2015_O ENSINO BANCÁRIO DE ZOOLOGIA: UMA APROXIMAÇÃO DE SUAS PRÁTICAS

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O ENSINO BANCÁRIO DE ZOOLOGIA: UMA APROXIMAÇÃO DE SUAS PRÁTICAS Prof. Me. André Luís Franco da Rocha (Doutorando PPGECT1/UFSC/CAPES) Profª Drª Sylvia Regina Pedrosa Maestrelli (Professora do PPGECT/UFSC) Resumo: Este trabalho busca realizar uma aproximação da prática pedagógica de professores da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis a partir da análise do ensino de zoologia, cujo método de coleta se deu partir da observação, entrevista e aplicação de questionário estruturado de reconhecimento. O resultado desta aproximação analítica evidencia as dificuldades e as potencialidades dos professores em exercer um ensino de zoologia sóciohistoricamente contextualizado. Devido ao tradicionalismo aplicado ao ensino, concluímos que o currículo de ciências, no conteúdo programático de animais é hermético e descontextualizado da realidade escolar cujo foco estaria no ensino bancário da zoologia. Um ensino determinado por um currículo altamente conservador, desatualizado e sanitarista, inviabilizando uma formação crítico-transformadora. Resumo em língua estrangeira: This work aims to achieve an approximation of practicing teachers from Florianópolis Teaching System by the analysis of zoology teaching. The method of collection takes place from observation, interview and a structured questionnaire. The result of this analytical approach highlights the difficulties and potential teachers to exercise a zoology teaching socio-historically contextualized. Due to the traditionalism applied to education, we find that the science curriculum in teaching about animals is airtight and decontextualized from the school reality whose focus would be on the banking teaching of zoology. A particular school curriculum that’s a highly conservative, outdated and sanitation, impeding a critical-transforming education. Palavras-chave: Ensino de zoologia; Prática docente; Ensino bancário. Introdução Ao considerar a historicidade do ensino de ciências naturais, percebemos que essa prática sempre foi fortemente influenciada por contextos internacionais revelando uma forte relação de poder e dependência do Brasil, primeiramente aos países europeus e posteriormente ao imperialismo norte americano (KRSILCHICK, 2008). Devido a essa historicidade, ainda hoje, o ensino de zoologia no Brasil, como um componente curricular da disciplina de ciências e biologia, é fortemente marcado por um positivismo sanitarista eurocêntrico que data de meados do século IX e XX e que conduziu as pesquisas nacionais sobre os ciclos biológicos de vetores e doenças neotropicais (ZARUR, 1994), influenciando a compreensão de escola como uma agência nacional de promoção da saúde (MOHR; SCHALL, 1992). Produz-se então na escola uma tradição de ensino que estabelece um padrão curricular hermético e profilático frente à realidade brasileira, dificultando proposições, conteúdos e práticas diversificadas ao ensino de animais (ROCHA, SANTOS, 2014). Tradicionalmente o ensino de zoologia tem como objetivo apresentar a biodiversidade animal e sua classificação, 1

Programa de Pós Graduação em Educação Científica e Tecnológica.

