(2016) A mulher e o custo das expectativas estéticas sociais

May 26, 2017 | Autor: Douglas Pinheiro | Categoria: Feminist Theory, Law and Economics, Feminismo, Género, Análisis Económico del Derecho
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DIREITOS HUMANOS

gênero e homofobia Organizadores

Vilma de Fátima Machado Rosana Maria Ribeiro Borges Leonilson Rocha dos Santos

GOIÂNIA, GO

2016

REITORIA Orlando Afonso Valle do Amaral PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO José Alexandre F. Diniz Filho Coordenação GERAL do curso Vilma de Fátima Machado VICE-COORDENAÇÃO DO CURSO Ricardo Barbosa de Lima APOIO PEDAGÓGICO Leonilson Rocha dos Santos REALIZAÇÃO Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Direitos Humanos/NDH Organização Vilma de Fátima Machado Rosana Maria Ribeiro Borges Leonilson Rocha dos Santos CONSELHO EDITORIAL Arthur Trindade Costa (UnB) Alex Ratts (UFG) Arnaldo Bastos Neto (UFG) Eduardo Bittar (USP) Enrique Leff (UNAM - México) José Querino Neto (UFG) Lúcia de F. Guerra Ferreira (UFPB) Luiz Mello (UFG) Magno Medeiros (UFG) Manoel de Souza e Silva (UNILAB, CE, Brasil) María Luisa Eschenhagen (Externado - Colômbia) Miriam P. Grossi (UFSC)

Paulo Carbonari (IFIBE e MNDH) Regina S. de Sousa (PUC-GO) Vilma de Fátima Machado (NDH/UFG) Direção do Centro Integrado de Aprendizagem em Rede • Ciar Leonardo Barra Santana de Souza Vice Direção do Centro Integrado de Aprendizagem em Rede • Ciar Marília de Goyaz Coordenação de PRODUÇãO E de Comunicação Impressa Ana Bandeira Design Gráfico • Projeto Editorial Equipe de Publicação CIAR Criação e implementação do projeto gráfico Leandro Abreu Editoração Laryssa Tavares Ilustração e imagem Adriano Lopes de Queiroz Jorge Mateus Ferreira Borges Leandro Abreu Revisão linguística Ana Paula Ribeiro Andelaide Lima Maluhy Alves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) GPT/BC/UFG

D597

Direitos humanos: gênero e homofobia / organizadores, Vilma de Fátima Machado, Rosana Maria Ribeiro Borges, Leonilson Rocha dos Santos ; autores, Flávio Alves Barbosa ... [et al.]. - Goiânia : Gráfica da UFG, 2016. 232 p. : il. 21 cm. Projeto Editorial: Centro Integrado de Aprendizagem em Rede / CIAR / UFG ISBN: 978-85-495-0012-0 1. Direitos Humanos 2. Relações de gênero 3. Homofobia I. Machado, Vilma de Fátima Machado. II.Borges, Rosana Maria Ribeiro. III. Santos, Leonilson Rocha dos. IV. Barbosa, Flávio Alves. Título. CDU: 342.57

SUMÁRIO Apresentação Introdução

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Sentido instituinte da docência universitária na formação de professores Flávio Alves Barbosa

Parte 1 A mulher e o custo das expectativas

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estéticas sociais: uma crítica econômica às restrições do direito de vir a público sem constrangimento Douglas Antônio Rocha Pinheiro

Parte 2 Limites e possibilidades para o

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enfrentamento da violência homofóbica e de gênero no contexto escolar Aline da Silva Nicolino Angelita Pereira de Lima

Formação de professores/as e

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diversidade sexual nas licenciaturas da Universidade Federal de Goiás Alciane Barbosa Macedo Pereira

A discussão da homofobia na formação de professores do curso de licenciatura em história da ueg-Morrinhos-go Hamilton Afonso de Oliveira

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Representação social dos

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professores acerca da homossexualidade: um desafio à construção de um ambiente escolar democrático Karoline Rodrigues de Melo

O imperativo da heteronormatividade:

