Por um serviço público de conteúdos Autor(es):
Torres, Eduardo Cintra
Publicado por:
Imprensa da Universidade de Coimbra
URL persistente:
URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39186
DOI:
DOI:http//dx.doi.org/10.14195/2183-6019_2_3
Accessed :
21-Sep-2016 09:10:13
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revista de comunicação, jornalismo e espaço público
2
mediapolis
Periodicidade Semestral
tema os desafios dos media de serviço público
Imprensa da Universidade de Coimbra
© Pedro Medeiros
Coimbra University Press
1
© Pedro Medeiros, #3 - «De Niro as Jake LaMotta»
33
Eduardo Cintra Torres1 Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa.
[email protected]
Por um serviço público de conteúdos For a content public service http://dx.doi.org/10.14195/2183-6019_2_3
Resumo
Abstract
Um debate sobre o “serviço público de
A debate about the “media public ser-
media” deve centrar-se no passado recente
vice” should concentrate in the recent
e o presente dos media públicos e não no
past and the present of the public, State
actual modelo institucional, tomado como
owned media and not in its present insti-
eterno. Nesta intervenção, considero que
tutional model, taken for granted. In my
a televisão se tornou, em primeiro lugar,
communication, I consider that television
para os espectadores mas também para ou-
became, for viewers and also for other
tros intervenientes da sua existência, con-
players, primarily the contents, its own
teúdos próprios criados numa linguagem
contents created in its own language,
própria, com uma crescente independência
with a growing independence vis-a-vis
face ao carácter institucional a montante e
its upstream institutional character and
um crescente poder do espectador empo-
a growing power of the empowered viewer
Em consequência,
of the 21st century. Consequently, the
o debate deve partir dos conteúdos: que
debate should begin with contents: what
conteúdos deve um operador de serviço
contents should a State public service
público estatal disponibilizar? Proponho
institution make available? I propose
que, em vez de “serviço público de me-
that, instead of a “media public servi-
dia”, se debata um Serviço Público de
ce”, we should debate a Public Service
Conteúdos.
of Contents.
Palavras-chave: televisão, serviço pú-
Keywords: television, public service,
blico, conteúdos
contents
© Pedro Medeiros, #1 - Coimbra, FEUC [Autorretrato]
derado do século
xxi .
1 O autor rejeita as alterações à ortografia constantes no chamado “Acordo Ortográfico”
35
1.
iniciativas se realizaram? A resposta
o modo de vida individual e social e
Por facilidade, e por ser a minha
é: o futuro da RTP e do serviço público
com as gratificações dos indivíduos
área de investigação, concentrar-me-ei
nunca, ou quase nunca, foi o previsto.
no consumo de media. Em Portugal,
na televisão e não no conjunto dos media
Partilho o que escreve Manuel
ainda aumenta o consumo dos canais
de serviço público, muito embora pense
Castells num dos seus mais recen-
de cabo, mas nos EUA — que são, em
que grande parte do que afirmo se aplica
tes livros sobre comunicação: “I
muitos sentidos, o futuro da Europa —
também à rádio. A agência noticiosa é
should make the reader aware of the
o cabo também tem perdido assinantes.
um caso diferente, por não ter concor-
fact that I never predict anything
A geração dos mais novos, incluindo em
rência nacional no serviço prestado e
because I am distrustful of the me-
Portugal, já não tem a televisão como
por estar limitada à produção noticiosa,
thodologies generally used to predict
media de primeira escolha.
duas características essenciais que não
the future by extrapolating the pre-
A audiência que mais aumenta
acontecem com a televisão e a rádio.
sent [...]. Indeed, my preference is
é a de plataformas disponíveis pela
to play it safe and predict the past”
Internet: Google, YouTube, Facebook,
(Castells, 2013:7).
Hulu, Netflix, Amazon. Há conteúdos
Desde há alguns anos começou a inquietar-me, em termos conceptuais, a insistência de debates sobre o futuro
divulgados pelo YouTube que obtêm em 2.
poucas horas mais visualizações do que
televisão e não sobre o passado recente
Revisitemos, pois, o passado re-
aquelas que a maioria dos programas
e o sobre o presente. É inquietante
cente e o presente, através de alguns
transmitidos por canais de televisão
porque o futuro da televisão é um lugar
elementos e dados rápidos e a toque
alguma vez terão. Em 2013, a Amazon
muito mais distante e desconhecido do
de caixa .
produziu pela primeira vez uma série de
da televisão. Digo sobre o futuro da
que o presente e o passado.
