2015 - Os sentidos da recompensa em Bernardo Guimarães (O Garimpeiro)

June 14, 2017 | Autor: Jean Pierre Chauvin | Categoria: Literatura brasileira, Bernardo Guimarães, O Garimpeiro
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[CHAUVIN, Jean Pierre. O Garimpeiro: os sentidos da recompensa em Bernardo Guimarães. In: GUIMARÃES, Bernardo. O Garimpeiro. São Paulo: Martin Claret, 2015, pp. 7-14]

O garimpeiro: os sentidos da recompensa em Bernardo Guimarães Jean Pierre Chauvin1 Bernardo Joaquim da Silva Guimarães nasceu em Ouro Preto (MG) em 1825, mesma cidade onde veio a falecer em 1884. Logo após os ensinos secundários, estudou Direito no Largo São Francisco, em São Paulo. No regresso a Minas Gerais, atuou como jornalista, jurista e professor de português, latim e retórica em instituições tradicionais de ensino. Como romancista, ficou tornou-se bastante popular com a publicação de A escrava Isaura2, de 1875, em que abordou a questão escravagista sob a ótica romântica. A narrativa de desenrola tendo o espaço doméstico como pano de fundo: modelo de ambientação que será uma constante em sua obra. Mas sua estreia na ficção começara muito antes. Amostra disso, em 1870 o autor firmou contrato com o editor francês Garnier, que lhe permitiu a publicação de O garimpeiro, lançado em 1872 - mesmo ano em que seu outro romance O Seminarista veio a público. No entanto, possivelmente pelo fato de serem obras coetâneas, a princípio, a temática da extração de diamantes perdeu em visibilidade para o teor polêmico em torno da vocação religiosa. O fato é que tanto uma quanto a outra obra se inserem no que Massaud Moisés chamou de “segundo momento romântico”, a vigorar entre 1859 e 1870, em que “prolifera uma ficção de consumo, eivada de lugares-comuns folhetinescos” (MOISÉS, 1984, p. 193). Em contrapartida, não se pode negar que O garimpeiro reúne os ingredientes essenciais da estética romântica, com a vantagem de ter sido uma das primeiras obras a inaugurar, situar e descrever o regionalismo em nossa produção ficcional.3 Antônio Soares Amora assinalou a esse respeito que:

1 Professor de “Cultura e Literatura Brasileira” na ECA, USP. Autor de O Alienista: a teoria dos contrastes em Machado de Assis (2005) e de O poder pelo avesso na literatura brasileira (2013). Afiliado à União Brasileira de Escritores; membro da Associação Brasileira de Literatura Comparada; associado à Sociedade Brasileira de Retórica. 2 O romance de Bernardo Guimarães serviu de inspiração para telenovelas exibidas no país por duas emissoras diferentes, respectivamente em 1976 e 2004. 3 A esse respeito, consultem-se: Antonio Candido. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9a ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000 (originalmente publicado em 1959); Antônio Soares Amora. A literatura brasileira Vol. II: o Romantismo. 3a ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1969; Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 39a ed. São Paulo: Cultrix, 2001 (originalmente publicado em 1970); Massaud Moisés. História da literatura brasileira: Romantismo, Realismo. São Paulo: Cultrix, 1984; e Luiz Roncari: Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp, 1995.

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[outra] (…) tendência de nossa ficção romântica foi dada pelo que podemos denominar, com exigente propriedade, o romance sertanejo. A ideia de um romance que estudasse o homem do interior brasileiro, seus usos e costumes, sua vida social e, particularmente, o ambiente telúrico, que condicionava essas realidades, imprimindo aos seres humanos um caráter particular e à vida coletiva um específico estilo existencial (AMORA, 1969, p. 201). Embora seja um romance breve, em seus dezessete capítulos transparecem as marcas de uma narrativa plena de reviravoltas no plano dos afetos, a contagiar até mesmo a linguagem ora mais contida, ora mais solta do narrador. Entidade que, em mais de uma oportunidade, afirma faltarem recursos para descrever melhor determinadas cenas e situações. O enredo revela um forte componente descritivo, em que são frequentes as comparações entre os homens e o contorno das paisagens. O narrador privilegia o campo em clara oposição ao espaço urbano: “Posto que ali não tenham penetrado os benefícios do progresso material, todavia a condição moral e intelectual da população é e sempre foi excelente”. Ambientado nas cidades de Araxá, Patrocínio e Bagagem - pertencentes à então chamada província de Minas Gerais -, o romance começa por nos situar perante a poderosa família do Major sem nome, viúvo e pai de duas filhas, Lúcia e Júlia. Com o passar do tempo, ele contrata um pobre rapaz de Uberaba, que tem notáveis habilidades de cavaleiro, talento musical e bons modos. Elias e Lúcia se apaixonam à primeira vista e o Major, preocupado em assegurar um futuro estável e de classe para sua primogênita, dispensa o trabalho do jovem com o fito de afastá-lo de sua filha. Sua motivação pode ser explicada pela hipótese de Luiz Roncari, para o quem o Romantismo (…) constituía-se como um mundo plenamente mercantilizado, tornado no verdadeiro reino da mercadoria, onde tudo, do trabalho aos sentimentos e afetos, se transformava em mercadoria, objeto de compra e venda. A riqueza material – o capital – passava a reinar como valor social por excelência, fonte de poder e prestígio, predominando sobre todos os demais valores (RONCARI, 1995, p. 477).