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a diversidade sexual em uma escola estadual de Ipameri /GO José Marcos Francisco França

Homofobia e educação – um desafio

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contemporâneo: um estudo de caso a partir do 2º período de uma Escola Estadual de Rio Verde Claudia Madeira Bernardes

Uma observação sobre a homofobia

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contra docentes em escolas públicas rurais de Rio Verde - GO Danillo Macedo Gonçalves

Parte 3 Lista dos Resumos dos TCCs/ EDC

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A mulher e o custo das expectativas estéticas sociais: uma crítica econômica às restrições do direito de vir a público sem constrangimento

Douglas Antônio Rocha Pinheiro

Resumo O presente texto pretende questionar, por meio de um referencial econômico, o padrão estético socialmente naturalizado e exigido das mulheres. Para tanto, invoca o direito de vir a público sem sofrer constrangimentos proposto inicialmente por Adam Smith e o conceito de capacidade desenvolvido por Amartya Sen. Objetiva, assim, fortalecer a defesa de uma economia da igualdade de gênero e fomentar o empoderamento da mulher. Palavras-chave: liberdade do corpo; economia da equidade; igualdade de gênero. 35

1. Introdução No final de 2013, a francesa Alexandra Sophie produziu uma série fotográfica intitulada Winter, em que uma modelo não depilada era flagrada de roupas íntimas em poses sensuais. Em editorial, Sophie explicou que sua intenção era a de recordar uma realidade evidente, porém, esquecida: mulheres têm pelos, e isso “não é feio, nem sujo, nem incompatível com a feminilidade, mas sim um sinal de maturidade física”. No Brasil, na mesma época, o coletivo Além, composto por Nubia Abe e Mateus Lima, ganhou destaque com o projeto Pelos pelos, por meio do qual depoimentos e fotos de mulheres nuas que haviam optado por não se depilar eram divulgados. A reação ao trabalho de Sophie, segundo a própria fotógrafa, foi diversa: enquanto América do Norte, Europa e Austrália produziram manifestações encorajadoras, a maioria dos comentários provenientes da Ásia e da América do Sul foram de repugnância. A opinião do colunista da Revista Veja Rodrigo Constantino, publicada em 16/07/2014, além de confirmar tal estatística, é bastante representativa do senso comum nacional: [...] para as feministas, mulher de verdade é uma tremenda de uma mocreia mal-cuidada que tenta se parecer cada vez mais com um homem peludo? Tony Ramos é o novo ideal de aparência da mulher moderna? [...] Felizmente acredito que essa modinha ridícula não vai pegar. A maioria das mulheres deseja ser... uma mulher bonita, atraente. E, normalmente, os homens não curtem essa coisa de mulher peluda, que cada vez mais tenta se parecer com o próprio homem.

Infelizmente, porém, a falta de percepção de que o abstrato conceito de liberdade também alcança a materialidade dos corpos femininos não é observada apenas em relação aos pelos. O padrão estético socialmente partilhado exige das mulheres uma série de outros procedimentos antinaturais, como andar sobre sapatos de salto, pintar unhas, tingir cabelos e 36

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maquiar o rosto. O ataque mais óbvio a tal padronização questionaria o processo de condicionamento corporal pelo poder. Este capítulo, no entanto, pretende tratar a questão sob um viés econômico, munindo o discurso do empoderamento feminino de conceitos bastante correntes nos debates sobre desenvolvimento: o de capacidades e o de pobreza. Para tanto, o texto resgatará (i) o direito de vir a público sem sofrer constrangimentos, cuja primeira intuição já pode ser percebida na obra de Adam Smith, (ii) a perspectiva de que o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais desfrutadas pelas pessoas, conforme os estudos de Amartya Sen, e, ainda, (iii) os dados concretos levantados pelo Banco Mundial no começo desta década em sua pesquisa sobre a eficácia econômica da igualdade de gênero. Por fim, este trabalho supera o clássico entendimento econômico de que equidade e eficiência sejam grandezas mutuamente excludentes, segundo o qual políticas públicas de redistribuição de riqueza comprometem os índices de crescimento econômico (OKUN, 1975), e adere a uma compreensão mais recente de que tais vetores podem efetivamente ser complementares (BRUNO et al., 1996). Afinal, a percepção de que as exigências estéticas sociais colocam a mulher numa condição de maior pobreza pode contribuir para a proposição de uma nova dinâmica de equiparação econômica, com ganhos reais e efetivos para toda a coletividade.

