Qual o conteúdo histórico que o texto apresenta aos leitores do periódico? GUILLERMO FURLONG SJ Para iniciarmos esta análise, considero importante compreender alguns aspectos da trajetória do autor do texto intitulado Cornelio de Saavedra (1960). Guillermo Furlong era filho de imigrantes irlandeses e ingressou na Companhia de Jesus aos 13 anos de idade, em 1903. Em meados de 1905, foi enviado por seus superiores à Espanha para dar continuidade a sua formação. Após estudar por um ano em Gandía, o jesuíta argentino dirigiu-se ao antigo mosteiro de Veruela, na província de Aragão. Lá, ao mesmo tempo em que lia e estudava os autores clássicos, Furlong passou a ter algumas lições de metodologia 2 e paleografia. Em 1910, iniciou seus estudos de Filosofia, desta vez, em Tolosa (MAYOCHI, 2009) e, um ano mais tarde, foi enviado aos Estados Unidos, para o Woodsctock College, anexo à Universidade de Georgetown, onde, em 1913, obteve seu PhD, e teve a oportunidade de entrar em contato com a escrita de biografias como a Life of Samuel Johnson (1787), de James Boswell, o que pode ter despertado seu interesse posterior pelo gênero (PADILLA, 1979, 73). Em meados de 1913, Guillermo Furlong retornou à Argentina. No mesmo ano, o jesuíta argentino iniciou suas funções como historiador da Companhia de Jesus. Segundo Geoghegan (1979), Furlong



Bolsista CNPq. Cornelio Saavedra nasceu em 1761. Após cursar seus estudos no Colegio de San Carlos, em Buenos Aires, foi regidor da administração colonial. Em 1801, foi nomeado alcalde e, em 1805, administrador de grãos. Iniciou sua carreira militar durante as invasões inglesas ao Rio da Prata, assumindo o comando do Regimento de Patricios e participando da recuperação de Buenos Aires em 1807.Partidário do Vice-rei Liniers, aderiu à Revolução de Maio de 1810, sendo eleito, como já mencionado, presidente da Primeira Junta de Governo e sendo reconhecido por sua tendência mais moderada. Retirado do poder por seus opositores em 1811, exilou-se, retornando à capital argentina apenas em 1818, quando teve repostos seu cargo e também honrarias. Retirado novamente do poder em 1820, se exilou em Montevidéu. Redigiu suas Memorias em 1829, ano de seu falecimento. 2 Considerando o contexto de produção dos textos de Mayochi (1979) e de Geoghegan (1979) e o fato de que O’Callaghan atuava como arquivista, pode-se supor que a palavra metodologia foi empregada para definir a forma de lidar com documentos e manuscritos visando à escrita de obras históricas. 1

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passou a frequentar o Archivo General de la Nación 3, o Museo Mitre 4 e algumas bibliotecas privadas (Geoghegan, 1979; Mayochi, 2009), ocasião em que conheceu o historiador Enrique Peña 5. O senhor Peña foi quem orientou definitivamente ao padre Furlong para a investigação histórica, presenteando-lhe com o seguinte conselho: ‘Não leia livro algum de história, mas opte por uma linha de pesquisa, uma série de temas afins, e frequente o Archivo General de la Nación em busca de materiais sobre estes temas e lhe asseguro que, passados dez ou quinze anos, ficará assombrado com o material que terá reunido...’ (GEOGHEGAN, 1979, p. 36, tradução minha). Em 1920, Furlong retornou à Espanha, para a conclusão dos seus estudos de Teologia, tendo sido enviado ao Colegio Máximo de Sarriá, em Barcelona. De acordo com Mayochi (2009), já neste período, Furlong manifestava forte interesse na história da América platina do período colonial. Em 1924, após receber a ordenação sacerdotal, retornou à Argentina e a sua atuação como professor das disciplinas de Literatura castelhana, Apologética, História argentina, Instrução cívica e Inglês. Em 1929, publicou seu primeiro livro sobre temas históricos, intitulado Glorias Santafesinas, que versa sobre a história da Argentina colonial. A quantidade de documentos e informações que conseguiu reunir em suas visitas realizadas a arquivos e bibliotecas argentinas e europeias possibilitou também a escrita de diversos artigos, muitos deles publicados na revista Estudios, da Academia Literaria del Plata e da Universidad del Salvador, de Buenos Aires. Estes textos versaram, em sua maioria, sobre a história da Companhia de Jesus na América Meridional, sendo que, em vários deles, Furlong se aproximou do gênero biográfico. 6 A partir desta breve biografia do autor, passarei a analisar o momento da comemoração do Sesquicentenário da Revolução de Maio e a inserção da revista Estudios, periódico no qual Furlong publicou o texto sobre o prócer argentino, na mesma. SESQUICENTENÁRIO DE MAIO E A INSERÇÃO DE FURLONG NAS COMEMORAÇÕES O final da década de 1950 na Argentina é compreendido pela historiografia mais recente como um período bastante instável sob o ponto de vista político. Com a queda do governo de Perón, os militares acabaram tomando o poder, dando início a um período de transição entre a ditadura e a democracia. Grupos pró e anti Perón lutavam pelo poder. Em 1958, assumiu o poder o presidente Arturo Frondizi 7, momento em que foi desencadeada a organização das comemorações que viriam a ser realizar em 1960. O novo presidente teve de fazer frente aos problemas provocados pelos diferentes grupos que lutavam por poder na Argentina, como os próprios militares, peronistas e antiperonistas, além de uma grande crise econômica e social. Todavia, as propostas desenvolvimentistas de Frondizi, direcionadas, principalmente para a indústria, motivaram o vislumbre de um futuro otimista por parte da população e o apoio de grupos de intelectuais. Entretanto, medidas posteriores como “la ley que ponía en pie de igualdad a la enseñanza pública y privada, la tardanza en cumplir con los compromisos para levantar la proscripción del peronismo, la represión ejercida ante los reclamos sociales, la inflación” 3

O Archivo General de la Nación foi fundado em 1821 e tem por objetivo de “Reunir, conservar y tener disponible para su consulta o utilización la documentación escrita, fotográfica, fílmica, videográfica, sónica y legible por máquina, que interese al país como testimonio acerca de su ser y acontecer, sea ella producida en forma oficial, adquirida o donada por instituciones privadas o particulares.” (AGN, 2013, s/p). 4 Instituição dedicada à memória de Bartolomé Mitre (1821-1906), ex-presidente argentino, e que tem por objetivo a conservação e exibição de coleções documentais e bibliográficas pertencentes ao político. (MUSEO MITRE, s/d, p. 1) 5 Historiador argentino e presidente da Academia Nacional de la Historia Argentina, entre os anos de 1906 e 1915. 6 Benito Schmidt (2004) entende gênero biográfico como a literatura que visa à reconstituição das trajetórias de vida dos indivíduos. 7 Sobre o contexto das lutas pelo poder na Argentina no final da década de 1950, ver os trabalhos de Barco et all. (1983) e Torre e Riz (2002).

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(PAREDES, 2010, s/p), causaram grande descontentamento entre os argentinos. Em meio a esta instabilidade, transcorreram as comemorações do sesquicentenário da Revolução de Maio 8, através de uma série de atos públicos, desfiles das Forças Armadas, publicação de livros como a Biblioteca de Mayo 9. Segundo Spinelli (2010, p. 14-15, grifos meus), elas funcionaram como uma espécie de pausa para reflexão sobre o passado e o futuro argentinos: La celebración de los 150 años de la Revolución de Mayo adquirió en la coyuntura de crisis política y social que se atravesaba el carácter de paréntesis,- efímero, pero paréntesis al fin-, en las disputas cotidianas, una especie de búsqueda del símbolo de la unidad nacional en el rito patriótico, en el homenaje a los antepasados considerados los constructores de la Nación y en la historia compartida. Hubo un marcado respeto por el protocolo y reverencia hacia los valores republicanos en todos los actos públicos, del mismo modo que el reconocimiento a España como ‘madre patria’. Neste momento não apenas de comemoração, mas, principalmente de reflexão, a Revista Estudios 10, editada pela Universidad del Salvador 11, apresentou um número comemorativo por ocasião das comemorações do Sesquicentenário de Maio. A revista tinha edições mensais. Não foi possível, entretanto, averiguar qual sua tiragem. Atualmente, não existe qualquer informação sobre a revista em meios eletrônicos. Entretanto, sabe-se que o público poderia adquirir os exemplares tanto avulsos quanto através de assinatura anual ou semestral. Os artigos eram submetidos para avaliação dos editores tanto por membros da Companhia de Jesus quanto por historiadores leigos. Na folha de rosto da edição, podemos encontrar a seguinte mensagem: “Al cumplirse el 150 aniversario de la Revolución de 1810, la revista “Estudios” y la “Universidad del Salvador” ofrecen esta edición especial, adhiriendose a los homenajes con que la nación conmemora esta fecha fundamental de nuestra historia”. Além disso, logo após o sumário, os editores informam que: La revista “ESTUDIOS” seguirá publicando, en las sucesivas entregas del presente año trabajos de historia relacionados con el 25 de Mayo de 1810. Asimismo, la Universidad del Salvador ha organizado una serie de conferencias públicas que serán disctadas por historiadores de nota todos los días miércoles desde el 4 de mayo hasta el 27 de julio. (ESTUDIOS, 1960, p. 134).

8

As discussões acerca das causas da Revolução de Maio argentina de 1810 e, consequentemente, do processo independentista ocorrido na região do Rio da Prata a partir de então são bastante intensas na historiografia sobre o tema. Autores como Halperín Donghi (1975), Lynch (1991), Fradkín & Garavaglia (2009) e Gault vel Hartman (2010) concordam que as reformas bourbônicas, juntamente com a situação da metrópole a partir do ano de 17958 contribuíram para a dissolução do império espanhol americano. O cerne daquilo que conhecemos como Revolução de Maio dá-se entre os dias 22 a 25 de maio de 1810. Embora este tenha sido apenas o início do processo independentista no Rio da Prata – que terá, ainda um longo caminho até a efetiva independência das antigas colônias – o período compreendido entre os dias 22 e 25 de maio de 1810 é considerado o momento fundante da nação, por conta da formação do primeiro governo que não reconhecia a autoridade espanhola sobre a região, mesmo que a Junta tenha jurado fidelidade a Fernando VII como recurso de legitimação. Ao mesmo tempo, Cornelio Saavedra é considerado um dos “pais da pátria”, tanto por sua importância como chefe miliciano, quanto por ter exercido o cargo de presidente da primeira Junta. 9 Trata-se do conjunto de obras publicadas a partir de 1960, que tinha por objetivo resgatar textos do início do século XIX, principalmente, de próceres de Maio (PAREDES, 2010). 10 A revista leva o subtítulo de “Revista Argentina de Cultura, Información y Documentación”. Atualmente, a revista não se encontra mais em circulação. No endereço http://www.biblioteca.salvador.edu.ar/Bibdigital/indexest.htm, pode-se encontrar boa parte das edições da revista em formato .PDF. 11 A Universidad del Salvador era um dos principais centros de formação da Companhia de Jesus na Argentina do século XX.

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A partir destas informações, percebe-se que a Universidad del Salvador procurava inserir-se nas comemorações de Maio de diversas formas, proporcionando conteúdos sobre a Revolução para um público bastante vasto. Tabela 1: Sumário da edição de Maio de 1960 da revista Estudios. AUTOR/SEÇÃO La Dirección

TÍTULO

PÁGINA

Presentación

135

Proyección Religiosa de los sucesos de mayo de 1810

138

Jorge Biturro

¿Quién fue el filósofo de la Revolução de Mayo?

143

Edberto Oscar Acevedo

América y los sucesos europeos de 1810

154

Guillermo Furlong

Hombres e ideas en los días de Mayo

177

Ludovico Garcia Lloydi

El clero en el Cabildo Abierto del 22 de Mayo de 1810

196

Guillermo Furlong

Cornelio de Saavedra

211

Faustino Legon (h.)

El Deán Funes en Córdoba y en Buenos Aires

229

Juan Carlos Zuretti

El tema educacional a través del “Correo de Comercio”

240

Documentos

La primera crónica de los sucesos de Mayo de 1810

250

El catecismo político

252

Cronica

Festival del Mar del Plata

258

Resenas Bibliograficas

“Historia y bibliografía de las primeras imprentas rioplatenses. 1700-1859”

263

“Algunos aspectos del Mercado Comón Europeo”

264

Outro ponto interessante a ser analisado é o sumário da revista, que pode ser visualizado na tabela acima é o fato de que, na edição de maio de 1960 da revista colaboraram com textos não apenas historiadores da Companhia de Jesus, como Guillermo Furlong, mas, também, historiadores leigos, como Juan Carlos Zuretti. Os artigos versam sobre diversas temáticas relacionadas a Maio, como as principais correntes ideológicas que influenciaram o movimento, a questão educacional e conta com transcrições de documentos. Entretanto, o que mais chama a atenção é o fato de que há uma ênfase no papel dos indivíduos que participaram da Revolução. Enquanto o artigo de Biturro procura compreender quem era o principal filósofo de Maio, Legon analisa a trajetória de Funes em Buenos Aires e Córdoba. Ao mesmo tempo, Furlong, que tem dois trabalhos publicados no mesmo número da revista, procura dar ênfase à trajetória de Cornelio Saavedra. É este texto que procurarei analisar mais detidamente a partir de agora, procurando identificar como Furlong se utiliza das fontes para a escrita da biografia, como se dá a escrita da mesma e qual o conteúdo histórico que o texto apresenta aos leitores do periódico. UMA ANÁLISE DO TEXTO CORNELIO DE SAAVEDRA (1960) Furlong utiliza como principal fonte para a escrita da biografia sobre Saavedra o texto das Memorias (1829), redigido pelo próprio biografado. Este texto em específico abarca a trajetória do prócer entre os anos de 1767 e 1829, mesmo ano de seu falecimento, possui cerca de oitenta páginas, e tem por foco relatar os sucessos políticos e militares de Saavedra em dois acontecimentos principais: as invasões inglesas ao Rio da Prata, entre os anos de 1807 e 1808, e o processo independentista do que hoje conhecemos por Argentina, iniciado em 1810 com a chamada Revolução de Maio. Segundo o próprio autor das Memorias (1829), o texto foi escrito com o intuito de que seus filhos pudessem

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defender a memória do pai de quaisquer intrigas ou mentiras que poderiam ser veiculadas em relação à sua atuação política e militar: Por mi testamento les he legado el honor que heredé de mis abuelos y el que yo supe adquirir con mis servicios, y ellos con interesados en conservarlo, sostenerlo y defenderlo de las incursiones de la intriga y maledicencia. La serie de sucesos que en ella se refieren, es verdadera en todas sus partes: Hablo con mis hijos, y ellos saben que la mentira ha sido desconocida en la vida de su padre. (SAAVEDRA, [1829] 2009, p. 29, grifos do autor). No caso de Furlong, percebe-se aqui uma relação interessante com a fonte escolhida para a escrita da biografia em questão: percebe-se que Furlong acredita que um testemunho direto, escrito pelo próprio Saavedra, traria mais veracidade à escrita biográfica, já que, quando da transcrição de passagens da fonte, a visão do biografado acerca do acontecimento iria se sobrepor no texto do biógrafo. Além disso, a crítica à fonte se dá sob o ponto de vista de verificar sua autenticidade. Afinal, as Memorias (1829) foram mesmo escritas por Saavedra? Como neste caso a resposta é afirmativa, este texto estará habilitado para utilização na reconstituição da trajetória do prócer. Neste sentido, nota-se semelhança com um dos textos biográficos que Furlong mais admirava, a Life of Johnson (1791), escrita por James Boswell 12. Intima emulación le despierta la placentera lectura de la vida de Samuel Johnson por James Boswell realizada, en 1911, en la biblioteca de Woodstock College. La califica ‘un ideal de biografías, ya que no era el biógrafo sino el biografiado quien más intervenía en su composición’ y, desde entonces, formula la íntima aspiración de escribir la vida de algún ilustre compatriota en conformidad con esa técnica y con esa táctica. (PADILLA, 1979, p. 73, grifos meus). A metodologia empregada por Boswell na obra se torna um interessante objeto de análise: para muitos críticos, a biografia de Samuel Johnson não passa de uma “colcha de retalhos” de diferentes documentos que são editados, remodelados e transcritos, formando, assim, grande parte do texto da obra. As linhas escritas pelo autor teriam por finalidade ligar, “costurar” os diversos documentos um ao outro, dando inteligibilidade ao texto que se propôs a escrever. James Boswell, que foi amigo do médico inglês Samuel Johnson e, inclusive, o acompanhou em algumas de suas viagens, teve acesso a um diário e a alguns de seus apontamentos e, com estas fontes, construiu uma biografia que, até os dias de hoje, é considerada um clássico. Percebe-se aí tal metodologia dá a impressão de que o biografado se impõe no texto. Entretanto, as fontes a serem utilizadas, as passagens transcritas, bem como o texto que irá integrálas são escolhas do autor, e não do biografado. É interessante notar, também, que as transcrições de documentos que Furlong utiliza para compor o texto são, em diversos momentos, muito longas. Algumas chegam a ocupar mais de uma página. Ao mesmo tempo, todas estas citações se encontram devidamente destacadas no texto, sendo assinaladas em itálico. Tabela 2: Estrutura comentada do texto Cornelio de Saavedra (1960), de Guillermo Furlong SJ. CORNELIO DE SAAVEDRA Estrutura do texto I. SAAVEDRA, FACTOR MAXIMO DE LOS ACONTECIMIENTOS DE MAYO a) Jefe del Regimiento de Patricios

12

Descrição Nesta parte do texto, Furlong procura descrever os acontecimentos desde a eleição de Saavedra a comandante do Regimento de Patrícios até a formação da primeria Junta de Governo. Através

O escocês Boswell (1740-1795) foi um advogado e jornalista formado pela University of Edinburgh. Além de dos contatos que manteve com Jean-Jacques Rousseau, publicou obra intitulada Relación sobre Córcega (1768), na qual disserta sobre uma de suas viagens de que participou como acompanhante de Samuel Johnson.

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b) La Proclama de Saavedra a los americanos c) Saavedra y Liniers d) Los Peninsulares y los nativos e) La caída de Sevilla y la decisión de los criollos f) El cabildo de Mayo de 1810 g) Saavedra, Presidente de la Primera Junta II. SAAVEDRA Y MORENO a) Fusilamiento de Liniers b) Concepción centralista de Moreno III. SAAVEDRA PERSEGUIDO Y CALUMNIADO

de longas passagens das Memorias (1829) do biografado, o autor procura afirmar a importância do personagem para os acontecimentos de Maio, tanto como pensador do movimento quanto como realizador das manobras políticas necessárias à época. É interessante notar que, pelo fato do artigo fazer parte de uma número especial da revista sobre a Revolução, Furlong não se preocupa em contextualizar nenhum dos acontecimentos que narra. Nesta segunda parte, Furlong analisa e comenta as divergências políticas entre Saavedra e Mariano Moreno, secretário da Primeira Junta e um dos principais pensadores ilustrados da região do Rio da Prata. Nesta última parte, Furlong procura apresentar as acusações dos adversários políticos de Saavedra como calúnias, procedendo, assim, a uma defesa do biografado e lamentando sua retirada do poder e seu exílio.

Como pode-se ver na tabela acima, Furlong procura deixar claro durante seu texto que a posição política de Saavedra era “moderada”, em contraposição a outros próceres de Maio, como Mariano Moreno, que tinha tendência mais “exaltada”. No caso aqui estudado, “exaltado” é sinônimo de um político formado a partir do Iluminismo europeu e que tinha por exemplo a Revolução Francesa. Podese pensar que tal crítica às tendências políticas apresentadas por alguns dos próceres de Maio não está sendo dirigida apenas aos “exaltados” das primeiras décadas do século XIX. Pensando-se no período de extrema instabilidade política vivenciado pela Argentina no final dos anos 1950 e durante as comemorações do sesquicentenário de Maio, tal crítica pode ser interpretada como uma projeção de futuro para a pátria. Como observado por Spinelli (2010) no trecho transcrito acima, os festejos ocorridos em 1960 tinham como objetivo se tornar uma pausa para reflexão, onde um governo com tendência moderada poderia ser bem-vinda. Tal governo, entretanto, deveria possuir a mesma habilidade de Saavedra de articular os interesses dos diversos grupos políticos sem prejudicar o objetivo maior, a pátria, como teria mostrado o prócer quando da nomeação, em 1809, de um novo vice-rei para a região do Rio da Prata. A partir desta temática central do texto, Furlong apresenta Saavedra como um exempla vitae de político e militar, ou seja, de grande homem, aproximando-se, assim, do estilo narrativo adotado por Plutarco, que enfatiza as virtudes de seus biografados e utiliza-se da Historia Magistra Vitae, que tem por característica básica a exemplaridade, se constituindo em um tipo de história que busca no passado os referenciais de atuação dos grandes homens do futuro. Para Plutarco [...], trata-se de perpetuar pelo exemplum um certo número de virtudes morais. [...] O bios, ao mesmo tempo “vida” e “modo de vida”, servelhe de apoio para sublinhar algumas virtudes éticas indispensáveis aos dirigentes políticos e militares. O herói de Plutarco é uma personalidade forte, animada por um ideal a que se consagra por inteiro. Definido como um ser não sujeito a regras, mercado pela desmedida (hýbris), esse herói está, por definição, sujeito às tentações do descomedimento. Deve, pois, redobrar a vigilância a fim de não soçobrar nos piores escolhos. (DOSSE, 2009, p. 129). Neste sentido, o texto de Furlong, conforme ele próprio afirma, tem por objetivo legar o exemplo moral de Saavedra à posteridade, reabilitando sua imagem e trazendo consigo toda uma crítica à situação

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política argentina. Sua escrita, assim, aproxima-se àquela dos memorialistas, pois busca vencer o esquecimento e enraizar-se na memória coletiva. No horizonte dessa evocação biográfica, encontramos o mesmo impulso, a mesma esperança que motiva a operação histórica: a ânsia de vencer o esquecimento, a finitude da existência, e o cuidado de transmitir, imortalizar a ação humana a ser perpetuada na lembrança dos pósteros, na memória coletiva [...]. (DOSSE, 2009, p. 128-129, grifos meus). CONSIDERAÇÕES FINAIS Guillermo Furlong inseriu-se nas comemorações do Sesquicentenário da Revolução de Maio, além de algumas conferências proferidas em outros espaços, a partir de dois artigos publicados em um número especial da revista Estudios, da Universidad del Salvador. A revista recebia contribuições de historiadores tanto leigos quanto da própria Companhia de Jesus e comercializava seus exemplares de forma avulsa ou através de assinaturas. Este número especial contou com diversos artigos que, além de refletirem sobre aspectos gerais da Revolução, davam ênfase às atuações de alguns dos principais personagens do evento, como Cornelio Saavedra. Embora Furlong tivesse um grande rigor com a utilização dos documentos, principalmente no tocante à autenticidade dos mesmos – já que o historiador argentino procura fontes produzidas pelo próprio biografado –, estes foram transcritos largamente. O texto foi construído de forma a ligar estes excertos, compondo assim uma narrativa em que haveria uma proeminência da palavra de Saavedra. O texto produzido por Furlong tem o objetivo de tornar o prócer um exempla vitae para a nação argentina, com caráter laudatório, procurando reabilitá-lo perante a sociedade e transmitir seu ensinamento de moderação para o futuro do país. REFERÊNCIAS FONTES: BOSWELL, James. Life of Johnson. Oxford: Oxford University Press, 2008. FURLONG, Guillermo. Cornelio Saavedra: padre de la patria argentina. Buenos Aires: Ministerio de Cultura y Educación de la Nación, 1979. ___________________. Cornelio de Saavedra, Estudios, Buenos Aires, nº 513, mayo/1960, p. 211228. GEOGHEGAN, Abel Rodolfo. Apuntes para una biografía de Guillermo Furlong, Archivum, Buenos Aires, v. 13, 1979, p. 31-42. MAYOCHI, Enrique Mario. El hombre, el sacerdote, el historiador, Archivum, Buenos Aires, v. 13, 1979, p. 43-56. ______________________. Guillermo Furlong Cardiff. Buenos Aires: Junta de Historia Eclesiástica Argentina, 2009. PADILLA, Ernesto E. Una especialidad: las biografías. Archivum, Buenos Aires, v. 13, 1979, p. 7376. SAAVEDRA, Cornelio. Memoria autógrafa. Buenos Aires: Del Nuevo Extremo, 2009. BIBLIOGRAFIA: ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN. Funciones. Disponível em: http://www.mininterior.gov.ar/archivo/mision.php?idName=arc&idNameSubMenuDerPrincipl=arcMi sion&idNameSubMenu=&idNameSubMenuDer=arcMision. Acesso em: 18/11/2013.

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“LA ACTUACIÓN DE LOS JESUITAS TIENE TAMBIÉN SU LADO BUENO, QUE EN JUSTICIA NO SE PUEDE IGNORAR”: A PRODUÇÃO INTELECUTAL DA COMPANHIA DE JESUS NA OBRA “VIAJE AL PARAGUAY EN LOS AÑOS 1818 A 1826”, DE JOHANN RENGGER Maico Biehl Curso de Graduação em História ∗ Universidade do Vale do Rio dos Sinos JOHANN RENGGER: UMA CURTA TRAJETÓRIA E VÁRIOS DESLOCAMENTOS Neste texto, apresento os primeiros resultados de minha atuação como bolsista PIBIC – CNPq junto ao projeto de pesquisa A ciência por escrito, ideias em movimento: um estudo de obras e de trajetórias de naturalistas e de médicos (América meridional, séculos XVIII, XIX e XX). Dentre os médicos que percorreram regiões da América meridional no século XIX, encontra-se o suíço Johann Rudolf Rengger von Brugg, que, acompanhado do seu colega Marcel Longchamp, empreendeu, por livre iniciativa, uma viagem pelo Paraguai, entre os anos 1818 a 1826, período fortemente marcado pelos processos de independência de vários países latino-americanos. Das observações e anotações feitas durante esta viagem resultou a obra “Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826”, traduzida e publicada em 2010, pelos antropólogos Alfredo Tomasini e José Braunstein, a partir da edição original de 1835. Considerando o estágio de desenvolvimento da pesquisa, apresento e discuto os comentários e a avaliação que Johann Rengger faz sobre a produção intelectual dos membros da Companhia de Jesus que atuaram na antiga Província Jesuítica do Paraguai, 1 em sua obra “Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826”. Johann Rudolf Rengger von Brugg nasceu em 1795, na cidade de Baden, que pertencia ao cantão suíço de Aargau 2. Com a idade de três anos perdeu a mãe e, aos sete anos, o pai, passando, a partir de então, a ser criado pelo tio Albrecht Rengger. Isto, no entanto, parece não ter implicado em uma mudança substancial na educação que ele recebeu durante a infância e a juventude. Seu pai atuou como pároco de uma Igreja Reformada (RENGGER, [1835] 2010) e seu tio foi “[...] ministro del Interior de la República Helvética” (RENGGER, [1835] 2010, p. 19) 3, razão pela qual o jovem Johann esteve inserido em uma família que desfrutava de uma privilegiada condição social. É importante, também, destacar que sua infância e juventude foram vividas em um contexto fortemente marcado pelas ideias da Ilustração e pelos desdobramentos da Revolução Francesa e, consequentemente, do expansionismo napoleônico. Sua trajetória será marcada por sua dedicação à formação intelectual e pelas viagens de caráter científico. Entre 1805 e 1813 concentrou-se no aprendizado da língua francesa, na leitura de autores clássicos e, sobretudo, às Ciências Naturais e à Farmacologia 4. Prosseguiu seus estudos nesta área na Universidade de Tübingen, na atual Alemanha, entre 1814 e 1817, obtendo, aos 22 anos, o grau de



Graduando do 7º semestre do Curso de Graduação em História e bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq, sob a orientação da professora Dra. Eliane C. D. Fleck. 1 A antiga Província Jesuítica do Paraguai foi criada em 1607, recebendo o nome do rio que a banhava. Durante o período colonial, a Província abrangia os atuais territórios do Paraguai, Uruguai, Argentina e, parcialmente, as possessões do Brasil e da Bolívia. 2 A Suíça adota como nomenclatura para as suas unidades administrativas, que equivalem aos Estados de um país. 3 Em 1798, o Diretório francês decidiu ocupar a Confederação suíça (composta por 13 cantões), sendo então, estabelecida à República Helvética (com duração de 1798 a 1803), com um governo alinhado com as ideias da Revolução. Isto provocou instabilidades internas, que, somadas às crises financeiras, levaram ao colapso da República em 1803. Napoleão Bonaparte restabeleceu uma organização federal, por meio de uma nova Confederação Helvética, através do Ato de Mediação de 1803. 4 A Farmacologia enquanto ciência constitui-se ao longo do século XIX, dedicando-se essencialmente à interação entre os compostos químicos e os sistemas biológicos, com destaque para a produção de medicamentos.

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Doutor em Farmacologia, o que permitiu que atuasse como médico. De acordo com o relato biográfico escrito por seu tio, após uma breve estadia na Suíça, Rengger: se dirigió a Paris para aprovechar los establecimientos científicos que allí se encontraban, para su mejor formación como médico y como naturalista. Esto sucedió también durante el invierno siguiente; aunque diversas circunstancias se aunaron para abreviar su estadía en la capital de Francia, prevista para una mayor duración, y apresurar la realización de su proyecto de viaje. (RENGGER, [1835] 2010, p. 20). Este projeto de viagem foi efetivamente posto em prática em 1º de maio de 1818, quando Rengger e seu amigo suíço e também médico Marcel Longchamp partiram do porto francês de Havre-de-Grace (le Havre) com destino a Buenos Aires, onde aportaram em 1º de julho. Apesar de sua inclinação às Ciências Naturais ter se manifestado já nas primeiras observações, Rengger não deixou de fazer também observações e ponderações de cunho sócio-político. Aliás, Rengger parecia ter muito claro o que pretendia observar e como pretendia desenvolver seus estudos: Los objetos que el naturalista tiene diariamente ante sus ojos a menudo son aquellos cuyo examen más descuida. Este reproche alcanza con frecuencia a los viajeros que visitan tierras extrañas, donde pasan la mirada sobre lo cotidiano con ligereza y tienen por digno de su atención solamente a lo extraño. (RENGGER, [1835] 2010, p. 217). Devido às dificuldades que encontraram para ingressar no território paraguaio, sobretudo, pelas restrições impostas pelo governo ditatorial de José Gaspar Rodríguez de Francia 5, os dois médicos viajantes chegaram a cogitar explorar o Chile, o que só não ocorreu porque ingressaram no Paraguai pelo rio Paraná 6, chegando a Assunção em 30 de julho de 1819 7. Instalados na cidade, Rengger e Longchamp tiveram que se submeter à autoridade de Francia, sendo que coube ao primeiro o cuidado médico das tropas paraguaias. Ambos estiveram sujeitos a um rigoroso controle, realizando as incursões pelo interior do país mediante autorização do ditador paraguaio. É plausível supor que o fato de os médicos viajantes terem empreendido esta viagem de forma autônoma, sem apoio governamental ou de uma instituição ou sociedade científica, tenha provocado a desconfiança em relação as suas reais intenções. Em relação a este aspecto, Rengger afirma em seu diário de viagem que “Ciertas personas no quieren creer en absoluto que hemos viajado hasta aquí por iniciativa propia, y suponen que tendríamos alguna misión secreta”. (RENGGER, [1835] 2010, p. 272). Considerando que a viagem resultava de uma iniciativa particular e, portanto, não subsidiada, ambos tiveram que garantir sua sobrevivência atuando como médicos e farmacêuticos, como Rengger registrou em seu diário, logo após a chegada em Assunção: “Prontos nos vimos sobrepasados de enfermos, a los que sin embargo el señor Longchamp atendía casi solo, porque yo debía ordenar las colecciones hechas hasta ahora y agregar diariamente algo nuevo.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 297).

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Natural de Assunção, Francia foi decisivo na consolidação da independência do Paraguai, conquistada em 1811, quando o então país não se alinhou com a Junta de Buenos Aires. Atuando como um dos dois cônsules paraguaios desde 1813, passou a ser o único cônsul em 1814 e Ditador, sendo que em 1816 fora nomeado Ditador Perpétuo, cabendo somente a ele à convocação dos deputados. Permaneceu no poder até a sua morte em 1840, praticando uma política de isolamento e forte centralização, evitando as interferências externas de Buenos Aires que projetava reconstituir, sob a autoridade portenha, o antigo território do Vice-reinado do Rio da Prata. 6 O editor, que não investe na discussão quanto à possibilidade de os médicos suíços terem entrado no Paraguai de forma ilegal, limita-se a informar que “[...] y a que a causa del estado de guerra [conflito com Artigas], no podían obtener pases para Paraguay, [...] cuando inesperadamente se les ofreció la posibilidad de llevar a cabo su plan de viaje original.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 21). 7 Neste percurso, Rengger e Longchamp ficaram forçadamente de setembro de 1818 a julho de 1819, na cidade de Corrientes, em virtude dos conflitos com Buenos Aires. Assim como Entre Ríos, Santa Fé e Misiones, Corrientes apoiou o projeto do líder da Banda Oriental, José Gervasio Artigas, que consistia na defesa de um federalismo que se opunha ao centralismo portenho.

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Após seis anos e meio no Paraguai, quatro deles vividos de forma forçada e sob a vigilância de Francia, Rengger e sua família decidem solicitar autorização para deixarem a América e regressar à Europa. Seu tio Albrecht Rengger tentou, de forma frustrada, a liberação dos médicos suíços por intermédio de Buenos Aires, e Rengger chegou a pedir pessoalmente ao ditador Francia que permitisse seu retorno, o que ocorreu em 25 de maio de 1825, quando o governo paraguaio autorizou, finalmente, a saída dos médicos do país 8. Devido ao pouco tempo – de aproximadamente duas horas, segundo o próprio Rengger – que tiveram para organizar sua partida na próxima embarcação, os médicos viajantes não conseguiram organizar adequadamente o material coletado ao longo dos quase sete anos de viagens pelo interior paraguaio: Rengger llevó consigo los esqueletos de los mamíferos más pequeños, los cráneos y las patas de los más grandes, como asimismo toda su colección de insectos [...] la parte restante se sus colecciones, mucho mayor, en la que también estaban incluidos los reptiles conservados en alcohol, en manos de un comerciante francés, el señor Sauguier, quien desde hacía varios años había sido su convecino y había administrado su farmacia. (RENGGER, [1835] 2010, p. 31). De Assunção, seguiram para Buenos Aires, de onde partiram em uma embarcação que atracou no porto da Bahia. De Salvador, os médicos suíços seguiram para Pernambuco, de onde partiram para a França, desembarcando em Havre-de-Grace (le Havre), no dia 21 de janeiro de 1826. Já na Europa, Rengger e Longchamp dedicaram-se a sistematizar suas experiências e impressões da viagem pelo Paraguai. Após a primeira obra intitulada Ensayo Historico sobre la Revolución del Paraguay 9 – que teve grande repercussão –, Rengger publicou Naturgeschichte der Säugethiere von Paraguay 10 e realizou uma série de apresentações na Sociedade de História Natural de Aargau e na Sociedade Suíça de Ciências Naturais (RAMELLA; PARRET, 2011). Em 1831, aceitou o convite para ser secretário e médico particular da condessa von Worcell, tendo passado seu último ano de vida viajando entre Milão, Genova, Pisa, Florença, Roma e Nápoles até retornar à Suíça, onde faleceu em 9 de outubro de 1832, aos 37 anos de idade, vítima de uma inflamação pulmonar (RENGGER, [1835] 2010).

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Tanto Rengger, em sua obra Ensayo Historico sobre la Revolución del Paraguay, quanto seu tio, em sua breve biografia, afirmam que, em 1825, o governo inglês negociou com o ditador Francia a liberação dos ingleses presos no Paraguai em troca do reconhecimento da independência dos países latino-americanos. Francia aceitou estas condições, e, segundo Rengger, autorizou também a um prestigiado comerciante de Assunção a retomada de seus negócios em Buenos Aires, o que foi aproveitado por Rengger para solicitar a sua saída do país em uma das viagens deste comerciante. Isto ocorreu efetivamente dois meses depois, quando Rengger e Longchamp tiveram autorizada sua partida. Sabe-se que o ditador enviou a Rengger uma quantia como pagamento pelos serviços médicos que havia prestado. 9 Obra publicada em 1827, com edições em francês e alemão. Obteve grande repercussão por ser uma das poucas fontes de informação sobre o governo ditatorial de Francia no Paraguai. Conforme os autores Lorenzo Ramella e Patrick Perret, “Este libro alcanzó cierta notoriedad como lo atestiguan las traducciones en varios idiomas: inglés (1827), español (1828) e italiano (1837).” (RAMELLA; PERRET, 2011, p. 427). 10 Livro publicado em 1830, que se consolidou como uma importante obra de zoologia, com base na classificação desenvolvida por Georges Cuvier, que previa quatro planos estruturais (vertebrados, moluscos, articulados e radiados) estabelecidos de acordo com o princípio funcional e morfológico do organismo. Conforme o estudo de RAMELLA; PARRET (2011), esta obra foi muito apreciada pelos naturalistas Charles Darwin e Alexander von Humboldt, sendo que para este último, “Esta zoología de un país tan poco conocido es una contribución de importancia a la historia natural sudamericana, con mayor razón que el autor da cuenta con un sentido agudo al mismo tiempo y de la anatomía y de lo propio del carácter animal, resaltando geografía y zoología, lo cual Azara y más aún sus comentaristas poco autorizados han oscurecido.” (RAMELLA; PERRET, 2011, p. 430).

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SON LOS RESTOS DE UM NAUFRAGIO LOS QUE AQUÍ OFRECEMOS AL PÚBLICO: A EDIÇÃO DA OBRA VIAJE AL PARAGUAY 11 É com estas palavras que o editor e tio de Johann Rengger, Albrecht Rengger, inicia o prólogo da obra Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826, uma publicação póstuma do texto originalmente concebido para ser um relato da viagem que Rengger realizou à América do Sul. Valendo-se das coleções de plantas e animais recolhidos e no diário com as anotações feitas durante as expedições, Rengger deu início, logo após seu retorno à Europa, à escrita dos capítulos que comporiam a obra, que, além de contemplar a História Natural, traz também informações sobre a constituição geográfica, histórica, política e social do Paraguai que o médico-viajante observou 12. Sua morte precoce acabou por comprometer a conclusão da obra, de modo que o foi apresentado ao público em 1835, três anos após a sua morte, foi, na verdade, uma compilação de seus escritos feita por seu tio Albrecht Rengger e pelo cunhado Ferdinand Wydler: La redacción final es el único trabajo que hemos efectuado. En ello nos guardamos bien de modificar algo en los conceptos. El mismo respeto ante las opiniones y el estilo de concepción del autor también nos ha inducido a publicar los artículos en la lengua en que cada uno de ellos estaba escrito, pues consideramos que el peculiar cuño espiritual que se estampa en la palabra es desdibujado en mayor o menor medida a través de la traducción a otra lengua. Ya que esta obra está destinada ante todo al público alemán, y a aquel sector de él que tiene la capacidad necesaria para la lectura de una relación de viaje científica y que está iniciado en la lengua francesa, nos pareció que la reunión de las dos lenguas en la misma obra no presentaban inconvenientes. (RENGGER, [1835] 2010, p. 39). Precedidos de um prólogo e de uma breve biografia do autor, escritos em língua alemã pelo editor, os vinte capítulos da obra são apresentados em duas línguas: nove capítulos em francês e onze em alemão. Os capítulos redigidos em francês abordam o solo, o clima, os rios, a agricultura e alguns costumes dos habitantes do Paraguai. É plausível supor que a escolha do idioma utilizado em certos capítulos tenha relação com as preocupações do autor e do editor com a circulação da obra e, portanto, com a adoção da língua corrente de divulgação científica no período. Os onze capítulos restantes da obra versam sobre temas mais específicos, como mosquitos, formigas e a agricultura, evidenciando as preocupações de Rengger com a sustentabilidade das atividades agrícolas. Ao tratarmos sobre a obra de Rengger, deve-se ter presente, que este tipo de escrita, baseada em relatos de viagens, já vinha se consolidando desde meados do século XVIII e que potencializou-se no início do século seguinte. Como bem percebeu Mary Louise Pratt, a história natural neste momento não tinha como “[...] seu objetivo descrever o mundo tal como era encontrado, mas reordenar os objetos do mundo dentro de um sistema”, sendo que “O termo mapeamento é, não obstante, incorreto neste caso, pois a história natural era um projeto classificatório.” (PRATT, 1999, p. 27). Para além da lógica normativa taxionômica característica deste período, os processos de concepção e de edição pelos quais

11 Acreditamos que o tio de Rengger – e editor da obra – tenha empregado a palavra naufrágio, porque a obra não pôde ser devidamente concluída, devido à morte precoce de seu autor, o médico viajante Johann Rengger. 12 Conforme o editor da obra, “Entre sus papeles se encontró el siguiente plan de este relato de viaje: Viaje de El Havre hacia Paraguay 1- Situación geográfica; 2- Forma y situación del suelo; 3- Curso de las aguas, fuentes, arroyos, ríos, torrentes, lagos; 4- Clima; 5- Vegetación; 6- Reino animal; 7- Habitantes primitivos; 8- Historia del país; 9- Población actual; 10- Viviendas; ciudades, aldeas, instancias [estancias], chacras; 11- Ocupaciones de los habitantes: a. Agricultura; b. Cría de ganado; c. Artes y manualidades; d. Comercio; 12- Clero e instrucción pública; 13- Costumbre y usos; 14- Viajes al interior del país; Viaje de regreso. La historia natural será especialmente elaborada” (RENGGER, [1835] 2010, p. 35). A comparação entre este plano e a obra publicada, revela em grande medida uma contemplação dos objetivos, apesar da afirmação de Albrecht Rengger, de que “[...] sin embargo, contiene apenas una terceira parte de la relación de viaje por él proyectada” (RENGGER, [1835] 2010, p. 35).

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passou a obra de Rengger, aproxima-nos do que Ilka Boaventura Leite afirma sobre os relatos de viajantes: Suprimia algumas observações, fazendo seleção dos assuntos; revisava os textos, confrontando os seus dados com os de outros viajantes; dava tratamento e criava enredo a partir dos dados brutos. Através da sequência cronológica, organizava os fatos, os trajetos e os subtemas de maior interesse, criando o ‘fio de amarração’ na obra. Uma forma bem elaborada de diário garantia-lhe maior acesso ao público e, mais que isto, conferia-lhe credibilidade. (LEITE, 1996, p. 83). As impressões de viagem estão, portanto, condicionadas a uma série de fatores, tais como o tempo de convívio, do qual decorre um melhor conhecimento do observado, e, especialmente, as necessidades de adequação institucional e ao público leitor que terá acesso aos relatos. Os relatos devem ser percebidos, em razão disso, como um produto desta experiência que conjuga realidades distintas, não devendo ser compreendidos como a própria realidade, mas como uma representação subjetiva desta (FRANCO, 2011; REICHEL, 1999). A REFLEXÃO SOBRE A PRODUÇÃO INTELECTUAL E A ATUAÇÃO MISSIONÁRIA DA COMPANHIA DE JESUS As menções a outros autores, leigos ou religiosos, são recorrentes na obra de Rengger, quer para corroborar as suas observações, quer para alertar os leitores sobre as imprecisões ou incorreções que traziam. Pode-se, contudo, afirmar que a obra de referência para Rengger era a Viagens pela América Meridional, publicada em francês, em 1809, e escrita pelo engenheiro militar espanhol Félix de Azara (1746 – 1821), que percorreu a América platina entre 1781 e 1801 13. O seu apreço pela obra de Azara era tão grande, que, em suas viagens, costumava trazer consigo um exemplar, fazendo anotações em suas margens (RENGGER, [1835] 2010). 14. Dentre os religiosos jesuítas que Rengger refere em seu relato, encontram-se Pedro Lozano, autor de Descripción Chorográphica de 1733 15, Martín Dobrizhoffer, que escreveu História dos Abipones, de 1784, 16 e Pedro Francisco Xavier de Charlevoix, autor de Historia do Paraguai , publicada em 1757 17. Por sua formação em uma família de tradição religiosa reformada e sua inserção em um contexto fortemente marcado pelas ideias da Ilustração, Johann Rengger se mostrará bastante receptivo às 13

A viagem que Johann Rengger fez à América apresenta algumas semelhanças em relação à realizada por Félix de Azara, como bem observado pelos historiadores argentinos Maria Silvia Di Liscia e Aníbal Prina: “El interés por conocer y sistematizar la flora y fauna americana es parte de un proceso general de la ciencia occidental, que puede observarse tanto entre los religiosos como entre los viajeros europeos que visitaron el Río de la Plata a finales del siglo XVIII, formando parte de un proyecto [...] [visando] fijar las fronteras interiores de sus posesiones americanas, a la exploración del Pacífico y al control de los principales pasos, al estudio científico de los virreinatos americanos, y por último, a señalar los límites del imperio.” (DI LISCIA; PRINA, 2002, p. 308). 14 Dentre os outros viajantes que Rengger refere estão Alexander von Humboldt, que explorou várias regiões da América no início do século XIX, Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, que viajaram pelo Brasil entre 1817 e 1820, e Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire que esteve também no Brasil entre 1816 e 1822. Bem como, o naturalista Georges Cuvier, que é o modelo de classificação taxionômica adotada por Rengger. 15 Natural de Madri, Pedro Lozano nasceu em 1697, e em 1714 iniciou a sua atuação na Província Jesuítica do Paraguai. Como historiador da Companhia, escreveu várias obras destacando características históricas, geográficas e etnográficas da região chaquenha. Faleceu em 1752, próximo da fronteira da atual Argentina com a Bolívia, enquanto realizava uma viagem. 16 De origem austríaca, Martin Dobrizhoffer nasceu em 1717 e ingressou na Companhia de Jesus em 1736, sendo enviado à Província do Paraguai em 1749. Atuando como missionário entre os guaranis, foi destacado para fundar uma missão entre os índios Abipones. Com a expulsão da Ordem da América espanhola em 1767, Dobrizhoffer se instalou em Viena, onde publicou a obra História de los Abipones, em 1784. Faleceu na Áustria em 1791. 17 Pedro Francisco Xavier de Charlevoix nasceu em 1682, em San Quintín, na França. Após seu ingresso na Companhia de Jesus, atuou nas missões da América do Norte. Dentre suas obras, destacamos Descrição do Japão, de 1736, História de Santo Domingo, de 1730, História da Nova França, de 1744 e a obra História do Paraguai, de 1757. Faleceu em 1761, na França.

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impressões de Félix de Azara e, consequentemente, às críticas da atuação dos jesuítas tanto na Europa, quanto em outras das regiões do império colonial espanhol. No entanto, Rengger não deixará de observar que: Azara, como él mismo afirma (Tomo 2, p. 56), no penetró jamás en las selvas en que viven estos indios y su descripción de los guaraníes salvajes está tomada de antiguos manuscritos de los jesuitas o de relatos verbales de los yerbateros, por lo que no puedo dar fe de ella [...] Si quisiera imitar este ejemplo yo podría agregar aquí un gran número de relatos que me hicieron sobre los guaraníes salvajes, muy diferentes de los que yo he visto con mis propios ojos. (RENGGER, [1835] 2010, p. 130). É preciso, no entanto, ressaltar que apesar de ter a obra de Azara como uma referência, tecendo, inclusive, comentários elogiosos sobre alguns de seus estudos, Rengger não deixou de criticá-lo quando suas observações in loco apontavam para o contrário do que o engenheiro espanhol havia afirmado. Para Rengger e muitos outros viajantes e homens de ciência do período, a legitimidade baseava-se na observação direta, razão pela qual ele não apenas valorizaria as contribuições que seus estudos traziam sobre determinados temas ou sociedades, mas também se posicionaria em relação aos autores com os quais havia estabelecido diálogo. Isto fica evidente nos comentários que o autor faz sobre a obra do padre jesuíta Dobrizhoffer e sobre os relatos de outros viajantes: El jesuita Dobrizhoffer y algunos viajeros que recorrieron el Brasil en tiempos recientes informan que los indios salvajes entierran a sus muertos en recipientes de alfarería. Cuando visité las mismas hordas que Dobrizhoffer no encontré nada que pueda apoyar esta aserción. En todos estos pueblos yo no encontré nada que se aproximara ni de lejos a las dimensiones necesarias para contener el cuerpo. (RENGGER, [1835] 2010, p. 136). Tal como na crítica a Azara, Rengger, apoiando-se na sua observação direta, desconsidera o que havia sido observado por Dobrizhoffer na região chaquenha e por outros viajantes que haviam explorado terras brasileiras. É preciso, no entanto, lembrar que Azara e, de certo modo, Dobrizhoffer, também criticaram e desacreditaram relatos produzidos por outros autores, não percebendo a possibilidade de mudanças, ao longo do tempo, nas práticas sociais e culturais de grupos com os quais entraram em contato. Johann Rengger também teceu considerações sobre os registros feitos por outro jesuíta, o padre Pedro Lozano. Ainda em Corrientes, no dia 13 de abril de 1819, Rengger registrou em seu diário o contato que teve com a obra Descripción Chorographica del Gran Chaco do padre Pedro Lozano, manifestando-se sobre a extensão do título da obra e sobre o texto das Licenças e Aprovações. Da leitura desta obra, resultaram as seguintes observações: Algunas noticias históricas y geográficas probablemente sean lo mejor que hay en él. El autor vivió en una época en que aún se hacían muchas expediciones al Gran Chaco y era posible internarse en este territorio sin dificultad. La obra está escrita íntegramente de acuerdo con el espíritu de los jesuitas, llena de milagros, relatos de misioneros, etcétera. [...] El autor busca en todas partes lo prodigioso, por ejemplo, en la pasionaria; sus descripciones de animales y plantas son malas en extremo. (RENGGER, [1835] 2010, p. 271). Como se pode constatar, a valorização de certas informações divulgadas por Lozano justificavase pelo fato de terem resultado da observação direta. Já as críticas que Rengger faz a Lozano decorrem da lógica descritiva e taxionômica que caracteriza a narrativa da obra. Trata-se, efetivamente, do embate entre um discurso que valoriza as belezas e potencialidades da flora e da fauna americana como decorrentes da ação Divina e uma narrativa que se fundamenta em bases científicas. Se a busca pelo prodigioso na obra de Lozano pode ser exemplificada na menção que o jesuíta faz à flor do maracujá – à flor da paixão – entendida como “[...] un diseño natural de la [paixão] de nuestro Salvador” (LOZANO,

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1733, p. 34). Rengger investe sua crítica a Lozano, afirmando que “sólo menciona pocas plantas, la mayoría de las veces con nombre indígena, y cuenta muchas cosas fantásticas sobre sus virtudes curativas contra la mordedura de víbora, etcétera.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 272). Para Rengger, um jovem médico formado em Farmacologia, as virtudes medicinais da flor do maracujá não decorriam da Providência Divina, mas de suas propriedades, que eram ativadas através de infusões. Em outros momentos, Rengger desacredita outras observações pouco científicas sobre algumas práticas indígenas, como nesta passagem em que informa que “Azara afirma que estos indios [guarani] ya saben nadar sin haber entrado jamás en el agua, aserción que no considero necesario refutar, como tampoco los cuentos semejantes que se hallan en las obras de Charlevoix y Dobrizhoffer.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 131). Em relação ao comentário que faz a Charlevoix, vale ressaltar que, afastando-se totalmente da observação in loco defendida por Rengger, sua obra sobre o Paraguai resultou da compilação de documentos e de relatos de terceiros, já que o jesuíta francês nunca esteve na América platina. Mas não somente as informações sobre a natureza paraguaia contidas nas obras de jesuítas foram alvo da atenção do médico suíço. Rengger mostrou também interesse no mapa produzido pelo padre Antonio Machoni e que se encontra inserido na obra de Lozano, afirmando que: “Copio de este libro la Carta del Chaco, Paraguay y Tucumán, que no me parece mala.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 273). É muito provável que o mapa produzido por Machoni tenha sido útil na confecção do mapa “Charte von Paraguay”, que se encontra inserido em sua obra de 1835. Aliás, Rengger parecer ter recorrido também ao mapa produzido por Félix de Azara, tecendo também críticas a algumas de suas imprecisões. A atualização e a correção de certas informações feitas por Rengger é ressaltada pelo editor: Al mismo tiempo fueron efectuadas por Rengger todas las mejoras, para las que lo capacitaron sus viajes al interior del país, en la medida en que ello pudo tener lugar sin la ayuda de instrumentos geodésicos, que no estaban a su alcance; sobre todo son corregidos por él numerosos nombres de lugares, señalados con mayor precisión lo lugares en que moran los indios salvajes e indicados con más exactitud la configuración del suelo y el curso de los ríos. (RENGGER, [1835] 2010, p. 358). As críticas que Rengger faz à produção intelectual da Companhia de Jesus se estenderão também a sua atuação missionária junto aos índios guarani do Paraguai, que segundo o autor: “[...] en mi opinión sus intenciones [jesuítas] fueron inicialmente puras y humanitarias. Es verdad debo admitir que, con poder cada vez más creciente, su tendencia degeneró [...]” (RENGGER, [1835] 2010, p. 271). Neste sentido, parece que a leitura da já citada obra do padre Pedro Lozano reforçou em Rengger a percepção de que: “Los indios, que defendían tenazmente su libertad, salen de ella mal librados. A través de este libro veo cada vez más claro que la política se valía de algunos fanáticos religiosos para someter poco a poco a los indios sin mucho esfuerzo ni escándalo.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 271). Mas, se, por um lado, esta percepção encontra respaldo no antijesuítismo, que se traduzia nas críticas feitas à atuação da Companhia de Jesus, que podem ser também encontradas em Félix de Azara – autor de referência para o médico suíço, como procuramos demonstrar –, por outro, Rengger não deixa de registrar os efeitos da expulsão da Ordem sobre as populações nativas que haviam sido concentradas nas reduções jesuíticas: Si no se hubiera expulsado esta orden, miles de indios que ahora viven en estado de salvaje estarían, si no civilizados, al menos en camino a la civilización, en tanto que ahora están en parte vueltos al salvajismo, en parte exterminados. Si ya no se quería tolerar el imperio de los jesuitas, habría que haber puesto en su lugar a hombres que tuvieran, con abnegación, el mismo celo para sacar a este pueblo del salvajismo; pero la rapacidad de los españoles no reparó en ningún beneficio humano. (RENGGER, [1835] 2010, p. 274) Para Rengger, os administradores leigos não conseguiram civilizar os nativos, pois lhes faltava o zelo e a abnegação que caracterizava os missionários da Companhia de Jesus, percepção que o levou a

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afirmar que “[...] la actuación de los jesuítas tiene también su lado bueno, que en justicia no se puede ignorar.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 273). Como se pode constatar nesta afirmação, Rengger parece ter reconhecido os méritos tanto da produção intelectual jesuítica, quanto de sua atuação missionária entre os indígenas da América platina, reservando suas maiores críticas aos procedimentos, muitos deles carentes de observação e experimentação, e à correção de certas informações que suas obras difundiram. CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações que Johann Rengger faz sobre a produção intelectual e sobre a atuação missionária dos jesuítas refletem, em grande medida, sua formação ilustrada e o contexto europeu cientificista no qual se encontrava inserido. Em relação as suas impressões sobre a produção intelectual da Companhia de Jesus, cabe salientar que Rengger teve acesso a obras escritas por padres jesuítas, o que revela a circulação que estas ainda tinham, passados já cinquenta anos desde a expulsão da Ordem. Especificamente em relação à obra de Lozano, Rengger refere tê-la consultado durante o período em que esteve no Paraguai. Mas o contato com a produção intelectual da Companhia parece não ter se limitado ao que escreveu o padre Pedro Lozano, uma vez que Rengger também fez comentários sobre a Histoire du Paraguai, escrita pelo padre Pedro Francisco Xavier de Charlevoix e publicada em Paris, no ano de 1757, bem como sobre a Historia de los Abipones, do padre Martin Dobrizhoffer, que teve sua circulação restrita à Europa, 18 devido à expulsão da Ordem, em 1767. Pode-se, em razão disso, supor que Rengger tenha lido esta obra após seu retorno, apontando tanto para a consulta a obras escritas sobre o Paraguai, quanto para certa valorização e até reconhecimento da produção intelectual jesuítica. Rengger parece reconhecer também os méritos da atuação missionária da Companhia, na medida em que, segundo ele, os jesuítas procuraram conduzir, de forma abnegada e humanitária, as populações nativas à civilização, ainda que os submetessem a sua autoridade e os concentrassem em reduções, nas quais a “[...] habituación al trabajo, a un modo de vida regular, al orden y a obediencia eran lo principal.” (RENGGER, [1835] 2010, p. 248). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZARA, Félix de. Viajes por la América Meridional. Tomos I e II. Buenos Aires: El Elefante Blanco, 1998. BUSHNELL, David. La independencia de la América del Sur española. In: BETHELL, Leslie. Historia de la América Latina. Vol. 5 La Independencia. Barcelona: Editorial Crítica, 1991, p. 75 – 123. DI LISCIA, María Silvia; PRINA, Aníbal O. Los saberes indígenas y la ciencia de la Ilustración. Revista Española de Antropología Americana. Madri, Vol. 32, 2002. Disponível em: . Acesso em: 07 de jul. 2015. FRANCO, Stella Maris Scatema. Relatos de viagem: reflexões sobre seu uso como fonte documental. In: JUNQUEIRA, Mary Anne; FRANCO, Stella Maris Scatema. (Orgs.). Cadernos de Seminários de Pesquisa Vol. II. São Paulo: Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. 2011, p. 62 – 86. Disponível em: Acesso em: 05 ago. 2015. HERNÁNDEZ, Pablo. Organización Social de las Doctrinas Guaraníes de la Compañía de Jesús. Tomo I, Barcelona: Gustavo Gili, 1913.

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A obra História dos Abipones, do padre jesuíta Martín Dobrizhoffer, foi publicada, originalmente, em latim na cidade de Viena em 1784, sob o título Historia de Abiponibus equestri, bellicosaque Paraquariae natione. Em 1822, foi publicada, por J. Murray, uma versão da obra em língua inglesa, sob o título An account of the Abipones, an equestrian people of Paraguay. Mais tarde, em 1878, foi publicada, por A. Kreil, uma versão em língua alemã intitulada Geschichte der Abiponer, einer berittenen und kriegerischen Nation in Paraguay. Entre os anos de 1967 e 1969, a obra foi traduzida para o espanhol por Edmundo Wernicke, recebendo o título Historia de los Abipones.

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LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem; escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996. LOZANO, Pedro. Descripcion Chorographica. Córdoba: Joseph Santos Balbás, 1733. Disponível em: Acesso em: 14 fev. 2014. PRATT, Mary Lousie. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, Luiz Eugênio; SANTOS, Pedro Brum. (Orgs.). Literatura e História: perspectivas e convergências. Bauru: EDUSC, 1999, p. 17 – 54. RAMELLA, Lorenzo; PARRET, Patrick. Las colecciones de Johann Rudolph Rengger (1795-1832) en Argentina, Brasil y Paraguay. II. Elementos biográficos y bibliografia. Candollea. Genebra, Vol. 66, Nº 2, p. 426 – 433, jul. – dez. 2011. Disponível em: . Acesso em: 08 jul. 2015. REICHEL, Heloisa Jochims. Relatos de viajantes como fonte histórica para estudo de conflitos étnicos na região platina (séc. XIX). In: VÉSCIO, Luiz Eugênio; SANTOS, Pedro Brum. (Orgs.). Literatura e História: perspectivas e convergências. Bauru: EDUSC, 1999, p. 55 – 77. RENGGER; Johann Rudolf. Viaje al Paraguay en los años 1816 a 1826. Traduzido, prologado e comentado por Alfredo Tomasini e José Braunstein. Assunção: Tiempo de Historia, [1835] 2010. Tradução de Raise nach Pargauay in den jahren 1818 bis 1826.

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O USO MEDICINAL DE PEDRAS BEZOARES NA OBRA PARAGUAY NATURAL ILUSTRADO DE JOSÉ SANCHEZ LABRADOR S.J. (1771) Mariana Alliatti Joaquim ∗ Graduanda em Licenciatura em História Universidade do Vale do Rio dos Sinos INTRODUÇÃO Neste texto apresento os resultados do subprojeto de pesquisa Os jesuítas e o conhecimento da natureza americana: difusão, produção e circulação de saberes e práticas científicas no século XVIII (Botânica e Medicina), que venho desenvolvendo, como bolsista de Iniciação Científica, desde julho de 2014. A investigação se insere no projeto Uma ordem de homens de religião e de ciência, que objetiva promover a análise de obras produzidas por missionários jesuítas que atuaram também como homens de ciência. O padre José Sanchez Labrador foi o autor da obra Paraguay Natural Ilustrado (1771-1776), que traz descrições sobre a geografia, a fauna e a flora das regiões da Província Jesuítica do Paraguai em que atuou, destacando, ainda, as práticas curativas indígenas e as virtudes medicinais de animais, plantas e minerais. Dentre as práticas terapêuticas empregadas pelos índios da Província Jesuítica do Paraguai, Labrador destacou o uso medicinal da pedra bezoar, também largamente empregada por europeus e orientais. Segundo o padre jesuíta, os bezoares formavam-se de “ervas saudáveis” que endureciam no estômago de animais ruminantes e possuíam virtudes medicinais, especialmente, contra venenos. Para o desenvolvimento da pesquisa, utilizei uma cópia digitalizada do manuscrito da obra – ainda inédita –, que se encontra no Arquivo Romano da Sociedade de Jesus (ARSI), em Roma. O uso de pedras bezoares na medicina nos séculos XVI, XVII e XVIII era bastante recorrente, especialmente, para se opor a envenenamentos de animais peçonhentos, por possuírem virtude antidotal, não somente quando ingeridas, mas também quando aplicadas externamente (CARNEIRO, 1994). Desta forma, muitos foram os naturalistas e estudiosos que trataram sobre esta pedra bastante rara e dotada de muitas qualidades medicinais. Na Companhia de Jesus, o padre José de Acosta teria sido um dos primeiros a discutir sobre estas pedras e sua utilização pelos indígenas tanto na Europa, quanto na América no final do século XVI. De acordo com Di Liscia (2002b), além de José Sanchez Labrador, outros jesuítas que atuaram como missionários no Novo Mundo também trataram das propriedades e o emprego das pedras bezoares em favor da medicina, como os padres Pedro Lozano e Thomas Falkner. Sobre José Sanchez Labrador, sabe-se que nasceu em La Guardia, cidade de La Mancha, no dia 19 de setembro de 1714 ou 1717. Quanto ao ano em que ingressou na Companhia de Jesus, para Ruiz Moreno (1948), isto se deu em outubro de 1731 e, para Sainz Ollero (1989), em setembro de 1732. Viajou ao Rio da Prata em 1734, acompanhando o Procurador Padre Antonio Machoni. De 1734 a 1739, estudou Filosofia e Teologia na Universidade de Córdoba e, entre os anos de 1741 e 1744, atuou como professor na mesma cidade. No período entre 1747 e 1757, Labrador atuou junto às reduções de Yapeyu, Trinidad, Jesús, Loreto, San Ignacio Mini, San Ignacio Guazu, San Cosme y San Damián e San Lorenzo. Desta forma, conviveu com indígenas guaranis, zamucos, chiquitos, mbayás e guaicurús. A partir de 1757, passou a atuar em Apóstoles (Santos Apóstolos ou Apóstolos São Pedro e São Pablo), junto dos padres Lorenzo Ovando e Segismundo Asperger. Em 14 de agosto de 1767, segundo Furlong (1948), ao regressar de uma viagem, foi informado do decreto da expulsão dos jesuítas da Espanha e de suas colônias. Em 1768, chegava à Itália, se estabelecendo em Ravena, onde foi Superior de uma das casas que os jesuítas possuíam na cidade. Ao longo dos 30 anos de exílio, se dedicou à escrita de suas principais obras, Paraguay Católico, publicado em 1910, e Paraguay Natural Ilustrado, que permanece ainda inédito. Morreu em Ravena, em 10 de outubro de 1798. O Paraguay Natural Ilustrado foi escrito entre 1771 a 1776 e se encontra sob a forma de manuscrito no Arquivo Geral da Companhia de Jesus em Roma (ARSI). A obra conta com 100 ilustrações feitas pelo próprio autor e divide-se em quatro partes. A primeira conta com três livros: Diversidade de terras e corpos terrestres; Água e várias coisas a ela pertencentes; e Ar, ventos, estações ∗

Bolsista de Iniciação Científica da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), orientada pela Profª Drª Eliane Cristina Deckmann Fleck. Contato: [email protected].

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do ano, clima destes países e enfermidades mais comuns. A segunda parte trata, especificamente, da botânica. A terceira se divide nos seguintes livros: Animais quadrúpedes; as aves; e os peixes. A quarta e última parte da obra conta com os livros: Os animais anfíbios; os animais répteis; e os insetos. O primeiro livro da terceira parte da obra, intitulado Animais quadrúpedes, conta com um capítulo, o sétimo, intitulado De las Piedras Bezares que trata sobre diversos conteúdos e especificidades concernentes à essas pedras. É importante ressaltar o fato de que Sanchez Labrador não aborda estas pedras exclusivamente neste capítulo, as virtudes terapêuticas dos bezoares são referidas ao longo de todo este primeiro livro, especialmente, nos capítulos em que descreve os animais ruminantes como cervos, cabras, guanacos, vicunhas, lhamas e alpacas. Nesta parte do Paraguay Natural Ilustrado, existem, também, referências às virtudes medicinais das pedras bezoares e a sua utilização tanto por europeus e orientais, quanto pelos indígenas da Província Jesuítica do Paraguai. PEDRAS BEZOARES: O QUE SÃO? COMO SURGIRAM? Pedras bezoares são concreções encontradas nos estômagos de animais “formadas por camadas de lâminas calcárias superpostas” e “creditava-se a elas o poder de opor-se aos envenenamentos” (ALMEIDA, 2010, p. 113). Segundo Alves (2003), as pedras bezoares são conhecidas pelos chineses desde a Antiguidade, aparecendo em lendas da dinastia Zhou do Leste (770-256 a. C.). As pedras sempre foram tidas como boas para uma série de enfermidades, mas sua função contra venenos é a mais conhecida. O autor diz que elas podem ser chamadas de cálculos ou massas duras que se formam em estômagos de várias espécies de animais, mais frequentemente em veados e cabras, sendo a espécie Capra aegagrus a mais associada com os bezoares, razão pela qual era conhecida como cabra-bezoar. Esta espécie é encontrada em estado selvagem em localidades como Creta e noutras ilhas gregas, Turquia, Irão e Paquistão. Carneiro (1994, p. 85), baseando-se em Monardes 1, afirma que teriam sido os árabes os que melhor conheceram e se utilizaram das pedras bezoares, explicando que elas eram formadas por camadas, como uma cebola, e que “nascia[m] nos estômagos ou outras partes dos corpos dos cervos, porque estes comeriam serpentes e por isso engendravam as tais pedras”. A fama da pedra bezoar contra envenenamentos logo se espalhou pela Ásia e chegou à Europa, onde ganhou muito destaque e tornouse produto raro e de alto valor. Alves (2003) chega a afirmar que seu largo uso fez com que as mezinhas 2 utilizadas contra venenos fossem chamadas de “bezedaricas” pelos boticários, médicos e naturalistas do século XVI. No Paraguay Natural, Labrador menciona explicações quanto as possíveis origens das pedras bezoares, considerando algumas ridículas como a de Avenzoar 3, para quem os bezoares se formavam das lágrimas dos cervos, que se condensariam em crostas e, depois, em pedras. Critica, ainda, outros autores, que afirmavam que as pedras cresciam na cabeça de certos animais ferozes ou na bexiga de ouriços. Segundo ele, os bezoares podiam ser mais facilmente encontrados em cabras ou cervos, mas também em bois, águias, caranguejos, cuis 4 e porcos-espinho. Labrador destaca que: “Tienense por medicinales, y formadas de algunos jugos de las hierbas saludables, que estos animales pacen, y ruminan” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 48). O autor explica que estas pedras não podiam ser encontradas em todos os animais, e que sua quantidade também era variável. Destaca-se que, para alguns autores, desde a Antiguidade, que “[...] esta variedade de pedrabezoar se guindara à categoria de substância mitológica, através dos espíritos e animais que o produziam, ganhando por isso poderes mágicos” (ALVES, 2003, p. 126). Sanchez Labrador (1771, p. 59), no 1

Nicolás Bautista Monardes (1493-1588) foi um importante médico e botânico espanhol, que realizou os seus estudos na Universidade de Alcalá de Henares e escreveu sobre a matéria médica americana e europeia. 2 “Qualquer medicamento, bebido como xarope, ou purga, ou aplicado como emprasto” (MEZINHA, BLUTEAU, 1728, p. 475). 3 Avenzoar: (1091 — 1161) foi um médico muçulmano, cirurgião e professor no Al-Andalus. 4 “Mamífero del orden de los Roedores, parecido al conejo, pero más pequeño, con orejas cortas, cola casi nula, tres dedos en las patas posteriores y cuatro en las anteriores. Se usa mucho en experimentos de medicina y bacteriologia” (CUI, Dicionario de la Real Academia Española. Disponível em: . Acesso em: 22 Setembro 2014).

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entanto, ao final do século XVIII, criticaria esta visão de que as pedras bezoares teriam poderes mágicos, afirmando que sua utilização por médicos ou curandeiros como amuletos significaria “credulidad, superticion, y impostura humana [...]”. Sanchez Labrador traz informações sobre a formação da pedra bezoar ao longo do capítulo em que trata sobre estas pedras, explicando como se dava esse processo no corpo dos animais que as possuíam. Ele ressalta que, quase sempre, no centro da pedra bezoar havia algum corpo estranho – que chama de corpo heterogêneo – que era formado por uma substância muito diferente da que compunha a pedra. Esse corpo heterogêneo poderia ser uma semente de fruto ao redor do qual estariam dispostas as capas ou folhas bezoárdicas. Estas capas ou camadas que o autor cita se comporiam da seguinte maneira: o fruto ou planta, ingerido pelo animal e recebido pelo seu estômago, causaria a condensação dos licores que ali se encontravam e, por possuírem natureza adstringente, constituiriam uma matéria pegajosa e nitrosa. Esta matéria viscosa, após a digestão no estômago, se encaminharia para o piloro, onde se prenderia ao fruto ou pedra que ali se encontrava. Desta maneira, seria formada a primeira capa do bezoar, que daria origem ao restante da pedra, à qual se sobreporiam como lâminas calcárias. PEDRAS BEZOARES ORIENTAIS E OCIDENTAIS: FALSIFICAÇÕES E CONTROVÉRSIAS Nos séculos XVII e XVIII, naturalistas europeus distinguiam os tipos de bezoares a partir de sua localização geográfica (ALVES, 2003). As Pedras Bezoares Ocidentais eram aquelas formadas nos estômagos de animais americanos, mais comumente em cabras americanos, alpacas, lhamas, vicunhas, guanacos e antas. A outra espécie, Pedra Bezoar Oriental, era aquela encontrada nos estômagos das cabras da Ásia central e também daquelas que viviam na Europa. Esta forma de distinção é a utilizada por Sanchez Labrador, que explica que os bezoares orientais e ocidentais possuíam diferenças. O autor explica que, na Ásia e na Europa, as pedras bezoares eram comumente encontradas em animais como cervos e cabras, enquanto que na América, estas pedras se formavam nos estômagos de animais ruminantes pertencentes à fauna americana, como guanacos, vicunhas, alpacas, lhamas e o cui. Todavia, é interessante destacar as conjecturas feitas por Sanchez Labrador buscando compreender porque algumas regiões possuem grande incidência de guanacos com Bezoares e outras contam com estes animais, mas desprovidos das pedras. Sanchez Labrador se baseia no Padre Alonso de Ovalle 5 para afirmar que nos lugares em que existe maior recorrência de víboras e demais animais venenosos, também são mais recorrentes os casos de animais com pedras bezoares. “La razón, que alega es la siguiente: porque en tales sítios corriendo los Huanacos, heridos dela repetidas picaduras de las Bivoras, buscan al punto hierbas salutiferas” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 49). Utiliza a Província como exemplo, dizendo que, possuindo grande quantidade de víboras na região, também são largamente encontrados os bezoares nos estômagos dos animais. Caso que se opõe ao do Chile, que não possuiria víboras, e consequentemente também não contaria com as pedras bezoares. Sanchez Labrador defende que o Chaco, o Paraguai Próprio e as terras dos índios Chiquitos podem ser considerados Países de las Bivoras e de muitas outras espécies venenosas. Consequentemente, os Guanacos presentes nesses locais contam com pedras bezoares em extensa quantidade. Por experiência própria o autor teria aprendido que o calor e a humidade das terras pertencentes à América Meridional são positivos para a proliferação destes animais venenosos. “[...] conque no todo terreno, en que abundan semejantes Reptiles nocivos, es proprio País de los Huanacos, y son abundantisimas las Piedras Bezoares” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 49). A pedra bezoar era tida como mercadoria rara e muito preciosa tanto no mercado europeu, quanto no asiático, sendo colocada em uma categoria de “produtos suntuários e mágicos, como pedras preciosas e pérolas” e “chifres de unicórnio”, e ainda sendo utilizada por membros da nobreza e da realeza para diversas enfermidades, como a melancolia (CARNEIRO, 2011, p. 23). Segundo Di Liscia (2002, p. 43) as pedras bezoares formavam parte das drogas americanas que eram essenciais nas boticas reais e eram importadas desde remotas regiões da América para chegar aos consumidores europeus que tinham mais 5

P. Alonso de Ovalle S.J. (1601-1651): jesuítas e historiador chileno, nascido em Santiago e morto em Lima. Autor da obra "Histórica relación del Reyno de Chile".

