2015 - Viagem, Conquista, Império

June 15, 2017 | Autor: P. Pinto | Categoria: Portuguese Discoveries and Expansion, History of the Portuguese Empire, Historia
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TRÊS CENtENÁRIOS E UMA REVISItAÇÃO CRÍtICA 2015 – viagem, conquista, império

INÍCIO DESPERDIÇADA

por Paulo Jorge de Sousa Pinto

ASSINATURA DO JORNAL SUMÁRIO DO MÊS EDITORIAL MAIS ARTIGOS ARQUIVO

Os 600 anos da tomada de Ceuta, os 500 anos da morte de Afonso de Albuquerque e os 500 anos da chegada dos portugueses a Timor, todos eles assinalados em 2015, podiam ter sido ocasiões para uma revisitação crítica do passado e para um debate sobre a relação destes períodos da História de Portugal com temas e problemas do presente. Mas não foram. Importa reflectir porquê.

No corrente ano assinalam-se três centenários ligados ao que vulgarmente se costuma designar por «época dos Descobrimentos» e que, noutros tempos, dariam azo a comemorações oficiais e a um largo destaque na imprensa, com impacto visível na opinião pública. Cada um, à sua maneira – e a simples coincidência de calharem no mesmo ano seria um factor adicional de interesse –, assinala um vector fundamental da expansão portuguesa dos séculos XV e XVI: 600 anos da tomada de Ceuta, a primeira conquista territorial além-mar e «arranque» do processo expansionista e meio milénio sobre a morte de Afonso de Albuquerque, talvez o único verdadeiro construtor de impérios na História de Portugal, e a chegada dos portugueses a Timor. 2015, ano de revisitação crítica ao passado colonial/ ultramarino de Portugal, em três das suas vertentes elementares – viagem, conquista, império – e de um equacionar das relações entre passado e presente, entre ex-colonizadores e ex-colonizados, entre religiões e pulsões ideológicas, no espaço da lusofonia e fora dele? Nem tanto. Na verdade, apenas uma das efemérides – Ceuta – mereceu alguma atenção por parte dos media e despertou algum interesse na opinião pública. Fora isso, há a registar diversas iniciativas, embora de âmbito muito restrito, por parte da comunidade académica e praticamente nenhum interesse oficial. Este vazio poderia ser um sinal de maturidade na relação com a memória colectiva de um passado colonial. Na verdade, e pelo contrário, é mais um sintoma de uma amnésia dominante e de uma relação ainda traumática, complexa, muitas vezes bipolar, que os portugueses têm com a sua História e que continua a condicionar e fragilizar a relação com os outros povos, em particular os das ex-colónias. História e divulgação da História Não é novidade a constatação de que os portugueses têm com o seu passado uma relação tensa e ambivalente; não apenas com o passado, mas também com a memória desse passado, quer na sua forma evocativa e mais ou menos celebrada quer, sobretudo, no conhecimento cientificamente organizado (a História); e não apenas o recente, mas também o remoto, em especial quando se cruza com passados alheios e quando desse cruzamento resultaram efeitos duradouros que se prolongam até ao presente. Um dos traços mais significativos e, até certo ponto, desconcertantes, desta relação ambivalente – e que a explica, em boa parte –, é a inexistência de uma tradição de divulgação da História, um estranho divórcio entre quem a estuda de forma rigorosa e credível e o público leigo. O mundo académico despreza e minimiza, de um modo geral, a divulgação histórica. São raros os historiadores que escrevem obras destinadas ao grande público e são igualmente incomuns programas ou rubricas na imprensa dedicadas à História e entregues a especialistas. A divulgação fica, portanto, entregue a curiosos ou jornalistas, que se dedicam, na maior

