(2015) POR UMA ARQUEOLOGIA DAS REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS: ALGUMAS NOTAS

August 5, 2017 | Autor: V. Oliveira Jorge | Categoria: Arqueología De La Arquitectura, Teoría Arqueológica, Arqueologia, Arqueología del Paisaje
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Por uma arqueologia das representações espaciais
por Vítor Oliveira Jorge
publicado no facebook em 28.2.2015

Se eu pensasse de forma tradicional em arqueologia pré-histórica, cronológica, diria que o que distingue o Neolítico antigo, o Neolítico megalítico, e o Calcolítico, ou seja, um período que genericamente medeia entre o VI e o II milénios a. C., são concepções do espaço diferentes, representações do território diversificadas, que mostram uma diversa relação de dois elementos: natureza-cultura. Mas estaria a cair na ratoeira da dicotomia típica da nossa cultura ocidental moderna (da qual é impossível sair, eu sei), que é a da divisão entre o natural e o construído. Diria assim que no Neolítico antigo as populações se inscreviam na natureza, isto é, encaixavam as suas arquitecturas, por muito frágeis ou temporárias que fossem, num quadro natural de afloramentos rochosos, de acidentes naturais, a que não se sobrepunham, mas antes que respeitavam: não fariam talvez a distinção natureza-cultura, poderiam até ser animistas (no sentido de Descola), quem sabe. Já as populações que construíram as necrópoles megalíticas evitavam os grandes afloramentos, é certo, inscreviam volumes imponentes no espaço, mas este era ainda balizado por grandes unidades naturais. Na Aboboreira, no Norte de Portugal, essas unidades aplanadas eram chãs que se sucediam, entremeadas por grandes afloramentos de blocos graníticos arredondados, de forma acastelada. A forma de inscrição era modular, ou seja, construía-se monumento a monumento, acabando por formar núcleos que integravam unidades muito diversas entre si; quer dizer, transpondo para o pensamento actual, que distingue projecto de execução (outra dicotomia impossível de usar em Pré-história), não tinham um projecto prévio de conjunto, abrangente. A paisagem "natural" era ainda a unidade que cingia o conjunto polimorfo de unidades sucessivamente acrescentadas. O Calcolítico rompe com isso. A monumentalização é agora algo que se impõe à paisagem, ou seja, a representação do espaço parece corresponder a uma imposição da cultura sobre a natureza, na qual a construção utiliza e modela o natural. Castelo Velho de Freixo de Numão, por exemplo, é uma "pedreira" pré-histórica monumentalizada, pelo menos na parte terminal do esporão que se conservou (o resto, incluindo prováveis plataformas pela encosta abaixo, estava muito danificado ou destruído pela praga das plantações de eucaliptos). Castanheiro do Vento, na mesma região, testemunha o mesmo, a maior escala. Trata-se aqui de mnumentalizar uma colina inteira (incluindo grandes menires, presumivelmente voltados ao vale da Teja, afluente do Douro), inscrita numa paisagem onde a intervisibilidade de uma rede de edifícios (uns maiores, outros menores, uns situados em pontos elevados, outros em pontos menos elevados ou até em vales) era fundamental, numa afirmação das comunidades, numa inscrição da cultura, digamos, em larga escala, sobre o espaço natural. Claro que isto são categorias nossas, de observadores arqueológicos modernos. Mas é evidente, também em sítios do Sul, como outros colegas têm mostrado, essa abrangência de concepção espacial, observável em locais como La Pijotilla, em Espanha, Perdigões, no Alentejo, ou Alcalar, no Algarve. Trata-se, certamente, de "projectos" de larga escala, apesar de sabermos que devem ter estado em constante mutação, modificação, transformação. Os Perdigões correspondem à monumentalização de uma encosta enorme, que "olha" a elevação de Monsaraz, ao longe. É impressionante. E não espanta que alguns destes sítios, quando de encosta ou vale, fossem atravessados por ribeiros: o ribeiro fazia parte do sítio, ele (sítio) era também a monumentalização desse curso de água, aliás na linha do que se observa noutros grandes monumentos europeus, como por exemplo Stonehenge, em que vários monumentos estavam ligados ao rio, ou no meandro do vale do Boyne, na Irlanda (trata-se de construções "megalíticas", sim, mas com uma diacronia acentuada). Em toda esta organização do espaço, por assim dizer, nos vários momentos desta Pré-história assim classicamente contada, a chamada "arte rupestre" inscrever-se-ia em diferentes modos de representação dos territórios, uns mais balizados pela "natureza", outros mais do lado da monumentalidade imponente, imposta culturalmente ao natural. Mas esse raciocínio está viciado pela minha ontologia naturalista, científica (no sentido