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recursos econômicos. Era artigo também referido nas farmacopéias, nos compêndios da Companhia de Jesus e nas encomendas solicitadas aos Procuradores da ordem que se dirigiam à Europa (ALVES, 2003). Por seu alto valor e raridade, as pedras bezoares foram alvos de frequentes falsificações. Este processo teria se iniciado entre os comerciantes persas, se aperfeiçoado entre os chineses e os malaios e se implantado no mercado europeu, onde já era muito difícil encontrar uma pedra bezoar verdadeira. Sanchez Labrador (1771) destaca que, na Europa, se adulteravam as pedras utilizando certos pós de Tea 6 ou resina de Pino e de uma matéria viscosa. Entre os bezoares falsos citados pelo autor estariam as Pedras de Goa, ou de Malaca, as quais podem ser feitas da seguinte forma: pegam-se as pernas de caranguejos marinhos e suas conchas, e reduzia-se tudo a um pó fino. Misturava-se este pó resultante com Almíscar e com Âmbar amarela, formando uma massa em que eram visíveis pelotas semelhantes a bezoares, as quais eram envolvidas em folhas de ouro. Alves (2003, p. 128-129) diz, ainda, que os chineses “substituíam a genuína pedra-bezoar por uma mistura de barro, cal e sangue seco de animais, com um pouco de pó da verdadeira pedra, como se fazia muitas vezes em Banten, porto javanês”. De acordo com este autor, era muito comum na Europa testar a eficiência das pedras bezoares dando-as a animais previamente envenenados. Mas não apenas as pedras falsificadas eram contestadas, também os bezoares tidos como verdadeiros passaram a ter criticada sua ação contra doenças e envenenamentos. Sanchez Labrador refere a opinião do médico Robert James 7, para quem as experiências com os bezoares não demonstravam nenhuma virtude tão destacada: “Estas piedras ni tienen olor, ni sabor, y tomadas por la boca, no causan sensación ninguna, ni producen el más mínimo efecto sensible. Razon suficiente para hazer crer, que no gozan virtud alguna […]” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 56). De acordo com Sanchez Labrador, existiam muitas circunstâncias que contribuíam para que as virtudes das pedras bezoares fossem colocadas em dúvida, especialmente, porque eram consideradas incertas e de não fácil averiguação, pois dificilmente se encontraria uma pedra bezoar genuína em quantidade suficiente para se fazer um tratamento médico. A opinião do autor do Paraguay Natural, em contrapartida, era a de que os bezoares possuiriam propriedades terapêuticas bastante apreciáveis. Diferentemente dos estudiosos do período, Sanchez Labrador (1771) não acreditava na inferioridade do bezoar ocidental, inclusive defendia que esta pedra seria mais apreciável do que a oriental. Deixou bem claro sua discordância com autores como Esteban Geoffroy8 (1672-1731), Nicolás Lemery 9 (1645-1715), Guilhermo Piso 10 (1611-1678) e Georg Marcgrave 11 (1610-1644) que depreciavam os bezoares americanos. Geoffroy rechaçaria e reprovaria essas pedras, dizendo ainda que, caso fosse necessário usá-los, a quantidade deveria ser muito superior a dos bezoares orientais, vistos como mais eficazes. Piso e Marcgrave, apesar de afirmarem que os cervos do Brasil produziam pedras bezoares inferiores às orientais, destacarão que os habitantes deste país as utilizavam contra venenos e com bons resultados.

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“Astilla o raja de madera muy impregnada en resina, que, encendida, alumbra como un hacha” (TEA, Dicionario da Real Academia Española. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2014). 7 Robert James (1703-1773/1776) foi um médico e físico inglês. Labrador cita bastante suas obras: Farmacopea Universal e Dicionário Médico (1743) (MORENO, 1948, p. 21). 8 O químico e médico Esteban Francisco Geoffroy (1672-1731) tem sua obra Matéria Médica citada com frequência por Sanchez Labrador (MORENO, 1948, p. 22). 9 O químico francês Nicolas Lemery (1645-1715) era membro da Academia de Ciências. Sanchez Labrador refere suas obras: Farmacopea Universal (1697), Tratado Universal das drogas simples (1698), Tratado do Antimônio (1707) e Nova Recopilação de segredos e curiosidades mais raros (1709) (MORENO, 1948, p. 21). 10 Guilhermo Piso (1611-1678) foi um médico e naturalista holandês. Atuou em uma expedição nos anos 16371644 para o Brasil, com médico particular do conde Maurício de Nassau. Escreveu, juntamente com Georg Marcgrave a obra Historia Naturalis Brasilieae (1648), primeira publicação científica sobre a geografia e natureza do Brasil (PICKEL, 2008). 11 George Marcgraf (1610-1644) foi um naturalista alemão com formação em matemática, história natural, astronomia e medicina. Realizou expedições no nordeste brasileiro, tendo patrocínio de Maurício de Nassau e escreveu, juntamente com Guilhermo Piso, o livro Historia Naturalis Brasilieae (1648) (PICKEL, 2008).

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Já Sanchez Labrador (1771) afirmará que a pedra bezoar natural e genuína da América estava dotada de faculdades medicinais maiores que as das encontradas e vendidas na Europa. De acordo com o jesuíta, as pedras bezoares da Província do Paraguay eram melhores e preferíveis às orientais por não serem falsificadas. Afirmará, ainda, que as pedras bezoares peruanas possuíam muitas virtudes medicinais, sendo bastante estimadas e utilizadas na Província do Paraguai, em outras partes da América Meridional e na Europa: “[...] aquí descubierta una regla, que hace apreciabilisimas las Piedras Bezares del Paraguay, y preferibles a las orientales, o que como tales se juzgan, yse venden […]” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 57). O autor ressalta ainda que muitos estudiosos europeus tinham preferência pelos bezoares americanos e que estes, sim, poderiam ser considerados genuínos: En el Paraguay las logramos sin adulteraciones, ni imposturas: todas son Naturales, y genuinas. En España un H. Jesuita, muy inteligente en la Pharmacia, que exercía en el Colegio de la Insigne Universidad de la Salamanca, habido hecho todas las pruebas en orden a experimentar las virtudes delos Bezoares del Paraguay, los depuso a los orientales, y pidió con instancias, que le remitiesen otras de estas Piedras en cantidad (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 57). VIRTUDES MEDICINAIS DOS BEZOARES Sanchez Labrador destaca que tanto o bezoar ocidental, quanto o bezoar oriental possuía suas virtudes relacionadas com a quantidade de sal volátil alcalino e sulfúreo que continham, sendo também bastante oleosos e contribuindo para a limpeza dos ácidos do corpo. Por possuírem estas propriedades, os bezoares seriam diaforéticos, provocariam o suor, sendo bons contra os venenos, dissipando as vertigens da cabeça e as palpitações do coração, e matando as lombrigas. O autor recomenda que as pedras fossem reduzidas a pó e que as doses deveriam ser de quatro até seis grãos tomados pela boca ou, então, a pedra embebida em algo conveniente. Outra orientação dada por Sanchez Labrador era a de que as pedras bezoares deveriam ser escolhidas por sua grandeza moderada; cor aproximada com o pardo; que soltassem uma tintura amarelada, esverdeada ou de gesso; e que não se desfizessem ao serem colocadas na água. De acordo com Alves (2003), as pedras bezoares poderiam ser consumidas diluídas em água quente, água de coco e fervidas em vinho de palmeira. Este autor ressalta que os bezoares eram excelente remédio para as depressões, as febres altas, a lepra, varíola, sarampo, cólera, ajudando a facilitar os partos e na recuperação das parturientes. A forma como o jesuíta Sanchez Labrador compreende e interpreta as virtudes medicinais atribuídas às pedras bezoares tem como base os pressupostos da Teoria humoralista hipocráticogalênica 12, segundo a qual a saúde era assegurada pelo equilíbrio entre os humores que compunham o corpo humano. Desta forma, existia a concepção de que as enfermidades eram causadas justamente pelo excesso ou ausência de algum dos humores 13. Como as doenças eram normalmente causadas pelo excesso desses humores, as práticas medicinais relacionadas com esta teoria tinham como objetivo a expulsão dos “maus humores” através do sangue, das fezes, da urina, do vômito e de demais formas de excreção. Por esta razão, eram largamente utilizadas na Europa as práticas terapêuticas de purgar, fazer sangrias, causar vômitos e provocar urina. A associação das virtudes terapêuticas tanto das pedras bezoares, como de outros “medicamentos” com a teoria hipocrático-galênica não foi feita unicamente por Sanchez Labrador, sendo comum entre os estudiosos do século XVIII e dos séculos anteriores. No caso específico da pedra bezoar, o autor destaca que ela “[...] promueve la transpiración, o sudor, resiste a la malignidad de los venenos [...]” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 56), evidenciando sua 12

De acordo com essa teoria, o corpo humano seria formado por diferentes líquidos ou humores que eram “quase sempre quatro (Sangue, Fleuma, Bílis Amarela e Bílis Negra). A saúde consistiria no equilíbrio desses humores, assim como a enfermidade consistiria no predomínio de algum deles sobre os demais” (FREITAS REIS, 2009, p. 3). 13 “Se a saúde assentava no equilíbrio, a doença era, em primeiro lugar, desequilíbrio, devido ao excesso de um dos elementos constituintes do corpo, ou a um excesso de calor, de frio, de secura ou de humidade” (MICHEAU, 1985, p. 46).

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concepção de que a pedra curaria as enfermidades porque promovia a saída dos humores que estavam causando a moléstia, através da transpiração do corpo. O autor apresenta a opinião de Lemery sobre os bezoares ocidentais, que defendia que estas pedras são, normalmente, mais grossas que as orientais, não são tão lustrosas e lisas e têm a cor acinzentada ou esbranquiçada. Possuiriam sal volátil e óleo como as pedras bezoares orientais, mas Lemery considera que não são tão estimadas e caras, mas também são bastante raras e possuem uma série de virtudes. Após trazer estas opiniões de Lemery, Sanchez Labrador faz as seguintes observações sobre os bezoares ocidentais e suas características que determinariam suas virtudes: nem todas as pedras bezoares do Peru, que seriam as mesmas que as do Paraguay, têm as lâminas grossas, a maioria seria na verdade bastante fina, mas este fato dependeria do tamanho da pedra acima de tudo; os bezoares americanos tampouco teriam uma superfície rugosa, eram lisos e suaves; e o centro destas pedras também não conteriam pontas e espinhos. O padre jesuíta, além de destacar as virtudes das pedras bezoares, também destaca que devido às dificuldades de encontrá-las alguns cientistas da época acabariam afirmando que, ao invés de elas trazerem benefícios para a saúde, causariam várias enfermidades, como a febre quartana. O autor ainda trata sobre as dificuldades apresentadas pelos animais que possuíam os bezoares: “Las Piedras Bezares, tanto de la Índia, quanto de la América no son alivio ninguno a los animales, que las crian. Causanles no menor molestia, que las Piedras dela vejiga, o Riñones acarrean a la especie humana” (SANCHEZ LABRADOR, 1771, p. 58). Estas substâncias endurecidas, dependendo do seu tamanho, podem comprometer a agilidade com que os animais que as formam em seus estômagos caminham e correm. CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra Paraguay Natural Ilustrado foi escrita entre os anos de 1771 e 1776, a partir das observações que Sanchez Labrador fez da flora e da fauna americanas, durante o período de 1734 a 1768, quando atuou como missionário na Província Jesuítica do Paraguai. Encontrando-se exilado, o autor recorreu tanto a sua memória, quanto a obras e documentos aos quais teve acesso nas bibliotecas européias, o que pode ser percebido nas referências que faz a Esteban Geoffroy (1672-1731), Jacobo Boncio 14 (?-?), Caspard Bauhin 15 (1560-1624), Robert James (1703-1773/1776), Johann Schröder 16 (1600-1664), P. Alonso de Ovalle S.J. (1601-1651) e Nicolás Lemery (1645-1715). Ao citar estes autores, Labrador o faz tanto para legitimar as informações sobre a natureza americana que traz em sua obra, quanto para contestar algumas das afirmações feitas pelos estudiosos que refere. Ao contestar certas autoridades, o autor também está reivindicando o conhecimento e legitimando seu trabalho, tentando ocupar seu lugar como autor produtor de ciência. Vale lembrar, aqui, que nos séculos XVII e XVIII, segundo Chartier (2012, p. 63), “A autenticação de experimentos ou descobertas exigia a garantia dada por uma autoridade gradualmente deslocada do poder aristocrático ou principesco para o poder da autoria científica”. Ainda que, na Europa, as pedras bezoares estivessem sendo contestadas, devido às frequentes falsificações, Sanchez Labrador se empenhou em comprovar as virtudes terapêuticas das americanas, dissociando-as de poderes mágicos. O jesuíta também critica autores que as reprovavam, como Geoffroy, que afirmava que essas pedras eras inferiores em relação às orientais. Para Sanchez Labrador, as pedras bezoares americanas, especialmente as encontradas no Paraguai, eram ainda melhores que as retiradas dos estômagos das cabras persas e europeias. Na Europa da segunda metade do Setecentos, o discurso científico produzido sobre a América estava fundamentado no determinismo climático e na teoria da degeneração e inferioridade da natureza e da população americana. Estes cientistas e naturalistas difundiam uma ideia de inferioridade total americana (botânica, zoológica, geográfica e principalmente populacional). De acordo com Justo (2011, p. 165) as obras de autores como Buffon e De Paw “implícita o explícitamente polemizaban con los relatos de los misioneros y con los admiradores del buen salvaje”. Após a expulsão dos jesuítas dos 14

Jacobo Boncio (?-?) era um médico da Companhia Holandesa em Batavia, na Java. Caspard Bauhin (1560-1624): foi um naturalista e médico suíço bastante destacado na botânica. 16 Johann Schröder (1600-1664): foi um médico e farmacólogo alemão. 15

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territórios pertencentes à coroa espanhola em 1767, estes padres, que se encontravam em exílio, iniciaram um processo de enorme produção textual, pois foi dessa forma que “lucharon para no dejarse expulsar de los debates científicos del momento” (JUSTO, 2011, p. 163). Huffine (2005) também afirma que os padres jesuítas da Província Jesuítica do Paraguai, como de outras províncias, repudiavam as teorias de inferioridade americana e acredita que buscavam, através de seus trabalhos, comprovar que estavam erradas. Sanchez Labrador foi um destes autores que argumentaram contra os cientistas europeus “sugerindo que a vida vegetal e animal da América era saudável, resistente e autossuficiente [...]” (HUFFINE, 2005, p. 286-287, tradução nossa). Levando-se em consideração o contexto em que o jesuíta escreveu e a defesa que faz dos bezoares americanos, colocando as virtudes medicinais dos orientais sob suspeita por conta das falsificações, pode-se afirmar que ele não apenas evidencia uma superioridade dos bezoares ocidentais, mas também da população americana que não faria uso da falsificação. Sanchez Labrador (1771, p. 57) chega a afirmar que “en el Paraguay con grande, y casi quotidiano uso, se experimentan sus buenos efectos; conque si en Europa se tienen por de poco valor, acaso sera, porque las tingen, y contra hacen […]”. Estas opiniões do jesuíta a favor das pedras bezoares ocidentais e contra as teses de inferioridade defendidas por autores europeus confirmam esta posição que assumiu em defesa da natureza americana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Carla B. S. de. Medicina mestiça: saberes e práticas curativas nas Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 2010. ALVES, Jorge Manuel dos Santos. A pedra-bezoar – realidade e mito em torno de um antídoto. In: ALVES, Jorge M. dos Santos, GUILLOT, Claude; PTAK, Roderick (coord.). Mirabilia Asiática: Produtos raros no comércio marítimo. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag & Fundação Oriente, 2003, p. 121-134. BIOGRAFIAS. Universidade Federal de Campina Grande. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2014. BLUTEAU, Raphael (1712-1728). Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 8 v. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2014. CARNEIRO, Henrique. Filtros, Mezinhas e Triacas. As Drogas no Mundo Moderno. São Paulo: Xamã Editora, 1994. CARNEIRO, Henrique. O Saber Fitoterápico Indígena e os Naturalistas Europeus. Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 23, jan./jun. 2011, p. 13-32. CHARTIER, Roger; FAULHABER, Priscila; LOPES, José Sérgio Leite (orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012. DICCIONARIO de la Lengua Española. In: Real Academia Española. Disponível em: . Acesso em: 10 abril 2015. DI LISCIA, María Silvia. Introducción. Capítulo 1 La Medicina Indígena como Clave de Interpretación Religiosa, Política y Científica. In: DI LISCIA, María Silvia. Saberes, Terapias y Prácticas Médicas en Argentina (1750-1910). Madrid: Consejo Superior de Investiga Científicas Instituto de Historia, 2002a. p. 1-51. DI LISCIA, María Silvia. Los saberes indígenas y la ciencia de la Ilustración. Revista Española de Antropología Americana, 2002b, n. 32, p. 295-319. FURLONG, Guillermo. Naturalistas Argentinos durante la dominacion Hispanica. Buenos Aires: Editorial Huapes, 1948. (Cultura Colonial Argentina, v. 8).

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HUFFINE, Kristin. Raising Paraguay from Decline: Memory, Ethnografy, and Natural History in the Eighteenth-Century Accounts of the Jesuit Fathers. In: FIGUEROA, Luis Millones; LEDEZMA, Domingo (eds.). El saber de los jesuitas, historias naturales y el Nuevo Mundo. Madrid: Iberoamericana, 2005. p. 279-302. JUSTO, Maria de la Soledad. Paraguay y los debates jesuíticos sobre la inferioridad de la naturaleza americana. In: WILDE, Guillermo (ed.) Saberes de la conversión. Jesuítas, indígenas e Imperios coloniales en las fronteras de la Cristandad. Buenos Aires: Editorial Sb, 2011, p. 155-174. SÁNCHEZ LABRADOR, J. Paraguay Natural. Ilustrado. Noticias del pais, con la explicación de phenomenos physicos generales y particulares: usos útiles, que de sus producciones pueden hacer varias artes. Parte Tercera, contiene los libros siguientes. I. Animales Quadrupedes. II. Las Aves. III. Los Peces. (Manuscrito inédito), Ravenna, 1771. (128 páginas). LE GOFF, Jacques (apres.). As doenças têm História. Lisboa: Terramar, 1985. MORENO, Aníbal Ruiz. La Medicina en “el Paraguay Natural” (1771-1776) del P. Jose Sanchez Labrador S. J.: Exposición comentada del texto original. Tucuman: Universidad Nacional de Tucuman, 1948. PICKEL, D. Bento José. Flora do Nordeste do Brasil segundo Piso e Marcgrave: no século XVII. Argus Vasconcelos de Almeida (Editor). Recife : EDUFRPE, 2008. SAINZ OLLERO, Héctor; SAINZ OLLERO, Helios; CARDONA, Francisco Suárez; ONTAÑÓN, Miguel Vázquez de Castro. José Sánchez Labrador y los naturalistas jesuitas del Río de la Plata. Madrid: Mopu, 1989.

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PEDRO LOZANO: O PRIMEIRO HISTORIÓGRAFO DA COMPANHIA DE JESUS? Gabriele Rodrigues de Moura * INTRODUÇÃO O presente artigo prevê a reflexão sobre a prática de escrita historiográfica da Companhia de Jesus, a partir da análise das obras produzidas por Antonio Ruiz de Montoya 1 (1639), Nicolas del Techo 2 (1673) e Pedro Lozano 3 (1754-55) sobre os primeiros anos de evangelização na Província Jesuítica do Paraguay. Considerando o período em que os dois padres jesuítas atuaram no território americano e escreveram as obras que serão alvo de análise, o projeto abarcará o período compreendido entre os anos de 1639 a 1755. Estes três jesuítas-autores narraram a conquista espiritual da Província do Paraguay, recorrendo a uma precisa utilização das fontes documentais, sobretudo, cartas 4 e crônicas escritas por missionários que se dedicaram, no século XVII, à conversão dos indígenas da vasta região que esta província abarcava. As obras que nos propomos a analisar apresentam significativas diferenças entre si, tanto em termos de padrão de escrita, quanto em relação à história que se propõem a narrar. As modificações na escritura 5 e no uso dos documentos revelam, em um primeiro plano, as transformações que ocorreram dentro da própria Companhia de Jesus durante os séculos XVII e XVIII. Apontam, também, para os objetivos que a Ordem visava alcançar através da escrita – e da revisão da sua própria história –, como uma forma de defesa ou, então, de celebração. É importante, ainda, destacar que a forma mentis destes homens se fez presente nos seus relatos. Ruiz de Montoya, Del Techo e Lozano eram homens de seu tempo, formados dentro dos quadros da Companhia de Jesus, (re) escrevendo uma história que haviam vivido ou que haviam conhecido através da leitura de outras obras, mas com objetivos distintos e condicionados ao contexto no qual se inseriam. É, em razão disso, que consideramos importante apresentar a formação que Montoya, Techo e Lozano tiveram e os diferentes contextos em que atuaram. Se, por um lado, a formação pessoal e intelectual e, sobretudo, a função que estes dois padres tiveram apresenta algumas diferenças, por outro, ambos viveram – com mais ou com menos intensidade – as transformações e as crises que a Companhia de Jesus vivenciou ao longo de dois séculos. É sobre o século XVII, os chamados tempos heroicos 6 dos jesuítas na Província do Paraguay, que versam as três narrativas. Além de ter sido o início dos trabalhos apostólicos jesuíticos na região, a primeira metade do século XVII proporcionou um considerável volume de cartas ânuas, relaciones e memoriais que serviriam como fontes para a escrita da história da Companhia de Jesus em solo *

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e Bolsista de Doutorado CAPES/PROSUP sob a orientação da Profª. Drª. Eliane Cristina Deckmann Fleck. 1 Antonio Ruiz de Montoya nasceu em 13 de junho de 1585, na cidade de Lima (Perú); morreu em 11 de abril de 1652, em Lima (Perú). Ingressou na Companhia de Jesus, 11 de novembro de 1606, no Perú; enviado em 1607 para Santiago de Chile; foi ordenado em fevereiro de 1611, pelo bispo de Trejo y Sanabria, em Santiago del Estero (Argentina), fez os seus Votos Solenes, em 2 de fevereiro de 1620, na reducción de Loreto (Paraná, Brasil). Foi Superior de Guaranies (1636-1637), (STORNI, 1980, p. 253). 2 Nicolas du Toit nasceu em 28 de novembro de 1611, na cidade de Lille (Norte da França); morreu em 20 de agosto de 1685, em San Nicolás (Rio Grande do Sul, Brasil). Ingressou na Companhia de Jesus, 10 de janeiro de 1630, na Província Galo-Belga; enviado em 28 de novembro de 1640 para Buenos Aires; fez a Profissão dos 4 Votos, em 8 de agosto de 1649, na reducción de Encarnación (Itapuá, Paraguay). Foi Superior de Guaranies (167276), (STORNI, op. cit, p.87). 3 Pedro Lozano nasceu em 16 de junho de 1697, em Madrid (Espanha); morreu em 8 de fevereiro de 1752, em Humahuaca (Jujuy, Argentina). Ingressou na Companhia de Jesus, 7 de dezembro de 1711, na Província do Paraguay; enviado em 8 de abril de 1712 para Buenos Aires; fez a Profissão dos 4 Votos, em 15 de agosto de 1730, em Córdoba (Argentina), (Idem, p.167). 4 Conforme Castillo Gómez, as cartas são uma fonte valiosa de informações históricas. Para o autor, o conteúdo permite que haja um aprofundamento da trajetória de certas personagens, assuntos políticos, econômicos, culturais e religiosos (CASTILLO GÓMEZ, 2005, p. 850). 5 Utilizamos o conceito de escritura de Michel de Certeau (2000). 6 O conceito de tempos heroicos foi criado por Lucia Galvez (GALVEZ, 1995, p. 105).

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paraguayense. Por isso, todos os livros iniciam com a chegada dos primeiros espanhóis à região, durante o século XVI, como forma de introduzir a abordagem da conquista espiritual da Província do Paraguay, antes e depois da sua separação do Vice-reino do Peru. A HISTÓRIA DA CONQUISTA ESPIRITUAL DE ANTONIO RUIZ DE MONTOYA O século XVII, anos em que ocorreram os tempos heroicos dos jesuítas na Província do Paraguay, é a base dessas narrativas. Em Antonio Ruiz de Montoya estes anos eram relatados de forma muito mais próxima a História de Heródoto e Tucídides (história-testemunho), com uma escrita direta e rústica sobre a conquista, na sua crônica e defesa dos trabalhos apostólicos da Companhia de Jesus em solo paraguayense. A Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañía de Jesus, en las Provincias del Paraguay, Parana, Uruguay y Tape (1639) 7 é um livro dividido em 81 capítulos, onde são narrados os trabalhos apostólicos da Ordem de Santo Ignacio entre os indígenas paraguayenses, entre os anos de 1609 até 1637. No relato, são enfatizados os grandes feitos dos missionários para que jovens jesuítas se interessassem em seguir para a região da Província Jesuítica do Paraguay. São tempos em que jesuítas escreviam visando muito mais a defesa da continuidade dos trabalhos apostólicos, fundação de novas reducciones entre os índios “indomáveis” e o armamento dos nativos fiéis. Entre os anos de 1638 e 1639, a narrativa passou por uma reescrita, atendo os conselhos dados por importantes jesuítas de Madrid, “como Agustín Castro, Eusébio Nieremberg, Luis de la Palma, que reconheciam na sua publicação a possibilidade de elevar a estima em favor da Companhia de Jesus” (AGUILAR, 2002, pp. 22-23). Sendo, finalmente publicado, pela Imprenta del Reyno, em 1639. O livro tem a sua escrita inspirada no modelo de literatura conceptista, servindo-se de autores eruditos para melhorar o seu estilo narrativo. Neste sentido, serviu-se do argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit (argumento da autoridade): passagens bíblicas (tanto do Velho, quanto do Novo Testamento); cartas paulinas; santos padres, como São Gregório Magno e São Eusébio de Vercelli; referências aos cronistas indianos, Antonio Rodríguez de León Pinelo, Garcilaso de la Vega, Alonso Ramos Gavilán e José de Acosta; doutores em Direito Canônico e Teologia; e, a bula Sublimis Deus, do Papa Paulo III (MAEDER, in: RUIZ DE MONTOYA, 1989, p. 28). LA HISTÓRIA DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY DE NICOLAS DEL TECHO Para a escrita da Historia Provinciæ Paraquariæ, Nicolas del Techo se apropria de inúmeras passagens da Conquista espiritual e da Relacion de lo que sucedio en el Reyno de Chile (1612), incluindo algumas considerações pessoais, ao se referir à alguma reducción ou cidade colonial em que havia estado para relatar o estado em que se encontrava. Ao copiar longos trechos das obras montoyana e valdiviana, Del Techo acabou ampliando a sua narrativa para toda a região da Província Jesuítica do Paraguay, abarcando a região do Chaco 8 e as ilhas de Chiloé (O’NEILL e DOMÍNGUEZ, 2001, p. 1070). Sua publicação data de 1673, tendo como primeira edição uma cópia feita à mão por indígenas no Colégio de Córdoba de Tucumán (GARAY, in: DEL TECHO, 1897, p. VIII). Referindo-se ao “desaparecimento da função-autor”, Roger Chartier afirma que é uma herança da escrita de livros nos séculos VII e VIII, onde a “atribuição da obra ou das obras presentes em um mesmo livro a um nome próprio identificável em sua singularidade” (CHARTIER, 2002, p. 93). Desta forma, há uma ambiguidade quanto ao termo “escritor”, que pode estar referenciando tanto aquele que copiou o livro, quanto quem o escreveu anteriormente. Percebemos em Del Techo a primeira tentativa de construção de uma história oficial do Paraguay, através de uma narrativa que realizará a transição entre a crônica e a história 9. No início de 7

Ruiz de Montoya, ao escrever a Conquista, utilizou-se desta documentação disponível, principalmente as cartas de Pedro Romero, Cristóbal de Mendoza, Roque González de Santa Cruz, José Cataldini, Simón Mascetta, dentre outros. 8 Embora a região do Chaco Gualamba apresentar um estudo acurado apenas com Pedro Lozano, em Del Techo percebemos algumas referências. 9 A transição de fato será feita apenas em Pedro Lozano.

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seu livro, Historia Provinciæ Paraquariæ Societatis Iesu (1673) 10, dividido em 14 partes (ou livros, como consta na publicação) há uma reescrita das narrativas de missionários e conquistadores espanhóis que transitaram pelo território paraguayense, desde o séc. XVI até 1644 (BARCELOS, 2013, p. 94). É importante ressaltar a existência dessa divisão na publicação original, pois na edição impressa pela Libería y Casa Editorial A. de Urube y Compañía, de 1897, em Madrid, podemos notar que o texto original latino foi vertido para o castelhano por Manuel Serrano y Sanz, e a inclusão de um prólogo escrito por Blás Garay. Nesta edição, os 14 “livros” originais foram divididos em 5 tomos, havendo uma série de notas de rodapé, que incluem o que outros autores escreveram sobre o tema, bem como evidenciam as passagens retiradas dos livros de Ruiz de Montoya e Valdivia. Em sua narrativa, Del Techo utiliza-se dos mesmos argumentos de autoridade utilizados por Montoya na Conquista espiritual agregando a estes cânones a sua experiência como missionário na Província do Paraguay durante a segunda metade do século XVII. Cabe salientar que a ideia de históriatestemunho, presente em Antonio Ruiz de Montoya e Luis de Valdivia 11, continuou fazendo parte da escrita jesuítica, devido à formação retórica que os escolásticos recebiam durante o período de formação em Humanidades e Letras Clássicas. Ela, no entanto, se distanciará da história oficial da Companhia, que deveria ser constituída por documentação escrita e fatos que fossem comprovados. Consequentemente, será em Del Techo que observaremos a transição entre o missionário-explorador e os jesuítas-catedráticos, que se tornariam os cronistas/historiadores oficiais da Companhia. Ao compararmos as obras Conqvista espiritval e Relacion de lo qve svcedio en el Reyno de Chile com a Historia Provinciæ, observaremos as preocupações próprias de uma escrita mais oficial da história das missões feitas pela Companhia de Jesus no Paraguay. A HISTÓRIA CIVIL E RELIGIOSA DE PEDRO LOZANO No século XVIII, o “padrão de história” muda. Há outros métodos para a escrita da História já separada da crônica, agora percebida como narração literária (CARVALHO, 2012, pp. 38-39), muito embora, dentro da Companhia, estes historiadores ainda assinassem como cronistas 12. Neste ponto, conforme salienta Furlong, percebemos em Pedro Lozano um historiador, cujos métodos e técnicas de pesquisa ainda são utilizados pelos pesquisadores atualmente (FURLONG, 1984, p. 77). Os livros Historia de la Compañía de Jesús en la Provincia del Paraguay (1754-1755) 13 e Historia de la Conquista del Paraguay, Rio de la Plata y Tucumán (1873-1875) 14 foram concebidos para formarem um volume único (FURLONG, 1930, p. 256) 15, já no ano de 1737, estando prontos os 7 primeiros tomos, em 1745. Sobre estas duas obras, Pedro Lozano afirmava que não existiria outra forma de explicar e relatar os “sucessos da Companhia”, sem antes descrever o “teatro” (Historia de la Conquista), onde “atuaram” os jesuítas dos séculos XVI e XVII e, principalmente, se destacaram (Hstoria de la Compañía). Entretanto, os censores consideraram o livro excessivamente parcial (ao enfocar a conquista espanhola e os trabalhos jesuíticos) e extremamente extenso para os padrões de impressão (dado o tamanho dos tomos dos livros, que contavam entre 600 a 700 fólios cada) obrigando 10

Cópia feita à mão por indígenas. Luis de Valdivia nasceu 1561, na cidade de Granada (Espanha); morreu em 5 de novembro de 1642, em Valladolid (Espanha). Ingressou na Companhia de Jesus, 2 de abril de 1581, em Castilla e fez a Profissão dos 4 Votos Solenes, em 17 de outubro de 1612, em Santiago do Chile; enviado para Concepción (Chile), em 13 de maio de 1612 (STORNI, op. cit.,p. 293). 12 “Con el correr de los años sin embargo comenzó a plantearse la necesidad de examinar críticamente a esos relatos, muchos de los cuales daban valor de verdad a milagros, fábulas y leyendas. Este propósito cobró mayor vigor a mediados del siglo XVIII, alentado por clérigos como el Padre Pedro Lozano (1687-1752), cronista regional de la Orden Jesuita en la provincia del Paraguay que en la década de 1740 escribió La Historia de la conquista de las provincias del Paraguay, Río de la Plata y Tucumán como introducción a una Historia de la Compañía de Jesús en el Paraguay” (WASSERMAN, 2010, p. 18). 13 Com atualização ortográfica, os dois volumes (tomos) foram reimpressos em 1967, pela editora Gregg Press Publishers, em Ridgewood (LOZANO, 1967). 14 A segunda reimpressão data de 2010 e encontra-se apenas com o primeiro tomo publicado (LOZANO, 2010). 15 O livro continuou sendo escrito. Tanto que a sua narrativa chega até o ano de 1745. 11

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Lozano a fazer alterações em seu texto (FURLONG, op.cit.). Estas alterações ocasionaram a divisão do texto em dois livros distintos, os quais, no entanto, se interligam por seu o padrão estilístico, já presente na Descripcion Chorographica (LOZANO, 1733). Na Historia de la Compañia de Jesus en la Provincia del Paraguay, Lozano apresenta um acurado estudo documental para elaborar e embasar a sua escrita. Publicado em 1754, na Imprenta de la Viuda del Manuel Fernandez, y del Supremo Confejo de la Inquificion, dois anos após a morte de seu autor, o livro é dividido em dois tomos. O livro inicia com a chegada dos espanhóis em Tucumán e termina no ano de 1614, com um balanço dos anos de Provincialato de Diego de Torres. A narrativa apresenta recursos estilísticos bastante sofisticados, que demonstram a erudição do seu autor. É um livro que abandona os relatos testemunhais para utilizar-se apenas de fontes documentais, como forma de legitimar o texto 16. Assim como del Techo, utiliza-se do argumento da autoridade, recorrendo a passagens bíblicas; cartas ânuas, relaciones e memoriais; e, principalmente, a livros de outros jesuítas, como Antonio Ruiz de Montoya, Luis de Valdivia, Nicolás del Techo e Juan Pastor 17, que tratam das primeiras reducciones, o que permitirá uma produtiva análise sobre a intertextualidade 18 que a obra de Lozano evidencia. O historiógrafo jesuíta traz, ainda, em sua Historia de la Compañia de Jesus, minuciosas descrições geográficas das regiões da Província do Paraguay, descrevendo o indígena como parte desta natureza exuberante. Nestas descrições, notamos o uso de mapas – a chorographia – como um complemento para a escritura histórica que o historiador oficial da Companhia pretendia fazer. O século XVII, para Pedro Lozano, constitui-se na época legitimadora da atuação da Ordem de Santo Ignacio, razão pela qual descreve os primeiros missionários como verdadeiros heróis da Companhia paraguayense por dedicarem-se à evangelização dos povos indígenas. Já a Historia de la Conquista segue a formulação da história corográfica no corpo de texto. O texto da história política e civil foi impressa por Andrés Lamas, em uma edição dividida em 5 tomos, com notas e suplementos. A data da impressão deste livro de Lozano se dá entre os anos de 1873 e 1875, na Casa Editora Imprenta Popular, em Buenos Aires. A sua escrita foi concebida como uma introdução à obra Historia de la Compañía, iniciando com a chegada dos conquistadores espanhóis, fundação de povoados, listagem dos primeiros moradores das cidades, nome dos governadores e bispos e os acontecimentos da província até o ano de 1745, se valendo de uma vasta documentação. A proposta inicial foi a de escrever uma história dedicada a um lugar tido como recém-descoberto, muito pouco explorado e que abria a enorme possibilidade de ser conhecido sob o título único de Província Jesuítica do Paraguay. Tal província contava com três bispados, três divisões territoriais e três governações políticas (Paraguay, Tucumán e Rio da Prata). A partir destas considerações iniciais, Lozano retorna o padrão estilístico da Companhia de Jesus, subdividindo o livro em temas centrais (descrição corográfica – terrenos, rios, flora e fauna - e etnográfica, principalmente, os indígenas – como parte da natureza – que habitavam estas províncias) seguindo a forma de escrita de uma Relación e remetendo novamente à escrita taxonômica de Acosta 19. Em termos de descrição corográfica da região, Lozano nos apresenta um acurado estudo comparativo entre a fauna e flora americana e europeia, além de um profundo estudo topográfico (LAMAS, in: LOZANO, 1873, pp. LII-LIV). Entretanto, esse livro tem transformada a sua narrativa, tornando-se mais próxima daquela dos jesuítas que ele considerava exemplares. Há parcialidade, comprometimento, uma abundância de detalhes e uma transitória empatia com a situação daqueles, que até então, eram percebidos como “os outros” em seus livros. Esta postura autoral acaba 16

Conforme Asuncion Lavrin: “Lozano no se aparto de la tradicion historiografica de su tiempo en cuanto a periodizacion y organizacion interna de su obra. Se centra en la tarea misionera jesuita en la amplia provincia del Paraguay, pasando de la obra misionera personal a la fundacion de colegios. La riqueza informativa de su historia, «ardua empresa» en sus propias palabras, no fue superada por su sucesor, Jose Guevara” (LAVRIN, 1989, pp. 1718). 17 Conforme Lozano, o manuscrito encontra-se no ARSI e foi escrito em língua castelhana para atingir um número maior de pessoas, ao contrário do que ocorre com a Historia Provinciæ Paraquariæ, de Techo. 18 O conceito de intertextualidade é a relação dialógica que se estabelece entre dois textos quando um deles faz referência a elementos pré-existentes em outro. Tais elementos de produção textual podem abarcar tanto o conteúdo, quanto a forma do texto anterior (FRANCO, 2011; GOUVÊA, 2007; CAVALCANTE, 2009). 19 O modelo taxonômico que os jesuítas seguem está baseado na História Natural e Moral, escrita por Joseph de Acosta (ACOSTA, 1590).

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por esclarecer os motivos que levaram à separação da obra que aborda, especificamente, a história religiosa. Pode-se dizer que nesta obra que enfoca a história civil e política, Lozano critica a forma como se deu a conquista, a tirania dos espanhóis e os maus tratos sofridos pelos indígenas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir destas constatações, percebemos durante a pesquisa feita para a dissertação de mestrado que a “historiografia paraguayense” surge no século XVII. Muito embora seja uma escrita embrionária, com influências de historiadores desde a antiguidade até o medievo, é nela que há a estrutura estabelecida através de várias ordens e instruções do Padre Geral, especialmente de Claudio Acquaviva, para certas categorias de informações. Essas instruções de Acquaviva serviriam de base para uma escritura da “história oficial” da Companhia de Jesus que continua sendo utilizada. Dentro desta estrutura estabelecida, surgem as diferenças narrativas. Seja pelas diferentes nacionalidades, os séculos que os distanciavam ou a forma mentis de cada um, os livros acabam apresentando as particularidades de seus autores. A diferença entre os livros de Montoya, Techo e Lozano, a princípio pode ser observada quando nos deparamos com a questão de para quem eles estão escrevendo. Ruiz de Montoya escreve à Corte madrilenha e também para despertar o interesse de jovens missionários para as missões paraguayense. Os jesuítas, na Conquista espiritual, são apresentados como exemplo de virtudes aos novos padres que ainda estavam nos colégios da Companhia. Para Montoya, estas virtudes teologais acabavam sendo ampliadas no convívio diário com os indígenas. Ensinar o catecismo e observar como os nativos assimilavam, aceitavam ou repudiavam o catecismo, era um exercício contínuo de fé. Em Del Techo cuja escrita de Historia Provinciæ é toda em latim, a narrativa foi destinada àqueles que compreendem o idioma e religiosos interessados nos trabalhos da Companhia de Jesus. As vidas exemplares são priorizadas ao longo de todo o texto. No entanto, as relações entre jesuítas e indígenas são tratadas de maneira muito superficial ou inexistente. Para Techo, o jesuíta apenas ensina e catequiza, estando completamente livre de qualquer alteração das suas virtudes ao dialogar ou viver entre os nativos. Lozano retoma a escrita em língua castelhana e escreve para conquistar apoiadores que possam auxiliar à Ordem de Santo Ignacio. Os padres do século XVII são apresentados como inigualáveis exemplos de vida, virtudes e coragem, não apenas aos noviços, mas para todos os jesuítas. É um livro de apologia à Companhia de Jesus que fundou às reducciones, catequizou os indígenas, povoou e defendeu com os seus catecúmenos as fronteiras coloniais pertencentes à Espanha. Lozano retorna à Montoya, não como um autor citado entre tantos outros, mas como o herói que ao lado de Cataldini fez o encontro de dois mundos (ou “duas Companhias” dentro de uma mesma ordem religiosa). REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACOSTA, Joseph. Historia Natvral y Moral de las Indias en qve se tratan las cosas notables del cielo, y elementos, metales, plantas, y animales dellas: y los ritos, y ceremonias, leyes, y gouiernos, y guerras de los Indios. Sevilla: Impreffo en Seuilla en cafa de Iuan de Leon, 1590 (2 volumes). AGUILAR, Jurandir Coronado. Conquista Espiritual: A História da Evangelização na Província Guairá na obra de Antônio Ruiz de Montoya, S.I. (1585-1652). Roma: Pontifícia Universitá Gregoriana, 2002. CARVALHO, Roberta Lobão. Crônica e História: a Companhia de Jesus e a construção da história do Maranhão (1698-1759), 2012. 200 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. CASTILLO GÓMEZ, Antonio. “«El mejor retrato de cada uno» La materialidad de la escritura epistolar en la sociedad hispana de los siglos XVI y XVII”, in: Hispania, LXV/3, num. 221, pp. 847876, 2005.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 12 A HISTÓRIA DA FAMÍLIA NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: FONTES E MÉTODOS

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AS ELITES MUNICIPAIS E A FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO OITOCENTISTA: POSSIBILIDADES DE ESTUDO..................................................................................... 643 AS ESTRUTURAS E OS SUJEITOS HISTÓRICOS: REFLEXÕES TEÓRICAS A PARTIR DA HISTÓRIA DAS FAMÍLIAS E DAS POPULAÇÕES ........................................................................................................... 651 AS PARTEIRAS TRADICIONAIS COMO PROMOTORAS DA SAÚDE FAMILIAR (REGIÃO SUL DO RS, 19601990) .................................................................................................................................................. 657 LAÇOS MATRIMONIAIS E FAMILIARES: UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DA FAMÍLIA ESCRAVA NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS DE PORTO ALEGRE (1772-1822) ......................... 667 NOMES PESSOAIS E HISTÓRIA DA FAMÍLIA: QUESTÕES METODOLÓGICAS E POSSIBILIDADES DE PESQUISA ........................................................................................................................................... 675 O BACHAREL EM DIREITO NO SÉCULO XIX: FAMÍLIAS, ELITES E POLÍTICA EM PELOTAS..................... 683 SOBRE A HISTÓRIA INDÍGENA: NOTAS PARA UMA HISTÓRIA SOCIAL DO PARENTESCO .................... 691

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AS ELITES MUNICIPAIS E A FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO OITOCENTISTA: POSSIBILIDADES DE ESTUDO Williams Andrade de Souza 1 As câmaras municipais formavam um dos pilares da estrutura governativa e da sociedade colonial no Império Marítimo Português. Como a mais híbrida dentre todas as instituições, exerceram miríade de funções; assumindo aspectos divergentes do previsto, chegaram a ter um papel de vulto muito maior que o idealizado pela legislação lusitana e transformaram-se claramente em veículos dos interesses locais. Com as reformas da administração provincial introduzidas pelo novo governo imperial, seus poderes foram drasticamente reduzidos às questões do governo econômico, e lhes impuseram uma relação de dependência aos Conselhos, depois Assembleias provinciais. Entretanto, os homens que compunham tais grupos não eram passivos diante das mudanças que se instauravam, e possuíam um poder de ação cujo raio de abrangência transpunha os limites impostos pelas leis. Participando de uma instituição inserida na base da máquina burocrático-administrativa do Estado em formação, cujas funções governativas foram ratificadas, viram ali novas possibilidades que não excluíam o seu papel no contexto político do período (SOUZA, 2012). Estamos falando então de uma instituição que abrigava uma elite política “local” que participava ativamente da vida político-administrativa no Império do Brasil. Mas, quem compunha essa elite? Quais as suas trajetórias? A que grupos políticos e econômicos estavam articulados? Quais os seus espaços e formas de atuação? Qual a sua relação com os cidadãos (e vice-versa), e em que isso redundava em manutenção e/ou formação de um capital político? Ainda mais, teria esta elite alguma participação na formação do Estado Nacional Brasileiro na primeira metade dos Oitocentos? Se sim, qual e de que maneira? Entendemos ser possível deslindar essas questões a partir do estudo do perfil, das redes de aliança 2 e ações dos indivíduos que compunham tais grupos. Pensar nas possibilidades teóricometodológicas que permitam adentrar em tais discussões é o que pretendemos propor aqui. Como não é possível traçar esse itinerário investigativo tomando todas as instituições brasileiras do período, propomos circunscrever o nosso objeto de análise elegendo como “modelo” de observação a Câmara Municipal do Recife entre os anos de 1829 e 1849. Para o caso em tela, sugerimos o ano de 1829 como marco porque nele a instituição passou a funcionar de acordo com a Lei de 1º de outubro de 1828, o Regimento das Câmaras Municipais, e os seus vereadores buscaram se adequar ela. Já o ano de 1849 foi emblemático para Pernambuco (e o Brasil) por ter se dado o término das convulsões da Revolução Praieira e demarcar o cenário político vitorioso que lhe sucedeu, o da Conciliação. Mesmo não podendo afirmar que aquela época passou sem conflitos, crises e divisões políticas, como nos informa Paula Ribeiro Ferraz, a Conciliação proporcionou um rearranjo político no parlamento e reagrupou tanto conservadores como liberais, em um contexto no qual, em linhas gerais, já estava delineado e sedimentado o projeto de Nação e Estado que vigorou nos oitocentos (FERRAZ, 2013. p. 140). Nos limites desse trabalho, faremos uma breve incursão historiográfica sobre a temática e apontaremos um pouco dos seus desdobramentos; apresentaremos algumas perspectivas teóricometodológicas que podem ser úteis para a presente abordagem e fontes documentais e seus respectivos limites e possibilidades de uso. Nesse processo, indicaremos alguns procedimentos analíticos que podem ser adotados para tal estudo aqui proposto. O estudo sobre as câmaras municipais inspirou o interesse de outros autores consagrados na historiografia (conferir panorama em: SOUZA, 2012). Se no período chamado de colonial eles concordam que elas tinham relativos poderes e liberdade de ação, para o imperial comungam a ideia de que eram meras instituições tuteladas ao poder provincial, dependentes das ordens dessas autoridades. Mas, esse pensamento é reducionista e os indícios documentais revelam outras possibilidades de 1 Doutorando em Estudos Históricos Latino-Americanos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista pela Capes/Prosup. Professor da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco e da Universidade Aberta do Brasil – Universidade Federal Rural de Pernambuco. 2 Utilizamos o termo “redes de alianças”, pois ele abarca as relações políticas, econômicas e familiares.

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interpretação. Não obstante, eles nos ajudam a refletir sobre a herança e o status das elites ali alocadas como marcas que não se perderam no tempo, mas que foram adaptadas e manejadas nas relações de poder durante o Império. Obras mais recente, apesar de não se deterem especificamente sobre o tema, lançam luzes sobre o mesmo. É o caso de José Murilo de Carvalho, que discorre sobre a formação de uma elite política responsável pela vanguarda da construção do Estado imperial (CARVALHO, 2003). Contudo, ele privilegia o caráter homogeneizado da mesma, e a localiza no topo da pirâmide do poder, excluindo outros protagonistas do processo. Superando esta interpretação, a professora Miriam (DOLHNIKOFF, 2005a) ao discutir o papel das elites regionais nessa construção, demonstra que essa participação foi mais abrangente. O problema é que ela distingue elite geral, elite regional e elite local, como se os limites entre elas fossem claros e reais. Portanto, negligencia a fluidez e circularidade desses grupos. Ao tratar O lugar das elites regionais, a mesma autora destaca o papel dos presidentes provinciais na articulação da unidade nacional, e informa que a lógica da política seguida por eles era marcada pela relação de alianças e negociação, que tanto servia para atender às facções locais, quanto para possibilitar a implementação dos interesses do governo central na localidade (DOLHNIKOFF, 2003; 2005). Logo, devemos levar em consideração as redes de alianças, a pertença ou a influência dos grupos locais, mesmo quando a sua atuação se limitava à localidade, pois estes, conforme é possível inferir a contrapelo nas leituras de Dolhnikoff, eram integrantes das elites regionais, ou pelo menos pesavam na balança política delas (GRAHAM, 1999). Jupiracy A. R. Rossato, Martha Abreu, Juliana T. Souza e João J. Reis (ROSSATO, 2007; ABREU, 1999; SOUZA, 2007b; REIS, 1998) corroboram com este último pensamento. Suas leituras sobre tais instituições revelam que seus membros eram bastante atuantes e importantes no controle das práticas sociais, normatizando, disciplinando e intentando a civilização da população e seu cotidiano; possuindo um amplo entrelaçamento com os outros poderes e exercendo a interlocução tanto como agência dos interesses do governo central quanto em relação às demandas da sociedade. Assim, os embates entre as esferas de poder se davam num campo de conflitos e arranjos cujos ganhos pendiam para ambos os lados, e a manutenção e/ou busca da ordem e do status quo era sempre desejada. Portanto, os autores citados neste parágrafo sugerem relativizarmos a ideia de anulação dos poderes das câmaras e considerarmos sua presença no jogo político. Um trabalho que salienta a relação entre os poderes locais e a construção da “nação brasiliense” é o de Maria Aparecida Silva de Souza (SOUZA, 2005). Mesmo sem aprofundar a assertiva, ela enfatiza a questão da atuação das elites municipais e a sua inserção na trama dos interesses que marcou a construção do Estado imperial. Sob esta mesma ótica, Pablo de Oliveira Andrade avançou na discussão (ANDRADE, 2012). Ao alargar o espectro de análise dos atores envolvidos nesse processo, o autor estudou os grupos de poder locais na cidade de Mariana, destacando seu perfil, sua administração e atuação política de 1822 a 1836, considerando que eles foram importantes na manutenção da ordem e da autoridade do Estado imperial liberal e para a construção da unidade nacional. Tal análise corrobora com nossa proposta, mas não contempla o mesmo período e espaço territorial. Outros trabalhos significativos para nossa reflexão são os de Edneila Rodrigues Chaves (CHAVES, 2012) e de Carina Martiny (MARTINY, 2010), pois priorizam a organização dos grupos sociais e suas frações em torno do poder local, destacando a câmara municipal como lugar de correlações de forças, lócus de poder e instrumento de fortalecimento da hierarquização dos grupos economicamente privilegiados. Dando destaque à importância das redes sociais e políticas na formação, consolidação e atuação de tais grupos, as autoras buscam, por meio da prosopografia e micro-história, reconstituir o perfil e a dinâmica das elites presentes na câmara municipal, evidenciando-as como espaço institucional de poder para os grupos influentes locais. Segundo os três últimos autores acima citados, para tais grupos as relações familiares e os negócios eram fatores de consolidação das melhores posições na sociedade, e a municipalidade como o espaço por excelência de institucionalização do poder de dominação e direção. Assim, ao estabelecer o ordenamento para a vida social, a câmara municipal atuava como um importante instrumento de reprodução das hierarquias sociais na localidade, e, ao reafirmar tais hierarquias, fortaleciam o Estado.

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No entanto, elas não demonstram como isso acontecia, pois privilegiam mais a configuração dos grupos no poder. Algumas das contribuições que destacamos acima foram inspiradas pelos pressupostos da chamada teoria das elites, também conhecida por elitismo. Tendo como principais expoentes Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, esta percebe que em qualquer sociedade, época ou lugar um pequeno grupo, por seus dons, competências e recurso, se destaca e detém o poder, subordinando e dirigindo a maior parte da população (HOLLANDA, 2011). Conceitos como de “elite política”, que entende o exercício da política sob a tutela de uma minoria, e o de “circulação de elites”, que defende a renovação desses grupos por meio da inserção de novos personagens, inclusive dos estratos inferiores, ou a formação de novos grupos de elite que podem exercer o poder em detrimento de outras (BOTTOMORE, 2009), são algumas dentre várias contribuições do elitismo que foram apropriadas pela História das elites, cujos norteamentos são úteis para uma proposta como a que discorremos aqui. Trata-se de uma abordagem cujas contribuições são apropriadas pelo historiador que busca empreender o estudo dos processos nos quais as elites se inserem à luz de suas características sociais mais ou menos constantes, permitindo “assim dar conta, através de uma microanálise dos grupos sociais, da diversidade, das relações e das trajetórias do mundo social”; ou seja, “trata-se de compreender, através da análise mais ‘fina’ dos atores situados no topo da hierarquia social, a complexidade de suas relações e de seus laços objetivos com o conjunto ou com setores da sociedade” (HEINZ, 2006, pp. 8,9). A opção pela redução da escala analítica no campo da história não traz prejuízo à análise; pelo contrário, pode ser muito útil ao possibilitar o estudo de um problema histórico de qualquer dimensão, e pôr em relevo aspectos que não seriam observados de outro modo. Tal perspectiva pode modificar as visões de conjunto desenhadas pela macro-história, contudo, trata-se de uma abordagem indiciária, não necessariamente excludente da macroanálise (VAINFAS, 1997). Portanto, não se presta a contemplação isolada do fragmento, mas da insistência no contexto, ou seja, na ligação ineliminável entre o micro e o macro. Fazendo nossas as palavras de Henrique Espada Lima ao interpretar Giovanni Levi, usar esse viés permite pensar “miríade de situações locais a partir das quais se construiu e se impôs de fato o Estado”, isto é, colocar em relevo “as possibilidades locais, nas relações entre o centro e a periferia, de propor outros modos aquilo que era imposto pela centralização” (ESPADA LIMA, 2006), ou seja, a não passividade, a interatividade, o protagonismo dos que estão em posições privilegiadas nas hierarquias sociais mas não necessariamente no topo da cadeia de mando. As análises acima privilegiam os grupos dominantes, mas não descartam o restante da sociedade, pois aqueles são vistos do ponto de vista relacional aos demais atores sociais. Portanto, deve-se considerar os modos de fazer dos grupos menos privilegiados, pois estes fazem parte das relações de poder. Logo, atentar também para o que Michel de Certeau chamou de “antidisciplina”, ou os modos de proceder da criatividade cotidiana, pela qual a sociedade inteira não se reduz aos processos disciplinares impetrados pelas instâncias que gerem a sociedade (CERTEAU, 1994, pp. 41, 298), pois entendemos que os estabelecidos (entenda-se, as elites) só o são pela existência dos outsiders. Como nos adverte Edward Palmer Thompsom (THOMPSON, 1987a), é preciso pensar o protagonismo das classes menos abastadas nas relações de poder, tanto quanto refletir sobre o “fazerse” dos grupos de poder. Apesar de as suas leituras referir-se a outro objeto de investigação, em um contexto espaço-temporal diferente, seu pensamento pode auxiliar no processo de interpretação e compreensão do nosso objeto de análise. Em A formação da classe operária inglesa, por exemplo, através de leituras de variada documentação e da redução da escala do olhar – “a visão de baixo”, ele demonstra a inserção/participação das massas no jogo político, quebrando com a “noção de exclusividade, de político como reserva de uma elite hereditária ou de um grupo proprietário”. Também lembra que “a classe é uma relação” e a experiência, “encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais”, deve ser considerada ao se analisar o processo de “fazer-se” dela (THOMPSON, 1987a, pp. 20, 11-12; BERTUCCI, 2010; MÜLLER, 2012). Assim nos ajuda no entendimento de que os sujeitos se constituem, se formam nas mais diversas circunstâncias, sendo, portanto, necessário historicizar, contextualizar tal processo.

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Thompson também discorre sobre as relações paternalistas nas sociedades pré-industriais, apontando-as como uma linha tênue que liava a plebe e a aristocracia. Nas relações paternalistas as obrigações e os deveres são laços recíprocos que devem ser observados pelas partes envolvidas, caso contrário pode gerar instabilidade na ordem estabelecida. Em seus “Estudos sobre a cultura popular tradicional”, ele aprofunda esta questão e aponta para as relações de poder mascaradas pelos ritos do paternalismo e da deferência (THOMPSON, 1987b; 2012; 1998; 2002) 3. Tal perspectiva ajuda a pensar a atuação da elite política camarária no cotidiano da cidade e sua relação com o homem comum; assim como a afirmação daquele grupo, tanto diante da sociedade local quanto diante do Estado em consolidação, uma vez que entendemos que o paternalismo marcou as relações sociais naquele período como ideologia essencial ao funcionamento e reprodução das estruturas de autoridade e exploração vigentes, e os indivíduos de todos os estratos sociais estavam inteirados dessa relação (CHALHOUB, 2003; 2012). Além das reflexões acima, citamos também a herança imaterial de Giovanni Levi, que, ao enveredar-se pela história de um religioso e outros tantos personagens de uma pequena aldeia piemontesa, observou o processo de construção do Estado moderno na Europa demonstrando que o seu rastro pode ser recuperado por meio de uma poeira de acontecimentos minúsculos. Utilizou a prosopografia, ou seja, a elaboração de biografias coletivas, que permite entrever os itinerários de indivíduos e reconstruir suas redes parentais e relacionais, para reconstruir uma série de destinos inscritos no espaço de uma comunidade restrita, revelando os contornos de um grande jogo social e político. Inspirado em Thompson, Levi uma história lida ao rés do chão, considerando as estratégias de homens simples e suas famílias para preservarem seus espaços, interferindo no destino do Estado. Apesar de tratar de um objeto distinto do nosso, ele faz uma bricolagem entre a micro-história, a prosopografia e a história social Thompsoniana, sem prejuízos para a análise, e nos aponta a possibilidade de se estudar a dinâmica de um macroprocesso mudando a escala de observação. Ou seja, a microanálise e a prosopografia como ferramentas para obtermos acesso ao conhecimento do passado, dentro de um viés social e político (LEVI, 1998). Mas, utilizar tais ferramentas para trabalhar com quais documentações? Para o caso aqui, apresentaremos uma diversidade de fontes textuais as quais dispomos para a análise e que podem servir de exemplo para outros trabalhos, a saber: registros paroquiais, inventários e testamentos, notícias de jornais, atas de reuniões, ofícios expedidos e recebidos, projetos e leis, debates parlamentares e de vereadores, relatórios, editais, listas de eleição; biografias e árvores genealógicas, entre outros, resguardados em instituto, fundação, arquivos públicos, bibliotecas, igreja e irmandade 4. Por elas devese realizar um trabalho empírico, pois, ainda que sejam “espelhos deformantes”, apontam para os rastros de uma realidade outrora vivida, cabendo ao historiador encontrar os indícios e sinais que lhe propiciem “respostas” para os seus questionamentos (GINZBURG, 1989, p. 44). Para pensar a inserção e importância das Câmaras Municipais à estrutura administrativa do Estado brasileiro na primeira metade do século XIX, sugerimos analisar os debates parlamentares e as leis discutidas e aprovadas pelos senadores e deputados provinciais e gerais no Império entre 1826 e 1840, 3

Ele aponta que essa relação em certos momentos fortalecia as relações de dominação, aquiescendo os dominados; mas o seu rompimento pôs em transparência o processo de exploração, o que contribuiu para a coesão social e cultural do explorado no contexto de formação da classe operária inglesa. Para o caso do Brasil, as reflexões sobre o paternalismo nos oitocentos podem ser melhor observadas a partir de CHALHOUB, 2003; 2012. 4 Para o caso de Pernambuco, essa documentação pode ser acessada em: Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE; Assembleia Legislativa de Pernambuco - Divisão de arquivo e de preservação do patrimônio histórico do legislativo; Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ; Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP; Igreja Matriz de Santo Antônio do Recife. Outras estão disponíveis na internet: os Anais do Senado do Império do Brasil, disponíveis na internet: http://www.senado.gov.br; os Anais da Câmara dos Deputados e a Coleção das leis do império, disponíveis em: http://www2.camara.leg.br; a Coleção de leis e decretos da província (1835- 1848) e atas da Assembleia Provincial, disponível no APEJE e na ALEPE; os Relatórios Ministeriais dos Presidentes de províncias do Império, disponíveis em: http://www.crl.edu; Registros paroquiais de diversas épocas e partes do Brasil em: https://familysearch.org

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no tocante à administração local, pois normatizaram/limitaram as práticas do governo local. Também é interessante utilizar os relatórios ministeriais e dos presidentes provinciais sobre a administração municipal, pois revelam a perspectiva dos homens que se encontravam acima das instituições locais e apontam para a intenção de se controlar, ou pelo menos submeter os potentados locais aos ritos do Estado moderno em construção, evidenciando a inserção e importância das municipalidades na trama da estruturação dos aparatos administrativos do Império. A partir do ano de 1829 ocorreram eleições diretas para vereadores em diversas partes do império, e vários indivíduos exerceram tal função no período. Estas informações estão presentes nas atas das reuniões e ofícios expedidos ou recebidos por tais instituições. Essa documentação é riquíssima, pois consta nela os nomes, os autógrafos e os registros das eleições e dos atos administrativos e normativos dos vereadores – ofícios recebidos e expedidos, regulamentos, editais, intervenções nos espaços públicos da cidade, arrendamentos, arrematações, posturas policiais – assim como as demandas cotidianas das autoridades e da população junto à câmara e as respostas dadas. São fontes que permitem discutir a atuação e dinâmica interna e externa da elite camarária, sua relação com as demais esferas de poder (o governo e a sociedade), e perceber o modus operandi da ação político-administrativa, se e como era transformada em capital político e de que maneira corroborava para a consolidação do Estado brasileiro. Nos ofícios e petições da câmara municipal ao Presidente da Província encontramos pedidos de criação de novos cargos municipais, solicitações do aumento da receita camarária, reclamações e querelas com e de outras câmaras e pessoas. Também identificamos informações sobre os gastos da instituição, seus bens, consócios e relações político-econômicas com vários homens de negócios da cidade, entre outros. Os periódicos da época também são fontes indispensáveis. Para o caso do Recife, destacamos o Diário de Pernambuco 5, onde podemos encontrar reclamações ou elogios, querelas e desafetos políticos, discursos e respostas, entre outros, tecidos por morados da cidade aos vereadores da câmara, e vice-versa. Também é possível encontrar a publicação das atas das reuniões camarárias, editais e posturas policiais, a ação dos agentes da câmara ou ligados a ela – Vereadores, Procuradores, Fiscais de freguesias, Juízes de Paz, inspetores de quarteirão, entre outros – que remetem para o cotidiano da cidade e a atuação da municipalidade como instância normatizadora e civilizadora dos hábitos ditos incivilizados, apontando também para as práticas políticas para o acesso e o exercício do governo da cidade. Essa documentação também traz informações particulares sobre os homens da municipalidade, discursos, atuações, aprovações de posturas e regras de convívios, negócios, bens, atividades econômicas suas e da instituição, arrematações de obras e serviços, bens e consumo, e nos ajuda a perscrutar seus anseios e intenções, suas relações com vários indivíduos e instituições do governo ou particulares. Ainda para o Recife, citamos o jornal Diário Novo e outros, digitalizado e disponível na internet 6. O acesso às informações nele contida é facilitado por um sistema on-line de busca que nos permite acessar qualquer palavra que nos interessar com um simples “digitar e clicar”. Assim, podemos verificar notícias eleitorais, negócios, questões judiciais, informações sobre posses, querelas políticas, entre outros, de maneira rápida e eficaz. Qualquer notícia nominal a vereadores da câmara municipal pode ser acessada através desta ferramenta, bastante utilizada por nós nesta pesquisa, principalmente por possibilitar coligirmos informações prosopográficas das autoridades camarárias. Para o estudo da dinâmica relacional e parental dos vereadores, além da documentação acima apresentada, deve-se usar os testamentos e inventários post-mortem, os processos e execução de sentença, os livros de batismos, casamento e óbitos, as atas de eleições e de Mesa Regedora das Irmandades e agremiações disponíveis, só para citar alguns, pois trazem informações biográficas e familiares significativas sobre tais indivíduos, assim como as suas redes relacionais, posses, negócios e fortunas construídas ao longo da vida.

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O Diário de Pernambuco está disponível em: http://ufdc.ufl.edu/AA00011611/03915/allvolumes. A Coleção Jornais Século XIX – Recife, do Acervo do Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano, está disponível em: http://www.acervocepe.com.br/jornais-seculo-19.html; o Diário Novo (1842-1848), em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Outros periódicos de várias partes do Brasil podem ser encontrados nesse sítio.

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Para o caso do Recife, não poderíamos deixar de lado a importante obra do memorialista Francisco Augusto Pereira da Costa, os Anais Pernambucanos, e obras de referências como os dicionários e livros biográficos e as genealogias disponíveis no IAHGP e no site do Senado e da Biblioteca Nacional (há ali diversas obras biográficas e genealógicas de personagens de várias partes do Brasil), pois serão importantes para a reconstituição das origens, dos laços de parentesco e das principais atividades dos indivíduos do período que nos interessam. Enfim, com este trabalho propomos apresentar alternativas para se estudar a composição, a rede de alianças e a atuação da elite política municipal no império do Brasil, tendo como objeto de análise a do Recife, na primeira metade dos oitocentos. Além desses, é possível também percorrer objetivos mais específicos, tais como: os debates e as leis sobre as Câmaras Municipais na primeira metade do século XIX e sua importância como instituição administrativa; realizar uma biografia coletiva dos vereadores que atuaram naquele espaço institucional, traçando o perfil dessa elite política; investigar a sua rede de alianças e as práticas políticas para o acesso e o exercício do governo da cidade; discutir sobre a sua atuação, sua dinâmica interna, sua relação com as demais esferas de poder e com as demandas cotidianas da cidade; entrever o modus operandi do poder local, se e como era transformado em capital político e de que maneira contribuiu para o Estado imperial. Esse trabalho está sendo posto em prática por mim no programa de Pós-graduação em história (doutorado) da Universidade do Vale dos Sinos, do qual este artigo é um subproduto. Mas essa é outra história. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 18301900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999. ANDRADE, Pablo de Oliveira. A “Legítima Representante”: câmaras municipais, oligarquias e a institucionalização do império liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2012. BERTUCCI, Liane Maria [et all]. Edward P. Thompson: história e formação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. BOTTOMORE. T.B. As elites e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sobras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 298. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. __________. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil Oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. CHAVES, Edneila Rodrigues. Hierarquias sociais na câmara Municipal em Rio Pardo (Minas Gerais, 1833-1872). Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005a. __________. O lugar das elites regionais. Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 116-133, junho/agosto, 2003. __________. Ente o centro e a província: as elites e o poder legislativo no Brasil oitocentista. Almanak Brasiliense, São Paulo, n. 01, p. 80-92, maio, 2005b. ESPADA LIMA, Henrique. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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AS ESTRUTURAS E OS SUJEITOS HISTÓRICOS: REFLEXÕES TEÓRICAS A PARTIR DA HISTÓRIA DAS FAMÍLIAS E DAS POPULAÇÕES Denize Terezinha Leal Freitas ∗ O grande desafio dos historiadores contemporâneos está em ter uma visão próxima de uma totalidade que contemple o seu objeto de estudo. O pesquisador não deve focar-se apenas nas características superficiais ou imediatas de seus estudos. Nesse sentido, estas primeiras palavras a respeito do estudo das estruturas e dos sujeitos históricos, no que tange a História da Família e das Populações, são o nosso objetivo central neste texto. A ênfase deste trabalho será dada na apresentação de algumas propostas de como tratar questões teóricas e conceitos mais complexos, como sujeito e estrutura. A ideia é discutir esses conceitos de maneira articulada com relação ao nosso objeto de estudo, as famílias de Porto Alegre (1772-1822). De modo geral, objetivamos problematizar a importância da estrutura e do sujeito na construção dos grupos familiares. Dessa forma, perceber, através dos diversos grupos familiares, as tensões permanentes entre os sujeitos e as estruturas. Além disso, partimos do pressuposto de que o sujeito forma as estruturas, assim como ocorre o processo inverso. Em sentido mais amplo, como designa Christopher Lloyd (1995, p.22), entendemos que “as estruturas incluem os sistemas políticos, as mentalidades e as culturas, tanto quanto os sistemas econômicos e sociais”. Em outras palavras, como salienta Silvia Petersen & Bárbara Lovato (2013, p.245), as relações entre estrutura e sujeito constituem um complexo organismo vivo formado e reiterado pelas relações sociais. Por fim, pretendemos compreender como a instituição familiar pode ser entendida enquanto um espaço primordial de atuação dos sujeitos históricos. É a partir da família, e através dela, que o sujeito articula estratégias, agrega valores e recria espaços de poder e, sobretudo, pratica ações tanto no âmbito privado (domiciliar) como público (sociedade). Sendo assim, buscamos realizar uma reflexão teórica a respeito de como articular as questões voltadas ao sujeito e à estrutura para estudar as famílias que constituíram o período formativo da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre entre 1772-1822. O SUJEITO E A INSTITUIÇÃO FAMILIAR O sujeito histórico não pode ser concebido de maneira isolada, mas sim, como aquele que se torna agente a partir de um complexo conjunto de relações sociais. Dessa maneira, não podemos compreender a ação humana de modo unívoco, pois ela só adquiriu sentido no corpo social. Além disso, é importante considerar que a ação do sujeito está imbricada em relações conflituosas, significando que “não é uma atividade qualquer, e sim aquela cujos limites são fixados pelo jogo contraditório das relações sociais consideradas em conjunto”. (PETERSEN; LOVATO, 2013, p. 255). Portanto, Petersen & Lovato nos alertam para o fato de que a relevância do agente histórico está inserida em um organismo vivo, em um complexo conjunto de forças que são exteriores aos sujeitos. Existem vários fatores que devem ser considerados para além das relações imediatas que nos fornecem a aparência dos fatos. Por trás de cada sujeito histórico existem condicionantes familiares, econômicos, sociais, culturais, políticos que irão conduzir suas escolhas, mediar suas ações, ponderar suas iniciativas, etc. É nesse sentido que a família, ou melhor, as famílias ganham importância 1. É através dela que se gestam os primeiros vínculos afetivos, circulam os recursos de sobrevivência, as partilhas do patrimônio, vivenciam-se as primeiras regras, convenções de convívio social, enfim, uma série de características que ∗

Doutoranda em História – Bolsista CAPES – Programa de Pós-Graduação em História UFRGS. Já nos apontava Sheila Faria (1997) para a importância de tratar o conceito de família no plural, sobretudo para a realidade do Brasil Colônia. Também, não é admirável que Ana Scott (2009, p.16) saliente que “os trabalhos produzidos apontaram a extrema variação da organização familiar latino-americana e brasileira, impondo a utilização do termo ‘famílias’, no plural, porque são inúmeras as possibilidades de arranjos familiares que, por sua vez, também variaram no tempo, no espaço e de acordo com os distintos grupos sociais”. 1

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darão historicidade aos sujeitos. Nesse sentido, temos que refletir para além dos fatos imediatos, ir para além daquilo que é o aparente ou superficial perante os objetos históricos. Além disso, a família nos auxilia a refletirmos até que ponto a autonomia dos sujeitos é limitada pelos diversos condicionantes sociais e econômicos. Sendo assim, podemos perceber quais foram as dificuldades, estratégias e artimanhas que ocorreram no percurso destes sujeitos históricos. Com isso, as relações familiares são fundamentais, pois nos servem como um passaporte essencial para a compreensão das estratégias de sobrevivência, preservação e/ou ascensão patrimonial, promoção de laços e alianças sociais. Tanto os sujeitos históricos quanto a História das Famílias não podem ser analisados fora da esfera social. Isto é, da mesma forma que o sujeito não existe fora da sociedade, também a família, ou melhor, os diversos arranjos familiares não seriam destituídos de sentido se fossem percebidos apenas na esfera doméstica — até mesmo porque cada organização familiar é um organismo vivo que se modifica de acordo com o transcorrer das trajetórias coletivas e/ou individuais de seus membros. Em outras palavras, É na família que os indivíduos se relacionam e trocam experiências, visto que ela é, ao mesmo tempo, um espaço de conflito cooperativo e um espaço determinante de bem-estar através da distribuição de recursos, passando muitas vezes a refletir diretamente dúvidas, aspirações e questões pessoais. Na família os filhos e demais membros encontram o espaço que lhes garantem a sobrevivência, desenvolvimento, bem-estar e proteção integral através de aportes afetivos e, sobretudo, materiais. (NASCIMENTO, 2006, p. 2). Consoante a Arlindo Nascimento (2006), compreendemos que a importância dos grupos familiares está diretamente ligada à capacidade de nos fornecer um reflexo da organização social, sobretudo quando nos referimos a formação populacional das Freguesias nos territórios de ocupação luso-brasileira na América Portuguesa. Nesse período, a atuação política, econômica e o respaldo social estavam atrelados a um grupo seleto, isto é, a eixos familiares que detinham para si o poder e o estatuto de nobreza 2. Portanto, existe um casamento entre a História da Família e a História Social, visto que compreendemos que a “história da sociedade é, entre outras coisas, a história de unidades específicas de pessoas que vivem juntas, unidades que são definíveis em termos sociológicos” (HOBSBAWN, 1998, p.92). Ainda Eric Hobsbawn (1992, p.93) salienta que as relações humanas são mutáveis e que a categorização e o posicionamento social e familiar das pessoas alteram-se com o tempo, “muitas vezes com simultaneidade e superposições”. Sendo assim, é importante situarmos os sujeitos históricos a partir das condições que lhe são extrínsecas, visto que as relações humanas são produtoras de condicionantes, regras, leis e normas que buscam organizar a vida social. Porém, como nos alerta Emilia Viotti (1998, p.10), muitas vezes acabamos esquecendo “um princípio dialético básico: o de que homens e mulheres fazem a história, mas não sob condições de sua própria escolha”, ainda mais porque não consideramos ou negligenciamos que os sujeitos históricos são os produtores das instituições e as balizas das relações sociais, como afirma Alvin Gouldner (1985). 3 Dessa forma, o sujeito deve ser considerado como um dos elementos fundamentais da análise histórica. Além disso, não podemos esquecer que as relações sociais são dinâmicas, implicam constante movimento e, por sua vez, exigem a capacidade de perspectivas analíticas mais complexas. Dessa forma,

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Para Adriano Comissoli (2006, p. 19), “a pretensão de nobreza dos conquistadores da América portuguesa se baseava em seu controle efetivo sobre as populações locais, mimetizando condições existentes no Reino” que só eram efetivadas pela capacidade de expansão das relações de parentesco, parcerias, alianças e laços que partiam do eixo familiar em direção ao social”. 3 Daí a necessidade de compreender por que “las instituciones hechas por los hombres adquieren de algún modo cierta autonomía opuesta a sus creadores y estudiar la manera cómo surge esta extraña objetividad”. (GOULDNER, 1985. p. 49).

