(2016) (no prelo) ComingOut - E se o Museu saísse à rua? A exposição-como-um-mundo dentro do mundo-como-uma-exposição in CHRISTOFOLETTI. Rodrigo. (Org) Bens culturais e Relações Internacionais: o patrimônio como espelho do Soft Power

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SEMEDO, Alice e PIZARRO, Manuel Morais Sarmento (no prelo) ComingOut - E se o Museu saísse à rua? A exposição-como-um-mundo dentro do mundo-como-umaexposição in CHRISTOFOLETTI. Rodrigo. (Org) Bens culturais e Relações Internacionais: o patrimônio como espelho do Soft Power. Editora Leopoldianum. Santos. DRAFT

Alice Semedo

Prof. Auxiliar - Departamento de Ciências e Técnicas do Património Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected]

Manuel Morais Sarmento Pizarro

Doutorando: Doutoramento em Museologia Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected]

Este capítulo explora o papel dos museus na sociedade empregando a noção

de soft power como foco central da discussão e utilizando uma abordagem

crítica / cultural que apoie a investigação das relações estabelecidas entre museus e comunidade. A primeira parte do texto centra-se numa discussão

alargada sobre este conceito, analisando a sua relação com museus e as suas potencialidades enquanto abordagem metodológica. Num segundo momento,

apresenta-se o estudo de caso do projeto desenvolvido em 2015 pelo Museu Nacional de Arte Antiga, ComingOut como exemplo de estratégias

museológicas recentes de visibilidade e impacto social. Propõe-se uma reflexão crítica sobre esta experiência, as suas motivações e possíveis impactos recorrendo, nomeadamente, à análise documental e entrevista. Palavras-chave: museu, soft power, sociedade, comunidades, poder

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SEMEDO, Alice e PIZARRO, Manuel Morais Sarmento (no prelo) ComingOut - E se o Museu saísse à rua? A exposição-como-um-mundo dentro do mundo-como-umaexposição in CHRISTOFOLETTI. Rodrigo. (Org) Bens culturais e Relações Internacionais: o patrimônio como espelho do Soft Power. Editora Leopoldianum. Santos. Alice Semedo

Prof. Auxiliar - Departamento de Ciências e Técnicas do Património Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected] Manuel Morais Sarmento Pizarro

Doutorando: Doutoramento em Museologia Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected]

Is a box filled with works of art, then, a museum? Is it a museum if it doesn’t have walls? Can one make a museum that is not?

Elena Filipovic (2009) A Museum That is Not, e-flux journal.

Introdução No mundo globalizado e pleno de conflitos dos nossos dias, a necessidade de

compreensão cultural e de relações construtivas entre países e comunidades –

internacionalmente, mas também localmente – é mais importante do que nunca. Acreditase que os museus e as instituições culturais desempenham um papel crucial como agentes

de mudança social (ver, por exemplo, CASEY, 2001) e que incorporam um elemento político e de poder considerável (SYLVESTER, 2009, p. 3).

Este posicionamento levanta uma série de questões: será que podemos apelidar os

museus de "poder brando" quando são utilizados para alcançar esses objetivos? Que motivos estão subjacentes a essas estratégias de soft power? Como se relaciona este

conceito com outras conceptualizações, nomeadamente com o conceito de

governamentalidade líquida? O poder brando, tal como descrito por Nye, baseia-se na sedução e negociação, na compreensão e cooperação, num certo estilo de liderança já

apelidado de feminino (ver NYE, 2006). Que formas de sedução poderá assumir esse poder?

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Uma outra questão a explorar relaciona-se com a possibilidade de criação de

ecossistemas que relacionem estratégias mais amplas de políticas públicas com intervenções específicas de museus no espaço urbano, dotando museus e cidades de recursos vitais de persuasão. Neste caso, o ecossistema proporcionado pelo projeto

ComingOut promovido pelo Museu Nacional de Arte Antiga - MNAA (Lisboa, Portugal),

que reforçará a conectividade entre o dinamismo cultural do Museu, a relação que vem estabelecendo com as comunidades e o perfil internacional e de poder de atração de visitantes da cidade de Lisboa.