1
A audiência da TV generalista
televisão para vender aos seus clientes
Julgo que a discussão contínua e
desce em todo os países desenvolvidos.
em todo mundo. O canal premium HBO
ciclicamente revisitada sobre o futuro
O modelo de televisão de fluxo já não
já não está só no segmento chamado
da televisão e da RTP é uma forma de
se coaduna, ou coaduna-se menos, com
“TV de qualidade”: a plataforma na In-
se evitar discutir o que interessa: o presente da televisão e da RTP. Pergunto-me se as inúmeras iniciativas sobre o futuro da RTP alguma vez contribuíram para melhorar o presente da RTP; ou pergunto-me mesmo o que foi o futuro da RTP quando essas
ternet Netflix produziu a série premiada 1 Uma bibliografia sobre a “morte” da televisão e o seu presente está disponível no meu artigo “Por uma Definição Contemporânea de Televisão”, Revista Ler, Lisboa, Dezembro de 2014, disponível em https://www.academia. edu/10844086/Por_uma_Definição_Contemporânea_de_Televisão_Looking_for_a_ Contemporary_Definition_of_Television
House of Cards. Os media não televisivos obtiveram dezenas de nomeações para os Emmy de televisão. Os media tradicionais de TV, as networks, só estiveram em maioria nas categorias de prémios de talk shows, reality shows e semelhantes.
Há duas fragmentações de audiên-
de conteúdos através do vídeo móvel,
e o Serviço Público2. Sem dúvida que
cia em acção: a fragmentação colec-
beneficiando de wifi gratuita em inúme-
subsiste uma importante, para não di-
tiva do consumo de cada media e a
ros locais, como cafés (Starbucks), uni-
zer essencial, dimensão institucional:
fragmentação individual do consumo
versidades e, nos EUA, em 57 cidades.
empresas, governos e parlamentos deci-
de cada media. Mesmo o consumo de
No que toca à televisão, o zapping é
dem, fazem ou interferem com a criação
notícias é crescentemente fragmenta-
em boa medida substituído pelo poder
de conteúdos, existem sistemas, plata-
do. Uma significativa percentagem de
do indivíduo em optar pelo conteúdo
formas e canais, etc.. Mas, apesar da
consumidores de media contacta com
que quer, qualquer que seja a sua ori-
crescente importância de novos agentes
notícias através de redes sociais e não
gem, e consumido em diferentes tipos
na actividade ou no negócio televisi-
através dos media tradicionais.
de equipamentos. Do zapping “horizon-
vo, como as grandes empresas globais
tal”, entre canais, passa-se ao zapping
(Google, Microsoft, Apple, Samsung,
sumo de produtos mediáticos em apa-
“vertical” entre conteúdos media, com
Sony, Netflix, Amazon, etc.), há uma
relhos móveis. Nos EUA, o consumo de
menor ou mesmo sem o constrangimen-
maior ou mesmo nova liberdade dos in-
“vídeo móvel” foi o único a crescer nos
to temporal da sua disponibilidade.
divíduos, de associações, de comunida-
Aumenta significativamente o con-
últimos cinco anos, e não foi pouco: pas-
Em consequência, diminui o con-
des e também de empresas na escolha
sou de 4% para 20%, cinco vezes mais.
tacto directo com canais. A primazia
de conteúdos, na interacção e também
O consumo através do “televisor da
do consumo transferiu-se para con-
na criação de conteúdos. Além disso, os
teúdos concretos.
desenvolvimentos técnicos libertaram
sala” já é comandado por aparelhos externos. Não se liga o “televisor da
Se a televisão se mantém o medium
os conteúdos, o acesso a conteúdos e
sala” para ver canais, mas para ver
com maior impacto e em crescimento
a criação de conteúdos de quase todos
conteúdos concretos, transmitidos ou
em várias partes do mundo, nos países
os constrangimentos anteriores.