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o que torna este conhecimento diretamente dependente das pesquisas científicas de ordem biológica baseadas na descrição, organização e catalogação das espécies animais. Entretanto, ainda são poucos os trabalhos de pesquisa que discutem o ensino propriamente dito deste conteúdo (AMORIM, et al. 2001). Desta forma o ensino de Zoologia ainda é um fértil espaço para investigações dos distintos pressupostos, compreensões e práticas sócio-historicamente estabelecidas sobre o ensino das ciências. Neste contexto, este trabalho busca analisar os pressupostos e as ações políticopedagógicas dos professores de ciências da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis (RMEF), construindo a possibilidade de um “que fazer” crítico e transformador (FREIRE, 2007). Para tanto, é necessário junto aos educadores ouvir a realidade concreta em que atuam, problematizar as situações de sofrimento que vivenciam e que perpetuam, e denunciar o processo de desumanização em que estão imersos (FREIRE, 2005). É com o intuito de conhecer coletivamente para posteriormente transformar crítica e eticamente a realidade opressora que devemos mergulhar na concretude da ação pedagógica diária dos professores evidenciando suas dificuldades e anunciando suas potencialidades (ROCHA, 2013). Metodologia Desta forma, a análise posta aqui, se faz sobre as representações ou produção simbólica de um discurso oral e prático fortemente imediatista sobre a docência oriundo da necessidade coletiva frente à realidade escolar e suas mediações condicionantes. A essas sínteses, dá-se a denominação de Falas Significativas (SILVA, 2004). De acordo com Silva (2004, p.18), a fala significativa caracteriza-se como uma expressão da comunidade e seus diferentes segmentos, que trazem a denúncia de algum conflito ou contradição vivenciada pela comunidade escolar local e que expressam uma determinada concepção coletiva ou representação historicamente construída do real. É neste sentido que buscamos apresentar falas significativas dos professores da RMEF geradas a partir da aplicação e da análise entrecruzada de um questionário de reconhecimento estruturado,2 somadas às considerações e contradições encontradas a partir da observação3 da prática didático-pedagógica em zoologia e de entrevistas semi-estruturadas analisadas a partir dos fundamentos teórico-metodológicos da Dialética enquanto proposta de análise crítica da realidade (FRIGOTO, 1989). O ensino de zoologia: um moldar histórico Entretanto, anterior à compreensão da prática docente, é necessário resgatar o que Giroux (1997; p.30) denomina de libertação da memória, a fim de compreendermos os nexos entre a prática individual e coletiva dos docentes e sua relação, muitas vezes ingênua, com a trama sócio-histórica a que estão indissociavelmente imersos. Assim, se faz necessário compreendermos quais são as contribuições da educação tradicional especificamente dentro 2

Este questionário, baseado em Vasconcelos e Souto (2006), obteve um número amostral de 21 respostas, coletadas em um total de 48 professores da rede, estando 32 presentes no momento da aplicação do mesmo. O questionário foi aplicado durante um encontro de formação continuada dos professores de Ciências, organizado pela Gerência de Formação Permanente da Rede Municipal, realizado no Centro de Educação continuada da RMEF. 3 A Observação do espaço-tempo de sala de aula leva em consideração dados qualitativos, no que concerne às ações docentes frente ao conteúdo de zoologia, aos seus educandos, à escola e à comunidade a que pertence. Nesse instrumento buscamos evidenciar dentre a prática de quatro professores de ciências as contradições presentes entre o discurso e a prática para melhor elucidar os elementos a serem problematizados em nossa análise.