O MNAA é um bom exemplo das “instituições de memória" de Holden

(HOLDEN et al., 2007, p. 16), caraterística que lhe confere especial destaque no âmbito

museológico nacional. Como tal é uma manifestação física da cultura e do património da nação, proporcionando espaços onde “work and pleasure can coexist” (HOLDEN et al., 2007, p. 53). Daí que também sejam lugares para o exercício da diplomacia cultural e do poder brando.

Desde logo, é aqui relevante mencionar a importância histórica do Museu

Nacional de Arte Antiga de Lisboa fundado oficialmente em 1884 com o intuito de salvaguardar as obras de arte, maioritariamente provenientes dos antigos conventos e

mosteiros desocupados pela lei de expulsão das Ordens Religiosas de Portugal, em 1834. A partir de 1910, com a implantação da República, juntam-se-lhe as coleções

provenientes dos palácios reais e mais acervo se constituirá ainda com a lei de separação do Estado e da Igreja de 1911, que leva à nacionalização de bens vindos dos paços episcopais e mesmo de várias igrejas do país. Ao longo dos anos, foram vários os mecenas

que doaram obras ao Museu, tais como Calouste Gulbenkian. As coleções do MNAA refletem esta realidade, enquadrando-se cronologicamente entre a Idade Média e o Século XIX e sendo numerosas as obras de arte religiosa de produção nacional e estrangeira,

maioritariamente pintura, escultura e ourivesaria. Detém, igualmente, um importante núcleo de coleções de arte oriental de exportação, e de arte africana, que documentam a

época dos Descobrimentos e do Império português, como testemunhos das relações estabelecidas à escala global, do Brasil ao Japão, passando por África, Índia e China.

Nos últimos anos, o Museu tem apostado em importantes e mediáticas exposições

temporárias, tais como O Virtuoso Criador – Joaquim Machado de Castro (2012); A Arquitectura Imaginária – Pintura, Escultura, Artes Decorativas (2012-2013); A 3

Encomenda Prodigiosa – da Patriarcal à Capela Real de S. João Baptista (2013); Esplendores do Oriente – Jóias da antiga Goa (2014); Os Sabóias Reis e Mecenas (2014),

Splendor et Gloria – Cinco Jóias Setecentistas de Excepção (2014-2015); FMR – A

Colecção Franco Maria Ricci (2014-2015); Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português (2015); e a Colección Masaveu – Grandes Mestres da Pintura Espanhola: Greco, Zurbarán, Goya, Sorolla (2015-2016). A par destas exposições, a cuidadosa

preparação de catálogos e a produção exaustiva de merchandising próprio, tem sido compreendida não só como fonte de receita, mas também como modo de divulgação e comunicação do Museu. O estabelecimento de parcerias com museus estrangeiros, quer

pelo empréstimo de obras, tais como as Tentações de Santo Antão de Bosch para o Museu

do Prado de Madrid em 20161, quer pela cedência de exposições, como foi a Arquitectura Imaginária, apresentada no Palazzo Madama de Turim com o título Tesori dal Portogallo

– Architetture immaginarie dal Medioevo al Barocco2 em 2014, tem assumido destaque. O Museu dá-se a conhecer, abrindo a porta e servindo de cenário à “cultura popular / de massas” que, com “Corzinha de Verão” dos Deolinda, ocupa o museu esbatendo as

fronteiras de géneros e reconfigurando o significado do próprio museu. O Museu agora

menos “torre de marfim” e mais “praça pública”, artefacto “cool”, parte da vanguarda da

Lisboa contemporânea onde os corpos se estendem com à vontade: “Espalho o protetor solar e estendo o corpo no museu. O corpo no museu”3. Ao som dos Deolinda pensamos na sua relação com outras esferas e como os “museums have actually become signs of

‘the new’. You need one if your nation is having a facelift or strutting the catwalk of the international tourist.” (HEALY & WITCOMB, 2006, p. 1.2).