O segundo capítulo do livro é um dos mais interessantes. Nele, o narrador descreve com diversas cores e vivacidade o torneio da cavalhada, que reproduzia artisticamente as disputas entre católicos e mouros transcorridas durante a Idade Média. Elias destaca-se dentre os participantes e, ao final das festividades, dirige-se a Lúcia, que acompanhava os jogos em meio ao público. Não por acaso, ela também demonstra ser hábil na montaria: “Quando uma moça é bonita, airosa e bem-feita, se cavalga um lindo ginete e sabe bem dirigi-lo, seus encantos ganham novo realce”. Ao descrever suas habilidades sobre o cavalo, combinadas à sua beleza e elegância, o narrador parece dizer que os jovens equiparam-se nos afetos e também nessas condições. 2

Ressaltada a correspondência de sentimentos entre Lúcia e Elias, o leitor se empolga no decorrer da cavalhada, de modo a ansiar pela troca de olhares e, por fim, o encontro dos jovens como previam as regras do torneio. A cavalhada pode ser vista como uma poderosa alegoria da vida no campo, dividindo homens de posições muito diferentes, que estão a lutar pelos ideais da cavalaria em nome das religiões que professam e do amor a que aspiram, ao modo de recompensa máxima. No entanto, esse capítulo também denuncia o espírito competitivo de outros candidatos às graças da moça casta de dezoito anos. Um deles é o jovem endinheirado e janota chamado Azevedo. Ele comunica ao Major seu interesse em Lúcia. Imediatamente somos tomados de antipatia pelo pretendente. Seu retrato diz muito a respeito de sua riqueza repentina e modos de araque: “Sobre o colete brilhavam-lhe a grossa cadeia do relógio, guarnecida de uma infinidade de penduricalhos, a luneta com seu competente trancelim, e no peito da camisa um formidável alfinete de diamante. O colete tinha também uma cintilante abotoadura metálica.” As rusgas anunciadas no torneio prosseguem. Elias e Azevedo passam a frequentar a casa de Lúcia. Ao saber dos afetos da jovem por seu oponente, Azevedo faz duras ressalvas à moça e, por tabela, ao próprio Elias: “Estas matutas são assim mesmo; parece que têm medo dos homens de certa classe e de certa educação mais elevada, e só se ligam com os da sua ralé”. Quando declaram o seu amor mútuo, Lúcia e Elias reconhecem a impossibilidade de seu matrimônio. Porém, motivado pelo súbito mas vigoroso amor pela jovem, Elias despede-se de Lúcia, pedindo a ela que não perdesse as esperanças e que o amasse sempre: “Eu vou trabalhar para me tornar digno de ti aos olhos de teu pai”. Daí em diante, sucedem-se as agruras do trabalho duro de Elias nas minas, analogamente à tristeza vivenciada por Lúcia em razão da ausência do rapaz. O leitor deseja que os jovens se reencontrem, como forma de o amor recompensar seus infortúnios por que passam ao longo de dois anos. Como se estivesse a reeditar o enlace homérico de Penélope e Ulisses, na ausência de Elias Lúcia é submetida a toda sorte de assédios por parte de vários pretendentes, até que certo dia, mediante o insistente apelo de seu pai, ela se compromente com Leonel - um jovem baiano que aparentava reunir todas as qualidades desejáveis por uma moça da roça, e que poderia salvar o Major da ruína financeira. Ao regressar da extração de diamantes, Elias percebe que a situação mudara drasticamente. Garimpeiro, ele vem a saber do empobrecimento do Major e da notícia do casamento de Lúcia, que colocara a cidade em polvorosa. A reaproximação dos jovens é pautada pela constante tensão. A 3

