2015_A formação de professores crítico-reflexiva: pressupostos necessários ao desvelar colaborativo da prática docente

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A formação de professores crítico-reflexiva: pressupostos necessários ao desvelar colaborativo da prática docente Me. André Luís Franco da Rocha Doutorando-Capes/Pró-mobilidade Internacional Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica Universidade Federal de Santa Catarina/ Universidade Nacional Timor Lorosa’e [email protected] Drª. Sylvia Regina Pedrosa Maestrelli Professora do Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica Universidade Federal de Santa Catarina [email protected]

Introdução Neste texto buscamos propor pressupostos para um processo formativo que intenta na análise dialética e dialógica da prática político-pedagógica de professores de ciências da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis (RMEF), construir um que fazer crítico transformador (FREIRE, 2007). Para tanto, é necessário junto aos educadores ouvir a realidade concreta em que atuam, problematizar as situações de sofrimento que vivenciam e denunciar o seu processo de desumanização (FREIRE, 2005). É com o intuito de conhecer coletivamente para posteriormente transformar crítica e eticamente a realidade que devemos mergulhar na concretude da ação pedagógica diária dos professores evidenciando suas dificuldades e anunciando suas potencialidades. É com esta perspectiva que selecionamos o ensino de zoologia presente no 7º ano da RMEF, como um dos potenciais contextos materiais para discutir a práxis político-pedagógica dos professores de ciências.

Um breve olhar sobre o ensino de zoologia Considerando a historicidade do ensino de ciências naturais, percebemos que essa prática sempre foi fortemente influenciada por contextos internacionais revelando uma forte relação de poder e dependência do Brasil, aos países europeus e norte americano (KRSILCHICK, 2000; 2008). Devido a essa historicidade, ainda hoje, o ensino de zoologia no Brasil, como uma componente curricular da disciplina de ciências e biologia, é fortemente marcado por um positivismo sanitarista eurocêntrico que data de meados do século IX e XX e que conduziu as pesquisas nacionais sobre os ciclos biológicos de vetores e doenças neotropicais (ZARUR, 1994). Desta forma, o Sanitarismo brasileiro provido de estudos higienistas europeus (CAPONI, 2006) baseava-se na concepção de que a resolução dos problemas de saúde nacional estava na resolução da saúde pontual, ou seja, corrigir através de ações higienizadoras estatais, escolarizadas, a defasagem conceitual familiar que comprometia a saúde da criança garantindo assim a estabilidade e a segurança nacional (MOHR; SCHALL, 1992). Produz-se então na escola uma tradição de ensino que estabelece um padrão curricular hermético e profilático frente à realidade brasileira, dificultando proposições, conteúdos e práticas diversificadas ao ensino de animais (ROCHA, SANTOS, 2014). Tradicionalmente o ensino de zoologia objetiva apresentar a biodiversidade animal e sua classificação, o que torna este conhecimento diretamente dependente das pesquisas científicas de ordem biológica baseadas na descrição, organização e catalogação das espécies animais. Entretanto, ainda são poucos os trabalhos de pesquisa que discutem o ensino propriamente dito deste conteúdo (AMORIM, et al. 2001). A análise do ensino de zoologia presente no ensino básico evidencia que a classificação animal presente tanto nas práticas de ensino, quanto nos materiais didáticos ainda limita-se ao modelo de classificação essencialista, linneliano e aristotélico (AMORIM, et al. 2001; VASCONCELOS; SOUTO, 2003). Um modelo que se baseia na apresentação enciclopédica de um conhecimento sobre a vida animal altamente descritivo e fragmentado, de forma que a natureza, posta como uma entidade hostil (RAZERA; BOCCARDO; SILVA, 2007), é compreendida como uma verdade inquestionável. Desta forma, todos os agrupamento animais revelam-se como “[...] tipos naturais discretos e estáveis no tempo e no espaço.” (SANTOS, 2008), relegando as atuais contribuições da teoria sintética da evolução (SANTOS E CALOR, 2007). A crítica exposta não tem por objetivo abolir as classificações das aulas de zoologia, pois, como Mayr (1982) aponta, as classificações são necessárias sempre que tivermos que lidar com a diversidade. Entretanto, da forma como está posta na escola, a classificação da diversidade animal está isolada em um currículo de ciências composto por um gigantesco compêndio de nomes, conceitos e práticas que se dão de maneira fragmentada e descontextualizada à realidade (ROCHA, 2013).