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é preciso entender a dinâmica social não apenas como resultado da ação dos sujeitos, nem apenas pela magnitude da estrutura, mas, sim, pela combinação de ambos. Nesse sentido, é indispensável que possamos entender a importância da estrutura social e de que maneira podemos compreendê-la a partir da ótica da História da Família. Necessariamente, o que constitui os diversos eixos familiares são os sujeitos históricos, que lhe empregam características diversas e atuações distintas. Porém, é fundamental que tenhamos consciência que estes criaram normativas e condutas sociais que conduzem modelos ideais, tanto das formas de uniões, quanto das famílias ditas lícitas socialmente. Portanto, estudar a História da Família também significa compreender as estruturas que estão ou alimentam-se através dela, como, por exemplo, o Estado e a Igreja. A ESTRUTURA E A INSTITUÍÇÃO FAMÍLIAR Tratar conceitualmente sobre as estruturas não é uma tarefa fácil, e isso ocorre porque, como salienta Petersen & Lovato (2013, p. 249-250), existe uma variedade muito grande de estruturas que se relacionam hierarquicamente entre si. Além disso, muitas vezes elas parecem adquirir “entes com vida própria”, isto é, elas passam despercebidas enquanto “produtos das relações sociais”. Sendo assim, nos interessa problematizar a estrutura a partir da família. Conceitualmente, Pierre Vilar (1980, p.62) nos informa que uma estrutura econômica “es un conjunto de relaciones características mantenidas durante un período suficientemente largo para que su conocimiento permita prever las relaciones y los movimientos de una economía”. Todavia, Vilar (1980, p.63) chama atenção para o fato de que as estruturas também podem ser combinadas, formando sistemas, isto é, combinando as condições políticas, com as sociais e econômicas, etc., daí a importância dos estudos das estruturas geográficas, demográficas, institucionais sociais e mentais. Enquanto parece de certa maneira mais fácil entender quem é o sujeito histórico, a estrutura ou as estruturas parecem mais obtusas e misteriosas, conforme Christopher Lloyd (1995). Isso ocorre porque elas têm a capacidade de além de se perpetuarem no tempo, transformarem-se com o tempo, chegando a serem invisibilizadas pelo senso comum. Como anteriormente salientado por Gouldner (1985) e Petersen & Lovato (2013), ganham autonomia. Desse modo, é necessário destacar a importância da História da Família, pois é por ela que perpassam os elos e vínculos geradores das diversas formas de relacionamentos humanos, como destaca Antonio Irigoyen (2009, p.349). Para o autor, o estudo da família tem contribuído substancialmente para novas análises dos fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e mentais, mas, sobretudo, “en la medida que posibilita un análisis global que supera tanto las perspectivas individualistas como las impersonales”. Durante todo o século XVIII e XIX, a Igreja Católica e o Estado Português buscaram normatizar as famílias através da institucionalização do casamento, de modo que a tríade Família, Igreja e Estado formaram os alicerces que promoveram a ocupação das terras meridionais. Através da política de casamentos, muitos homens e mulheres conseguiram terras, riquezas, permanecendo e perpetuando seus status (casamentos entre iguais: endogâmicos). Já para outros, o matrimônio tornou-se a garantia de melhores condições de sobrevivência ou a garantia da promessa de liberdade (casamentos mistos: forros com escravos, etc.). Nesse sentido, é fundamental percebermos os mecanismos pelos quais caracterizavam as estruturas demográficas dos casamentos e, também, as normativas que balizavam as formas de uniões lícitas nesta sociedade em formação durante a passagem do século XVIII. Assim, acreditamos que analisar a estrutura religiosa e política do período referido nos permitirá compreender quais os interesses e sob quais condições essas estruturas foram criadas. E, sobretudo, trata-se de entender quem eram os sujeitos históricos criadores e os opositores deste conjunto normativo. Portanto, é indispensável identificarmos as estruturas como um processo, como salienta E. P. Thompson (1981), porque elas são adaptáveis às mudanças e permanências que a temporalidade lhes impõe. São

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dinâmicas, transformam-se tanto quanto as necessidades e interesses dos sujeitos ao longo do tempo 4. Em outras palavras: O poder fundamental que tem as estruturas, o que é o indicador básico de sua realidade, é o de moldar e/ou condicionar a ação, o pensamento humano. Os seres humanos só existem, agem e pensam dentro de contextos estruturais que permitem e restringem sua própria existência, assim como sua ação e seu pensamento. [...] As estruturas tem um equilíbrio interno que oscila continuamente entre forças diacrônicas e sincrônicas. (LLOYD, 1995, p. 83). De acordo com Lloyd (1995), fica evidente que, para conseguirmos compreender o alcance e a complexidade das ações dos sujeitos históricos, é inevitável perceber os parâmetros que delimitam o acontecer histórico. Não se trata de efetuar uma somatória, mas, sim, de perceber a dinâmica de tensões que articulam a estrutura e o sujeito. Sendo assim, temos que considerar que as estruturas impõem limites aos sujeitos, formando um contínuo jogo de horizontes, delimitando ações e, ao mesmo tempo, potencializando brechas de intervenção. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ARTICULAÇÃO DA ESTRUTURA E SUJEITO ATRAVÉS DA MACRO E MICROANÁLISE De modo geral, nosso objetivo era evidenciar o quanto a História da Família possibilita ao pesquisador ampliar a sua análise de maneira a integrar tanto a estrutura quanto o sujeito. Nesse jogo de tensões entre sujeito e estrutura, no qual ambos transformam-se sob a força das relações humanas, o protagonismo deve ser compartilhado pela análise do pesquisador. Portanto, não basta apenas uma abordagem microanalítica ou macroestrutural, mas a combinação articulada de ambas em prol da busca da totalidade que contemple o objeto de pesquisa. A macro e a micro-história foram, por muito tempo, relacionadas de maneiras distintas, opostas e como campos diacrônicos, por vezes, totalmente opostos na maneira de historiar. No entanto, o diálogo entre as análises de longa duração com aquelas que privilegiam um estreitamento no foco de investigação a partir dos sujeitos é fundamental para o enriquecimento do trabalho histórico. É a partir de uma análise conjuntural que emergem novas indagações, novos questionamentos e novas problematizações a serem feitas a respeito do sujeito histórico. Segundo Paul-André Rosental (1998, p.156), “O comportamento social não poderia, portanto, simplesmente depender da obediência mecânica a um sistema de normas: sua explicação impõe que se leve em consideração a posição de cada membro da população estudada”. Entretanto, isso não significa optar substancialmente apenas por uma perspectiva de análise, mas, sim, agregá-las de modo que os limites de cada escala possam ser superados ou complementados pela outra. Para Jacques Revel (2000), as abordagens macro privilegiaram, por muito tempo, um olhar mais apurado sobre as regularidades históricas, baseadas em trabalhos empíricos e dados estatísticos meticulosamente elaborados por uma escrita protocolada e científica. Obviamente, o grande impacto desse tipo de visão histórica teve como consequência um esgotamento em si. Não obstante, a escola italiana da década de 1970, com Carlo Ginzburg (2004) e Giovanni Levi (1992), fez virem à tona as limitações e o enfadamento de abordagem já bastante difundido pelos macrohistoriadores. Eles chamaram a atenção dos historiadores para perceberem o outro lado da moeda, ou melhor, reduzirem a escala a fim de observarem as singularidades, privilegiar um olhar sobre os objetos de maneira mais complexa, concebendo a importância da linguagem, do emprego da palavra, dos silêncios, enfim, a busca de uma ciência do vivido. Nesse sentido, percebemos que a melhor maneira de articularmos o sujeito histórico e a estrutura a partir da ótica da História das Famílias dá-se através de um jogo de escala articulado entre as abordagens macro e micro-históricas. A primeira nos permite, pela quantificação dos documentos, 4

Para Thompson, “La investigación de la historia como proceso, como acaecimiento o , implica nociones de causación, de contradicción y de organización, sistemática (a veces estructurante) de la vida social, política económica e intelectual”. (THOMPSON, 1981. p. 73).

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perceber quais as permanências e a rupturas ocorreram na longa duração. A segunda nos permite romper com a aparência destas regularidades e perceber a atuação dos sujeitos através das brechas encontradas por estes diante deste mar de normalidades aparentes. Nesse sentido, uma combinação entre a análise quantitativa e qualitativa é necessária. As análises de caráter quantitativo têm suas limitações e virtualidades. De um lado, fazem aparecer o que está imerso, encobrindo a complexidade da sociedade. Por outro, apontam para novos problemas e direcionamentos de pesquisa. Nesse sentido, estamos convictos, é vital que a metodologia articulese a análises “micro”. (GALVÃO; NADALIN, 2003, p.553) Portanto, é indispensável que haja um caminho do meio entre a análise micro e macro. Perceber essas tensões entre sujeito e estrutura nos permitirá compreender outros aspectos, isto é, a outra face da mesma moeda: as outras formas de uniões para além do casamento, que geravam outras combinações familiares, pois: [...] existe assim a possibilidade de reconstruir histórias de famílias e, às vezes, por alguma feliz coincidência de fontes, histórias individuais suficientemente ricas – típicas ou excepcionais –, sendo ainda possível pôr em relevo relações interindividuais contínuas, isto é, estruturadas (por exemplo, relações de débito/crédito). (GRENDI, 2009, p.23-24) Isso não significa que compreendemos que o todo seja igual a soma das partes; pelo contrário, acreditamos que só tornando complexa a nossa análise das partes conseguiremos chegar ao todo que contemple o nosso objeto de estudo. Buscamos colocar como prioridade estudar as relações entre os sujeitos, privilegiando analisar seus comportamentos, suas escolhas e atitudes perante sua maleabilidade de interferir nas regularidades sociais. Além disso, buscamos perceber de que maneira as estruturas demográficas, religiosas, políticas, etc., interferem na organização familiar e afetiva da população de Porto Alegre entre 1772 e 1822. Por isso, é importante, para Revel (2000, p.17), ressaltar que o microhistoriador busca “estudar o social não como um objeto dotado de propriedades, mas sim como um conjunto de inter-relações móveis dentro de configurações em constante adaptação”. E mais ainda: A manipulação deliberada desse jogo de escalas sugere uma paisagem totalmente diferente, ao mesmo tempo que uma outra ideia da representatividade de um caso local. Os acontecimentos são, naturalmente, únicos, mas só podem ser compreendidos, até mesmo em sua particularidade, se forem restituídos aos diferentes níveis de uma dinâmica histórica. (REVEL, 2000, p.35) De modo geral, pretendemos apresentar ao leitor uma análise teórica a respeito de como podemos abordar os sujeitos históricos e as estruturas através da História da Família. Conforme a exposição realizada, percebemos que as relações entre sujeito e estrutura constituem um complexo jogo de relações, cujas tensões entre ambos devem ser priorizado pelo pesquisador. Sendo assim, acreditamos que o campo da História da Família permite ao historiador um local de análise privilegiado para contemplar tal estudo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: DA COSTA, Emilia Viotti. Novos públicos, novas políticas, novas histórias: do reducionismo econômico ao reducionismo cultural: em busca da dialética. Anos 90, Porto Alegre, n. 10, dezembro de 1998. P. 7-22. FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 241-258. GALVÃO, Rafael Ribas; NADALIN, Sérgio Odilon. Arquivos paroquiais, bastardia e ilegitimidade: mães solteiras na sociedade setecentista. In: V JORNADA SETECENTISTA. Anais... Curitiba-PR,

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AS PARTEIRAS TRADICIONAIS COMO PROMOTORAS DA SAÚDE FAMILIAR (REGIÃO SUL DO RS, 1960-1990) Eduarda Borges da Silva 1 Esta pesquisa se dedica à história de trabalhadoras que partejaram em suas comunidades sem direitos legais. Ao serem convidadas para narrar sobre a sua trajetória com a parturição perceberam que são portadoras de um conhecimento e de histórias sobre uma prática que não acontece mais na região sul do Rio Grande do Sul. Detendo o poder de guardiãs dos saberes do ofício de parteira e dessas histórias de um tempo que é seu, mas parece tão distante e pouco conhecido na atualidade, decidiram narrar. A História Oral é a base metodológica deste trabalho. Verena Alberti (2008, p. 165-166) defende que a riqueza dela “[...] está em permitir o estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas”. Essa “história da experiência” construída pela história oral pode contrapor ou alterar a significação da história oficial, trazendo à tona a multiplicidades de “histórias dentro da história”. As parteiras entrevistadas foram buscadas em várias cidades da região sul do Estado, mas localizadas em Piratini e Pelotas. São entendidas nesta pesquisa como parteiras tradicionais. As entrevistadas se reconhecem tradicionais, sobretudo, em contraponto a profissionalização e a forma atual hegemônica de assistência ao parto, requerendo que possuem um saber-fazer adquirido com a experiência e algumas que tem um dom divino ou vocação. A maioria delas possui visibilidade na comunidade em que atuou, mas não possuem nenhuma forma legal de reconhecimento. O objetivo deste ensaio não é dissertar sobre a condição atual de extinção do ofício das parteiras do Pampa gaúcho, ou seus saberes de ofício, o que já foi feito pela autora em seu trabalho de conclusão de curso (2014) e em um capítulo do livro “À beira da extinção: memórias de trabalhadores cujos ofícios estão em vias de desaparecer” (2015). A intenção agora é observar que outras práticas exerciam as parteiras, além do atendimento ao parto e puerpério na atenção da saúde familiar de suas comunidades. Para Maria Ângela D’incao (1992) a família pode ser entendida como uma organização pautada pelo parentesco que ocupa o espaço da casa. Muitas transformações ocorreram na família brasileira após os anos 60, tais como: mais mulheres no mercado de trabalho formal, diminuição do número de filhos, sobretudo a partir da chegada da pílula anticoncepcional em 1962 e legalização do divórcio em 1977, dentre outras. Nieble Teno e Rolfsen Salles (2011) apontam que somente na década de 1980 que há uma desvinculação entre sexo e procriação e temas como divórcio, aborto e anticoncepção passam a ser tratados de forma mais aberta. Cecília dos Santos, 97 anos, casou-se uma vez, é viúva e tem onze filhos. Eulália Sória, 90 anos, foi casada uma vez, é viúva e tem seis filhos. Teresa Machado, 84 anos, era separada de seu excompanheiro já falecido e atualmente tem uma união estável, possui seis filhos e mencionou ter tido dois abortos espontâneos. Dalva Luçardo, 76 anos, casou-se uma vez, é viúva e tem duas filhas. A mais jovem entre elas, Dalva, foi dentre as parteiras a que teve o menor número de filhos e o nascimento destes foi cirúrgico, através da cesariana. As demais tiveram partos normais domiciliares. Cecília tem descendência indígena, Teresa indígena e negra e as demais se autodeclaram brancas. Todas são de classe econômica baixa e quando moraram no interior eram além de parteiras e donas de casa, agricultoras. As famílias das entrevistadas são representativas da maioria das famílias de suas comunidades, compostas por casamentos longos com um único companheiro (homem) e com uma grande prole nascida por via vaginal em casa. Percebeu-se que a partir do atendimento aos partos as parteiras passavam a ser vinculadas ao espaço da saúde e da doença, tornando-se promotoras da saúde familiar. Eram chamadas ou procuradas para: aplicar injeções, fazer um curativo, conseguir um remédio sem necessitar ir à cidade, benzer ou 1

Mestranda em História, PPGH-UFPel e bolsista CAPES.

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recomendar uma erva. Será dada atenção à benzedura, ao uso de ervas e aos conhecimentos de enfermagem, aplicados pelas parteiras e como se davam as relações de gênero entre elas e as famílias que visitavam durante o parto domiciliar. PARTEIRAS QUE BENZEM A benzedura é uma prática social dinâmica vinculada a grupos populares. É compreendida como uma atividade terapêutica, que possui eficácia na relação de confiança estabelecida entre benzedor e cliente, conforme aponta Claude Lévi-Strauss (1996). Há intermediação do “sagrado” para a obtenção da cura. Alberto Quintana (1999) defende que geralmente são feitas rezas, utilizadas ervas e outros recursos míticos, como carvão para queimar e tesoura para cortar os males, entre outros. Não é um universo estranho às parteiras tradicionais. Ambas participam do mesmo grupo de mulheres que ora são valorizadas pelos seus saberes na medicina alternativa, ora são chamadas de bruxas e veem sua capacidade questionada. Mas há distinções entre elas que as parteiras não deixam de frisar. Observou-se nas entrevistas que as parteiras não se sentem muito à vontade para falar sobre a benzedura e muitas nem se reconhecem como benzedoras, dizem apenas que fazem uma reza. Não se utilizam de muitos recursos e invocações para a benzedura além das ervas e da oração a Deus, e geralmente suas benzeduras são destinadas a recém-nascidos e crianças. Dona Cecília é evangélica não praticante da Igreja da Cruzada Universal. Atuou como parteira no terceiro distrito de Piratini. Conta um pouco sobre quais benzeções fazia: Erisipela, de ar, de sol e de quebrante, de mal olhado, benzer cobreiro, benzer sapo, tem crianças que tem sapo, aqui mesmo quantas vezes já trouxeram criança pra cortar, porque a gente corta o sapo é na sombra, no chão. [...] Comparação, aqui é a sombra da criança então a gente corta aqui, a gente pergunta pra mãe da criança: ‘o que é que eu corto?’ Ela diz assim: ‘sapo bravo’. ‘Isso mesmo eu corto, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, de Jesus e Maria’. É três vezes e não tem mais sapo. Eu já benzi umas quantas crianças depois que eu estou aqui. Ela agora “aposentou a tesoura”, ou seja, não corta mais cordões umbilicais. Essa é a forma que se refere ao fato de ter parado de acompanhar partos. É aposentada pelo Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural), trança chapéus de palha para vender e ainda benze quando procurada. Inclusive em um dos encontros depois da entrevista uma mulher esteve em sua casa perguntando se podia trazer o filho para uma benzedura e ela disse que sim e também mostrou a foto de um animal doente que ela estava benzendo todos os dias. Dona Teresa assistiu partos domiciliares no bairro Areal em Pelotas. Conta para o que benzia: As minhas benzeduras eram mais criancinha, ou dependendo do que era. Criança de encalho, espinhela caída. Gente grande benzia de espinhela caída também, benzia de encalho... eu benzi um menino dali do armazém que ele chegou aqui em casa chorava que nem criança, de soluçar e dizia: ‘eu tenho uma dor no estômago que parece que eu estou todo quebrado. Será que a senhora pode me benzer?’ Digo: ‘Deita na minha cama’, eu recém tinha arrumado a cama e os travesseiros limpinhos e ele deitou ficou que parecia que estava na casa dele. Aí eu me benzi primeiro pra depois benzer ele. No segundo dia ele entrou no portão com um arzinho de riso pra mim. E depois no terceiro dia ele disse: ‘a senhora sabe que eu já fiz cocô’. É interessante notar que ela se benzia primeiro para depois benzer os outros. Era como um processo de purificação para que nada de mal seu passasse ao outro e ela ficasse protegida de receber algo ruim. A disponibilidade em “fazer o bem”, como ela se refere em outros momentos, atendendo alguém em sua cama “arrumada e limpinha” também é notável. Contou que é Espírita Kardecista desde os 11 anos de idade, quando foi curada por médiuns de uma paralisia.

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Dona Eulália já atendia como parteira e depois fez dois cursos de capacitação em Obstetrícia oferecidos pelo Exército Brasileiro, com duração de um mês cada, a pedido de seu marido. Atendia a domicílio no interior e zona urbana de Piratini. Quando se fez a pergunta sobre a benzedura agiu com rejeição: Não. Isso aí não, nunca! Nem sei que bicho é esse. Eu estava conversando ontem com essa velhinha que estava aqui [...] e ela dizendo que tinha simpatias que as mulheres faziam, viravam o chapéu do marido e botavam na cabeça das mulheres, faziam um monte de simpatia boba, mas nada adiantava. Ela até estava dizendo umas palavras que elas diziam, simpatia pra ajudar no parto, mas nada adianta. A única coisa que adianta é injeção! É bom! Porque aí dá mais dor, a dor é mais forte. Sua atitude quanto à benzedura é interessante. Ela é uma parteira com capacitação em Obstetrícia, o que a diferiria das demais. Refere-se às parteiras sem formação como as que “nem usavam luvas” e é evangélica, frequentadora da Assembleia de Deus. Embora em sua concepção a benzedura e as simpatias não tenham efeito, reconhece que eram praticadas por algumas parteiras. PARTEIRAS E O USO DE ERVAS A fitoterapia, utilização de plantas para o preparo de medicamentos terapêuticos, é uma prática recorrente em comunidades rurais e cada vez mais presente nas cidades, sobretudo, nos espaços de medicina alternativa. Algumas das parteiras entrevistadas conhecem ervas/raízes para o preparo de chás e suas utilidades. Quando Cecília morava na zona rural plantava ervas para curar sua família e vizinhos. Na cidade mantém uma horta com legumes e ervas. Menciona que dava o chá do broto de sabugueiro ao bebê antes do leite, para limpar os intestinos. Como ele teria um efeito de purgante, a amamentação continuaria sendo o primeiro alimento. Tinha o chá do broto de sabugueiro, que a gente dá pra “mode” dar purgante. A criança a gente tem que dar um purgante que é pra sair aquela coisa ruim que tá dentro da mãe, que ele tá comendo, junta tudo dentro da barriga. Então a gente da um chá, broto do sabugueiro [...]. E depois então, dá a maminha. É obrigado a dá a maminha porque a gente também tem colostro. De acordo com a CPMA (Coleção de Plantas Medicinais e Aromáticas) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) o sabugueiro (Sambucus nigra L.) tem diversas propriedades medicinais reconhecidas e serve como laxativo conforme apontou Cecília. Para ajudar na expulsão da placenta dona Teresa preparava chá de laranjeira ou canela e para a criança dava chá de bergamota como calmante. Dava um chazinho bem espertinho depois que a placenta saía. [...] Chazinho de laranjeira, chazinho de canela [para a parturiente]. [...] Chazinho de bergamota que a gente dá pra criança, não é laranja. Agarrava nove folhinhas de bergamota, as mais pequeninhas, tirava o centro da folhinha, a gente rasga pro ladinho, tira todo o centro da folha, rasga com a mão, bota numa xícara pelo meio de água fervendo em pulo e abafa com o pires. Depois de uns minutos está pronto o chá. Na CPMA não foram encontradas propriedades medicinais da laranjeira e da bergamota, buscouse também por laranja e tangerina. Apareceram as laranjas Pera rio e Kinkã. A primeira tem as seguintes propriedades: analgésica, anti-hemorrágica, calmante, laxante, reguladora intestinal, tônica e assim por diante. A segunda não tem propriedades medicinais reconhecidas, do mesmo modo que a tangerina. Já no banco de dados do Ervanarium, criado pelo fitoterapeuta Rodrigo Silveira, foram localizadas diversas propriedades da laranja amarga (Citrus aurantium L.), entre elas: sedativa; tranquilizante; antiinflamatória. Sobre a tangerina (Citrus reticulata) não foram encontradas propriedades nestes bancos de dados, mas em vários sites de medicina alternativa, como o “Plantas que curam” é mencionado seu efeito

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sedativo. Já a canela (Cinnamomum zeylanicum Blume) no Ervanarium é indicada para: hemorragia de parto e auxiliar na contração do útero no parto, dentre outras indicações e é um lactogogo, ou seja, aumenta a quantidade de leite. Dona Dalva atuou no terceiro distrito de Piratini. Menciona os chás que utilizava: De erva doce, de funcho [...] É, porque tudo ajudava. Mas agora não dão mais, não pode dar chá, não sei por quantas horas não pode dar. [...] A primeira coisinha que a gente dava era o chazinho, depois o leite. Mas depois proibiram não podia mais dar chá. Pros meus eu sempre dava, nunca fez mal o chazinho de erva doce. [...] [Para a parturiente] Podia ser um chazinho quente, um chazinho de canela, mas o principal era uns golinhos de café. No Ervanarium aparecem as seguintes propriedades da erva doce (Pimpinella anisum L.): para cólicas abdominais e intestinais; vômitos e enjoos na gravidez; aumenta a quantidade de urina, do fluxo menstrual e do leite materno; etc. e o funcho (Foeniculum vulgare Mill): expele gases, má digestão e é um laxante suave. As propriedades da canela já foram mencionadas e as do café (coffea arabica) não constam nos bancos de dados referidos. Entretanto no site “Plantas que curam” são apontadas: Analgésica, anti-hemorrágica, antidiarreica, anti-inflamatória, estimulante, excitante, expectorante, tônico, dentre outras. Dona Dalva conta outra situação e como procedeu: Dali a pouco apareceu o marido dela, pra eu ir lá, que na criança dava umas coisas parecia que ia vomitar e não vomitava e a mulher louca de dor e inchada. Aí eu cheguei lá e perguntei: ‘o que tu fez? Porque tu estava tão bem!’ ‘A mamãe disse que eu tinha que me alimentar, me socou uma caneca de marmelada e pro negrinho ela deu duas colheres de óleo’. Só o que eu tinha pra fazer, dei um chá de marcela pra cada um. E ela me pedia pra afumentar porque ela não aguentava a dor. O chá de marcela (Chamaemelum nobile (L.) All.) utilizado por Dalva para problemas digestivos possui esta capacidade apontada na CPMA. Ainda é interessante a menção de que dava os chás inclusive aos seus filhos e que nunca fizera mal, mas que atualmente teria sido proibido. Embora o uso de fitoterápicos não tenha sido proibido, sua fala demonstra reflexões entre suas práticas e a da enfermagem e obstetrícia na atualidade, pois mora com uma neta estudante de enfermagem, utilizando as expressões “no meu tempo” e “agora”. PARTEIRAS E OS CONHECIMENTOS DE ENFERMAGEM Algumas dentre as nove parteiras entrevistadas para pesquisa de mestrado trabalharam em hospitais e não somente na parte obstétrica, uma delas chegou a auxiliar o médico durante cirurgias. Mas este artigo aborda as parteiras que atuaram a domicílio nas cidades e na zona rural que desenvolveram algum tipo de conhecimento relativo à enfermagem. Dalva buscava na cidade mercúrio para colocar no umbigo do recém-nascido. Apesar das dificuldades econômicas e da distância da cidade procurava ter em casa os preparos para curativos, mas quando não os tinha improvisava. Dispunha-se a ir ou recebia em sua casa pessoas que precisavam de injeções. Explicou que há um lugar certo para aplicar a injeção, por isso não são todas as pessoas que sabem. Conta de um rapaz para o qual ela fez uma imobilização enfaixando-o com madeiras e panos: Costumava fazer injeção. Fazia curativo também. Uma vez se quebrou um guri na casa que ele trabalhava e a mulher já botou a boca. E eu disse: [...] ‘janta tu não dá, porque tem que fazer anestesia e chegar lá com o estômago cheio não pode’. E aí pedi pra ela, duas dessas palminhas de madeira e pedi uns paninhos e enfaixei bem enfaixadinho. [...] E dizem que o doutor disse: ‘mas essa pessoa que fez esse curativo até não é muito atrasada’.

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Dona Eulália conta de alguns atendimentos feitos ou “pessoas que salvou”, como ela coloca, e que para intervir a pessoa precisava “aceitar a sua cura”: Em muitas pessoas, eu salvei meu concunhado, ele ia perder a mão, ‘preteou’ a mão. Não sei o que aconteceu, ele se cortou ou cravou um porrete na mão, sei lá e foi lá na minha casa muito triste, disse: ‘olha eu vou perder a minha mão, tá preta’. Daí eu disse: ‘mas se tu aceita eu te curo!’ Eu comecei a fazer curativo. E eu morava na beira da estrada e uma vez um velho caiu do cavalo, o cavalo arrastou ele e ele ficou pura sangue. Eu fui lá peguei o velho, entreguei o cavalo pros meus filhos, meus guris, eu tinha seis guris, e eu fiquei com o velho ali, fiz curativo no velho e depois segui indo na casa dele pra fazer curativo. Também uma menina, filha de uma cunhada minha, cresceu uma íngua de baixo do braço dela e rebentou e eu fiz curativo até ela ficar boa. Eu fazia muito serviço assim de enfermagem. Ia longe fazer injeção. Frequentava a casa do doente até que este melhorasse. Aplicava injeções e em casa mantinha a injeção de penicilina para aplicar na parturiente, caso fosse necessário para evitar infecções. Atendia. Se era preciso fazer uma injeção, naquela época tinha muita penicilina, porque conforme fosse o atendimento eu fazia uma injeção de penicilina. [...] pra evitar uma infecção, um problema qualquer. [...] Os médicos lá de Bagé foram muito bons, me ajudaram muito, depois eles vieram me visitar e ainda trouxeram bastante remédio. Remédio pra fazer higiene na mulher, injeção. [...] Eu cobrava bem pouquinho, só pra manter os meus remédios. [...] Eu alimentava elas [parturientes que iam parir em sua casa] tudo por minha conta, porque que eu ia estar cobrando tanto?! Contou que os médicos dos cursos de capacitação em obstetrícia que fez lhe visitavam e traziam remédios. As visitas dos médicos eram sempre sem avisar e tinham um caráter de supervisão sanitária. Como as visitas eram inesperadas, dona Eulália mantinha uma pequena farmácia em casa, motivo pelo qual afirmou necessitar cobrar pelos atendimentos. RELAÇÕES DE GÊNERO NO ATENDIMENTO AO PARTO E PUERPÉRIO DOMICILIAR A produção historiográfica sobre as mulheres a partir dos anos de 1980 tenta compreender sua multiplicidade, com o intuito de não vitimá-las ou torná-las heroicas, mas de buscar suas experiências, questionando “as imagens de pacificidade, ociosidade e confinação ao espaço do lar” (MATOS, 1998, p. 68). Para Mary Del Priore (2008, p. 84) o que importa “[...] são desvendar as tensões, contradições e negociações que se estabeleceram, em diferentes épocas, entre elas e seu tempo; entre elas e a sociedade na qual estavam inseridas”. “O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” e é uma forma de “significar as relações de poder” (SOIHET e PEDRO, 2007, p. 290). Nessa pesquisa não se trabalha com a perspectiva mais atual dos estudos sobre gênero, ou seja, a desconstrução deste, por entender que as narradoras citadas se identificam enquanto mulheres e percebem o mundo numa relação binária, entre homens e mulheres. Dona Cecília conta que em sua comunidade era mais conhecida que seu marido e que as pessoas se referiam a ele como “o marido da parteira Cecília” e que lá quase todas as pessoas se referiam as mulheres como esposas do “fulano de tal”, indicando que as figuras públicas eram na maioria das vezes homens. Todavia, menciona uma situação que demonstra como seu ofício era muitas vezes incompreendido por seu marido: Eu chegava em casa e meu marido me perguntava: ‘Tu cobrou?’ Eu digo: ‘Eu não cobrei.’ Uma vez eu saí na garupa de um velho, estava chovendo e nós não tínhamos cavalo pegado, lá no Passo das Carretas e nós morávamos no Terceiro. E aí eu cheguei no outro dia e ele me trouxe noutro cavalo e aí ele

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foi e disse assim pra mim: ‘Tu cobrou?’ E eu: ‘Não cobrei nada!’ ‘Tu sai na garupa desses velhos e não cobra nada!’ Muitas vezes os chamados para atender os partos na campanha eram feitos pelo marido da parturiente que buscava e levava a parteira a cavalo. Mas em uma sociedade rural em meados do século XX uma mulher sair na garupa de um homem à noite (dona Cecília afirma que a maioria dos trabalhos de partos começava a noite) e voltar somente no dia seguinte nem sempre era compreendido, gerando algumas vezes desconfiança. Em contraponto, o ofício de parteira permitia uma liberdade às mulheres para transitar entre o público e o privado. Dona Dalva conta que quando era criança seu sonho era ter a profissão da Alvorina, parteira. [...] porque naquele tempo a gente se criava era tudo escondido ninguém conversava nada e ela cruzava a toda disparada. E eu tinha paixão por andar a cavalo e um dia eu disse pra minha mãe de criação: ‘Se Deus quiser quando eu ficar grande eu vou ter a mesma profissão da Alvorina’. Mas às vezes elas se apertavam, essas que já eram parteiras [...] às vezes iam tirar uns dias, as mulheres inventavam que ia ser tal dia [...] iam tiravam uma semana, duas, mês e ela não ganhava, então elas estavam longe e foi aí no aperto que eu segui. Como aponta Dalva, embora a casa da parturiente também fosse um lugar privado, a parteira ausentava-se das funções de esposa, dona de casa e mãe por alguns dias ou mais para ficar ao lado da parturiente. Havia uma alteração na estrutura familiar com frequência, sempre que chamada, devido à ausência destas trabalhadoras em seu lar. E não raras vezes para a subsistência da família restava ao marido e aos filhos maiores cozinhar, lavar, cuidar das crianças e todas as demais tarefas do trabalho reprodutivo, que tradicionalmente vem sendo atribuídas como um encargo às mulheres. Cecília conta de um parto de gêmeos que atendeu e adotou um dos bebês, mesmo seu marido a contrariando, pois já tinham muitos filhos, a palavra final foi sua. Colocou o nome e o batizou sozinha. Esse filho de criação que mora comigo ele nasceu, pesou meio quilo, a mãe dele estava pra ganhar dois. Ganhou ele, pobrezinho mortinho, só via que estava vivo porque tomava fôlego. O outro pesou três quilos, eu tinha até máquina pra pesar as crianças. Aí ela foi e disse assim: ‘esse pequeninho a senhora bota no lixo, que ele tá morto’. Eu digo: ‘eu vou levar pra mim’. Aí não tinha roupa pra botar no guri, eu tirei uma saia baixeira que a gente usa, lavei ele e ele não tinha roupa eu enrolei bem na saia e levei, cheguei em casa e disse pro meu marido: ‘olha o que eu trouxe pra mim’. ‘Isso é louca, com um mundo de filho ainda trouxe outro pra criar’. Eu digo: ‘eu trouxe esse Adãozinho pra eu criar, o nome dele é Adão. [...] Foi eu que botei o nome, ele é meu afilhado, batizei ele em casa e no padre e é meu filho de criação’. O aborto é um tema tabu entre as parteiras. Todas as entrevistadas negam ter atendido abortos provocados, somente os espontâneos. Cecília menciona a história de Catarina, parteira que realizava abortos. A Catarina era parteira e lá naquele Terceiro [localidade] as moças solteiras ganhavam os filhos e ela era parteira, mandavam ela matar e ela matava e botava fora. [...] Já morreu há muitos anos. E ela morreu quando morreu seis crianças. [...] Depois que ela deixou de ser parteira, ela ganhou seis, tudo num tamanhozinho assim, seis crianças numa vereda, e ganhou mortos, todos os pobrezinhos mortos. Fui eu que passei com ela. E ela olhando pras crianças dizia: ‘é verdade meus filhinhos tudo morto’. Eu disse: ‘isso é as crianças que tu matava que Deus te deu agora tudo morto’. E fechou os olhos e morreu. Foi sepultada com as seis crianças. [...] As moças solteiras às vezes ganhavam família e mandavam ela matar, ela matava e botava fora.

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A fala de dona Cecília demonstra repúdio à postura de Catarina e às moças que abortavam. Em nenhum momento se refere aos homens que as engravidaram e como isto ocorria, com consentimento ou estupro. Não pensa na atitude de Catarina como um socorro às jovens que estavam naquela situação. Em seu entendimento as mulheres eram culpadas pela gravidez e pelo aborto. Entre as muitas situações narradas pelas parteiras, dona Eulália se lembra de um parto difícil que o marido da parturiente queria amarrá-la e deixá-la imóvel, mas ela não permitiu. Uma vez eu fui atender uma mulher, era do primeiro filho também, era um rancho tinha só as madeiras e o marido dela queria que eu amarasse ela, ela não queria que eu tocasse nela. Chegaram a trazer “umas juntas”, é de unir boi pra lavar, pra amarrar e eu digo não! Eu vou embora, eu não faço isso. Levem pra Canguçu. Ela passou a noite inteira com dor e eu não cheguei a tocar no corpo dela. [...] Dependurada, iam atar lá nos caibros. Já pensou? Pra ficar imóvel. Que aí eu podia fazer o que eu queria, mas Deus me livre! Eu acho um crime isso! O ocorrido incita a reflexão sobre a autoridade e a violência no parto. Embora seja um espaço tido como do feminino, quem decidia a hora de chamar a parteira e o fazia era o marido. E neste caso ele queria determinar a posição de parir a mulher, violentando-a. Mas diante da parteira o marido da parturiente tinha sua autoridade diminuída, mesmo no interior de sua casa e tinha de acatar suas decisões. Para Eulália amarrar a parturiente, que já estava em um estado vulnerável, dependurando-a aos caibros se constituía em um “crime”, como coloca, e se recusou a atendê-la deste modo. Eulália conta que levou muitas mulheres que pediram para parir em sua casa, pois tinha condições de melhor acomodá-las. E que suas filhas ficavam apavoradas com sua coragem em atender os partos e que em um deles teve de pedir a ajuda de seu filho. [...] eu levei muita mulher pra minha casa. Ganharam na minha casa. Eu cuidava do nenê e cuidava delas. Naquela época, a gente não vai estar se exibindo, [...] a gente era mais atrasado, eu dava a minha cama pra acomodar elas! [...] Elas diziam [suas filhas]: ‘ai mãe como é que a senhora se anima!’ É que as mulheres ganhavam filho na minha casa e elas viam. Inclusive meu filho mais velho eu fiz um parto que ele teve que me ajudar, mas ele já era casado. Ele e a mulher dele me ajudaram. No tempo do lampião de querosene! Era um lampião de querosene e eu tinha que cortar o umbigo e eu tive que chamar eles, eles moravam comigo. Um homem neste universo era algo diferente. A maioria das parteiras conta que não permitia a presença de homens no quarto, nem o marido da parturiente, pois o parto seria um momento de afloração do feminino e neste contexto, consequentemente, um espaço delas. Mas diante do inesperado, ele pode entrar e ajudar porque já era casado e estava acompanhado de sua esposa. Havia transições ou transgressões, portanto, entre os espaços privados, tidos como femininos e os públicos, tidos como masculinos. E, buscar essas histórias não contadas, essas pessoas que foram lentamente tornando fluidas as tão enrijecidas regras culturais, é o que se quer. CONSIDERAÇÕES FINAIS As parteiras entrevistadas se declaram pobres e esta condição se evidencia no encontro entre narradoras e pesquisadora, durante as saídas de campo da pesquisa. Contudo, o atendimento ao parto, a benzedura e os demais cuidados não constituíam uma geração de renda a elas, pois, poucas cobravam e quando o faziam era por um pequeno preço. Cecília defende o porquê de não cobrar pelos atendimentos: “nunca cobrei nada de ninguém. Por isso que hoje Deus está me dando essa saúde. Porque quanto mais benefício a gente faz, mais Deus ajuda!” Contou que recebia dos vizinhos feijão e outros presentes. Dalva também nega ter cobrado: “Não, nunca cobrei nada. Eu nunca fui no colégio, não tinha estudo. Tinha vontade de fazer uma coisa pra ser voluntária para os outros, nunca tive vontade de cobrar nada de ninguém. Às vezes me davam,

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mas davam por que queriam.” Teresa têm a mesma postura e conta que ganhava muitos presentes, principalmente pijamas e que algumas vezes quando os vizinhos podiam lhe davam além dos presentes dinheiro. Eulália cobrava para comprar remédios: “Eu cobrava bem pouquinho, só pra manter os meus remédios. Na campanha todo mundo é apertado de vida e agricultor é de seis em seis meses pra ter dinheiro. Naquela época nem sei te dizer, mas era uma coisa mínima”. Este fator, não cobrar ou cobrar pouco, pode indicar que as parteiras não percebiam sua atuação como um trabalho produtivo. Ou que não o faziam devido às parcas condições de seus vizinhos agricultores. Ou consideravam mais rentável trocar seu serviço por algum alimento produzido na vizinhança. Ou ainda, já que eram “credenciadas por Deus”, tinham o dom e ao mesmo tempo não possuíam estudo, e por tais motivos, não deveriam cobrar. Então, como compreender o valor que davam ou quão significativo consideravam seu trabalho? A partir dos atendimentos o laço entre parteira e comunidade aumentava. Conforme dona Cecília “[...] sempre me convidavam pra madrinha. Tenho afilhados por esse mundo aí que vou te dizer!” Prestavam mais do que um auxílio, elas eram promotoras da saúde em suas comunidades. E seu trabalho estabelecia mais que um sistema de trocas de serviços e produtos entre as parteiras e as famílias atendidas, mas uma relação de solidariedade comunitária. FONTES Cecília dos Santos. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Piratini, 2013. CPMA – UNICAMP. Banco de dados. Disponível em: http://webdrm.cpqba.unicamp.br/cpma/banco_de_dados/. Acesso em: 13 ago. 2015. Dalva Luçardo. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Piratini, 2013. ERVANARIUM. Plantas. Disponível em: http://www.ervanarium.com.br/plantas. Acesso em: 13 ago. 2015. Eulália Sória. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Piratini, 2013. PLANTAS QUE CURAM. Benefícios e malefícios do café. Disponível em: http://www.plantasquecuram.com.br/ervas/cafe.html#.VdIWI_lVikqAcesso em: 13 ago. 2015. PLANTAS QUE CURAM. Benefícios medicinais da fruta tangerina. Disponível em: http://www.plantasquecuram.com.br/ervas/tangerina.html#.Vc0ZhflVikoAcesso em: 13 ago. 2015. Teresa Machado. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Pelotas, 2015. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALBERTI, Verena. Histórias dentro da história. In: PINSKY, Carla (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 155-202. DEL PRIORE, Mary. Histórias do cotidiano. São Paulo: Contexto, 2008. D’INCAO, Maria Ângela. A casa, a família e os modos de vida. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 34, fev. 1992. p. 65-83. Disponível em: http://www.ces.fe.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/34/Maria%20Angela%20Dincao%20%20A%20Casa,%20a%20Familia%20e%20os%20Modos%20de%20Vida.pdf Acesso em: 17 ago. 2015. LÉVI-STRAUSS, Claude. A Eficácia Simbólica. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 215-36. MATOS, Maria Izilda. Estudos de gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. Cadernos Pagu. Nº 11. 1998. p. 67-75.

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QUINTANA, Alberto. A ciência da benzedura: mau olhado, simpatias e uma pitada de psicanálise. Bauru: EDUSC, 1999. SILVA, Eduarda Borges da. Narrativas paridas: Entre higienização e industrialização, parteiras da Região Sul do RS rememoram seu ofício. Trabalho de Conclusão de Curso. Bacharelado em História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, 2014. SILVA, Eduarda Borges da. Parteiras pampeanas e seus saberes de ofício: deslivrar placentas, queimar umbigos e fechar corpos. In: GILL, Lorena e SCHEER, Micaele (Orgs.). À beira da extinção: memórias de trabalhadores cujos ofícios estão em vias de desaparecer. Pelotas: Editora da UFPel, 2015. p. 113-124. SOIHET, Rachel e PEDRO, Joana Maria Pedro. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, 2007, p. 281-300. TENO, Nieble; SALLES, Rolfsen. Casamento e família no Brasil: breve panorama. Contribuciones a las Ciencias Sociales. nº 11, fev. 2011. s.p. Disponível em: http://www.eumed.net/rev/cccss/11/ntrs.htm Acesso em: 17 ago. 2015.

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LAÇOS MATRIMONIAIS E FAMILIARES: UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DA FAMÍLIA ESCRAVA NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA MADRE DE DEUS DE PORTO ALEGRE (1772-1822) Marina Camilo Haack 1 INTRODUÇÃO Esta comunicação é resultado da minha participação no Projeto de Pesquisa “Família e Sociedade no Brasil Meridional entre as décadas de 1772 a 1835”, orientado pela Prof.ª Drª Ana Silvia Volpi Scott e financiado pelo CNPq. A principal fonte deste trabalho é o 1º Livro de Casamentos de Escravos da freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, que abrange desde 1772 a 1822 2. Estes assentos transcritos foram inseridos em um software desenvolvido especialmente para o cadastramento e a análise das fontes eclesiásticas: o NACAOB 3. As informações dos registros são colocadas em campos específicos de cada ficha de cadastro e posteriormente podem ser extraídas em planilhas Excel, analisadas individualmente ou cruzadas com outros tipos de assentos. Ao falar sobre casamentos mistos, esta análise ficará restrita àqueles indivíduos que estão especificamente neste livro de escravos, sendo assim, os casamentos mistos eventualmente registrados no livro de casamentos de livres não serão considerados neste momento. Sempre que possível ou necessário, foram consultados também os registros de batismos de escravos para o mesmo período cadastrados no banco de dados. Além disto, também foram consultados os “Documentos da Escravidão no RS” disponibilizado online pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS 4, que compõe inventários, processos crimes, livros de compra e venda e cartas de liberdade. É a partir desta base documental que se busca apresentar uma análise dos casamentos em conjunto com pequenas trajetórias, procurando conhecer melhor os indivíduos da pesquisa e suas possibilidades naquela sociedade 5 perante o casamento na igreja.

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Graduanda no curso de Licenciatura em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Este trabalho é resultado do período em que estive vinculada ao Projeto de Pesquisa “Família e Sociedade no Brasil Meridional entre as décadas de 1772 a 1835”, orientado pela Profª Drª Ana Silvia Volpi Scott e financiado pelo CNPq, atuando como bolsista desta agência de fomento. 2 ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE (AHCMPA). 1º Livro de Casamentos de Escravos. Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, 1772-1822. Devido ao estado de conservação do documento, foi utilizada a transcrição do projeto “Resgate de fontes paroquiais – Porto Alegre e Viamão, século XVIII”. NEUMANN, Eduardo & KÜHN, Fábio. Resgate de fontes paroquiais – Porto Alegre e Viamão, século XVIII. Porto Alegre, 2006. 3 A respeito do NACAOB e suas potencialidades, ver SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Uma alternativa metodológica para o cruzamento semiautomático de fontes nominativas: o NACAOB como opção para o caso luso-brasileiro. In: BOTELHO, Tarcísio R.; LEEUWEN, Marco H. D. van (Orgs.). História social: perspectivas metodológicas. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2012, p. 83-108. 4 Documentos da escravidão: inventários: o escravo deixado como herança / Coordenação Bruno Stelmach Pessi. – Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (CORAG), v.1/4, 2010. Documentos da escravidão: testamentos: o escravo deixado como herança / Coordenação Bruno Stelmach Pessi. – Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (CORAG), v.1, 2010. Documentos da escravidão: processos crime: o escravo como vítima ou réu / Coordenação Bruno Stelmach Pessi e Graziela Souza e Silva – Porto Alegre: Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (CORAG), v.1, 2010. Documentos da escravidão: compra e venda de escravos: acervo dos tabelionatos do Rio Grande do Sul / Coordenação Jovani de Souza Scherer e Márcia Medeiros da Rocha. – Porto Alegre: Companhia Riograndense de Artes Gráficas (CORAG), v.1/2, 2010. Documentos da escravidão catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul / – Porto Alegre: CORAG, v.1/2, 2006. Disponível em: https://arquivopublicors.wordpress.com/publicacoes/ 5 A Freguesia da Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre a partir de 1773 se tornou sede do governo da capitania do Rio Grande de São Pedro, com a intensificação do comércio, do crescimento populacional, principalmente na virada para o século XIX, quando também se verificou o crescimento do tráfico e consequentemente da população escrava e de cor na freguesia.

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Em números gerais nossa análise tem: 219 matrimônios entre escravos e 21 mistos no livro já referido. Há 3.786 batismos de escravos entre 1773 e 1822, distribuídos em: 589 legítimos, 278 ilegítimos, 2.609 filhos naturais e 310 sem designações, alguns são africanos já com certa idade e não consta o nome dos pais. É importante mencionar que o banco de dados do NACAOB é constantemente abastecido. LAÇOS MATRIMONIAIS E FAMILIARES Como muitos estudiosos já evidenciaram em suas obras, a historiografia brasileira acerca da escravidão passou por uma importante mudança nas décadas de 70 e 80 6. Estas modificações colocaram os homens e mulheres escravizados como sujeitos capazes de manifestar desejos, vontades, revoltas e não apenas vítimas condicionadas pelas durezas da vida cativa, diminuindo a importância de seus atos e os justificando como bárbaros. Estes pesquisadores trouxeram luz as formas e estratégias de sobrevivência que os cativos tomaram na condição que o cativeiro impunha. Estamos certos de que a escravidão adaptou em alguns momentos costumes africanos. Isto não significa que esta cultura tenha sido suprida ou que uma nova (a cristã branca) tenha se sobreposto à antiga. Pelo contrário, veremos estratégias de manutenção para costumes africanos, e a família formada dentro do cativeiro é uma destas formas. Pensar a escravidão é antes de tudo considerar a violência inerente a este sistema de produção. Afinal, o escravo estava na condição de mercadoria e poderia ser vendido a qualquer momento. Por outro lado, em sua condição humana, tinha vontades próprias e estratégias para realiza-las, embora nem sempre se concretizassem. (CUNHA, 2009, p. 9). Formalizar um casamento entre escravos na igreja envolvia uma série de questões. Recorrer a um costume cristão era a forma de conseguir melhores maneiras de se estabelecer dentro da senzala e da comunidade. Além do casamento, o apadrinhamento no batismo era uma forma de estender laços para fora da senzala ou mesmo os fortalecer internamente, esta prática poderia significar um reflexo sobre a família extensa que o cativo trazia ancestralmente. As senzalas tinham uma dinâmica própria, que por muito tempo foi difícil de compreender, que envolvia uma diversidade étnica, cultural, a presença do senhor e a pressão de um trabalho forçado e compulsório. Estar inserido em uma comunidade que pudesse propiciar ampliar seus esforços rumo à liberdade poderia significar estender os laços parentais além dos muros da senzala. Quero, com isso, chamar atenção para a importância que apadrinhar tinha nesta sociedade, fossem para brancos ou negros, livres, escravos ou libertos. A reprodução biológica e social da população escrava se dava, no entanto, através de relações sociais (familiares e comunitárias). Neste sentido, a família torna-se foco privilegiado, seja como contexto dos eventos demográficos, seja como instituição mediadora entre indivíduo e sociedade. Inseridos ou não em grupos familiares, os homens e mulheres escravizados também conviveram com livres, forros e escravos. Compartilharam (e reproduziram) de forma mais ou menos evidente o conjunto de valores da sociedade na qual se inseriam, apesar das adversidades a que estavam submetidos. (CUNHA, 2009, p. 12). Considero família escrava mesmo aquelas uniões que ainda não possuem filhos e aquelas que podendo haver filhos não possuem sacramento perante a igreja, ou seja, as uniões consensuais. A estrutura familiar simples, composta apenas pelo casal, analisada somente a partir das fontes é incapaz de reconstruir integralmente a complexidade das teias de relações e laços que a dinâmica da senzala 6

CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T. da. Sujeitos no imaginário acadêmico – escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 35-76. OLIVEIRA, Renata S. Cativos julgados: experiências sociais escravas de autonomia, sobrevivência e liberdade em cachoeira do sul na segunda metade do século XIX. Santa Maria: PPG – História/UFSM, 2013, p. 27-52. [Dissertação de mestrado].

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compreendia. Seria então a missão do historiador tentar buscar as pequenas evidências e cenas da convivência da família escrava. OS REGISTROS PAROQUIAIS Os sacramentos católicos tinham importância fundamental para a população “luso-brasileira” dos séculos XVIII e XIX, pois, era através deles que o indivíduo era iniciado na sociedade e na vida cristã. Visto que esta era predominantemente católica, o peso da Igreja, das crenças e dos rituais cristãos influenciaram o dia a dia, o convívio e as características daquela sociedade. Estes sacramentos também foram de suma importância na escravidão e na sua manutenção. Os registros paroquiais seguiam as normatizações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) 7, estas previam que os registros seguissem um modelo que exigia determinadas informações para cada tipo de registro. Além disso, também previa alguns direitos e deveres, como por exemplo, o direito do escravo poder casar-se e o dever do proprietário não separar os nubentes, mesmo que na realidade tivesse outros desdobramentos. Os livros de casamento, batismo e óbito contém informações dos principais momentos da vida de um indivíduo. É com a análise destes registros e das informações de cada assento que hoje podemos fazer um estudo demográfico e social da população que se formava e ocupava o Rio Grande de São Pedro entre os séculos XVIII e XIX. Sobre estes registros, Bassanezi diz que: São imprescindíveis principalmente para o conhecimento de uma época em que não existia o Registro Civil – em que não havia a separação entre Estado e Igreja – ou seja, o Brasil no início da colonização portuguesa à Proclamação da República. Nesse período, o Registro Paroquial possuía um caráter religioso com força de um ato civil para cada indivíduo, servindo, inclusive, de base legal para operações seculares, como, por exemplo, os processos de herança. (BASSANEZI, 2009, p. 143.) SOBRE OS REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO A oficialização do matrimônio seguia algumas premissas que deveriam ser conhecidas e respeitadas pelos fiéis. Podemos destacar os ditos tempos proibidos (Quaresma e Advento), tempos de mau agouro em que estes tipos de sacramentos eram evitados, afim de receber as bênçãos. Casais que viviam de forma consensual não eram bem vistos pela Igreja e pela sociedade. Por vezes este tipo de caso gerava tumultos locais. Na senzala, apesar do direito ao casamento ser defendido pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, sabemos que havia uma quantidade significativa de relações não oficializadas na Igreja. Sabemos, também, que embora as mesmas Constituições dessem proteção aos casamentos oficializados nem sempre o sistema escravista cumprisse tal exigência. A senzala era um ambiente instável, a morte do senhor poderia dividir famílias através da divisão de bens, até mesmo o nascimento de uma criança escrava tinha destino incerto, questão esta que ainda se agravaria mais com o fim do tráfico negreiro em 1850 e o consequente crescimento do tráfico interprovincial 8. Maria Silva Bassanezi afirma que: Pelas normas tridentinas, o registro de casamento deveria conter: a data do casamento, o nome de cada cônjuge e sua filiação, residência, naturalidade e a assinatura do sacerdote. [...] Muitas vezes, eram assinalados também: o local da realização do casamento, a idade dos cônjuges, a condição social dos nubentes, como por exemplo, o estado civil e o título. Em se tratando de nubentes escravos, sempre era anotado o nome do proprietário. Quando os 7

VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, 2007. 8 Cristiany M. Rocha exemplifica bem esta questão do destino incerto das famílias escravas em seu trabalho: ROCHA, Cristiany M. A morte do senhor e o destino das famílias escravas nas partilhas. Campinas, século XIX. Revista Brasileira de História, v. 26, p. 175-192, 2006.

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cônjuges pertenciam às categorias sociais e econômicas mais elevadas, as anotações eram mais completas, incluíam os nomes de avós maternos e paternos de cada cônjuge, a paróquia e as dioceses de nascimento e moradia e, além do vigário e das testemunhas, outras pessoas presentes assinavam o registro. (BASSANEZI, 2009, p. 151-2). Nos registros de indivíduos escravos aqui consultados temos sempre: nome dos nubentes, dos proprietários, data, hora, assinatura de duas testemunhas, em alguns casos as naturalidades e a cor. No caso de forros, o nome do antigo proprietário poderia estar presente também. Foram raros os casos em que constavam os nomes dos pais dos cativos. Tratando-se de um(a) viúvo(a) deveria constar o nome do falecido esposo(a), esta informação, no entanto, nem sempre esteve presente, em relação aos assentos de livres os escravos tiveram menos informações designadas. SOBRE OS REGISTROS PAROQUIAIS DE BATISMOS Através da análise dos registros de batismos de escravos, podemos verificar um alto número de filhos naturais recebendo este sacramento. Os filhos legítimos eram fruto das relações formalizadas pela Igreja, já os registrados como naturais, podemos concluir que poderiam ser de relações consensuais dentro da senzala. Em geral, estes filhos traziam a identificação apenas da mãe frente a igreja, o que não significa que não houvesse um pai conhecido e presente dentro da senzala. Infelizmente, as famílias constituídas desta maneira não podem ser quantificadas nem analisadas tão profundamente como se idealizaria. O batismo era o primeiro sacramento que um indivíduo recebia, e representava sua entrada para o mundo cristão e para a sociedade. Já para os africanos escravizados, ainda nos portos, significava o esquecimento da sua vida livre, recebiam uma nova identidade: um nome cristão. Entre 1773 e 1822 foram registrados 3.786 batizados de crianças na condição jurídica “escravo”. Destes 589 (17%) são legítimos, 278 (8%) são ilegítimos e 2.609 (75%) são filhos naturais. Com a análise dos batismos percebemos que, estas famílias a se formar, eram essencialmente compostas de mães e filhos. O grande número de filhos registrados como naturais pode trazer vidências sobre a constituição de uniões consensuais e amancebamentos. CASAMENTOS MISTOS Consideramos casamentos mistos aqueles em que um dos nubentes não pertence a condição jurídica “escravo”, ou seja, livre, forro ou em alguns raros casos “indígena administrado”. Este tipo de união nos traz muitas reflexões a respeito da hierarquia e mobilidade social da época, padrões que condicionavam profundamente as relações. O casamento de um escravo com um indivíduo livre ou forro, mesmo que pobre, poderia significar ampliar suas possibilidades de liberdade e seu contato com o mundo livre. Consideramos também que, mesmo para o indivíduo já livre ou liberto, relacionar-se com um escravo também poderia trazer algum benefício, visto que muitos cativos tinham posições de destaque dentro da propriedade do senhor e um contato privilegiado com brancos de melhores condições. Devemos estar atentos para outro fato que envolvia os casamentos e a constituição de famílias frente às experiências do cativeiro. O período analisado ainda está muito distante da Lei do Ventre Livre de 1871, portanto, o ventre da mãe era determinante na condição jurídica da criança a nascer. Ester aspecto deve ter sido importante para a formação de famílias dentro do cativeiro. Do período entre 1772 e 1822 temos registros de 21 casamentos mistos dentro do livro de casamentos de escravos, em que um dos nubentes era forro ou livre: 13 homens e 8 mulheres. O CASO DOS IRMÃOS INÁCIO TEIXEIRA Na manhã do dia 24 de maio de 1803, frente às testemunhas Albino Américo dos Santos Pereira e Agostinho José de Sampaio, os irmãos João e José Inácio Teixeira sacramentaram 14 matrimônios

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entre seus escravos 9. Os irmãos chegaram à freguesia de São José de Taquari 10 em 1800, tornaram-se grandes sesmeiros na região e mantinham comércio com Porto Alegre 11. Provavelmente os irmãos aproveitaram a viagem para realizar todos os matrimônios de uma vez, afinal são poucos os senhores que realizam dois ou mais matrimônios entre seus escravos. O caso dos Inácio Teixeira é excepcional, o que nos leva a pensar sobre o tamanho de suas escravarias. Até 1822 não foram registrados mais casamentos entre seus escravos. A partir da consulta do inventário de José Inácio Teixeira 12 de 1842, constatamos que possuía 155 escravos, sendo 131 homens e 24 mulheres. Percebemos, portanto, que uma das características de seu plantel era o acentuado desequilíbrio entre os sexos, talvez por uma opção devido ao trabalho desenvolvido em sua propriedade, bem como característica geral do tráfico. Não encontramos o inventário de João, embora este apareça ainda em um processo crime em 1822/3 quando um de seus escravos foi ferido com uma facada por um sujeito chamado Pedro Antônio. O escravo ferido, André, preto, não tem seu estado civil designado, portanto não sabemos se se trata do mesmo André que casara dia 24 de maio de 1803. Considerando tamanha diferença em números entre homens e mulheres escravos dos irmãos, o número de casamentos é bem significativo, e justamente por se tratar de uma grande quantidade de indivíduos escravizados, recorrer ao casamento e a então fixação do escravo na propriedade poderia significar diminuir os riscos de fuga para estes senhores 13, considerando que estes matrimônios foram realizados ainda no início da construção da propriedade. “QUANDO SE FICA ASSIM, SEMPRE SÓ, O CORAÇÃO NÃO VIVE SATISFEITO” Saint Hilaire em sua viagem a Minas Genais descreve o seguinte diálogo com um escravo: [SH] - Você naturalmente se aborrece vivendo muito só no meio do mato? [E] - Nossa casa não é muito afastada daqui; além disso eu trabalho. [SH] - Você é da costa d’África; não sente algumas vezes saudade de sua terra? [E] - Não: isto aqui é melhor; não tinha barba quando vim para cá; habitueime com a vida que passo aqui. [SH] - Mas aqui você é escravo: não pode jamais fazer o que quer. [E] - Isto é desagradável, é verdade; mas o meu senhor é bom, me da bastante de comer: ainda não me bateu seis vezes desde que me comprou, e me deixa tratar da minha roça. Trabalho para mim aos domingos; planto milho e mandubis (arachis), e com isso arranjo algum dinheiro. [SH] - É casado? [E] - Não: mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica assim, sempre só, o coração não vive satisfeito. Meu senhor me ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero mais: as crioulas desprezam os negros da costa. Vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua. (SAINT HILAIRE, 1938, p.100 apud CUNHA, 2009, 84)

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Primeiro livro de casamento de escravos da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Para mais informações sobre Taquari e casamentos de escravos ver: BERUTE, G. S. . E logo lhes dei as bênçãos matrimoniais: arranjos matrimoniais e sociabilidade entre escravos, livres e forros (Freguesia de São José do Taquari/RS, segunda metade do século XVIII). In: 6º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2013, Florianópolis. Anais eletrônicos do VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2013. v. 1. p. 1-16. 11 Informações sobre os irmãos Inácio Teixeira retiradas de: Planejamento Urbano e os Planos Diretores de Lajeado (RS). Revista Geográfica (Londrina), maio/ago. 2011v. 20, n. 2, p. 165-188. 12 APERS. Fundo 004: comarca de Porto Alegre. Inventário post mortem de José Inácio Teixeira. Ano: 1842 – Processo nº: 157. 13 Para mais informações sobre estratégias, fugas, quilombos e revoltas ver: REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo (28): 14 – 39, Dezembro/ Fevereiro 95/96. 10

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O escravo mineiro que Saint Hilaire conversou no ano de 1810 lhe contou sobre o desprezo que as crioulas tinham com “negros da costa”, em geral, é raro encontrarmos crioulos casando com africanos. Nascer, mesmo que na condição de escravo, podendo obter laços desde o batizado, conhecer as redondezas e mesmo ter grande conhecimento da língua e dos arranjos locais coloca os crioulos em um patamar acima dos africanos recém-chegados naquela sociedade. A hierarquia da senzala e o possível contato privilegiado do crioulo nascido próximo ao senhor, conhecendo as maneiras de tirar proveito deste contato, promove uma relação com o mundo livre maior, uma possível ascensão local, social e até a busca pela liberdade. Há uma série de informações neste diálogo que podem ser discutidas, como por exemplo, dizer que “seu senhor é bom” e que a escravidão não é tão dura, já que pode ter uma roça própria e vender alguns gêneros que lhe possibilitaram arranjar algum dinheiro. Mas o que quero chamar atenção neste diálogo é para a visível satisfação do escravo que em breve se casaria, não mais com uma crioula, mas com alguém da sua terra, que falava sua língua e que provavelmente poderia compartilhas de lembranças, costumes e sentimentos comuns. Isto possivelmente atenuaria o peso da escravidão. Além disto, coloca em evidência um diálogo entre senhor e cativo. Em geral, dos indivíduos que possuem designação de cor existe o padrão: negros e pretos naturais de portos africanos. Nem sempre há as duas informações, em alguns casos somente a naturalidade ou a cor, o que nos permite pensar sobre os critérios usados na época pelos senhores e pelos párocos para registrar determinadas informações. Ou seja, se um indivíduo é designado como preto ou negro, pressupõem-se que seja natural da África. Não podemos inferir nestas informações, mas são hipóteses importantes para esta análise. Pardos em geral quando apresentam naturalidade são nascidos no Brasil, crioulos nem sempre tem sua naturalidade designada, mas significam ter nascido em território de domínio português. CASAR NOVAMENTE Temos 13 viúvos(as) que contraíram novo matrimônio, entre eles havia 11 mulheres e 2 homens. Conseguimos identificar 5 casos em que há registro do primeiro casamento. No entanto, irei destacar apenas algumas particularidades que podem nos ajudar a compreender melhor a escolha do parceiro. A parda Helena, escrava de Francisco Antônio da Silveira, contraiu seu primeiro matrimônio 14 no dia 20 de janeiro de 1788 com o preto Antônio de nação Benguela, ela natural de Viamão. Helena, 27 anos depois se casou com Apolinário 15, crioulo, e assim como seu antigo parceiro eram escravos do mesmo senhor Francisco, que oficializou três matrimônios entre seus escravos, e dois foram então da dita Helena. Qual seria a importância para a escrava, já com certa idade, poder ter acesso a um segundo matrimônio? Não foi identificado as cartas de liberdade de Helena nem Apolinário, no entanto, nenhum inventários de Francisco Antônio da Silveira 16 fazem referência aos ditos escravos. Helena antes era casada com um preto de nação africana, ela crioula por último se casa com “um igual”. Antero Gonçalves dos Santos 17 era natural de Candelária, Rio de Janeiro, através dos registros não identificamos se Antero é livre ou forro, mas sabemos que se casou duas vezes com escravas. Em 1796 contraiu matrimônio com Quitéria Maria 18 sem designação de cor e naturalidade, escrava de Joana de Camargo, já em 1809 sua nova companheira era a crioula Antônia da Silva 19, escrava de João Garcia. Não identificamos outros registros que façam menção aos nubentes. Nos dois casos Antero, natural de outra província casou-se com escravas, esta relação aparentemente subalterna pode evidenciar um 14

1º Livro de Casamento de Escravos Nossa Senhora Madre de Deus, fl. 208v. 1º Livro de Casamento de Escravos Nossa Senhora Madre de Deus, fl. 250v. 16 1º Livro de Inventários: APERS “O escravo deixado como herança”. Ano: 1832 – Processo nº: 438; 2º Livro de Inventários: APERS “O escravo deixado como herança”. Ano: 1842 – Processo n°: 244; Ano 1864 – Processo n°: 458; 3º Livro de Inventários: APERS “O escravo deixado como herança”. Ano: 1833 – Processo n°: 127 17 Este caso foi analisado pela Profª Drª Ana Silvia Volpi Scott em sua apresentação na ANPUH 2015: “Casamentos entre desiguais no Brasil Meridional (1772-1840)”, em simpósio temático coordenado por ela: “Entre a curva e o caso: velhos e novos desafios para a História da Família”. 18 1º Livro de Casamento de Escravos Nossa Senhora Madre de Deus, fl. 218. 19 1º Livro de Casamento de Escravos Nossa Senhora Madre de Deus, fl. 241. 15

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caráter de prestígios destas escravas, mesmo que livre ou forro, para Antero casar com estas escravizadas era um meio de ser inserido na comunidade que o desconhecia, mas poderia conhecer, por exemplo, os senhores de suas esposas. Entre os escravos de André Alves Pereira Viana identificamos 4 matrimônios, além do casamento de um dos seus cativos com uma escrava de José Alves Pereira Viana, provavelmente André e José eram irmãos e tinham suas propriedades próximas o que poderia gerar menos problemas caso houvesse o nascimento de uma criança escrava. Dos 4 matrimônios entre cativos de André, 2 foram da escrava Maria, preta da Costa. Maria em seu primeiro casamento se uniu com Joaquim 20, preto, da Costa, no segundo com Mateus 21, sem informações sobre cor ou naturalidade. No inventário 22 de André Alves Pereira Viana (1834) foram arrolados 17 escravos, 9 homens e 8 mulheres, dentre eles um Mateus descrito como “de nação”. Podemos pensar que, talvez Maria fosse uma escrava de prestígio para o senhor André, uma vez que de seus tantos escravos, ela pôde contrair dois matrimônios, mesmo que anos antes do arrolamento da propriedade de André, isto nos pode fazer pensar algumas possibilidades. CONCLUSÃO Estas trajetórias citadas nas últimas páginas fazem parte de um exercício inicial mais qualitativo sobre os registros de casamento. Trabalhamos com fontes que não foram pensadas para o “historiador do futuro”, nosso desafio é tentar compreender as dinâmicas sociais de um tempo passado. A família escrava tem sido foco de muitos historiadores, não conseguimos traçar padrões de comportamento, principalmente porque estudamos indivíduos que, acima do peso da escravidão, tem vontades e sentimentos, para os quais desenvolvem constantemente estratégias que possibilitaram ascensão rumo a liberdade ou para um cativeiro “menos duro”. Embora a população cativa tivesse percentual similar aos livres segundo o censo de 1814 23, estes tiveram um acesso muito mais limitado ao casamento: uma média de 4 ao ano para os cativos e de 31 para os livres, no mesmo período de 1772 a 1822. Outros dados importantes dizem respeito a sazonalidade, os períodos de quaresma e advento, tempos em que se evitavam o matrimônio tiveram reflexo não apenas para livres mas para os escravos também, visto que nos 50 anos analisados há apenas 3 casamentos no mês de março e nenhum no mês de dezembro. Em relação as naturalidades observamos que a maioria dos cativos era proveniente da região central-atlântica africana, como indicam os próprios estudos sobre tráfico negreiro do porto do Rio de Janeiro para o Rio Grande de São Pedro. REFERÊNCIAS BASSANEZI, Maria Silva. Os eventos vitais na reconstituição da história. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. BERUTE, G. S. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825. Porto Alegre: PPGHistória/UFRGS, 2006. [Dissertação de mestrado]. BERUTE, G. S. E logo lhes dei as bênçãos matrimoniais: arranjos matrimoniais e sociabilidade entre escravos, livres e forros (Freguesia de São José do Taquari/RS, segunda metade do século XVIII). In: Anais eletrônicos do VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Florianópolis: UFSC, 2013, p. 1-16. Disponível em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos.6/gabrielberute.pdf

20

1º Livro de Casamento de Escravos Nossa Senhora Madre de Deus, fl. 206. 1º Livro de Casamento de Escravos Nossa Senhora Madre de Deus, fl. 229. 22 1º Livro de Inventários: APERS “O escravo deixado como herança”. Ano: 1834 – Processo nº: 1151 23 Segundo o censo de 1814 a Freguesia de Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre tinha 6.111 habitantes, dos quais 2.746 eram livres e brancos de ambos os sexos e 2.312 eram homens e mulheres escravizados, portanto cerca de 38% da população era escrava: FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS: 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981, p. 50 21

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CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T. da. Sujeitos no imaginário acadêmico – escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009. CUNHA, Maísa Faleiro. Demografia e família escrava. Franca – SP, século XIX. Campinas. SP: PPG: Demografia/ UNICAMP, 2009. [Tese de doutorado]. FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS: 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981. FREITAS, Denize Terezinha Leal. O casamento na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre: a população livre e suas relações matrimoniais de 1772-1835. São Leopoldo: PPG-História/Unisinos, 2011. [Dissertação de mestrado]. GOMES, Luciano Costa. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772 – 1802. Porto Alegre: PPGHistória/UFRGS, 2012. [Dissertação de mestrado]. MATTOS, H. Laços de Família e Direitos no Final da Escravidão. In: Luiz Felipe de Alencastro. (Org.). História da Vida Privada no Brasil Império: A Corte e a Modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1997, v. , p. 337-384. MOREIRA, P. R. S. Etnicidade e Liberdade: As nações africanas e suas práticas de alforria. Ciências e Letras (Porto Alegre), v. 44, p. 167-186, 2008. NADALIN, Sergio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas. Associação Brasileira de Estudos Populacionais-ABEP, 2004. NEUMANN, Eduardo & KÜHN, Fábio. Resgate de fontes paroquiais – Porto Alegre e Viamão, século XVIII. Porto Alegre, 2006. OLIVEIRA, Renata S. Cativos julgados: experiências sociais escravas de autonomia, sobrevivência e liberdade em cachoeira do sul na segunda metade do século XIX. Santa Maria: PPG – História/UFSM, 2013, p. 27-52. [Dissertação de mestrado]. ROCHA, Cristiany M. A morte do senhor e o destino das famílias escravas nas partilhas. Campinas, século XIX. Revista Brasileira de História, v. 26, p. 175-192, 2006. SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Uma alternativa metodológica para o cruzamento semiautomático de fontes nominativas: o NACAOB como opção para o caso luso-brasileiro. In: BOTELHO, Tarcísio. R.; VAN LEEUWEN, Marco. H. D. (Orgs.). História social: perspectivas metodológicas. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2012, p. 83-108. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. VALENTIN, Agnaldo ; MOTTA, José Flávio . O primeiro sacramento - batismos de escravos em Iguape (1811-1850). Revista de História (USP), p. 141-174, 2014. VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, 2007.

