2015. O meu poeta morto viaja de Rolls Royce: autores antigos e modernos e a natureza arcaica de Herberto Helder

Share Embed


Descrição do Produto

O meu poeta morto viaja de Rolls Royce – autores antigos & modernos e a natureza arcaica de Herberto Helder Tat i a n a Fa i a

Se podemos entender o conceito da morte do autor como um evento que pode ser decretado por uma operação da inteligência que não está inteiramente desligada dos ideias políticos que animaram a época de Barthes, o nascimento do autor é uma história cujos contornos são bem mais enevoados. Um estudioso de Catulo em tempos mencionou-me que versos do poeta veronês tinham sido gravados nas paredes de Pompeia. Nunca consegui encontrar uma referência bibliográfica que confirmasse esta informação, mas é provável que tenha acontecido. Um único argumento pode ser referido em favor desta teoria um pouco maluca: as paredes de Pompeia estavam cheias de todos os tipos de inscrições e existe até uma inscrição que afirma que a parede que a sustenta (à inscrição que afirma isto) irá sucumbir ao peso da quantidade de palavras nela gravada. Não seria difícil de imaginar que com o que só poderia ter sido um sentimento de candura, a elite dos Romanos, ou os seus escravos letrados, se tivesse divertido a vandalizar as paredes de Pompeia com alguns dos versos mais vulgares de Catulo. De resto, o conteúdo de algumas das inscrições que aí se podem encontrar não destoa muito das obsessões que definiram a poesia de Catulo. Se só podemos especular sobre a popularidade do poeta de Verona em Pompeia, sabemos pelo menos que, exibindo níveis épicos do que hoje seria descrito com o termo geekness, ele se entretinha com coisas que interessavam os seus contem-

n.º 36 Abril de 2015

69

Tatiana Faia

porâneos profundamente e que ainda hoje nos importam: paixões, desgostos amorosos, ciúme, intrigas políticas, mexericos e uma ternura incansável pela beleza que vive nas coisas. O mecanismo que leva os poetas da Antiguidade a transformarem-se eles próprios em personagens, o pendor biográfico, o distanciamento da auto-ironia, tudo isso pode ser encontrado em Catulo. E aqui poderia escrever, como muitas vezes se escreve acerca dos antigos, que isto é encontrado pela primeira vez na sua forma mais acabada em Catulo, mas suspeito que isto pode parecer assim porque Catulo é bem menos fragmentários do que os poetas líricos gregos, e não é de todo coincidência que, naquilo que a escrita de Catulo tem de biográfico, ele seja herdeiro de um tradição bem mais antiga, porque é possível encontrar uma adaptação de um poema de Safo, que muitos estudiosos apontaram como fundador do conceito de personalidade no Ocidente, no corpus poético de Catulo. É verdade que Catulo entretém preocupações de autor que se preservaram até à contemporaneidade. Na dedicatória da sua obra é possível ler-se: A quem dedicarei este novo e bonitinho livro, ainda há pouco por seca pedra-pomes polido? A ti, Cornélio: é que eras tu quem costumava achar que valiam alguma coisa as minhas ninharias,... Toma, pois, para ti este livrinho, tenha ele o que tiver, que dure, virgem padroeira, perene mais do que uma geração.1

1. Catulo, Carmina, tradução de André Simões e José Pedro Moreira, Livros Cotovia, Lisboa, 2012, p. 29.

70

As questões que este poema invoca são modernas: Catulo quer ser reconhecido, e aqui lembra-se de recompensar o reconhecimento prematuro de um par: Cornélio deu-se ao trabalho de ler Catulo, numa altura em que Catulo podia parecer ao seus contemporâneos incapaz de escrevinhar mais do que aquilo que ameaça escrevinhar no Carmen 37, isto é, falos nas paredes de uma taberna. Quando e como é que a personalidade do autor se torna um factor para os antigos, e o que é que esta ideia pode interessar para ler alguma da poesia de Herberto é a ideia que pretendo aqui explorar. A maior parte dos estudiosos de literatura antiga, quando fala da Ilíada e da Odisseia, costuma mencionar a imparcialidade do narrador homérico, o que muitas vezes é uma enfadonha perífrase para o apagamento da personalidade do