É na lógica de não haver diálogo entre os conhecimentos do professor e dos alunos, que podemos afirmar que o ensino de zoologia presente na realidade da RMEF está contribuindo para uma educação bancária, pois resume-se a aplicação autoritária e silenciadora de conceitos científicos que devem ser meramente memorizados (VASCONCELOS; SOUTO, 2003; ROCHA; 2013). Assim, contribuímos para a reprodução de um modelo de sociedade, de ciência e de natureza incoerentes com o real, estando esses modelos muito mais a serviço de uma elite dominadora e opressora do que a serviço da ética democrática e da igualdade para com todos os seres humanos (FREIRE, 2005; 2007; FREIRE; SHOR, 2011; GIROUX, 1997). Desta forma, na educação bancária não existe diálogo, apenas a narração de conteúdos alheios a realidade. A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. [...] a Narração os transforma em “vasilhas” em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhor educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante (FREIRE, 2005, p.66)

Os professores de ciências: opressores ou oprimidos? Tendo em vista tais problemáticas é comum ao discurso dos professores a seguinte fala significativa1: “Então o professor tendo autonomia ele pode [...] no seu pensamento, nas suas concepções optar né, [...] ver [...] qual é o conteúdo que é importante para o aluno e aquele que não; Porque se não ele não vence.”. Fala de um professor de ciências do 7º ano do ensino fundamental (ROCHA, 2013). A fala apresentada evidencia as dificuldades que o professor precisa enfrentar ao trabalhar os conteúdos de zoologia. Para este profissional, é extremamente complicado conseguir abordar em apenas um ano letivo a extensa grade de conteúdos sobre os grupos de animais, tradicionalmente aceita e incorporada ao currículo escolar. No entanto, o que se observa é que esse tradicionalismo não é questionado. Este professor, dentro do conteúdo programático proposto, apenas foca seus esforços na mudança da forma com que os grupos animais são trabalhados, dando prioridade aos animais que acredita, na visão dele, ser mais significativos para seus alunos, entretanto, não modifica propriamente dito o conteúdo proposto, sentindo a necessidade de cumpri-lo durante todo o ano letivo, “vencendo” os conteúdos mesmo tendo consciência desta impossibilidade prática (ROCHA, 2013). 1

De acordo com Silva (2004, p.18), a fala significativa caracteriza-se como a expressão da comunidade escolar e seus diferentes segmentos. Para garantir o significado social coletivo, tais falas devem trazer a denúncia de algum conflito ou contradição vivenciada pela comunidade escolar local, expressando uma determinada representação historicamente construída do real. É nesta lógica que a fala apresentada busca expressar uma visão coletiva do ensino de zoologia na RME de Florianópolis que representa uma situação de opressão sobre o trabalho dos professores. Este concebido a partir de um fatalismo frente a sua ação pedagógica.