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do ensino de Zoologia, para termos parâmetros quanto à racionalidade que o norteia, suas contradições e as possibilidades de sua superação. Nessa lógica, Amorim (et al. 2001) pode nos dar pistas do que seria um tradicionalismo aplicado ao ensino sobre animais. O autor sustenta que este conteúdo ainda é fortemente descritivo, unicamente vinculado às visões e conceitos essencialistas propostos por Platão, Aristóteles e Lineu, negando o desenvolvimento atual de áreas da Biologia como a Evolução, a Genética e a própria Cladística4. Sendo esta a atual e principal forma de classificação e teorização do processo evolutivo sobre os organismos biológicos. Desta forma, o ensino de Zoologia estaria desatualizado no que se refere ao campo teórico científico, o que explica a manutenção da classificação unicamente a partir da Nomenclatura Binominal5 (AMORIM, et al. 2001). O ensino de zoologia atual originou-se da relação historicamente condicionada no contato entre a área pura de pesquisa zoológica brasileira do fim do século XIX com o ensino Escolar da época (ROCHA; SANTOS, 2014). Essa transposição emerge na relação academia/escola, em um determinado contexto histórico ligado ao pioneiro processo de produção científica nacional em Manguinhos, criado em 19086. Nessa produção, a pesquisa científica zoológica de forte tendência lineliana buscava ampliar os conhecimentos científicosanitaristas acerca das doenças neotropicais brasileiras de sua época (CAPONI, 2006). O produto dessa produção científica nacional acabou por ser altamente popularizado, uma vez que trazia enormes ganhos para a qualidade de vida da população brasileira, que no inicio do século XX ainda se encontrava extremamente ruralizada e acometida por inúmeras doenças do campo. Logo, havia uma grande demanda de conhecimento científico acerca da natureza no âmbito rural nacional. O estudo sobre a vida animal acabou por ampliar os conhecimentos sobre os ciclos biológicos das doenças, produzindo grandes implicações tanto na pecuária quanto na agricultura brasileira (ZARUR, 1994). Desta forma, migrou para a academia, uma visão tipológica da vida, altamente utilitarista, profilática, sanitarista e antropocêntrica, ou seja, com uma clara missão de divulgar o higienismo e o método científico para a população brasileira, ainda dissonante às tendências européias da época (CAPONI, 2006). Consequentemente, o ensino na escola adquiriu um caráter diretivo, que se utiliza até os dias atuais, de uma sistemática baseada na morfologia e indexação das características que definem a essência ainda imutável de cada espécie (AMORIM, et. al. 2001), focando-se em uma concepção de natureza econômico-produtivista, fragmentada, e hostil (RAZERA; BOCCARDO; SILVA, 2007). A partir disso, “A escola não seria apenas o espaço de ensino, mas um agente terapêutico, recaindo sobre o professor a tarefa de transformar o mundo.” (LIMA, 1995, apud. MOHR; SCHALL, 1992, p.1), tornando-se a Educação em Saúde, com a promulgação do artigo 7 da lei 5.692/71, obrigatória nas escolas brasileiras de 1º e 2º graus, com o objetivo de estimular o conhecimento e a prática da saúde básica e higiene. (MOHR; SCHALL, 1992). Com essa nova diretriz, o ensino zoológico estabelece uma metodologia baseada em uma grande produção de material didático direcionando, exposições teóricas, prescritivas e 4

É a atual escola de Classificação biológica, que busca classificar as espécies em grupos ou táxons baseados em princípios filogenéticos, teorizando sobre processo histórico evolutivo do desenvolvimento da vida na terra (SANTOS; CALOR, 2007). 5 Esta é um conjunto de normas idealizada pelo naturalista Lineu que regulam a atribuição de nomes científicos (Gênero+ restritivo). Exemplo: Homo Sapiens (SANTOS; CALOR, 2007). 6 A primeira Escola Nacional de Pesquisa Científica Zoológica, pós-naturalista européia, precursora da produção científica acerca de doenças tropicais. Para mais informações ver em ZARUR, (1994).

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profiláticas de regras que os alunos são compelidos a seguir, até hoje presentes nos livros didáticos e por consequência no discurso dos professores (ROCHA, 2013). Nesse modelo tradicional de ensinar zoologia, a cada organismo que se objetiva aprender, apresenta-se um conjunto de características que, como uma bula, determinam as diferenças entre os seres vivos (AMORIM et al. 2001). A zoologia escolar tradicional reduz-se então, ao conhecimento construído no âmbito da nomenclatura, classificação da diversidade animal, em doenças, ciclos de vida de parasitoses, vetores e patógenos. É importante pontuar que não nego aqui a necessária associação da Educação para a Saúde, ao conteúdo escolar de zoologia, principalmente na atualidade, devido à extrema importância que essa associação teve e que ainda tem na promoção da saúde da população brasileira. O que problematizamos nesse estudo é o foco mecânico, fragmentado e acrítico dado a esses conteúdos. Esse tipo de ensino nega aspectos sociais, econômicos, políticos, ambientais, que fazem parte da discussão sobre as interações entre seres humanos e os demais animais nos meios urbanos e rurais. A aproximação da prática docente É a partir de um olhar histórico sobre tradicionalismo no ensino de zoologia, que podemos entender os consequentes dados atuais coletados no contexto específico da RMEF (ROCHA, 2013). Compreendendo o ensino da área como altamente exigente, no que se refere à memorização de uma grande carga conceitual, somado ao pouco tempo para ministrar os conteúdos de zoologia7 é que podemos entender as dificuldades que tais profissionais possuem em planejar e implementar práticas pedagógicas que não intentem ao erro gnosiológico da extensão ou transferência mecânica dos conhecimentos (FREIRE, 2011). Tal erro se confirma no questionário ao buscar identificar quais seriam os elementos intrínsecos ao ensino de zoologia que de alguma forma representam dificuldades e/ou facilidades às praticas pedagógicas do professor de ciências, como aponta o gráfico 1.

