2015 - Superman versus Batman: códigos representacionais da masculinidade heroica

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SUPERMAN VERSUS BATMAN: CÓDIGOS REPRESENTACIONAIS DA MASCULINIDADE HEROICA Vilson André Moreira Gonçaves (Mestre em Comunicação em Linguagens - UTP) Maristela Carneiro (Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História - UFG) Orientadora: Maria Elizia Borges (PPGH-UFG)

Palavras-chave: masculinidade, representação, super-heróis

O presente trabalho se propõe apresentar aspectos a construção estética de dois personagens cujas narrativas se alinham com o gênero dos Super-heróis: Superman e Batman. O objetivo principal é observar como se dá essa construção estética a partir da lente da masculinidade, a fim de situá-la dentro de uma tradição representacional maior, afinal, é presumível que estes personagens, os quais protagonizam obras em mídias diversas, não seriam casos espontâneos ou anômalos, mas antes desdobramentos de uma longa genealogia estética. No que concerne à estrutura, este artigo se organizará em três tópicos: 1. O Corpo Heróico, delineando em linhas gerais o objeto de estudos, quais sejam, os super-heróis mencionados; 2. O Corpo Funcional, que compreende uma leitura do corpo enquanto signo de gênero e estatuto do herói; e 3. Um Herói, Muitos Heróis, que aborda os desdobramentos de Superman e Batman nas mídias pelas quais são mais conhecidos – as histórias em quadrinhos e o cinema, em vista de uma tradição representacional mais extensa.

1. O Corpo Heroico A figura do herói parece ser uma figura onipresente nas tradições narrativas de diversas culturas, mas a cultura midiática do século XX mostrou-se particularmente bemsucedida em produzir personagens incrivelmente icônicos e facilmente identificáveis,

capazes de transitar com grande facilidade por várias modalidades de discurso estético: literatura, histórias em quadrinhos, animações, filmes live-action, jogos eletrônicos e inúmeros outros produtos de consumo massivo. Estas figuras cristalizam ideais complexos, como coragem e altruísmo, ao mesmo tempo que demonstram grande flexibilidade, moldando-se aos valores e gostos mais específicos de uma década, de um ano ou mesmo de tendências de duração ainda mais curta. Conforme argumenta Umberto Eco (2008, p. 241): No fundo, os artistas têm continuamente tentado (e quando a operação não era intencional nos artistas, acorria a sensibilidade culta e popular, carregando de significações simbólicas uma imagem, ou mesmo erigindo-a em símbolo de determinadas situações e valores) estabelecer equivalentes icônicos de situações intelectuais e emotivas: e temos tido símbolos do amor, da paixão, da glória, da luta política, do poder, da insurreição popular.

A partir deste postulado, Eco afirma que o produto da mass media há de refletir um desejo de posse e agregação, de mitificação. Neste posto, o herói encarna valores desejáveis e admirados. No centro desta cadeia intrincada de valores, este indivíduo decisivo leva a cabos ações heroicas. Por isso e por sua composição estética, o herói se coloca como um símbolo de masculinidade, refletindo e orientando práticas da masculinidade ideal no meio social. A sociedade demanda exemplos de atuação e encontra nesses personagens modelos que discursem sobre o ser homem e orientem o comportamento que caracteriza este estatuto. Superman, criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, e Batman, criado em 1939 por Bob Kane e Bill Finger refletem em seu design a aspiração por um ser de propriedades sobre-humanas, ou ao menos incomuns (FIGURA 1). Criado antes, o Superman exibe um físico poderoso, ressaltado pelos trajes justos e coloridos, que remete a práticas atléticas; figurinos semelhantes já haviam sido explorados nas histórias de Flash Gordon, criado em 1934 por Alex Raymond (MOYA, 1996, p. 80), e do Fantasma, criado em 1936 por Lee Falk (MOYA, 1996, p. 113). O elemento adicional da capa, que cede nobreza e altivez ao personagem, se popularizaria depois da estreia do personagem de Siegel e Shuster.

Criado a seguir, em parte a fim de explorar o sucesso do Superman, o Batman segue muitas das convenções estéticas que o antecessor estabeleceu: a capa, os trajes justos, incluindo o calção sobre a calça, e o físico torneado, que lhe permite realizar proezas. Embora não seja propriamente sobre-humano como o outro, este ainda possui habilidades invulgares. Tal como o combatente do crime que é, é talhado para a força.