2. De Smith a Sen Em 1776, ao esclarecer o conceito econômico de necessidade, Adam Smith indicou que considerava como tal não apenas toda e qualquer mercadoria indispensável à manutenção da vida, mas também aquela que, segundo o costume da época, fosse considerada inerente a toda pessoa de bem. Como exemplo, Smith mencionava a camisa de linho, um bem claramente dispensável para a sobrevivência. Porém, embora gregos e rogênero e homofobia

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manos tivessem vivido confortavelmente sem tal produto, em grande parte da Europa do século XVIII ela se converteu num item fundamental para que o trabalhador fosse considerado digno perante seus concidadãos. Aparecer em público sem tal peça significava sujeitar-se à vergonha, expor um grau de miserabilidade a que, presumivelmente, não se chegava sem uma conduta extremamente ruim. Na Inglaterra, em particular, os sapatos de couro gozavam de igual fama, o que demonstrava como os costumes locais podiam ampliar o parâmetro mínimo de dignidade (SMITH, 1776, p. 351-352). O argumento de Smith, quase duzentos anos depois, ainda permanece apto para inspirar reflexões sobre o conceito de pobreza e de dignidade social. No início da década de 1950, o descompasso entre a afirmação presunçosa do governo britânico de que teria erradicado a pobreza e a percepção social de que várias necessidades básicas ainda estavam longe de serem atendidas, levou uma série de estudiosos a se debruçar sobre a pertinência de uma noção absoluta da pobreza. Peter Townsend, por exemplo, questionando o critério oficial de elaboração da linha da pobreza, afirmava que, no início da década de 1960, pelo menos um em cada sete ingleses ainda era pobre. Para ele, não bastava utilizar um elenco rigoroso e fixo de necessidades cuja alteração levasse em conta apenas a variação dos preços; era necessário, também, considerar as novas obrigações e expectativas dos indivíduos, o que relativizaria a definição da pobreza (TOWNSEND, 1962, p. 218-219; 1979, p. 17-18; SEN, 1983, p. 154). A partir da provocação de Townsend, outras visões relativistas vieram à tona. Fiegehen, Lansley e Smith, por exemplo, ao defenderem as vantagens de um critério móvel de pobreza, alegavam que ele sempre indicaria, em dado contexto histórico, os membros relativamente mais prejudicados do grupo social, por auferirem renda abaixo da média. Miller e Roby, em outro sentido, entendiam que a questão da pobreza deveria estar adstrita ao debate sobre a desigualdade; nesta perspectiva, mais importante que estabelecer uma linha arbitrária 38

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distintiva de pobres e não pobres, seria mensurar comparativamente a diferença existente entre os vinte por cento mais pobres de uma dada sociedade em relação ao restante de seus membros (SEN, 1983, p. 156-157). Como reação a tal crescente defesa de um conceito relativo de pobreza, Amartya Sen acabou adotando uma dupla postura desconstrutiva e propositiva. Assim, embora ele partilhasse da crítica em relação ao parâmetro então politicamente construído de linha da pobreza, por estar sujeito aos interesses do poder, várias foram as divergências por ele apontadas quanto aos demais argumentos relativistas. Contrariamente a Townsend, para Sen, a defesa de um critério absoluto de carestia não significava necessariamente a crença numa inalterabilidade das necessidades da vida. Uma linha da pobreza sempre seria construída em função de algumas variáveis, o que não impediria que tais variáveis mudassem no decorrer dos anos (SEN, 1983, p. 155). Quanto às ideias de Fiegehen, Lansley e Smith, Sem apontou que elas significariam o fracasso de qualquer programa antipobreza, já que, de modo comparativo, sempre existiriam indivíduos em situação mais desfavorável que outros, o que não implicaria necessariamente carestia caso tal sociedade apresentasse um nível bastante alto de satisfação das necessidades de seus membros. Por fim, questionando a confiabilidade de aferição da proposta de Miller e Roby, Sen lembrava que a razão de desigualdade numa sociedade próspera pode ser a mesma quando, num dado momento futuro, essa mesma coletividade enfrentar um momento de crise econômica – embora, em termos absolutos, a situação seja claramente mais desfavorável neste segundo período (SEN, 1983, p. 156-157). Sen, no entanto, não se limitou a rebater os relativistas. Recuperando Adam Smith e o exemplo da camisa de linho, ele vai recordar que o direito de vir a público sem sofrer constrangimentos (“to go about without shame”), o que poderia ser traduzido como o padrão mínimo de condições de vida, somente seria alcançado pela obtenção de algumas mercadogênero e homofobia