Gráfico 1- Distribuição das dificuldades/facilidades dos 218 professores de Ciências da RMEF quanto aos conteúdos específicos da Zoologia.

Ao analisarmos o gráfico, percebemos que, como previsto pela literatura, a maior dificuldade dos professores no ensino de Zoologia é o excesso de nomes e conceitos que por 7

Tradicionalmente o conteúdo de zoologia é um conteúdo programático inerente ao 7º ano do ensino fundamental da RMEF, sendo necessário, de acordo com o currículo geral da rede (FLORIANOPOLIS, 2008) trabalhar pedagogicamente todos os agrupamentos animais em apenas um ano letivo. 8 Apesar de 21 professores de ciências terem respondido o questionário, apenas 20 responderam completamente todas as questões e por isso não conseguimos avaliar os dados de um professor presente na amostra.

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tradicionalismo, devem ser abordados para que o aluno possa vivenciar o modelo lineliano de classificação animal. Essa informação é interessante, pois coincide com a dificuldade dos alunos na mesma área de ensino, que é ter de decorar todos os nomes dos organismos, estruturas e processos referente aos agrupamentos animais (ROCHA, et al, 2010). Tendo em vista tais observações, sustentamos que a dificuldade dos professores no que se refere às definições, conceitos e estruturas, está no fato de que é impossível, tanto aos professores, quanto a seus alunos, memorizar todo o arcabouço teórico que envolve a vida animal em apenas um ano letivo. E que insistir em uma educação que preza a transmissão conceitual implica em manter esse grau de insatisfação e dificuldade sem nunca problematizá-lo, nem possivelmente transformá-lo. A maior facilidade dos professores apontada no gráfico 1 foi o elemento “a relação Homem X Natureza”, que ao associar aos dados providos da observação dos quatro professores da RMEF, podemos inferir que a natureza é concebida como fonte de recursos naturais e/ou um elemento perigoso a vida humana. Logo, podemos observar que durante as aulas de zoologia, os professores, ao se referirem aos agrupamentos zoológicos, davam ênfase aos animais nocivos ou a utilização de seus subprodutos de interesse econômico como mel, leite, lã, dentre outros. É como se estas características utilitaristas e antropocêntricas fossem os focos motivacionais da aprendizagem dos conceitos, definições, processos, estruturas e da nomenclatura científica. Constatamos que a essa aproximação/interação reforçava-se o incentivo ao meio capitalista de produção extrativista (RAZERRA; BOCCARDO; SILVA, 2007). Podemos ter uma clara ilustração desse direcionamento utilitarista e antropocêntrico ao analisar alguns trechos significativos coletados da observação das aulas de zoologia nas quatro escolas analisadas. Em uma atividade na biblioteca de uma das quatro escolas analisadas, junto ao professor de ciências, uma aluna relata que “A aranha é um bicho feio”. O professor balança a cabeça concordando com a aluna e expressando seu asco ao animal a partir de sua fisionomia facial, nada mais foi dito sobre o aracnídeo. O problema se repete em outra escola em que um aluno, acostumado ao discurso utilitarista, questiona o professor que trabalhava artrópodes e que habitualmente se utilizava de exemplos utilitaristas sobre os mesmos. Assim, o aluno pergunta: “A formiga não faz bem ao ser humano?” e o professor responde: “A formiga Saúva pode destruir a agricultura!”, nada mais foi dito sobre o animal. Logo, estes animais não são contextualizados em relação a sua importância ecológica, evolutiva ou social, apenas a estética e a econômica são enfatizadas junto ao seu grau de utilidade e/ou nocividade para o ser humano. Como podemos ver nesses exemplos, as manifestações dos alunos não foram objeto de nenhuma problematização por parte dos professores, pelo contrário, essas expressões reducionistas foram tratadas como se fosse natural pensar que tais animais eram nojentos e/ou perigosos. Uma contradição posta no gráfico 1 que não esta coerente as observações das escolas está relacionada ao elemento “Evolução dos seres vivos”, pois apesar dos professores, que em sua maioria se julgam satisfeitos com a apresentação do conteúdo evolutivo, na prática, este não foi observado nas classificações animais, o que corrobora com a literatura do ensino da área. A contradição ainda se intensifica se analisarmos o gráfico 2 em que os 21 professores alocam o tema evolução como a última temática associada ao ensino de zoologia, estando

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inferior até mesmo que as temáticas das ciências físico-químicas, mais presentes nos meios abióticos em que tais animais vivem.