FIGURA 1 – As capas de Action Comics #1 e Detective Comics #27, pulicações que marcam as primeiras aparições de Superman e Batman, respectivamente.

A função de combatente que é exigida do herói, e que se traduz em seu design, trata de certa de ideia acerca do gênero masculino. Surgirão, evidentemente, superheroínas, todavia elas também se conformarão à estética da força física, das proezas do atleta e do guerreiro, arquétipos historicamente associados a indivíduos do sexo masculino.

2. O Corpo Funcional Esta análise está dirigida paras representações estéticas produzidas nos corpos dos heróis, que também são representações de gênero. A fim de discutir a questão com mais clareza, é fundamental delimitar o que se compreende por masculinidade, bem como o

discurso impresso no corpo. Tratar do gênero do herói diz respeito à masculinidade, na medida em que este se coloca como modelo orientador de práticas sociais, mesmo que seja concebido como entretenimento e, num primeiro olhar, estritamente fantasioso. Um corpo nunca existe em si mesmo, defende Katz (2008, p. 69). Uma coleção de informações formula o corpo como tal. Segundo Batista (2010, p. 125-126) o corpo, na literatura e nas artes visuais, é um corpo-representação, um corpo que, para além de físico, é imaginado, transcrevendo diversas narrativas que construímos a fim de ceder sentido ao nosso corpo biológico. As representações do corpo imaginário apontam para os discursos que determinada sociedade elabora através de normas e interações diversas. O corpo é uma “materialidade polissêmica”: “como união de elementos materiais e espirituais e também como síntese de sonhos, desejo e frustrações de sociedades inteiras, pois o múltiplo sentido do corpo pede múltiplos olhares.” (BATISTA, 2010, p. 126) Igualmente, a masculinidade é polissêmica. Falar do masculino não é lidar com um discurso imutável, mas sim com um cenário mutável, repleto de ondulações, papeis e valores que são atribuídos ou rejeitados em contextos variados. Uma constante nas discussões que regem estas delimitações conceituais é que o discurso sobre a masculinidade se forme em negociações com o discurso sobre a feminilidade. Homens e mulheres são construídos socialmente, através de uma dinâmica de constantes tensões. Assim, compor-se dentro de um cenário de masculinidade é “fazer-se homem”, um processo de trocas entre o indivíduo e o meio social em suas relações cotidianas. Silva et al defendem que o gênero é uma representação, algo construído. São as práticas de gênero que permitem, contraditoriamente, sua existência e transformação. Nesse sentido, não existe uma única forma de “fazer-se homem”, mas múltiplas formas de vivências de homens, que se forjam em diferentes tempos e espaços. Assim, apesar de considerar que a nossa sociedade está organizada a partir do privilégio do gênero masculino, não existe uma única forma de masculinidade. (SILVA et al, 2011, p. 19)

Portanto, a construção da masculinidade é multifacetada, longe de ser uma e integral, apresentando flutuações nas práticas que pautam sua tessitura. Tais práticas,

como mencionado anteriormente, variam mas conduzem sempre para uma dinâmica de diferenciação: masculino e feminino existem, e tal é um motivo recorrente, não obstante os mecanismos internos de cada discurso estejam permanentemente em fluxo, diferindo conforme idade, etnia e classe social, dentre outros fatores. (MATOS, 2005, p. 156) O corpo na arte é, por sua vez sempre, palco destas tensões, é um corpo genereficado (BATISTA, 2011, p. 69). Na figura do super-herói jaz um “humano sobrehumano”, pois parece homem, mas tem suas qualidades mais desejáveis amplificadas: se força e honra são necessárias para que o homem seja admitido como tal (MATOS, 2005, p. 71), o super-heróis será incorruptível, capaz de feitos de força inigualáveis e de combater sozinho vários inimigos simultaneamente. Ainda que possua um intelecto invejável, como Batman, que possui aguçadas habilidades de dedução e domina o manuseio de tecnologias incomuns, ou poderes sobrenaturais, como Superman, capaz de voar e emitir raios de calor, a estética do herói demanda que ele tenha um porte grandioso, denotando força muscular. Apesar do aspecto insólito em torno de cada personagem, prevalece na tessitura de ambos o elemento fundamentalmente humano do corpo; não se trata, porém, de um corpo comum: é um corpo construído para ser admirado. Conforme argumenta Jordão (2013, p. 25), este guerreiro das mídias contemporâneas pode possuir armas que dispensem a força, mas seu corpo é anúncio ou produto anunciado.