O poder é um elemento essencial da existência humana e, embora assumindo uma

grande diversidade de formas e características, as suas marcas e manifestações

encontram-se em todas as dimensões da vida social. De forma breve, historicamente este fenómeno tem sido avaliado a partir de critérios tais como a dimensão da população e do

território, os recursos naturais, a força económica, a força militar e a estabilidade social. A conceptualização de poder e a discussão deste conceito tem sido inegavelmente

marcada por amplas e profundas divergências sobre a forma como o termo deve ser

entendido. A formulação clássica deste conceito advém do trabalho de Weber que o 1Disponível

em http://www.rtp.pt/noticias/cultura/museu-de-arte-antiga-empresta-triptico-de-bosch-ao-prado-erecebe-durer_n885655 (acedido a 8 de abril de 2016). 2 Disponível em http://www.palazzomadamatorino.it/it/eventi-e-mostre/tesori-dal-portogallo-architettureimmaginarie-dal-medioevo-al-barocco (acedido a 8 de abril de 2016). 3Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7rNP87OYcho&nohtml5=False (acedido a 8 de abril de 2016). 4

conceptualiza como sendo a “the probability that one actor within a social relationship will be in a position to carry out his own will despite resistance…” (1978, p.53). Em relação a museus, a conceptualização da relação entre poder e conhecimento de Foucault,

por exemplo, tem apoiado numerosos trabalhos de investigação, enriquecendo o debate (ver, por exemplo, HOOPER-GREENHILL, 1992 e BENNETT, 1995). Para além disso,

o poder tem sido descrito como sendo a capacidade de “to thwart another, an ability to

engage in negative action” por autores como Paynter e McGuire (1991, p.6). Esta conceptualização negativista contrapõe-se à interpretação positiva de Giddens (1977) que o considera como sendo a capacidade de intervir de maneira transformadora. Outros

investigadores apontam uma conceptualização que relaciona este conceito com formas de empoderamento (ver, por exemplo, MILLER, 1992). Miller e Tilley (1984, p. 5) são dois

dos autores que agregam estes dois polos, alegando que o poder pode ser tanto “powerover” como “power-to.”

Não poderíamos deixar de aqui também apresentar outras problematizações sobre

o conceito de poder relacionadas com Foucault, que tanta influência têm tido no âmbito dos estudos de museus, e mencionar algumas das críticas enunciadas por diversos autores

às suas conceptualizações. Embora Michel Foucault também tenha apontado a dispersão capilar das relações de poder através de redes que não têm um núcleo, a sua

conceptualização de poder em museus é frequentemente equacionada com as noções de

controlo e domínio. Andrea Witcomb (2003, p. 13-18), por exemplo, argumenta que a abordagem foucaultiana é demasiado monolítica para explorar a complexidade dos museus e demasiado estática para permitir a possibilidade de mudança. Mudança que é

constante no panorama museológico pois, como McClellan (2003 p. 1-29) tão bem descreve, os museus têm vindo a metamorfosear-se continuamente. Witcomb alega que a abordagem foucaultiana apresenta o museu como conspirador, envolvendo-se

conscientemente na duplicidade para manter os sistemas de poder e, assim, retratando os

visitantes como peões manipulados, sem agência. Conjuntamente, o museu é construído por Foucault como um ambiente de "exclusão e confinamento" controlado pelo Estado sem que se examinem as suas relações com a cultura popular, onde, como Bennett (2004)

tem mostrado, o museu, o parque de diversões, e a exposição internacional faziam parte de um "complexo expositivo" mais amplo. Portanto, o termo "poder" como power-over não é suficiente para dar conta dos diferentes meios de ação de que os museus dispõem,

dada a sua capacidade para produzir e implementar novas realidades – uma capacidade 5

que, em grande parte, resulta da mise-en-scene de coleções, dos ambientes físicos em que são expostas, e de outros dispositivos associados.