Gráfico 2- Distribuição das temáticas9 apontadas pelo professorado de ciências da RMEF no questionário de reconhecimento que seriam associáveis ao ensino de zoologia

A partir desses dados, observamos que o conteúdo Evolução, que traria uma lógica evolutiva à classificação, até aparece nas determinações dos professores, mas ainda está muito distante do que se espera nas documentações oficiais (FLORIANOPOLIS, 2008) e nos conhecimentos científicos atuais (AMORIM et al. 2001). Acreditamos que, devido à recente articulação da cladística na formação de professores, o processo de transposição didática deste conteúdo ainda está em processo de planejamento e implementação e por isso ainda é pouco observado nas salas de aula da RMEF (ROCHA, 2013). Ao analisar as temáticas mais apontadas no gráfico 2 “Ecologia; Educação Ambiental e Saúde”, associando às observações das aulas nas escolas, podemos inferir que o ensino de zoologia é estritamente conteudista e disciplinar, distante das relações sócio-históricas dos alunos e dos próprios professores focando no processo de ensino aprendizagem, em questões ligadas aos conhecimentos biológicos da classificação e comportamento entre os animais no meio ambiente. Este visto de forma preservacionista, utilitarista e hostil (RAZERA; BOCCARDO; SILVA, 2007), que acaba por confirmar a hipótese de um ensino de zoologia fechado em si mesmo, partindo comumente de um discurso sanitarista e/ou ambientalista neutro que reforça a dicotomia entre Ser Humano e os demais animais e distancia as questões biológicas das relações sociais. Podemos confirmar esse reducionismo dos animais à uma realidade estritamente biológica a partir da pouca participação das “Ciências Humanas” no ensino de animais como aponta o gráfico 2. De acordo com os dados coletados e analisados até agora, o objetivo principal do ensino de zoologia, na RMRF parece estar associado a um ensino de ciências em uma perspectiva bancária de educação (FREIRE, 2005; 2011). Perspectiva esta que tem no erro gnosiológico da transferência de conhecimentos a base de sua contradição.

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É importante destacar que as temáticas apontadas são uma forma de organização dos diversos assuntos apontados pelos docentes. O que explica o surgimento recorrente de várias das temáticas apontadas no discurso de um mesmo professor analisado.

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O professor simplesmente se utiliza de uma arquitetura construída em outro lugar, simplesmente relata conclusões a que se chegou em outro lugar. [...] Estou convencido de que a compreensão deficiente do que podemos chamar de ciclo gnosiológico está relacionada a esses mal-entendidos [...] se observarmos o ciclo do conhecimento, podemos perceber dois momentos, e não mais do que dois, dois momentos que se relacionam dialeticamente. O primeiro momento do ciclo [...] é o momento da produção de um conhecimento novo [...] o segundo é aquele em que você conhece o conhecimento existente. O que acontece, geralmente, é que dicotomizamos esses dois momentos, isolamos um do outro. Consequentemente, reduzimos o ato de conhecer do conhecimento existente a uma transferência do conhecimento existente. E o professor se torna exatamente o especialista em transferir conhecimento. Então, ele perde algumas das qualidades necessárias, indispensáveis, requeridas na produção do conhecimento, assim como no conhecer o conhecimento existente. Algumas dessas qualidades são, por exemplo, a ação, a reflexão crítica, a curiosidade, o questionamento exigente, a inquietação, a incerteza [...] quando separamos o produzir conhecimento do conhecer o conhecimento existente, as escolas se transformam facilmente em espaços para a venda de conhecimento, o que corresponde à ideologia capitalista. (FREIRE; SHOR, 2011, p.23-24)