3. Um Herói, Muitos Heróis Reinterpretados muitas vezes, Superman e Batman são bons exemplo de redes intertextuais de sentido. Manuseados por roteiristas e desenhistas, adaptados para a televisão e para o cinema, transpostos para a animação e para o live action, ora camp, ora sombrios e “realistas”, vários foram os seus modos de apresentação, resultando em uma variedade de ligações estabelecidas com públicos específicos. Tome-se como exemplo duas versões distintas de Superman (Figura 2), ambas para o cinema: a de Superman – O Filme (Richard Donner, 1978), na qual o personagem

título é interpretado por Christopher Reeve, e O Homem de Aço (Zack Snyder, 2013), em que Henry Cavill atua como o protagonista.

FIGURA 2 – Superman no cinema, interpretado por Christopher Reeve em Superman – O Filme (esquerda) e Henry Cavill em O Homem de Aço (direita).

É possível observar claras diferenças na caracterização do personagem, todavia, prevalecem as permanências sobre as rupturas: a paleta de cores, a postura altiva, a capa, o símbolo, o penteado bem cuidado e, principalmente, a caracterização física, forte e imponente. Por mais que o traje do segundo não seja feito de tecido justo, é esculpido para ressaltar músculos proeminentes. Observa-se aqui a permanência de certa perspectiva de corpo herdada da Grécia Clássica: o corpo esculpido é um corpo masculino, um corpo para a guerra. Da mesma forma, é possível comparar diferentes versões de Batman. Tanto em Batman (Tim Burton, 1989), quanto em Batman Begins (Chistopher Nolan, 2005) e Batman: O Cavaleiro das Trevas (Christopher Nolan, 2008), preserva-se o padrão de cor, centrado principalmente no uso da cor preta, tal como os símbolos principais. Ao contrário de Superman, Batman é, desde sua concepção, um herói mais influenciado por narrativas de detetive. Em suas histórias, o personagem parece se pautar mais pela

discrição que pela grandiosidade do espetáculo bombástico, até porque não possui poderes extraordinários e precisa confiar em habilidades estritamente humanas.

FIGURA 3 – Batman no cinema, interpretado por Michael Keaton em Batman (esquerda) e Christian Bale em Batman Begins (centro) e Batman: O Cavaleiro das Trevas (direita).

Entretanto, ainda que seja Batman um personagem de estética sombria em comparação ao pitoresco Superman, seriam os dois tão distintos? Algo que foge aos limites do proposto para este trabalho, e que talvez seja um fator decisivo do contraste entre Superman e Batman, é o perfil de masculinidade traçado em suas “identidades secretas”. O alter ego de Batman, o rico playboy Bruce Wayne, constitui uma fachada confiante e irônica, em contraposição ao jornalista tímido e desajeitado – porém cativante – que é Clark Kent, fachada “humana” de Superman. Há fundamentalmente uma diferença de “tom”, ou de ambientação entre as narrativas dos dois, mas nos dois observam-se temas comuns. Nos dois casos, o herói é talhado para a força. Ainda que as versões de Batman apresentadas em Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas possuam uma estética mais angulosa e tecnológica que orgânica, preservam em seus contornos versões estilizadas de uma musculatura bem torneada. Observe-se tais figuras em contraposição a influências artísticas decisivas na história da arte europeia, que detém ainda forte impacto sobre produções artísticas no

mundo inteiro: a estátua do Hércules Farnese, de Glykon (c. sec. II), e o Davi, de Michelangelo Buonarroti (1475-1564) (FIGURA 4).

FIGURA 4 – Hercules Farnese (esquerda) e Davi (direita).