O poder brando e a possibilidade de produção de lugares incertos A ideia de soft power, que aqui denominaremos de poder brando, foi

essencialmente desenvolvida pelo professor americano Joseph Nye, no seu livro Bound to Lead: The Changing Nature of American Power (1991). Este conceito tem sido maioritariamente utilizado no campo das relações internacionais e descreve a capacidade

de um ator político influenciar indiretamente e sem coerção, o comportamento de outros atores. Vinte e cinco anos mais tarde, numa compilação de ensaios, Gail Dexter Lord e

Ngaire Blankenberg (2015) trazem este conceito para a ribalta da discussão sobre museus, propondo a sua atualização, ampliando o seu significado e argumentando que os museus

são os seus "gigantes adormecidos". Embora o enquadramento conceptual possa ser inovador, não se encontrarão propriamente muitas surpresas em relação ao papel

económico e social que estas instituições vêm reclamando neste volume. O seu tom algo assertivo, tão pouco se enquadrará em abordagens mais próximas de reflexão crítica.

No âmbito deste capítulo será útil apresentar, pelo menos, uma definição básica

de poder brando. Tomamos emprestada a que nos parece ser mais simples e imediata, de

Joseph Nye. Nye desenvolveu o seu conceito como o resultado de comportamentos ou, como nos diz, um “relational power concept” (2014, s/p) sobre as múltiplas faces do

poder. Na verdade, para este investigador, o poder brando é a combinação de diferentes faces do poder. As suas versões anteriores deste conceito explicavam-no como sendo: “the ability to get what you want through attraction rather than coercion or payment”

(NYE, 2004, p. x) e incluía a “culture, values and foreign policies” (NYE, 2004, p. 11).

Mais recentemente, Nye reformulou a sua definição, ampliando o seu âmbito: o poder brando é agora “the ability to affect others through the co-optive means of framing the

agenda, persuading, and eliciting positive attraction in order to obtain preferred outcomes (NYE, 2014, s/n).”

Neste sentido, o poder brando é, então, a capacidade de influenciar o

comportamento de outros usando meios cooptados de enquadramento de persuasão, 6

atração ou de definição de agendas comuns e as suas manifestações mais eficazes são aquelas que são produzidas pela sociedade civil. Em oposição aos recursos tangíveis do

poder bruto – força e finanças –, os recursos do poder brando são intangíveis e incluem

ideias, conhecimentos, valores e cultura. Na visão de Nye, o poder brando é também a capacidade de atrair relações através da criação de uma imagem que incorpora e promove

valores com que outras comunidades se relacionam ou respeitam e que têm a capacidade de ser globalizados. Pensando também nas dimensões da diplomacia pública referidas por

Nye – comunicação diária, comunicação estratégica e desenvolvimento de relações com “key individuals over many years through scholarships, exchanges, training… and access to media channels” (NYE, 2004, p.109) –, e embora todas se encontrem interligadas,

interessa aqui realçar, sobretudo, a dimensão da comunicação estratégica. Esta dimensão é delineada por Nye como um conjunto de temas construídos de forma semelhante a uma

campanha (política) envolvendo o planeamento de “symbolic events and communications over the course of a year to brand the central themes, or to advance a particular government policy” (NYE, 2004, p.108).

Neste sentido o poder brando é a capacidade de criar consenso em torno de

significados compartilhados. Se os visitantes acreditam, por exemplo, que a promoção e proteção do património é importante, desejável e certa ou adequada, ou que a identidade

dos portugueses se relaciona profundamente com a época dos “Descobrimentos”, será mais difícil legitimar atos percebidos como estando em conflito com esse consenso. Os

recursos utilizados pelo poder brando definem, "ambientes" favoráveis (Nye 2014, s/n) para a produção de compreensões partilhadas, desenvolvendo mesmo outros tipos de

interações. O poder de atração aqui referido assenta, então, em consensos construídos pela força representacional dos museus, das suas coleções e exposições. Assenta em

enquadramentos e categorizações (framing) que implicam o desenvolvimento de “forms of ‘cultural objecthood'” (BENNETT, 2005). Bennett, por exemplo, enfatiza que os museus têm exercido o poder de interpretar o significado das suas coleções e objetos

através de uma variedade de diferentes conceções empregues para reorganizar exposições e espaços (1995, p.97).