Nessa perspectiva, temos a seguinte fala que justifica a relação conteudista para o professor, enquanto detentor do conhecimento válido socialmente e que precisa ser depositado sobre os alunos. “Então, Educação, eu acredito que seja a transmissão do conhecimento de uma pessoa para a outra passando [...] A passagem de informações.” (Fala significativa que emergiu em entrevista com o professor de ciências sobre qual seria o papel da educação). Krasilchick (2008) sustenta que, dentro do ensino de Ciências e Biologia, podemos identificar normalmente que, da 5ª à 8ª série do ensino fundamental, os temas que são ensinados não têm nenhuma preocupação ou compromisso com as relações interdisciplinares que dinamizam o conhecimento. Os métodos ou valores das ciências biológicas justamente pelo caráter informativo associado ao conhecimento específico docente são causados por uma tradicional e fragmentada formação disciplinar interiorizada na formação inicial dos professores. Assim, são cobrados “[...] conhecimentos factuais, muitas vezes irrelevantes e desconexos em relação às outras áreas da disciplina Ciências e as demais disciplinas do currículo" (KRASILCHIK, 2008, p. 13). Outro ponto relevante ao distanciamento da realidade discente dentro do contexto escolar é reconhecer a linguagem da crítica, apontada por Giroux (1997), que nos revela as intencionalidades ideológicas conservadoras e o currículo oculto por de traz das práticas escolares hegemônicas. Ao suscitar uma visão de natureza enquanto recurso consumível e distante da realidade dos sujeitos, o ensino de zoologia induz o desenvolvimento acrítico dos meios de produção e reprodução capitalistas, inerentes à racionalidade técnica, estando sua problematização ainda distante da grande maioria das salas de aula. Assim, as práticas educativas no ensino tradicionalista de animais apenas reproduzem mecanicamente um conhecimento que é externo a escola, ao professor e a realidade discente, se posicionando contrariamente ao movimento do ser mais (FREIRE, 2005). Sonega-se, nessa racionalidade tecnocrática, a possibilidade das práticas educativas de professores suscitarem a tomada da consciência crítica sobre as contradições opressoras que vivenciamos, e, consequentemente, a transformação dos sujeitos que conhecem o mundo (FREIRE 2005). É nesse sentido que compreendemos o porquê Giroux (1997), Freire (2005;

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2007; 2011; FREIRE; SHOR, 2011), Silva (2004), dentre outros autores progressistas em vários níveis e modalidades de ensino, criticam direta ou indiretamente o modelo educacional voltado exclusivamente para o desenvolvimento do “ter” ao invés do “ser”. Na medida em que esse desenvolvimento é opressor, domesticam-se as próximas gerações de acordo com a ideologia do mercado neoliberal. É nessa dominação que se funda a desumanização, prédirecionando os indivíduos a um destino social determinista, discursivamente instransponível, determinado pela opressão e sustentado pela desigualdade social. Assim, o ato de viver necrófilamente sobre o mundo (FREIRE, 2005), reduz nossa compreensão da vida e suas representações a meras ações mecânicas e pré-programadas, sendo a escola uma das instituições centrais desse processo de domesticação, cujas formas de resistência são entendidas com transgressão a ordem. Assim sendo, a partir de objetivos comprometidos com a formação atual do indivíduo crítico e autônomo, concordamos com Lopes; Ferreira; Stevaux (2007), ao sustentarem que, A prática no ensino de Biologia, alicerçada em pressupostos que consideram aspectos puramente acadêmicos, ou seja, distantes da realidade do aluno, resulta em um ensino pouco significativo na formação do indivíduo enquanto cidadão. (LOPES; FERREIRA; STEVAUX, 2007, p.272).