Ao expor essa fala significativa buscamos problematizá-la junto ao leitor, uma vez que esta fala levanta muitos questionamentos a respeito dos motivos que levam um profissional a tentar de fato “vencer” um currículo historicamente idealizado por sujeitos muitas vezes distantes da sala de aula. (PIMENTA; GHEDIN, 2002; GIROUX, 1997; FREIRE; SHOR, 2011) Logo, qual é o significado deste “vencer”? Qual é o compromisso da ação pedagógica? É com o currículo, ou com a aprendizagem do aluno? Como podemos saber o que é importante para o nosso aluno e o que não é dentre os diversos conceitos e grupos animais, se a preocupação na ação docente parece se concentrar na carga conceitual e não no diálogo? Como podemos pensar em autonomia profissional, se o professor está apenas reproduzindo um currículo tradicional? Será que este profissional possui de fato autonomia quando tenta sanar a problemática sem questionar porque e para que deve ministrar tais conteúdos? Como construir a criticidade (BRASIL, 1998) junto aos alunos sem refletir crítica e pedagogicamente sobre esse objetivo, seus significados e as condições materiais, estruturais e ideológicas, dentro e fora da ação docente? Ou seja, como formar um sujeito crítico sem ser essencialmente um professor crítico? Ao ler a fala, podemos observar que este professor percebe a contradição entre manter a carga conceitual e a impossibilidade de cumpri-la, mas será que ele poderia ou deveria questionar-se quanto à sua prática, quanto aos motivos e objetivos de sua ação? Freire e Shor (2011) trazem um apontamento muito importante quanto ao valor do ato de ensinar imerso em uma ideologia 2 autoritária e desumanizadora que separa da práxis pedagógica docente a teoria da prática e a reflexão da ação. O professor simplesmente se utiliza de uma arquitetura construída em outro lugar[...] Estou convencido de que a compreensão deficiente do que podemos chamar de ciclo gnosiológico está relacionada a esses mal-entendidos [...] se observarmos o ciclo do conhecimento, podemos perceber dois momentos, e não mais do que dois, dois momentos que se relacionam dialeticamente. O primeiro momento do ciclo [...] é o momento da produção de um conhecimento novo [...] o segundo é aquele em que você conhece o conhecimento existente. O que acontece, geralmente, é que dicotomizamos esses dois momentos, isolamos um do outro. Consequentemente reduzimos o ato de conhecer do conhecimento existente a uma transferência do conhecimento existente. E o professor se torna exatamente o especialista em transferir conhecimento. Então, ele perde algumas das qualidades necessárias, indispensáveis, requeridas na produção do conhecimento, assim como no conhecer o conhecimento existente. Algumas dessas qualidades são, por exemplo, a ação, a reflexão crítica, a curiosidade, o questionamento exigente, a inquietação, a incerteza [...] quando separamos o produzir conhecimento do conhecer o conhecimento existente, as escolas se transformam facilmente em espaços para a venda de conhecimento, o que corresponde à ideologia capitalista. (FREIRE; SHOR, 2011, p.23-24)

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A ideologia é um constructo social que se traduz em formas nas quais os significados são produzidos, mediados e incorporados em formas de conhecimento, práticas sociais e experiências socioculturais. No caso específico da dimensão educacional, a ideologia é um conjunto de doutrinas e meios através dos quais professores e educadores dão sentido a suas próprias experiências, no/do mundo em que estão imersos (GIROUX, 1997).

Desta forma fica evidente a impotência que os professores sentem ao confrontar-se com os contextos burocratizados de ensino em que atuam. Contextos esses que são promovidos a partir de um conjunto de intencionalidades conservadoras, que direcionam a educação brasileira para um modelo mecânico de ensino, pautado na adaptação dos sujeitos frente ao mercado neoliberal global. Consequentemente, a partir de um processo de alienação e opressão as ações docentes se adéquam à racionalidade técnica para a formação de recursos humanos dóceis e manipuláveis (FREIRE; SHOR, 2011; FREIRE, 2005). Na lógica desta meta desumanizadora os professores são negados, e muitas vezes também se negam, enquanto sujeitos autênticos e autônomos (PIMENTA; GUEDIN, 2002; FREIRE; SHOR, 2011; GIROUX, 1997), muitas vezes reproduzindo discursos como:  A docência seria uma ação pedagógica pautada somente na prática de ensino apartada de uma teoria;  Por ser um agente da prática, o professor é considerado somente um técnico consumidor de teorias e/ou metodologias acadêmicas;  Por ser um consumidor da produção acadêmica, o professor não é capaz de produzir seus próprios conhecimentos, ou seja, não possui saberes e por isso, não é capaz de conceber autenticamente com rigor novas metodologias de ensino, nem a produção curricular;  Desta forma, como um ser somente da prática o professor é concebido como um agente consumidor isolado ao seu contexto, fortemente imediatista e mecânico, não sendo capaz de realizar pontes entre a sua ação e a vida de seus alunos.  O seu ensino e por conseqüência a aprendizagem são reduzidos ao conteúdo escolar disciplinar, não abordando contextos sociopolíticos mais amplos;  E tendo em vista seu papel pedagógico técnico e bancário, o professor não possui plena autonomia sobre sua prática pedagógica, ação esta que se auto-justifica para a promoção de um currículo autoritário e silenciador externo ao contexto de ensino e aprendizagem.  Logo, o sujeito professor através da opressão burocrática é negado e através da alienação de sua prática se auto-nega enquanto um sujeito dialeticamente capaz de transformar o mundo e a si mesmo. A formação crítico-reflexiva: delineando pressupostos e possibilidades Pimenta (2005) sustenta que as organizações escolares produzem uma cultura própria baseada em necessidades específicas que exprimem os valores e as crenças que os membros dessa organização partilham. Assim, compreendemos que a escola não tem um caráter unicamente divulgador e ou