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NOMES PESSOAIS E HISTÓRIA DA FAMÍLIA: QUESTÕES METODOLÓGICAS E POSSIBILIDADES DE PESQUISA Nathan Camilo 1 A partir das reflexões advindas de pesquisa de mestrado em andamento, esta comunicação propõe-se a discutir e a problematizar questões metodológicas e possibilidades de pesquisa referentes aos nomes pessoais no âmbito da História da Família. Enfatizaremos aqui as práticas de nominação – compreendidas como os processos de atribuição, incorporação, variação e transmissão de prenomes, segundos nomes e sobrenomes ou nomes de família 2 – adotadas pela população luso-brasileira livre e forra entre o final do século XVIII e início do século XIX. O tempo e espaço de análise neste caso específico são circunscritos à freguesia Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre entre os anos de 1772 e 1835. A tendência atual do debate realizado dentro da História da População e da História da Família é a busca por um diálogo entre as abordagens metodológicas quantitativas e as qualitativas. Tradicionalmente, as pesquisas na área foram alicerçadas em bases quantitativas e seriais. Nos últimos anos, porém, houve um grande aumento no número de investigações que fizeram uso de análise de trajetórias individuais e familiares. Contexto que já foi abordado por uma série de autores e que não será detalhado aqui. De todos os modos, os estudos da família em perspectiva histórica, tanto quantitativos quanto qualitativos, costumam empregar-se de fontes nominativas, como registros paroquiais, testamentos e inventários, cartas de alforria, entre outras. Séries documentais que na maioria das vezes são cruzadas a fim de viabilizar a reconstituição do devir histórico. Segundo Carlo Ginzburg (1989), o fio condutor do pesquisador nos diferentes documentos é o nome, elemento que distingue o indivíduo dos demais em uma sociedade. Procedimento intitulado pelo historiador italiano como método onomástico. No âmbito da Demografia Histórica, tal reflexão a respeito da importância do nome para correta identificação dos sujeitos investigados foi abordada por vários demógrafos-historiadores, como Norberta Amorim (1983, p. 213): Por exigências de um estudo demográfico, quando nos debruçamos sobre os livros de registos de baptizados, casamentos e óbitos, tendo em vista a reconstituição de famílias, embora perseguindo os números, trabalhamos obrigatoriamente sobre nomes. Nenhum estudo de comportamentos demográficos terá validade, se não conseguirmos identificar de forma correcta cada indivíduo nos vários actos registados de sua vida [...]. Tal identificação parte basicamente do nome [...]. A aplicação do método onomástico em estudos relativos às populações e famílias luso-brasileiras anteriores ao século XX, porém, revelou-se um desafio ao se deparar com certas especificidades das práticas de nominação vigentes à época. Práticas que, como apresentaremos, também eram correntes na Madre de Deus de Porto Alegre à época. Com efeito, Amorim (1983, p. 213) alertou que “a atribuição de um nome a um recém-nascido nos séculos que nos precederam não era de molde a facilitar o trabalho ao historiador-demógrafo dos nossos dias”. No ato de batismo, o indivíduo recebia apenas o prenome. Apenas em casos pouco recorrentes o neófito recebia um segundo nome ou – ainda mais raro – nome de família. Em Porto Alegre, somente 30 meninas e 17 meninos foram registrados com mais nomes além do prenome no 1

Mestrando em História – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Este trabalho está sendo realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. Parte integrante do projeto de mestrado denominado “É preferível bom nome a muitas riquezas”: dinâmica das práticas de nominação no extremo sul do Brasil entre o final do século XVIII e o início do século XIX. 2 Utilizaremos aqui o termo “prenome” para o primeiro nome próprio do indivíduo, normalmente atribuído no batismo. “Segundo nome” será utilizado para referir-se ao segundo nome próprio e aos nomes de expressão religiosa. Nomes indicativos de linhagem familiar serão tratados por “sobrenome” ou “nome de família”.

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batismo. Considerando um total de 6.336 meninas e 6.508 meninos batizados no período, os casos anteriormente referidos correspondem a menos de 0,1% do total. Segundos nomes e/ou sobrenomes só costumavam ser registrados após o casamento ou depois que o indivíduo atingisse independência econômica (AMORIM, 1983). A análise dos nomes dos falecidos na Madre de Deus em relação às idades apontadas nos assentos vai ao encontro do afirmado pela demógrafa-historiadora portuguesa. Constatou-se que, para ambos os sexos, até os sete anos de idade, salvo raras exceções, os indivíduos ainda não agregavam mais nomes aos de batismo. Entre os oito e os quatorze anos, a adoção de nomes além do prenome era minoritária, enquanto que a partir dos quinze anos a incorporação de segundos nomes e/ou sobrenomes era majoritária, especialmente no sexo masculino (ver tabela 1 3).

Tabela 1 – Percentual de falecidos livres e forros em Porto Alegre com nome(s) além do prenome por sexo e faixa etária (1772-1835)

Feminino Com nome(s) além do prenome Faixa etária do óbito

NA

%

Até 7 (ou inocente)

29

1,4

De 8 a 14

32

De 15 a 19

Masculino Total

Com nome(s) além do prenome

Total

NA

%

NA

2.040

31

1,3

2.445

23,7

135

33

21,9

151

81

65,9

123

151

84,4

179

De 20 a 29

231

88,2

262

533

94,2

566

De 30 a 39

222

84,7

262

461

92,2

500

De 40 a 49

205

87,6

234

402

90,7

443

De 50 a 59

190

89,6

212

352

90,3

390

De 60 a 69

137

84,0

163

272

91,3

298

70 ou mais

209

92,9

225

325

88,1

369

Fonte: NACAOB. Madre de Deus de Porto Alegre. Extração 22 abr. 2015.

Esse não é o único problema apontado pelos estudiosos da área. Ana Silvia Volpi Scott e Dario Scott (2013) assinalaram outras questões importantes a serem consideradas. Em primeiro lugar, a falta de regras definidas para transmissão de nomes de família. Ao contrário da maior parte dos países europeus, que, segundo Robert Rowland (2008), consolidaram por volta do século XVII o modelo de transmissão de nome de família pela linha paterna, Portugal e suas colônias não possuíam regras específicas para transmissão de sobrenomes antes do século XIX, conforme apontado por Nuno Gonçalo Monteiro (2008).

3

Não estão incluídos os óbitos sem idade informada no ato (187 do sexo feminino e 370 do sexo masculino).

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Tabela 2 – Origem do(s) segundo(s) nome(s) e/ou sobrenome(s) (%) dos noivos livres ou forros que se casaram na Matriz de Porto Alegre (1772-1835) Feminino Origem do(s) nome(s) Um nome

NA

%

Masculino NA

%

679

23,5

548

18,9

Pai

73

2,5

252

8,7

Mãe

161

5,6

18

0,6

Outra

445

15,4

278

9,6

2.124

73,4

2.242

77,3

Só pai

97

3,4

804

27,7

Só mãe

308

10,7

13

0,4

Pai e mãe

193

6,7

121

4,2

Pai e outra

324

11,2

660

22,8

Mãe e outra

410

14,2

70

2,4

28

1,0

14

0,5

Só outra

764

26,4

560

19,3

Subtotal

2.803

96,9

2.790

96,2

89

3,1

109

3,8

2.892

100

2.899

100

Dois ou mais nomes

Pai, mãe e outra

Só prenome TOTAL

Fonte: NACAOB. Madre de Deus de Porto Alegre. Extração 22 abr. 2015.

De acordo com a tabela 2, montada a partir dos assentos de matrimônio, Porto Alegre não destoava do restante do contexto. A despeito de ser notada uma maior tendência dos homens a adotarem os segundos nomes e/ou sobrenomes vindos do pai, e das mulheres a adotarem os da mãe, essas não eram regras gerais seguidas por todos os sujeitos. Isso quando os sobrenomes eram transmitidos, visto que era comum a ausência de nomes de família em prol de segundos nomes, em especial no tocante à população feminina e à população socialmente menos privilegiada. Entretanto, era comum que os segundos nomes fossem transmitidos para os descendentes, às vezes convertendo-se em nome de família. De qualquer forma, ainda que a maioria das noivas tivessem segundos nomes e/ou sobrenomes oriundos de pai e/ou mãe, o percentual era inferior aos noivos (64,8% e 74,8% respectivamente). Também eram corriqueiros alteração, inversão, adição e/ou supressão de algum dos nomes entre um registro e outro. A respeito dos prenomes, as escolhas eram concentradas em poucas opções do estoque disponível. Em Porto Alegre, apesar de terem sido utilizadas 368 opções masculinas, 52,7% dos meninos batizados em Porto Alegre recebiam o prenome José, João, Manuel, Antônio ou Francisco. Quanto às meninas, mesmo com 375 opções à disposição, 38,4% foram prenominadas Maria, Ana, Francisca, Joaquina ou Rita.

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Tabela 3 – Origem dos prenomes (%) dos nascidos livres ou forros batizados na Matriz de Porto Alegre por sexo (1772-1835)

Feminino Origem do prenome

Masculino

NA

%

NA

%

1.068

16,9

1.345

20,7

458

7,2

577

8,9

1.049

16,6

1.264

19,4

408

6,4

373

5,7

Padrinho/madrinha

1.854

29,3

2.508

38,5

Só padrinho/Só madrinha

1.182

18,7

1.648

25,3

Pais+avós

385

6,1

520

8,0

Só pais+avós

194

3,1

279

4,3

Pais+padrinhos

416

6,6

489

7,5

Só pais+padrinhos

225

3,6

248

3,8

Avós+padrinhos

447

7,1

612

9,4

Só avós+padrinhos

256

4,0

371

5,7

Pais+avós+padrinhos

191

3,0

241

3,7

Subtotal

2.914

46,0

3.737

57,4

Outras origens

3.422

54,0

2.771

42,6

Total Geral

6.336

100

6.508

100

Pai/mãe Só pai/só mãe Avô/avó Só avô/só avó

Fonte: NACAOB. Madre de Deus de Porto Alegre. Extração 22 abr. 2015. A prática da concentração da escolha em poucas opções ampliava a possibilidade de os neófitos receberem o mesmo prenome, ou segundo nome, dos pais, avós e/ou padrinhos. Considerando estes casos, conforme tabela 3, mais da metade – quase 52% – das crianças batizadas na Madre de Deus tinha atribuído como prenome o antenome ou o segundo nome dos pais, avós e/ou padrinhos, que podia ser também flexionado em gênero. Era mais comum receber prenome oriundo dos padrinhos do que dos pais ou avós. As práticas acima mencionadas favoreciam a existência de um alto índice de homônimos nas paróquias luso-brasileiras, o que dificulta a correta identificação dos indivíduos nos diversos documentos. Especialmente em registros que possuem referências complementares ausentes ou imprecisas, como os padrinhos no batismo. Como exemplo, nos batismos em Porto Alegre foram arrolados 63 registros cuja madrinha se chama Ana Maria e sem nenhuma outra referência que possa auxiliar na identificação das mesmas. Havia também os homônimos perfeitos dentro da mesma família – filhos que tinham o nome completo idêntico ao pai ou, menos comum, filhas com o nome completo idêntico ao da mãe – questão problematizada por Martha Hameister (2006). Entre os noivos da Madre de Deus, 146 deles possuíam

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o mesmo nome completo de seu pai 4. Costume bem menos difundido entre as mulheres, mas ainda assim existente: 17 noivas homônimas perfeitas de suas mães 5. Se por um lado tais práticas nominativas impõem a necessidade de cuidados metodológicos ao pesquisador que se propõe a fazer uso do nome como método para identificação dos sujeitos na ação histórica, por outro lado possibilitam novos horizontes de investigação no âmbito da História da População e da História da Família referentes a localidades luso-brasileiras. Possibilidades cuja exploração é ainda incipiente, mas que já foram abordadas em alguns estudos na área 6. A existência de elementos comuns nas práticas nominativas acima apresentadas, conforme explanou Robert Rowland (2008, p. 18), é um indicativo de que os nomes possuem um significado para a sociedade: Se os nomes próprios fossem, de facto, marcas sem significado, seria de esperar que a sua distribuição no interior de uma determinada população fosse aleatória e que a sua variedade fosse suficiente para eliminar, no interior de um mesmo espaço de interacção ou universo de interconhecimento, os riscos de confusão entre pessoas. [...] a existência de uma distribuição regular dos nomes próprios em qualquer população, ou a persistência dessa distribuição ao longo do tempo, constitui um indício seguro do carácter socialmente significativo das práticas de nomeação. Ademais, conforme alertou Rodrigo Weimer (2013), o nome possui um papel simbólico e uma série de significados em seu uso em um contexto social, bem como classifica seu portador. Logo, seguindo essa linha de raciocínio, o nome passa a ser visto não apenas como uma ferramenta metodológica, mas também como um elemento que revela comportamentos sociais e familiares de um tempo e espaço específicos: Os nomes não são apenas rastros a serem perseguidos. Eles não são neutros: traduzem relações de poder e hierarquias. [...] Expressam formas de classificação social e disposições identitárias individuais, familiares ou grupais frente aos demais. [...] Os nomes trazem impressos em si tradições, memórias e experiências vividas. Evidenciam formas de relacionar-se com o passado. A ele rendem homenagem e também projetam o que se espera do devir (WEIMER, 2013, p. 329-330). Em trabalho clássico, Claude Lévi-Strauss (2012, p. 201) já assinalara que o papel do nome transpõe a mera identificação dos indivíduos: “Os nomes próprios fazem parte integrante de sistemas tratados por nós como códigos: modos de fixar significações, transpondo-as para os termos de outras significações”. Em outras palavras, o nome tem a função de significar. Significados que, mediante a relação do sujeito com os demais indivíduos, estabelecem a identidade social da pessoa nominada (ROWLAND, 2008). Com a interação dos significados atribuídos ao nome, manifesta-se a terceira função apontada por Lévi-Strauss (2012): classificar. Esta qualifica ou desqualifica os indivíduos devido ao seu nome. Pode ser, de acordo com João de Pina Cabral (2008), mediante a imposição de um nome a outrem, a interdição a nomes não aceitos legal ou socialmente ou a discriminação a formas de nominação não-oficiais. A classificação também é exercida ao se considerar que, conforme Hameister (2006), os atributos de um

4

Três destes diferenciavam-se de seus pais mediante a adição da partícula “Júnior” ao nome. Em seu estudo de uma trajetória familiar em Rio Grande no final do século XVIII, Rachel Marques (2012) chama a atenção por este ser um costume comum naquela família. 6 Entre os diversos trabalhos que abordaram o tema como assunto principal ou secundário, podemos citar, entre outros, o pioneiro de Maria Luiza Marcilio (1972), bem como os de Norberta Amorim (1983), Martha Hameister (2003; 2006), Sérgio Luiz Ferreira (2006), Robert Rowland (2008), Nuno Gonçalo Monteiro (2008), João de Pina Cabral (2008), José Mercer e Sérgio Nadalin (2008), Rachel Marques (2012) e Rodrigo Weimer (2013), este último tendo utilizado também de fontes orais. 5

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sujeito podem ser incorporados ao seu nome e, legando-se este a outrem, os atributos também são transmitidos. Partindo dessa perspectiva, chega-se à noção, formulada por Hameister (2006), do nome como um patrimônio imaterial familiar passível de transmissão. Nesta, também podiam ser legados os atributos do portador original vinculados ao nome. Em outras palavras, dava-se e recebia-se uma herança imaterial, no sentido trabalhado por Giovanni Levi (2000). O processo da análise quantitativa e qualitativa dos processos de atribuição, incorporação, variação e transmissão de prenomes, segundos nomes e sobrenomes da população de Porto Alegre no período acima mencionado apontou possibilidades para a análise das práticas de nominação a partir de fontes paroquiais. Examinemos algumas delas tendo como estudo de caso a análise da trajetória da família de Ângela Francisca Coelho, parda forra, mãe de cinco filhos naturais. Reconstituição de trajetórias de sujeitos pertencentes aos estratos sociais mais privilegiados, consideradas as anteriormente mencionadas características da onomástica luso-brasileira, é uma proposta relativamente exequível. Para os membros da elite, via de regra, a documentação disponível é mais abundante e o acesso a dados, maior. Quanto a indivíduos dos setores subalternos, sobre os quais geralmente os dados possuem mais lacunas e os nomes possuem constituição mais irregular, a alternativa proposta por Ginzburg (1989) é a escolha de casos relevantes e significativos. Ou seja, o excepcionalnormal entendido como objetos de investigação extraordinários. As trajetórias de Ângela Francisca Coelho e seus descendentes tiveram a sua reconstituição viabilizada devido a informações contidas nos registros paroquiais, nas quais se observou um detalhamento nem sempre observado entre indivíduos de condição social semelhante. Os indícios apontam para um processo de ascensão social de alguns de seus membros, ou pelo menos de relativa estabilidade – Ângela passou possivelmente a maior parte de sua vida em Porto Alegre e deixou testamento ao falecer. Seu registro de batismo não foi localizado; entretanto, sabe-se que era filha de Tomásia Cardoso, escrava e amancebada do capitão-mor Francisco Coelho Osório. Ângela foi alforriada com idade entre três e quatro anos. Segundo a escritura de alforria, Francisco alegou ter certeza de que ela era sua filha com Tomásia – paternidade não mencionada em registro paroquial algum. Os assentos posteriores revelam que Ângela adotou nomes oriundos de seu pai e ex-proprietário. O prenome foi incorporado como segundo nome – mais especificamente como patronímico – juntamente com um dos nomes de família. Weimer (2013) apontou que era corriqueiro o uso dos sobrenomes dos senhores por parte dos ex-escravos, visto que o vínculo simbólico com a casa-grande poderia converterse em vantagens identitárias. Aqui, além disso, podemos levar em consideração a possibilidade de consideração informal de um vínculo familiar nunca oficialmente reconhecido. José Mercer e Sérgio Nadalin (2008), ao discorrerem sobre prenomes, afirmam que a escolha de uma opção usual denota a busca por pertencimento e adesão à identidade do grupo, enquanto que eleger um nome “exótico” evidencia afastamento do grupo e busca de novas identidades. Afirmação que, guardadas as devidas proporções, é também aplicável para segundos nomes e sobrenomes. No caso de Ângela, os prenomes das três filhas – Emerenciana, Ana e Angélica – não tiveram sua origem localizada, ainda que seja improvável que a escolha tenha sido feita ao acaso. Como eram prenomes já existentes no estoque nominal da Madre de Deus, é plausível que tenham sido escolhidos como uma homenagem ou uma estratégia de aproximação com alguma pessoa importante ou querida pela família. O segundo nome “Francisca” foi adotado pelas três filhas junto com o sobrenome “do Vale”, o qual não conseguimos localizar a origem. Podemos conjecturar que o segundo nome teria a função de fazer a ligação identitária com a memória do progenitor de Ângela. Ao mesmo tempo, provavelmente motivado por um processo de mobilidade social ascendente, o nome de família Coelho foi descartado para sua descendência em prol de outro, num possível processo de criação de uma nova identidade familiar.

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O nome “Francisca do Vale” também foi adotado pela filha natural de Emerenciana, Luísa Francisca do Vale. Nome adotado até o óbito de seu primeiro filho homem; a partir deste registro, ela passou a usar o nome de família de seu cônjuge, passando a ser registrada como Luísa Francisca Cordeiro. Após o nascimento de sua terceira filha, Luísa passou a ser designada “filha legítima” e incorporou o atributo de “dona”. No devir desse processo de ascensão social, o nome “Francisca do Vale” seguramente passou a ganhar relativo prestígio. Entretanto, deixou de ser adotado com a oportunidade de se utilizar um nome considerado mais importante, possível motivação que teria levado Luísa a adotar o nome de família do marido. Para os filhos homens, por sua vez, adotou-se uma estratégia distinta. O primogênito José, o qual não foi localizado em nenhum outro registro, recebeu nome originário de seu padrinho, Antônio José Oliveira. O mesmo ocorreu com Timóteo, apadrinhado pelo capitão Timóteo José Carvalho. Na fase adulta, passou a se chamar Timóteo José Rodrigues. No registro de óbito de um de seus filhos, o nome consta como Timóteo José Rodrigues Carvalho, fato que não se repetiu nos assentos posteriores. Hameister (2003) afirma que era comum padrinhos que ainda não tinham um nome consolidado, mas pertencentes a famílias socialmente privilegiadas, legarem seus nomes como estratégia para ampliar seu prestígio na sociedade local. A autora também defende que o nome compartilhado entre padrinho e afilhado estreitava as relações estabelecidas no compadrio. Laços que podem ter sido ainda mais fortalecidos com o uso de segundo nome também idêntico e, posteriormente, também o sobrenome em comum. Neste caso, cabe conjecturar se houve um posterior estremecimento de relações, visto que o nome de família do padrinho não foi mais usado pelo afilhado. As primeiras explorações dos indícios encontrados no caso acima analisado apontam para uma relativa diversidade de possibilidades para o uso estratégico dos nomes nas populações luso-brasileiras do passado, mesmo para indivíduos e famílias não pertencentes às elites. Possibilidades disponíveis dentro dos limites da noção de racionalidade limitada, no sentido abordado por Levi (2000), e da estratificação de uma sociedade hierarquizada. À guisa de conclusão, reiteramos a importância dos nomes pessoais para os estudos da História da População e História da Família. Mesmo quando a análise não aborda a constituição e usos dos prenomes, segundos nomes e sobrenomes, o simples fato de se valer de fontes nominativas obriga o investigador a seguir os sujeitos pesquisados por seus nomes. Compreender como se davam as práticas de nominação em um determinado tempo e espaço, bem como suas particularidades e as dificuldades daí decorrentes, auxilia no processo de correta identificação dos indivíduos. Indo além das questões metodológicas referentes à identificação, o nome também é um elemento portador de significados, tanto individuais quanto familiares e sociais, que o convertem em elemento de classificação e distinção. Logo, para o caso das freguesias luso-brasileiras do final do século XVIII e início do século XIX, em uma herança imaterial com distintas formas de uso estratégico, dentro das possibilidades oferecidas em uma sociedade de desiguais. Entre elas, como se pôde ver na trajetória aqui pesquisada, a reafirmação do pertencimento a um grupo ou a busca de novas identidades, a consolidação de um processo de mobilidade social e o reforço das relações de compadrio. REFERÊNCIAS AMORIM, Norberta. Identificação de pessoas em duas paróquias do Norte de Portugal (1580-1820). Boletim de Trabalhos Históricos, Guimarães, v. XXXIV, p. 213-279, 1983. FERREIRA, Sérgio Luiz. “Nós não somos de origem”: populares de ascendência açoriana e africana numa freguesia do sul do Brasil (1780-1960). Tese (Doutorado em História) – Programa de PósGraduação em História. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. p. 169-178.

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HAMEISTER, Martha Daisson. Na pia batismal: estratégias de interação, inserção e exclusão social entre os migrantes açorianos e a população estabelecida na vila de Rio Grande, através do estudo das relações de compadrio e parentescos fictícios (1738-1763). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 5, 2003, Caxambu. Anais eletrônicos... Campinas, ABPHE, 2003. Disponível em: http://www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/Abphe_2003_91.pdf. Acesso em: 15 maio 2010. ______. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 12. ed. Campinas: Papirus, 2012. MARCÍLIO, Maria Luiza. Variations des noms et des prénoms au Brésil. Annales de Démographie Historique, [s.l], p. 345-353, 1972. MARQUES, Rachel dos Santos. Por cima da carne seca: hierarquia e estratégias sociais no Rio Grande do Sul (c. 1750-1820). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. MERCER, José Luiz da Veiga; NADALIN, Sérgio Odilon. Um patrimônio étnico: os prenomes de batismo. Topoi, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 12-21, jul.-dez. 2008. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os nomes de família em Portugal: uma breve perspectiva histórica. Etnográfica, Lisboa, v. 12, n. 1, p. 45-58, maio 2008. PINA CABRAL, João de. Recorrências antroponímicas lusófonas. Etnográfica, Lisboa, v. 12, n. 1, p. 237-262, maio 2008. ROWLAND, Robert. Práticas de nomeação em Portugal durante a Época Moderna: ensaio de aproximação. Etnográfica, Lisboa, v. 12, n. 1, p. 17-43, maio 2008. SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Análise quantitativa de fontes paroquiais e indicadores sociais através de dados coletados para sociedades do Antigo Regime. Mediações, Londrina, v. 18, n. 1, p. 106-124, jan./jul. 2013. WEIMER, Rodrigo de Azevedo. A gente da Felisberta: consciência histórica, história e memória de uma família negra no litoral rio-grandense no pós-emancipação (c. 1847 – tempo presente). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.

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O BACHAREL EM DIREITO NO SÉCULO XIX: FAMÍLIAS, ELITES E POLÍTICA EM PELOTAS Leonardo Poltozi Maia 1 A historiografia brasileira afirma que um diploma de um curso superior no século XIX no Brasil era uma posição privilegiada e almejada diante de um universo de poucos letrados e altíssimo nível de analfabetismo. Além do que, para ter um diploma de curso superior precisava-se integrar um grupo social abastado naquele período, uma elite. Elite esta que ao formar-se em um curso superior acabava por viver, no que José Murilo de Carvalho (1980) descreveu como “uma ilha de letrados num mar de analfabetos”. O diploma servia muitas vezes como uma ponte para a entrada no cenário político no século XIX, diante do sistema burocrático que estava em processo de formação e os bacharéis acabariam por exercer em variados cargos e funções nas suas carreiras. Carvalho (1980) propôs que a formação superior em Direito era de suma importância para exercer um cargo político e, em alguns casos, a influência familiar era suficientemente para levar o jovem bacharel diretamente à Câmara. Porém, uma formação superior em Direito não era um projeto para qualquer família, além do que, nem tudo eram flores nos jardins dos recém-formados, diante de um futuro profissional não próspero. Contudo, o difícil acesso ao diploma servia como uma espécie de elemento unificador da elite, por razões que quase toda elite possuía estudos superiores, majoritariamente de formação jurídica. A formação superior acabara por completar o que chamamos de tripé capital econômico, capital político e capital social intelectual. Não queremos aqui fazer um histórico dos custos para a formação de um bacharel em Direito, mas sim apresentar um esboço do quão difícil era a formação superior, diante dos altos custos que as famílias tinham que arcar para tal aspiração. Para tanto, apresentamos aqui os casos das famílias Barcellos e Jacinto de Mendonça na cidade de Pelotas. Quando revisamos as origens familiares dos bacharéis listados em nosso estudo, apareceram os donos de nomes de grandes famílias de poderes locais como os Barcellos e os Jacinto de Mendonça. As famílias influentes destes bacharéis muitas vezes detinham o capital econômico e/ou capital político com avós e pais, envolvidos nas práticas políticas locais, sendo que estes já tinham as bases eleitorais constituídas, e também estabeleciam casamentos entre elas. Estas famílias constituíam uma elite; charqueadores, fazendeiros, juízes, comerciantes, militares de alta patente; onde os bacharéis, em sua grande maioria, provinham destes grupos familiares já inseridos nas redes de relações sociais e políticas locais: Em grande parte dos casos, os estudantes contavam entre os membros de seus grupos familiares com líderes político-partidários, ou a eles vinculados por laços diversos — parentesco, "amizade", correligionários em uma mesma facção política —, desde nas maiores cidades do Império até nas mais remotas vilas e paróquias dos interiores. (GRIJÓ, 2005, p. 39) O conceito de elite é trabalhado por diversos autores, possuindo certa flexibilidade na sua definição, sendo maleável ora por estudos que contemplem a área econômica ora pela face política ou até mesmo cultural. Este termo pode definir um grupo militar, intelectual, econômico ou qualquer outro grupo social que se destaque em seu meio. Nosso objetivo é buscar uma aproximação particularmente os agentes de atuação local no poder provincial, como vereadores e deputados provinciais, embora não excluiremos os que conseguiram influência fora do poder local, como os sul-rio-grandenses que atingiram o posto de presidente de província. Nossa concepção de elite que trabalhamos é no sentido daquelas pessoas que possuíam um capital econômico para lançarem seus filhos para formação do ensino superior numa Província distante e, que, ao regressarem, acabavam por adquirir o capital político. Sendo assim, o nosso entendimento visa uma aproximação do que Flavio Heinz (1998) conceitua como elite, num sentido que não só elite 1

Mestrando de PPGH da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Bolsista Fapergs/Capes.

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política e\ou econômica pode-se delimitar, mas sim todas as categorias de analise que se sobreponham num cenário. Trabalharemos com a ideia de “capital social intelectual”, capital esse que entendemos que podia ser adquirido através da formação superior. Adquirido o capital social intelectual, a universalidade das ações dos agentes que possuíssem esse status estaria mais próxima de atingir os objetivos daqueles que lhes formaram. A seguir apresentaremos um pouco das famílias de alguns dos nossos personagens, que possuíam o capital econômico e capital político. Porém, com a formação de um filho em um curso superior de Direito, se poderia completar o tripé capital econômico, capital político e capital social intelectual. Para Richard Graham (1997) um desses elementos do tripé era fundamentalmente exercido pelo conjunto familiar: As famílias representavam importante fonte de capital político. Naturalmente, como em outros lugares, elas dedicavam-se a aumentar sua propriedade, e, ao longo de várias gerações sucessivas, famílias bem-sucedidas acumularam recursos significativos. Os vínculos que levavam homens a cargos oficiais e ao domínio local constituíam parte importante desses recursos e, através da política, famílias lutavam para preservá-los, muitas vezes contra outras famílias. (GRAHAM, 1997, p.35). A força familiar era base para o projeto de inserção na carreira política, visto que “[...] os membros da família eram ligados por laço pessoais. A Câmara Municipal incluía sobrinhos, tios, primos e parentes por afinidade” (GRAHAM, 1997. p. 204). As famílias Rodrigues Barcellos e Jacinto de Mendonça foram exemplo desta afirmação. Os bacharéis formados em Direito já tinham em seus pais e tios um cenário pronto para entrada no mundo político. OS RODRIGUES BARCELLOS DR. ISRAEL RODRIGUES BARCELLOS Aos vinte e seis de dezembro, oitocentos e dezessete anos nesta Matriz de São Francisco de Paula de Pelotas, batizei solenemente Israel, branco, nascido a onze de setembro, filho legitimo de Boaventura Rodrigues Barcelos, natural de Viamão e Cecilia Rodrigues da Silva, natural da freguesia de São Pedro do Rio Grande, neto paterno de Antonio Rodrigues Barcellos, natural da Ilha do Pico e de Rosa Perpetua de Jesus, natural da Ilha terceira e materno de Bartholomeu Rodrigues da Silva, natural da Colônia do Sacramento e de Ana Bernarda, natural de Viamão. Foram padrinhos Israel Soares de Paiva e Dona Maria Antonia Gomes. Para constar mandei fazer este assunto que assinei. O vigário Exelentíssimo Franncisco Florênciador Rocha. 2 A certidão de batismo do futuro Dr. Israel Rodrigues Barcellos marca o começo da grande história que esse personagem teria na vida política da cidade de Pelotas e na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul; este que exerceu por vários anos o cargo de Deputado Provincial e também chegou ao cargo de Presidente de Província. O ano de 1814 foi o início do negócio de charqueadas para seu pai Boaventura Rodrigues Barcellos e seus tios Bernardino, Inácio, Cipriano. A família Barcellos fora uma família de políticos. De todos os irmãos, Boaventura Rodrigues Barcellos foi o que acumulou maior patrimônio. “Ao fim da vida, era comendador, havia contraído matrimônio duas vezes e o montante de seu inventário estava 2

MITRA DIOCESANA DE PELOTAS. Livro de batismo nº 1A da Igreja Matriz São Francisco de Paula. fl. 81v.

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avaliado em 182:617$178 réis. Boaventura Rodrigues Barcellos foi proprietário de duas charqueadas lindeiras à margem direito do Arroio Pelotas” (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.53). “Além de charqueador e pecuarista, compôs a Câmara da Vila por pelo menos cinco legislaturas”. (MENEGAT, 2008, p.3). No que tange a seu posicionamento político, “durante a Revolução Farroupilha, mesmo ficando ao lado dos Imperiais socorreu muitos farrapos, como Domingos José de Almeida e o próprio Bento Gonçalves.” (MENEGAT, 2008, p.4). A boa relação com Domingos José de Almeida pode ter sido motivada, devido este ter casado com a sobrinha de Boaventura Rodrigues Barcellos, Bernardina Rodrigues de Lima. Domingos José de Almeida, que em sua volta ao cenário político da Cidade de Pelotas, antes de se lançar candidato a qualquer cargo, optou por defender determinados concorrentes. Assim o faz quando da eleição para Deputado Geral, “defendendo o primo de Bernardina e seu advogado Dr. Israel Rodrigues Barcellos.” (MENEGAT, 2009. p. 165-166) A mãe de Israel, Cecília Rodrigues Barcelos, faleceu em Pelotas em doze de outubro de 1821. “Por ocasião de seu inventário, havia no terreno uma casa de moradia, com cozinha; uma casa de sobrado; um galpão de charquear, todos cobertos de telha, e mais um armazém, uma casa de carretas e uma casa de graxeira. Na charqueada, viviam 127 escravos.” (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.55). O pai de Israel casou pela segunda vez em abril de 1822 em Pelotas com Silvana Eulália de Azevedo e Souza, tendo mais dez filhos. Um desses meios-irmãos, decorrentes do segundo casamento do pai de Israel, também formou-se em Direito na Faculdade de Direito de São Paulo. “Esse meio-irmão era Sebastião Rodrigues Barcellos, nascido em 1837 no Rio de janeiro, falecendo em 1869” (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.79). A vida jurídica e política de Sebastião não foi muito diferente do seu meio-irmão Israel. Sebastião graduou-se em Direito ano de 1861, exerceu entre os anos de 1862 a 1865 o cargo de Promotor Público Pelotas, e no ano de 1865 de Promotor Público Rio Grande 3; bem como seu irmão Israel, também fora Deputado Provincial. Quando o pai de Israel Rodrigues Barcellos acabou falecendo em 1856, em seu inventário mencionou que no terreno da charqueada existia uma casa de sobrado que servia de moradia, uma casa utilizada com graxeira, com cilindros, três tinas, uma das quais servia para derreter o sebo, e duas para ossos, duas caldeiras grandes para apurar a graxa e todos os demais utensílios da mesma graxeira; dois galpões de charquear: um com tafona e dois armazéns para sal; outro maior, que compreendia senzala, armazém, cocheira, estrebaria e diversos quartos; uma casa grande destinada a salgar couros, e, uma mangueira com seu brete e cancha, além de uma ferraria e uma estrebaria (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.55). Israel Rodrigues Barcellos casou em dezoito de Janeiro de 1840 com Maria Josefa da Silva Freire, nascida em cinco de março de 1815 e natural de Porto Alegre. Josefa faleceu em seis de outubro de 1890 em Porto Alegre. Israel teve seis filhos: Boaventura, Rafaela, Eulália, Israel, Maria Josefa, Cecilia e Rita Paulina (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.77). Cabe constar a relação de parentesco da esposa de Israel, a qual era sobrinha de Rafael Pinto Bandeira, Rafael Pinto Bandeira, herói das Guerras do Sul, Governador da Praça de Rio Grande do Sul, Brigadeiro Comandante da Legião Ligeira de Rio Grande do Sul em 1789. (PORTO ALEGRE, 1917, p.7) Para Sérgio da Costa Franco (2000), verifica-se uma quase unanimidade na orientação política dos parlamentares, apenas quebrada por eventuais contestações do deputado Israel Rodrigues Barcelos, nessa época declaradamente liberal. Mais adiante, o mesmo Israel Rodrigues Barcelos se converteria num líder do Partido Conservador. (FRANCO, 2004, p.21) Na legislatura de 1848/1849, Israel Rodrigues Barcelos teve desentendimentos com o ex-farrapo e ex-ministro da República Rio-Grandense, Ulhoa Cintra, quando este ocupou uma cadeira de deputado, 3

AHGRS. Fundo Justiça.

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entre ele e algumas discussões. “Aqui o farrapo se tornara aderente do Partido Conservador, “saquarema” declarado, e Barcelos, que fora contra os farroupilhas, era acusado de “provincialista” e hostil aos políticos nascidos fora do Rio Grande, como era o caso do mineiro Ulhoa Cintra.” (FRANCO, 2004, p.22). Porém, Graham (1997) atenta que neste período os partidos políticos não eram projetos ideológicos, mas sim calcados nos interesses pessoais de cada indivíduo. O “[...] “partido” significava apenas uma afiliação de deputados, e não um compromisso duradouro com um programa ou uma política” (GRAHAM, 1997, p.198). O caso de Israel Rodrigues Barcellos pode ser bastante exemplar neste quesito. Israel Rodrigues Barcellos, nas primeiras eleições para Deputado Geral disputadas após o fim da Revolução Farroupilha, fora defendida por Domingos José de Almeida. Neste momento ainda se encontrava próximo aos liberais, porém nos anos seguintes passaria ao lado dos conservadores. Não podemos determinar os motivos das mudanças de seu posicionamento. Porém, sua mudança de posicionamento político não ocasionou numa quebra de confiança nas suas relações, visto que continuou exercendo cargos políticos “[...] garantindo que Israel Rodrigues Barcellos atingisse a extraordinária marca de vinte e um mandatos como Deputado Provincial, além de Deputado Geral (1848/1849-1861/1864) e Vice-presidente da província” (MENEGAT, 2009, p.174) Mesmo diante de todas as mudanças de posicionamento político de Israel Rodrigues Barcellos, isso não pareceu impactar negativamente sua rede de relações políticas e, da família Rodrigues Barcellos, cujo estava totalmente inserida naquele campo de poder local. “Ao contrário, a complementou ampliando a atuação desta rede junto aos conservadores, antes bastante bem representada pelo pai de Israel, Boaventura Rodrigues Barcellos” (MENEGAT, 2009, p.175). A figura do pai de Israel Rodrigues Barcellos era muito representativa para aquela família, visto que quando este passou a “[...] se retirar da vida política que Israel passou ao lado dos conservadores, o que pode indicar também a aspiração de partilhar da herança política” (MENEGAT, 2009. p. 1745. Diante deste cenário podemos concluir que os Rodrigues Barcellos foram um exemplo completar o tripé capital econômico, capital político e capital social intelectual. OS JACINTO DE MENDONÇA Outra família de tradição política de Pelotas que segue o que chamamos de tripé capital econômico, capital político e capital social intelectual foi a família Jacinto de Mendonça. O patriarca desta família foi Capitão João Jacinto de Mendonça, que nasceu na freguesia de Santa Luzia, Angra, Ilha terceira em Portugal. Era filho de José Francisco de Mendonça e Maria da Anunciada. Casou em Pelotas, no ano de 1816 com Florinda Luísa da Silva. O pai de Florinda, José Tomás da Silva era proprietário de uma charqueada na margem esquerda do rio São Gonçalo. O Capitão João Jacinto, foi proprietário de duas charqueadas também se aventurou na política, ocupando o cargo de vereador e faleceu em 1857, com 62 anos de idade. Uma das charqueadas ficou aos cuidados de sua viúva, Florinda Luísa, e a outra foi herdada pelo seu filho primogênito, o médico João Jacinto de Mendonça Filho, esse, que o qual concluiu seus estudos em medicina na Escola Médico Cirúrgica do Rio de Janeiro no ano de 1836, regressou a província de São Pedro do Rio Grande do Sul e filou-se ao Partido Conservador, tendo atuado como deputado provincial sendo reeleito diversas vezes entre 1852 e 1862. Foi presidente da Província de São Paulo no ano de 1861 e 1862. Também foi Senador do Império ainda pelo Partido Conservador. (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.109-120). Um dos nossos personagens pesquisados, o bacharel em Direito Joaquim Jacinto de Mendonça, foi o oitavo filho da linha de descentes do Capitão João Jacinto. Nasceu em de Pelotas, a 20 de maio de 1828. Fez estudos preparatórios no colégio Pedro II no Rio de Janeiro, seguindo para São Paulo onde bacharelou-se em 1850.

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Filiou-se ao partido conservador a que pertencia toda sua família. No ministério presidido pelo Visconde de Rio Branco lhe foi oferecido a pasta da marinha, cargo que foi recusado por insistência da dissidência conservadora, chefiada por Paulino de Souza Andrade Figueira e outros. Tornou-se promotor público e magistrado ao longo de sua carreira. Assim como seu irmão, foi membro do Partido Conservador, sendo deputado provincial e Presidente da Província de Sergipe de 1861 a 1863, sendo também Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, de 1887 a 1888. No que tange a sua vida pessoal, casou-se com sua prima-irmã Clara Barbara da Cunha, o casal foi pai de Florinda, e de dois bacharéis em Direito; João Jacinto de Mendonça Junior, nascido em primeiro de novembro de 1859 e falecido em seis de dezembro de 1907 em Pelotas, casado na mesma cidade no ano de 1890, com sua prima Florinda da França Machado e foram pais de dois filhos. O outro filho bacharel em Direito, foi Joaquim de Mendonça Filho, nascido em quinze de Julho 1869 e falecido em vinte oito de maio de 1927 em São Paulo; foi casado com Cornelia da Silva Prado. Após o falecimento de Cornelia, Joaquim casou-se com a irmã da mesma, Corina da Silva Prado. O outro bacharel em Direito listado é também irmão de Joaquim e João. Alexandre Jacinto de Mendonça, nascido em sete de novembro de 1826 em Pelotas e falecido em oito de Julho de 1877, casouse na mesma cidade, no ano de 1853 com sua prima-irmã Clara Maria de Azevedo, a qual era filha do Comendador Heleodoro de Azevedo e Souza e Heulália Clara da Silva. Alexandre e Clara Maria foram pais de três filhos; Clara de Azevedo Mendonça, Maria das Dores, João Jacinto de Mendonça 1º. Este último, nasceu no dia de vinte sete de novembro do ano de 1857, em Pelotas, seguiu a carreira jurídica do pai graduando-se em Direito na faculdade de São Paulo no ano de 1882. João Jacinto de Mendonça faleceu no dia seis de outubro de 1911 em Pelotas. (ABUCHAIM; SANTOS, 2015, p.109-120). Observamos no estudo das biografias dos personagens escolhidos alguns pontos: muitos filhos de juristas acabariam por seguir a mesma carreira que o pai; ponto este que nos faz encaixar este grupo, aos que detinham o capital social intelectual. Já outra parcela dos bacharéis formados era de família de estancieiros, charqueadores, comerciantes; estes bacharéis pertenciam ao grupo que detinha o capital econômico e social, outra forma de prestígio. Qual a semelhança desses grupos? A vontade de estabelecer ou manter o capital político. Todos esses poderes subjetivos são invisíveis, mas estavam presentes nas relações sociais daqueles grupos e englobavam uma espécie de “poder simbólico”, cujo quem adquirisse procurava sua manutenção. É o poder simbólico que determinava a distinção social destes agentes em cada espaço que estes integravam. Ou seja, um grupo como os bacharéis em Direito compõe uma elite que através dos tipos de relações vão gerando um acúmulo de capital com a perspectiva de lucros materiais ou simbólicos. O volume de capital social destes bacharéis será determinada pela exitosa ou não carreira jurídica e política, onde se destacavam ou não de seus pares. Porém muitos jovens já adentram no universo político diante do tripé capital econômico, capital político e capital social intelectual já estruturados de suas famílias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABUCHAIM; Rheingantz Abuchaim (org), SANTOS, Maria Roselaine da Cunha: Portugueses insulares e suas descendências no sítio charqueador Pelotense. Pelotas: Cadernos do IHGPEL. 2015. ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ARAÚJO, José Francelino. A Escola do Recife no Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Sagra – D.C. Luzzatto. 1996. BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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SOBRE A HISTÓRIA INDÍGENA: NOTAS PARA UMA HISTÓRIA SOCIAL DO PARENTESCO Jonathan Fachini da Silva * O presente texto pretende abordar os rumos tomados, ao que os especialistas denominam de uma Nova História indígena. Mais do que uma revisão historiográfica sobre o tema no período colonial, a proposta é mostrar alguns pontos ainda inexplorados pela historiografia, como a estrutura de parentesco e a família. A historiografia em diálogo com a etnografia e a antropologia deu novos papéis a população nativa. Agora, um sujeito social, protagonista de sua história, que articulou estratégias conforme seus interesses e possibilidades. Tratou-se de uma reviravolta na historiografia sobre estigmas sedimentados, ainda no século XIX, que previa um fim às sociedades indígenas, para uma produção que percebe essas sociedades ativamente no contexto atual frente às políticas públicas. Nesse quadro, a história do indígena passa a ser uma história para o indígena. Entretanto, à luz da História social da família, pouco se sabe sobre a constituição familiar dessas sociedades no passado colonial, mesmo após o contato com o cristianismo, em específico as sociedades guaranis no extremo sul do Brasil. Frente as pinceladas aqui ressaltadas, pretendemos mostrar essa lacuna historiográfica bem como apontar algumas possibilidades de estudos na tentativa de conectar duas linhas historiográficas. OS PRIMEIROS DESAFIOS DA HISTÓRIA INDÍGENA: ROMPER PARADIGMAS Partimos aqui de uma afirmação de John Monteiro (2001) em sua tese de livre docência. Naquele momento o autor afirmava que a História Indígena produzida no Brasil ainda estava estigmatizada por um contexto histórico de longa duração. Isso porque remontava pelo menos, ao século XIX, quando surgia no seio do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) as primeiras produções historiográficas, que se empenhavam em construir a jovem a nação. O seu mentor, Francisco Adolfo de Varnhagen, autor dos primeiros ensaios para a construção de uma identidade nacional. Na sua História Geral do Brasil (1854-1857) os indígenas são revelados como povos sem história e sem futuro, sendo tema da etnografia. Ainda outro estigma que também está vinculado ao IHGB é de Carl Friedrich Philippe von Martius, que venceu o concurso de “Como Escrever a História do Brasil”. A visão desse segundo autor era um tanto dramática do indígena, pois se tratava de uma sociedade isolada no tempo, fadada a sua própria extinção, ou como mais tarde insistiram uma sociedade assimilada completamente pela conquista. A visão pessimista, ou uma História do Drama, esteve à sombra dos intelectuais que se debruçaram sobre o tema até pelo menos os anos 1970 (MONTEIRO, 2001). A obra magna que deu a grande guinada na historiografia indígena foi organizada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha no ano de 1992, História dos Índios no Brasil. O livro organizado reuniu vinte e sete capítulos de autores das mais diversas áreas das ciências humanas, como historiadores, antropólogos, arqueólogos e linguistas. Todos, em sua grande maioria, ligados ao Núcleo de História Indígena da Universidade de São Paulo. Para explicar o percurso das pesquisas até a década de 1990, alguns pontos merecem um destaque. A produção sobre as sociedades indígenas estava atrelada aos campos da antropologia e da etnografia. É justamente no contexto da abertura da história, resultado do movimento francês dos Annales, que se há um diálogo profícuo com essas áreas do conhecimento 1. Nesse instante, a história começa a colocar *

Doutorando em História Latino-Americana pelo PPG-História/UNISINOS - Bolsista CAPES/PROSUP. Peter Burke destaca principalmente, a terceira geração dos Annales, em que historiadores das décadas de 1970 e 1980 se debruçaram sobre a antropologia e a etnografia numa espécie de “casamento” entre as disciplinas, formando uma “antropologia histórica” ou “etno-história”. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p.94. 1

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as sociedades indígenas como objeto de pesquisa se utilizando de fontes variadas, lembrando que nesse movimento a noção de documento também é ampliada, sendo incorporada a investigação elementos como a arte, relatos de viagem, literatura, etc... Em contrapartida a própria etnografia amplia seus métodos, pois passa a dar destaque à documentação escrita. Os arquivos passam a ser o grande laboratório dos etnógrafos, desenvolvendo pesquisas e métodos que se tornaram aliadas dos historiadores nessa guinada 2. Dado essa ressalva aos campos científicos, o contexto social e político do lançamento de História dos Índios no Brasil também nos ajuda a entender os seus percursos. Lembremo-nos de início da Constituição promulgada em 1988, que reconhecia e dava autonomia jurídica às sociedades indígenas: Artigo 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 3 Era uma vitória no campo político dos muitos agentes que defenderam essa causa. Estava instrumentalizada uma legislação que permitia as sociedades indígenas um enfrentamento legal pelos seus direitos no campo jurídico 4. No campo intelectual, mas também não tão distante do político, o movimento foi de resgate dessa história esquecida, contrariando o resgate da figura de Cristóvão Colombo pela comemoração dos 500 anos do descobrimento da América 5. O PROTAGONISMO INDÍGENA: O RESGATE DE SEU PAPEL NA HISTÓRIA A produção sobre a conquista teve algumas categorias que sedimentaram a produção intelectual por algum tempo. Num primeiro momento, essas pesquisas ficaram restritas à visão do conquistador/colonizador em detrimento da do conquistado/colonizado, ou seja, tratava-se da história dos vencedores sobre a dos vencidos. Essas categorias se invertem de maneira significativa com os estudos no campo da cultura pela antropologia. É com o conceito de aculturação que Nathan Wachtel (1976a) lança novos paradigmas aos pesquisadores em sua História dos Vencidos, ao dar inteligibilidade e confrontar a visão dos índios do Peru com a dos conquistadores espanhóis. Ao contrariar a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, Wachtel (1976a) articula o conceito de aculturação para mostrar a dinâmica histórica dos povos indígenas no período da conquista. O conceito de aculturação, em princípio, não se resume a um caminho unilateral, representado pela transformação da cultura ameríndia na cultura ocidental, ou seja, um domínio de uma cultura sobre a outra. É uma espécie de caminho inverso, pelo qual a cultura indígena agrega características aos elementos europeus sem perder sua propriedade original (WACHTEL, 1977).

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Para uma problematização entre a História Indígena e a Etno-história, ver: CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Etno-história e história indígena: questões sobre conceitos, métodos e relevância da pesquisa. In: História (São Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011. 3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html. 4 Para um panorama do movimento indigenista no Brasil em conexão com a América Latina. ver: BITTENCOURT, Libertad Borges. A formação de um campo político na América Latina: as organizações indígenas no Brasil. Goiânia: Editora da UFG, 2007. 5 Em balanço historiográfico Stuart Schwartz (2009, p. 184) comenta que ambos quintos centenários, o aniversário da primeira viagem de Colombo (1992) e o desembarque de Cabral no Brasil (2000), estimularam um novo interesse pelas Histórias dos povos nativos do Brasil. Em um período em que há, ao mesmo tempo, uma marginalização, cada vez maior, dos povos indígenas e tribais, e uma crescente auto identificação dos povos rurais com os índios – em razão de vantagens legais na aquisição de terras que lhes dão também um status étnico e econômico mais elevado –, a historiografia ligada aos povos indígenas do Brasil na era colonial entrou num período de maior sofisticação.

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Anos mais tarde, Serge Gruzinski (2001, p.28) na sua obra O pensamento mestiço avança significativamente nessas categorias, como o autor mesmo alerta: “Os enfoques dualistas e maniqueístas seduzem pela simplicidade, mas imobilizam e empobrecem a realidade, ao ignorar as trocas entre um mundo e outro”. Assim a cultura passa a ser observada no processo do contato tornando a religião, entenda-se o cristianismo, a grande ponte de contato cultural de dois universos distintos. As preocupações de Gruzinski (2001) consistem em entender o resultado desse choque cultural, a partir de uma mestiçagem alavancada a partir do século XVI. Cabe destacar que essa mestiçagem está na esfera simbólica, bem como o que ele denomina de hibridação, ou seja, as formas que uma mesma cultura, nesse caso, as sociedades indígenas se (re)estruturaram a partir desse contato. O conceito de aculturação, muito atrativo aos historiadores, os aproximou da antropologia. Longe de descartado, os estudos de aculturação, ou a resistência indígena frente a esse processo 6, culminaram no que atualmente os etno-historiadores têm destacado como os processos de etnogênese. Nas palavras de Guillaumo Boccara (2007), esse processo deve ser entendido como: (...) um processo de reconfiguração social, política, econômica e cultural que implica a redefinição do sentimento identitário e desemboca na emergência de uma nova formação social ou de uma nova entidade e identidade étnica. (BOCCARA, 2007, p.59) O objeto de pesquisa de Boccara (2007) é o povo Mapuche no centro-sul do Chile que, segundo seus estudos, se estruturam a partir do contado com os espanhóis, como uma estratégia de defesa num então processo de etnogênese 7. Nesse processo de (re)configuração cultural e identitária, o autor ressalta a importância da fronteira, enquanto um espaço de troca e um conceito analítico do contato 8. Os estudos sobre as “trocas culturais” ainda são pertinentes, entretanto, o foco sempre mostra a aculturação a partir do colonizado, e não o inverso, ou seja, como os europeus se (re)configuraram após o contato 9. Dado esse rápido contexto, voltamos aqui à História dos Índios no Brasil. Essa foi a primeira guinada historiográfica que afastou de vez os estigmas iniciais sedimentados pelo IHGB. Estava mais do que posto que as sociedades indígenas tinham história e os estudos culturais e etno-históricos mostravam que eles não estavam fadados a ruína, e sim, transformaram-se para sobreviver. Acima de 6

Um dos estudos clássicos na historiografia brasileira nessa perspectiva é o Ronaldo Vainfas. Nessa obra, Vainfas sugere que a idolatria indígena frente ao catolicismo oficial é uma forma de resistência social a dominação imposta pelo colonizador. Ver: VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios, catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 7 O autor alega que a formação desta nova entidade e identidade étnica mapuche pode ser interpretada como resultado tanto de um processo de etnogênese como de etnificação. Etnogênese porque é o produto de um processo criativo endógeno. Etnificação porque as técnicas de poder implementadas pelas autoridades coloniais (o espaço do parlamento, essencialmente) produziram um efeito tanto sobre as estruturas objetivas dos grupos indígenas, como sobre as estruturas cognitivas dos indivíduos e das coletividades. (BOCCARA, 2007, p.71). 8 Neste sentido em seus estudos afirma que: “Al estudiar un complejo fronterizo se hace necesario dar cuenta de las representaciones que dan de ese espacio las autoridades coloniales pues los sistemas de clasificación, las tipologías y representaciones del paisaje étnico-político que los europeos elaboran constituyen un elemento central en la construcción de la frontera como frontera, vale decir como espacio-tiempo de transición. De ahí la necesidad de analizar los procedimientos de construcción de una visión y división eurocentrada del mundo social indígena” (BOCCARA, 2005, p.46). Não por menos, que os espaços fronteiriços tornaram-se um terreno fértil para a historiografia indígena, principalmente na região platina. Seguem alguns exemplos desses estudos. Ver: RATTO, Silvia. Los indios y las revoluciones en el Rio de la Plata. El proceso independentista entre los indígenas soberanos de Pampa y Chaco. In: BRAGONI, Beatriz & MATA, Sara (comps.). Entre la colonia y la república. Insurgencias, rebeliones y cultura política en América del Sur. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2008, p.143166; FABERMANN, Judith & RATTO, Silvia. [coord.]. Historias mestizas en el Tucumán colonial y las pampas (siglos XVII-XIX). Buenos Aires: Biblos, 2009. 9 Esse apontamento é de James Sweet para tratar da relação entre africanos e portugueses, entretanto, a mesma pergunta pode ser feita para a relação entre indígenas e portugueses. Ver: SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.

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tudo, se estabeleceu um cenário (o descobrimento) e os protagonistas da história (indígenas). Como Manuela da Cunha (1992, p. 18) argumenta logo na introdução: A consciência de uma política e de uma consciência histórica em que os índios são sujeitos e não apenas vítimas, só é nova eventualmente para nós. Para os índios, ela parece ser costumeira. É significativo que dois eventos fundamentais – a gênese do homem branco e a iniciativa do contato – seja frequentemente apreendidos nas sociedades indígenas como o produto de sua própria ação ou vontade. Como destacamos, foi um amadurecimento dessa produção que rompeu paradigmas engessados. Cabe então, destacarmos alguns avanços após essa produção: o primeiro ponto a ser destacado é o marco temporal, esse ainda permanece a conquista. A historiografia parte do período colonial, recorte temporal ainda imutável, em contrapartida, o papel do(s) índio(s) nesse processo já não é mais o mesmo. John Manuel Monteiro (1994) mostrou a importância das populações indígenas para a economia colonial. Para o sudeste brasileiro a mão-de-obra indígena era de suma importância, redimensionando os estudos sobre a escravidão africana. Nesse sentido, sua contribuição fez repensar o processo de formação da região bandeirante paulista. Nesse contexto, destacamos ainda a tese de Maria Celestino de Almeida, defendida nos anos 2000, na Universidade Estadual de Campinas. A tese premiada pelo Arquivo Nacional trata dos aldeamentos no Rio de Janeiro colonial numa perspectiva de longa duração, que parte do século XVI ao século XIX. O que Maria de Almeida (2013) nos apresenta é uma espécie de terceira via às dualidades propostas pela aculturação, ou seja, os indígenas não apenas resistiam; ou eram apenas assimilados à colonização. A autora demonstra de maneira empírica em sua análise uma margem de escolha ao protagonismo indígena: esse ator ora se unia aos portugueses, ora fugia para os sertões. Essa margem de escolha estava atrelada aos seus interesses e sua própria sobrevivência: (...) não se trata de negar os males e prejuízos imensuráveis que a colonização significou para os índios, porém, ao participarem dela, eles não se tornaram massa amorfa simplesmente levada pelas circunstâncias ou pela prepotência de padre, autoridades e colonos. Aliavam-se e aldeavam-se, grosso modo, em busca de um mal menor e de obter alguns ganhos. (ALMEIDA, 2013, p.328). O protagonismo indígena foi o grande mote da historiografia recente. Os trabalhos têm explorado um leque variado de fontes, privilegiando principalmente a documentação da administração portuguesa e a documentação eclesiástica, como registros paroquiais que vêm sendo incorporada, mesmo que de maneira incipiente 10. Nesse exercício empírico a história social ganha espaço com métodos inspirados na micro-história, seja pela atuação dos sujeitos no campo das possibilidades, seja pela variação de escala do macro para a microanálise. A produção historiográfica para o período colonial permeou temas como as estratégias de resistência indígena e as políticas indigenista adotadas pela administração portuguesa. Frente a essa guinada historiográfica que vem se amparando na História Social, com estudos empíricos, ainda

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Para região sul, exemplos de trabalhos envolvendo a temática Indígena com registros eclesiásticos são os trabalhos de: SIRTORI, Bruna. Entre a cruz, a espada, a senzala e a aldeia. Hierarquias sociais em uma área periférica do Antigo Regime (1765-1784). Dissertação (Mestrado em História) - PPGHIS-UFRJ, Rio de Janeiro, 2006. Que de alguma forma perpassou o tema: FONTELLA, Leandro Goya. Sobre às Ruinas dos Sete Povos: estrutura produtiva, escravidão e distintos modos de trabalho no espaço oriental missioneiro (Vila de São Borja, Rio Grande de São Pedro, c. 1828 – c.1860). 2013. 282f. Dissertação de Mestrado – UFRGS, Porto Alegre. E, mais especificamente, o de: RIBEIRO, Max Roberto, Pereira. Estratégias Indígenas na Fronteira Meridional: a situação dos guaranis após a conquista lusitana (Rio grande de São Pedro, 1801-1834). 2013. 150f. Dissertação de Mestrado – UFRGS, Porto Alegre

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sabemos pouco das relações familiares ou das estruturas de parentesco indígena. Uma conexão com a Historiografia da família pode abrir caminhos de pesquisa ainda não trilhados.

PARA UMA HISTÓRIA DA FAMÍLIA INDÍGENA: PONTOS DE ENCONTRO A grande guinada da historiografia dedicada a temática da família esteve atrelada à Demografia Histórica. São os estudos que chegam ao Brasil nos finais dos anos 1970, a partir dos trabalhos e dos grupos de pesquisas vinculados aos programas de pós-graduações, que, enfim, lançam os primeiros passos para se pensar a família com novos métodos de análise 11. Esses estudos que se difundiram no Brasil tiveram três referenciais básicos, num primeiro momento: a demografia histórica, a análise da economia doméstica e os debates interdisciplinares com as ciências sociais (ANDERSON, 1984). Nesse sentido, essa produção seguiu os passos da Demografia Histórica que estava sendo difundida na França naquele momento numa missão da reconstituição dos regimes demográficos no passado europeu. Do lado de cá do atlântico utilizaram os registros paroquiais de batismo, casamento e óbito e as técnicas de reconstituição de famílias desenvolvidas por Louis Henry e adaptando essas técnicas a uma realidade brasileira, conforme se encontravam organizados os registros eclesiásticos produzidos a partir da Igreja no período colonial (FARIA, 1997). Logo, esses trabalhos de cunho demográfico sobre a família começam a multiplicar-se nas décadas de 1980 e 1990, conforme o crescimento e a profissionalização da pós-graduação nas universidades brasileiras. Ainda hoje, esses estudos têm encontrado novos horizontes na História Social e sobre forte influência dos métodos proporcionados pela micro-história italiana. Nesse sentido, Ana Scott argumenta que: A observação possibilitada através dos jogos de escala permitiu avançar nas discussões relativas às estratégias familiares e às redes sociais para as sociedades do passado. Essa perspectiva apresenta-se como um campo rico de investigação, especialmente se admitirmos que toda a ação social é o resultado de escolhas, de decisões do indivíduo e do grupo familiar, por isso mesmo implica numa constante negociação e, porquê não dizer, manipulação, diante de uma realidade normativa que oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais. (SCOTT, 2014, p.14) Conforme Ana Scott, Carlos Bacellar, e Maria Bassanezi (2009, p. 19), nos últimos quarenta anos observou-se uma proliferação de trabalhos voltados para o estudo da população atual. Estava na pauta temas como a história da família, da criança e da mulher, a análise das estruturas de parentesco, da sociabilidade, do patrimônio familiar, da composição da força de trabalho com ênfase na mão de obra escrava e da imigração. Nesse sentido, os autores chegam ao ponto de afirmar que a demografia histórica, no Brasil, passou por um processo de “transbordamento” em relação aos limites tradicionais da disciplina. Dessa forma a História da Família seguiu rumos prolíferos nos últimos anos. A discussão que se manteve em torno do patriarcalismo proposto por Gilberto Freyre parece estar superada por estudos que mostram a pluralidade das formas de organização doméstica, o que nos coloca o termo família(s) no plural 12. A família escrava também recebeu tratamento adequado na densa discussão historiográfica

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Em São Paulo Maria Luíza Marcílio esteve à frente do CEDHAL (Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina) na Universidade de São Paulo e Sérgio Nadalin do CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses) na Universidade Federal do Paraná, espaço onde ambos os autores incentivaram e orientaram inúmeras pesquisas relacionadas à Demografia Histórica e à História da família. 12 Ver: BARICKMAN, B. J. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do Recôncavo Baiano em 1835. In: Afro-Ásia, v.29/30, p.79-132. 2003.

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sobre o cativeiro. Assim como a historiografia indígena, o cativo tornou-se protagonista de sua história que estabelecia relações e constituía família 13. A questão é que: se o debate acerca da família no Brasil esteve em torno da família livre (entendase a dos colonizadores portugueses) ou a família escrava e forra, pouco ou quase nada, se pensou sobre a família indígena. Nesse sentido ainda nada sabemos sobre a família indígena no passado colonial, apenas indícios quando esses se encontravam missionadas em determinadas regiões. É de se ressaltar que no século XVIII, a legislação portuguesa na preocupação de assegurar seu território frente à coroa castelhana incentivava os casamentos mistos entre brancos e índias, visando através da mistura biológica à homogeneização social. E para aumentar essa população, nada mais promissor que a política de casamentos interétnicos, implementados pelo Alvará Régio de 4 de abril de 1755 e reiterada pelo Diretório, que favorecia àqueles que se unissem com as índias. (RESENDE, 2003, p 251). Para o caso de Minas Gerais nos setecentos, Maria Chaves de Resende (2003) já constatou que as mulheres indígenas não serviam apenas para exploração dos colonos, mas haviam também casamentos estáveis entre brancos e índios. Em contrapartida, muitos casamentos mistos entre índios, forros e escravos também foram uma solução para garantir sua servidão: “o atrelamento dos indígenas ao plantel escravo, quando criavam, por meio do enlace matrimonial, um vínculo profundo entre os nubentes, evitando, assim, qualquer enlace com a propriedade senhorial.” (REZENDE, 2003, p.258). Outro estudo nesse eixo, o de Eliza Garcia, mostra que no caso do Diretório de Índios, no extremo sul meridional, uma das preocupações eram os maus tratos com as mulheres indígenas nessas uniões mistas (GARCIA, 2007). A questão é: que família formou-se a partir dessas relações miscigenadas, e mesmo entre os próprios indígenas. A Igreja por maior controle que regia sobre a vida social de seus fregueses, na prática social cotidiana, sempre houve espaços para diversos desvios normativos ou mesmo, práticas sociais paralelas às exigidas pela norma. Guillermo Wilde ao reconstruir a história dos guaranis nas reduções em torno do Rio da Prata entre os séculos XVII e XIX mencionou que a prática da poligamia nunca desapareceu e ainda era sinônimo de poder, prestígio e estabelecimento de alianças indígenas dentro e fora das reduções. Parece aceptable que prácticas como la poligamia contianuaron siendo para los indígenas una vía altamente eficaz de adquisición de poder, tanto dentro como fuera de la reducción. Fuera de los pueblos, la poligamia permitía crear nuevas redes de alianzas que actuaban como catalizador de la movilidad de gente entre los mismos pueblos y con respecto a los diversos espacios de campaña, donde habitaba población no reducida. A nivel interno, la poligamia presentaba a los que no eran miembros da elite indígena, la oportunidad de escapar al estricto control del régimen del cacicazgo, buscando alianzas no reglamentadas dentro y fuera de los pueblos. (WILDE, 2009, p.136). A Antropologia no Brasil já consolidou estudos na busca da compreensão de uma estrutura que dê conta da variabilidade e complexidade dos sistemas indígenas. Cabe a menção da obra Antropologia do Parentesco, organizada por Viveiros de Castro (1995), reunindo estudos consolidados que se debruçaram sobre a estrutura de parentesco dos povos da Amazônia meridional. Se para outras áreas do conhecimento, já se tem passos firmes nessa direção, a História precisa consolidar uma agenda de estudos nessa direção. Nas palavras de Joan Bestard-Camps (1991, p. 86), a História e a Antropologia podem fazer esse resgate da organização do social de parentesco indígena ao longo do tempo: “Su 13

Ver: SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

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finalidad es la identificación de las unidades de parentesco tal como están definidas y diferenciadas por 1os mismos nativos y la explicación del sistema de símbolos que se utilizan para discriminar estas unidades”. Para resolver essa questão que apostamos nos registros paroquiais como fontes primordiais para o estudo da família indígena. Essa documentação é uma das poucas que temos em mãos desde o período colonial e que cobrem a população católica integralmente, individualmente e, o mais interessante, independentemente da condição social/jurídica de cada registrado. A partir delas, o pesquisador pode entrar em contato com todos os grupos sociais, quer seja ele composto de indivíduos à margem ou desclassificados socialmente, ou daqueles que integram o mais alto escalão da nobreza. É justamente nesse ponto que Marta Azevedo (2009) destaca os registros paroquiais como fontes de extrema importância para o estudo da família indígena mesmo no decorrer do século XX. Pensar as formas de organização familiar indígena, mesmo que seja para aqueles que de alguma forma, se cristianizaram, é indispensável para o avanço do debate na perspectiva de uma Nova História Indígena. Frente a empreitada de colonização da Igreja e da Monarquia portuguesa, as formas de organização ou (re) organização das famílias indígenas podem nos dizer muito de sua adesão ou não nesse projeto. Nesse sentido, entendermos a dinâmica familiar estabelecida pelos indígenas, mesmo que reduzidos, pode nos dizer sobre a sua leitura do cristianismo e da família de modelo cristã ocidental imposta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALMEIDA. Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. ANDERSON, Michael. Elementos para a História da família Ocidental 1500-1914. Lisboa: Editorial Querco, 1984. AZEVEDO, Marta. Os registros de batismos e casamentos como fontes de informações para os estudos indígenas. In: Bassanezi, Maria Silvia C. Beozzo; Botelho, Tarcísio Rodrigues. (Org.). Linhas e entrelinhas: as diferentes leituras das atas paroquiais dos setecentos e oitocentos. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2009, v. 1, p.77-84. BACELLAR, Carlos A. Prado; BASSANEZI, Maria S. C. Beozzo; SCOTT, Ana S. Volpi. Quarenta anos de demografia histórica. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 339-350, jul./dez. 2005. BESTARD-CAMPS, Joan. La Familia: entre la antropología y la historia. In. Papers. Revista de Sociología. 26:79-91, 1991. BOCCARA, Guillaume. Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e reestruturação entre os Mapuche da época colonial. In: Revista Tempo, v. 12, n. 23, p.56-72, 2007. __________. Génesis y estructura de los complejos fronterizos euro-indígenas: Repensando los márgenes americanos a partir (y más allá) de la obra de Nathan Wachtel. In: Memoria Americana, n.13, p.21-52, 2005. CUNHA, Maria Carneiro da. Por uma história indígena e do indigenismo. In. __________. Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.125-131. __________. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992. FARIA, Sheila de Castro. História da Família e Demografia Histórica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 252-253.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 13 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: TENDÊNCIAS INTERPRETATIVAS, DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES E ABORDAGENS HISTORIOGRÁFICAS

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EL DECRETO 1002 DE 1984 Y LA DESAPARICIÓN DE LA DISCIPLINA DE HISTORIA EN LOS COLEGIOS EN COLOMBIA. ........................................................................................................................................ 705 ENTRE DIMENSÃO E FUNÇÃO: NOTAS SOBRE O PERCURSO HISTÓRICO DO CARÁTER EDUCATIVO NO MUSEU DE ARTE DO RIO GRANDE DO SUL ADO MALAGOLI (1954-1987) ......................................... 711 ENTRE IMAGENS E MEMÓRIAS: APROXIMAÇÕES ENTRE CULTURA VISUAL E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DE FOTOGRAFIAS DE FORMATURA..................................................................................... 719 GUAMAN POMA DE AYALA: A RESISTÊNCIA ANDINA QUE (RE)INVENTA O SUL................................. 727 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E MUSEUS: O MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DO COLÉGIO ANCHIETA (1908) - PORTO ALEGRE, RS ............................................................................................................... 735 LEVANTAMENTO HISTÓRICO DA FUNDAMENTAÇÃO DA METODOLOGIA DA CATEQUESE NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL.............................................................................................................................. 741 MARÍA LUISA DOLZ Y ARANGO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA CONSTRUÇÃO DE UM PENSAMENTO PEDAGÓGICO LATINO-AMERICANO (1854-1928)............................................................................... 751 CONTEXTO LATINO-AMERICANO DO SÉCULO XIX: TRAJETOS DA EDUCAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DE SALOMÉ UREÑA ................................................................................................................................. 757 REFINAR O OBJETO: CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA COMPARADA NO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES DA GUERRA DO PARAGUAI NOS LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS E PARAGUAIOS ........................... 763

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EL DECRETO 1002 DE 1984 Y LA DESAPARICIÓN DE LA DISCIPLINA DE HISTORIA EN LOS COLEGIOS EN COLOMBIA. HACIA UN NUEVO MODELO DE DESARROLLO Ana Cecilia Escobar Ramirez 1 INTRODUCCIÓN El presente trabajo hizo parte de mi monografía de conclusión del pregrado en historia y que ha sido alimentada por varias reflexiones que han surgido durante el desarrollo de la maestría y que han logrado darle un marco teórico más sólido desde el campo de la Historia de la Educación y los aportes que a esta ha hecho la Nueva Historia Cultural que como apunta Antonio Viñao Frago (1995) abre las posibilidades de investigación al lugar donde se incrusta este trabajo, el de la historia de la formación de las disciplinas académicas. Así, el autor propone ver la disciplina como el “resultado del acotamiento de un campo intelectual por unos profesionales, una comunidad o un grupo académico y científico que se presentan ante la sociedad y otros grupos como expertos en el mismo en virtud de una formación, de unos títulos y de un modo de selección determinados” (p. 250), y que en esa misma conformación disciplinar que lleva a la inclusión o no de esta en los planes de estudio se encuentra una lucha de fuerzas por parte de todos los agentes que intervienen en el proceso. El objeto de estudio es la Reforma Curricular postulada en el decreto 1002 de 1984 donde desaparece la Historia como materia, la cual no puede ser entendida sin el movimiento que lo gestó desde 1976 y que introdujo la política de “Tecnología Educativa”, entendida como la burocratización del sistema educativo en el país con la influencia directa de agentes internacionales como la OEA y la CEPAL quienes moldearon los nuevos ideales dirigidos hacia el desarrollo económico a través de la educación técnica y tecnológica. El decreto- ley 088 de 1976 generó un cambio en la perspectiva sobre cuál debía ser el objetivo de las instituciones educativas públicas en Colombia. Si a comienzos del siglo XX se buscó en la enseñanza de la historia una creación del sentimiento nacionalista a través del patriotismo, con esta reforma se pretendió, en el campo de la Historia alejarse de esa narración oficial y que se denominaba tradicional y dejar que la renovación historiográfica que se había dado en los claustros universitarios permeara la escuela a través de la integración disciplinar en las llamadas Ciencias Sociales, en concordancia también, con el desarrollo económico que se estaba promoviendo desde la misma leydecreto. Se intentará visualizar que si bien dentro del marco de las Ciencias Sociales el cambio estuvo relacionado a un revisionismo teórico, tampoco estuvo ajeno al orden mundial y a las directrices que se planteaban desde allí. Dos tipos de esquemas culturales han conducido la interpretación del pasado en el currículo colombiano, en un primer lugar, la competencia académica de tipo romántico (CARRETERO, 2007, p. 40) que aportó el concepto de pueblo fundamental en la consolidación del Estado- Nación, a partir de una información organizada y crítica del pasado, y ofreció una memoria colectiva con base en el sentimiento de identidad nacional alimentado por la enseñanza evenementielle de tipo memorístico y la celebración constante de efemérides propias de la “historia patria”. Por más de cincuenta años el Manual de Historia de Colombia para la Enseñanza Secundaria fue el libro oficial para las instituciones educativas y el que mejor ejemplifica este primer momento de la enseñanza de la historia. El segundo gran esquema es el surgido en el afán por el desarrollo económico presentado en Colombia a mediados de siglo, el cual se caracteriza por el saber pragmático, instrumental y técnico automatizado, teniendo en vista esto se definen las competencias hacia la obtención de resultados. Es por esto que se encuentra una reducción de horas en las clases de Historia, tendencia que continua en la materia de Ciencias Sociales, y la creciente suma de horas y recursos a las “Ciencias Naturales”, y a la 1 Historiadora. Estudiante de la Maestría en Educación de la Universidad Federal de Rio Grande del Sur e integrante de la línea de investigación Historia, Memoria y Educación bajo la dirección de la profesora Zita Possamai. Bolsista OEA-COIMBRA.