Para ilustrar tal padrão bancário, apontamos a seguir algumas falas significativas coletadas no questionário estruturado que refletem, a partir da concepção docente sobre sua prática didático-pedagógica em zoologia, o tradicionalismo bancário do ensino. “Aula expositiva, vídeos e prática no laboratório com observação dos seres vivos e projetos” (Fala significativa que emergiu em entrevista com o professor de ciências sobre como era realizado o ensino de zoologia) Neste trecho, fala comum entre os professores, evidencia-se a importância que as metodologias de ensino possuem para assegurar a inserção conceitual do conteúdo de zoologia. Entretanto, tais métodos não são uma resposta à problematização de uma contradição ou situação problema socialmente relevante à escola, mas sim relevantes ao currículo posto sobre a escola. Um currículo construído para a escola e não por ela. Podemos observar de forma mais clara no trecho a seguir: “Começo com o estudo das principais características dos animais sem coluna vertebral e os vertebrados, estudo das classes. Nos invertebrados, estudo dos filos e os exemplos mais comuns dos animais” (Fala significativa que emergiu em entrevista com o professor de ciências sobre como era realizado o ensino de zoologia) Durante o estudo, observamos nas quatro escolas que os professores costumam de fato se utilizar de vários materiais durante as aulas de zoologia, mas sempre com objetivos que se reduzem a transmissão da grande carga de conteúdos aos alunos. Assim, a alternância dos materiais é associada pelos professores à qualidade das aulas, entretanto, essa diversidade não se aplica aos objetivos do ensino da área. Assim, relega-se o esforço criativo a terceiros, como no caso do livro didático, que não está isento de intencionalidades externas à escola, e se tornando um instrumento de uma ideologia alienante altamente efetiva (VASCONCELOS; SOUTO, 2003).

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O professor, ao não questionar sua condição de transmissor, aceita um conteúdo bancário que se restringe a apresentar tradicionalmente os grupos animais do menos complexo ao mais complexo, de forma acrítica, isolada e estanque, dando ênfase no conjunto de características sanitaristas e utilitaristas que constituem uma determinada espécie animal. Assim, os professores observados, “[...] acabam se acomodando a um tipo de programa por ser mais familiar, embora não seja por eles mesmos considerado o melhor.” (KRASILCHIK, 2008, p.45-46). Considerações Finais Devido à grande biodiversidade, o ensino de zoologia é trabalhado de forma fragmentada e desatualizada do conhecimento científico atual, completamente descontextualizado da realidade discente e docente. Podemos perceber que vem se desenvolvendo no ensino da área uma concepção de educação dogmática e autoritária sobre os sujeitos da práxis educacional, tanto sobre os professores, expressa no tradicionalismo curricular, quanto sobre os alunos. Desta forma, podemos concluir que o ensino tradicional da zoologia está comprometido historicamente com a educação bancária, ao não propor um diálogo reflexivo e problematizador junto aos educandos no que se refere às intencionalidades, ideologias e seus efeitos concretos na vida cotidiana das pessoas. Nessa ótica, questionamos como é possível formar sujeitos críticos sem ser efetivamente um professor crítico? É por isso que se faz necessário maiores estudos e ações que promovam um repensar crítico transformador sobre os movimentos de formação de professores, para averiguar quais são os critérios, objetivos e práticas a eles associados, refletindo coletivamente junto aos formadores, licenciandos e professores atuantes, sobre as formas de lutar pela transformação de sua condição desumana já naturalizada socialmente. Referências AMORIM, D. S; MONTAGNINI, D. L; CORREA. R. J. Diversidade biológica e evolução: uma nova concepção para o ensino de Zoologia. In: BARBIERI, M. R.; SICCA. N. A. L; CARVALHO. C. P. A Construção do conhecimento do professor, uma experiência de parceria entre professores do ensino fundamental e médio da rede publica e a universidade. Ribeirão Preto, Holos, 2001. CAPONI, S. A emergência da medicina tropical no Brasil e na Argentina. ln: MARTINS, A. C. K. P; LORENZANO, p. Ciências da Vida: Estudos filosóficos e Históricos. Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, Campinas, 2006. FLORIANÓPOLIS, Prefeitura Municipal de. Secretaria Municipal de Educação. Departamento de Educação Fundamental. Proposta Curricular/Prefeitura Municipal de Florianópolis. Florianópolis, 2008. FREIRE, Paulo R. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2005. 65 p. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários a prática Educativa. Paz e Terra. São Paulo. 2007. FREIRE. P. Extensão ou Comunicação?. Paz e Terra. 15. Ed. São Paulo. 2011.

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