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rias, cujo rol variaria de acordo com os costumes e as regras culturais de dada sociedade. Haveria, assim, uma natureza social na relação estabelecida entre mercadoria e capacidade, entre o meio material e o padrão de vida por ele garantido, o que, segundo Sen, demonstraria que Smith não se preocupava apenas em incrementar a maximização da riqueza, mas também em evitar sua concentração (SEN, 1985, p. 23). Vê-se, assim, em tal debate, a introdução de uma categoria nova: a de capacidade. Para explicá-la, e distingui-la dos conceitos de mercadoria, característica e utilidade, Sen utilizou uma imagem ao mesmo tempo lúdica e didática: o ato de pedalar. Enquanto a bicicleta corresponderia à mercadoria, o transporte seria uma de suas principais características. Aquele que a possui, passaria a dispor de uma capacidade, qual seja a de se mover de um lugar a outro, o que lhe causaria uma reação mental de utilidade, de satisfação por seu uso. De tais categorias, a que melhor corresponderia à noção de padrão de vida seria a de capacidade, na medida em que ela trataria da habilidade de fazer várias coisas pelo uso dos bens ou de suas características (SEN, 1983, p. 160). Ao aplicar tal categoria ao debate da carestia travado com Townsend e os demais relativistas, Sen vai complexificá-lo por afirmar que a pobreza é uma noção absoluta no campo das capacidades, mas que geralmente apresenta uma forma relativa no campo das mercadorias ou das características. Voltando ao exemplo de Smith, enquanto o direito de vir a público sem sofrer constrangimento seria uma capacidade, a camisa de linho e os sapatos de couro seriam as mercadorias necessárias para isso. Assim, ao mesmo tempo em que no campo da capacidade a superação da pobreza se apresenta como uma noção absoluta, vinculada ao padrão mínimo de vida esperado, no campo das mercadorias a verificação de tal objetivo só é possível pela aquisição de bens relativamente considerados de acordo com o contexto social historicamente dado no tempo e no espaço. Desse modo, o direito de vir a público sem sofrer constrangimentos ou, em outras palavras, a capacidade de com40

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por a esfera pública e participar de suas atividades pode exigir, em comunidades menos desenvolvidas, um rol restrito de bens, provavelmente vinculados às necessidades básicas de alimentação, vestuário, moradia e saúde. Por outro lado, em comunidades mais desenvolvidas, em que tais necessidades já foram adequadamente atendidas, as demandas exigidas para a participação social podem corresponder a um elenco mais numeroso, incluindo, por exemplo, o acesso às novas mídias. Em ambas as comunidades, porém, a privação relativa de um bem – um calçado na primeira, um tablet na segunda – acabaria conduzindo à privação absoluta de uma capacidade (SEN, 1983, p. 161-162). Obviamente, tal visão estabelece um parâmetro comparativo revelador de distintos padrões de vida entre países com maior ou menor desenvolvimento. Não sem motivo, Amartya Sen vai defender que o desenvolvimento, ao invés de ser pensado na perspectiva de crescimento do Produto Interno Bruto, de aumento individual de rendas ou de incremento da industrialização, precisa ser fundamentalmente percebido como um processo de expansão das capacidades humanas e das liberdades efetivamente desfrutadas pelas pessoas (SEN, 2000, p. 17-18, 25). Todavia, para além de uma análise entre Estados, tal arcabouço teórico permite desvelar a lógica de exclusão interna ao próprio Estado. Sobre isso, e especialmente sobre a exclusão sofrida pelas mulheres, trata o próximo item.