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parte das vezes, a um certo género mais ou menos sensacionalista, geralmente mal fundamentado e que privilegia as curiosidades, os «mistérios», os «casos insólitos», as tricas de alcova de reis e rainhas ou alegados «segredos revelados». A expansão ultramarina dos séculos XV e XVI constitui, provavelmente, o período da História de Portugal mais propício a equívocos, preconceitos e visões dicotómicas. É, também, o que fornece mais matéria para este tipo de literatura que, com o silêncio cúmplice da comunidade académica e científica – que não se impõe nem produz obra acessível para o público em geral –, vai sedimentando erros e preconceitos acerca deste passado em concreto. Esta aceitação generalizada do erro, sem igual difusão do contraditório científico, assume por vezes formas de um provincianismo ridículo. A mais flagrante terá sido, porventura, a atribuição da Comenda da Ordem do Mérito, pelo Estado português, ao jornalista australiano que defende a tese do descobrimento da Austrália pelos portugueses, embora mereça uma rejeição quase unânime por parte dos historiadores e especialistas na matéria. Há casos sobejamente conhecidos que emergem da penumbra de forma mais ou menos regular: a nacionalidade portuguesa de Cristóvão Colombo, o plano secreto do rei João II, as viagens de Cristóvão de Mendonça, o tesouro da nau Flor de la Mar, etc. A eles se juntam pedaços de histórias da História, ressuscitados de modo intermitente na imprensa e depois reproduzidos em blogues ou nas chamadas «redes sociais». Possuem em comum um grau variável de orgulho nacionalista sobre o papel pioneiro dos portugueses na exploração do mundo. A maior parte das vezes, consubstanciam uma imagem idealizada acerca de uma Idade de Ouro já distante, no decorrer da qual os portugueses foram os primeiros, os melhores, os mais valentes, os mais ousados, momento fugaz que antecedeu a inevitável e penosa «decadência» que se arrasta aos nossos dias; os melhores, mas também pacíficos, benignos, tolerantes, agentes de um processo de expansão mundial que em nada pode ser comparado à barbárie espanhola no Novo Mundo ou ao imperialismo racista britânico. É o mito dos «Descobrimentos». Descobrimentos, memória e comemoração «Descobrimentos» é um conceito mais ou menos inócuo que resistiu à passagem do tempo, a mudanças de regimes e governos, ao estertor de um império colonial, a uma descolonização, ao entusiasmo e ao desalento com a integração europeia. Outros termos, como «império» e «conquista», mas também «colonial» ou «ultramarino», possuem ainda uma carga ideológica associada. A época – e a sua memória – presta-se, desde há muito, a todo o tipo de utilizações políticas e ideológicas. Alexandre Herculano e os Românticos desprezavam-na, por verem no rei João II as origens do Absolutismo e no rei João III as raízes do atraso cultural e científico do país. Mais tarde, o império asiático veio também a ser apontado como uma causa das dificuldades, dos «vícios», da «decadência» nacional, nomeadamente por Antero de Quental e Oliveira Martins. A colonização do Brasil era então tomada como o modelo a seguir, experiência precursora dos impérios europeus modernos que se pretendeu, no último quartel do século XIX, transplantar para África. Há um século ainda se fazia apologia do «império» e da «conquista» (temporal, espiritual e civilizacional). Era a época do Scramble for Africa. Com o Estado Novo, todo o imaginário do Império foi reformulado e amplificado. Evocar datas, celebrar efemérides ou centenários eram momentos privilegiados de exaltação colectiva e de legitimação do projecto do «Portugal do Minho a Timor». O seu último

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estertor, em vésperas da contestação internacional ao império africano português, tanto pela diplomacia como pela rebelião armada, ocorreu em 1960, no centenário da morte do infante Henrique. A celebração meramente propagandística destas datas e a sua apertada associação ao stau quo político do regime acabou por esvaziá-las de conteúdo, debate e reflexão no colectivo nacional. Após a queda do regime, em 1974, a «época dos Descobrimentos» passou a «lenda negra» e a raiz da opressão colonial e foi subitamente obliterada da memória colectiva. Durante mais de duas décadas, não houve lampejo de interesse pelos «Descobrimentos» em comemorações e eventos oficiais mas também, entre outros exemplos, ao nível dos manuais escolares. De tal forma predominava o esquecimento que, em 1988, a recém-criada Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses distribuiu um folheto informativo na imprensa diária, em cuja contracapa se podia ler, em grandes letras, o seguinte: «Sabia que dois terços do mundo foram descobertos pelos portugueses? Provavelmente não. Mas é verdade». Depois da catarse colonial, era chegado o momento de redescobrir o passado, como se fosse uma sessão de terapia da memória. Entre 1988 e 2000 foi levado a cabo um programa oficial de comemorações destinados a assinalar datas de «descobrimentos», desde a viagem de Bartolomeu Dias ao achamento do Brasil. O Portugal confiante e recém-integrado na Comunidade Económica Europeia (CEE) tentava cicatrizar as feridas coloniais e ensinava aos seus jovens o que fora Portugal no contexto do Renascimento europeu, como actor privilegiado – quando não vanguarda – da revolução científica, tecnológica e geográfica dos séculos XV e XVI. Portugal como agente de ligação, da descompartimentação do mundo, do encontro de culturas. Não se tratou apenas da produção de um discurso adequado aos parâmetros políticos e às expectativas sociais e económicas do país. Era, igualmente, uma operação de resgate da memória, cativa durante décadas de uma propaganda oficial que glorificava o isolamento e o orgulho nacional, e também da sua reconstituição após duas décadas de quarentena. Ceuta, Albuquerque e Timor Findo o ciclo de comemorações públicas, de redenção oficial de Portugal com o seu passado ultramarino, eis-nos chegados a 2015. A impressão mais vincada é a da prevalência de um torpor amnésico no que a esta época em concreto diz respeito. Uma certa faceta figurativa, ligada a imagens e ideias simples sobre os «Descobrimentos», tornou-se dominante. A inauguração de dois parques temáticos sobre o tema, um no Porto («World of Discoveries»), outro em Lagos («Museu de Cera dos Descobrimentos »), ocorrida recentemente, é um sinal inequívoco do relegar desta época para a categoria de segmento remoto e exótico da História, imerso numa névoa de aventura e emoção e onde se moviam viajantes e caravelas. E, no entanto, a revisitação deste passado poderia ser diferente. Os centenários que ocorrem em 2015 poderiam constituir momentos de reflexão crítica sobre o passado colectivo e sobre o presente de Portugal no contexto global da actualidade. Tomemos o caso de Ceuta. A efeméride foi assinalada nos círculos académicos habituais com colóquios e seminários. Já os media minimizaram o aspecto bélico e de «conquista» e exploraram a sua dimensão mais atractiva, como o ponto de partida da «época dos Descobrimentos». «A globalização foi inventada pelos portugueses há 600 anos», lê-se no cabeçalho da peça publicada no Expresso de 21 de Agosto. Na verdade, a empresa de Ceuta foi um empreendimento tipicamente medieval, a sua preparação nada teve a ver com