Assinado pelo escultor Glykon e adquirido pelo imperador Caracalla (188-217 d.C.), em 212 d.C., o Hércules Farnese é uma reprodução do original de Lísipo (c. sec. IV a.C.), produzido em 323 a.C., e é uma representação do mítico herói grego Hércules em um momento de repouso, sua pele de leão e sua clava postos de lado (TODD, 2005, p.30). Davi, por sua vez, esculpido por Michelangelo entre 1501 e 1054, representa um herói do Antigo Testamente, tradicionalmente representado como o homem que matou o gigante Golias e um dos primeiros reis hebreus (HIRST, 2000, p.487). Embora estejam afastadas por séculos e representem homens de culturas diversas, remetem aos mesmos temas: duas figuras de homens em estado de repouso ou reflexão, deixam clara a ação latente em seus corpos momentaneamente estáticos. Embora o

Hércules Farnese apresente contornos consideravelmente maiores, ambas as esculturas valorizam os pormenores da anatomia masculina: um santuário, que guarda força destrutiva, capaz de esmagar inimigos ou de dobrar-se em uma beleza contemplativa e um produto de admiração para o consumo de observadores. Davi, por sua vez, mesmo hebreu, quando esculpido por um dos mais célebres representantes do Renascimento italiano, é nu, imberbe e incircunciso. Seu penteado, sua pose e sua nudez remetem às tendências classicizantes que permeavam a arte do período, e que ainda lançam notas de influência sobre representações artísticas até os dias de hoje.

Considerações Finais Parece inevitável que os produtores e consumidores de heróis dos séculos XX e XXI não mantenham seus olhos fixos nestes baluartes de uma tradição de figuras masculinas. Flutuações ocorrem, ondulações no cenário geral da masculinidade, no conceito mais amplo do que significa ser homem, afinal, como já observado, o discurso sobre o masculino é plural e fragmentado. Apesar disso, motivos recorrentes sobrevivem e se manifestam continuamente, ainda que de formas diferentes: a beleza da força, o espetáculo grandioso do poder de destruição e dominação latentes neste corpo, tão frequentemente campo de conflitos, repetem-se. Trate-se de Davi, Hércules, Superman ou Batman, os heróis nas culturas de matrizes europeias e judaico-cristãs apresentam várias leituras para o constructo do homem que assume o fardo de ser homem, para além das necessidades biológicas, em busca de um ser homem ideal, uma abstração paradoxalmente representada na concretude da corporeidade.

Referências Bibliográficas BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: as inscrições discursivas do corpo na pintura acadêmica brasileira do século XIX. 2011, 287 p. Tese (Doutorado em História), Setor de História, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2011.

BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. In: Revista Científica/Fap. Curitiba, v. 5., p. 125-148, jan./jun. 2010. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Paulo: Perspectiva, 2008. HIRST, Michael. Michelangelo in Florence: 'David' in 1503 and 'Hercules' in 1506. In: The Burlington Magazine, Vol. 142, No. 1169 (Aug., 2000), pp. 487-492. JORDÃO, Alexandre de Medeiros. Cinema e o culto ao corpo: Rambo e Capitão América como personal trainers. 2013. 85 f. Tese (Mestrado em Comunicação e Cultura) – Universidade de Sorocaba, Sorocaba/SP. 2013. KATZ, Helena. Por uma teoria crítica do corpo. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de; CASTILHO, Kathia. (org.). Corpo e moda: por uma compreensão do contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras, 2008. MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru: Edusc, 2005. MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1996. SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio José; CHIMIN JUNIOR, Alides Baptista. Espaço, gênero & masculinidades plurais. Ponta Grossa: Todapalavra, 2011. TODD, Jan. The History of Cardinal Farnese's "Weary Hercules". In: Iron Game History, Vol. 9, No. 1 (Aug2005), pp. 29-34.

Filmografia BATMAN. Direção: Tim Burton, Warner Bros., 1989. DVD. (121 min.). BATMAN Begins. Direção: Christopher Nolan. Warner Bros., 2005. DVD. (140 min.). BATMAN – O Cavaleiro das Trevas. Direção: Christopher Nolan. Warner Bros., 2008. 1 DVD (152 min.). SUPERMAN – O Filme. Direção: Richard Donner. Warner Bros.,1978. 1 DVD (143 min.).

O HOMEM DE AÇO. Direção: Zack Snyder. Warner Bros., 2013. 1 DVD (143 min.).

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