3. Da exclusão ao empoderamento Se a capacidade de participação na esfera pública, como grandeza absoluta, requer uma série de mercadorias, grandezas relativas e variáveis segundo usos, costumes e tradições de cada sociedade, uma primeira condição da igualdade é que todos possam ter acesso a tais bens. Na perspectiva específica dessa pesquisa, é preciso que homens e mulheres tenham igual direito de acesso a mercadorias, segundo a exigência social, o gênero e homofobia

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que significa uma superação da diferença como desigualdade e um avanço no sentido da igualdade como identidade. Embora já tenham sido verificadas várias conquistas nesta dimensão da igualdade, com o aumento da expectativa de vida para mulheres, chegando a 71 anos globalmente em 2007, com a busca da paridade de gênero no número de matrículas no ensino fundamental, alcançada por dois terços dos países, com a maior participação das mulheres no mercado de trabalho, significando mais de 40% da força de trabalho global em 2008, ainda há muito a avançar (WORLD BANK, 2011, p. 8-10). Apenas a título de exemplo, o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho não foi acompanhado por uma equalização das oportunidades de emprego e das remunerações. Em quase todos os países, é maior a probabilidade de que as mulheres desempenhem atividades consideradas de baixa produtividade, obtenham um emprego familiar assalariado ou um trabalho no setor informal, gerenciem empresas menores ou de setores menos produtivos, além de auferirem renda inferior aos homens quer como assalariadas, quer como empreendedoras – neste caso, pela dificuldade de acesso a insumos e crédito (WORLD BANK, 2011, p. 16-18). De qualquer modo, a primeira condição da igualdade entre mulheres e homens, mesmo que efetivamente consolidada, não seria suficiente para garantir capacidade isonômica entre ambos, sendo, pois, necessário incorporar uma segunda condição, na qual a igualdade passasse a ser percebida não só como identidade, mas também como diferença (ROSENFELD, 2003, p. 47-79). A falta de sensibilidade às particularidades das mulheres, decorrentes quer de fatores biológicos quer de convenções sociais, poderia fazer com que, mesmo tendo acesso aos mesmos produtos disponibilizados aos homens, elas tivessem suas habilidades de integração à esfera pública e de participação claramente reduzidas em relação a eles. Nessa perspectiva, por exemplo, sem acesso a bens específicos, como o direito de afastamento laboral, a mulher teria que abdicar da maternidade e dos cuidados com o recém-nasci42

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do para manter chances de empregabilidade equivalentes às masculinas (SEN, 1990, p. 116). Por isso, a noção de capacidade deve levar em conta uma certa variabilidade de parâmetro na relação entre os bens disponibilizados e as oportunidades que eles garantem. Do contrário, ao invés de resguardar aos indivíduos o direito de vir a público sem constrangimentos, tal categoria reforçaria os laços de exclusão gerados pelos mais diversos motivos, tais como heterogeneidade física e/ou cognitiva entre as pessoas, desigualdades decorrentes de condições ambientais e de padrões culturais (SEN, 2005, p. 154). Diante disso, a manifestação das mulheres contrárias à depilação parece estabelecer uma terceira condição de igualdade, que decorre de uma crítica orientada não mais para a disponibilização dos bens, mas sim para a visão cultural que elege quais dentre tais bens existentes são considerados necessários à digna exibição em público. Tal noção de igualdade como multiculturalidade parece não admitir a naturalização dos usos, costumes e tradições, nem a exclusão de outras visões de mundo. Segundo essa nova perspectiva, se o costume de determinada comunidade cria para a mulher custos extras para vir a público sem constrangimento, tais como os vinculados a procedimentos de depilação, maquiagem ou tingimentos, a capacidade plena não decorrerá de um acesso facilitado a tais bens, mas da possibilidade de se questionar o próprio padrão cultural que exclui um outro habitus possível. Tal problematização acaba revelando como tais expectativas estéticas socialmente cristalizadas em relação à mulher envolvem três tipos de custos. Primeiramente, o custo contábil, ou seja, o valor do orçamento feminino efetivamente comprometido com o atendimento de tais exigências, tanto de modo direto, como, por exemplo, o pagamento de serviços de depilação ou a compra de sapatos de salto, quanto de modo indireto, como, consequentemente, os cremes hidratantes para a pele irritada pela extração de pelos e o tratamento médico dos danos causados em articulações, tendões e coluna pelo uso frequente de tais sapatos. gênero e homofobia