reprodutor de conhecimentos científicos, mas também pode se configurar como um espaço de produção de conhecimentos e práticas sociais que tem potencialidades sobre a transformação da realidade concreta. É nessa premissa que se funda nossa crítica à consciência ingênua e a intencionalidade desumanizadora da gestão pública e da academia que negam as possibilidades da escola e de seus sujeitos em construir um corpo de conhecimento capaz de ampliar a qualidade social e técnica de suas ações. Essa preocupação também nos induz à esperança libertadora, na medida em que une a linguagem da crítica à linguagem da possibilidade (GIROUX, 1997). Pois, é na problematização do conhecimento histórico e ideologicamente dado sobre a escola que é possível soerguer as necessidades objetivas da comunidade escolar local, o que acaba por possibilitar o empoderamento do professorado (FREIRE, 2005). Na medida em que se estabelece uma socialização dialógica e problematizadora sobre os contextos, as práticas dos professores da RMEF, e as contradições em que estes estão imersos, produzse um conhecimento capaz de instaurar o enfrentamento dos limites e as potencialidades concretas de um ensino comprometido com uma racionalidade emancipatória (SAUL, SILVA, 2009). Para tanto, construímos um corpo de dados3 em conjunto com as dúvidas e as aflições dos professores, que ao refletir sobre seu contexto nos revelaram seus encaminhamentos cotidianos. Ao analisar e desvelar esse corpo de dados coletivamente e colaborativamente em um processo problematizador sobre a realidade a qual vivenciam, intentamos junto aos professores um despertar da curiosidade epistemológica, ou seja, uma permanente busca pela autonomia. Logo, é necessário oportunizar a reflexão crítica e problematizadora dos próprios sujeitos, levando-os a um distanciamento crítico de sua prática, para assim permitir que avaliem quais seriam os limites e possibilidades de sua ação na transformação da realidade escolar local. É nesse pressuposto que se funda a proposição deste trabalho, no sentido em que busco uma proposta de formação, que leve em consideração tais profissionais como co-sujeitos do processo de emancipação através de sua prática social educativa. “É preciso superar a visão, historicamente dominante, do professor como mero técnico” (ZEICHENER, 2000, p.11) alcançando a compreensão de um intelectual (GIROUX, 1997) enquanto sujeito de sua práxis político-pedagógica. Contudo, para alcançar este objetivo, o professorado necessita, para além da reprodução de livros didáticos, construir sua prática no contato autêntico e coletivo com a sala de aula, estabelecendo uma amalgama crítica entre teoria e prática pedagógica. Uma teoria construída sobre a prática, mas que não se finda nela mesma, que busca na avaliação das ações à reflexão crítica capaz de destacar os limites teóricos necessários a sua superação, promovendo 3

Os dados aqui fazem referencia a análise da realidade cotidiana dos professores da RMEP e encontram-se na dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Cientifica e Tecnológica/UFSC. De forma geral, tais dados versam sobre as relações de opressão e alienação postas sobre o professorado de ciências (ROCHA, 2013).