Desde a sua criação que a generalidade dos museus – com especial destaque para

os museus nacionais – tem atuado como poderosas “treasure house of material and

spiritual wealth" (DUNCAN e WALLACH, 1980, p.448), carregando o peso das suas histórias institucionais e das histórias das suas coleções tão próximas do poder bruto. 7

Frequentemente, a sua função principal tem sido ideológica, na medida em que servem como incorporações emblemáticas de autoridade e estatuto, e meio de reconhecimento do

poder do Estado. Em grande parte, com mais ou menos sucesso, fixam, estabilizam e

guardam, quer objetos, quer as categorias que incorporam, produzindo objetos de conhecimento que se enquadram em taxonomias culturais. Frequentemente, este trabalho de sedimentação de categorias nas coisas, naturaliza valores sociais. Logo, ainda que esta

força de representação seja intangível, os espaços consensuais e de enquadramento (framing) de valores nos quais assenta a atração, mantêm características coercivas. Estes espaços consensuais continuam enraizados no poder bruto e, porventura, em

entendimentos mais próximos de estratégias de branding que da nova museologia crítica – por exemplo, uma visão dos visitantes como targets e objetos de intervenção versus visitantes como participantes e sujeitos da ação.

Os espaços de consenso podem ser confortáveis, mas se não incluírem a

problematização e o questionamento não proporcionam oportunidades para a transformação dos lugares em que atuam e pouco se relacionarão com o conceito de

museu fórum e com a produção de espaços para a imaginação. Duncan Cameron, defende estes espaços-fórum como incluindo narrativas polifónicas que representem “the most

radical innovations in art forms, the most controversial interpretations of history, of our own society, of the nature of man, or, for that matter, of the nature of our world” (1971, p.12), em claro contraponto aos espaços inertes consensuais.

Eric Raymond (2001), num ensaio seminal a propósito das comunidades de

software de código aberto, introduz a analogia da “catedral” e do “bazar” cunhando o

termo de “open-source” abundantemente empregue por várias disciplinas para descrever

um novo tipo de organização social que se tem transformado numa verdadeira conceção filosófica. Neste paradigma, a "catedral" refere-se a organizações tradicionais que

definem a hierarquia de poder, da autoridade nas organizações (top-down), de forma muito semelhante ao modelo "templo" descrito por Cameron para o museu. O “bazar” é,

pelo contrário, uma rede aberta descentralizada construída a partir dos princípios da inclusão social, da produção livre, do consumo e partilha, conceptualização que muito se

assemelha à estrutura do museu "fórum" (GRINCHEVA, 2013, p. 40-41). O modelo de museu "fórum" sugere um entendimento do papel dos museus que os relaciona com a

criação de zonas de contacto que assentam em processos de intercâmbio e de poder

distribuído que não se inscrevem em dinâmicas consensuais e mais conservadoras. 8

Pensando nas zonas de contacto, Clifford (1997 p.212) incentiva os museus a tornarem-

se espaços que sejam mais “a borderland between different worlds, histories and cosmologies” que lugares autoritários de significados universalizados,

O princípio de cooptação associado ao poder brando, já aqui enunciado, poderá

ser compreendido como um indicador da inclusão possível de estratégias colaborativas,

criadoras de dinâmicas críticas para pensar estas zonas de contacto. Neste sentido, poderá dizer-se que o poder brando – apesar da ambiguidade deste conceito – contém em si o

potencial de transformação. Se assim for, e embora a definição de Nye (2004) se baseie

no pensamento weberiano como “poder sobre”, cremos que o poder brando também poderá ser entendido como transformador, pelas qualidades já aqui apontadas. Ora o

poder transformador é, na sua essência, empoderamento. Com Esche – que exige que a arte e os seus espaços sejam “a permissive and imaginative space for expressing individual and collective desires that could not be accommodated… within current

political discourses” (2004, s.p) –, e apontando, nomeadamente, as oportunidades

educativas e de discussão que o museu-fórum proporciona, acrescentamos a possibilidade de uma outra dimensão do poder brando nestes espaços. Dimensão esta relacionada com

a criação de espaços não lineares e rizomáticos e, portanto, perturbados, interrompidos e

em clara oposição aos espaços lisos e estriados tal como definidos por Deleuze e Guattari (1987, p.33); espaços-quase / entre-espaços; espaços de possibilidades; espaços para

imaginar alternativas; espaços para imaginar o futuro como já descrevemos noutros trabalhos (cf. Por exemplo, SEMEDO, 2014; 2015).