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O segundo custo é o de oportunidade, que corresponde ao seu valor em melhor uso alternativo. As mulheres, ao arcarem com tais gastos estéticos, acabam abrindo mão de outros usos possíveis de tal capital, o que inclui a aquisição de bens outros de maior utilidade pessoal, dentre os quais os capazes de possibilitar uma participação mais qualificada na esfera pública. Por fim, há o custo social, grandeza que considera os efeitos laterais das decisões econômicas tomadas pelos indivíduos. Já se sabe que o maior controle feminino sobre a renda da família gera uma externalidade positiva, na medida em que ele promove um maior investimento no capital humano das crianças. “Evidências de uma série de países (tais como Bangladesh, Brasil, Costa do Marfim, México, África do Sul e Reino Unido) mostram que aumentar a parcela da renda familiar controlada por mulheres, (...) muda os gastos de uma forma que beneficia as crianças” (WORLD BANK, 2011, p. 5). No Brasil, por exemplo, tal renda feminina, auferida por ganhos próprios ou por transferência de renda, gerou um impacto positivo na altura das filhas. Na China, aumentou-se a sobrevida de meninas em 1%. Na Índia, assim como também na China, elevou-se o número de anos de escolarização de crianças de ambos os gêneros. Lendo os dados a contrapelo, vê-se que o comprometimento dos ganhos da mulher com gastos estéticos exigidos socialmente para sua permanência na esfera pública acaba diminuindo a possibilidade de incremento das condições de desenvolvimento de seus filhos, o que impacta a coletividade como um todo. Deve-se, porém, lembrar que a reivindicação das mulheres é pela liberdade de escolha. A insurgência atual é contra a obrigatoriedade de sujeição a certos procedimentos estéticos, o que retiraria da mulher o poder de disposição sobre o próprio corpo. Segundo Sen, quando alguém é obrigado a fazer algo que não faria caso pudesse optar, há violação da liberdade na sua dimensão de oportunidade substantiva; porém, mesmo quando alguém é obrigado a fazer algo que teria igualmente feito caso não fosse coagido, ainda assim há violação de liberdade – só 44

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que em sua dimensão processual (SEN, 2005, p. 153). Desse modo, se o costume social exige um parâmetro específico para a mulher vir a público, há um ataque à sua liberdade, mesmo que essa seja coincidentemente sua vontade. Por isso, numa perspectiva de desenvolvimento como expansão das liberdades, é preciso garantir às mulheres a tripla possibilidade de superação da exclusão: pela igualdade de condições de acesso a bens disponibilizados aos homens, pelo direito a bens específicos que, ao mesmo tempo, resguardem suas diferenças naturais e garantam a plenitude de sua capacidade geral e, por fim, pelo reconhecimento da pluralidade de visões de mundo, rompendo o padrão único de legitimação dos bens relativamente exigidos como requisitos à participação na esfera pública sem constrangimentos, a fim de que nenhuma camisa de linho se converta em camisa de força.