dramaticidade chega ao ápice no episódio em que Elias e Leonel se enfrentam em uma festa realizada na casa do Major, na frente da jovem: Leonel estremeceu, e olhou rapidamente para Elias. Depois, reportando-se, fez um breve aceno com a cabeça, e o cumprimentou friamente. Esta recepção fez ferver o sangue de Elias, que, resolvido a desmascarar aquele embusteiro, dirigiu-lhe resolutamente a palavra:  Oh! Senhor Leonel!... Já não me conhece?... tenho infinito prazer em torná-lo a ver. Pode-se dizer que uma ética da recompensa seria o fio condutor do romance. Escorando-se na concepção moralista e nos costumes do Segundo Império, o amor inocente, desinteressado e verdadeiro é sumbetido à lógica da economia dos homens fátuos e postiços. Sob esse aspecto, os jogos entre os cavaleiros durante a cavalhada são prenúncio dos duros embates verbais entre Elias e alguns dos sujeitos enamorados por Lúcia. Ora, Elias reconhece a importância de enriquecer, de modo a ser autorizado a pedir a mão de Lúcia em casamento. Mas nem mesmo o Major, que dizia tanto amar sua primogênita, deixa de interpor a desrazão do capital ao amor nutrido pela filha. Ao implorar que ela aceitasse a mão de um de seus pretendentes, esse autêntico patriarca age de forma egoísta e pragmática, relevando a tônica de O garimpeiro: dinheiro versus amor; cálculo contra espontaneidade. A contraposição entre o direito à felicidade e a obediência às convenções empresta grande dose de tensão ao romance, o que evidencia a coexistência de valores morais do coletivo nem sempre em consonância com os princípios éticos 4, que norteiam a postura do garimpeiro Elias como salientou Hélio Lopes, em estudo que fez sobre o romance. No capítulo IX, temos o relato do segundo dia de Elias, após seu regresso de sua longa expedição às minas de diamantes. O tom aparente é de otimismo, favorecido pela descrição que o narrador faz da natureza: “balanceavam os topes verde-negros, como velhos caciques sacudindo os cocares nas danças sagradas”. Alfredo Bosi observa a este respeito que: “A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação” (BOSI, ed. 1999, p. 93). Em O garimpeiro, o caráter descritivo que aproxima os homens da natureza está colado à afeição pela então província mineira, que anima o narrador e os personagens. Além disso, traz para o plano frontal a crença na justiça operada no plano dos homens, sob a possível influência e 4 Refiro-me a “Para ler O garimpeiro” - apresentação de Hélio Lopes ao romance, em sua 11a edição (Ática, 1993, pp. 3-5).

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concurso das entidades religiosas. Por sinal, o fato de Lúcia agir de modo fiel a deus; a origem simples e a forma com que Elias procede - com justiça, amor e temperança -, somada ao fato de ele anunciar e cumprir as ações futuras, poderia sugerir que seu nome fosse motivado pela biografia do profeta Elias, transcrita em diversas passagens do Antigo Testamento. Como somos apresentados a tais elementos, da leitura do romance fica a sensação de que o amor é uma recompensa muito maior e duradoura que as benesses ligadas à conquista material, ainda que merecida e decorrente de árduo trabalho. A coexistência de tipos de diversas categorias - muitos deles ambiciosos, desonestos e arrogantes -, faz despontar, sobranceira, a figura de Elias como uma espécie de mártir. Protagonista de origens humildes e caráter absolutamente reto, ele é representado como um indivíduo simples e de conduta incorruptível. Inabalável diante das piores lutas que a ordem social lhe impõe, o amor por Lúcia é seu caminho: dado norteador do romance. Ora, é justamente a conduta ética do personagem central que concede e renova a esperança do leitor de que, ao final da história, ele se sinta recompensado pela convivência com aqueles seres imbuídos de bondade, ternura e esperança. É que em O garimpeiro, a qualidade dos personagens está em constante diálogo com as belas e marcantes paisagens de Minas Gerais: panos de fundo ora a reforçar, ora a contestar as duras condições de trabalho e as convenções sociais oitocentistas. Miremos atentamente a saga das criaturas criadas por Bernardo Guimarães a percorrer os buritizais e travessias nesse romance. Elas têm muito a nos dizer de um tempo, de um modo e de um lugar que não se foram de todo, eivados de coragem, amor e dignidade.

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