n.º 36 Abril de 2015

O meu poeta morto viaja de Rolls Royce

autor nos poemas Homéricos, e em particular na Ilíada. Existem muito poucos juízos morais da parte do narrador, e os que me parecem decisivos para tentar perceber se há da parte dele alguma expressão da sua própria moralidade, parecem-me todos eles questionáveis, isto é, não é certo que seja a opinião dele. Há no entanto uma pista que tende a passar despercebida. No Livro Segundo, há a alusão a um aoidos (ao que na sociedade homérica seria o equivalente a um poeta) que é castigado por uma mistura de orgulho, vaidade, e talvez soberba. A Tamiris as musas retiram a dádiva do canto, quando ele empreendia a viagem de regresso da Ocália e elas o param junto ao rio Alfeu. Ele tinha-se gabado que seria capaz de derrotar as próprias Musas com a sua arte. Elas enchem-se de raiva contra ele e cegam-no, tiram-lhe o dom do canto e fazem-no perder a memória de como tocar uma lira. Se esta história não é necessariamente sintomática de como os poetas da Antiguidade viam a sua própria relação com ideais de inspiração e com uma noção de ponto de origem da poesia, sugere-nos pelo menos que o narrador homérico via a génese da sua arte como algo assente em forças que ele não dominava na sua totalidade: se Tamiris é castigado por uma mistura de orgulho competitivo e loucura, o narrador homérico é cuidadoso em reconhecer o papel das Musas como fonte da memória dos factos narrados nos seus poemas. O que fica implícito é que o narrador da Ilíada e o cantor da Ocália não são o mesmo tipo de poeta. É preciso recuar um pouco mais no tempo para encontrar a ideia de um poeta com uma biografia que se cruze sem distinção com a ideia da sua própria obra. Como às vezes acontece entre os antigos, neste caso temos o registo da existência do poeta mas não da obra. Assim, tanto quanto me ocorre, o primeiro poeta a encaixar nesta descrição é Orfeu e as raízes da sua história são tão antigas que se perdem na mitologia. A fama de Orfeu percorre a lírica grega arcaica, ainda que ele não seja mencionado nem por Homero nem por Hesíodo. Simónides de Ceos não restringe o poder encantatório de Orfeu a pessoas, afirmando antes que este se estendia a animais, pedras e árvores e Píndaro chama-lhe o “pai do canto”. O juízo de Simónides de Ceos e o de Píndaro cruzam-se no ponto em que se torna implícito que ambos entendem o poder encantatório de Orfeu como a fonte da sua autoridade e do motivo pelo qual ele é digno de estima. Platão, pouco

n.º 36 Abril de 2015

71

Tatiana Faia

menos de um século mais tarde, no Banquete, é bem menos benevolente acerca do que os deuses pensavam de Orfeu e da sua descida ao Hades, em busca de Eurídice. But they sent Orpheus, the son of Oeagrus, empty handed from Hades; they showed him only a phantom of the wife he’d come to fetch and didn’t give him the woman herself. They thought he was soft (he was only a musician) because he didn’t have the courage to die for his love like Alcestis, but found a way of entering Hades while still alive. They punished him for this, and made him die at the hands of women.2

2. Tradução de Christopher Gill, Penguin Books – Great Ideas, 2005. No original: ?ñöÝá ä? ô?í Ï?Üãñïõ ?ôåë? ?ðÝðåìøáí ?î ?éäïõ, öÜóìá äåßîáíôåò ô?ò ãõíáéê?ò ?ö? ?í ?êåí, á?ô?í ä? ï? äüíôåò, ?ôé ìáëèáêßæåóèáé ?äüêåé, ?ôå ?í êéèáñ?äüò, êá? ï? ôïëì?í ?íåêá ôï? ?ñùôïò ?ðïèí?óêåéí ?óðåñ ?ëêçóôéò, ?ëë? äéáìç÷áí?óèáé æ?í å?óéÝíáé å?ò ?éäïõ. ôïéãÜñôïé äé? ôá?ôá äßêçí á?ô? ?ðÝèåóáí, êá? ?ðïßçóáí ô?í èÜíáôïí á?ôï? ?ð? ãõíáéê?í ãåíÝóèáé. (Texto Grego: John Burnett, Oxford Classical Texts, 1903. Symposium 179d–e).