um ensino ético indissociável ao estudo rigoroso e autêntico das expressões postas pela vida humana. Desta forma, o professorado pode constituir sua docência inserida ao movimento de sua formação permanente (FREIRE, 2005). O termo permanente aqui não faz referência apenas ao processo de aprendizagem do ofício dos professores em sua vida profissional, mas a uma concepção de sujeito comprometido com a constante busca reflexiva de sua humanização. Caracteriza-se na busca pelo desenvolvimento dialético da sua ação social concomitantemente a (re)construção criativa e rigorosa da consciência que este tem sobre a mesma, possibilitando o seu ser mais4. Desta forma, somente nesse processo de busca reflexiva e crítica sobre as relações pedagógicas entre teoria e prática no e com o mundo é que pode se fundar a formação permanente dos sujeitos professores em direção à conscientização e a apropriação de sua história (FREIRE. 2005; 2007; 2008; 2011; RIGOLON, 2008; GIROUX, 1997). A formação permanente das educadoras, que implica a reflexão crítica sobre a prática, se funda exatamente nesta dialeticidade entre prática e teoria. Os grupos de formação, em que essa prática de mergulhar na prática para, nela, iluminar o que nela se dá e o processo em que se dá o que se dá, são, se bem realizados, a melhor maneira de viver a formação permanente. O primeiro ponto a ser afirmado com relação aos grupos de formação na perspectiva progressista em que me situo é que eles não produzem sem a necessária existência de uma liderança democrática, alerta, curiosa, humilde e cientificamente competente. Sem essas qualidades os grupos de formação não se realizam como verdadeiros contextos teóricos. [...] Um segundo aspecto que tem que ver com a operação dos grupos é o que se pretende ao conhecimento que os grupos devem ter de si mesmos. É o problema de sua identidade, sem o que dificilmente se constituem solidariamente. E, se não conseguem ao longo de sua experiência, não lhes é possível saber com clareza o que querem, como caminhar para tratar o que querem, que implica saber para quê, contra que, a favor de que, de quem se engajam na melhora de seu próprio saber. [...] À medida que marchamos no contexto teórico dos grupos de formação, na iluminação da prática e na descoberta dos equívocos e erros, vamos também, necessariamente ampliando o horizonte do conhecimento científico sem o qual não nos “armamos” para superar os equívocos cometidos e percebidos. Este necessário alargamento de horizontes que nasce da tentativa de resposta à necessidade primeira que nos faz refletir sobre a prática tende a aumentar seu espectro. O esclarecimento de um ponto aqui desnuda outro ali que precisa igualmente ser desvelado. Esta é a dinâmica do processo de pensar a prática. É por isso que pensar a prática ensina a pensar melhor da mesma forma como ensina a praticar melhor. (FREIRE, 1997, p.75)

É nesse sentido que concordamos com Freire (2005) e Giroux (1997) ao apontar como caminho a emancipação à necessidade de os professores assumirem a responsabilidade ativa pelo levantamento de quais metas deveriam lutar. Logo, não podem somente criticar o que está posto, mas levantar das contradições vividas novas possibilidades de ação como intelectuais críticotransformadores que são (GIROUX, 1997). Ao conceber os professores como intelectuais podemos

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Movimento de busca permanente do indivíduo em comunhão social, ética, política e cultural pelo se fazer sujeito na transformação coletiva de sua realidade objetiva (FREIRE, 2005; 2007)