não por esses canais.
mais desenvolvidos vai-se apagando
Nos EUA o cabo também desce
Todavia, ao contrário do que escre-
essa preferência.
veram tantos que gostam de prever o
porque ele se inscreve no modelo tra-
futuro, a televisão não morreu. O que
dicional de televisão. Ora, os consu-
3.
entrou em decadência foi a televisão
midores querem conteúdos concretos e
Perante tantos desenvolvimentos, e
generalista e o enquadramento institu-
não canais. Esse terá sido sempre o
a uma velocidade vertiginosa, no mun-
cional, não só da generalista, mas do que
modelo de recepção, mas actualmente
do da comunicação mediática, o que é
costumávamos chamar televisão. A ins-
a fragmentação e a tecnologia permi-
a televisão hoje? Como defini-la? Essa
titucionalidade também se fragmentou,
tem-no com uma liberdade nunca antes
foi uma questão, que me parece fulcral,
conhecida. Por isso, cresce o consumo
a que tentei responder em A Televisão
2 Lisboa, FFMS, 2011.
37
tornou-se mais difusa, e, assim, diminui
a sua origem institucional. A série que
sabemos que as pessoas não vêem ca-
o seu poder sobre as audiências.
a Amazon, em 2013, produziu e vendeu
nais, vêem conteúdos e, naturalmente,
A televisão já não é o que era, mas
directamente aos clientes individuais,
quando sabemos quais os conteúdos que
está viva e recomenda-se. Julgo que o
Alpha House, não passou por nenhuma
o actual operador de SPE, a RTP, está
conceito de televisão, a definição de te-
instituição tradicional de televisão, mas
a apresentar actualmente, hoje, a esta
levisão em que a maioria, incluindo es-
é uma série de televisão porque usa a
hora, logo à tarde, logo à noite. São estes
tudiosos, baseia as suas reflexões, já não
linguagem e um género de televisão num
os conteúdos que queremos? Vale a pena
serve. E, partindo-se de um conceito er-
conteúdo que associamos à televisão.
pagarmos por estes conteúdos?
rado do que é a televisão hoje, corre-se o
Deste modo, basear a televisão do fu-
A questão do preço a pagar não é de
risco de propor futuros errados. Para um
turo em agentes institucionais e em canais
menos importância, pois todo o dinheiro
número crescente de espectadores, cria-
é prever erradamente. Será melhor prever
público deve ser bem aplicado, criterio-
dores, produtores e difusores, a televisão
o passado para acertar no presente.
samente. Não vou discutir orçamentos.
já não são canais e sistemas. Por isso,
Qualquer passo em direcção ao futu-
Mas chamo a atenção para a despro-
na minha definição, hoje a televisão são
ro deve, a meu ver, partir dos conteúdos
porção entre o que o actual operador de
conteúdos feitos numa linguagem própria
para o resto e partir dos conteúdos para o
SPE gasta em conteúdos e o que gasta
que o medium desenvolve ao longo de
enquadramento institucional. Que con-
em estrutura, etc. Julgo que nos últimos
décadas, mantendo-se uma dimensão
teúdos deve um serviço público estatal
anos, o operador de SPE, a RTP, gasta
institucional de controle e produção,
(SPE) proporcionar?3 Essa é, para mim, a
em conteúdos, apenas, entre 1/4 e 1/5 do
mas acrescentando-se o poder de esco-
única pergunta importante, e fulcral. Só
seu orçamento total. A meu ver, e dado
lha e, portanto, de decisão do indivíduo
depois de se saber que conteúdos deve
que dou total primazia aos conteúdos de
empoderado do século
A televisão
o SPE proporcionar se deve estabele-
interesse público, julgo que o operador
são conteúdos que reconhecemos como
cer como proporcioná-los. Para isso, é
de SPE deveria ser reformado de forma a
televisão, quer os contactemos num te-
preciso prever o passado, verificar como
inverter esta relação, passando a gastar
levisor, num SmartTV, num telemóvel,
estão as gerações do futuro a consumir
entre 3/4 e 4/5 em conteúdos e apenas
numa tablete, num computador, ou em
conteúdos. Não faz para mim qualquer
o restante em estrutura, etc.