Para além disso, o mecanismo de atração é para Nye mais do que persuasão pela

via da argumentação racional (NYE 2009, p. 6), sugerindo que o poder brando vai mais além, relacionando-se com o afeto ou com os sentimentos. O trabalho recente sobre o

papel da razão e da emoção na cognição humana tem apontado para a relevância quer da

lógica, quer do afeto na maneira como os públicos se envolvem, por exemplo, com os objetos expostos em museus (ver, por exemplo, BOOTH, 2014) e a construção dos

lugares. Hardt (1999, p.96) sugere que o trabalho afetivo produz, entre outras coisas, a

sensação de bem-estar, satisfação, emoção, paixão e até mesmo um sentido de conectividade ou de comunidade. Embora afeto e emoção sejam por vezes usados como

sinónimos, Hardt e Negri (2005, p.108) advertem que não devem ser confundidos, argumentando que, ao contrário das emoções, que são fenómenos mentais, os afetos referem-se ao corpo e à mente.

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De qualquer maneira, o trabalho e a experiência afetiva parece apoiar a criação

desses outros espaços alternativos implicando o diálogo aberto entre o visitante e o objeto

como uma das suas características fundamentais; característica que se constitui como

verdadeira força produtiva de conhecimento. Como a investigação sobre património e

museus vem demonstrado (ver, por exemplo, MUNRO, 2014), as respostas dos visitantes

ao trabalho afetivo são complexas e as experiências incorporadas que levam para esses

espaços podem ter efeitos inesperados. O afastamento de modelos de exposição mais didáticos em favor de outros que abraçam a incerteza e os espaços em aberto mais próprios do museu-fórum poderá também relacionar-se com a influência destes estudos.

A discussão sobre a concetualização de poder brando que aqui apresentamos é,

forçosamente, simples e não tem em conta o debate académico alargado sobre o poder e

seu significado. É uma noção normalmente aplicada ao comportamento dos Estadosnação e utilizada para discutir o seu comportamento, mas que apesar das suas limitações,

como categoria analítica4 e no âmbito desta reflexão, nos parece útil ter em conta. Num

artigo que explora práticas de ética patrimoniais e a sua inter-relação com conceitos mais amplos de justiça social e política, Laurajane Smith também aplica este conceito no

âmbito do património, mais afirmando que “heritage is not just a pretty place; it is a

political resource” (2010, p. 60). Como já foi referido, sabemos que este conceito foi inicialmente utilizado no âmbito das relações internacionais e aplicado, em primeiro lugar, para explicar as relações entre os estados e o comportamento de outros atores a nível internacional. No entanto, parece-nos que este também pode ser considerado um

meio útil para descrever e compreender o comportamento das pessoas, instituições, empresas, partidos políticos etc., em diferentes contextos e numa variedade de situações, diferentes do campo das relações internacionais. Não nos esqueçamos, porém, que este é

um conceito nascido em contextos muito próprios (EUA, neoliberalismo) que nem sempre se relacionam com a nossa realidade e que, nestes termos, a sua aplicação pode

constituir-se como ilusória. Daí que o utilizemos com alguma cautela, questionando alguns dos seus princípios e explorando outras dimensões.

Estes questionamentos levam-nos, então, a pensar sobre a forma como os museus

se têm desenvolvido de forma a incorporar o poder brando nos papéis que desempenham. Interessa-nos também identificar características de projetos que se possam relacionar com

Este conceito geral implica duas dimensões analíticas: os tipos de relações sociais através das quais o poder funciona (em relações de interação ou nas relações sociais de constituição) e a especificidade das relações sociais através das quais os efeitos são produzidos. 4

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uma abordagem mais dinâmica destes processos e que produzam zonas de contacto

assentes em processos de intercâmbio, poder distribuído, empoderamento e transformação.