elucidar a importante ideia de que toda atividade humana envolve alguma forma de pensamento. Nenhuma atividade, independente do quão rotineira possa ser, é abstraída do funcionamento da mente em algum nível. Este ponto é crucial, pois ao argumentarmos que o uso da mente é uma parte geral de toda atividade humana, nós dignificamos a capacidade humana de integrar o pensamento e a prática, e assim destacamos a essência do que significa encarar o professorado como profissionais reflexivos. É necessário explorar momentos de formação que, “[...] favoreçam processos coletivos de intervenção reflexiva da prática pedagógica, capazes de identificar os problemas para resolvê-los, incentivar a sistematização e socialização das práticas docentes [...]” (ROSA-SILVA; LORENCINI JUNIOR, 2007, p.2). Deve-se superar o atual ensino de ciências e biologia, que por uma demanda do mercado e em decorrência de um currículo dos anos de 1960, ainda “limita-se a apresentar a ciência completamente desvinculada de sua aplicação e das relações que tem com o dia-a-dia do estudante, amplamente determinado e dependente da tecnologia.” (KRASILCHIK, 2008, p. 185). Tomando todo este contexto, faz-se necessária a proposição de um curso de formação junto aos professores da RMEF, que busque uma oportunidade de reflexão crítica sobre a prática e a teoria que incidem sobre a docência. Uma possível proposta de formação crítico-transformadora A formação crítico-reflexiva deve se distanciar das atuais propostas de formação contínua da que geralmente fazem uso de práticas transmissivas, conteudistas e não comunicativas (ROCHA, 2013; FREIRE, 2011), apartando a teoria da prática. Nessa formação burocratizada intenta-se a implementação de metodologias e projetos estatais de formação, originadas externamente ao contexto escolar, estando muito mais comprometidas com um conservadorismo tecnocrático do que emancipador. É nesse sentido que essa proposta de formação deve ter como pressuposto o diálogo crítico-colaborativo e reflexivo, que rompe com o modelo tradicional de formação. Entretanto, o que se entende por reflexividade? Não faz sentido identificar se os professores são ou não reflexivos, mas constatar como está se dando esse processo de reflexão e sobre o que estão refletindo, pois “Há uma diferença qualitativa entre refletir sobre racismo, amendoim ou queijo, [...] Tentamos ampliar o conceito de ensino reflexivo, de modo que os professores pensem sobre isso e vejam quais são as alternativas.” (ZEICHENER, 2000, p.12). É com essa perspectiva que partimos da problematização das inquietações docentes fortemente vinculadas às suas práticas cotidianas no ensino de zoologia, este altamente técnico, em direção a uma reflexividade cada vez mais crítica (VAN MANEM, 1977). Portanto, evitamos começar uma formação introduzindo textos para que o professores, enquanto consumidores os leiam. Embora os materiais textuais sejam um importante instrumento de contato do professor com

as teorias educacionais, apresentá-los desnudos de vivências e práticas, acabam por não ter significação. Nessa lógica, temos como premissa que, “A leitura crítica dos textos e do mundo tem que ver com a [...] mudança em processo.” (FREIRE, 2001, p.267). O ponto de partida e de chegada é a prática docente, entretanto, esta proposta de formação não pode ter a pretensão de trazer respostas e receitas prontas aos problemas dos professores, como se fossem unicamente de cunho metodológicos e didáticos. É necessária uma construção analítica coletiva orientada à emancipação. Logo, as discussões teórico práticas devem emergir do contexto escolar e de seu entorno, possibilitando questionamentos e posicionamentos ativos perante aos problemas docentes (PIMENTA, 2005; SILVA; SAUL, 2009). A discussão deve minimamente motivar questionamentos perante o “Para que” se faz o ensino de zoologia na escola, “Por que” se faz assim, “Para quem” é essa prática, “O que” se ensina de significativo na área e “Como” fazer diferente para sanar as problemáticas identificadas no processo de investigação coletiva. Assim, inspirado no processo de codificação e de descodificação da abordagem temática freireana (FREIRE, 2005; FREIRE SHOR, 2011), busca-se dialética e dialogicamente desvelar as situações de fatalismo que esses professores vivenciam para o enfrentamento da racionalidade técnica em direção à racionalidade emancipatória (SAUL, SILVA, 2009). Assim, “[...] as consciências, co-intencionadas à codificação desafiadora, re-fazem seu poder reflexivo na “ad-miração” da “ad-miração”, que vai-se tornando de uma forma de “re-ad-miração”. (FREIRE, 2011, p.127). Desta forma, a proposta de formação crítico-reflexiva é subdividida quatro movimentos propostos por Smith (1992), baseados na descodificação em Freire (2005). São eles: Informar; Descrever; Confrontar e Reconstruir. Cada encontro é dedicado a uma situação fatalista específica, reconhecida pelo grupo a partir da problematização. É importante dizer que nessa problematização optamos em utilizar as falas significativas5 coletadas da realidade cotidiana de professores de ciências da RMEF em atuação, e que representam limites de reflexão sobre a docência. O processo formativo se inicia com um informar sobre o cotidiano no ensino de Zoologia, suas intencionalidades e seu currículo oculto (GIROUX, 1997) descrevendo suas problemáticas e contradições, intentando desvelar a totalidade à que está submetida à ação do professor de ciências. Parte-se do ensino de zoologia e intenta-se chegar ao enfrentamento da situação de opressão docente culminando na análise de seus processos de alienação, para a autonomia docente sobre sua práxis político pedagógica. Assim, buscamos problematizar efetivamente quem determina a prática docente.