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2015 – viagem, conquista, império A prova do poder

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viagens marítimas e o seu impacto só muito a custo pode ser relacionado com qualquer «globalização». Logo, a evocação do feito de armas poderia ter sido conduzida de outro modo, num sentido abrangente que incluísse as preocupações actuais: guerra e religião, islão e cristianismo, tolerância e intolerância religiosa, geopolítica do Mediterrâneo e do Magrebe, choque versus diálogo de civilizações, fronteiras da Europa, migrações, refugiados, etc. Nada disso se viu, em mais um sinal claro de incapacidade em compreender o passado na sua articulação com o presente. 2015 é também o ano em que se assinalam cinco séculos sobre a morte do construtor do império oriental português. A Academia de Marinha e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal promoveram iniciativas acerca da figura de Afonso de Albuquerque. Contudo, teria sido útil e interessante um debate alargado sobre a dimensão imperial da expansão ultramarina portuguesa – que não foi feita apenas de caravelas e astrolábios – e perdeu-se uma ocasião única para perspectivar Albuquerque em confronto com outros construtores de impérios: Cortés e Pizarro, por exemplo. O caso mais interessante, porém, é o da chegada dos portugueses a Timor. Não se tratando de um acto militar ou de uma imposição colonial, é completamente incompreensível o total alheamento que envolve esta efeméride. Ou nem por isso. A relação de Portugal com as ex-colónias permanece ainda submersa num feixe de emoções contraditórias, entre um complexo de culpa de ex-potência colonial, um paternalismo, uma submissão ao poder económico – veja-se o posicionamento dos governos portugueses em relação a Angola – e um sincero sentimento de solidariedade e de desejo de aprofundamento de laços e relações. Quem diria que o país que desesperou com a crise de 1999 e que acompanhou com emoção a independência de Timor esqueceria completamente o primeiro passo em comum? A questão da chegada dos portugueses poderia, ainda assim, suscitar reservas pelo teor anacrónico de evocar ou, mais propriamente, comemorar a data que antecedeu – ainda que em séculos – um domínio colonial. A questão é que o evento, mais do que simplesmente relembrado, vai ser comemorado em Timor-Leste na semana de 28 de Novembro, quando se assinala ali uma outra efeméride: os 40 anos da proclamação da independência. Tanto quanto se sabe, a única entidade portuguesa participante será a Fundação Mário Soares, envolvida na criação do Museu da Resistência Timorense; quanto a entidades oficiais portuguesas, impera o silêncio. Não deixa de ser irónico, portanto, que a antiga potência colonizadora esqueça os 500 anos da chegada dos seus antepassados a Timor e que sejam os ex-colonizados a fazê-lo com pompa e circunstância com um extenso programa oficial de actividades culturais, desportivas e religiosas, tanto em Díli como em Lifau. E que essa comemoração seja levada a cabo de modo a coincidir com o mais importante feriado nacional. Timor festeja em conjunto os 500 anos da chegada dos portugueses e os 40 anos da proclamação da independência, num acto colectivo de evocação do passado e de celebração identitária. Não podia ser mais flagrante o contraste com Portugal, no que toca ao relevo concedido à memória colectiva e ao reconhecimento da História como factor agregador da identidade nacional. PAULO JORGE DE SOUSA PINTO * * Historiador e investigador do CHAM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. sábado 28 de Novembro de 2015

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