72

Estou em crer que indirectamente, Platão explora aqui um tema que também está presente noutro dos seus diálogos, o Íon. A descrição de Orfeu como alguém que não tem a coragem de morrer verdadeiramente por amor de alguma forma parece-me evocar um tipo de raciocínio na ordem do que coroa o longo olhar que Sócrates demora sobre o rapsodo Íon e sobre a relação deste com o material das suas performances. Íon pode cantar sobre o ofício de um soldado, ou de um artesão, ou de um médico, mas nada sabe de como executar esses ofícios. E algo nisto pode mesmo espelhar a interpretação que Platão faz do carácter de Orfeu, a quem afinal falta a verdadeira coragem que na mesma linha se atribui a uma mulher, Alceste, e que por uma imitação de coragem morrerá despedaçado pelas mãos de mulheres. Platão e Aristóteles examinam a pergunta mais exigente que as sociedades continuam a colocar aos seus artistas: qual a sua função na cidade. O problema, como Platão entende, não tão depressa nem tão uniformemente como alguns estudiosos gostariam, é que “o para que serve” está intimamente ligado ao que a arte nos faz. O problema é exactamente esse, a profundidade da arte enquanto função que actua sobre a personalidade dos indivíduos obedece a tantas variações quanto as miríades de efeitos mínimos que estruturam a personalidade de cada um. De alguma forma, a resposta do narrador homérico a esta pergunta pode ser eminentemente prática porque ele está protegido pela função que a poesia tinha em sociedades que eram anteriores à escrita: conservar uma memória de acontecimentos. Daí alguns estudiosos verem no género do lamento fúnebre a génese da épica. Neste sentido, a origem da poesia e a consciência da mortalidade humana pertencem ao mesmo movimento da inteligência na

n.º 36 Abril de 2015

O meu poeta morto viaja de Rolls Royce

história da humanidade. A personalidade do narrador homérico eclipsa-se por trás desta função e não chega a ser uma questão. Ao contrário de Catulo ou do mítico Orfeu os poemas homéricos mantém-se como o produto de uma inteligência colectiva, na qual os autores são muito mais as personagens, tanto quanto a apresentação da história depende delas, do que o próprio narrador. Esta ideia de uma personalidade anónima enquanto autora de determinado texto tem uma ligação profunda com esse conceito da escrita como uma operação da inteligência colectiva. Um dos maiores fenómenos editorais na Europa de hoje, a autora italiana supostamente nascida em Nápoles que há um pouco mais de duas décadas assina a sua obra sob o pseudónimo de Elena Ferrante refere isto numa entrevista recentemente dada à Paris Review3: The media simply can’t discuss a work of literature without pointing to some writer-hero. And yet there is no work of literature that is not the fruit of tradition, of many skills, of a sort of collective intelligence. We wrongfully diminish this collective intelligence when we insist on there being a single protagonist behind every work of art. The individual person is, of course, necessary, but I’m not talking about the individual – I’m talking about a manufactured image. What has never lost importance for me, over these two and a half decades, is the creative space that absence opened up for me. Once I knew that the completed book would make its way in the world without me, once I knew that nothing of the concrete, physical me would ever appear beside the volume – as if the book were a little dog and I were its master – it made me see something new about writing. I felt as though I had released the words from myself.

Falemos de outro tipo de entrevista, do género que Elena Ferrante aprovaria. Numa auto-entrevista escrita para a revista Luzes da Galiza (reimpressa pelo Público a 4 de Dezembro de 1990), Herberto Helder descreve um poema como “um objecto carregado de poderes magníficos, terríficos: posto no sítio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma ordem e uma desordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa.” O afastamento do autor daquilo que Elena Ferrante descreve como “a imagem manufacturada”, aquilo que não é o indivíduo nem a sua biografia, esse conceito afinal tão central para ler Catulo ou Herberto Helder quanto para ler a