qualquer outro ecrã. São conteúdos que
sentido avançar com mais canais quando
xxi.
regressa, qualquer que seja o orçamento
encontramos em canais, mas também em redes sociais, em sites de empresas, de indivíduos, de jornais, em blogues, o que se quiser. E o que define um conteúdo como televisão é a sua linguagem, não
Naturalmente, a questão essencial
3 Uso a expressão “um serviço público estatal”, pois indicá-lo, como habitualmente se pratica, apenas como “o serviço público” é um erro propositado para inculcar uma ideologia nos receptores.
disponível: que conteúdos deve o SPE proporcionar? Julgo que não é difícil um consenso alargado sobre ideias gerais, baseadas nos princípios consagrados do
que deve ser um SPE. Difícil é passar
serviço prestado pelo operador de SPE.
interesse público para o modo institucio-
das ideias gerais para o concreto.
Dois exemplos: o programa Príncipes do
nal adequado, mas do modo institucio-
Parece-me correcto usar a concep-
Nada foi classificado pela RTP como
nal para o que a instituição deve fazer.
ção que parte pela negativa: um SPE
documentário, o que ofende qualquer
Para mim, o essencial do serviço públi-
deve proporcionar conteúdos de inte-
estudioso ou apreciador do género no
co de media são conteúdos de interesse
resse público alternativos aos que os
cinema ou na televisão; e telenovelas
público, que melhorem a qualidade da
privados podem ou querem oferecer; ou:
apresentadas na RTP1 são classificadas
cidadania. O essencial é proporcionar
um SPE deve proporcionar conteúdos
como séries, para desvirtuar as esta-
conteúdos de interesse público aos ci-
que os privados não podem ou não que-
tísticas. Deste modo, a verificação do
dadãos, onde quer que estejam e como
rem proporcionar. Naturalmente, devem
interesse público não pode ser realizada
quiserem consumi-los. O que precisamos
ser conteúdos de interesse público. Se
por análise genérica ou análise de con-
é de pensar o serviço público, não como
não tiverem interesse público, porquê
teúdo, mas caso a caso, com um mínimo
“serviço público de media”, mas como
financiá-los com dinheiro público? E,
de análise textual. Se for avante a pro-
Serviço Público de Conteúdos, conteúdos
desse modo, os conteúdos proporcio-
posta de novo Contrato de Concessão do
concretos, que é aquilo que os cidadãos
nados no passado e no presente pelo
Estado com o actual SPE, espero que o
de hoje e os cidadãos de amanhã vêem
actual operador de SPE, não no futuro,
escrutínio não só seja mais acutilante
nos ecrãs. Para isso, precisamos de pre-
devem ser escrutinados segundo o seu
como verdadeiro, sendo inescapável que
ver o passado recente, prever o presente
interesse público. E esse escrutínio não
se concretize através da análise textual
e não embarcar no canto da sereia sobre
pode limitar-se a conceitos gerais, como
de cada programa ou segmento.
o “futuro”, que serve em primeiro lugar para ocultar o que se fez e o que se vem
são os de género. É muito fácil dizer que o operador de SPE faz serviço público
4.
fazendo.
usando a classificação em géneros, mas,
O actual governo já teve diferentes
se isso bastasse, também os generalistas
estratégias em relação ao SPE. Aconte-
privados o fariam: avaliando os géne-
ceu o mesmo com governos anteriores. As
ros exibidos pela RTP1, SIC e TVI em
estratégias esbarram sempre na questão
Outubro de 2013, verifiquei que não há
institucional: a RTP. A meu ver, a questão
Castells, M. (2013). Digital networks and
qualquer diferença significativa entre os
institucional RTP sobrepõe-se a qualquer
the Culture of the autonomy. In Ma
três canais, pelo contrário. Além dis-
debate razoável, para não dizer racional,
Castells, Communication Power
so, a classificação de géneros pode ser
sobre o tema do serviço público.
Prediction the recent past. Oxford
forçada para agradar à classe política,
Desta forma, os debates ficam en-
a quem está cometida o escrutínio do
viesados à partida, pois não se parte do
Bibliografia
and New York: Oxfornd University Press.
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