Da autenticidade aos lugares narrativizados da experiência. Em 2007 e durante 3 meses, algumas ruas centrais de Londres (Soho, Covent

Garden, Piccadilly e Chinatown) conviveram com reproduções de obras de Caravaggio, Constable e de outros artistas emblemáticos existentes na National Gallery5. Este Grand

Tour pretendia, particularmente, suscitar curiosidade acerca do acervo do Museu,

estimulando a visita e angariando públicos6. Inspirado por este evento, o Museu Nacional

de Arte Antiga promoverá, entre 29 de setembro de 2015 e janeiro de 2016, a exposição ComingOut. E se o Museu saísse à rua? com grande impacto na comunicação social e

meio museológico e recebida com “calorosa adesão” não só pelos proprietários dos edifícios, mas também pela generalidade dos transeuntes.

Pensada ao longo de vários meses, ComingOut constou da reprodução de 31

pinturas do acervo “providas de molduras em madeira e tabelas, tal qual são expostas nas

salas de um qualquer museu", de "altíssima qualidade, em escala real” e respeitando “as características e as dimensões das paredes disponíveis” (MNAA, Press Release7). Apesar

da abordagem museal, a exposição procurava terrenos menos firmes que remetiam para

a “ambiguidade” e o “desconcerto”. Em entrevista, António Filipe Pimentel, Diretor do Museu, mais nos conta das potencialidades desde logo antevistas:

(…) de facto, o projeto [Grand Tour] é extraordinariamente sedutor; tem graça, tem humor, é

desconcertante e, independentemente disso, de facto entra, interpela a atenção desatenta da cidadania; e, sobretudo, havia um lado no projeto que tinha muita graça, é que o catálogo

funcionava “a posteriori” como um relatório de execução do projeto, como uma exposição virada Disponível em http://www.thegrandtour.org.uk/ (acedido a 26 de fevereiro de 2016). Embora a natureza dos locais de exposição selecionados possa ser diferente, as exposições que têm decorrido nos EUA “Inside Out” dos Museus de Arte de Akron (Ohio, EUA), Museu de Filadélfia e Detroit Institute of Arts são outros exemplos de sucesso deste tipo de iniciativas. 5 6

Press Release disponível em: http://museudearteantiga.pt/content/files/comingoutpressrelease_baixa_resol.pdf?nonce=ef4d2bb08fdda2c1e02fafb1cbdc1621&nonce=c9fb55b2214329a419a550a19dc9 e31b&nonce=c9fb55b2214329a419a550a19dc9e31b&nonce=c9fb55b2214329a419a550a19dc9e31b (acedido a 26 de fevereiro de 2016). 7

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às avessas; porque o território era a cidade, criando plasticidades com isso, porque a cidade tem a

sua própria plasticidade e havia uma intervenção plástica que não se sabia se não iria suscitar outras intervenções plásticas; havia uma dinâmica do uso que era muito interessante testar. (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016).

Hoje em dia espera-se que museus financiados publicamente desempenhem um

papel relevante nas economias nacionais ou regionais, seja como peças centrais na revitalização urbana, espaços para o turismo e o lazer, ou como espaços para a cidadania

(WITCOMB, 2003; KIRSCHENBLATT-GIMBLETT, 1998). O MNAA não foge a essa ambição. Na imprensa, o Museu declara que os objetivos da exposição se relacionam com a sua contribuição “para a valorização da cidade enquanto destino cultural” oferecendo

“uma experiência qualificada” para os que a habitam ou para os que a demandam.

Convidam também à visita ao MNAA para “solidificarem o seu conhecimento sobre Portugal e a sua História” assente “num diversificado percurso por inúmeros tesouros

nacionais, que integram a nossa memória coletiva e contam nove séculos do nosso passado.” (MNAA, Press Release). Assume-se o museu enquanto marca que ambiciona

incorporar essa outra marca: a da Lisboa banhada pela luz (branca) do Atlântico que

sedutoramente se estende para o Tejo. A marca do Museu irá aqui associar-se ao “lastro de poder” das coleções e à sua aura. Contrariando a liquidificação de fronteiras da

exposição anunciada e de outras ações estratégicas de comunicação, o Museu apresenta-

se como assente em processos de solidificação bem mais próximos do poder bruto, de ideias de power-to e hierarquia de civilizações, da disciplina dos corpos e das mentes, que do museu performativo (pós-museu).