n.º 36 Abril de 2015

3. Paris Review, “The Art of Fiction,” Primavera de 2015, n.º 212, entrevista de Sandro e Sandra Ferri.

73

Tatiana Faia

obra de Elena Ferrante, para quem o anonimato imposto pelo pseudónimo tem alimentado especulações de todo o género acerca da relação entre obra e biografia, serve afinal para colocar o indivíduo no centro. Elena Ferrante fala do espaço criativo que esta distância mediática entre ela e a sua obra criou. Herberto Helder fala disto de outro modo ao definir o poema (o poema como arquétipo do poema) enquanto objecto “carregado de poderes magníficos”. Esse objecto deixado só, com os seus poderes, como coisa absoluta, desligada do discurso do seu autor, que aponta para uma ideia do poema enquanto próprio actor. O afastamento do autor não tem nada que ver com uma rasura da biografia, que de resto não existe na obra de Herberto Helder, a meu ver nem nos poemas de O Bebedor Nocturno, mas justamente com a necessidade que definiu a poesia de Herberto, a de colocar o poema no sítio certo para que ele se possa tornar “carregado de poderes magníficos”. Isso paradoxalmente coloca a poesia de Herberto na ordem dos eventos da sua biografia: a negação do autor enquanto imagem manufacturada permite afinal a existência desse espaço criativo. Poucos meses depois da morte de Herberto Helder reli O Bebedor Nocturno. Não podemos dizer ao certo quem é o narrador ou narradores destas sequências de poemas mudados no sentido de uma coincidência com o autor, mas o que aí acontece ao narrador de cada poema pertence afinal a um modo muito arcaico de fazer poesia. Ele existe perfeitamente nesse terreno que toma ao mesmo tempo parte numa ideia de literatura como “fruto de uma tradição, muitas qualidades, e de uma forma de inteligência colectiva”, que não só é uma ideia central para uma leitura destes poemas, como através da ética que fica implícita, garante que estes formam uma unidade com o restante corpus de Herberto Helder. No poema que abre a colecção na edição mais recente da agora Porto Editora (também as chancelas editoriais vão desaparecendo por trás de agregados colectivos maiores, aqui talvez infelizmente com consequências bem mais nefastas para a identidade das mesmas), “Ode do Desesperado,” lê-se que a morte está agora diante de mim como “o instante em que o céu se torna puro,/ como o desejo de um homem de rever a pátria,/ depois de longos, longos anos de cativeiro.” No poema “I am the death of Orpheus,” Adrienne Rich escreveu: “I am a woman in the prime of life/ driving her

74

n.º 36 Abril de 2015

O meu poeta morto viaja de Rolls Royce

dead poet in a black Rolls Royce,/ through a landscape of twilight and thorns.” Alguém podia escrever aqui, em jeito de escólio, que a auto-asserção de Adrienne Rich, ou do narrador de Adrienne Rich, pertence não tanto ao mundo de Orfeu (que morte de Orfeu se terá aqui em mente, ao certo?), mas antes ao mundo de Deméter e Perséfone, a rapariga que no mito engole o bago de romã que lhe oferece o deus dos mortos, e passa a habitar em estações diferentes do ano o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. E eu poderia aqui optar por uma explicação lírica acerca da função dos poetas, ao género da que Platão desaprovaria, dizendo que me parece que afinal eles fazem o trabalho de habitar ao mesmo tempo o mundo dos mortos e dos vivos e que os seus poemas documentam essa travessia. O narrador homérico parecia afinal saber, bem no princípio da aventura da literatura no ocidente, que a sua arte envolvia um acordo com a morte, que de alguma forma jogava a seu favor, sancionando o acordo entre ele e os vivos que eram o objecto do seu canto. Se o melhor poema é um objecto “carregado de poderes magníficos”, então parece haver uma ligação íntima entre esses poderes magníficos e aquilo que há de mais individual e ao mesmo tempo mais universal na experiência humana (Herberto fala disto na entrevista acima citada, quando menciona o poder da “imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo”). Mas esta explicação neste tempo pode ser insuficiente e por isso mais vale terminar citando Herberto de modo mais biograficamente correcto: Conhecem-me os cavalos e a noite e os desertos traiçoeiros e a guerra e as feridas e o papel e a pena. 4

n.º 36 Abril de 2015

4. In “Divisa” (Al-Moutanabbi), O Bebedor Nocturno, Porto Editora, 2015, p. 101.

75

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.