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educación vocacional técnica y tecnológica. Es en este segundo marco cultural donde se implanta la Reforma Curricular de 1984. POLÍTICA ECONÓMICA EN COLOMBIA. EL MODELO DE LA INDUSTRIALIZACIÓN POR SUBSTITUCIÓN DE IMPORTACIONES. En los años cincuenta del siglo XX, en países como Argentina, Chile, Brasil, México, Uruguay y Colombia, la industria se tornó un sector de vanguardia, donde la demanda empezaba a depender poco del sector exportador. Así, en muchos países predominó el llamado desarrollo hacía adentro el cual se contraponía al crecimiento guiado por las exportaciones. Este nuevo sistema fue influido por el Fondo Monetario Internacional, FMI y avalado por la Comisión Económica Para América Latina, CEPAL, donde la Industrialización por Sustitución de Importaciones (ISI) se convirtió en una opción desde que en los años veinte algunos choques dejarían expuesto al sector exportador, lo que provocó una reacción contra éste (BULMER-THOMAS, 1998, p. 322). Gabriel Misas (2001) divide en cinco las diferentes etapas económicas de Colombia: La primera que va desde finales del siglo XIX hasta 1931 intentó un desarrollo de la manufactura, sin embargo, debido al escaso conocimiento técnico y el poco desarrollo del mercado interno esta iniciativa no tuvo éxito; desde 1931 hasta 1951 hubo un cambio, productos como el café, el banano y el petróleo impulsaron la exportación de estos productos produciendo de igual forma un crecimiento del mercado propio; de 1951 a 1970 fue el auge de la política ISI con medidas como la elevación de aranceles, y el control de cambios y créditos todo al amparo de instituciones como la CEPAL; entre 1970 y 1990 el gobierno creó una compatibilidad entre la ISI y la promoción de las exportaciones a partir de la diversificación de estas últimas; por último después de 1990 hay una apertura total de la economía sin intervención estatal (p. 111-113). Es en este sentido que la educación industrial puede ser observada como otra forma de intervención estatal durante estos años. A partir de 1938 se dieron las primeras mediaciones del gobierno con la creación de una sección de enseñanza industrial y complementaria del Ministerio de Educación Nacional (HELG, 1987, p. 260). Y ya para la década de 1950, 26 eran las escuelas industriales públicas, con lo cual se ve un aumento firme en la creación de estas, momento que llega a su cúspide con la fundación en 1957 del Servicio Nacional de Aprendizaje, SENA, institución de educación superior especializada en carreras técnicas y tecnológicas que aún continua en funcionamiento en la actualidad y que poco ha sido investigada por la historiografía colombiana. EL DECRETO-LEY 088 DE 1976 Y EL DECRETO 1419 DE 1978. La historia de la Reforma Curricular de 1984 comienza entre 1975-76 con el “Programa Nacional de Mejoramiento Cualitativo de la Educación” referido en el Decreto-Ley 088 de 1976. Los principios que rigieron este nuevo marco pedagógico fueron el conductismo y la tecnología educativa (behaviorismo y Escuela Nueva), que implantaron estrategias instruccionales rígidas, basadas en la redacción de objetivos terminables “observables” y en el diseño de materiales y medios educativos para la eficacia en el proceso de aprendizaje (GUERRERO, 2011, p. 31). En este decreto-ley se reestructuró el sistema educativo nacional, tanto a nivel ministerial como al nivel de primaria y bachillerato. En este último ámbito se dividió de la siguiente forma: educación preescolar, para niños menores de 6 años; educación básica primaria (con una duración de cinco años); educación básica secundaria (cuatro años); y educación media e intermedia que podría ser de tipo vocacional o técnica (ARISTIZABAL, 2015, p. 76). Después de dos años, en el Decreto 1419 de 1978, salió a la luz pública el primer esbozo de Reforma donde se definió Currículo así: “El conjunto planeado y organizado de actividades, en el que participan alumnos, maestros y comunidad en los niveles de educación pre- escolar, básica primaria y secundaria, media vocacional e intermedia profesional para el logro de los fines y objetivos de la educación” (COMISIÓN PEDAGÓGICA, 1985, p. 4). Este elemento fue el primer vistazo a lo que en realidad significó la llamada “Tecnología Educativa” para la estructuración del sistema escolar, estrategia central para la modernización, que pretendió controlar el trabajo pedagógico de los docentes

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a través del diseño institucional (GUERRERO, 2011, p. 32) en aras del llamado desarrollo de competencias laborales. El espacio de dos años entre uno y otro decreto puede ser explicado a partir del contexto en el que se construyó este nuevo sistema educativo. Luis Aristizabal (2015) sostiene, que el escaso desarrollo legislativo durante 1974-1978 fue resultado de la movilización social de docentes, padres de familia, académicos y estudiantes que impidieron la imposición de varias leyes; después, con la entrada en vigencia del Estatuto de Seguridad del presidente Julio Cesar Turbay Ayala (1978-1982), y la persecución que se hizo contra el sindicalismo y la protesta estudiantil, fue posible realizar lo que él mismo llamó de Revolución Educativa, con la triplicación del número de legislación expedida (p. 28). Este marco temporal es importante ya que la Comisión Pedagógica responsable por la revista Tribuna Pedagógica fue creada justo en 1982, después de una época de persecución al magisterio y desde donde salieron las principales críticas a la Reforma. De vuelta al decreto de 1978, el Ministerio de Educación Nacional (MEN) propuso que en lo que se refiere al proceso de creación de currículo para las Ciencias Sociales el enfoque teórico y de contenidos propios fuera de la sociología estructural funcionalista desde donde se comprendería a la sociedad a través del estudio empírico de sus instituciones tanto económicas como políticas y sociales (la familia, la escuela, la comunidad local), y que “debe conducir a detectar los desajustes que en un determinado momento desequilibran al conjunto del sistema social (esta es la llamada parte crítica)” (COMISIÓN PEDAGÓGICA, 1985, p. 40). De igual forma, el surgimiento de la idea de Tecnología Educativa provino del Proyecto Multinacional de Tecnología Educativa de la OEA, entidad que tuvo un seminario en Bogotá en 1978 titulado Política en Transferencia Educativa y que fue organizado en conjunto con el MEN y Colciencias (Entidad de financiamiento a la investigación), en donde se presentaron ponencias como Fundamentos Teóricos de Tecnología Educativa en los programas de mejoramiento cualitativo que adelanta el MEN de Pilar Santamaría Reyes, Secretaria de Educación de Bogotá en este año (Ibíd., p. 3). Varias de las consecuencias de esta reforma se encuentran en el artículo titulado Historia, Pedagogía y Política de Francisco Aguilar y Antonio Rodríguez publicado en 1984 por la revista Tribuna Pedagógica donde afirman que en estos años, “en la enseñanza básica secundaria y media vocacional se observan con claridad dos redes de escolarización: una red técnica (SENA, INEM, ITA, CENDIZOB y las modalidades de bachillerato pedagógico, comercial, etc.) Y una red clásica (bachillerato clásico). La tendencia es hacia la estatalización y popularización de la primera red y la privatización y elitización de la segunda en una demostración del carácter clasista y discriminador del aparato escolar colombiano” (COMISIÓN PEDAGÓGICA, 1984, p. 23). Otro grupo perdedor que surgió con esta reforma fueron los profesores, con el decreto 2277 de 1979 se creó el nuevo Estatuto Docente que institucionalizó una jerarquización que los dejó como meros divulgadores y al Estado como productor total del conocimiento junto con los científicos sociales quienes tampoco los dejaron investigador (Ibíd., p. 24). Viendo esto, el estamento propuso a través de la revista volver a la figura del “intelectual orgánico” de Gramsci y orientar al maestro de Historia hacia dos funciones: 1. Como investigador social y 2. Como expositor con una función creadora en el estudiante. Para Carolina Guerrero (2011), los docentes encontraron tres intensiones adicionales con la reforma: la primera consistió en apaciguar los espacios de crítica que se habían suscitado en la clase de historia de las universidades que condujeron al análisis de las problemáticas sociales y que se reprodujeron en el aula de clase. En segundo lugar, el gobierno buscó tener el control frente a los contenidos y evitar la discusión, con el fin de mantener el orden establecido en la escuela. En tercer lugar, el argumento se sustentó en la existencia de unas asignaturas poco significativas en el currículo en un nuevo momento para el país donde la prioridad estuvo en los conocimientos técnicos, vocacionales y asignaturas “útiles” para la vida laboral, con el auge de las nuevas dinámicas de producción propuestas por organismos internacionales (p. 39-40).

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Teniendo las bases listas, en 1979 comenzaron las experimentaciones en 19 escuelas del Distrito Capital, en los cursos de 1°, 2° y 3° de básica primaria. Como bien relata el Movimiento Pedagógico, a los docentes se les dieron estímulos en el escalafón y un mes de capacitación antes de iniciar clases con un único documento de soporte teórico y metodológico: Manual de Administración Curricular. Repentinamente y sin haberse dado la evaluación a los programas de experimentación, en 1980 desde la Secretaria de Educación del Distrito se dio la orden de aplicar este nuevo modelo, para las clases de educación básica, a todas las escuelas de la capital. El único curso de actualización dado duró entre 4 o 5 días con los profesores y los directivos de los colegios. En este mismo año se decidió por circular del Ministerio de Educación vetar el currículo para la materia de Ciencias Sociales, alegando que para algunos sectores el nuevo enfoque (estructural- funcionalista), atentaba contra la tradición cristiana y democrática (COMISIÓN PEDAGÓGICA, 1985, p. 4-5). En 1981 y como resultado del poco esclarecimiento que frente a esta nueva política pública habían tenido tanto los niveles académicos como los propiamente educativos, es organizado el I Simposio Nacional sobre la enseñanza de las Ciencias, convocado por el ICFES, Colciencias y el MEN en Diciembre. Las conclusiones fueron desalentadoras, los procesos de experimentación y evaluación del nuevo modelo de Reforma se estimaron como no adecuados y se encontraron insuficientes para lograr extender esta nueva política a todos los ambientes escolares; así mismo, la capacitación docente fue relegada, dejándolos contra la pared, entre los resultados que los obligaron a lograr, y la poca experticia en el nuevo lenguaje; por si fuera poco, se pronosticó un gran fracaso en la decisión tomada por la Secretaría de Educación en Bogotá; por último se consideró que la planificación minuciosa de los objetivos por unidades integradas frenaría la creatividad del estudiante y del profesor (Ibíd., p. 6), quitando las bases más fuertes del proceso educativo como lo es la motivación. De las recomendaciones, la primordial fue la de suspender la aplicación masiva de la Reforma en el Distrito Capital sometiendo a una experimentación restringida las diferentes deficiencias vistas. Además, se plantearon la apertura de mesas de discusión por materias, y por último se solicitó el involucramiento de diferentes entes de investigación, tanto universitarios como docentes, entendiendo que el proceso de cambio debía ser lento y procesual. Desafortunadamente para el caso de este trabajo, además de la referencia en la revista no se encontró ningún otro documento que respalde que estas mesas fueron llevadas a cabo, y si las hubo que tipo de temas se discutieron y quienes las conformaron. El año de 1982 está lleno de acontecimientos vitales que brindaron la plataforma de lo que sería posteriormente el Decreto 1002 de 1984. Siendo una acertada premonición lo dicho en el I Simposio, al inicio del año se presenció un problema con la entrada de los chicos, que recibieron educación en los Colegios Experimentales, a las instituciones con el modelo tradicional. Son comprometidos cuatro colegios para que recibieran por lo pronto a estos muchachos. Aparte de esto, y viendo el creciente debate sobre la planificación rigurosa y la poca cabida que esto le da al docente, la Secretaría de Educación permitió que fueran estos los que tuvieran la libertad de escoger los objetivos específicos a evaluar en las unidades integradas, agregado a lo anterior la capacitación se extendió, aunque siguió siendo deficiente. Por último en este año se conforma la Comisión Pedagógica de la A. D. E. (Asociación Distrital de Educadores), editores de la revista Tribuna Pedagógica, encargada del estudio de las implicaciones que traería consigo la Renovación Curricular. Observando todos los tropiezos, en una reunión que se realizó el 14 de agosto de 1983, el presidente Belisario Betancur, junto con el Ministro de Educación, Jaime Arias Ramírez, acompañados de todos los Secretarios de Educación del país, decidieron aplazar por un año la ejecución de la Reforma que estaba planeada para empezar el siguiente año, aduciendo falta de la debida evaluación y debate por parte de los entes interesados. Una vez el MEN, representado por Carlos Vasco y Félix Bustos, recibió todas las críticas que se habían venido acumulando desde 1978, presentó la opción de cambiar el enfoque conductista que traía la reforma por el modelo cognitivo, como alternativa para evitar las tensiones políticas que implicaba cualquier elección, en entrevista hecha a Carlos Vasco, así relató para la revista Tribuna Pedagógica esta decisión:

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“Si uno dice que va a adoptar la teoría cognitiva norteamericana, se echa encima a la mitad de la gente; y si dice que va a adoptar la teoría cognitiva soviética, se echa encima a la otra mitad y a una cuarta parte de la izquierda antisoviética. Afortunadamente Suiza es un país neutral, por lo que se podía hablar con más tranquilidad de sicología cognitiva piagetiana” (Ibíd., p. 46). EL DECRETO 1002 DE 1984. El 24 de Abril de 1984 es expedido por el entonces Ministro de Educación, Rodrigo Escobar Navia, el Decreto 1002 (que deroga el 1419 de 1978) y que obligó la aplicación de la Reforma. Para el mes de noviembre se entregaron todas las resoluciones reglamentarias para la evaluación, adaptación y promoción. Se resolvió en este, el Plan de Estudios para la Educación Pre- escolar, Básica (Primaria y Secundaria), y Media Vocacional, estipulando su distribución horaria, sus objetivos, las áreas a enseñar, y las principales líneas metodológicas y de evaluación. Así, dentro de los objetivos (art. 2) para la educación básica en primaria y secundaria se encontró: Reconocer sus potencialidades físicas, intelectuales y emocionales y desarrollarlas, armónica y equilibradamente, para asumir con decisión y acierto la solución de sus problemas como individuo y como miembro de la comunidad. Identificar y valorar los factores que influyen en el desarrollo social, cultural, económico y político del país y participar crítica y creativamente en la solución de los problemas y el desarrollo de la comunidad, teniendo en cuanta los principios democráticos de la nacionalidad colombiana. Adquirir conocimientos, habilidades y destrezas, a través de las distintas experiencias educativas, que contribuyan a su formación personal, cívico social, cultural, científica, tecnológica, ética y religiosa, y le faciliten organizar un sistema de actitudes y valores, en orden a un efectivo compromiso con el desarrollo nacional. (REPÚBLICA DE COLOMBIA, 1984) Así mismo, dentro de las áreas a enseñar se encontraron: Ciencias Naturales y Salud; Ciencias Sociales; Educación Estética; Educación Física, Recreación y Deportes; Educación Religiosa y Moral; Español y Literatura; Matemáticas; y agregadas para el currículo en secundaria, Educación en Tecnología e Idioma Extranjero. Siete meses después de publicado este decreto se presentó la Resolución 17489 del 7 de Noviembre de 1984, en donde se especificó lo programático: la distribución horaria, los programas curriculares, y el proceso de evaluación y promoción. Para el área de Ciencias Sociales, las horas dadas para la materia fueron de cuatro semanales, divididas en las materias de Historia, Geografía y Educación para la Democracia, la Paz y la Vida Social, llevando gradualmente a la integración de contenidos para lidiar con las pocas horas brindadas (GUERRERO, 2011, p. 57). Los años siguientes fueron igual de tormentosos, en 1985 se implementaron los manuales azul y amarillo, el primero titulado Fundamentos Generales del Currículo, y el segundo Marcos Teóricos de los Programas, produciendo mayor confusión entre los profesores que respondieron a esto integrando varios planes curriculares (la 1419, la 1002, la Resolución 17489, la 088, en fin), intentando acatar y producir los resultados esperados y combatiendo con la falta de capacitación. En el caso de las Ciencias Sociales la investigadora Carolina Guerrero en el texto ya mencionado se encontró con decretos firmados en 1988 que todavía divagan sobre los contenidos a enseñar en este campo, agregando urbanidad, cívica y democracia. CONCLUSIONES Como se pudo observar, son muchos los vacíos a lo largo del escrito que necesitan ser llenados, y con esto muchas las preguntas a ser hechas sobre este proceso. Si bien ya se encuentran algunos trabajos referenciados en el campo de la historia de la educación, aun son insuficientes las investigaciones que propongan una reflexión profunda sobre el tema.

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Como se pudo observar el corpus empírico estuvo compuesto por documentos hemerográficos casi en su totalidad, esto debido no sólo a una elección propia de la investigación sino precisamente por la novedad de este asunto que ha impedido una búsqueda más amplia de documentos que no sólo remita a este tipo, sino que se abra a otros que puedan interactuar con estos. Además es necesario pensar que entre 1974 y 1988 pasaron 9 diferentes Ministros de Educación, lo que representa un cambio anual o bianual de propuestas, de visiones pedagógicas y de acercamiento al magisterio docente quien haría variar la ejecución y los ajustes a la reforma, lo cual tiene repercusiones directas en los archivos. Dos ideas se han querido dejar como puerta para futuras aproximaciones, la primera que el cambio de modelo de enseñanza fue comenzado por la OEA a través del Proyecto Multinacional y su concepto de la “Tecnología Educativa” y que estuvo en concordancia con las nuevas políticas del ISI apoyadas también por otra institución internacional que fue la CEPAL. Esta nueva visión se dirigió hacia el desarrollo económico, y gracias a la gran confusión reinante entre los académicos sobre que debían ser las Ciencias Sociales, en el conteo de horas semanales en los colegios quedó en los últimos lugares ejerciéndose gran presión a esta pensada integración disciplinar, más en función de las horas que en el revisionismo propuesto por la academia. La segunda, que es la esbozada en la revista, es que las intenciones de desarrollo cognitivo que se plantearon con el último decreto fueron totalmente desdibujadas volviendo al anterior modelo conductista dejando al profesor en un segundo plano como operario de secuencias, punto de partida para la decreciente valoración que ha tenido su profesión. REFERENCIAS ARISTIZÁBAL, Luis. La educación básica primaria y secundaria en Colombia: 1974-1980. Disertación (Maestría en Historia). Departamento de Historia, Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2015. BULMER-THOMAS, Víctor. El desarrollo hacia dentro en el período de la posguerra, En: La historia económica de América Latina desde la independencia. México: Fondo de Cultura Económica. 1998. CARRETERO, Mario. Documentos de Identidad: La construcción de la memoria histórica en un mundo global. Buenos Aires: Ed. Paidós. 2007. Comisión Pedagógica. Tribuna Pedagógica. 3: Abril de 1984, Bogotá. _______. Tribuna Pedagógica. 4: Mayo de 1985, Bogotá. GUERRERO, Carolina. La incidencia de las reformas educativas en la enseñanza de la historia en Colombia 1973- 2007. Disertación (Maestría en Historia). Departamento de Historia, Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2011. HELG, Aline, La educación en Colombia 1918-1957: una historia social, económica y política. Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional. 1987. MISAS, Gabriel. Ed. Desarrollo económico y social en Colombia, siglo XX. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. 2001. República de Colombia, Ministerio de Educación, Decreto 1002 de 1984 (abril 24), por el cual se establece el Plan de Estudios Para la Educación Preescolar, Básica (Primaria y Secundaria) y Media Vocacional de la Educación Formal Colombiana. VIÑAO FRAGO, Antonio. Historia de la educación e historia Cultural: Posibilidades, problemas, cuestiones. Revista de Educación. No. 306 pp. 245-269. 1995

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ENTRE DIMENSÃO E FUNÇÃO: NOTAS SOBRE O PERCURSO HISTÓRICO DO CARÁTER EDUCATIVO NO MUSEU DE ARTE DO RIO GRANDE DO SUL ADO MALAGOLI (1954-1987) Micheli Pereira de Souza 1 O presente trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado em andamento, que, no entanto, já aponta para alguns encaminhamentos preliminares, sobre os quais passarei a discorrer ao longo deste texto. O intento do referido estudo é investigar como se deu o percurso de transição entre as práticas entendidas como do âmbito da Dimensão Educativa em museus, até a formalização dessas práticas em serviços educativos sistematizados, compreendidos como Função Educativa, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, no período entre os anos 1954 – ano de criação do museu e 1987– término da gestão de Évelyn Berg Ioschpe 2. O corpus documental em análise consiste em um apanhado de registros efetuados pela equipe do museu no referido recorte temporal. Tais documentos encontram-se salvaguardados pelo Núcleo de Documentação e Pesquisa em Artes do MARGS – NDPA em trinta e cinco pastas onde encontram-se catalogados relatórios de atividades, correspondências, catálogos de exposições, convites, textos de divulgação e recortes de jornal. A análise empírica prioriza a identificação das práticas e representações encerradas na documentação que o museu produziu e compilou sobre si mesmo ao longo dos anos. O trabalho pauta-se sobre dois conceitos-chave, cunhados pela museóloga Marcele Regina Nogueira Pereira em sua dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO e do Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST, no ano de 2010, quais sejam: Dimensão Educativa e Função Educativa em museus. De acordo com Pereira (2010) Dimensão e Função Educativas não são sinônimos, embora ambas sejam aspectos do mesmo assunto: a educação em museus. Para esta autora, a Dimensão Educativa é, de modo bastante resumido, uma esfera educacional inerente aos museus e pode ser compreendida de acordo com sua manifestação em diferentes contextos histórico-sociais. Para melhor compreensão, a pesquisadora subdivide a Dimensão Educativa em outras cinco: Dimensão Contemplativa, Dimensão Cívica, Dimensão Democrática, Dimensão Escolar e Dimensão Socioeducativa. Já a Função Educativa “se configura na trilha deixada pela construção social das dimensões educativas que sempre estiveram presentes no universo histórico dos museus” (PEREIRA, 2010, p.15). Em outras palavras, podemos dizer que a Função Educativa surge quando o museu passa deliberadamente a planejar suas ações educativas, oferecendo-as sistemática e regularmente aos seus públicos como um serviço. Nas palavras da autora: [...] compreendemos que a dimensão educativa dos museus nada tem a ver com a perspectiva de função educativa e compreendemos também que eles configuram aspectos totalmente diferentes da trajetória educacional dos museus. Os termos dimensão e função devem ser utilizados de acordo com a conjuntura histórica analisada [...]. A dimensão educacional, por exemplo, é inerente ao seu surgimento e o acompanha em todos os momentos de sua história. Essa dimensão passa a tomar contornos que vão além de uma aura educacional permanente quando o museu passa a requerer para si uma estrutura funcional que possibilite o exercício educativo de forma organizada com objetivos definidos. Ou seja, dá-se assim início ao processo de institucionalização de suas práticas educativas. Neste contexto, [...] o museu

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Mestranda do PPGEdu/UFRGS. Bolsista do CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 2 Jornalista, arte-educadora e diretora do MARGS entre os anos 1983 a 1987.

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passou a conviver com uma nova perspectiva educacional: a função educativa. (PEREIRA, 2010, p.19). Ao assumir tal conceituação, tenho buscado traçar o percurso efetuado pelo museu no que diz respeito ao seu caráter educativo, historicizando as práticas empreendidas pela instituição e procurando averiguar como se deu o processo de transição entre dimensão e função educativas no MARGS: atores envolvidos, contextos históricos em questão, relação da instituição com seus públicos, entre demais fatores. Neste artigo em particular, discorrerei sobre a dimensão socieducativa observada na instituição e como tal esfera influenciou a funcionalização dos serviços educativos no museu. Antes, porém, considero importante elucidar o vínculo desta pesquisa com a História Cultural e a História da Educação. Empreender uma pesquisa sobre museus implica - quase sempre - assumir uma abordagem transversal sobre o objeto de pesquisa, já que é próprio da instituição o caráter interdisciplinar. Para dar conta da complexidade advinda dessa condição, o pesquisador precisa recorrer a diversas áreas do conhecimento para construir a sua argumentação teórica. A presente proposta de pesquisa não se distancia deste caráter multifocal. A perspectiva pela qual se enquadra a problemática deste estudo é a História da Educação, que por si só é uma área híbrida, situada na interpolação entre Educação e História. Isso leva a contar tanto com aportes teóricos próprios do campo, bem como das outras duas disciplinas que o compõem. Além dessas, a pesquisa também conta com autores da Museologia e em uma próxima etapa da implementação da pesquisa, também da Arte-Educação, da Sociologia e da Filosofia. No âmbito da História, pode-se dizer que um dos fatores que propiciou o desenvolvimento do campo da História da Educação foi uma mudança que a disciplina vem sofrendo desde a Escola dos Annales: em vez de uma história política, com fixação nos relatos e personagens políticos ou uma História social, de cunho marxista, a História passa gradualmente a valorizar o cotidiano, a história das mulheres, dos operários, das crianças, entre outros. Essas transformações começam a abrir espaço para novos objetos de pesquisa (FONSECA, 2003; STEPHANOU& BASTOS, 2005; POPKEWITZ, PEREIRA & FRANKLIN, 2003; NÓVOA, 2003). De acordo com Sandra Pesavento, as mudanças mais substanciais começaram a ocorrer com “a crise de maio de 1968, com a Guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da New Left, em termos de cultura, ou mesmo a derrocada dos sonhos de paz no mundo pós-guerra” (2003, p.8). O que, de acordo com ela, começou a insinuar uma crise dos paradigmas explicativos da realidade e ocasionou rupturas epistemológicas profundas. Segundo a autora: De uma certa forma, podemos, por um lado, falar de um esgotamento de modelos e de um regime de verdades e de explicações globalizantes, com aspiração à totalidade, ou mesmo de um fim para as certezas normativas de análise da história, até então assentes. Sistemas globais explicativos passaram a ser denunciados, pois a realidade parecia mesmo escapar a enquadramentos redutores, tal a complexidade instaurada no mundo pós-Segunda Guerra Mundial (PESAVENTO, 2003, p.8-9). Para Pesavento, essas mudanças e a crise nos paradigmas originada por elas culminaram nos anos 1990, no que ela chamou de Virada na História (2003). Esta autora salienta, no entanto, que a crítica ou a contestação de certas posturas historiográficas presentes nessa ruptura dos paradigmas não representa uma ruptura total com as matrizes originais: [...] foi ainda dentro da vertente neomarxista inglesa e da história francesa dos Annales que veio o impulso de renovação, resultando na abertura desta nova corrente historiográfica que chamamos de História Cultural ou mesmo de Nova História Cultural. (PESAVENTO, 2003, p.10). Sobre a História Cultural, Pesavento enfatiza que seu propósito é o de “pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo” (2003, p.15). Este caráter de interesse pelo que os homens produzem e como pensam o que produzem começa a dar-

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nos pistas de como a História da Educação encontra seu nicho a partir da História Cultural, bem como explica que áreas de interesses ainda mais específicos, como a História da educação em museus, também se justifiquem dentro desta área do conhecimento. Endossando essa característica abrangente, Thomas S. Popkewitz, Barry M. Franklin e Miguel A. Pereyra (2003) entendem que a História Cultural contém interação interdisciplinar sistemática e contínua. Sobre isso enfatizam que [a História Cultural] “atraviesa no solo a la comunidad acadêmica de historiadores, sino también de las ciencias sociales”. E continuam sua análise: [...] Forma parte de um proceso mucho más complejo, producido em el interior de la vida acadêmica de las ciências sociales, donde la fragmentación, la recombinación y la hibridación de los campos disciplinares se han entrecruzado a lo largo de las últimas décadas, creando y legitimando “nuevos” campos y especializaciones (POPKEWITZ; FRANKLIN; PEREIRA, 2003, p.46) Stephanou e Bastos (2005, p.422) veem esse caráter híbrido, que é formador do campo da História da Educação com bons olhos. Elas entendem que a pesquisa nesse campo não constitui uma ciência à parte, pois não possui um campo analítico exclusivo. Para elas a riqueza teórica e metodológica da História da Educação reside “justamente no fato de tratar-se de um espaço fronteiriço, de pesquisas que se situam na intersecção entre a História e a Educação. Para pesquisadores que têm como objeto de pesquisa a educação em ambientes não-escolares, a pesquisadora Thaís Nívia de Lima e Fonseca (2003, p.53) tem um posicionamento bastante encorajador. De acordo com as ideias da autora, a educação como tema de investigação é de vital relevância para a compreensão de uma formação cultural de uma sociedade. Fonseca (2003, p.72) entende que a contribuição que a História Cultural, como campo dotado de aportes teórico-metodológicos, pode oferecer ao avanço da História da Educação está no descortinamento de dimensões ainda pouco exploradas fora da escola e da escolarização. Thaís Fonseca, em tradução sua, traz no seu texto algumas ideias de Jean-Pierre Rioux. Este autor pontua que dentre vários caminhos de investigação da História Cultural estão: [...] as mediações e os mediadores, no sentido estrito de uma difusão instituída de saberes e de informações, mas também no sentido mais amplo, de inventário dos passeurs, dos suportes transmissores e dos fluxos de circulação de conceitos, de ideias e de objetos culturais (RIOUX apud FONSECA, 2003, p.54) Entendo que os museus encaixam-se nos dois sentidos mencionados por Rioux. Quando a função educativa dos museus se institucionaliza, essa difusão de saberes e informações passa a ser um serviço dos museus. Nesse sentido, o museu se coloca como um mediador entre a informação e a sociedade, permitindo formas de sua extroversão, tais como exposições, palestras, catálogos, visitas mediadas por educadores, entre outros. O segundo sentido, o de inventário dos passeurs (mediadores), também encontra-se entre as funções basilares dos museus, que é a de salvaguarda. Nesse sentido, os mediadores seriam os próprios objetos culturais, que podem ser, no caso dos museus, o seu acervo ou o prédio que o abriga ou ainda o seu arquivo. Assim, por exemplo, quando um pesquisador vai até um museu para fazer um estudo documental, os mediadores entre a informação e o pesquisador são os próprios documentos. O museu seria o responsável pelo inventário e salvaguarda desses mediadores. Fonseca segue essa linha de pensamento, mencionando que essas ideias convergem com a de outros historiadores, como por exemplo Serge Gruzinski (apud FONSECA, 2003, p.54), quando diz que os processos de transmissão de saberes atuam como poderosos passeurs culturels, traduzidos pela autora como mediadores culturais, esclarecendo questões importantes que envolvem processos educativos em diversos tempos e lugares. E mais adiante, em seu texto, a autora explica melhor esse conceito:

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Os passeurs culturels são elementos – pessoas, objetos – que atuam como mediadores entre tempos e espaços diversos, contribuindo na elaboração e na circulação de representações e do imaginário. Por seu forte enraizamento cultural e sua grande mobilidade, esses mediadores atuam como catalisadores de ideias, sendo capazes de organizar sentidos e de criar um sistema de conexões dentro do universo cultural no qual transitam. A atuação desses mediadores permite entender como os diversos universos culturais se entrecruzam (FONSECA, 2003, p.68). Marta Carvalho e Clarice Nunes também chamam atenção para a ênfase que a História Cultural coloca na materialidade dos processos de produção, circulação e apropriação culturais, o que vai ao encontro das ideias de Rioux e Gruzinski, trazidas por Fonseca. Para essas autoras, essa ênfase se dá “a partir de uma atenção filigranática a micro-transformações constitutivas de uma história, seja dos objetos culturais postos em circulação - como o livro, o jornal, o museu-, seja das práticas culturais que os produzem ou que deles se apropriam” (CARVALHO; NUNES, 1993, p.44). Zita Possamai (2014) enfatiza a importância de inserir a investigação dos museus no movimento de renovação dos estudos da História da Educação e discorre sobre a importância que museus escolares desempenharam, sobretudo no final do novecentos e início do séc. XX, quando estava em voga a Lição de Coisas ou método intuitivo. Em outro artigo, do ano de 2012, a autora explica que esse método constituiu uma possibilidade de alcançar a renovação educacional desejada naquela época. Possamai pontua que o método foi baseado nas ideias do empirismo de John Locke e Francis Bacon, mas menciona Pestalozzi e Froebbels como sendo aqueles que adaptaram essas ideias para fins pedagógicos, assim “substitui-se o ensino livresco, calcado nas palavras, pela observação das coisas, a lição das coisas. Substitui-se o método dedutivo pelo método indutivo, dando maior possibilidade ao aluno de desenvolver sua intuição” (POSSAMAI, 2012, p.3). Possamai (2014), entretanto, defende que não apenas museus de temática vinculada à educação e ao universo escolar possam ser objetos de investigação da História da Educação, mas sim museus de todas as tipologias, pois no seu entendimento, os museus surgiram e se perpetuaram no tempo com forte caráter educativo e se caracterizam por colocar em evidência a relação da humanidade com os objetos. Ainda sobre o caráter educativo dos museus, a pesquisadora analisa: Nessa perspectiva, ao propor uma determinada forma de relação com os bens culturais, advinda da seleção de determinadas coisas para serem perpetuadas no tempo, o museu educa, propondo uma mirada específica aos objetos e às possibilidades infinitas de sua significação nas exposições ou outros meios de extroversão. Como a escola, o cinema, o livro, a família, o museu é lugar do educar, pois constitui-se em espaço de criação de representações sobre o mundo e as coisas, propondo visões de mundo, versões da história; prescrevendo comportamentos e práticas; enfim, acima de tudo, colocando-se como lugar autorizado e legitimado socialmente para tal (POSSAMAI, 2014, p.24). De acordo com Zita Possamai, uma das possibilidades de se investigar a questão da educação em museus é sob a perspectiva de que a história destas instituições é indissociável de sua dimensão educativa. No seu ponto de vista, “para além dos museus de temática educacional, a História da Educação tem muito a descobrir sobre os processos educativos instaurados por esses espaços” (2014, p.27). É sob essa perspectiva que a presente proposta de estudos pretende trazer suas contribuições. No que diz respeito ao caso do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, é possível inferir já no momento em que a pesquisa se encontra, que sua Dimensão Educativa é significativa na construção da história da instituição e que as subdivisões conceituadas por Marcele Pereira (2010), quais sejam: Dimensão Contemplativa, Dimensão Cívica, Dimensão Democrática, Dimensão Escolar e Dimensão Socioeducativa são, em totalidade, observáveis em diferentes momentos do percurso educativo do museu ou podem mesmo atuar de forma concomitante na instituição. Destaco, contudo,

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para fins deste artigo, a atuação da Dimensão Socioeducativa no MARGS por considerar que este aspecto teve considerável relevância para o encaminhamento da Função Educativa no museu. A Dimensão Socioeducativa em museus trata de iniciativas preocupadas com a abrangência social da educação nestes espaços. Pode-se dizer que a história da museologia apresenta alguns marcos que são significativos para a construção desta dimensão. O primeiro destaque que faço, nesse sentido, é a “Mesa de Santiago do Chile”, ocorrida em 1972. Este encontro propôs mudanças substanciais como a definição do que é museu, revisão dos estatutos das instituições museais e, principalmente, a identificação do caráter político e a discussão sobre o papel social dos museus (PEREIRA, 2010, p.72). Deste encontro resultaria a “Carta de Santiago”, documento considerado emblemático para a museologia por apresentar redefinições radicais dos ideais e objetivos dos museus, imputando a esses espaços uma atitude propositiva de transformação social das comunidades onde estão inseridos. Os resultados da Mesa de Santiago começariam a reverberar em alguns anos, [...] (com) a preocupação com o surgimento de museus locais, de iniciativa comunitária, sem especialização disciplinar e que levam em conta a identidade e os projetos de um território e de sua população. E, principalmente, a noção de museu como instrumento de desenvolvimento, desconhecida antes de 1972 [...] (PEREIRA, 2010, p.73). Os outros marcos aos quais faço destaque no âmbito da Dimensão Socioeducativa são a Declaração de Quebéc, de 1984 – documento que inaugura uma preocupação específica e sistemática a respeito do movimento da Nova Museologia, estabelecendo suas diretrizes e bases a Declaração de Caracas, de 1992, que configura os museus como lócus essencialmente comunicacional (PEREIRA, 2010, p. 66). Sobre tais documentos e o movimento da Nova Museologia, Marcele Pereira pontua: [...] a aplicação com a formação do cidadão e a aplicação dos conceitos da educação popular são encontradas nas ações propostas pelos espaços museais, principalmente depois das reuniões e discussões que inauguraram o movimento a favor de pensar o seu novo papel social. Esse movimento compreendido como a favor de uma nova museologia cria e garante condições para a prática museológica pautada nas questões sociais. É importante ressaltar que o marco para essas novas práticas pode ser datado na década de 1970, no entanto as primeiras iniciativas a esse respeito surgem ao longo dos anos seguintes. É inegável, portanto, que as abordagens expositivas e as discussões acerca da educação obtiveram mudanças significativas desde então (PEREIRA, 2010, p. 70). Embora a apropriação de tais ideias tenha se manifestado com mais força em novas tipologias de museus como os comunitários e os de território, por exemplo, é inegável que o movimento da Nova Museologia e a Dimensão Socioeducativa em museus far-se-iam notar em todas as tipologias de museus - mesmo nas mais tradicionais - manifestando-se na busca pela ampliação de seus públicos, na oferta de ações culturais e sociais voltadas às comunidades, na ênfase do caráter educativo e dialógico de tais instituições. No que diz respeito ao MARGS, é possível observar, de acordo com a documentação analisada neste estudo, que os efeitos dessas transformações ocorridas nos museus a partir da Mesa de Santiago do Chile, deram-se já na década de 1970. O museu, que – até então – tinha uma abrangência de público mais restrita a escolares, artistas, pesquisadores e um público geral mais afeito e interessado às artes, passa a literalmente buscar novos públicos, ou no caso dos escolares, passa a oferecer outras atividades para além das então chamadas “visitas guiadas”, oferecendo também oficinas, exposições pedagógicas, exibição de filmes. Na referida década, o museu passa a oferecer às comunidades exposições itinerantes, tanto na região de Porto Alegre e região metropolitana, bem como no interior do Estado, ampliando com estas

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atividades “extramuros” o alcance da difusão da produção artística salvaguardada pela instituição. Essa difusão vai atingir também classes sociais não privilegiadas ou não acostumadas até então aos ambientes museais tradicionais, como os operários, por exemplo. Eventos como “MARGS vai à indústria” passaram a fazer parte da sua agenda institucional. Também nessa ampliação de públicos, o museu passa a atingir com suas ações determinados grupos sociais tradicionalmente colocados à margem das sociedades como presidiários, menores infratores, portadores de doença mental. O alcance de tais atividades ia além de somente oferecer o contato com as obras em exibição a esses novos públicos – o que, diga-se, já seria notório, mas também a possibilidade de manifestação artística dessas pessoas, rendendo exposições como “Mostra de trabalhos de presidiários”, oficinas com os internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro e da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - FEBEM. Além disso, o museu também passou a ampliar as ações oferecidas na sua sede aos públicos mais familiarizados à sua frequentação. Atividades como palestras, teatro, apresentações de dança e grupos de canto coral, mostras de filmes e oficinas passaram a ter regularidade nas proposições do museu. Tendo como base a definição de Marcele Pereira para Função Educativa como a sistematização e oferta regular de serviços à comunidade, bem como o entendimento que esta esfera educativa manifesta-se “na trilha deixada pela construção social das dimensões educativas” (PEREIRA, 2010, p.15), pode-se depreender, ainda que preliminarmente, que uma das dimensões que mais colaboraram para que o museu passasse a funcionalizar os seus serviços educativos seja a Dimensão Socioeducativa presente na instituição a partir dos anos 1970. No ano de 1973 – um ano após a Mesa de Santiago do Chile - o museu realiza a sua primeira “Exposição Pedagógica”, voltada exclusivamente para estudantes, prevendo uma série de ações voltadas para esse público e que passariam a ser sistematicamente concebidas a partir de então. No relatório desta primeira exposição, o museu se reconhece pela primeira vez nos registros documentais como “[...] uma instituição educacional, científica e cultural indispensável ao mundo moderno”. Em 1975 o museu descentraliza sua administração, passando a organizar-se em núcleos, e, com essa nova forma de gestão, a instituição passa a ter um “Núcleo de Extensão”, que seria o embrião do Núcleo Educativo da instituição, renomeado assim somente nos anos 1990. Este núcleo ocupava-se exclusivamente na concepção e oferta de atividades de cunho cultural e educativo à comunidade, outro significativo indício de que o museu deixara de considerar as ações educativas como atividades fortuitas ou apêndices das exposições, para o entendimento de que a oferta regular de tais atividades e a relação mais interativa com seus públicos era parte tão importante das atividades do museu quanto a salvaguarda das obras de arte e sua divulgação em exposições. Para o objetivo a que este estudo se propõe, tais indícios preliminares configuram importantes contribuições na construção do percurso educativo no museu. É importante frisar que esse é somente um aspecto desta pesquisa, que – espero – possa até a sua conclusão, trazer à tona ainda outros aspetos importantes da historicização das práticas educativas no MARGS. Tomar consciência de como essas “trilhas” foram abertas, quais atores e contexto histórico-social proporcionaram tais mudanças, faz com que possamos entender qual papel o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli tem desempenhado perante seus públicos e a sociedade que o acolhe. Tendo em vista os exíguos trabalhos acadêmicos que abarcam o caráter educativo deste museu e a sua importância da instituição tanto em nível nacional, como regional, avalio que a pesquisa pode ser um contributo importante na construção da história da educação desta instituição. REFERÊNCIAS CARVALHO, Marta Maria Chagas de; NUNES, Clarice. Historiografia da Educação e fontes. Cadernos ANPED, Porto Alegre, ANPED, n.5, 1993, p.7-64. FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. História da Educação e História Cultural. In: VEIGA, Cynthia Greive; FONSECA, Thaís Nivia de Lima e (orgs). História e Historiografia da Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

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ENTRE IMAGENS E MEMÓRIAS: APROXIMAÇÕES ENTRE CULTURA VISUAL E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DE FOTOGRAFIAS DE FORMATURA Eduardo Cristiano Hass da Silva 1 IMAGEM, FOTOGRAFIA E CULTURA VISUAL O conceito de imagem tem sido abordado por diversos autores ao longo de diferentes momentos históricos, bem como a partir de diferentes correntes teóricas das mais variadas áreas do saber que se utilizam das imagens. Segundo Flusser (1985), as imagens são consideradas superfícies que pretendem representar algo e, “na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora, no espaço e no tempo”. (FLUSSER, 1985. p. 7). O autor considera as imagens como o resultado do esforço da abstração de duas das quatro dimensões espaço-temporais, preservando-se apenas as dimensões do plano. Retomando Vida e morte da imagem: Uma história do olhar no ocidente (1993), de Regis Debray, Monteiro (2013) chama a atenção para as três midiasferas, formas pelas quais os homens relacionam-se com as imagens: logosfera, grafosfera e videosfera. Debray (1993) caracteriza cada uma destas midiasferas. A logosfera corresponde à era dos ídolos, momento entre a escrita e a imprensa no qual a imagem representa um ideal temporal imóvel, de mentalidade coletiva marcada pela passagem do mágico para o religioso. A grafosfera é caracterizada por Debray (1993) como a era da arte. Situando-se entre a imprensa e a TV a cores, o ideal temporal dessa esfera é lento, mas conta com figuras em movimento. A mentalidade coletiva grafosfera é marcada pela passagem do teológico para o histórico, cuja imagem é entendida como ícone. O período em que vivemos corresponde à videosfera. Também chamada era do visual, a videosfera conta com o ideal temporal marcado pela rotação constante e pela rapidez, com a imagem associada ao sílmbolo. Debray salienta que essas três idades não se excluem, mas justapõem-se. Monteiro (2013) chama a atenção para um fato importante que ocorreu no século XIX, no contexto da grafosfera: a invenção da fotografia. Ao falar desta inovação, Flusser (1985) afirma que ela permitiu ao homem obter diferentes visões de mundo. O autor apresenta uma visão restrita da fotografia, que para ele, é considerada como uma imagem técnica capaz de transcodificar conceitos em superfície. Diferentemente dos estudos de Cultura Visual, o autor atribui grande parte do resultado da fotografia apenas ao fotógrafo e ao aparelho: “O fotógrafo visa eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade através das fotografias para um comportamento que lhe permite aperfeiçoar-se”. (FLUSSER, 1985, p. 25) Na perspectiva da Cultura Visual, Monteiro (2013) afirma que a fotografia permitiu uma nova relação com a experiência temporal e, a partir da Escola dos Annales, vai ser incorporada ao rol das chamadas fontes históricas. Essa Escola Histórica que emerge na primeira metade do século XX, vai utilizar-se não apenas das fotografias, mas das imagens em geral na busca de informações sobre as sociedades. Porém, o autor afirma que no início, o uso feito destas imagens era limitado, carecendo de diálogo com a História da Arte. A partir da incorporação das imagens ao grupo de documentos dos historiadores, associado a um movimento de renovação das Ciências Sociais, Monteiro (2013) afirma que se tornou possível a emergência dos Estudos Visuais, “[...] na esteira dos chamados estudos culturais, pós-estruturalistas, pós-coloniais, de gênero e sobre etnicidade, que colocaram em pauta temas transversais aos estudos sobre literatura, cinema, artes visuais e meios de comunicação”. (MONTEIRO, 2013, p. 8) Ao falar da relação entre História da Arte e Estudos Visuais, Ana Maria Guash (2005) caracteriza estes como um híbrido interdisciplinar, “que busca desafiar el caráter disciplinar de la 1

Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, bolsista CAPES.

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Historia del arte, unida a verdades trans-historica y critérios críticos invariábles, [...]”. (GUASH, 2005, p. 59). Assim como Monteiro (2013), a autora situa as origens dos Estudos Visuais aos Estudos Culturais. CULTURA VISUAL E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Monteiro (2013) afirma que os historiadores têm cada vez mais interessado-se pela interpretação das imagens, relacionando-as à pesquisa em fontes visuais. Esse interesse resulta no que Meneses (2005) chama de uma História Visual. Esse novo campo de operação é visto pelo autor como de grande valor estratégico para o conhecimento histórico da sociedade e de como ela organiza-se, funciona e transforma-se. Meneses (2005) alerta-nos para a necessidade em identificar os sistemas de comunicação visual bem como os ambientes visuais da sociedade, e os cortes mais amplos de estudo. Segundo o autor: Assim também as instituições visuais ou os suportes institucionais dos sistemas visuais (p. ex., escola, empresa, administração pública, o museu, o cinema, a comunicação de massa, etc.), as condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos produtos sociais (MENESES, 2005, p. 35). A partir da perspectiva de Meneses (2005), na qual a escola é vista como uma instituição visual ou um suporte institucional dos sistemas visuais, pode-se fazer uma aproximação entre Cultura Visual e História da Educação. Segundo Stephanou e Bastos (2005), a História da Educação é caracterizada como uma área do saber de caráter fronteiriço, perpassando tanto a História quanto a Educação. Sofrendo profundas modificações com a Escola dos Annales e a História Cultural, essa disciplina amplia as fronteiras do conhecimento histórico e multiplica objetos e problemas de pesquisa. As pesquisas em História da Educação ocorrem a partir de diferentes documentos, sejam eles escritos, iconográficos ou orais, sempre com a consideração de que foram produzidos de acordo com determinados interesses. Com a ampliação do conceito de fontes dos Annales, a memória passa a ser considerada uma fonte de pesquisa, principalmente para os historiadores da educação. Os estudos com memórias, tradicionalmente são feitos a partir da história oral, mas podem ser realizados também com documentos escritos e iconográficos, possibilitando o entrecruzamento dos diferentes suportes de memória e o preenchimento de lacunas. O caráter fronteiriço da História da Educação facilita essa aproximação dos suportes, uma vez que essa é uma área de destacada riqueza teórica e metodológica: Isto porque a pesquisa em História da Educação não é uma ciência à parte, não possui um campo analítico exclusivo e sua riqueza teórica e metodológica está justamente no fato de tratar-se de um espaço fronteiriço, de pesquisas que se situam na intersecção entre a História e a Educação (STEPHANOU e BASTOS, 2005, p. 422). Estando a História da Educação situada entre Educação e História, e sendo as imagens e a Cultura Visual preocupações da História, podemos utilizar as fotografias como objetos e fontes para estudos em História da Educação. APROXIMAÇÕES ENTRE CULTURA VISUAL E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DE FOTOGRAFIAS DE FORMATURA DA ESCOLA TÉCNICA COMERCIAL DO COLÉGIO FARROUPILHA DE PORTO ALEGRE/RS A coleção selecionada para este estudo corresponde às fotos de formatura da Escola Técnica Comercial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS 2. Os documentos encontram-se salvaguardados 2

A Escola Técnica de Comércio do Colégio Farroupilha teve início no ano de 1950. A ideia de sua criação é atribuída ao Dr. Swen R. Schulze, que foi o primeiro diretor do curso. O técnico em contabilidade tinha duração de três anos, funcionando no período noturno. Com a mudança do Colégio Farroupilha para o bairro Três Figueiras em 1962, a Escola Técnica passa a funcionar no segundo andar da Igreja São José, em frente ao Velho Casarão, permanecendo aí até1972, quando se muda para a sede do Colégio. Essa mudança diminuiu significativamente a

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no Memorial da Escola, organizados e distribuídos em caixas e envelopes a partir da data da cerimônia. A série escolhida para análise refere-se à formatura de 1968. As principais características da série seguem na tabela:

Tabela 1: Fotos de Formatura da ETC do Colégio Farroupilha de Porto Alegre, 1968. Fonte: Memorial do Colégio Farroupilha

Como podemos observar, a série é composta por um total de 68 fotos de diferentes tamanhos: 20x25, 11x17 e 10x15. Sendo 65 destas fotos de dimensão 10x15, acredita-se que este seja o tamanho padrão das fotografias, sendo os demais utilizados para o registro de momentos específicos. A análise da tabela mostra que com exceção de duas fotos espontâneas, todas as demais são pousadas. Este fenômeno pode ser explicado devido à preocupação da composição do ritual de formatura. Segundo Silva e Silva (2015), a disposição espacial desta cerimônia é elaborada para comunicar algo, envolvendo os gestos, discursos, hinos e narrativas que são ensaiadas para que este rito ocorra com o mínimo de improviso. Sendo assim, o fotógrafo provavelmente preocupou-se em registrar momentos nos quais os formandos já estavam preparados para serem fotografados. Mesmo tendo registrado tais momentos, o fotógrafo não registra a realidade absoluta. Como afirma Rouvillé (2009), a fotografia não é a realidade, mas sim a produção de um novo real que decorre de um processo de registro e transformação. Além disso, o autor salienta que a fotografia não é uma representação da verdade. Considerando as concepções do autor, não tenho aqui o objetivo de reconstruir a cerimônia de formatura do ano de 1968 da forma como a mesma tenha ocorrido e, tão pouco, utilizo as fotografias como verdade e realidade. O objetivo deste trabalho é, a partir das fotografias, analisar os símbolos presentes no rito de formatura da ETC e propor interpretações da importância deste evento, que marca a passagem dos sujeitos do status de alunos para técnicos contabilistas. Inicio com a análise da primeira foto da série.

procura de alunos, que acarretou na desativação da E.T.C. em 1982. Com o fechamento desta, os alunos foram transferidos para outras escolas técnicas (SILVA, 2014).

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Foto 1: Entrada Formatura de 1968

Fonte: Memorial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre A primeira foto da série retrata a entrada dos alunos juntamente com um dos professores na cerimônia. A fotografia mostra as pessoas em fila, movimentando-se em direção ao fotógrafo. No primeiro plano podemos observar uma aluna acompanhada do professor, seguida pelos demais colegas. A fotografia registra um dos momentos importantes da solenidade, que é a entrada dos alunos no local de realização do ritual, onde são prestigiados pela sociedade que participa do evento. Foto 2: Juramento Formatura de 1968

Fonte: Memorial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS

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A Foto 2 permite observar o momento em que os alunos fazem o juramento. Voltados para a mesa, de pé perante as autoridades, com a mão direita estendida, acompanham o aluno juramentista proferir o juramento dos técnicos contábeis, assinalando a passagem de alunos a profissionais. A fotografia foi tirada em plano normal, ou seja, paralelamente à superfície. Embora a preocupação de Rouillé (2009) seja voltada para o fotojornalismo, pode-se utilizar este autor para analisar a série de fotos estudada. Segundo ele, essa angulação tem o objetivo de oferecer uma visão objetiva sobre o que a imagem representa. Destaca-se também nesta foto que, o gesto do juramento não fora feito apenas para ser fotografado, mas como parte do ritual de formatura, que foi captado pela câmera. Para Rouvillé (2009), os gestos são elementos que outorgam sentidos às imagens fotográficas, uma vez que favorecem a construção e a reformulação de ideias sobre aqueles que são representados. Sendo assim, o gesto dos alunos automaticamente remete o observador da imagem ao momento em que juram pela sua profissão. Foto 3: Entrega de diploma Formatura de 1968

Fonte: Memorial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS. A Foto 3 mostra o momento exato em que o aluno recebe das mãos de um dos professores o diploma, juntamente com um cumprimento e uma flâmula. Essa etapa da cerimônia de formatura provavelmente era considerada uma das mais importantes, pois todos os alunos registravam este momento, resultando que 45 fotos da série mostram a entrega do diploma (39 de alunos e 6 de alunas). O diploma é o documento que oficializa o título de técnico contábil, possibilitando que quem o possua possa exercer sua profissão. O cumprimento serve como reconhecimento do professor para com o novo profissional formado. A flâmula contém o símbolo da classe contábil, o nome da ETC, a inscrição do nome da cidade (Porto Alegre) e o ano da cerimônia. Como um suporte de memória, a flâmula é entregue aos alunos para eles não se esquecerem dos momentos que vivenciaram e estudaram naquela instituição. Outro símbolo observado na foto é a medalha no peito do aluno, provavelmente resultado de uma homenagem. Assim como na fotografia anterior, a angulação é normal e a presença do gesto (o aperto de mão e a entrega do diploma nesse caso) outorga sentido à foto, uma vez que “A fotografia é uma unidade de significação precisamente porque se consubstancia num plano” (ROUILLÉ, 2009, p. 65). O primeiro plano traz a entrega do diploma pelo professor ao aluno. A disposição de ambos na foto gera a noção de equilíbrio simétrico. Embora o diploma e o aperto de mão não estejam no centro geométrico nem no centro visual da fotografia, seriam os elementos mais importantes desta imagem.

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O disparo do fotógrafo captou como centro geométrico e centro visual o segundo plano da fotografia, composto pelos formandos que, sentados, apreciam o momento em que o colega recebe seu diploma. Do ponto de visto estético, a fotografia pode não seguir o padrão, uma vez que o olhar do observador não se dirige no primeiro momento para a entrega dos símbolos que marcam a formatura, mas sim para o plano de fundo. No entanto, para a análise do ritual de formatura, a fotografia permite que além da presença dos símbolos, possamos observar o estado em que se encontram aqueles formandos que já passaram ou passarão pela mesa de autoridades. Logo, esse segundo plano adquire importância fundamental, pois como afirma Rouillé, “O que se coloca em primeiro plano, nos planos secundários e ao plano de fundo torna-se assim, extremamente importante, quer para dar força visual à imagem, quer para realçar certos conteúdos” (ROUILLÉ, 2009, p. 72). Além do diploma, da flâmula, do aperto de mão e da medalha no peito do aluno, a análise da Foto 3 permite destacar outros símbolos que marcam este ritual: traje, mesa de autoridades e a disposição dos alunos no espaço. Embora o texto de Pepe Baeza, “Esbozo de modelo de lectura de fotos de prensa para no iniciados” 3, possa ser criticado por não cumprir sua função de proporcionar a leitura de fotos de imprensa, o mesmo pode ser utilizado para entender-se o motivo da presença dos símbolos nessa fotografia. Segundo Baeza (2001), a leitura da imagem deve ser feita a partir do seu contexto de produção e do seu uso. Considerando a proposta do autor, a presença dos símbolos pode ser explicada pelo registro tratar-se de um ritual de formatura, onde eles legitimam a passagem do status dos sujeitos de alunos a profissionais. Quanto ao uso, a foto tem o objetivo de servir como suporte de memória, sendo utilizada por quem a possui como meio para recordar seu passado. Neste caso, o uso da fotografia corrobora com uma das afirmações de FLUSSER (1985), pois segundo o autor, a fotografia tem um valor desprezível enquanto objeto, estando sua importância justamente na informação que ela transmite. Para o autor, a fotografia pode ser considerada o primeiro produto pós-industrial, onde o valor transmite-se do objeto para a informação. Enquanto no Ritual de Formatura da ETC a presença dos símbolos tem a função de legitimação de mudança de status dos alunos, na fotografia que registra este momento, estes objetos contribuem para a construção de sentido da imagem. Conforme Rouillé (2009), os objetos presentes na imagem proporcionam a transmissão de ideia proposta. Foto 4: Alunos formandos do ano de 1968.

Fonte: Memorial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS

3

Capítulo 10 da obra “Por uma función crítica de la fotografia de prensa”, de Pepe Baeza. Ver referências.

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Enquanto nas demais fotografias da série o fotógrafo preocupou-se em registrar momentos individuais ou de apenas parte dos alunos, a Fotografia 4 mostra a preocupação com o registro coletivo. Enquanto as fotografias anteriores mostram a turma de forma partida, fragmentada e dispersa, esta transmite a ideia de coletividade, de turma, de conjunto. Esta última foto aglutina os alunos não mais como indivíduos isolados, mas como sujeitos que possuem uma identidade profissional coletiva. A análise da fotografia permite concluir que a mesma foi tirada em plano normal. A pose dos sujeitos fotografados revela que essa não é uma foto espontânea, mas sim posada, na qual os corpos, expressões e olhares são dirigidos para o fotógrafo. Além disso, a disposição dos alunos no espaço, onde alguns se encontram em uma parte mais elevada que os outros, mostra a preocupação com que todos apareçam. Para reforçar essa ideia, os alunos parecem estar distribuídos de acordo com o tamanho, e com o espaço gerado entre um e outro. O centro visual da fotografia contém o rosto dos sujeitos fotografados, corroborando para a ideia de registro coletivo. O foco da atenção está nos alunos, uma vez que o fundo branco mostra-se neutro em relação a eles. A disposição dos alunos além de uma preocupação espacial é também uma preocupação estética, pois como podemos observar, as alunas formandas encontram-se todas juntas, uma ao lado da outra, na primeira fila de alunos, acompanhadas de uma das autoridades da escola CONSIDERAÇÕES FINAIS A narrativa criada a partir da série fotográfica analisada possibilitou a construção de parte do Ritual de Formatura da Escola Técnica Comercial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre, do ano de 1968. Considerando as fotografias como fragmentos da totalidade (ROUILLÈ, 2009), entende-se que construção de uma narrativa não traduz a verdade ou a realidade do ritual de formatura, mas permite que o mesmo possa ser estudado. Observa-se que o fotógrafo não registra passivamente momentos aleatórios, mas preocupa-se em registrar momentos específicos do ritual, revelando que as imagens foram feitas a partir de uma sucessão de etapas, códigos técnicos, estéticos e ideológicos. Com a preocupação deste estudo em propor aproximações entre Cultura Visual e História da Educação, a proposta de Baeza (2001) em considerar o contexto e o uso que tiveram as imagens estudadas revela-se um elo entre as duas áreas. Considerando a importância social que a cerimônia de formatura possuía para os estudantes da ETC, afirma-se que as fotos foram produzidas com o intuito de registrar este momento, funcionando como suportes de memória. Justamente esses suportes de memória são objetos e fontes de estudo para a História da Educação, que se utiliza dos álbuns e arquivos compostos pelas fotografias, construindo novas narrativas e possibilidades de interpretação. Corroborando com Rouillè (2009), pode-se observar que as fotos cruzam para um plano diferente daquele da captura de imagens, integrando o de espaços que servem de suportes de memória e de conservação de vestígios. Além de arquivar as fotografias, os álbuns e arquivos passam também a ordená-las. Como mostra Rouillé (2009), esses dispositivos não são passivos e, acumulam, conservam e arquivam a partir de um sistema de classificação e redistribuição das imagens capazes de gerarem sentido, coerência e visão do real. Enquanto as fotografias fragmentam o ritual de formatura, a análise do conjunto delas permite ordená-lo, criando um sentido e produzindo uma unidade, ilustrando e informando. A pesquisa mostra a possibilidade de estudos interdisciplinares entre Cultura Visual (GUASH, 2005) e História da Educação (STEPHANOU e BASTOS, 2005). O ritual de formatura somente pode ser estudado porque alguém teve a preocupação de registrar os momentos da cerimônia. A análise das fotografias, a partir de perspectivas da Cultura Visual fez emergir um conjunto de elementos presentes no ritual: a entrada dos alunos no local da cerimônia, como momento de prestígio perante a sociedade; os gestos marcantes do juramento e do cumprimento, que caracterizam a passagem do status de aluno à profissional; o diploma como documento legal que possibilita o sujeito de exercer a profissão; a flâmula entregue aos formandos como suporte de memória; a medalha como símbolo de distinção; o traje para diferenciar o dia da formatura dos demais dias desses alunos; a mesa de autoridades como local dos que já passaram pelo ritual e que agora exercem a função de mestres. Todos estes e outros elementos somente

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puderem ser elencados a partir do rompimento das barreiras entre os dois campos de estudo, que juntos, enriquecem as possibilidades de análise e interpretação. REFERÊNCIAS BAEZA, Pepe. Por uma función crítica de la fotografia de prensa. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2001. DEBRAY, Régis. Vida e Morte da Imagem. Uma História do Olhar no Ocidente. Rio de janeiro: Petrópolis, 1994, p. 205-234. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. GUASCH, Anna Maria. Doce Reglas para una Nueva Academia: La “Nueva Historia del Arte” y los Estudios Audiovisuales. In: BREA, José Luis (ed.). Estudios Visuales: La epistemología de la visualidad en la era de la globalización. Buenos Aires: Akal, 2005, p. 59-74. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma “História Visual”. In: MARTINS, J. S.; ECKERT, C.; NOVAES, S.C. (Orgs). O Imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 33-56. MONTEIRO, Charles. Pensando sobre História, Imagem e Cultural Visual. São Paulo, Unesp, v. 9, n. 2, julho-dezembro, 2013, p. 3-16. ROUILLÉ, André. A Fotografia entre documento e arte contemporânea. São Paulo: SENAC, 2009. SILVA, Bárbara Virgínia Groff da. SILVA, Eduardo Cristiano Hass da. Retratos de Escola: uma análise dos rituais de formatura da Escola Técnica Comercial do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS (1968 - 1969). Trabalho apresentado em: II Encontro de Pesquisas Históricas da PUCRS, 2015. SILVA, Eduardo Cristiano Hass da. Gerações de Técnicos em Contabilidade: Uma Análise Prosopográfica a Partir dos Convites de Formatura. Trabalho apresentado em: 20º Encontro da ASPHE - História da Educação e Imagem 3 a 5 de dezembro de 2014, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. STEPHANOU, Maria. BASTOS, Maria Helena Camara. História, Memória e História da Educação. In: STEPHANOU, M; BASTOS, M. H. C. (Org.). Histórias e Memórias da Educação no Brasil. VIII – Século XX: Vozes, 2005, p. 416-429.

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GUAMAN POMA DE AYALA: A RESISTÊNCIA ANDINA QUE (RE)INVENTA O SUL Marina da Rocha 1 Luise Toledo Kern 2 INTRODUÇÃO A colonização nas terras sul americanas deixa vestígios até os dias de hoje. Esta ferida, ainda aberta, subalterniza subjetividades desde seu início e cria uma América Latina dependente do saber europeu, com um estereótipo de pobreza e marginalização dos povos originários do sul. Este movimento hegemônico, onde o conhecimento é centrado nos padrões europeus, mundializa esse poder, rompendo as barreiras geográficas da dominação e adentrando a perspectiva cognitiva ao naturalizar a submissão latino-americana. La posterior constitución de Europa como nueva id-entidad después de América y la expansión del colonialismo europeo sobre el resto del mundo, llevaron a la elaboración de la perspectiva eurocéntrica de conocimiento y con ella a la elaboración teórica de la idea de raza como naturalización de esas relaciones coloniales de dominación entre europeos y no-europeos. [...] los pueblos conquistados y dominados fueron situados en una posición natural de inferioridad y, en consecuencia, también sus rasgos fenotípicos, así como sus descubrimientos mentales y culturales. (QUIJANO, 2000, p. 202-203) No entanto, apesar da dominação europeia não só sobre as colônias americanas, mas também sobre o mundo, ter ocorrido de forma dominante, é possível identificar movimentos de resistência, principalmente através da luta de personagens que se destacam na busca por (re) construir o sul, através de características do próprio sul. Analisando o processo histórico da América Latina e Caribe, identificamos personagens que representam a resistência à colonialidade ao proporem uma construção social e epistêmica desde as características de nossos povos. A partir de posturas críticas ao colonialismo, propuseram caminhos para criar nações autônomas, solidárias, justas e democráticas [...] (STRECK; ADAMS, 2014, p. 39) Atualmente se fala em críticos da colonialidade, já que esta é uma consequência da colonização. Porém, neste artigo abordaremos especificamente um crítico da colonização, a qual desde os primeiros instantes já fazia suas vítimas em terras sul americanas. O personagem que abordaremos e que se destaca como resistência à colonização e ao abuso de poder nas colônias sul americanas é Felipe Guaman Poma de Ayala. Tendo vivido entre os séculos XVI e XVII na região andina do território peruano, o índio ladino encontra na escrita uma forma de denunciar, ao rei espanhol, as violências mantidas pela colonização e apresenta um novo projeto de governo, baseado na autonomia e auto-organização do povo andino. Para concretizar sua denúncia Ayala desenvolve, durante trinta anos, La Nueva Corónica y Buen Gobierno, a carta contém cerca de 1200 páginas dividas entre desenhos e manuscritos. Nesta didática, o cronista deixa claro a intenção de desenvolver a crônica tanto para aqueles que sabiam ler e escrever, quanto para os que, segundo o autor, seriam os “ciegos” 3. O trabalho de Guaman Poma foi elaborado a partir de seu andarilhar, que durante trinta anos lhe possibilitou alcançar diferentes comunidades andinas e aprender línguas diversas, além de um vasto conhecimento sobre as doutrinas da Igreja Católica, o que lhe proporcionou autenticidade para este longo manuscrito. A crônica é dividida por capítulos, nos quais Ayala apresenta o seu saber sobre o 1 Graduanda em Letras/Português. Bolsista de Iniciação Científica (FAPERGS). UNISINOS. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Psicologia. Bolsista de Iniciação Científica (CNPq). UNISINOS. E-mail: [email protected] 3 Os “ciegos” para Guaman Poma se referem às pessoas que não sabiam ler e escrever, ou seja, grande parte da comunidade indígena.

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catecismo da Igreja Católica como forma de empoderamento para, então, descrever as atrocidades cometidas pelos brancos cristãos que haviam invadido aquelas terras. Temos como objetivo principal para este artigo aproximar-nos às resistências de Guaman Poma a partir da colonialidade, bem como do conceito sulear de Paulo Freire. Para desenvolver este diálogo utilizamos como opção metodológica a pesquisa de base bibliográfica para a qual buscamos documentos em livros e periódicos. Este trabalho é desenvolvido a partir de leituras e discussões realizadas pelo grupo de pesquisa Mediações Pedagógicas e Cidadania, que integra o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale dos Sinos - UNISINOS. O conceito de sulear foi adotado por Freire em oposição ao conceito de nortear. Segundo Streck e Adams (2014, p. 37), O sentido de sulear contrapõe-se à ideologia presente no termo nortear, cujo binômio norte/sul reforçaria [...] uma pretensa superioridade do primeiro sobre o segundo, remetendo-nos às ideias de principal/ secundário, em cima/embaixo, criador/ imitador, respectivamente. Pelo fato de o conceito de Freire representar a não anulação do sul pelo norte, ou seja, o (re)conhecimento de que ambos existem é que decidimos optar pela escolha de tal conceito, já que “Não se trata de uma visão dualista ou maniqueísta, como se norte e sul fosse uma questão geográfica onde bastaria inverter a hierarquia” (STRECK; ADAMS, 2014, p. 37), ou seja, o objetivo quando se fala em sulear não é reconhecer este como “superior” ao norte, mas sim, olhar para o sul e juntamente com esta visão construir um mundo onde tanto o sul quanto o norte possam conviver em harmonia, uma visão na qual o sul não seja marginalizado e tido como inferior. O termo colonialidade está ligado ao colonialismo, no entanto este último se refere muito mais a questão geográfica, enquanto aquele representa as raízes deixadas pelo colonialismo e que subalternizam os países do sul, os quais mesmo depois da colonização ainda se veem como dependentes do norte (STRECK; ADAMS, 2014). Nesse sentido, pretendemos analisar o ato empreendido por Guaman Poma de Ayala não apenas como uma ação realizada na era colonial, mas como uma atitude que deixou uma contribuição sem precedentes no que concerne à colonialidade dos países do sul. DESENVOLVIMENTO Com base em La Nueva Corónica y Buen Gobierno escrita por Felipe Guaman Poma de Ayala pretendemos analisar a importância desse escrito empreendido por Ayala, não somente na época em que foi escrita, mas principalmente como base para uma leitura das heranças coloniais que culminaram na chamada colonialidade. Além de, ressaltar o papel do cronista como personagem de resistência de grande importância contra a dominação europeia e mais especificamente espanhola. GUAMAN POMA: ROMPENDO AS BARREIRAS DO SILÊNCIO Eu, o autor dom Felipe Guaman Poma de Ayala, digo que o leitor cristão estará maravilhado e espantado de ler este livro, crônica e capítulos, querendo saber quem me ensinou isso e como pude saber tanto [...] Pois eu te digo que me custou trinta anos de trabalho, se não me engano, mas certamente vinte anos de trabalho e pobreza. Deixando minhas casas, filhos e fazendas, trabalhando, entrando no meio dos pobres e servindo a Deus e a sua Majestade, aprendendo as língua, a ler e escrever, servindo aos doutores ao que não sabem e aos que sabem. (SUEES, 1992, p. 629) A longa trajetória de Guaman Poma, iniciou a partir da percepção da opressão vivenciada pelo povo andino. O andarilho era de uma descendência indígena nobre, sendo assim, possuía terras e tinha uma posição elevada no povoado. Justamente por isso, foi possível, para Ayala, perceber com maior clareza a dominação espanhola sobre os indígenas daquela região.