4. Considerações finais Espelhando-se nas reflexões de Amartya Sen, Diego Reyles procurou estabelecer um critério internacional de aferição de aspectos específicos de vergonha e humilhação que fossem considerados relevantes em relação ao direito de vir a público sem sofrer constrangimentos. Para tanto, utilizou como ponto de partida algumas das conclusões obtidas por diversas organizações, tais como o Centro Internacional de Pesquisa sobre a Mulher (ICRW), em estudos sobre a exclusão sofrida por portadores de HIV/AIDS. Segundo tais pesquisas, o estigma social costuma se materializar em, pelo menos, quatro dimensões: na recusa de contato com o estigmatizado, na valoração negativa de sua conduta, na discriminação propriamente dita e na exposição pública de sua pessoa (REYLES, 2007, p. 5-6). A partir desses e de outros indicadores, Reyles propôs os seus próprios. Em relação à vergonha, ele sugeriu a análise de dois aspectos: o retraimento associado à pobreza, em razão dela ser indevidamente vinculada à preguiça, à incompetência gênero e homofobia

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ou à criminalidade, e a predisposição de se sentir envergonhado diante da ocorrência de eventos negativos, tendência que normalmente inclina tal indivíduo à amargura, à raiva ou à hostilidade (REYLES, 2007, p. 8-10). Em relação à humilhação, Reyles diferenciou a experiência externa, que leva em conta o aspecto relacional, da interna, que se baseia em processos de autoavaliação. A experiência externa de humilhação estaria relacionada à percepção por parte do estigmatizado de ter recebido das demais pessoas um tratamento ou desrespeitoso, ou parcial ou preconceituoso – e se isso, de algum modo, prejudicou seu acesso a empregos, a serviços públicos ou à educação. Por fim, a experiência interna de humilhação consideraria dois aspectos: o impacto do acúmulo de humilhações relativas a situações pretéritas e o medo de novamente ser humilhado (REYLES, 2007, p. 11-15). Não é objetivo deste trabalho fazer ilações sobre os traumas psicológicos sofridos por mulheres em razão da sujeição às expectativas estéticas sociais. Porém, os indicadores elencados por Reyles – ao revelarem a complexidade do direito de vir a público sem sofrer constrangimento e ao estabelecerem chaves de verificação do estigma que constrange – acabam demonstrando como na visão de mundo predominantemente masculina, ainda muito presente no mundo e no Brasil, as mulheres que divergem do costume tradicionalmente cristalizado têm sua capacidade de inserção na esfera pública dificultada ou, até mesmo, comprometida. Não sem motivo, na busca da igualdade como multiculturalidade, muitas mulheres têm exacerbado ao máximo o estigma com o intuito de desconstruí-lo: ao exibirem nas redes sociais fotos de seus corpos com pelos, como tem feito o Hairy Legs Club, ao denunciarem o preconceito naturalizado e ao questionarem a censura social a uma opção meramente estética, elas buscam conscientemente garantir a liberdade de escolha e, talvez sem clareza de intenção, acabar com uma exigência social fomentadora de desigualdade quanto às condições de competição econômica entre homens e mulheres. 46

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No mesmo dia 16/07/2014, horas após a primeira matéria ter gerado as mais distintas reações, o colunista da Revista Veja Rodrigo Constantino voltou a postar um outro artigo, desta vez referindo-se às mulheres contrárias à depilação como “feminazis”. Um de seus leitores, no intuito de ratificar a opinião do articulista, afirmou duvidar se tais mulheres teriam coragem de comparecer em “uma entrevista de emprego sem maquiagem, depilação ou perfume”, já que “por mais competentes que fossem em suas áreas de atuação” dificilmente confiariam “nesses ideais absurdos na hora de disputar uma vaga no mercado de trabalho”. Porém, é curioso perceber como que, no impulso de criticar tais mulheres, o comentarista parece não perceber como as legitima em sua luta – afinal, comparecer por vontade própria em uma entrevista de emprego com pelos e sem pintura não é apenas uma questão de coragem: é uma questão de economia, de justiça e de direito.

Sobre o autor Douglas Antônio Rocha Pinheiro é professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (UFG). Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição (UnB). Coordenador do XK6 – Círculo de Estudos sobre Direito e Economia (UFG). E-mail: [email protected].

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