de Descola), de que não consigo fugir, pelo que o leitor esqueça tudo o que eu acabo de escrever. O importante porém não é saber o que aconteceu; mais importante é saber o que não podia ter acontecido, desdobrar os problemas, abrir a pasta das perguntas, mantendo sempre o trabalho de campo, de gabinete, de laboratório, sem querer que tudo se encaixe perfeitamente, como se a realidade fosse perfeita, como se precisássemos desse conforto infantil de "tudo bater certo". Não precisamos se formos adultos. O que é péssimo é partir de dicotomias totalmente simplistas, como a de povoados-necrópoles, ou locais de vivência - locais cerimonias de culto, etc. Enquanto se pensar assim, mesmo que haja meios para investigar, para escavar em larga escala (a única forma de entender um espaço aos olhos de hoje, e a arqueologia faz-se hoje, obviamente), escavar-se-á mal, faz-se-ão perguntas falsas, comprovar-se-á o que já se esperava encontrar, ou seja, andar-se-á em círculo, sem qualquer desenvolvimento do saber, que é sempre um desenvolvimento das perguntas, sempre uma aceitação do carácter contingente das nossas respostas. Mas isto não é relativismo pós-moderno. Porque há muitas coisas que pela pesquisa, pela mescla íntima de teoria e prática, já descartámos como absurdas, inverosímeis. Outras de que temos uma quase total certeza. Por exemplo, eu sei que em Castanheiro do Vento os embasamentos visíveis hoje, e documentados, de muros com "bastiões" (num estilo millarense, sim, único até hoje no Norte da Península por falta de pesquisa - não devemos ter medo da palavra "estilo", não senhor, o seu uso não implica um compromisso histórico-cultural) permitiam paredes altas, de terra, que para durarem teriam de ser revestidas, e esse revestimento poderia ter cor, pelo menos podia e devia contrastar com o verde da vegetação dos montes mais altos a distância. E isso criava um efeito cénico evidente. Eu sei que a chamada "torre" central, complexíssima, como eu e os meus colegas temos mostrado - João Muralha, Ana Vale, Sérgio Gomes, o próprio Gonçalo Velho ou a Leonor Pereira enquanto integraram a equipa, etc. - e como Mariana Correia, especialista da arquitectura de terra confirmou, podia, na sua fase final, ter suportado muros muito altos, permitindo a eventual construção de acessos a um ponto de observação privilegiado sobre toda a paisagem. Neste tipo de sítios está em causa todo um "ordenamento do território" (aos olhos de hoje) que nada tem que ver com o neolítico megalítico ou o neolítico antigo. É esta pré-história das representações do espaço, evitando as armadilhas do anacronismo interpretativo, a sobreposição ao que não sabemos de categorias ontológicas modernas, o grande desafio deste domínio do conhecimento, tão desprezado pelas indústrias modernas do património, que querem é mostrar coisas que se vendam bem, que sejam monumentais, fascinantes, divertidas, e onde se possam fazer ridículas representações de "reconstituição do passado", entreter a criançada e o público. Uma verdadeira boa ciência não entretém, implica as pessoas desde o processo da sua construção. Não apresenta produtos acabados, não funcionaliza, põe dúvidas, mas não dúvidas gratuitas e snobes, apriorísticas, mas dúvidas documentadas, baseadas em pesquisa de rigor. Esta foi a arqueologia com que sonhei, com que muitos sonhámos, que tentámos contribuir para implementar, e que foi abandonada na sua maior parte, na grandiosidade do seu projeto. Em que se fizessem teses de mestrado ou doutoramento não sobre conclusões, em que tudo bate certo, mas sobre impasses, ou seja, sobre a realidade das escavações, em que a cada passo nos deparamos com dúvidas, com insolúveis, com dificuldades. Era isso, o que não entra no jogo encastoado das bonecas russas conceptuais, o que importava expor. Mas é no sentido inverso que a maior parte das pessoas vão. E os mais inteligentes vão por vezes buscar uma filosofia recente para adaptar à realidade arqueológica, para irem além (julgam) da simples descrição de estruturas e outros artefactos. Vemos isso continuamente. Com tristeza e nostalgia. A arqueologia das sociedades para as quais não existem documentos escritos é muito interessante precisamente por isto: por nos pôr perante a característica muitas vezes enigmática das realidades que observamos (não tanto que exumamos, mas que construímos no processo de escavação, de observação); ou, por outras palavras, por nos porem perante o carácter intrinsecamente incompleto da realidade e do nosso conhecimento dela, o que qual faz parte, também, da dita realidade. Por nos vacinarem contra o realismo ingénuo, mas também contra o relativismo do vale tudo, pós-moderno, e inócuo.

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