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A fim de empoderar sua denúncia Guaman Poma aos poucos se apropria da doutrina católica. Dessa forma, enriquece sua argumentação tentando dissuadir a coroa espanhola de que os colonizadores em suas terras não estavam seguindo a religião cristã como deveriam. Além disso, afirmava que eles próprios, o povo andino já era católico antes mesmo da ocupação espanhola. Nesse sentido, no decorrer da escrita de La Nueva Corónica y Buen Gobierno o autor demonstra o seu conhecimento sobre a doutrina e apresenta situações que não condizem com o ensinamento dessa religião. O que podemos observar no trecho a seguir: Como os ditos padres das doutrinas de cada povo tomam a fazenda das ditas igrejas ou dos confrades ou do hospital e as levam consigo, dizendo que é ajuda e gastam de modo digno de castigo. E assim pede porque recebeu ajuda do corregedor ou do visitador; sob esse pretexto rouba dos índios suas fazendas e comunidade. (SUEES, 1992, p. 627) Essas denúncias feitas por Guaman Poman revelam o olhar indígena sobre algumas das atrocidades vivenciadas pelo seu povo. Além disso, podem ser observadas como formas de resistência do sentimento de angústia vinculado a sensação de impotência momentânea, já que na crença do autor, a partir dessa escrita se solucionariam os problemas da colonização após a entrega ao rei Felipe III. Conforme Chan Rodriguez (s/d), “[...] O modo de fazer história deste cronista indígena implica a recepção e a recodificação do padrão cultural hegemônico para darmos uma versão diferente dos fatos[...]” (tradução nossa). É neste sentido que durante a escrita de sua carta Guaman Poma acusa o mundo ao revés e repete incansavelmente “y no hay remédio”, como forma de repudiar as práticas violentas da dominação espanhola. Aparentemente, “y no hay remédio” é um pequeno termo, mas para esta crônica, parece ser o ponto chave da complexidade da obra. Guaman Poma utiliza este refrão para reafirmar sua denúncia, ao concluir seus relatos afirmando não haver remédio para tais situações. O “mundo ao revés” como representação do fim do mundo para os indígenas (MORETTI; STRECK, 2015) é o que sustenta o termo tão repetido pelo cronista. Relatar não haver remédio para o mundo que está ao avesso parece representar uma angústia de medo dos povos invadidos que está descrita durante grande parte da crônica. A imagem a seguir, concretiza e anuncia os medos indígenas, problematizando a partir da metáfora, simbolizando a castração cometida pela exploração.

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Conforme a imagem apresenta, são estes os seis animais que comem e matam o índio e os impedem de ser e viver com autonomia e liberdade. Para isso, segundo Guaman Poma o único remédio é o novo governo indicado em sua obra, que busque a auto-organização e a liberdade do povo andino. “Y no hay remédio” parece ser o refrão principal que simboliza a denúncia da crônica que caminha para uma solução, que anunciada por Ayala, é o remédio para a libertação. Após trinta anos, a carta destinada ao rei espanhol é levada pelo próprio autor, em uma peregrinação de Huamanga até Lima, porém não há registros da entrega desta crônica ao destinatário. Segundo Chang-Rodriguez (s/d), “[...] a obra que Guaman Poma de Ayala havia posto tantas esperanças permaneceu esquecida por mais de três séculos [...]” (tradução nossa). A referida obra apenas foi encontrada no ano de 1908, na Biblioteca de Copenhagen. GUAMAN POMA, COLONIALIDADE E O SULEAR É a partir tanto de sua percepção do que ocorria a sua volta, quanto de suas estratégias de argumentação que Ayala vai encontrar na escrita a forma de denunciar ao rei espanhol Felipe III as atrocidades e abusos de poder ocorridos na colônia andina. Consequentemente, Guaman Poma anuncia nesse seu ato a luta contra a colonialidade que perdura até os dias atuais. Segundo Streck e Adams (2014, p. 36), a colonialidade: Trata-se da forma atualizada e desterritorializada da relação de dependência e subalternidade. Em síntese, enquanto o colonialismo tem claras ligações geográficas e históricas, a colonialidade atua como uma matriz subjacente ao 4

Dibujo 272. Seis animales que los pobres indios de este reino temen: el corregidor, una sierpe; el español de tambo, un tigre; el encomendero, un león; el padre doctrinante, una zorra; el escribano, un gato; y el cacique principal, un ratón. Disponível em: http://www.kb.dk/permalink/2006/poma/708/es/image/?open=

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poder colonial que seguiu existindo após as independências políticas de nossos países e que hoje se perpetua pelas variadas formas de dominação do norte sobre o sul. O colonialismo, caracterizado como o domínio europeu sobre as metrópoles do sul, foi o princípio do início da colonialidade, no entanto esta vai além da outra, já que mesmo após as independências políticas desses países sul-americanos, é possível observar que o domínio europeu e, atualmente o norteamericano perpetuam a superioridade do norte sobre o sul. Segundo Aníbal Quijano (2009, p. 73), A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-se a partir da América. Originando-se a partir da América e, mais especificamente da América Latina a colonialidade nos remete ao termo criado por Paulo Freire e chamado de “sulear”. Segundo Adams (2010, p. 386) “Em decorrência das relações desiguais de poder econômico e político, a posição do Norte em relação ao Sul continua com seus instrumentos e estratégias atualizadas de colonialidade”. Nesse sentido, é que podemos relacionar o termo “sulear” ao de colonialidade, já que para Freire tal termo caracterizava o processo em que o sul criaria autonomia com relação ao norte em busca de sua emancipação (ADAMS, 2010). Nas palavras de Freire na obra Pedagogia da esperança (1992, p. 113), Nas questões de orientação espacial, sobretudo com relação aos pontos cardeais, também os problemas são graves. As regras práticas ensinadas aqui são práticas apenas para quem se situa no hemisfério Norte e a partir de lá se norteia. A imposição dessas convenções em nosso hemisfério estabelece confusões entre os conceitos de em cima/embaixo, de Norte/ Sul e especialmente de principal/ secundário e superior/inferior. Nesse sentido, quando empregamos o conceito de “sulear”, ressaltamos a visão de mundo a partir do sul, desmistificando a visão de que todo o conhecimento superior vem do norte, enquanto o sul fica em segundo plano, inferior ao norte. Sendo assim, acreditamos que o sul não é inferior ou superior ao norte, mas sim, reconhecemos que o sul também é capaz de construir sua história e cultura a partir de si mesmo e de suas características. O ato empreendido por Felipe Guaman Poma de Ayala, ainda que na época da colonização, já possuía essa característica do “sulear”, pois a partir do momento em que um indígena de origem sul americana cria um documento que mais do que qualquer outra coisa, busca a emancipação e a autoorganização de seu povo, podemos destacar elementos que nos remetem ao (re)conhecimento do sul. Guaman Poma busca provar através de argumentos concretos e bem articulados, que o povo andino tem condições de viver e se organizar sem a intervenção dos espanhóis, ou seja, que os habitantes sul americanos e, mais especificamente os andinos tem de ser reconhecidos como donos da terra, de sua cultura e de sua sociedade. Ayala ainda afirma que o mal da terra está ligado aos espanhóis, já que os índios do povoado aprendem só o que é pior destes. Como os índios aprenderam o pior. Devendo antes aprender o bom de cristãos, ensina o pior. E não têm remédio porque o mundo está perdido. Embora ensinem o santo evangelho, não acreditam nos mestres; tendo sido perguntado quem lhes ensinou tantas velhacarias, responde que foi uira cocha, porque eles são cobiçosos de prata, ouro, roupa, ladrão, sodomita, prostituta,

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desobediente a Deus e a seu rei; luxúria, soberba, avareza, gula, inveja, preguiça, tudo trouxe a este reino. Isto responde. (SUESS, 1992, p.) Ayala deixa explícito em sua grande carta que a intervenção espanhola não deixa remédio para curar os males que assolam aquela região, males esses trazidos e difundidos pelos próprios europeus. A brusca ruptura com seus conhecimentos e sua cultura original, bem como a influência e imposição da cultura europeia, culminou em que os nativos e posteriormente os latino-americanos tivessem que buscar, segundo Ibáñez (2010, p. 23) “uma racionalidade renovada e alternativa” (tradução nossa), a qual só pode ser conquistada através da resistência: ...los latinoamericanos heredamos dos vacíos: el del racionalismo del siglo XVIII europeo, y el vacío de nuestra intuición indígena ancestral interrumpida por la dominación cultural de la conquista y la colonia. La revolución debe ser también, em certo sentido, uma forma de recuperación de la razón ausente y la intuición abortada. (Serrano apud Ibáñez, 2010, p. 23). Sendo assim, o gesto de resistência empreendido por Ayala já é o início da busca pela razão e pela instituição de sua terra dominada. Através da resistência iniciada pela escrita e pelas imagens criadas por Guaman Poma podemos vislumbrar um gesto que ultrapassa a utopia e que procura concretizar a autonomia outrora perdida. Através da visão do sul e para o sul, já que se trata de um cronista indígena, o qual sofreu na pele os males da invasão europeia, o que nos faz vislumbrar, assim, o início da luta contra a colonialidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Felipe Guaman Poma de Ayala é um autor de grande importância no que se refere a uma (re)construção das formas de resistência do sul. O fato de ser fruto do tempo e espaço em que vivia torna o cronista um crítico da colônia, com um olhar atento e rico em detalhes já que possuía visão privilegiada dos acontecimentos da época. Os escritos e imagens deixados por Guaman Poma trazem em seu bojo as consequências desde tenros tempos da sobreposição do norte sobre o sul, onde os costumes e cultura dos povos originários do sul eram descaracterizados e seu povo era submetido a diferentes e diversas formas de exploração. O estudo realizado a partir dos materiais produzidos por Guaman Poma e que chegaram em nossos tempos, relevam características de uma pedagogia latino-americana que quando estudada a fundo revela as raízes do cenário atual no qual vivemos. Já que nesses escritos nos é possível, por exemplo, identificar qual a visão que tinham os nativos das terras sul americanas, já que grande parte dos materiais escritos sobre a conquista das terras do sul é escrita pelos próprios europeus. Esperamos que a partir desse estudo e de outros, se possa estabelecer pontos de vista sobre a colonização a partir dos próprios colonizados. REFERÊNCIAS AYALA, Felipe Guaman Poma de. Nueva Corónica y Buen Gobierno. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1993. CHANG-RODRIGUEZ, Raquel. Sobre los cronistas indigenas del peru y los comienzos de una escritura hispano-americana. The city college, Cuny, s/d. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. IBÁÑEZ, Alfonso. Utopías y emancipaciones desde Nuestra América. San José, Costa Rica: DEI, 2010. MORETTI, Cheron Z.; STRECK, Danilo R. Felipe Guaman Poma de Ayala: entre resistências e subalternidades na pedagogia (des)colonial. LASA – Latin American Studies Association, 2015.

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QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Marua Paula (orgs.). Coimbra: Edições Almedina. SA, 2009. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Argentina: Gráficas y Servicios, 2000. STRECK, Danilo, REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime (orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2a. ed. rev. e amp. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. STRECK, Danilo R.; ADAMS, Telmo. Pesquisa participativa, emancipação e (des)colonialidade. Curitiba: CRV, 2014. SUESS, Paulo. A conquista espiritual da América Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992.

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E MUSEUS: O MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DO COLÉGIO ANCHIETA (1908) - PORTO ALEGRE, RS Nara Beatriz Witt 1 INTRODUÇÃO A temática de museus escolares vem sendo pesquisada no campo da Educação, ao contrário do que ocorre no campo da Museologia, em que ainda são escassos os estudos que se debruçam sobre o assunto. Nesse sentido, a realização de um mapeamento de museus existentes em escolas na cidade de Porto Alegre no âmbito da Museologia contribuiu para identificar possibilidades de investigações, vislumbrando um diálogo entre as duas áreas 2. Entre as possibilidades reveladas, o levantamento indicou o potencial de pesquisa do Museu de Ciências Naturais do Colégio Anchieta, um museu de escola constituído a partir de coleções de História Natural. Para a continuidade das investigações do tema são fundamentais os aportes teóricos metodológicos da História da Educação, na vertente da História Cultural, cujo objetivo é dar a ver o percurso do Museu do Colégio Anchieta, que inicia a partir de sua criação, em 1908, sob o nome de Museu de História Natural do Colégio Anchieta, história ainda não investigada. Cabe salientar que o exposto é parte do projeto de dissertação, assim alguns aspectos levantados ainda serão desenvolvidos. Para construir a proposta, utilizou-se a consulta e a análise de fontes textuais e visuais - relatórios de atividades da escola, edições comemorativas da revista da instituição, compêndios didáticos, bem como uma coleção de objetos localizada no museu, produzidos com ilustrações. Trata-se de quadros murais usados como recurso pedagógico para o ensino de ciências com o Método Intuitivo Pretende-se fazer aqui apontamentos que auxiliarão no desenvolvimento da pesquisa para compreender o Museu de História Natural do Colégio Anchieta e os museus escolares, inseridos em uma prática escolar que a partir do final do século XIX, como recurso pedagógico, passam a utilizar objetos e sua observação para a aprendizagem, estabelecendo, ainda, relações com os museus de História Natural que vinham sendo criados no Brasil. O texto apresentado a seguir está dividido em dois segmentos. No primeiro segmento mostra um quadro histórico que propiciou a inserção de museus em escolas como recurso pedagógico para a utilização com o Método Intuitivo e as Lições de coisas, instituindo uma relação com os museus de História Natural. No segundo segmento aponta aspectos da história do Museu do Colégio Anchieta, arrolando os pressupostos teóricos e conceitos que serão utilizados para o desenvolvimento da pesquisa. UM QUADRO HISTÓRICO: MUSEUS ESCOLARES E MUSEUS DE HISTÓRIA NATURAL O estudo considera como museus escolares os museus em escolas que guardam, conservam, pesquisam e expões materiais para utilização no ensino e, ainda, vinculados à memória da escola. Os museus escolares foram criados para as duas funções, ensino e memória, em momentos distintos. A partir do final do século XIX, em diferentes países, as escolas passam a ter museus voltados para o ensino, constituídos de objetos como recursos pedagógicos. Os museus em escolas voltados à memória começam a ser criados na Europa, no final do século XX, para salvaguarda da cultura material escolar, considerada como patrimônio educativo (FELGUEIRAS, 2005; 2011). No Brasil, conforme a autora, isso ocorre a partir dos anos de 1990, o que foi constatado no mapeamento realizado em Porto Alegre. Destaca-se, ainda, que esses espaços também têm sido denominados de memoriais. Contudo, para o estudo interessam os museus que foram atrelados ao ensino como inovação pedagógica. Buscando seus antecedentes, verifica-se uma aproximação entre Educação e Museologia em um contexto histórico, para além do caráter educativo dos museus presente desde sua origem. Na América Latina, na transição para o século XX, era atribuída aos museus a função de ampliar o alcance 1

Museóloga - Mestranda em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPQ. Estudo realizado para o Trabalho de Conclusão do Curso de Museologia, integrando as pesquisas no Projeto Museu no espaço escolar: de laboratório de aprendizagem à musealização contemporânea (RS, século XX), coordenado pela profa. Dra. Zita Rosane Possamai. 2

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da educação popular e de pesquisa no âmbito da História Natural, constituindo-se museus como instituições científicas e para a formação, incluindo os museus escolares (LOPES, MURRIELO, 2005). No âmbito da Educação, destaca-se a utilização de novos métodos de ensino escolar – o Método Intuitivo e as Lições de coisas (VIDAL, 1999, 2012; POSSAMAI, 2012), tendo sido considerado o mais adequado à instrução das classes populares, capaz de reverter a ineficiência do ensino escolar (SCHELBAUER, 2005). A partir da observação dos objetos, a finalidade do museu escolar era: [...] ser observado pelos alunos, ser exposto, ser acessível. Para isso, ou deve ter produtos reais ou recorrer a gravuras rigorosas, fidedignas do real, pois participa de um processo de educação do olhar, de observação rigorosa e, simultaneamente, de organização do pensamento em categorias. (FELGUEIRAS, 2011, p. 83). No âmbito da História dos museus no Brasil, originavam-se os primeiros museus, os museus de História Natural (LOPES, 1997; SCHWARCZ, 2012), os quais forneciam matéria prima e produziam registros para investigações acerca do humano e do natural, numa nova inteligibilidade do científico (VIDAL, 2012). Quanto aos museus escolares: [...] se o fim do século XIX pode ser visto como a “era dos museus brasileiros”, certamente esta afirmação não se restringe à atuação das grandes instituições museológicas [...] desconheceu o formato mais simples de museus constituídos no Brasil: os museus escolares. (VIDAL, 1999, p.109). A autora aponta a criação do Museu Nacional (1808), do Museu Paraense Emílio Goeldi (1866) e do Museu Paulista (1894), indicando também a inserção dos museus escolares na “era brasileira dos museus”, conforme denomina Lilia Schwarcz (2012). No contexto de origem dos primeiros museus brasileiros, também se pode destacar o Pedagogium (1890-1919), um museu pedagógico fundado no Brasil, que colocou o país em um movimento internacional de criação de museus de educação, conforme destaca Bastos (2002). Voltado para a formação dos professores: O Pedagogium ministrava cursos e conferências, que versavam sobre métodos de ensino e sobre ciências matemáticas, física e história natural, cujo conhecimento é indispensável aos professores, para o perfeito desempenho dos programas escolares modernos. A ênfase no conhecimento científico, tanto nos cursos e conferências como nos gabinetes e laboratórios implantados, refletia a modernidade pedagógica republicana. (BASTOS, 2002, p.281). Sily (2012) também aborda a aproximação entre museu e ciência nas atividades do Museu Nacional do Rio de Janeiro, destacando sua contribuição para o ensino e o estudo das ciências naturais, tendo sido importante para: [...] organizar, classificar cientificamente e distribuir para estabelecimentos de ensino, coleções didáticas de história natural, compostas com espécimes dos reinos animal, vegetal e mineral, existentes no próprio Museu ou enviadas pelas escolas para esses fins. Da mesma forma, um pouco mais tarde, passou a confeccionar quadros murais didáticos sobre essas mesmas temáticas a fim de evitar que fossem importados, devendo reproduzir nesses materiais espécimes nacionais [...]. (SILY, 2012, p.73). Possamai (2012) aponta a colaboração do Museu do Estado do Rio Grande do Sul (1903) 3 para a renovação do ensino, formando coleções de ciências naturais para utilização nas escolas no exercício do método intuitivo. A instituição fornecia materiais necessários ao ensino das Lições de Coisas para as escolas. 3

Denominado Museu Julio de Castilhos, em 1907.

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Desse modo, conforme Bastos (2005), o uso dos objetos permitia a visualização real e concreta dos temas tratados nas aulas e nos compêndios. Para isso, os museus escolares eram compostos por acervos naturais e objetos produzidos pela indústria, com materiais visuais para o ensino. Quanto à guarda e à exposição dos materiais didáticos, podiam ser reunidos em sala própria ou expostos em armários (PETRY, 2013), ou mesmo nas salas de aula, como os quadros murais que ficavam expostos na parede, cuja coleção também era considerada um museu escolar. Os quadros murais - destinados ao ensino de ciências continham ilustrações para representar a natureza e processos da indústria. Esses e outros objetos eram produzidos e comercializados por empresas de diversos países (GUERRA, 2008), entre elas a Maison Deyrolle 4 na França. No ano de 1879 Lições de coisas foi preconizado pela primeira vez na legislação brasileira por Leôncio de Carvalho (BASTOS, 2013). Em 1890, o decreto nº 980 estabeleceu que cada escola primária devia ter um museu escolar provido de coleções mineralógicas, botânicas e zoológicas (BASTOS, 2000). Contudo, os estudos no Brasil ainda não localizaram museus escolares constituídos no século XIX. Até o momento, foram levantados somente museus criados nas escolas a partir do início do século XX (PETRY, 2013; WITT, 2013). Este é o caso de museus existentes identificados na cidade de Porto Alegre, incluindo-se o Museu de História Natural do Colégio Anchieta, fundado em 1908. O estudo de sua história poderá permitir compreender a relação dos museus em escolas com o Método Intuitivo e as Lições de coisas, bem como com os museus de História Natural. Alguns aspectos dessa história são apresentados a seguir. O ESTUDO DO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DO COLÉGIO ANCHIETA: APONTAMENTOS, PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E CONCEITOS No levantamento de museus nas escolas da cidade de Porto Alegre, situada no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, foram localizados cinco museus de ciências, dois museus históricos e seis denominados memoriais 5. Dentre esses espaços, destacou-se para futuros estudos o Museu de Ciências Naturais do Colégio Anchieta, denominado atualmente como Museu de Ciências Naturais do Colégio Anchieta. Embora seja o mais antigo entre eles, ainda não foi pesquisado, revelando-se um espaço de ensino e de pesquisa científica, com acervo didático e científico, que conserva, pesquisa e expõe. A pesquisa será desenvolvida no âmbito da História Cultural, que amplia a pesquisa histórica para novos objetos de estudo e abordagens (PESAVENTO, 2003), possibilitando reconfigurações no âmbito da História da Educação (NÓVOA, 2003), em que se pode inserir a história dos museus nos estudos de história da educação (POSSAMAI, 2014). O Colégio Anchieta foi fundado, em 1890, por jesuítas, com o nome de Colégio dos Padres. Sua sede inicial estava localizada na atual Rua Duque de Caxias. Em 1897, seu nome é alterado para Colégio São José, e em 1901, para Colégio Anchieta. Em 1967, a nova sede, em outro endereço, é inaugurada (COLÉGIO ANCHIETA, 1990), contemplando também um espaço para a mudança do museu. O Museu do Colégio Anchieta começou a ser constituído, em 1908, pelo Pe. Pio Buck (18831973), com acervo de História natural. Seu fundador era entomólogo, realizava excursões ao interior do Estado para coletar exemplares, formando uma importante coleção de insetos e um acervo zoológico, representativo da fauna do Rio Grande do Sul (REVISTA, 2008). Além dos materiais coletados da natureza, o Museu, enquanto um museu escolar, também adquiriu objetos produzidos pela indústria para o ensino de ciências. Entre eles, destaca-se alguns quadros murais que permaneceram na instituição, os quais possuem ilustrações que representam a natureza - com elementos da flora, fauna e mineralogia. Documentos textuais e visuais do acervo institucional revelam, através de relatórios, revista da escola, compêndios didáticos e os quadros murais – o uso do Museu para auxiliar na aprendizagem com o Método Intuitivo e para as Lições de coisas. Os relatórios anuais de atividades do Colégio Anchieta informam sobre o início da utilização do Método Intuitivo e das Lições de coisas na escola, o que ocorre 4

Aberta desde meados do século XIX, produz e comercializa quadros murais, animais taxidermizados e outros materiais. Ver mais em: . 5 Pesquisa realizada durante o ano de 2013.

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a partir do ano de 1912 (RELATÓRIO, 1912), bem como objetos adquiridos pelo Museu, utilizados como materiais didáticos, incluindo os quadros murais para o ensino de ciências e outras matérias (RELATÓRIO, 1914). A investigação, em andamento, destaca o papel da cultura material e da cultura visual para os estudos da História da Educação, tomando a cultura material escolar, segundo Felgueiras (2005), como os objetos que fazem parte de um conjunto de relações e funções para perceber e explicar problemas históricos. Conforme Hernandez (2005), a cultura visual pode ser considerada como um campo de confluência de diversas disciplinas e seus pressupostos teóricos, para o autor, podem auxiliar a explorar a dimensão social e cultural do olhar. Na perspectiva da cultura visual, o estudo dos quadros murais e dos compêndios didáticos, os quais também possuem ilustrações, pode auxiliar, segundo Meneses (2003), a caracterizar transformações históricas da visualidade e da visão por meio da historicidade dos registros visuais. Com esse viés o aspecto da visualidade pode ser explorado no Museu, uma vez que, seu acervo, natural ou remanescente de objetos produzidos pela indústria, possui uma visualidade. Os quadros murais encontrados no acervo desse museu foram em sua maioria fabricados pela empresa Maison Deyrolle. Utilizados no ensino para substituir materiais que não pudessem ser representados em realidade, assim deveriam ser por desenhos e modelos, para serem vistos pelos alunos (VIDAL, 1999; SILY, 2008). Nesse aspecto, pode-se entender o desenho como uma representação, dando a ver uma coisa ausente, conforme Chartier (1990). Desse modo, o conceito de representação também poderá ajudar na compreensão do objeto de estudo e para pensar a relação entre os objetos e o Museu. É possível, ainda, compreendê-lo no contexto dos museus escolares, bem como, no cenário de criação dos museus de História Natural no país. Aponta-se esse museu como facilitador para a aprendizagem e voltado para a ciência na esfera da pesquisa científica. Para Chartier, “As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.” (CHARTIER, 1990, p.17). Dessa forma, ensino e ciência, estavam presentes em suas práticas. Pode-se refletir acerca das representações desse museu em relação a suas práticas e aos sujeitos envolvidos, integrantes do museu - padres jesuítas que faziam parte da comunidade escolar e científica. Isso pode ser observado no intercâmbio que Pe. Pio, fundador do museu, estabelecia com inúmeras instituições científicas, mantendo correspondência regular com diversos museus nacionais e estrangeiros (RELATÓRIO, 1967). Com o Método intuitivo e as Lições de coisas se tem uma aprendizagem voltada para o olhar, atenta às representações da natureza; a partir da materialidade dos objetos do acervo se tem uma visualidade. Assim, a pesquisa buscará compreender as relações entre o Museu de História Natural do Colégio Anchieta e a utilização de imagens no ensino da natureza com a concepção do Método Intuitivo e das Lições de coisas, em que a escola passava a utilizar objetos e sua observação como recurso pedagógico. Entretanto, é necessário destacar que o Museu do Colégio Anchieta perpassa a relação com os museus escolares, quanto a sua utilização com o Método intuitivo de ensino, pois suas atribuições vão além da escola no âmbito da pesquisa científica, o que constitui um desdobramento do estudo a ser explorado na dissertação. Com essas aproximações, a pesquisa possibilita fazer um diálogo entre a História da Educação e a História dos museus, nos domínios da História Cultural. CONSIDERAÇÕES FINAIS O museu que está sendo investigado não é um museu histórico, mas mesmo sendo um museu de ciências também detém historicidade. Isso ficou em evidência durante a pesquisa realizada para a construção do projeto de dissertação, uma vez que, verificou-se o potencial do objeto de estudo para se estabelecer relações do Museu do Colégio Anchieta com o Método Intuitivo e as Lições de Coisas, a fim de compreendê-las a partir dos objetos.

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O trabalho, que ainda está em andamento, destaca, então, o papel da cultura material escolar e da cultura visual escolar para os estudos em História, em Educação e em Museologia. Pode-se estabelecer um diálogo interdisciplinar entre os campos para as investigações dos museus escolares, contribuindo para a história dos museus, uma vez que são escassos os trabalhos na perspectiva da Museologia de constituir a sua história. Afora a importante vinculação com o ensino em suas atividades como um museu inserido na escola, até o momento da pesquisa também foi possível perceber o expressivo caráter científico da instituição. Além da coleta, da organização e da exposição do acervo, suas ações se voltam para fora do ambiente escolar, contribuindo com a conservação de espécimes para pesquisas. Ainda indica participar, através de seus pesquisadores e de publicações de suas pesquisas científicas, de uma rede de informações com outras instituições e cientistas, mostrando um caráter de troca, de intercâmbio com outros países. REFERÊNCIAS BASTOS, Maria Helena Camara. Ferdinand Buisson no Brasil – pistas, vestígios e sinais de suas idéias pedagógicas no Brasil (1870-1900). História da Educação. ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas. p.79109, set. 2000. Disponível em: . Acesso em: 27 ab. 2015. ______. Pro Patria Laboremus: Joaquim José de Menezes Vieira (1848-1897). Bragança Paulista: EDUSF, 2002. ______. A educação como espetáculo. In.: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Camara. Histórias e memórias da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes. 2005. v. 2. p. 116-131. ______. Método Intuitivo e Lições de Coisas por Ferdinand Buisson. História da Educação. (Online). Porto Alegre, v.7, n.39, jan./ab. 2013, p. 231-253. Disponível em: . Acesso em: 27 ab. 2015. CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. COLÉGIO ANCHIETA. Colégio Anchieta: cem anos. Edição comemorativa dos 450 anos da Fundação da Companhia de Jesus. Porto Alegre. 1990. FELGUEIRAS, Margarida Louro. Materialidade da cultura escolar: A importância da museologia na conservação/comunicação da herança educativa. In: Pro-Posições (Revista da Faculdade de Educação). UNICAMP. v. 16, nº 1 (46), jan./abr. ex. 1, p. 87-102. 2005. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013. ______. Herança educativa e museus: reflexões em torno das práticas de investigação, preservação, e divulgação histórica. In: Revista Brasileira da História da Educação. Campinas. SP, v. 11, nº 1 (25), jan./abr. 2011. p. 67-92. Disponível em: . Acesso em: 28 maio 2013. HERNÁNDEZ, Fernando. De qué hablamos cuando hablamos de cultura visual. Educação e Realidade, v.30, n.2, jul./dez. 2005, p.9-34. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec. 1997.

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MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revisa Brasileira de História, São Paulo, v.23, n. 45, p.11-36, 2003. NÓVOA, António. Textos, imágenes y recuerdos. Escritura de "nuevas" historias de la educación. In: POPKEWITZ, Thomas S.; FRANKLIN, Barry M.; PEREYRA, Miguel A. (Orgs.). Historia Cultural y educación: ensayos críticos sobre conocimiento y escolarización. Barcelona, Mexico: Pomares, 2003. p. 61-103. 2003. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. PETRY, Marilia Gabriela. Da recolha à exposição: a constituição de museus escolares em escolas públicas primárias de Santa Catarina (Brasil -1911 a 1952). Dissertação. (Mestrado em Educação). Centro de Ciências Humanas da Educação. UDESC. 2013. POSSAMAI, Zita Rosane. “Lição de Coisas” no museu: o método intuitivo e o Museu do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, nas primeiras décadas do século XX. In: Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, v. 20, n. 43, 2012. ______. Olhares cruzados: Interfaces entre História, Educação e Museologia. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 3, n. 6. 2014, p.17-32. RELATÓRIO anual do Colégio Anchieta. Porto Alegre. 1912. RELATÓRIO anual do Colégio Anchieta. Porto Alegre. 1914. RELATÓRIO anual do Colégio Anchieta. Porto Alegre. 1967. REVISTA Anchieta. Porto Alegre: Publicação oficial do Colégio Anchieta, n. 20, ano VI, dez./2008, p.12-18. SCHELBAUER, Analete Regina. O método intuitivo e Lições de coisas no Brasil do século XIX. In.: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Camara. Histórias e memórias da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes. 2005. v. 2. p.132-149. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. SILY, Paulo Rogério Marques. Casa de ciência, casa de educação: Ações educativas do Museu Nacional (1818-1935). Tese. (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Educação e Humanidade. Faculdade de Educação. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2013. VIDAL, Diana Gonçalves. Por uma pedagogia do olhar: os museus escolares no fim do século XIX. In: VIDAL, Diana Gonçalves; SOUZA, Maria Cecília Cortez Christiano de Souza (Orgs.). In: A memória e a sombra: a escola brasileira entre o Império e a República. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p.107-115. ______. Museus pedagógicos e escolares: inovação pedagógica e cultura material escolar no Império Brasileiro. In: História e historiografia da educação ibero-americana: projeto, sujeitos e práticas. ALVES, Cláudia; MIGNOT, Ana Crystina (Orgs.). Rio de Janeiro: Quartet – Faperj – SBE, 2012 WITT, Nara Beatriz. Ensino ou memória: (in) visibilidades dos museus escolares em Porto Alegre/RS. Monografia. (Bacharelado em Museologia). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2013.

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LEVANTAMENTO HISTÓRICO DA FUNDAMENTAÇÃO DA METODOLOGIA DA CATEQUESE NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL Mariana Parise Brandalise Dalsotto 1 INTRODUÇÃO Ao considerar a educação como um fenômeno histórico que perpassa todas as pessoas, em todos os momentos e lugares de sua existência, podemos pensar que é possível haver inúmeras formas de ensino e aprendizagem. A educação faz parte de um processo social, não sendo mera transmissão de conhecimentos, mas sim, entendida como oportunidade para a construção dele. Assim, ela ajuda a entender o contexto social em que estamos inseridos e, visando a formação integral, utiliza conteúdos e saberes para uma atuação crítica através da significação que a relação entre conteúdo e realidade pode proporcionar. Abrindo o olhar para as diferentes práticas da educação, além daquela efetivada no processo escolar formal, percebemos que uma das instituições históricas que a promovem é a Igreja Católica que, por meio da catequese, busca dar formação e aprendizagem para a vida cristã. Neste sentido, para que se faça uma compreensão de catequese contextualizando-a, buscarei explicitar alguns tópicos que a envolvem. O primeiro a ser abordado é o próprio conceito de catequese, para que a partir deste possamos estudar alguns outros conceitos como os de iniciação cristã e de evangelização e mesmo para entender como podem ser interligados com os de autonomia e dialética, os quais serão importantes para a delimitação do projeto. Para auxiliar com esta definição, vou recorrer à história da catequese na Igreja Católica ao longo dos séculos, começando pelo documento “Diretório Geral para Catequese” (DGC), um documento para a instrução catequética do povo, prescrito e inspirado pelo Concílio Vaticano II 2. A Congregação para o Clero que, entre outras coisas, “cuida de tudo o que se refere à pregação da Palavra de Deus (…) promove e aprova os diretórios pastorais e catequéticos” 3, consultou as conferências Episcopais e formou uma comissão de especialistas para organizar este documento, o qual em 1971 foi definitivamente aprovado e promulgado por Paulo VI. O DGC (1971) apresenta o “conceito de catequese como escola da fé, como aprendizado e tirocínio de toda a vida cristã”, enfatiza também que a catequese é “a missão evangelizadora da Igreja” e está ligada com a ação litúrgica e sacramental. Além disso, apresenta como finalidade da catequese, a “promoção da comunhão com Jesus Cristo” e a formação para o apostolado e para a missão como uma de suas principais tarefas. Mais à frente no texto, aprofundarei estas questões brevemente colocadas aqui. Na cidade em questão, Caxias do Sul, há duas fontes de inspiração para os encontros. Optarei por comentar uma delas que, publicada em 2010, foi formulada pela Coordenação Diocesana 4 de Pastoral e pela Equipe Diocesana de Caxias (constituídas por padres, irmãs religiosas e leigos) que partiram das experiências vivenciadas na catequese, observando as orientações dos documentos da CNBB e da Igreja Católica (representada pelo Vaticano), e tendo como fonte inspiradora a Bíblia. O conteúdo da catequese é baseado nos acontecimentos e ensinamentos da Bíblia a partir do nascimento e vida de Jesus Cristo (portanto, no Novo Testamento) e acontece baseada no calendário do

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Pedagoga. Mestranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]. O Concílio Vaticano II foi último grande concílio ecumênico feito para restaurar a organização da Igreja. Este concílio foi um momento de reunião de bispos do mundo todo para debater sobre algumas questões que envolvem a igreja com o objetivo de reformulá-las aproximando-a mais de seus fiéis. 3 Esta efinição de “Congregação para o Clero” está disponível em: Acesso em: 04/05/2015. 4 Vale ressaltar aqui, que por Diocese entende-se a união de algumas paróquias para atuação de um mesmo bispo, sendo pertencentes à diocese a qual nos referimos as paróquias localizadas nos municípios de: Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Farroupilha, Flores da Cunha, Garibaldi, Nova Prata, São Francisco de Paula. Porém, esta pesquisa, como dito anteriormente, será delimitada à cidade de Caxias do Sul como espaço a ser pesquisado. 2

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Ano Litúrgico 5. Esta opção temporal acontece para que a catequese esteja em sintonia com os acontecimentos anuais da igreja, participando dos momentos importantes do Ano Litúrgico. Este material tem como fundamentos principais alguns documentos como: Diretório Nacional de Catequese 6, a Conferência de Aparecida 7, o Novo Ritual de Iniciação Cristã 8 e as Diretrizes gerais da Ação Evangelizadora 9, bem como o DGC citado anteriormente. Os documentos aqui citados serão posteriormente comentados de forma aprofundada. Para a formulação deste material utilizado na catequese foi feito também um diagnóstico na diocese entre os anos de 2007 e 2008, para buscar as inquietações existentes referentes à catequese e pensar em um manual que oferecesse um novo caminho para a catequese. A Catequese está dividida em 4 etapas. Este tempo de catequese é considerado o período de Iniciação Cristã e, portanto, é necessário que nela sejam desenvolvidos processos que permitam ao catequizando formar, quando adulto, uma fé madura que os transforme em evangelizadores. Segundo o Diretório Geral para a Catequese (1971) “O momento da catequese é aquele que corresponde ao período em que se estrutura a conversão a Jesus Cristo, oferecendo as bases para aquela primeira adesão.” É importante destacar também que a faixa etária para os candidatos à catequese normalmente está entre 10 e 14 anos de idade. Porém, há também catequese voltada ao público adulto. Neste caso, são pessoas que não frequentaram a catequese anteriormente, geralmente por que vêm do interior e não tiveram a oportunidade de realizar a catequese e o rito para participar da Eucaristia, ou ainda, por que precisa fazer a Crisma 10 para poder realizar o matrimônio na igreja. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para fundamentar teoricamente este artigo, serão utilizados o conceito de catequese, anteriormente mencionado, bem como os conceitos de concepção de pessoa e de formação, pensados por Emmanuel Mounier e Paulo Freire. Os dois autores apresentam suas teorias tendo em comum a primazia da pessoa e sua comunicação interpessoal, ao levar em conta os pressupostos da educação em comunidade e a solidariedade como processo de conscientização, ou criticidade, para substituir a opressão instalada na sociedade. Vale ressaltar aqui que Mounier é um representante da teoria do Cristianismo Pessoal (personalismo) na França e que o educador brasileiro, Paulo Freire, teve como uma de suas influências esta teoria na formação de seu pensamento democrático-liberal. Estes teóricos são utilizados porque estes entendem que o sujeito é constituído através da aprendizagem da vida em sociedade/ comunidade, que elabora e constrói sua própria consciência a partir das relações com outros sujeitos e com o mundo e, a catequese é entendida como um processo de formação do sujeito como cristão, como dito anteriormente, baseando-se no DGC. Entende-se assim que a catequese e a própria vida cristã proporcionam momentos de convivência, de troca entre sujeitos pertencentes a uma comunidade e de estudo sobre o caminho que esta comunidade acredita e segue.

O Ano Litúrgico é o calendário religioso, não segue o ano civil: inicia com o advento, quatro semanas antes do Natal, por ser o tempo de preparação para esta festa da Igreja Católica. 6 Diretório Nacional de Catequese (2006) foi formulado pela CNBB a partir do DGC adaptado para a realidade da catequese no Brasil. 7 Conferência de Aparecida - V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho (2007). Guiado pelo Concílio Vaticano II, para fomentar a Ação Evangelizadora. 8 Novo Ritual de iniciação Cristã ou Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA) foi publicado em 1971, após concílio Vaticano II (e por sua orientação), e seu objetivo é dar orientação sobre o catecumenato (batismo, confirmação). 9 Diretrizes gerais da Ação Evangelizadora no Brasil (2008). Documento base para a formulação dos Planos de Pastoral de cada Diocese. 10 A Crisma, segundo o Catecismo da Igreja Católica (2000) é o sacramento da confirmação e constitui, com o Batismo e Eucaristia o conjunto dos sacramentos da Iniciação Cristã. Os fiéis, “pelo sacramento da Confirmação, são mais perfeitamente vinculados à Igreja, enriquecidos com uma força especial do Espírito Santo e deste modo ficam obrigados a difundir e defender a fé por palavras e obras como verdadeiras testemunhas de Cristo”. (Lumen Gentium, Apud, Catecismo da Igreja Católica). 5

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O Personalismo 11, de Emmanuel Mounier, indica que o homem 12 deve ser considerado nas dimensões de corpo e espírito. Assim, sendo todos diferentes, devemos saber que cada um entenderá uma mesma informação de formas diferentes, de forma pessoal, pois o que se aprende é “personalizado”. O conteúdo que perpassa o encontro de catequese é expresso pela catequista a todos de uma mesma forma, porém cada catequizando fará relações com a sua forma de vida, com aquilo que ele percebe de concreto ao seu redor e isso provocará diferentes relações, diferentes formas de entendimento e, posteriormente, diferentes formas de ação, para uma nova concretização deste conteúdo. Este autor aponta ainda que o aprendizado ocorre principalmente em comunidade, aprendemos muito pela convivência, de forma que vamos nos apropriando de sua cultura enquanto convivemos com o que é realizado em comunidade e na comunidade. Podemos fazer a relação aqui com a comunidade cristã: a catequese aproxima os catequizandos da comunidade na qual se inserem ao apresentar aspectos da vida de Jesus Cristo, e a própria comunidade (através das vivências cotidianas) aproxima os catequizandos da catequese, pois é nela que pode ocorrer a prática destes aspectos. Ambas trabalham juntas para transformar o sujeito e formar o cristão. Para Mounier, “O profundo movimento da existência humana não tende a assimilar-se à generalidade abstrata da Natureza ou das Ideias, mas a transformar o ‘coração do próprio coração’ (metanoia), para que nele se introduza e sobre o mundo irradie um Reino Transfigurado” (2004, p19), acrescenta que os homens são convidados a participar deste movimento livremente. Podemos então pensar que a catequese de iniciação cristã se torna um importante meio pelo qual é feito o convite para entrar e manter-se no caminho indicado por Deus, formando e transformando constantemente os corações. Para o autor, o homem é movimento do ser para o ser. Ele nunca está definido. Em outras palavras, o homem é um ser feito para ir sempre além daquilo que é. Por sua vez, Paulo Freire considera o homem como um “ser no mundo”, ser da práxis, que trabalha, que tem pensamento e linguagem e que é capaz de refletir sobre si mesmo e sobre sua própria atividade. Ao entender que o mundo possibilita a existência do homem e o homem possibilita a existência do mundo, Freire entende o homem como um ser de relações, quando pensa e age integrandose em seu contexto cultural. É também um ser dialógico, que privilegia o diálogo como única condição para o conhecimento. Um ponto a ser abordado é o conceito de dialética que tanto Freire quanto Mounier fazem uso em suas obras. Este conceito, considerado por ambos os autores como fundamental para a convivência humana, será trabalhado nesta pesquisa, pois sendo a catequese um momento de interação entre pessoas que fazem parte de uma mesma comunidade, é de extrema relevância que se faça a comunicação, dialeticamente, daquilo que é necessário que cada um elabore em seu interior e expresse em sua ação para se colocar como parte da comunidade na qual está inserido. A comunicação, a dialética das relações pessoais para Mounier, leva em consideração certos aspectos, tais como: sair de nós próprios, compreender o ponto de vista do outro, nos colocar no lugar do outro, ser generoso e ser fiel. Freire parte do princípio de que a comunicação transforma os homens em sujeitos, ao definir o diálogo como “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo” (FREIRE, 2005, p. 91) e apresenta como um dos fundamentos deste encontro o amor ao mundo e aos homens. Além da humildade e da fé nos homens (em seu poder de fazer e refazer, sua vocação de ser mais). A teoria da ação dialógica de Freire apresenta algumas características marcantes: colaboração (os sujeitos, através do amor e da comunicação, entram em comunhão. Esta provoca a colaboração para a transformação do mundo), união (dos oprimidos pela libertação; a liderança revolucionária buscando a comunhão com as massas populares e a união das mesmas), organização (das massas populares para lutar, para instaurar o aprendizado da pronúncia do mundo) e síntese cultural (os atores juntam-se com 11

Optaremos por deixar o termo em itálico quando este se referir à teoria para diferenciá-lo do título de um dos livros do teórico que é igual. 12 Aqui, será utilizado o termo homem por ser o termo utilizado pelo autor, Emmanuel Mounier.

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o povo, que se torna também ator da ação que exerce sobre o mundo). Para ambos teóricos, o diálogo em conjunto com a prática é condição fundamental para a formação da consciência crítica ao desenvolver vínculos com as vivências sociais em comunidade, as relações pessoais devem ser mediadas pela comunicação, dialogicamente. E esta relação deve apresentar as características apontadas acima que, ao olhar para os dois autores, se assemelham e também conjugam-se com muitos dos ideais de convivência na comunidade cristã. Penso ser importante aqui também apresentar alguns dos principais conceitos que acredito serem fundamentais para a compreensão do trabalho, além do já apresentado conceito de catequese, tais como: catequista, educação católica, entre outros. Para realizar esta conceituação tomarei como base o Dicionário de Catequética (2004), dirigido por V. Mª Pedrosa, Mª Navarro, R. Lázaro, J. Sastre, não sendo cópia fiel, mas interpretação do descrito. 1. Catequista: Sua missão é educar na fé pois é o formador da base, proporciona a iniciação, o fundamento do “edifício espiritual”(DICIONÁRIO, 2004, p.197). Podem ser presbíteros, religiosos ou leigos e devem se inspirar na vida de Jesus para apresentar sua mensagem, agindo em missão, com profundidade e sensibilidade. 2. Educação Católica: tem função social, e influencia a consciência moral e a abertura religiosa. Pode ser realizada pela família, nas escolas católicas, na comunidade, através da catequese. Suas dimensões envolvem a fé, a vida do cristão centrada na vida de Cristo, a vida em comunidade, a moral, o compromisso com a realidade, a integração da fé com a cultura e a relação de diálogo na comunidade e entre outras comunidades. 3. Fonte da catequese: A origem da catequese, sua fonte está na palavra de Deus. A Sagrada escritura é a principal fonte da catequese, é a apresentação de seu conteúdo. Conteúdo este que é histórico e atual. 4. Iniciação Cristã: inserção do católico na comunidade, no mistério de Cristo através dos sacramentos “de tal forma que o iniciado, profundamente transformado e introduzido na nova condição de vida, morre ao pecado e começa nova existência para sua plena realização.” (DICIONÁRIO, 2004, p.605). A iniciação Cristã é a aproximação com Deus através do mistério pascal, da igreja, dos sacramentos, do anúncio da mensagem de Cristo, da fé no Espírito Santo e a ação na comunidade a partir dos anteriores. A partir de agora, será apresentado um breve levantamento de alguns dos documentos orientadores da prática da catequese de acordo com a apresentação do próprio material utilizado para esta prática na cidade de Caxias do Sul e também outros que os complementam. DOCUMENTOS ORIENTADORES Começaremos pelo documento mais amplo, e que norteia quase todos os outros documentos sobre catequese: o Diretório Geral para a Catequese. Este documento, já citado, foi promovido pelo Concílio Vaticano II e divulgado em 1971, como documento norteador da prática catequética no mundo. Ele aponta algumas características fundamentais para a catequese de iniciação, entre elas: é uma formação orgânica e sistemática da fé (aprofundamento do mistério de Cristo de forma bem ordenada); é aprendizado para a vida cristã, uma “iniciação cristã integral” centrada na pessoa de Cristo; fundamenta a espiritualidade do cristão; alimenta a fé, habilitando a receber o alimento na vida em comunidade; é incluído na comunidade cristã para celebrar e testemunhar a fé. Traz também como tarefas fundamentais da catequese: “ajudar a conhecer, celebrar, viver e contemplar o mistério de Cristo” bem como “favorecer o conhecimento da fé, a educação litúrgica, a formação moral, ensinar a reza, educar para a vida comunitária e iniciar à missão” (1971, s/p.). A fonte da qual a catequese se nutre e constrói sua mensagem é a Palavra de Deus. Jesus Cristo é a própria Palavra de Deus. Por isso, a catequese tem como centro a vida de Jesus (Cristocentrismo), considerando-O o caminho que introduz à intimidade com Deus, mostrando a repercussão que esta palavra tem para as pessoas e o mundo.

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Por esta repercussão, e devido a sua importância, é necessário estar atento à forma de apresentar esta mensagem. Por isso o DGC aponta alguns critérios para esta tarefa essencial. São eles: a mensagem centrada em Jesus Cristo (introduz a dimensão trinitária da mensagem), o anúncio da Boa Nova do Reino de Deus (dom da salvação e libertação), o caráter eclesial (conjunto da evangelização realizado no tempo da igreja), apresentação da Boa Nova apresentada com integridade e pureza (buscando a inculturação), visão harmoniosa e mensagem orgânica (significação para as pessoas). Há também um princípio metodológico para expor os conteúdos da catequese apresentado pelo DGC que deve ser utilizado de acordo com as circunstâncias e pela situação de fé de quem recebe a mensagem, ou seja, pelas características da comunidade eclesial ou dos destinatários. Para defini-lo, deve-se pesquisar quais são os modos que melhor poderão repercutir na comunidade, de acordo com as situações encontradas nela. “Pode-se partir de Deus para chegar a Cristo e vice-versa; da mesma maneira, pode-se partir do homem para chegar a Deus, e inversamente”. O segundo documento publicado relacionado à catequese foi formulado para orientar os ritos que devem ser realizados durante as etapas da catequese, chama-se Ritual da Iniciação Cristã de Adultos. Este foi primeiramente pensado para os ritos da catequese de adultos (o que se entende pelo próprio nome do documento), mas deve ser adaptado para a catequese das crianças, pois os ritos que se fazem necessários são os mesmos durante a catequese, tanto de crianças quanto de adultos. O texto foi promulgado pelo Papa Paulo VI em 1972, mas a sua tradução para o Brasil foi realizada em 1973 13. Ele retoma o processo de catecumenato 14 da catequese explicando os diversos ritos, suas observações e tempos em que acontecem. A apresentação do documento já explicita que para iniciar, o documento apresenta algumas “Observações Preliminares Gerais” sobre a Iniciação Cristã, além de explicar que o documento apresenta as opções para cada rito a ser realizado que, se utilizados como prescrito, redescobrem a “riqueza admirável dos Sacramentos da Iniciação Cristã”. (RICA, 2011, p.7). Este documento, formulado pela Congregação para o culto Divino 15, inicia então com as Observações Preliminares Gerais (apresentadas no parágrafo anterior), que apresenta todos os sacramentos importantes para a Iniciação Cristã, que são o Batismo, Crisma e Eucaristia. Logo após, direciona para os passos que devem ser realizados em cada rito juntamente com as falas e leituras bíblicas possíveis para cada um, realizado nos tempos específicos durante a catequese. Apresenta vários capítulos sobre a iniciação de adultos, mas também de crianças, como o “Rito de iniciação de crianças em idade de catequese”. Assim, tanto a catequese de adultos como a de crianças tem seus ritos bem descritos para que sejam realizados durante a catequese. Para definir o princípio metodológico apresentado no DGC, seguindo as orientações dos ritos necessários (conforme RICA) e aplicá-los, os Bispos devem preparar Diretórios Catequéticos e Catecismos de acordo com as diversas idades e condições culturais. Seguindo estas orientações, no Brasil foi formulado o Diretório Nacional de Catequese, publicado pela CNBB, em 2006, após ser aprovado pela 43ª Assembléia Geral Itaici – Indaiatuba (SP), em 2005 e também pela Congregação para o Clero, em 2006. Este documento pretende orientar a ação e o planejamento catequético nas diversas regiões, estabelecendo princípios bíblico-teológicos. Sobre a formulação do documento, o próprio apresenta-se como fruto de um grande trabalho de colaboração. Milhares de mãos o elaboraram ao logo de mais de três anos, por meio de um rico processo participativo. E a CNBB, em três assembleias gerais sucessivas, examinou e aperfeiçoou este texto. Mesmo assim, o DNC não é um documento acabado, porque a catequese Para a apresentação do documento neste artigo, foi lida a 7ª edição, publicada em 2011 pela editora Paulus. O processo de Catecumenato “é um espaço de tempo em que os candidatos recebem formação e exercitamse praticamente na vida cristã. Desse modo adquirem madureza as disposições que manifestarem pelo ingresso.” (RICA, 2011, p. 21). 15 Esta congregação foi criada para que regulamentasse e promovesse os sacramentos, bem como a pastoral litúrgica (para utilizá-la nestes momentos), principalmente no que diz respeito à atenção na preparação das celebrações sacramentais. Definição disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/rc_con_ccdds_pro_20000628_profilo_it .html. Acesso em: 24/07/2014. 13 14

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é dinâmica, criativa, atenta às necessidades, desafios e potencialidades do mundo e da Igreja. (DNC, 2006, p. 8). Este documento tem também como objetivos “apresentar a natureza e finalidade da catequese, traçar os critérios de ação catequética, orientar, coordenar e estimular a atividade catequética nas diversas regiões” (DNC, 2006, p. 18). E pretende atingir este objetivo estabelecendo princípios para renovar o pensamento catequético, orientando o planejamento, coordenando e estimulando as iniciativas catequéticas. Entre as finalidades apontadas estão: estabelecer princípios bíblicos, teológicos, litúrgicos e pastorais para renovar, estimular e orientar o planejamento e a prática da catequese articulando com as demais pastorais. Além de apontar os objetivos, o documento aponta também os desafios da tarefa catequética, entre eles: criar unidade entre os níveis regional, diocesano e paroquial; formar catequistas; introduzir a catequese na vida dos catequizandos e catequistas estimulando-os para o compromisso missionário; e integrar a catequese com as ciências da educação. O documento coloca a evangelização como ato principal da igreja que acontece por meio de vários momentos. É introduzido pelo anúncio da palavra de Deus, seguido da catequese (amadurece e aprofunda) e, num terceiro momento, há a ação pastoral. Traz ainda que “A catequese exige conversão interior e contínuo retorno ao núcleo do Evangelho (querigma), ou seja, ao mistério de Jesus Cristo em sua Páscoa libertadora, vivida e celebrada continuamente na liturgia. Sem isso, ela deixa de produzir os frutos desejados” (DNC, 2006, p.50). A catequese tem tarefas para conseguir realizar suas finalidades e objetivos, são elas: introduzir o conhecimento da fé; auxiliar na iniciação litúrgica e na formação moral, na inserção na vida de oração e na vida comunitária para dar testemunho e seguir em missão. Seguindo este caminho o DNC apresenta vários outros elementos da catequese, como a preocupação com a mensagem que deve ser a sua base e também os critérios para apresentá-la que são os mesmos encontrados no DCG, já descritos anteriormente. O documento apresenta a catequese como processo educativo e preocupa-se com os sujeitos envolvidos (destinatários como interlocutores, catequistas e outros agentes protagonistas), seus espaços e organização (coordenação e responsabilidades). A CNBB formulou também outro documento para direcionar a catequese no Brasil em 1983 e este primeiro serviu também de base inicial para o texto do DNC, que o aponta como um documento de “especial importância” para o Brasil. Chamou-se “Catequese Renovada: orientações e conteúdo”. Como objetivo, a Catequese Renovada tem a formação de uma comunidade cristã, que anuncie o Evangelho participando ativamente desta comunidade e assim, preocupa-se que a catequese se aproxime da realidade dos cristãos. Este documento, aprovado em 1983 numa Assembleia Geral da CNBB, atenta para os documentos anteriormente formulados sobre este tema e também sobre uma fala do então Papa João Paulo II em uma de suas vindas ao Brasil que enfatizou a catequese como uma urgência, uma prioridade. Para atender a esta demanda, o documento começa por apresentar alguns aspectos históricos da catequese em períodos como do século I ao V onde a catequese tinha o papel de conversão inicial, até chegar ao século XX, no qual a catequese auxiliava no processo de iniciação cristã para que os seus fiéis, verdadeiramente catequizados vivam a comunidade cristã. Os princípios da Catequese Renovada são atenção à revelação, a importância da comunicação da vida de Jesus Cristo, a fé nas palavras de Deus e no Espírito Santo, a experiência em comunidade, a formação de catequistas, a formulação de manuais para apresentar na catequese que se aproximem à vida em comunidade, entre outros. Apresenta, além disso, alguns temas a serem abordados: as visões de mundo de Jesus e a nossa, os compromissos do cristão (frente a família e a comunidade). Assim, o cristão em convivência com a comunidade catequizadora descobre Jesus Cristo, criando consciência de sua missão e a catequese é o processo de educação desta comunidade pela fé. Após a escrita destes documentos, foram criados também outros para auxiliar na construção do caminho de iniciação cristã. Entre eles estão as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, o documento de aparecida, entre outros. Começaremos pelo documento formulado na V

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Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho. Bispos da América se reuniram em Aparecida com “a grande tarefa de proteger e alimentar a fé do povo de Deus e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude de seu batismo, são chamados a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo” (Celam, 2007 p.12). Esta conferência, inspirada nos documentos conciliares, aponta a necessidade de haver uma presença mais efetiva da igreja na geração de cultura, principalmente com os jovens. Neste sentido a catequese é o momento onde eles “são preparados para dar frutos permanentes de caridade, reconciliação e justiça para a vida do mundo”(Celam, 2007 p.88) é, assim, fundamental para amadurecer a conversão inicial, fazendo com que a pessoa persevere na vida cristã. Este amadurecimento da fé cristã é indispensável para auxiliar num dos desafios apontados neste documento: a identidade cristã fraca e vulnerável de alguns católicos que não tem consciência de sua missão. A iniciação à vida cristã deve levar ao encontro com Cristo (tendo-o como centro de sua vida), à conversão e amadurecimento da fé, ela forma a identidade cristã com o conhecimento, amor e seguimento a Cristo. O documento observa a situação da catequese da América Latina e Caribe apontando que: é evidente que tem havido grande progresso. Tem crescido o tempo que se dedica à preparação para os sacramentos. Tem-se tomado maior consciência de sua necessidade, tanto nas famílias como entre os pastores. Compreendese que ela é imprescindível em toda formação cristã. Têm-se constituído ordinariamente comissões diocesanas e paroquiais de catequese. (CELAM, 2007 p.136). No mesmo viés, aponta também na formação dos catequistas que, apesar de estarem voluntariamente em grande número dispostos a auxiliar nesta iniciação, não possuem formação pedagógica ou teológica “desejável”, além dos materiais que são muito variados. Esta preocupação com a formação dos catequistas e com os materiais utilizados acontece com o sentido de buscar a promoção de escolas de formação para os catequistas e envolvidos para que a catequese aconteça como uma formação integral e concreta, contemplando a vida em comunidade e as celebrações litúrgicas, ao mesmo tempo que, apresenta a vida de Jesus. Com isso, o documento produzido pela V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho pretende expressar que a catequese, sendo “grande meio para introduzir o Povo de Deus no mistério de Cristo” (2007, p.256) através de sua mensagem, deve se aproximar da vida dos catequizandos ao ponto de vivenciarem o que está sendo apresentado e discutido nos encontros. Para isso, a catequese deve ser atrativa aos jovens, proporcionar que eles tenham conhecimento do mistério de Cristo e utilizar novos recursos, integrando as áreas próximas do caminho de iniciação. Após o Documento de Aparecida, no Brasil a CNBB publicou outro documento que traz apontamentos dobre a catequese. Chamou-se Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que são formuladas para serem promovidas em períodos específicos, geralmente de 4 anos. Os últimos foram formulados para ser utilizado nos seguintes períodos: 2015-2019 (publicação em 2015), 2011-2015 e o que foi utilizado para fundamentar o material formulado pela diocese (nosso foco) e, portanto, mais utilizado neste trabalho para os anos de 2008-2010 (este durou menos pois sua redação aguardou a publicação do Documento de Aparecida para tê-lo como fundamento). Os objetivos são basicamente os mesmos, escritos com algumas palavras diferentes, mas trazendo o mesmo sentido e a mesma mensagem bíblica como base: Evangelizar, a partir do encontro com Jesus Cristo, como discípulos missionários, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, promovendo a dignidade da pessoa, renovando a comunidade, participando da construção de uma sociedade justa e solidária, “para que todos tenham Vida, e a tenham em abundância (Jo 10,10)”. (CNBB, 2008, p. 9)

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Este documento foi formulado na 46ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, em abril de 2008, tendo como base fundamental o Documento de Aparecida. Apresenta como urgência a questão da saída (evasão) de católicos de sua igreja, apontando a atenção ao processo de iniciação cristã e a formação catequética adequada e de cunho vivencial, como solução. Esta solução se dá através da experiência religiosa, da vivência comunitária, da formação bíblica e a aproximação da comunidade e, por isso, é lembrada também a importância da formação de leigos para que, com seu testemunho, incentivem os cristãos a viver a iniciação cristã. Desta iniciação, faz parte a promoção da dignidade humana (pensando em como a comunidade pode acolher e auxiliar cada família e cada pessoa), a renovação da comunidade (estando as pessoas acolhidas e, por isso próximas, pensa-se em promover o diálogo, a doação através do que cada um pode fazer), para a construção de uma sociedade solidária (em cooperação e compromisso com esta construção através do diálogo e junto da educação – escola, sendo este um lugar de formação integral). Um dos subitens desenvolvidos no documento ao tratar do item sobre a construção de uma sociedade solidária (descrito no parágrafo anterior) é o “Mundo da educação”. Este item, é importante para o trabalho por trazer o que foi anteriormente apontado na justificativa: a proximidade da educação e da religião nos processos de formação. Neste item é feita referência às escolas e universidades católicas, à presença missionária nas demais escolas, nas igrejas, para que haja uma formação integral e na forma de acolhimento aos excluídos. Lembra também que não só da escola é a responsabilidade da educação, a família deve exercer primordialmente este papel e, neste ponto, as comunidades católicas podem ter novamente atuação no sentido de auxiliar as famílias, como tratam os outros tópicos que foram citados. O documento aponta a atenção que deve ser dada à ação missionária e pastoral da igreja e a evangelização como o meio para isso. Além destes documentos que tiveram maior amplitude, há um Plano de Pastoral, formulado e divulgado a nível Diocesano, que pretende também apresentar uma proposta de vida cristã, orientando a ação evangelizadora na cidade. Este documento foi construído por pessoas envolvidas em diversas paróquias e serviços da cidade e tem como fundamento o Concílio Vaticano II, bem como outros documentos elaborados para a ação evangelizadora no Brasil (que não diretamente tratam sobre catequese, mas sim, sobre a ação evangelizadora - da qual a catequese faz parte - de maneira mais geral). O Plano de Pastoral que será utilizado neste trabalho abrange os anos de 2013 a 2016 e foi publicado após aprovação na Assembleia Diocesana Pastoral em setembro de 2012. Percebe-se que há uma preocupação com o caminho da evangelização na diocese, ao notar que o Plano de Pastoral é reformulado, a cada certo período de tempo, levando em consideração as mudanças que na própria diocese ocorreram. Esta atualização permite pensar em aspectos que não foram anteriormente pensados e modificar o que for necessário de acordo com o momento que a cidade está vivenciando. O Plano de Pastoral 2013 - 2016 apresenta como objetivo: evangelizar a partir de Jesus Cristo, animados pela família, na formação inicial e permanente, numa comunidade acolhedora e missionária, na articulação e participação da juventude, no cuidado integral com a vida, em vista do Reino definitivo. (2012, p.6). É possível perceber que os objetivos do plano de pastoral se entrelaçam com os apontados anteriormente sobre a catequese ao mencionar o DGC. Assim, estes documentos pretendem organizar, fundamentar e direcionar os passos da catequese e, portanto, sua metodologia. A pesquisa buscará apresentar como estas questões apontadas pelos documentos orientadores foram colocadas na diocese em questão. Com este trabalho, tivemos a intenção de fazer um levantamento de documentos que fundamentam a prática catequética de ensino na cidade de Caxias do Sul, fazendo uma abordagem histórica da produção realizada pela promotora deste ensino a respeito da importância desta prática bem como do que é fundamental para que seja efetiva. Iniciamos o levantamento de documentos por tempo cronológico e também por delimitação espacial, iniciando de forma ampla e delimitando para o tempo e espaço objetivos da pesquisa.

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REFERÊNCIAS CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO AMERICANO 5., 2007 maio 13-31, Aparecida, SP. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 11.ed. Brasília: CNBB, 2007. 311 p. ISBN 9788534927741. CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2008-2010. Brasília, Edições CNBB. 2008. CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Diretório Nacional de Catequese. Brasília: Paulinas. 2006. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/publicacoes-2/documentoscnbb/doc_view/147-84-diretorio-nacional-de-catequese. Acesso em: 01/04/15. COSTA, João Bernard da. Prefácio. In: MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Santos: Martins Fontes, 1964. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. 1971. s/p. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cclergy/documents/rc_con_ccatheduc_doc_170419 98_directory-for-catechesis_po.html. Acesso em: 18 de maio de 2015. DIOCESE DE CAXIAS DO SUL – RS. Plano de Pastoral 2013-2016. 2012. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005. IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Edições Loyola, 2000. MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Santos: Martins Fontes, 1964. PEDROSA, V. Maria. NAVARRO, Maria.[et al]. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004. Tradução: H. Dalbosco

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MARÍA LUISA DOLZ Y ARANGO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA CONSTRUÇÃO DE UM PENSAMENTO PEDAGÓGICO LATINO-AMERICANO (1854-1928) Paloma de Freitas Daudt 1

“Y ése es un trabajo superior, más delicado, más completo y más arduo que el de la instrucción. Instruir puede cualquiera que posea conocimientos, para educar se requiere un cúmulo de condiciones. El mejor educador no será nunca el más sabio […]” (DOLZ, p. 1, 1995). INTRODUÇÃO Quando Antonio Nóvoa escreve uma carta destinada a um jovem historiador da educação destaca que “A história não é o passado, o que se esmaeceu e desapareceu e não volta, mas sim a continuidade que vem ao agora e até ao amanhã, um passado que se prolonga em presente e em projeto [...]” (NÓVOA, 2015, p.26), essa percepção de que precisamos compreender o Sul a partir de nos mesmo para pensarmos no futuro perpassa este trabalho. Nesta perspectiva, a pesquisa 2 da qual este estudo faz parte objetiva contribuir com a reconstrução de uma teoria pedagógica que, ao olhar para trás e reencontrar-se com sua memória, possa ao mesmo tempo se abrir para novos horizontes no presente. Considerando que “Para ‘escavar’ uma pedagogia emancipadora com as características de nossos povos é necessário partir do encontro contraditório (mas indissociável) entre a cultura europeia, a indígena, a africana e a mestiça”, (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2013, p. 375), a pesquisa mencionada engloba diversas fontes da pedagogia que perpassam pelos povos originários, críticos da colônia e autores que contribuem para emancipação, entre os autores estudados estão: Popol Vuh, Felipe Guamán Poma Ayla, Salomé Ureña, Félix Varela y Morales, entre outros nomes, além de povos como os Tupinambás e os Mapuches. O projeto também envolve diversos pesquisadores da América Latina que foram convidados a refletir sobre a contribuição de algumas fontes da pedagogia latino-americana, possuindo representantes tanto da América do Sul assim como da América Central. Compreendemos que a superação do estrangeirismo endêmico na América Latina salientado por José Martí 3 possa ocorrer através do nosso autoconhecimento. Streck, Adams, e Moretti nos mostram quando discutem sobre uma “Utopia cosmopolita na perspectiva do Sul ‘escavando’ uma pedagogia emancipadora” que o colonialismo também foi uma dominação epistemológica e isto impôs que determinado conhecimentos ficassem em uma condição de subalternidade. (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2013). Ainda problematizando sobre a descolonialidade dos saberes, os mesmos autores, porém na apresentação do livro “Fontes da Pedagogia Latino-Americana: Uma antologia, trazem as contribuições de José Martí, Simón Rodríguez e Franz Fanon para problematizar a necessidade de se desenvolver um conhecimento próprio ao entender-se que a verdadeira independência deve ir além das formas e troca de imperadores ou governantes. (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2010). Entendemos que há uma necessidade de nos questionarmos se é possível buscarmos condições para a superação da colonialidade que está tão impregnada na ideia de América Latina. Na tentativa de colaborar para a superação desta colonialidade e na construção de um pensamento descolonial nos propomos a apresentar e discutir as contribuições de María Luisa Dolz y Arango para a pedagogia latinoamericana.

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Graduanda em Letras/Inglês – Unisinos. Bolsista de Apoio Técnico – CNPq. PPGEdu. Fontes do Pensamento Pedagógico Latino-Americano: Uma Antologia. Coordenada pelo professor Danilo Romeu Streck. 3 STRECK, Danilo R.; ADAMS, Telmo; MORRETI, Cheron Zanini. Pensamento pedagógico em nossa América: uma introdução. In: STRECK, Danilo R. (org.). Fontes da pedagogia latino-americana: Uma antologia. Belo Horizonte: Autência Editora, 2010, p. 19-35. 2

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DOLZ E O CONTEXTO LATINO-AMERICANO DA ÉPOCA María Luisa Dolz y Arango viveu em um período em que Cuba, sua pátria, lutava por sua emancipação da Espanha. O século XIX em Cuba foi marcado pelo surgimento das ideias feministas. Neste contexto María Luisa Dolz, juntamente com outras mulheres que contribuíram para o desenvolvimento do movimento feminista com temas como legislação e sufrágio, também vinculados às ideologias de independência cubana desenvolveu as suas atividades educacionais. Outras mulheres como Ana Bittecourt, que se destacou como proclamadora dos direitos feministas na luta contra o poder espanhol, e Mariana Grajales Cuello, que integrou do movimento de libertação nacional, também tiveram um importante papel na luta pela emancipação das mulheres. Nascida no dia 4 de outubro de 1854, em uma família bem conceituada de Cuba (o pai era advogado do Fórum Cubano), María Luisa Dolz viveu seus primeiros anos na cidade de Pinar del Rio. Após concluir seus estudos no Colégio “Nuestra Señora de los Angeles” em Havana, iniciou seu trabalho como educadora no colégio “Nuestra Senõra de la Piedad” (1872), sendo aprovada cinco anos depois na prova de Maestra de Instrução Primária Superior (1877). Eram tempos difíceis para uma mulher aspirar à realização dos estudos superiores, pois a condição era romper com a resistência das autoridades coloniais. Em 1887, Dolz ingressou no Curso de Ciências da Universidade de Havana, sendo a primeira mulher a alcançar o título de Bacharel no país. Em 1894, inicia a publicação do folheto “Feminismo. Injusticia de los códigos” e passa atuar, igualmente, como colunista em diversos periódicos de Havana. Em 1896 publica “Educación y dirección de la niñez”. E três anos depois obtém o título de doutora em ciências pela Universidade de Havana. No mesmo ano de 1889 publica outro folheto intitulado “Preparación de la mujer” e passa a integrar tribunais criados para examinar os alunos de escolas normais. Já no período da república, iniciado em Cuba a partir de 1902, continua a dedicar-se ao feminismo e à infância desamparada. Em meio às diversas participações em espaços internacionais de cultura e ensino, publicou, em 1905, seu folheto “Redención de la mujer por la educación”; e, depois, “Enseñanza que ofrece la Naturaleza” (1915) e “Progresos del Feminismo” (1918). Ao longo de sua trajetória, Dolz adquiriu um instituto de senhoritas possibilitando outras mulheres de chegarem ao nível superior de ensino e também foi a primeira escola a incluir o ensino de técnicas comerciais para mulheres em Cuba. Em 1922, foi eleita para ocupar uma cadeira na Sociedade Geográfica de Cuba, além de ter sido indicada como membro do Clube Feminino. Publica “Misión Social de la Mujer” em 1923. Já fragilizada em sua saúde física, se retira à vida privada, falecendo aos 27 de maio de 1928, aos 74 anos de idade. CONTRIBUIÇÕES PARA CONSTRUÇÃO DE PENSAMENTO PEDAGÓGICO LATINOAMERICANO María Luisa Dolz y Arango foi uma das primeiras educadoras a desafiar valores tradicionais ensinados às mulheres e sua própria história de vida representou a luta feminista por igualdade jurídica. A educadora fez importantes reflexões e iniciou uma discussão sobre educação mista entre meninos e meninas em Cuba, além de questionar o papel das mulheres na sociedade; assim contribuindo para um processo de libertação das mesmas. O pensamento pedagógico de Dolz foi influenciado pelo positivismo, desenvolvendo investigações didáticas e psicológicas, mas, ao mesmo tempo, defendia a educação como uma trilogia na qual se inter-relacionam os interesses morais, intelectuais e físicos. Em todos estes aspectos inclui o elemento estético, além de defender um processo de consolidação da consciência nacional. Em seu escrito mais famoso, “Feminismo injusticia de los códigos” publicado em 1894, María Luisa questiona as leis que muitas vezes faziam as mulheres mais incapazes do que os próprios loucos. Neste sentido, afirma que “[...] entre nosotros establecen los códigos la incapacidad de la mujer casada, que sin autorización no puede donar, adquirir, contratar, aceptar herencia, ser testigo en actos auténticos,

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etc. Incapacidad ni más ni menos igual a la del loco!”. (DOLZ apud VITALE, 1999, p. 72) 4. Assim questiona a lógica das representações das mulheres no século XIX, elaboradas, sobretudo, pela oposição homem/razão/cultura versus mulher/instinto/natureza. (ROSA, 2010). Outra importante contribuição de Dolz para a construção do pensamento pedagógico latinoamericano foi a defesa de que ensinar é muito mais que instruir. Seu ponto de partida é a compreensão da educação como um conjunto de conhecimentos que levam a desenvolver o horizonte cultural dos educandos, pois isso no seu entendimento significa educar a mente, temperar o caráter e refinar sentimentos. Em um dos folhetos por ela escrito, “Educación y dirección de la niñez”, a educadora faz algumas afirmações acerca de quem seria o melhor educador e este não seria o mais sábio, mas sim o mais benevolente, mais discreto, mais delicado, mais dignidade de caráter. Assim, Dolz nos mostra que a justiça e a igualdade encontram-se na dimensão humana dos processos pedagógicos e que estes, por sua vez, devem ter por objetivo o desenvolvimento integral do sujeito ao invés do letramento e da erudição. Há mais de um século, essa educadora ensinava às suas alunas que para libertar, bem como para ensinar, não basta conhecer; é preciso ter benevolência, dignidade de caráter e a consciência de que a educação - e portanto a docência - pode cultivar sentimentos e ideias, transformando realidades e impulsionando o progresso, afirmando que educar Y ése es un trabajo superior, más delicado, más completo y más arduo que el de la instrucción. Instruir puede cualquiera que posca conocimientos, para educar se requiere un cúmulo de condiciones. El mejor, educador no será nunca el más sabio, sino el que la vez sea más benevolente, el más discreto, el más delicado, que a la autoridad de la ciencia una la dignidad del carácter. Sin benevolencia, sin discreción, sin dedicación, no hay educación posible ni en el hogar ni en la escuela. (DOLZ, 1995, p. 38-39). 5 A educadora foi mais além em suas discussões e também argumentava em favor de um ensino holístico, que alimente corpo, mente e espírito. Essa formação completa depende de uma educadora que domine os recursos psicológicos da educação: paciência, capacidade de gerar/despertar empatia, boa gestão do tempo, domínio do corpo (capacidade de trabalhar a parte física), entre outros. Mais do que preparar para o trabalho, estes recursos preparam os sujeitos para a vida em sociedade e para a cooperação. Neste mesmo artigo a educadora trata das práticas pedagógicas da “boa educação” para ambos os sexos e de seu papel para diminuir as barreiras de gênero presentes tanto no ensino cubano, quanto nos modelos adotados pelo restante da América Latina. Também problematiza o desenvolvimento e empoderamento feminino baseando-se não somente em uma educação para o trabalho, para a organização da família ou para o entendimento das leis. Segundo a autora, o importante é ensinar e preparar com e para o coração. Ao longo de sua trajetória, a educadora faz importantes questionamentos acerca da doutrina católica no ensino, que até a independência de Cuba era muito presente nas escolas que, em grande parte, possuíam algum tipo de vínculo com a igreja. Um dos espaços de resistência a esse ensino foi o colégio em que Dolz lecionava e depois passou a ser proprietária. Neste sentido, Stoner (1997) reflete sobre a importância da educadora para sua época e suas conquistas no Colégio Isabel la Católica [...] O Colégio Isabel la Católica (mais tarde renomeado Colégio María Luisa Dolz), produziu gerações de jovens educadoras imbuídas com as doutrinas da 4

“[...] entre nós estabelecem nos códigos a incapacidade da mulher casada, que sem autorização não pode doar, adquirir, contratar, receber herança, ser testemunha em atos de autenticação, etc. Incapacidade nem mesmo igual a dos loucos!” 5 “E isso é um trabalho superior, mais delicado, mais completo e mais árduo do que o instruir. Instruir pode qualquer um que possua conhecimento, para educar se requer um conjunto de condições. O melhor educador nunca será o mais sábio, mas o que seja mais benevolente, o mais discreto, o mais delicado, que da autoridade da ciência una a dignidade de caráter. Sem benevolência, sem discrição, sem dedicação, não há educação possível nem em casa nem na escola.”