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O critério de seleção para a escolha das falas significativas a ser problematizadas durante o curso foi sua relação com os elementos específicos da racionalidade técnica que culminavam em representações fatalistas. Situações vistas aqui como fonte de questionamentos capazes de levar à superação coletiva e propositiva sobre a prática docente.

Tendo definido coletiva e colaborativamente essa premissa, podemos de fato pensar em uma reconstrução dos direcionamentos a ação docente no ensino de ciências e zoologia. Logo, concordo com Freire ao determinar que, É preciso gritar alto que, ao lado de sua atuação no sindicato, formação científica das professoras iluminada por sua clareza política, sua capacidade, seu gosto de saber mais, sua curiosidade sempre desperta, são os melhores instrumentos políticos na defesa de seus interesses e de seus direitos. Entre eles, por exemplo, o de recusar o papel de puras seguidoras dóceis dos pacotes que sabichões e sabichonas produzem em seus gabinetes numa demonstração inequívoca, primeiro de seu autoritarismo; segundo, como alongamento do autoritarismo, de sua absoluta descrença na possibilidade que têm as professoras de saber e de criar. E o curioso nisso tudo é que, às vezes, os sabichões e as sabichonas que elaboram com pormenores seus pacotes chegam a explicitar, mas quase sempre deixam implícito em seu discurso, que um dos objetivos precípuos dos pacotes, que não chamam assim, é possibilitar uma prática docente que forje mentes críticas, audazes e criadoras. E a extravagância de uma tal expectativa está exatamente na contradição chocante entre o comportamento apassivado da professora, escrava do pacote, domesticada a seus guias, limitada na aventura de criar, contida em sua autonomia e na autonomia de sua escola e o que se espera da prática dos pacotes: crianças livres, críticas, criadoras (FREIRE, 1997, p.12)

Pensamos que ao delinear essa possibilidade formativa junto aos professores de ciências da RMEF, podemos contribuir para ampliar as discussões a respeito da escola não somente como espaço de ação pedagógica, mas também como espaço promotor de conhecimentos rigorosos e criativos essenciais a transformação social da realidade orientada à emancipação da comunidade escolar e de seu entorno. Referências Bibliográficas AMORIM, D. S; MONTAGNINI, D. L; CORREA. R. J. Diversidade biológica e evolução: uma nova concepção para o ensino de Zoologia. In: BARBIERI, Marisa. R.; SICCA. Natalina. A. L; CARVALHO. Célia. P. A Construção do conhecimento do professor, Uma experiência de parceria entre professores do ensino fundamental e médio da rede publica e a universidade. Ribeirão Preto, Holos, 2001. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ciências Naturais. Brasília: MEC/SEF, 1998. CAPONI, S. A emergência da medicina tropical no Brasil e na Argentina. ln: MARTINS, A. C. K. P; LORENZANO, p. Ciências da Vida: Estudos filosóficos e Históricos. Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, Campinas, 2006. FREIRE, Paulo. Professora sim, Tia não: Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’ água, 1997. FREIRE, P. Carta de Paulo Freire aos professores. Estudos Avançados 15 (42), p.259-268, 2001. FREIRE, Paulo R. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2005. 65 p. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários a prática Educativa. Paz e Terra. São Paulo. 2007. FREIRE, P.Conscientização: Teoria e prática da libertação. Centauro Editora, 3 ed. São Paulo, 2008. FREIRE. P. Extensão ou Comunicação?. Paz e Terra. 15. Ed. São Paulo. 2011. FREIRE. P.; SHOR. I. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Paz e Terra. 13. Ed. São Paulo. 2011. GIROUX, H. A. Os professores como intelectuais: Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Artes Médicas, Porto Alegre, 1997. KRASILCHICK. M. Reformas e realidade: o caso do ensino de Ciências. São Paulo em perspectiva, 14(1) 2000. KRASILCHIK,M. Prática de Ensino de Biologia. 4.ª ed. rev. E ampl. 2ª reimpr. São Paulo: EDUSP, 2008.

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