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independência nacional e a libertação das mulheres [...] Ela acreditava que a educação era a chave para a libertação das mulheres, e ela desaprovou os currículos católicos que produziram incompetência e mulheres não competitivos, incapazes de estabelecer-se no trabalho moderno fora de casa. (STONER, 1997, p.36, tradução nossa). Uma das conquistas lideradas por Dolz, nesse âmbito, foi o direito de incluir no currículo de seu colégio uma matéria dedicada a ensinar relações comerciais para as meninas que lá estudavam. Mas seu entendimento sobre desenvolvimento e empoderamento 6 feminino baseia-se não somente em uma educação para o trabalho, para a organização da família ou para o entendimento das leis. Segundo a autora, o importante é ensinar e preparar com e para o coração. Entre as questões defendidas por Dolz estão a necessidade de conquistas no campo jurídico, “[...] no debemos contentarnos con enseñar a la mujer sus deberes [...] Es necesario también que le demos a conocer sus derechos y la impulsemos a defenderlos con noble orgullo cuando la ocasión requiera. Por eso nos proponemos a presentar hoy las conquistas que en el terreno jurídico ha hecho el movimiento feminista”. (DOLZ apud VITALE, 1999, p. 72). 7 Além das batalhas judiciais que María Luisa trava, ela continua com sua produção intelectual discutindo o papel da mulher na sociedade cubana como no folheto “Redención de la mujer por la educación”, publicado no ano de 1905. Alguns autores como Stoner (1997), Vitale (1999), Véase e Alfredo (1937) buscam resgatar a trajetória de Dolz e suas contribuições na construção do feminismo e da educação em Cuba. CONSIDERAÇÕES FINAIS A educadora María Luisa Dolz teve uma relevante contribuição para a construção do pensamento pedagógico latino-americano e fez importantes questionamentos acerca do que é educar e afirma que educar não é instruir. Segundo a autora a justiça e a igualdade encontram-se na dimensão humana dos processos pedagógicos e que estes, por sua vez, devem ter por objetivo o desenvolvimento integral do sujeito ao invés do letramento e da erudição. Há mais de um século, essa educadora ensinava às suas alunas que para libertar, bem como para ensinar, não basta conhecer; é preciso ter benevolência, dignidade de caráter e a consciência de que a educação - e portanto a docência - pode cultivar sentimentos e ideias, transformando realidades e impulsionando o progresso. Dolz pode ser considerada uma transgressora para sua época, pois rompeu o status quo ao ser a primeira mulher cubana a alcançar o nível de doutora em Ciências Naturais. Uma das pioneiras na inclusão da educação secundária para mulheres na instituição em que trabalhava, permitindo a estas chegarem às universidades. Levando-se em conta suas contribuições para o pensamento pedagógico latino-americano, conclui-se inicialmente que através de suas lutas pelos direitos das mulheres, María Luisa Dolz rompeu com uma lógica colonial da educação e colaborou para a luta da emancipação de diversas mulheres através de um processo educativo mais igualitário. REFERÊNCIAS BARRUETA, Norma Vasallo. La evolucion del tema mujer em Cuba. Revista Cubana de Psicologia, v.12, n.1-2, 1995, p.65-75. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rcp/v12n1-2/07.pdf. Acessado em: 13 mar. 2015.

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Segundo Freire empoderamento não é apenas um ato psicológico, individual, mas um ato social e político, pois ser humano é intrinsicamente social e político, é pessoa = relação. Freire também afirma que não acredita numa autolibertação, mas que a libertação é sempre social e coletiva. (GUARESCHI, 2010). 7 “[...] não devemos nos contentar em ensinar as mulheres seus deveres [...] É necessário também conhecer seus direitos para defendê-los e avançar com nobre orgulho quando a ocasião requer. Assim, pretendemos apresentar as realizações na área jurídica realizadas pelo movimento feminista hoje.”

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CONTEXTO LATINO-AMERICANO DO SÉCULO XIX: TRAJETOS DA EDUCAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DE SALOMÉ UREÑA Leonardo Camargo Lodi 1

La mujer, la madre, necesitaba fortalecerse también con la posesión de la verdad y de la moral científica, para preparar y fortalecer a su vez, por medio de ese arte que sólo ella posee, la conciencia de las generaciones del futuro. (Ureña, Salomé 1888). INTRODUÇÃO Este trabalho é origem de um projeto de pesquisa intitulado “Fontes do pensamento latinoamericano” vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação Unisinos, que tem como objetivo contribuir com a construção de uma teoria pedagógica latino-americana que, ao olhar para traz e reencontrar-se com sua memória, possa ao mesmo tempo se abrir para novos horizontes no presento. O grupo de pesquisa publicou em 2010 o livro “Fontes da Pedagogia Latino-Americana: Uma Antologia”, no qual estavam presentes autores dos séculos XX e XXI. Tendo em vista que o projeto teve continuidade, a ideia que está sendo encaminhada é a produção de um segundo volume desse livro, no entanto a proposta é de olhar para pensadores dos séculos XVII e XIX. O texto discorre sobre Salomé Ureña, uma entre 25 autores pesquisados, o qual tem como finalidade trazer a palavra e como ela se relaciona com os escritos da autora. Além disso, procurar entender como seus escritos podem contribuir para a formação da cidadania e da luta emancipadora, tendo em vista que Salomé Ureña é conhecida pela luta de direito de mulheres no ensino superior na República Dominicana. Ao pensar em poesia logo comunicação e palavra são lembradas, pois língua e educação são ligadas diretamente uma a outra, se considerarmos que não existe comunicação sem língua e educação sem comunicação. Neste sentido, é possível dizer que a palavra é uma forma de luta, seja ela emancipadora ou não; além de ter relação estrita com a educação. Nas poesias de Salomé Ureña, é possível fazer relação dos acontecimentos, do povo dominicano e da história de seu país, pois durante cada passagem a poetisa descrevia tudo aquilo que vivia e sentia. Nesta perspectiva, pode-se identificar a afinidade entre palavra, a qual uma de suas vertentes é a interação, e a literatura, aquela que conta e traz o novo, o inesperado; ambas vão diretamente ao encontro da educação, sendo aqui entendidas como potencializadoras de um pensar crítico e de formação da cidadania. O texto propõe uma relação entre duas áreas diferentes: história e letras – mais especificamente a literatura- , que ao mesmo tempo são ligadas (in) diretamente, considerando que ambas são da área da educação. E esta relação é possível, pois ao analisar as poesias de Salomé Ureña se faz necessário olhar para o contexto em que a poetisa estava inserida, para entender melhor o porquê das temáticas mais predominantes em seus escritos. Neste sentido, o lugar de onde se fala e a época em que se vive faz sim diferença, quando se pensa em construção e formação de cidadãos. Logo, pode-se observar que o grande esforço de Salomé Ureña acontece por ela ter vivido em tempos difíceis, espaço em que encontrou, nas poesias, uma forma de relatar o que seu país estava sofrendo. Mais do que servir como um caminho para descrever os acontecimentos, seus escritos, bem como outras formas de comunicação, são entendidos como feitos de maior valor, pois por ter vivido diversas fases de seu país, conta com mais verdade a história do povo dominicano daquela época. Em suas poesias, a dominicana traz temas como o direito das mulheres à educação, além do patriotismo, paz, justiça e esperança que são traços da primeira geração do romantismo.

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Graduando em Letras Português/Inglês – Unisinos. Bolsista de Iniciação Científica – CNPq. PPGEdu. E-mail: [email protected]

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Salomé Ureña, uma mulher do século XIX, escritora e fundadora do Instituto de Señoritas 2, primeiro instituto na República Dominicana é conhecida como uma das heroínas nacionais de seu tempo. Pensar nos espaços que mulheres daquela época ocupavam e o lugar em que estava a poetisa, é evidente que ela estava à frente de seu tempo. PALAVRA E EMANCIPAÇÃO Quando se pensa em palavra, logo pode-se situar Simón Bolívar tanto para pensar nas páginas de valor literário indiscutível que ele deixou, quanto para pensar na ralação estreita entre a palavra e a vida durante a luta emancipadora (Moreno, 1986, p. 401). É possível identificar essa luta quando a autora escreve poemas como: A los dominicanos, La fe em el porvenir e 27 de febrero. Escritos que falam, principalmente, da história do povo dominicano, das angústias e das lutas que seu país estava vivenciando, bem como as vitórias e as conquistas da República Dominicana. Ao pensar emancipação e palavra, pode-se trazer a poesia “La fe em el porvenir”, poesia em que fala de direitos e deveres daqueles que irão cultivar e construir o futuro da República Dominicana. A seguir, um trecho em que é possível identificar estes direitos e deveres: [...] El alma generosa de impaciencia yarda/' estremecida, rascar intenta del futuro el velo, penetrar los misterios de la vida, salvar los mundos, escalar el cielo Eterna soñadora de triunfos y grandezas inmortales" con viva luz sus horizontes dora. Decidle que ideales son los portentos que su mente crea, que es vana la esperanza que la agita: triunfante el orbe mostrará su idea si le infunde valor la fe bendita. (La fe en el porvenir, 1878). O fragmento da poesia é destinada pela poetisa para os jovens de seu país, pedindo para que eles não se deixem oprimir, que busquem os seus direitos e, principalmente, de que o futuro e a mudança pertence à eles; no momento em que o país está, ela destina suas esperanças aos jovens. Salomé Ureña viveu em um tempo de muitas lutas internas por ser a época da fundação da República Dominicana e estes acontecimentos são nitidamente vistos na sua obra “Poesias completas”; poesias que podem ser entendidas como uma forma de resistência e desconforto em que a poetisa se encontrava que, posteriormente, serviram como uma força para a criação do instituto para mulheres no ensino superior. Assim, pretende-se trazer a palavra em contrapartida da emancipação, tendo em vista que a palavra tem poder e é aqui entendida como um poder na luta emancipadora. Nesta perspectiva, Paulo Freire diz que [...] meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar. (Freire, 1996, p.77). A poetisa não era apenas aquela que constatava e era um objeto da história de seu país, a luta e a angústia, relatada em seus escritos, são vistas como um ponto de partida para que ela deixe, como diz Freire (1996), de constar e passe a intervir como sujeito de ocorrências. Este é um elemento pelo qual a 2

O instituto foi fundado no dia 3 de novembro de 1881, com as primeiras maestras formadas em 1887.

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poetisa torna-se uma referência tanto na área da literatura como na área da educação para mulheres no ensino superior. De nuevo el arpa ensaya un himmo en tu favor ¡oh patria mía! de nuevo el corazón que no desmaya en su inmortal porfía, su voz eleva que el deber alienta. y a tus fuerzas vigor prestar intenta Yo sé que no importuna mi amarga queja tu vivir cansado: tu inquieta brisa remeció mi cuna, y el pecho alborozado aliento libre respiró eh su esencia, y fué lo grande de tu amor la herencia. (A mi pátria, 1878). Em “A mi patria” é possível identificar a força que espera de sua pátria, a vontade de continuar e encontrar nas suas maestras uma forma de mudança e voz para o progresso e futuro do país. Sendo assim, Freire fala do estar no mundo que não implica em estar nele de forma imparcial, mas de modificálo e transformá-lo. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. (Freire, 1996, p.77). Ao pensar que Salomé Ureña teve apoio de seu marido Francisco Henríquez y Carvajal o qual, por sua vez, era colaborador de Eugenio Maria de Hostos, identifica-se que eles não estavam e não tinham uma relação neutra, ao contrário, pensavam na transformação da realidade, mais especificamente na fundação do instituto que teve grande ajuda e suporte de Hostos e de Francisco. A luta de Salomé Ureña pela educação de mulheres no ensino superior é entendida como uma educação libertadora, entendendo que o ensino universitário daquela época era destinado aos homens; a poetisa buscava a libertação, especialmente das mulheres e de seu país para que esta contribua “[...] na formação de pessoas críticas, solidárias, autônomas e livres” (Adams; Streck, 2014, p. 68). CIDADANIA E O PENSAR CRÍTICO Ao trazer a cidadania e o pensar crítico, fica impossível desassociar a emancipação, pois entende-se de que uma vai ao encontro da outra. Um sujeito que é emancipado, é aquele que pensa, interfere e que não é mais dependente. Nesta perspectiva da emancipação, Adams; Streck (2014), ajudam a compreentender o que significa o emancipar-se: Num sentido literal, emancipar-se significa libertar-se do jugo, da tutela de alguém. Implica autodeterminação, onde o sujeito rege pela sua capacidade de orientação, de ser agente (e não paciente). Originário do latim, a palavra “emancipação” expressa na sua raiz: não mais escravo ou indivíduo dependente; libertar-se do poder exercido por outros. (Adams; Streck, 2014, p. 67). Mais do que um movimento de emancipação, é possível associar os escritos de Salomé Ureña com a formação da cidadania, cidadania no sentido de expressar-se, por meio das poesias, seus anseios, angústias e decepções com os acontecimentos em seu país; seu empenho na luta pelo direito de mulheres no ensino superior são entendidos como movimentos de emancipação através da literatura. A poesia

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“Sombras” 3, talvez um de seus principais escritos, é o mais conhecido e mais citado quando se fala em Salomé Ureña. ¿Cuál será su destino? Proscritas, desoladas, sin encanto, en el vértigo van del torbellino, y al divisarlas, con pavor y espanto sobre mi pecho la cabeza inclino. Se estremece el alcázar opulento de bien, de gloria, de grandeza suma, que fabrica tenaz el pensamiento; i bajo el peso se rinde que le abruma! Conmuévese entre asombros, de la suerte a los ímpetus terribles, y se apresta a llorar en sus escombros el ángel de los sueños imposibles. (Sombras, 1881). Sombra traz momentos em que Salomé Ureña vive uma grande decepção política 4, momentos de escuridão e sombra da morte que são relacionadas com os acontecimentos em que o país passava com o governo de Meriño. Sombras é escrita quando a poetisa sofre tal decepção, bem como é o ano em que para de escrever e suas poesias tornam-se cada vez mais raras; este é o mesmo período em que é fundado o Instituto de Señoritas. Ao relacionar a poesia Sombras com o instituto para mulheres, é possível entender as “trocas das sombras” com a “troca” do tempo e das mudanças que a República Dominicana se encontrava. Algumas poesias de Salomé Ureña são destinadas ao povo dominicano e a pátria 5, no entanto mais do que escrever e descrever acontecimentos, ela conta a história deles e da República Dominicana através da palavra. Poesias como: A los dominicanos, 27 de febrero, a la patria, la gloria del progresso são alguns dos escritos em que Ureña faz referência a pátria e aos dominicanos. Todos venid, y en fraternal alianza estrechad vuestros nobles corazones, reprimid de la guerra las pasiones, y revivan, al sol de la esperanza, del patriota las dulces ilusiones. (A los Dominicanos, 1874) i Venciste, oh Dios, qué gloria! Venciste, Patria, y tu preclaro nombre con destellos de luz graba la historia, y te tributa admiración el hombre. (27 de febrero, 1887) Eterna soñadora de triunfos y grandezas immortales, con viva luz sus horizontes dora. Decidle que ideales son los portentos que su mente crea, que es vana la esperanza que la agita: triunfante el orbe mostrará su idea si le infunde valor la fe bendita. (La fe en el porvenir, 1878).

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A poesia Sombras foi plagiada em Honduras. Periódico El Teléfono de Santo Domingo, n.181, 1886. Decreto de San Francisco (maio de 1881 – presidente Meriño) que consistia em sentença de morte para todos aqueles que estivessem com armas em mãos. 5 Seção “A la patria” no livro Poesias Completas. 4

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Nos fragmentos das poesias, Salomé Ureña fala sobre a proclamação da independência 6, as glórias, as vitórias da República Dominicana e a esperança que os dominicamos precisam ter para que revivam o sol da esperança, fazendo-os acreditar que a mudança e o progresso são possíveis. A palavra é mais do que um simples conjunto de vocábulos, ela tem poder de dizer, convencer, persuadir e de contar, seja ela a história de um povo, uma história de conto de fadas ou de uma notícia; estes, independentemente do gênero, possuem objetivos que perpassam o sentido literal, como as poesias que deixam de ser palavras e passam a “falar sem dizer”, poder que a palavra traz, muitas vezes, nas entrelinhas. Salomé Ureña, além de expressar-se, expressa o mundo em que vive (Krounbauer, 2010) e com a poesia faz história e conta histórias. CONSIDERAÇÕES FINAIS Salomé Ureña, poetisa e professora foi uma mulher sensível e que se preocupava com os acontecimentos de sua pátria, podendo ser evidenciados em sua obra “Poesias Completas” que é subdividida em três seções: “a la patria”, a qual faz referência aos dominicanos e a República Dominicana; “paginas intimas” que traz a melancolia e tristeza de uma mulher forte que importava-se com as dores de sua pátria, além de se mostrar uma mulher sensível que preza a família; e a seção “varia”, a qual como o mesmo nome diz, fala de fatos variados e de pessoas que ela conheceu e, que por algum motivo, fizeram com que ela escrevesse, como por exemplo “Una lagrima” (1870) que escreve quando morre o poeta porto-riquenho Lorenzo Puente Acosta. A poetisa é uma referência na área da literatura e da educação, levando em conta que é considerada uma das percursoras no movimento de ensino para mulheres, mais especificamente no ensino superior, criou o primeiro instituto para mulheres na República Dominicana e é lembrada quando se pensa em literatura, especialmente em seu país. Evidencia-se que Salomé Ureña fez parte da primeira geração do romantismo, sobretudo ao levar em conta que suas poesias centravam-se, principalmente, em temas deste movimento, tais como: patriotismo, progresso e esperança. O texto apresentado fez relações de referências atuais com as poesias de Salomé Ureña, mesmo sendo de épocas distintas, o que faz perceber que olhar, por exemplo, para pensadores latino-americanos do século XIX são de suma importância para enxergar quem foram os percursores de movimentos e lutas “neste vasto e complexo mapa das sociedades em movimento na América Latina” (Streck; Adams; Moretti, 2010, p.19); seja Salomé Ureña como as contribuições para o ensino de mulheres, Guaman Poma de Ayala 7 com a denúncia da violenta dominação espanhola ou María Luisa Dolz y Arango 8 que lutava pelo ensino misto entre meninos e meninas. Pesquisar estes autores é olhar para pensadores latinoamericanos, olhar não no sentido de negar o que vem de fora como John Dewey e Jacques Rousseau, pelo contrário, a ideia é perceber que o pensamento não é condicionado à fronteiras geográficas (Streck; Adams; Moretti, 2010, p.20), mas que as características de intelectuais específicos da América Latina, como cultura e história, são importantes para conhecer e nos conhecermos como latino-americanos. REFERÊNCIAS DEMORIZI, Silviera R. de Rodríguez. Salomé Ureña de Henríquez. Buenos Aires: Cielonaranja, 1944. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MORENO, César Fernández (Cord.). América Latina em su literatura. 10. ed. Serie América Latina em su Cultura. México: Siglo XXI editores – UNESCO, 1986, p. 401-403.

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A República Dominicana teve independência da Espanha em 1821, mas houve a reconquista da Espanha em 1861 e a restauração da independência veio apenas em 1865. 7 Cronista andino do século XVI e XVII, que faz parte da pesquisa de Fontes do Pensamento Latino-Americano. 8 María Luisa Dolz y Arango (século XIX), professora cubana que fez parte da história de luta pela educação para meninos e meninas em Cuba. Foi a primeira a fundar a escola mista em seu país.

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RICARDO, Yolanda. Educadoras antillanas de todos los tiempos in Educadores en américa latina y el caribe. De la colonia a los siglos XIX y XX. Universidad de La Habana, 2011. STRECK, Danilo R.; ADAMS, Telmo; MORRETI, Cheron Zanini. Pensamento pedagógico em nossa América: uma introdução. In: STRECK, Danilo R. (org.). Fontes da pedagogia latino-americana: Uma antologia. Belo Horizonte: Autência Editora, 2010, p. 19-35. ______. Adams, Telmo. Pesquisa participativa, emancipação e (des) colonidade. Curitiba: Paraná, 2014. ______. STRECK, Danilo, REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime (orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2a. ed. rev. e amp. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. UREÑA, Salomé de Henriquez. Poesias completas. 4 ed. Santo Domingo: Bellas artes y cultos, 1975.

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REFINAR O OBJETO: CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA COMPARADA NO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES DA GUERRA DO PARAGUAI NOS LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS E PARAGUAIOS Bruna Reis Afonso 1 Em um contexto de pós I Guerra Mundial, o historiador belga, Henry Pirenne, fez uma contundente crítica ao enfoque rigorosamente nacionalista e, por vezes, local que os historiadores utilizavam para enquadrar seus objetos de estudo. Em De la méthode comparative en histoire (1923) – discurso proferido, em Bruxelas, por ocasião da abertura do V Congrès International des Sciences Historiques – Pirenne propõe que o método comparativo seria o único capaz de garantir cientificidade à história, de livrar o historiador das armadilhas de um olhar exclusivamente nacionalista. “Ele [o método comparativo] a transformará [a história] na medida em que adotará para a história nacional o ponto de vista da história universal.” (PIRENNE, 2015 p. 316). Assim, no contexto de pós-guerra, a História Comparada aparecia como alternativa aos “nacionalismos exacerbados”. A história comparada permite a construção de objetos de estudo que não estejam circunscritos ao âmbito nacional. Um dos textos mais conhecidos que pretende sistematizar a história comparada é Pour une Histoire comparé de las societés européenes de Marc Bloch (1928), no qual o historiador define o significado do termo comparar nos domínios da história. fazer escolha, em um ou diversos meios sociais diferentes, de dois ou mais fenômenos que parecem, a primeira vista, apresentar entre eles certas analogias, descrever as curvas de suas evoluções, constatar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas e outras (BLOCH, 1928, p.16-17) 2. Partindo desses pressupostos, Bloch afirma que são necessárias duas condições para que haja comparação, a saber, alguma semelhança entre os fenômenos observados e uma certa dessemelhança entre os meios onde se produziram. Para Haupt (1998) o método sistematizado por Marc Bloch teve maior repercussão fora da França. Os historiadores franceses, de acordo com Haupt, assinalam que o método comparativo é vago. A ideia de inexatidão do método é compartilhada por Raymond Grew (apud PRADO 2005), para ele não há um método comparativo, o que Bloch propôs foi uma maneira de pensar o objeto, mais que uma metodologia. Haupt ressalta que a comparação não se trata de uma síntese da história internacional, nem se limita a estudar as relações internacionais. Nessa perspectiva, Haupt aponta três caminhos em que a história comparada pode ser exercida: Em primeiro lugar, pode orientar a escolha das problemáticas e das diretrizes de uma pesquisa e permitir uma melhor definição do campo de análise. […] Em segundo lugar, monografias históricas, quer sejam nacionais ou regionais, podem confrontar, numa introdução ou num capítulo final, a evolução particular com a de outros países […] Enfim, estudos partindo de uma problemática comum podem analisar estruturas, processos e mentalidades em duas ou mais sociedades, seja para acentuar diferenças, seja para encontrar analogias, de qualquer maneira para ampliar a base documentária e propor uma interpretação das evoluções baseadas no conhecimento de realidades sociais, econômicas e políticas diferentes (HAUPT, 1998, p. 211). Essas afirmações vão ao encontro do que propõe José D’Assunção Barros, em relação ao comparatismo, ele afirma: “trata-se de iluminar um objeto ou uma situação a partir de outro [...]. Esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas ou 1

Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais/ Bolsista Capes. 2 Todas as traduções são de responsabilidade da autora.

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mais realidades, a perceber variações de um mesmo modelo” (BARROS, 2007, p. 5). Jorge Myers ressalta que a “História é sempre comparativa, mas, na maioria dos casos, seu comparatismo é implícito” (MYERS, 2004, p.175). Nesse sentido, a comparação acontece quando se busca contrastes que ressaltem as singularidades, as dessemelhanças do período ou tema estudados no espaço e no tempo. A história comparada, utilizada de modo explícito, tem suas limitações. Os riscos mais evidentes são a falsa analogia e o anacronismo. A analogia pode tornar evidente, como pode ocultar certos aspectos dos processos estudados. (BARROS, 2007. p.15). A falsa analogia pode levar ao anacronismo quando o pesquisador se debruça sobre objetos que não são comparáveis, isto é, não existem pontos de convergência a serem elucidados. Serge Gruzinski ao analisar a historiografia europeia afirma que “Hoje, os historiadores da Europa continuam manifestando pouca curiosidade pelo passado e pela historiografia que excedem as fronteiras da Europa ocidental, e às vezes mesmo as fronteiras da sua própria nação.” (GRUZINSKI, 2003, p. 321). Em sua perspectiva, os estudos que adotam a História Comparada não conseguiram superar o eurocentrismo, na medida em que são tributários de teorias ou filosofias cujos pressupostos trazem de antemão respostas às indagações do pesquisador. O caminho apontado pelo autor para que o historiador ultrapasse o recorte nacional e ao mesmo tempo a História Comparada é a exploração das connected histories. Essa perspectiva permite também a observação de que estas histórias estão ligadas e que se comunicam entre elas. Diante de realidades que convêm estudar sob diversos aspectos, o historiador tem de converter-se numa espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais e as histórias culturais desligaram ou esconderam, entaipando as suas respectivas fronteiras (GRUZINSKI, 2003. p. 323). A história comparada produzida nos Estados Unidos também foi criticada. Destaca-se as reflexões de Micol Siegel, historiadora da formação racial no Brasil e nos Estados Unidos, na sua perspectiva: Comparação requer que o observador nomeie duas ou mais unidades, cujas semelhanças e diferenças irá descrever. Esse arranjo desencoraja atenção à troca entre as duas, a própria troca que o discernimento pós-colonial entende como a base da formação do sujeito. Os discernimentos de Foucault sobre poder sugerem que a visão de dois objetos paralelos que nunca se encontram não é adequada para explicar esta relação dinâmica. Comparações obscurecem os funcionamentos do poder (SIEGEL apud PURDY, 2012, p. 74). Siegel é uma entusiasta dos estudos transnacionais, pois são uma via que pode esclarecer as conexões além das fronteiras das nações, evidenciar a heterogeneidade, o movimento dos povos e ideias. No que se refere à América Latina as críticas às abordagens comparativas também são veementes. Garramuño indica que os dois principais problemas dos estudos comparados e dos estudos de área: a homogeneização e a dependência de uma noção de modelo europeia da qual as cultuas latino-americanas seriam um tipo de desvio (GARRAMUÑO, 2004. p.152-153). Já Adrián Gorelik aponta que: É muito frequente que muitas análises diluam, sob a vontade comparatista, a diferença, diluindo também as especificidades por trás de uma unidade que produz objetos fantasmagóricos […]. Isso ocorre com claridade nas histórias gerais que põe em paralelo as histórias culturais de América Latina, unificando o variado arco de experiências através dos “ismos” que justamente as melhores historiografias regionais vem corrigindo (GORELIK, 2004, p.122). As críticas à história comparada convergem ao enfatizar a necessidade de uma história mais atenta às singularidades, às conexões entre o local e o global, às heterogeneidades, à circulação de indivíduos, ideias e objetos. Apesar da pertinência das críticas à história comparada, Maria Lígia Coelho Prado argumenta que a comparação pode trazer abordagens inovadoras para a história e que entre comparação

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e conexão há mais complementação que exclusão. Na perspectiva de Prado, a comparação “coloca desafios e demanda cautela” (PRADO, 2005, p.15). A história comparada não se trata de uma mera justaposição de fatos ou de histórias nacionais em busca de generalizações. Trata-se, nos dizeres de Barros: de interações, de iluminações recíprocas, e não de meras superposições. [...] A História Comparada consiste, grosso modo, na possibilidade de se examinar sistematicamente como um mesmo problema atravessa duas ou mais realidades histórico-sociais distintas, duas estruturas situadas no espaço e no tempo, dois repertórios de representações, duas práticas sociais, duas histórias de vida, duas mentalidades, e assim por diante (BARROS, 2007. p.24). O debate sobre a história comparada, histórias conectadas, histórias transnacionais é profícuo por evidenciar os riscos e as limitações do fazer histórico na perspectiva do comparativismo. Vale ressaltar que estudos como o de Capelato, Multidões em Cena: Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo, demonstram quão fecunda pode ser a história comparada. Por que comparar as representações da Guerra do Paraguai nos livros didáticos brasileiros e paraguaios produzidos durante a ditadura militar (1964-1985) e o regime Stroessner (1954-1989)? As pesquisas historiográficas que utilizam os livros didáticos como fonte de pesquisa são recentes, porém bastante expressivas. Em relação à História do Ensino de História, Taís Fonseca ressalta que “no conjunto, sobressaem os trabalhos sobre os currículos e sobre os livros didáticos, geralmente analisados em seus aspectos intrínsecos ou como produtos das elaborações políticas e ideológicas” (FONSECA, 2006, p. 27). É, justamente, o caráter político que interessa a este trabalho. Laville (1999) destaca que a cada mudança política o sistema educacional é posto em reforma, a historiadora chama atenção para a maneira como o ensino de história é posto sob suspeição pelos novos grupos que ascenderam ao poder, assim surge a necessidade de reescrever a história. É interessante notar quanto interesse, quanta vigilância e quantas intervenções o ensino de história suscita nos mais altos níveis. A história é certamente a única disciplina escolar que recebe intervenções diretas dos altos dirigentes e a consideração ativa dos parlamentos. Isso mostra o quão importante ela é para o poder. (LAVILLE, 1999, p.130) A história da Guerra do Paraguai é marcada por intensas disputas interpretativas. Ao longo do tempo, criaram-se heróis, vilões, elegeram-se as batalhas mais significativas, estabeleceram-se datas comemorativas. Diferentes grupos políticos ressignificaram a História da Guerra de acordo com as demandas de seu tempo, procurando explicar as causas, consequências, definir os eventos e personagens mais relevantes do conflito. Assim, as representações da Guerra do Paraguai foram construídas e atualizadas de acordo com os questionamentos e interesses de um dado presente e expectativas em relação ao futuro. A polifonia a respeito da Guerra é fruto não só da violência e da longa duração do conflito, mas também das transformações políticas, econômicas e culturais ocorridas, em decorrência da Guerra. O pós-guerra paraguaio foi marcado pela instabilidade política, golpes e guerras civis que culminaram na ascensão de uma das mais duradouras ditaduras latino-americanas, a saber, o regime Stroessner. Para o Brasil, a Guerra possibilitou o fortalecimento dos militares, mas também acirrou os conflitos entre o exército e a Monarquia. A longa duração do conflito e seus gastos salientaram as contradições da Monarquia. Assim, a Guerra do Paraguai está intrinsecamente ligada ao processo de formação dos Estados nacionais na região platina (AFONSO, 2014). Como demonstrou Laville (1999), os grupos políticos, autoritários ou não, procuram reescrever a história ensinada por meio da revisão dos programas e dos manuais didáticos. Empreendem usos do passado na tentativa de legitimar-se e de criar certo consenso em torno da história nacional. Essa instrumentalização do passado é veiculada através de ritualizações, comemorações, discursos, jornais, livros com o objetivo de produzir “representações compartilhadas” (FAGUNDES, 2010).

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Comparar as narrativas sobre a Guerra do Paraguai tem o objetivo de compreender de que forma as representações sobre o conflito, produzidas durante regimes autoritários, veicularam uma cultura política nacionalista e conservadora. Entende-se cultura política como “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro” (MOTTA, 2009, p. 21). Serge Berstein destaca a importância dos vetores pelos quais passa a integração da cultura política. Dentre eles está o sistema de ensino, “a escola, o liceu a universidade” (BERSTEIN, 1988, p. 356). A escola pode ser analisada a partir de diferentes enfoques, recortes temporais e teóricos, que buscam salientar aspectos sociais, pedagógicos, políticos ou culturais. A perspectiva adotada neste trabalho busca apreender a escola como uma das instituições difusoras de culturas políticas e, especialmente, o manual didático como fonte primária privilegiada para análise das representações da Guerra do Paraguai repercutidas no âmbito escolar. Nessa perspectiva os aspectos relativos à política educacional, às concepções sobre o ensino de história e ao uso do manual didático como ferramenta pedagógica não podem ser negligenciados, porque dizem respeito ao contexto de produção e circulação do documento. Pesquisas que utilizam o livro didático como fonte e/ou objeto, geralmente, adotam o método comparativo de maneira implícita ou explícita, principalmente como o objetivo de identificar a recorrência de um dado e/ou as transformações ocorridas no determinado período de tempo 3. Para Choppin o manual escolar é um objeto de pesquisa que presta-se aos estudos comparados por ser vetor de uma identidade nacional, e ao mesmo tempo receber influências exteriores, no que diz respeito a sua materialidade, seguindo padrões de produção e editoração, por exemplo (CHOPPIN, 2002, p.16). Maria Lígia Coelho Prado (2005) ressalta que comparar o Brasil com outros países da América latina é um desafio estimulante. Os países da América Latina por passarem por situações sincrônicas muito semelhantes tornam a comparação uma metodologia eficaz para a história. As conexões entre Brasil e Paraguai no período analisado não se resumem à história da guerra. Na segunda metade do século XX, ambos os países passavam pela emergência e consolidação de regimes autoritários que estavam conectados, não apenas no campo econômico e político, no sentido mais estrito, mas também no cultural e educacional. De acordo com Amaral e Silva (2006), a reaproximação entre Brasil e Paraguai iniciou-se em 1940, com a visita de Getúlio Vargas ao Paraguai. Entretanto, a ascensão de Alfredo Stroessner, em 1954, foi um fator fundamental para consolidação desse novo rumo político. Em 1954, Vargas autorizou a construção de uma estrada que liga a cidade de Coronel Oviedo ao rio Paraná, e o Brasil acabou financiando o empreendimento. Contudo, nesse processo de reaproximação política o fator de maior peso foi a assinatura do tratado de Itaipu, em 1973, não só por ter levado muitos recursos para a região, mas também por ter sido antecedido por uma série de questões fronteiriças que remontaram aos tratados de limites assinados após o fim da Guerra do Paraguai. No âmbito da educação e cultura, destaca-se a presença da Missão Cultural Brasileira no Paraguai, sediada em Assunção desde 1952, Chedid assinala que: Em acordo com o Ministério de Educação e Cultura do Paraguai a Missão tinha como finalidade a assistência docente; assistência técnica em assuntos educacionais e o intercâmbio cultural entre os dois países. Uma ampla teia de atuação dentro do cenário de cultura e educação que foi abundantemente explorada no corolário de 22 anos (CHEDID, 2010 p. 47) Ainda no âmbito da educação, as semelhanças mais evidentes estão na ocorrência de reformas educacionais em ambos os países. No Paraguai, após a ascensão de Stroessner ocorreram duas reformas no sistema de ensino a “Reforma de 1957”, que aspirava “elevar el nível cultural del pueblo paraguayo” (HORAK, s/d, p.111) e a “una educación moderna, democrática y activa” (BENÍTEZ, s/d, p.148), dentro dessa proposta foram criados os Centro de Alfabetização com a finalidade de promover um “programa 3

André Salles, em A Guerra do Paraguai na literatura didática: um estudo comparativo, utiliza a comparação para perceber quais as concepções historiográficas nortearam as narrativas sobre a guerra do Paraguai presentes em didáticos e a partir disso analisar as transformações ocorridas no recorte temporal escolhido.

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intensivo de educación de jovenes e adultos” 4. Já, em 1973, a denominada “Innovaciones educaionales” buscava formar recursos humanos, assim a estrutura curricular do sistema educacional passou a dividirse em três ciclos. O primeiro correspondia ao 1º, 2º e 3º grados, dividia-se em três grandes áreas – Vida Social, Natureza, Saúde e Trabalho, e Matemática. No segundo ciclo essas áreas se subdividem em Comunicação, Estudos Sociais, Ciências Naturais, Saúde, Trabalho e Matemática, e correspondem ao 4º, 5º e 6º grado. O Terceiro ciclo corresponde ao ensino médio, dividido em duas etapas, 1º Ensino básico e 2º Bacharelado diversificado, este último, por sua vez, se divide em Humanístico Científico e Técnico Profissional (AFONSO, 2014). No Brasil uma série de leis foram decretadas com o objetivo de produzir um modelo educacional que desse sustentação ao projeto de nação almejado pelo regime militar (GERMANO, 2008). O DecretoLei nº 869, de 12 de Setembro de 1969 tornou obrigatória a disciplina Educação Moral e Cívica em todos os graus em todas as escolas do país, e também a disciplina Organização Social e Política Brasileira para o grau médio. A lei nº 5.692, de 1971, ampliou a escolaridade obrigatória para oito anos no ensino de 1º grau, define que o ensino de 2º grau deve orientar-se para o mercado de trabalho, e além disso implementa mudanças curriculares que previam a diluição dos conteúdos de História e Geografia nos Estudos Sociais (AFONSO, 2014). Destacam-se alguns objetivos dos Estudos Sociais no sistema de ensino paraguaio: Identificar e valorizar as relações sociais, culturais e econômicos existentes, entre o país e outros povos. Demonstrar atitude de respeito, cortesia, cooperação e honradez com os demais. Reconhecer e valorizar a participação do homem na mudança da paisagem natural e cultural de seu país e do mundo. Contribuir para a manutenção dos valores culturais, materiais e espirituais da nacionalidade paraguaia. Identificar e valorizar os acontecimentos históricos e as notícias mais significativas da comunidade local do país e do mundo. Reconhecer e valorizar os aportes das gerações passadas ao desenvolvimento dos povos. Manifestar sentimento de amor e respeito a pátria, a seus símbolos e a seus heróis. Demonstrar responsabilidade nas práticas de seus deveres e direitos. Demonstrar atitude cívica e ser capaz de praticar normas de vida democrática (MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y CULTO, 1978) Do mesmo modo no Brasil havia uma concepção moralizante e disciplinadora que norteava a reforma educacional. Selva Guimarães destaca que: A nação, a pátria, a integração nacional, a tradição, a lei, o trabalho, os heróis: estes conceitos passam a ser o centro da disciplina de educação moral e cívica, como também deviam marcar o trabalho de todas as outras áreas específicas e das atividades extraclasse com a participação dos professores e das famílias imbuídas dos mesmos ideais e responsabilidades cívicas (GUIMARÃES, 2014, p.39). O ensino da história nacional destinava-se a instigar, em ambos os países, o patriotismo. Partilhando da concepção de Knauss de que “o passado não é algo dado, mas sim uma construção atualizada do presente” (KNAUSS, 2012, p.146), estudar as representações da Guerra do Paraguai produzidas durante os regimes autoritários e veiculadas nos livros didáticos é uma maneira de lançar luz sobre o presente que as construiu. Como também possibilita ampliar o debate sobre os usos do passado empreendidos pelas ditaduras latino-americanas, brasileira e paraguaia, da segunda metade do século XX. Perceber as semelhanças e diferenças das estratégias discursivas utilizadas pelos regimes autoritários brasileiro e paraguaios para representar a História da Guerra do Paraguai. Além de apreender as conexões existentes entre os dois países no que diz respeito à história nacional e ao papel do ensino de história e da educação como ferramenta política. Refletir sobre o manual escolar como um veículo de cultura política.

4

Idem, p.152.

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Considerações finais Apesar das críticas em relação à história comparada, seus entusiastas sustentam que comparação pode ajudar na construção de uma historiografia mais problematizadora e mais aberta (DEVOTO, 2004, p. 243). A história comparada permite compreender as especificidades e também salientar as diferenças dos fenômenos estudados. Assim, o estudo comparado das representações da Guerra do Paraguai durante a ditadura militar no Brasil e o regime Stroessner no Paraguai é uma maneira de afinar as interpretações sobre os dois regimes e sobre os usos do passado empreendidos por eles. Nesse sentido, compreender as diferenças entre os dois casos é o maior desafio, já que as semelhanças são mais evidentes. Assim, ao apontar semelhanças e diferenças, conexões e distanciamentos a comparação permite refinar objeto de estudo. Referências AFONSO, Bruna Reis. Usos do passado: representações da Guerra do Paraguai nos manuais escolares durante o regime militar brasileiro e Stroessner no Paraguai. História e Diversidade. V. 5, 2014, p. 7885. AMARAL E SILVA, R. A. Brasil – Paraguai: marcos da política pragmática na reaproximação bilateral, 1954-1973 – Um estudo de caso sobre o papel de Stroessner e a importância de Itaipu. 141 f. Dissertação (Mestrado em Relações internacionais). Instituto de Relações Internacionais. Universidade de Brasília. Brasília, 2006. BARROS, José D’Assunção. História comparada – um novo modo de ver e fazer a história. Revista de História Comparada. volume 1, número 1, jun./2007, p. 1-30. BENÍTEZ, Luis G. Historia de la educación paraguaya. Asunción- Paraguay. s/d. BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In: RIOUX & SIRINELLI (Org.). Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa, 1988. ______________. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Cecília et al. (Org.) Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. BLOCH, Marc. Pour une histoire comparée des societies européennes. Reveu de Synthése Historique, Paris, t. XLVI, n. 136, dez. 1928, p. 16-18. CHEDID, Daniele Reiter. Aproximação Brasil-Paraguai: a Missão. 97f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Grande Dourados, Programa de Pós-graduação em História. Dourados, 2010. CHOPPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. História da Educação. ASPHE/ FaE/ UFPel, Pelotas, n 11, Abril 2002, p. 5-24. DEVOTO, Fernando J. La historia comparada entre ele método y la práctica: un itinerário historiográfico. Prismas. Revista de história intelectual. Ano VIII, n. 8, 2004, p. 229-243. FAGUNDES, Luciana Pessanha. Construindo pontes entre olhares: os usos políticos do passado. In: III Simpósio ILB. Itinerários da Pesquisa Histórica: Métodos, Fontes e Campos Temáticos, 2010, Mariana. Anais do III Simpósio Impérios e Lugares no Brasil, 2010. FONSECA, Taís Nívea de Lima e. História & ensino de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. GARRAMUÑO, Florencia. Para qué compara? Tango y samba el fin de los estudios comparatistas y de área. Prismas. Revista de história intelectual. Ano VIII, n. 8, 2004, p.151-162. GERMANO, J. W. O discurso político sobre a educação no Brasil autoritário. Cadernos do CEDES (UNICAMP), v. 28, 2008, p. 313-332. GORELIK, Adrián. El Comparatismo como problema: una introducción. Prismas. Revista de história intelectual. Ano VIII, n. 8, 2004, p. 121-128.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 14 ARQUEOLOGIA E CULTURA MATERIAL

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A GÊNESE DA ARQUEOLOGIA DO PLANALTO CATARINENSE .............................................................. 775 ANÁLISE DA PAISAGEM DO SÍTIO RS-T-126 COMO TRADUÇÃO DO ESPAÇO ...................................... 783 ARQUEOLOGIA POR CONTRATO: PRÁTICAS E PROBLEMÁTICAS EM TORNO DO PATRIMÔNIO CULTURAL ........................................................................................................................................................... 789 JÊ MERIDIONAL: ANÁLISE DE ASPECTOS ECONÔMICOS ASSOCIADOS À CO-EVOLUÇÃO DE AMBIENTE E CULTURA ............................................................................................................................................ 797 PRÁTICAS MORTUÁRIAS DOS CERAMISTAS TUPIGUARANI ................................................................ 807

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A GÊNESE DA ARQUEOLOGIA DO PLANALTO CATARINENSE Natália Machado Mergen 1 INTRODUÇÃO O Planalto de Santa Catarina é uma área de predomínio arqueológico da Cerâmica da Tradição Taquara/Itararé, artefato comumente associado a sítios construídos através de movimentação de terra, como ‘casas subterrâneas’, estruturas entaipadas, apelidadas de ‘danceiros’, montículos e, mais recentemente descritos (SCHMITZ et al. 2013b), aterros-plataforma. Esta conformação de cultura material é relacionada, tradicionalmente, com as populações étnicas historicamente conhecidas como Xokleng e Kaingang, pertencentes à tronco linguístico Macro Jê. Atualmente os Xokleng habitam no Estado de Santa Catarina, já os Kaingang se estendem pelo Estado de São Paulo e por todo o Sul do Brasil. Este reconhecimento linguístico é fornecido pelos estudos de glotocronologia (URBAN, 1992; WIESEMANN, 1978), que estabelecem uma hipótese de expansão para o sul de grupos Jê a partir dos Cerrados do Brasil Central, área de origem do tronco linguístico Macro-Jê, a partir de aproximadamente mil anos antes de Cristo. Neste processo este Jê adaptou sua cultura aos novos espaços e a reformularam, ao menos nos aspectos materiais. As diferenças linguísticas e étnicas entre os dois grupos históricos já parecem mais bem conhecidas do que as evidências arqueológicas, que, apesar de estudadas desde a década de 1950, ainda não possuem resultados consolidados para a diversidade material encontrada nos sítios. A própria diferenciação entre as duas tradições cerâmicas (Figura 1) atribuídas aos Jê do Sul, semelhantes em aspectos gerais, mas com significativas diferenças em forma e decoração, ainda deixam dúvidas aos arqueólogos quando se trata separá-las, efetivamente, em duas tradições e preferem utilizar o termo conjunto de Tradição Taquara/Itararé quando se referem aos artefatos cerâmicos destes grupos, independentemente do local geográfico ou da estrutura associada a esta cerâmica. Esta união entre as duas tradições corresponde à analogia das ocorrências arqueológicas com as populações indígenas identificadas na área, numa longa perspectiva de continuidade histórica. Figura 1 – Cerâmica Tradição Taquara e Tradição Itararé

Fonte: Acervo do Instituto Anchietano de Pesquisas.

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Mestranda em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, bolsista Capes (PROSUP). Vinculada ao Instituto Anchietano de Pesquisas/Unisinos. Orientação de Dr. Pedro Ignácio Schmitz.

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O Planalto de Santa Catarina, assim como as demais áreas do Estado, possui registro de ocorrências de cultura material Jê desde o final do século XIX, momento em que se formaram coleções específicas, sem descrições interpretativas, numa lógica exploradora de busca pelo exótico. Esta situação aproxima-se da realidade apontada por Carbonera (2011), que realizou uma avaliação do desenvolvimento da pesquisa arqueológica no Oeste do Estado, caracterizando três diferentes momentos neste processo, o primeiro relacionado aos achados iniciais e à formação de grandes coleções ligadas à cultura popular e comunitária, o segundo à institucionalização da pesquisa científica, associada ao desenvolvimento universitário e o terceiro às pesquisas de contrato em momento de grande expansão territorial, destinadas a salvamento de patrimônio em obras construtivas e ligadas a novos contextos de trabalho. Marina Amanda Barth aplica uma divisão e caracterização semelhante em sua Dissertação de Mestrado (2014) quando analisa a trajetória da arqueologia em Santa Cruz do Sul, RS. Utilizando estes três períodos de desenvolvimento da Arqueologia, mostrados no Oeste Catarinense por Carbonera (2011) e no Rio Grande do Sul por Barth (2014), propomos, neste trabalho, reunir dados pertinentes ao momento inicial do segundo período, isto é, da Arqueologia científica, no Planalto, compreendidas como as primeiras pesquisas dotadas de metodologias específicas de campo e laboratório e orientadas para o registro, publicação e divulgação dos dados obtidos. Esta etapa é aqui considerada o período de gênese da arqueologia na área, cujas pesquisas iniciais permitiram a primeira construção da disciplina e que forneceram os dados primordiais para a efetivação dos estudos atuais e da construção de novas abordagens interpretativas. ROHR: ARQUEOLOGIA HUMANÍSTICA, CIENTÍFICA E PATRIMONIALISTA A partir da década de 1950, João Alfredo Rohr, S. J. (ROHR, 1971, 1984) passou a fazer levantamentos, registrando cerca de 430 sítios no Oeste, Planalto, Encosta e Litoral do Estado com algumas escavações. No Planalto catarinense, Pe. Rohr (1971) realizou trabalhos de campo nos anos de 1966, 1967, 1970 e 1971, registrando na região 67 sítios arqueológicos, localizados em duas diferentes zonas, definidas por ele segundo sua posição geográfica no Planalto com altitudes entre 400 e 1.200 metros. Os sítios registrados, arqueologicamente atribuídos ao Jê Meridional, foram classificados morfologicamente em seis grupos: sítios com inscrições rupestres, sítios com sepultamentos junto de cascatas, casas subterrâneas (Figura 2 e 3), galerias subterrâneas, terreiros de antigas aldeias e outros sítios abertos, divididos em cerâmicos e pré-cerâmicos. Figura 2 – Casa subterrânea estudada no município de Urubici

Fonte: Rohr (1971).

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Figura 3 – Cerâmicas estudadas por Rohr em casas subterrâneas de Urubici

Fonte: Rohr (1971). Na primeira zona, situada na região do município de Petrolândia e cidades adjacentes, compreendendo o Alto Vale do Itajaí e delimitando ao sul com os Campos de Lages, Pe. Rohr registrou 17 sítios arqueológicos, localizados nos municípios de Petrolândia (10 sítios), Alfredo Wagner (3 sítios), Rancho Queimado (1 sítio), Atalanda (1 sítio), Imbuia (1 sítio) e Ituporanga (1 sítio). Na segunda zona, compreendendo o município de Urubici e proximidades, localizada nos Campos de Lages, Pe. Rohr registrou 51 sítios nos municípios de Urubici (34 sítios), Bom Retiro (15 sítios), Lages (1 sítio) e São Joaquim (1 sítio). A trajetória de pesquisa de Pe. Rohr foi motivo, recentemente, de vários trabalhos (PÍTSICA, 1984; SCHMITZ, 2009; REIS; FOSSARI, 2009; COMERLATO, 2014), pois sua atuação destacou-se no cenário tanto da pesquisa arqueológica regional quanto nacional. Também foi reconhecido em outras áreas, principalmente por sua atuação junto às comunidades, na botânica e na educação catarinense. Até o momento de sua morte, em 1984, Pe. Rohr exerceu importantes tarefas ligadas a trabalhos arqueológicos de campo, de preservação do patrimônio e de criação de acervos e museus. Comerlato (2014) lembra que em Santa Catarina, Pe. João Alfredo Rohr é intitulado “Pai da Arqueologia Catarinense”, devido à dimensão de seus feitos e ao significado deles até os dias de hoje. O trabalho de Reis e Fossari (2009) demonstrou de forma consistente a contribuição do conjunto da obra produzida por Pe. Rohr à arqueologia catarinense e brasileira. As autoras apontam três aspectos essenciais, relacionados às práticas de compreensão da arqueologia por Pe. Rohr: a atualidade de seus trabalhos, a salvaguarda das evidências arqueológicas como patrimônio cultural e de memória e a sua visão humanística de trabalho.

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O primeiro aspecto apontado é a atualidade nas investigações proposta por Pe. Rohr, sintonizada e próxima de uma prática arqueológica não preocupada apenas com recuperação e registro de objetos e restos humanos, mas, principalmente, com contextualização e produção de inferências, fundadas na cautela interpretativa e baseadas na evidência empírica sobre o comportamento e os processos socioculturais que envolvem as populações investigadas. O segundo é o compromisso assumido por Pe. Rohr em relação à salvaguarda das evidências arqueológicas como exemplares de patrimônio cultural e referência à memória de diferentes grupos sociais. Deste modo, a pesquisa arqueológica realizada possui uma perspectiva comprometida socialmente com a identificação, o registro e a conservação deste patrimônio. O terceiro aspecto apontado por Reis e Fossari (2009) é a visão humanística de Pe. Rohr, que coordenou e geriu tanto pesquisas arqueológicas voltadas para as realidades das populações indígenas atuais, consideradas como testemunhas vivas de nosso passado pré-colonial e grupos importantes na formação da nação brasileira, quanto voltadas para as realidades sociais das próprias comunidades em que foram localizados os sítios arqueológicos, comunidades transformadas por Pe. Rohr em informantes e participantes ativas na identificação e registro das evidências. PRONAPA: ARQUEOLOGIA PROSPECTIVA DE IDENTIFICAÇÃO CULTURAL No final da década de 1960 as pesquisas no Planalto foram retomadas pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas 2 (Pronapa). O objetivo principal do Programa era a realização de prospecções, coletas de superfície e testes estratigráficos, com intuito de reconhecer as diferentes culturas arqueológicas, sua distribuição regional e cronologia, especialmente a de grupos cultivadores de uma tradição ceramista, que foi denominada Tupiguarani, das terras baixas sul-americanas. O Programa empreendeu trabalhos sistemáticos de levantamento, prospecção de sítios, identificação e datação de culturas arqueológicas, resultando numa visão geral da ocupação humana para a região, com os sítios arqueológicos classificados em tradições 3 e fases 4 arqueológicas. As pesquisas realizadas contribuíram para a construção de um quadro geral da ocupação do Planalto e a primeira identificação da tradição cerâmica Taquara/Itararé. Pe. Rohr, mesmo trabalhando na área no mesmo período cronológico, não seguia a mesma classificação. Entre 1967 e 1968 as prospecções e escavações realizadas por Walter Fernando Piazza (PIAZZA, 1969) nos Campos de Lages, principalmente nos municípios de Lages, Urubici e Bom Jardim da Serra, durante o terceiro ano do Programa, resultaram na identificação de dezesseis sítios. Foram estudados cinco sítios habitação, quatro sítios em abrigos sob rocha, três sítios superficiais cerâmicos, dois sítiosoficinas, um sítio lítico a céu aberto e um sítio com petróglifos. Através do material recuperado nestes sítios, Piazza definiu quatro diferentes fases culturais consideradas de origem não Tupiguarani e propôs correlações entre os tipos de sítios e as altitudes geográficas de ocorrência. Neste ano ainda não se tinham fixado os nomes das tradições, apenas das fases. Duas destas fases, a Xaxim e a Ibirama, são cerâmicas, ambas as fases ocupam encostas e elevações com altitudes que variam entre 500 e 1000 metros e possuem contemporaneidade ou contato entre elas. As outras duas fases, Cotia e Ubirici, são pré-cerâmicas. A fase Cotia ocorre entre 500 e 700 metros de altitude, sendo associada às casas subterrâneas, aparentemente sendo a fase pré-cerâmica mais 2

O Pronapa foi um projeto de âmbito nacional, desenvolvido entre os anos de 1965 e 1970, organizado pelo antigo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e pela Smithsonian Institution (Washington, EUA), que agrupou, com patrocínio do Conselho Nacional de Pesquisas e coordenação nacional do Museu Paranaense Emílio Goeldi, um pequeno grupo pesquisadores que realizaram trabalhos nas regiões nordeste, sudeste e sul do Brasil. Os coordenadores do Programa foram o casal norte-americano Clifford Evans e Betty Jane Meggers. Os resultados foram divulgados em cinco volumes de Publicações Avulsas do Museu Paraense Emílio Goeldi (1967, 1969, 1969, 1971, 1974). 3 Tradição é um conjunto de elementos ou de técnicas que possuem uma persistência temporal, “uma sequencia de estilos ou de culturas que se desenvolvem no tempo, partindo uns dos outros, e formando uma continuidade cronológica” (SOUZA, 1997, p. 124). 4 Fase é um “complexo de cerâmica, lítico, padrões de habitação, etc, relacionado no tempo e no espaço, num ou mais sítios” (SOUZA, 1997, p.55).

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antiga. Os sítios da fase Urubici localizam-se acima de 700 metros de altitude, em abrigos rochosos e em inscrições rupestres; Piazza datou a ocupação numa gruta da fase em A.D. 1.040 ± 200 (SI-227). REIS: AMPLIAÇÃO DA PROBLEMÁTICA ARQUEOLÓGICA Entre 1974 e 1976, Maria José Reis (REIS, 2007), baseada em registros anteriores de Rohr e Piazza, realizou um grande registro no Planalto de sítios com estruturas subterrâneas nos municípios de Lages, Bom Retiro, Ponta Alta do Sul e São José do Cerrito. A autora buscou estabelecer linhas mestras para a compreensão da problemática deste tipo de estruturas arqueológicas no Planalto Catarinense, que considera ainda pouco estudado naquele período e área, se comparado ao desenvolvimento das pesquisas no Paraná e no Rio Grande do Sul. Nos Campos de Lages, Reis registrou 83 sítios, com ocorrência de estruturas subterrâneas, ‘danceiros’ e aterros. Em alguns destes sítios Reis realizou prospecções, como por exemplo, o SC-CL52, composto por uma grande estrutura subterrânea (Figura 4) e um aterro (Figura 5 e 6). Este sítio foi estudado recentemente pelo Instituto Anchietano de Pesquisas (SCHMITZ et al. 2013b). Figura 4 – Prospecção na estrutura subterrânea do sítio SC-CL-52

Fonte: Reis (1980). Figura 5 – Vista geral do aterro do sítio SC-CL-52

Fonte: Reis (1980).

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Figura 6 – Prospecção no aterro do sítio SC-CL-52

Fonte: Reis (1980). Com intuito de estabelecer comparações da implantação geográfica das estruturas, Reis registrou também 21 sítios no Oeste do Estado, evidenciando a importância e a concentração arqueológica da região dos Campos. Esta diferença entre as áreas, constatada por Reis se dá tanto em dessemelhanças morfológicas dos sítios, principalmente dimensão e a existência de aterros, quanto do meio ambiente de implantação. Suas descrições forneceram elementos sobre distribuição e morfologia das estruturas subterrâneas como sobre o tamanho e fitogeografia dos sítios. O caráter de habitação das estruturas é reforçada por Reis, baseada na abundância do registro, na articulação existente entre elas e na inexistência de outros registros que pudessem substituí-lo. Entretanto, a autora não descarta a utilização das estruturas também para fins econômicos e cerimoniais. A implantação dos sítios ocorre, na maioria das vezes (96%), sobre topos ou encostas de elevação e a uma distância máxima de 1000 metros de riachos. Além disso, Reis diferencia a funcionalidade das estruturas geminadas, propondo a hipótese de estas representarem habitações de famílias comunais, compostas por 2 ou 3 famílias nucleares ou se relacionarem com momentos temporais distintos. Aos aterros, Reis atribui a função de práticas funerárias, através de uma associação com os dados etno-históricos. CONCLUSÃO O artigo buscou mostrar a contribuição das investigações arqueológicas iniciais para as atuais pesquisas no Planalto Catarinense. As extensas pesquisas desenvolvidas por Pe. Rohr permitiram um reconhecimento inicial da importância da área e da diversidade material existente e ofereceram metodologias de trabalho próprias na busca de evidências empíricas. Além disto, Pe. Rohr destacou-se por realizar uma Arqueologia mais próxima das realidades sociais envolvidas no processo, concedendo às práticas aspectos que estão cada vez mais presentes no trabalho arqueológico dos dias atuais, no qual se pergunta: para quem estou fazendo arqueologia. Imbuído desta responsabilidade social da disciplina, Pe. Rohr pensava a importância da preservação do patrimônio arqueológico como um elemento de cultura, história e memória. Pe. Rohr, através de suas inúmeras publicações em almanaques e revistas comunitárias e de divulgação, alcançou colocar a arqueologia brasileira no interesse das massas populares. As realizações do Pronapa, na figura de Walter F. Piazza, contribuíram para a consolidação espacial, étnica e cronológica da cultura material no espaço do planalto catarinense. O Programa, apesar de ocorrer no mesmo período das pesquisas de Rohr, constitui-se num projeto de prospecção mais amplo, que envolvia um contexto cultural mais diversificado, que são as terras baixas da América do Sul. As definições em tradições e fases arqueológicas, estabelecidas pelo Programa, apesar de serem muitas vezes criticadas, forneceram as bases classificatórias e denominativas da Arqueologia no Brasil.

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Independentemente de se aceitarem as bases teóricas e metodológicas usadas pelo Pronapa ele foi o primeiro grande projeto arqueológico desenvolvido no país e publicou seus resultados. O trabalho de Reis levantou uma grande quantidade de novos sítios, além de descrevê-los de modo consistente e de evidenciar sua significativa e concentrada presença na região. A partir deste reconhecimento, sua análise ampliou as perspectivas interpretativas dos sítios da Tradição Taquara/Itararé, produzindo novas hipóteses de pesquisa, principalmente ao sugerir linhas de interpretação amplas como fenômeno de ocorrência mundial. Ela se questionou a respeito da função destas estruturas, da implantação geográfica e ambiental, da diferenciação de estruturas isoladas para as agrupadas e geminadas e realizou apontamentos sobre aspectos de organização social desses grupos indígenas, contribuindo de modo direto aos temas pertinentes à pesquisa arqueológica atual sobre o Jê Meridional. O projeto São José do Cerrito, nos Campos de Lages, em execução pelo Instituto Anchietano de Pesquisas desde 2008 (SCHMITZ et al. 2013a, 2013b; SCHMITZ coord. 2014), se apoia diretamente sobre estes dados de Reis, os reexamina, testa e desenvolve. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARTH, Marina Amanda. Arqueologia no vale do rio Pardo: da Arqueologia comunitária à Arqueologia científica e patrimonial. Santa Cruz do Sul: Universidade de Santa Cruz do Sul, 2014. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2015. CARBONERA, Mirian. As pesqusias arqueológicas entre o final do século XIX e o início do século XXI. In.: CARBONERA, Mirian; SCHMITZ, Pedro Ignácio. Antes do Oeste catarinense. Chapecó: Editora da Unochapecó, 2011, p. 17-45. COMERLATO, Fabiana. O legado do Pe. João Alfredo Rohr S. J.: Reflexões sobre sua trajetória na Arqueologia Brasileira. Revista de Arqueologia Pública, n. 10, p. 9-24, 2014. PIAZZA, Walter. A área arqueológica dos “Campos de Lages”. Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas – Resultados Preliminares do Terceiro Ano 1967-1968. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, Publicações Avulsas n. 13, p. 63-74, 1969. PÍTSICA, Paschoal Apostolo. P. João Alfredo Rohr S.J. Revista do Instituto Histórico e Geográfio de Santa Catarina, n. 5, p. 297-299, 1984. REIS, Maria José. A problemática arqueológica das estruturas subterrâneas no planalto catarinense. 1980. 262 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 1980. REIS, Maria José. A problemática arqueológica das estruturas subterrâneas no planalto catarinense. Erechim: Habilis, 2007. REIS, Maria José; FOSSARI, Teresa Domitila. Arqueologia e preservação do patrimônio cultural: a contribuição do Pe. João Alfredo Rohr. Cadernos do CEOM, Chapecó, n. 30, ano 22, p. 265-293, 2009. ROHR, João Alfredo. Os Sítios Arqueológicos do Planalto Catarinense. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, n. 24, p. 1-56, 1971. ROHR, João Alfredo S.J. Sítios Arqueológicos de Santa Catarina. Anais do Museu de Antropologia. Florianópolis: UFSC , Museu de Antropologia, n. 17, p. 77-168, 1984. SCHMITZ, Pedro Ignácio. “João Alfredo Rohr: Um jesuíta em tempos de transição”. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, n. 67, p. 09-22 2009.

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SCHMITZ, Pedro Ignácio; ROGGE Jairo Henrique; NOVASCO, Raul Viana; MERGEN, Natália Machado; FERRASSO, Suliano. Rincão dos Albinos um grande sítio Jê Meridional. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, v. 70, p. 65-131, 2013a. SCHMITZ, Pedro Ignácio; ROGGE Jairo Henrique; NOVASCO, Raul Viana; MERGEN, Natália Machado; FERRASSO, Suliano. Boa Parada um lugar de casas subterrâneas, aterros-plataforma e ‘danceiro’. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, v. 70, p. 133-195, 2013b. SCHMITZ, Pedro Ignácio (Coord.). As casas subterrâneas de São José do Cerrito. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, 2014. SOUZA, Alfredo Mendonça. Dicionário de Arqueologia. Rio de Janeiro: ADESA, 1997. URBAN, Greg. 1992. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 87-102. WIESEMANN, Ursula. Os dialetos da língua Kaingáng e o Xokléng. Arquivos de Anatomia e Antropologia, v.III, Rio de Janeiro, p. 199-217, 1978.

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ANÁLISE DA PAISAGEM DO SÍTIO RS-T-126 COMO TRADUÇÃO DO ESPAÇO Lauren Waiss da Rosa 1 Jairo Henrique Rogge 2 APRESENTAÇÃO DO SÍTIO RS-T-126 E POTENCIALIDADES DE PESQUISA O Vale do Taquari apresenta arqueologicamente uma divisão geográfica da ocupação do espaço pretérito. Nas áreas localizadas na porção norte do vale, nas quais a presença de terrenos acidentados é maior, observa-se número considerável de estruturas subterrâneas construídas. Estas estariam vinculadas a ocupação dos Jê do Sul. Na porção mais ao sul do vale onde predominam as planícies de inundação, a ocupação Guarani se sobressaiu apresentando número considerável de artefatos arqueológicos. O sítio arqueológico RS-T-126 está localizado nos limites territoriais dos municípios de Arvorezinha e Itapuca situados no Vale do Taquari, banhado pela Bacia Hidrográfica do Rio Forqueta. Foi possível evidenciar no sítio RS-T-126 a presença de um conjunto de 11 estruturas subterrâneas com dimensões que variam entre 3 e 13m de diâmetro. Também podemos destacar nas proximidades do sítio a presença de um montículo articulando-se com outro conjunto de estruturas subterrâneas. COMPOSIÇÃO DO SÍTIO: Estrutura

Dimensões (N/S e L/O)

Profundidade

01

9,54 m x 9,16 m

1,4 m

02

13,40 m x 13,30 m

1,8 m

03

6,00 m x 6,5 m

0,8 m

04

11,30 m x 10,80 m

1, 2m

05

8,00 m x 8,5 m

1,3 m

06

5,90 m x 6,90 m

N/informado

07

6,00 m x 6,10 m

N/informado

08

5,00 m x 6,20 m

N/informado

09

4,50 m x 4,90 m

0,40 m

10

7,50 m x 8,00 m

0,80 m

11

3,00 m x 3,00 m

0,30 m

Estas estruturas foram, ao longo do tempo, nomeadas por arqueólogos de casas subterrâneas e seus construtores foram denominados de engenheiros do planalto. Estas construções são atribuídas aos grupos Jê Meridionais, que derivam do tronco linguístico Macro Jê (ARAÚJO, 2007; SCHMITZ; ARNT; BEBER; ROSA; FARIAS,2010). Apesar de comum na nomenclatura arqueológica, o termo casas subterrâneas pode induzir ao erro, uma vez que, estes espaços também poderiam ser utilizados

1

Mestranda, Programa de Pós Graduação em História, Unisinos, Bolsista do CNPq. Programa de Pós Graduação em História e Instituto Anchietano de Pesquisas, Unisinos, Bolsista de Produtividade CNPq. 2

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como depósito de alimentos como o milho e o pinhão; armadilha para animais e espaço de ritual (BECKER, 1995; SCHMITZ; ARNT; BEBER; ROSA; FARIAS, 2010). “Estas casas com pisos rebaixados podem estar isoladas, em duplas ou em agrupamentos maiores, então geralmente bem próximas umas das outras, até geminadas e partilhando um mesmo aterro. Elas podem vir acompanhadas de pequenos montículos elípticos, considerados funerários, de aterros maiores em que se reuniu a terra não utilizada nos nivelamentos, e de recintos entaipados.” (SCHMITZ; ARNT; BEBER; ROSA; FARIAS, 2010, p.8) A estes grupos também são atribuídas à confecção das cerâmicas da Tradição Itararé-Taquara. No entanto, cabe mencionar a existência de diversas ocorrências de estruturas subterrâneas, nas quais percebe-se a ausência de artefatos cerâmicos. “p.8 As casas subterrâneas costumam vir acompanhadas de cerâmica, que os arqueólogos identificam como da tradição Taquara/Itararé, a qual passou a funcionar como um fóssil guia para identificar sua cultura e até sua população. Desde o princípio da pesquisa ela mostrou considerável variabilidade, dando origem a sub-tradições e fases. Não sempre as casas subterrâneas vêm acompanhadas de cerâmica da tradição Taquara/Itararé.” (SCHMITZ; ARNT; BEBER; ROSA; FARIAS, 2010, p.8) Estas casas ou estruturas subterrâneas, geralmente localizam-se nas terras altas, de clima frio e com significativa presença da Mata de Araucária angustifolia. Os locais onde ocorrem à presença de sítios arqueológicos atribuídos a presença Jê na Bacia Hidrográfica do Rio Forqueta, dividem-se em duas regiões: a primeira apontada por Wolf (2012) não apresenta estruturas subterrâneas e a variabilidade das altitudes fica em torno de 449 m e 762 m, com média de 670 m; já a segunda região na qual ocorre a presença das estruturas subterrâneas varia entre 579 m e 734 m de altitude, com valor médio de 672 m. A ligação entre o grupo indígena e o pinhão pode ocorrer de duas formas mais representativas. A primeira diz respeito à utilização deste fruto para a fabricação da farinha. A segunda funcionalidade está atrelada à elaboração da bebida fermentada utilizada nas festividades, denominada de kiki ou kikikoi (CRESTANI, 2012). Para Almeida (2015) as comemorações regadas a bebidas alcoólicas possuem diversos valores simbólicos, dentre eles a aliança, hospitalidade e status. Copé (2015) acredita que a expansão da Araucária garantiu a estes grupos a quantidade de alimento suficiente para atrair animais de caça, possibilitando certa estabilidade para o surgimento de assentamentos de caráter permanente. A ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM E A GEOARQUEOLOGIA COMO TRADUÇÃO DO ESPAÇO A paisagem cultural deve ser compreendida como uma porção do território que preserva características únicas das relações entre grupos sociais e a natureza. Estas relações podem ser observadas fisicamente sob a forma de marcas ou valores socialmente atribuídos a estas. Mas, além disso, devem ser compreendidas como bem cultural a ser preservado, pois dela emanam aspectos históricos e ecológicos, evocando a noção de pertença ao espaço (MILHEIRA, 2015; COPÉ, 2015). As costumeiras análises realizadas nos sítios arqueológicos da Tradição Itararé/Taquara, permitiram aos pesquisadores inferir sobre técnicas de apropriação do espaço, articulação com os recursos disponíveis, elaboração da cultura material, espacialidade dos artefatos, cronologias e etc. No entanto, ainda restam alguns questionamentos para serem sanados, evidenciados em Schmitz; Arnt; Beber; Rosa; Farias (2010). Para esses autores, ainda é preciso insistir sobre quais atividades eram exercidas dentro e fora das estruturas, bem como, as demais relações entre à ocupação do espaço, seu domínio e manutenção do território. Wolf (2013) também assinala que a arqueologia da paisagem pode englobar várias possibilidades investigativas, entre as quais podemos citar: morfologia dos assentamentos; cronologias da ocupação da

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área; localização com ênfase em aspectos relacionados à altitude acessibilidade, visibilidade e situação topográfica e análise da captação das matérias primas encontradas em contexto arqueológico. Acreditamos que as observações e análises envolvendo a arqueologia da paisagem e a geoarqueologia, possam vir a contribuir para entender a constituição da paisagem e a domesticação do espaço. A geoarqueologia é conhecida academicamente por possibilitar, a partir da interdisciplinaridade, compreender as dinâmicas envolvidas na modificação da paisagem ao longo do tempo, com atenção as técnicas utilizadas na modificação do meio. Para Angelucci (2003), a geoarqueologia possibilita reconstituir as dinâmicas culturais que atuaram em um determinado espaço preteritamente, pois o espaço deixa assinaturas deste comportamento. Para tanto, o autor apresenta oito possibilidades investigativas que variam entre análise da estratigrafia, química e artefatual. “Impacto antrópico: Houve? Com quais efeitos? Onde, como e quando? De que prática deriva? Sítios (questões gerais ou específicas de determinado âmbito espácio-temporal): Onde encontrá-los? Estarão conservados? Estarão relacionados com figuras ou elementos específicos da paisagem? Território: Alterou-se? Em caso positivo, como, quando, porquê, de que forma, etc.? Foi modificado pela ação antrópica? Em caso positivo, como, quando, etc.? Padrões de povoamento: Refletem verdadeiramente o sistema de povoamento da região em dada época ou são o resultado de transformações da paisagem após o abandono dos sítios? Existem opções de povoamento recorrentes? Existem relações entre sítios e recursos ambientais? Recursos: Quais e quantos são? Estarão disponíveis? Onde se localizam? Já foram explorados? Em caso positivo, como, quando e porquê? Artefactos e ecofactos: Quais e como estarão conservados? Porquê? Estarão in situ? Onde foi recolhida a matériaprima? Depósito arqueológico: De que é composto o depósito arqueológico? Como se formou? A sua organização actual reflectirá a estratificação original? Qual é o papel assunto pelos processos pós-deposicionais? Estratigrafia: Qual será a sequência de ocupação do sítio? Será possível reconstituir a sucessão estratigráfica?” (ANGELUCCI, p.43, 2003) Sendo assim, propomos neste ensaio discutir duas metodologias que possam contribuir para a análise da paisagem e do espaço referentes ao sítio pesquisado, o RS-T-126. AS POTENCIALIDADES DE INTERPRETAÇÃO DO SÍTIO RS-T-126 A PARTIR DA ANÁLISE QUÍMICA DO SOLO As análises referentes à química dos solos arqueológicos apresentam novas abordagens para esclarecer e testar os variados padrões de assentamento investigados. Entretanto, os dados obtidos a partir do rastreamento da assinatura química devem ser associados a outros tipos de evidências verificadas, como por exemplo, carvão e sua possível datação, vestígios faunísticos e lito-cerâmicos. Este tipo de análise física e química do solo possibilita, dentro da espacialidade do sítio, compreender aspectos relacionados à dinâmica de apropriação do espaço e suas distintas funcionalidades (REBELLATO, 2007). Contudo, o leque de possibilidades das análises químicas do solo pode ser ampliado para outros segmentos, possibilitando novos debates sobre o patrimônio arqueológico e sua conservação. Este tipo de análise auxilia na compreensão dos aspectos relacionados às alterações mineralógicas que o solo foi sofrendo ao longo do tempo. Mas pode também apontar a ocorrência de algum tipo de contaminação de resíduos, solucionando a frequente dúvida referente à deterioração do material cerâmico. No âmbito da arqueologia as pesquisas que contemplam a temática referente à análise química do solo, em grande maioria, discorrem sobre a coleta e análise das ditas “terras pretas” ou “terras de índio” (CAMPOS et al2011; CAMPOS et al 2012). Ou seja, os sítios arqueológicos vinculados às tradições ceramistas Itararé-Taquara encontram-se desprestigiados deste tipo de reflexão geoarqueológica. Para

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tanto, propomos interpretar a ocupação do sítio arqueológico a partir do fator geo e paisagístico, com o intuito de observar as alterações, manejos e apropriações do espaço e sua funcionalidade simbólica. A análise química do solo permite compreender alguns tópicos sobre a apropriação das áreas de atividades presentes nos sítios arqueológicos que, aliadas a dados etnográficos, contribuem para compreender a ocupação e adaptação do sítio ao longo do tempo. Em sua dissertação de mestrado, Rebellato (2007) inferiu sobre a existencia de áreas de habitação e refugo por meio das análises químicas do solo, entre elas: áreas domésticas, diagnosticadas pela concentração de cinzas de madeira que resultam durante a análise dos dados em pH elevado, presença de elementos alcalinos, carbonato de cálcio, hidróxido de calcio, aumento do teor de potássio e carvão. Já as áreas de ocupação doméstica podem apresentar valores consideráveis de ferro, maganês e zinco, relacionados à presença de sangue. Por fim, a área de refugo apresentou aumento considerável dos níveis de fósforo, calcio e magnésio, relacionado à decomposição de matéria orgânica utilizada no entorno, como por exemplo: penas, ossos, pêlos, cascas, vegetais e etc. Em nossa pesquisa, as coletas serão realizadas durante escavação ao sítio selecionado, para amostragem. O sedimento e o solo serão coletados a partir da abertura de quadrículas, respeitando a estratigrafia do sitio, partindo-se da criação de um nível arbritário de 20 cm para iniciar as coletas. Pretende-se também analisar a composição química das evidências cerâmicas presentes no sítio arqueológico, em contexto de escavação. A partir do processamento e mapeamento químico destes artefatos, pretende-se identificar as alterações mineralógicas apontadas nas assinaturas químicas, com o intuito de inferir sobre aspectos relacionados ao processo de elaboração dos vasilhames cerâmicos, e possivelmente diagnosticar as áreas de captação de matéria prima utilizada em função da composição macroelementar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Movidos pelos atuais questionamentos e com o intuito de desvelar a ocupação do planalto gaúcho, os pesquisadores aliam-se a diversificadas metodologias para compreender a ocupação pretérita do espaço. Muitas vezes as tradicionais abordagens, nas quais privilegiam-se as análises “a olho nu”, acabam por omitir e reduzir outras possibilidades de interpretação. Para tanto, movidos pelos fundamentos da geoarqueologia e da arqueologia da paisagem, os sítios arqueológicos passam a ser compreendidos em sua totalidade, por meio de diversificadas abordagens e metodologias. Este tipo de análise de caráter micro pode vir a possibilitar outros tipos de diálogos, ultrapassando os terrenos da arqueologia. No caso da análise de solo, os questionamentos e as reflexões impostas a partir desta metodologia e de seus resultados, podem impulsionar novas discussões sobre a qualidade do solo; interação pretérita e atual; deterioração das evidências arqueológicas e por fim, a qualidade da preservação do patrimônio arqueológico. A arqueologia também deve cumprir esta tarefa de reflexão sobre a proteção do patrimônio e suas pesquisas também devem propiciar, para além das publicações em artigos, algum retorno social e, se possível, histórico e ambiental. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Fernando Ozorio. A arqueologia dos fermentados: a etílica história dos Tupi-Guarani. Estudos avançados, v.29, n.83, 2015. ANGELUCCI. Diego. A partir da Terra: a contribuição da Geoarqueologia. In: Paleoecologia humana e arqueociências. In MORENO-GARCÍA, M; MATEUS, J.E (eds). Um programa multidisciplinar para a arqueologia sob a tutela da cultura. Instituto português de arqueologia, Lisboa, 2003. ARAÚJO, Atolfo Gomes de Mello. A tradição cerâmica Itararé-Taquara: características, área de ocorrência e algumas hipóteses sobre a expansão dos grupos Jê no sudeste do Brasil. Revista de Arqueologia, 20: 09-38, 2007. BECKER, Ítala irene Basile. O índio Kaingang no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Unisinos, 1995.

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ARQUEOLOGIA POR CONTRATO: PRÁTICAS E PROBLEMÁTICAS EM TORNO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Adriane Nunes Cordonet 1 INTRODUÇÃO O trabalho aqui apresentado tem como objetivo primordial efetuar análise dos dados quantitativos levantados nos processos de licenciamento ambiental abertos no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mais precisamente na Superintendência Estadual do Rio Grande do Sul, entre os anos de 2012 e 2013 dentro do escopo da arqueologia preventiva. Ressalto, no entanto, que tais informações compõem o resultado preliminar de uma base de dados que vem sendo desenvolvida em projeto da Superintendência do IPHAN/RS, onde atuo como estagiária. Neste sentido, objetivei, neste artigo, estabelecer uma interpretação destes dados quantitativos levantados confrontando com as discussões teóricas e qualitativas no campo do patrimônio cultural que viemos desenvolvendo ao longo do projeto denominado Museologia e Cidadania: A Utopia Como Prática Política da bolsa de iniciação cientifica orientada pela Prof° Dra. Carla Renata Antunes de Souza Gomes. Destaco, outrossim, que a análise de tais dados e as interpretações não representam a visão Institucional da Superintendência. CONCEITUAÇÃO E LEGISLAÇÃO PERTINENTE Para que seja possível tal analise, demanda primeiramente, que seja abordado o conhecimento dos conceitos que cercam tais procedimentos, como patrimônio e arqueologia, assim relacionando com sua importância e pratica no cenário brasileiro. Por patrimônio, vemos seus significados surgirem e alterarem-se ao longo do tempo, se relacionando e se adaptando ao cenário político e social do país. De acordo com Figueiredo (1925, p.1522) significa “herança paterna. Bens de família.” Porém, essa denominação embora ainda corrente, não se aplicaria com êxito ao que efetivamente foi contraposto como patrimônio para uma nação, podemos dizer ainda em formação, como a brasileira da década de 30 em que surgiram novas visões e leis acerca do patrimônio nacional. Contudo, no contexto abordado sua definição está relacionada à noção de patrimônio cultural como os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” como mostra o artigo 216 da Constituição. A respeito de sua proteção, embora efetivamente tardia no Brasil, temos ainda no Brasil Império reflexões acerca de sua salvaguarda feitas pelo então Vice-Rei Conde das Gauveias, quando questionado sobre a demolição dos quarteis na Capitania de Pernambuco em 1742. Segundo Rodrigo Melo Franco de Andrade “Com efeito, o Vice-Rei não só discute a hipótese da ocorrência de um conflito entre o interesse público da conservação daquele edifício histórico e a necessidade publica imediata de sua utilização para fins incompatíveis com a preservação de sua integridade, mas também computa, do ponto de vista da administração nacional, o valor espiritual e cívico do monumento, em confronto com a despesa econômica eventual reclamada para protegê-lo.” (ANDRADE, 1952, p.14) Visando o caráter cívico supracitado, temos no Brasil da era Vargas o anseio pela criação de uma cultura nacionalista, em que se busca unificar e se identificar com uma memória nacional. Onde “a noção de patrimônio então concebida estava irremediavelmente atrelada ao surgimento dos Estados nacionais modernos, e ao processo de construção da nação a ele inerente, em que se verifica um enorme investimento na invenção de um passado nacional” (CHUVA, 2009, p.30). Tendo como motor crucial

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Graduanda em História no Unilasalle/Canoas e Bolsista de Iniciação Científica sob orientação da Prof° Dra. Carla Renata Antunes de Souza Gomes- [email protected]

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nesse processo a noção de patrimônio emergido da Revolução Francesa e da “criação de uma herança nacional, em que a ideia de ruptura com um tempo perdido se fez presente.” (CHUVA, 2009, p.47). No Brasil, a arquitetura colonial ganhou foco, mais precisamente, a arquitetura de Minas Gerais do século XVIII que foi consagrada como modelo a ser seguido pelo restante do país, outrossim, foi o foco aos arquitetos e artistas da área designados ao “descobrimento” e manutenção desses monumentos. Nesse contexto, pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema pela lei 378, de 13 de janeiro de 1937 foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tendo como gestor Rodrigo Melo Franco e Andrade (1937-1967), tendo pelo decreto-lei n° 25 de 30 de novembro do mesmo ano sua ação de proteção regulamentada, determinando conforme seu “Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” Em 1996, se cria no Rio Grande do Sul a Superintendência Estadual do SPHAN, que atualmente é denominado IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com a finalidade de zelar pela manutenção e salvaguarda dos patrimônios que viriam a ser tombados no Estado. A legislação acerca do patrimônio cultural continua avançando e por meio da lei n° 3.924 de 26 de julho de 1961 começam a serem visionados os monumentos arqueológicos e pré-históricos conforme consta em seu Artigo 1° - Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do Poder Público, de acordo com o que estabelece o art. 180 da Constituição Federal.” Diante disso, tal lei “viria trazer para o contexto brasileiro esse debate acerca da Arqueologia no contexto de obras diversas, assim como questões concernentes à prática arqueológica enquanto prática profissional.” (ZANETTINI, 2014, p.240). Temos nesse cenário por arqueologia “a ciência que estuda as culturas a partir de seu aspecto material, construindo suas interpretações através da análise dos artefatos, seus arranjos espaciais e sua implantação na paisagem”. (GASPAR, 2004, p.7). E sua caracterização mostrada por seus “sistemas socioculturais, sua estrutura, funcionamento e transformações com o decorrer do tempo, a partir da totalidade material transformada e consumida pela sociedade” (FUNARI, 1988, p.9). No entanto, o país tardou a ter políticas de amparo ambiental, demorando mais de duas décadas “para que a Resolução do CONAMA 001/86 garantisse a obrigatoriedade de intervenções arqueológicas em obras, corporificada na Constituição de 1988”. (MONTICELLI, 2005, p.158). Entrando agora, a arqueologia propriamente dita, é regulamentada através da Portaria n° 07, de 01 de dezembro de 1988, tornando obrigatório “estabelecer os procedimentos necessários à comunicação prévia, ás permissões e ás autorizações para pesquisas e escavações arqueológicas” conforme consta em seu artigo 1°, fazendo do IPHAN seu órgão regulamentador. Contudo, o crescimento das pesquisas arqueológicas teria seu auge a partir da resolução da Portaria n°230 2 de 17 de dezembro de 2012 que torna obrigatório o estudo preventivo arqueológico sobre áreas possivelmente impactadas por empreendimentos socioeconômicos. “Por impacto sobre o patrimônio arqueológico se entende um conjunto de alterações que a obra projetada (ou o uso do solo) venha a causar nos bens arqueológicos e ao seu contexto, impedindo que a herança cultural das gerações passadas seja transmitida ás gerações futuras” (MORAIS, 2009, p. 50).

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Recentemente, esta Portaria foi revogada, tendo sido promulgada a Instrução Normativa 001/2015 que igualmente orienta os procedimentos a serem executados para garantir a proteção ao patrimônio arqueológico.

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Visando que tais impactos negativos não recaiam sobre o patrimônio cultura protegido, é que o IPHAN efetua as regulamentações e solicita que sejam apresentados os passos metodológicos das pesquisas a serem realizadas, passando tais solicitações pela análise dos técnicos do Instituto, objetivando que se cumpram as regulamentações previstas nas leis já mencionadas. Atualmente, no campo acadêmico, existem discussões que apontam a necessidade de devolver à sociedade o conhecimento adquirido nas pesquisas arqueológicas. Pois, “o arqueólogo deve preocupar-se eticamente e legalmente em devolver um resultado á sociedade detentora do patrimônio exumado, buscando pensar criticamente não só o espaço pretérito, mas as transformações, a qual está atrelado.”(TESSARO,2013,p.20). Para que possa ser dada entrada no trabalho que vem sendo executado, após esta breve contextualização histórica e conceitual dos fatores que norteiam este estudo e o trabalho do IPHAN, cabe que eu ressalte novamente que são dados preliminares de um projeto piloto, onde dados mais aprofundados e com maior abrangência e detalhamento poderão surgir no decorrer da pesquisa. Atento também, para o fato de que qualquer analise ou críticas que possam vir a ser realizadas não representa a opinião da SE IPHAN-RS. PESQUISA NOS PROCESSOS DE ARQUEOLOGIA PREVENTIVA Objetivando auxiliar na gestão do patrimônio cultural a Superintendência do IPHAN-RS vem construindo uma base de dados utilizando como fonte os processos de arqueologia preventiva. Entre os objetivos desta sistematização, destacam-se a organização das informações apresentadas, o mapeamento dos sítios arqueológicos e bens edificados que vem sendo levantados por ocasião dos licenciamentos ambientais e a possibilidade de, com base nestas informações, qualificar as ações de gestão. Como sabemos o investimento para desenvolvimento socioeconômico de diversos setores vem crescendo a cada ano, e como anteriormente já havia exposto, este é um dos fatores para o aumento gradativo da presença da arqueologia preventiva associada às fases de licenciamento ambiental. De acordo com um levantamento realizado por Zanettini (2014, p.244) no período de 2003 a maio de 2014 das portarias de pesquisa autorizadas anualmente pelo Centro Nacional de Arqueologia (CNA), se nota um aumento significativo entre os anos de 2011 e 2013 na média de 20%. O Rio Grande do Sul possui mais de dois mil sítios na base de dados do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos, o que leva a crer que muitos sítios são localizados ou revisitados em decorrência desses licenciamentos. A metodologia que temos empregado no levantamento desses sítios e patrimônios dá-se por meio de pesquisa junto ao arquivo de processos da SE IPHAN, onde leio cada processo para identificar se foi localizado algum bem cultural, de cada processo é preenchida uma ficha contendo primeiramente o número do processo junto ao IPHAN; Nome do Empreendimento; Localização e Nome do arqueólogo responsável. Tal ficha é preenchida mesmo que não se tenha localizado nada no processo, para fins de comparação com dados posteriores. Caso seja localizado algum bem de interesse cultural preenche-se a ficha, esta é dividida em duas tipologias 1) Sitio Arqueológico e 2) Patrimônio Edificado. No que for referência a sitio arqueológico temos que o contextualizar dentro das categorias: pré-colonial; histórico ou multicomponencial; Após, se busca localizar o contexto de deposição do sítio em: superfície; profundidade ou ambos; Seguido dos artefatos localizados: cerâmica; lítico lascado; polido; faiança; vidro; metal; ossos fauna ou humanos; outros. Para finalização do preenchimento classifica-se o sitio: Cerrito; Abrigo sob rocha; Casas Subterrâneas; Sambaquis e Tradição Tupiguarani, Vieira, Taquara, etc. e suas coordenadas geográficas para possível cadastro e manutenção. Quanto ao patrimônio edificado, o processo de procura é o mesmo do anterior, diferindo apenas por conter somente o campo de tipologia dos bens: edificação; mangueira de pedras; cemitério histórico; muro de divisa (pedras); curral de palmas; igrejas/capelas e outros; se mantem neste caso também a coleta das devidas coordenadas geográficas quando estas são informadas. De acordo com os dados levantados até o momento, em 2012 foram abertos 190 processos de licenciamento ambiental no IPHAN-RS, tendo entre estes aqueles em que ainda estão realizando etapas

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de campo, ou que por ventura estão paralisados, podendo existir outros que eventualmente encontremse na Sede em Brasília. Uma revisão deve ser executada para confirmar este dado. Segundo Zanettini (2015), na etapa de campo estão incluídos “diagnósticos, programas de prospecção e resgate de porte diverso, ações de monitoramento, renovações de permissões”. (ZANETTINI, 2015 p.244). Destes 190 processos de 2012, até o momento foram identificados sítios arqueológicos em 16 processos de licenciamento, com o total de 69 sítios, sendo 6 deles cadastrados duplamente. Com relação a quantidade de sítios por tipologia de empreendimentos, localizamos 46 em Parques Eólicos; 13 em Linhas de Transmissão; 3 em Parcelamento de Solo (Loteamento) e 1 em Rodovia. Chama atenção o grande número de sítios identificados por ocasião dos Parques Eólicos instalados na Microrregião Litoral Lagunar, com destaque para os municípios de Santa Vitória do Palmar e Rio Grande. Em segundo lugar aparecem as Linhas de Transmissão, demonstrando que a maior parte dos sítios identificados encontra-se associada a empreendimentos do setor elétrico. Tal fator pode apontar para o alto investimento em desenvolvimento recebido pelas áreas, o que pode ser reflexo do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) criado em 2007 que visava “prever investimentos setoriais em infraestrutura energética, logística e urbana no país e suas regiões.” (LEITÃO, 2009, p.30). A Microrregião Litoral Lagunar apresenta grande potencial arqueológico, previamente evidenciado por pesquisas acadêmicas. Neste sentido, observa-se que as atividades econômicas até agora realizadas, ainda que causadoras de impactos, a exemplo do plantio de arroz e criação de gado, não destruíram permanentemente os sítios. Igualmente chama atenção o baixo índice de sítios identificados em atividades de parcelamento de solo para instalação de loteamentos e condomínios, em razão da quantidade de pesquisas executadas nestas áreas. Entre os 69 sítios citados, 94% é de categoria pré-colonial; 2% histórico e 4% multicomponencial. No contexto de deposição temos 46 em superfície e profundidade; 19 em superfície e 0 em profundidade 3. Dentre as classificações chama a atenção para a alta quantidade de Cerritos localizados, totalizando até o momento 34 sitios; seguidos por CaçadorColetor com 5; Concheiros 3; Tradição Vieira 2; Tradição Tupiguarani 1; Casa subterrânea 1 e Sem classificação 19. A grande localização dos Cerritos está relacionada à implantação dos parques eólicos na região sul do Estado. Os dados de patrimônios edificados levantados em 2012 se encontram em 9 processos dos 190 analisados até o momento. Tendo como totalidade 41 bens edificados sendo eles: Muro de Divisa (Pedras Encaixadas) 20; Edificação 5; Cemitérios Históricos 5; Marco Sinalização 3; Igrejas e Capelas 2 e os demais como ponte, jazidas, faróis, olarias com 1 bem cada. Entrando no levantamento realizado nos processos abertos na Superintendência em 2013, nos deparamos com um número menor em relação à demanda de 2012, contendo 120 processos analisados de licenciamento ambiental. Destes 120 processos houve ocorrência de sítios arqueológicos em 19, lembrando que, do total de processos, existem ainda os que estão em fase de campo, encontram-se não finalizados ou que por ventura estão na Sede do IPHAN em Brasília. Deste total analisado em que se caracterizou existência de bem arqueológico, se tem o cadastramento de 89 sítios arqueológicos, sendo 18 destes cadastrados duplamente. Com relação à quantidade de sítios por tipologia de empreendimentos, localizamos 52 em Parques Eólicos; 7 em Usinas Hidrelétricas (UHE); 6 em Pequenas Centrais Hidrelétricas (PHC); 3 em Prédios e requalificação de área urbana; 2 em Linhas de Transmissão; e 1 em Parcelamento de Solo (Loteamento). Novamente, chama atenção o grande número de sítios identificados por ocasião dos Parques Eólicos. Em segundo lugar, por sua vez, aparecem as Usinas Hidrelétricas, demonstrando novamente que a maior parte dos sítios identificados encontra-se associada a empreendimentos do setor energético. E além desta ocorrência, vemos 3 sítios históricos cadastrados na zona urbana de Porto Alegre. A cidade apresenta 3

Como em Superfície se entende por aqueles sítios que foram identificados porque o material estava aparecendo na superfície do solo; Superfície-Profundidade aqueles sítios com características monumentais, visíveis na paisagem, mas que contém pacote arqueológico preservado; E como Profundidade aqueles não visíveis em superfície e identificados por ocasião de intervenções (poços-testes).

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alto potencial arqueológico, sendo uma cidade histórica, bem como apresenta uma comunidade de arqueólogos bastante atuantes no campo da arqueologia histórica. Entre os 89 sítios citados, 91% é de categoria pré-colonial; 6% histórico e 3% multicomponencial. No contexto de deposição temos 50 em superfície e profundidade; 17 em superfície e 4 em profundidade, demonstrando um aumento, nos sítios localizados em decorrência de diagnósticos com abertura de poços-teste. Dentre as classificações, relembrando que o maior índice de tipologia novamente foi em Parques Eólicos, notamos a contínua alta de Cerritos localizados, totalizando até o momento 39 sítios; seguidos por Tradição Umbu com 10; Casas Subterrâneas 6; Abrigo Sob Rocha 2; Tradição Humaitá 2; Estrutura Semi-Lunar 1; Estruturas Monticulares de Pedra 1; e Sem classificação 6. Os dados de patrimônios edificados levantados em 2013 se encontram em 7 processos dos 120 analisados até o momento. Tendo como totalidade 32 bens edificados sendo eles: edificações 15; mangueira de pedra 4; Cemitérios Históricos 3; muro de divisa (pedras) 3; Igrejas e Capelas 2; cacimba/poço 2; e os demais como estações/ferrovias, curral de palmas e fornos com 1 bem cada. Notase dentro deste contexto o alto índice de edificações localizadas, com destaque para Santa Vitória do Palmar, Bom Jesus e Dom Pedrito. Seguido do segundo lugar, mangueiras de pedra com concentração na região Sudoeste junto a Campanha, de Santana do Livramento e Dom Pedrito. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas leituras dos processos, que possibilitou o levantamento acima apontado, tenho três pontos a considerar. Primeiramente, a reflexão acerca das pesquisas realizadas dentro da arqueologia preventiva versus as pesquisas de arqueologia acadêmica. Tendo como norte, o fato de que não se vê como as análises já mencionadas nos processos afirmam, abertura ampla de processos que solicitem anuência favorável á realização de pesquisas acadêmicas. Cabe a reflexão, de como está sendo gerenciado o incentivo das instituições de ensino para o conhecimento de campo dos alunos, necessário á prática arqueológica conforme aponta Caldarelli e Santos (1999-2000) “[...] embora o arqueólogo de contrato possa contribuir para a pesquisa básica, principalmente em questões metodológicas, é a pesquisa acadêmica a grande responsável pelo crescimento teórico da disciplina” (CALDARELLI; SANTOS, 1999-2000, p.54). Por sua vez, Pereira (2009) enfatiza sua crítica a pratica, quase que exclusiva a arqueologia preventiva, ao afirmar que “essa situação, ainda que rentável, proporciona pouco incentivo à produção de conhecimento, restringe a crítica social e limita a atuação do profissional a atender (enquanto houver) a demanda por esse tipo de trabalho”. (PEREIRA, 2009, p.179). Os centros universitários estão formando cada vez mais profissionais na área que, para obter experiência acabam se integrando as equipes de pesquisa preventiva e conseguir realizar alguma forma de estudo. Deixando a demanda cientifica e de constante aprimoramento teórico e metodológico quase sempre encontram em segundo plano. Por fim, acerca dessa discussão compartilho do pensamento que, “a arqueologia por contrato vem redirecionando fortemente nosso campo disciplinar no país, de tal forma que tornou-se emergencial não somente formar debates, trocas de opiniões, experiências e informações, mas sobretudo estimular reflexões” (LIMA, 2000, p.07). Uma segunda abordagem acerca do presente trabalho se volta para o fato de que os arqueólogos em grande medida têm procurado observar o Patrimônio Cultural como um todo, registrando não apenas os sítios (sua atribuição direta), mas diversos bens imóveis (edificados) nas áreas a serem licenciadas. Assim como, resgatando alguns aspectos da história cultural e oral das pessoas que residem no entorno da área do empreendimento. Nota-se nesse âmbito, a inserção da interdisciplinaridade com que estão sendo levadas as pesquisas fazendo com que, de acordo com De Morais (2000), [...] “os antigos cenários de ocupação humana poderão ser revivenciados pelo concurso das várias disciplinas inseridas no contexto das ciências humanas e sociais (especialmente a arqueologia, a história, a geografia humana, a etnologia, a antropologia e a sociologia), das ciências naturais (principalmente a geografia física, a geologia, a geomorfologia e a biologia) e das ciências

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exatas e tecnológicas (física, química, matemática, informática, dentre outras)”. (DE MORAIS, 2000, p.212) Concluo essa etapa do projeto apontando que percebe-se que alguns sítios são registrados diversas vezes por pesquisadores diferentes, a exemplo dos sítios cadastrados por Schmitz nas décadas de 60, 70 e 80 e Miller em 1969. Sendo assim, observa-se a necessidade do IPHAN atualizar e disponibilizar ao público ferramentas de gestão, executando a criação de bancos de dados que auxiliem os arqueólogos e demais interessados da comunidade acadêmica e das cidades na localização dos sítios já cadastrados. Conforme aponta Pelegrini (2006) “A focalização das políticas públicas, em síntese, pode apresentar um conjunto de medidas assentadas num tripé fundamental, qual seja a recuperação física da área degradada, a revitalização funcional urbana e a otimização da gestão ambiental local. Dessa maneira, torna-se viável a promoção do desenvolvimento sustentável e a inclusão da população, a quem de direito pertence o patrimônio cultural e natural.” (PELEGRINI, 2006 p.136) Organizando com isso, os meios de comunicação entre os agentes de pesquisa, a população detentora do patrimônio e o Instituto, aprimorando seu gerenciamento e divulgando o grande potencial de pesquisa existente nos processos de licenciamento ambiental junto ao IPHAN. REFERÊNCIAS ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Brasil: monumentos históricos e arqueológicos. Instituto Panamericano de Geografia e História, México, 1952. ARARIPE, Fátima Maria Alencar. Do patrimônio cultural e seus significados. Transinformação, v. 16, n. 2, p. 111-122, 2004. CALDARELLI, Solange B.; SANTOS, Maria do C. M. M. Arqueologia de Contrato no Brasil. Revista da USP, São Paulo, n. 43/44, p.52-73, 1999-2000. CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Editora UFRJ, 2009. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil DE MORAIS, José Luis. Arqueologia da região Sudeste. Revista USP, n. 44, p. 194-217, 2000. DECRETO-LEI Nº 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937. Dísponivel em disponível em http://portal.iphan.gov.br/legislacao FIGUEIREDO, Cândido de. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 4ed. Lisboa: Portugal-Brasil/ Sociedade. Editora Artur Brandão, 1925. FUNARI, P. Arqueologia. São Paulo. Editora Ática, 1988. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº001, DE 25 DE MARÇO DE 2015. Disponível em http://portal.iphan.gov.br LEI No 3.924, DE 26 DE JULHO DE 1961. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/legislacao LEITÃO, Karina Oliveira – A dimensão territorial do Programa de Aceleração do Crescimento: um estudo a partir do PAC no Estado do Pará e o lugar que ele reserva á Amazônia no desenvolvimento do país/ Karina Oliveira Leitão. – São Paulo, 2009 LIMA,T. A arqueologia no meio empresarial. Goiânia: UCG, 2000. MONTICELLI, Gislene. Arqueologia em obras de engenharia no Brasil: Uma crítica aos contextos. Tese (Doutorado), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

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JÊ MERIDIONAL: ANÁLISE DE ASPECTOS ECONÔMICOS ASSOCIADOS À COEVOLUÇÃO DE AMBIENTE E CULTURA Rafaela Vieira Nogueira 1 INTRODUÇÃO: Em São José do Cerrito, município localizado no planalto de Lages, em Santa Catarina, a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas vem desenvolvendo trabalhos arqueológicos desde o ano de 2008, reconhecendo evidências de um processo de desenvolvimento cultural associado à tradição arqueológica Taquara/Itararé, entre 2.600 e 300 anos atrás, que ocorre em resposta a simultâneas mudanças ambientais, relacionados com a formação dos grupos Jê Meridionais. (SCHMITZ; ROGGE, 2013).

Fonte: Adaptado de Beber, 2013: 44. Figura 1. Localização da área de pesquisa, com os sítios arqueológicos (pontos numerados) e as áreas onde foram realizadas escavações (elipses). O Jê Meridional é um grupo nativo do sul do Brasil, relacionado ao Tronco linguístico Macro Jê, tendo sua origem no Planalto Central brasileiro de onde teria iniciado sua expansão a partir de 3.000 anos atrás. (WIESEMANN, 1978; URBAN, 1992). Os grupos originários mantinham ali estreita relação com o meio ambiente que originalmente ocupavam. Seu ambiente de origem é o Cerrado tropical, do centro do Brasil, com recursos ambientais variados, onde os domínios de seus assentamentos encontravam-se inseridos em áreas de vegetação com enclaves florestais, a exemplo das matas de galeria, de forma a obter bom rendimento em um gradiente ambiental. (SOARES, 2012). Na chegada ao Planalto Meridional encontraram um ambiente subtropical, caracterizado por um diferente espectro de recursos, que os expôs a novas exigências adaptativas. Este ambiente se encontrava 1

Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS. Bolsista de Iniciação Científica CNPq. E-mail: [email protected]. Graduanda em Ciências Biológicas Bacharelado – UNISINOS.

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em processo de transformação, influenciado por alterações climáticas, variando de uma paisagem dominada por uma vegetação campestre para um significativo aumento da Floresta com Araucária, a partir de 1.500 anos atrás, que se seguiu especialmente em duas grandes expansões em 1.000 e 1.200 da nossa Era, conforme dados palinológicos. (IRIARTE e BEHLING, 2007 apud SCHMITZ et al., 2013).

Fonte: Gráfico adaptado de Behling, 2007 apud Schmitz e Rogge, 2013-a: 93 Figura 2. Gráfico ilustrando a evolução da cobertura vegetal a partir de dados palinológicos. A partir da análise de aspectos econômicos e culturais, a pesquisa busca compreender como as mudanças ocasionadas primeiramente pela transferência de um local de longa ocupação para uma nova área e as subsequentes mudanças ambientais ocorrentes neste novo ambiente, teriam motivado uma coevolução da cultura desses grupos com seu novo espaço de ocupação. Como co-evolução, considera-se a ocorrência de transformações evolutivas mútuas e simultâneas em dois ou mais grupos de diferentes espécies animais, inclusive a espécie humana, que apresentem estreitos vínculos ecológicos entre si. (NEVES, 1996). A hipótese é de que as variações climáticas que causaram a expulsão desses grupos do Cerrado, marcadas por um longo período de aridez, também teriam modificado o ambiente para onde se transferiram, proporcionando o aumento de oferta de recursos econômicos na área de estudo, com um reajuste da cultura do grupo. Em contrapartida, o manejo de elementos da vegetação por parte dos grupos adventícios, investindo em recursos de interesse próprio, teria influenciado as mudanças na paisagem, caracterizando o outro lado desta co-evolução. No presente estudo, caracterizo o ambiente de saída e o ambiente da nova instalação e demonstro como o grupo assumiu e modificou o ambiente e adaptou a sua cultura. METODOLOGIA: A pesquisa foi realizada através de análise bibliográfica e de trabalhos de campo. Em um primeiro momento, foi realizado um estudo sobre o desenvolvimento cultural dos grupos Jê Meridionais, com base em fontes arqueológicas; posteriormente, foram levantados dados relacionados à disponibilidade de recursos de subsistência daqueles grupos em sua área de origem, no Planalto Central e os novos recursos disponibilizados no Planalto Meridional, decorrentes da evolução ambiental nessa última área, a partir de fontes etnobotânicas, ecológicas e palinológicas.

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O cruzamento dessas informações serviu, então, como base para a reflexão sobre a inter-relação entre o desenvolvimento sociocultural Jê Meridional e o ambiente em transformação que passam a ocupar, a partir do conceito de co-evolução. RESULTADOS: Com base nos dados levantados, foi possível desenvolver uma perspectiva preliminar da interrelação entre os aspectos ambientais e os culturais, a partir da observação dos processos de mudança de região e de ambiente que resultaram em simultâneas modificações na cultura dos grupos Jê Meridionais. Considero que a abundância de recursos de subsistência, resultantes da expansão florestal na região de transferência, possibilitou estabilidade de padrões de assentamentos, aceitando que estes estão diretamente relacionados com a oferta de recursos econômicos locais. Como recursos entende-se o espaço em sua totalidade, compreendendo a terra como um espaço físico e cultural. (HAVERROTH, 1997). E como coleta considera-se a aquisição de elementos nativos como plantas silvestres, animais e produtos de origem animal, além de outros componentes ocorrentes no contexto ambiental que apresentem potencial de utilização na alimentação das populações humanas, como remédios ou como matérias primas. (RIBEIRO, 1986). Estes recursos acompanham a evolução do ambiente de destino, caracterizada pela expansão da Floresta com Araucária, assim como a vegetação associada a ela, em substituição aos campos originais. À expansão da Floresta com Araucária estão associadas diversas espécies vegetais que teriam potencial de utilização para os grupos humanos. Elas complementariam a oferta de recursos econômicos do pinheiro, tendo como resultado dessa coleta, materiais vegetais utilizados para a confecção de cordas, cobertura do telhado das casas, óleos, ceras, combustíveis, lenha, ferramentas, resinas, gomas, fibras, ornamentos, perfumes, tinturas, pigmentos e manufaturas, especialmente alimentos e remédios. (RIBEIRO, 1986). Em seu ambiente de origem os grupos Jê possuíam uma ampla variedade de fontes naturais para garantir sua economia de subsistência, mas que passam a se tornar escassas em razão de mudanças ambientais que se traduzem em um período mais seco; na região do novo estabelecimento, encontraram uma diferente fonte de subsídios, em processo de expansão, que precisavam conhecer para assegurar seu pleno desenvolvimento. (Tabela 1). Tabela 1. Tabela das espécies vegetais do Planalto Meridional e do Planalto Central e seus usos. Planalto Meridional

Planalto Central

Clima: Subtropical

Clima: Tropical

Vegetação de ocupação dos sítios: Floresta Ombrófila Vegetação de ocupação dos sítios: Cerrado/ Matas de Mista/ Campos de altitude galeria Espécie

Uso

Espécie

Uso

Araçazeiro (Myrcianthes gigantea)

Alimentação

Acumã (Syagyrus flexuosa)

Alimentação

Araticum (Annona rugulosa)

Alimentação

Acumã rasteiro (Syagrus sp.)

Alimentação

Butiá (Butia sp)

Alimentação

Amendoim (Arachis hipogaea)

Extração de óleo

Camboatá-vermelho (Cupania vernalis)

Alimentação

Amendoim de bugre (Sterculia striata)

Alimentação/ Extração de óleo

Canharana (Cabralea glaberrima)

Alimentação

Ananás (Ananas sativus)

Alimentação

Capote (Campomanesia guazumifolia)

Alimentação

Anil (Indigofera sp.)

Tintura

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Caraguatás (Eryngium sp.)

Alimentação

Araçá de arvore (Psidium sp.)

Alimentação

Carqueja do campo (Baccharis gaudichaudiana)

Uso medicinal

Araçá do campo (Psidium sp.)

Alimentação

Araçá felpudo (Psidium sp.)

Alimentação/ Atrativo para fauna

Casca d’anta (Drimys brasiliensis)

Casca (condimentos)/ bebida

Caúnas (Ilex brevicuspis, I. microdonta, I. theezans)

Uso medicinal

Araçá rasteiro (Psidium sp.)

Alimentação/ Atrativo para fauna

Cedro (Cedrella fissilis)

Instrumentos

Araticum (Annona sp)

Alimentação

Cerejeira (Eugenia involucrata)

Alimentação

Araticum Cabeça de nego (Annona sp)

Alimentação

Erva-Mate (Ilex paraguariensis)

Uso medicinal

Araticum Cagão (Annona cacans)

Alimentação

Goiabeira da serra (Acca sellowiana)

Alimentação

Araticum Liso (Annona sp)

Alimentação

Guabiju (Myrcianthes pungens)

Alimentação

Araticum Rasteiro (Duguetia furfuracea)

Alimentação

Guabirobeira (Campomanesia xanthocarpa)

Alimentação

Babaçu (Orbignya sp.)

Alimentação/ cobertura de casas/ extração de óleo

Guaçatunga (Casearia decandra)

Alimentação

Bacupari (Rheedia)

Alimentação

Guamirim (Myrcia bombycina)

Alimentação

Bacuri (Scheelea phalerata)

Alimentação

Boca Boa (Lafoensia sp.)

Atrativo para fauna

Ingá-de-beira-de-rio (Inga uruguensis)

Alimentação

Jabuticabeira(Plinia trunciflora)

Alimentação

Buriti (Mauritia vinifera)

Alimentação/ bebida/ cobertura de casas/ fibras

Jaracatiá (Carica sp)

Alimentação

Buritirana (Mauritia sp.)

Alimentação

Jerivá (Syagrus romanzoffiana)

Alimentação/ extração do óleo/ fibras

Cabacinha do campo (Eugenia sp.)

Alimentação

Leiteiro (Sebastiania brasiliensis)

Instrumentos

Cacto (Cerus sp.)

Alimentação

Marmeleiro-do-mato (Machaerium stipitatum)

Alimentação

Cajá (Spondias mombin.)

Alimentação

Murta (Blepharocalyx longipes)

Alimentação

Caju (Anacardium sp.)

Alimentação

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Pessegueiro – Brabo (Prunus sellowi)

Alimentação

Pimenteira (Capsicodendron dinisii)

Condimentos

Pindabuna (Duguetia lanceolata)

Alimentação

Capa rosa (Neea sp.)

Tintura

Pitangueira (Eugenia uniflora)

Alimentação

Capitão (Terminalia sp.)

Tintura

Samambaia-das-taperas (Pteridium aquileirum)

Instrumentos

Chichá (Sterculia sp.)

Extração de óleo

Taquara-lisa (Merostachys multiramea)

Alimentação/ instrumentos

Cipó bengala (Philodendron sp.)

Manufatura

Tarumã (Vitex megapotamica)

Alimentação

Cipó Imbé (Philodendron sp.)

Manufatura

Urtiga-brava (Urera baccifera)

Instrumentos

Copaíba (Copaifera sp.)

Extração de óleo/ fibras

Uvaia (Eugenia pyriformis)

Alimentação

Coqueirinho de espinho (Syagrus sp.)

Alimentação

Vacunzeiro (Allophylus guaraniticus)

Alimentação

Coqueirinho do campo (Syagrus sp.)

Alimentação

Vassorão – Branco (Piptocarpha angustifolia)

Instrumentos

Coqueirinho Jataí (Butia leiospatha)

Alimentação/cobe rtura de casas

Vassoura-lajeana (Baccharis uncinella)

Instrumentos

Croá (Sicana odorifera)

Alimentação

Curriola

Alimentação

Garapa (Apulea sp.)

Bebida

Genipapo (Genipa americana)

Alimentação/ Atrativo para fauna

Goiaba (Psidium guajava)

Alimentação

Gravatá (Ananas sp.)

Alimentação

Guabiroba (Campomanesia xanthocarpa)

Alimentação/ Atrativo para fauna

Guapeva (Pouteria sp.)

Alimentação

Guariroba (Syagrus olencea)

Alimentação/ extração de óleo

Guerovinha do pantano (Syagrus sp.)

Alimentação

Cajuí (Anacardium sp.) Cajuí Roxo (Anacardium sp.)

Indaiá (Attaleae sp.)

Alimentação Alimentação

Alimentação/ cobertura de

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casas/ extração de óleo Ingá (Inga sp.)

Alimentação

Ingazinho (Inga sp)

Alimentação

Jaboticabinha do campo (Myrciaria sp.)

Alimentação

Jangada (Pithecoctenium sp.)

Fibras

Jaracatiá (Carica sp.)

Alimentação/ Atrativo para fauna

Jatobá(Hymenaea stilbocarpa)

Alimentação/ Bebida/ Atrativo para fauna

Jatobá do campo (Hymenaea stigonocarpa)

Alimentação

Jequitibá (Cariniana sp.)

Fibras

Jerivá (Syagrus romanzofiana)

Alimentação

Juá (Solanum sp.)

Alimentação

Jurubeba (Solanum paniculatum)

Alimentação

Macaúba (Acrocomia sp.)

Alimentação/ extração de óleo

Mangaba (Hancornia speciosa)

Alimentação

Marinheiro (Guarea sp.)

Bebida

Marmelada de cachorro (Amapoua guianensis)

Alimentação

Marmelada do campo (Aliberita sp.)

Alimentação

Melão de São Caetano (Momordica charantia)

Alimentação

Murici (Byrsonima sp.)

Alimentação

Murici d'anta (Byrsonima sp.)

Alimentação

Murici orelha de burro (Byrsonima sp.)

Alimentação

Muricizinho (Byrsonima sp.)

Alimentação

Mutamba (Guazuma ulmifolia)

Alimentação/ Atrativo para fauna

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Palmito (Euterpe edulis)

Alimentação

Peiada (Psidium sp.)

Alimentação/ Atrativo para fauna

Pequi (Caryocar brasiliensis)

Alimentação/ Tintura

Piaçava (Attaleae sp.)

Alimentação/ cobertura de casas/ extração de óleo

Pitanga amarela (Eugenia sp.)

Alimentação

Pitanga preta (Eugenia sp.)

Alimentação

Pitanga rasteira (Eugenia sp.)

Alimentação

Saborosa (Opuntia sp.)

Alimentação

Taboca (Bambusa sp.)

Manufatura

Taquari (Panicum sp.)

Manufatura

Tucum (Astrocarium sp.)

Alimentação

Urucum (Baixa orellana)

Tintura

Uva do mato (Disciphania sp.)

Alimentação

Fonte: Para os dados do Planalto Meridional baseado em Haverroth, 1997; Kinupp, 2007; Klein, 1978. Para os dados do Planalto Central baseado em Barbosa, 2014; Lemos, 1984; Lima, 1977; Soares 2012. Com base nos dados dos ambientes do Planalto Meridional e Central é possível observar que as espécies vegetais com potencial de uso do Planalto Central se apresentam em maior número que as do Planalto Meridional. Esse fator motivaria uma exigência adaptativa para esses grupos. Os recursos, especialmente os vegetais, tinham grande importância na vida dessas populações ainda muito próximas e dependentes do meio ambiente. Ela se expressa tanto no aproveitamento intensivo dos elementos naturalmente disponíveis como no seu manejo, que implicava conservação, aumento de qualidade e volume, expansão espacial e avaliação moral. (HAVERROTH, 1997). O que representava manejo florestal. Conforme Reis et al. (2014), modelos arqueológicos teóricos caracterizam ambientes florestais como sendo potencialmente confiáveis para o desenvolvimento de uma ocupação humana, devido a sua previsível produtividade. Porém a variação sazonal de recursos induz a busca pela diversidade, a fim de garantir o suprimento em diferentes períodos do ano. Devido ao aquecimento climático e regularização das chuvas após a última era glacial, a Araucária, associada a espécies tropicais, formou a mata mista que teria grande potencial econômico para os grupos humanos associados a esta floresta, apresentando em seu estrato superior apenas indivíduos de Araucária e nos estratos seguintes, espécies de árvores tropicais, como as Lauráceas, Fabáceas, Sapindáceas, Mirtáceas, Aquifoliáceas, Meliáceas, entre outras (Figura 3). Espécies dessas famílias vegetais, juntamente com o pinheiro, passam a compor o meio ecológico da área de estudo, são importantes por fornecerem recursos como frutos comestíveis, matérias primas para confecção de utensílios e habitações, fibras, combustível para fogueiras e remédios, além de ser um atrativo para animais que podem ser capturados pelos grupos humanos.

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Fonte: Roderjan, et al., 2002 apud Raitz, 2011. Figura 3. Perfil de estrutura da Floresta Ombrófila Mista. DISCUSSÃO: A mudança climática e a consequente intensificação da vegetação ofereceu maior variedade de fontes nutricionais, permitindo maior estabilidade e consolidação dos grupos Jê Meridionais na área de São José do Cerrito, que podem ser identificadas na complexidade específica dos assentamentos. Com isso, pode-se considerar a paisagem da área de estudo, como um sistema ecológico-cultural. (REIS et al., 2014). As populações humanas, como quaisquer outras populações vivas, necessitam de bases materiais adequadas para garantir seu desenvolvimento e sua reprodução. Os grupos humanos, além dos recursos de que as demais populações animais dispõem para viabilizar sua existência orgânica, dispõem ainda da cultura para assegurar seu sucesso adaptativo. (NEVES, 1996). Segundo Moran (1994), uma das estratégias de sobrevivência adotadas por populações humanas seria a diversificação de fontes nutricionais para contornar possíveis instabilidades no ambiente redundantes em escassez periódica de alguns elementos. É possível observar que os locais escolhidos para assentamento na área de estudo se caracterizam por variedades de fontes alimentares e econômicas de acordo com as estações do ano. Dessa forma, a variação sazonal da oferta de recursos resulta em uma exploração pontual de determinados frutos durante a estação de seu amadurecimento, repercutindo na organização social das populações para obter maior sucesso na captação de recursos. (SOARES, 2012). Sendo assim, embora não possamos deixar de considerar os aspectos sociais e simbólicos, se aceita que entre os fatores que motivam as escolhas humanas, a busca por alimentos é uma atividade que exerce considerável influência na estrutura e na função dos agrupamentos sociais. Dessa forma, a mudança natural da vegetação no ambiente do Planalto Meridional se mostrou, juntamente com outros fatores, um importante elemento na evolução cultural dos grupos que habitaram a área de estudo e na formação de uma nova paisagem. CONCLUSÃO: A partir da análise de aspectos ambientais e culturais e suas respectivas modificações, podemos concluir que houve real co-evolução do ambiente e da cultura no Planalto Meridional brasileiro. As mudanças climáticas favoreceram a criação de um ambiente com expressivo potencial econômico no qual, associado à Araucária, ocorre uma formação vegetal com recursos diversificados, altamente produtivos.

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Esses fatores, definidos pelo enriquecimento ambiental, possibilitaram aos grupos Jê infiltrados nessa região, uma exploração diversificada, resultando em significativa mudança cultural, que oportunizou a consolidação econômica e estabilização residencial dos grupos. Ela se caracteriza pela mudança na estrutura dos acampamentos através do aumento da complexidade material e construtiva, evoluindo de estruturas temporárias para assentamentos estáveis com significativa engenharia de terra e a presença de cerâmica, que atinge seu ponto máximo entre os séculos XI e XV. REFERÊNCIAS: BARBOSA, A.S. O piar da Juriti Pepena. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2014. BEBER. M. V. Sítios arqueológicos do município de São José do Cerrito, SC. Um panorama. Pesquisas, Antropologia, 70: 43-64. São Leopoldo: IAP/Unisinos. 2013. Flora Digital. Disponível em: http://www.ufrgs.br/fitoecologia/florars/index.php. Acesso em: 18/05/2015. HAVERROTH, M. Kaingang, Um estudo etnobotânico: O uso e a classificação das plantas na área indígena Xapecó (oeste de SC). Dissertação (Mestrado). UFSC, Florianópolis, 1997. KINUPP, V.F. Plantas Alimentícias não-convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Tese (Doutorado). UFRGS, Porto Alegre, 2007. KLEIN, R.M. Mapa fitogeográfico do estado de Santa Catarina. In: Reitz, R. (ed.). Flora Ilustrada Catarinense. Herbário Barbosa Rodrigues, Itajaí. 1978. LEMOS, J.W.G.S. A vegetação de subsistência do Grupo Indígena Karajá (enfoque analíticobotânico). Trabalho de conclusão de curso. Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 1984. LIMA, B.C. Frutos, Mamíferos, Répteis, Peixes, Aves e Abelhas Melíferas do Centro-Sul de Goiás. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 1977. MORAN, E. F. Adaptabilidade Humana: Uma introdução à antropologia ecológica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Ponta, Vol.10). 1994. NEVES, W. A. Antropologia ecológica, um olhar materialista sobre as sociedades humanas. São Paulo: Cortez (Questões da nossa época, V59). 1996. RAITZ, E. ; CALEGARI, M. R. ; PAISANI, J. C. Levantamento florístico de um fragmento de floresta ombrófila mista e de campo no sudoeste do Paraná: subsidio para análise fitogeográfica. In: XIV Simpósio Nacional Brasileiro de Geografia Física Aplicada, Dourados, 2011. REIS, M.S. LADIO, A. PERONI, N. Landscapes with Araucaria in South America: evidence for a cultural dimension. Ecology and Society 19(2): 43.2014 RIBEIRO, D. SUMA etnológica brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. SANTA CATARINA. Secretaria de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão. Conhecendo Santa Catarina (Capítulo 2: Diversidade Ambiental). Florianópolis: SPG, 2008. SCHMITZ, P. I.; ROGGE, J.H. Pesquisando a trajetória do Jê Meridional. Pesquisas, Antropologia, 70: 7-33. São Leopoldo: IAP/Unisinos. 2013. SOARES, J. DISCUTINDO A TRADIÇÃO ARATU: O sítio cerâmico GO-RV-06 e novas contribuições. Dissertação (Mestrado). Unisinos, São Leopoldo, 2012. URBAN, G. A história da cultura brasileira segundo as línguas indígenas. In: CUNHA, M.C. da. História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 87-102. 1992.

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WIESEMANN, U. Os dialetos da língua Kaingang e Xokleng. Arquivos de Anatomia e Antropologia, vol. III, ano III, Rio de Janeiro. 1978.

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PRÁTICAS MORTUÁRIAS DOS CERAMISTAS TUPIGUARANI Fabiane Maria Rizzardo 1 INTRODUÇÃO A tradição cerâmica Tupiguarani começou a se desenvolver no território que hoje compreende o Brasil por volta do século I da Era Cristã, chegando ao fim pouco tempo após a colonização do país pelos europeus. Do mesmo modo que as sociedades humanas presentes em todo o mundo, os grupos portadores desta tradição cultural costumavam sepultar os seus falecidos. Embora muitos trabalhos, de caráter arqueológico, apresentem dados sobre os sepultamentos associados à cerâmica Tupiguarani, nenhum deles reúne os diferentes modos de sepultamento presentes em todo o território brasileiro. A partir desta constatação, foi realizado o Trabalho de Conclusão de Curso “Formas de sepultamentos na tradição Tupiguarani” (RIZZARDO, 2014). Parte da pesquisa produzida nesse momento deu origem a um artigo (RIZZARDO & SCHMITZ, 2014), composto pelo resumo das principais obras que tratam dos enterramentos Tupiguarani e por um modelo de como são esses achados nas duas subtradições da tradição cerâmica. Neste espaço, pretendemos apresentar a continuação do que foi publicado anteriormente, propondo uma comparação entre as subtradições. No trabalho incluiremos uma pequena reflexão realizada com base nas fontes etno-históricas, a qual também foi desenvolvida no Trabalho de Conclusão. Antes disso, para uma melhor compreensão do texto, convém retomar alguns aspectos levantados ainda na revisão bibliográfica. Na região que compreende a subtradição Pintada, área atribuída aos grupos Tupinambá, os principais autores que mencionam ou descrevem sepultamentos são Buarque (2010), Dias (2009), Etchevarne (2009) e Schmitz et al. (1996). Os dados apresentados na pesquisa de Buarque e no trabalho de Dias - ambos referentes a sítios arqueológicos do estado do Rio de Janeiro - evidenciam sepultamentos compostos por uma grande panela cerâmica que serve de urna funerária, um recipiente cerâmico que serve de tampa, uma sobre tampa e uma série de tigelas que reforçam a estrutura. Os autores não relatam a presença de acompanhamentos funerários, mas mencionam a presença de buracos de estacas e de estruturas de fogueiras em associação com as áreas de enterramentos. De acordo com os textos produzidos por ambos os autores, os achados foram localizados em áreas de enterramento, as quais formam cemitérios. Os dados apresentados por Etchevarne, sobre o estado da Bahia, são escassos, mas o seu texto é importante por mencionar a presença de um tembetá em associação com uma urna funerária. A pesquisa de Schmitz et al., no estado de Goiás, apresenta sepultamentos em urnas funerárias, uma delas com restos mortais de três indivíduos. Não há informações sobre acompanhamentos funerários. Os principais autores que publicaram dados sobre sepultamentos da região da subtradição Corrugada, atribuída aos grupos Guarani, são Chmyz (1974) e Kashimoto & Martins (2009) no estado de Mato Grosso do Sul, Müller & Souza (2011) e Rohr (1996) no estado de Santa Catarina, Pestana (2007) e Klamt (2004) no estado do Rio Grande do Sul. A maioria dos sepultamentos identificados por esses autores são em urnas funerárias. De modo geral, essas urnas apresentam recipientes cerâmicos que servem de tampas ou apresentam apenas uma cerâmica menor que serve para cobrir o crânio do indivíduo. Em alguns casos os sepultamentos em urnas estão acompanhados de objetos como tembetás, lâminas de machado em pedra e recipientes cerâmicos pequenos, associados a oferendas.

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Bolsista Capes-PROSUP (mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos/ UNISINOS. Orientador: Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz

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Além de sepultamentos no interior de recipientes cerâmicos, dois trabalhos contêm informações sobre enterramentos diretamente no solo, com o corpo estendido (PESTANA, 2007) e com o corpo acocorado (CHMYZ, 1974). Ambas as formas de enterramento diretamente no solo apresentam cerâmica defendendo o crânio, além de adorno ou acompanhamento funerário. A COMPARAÇÃO DOS DADOS O primeiro elemento comum, que se nota nas formas de sepultamento das duas subtradições é o enterramento do corpo, ou de elementos do corpo, não sendo verificada a cremação. Há informações sobre deposição primária, secundária e dupla, neste caso formada por um sepultamento primário, seguido da recuperação e nova deposição de uma de suas partes; e informações sobre sepultamentos de adultos, de jovens e de crianças, e de indivíduos de ambos os sexos. As informações são escassas e os elementos pouco definidos, dificultando uma síntese. Em geral os restos mortais, quando sobreviveram de alguma forma, estão muito mal conservados, impedindo uma caracterização do(s) indivíduo(s) sepultado(s) e de sua forma de deposição e nem sempre houve uma recuperação adequada do que sobrava. O segundo elemento comum é o uso de vasilhas cerâmicas para proteger o corpo, ou parte(s) dele, da terra em que se fez o sepultamento. O mais comum é encerrar o corpo, ou parte(s) dele, em recipiente(s) cerâmico(s) de tamanho adequado e cobri-lo(s) com outro(s) para impedir o acesso imediato da terra. Menos frequente é o uso de uma vasilha cerâmica para defender, ou apoiar, a cabeça do morto quando o sepultamento é direto no chão; mesmo quando a deposição é feita em urna pode existir uma vasilha complementar protegendo a cabeça. As vasilhas usadas não foram produzidas para o sepultamento, mas reaproveitadas de outros usos e não parece ter havido a escolha de determinadas formas e decorações, apenas um tamanho adequado. Tanto a decoração quanto o tamanho variam de sítio para sítio, mas não são diferentes do que existia nas habitações. Na Subtradição Pintada, no Rio de Janeiro, as urnas que protegiam os restos mortais recebiam reforços tanto nas paredes laterais, como na tampa, com vasilhas complementares aumentando o isolamento do corpo. Na Subtradição Corrugada o envoltório do corpo era geralmente constituído por uma urna e sua tampa; às vezes nem a tampa aparece, e não necessariamente ela dá sinal de ter sido removida por atividade posterior. Também se registram sepultamentos diretamente no chão, com uma proteção apenas para a cabeça, dando a impressão de que na Subtradição Corrugada teria havido menos preocupação com a proteção do corpo e sua integridade; talvez fosse mais importante defender a cabeça. Os sepultamentos em urna, em ambas as subtradições, podem ser de um indivíduo ou de mais de um indivíduo, de adultos, subadultos e crianças, e de adultos com imaturos. Os corpos ou restos mortais conservam muito poucos adornos; mais frequentemente é encontrado o tembetá, mais raramente um colar. O tembetá pode ser usado para a identidade sexual do morto; os colares aparecem com crianças e mulheres. Os adornos, inclusive o tembetá, são mais frequentes na Subtradição Corrugada. Peças suplementares que podem ser consideradas oferendas funerárias também são poucas e mais frequentes na Subtradição Corrugada; podem consistir numa lâmina de machado ou numa pequena tigela ou copo. Os sepultamentos, tanto os diretos no chão, como em urnas, costumam formar cemitérios de várias unidades, na proximidade das habitações. Não registramos em nosso levantamento, sepultamentos dentro das habitações em nenhuma das subtradições, embora saibamos que existem evidências delas em outras pesquisas que não foram abordadas em nosso trabalho. No Rio de Janeiro, junto a urnas funerárias são encontrados vestígios de pequenas fogueiras e buracos de estaca, elementos que não são encontrados na subtradição Corrugada. A INTERPRETAÇÃO DOS SEPULTAMENTOS Com base nos dados contidos nos trabalhos que abordam os sepultamentos da tradição Tupiguarani podemos oferecer algumas linhas de leitura:

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Os sepultamentos em urnas funerárias da subtradição Pintada têm como intuito proteger o corpo inteiro do indivíduo do contato com a terra, enfatizando a proteção da região da cabeça (usando tampa e sobre tampa). A estrutura funerária funcionaria como um abrigo que isola e protege o corpo do morto. A raridade de objetos, além da cerâmica, sugere que o morto não costumava ser acompanhado de seus pertences. Fogueiras e buracos de estacas no local dos enterramentos podem indicar a realização de novas proteções e rituais funerários, embora não saibamos que rituais seriam estes. Quanto aos sepultamentos da subtradição Corrugada, os achados sugerem que mais importante do que proteger o corpo do indivíduo, seria proteger a cabeça. Isso porque vários sepultamentos em urnas funerárias não apresentavam tampas, mas, em vez dela, um recipiente cerâmico cobria a região do crânio. Além disso, os sepultamentos diretamente no solo também possuem uma vasilha cerâmica contendo ou cobrindo crânio; ou recuperando a cabeça, após uma deposição primária, para abriga-la num pequeno recipiente com tampa. A constante presença de tembetás, cerâmicas pequenas e outros objetos, transmite a ideia de necessidade de sepultar o morto com seus pertences e acompanhado de rituais funerários. Acreditamos que os sepultamentos diretamente no solo, com cerâmica protegendo o crânio, seriam variações da forma comum de sepultar, que seria aquela dentro de urnas funerárias. Pode ser que estes sepultamentos representem uma simplificação ou variação, na qual a urna funerária já não existe, mas a proteção da cabeça continua presente. REFLEXÕES COM BASE NAS FONTES ETNO-HISTÓRICAS Com o objetivo de conseguir alguma compreensão do que podem representar os sepultamentos nos valemos, para a área da subtradição Pintada, de Gabriel Soares de Souza (1938), que descreve sepultamentos Tupinambá; de André Thevet (1944), que deixou uma imagem do sepultamento de um homem despido com um vasilhame cobrindo a cabeça; e da imagem de Hans Staden (1962), que mostra a forma de vestir em reuniões e em festas. Para a subtradição Corrugada, podemos usar, com cuidado, as observações de Egon Schaden (1974), que estudou as crenças dos Guarani de São Paulo a respeito de uma alma plural e de seus destinos após a morte. Soares de Souza (1938) fala: É costume entre os Tupinambás que, quando morre qualquer d’elles, o leva a enterrar embrulhado na sua rede em que dormia, e o parente mais chegado lhe ha de fazer a cova; e quando o levam a enterrar vão-no acompanhando mulher, filhas e parentes, se as tem, as quaes vão pranteando até a cova, com os cabelos soltos sobre o rosto, estão-no pranteando até que fica bem coberto de terra; donde se tornam para sua casa, onde a viúva chora o marido por muitos dias; e se morrem as mulheres d’estes Tupinambás, é costume que os maridos lhe façam a cova, e ajudem a levar ás costas a defunta, e se não tem já marido o irmão ou parente mais chegado lhe faz a cova. (SOARES DE SOUZA, 1938, p. 402). Embora em toda a área atribuída aos Tupinambá os sepultamentos apareçam em grandes vasilhas cerâmicas, semelhantes às representadas na figura de Hans Staden (Figura 1), o autor não menciona urnas para sepultamento. Ele também não fala da localização do sepultamento se na casa ou num cemitério como os arqueólogos (BUARQUE, 2010; DIAS, 2009). Os enterramentos dos “principais” são diferenciados e proporcionam riqueza de detalhes descritivos: E quando morre algum principal da aldêa em que vive, e depois de morto alguns dias, antes de o enterrarem fazem as ceremonias seguintes. Primeiramente o untam com mel todo, e por cima do mel o empennam com pennas de pássaros de côres, e põe lhe uma carapuça de pennas na cabeça, e todos os mais enfeites que eles costumam trazer nas suas festas; e tem-lhe feito

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na mesma casa e lanço onde elle vivia, uma cova muito funda e grande, com sua estacada por de redor, para que [con]tenha a terra que não caia sobre o defunto, e armam-lhe sua rede em baixo de maneira que não toque o morto no chão; em a qual rede o mettem assim enfeitado, e põem-lhe junto da rede seu arco e flexas, e a sua espada, e o maracá com que costumava tanger, e fazemlhe fogo ao longo da rede para se aquentar, e põem-lhe de comer em um alguidar, e agua em um cabaço, como gallinha; e como esta matalotagem está feita, e lhe põem tambem sua cangoeira de fumo na mão, lançam-lhe muita somma de madeira igual no andar [de cima] da rede de maneira que não toque no corpo, e sobre esta madeira muita somma de terra, com rama debaixo primeiro, para que não caia terra sobre o defunto; sobre a qual sepultura vive a mulher, como d’antes. (SOARES DE SOUZA, 1938, p. 402). No trecho acima, o autor demonstra a preocupação do grupo de que a terra não toque no corpo do morto, que ainda é enterrado dentro da casa. Uma preocupação semelhante, de cuidadosa proteção do corpo contra a terra, seria proporcionada no enterro em urnas por seus diversos reforços laterais e superiores. Soares de Souza não menciona urnas funerárias na passagem reproduzida, mas ressalta o cuidado com a ornamentação do corpo do morto. A ornamentação descrita seria parecida com presente na imagem abaixo, de Hans Staden (Figura 1). Nas urnas não se encontram vestígios de ornamentação e acompanhamento do corpo, talvez em função de não terem resistido ao tempo.

Figura 1. Homens e mulheres Tupinambá em dia de festa. Fonte: STADEN, 1962, p. 255. Na figura de André Thevet (1944), notamos que o morto foi sepultado despido, sentado como se estivesse numa urna funerária. Por cima do crânio há um recipiente cerâmico, que serviria de proteção para a cabeça. Ele repete a informação de que os sepultamentos eram normalmente feitos na terra. No presente caso há preocupação em proteger a cabeça e não o corpo inteiro.

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Figura 2. Ilustração de um sepultamento Tupinambá. Fonte: THEVET, 1944, p. 259. Os sepultamentos em urna, atribuídos pelos arqueólogos (BUARQUE, 2010; DIAS, 2009) ao grupo Tupinambá, são consideravelmente diferentes das descrições dos cronistas para este grupo indígena no período colonial e representam grande provocação interpretativa. Para os grupos meridionais, da subtradição Corrugada, correspondentes geralmente aos Guarani, não se percebe uma preocupação tão exasperada com a proteção do corpo: há sepultamentos em urnas com tampas, urnas sem tampas, deposição no chão com proteção especial para a cabeça e nova deposição da cabeça em pequena urna coberta após um sepultamento primário. Também aparecem mais objetos acompanhando o corpo. Não temos informações de cronistas que nos ajudem a interpretar estes sepultamentos. Por isso, recorremos a informações conseguidas em populações Guarani recentes por Egon Schaden (1974), que se preocupou em observar e descrever concepções acerca da morte de grupos Guarani históricos. Entre eles, identificou a crença na pluralidade da alma: (...) a alma se compõe de várias unidades, em número de duas ou mais, mas em todo caso pertencentes a duas categorias básicas, as de tendências espirituais, de um lado, e as vitais e instintivas de outro. (SCHADEN, 1974, p. 111). A última, que não vai para o paraíso, após a morte do indivíduo ficaria vagando pelo chão, no cemitério (SCHADEN, 1974, p. 111). Esta alma é considerada perigosa porque procura companhia entre os vivos. As populações Guarani observadas por Schaden possuíam rezas e artifícios para mantê-la afastada. As urnas funerárias, especialmente suas tampas, talvez tenham sido uma forma de abrigar ou aprisionar esta alma inquieta junto a seu corpo, de modo a impedir que ela retorne para a aldeia, perturbando os seus irmãos. Em outra versão, se fala que ela ficaria ali guardando o corpo. A urna que encerra o corpo, em outros casos a vasilha que conserva ou cobre a cabeça, não teriam o sentido apenas de guardar o indivíduo ou de protegê-lo da terra circundante, mas também de aprisionar ou abrigar uma de suas almas. A crença bastante comum entre as populações indígenas de que a alma reside na cabeça, daria mais uma razão para esta prática.

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Apesar de Schaden não abordar os Tupinambá, pode se suspeitar que a crença de alma plural tenha sido compartilhada por eles, uma vez que essa noção é comum entre diversos povos indígenas da América do Sul (SCHADEN, 1974, p. 111). CONCLUSÃO O trabalho geral consistiu em realizar uma revisão bibliográfica a fim de identificar as variadas formas de sepultamento relacionadas aos grupos ceramistas Tupiguarani, nos diferentes contextos em que ocorreu a tradição cerâmica. A partir dessa revisão bibliográfica constatamos que grupos pertencentes à subtradição Pintada tinham como hábito sepultar os seus entes em estruturas funerárias compostas por uma vasilha que servia de urna, uma que era tampa, mais uma sobre tampa e uma quantidade de tigelas que funcionavam como reforços laterais. Urnas funerárias com mais de um indivíduo estão presentes nesta subtradição. Esses grupos possuíam áreas de enterramentos próprias para cada aldeia e, não raras vezes, notamse estruturas de fogueiras e buracos de estacas em associação às urnas funerárias. Normalmente não são encontrados junto às estruturas funerárias objetos que pudessem ter pertencido ao morto. Os grupos pertencentes à subtradição Corrugada tinham como hábito sepultar os seus entes em estruturas funerárias compostas, basicamente, por uma urna funerária e uma tampa, notando-se, também, estruturas sem tampas, mas com reforços na região da cabeça. Urnas funerárias contendo mais de um indivíduo estão presentes. Sepultamentos diretamente no solo, mas com cerâmica protegendo o crânio, também aparecem na área, constituindo-se, possivelmente, em variações da forma comum de sepultamento, que seria aquela dentro de grandes vasilhames. Não se notam estruturas de fogueiras ou buracos de estacas, mas comumente ocorrem acompanhamentos funerários. No presente artigo, comparamos os registros dessas duas áreas e buscamos linhas de leitura para os sepultamentos a partir de cronistas e de estudos atuais. O fato de a subtradição Pintada possuir estruturas compostas por mais elementos cerâmicos quando em comparação com a subtradição Corrugada, nos leva a sugerir que aqueles grupos tinham uma preocupação maior em proteger o corpo inteiro do indivíduo (mas com ênfase na cabeça), isolandoo eficientemente do contato com a terra. A arqueologia nos diz pouco sobre os rituais e significado destes sepultamentos que é descrito, mas não interpretado pelos cronistas. As estruturas com menor quantidade de cerâmica da subtradição Corrugada e a ocorrência constante de sua presença na região do crânio, mesmo em sepultamentos fora de urnas funerárias, sugere que a preocupação era a de proteger especialmente a cabeça. Os objetos que acompanham o corpo teriam alguma utilidade nessa nova etapa para a alma que ficou retida na sepultura? A partir da comparação entre uma subtradição e outra é possível suspeitar que tenha havido diferenças em termos regionais dignas de serem consideradas. Estas diferenças possuem relação com a composição das estruturas e maior ou menor presença de acompanhamentos funerários. Além da revisão bibliográfica e comparação entre as duas subtradições que compõem a tradição cerâmica Tupiguarani, realizamos reflexões com base nas fontes etno-históricas, onde chamamos a atenção para a fragilidade de se comparar os grupos históricos, relatados pelos cronistas, com grupos pré-históricos. Já a constatação da alma plural, a partir da obra de Egon Schaden, serviu para ampliar a reflexão sobre o sentido das cerâmicas nos sepultamentos em ambas as subtradições. Nesse sentido, percebemos que as urnas funerárias e também as cerâmicas na região da cabeça do morto poderiam funcionar como abrigo ou como prisão para a alma não ficar vagando na terra em busca de companhia. REFERÊNCIAS BUARQUE, A. As estruturas funerárias das aldeias Tupinambá da região de Araruama, RJ. In: Os Ceramistas Tupiguarani. Volume III. Eixos Temáticos. Belo Horizonte, Superintendência do IPHAN em Minas Gerais, 2010, p. 149-172.

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É com grande satisfação que o corpo discente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Vale dos Sinos apresenta os anais do I Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-Americanos, evento realizado entre os dias 25 e 27 de agosto de 2015. Os organizadores empenharam-se para realizar um evento marcante e significativo para todos os participantes, não abrindo mão de esforços para elevar, ainda que de maneira singela, a qualidade acadêmica dos fóruns de debate. Por meio de conferências, mesas-redondas, simpósios temáticos, visitas culturais e oficinas, objetivamos possibilitar um espaço de diálogo entre os pesquisadores, tendo como foco os estudos históricos latino-americanos.

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