Ao contrário da experiência inglesa que inspirou ComingOut, não se optou por

expor as obras principais do acervo do Museu, mas antes dar destaque a obras menos conhecidas, mas consideradas, igualmente, de primeira qualidade. O Retrato do Rei D.

Sebastião, pintado em 1571 por Cristóvão de Morais, Salomé com a Cabeça de São João

Batista, pintado por Lucas Cranach, o Velho, em 1510-1515, Senhora das Dores, de

Quentin Metsys, de 1511, e Virgem com o menino e santos, de Hans Holbein, o Velho, pintado em 1519, foram algumas das reproduções que invadiram as ruas do centro de Lisboa (zonas do Chiado, Bairro Alto e Príncipe Real), “espaço de vida intensa, entre vida

comercial, vida de compras de todos os dias, de escritórios, de atividades de trabalho, de

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vida noturna, de tudo, desde boémia a concentração de turistas, etc.” (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro de 2016). De modo algum se pretendia:

(…) trazer, a esmo e sem critério, obras do museu para a rua só pela graça pois, como em todas as exposições, há níveis de fruição e de aproximação, mais ou menos exigentes, mais ou menos sofisticados, e nós trabalhamos para atingir o grande público generalista, mas também para

responder à exigência mais sofisticada. E, portanto, pensámos, que aqui a ideia deveria ser mais

centrada na divulgação no fundo do museu, cujas coleções são muito deficientemente conhecidas,

mas cuja marca em si tem já um grande lastro de poder” (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016).

A montagem da exposição fez-se pela calada da noite numa verdadeira ação de

guerrilha (de marketing promocional também) que tomou de assalto as paredes do centro de Lisboa: “A exposição foi montada de noite em etapas sucessivas: primeiro as brigadas foram pôr as fixações (e ninguém percebia para que é que aquilo servia), de modo que

depois, na madrugada da inauguração, foi só fixar as réplicas uma por uma, com as

respetivas tabelas (…)” (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016). Pretendia-se: “surpreender o público, na manhã seguinte, com uma exposição ao ar livre no centro de Lisboa”. A qualidade da impressão, a escala das obras, as molduras e as tabelas criariam “a forte ilusão de que o MNAA tinha, na verdade, saído à rua” (MNAA, Press Release).

As paredes dos edifícios passam a funcionar como salas do Museu que alguns identificam

como “uma iniciativa de arte urbana organizada pelo MNAA” (SYNEK, 2015, s/n). O burburinho instala-se:

“Mas o quadro vai passar aqui a noite?” Os empregados do restaurante de tapas 100 Montaditos, no Pátio do Tijolo, parecem preocupados com o enorme quadro que está a ser colocado na rua.

Não é tarefa fácil, até porque há um carro quase colado à parede a deixar poucos centímetros livres para o responsável da empresa ExpoCena pregar o quadro com um berbequim. A coisa lá se

compõe e até já vem uma cozinheira à porta admirar “Grupo Familiar”, uma pintura de grandes dimensões de Pieter de Grebber, datada de 1630, um retrato de uma numerosa família holandesa, mesmo a condizer com as filas para comer montaditos a um euro.” (Silva 2015, s/n)

O museu “virado às avessas” estende-se, assim, pela cidade e cria intervenções

plásticas que integram reproduções e espaços – conectando imaginação e memória –

como parte de um processo de criação de ambientes narrativos que integram o cotidiano 13

de quem passa e enriquecem “a textura da cidade com outro sedimento de tessitura (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016)”.

Estes ambientes narrativos – assentes em marcadores e enquadramentos

reconhecidos / consensuais – e os seus efeitos cénicos e museais apelam ao entendimento dos transeuntes através do olhar e da experiência espacial, sensual, incorporada,

interpelando “a atenção desatenta” e convidando à interação e uso de agência pessoal. Os seus significados e associações informam perceções do mundo de quem passa, enquanto

a sua materialidade atrai os passantes, oferecendo uma maneira de tocar, de entrar no museu, na arte, na história, na cidade.

Fig. 1 – ComingOut 2015, Reprodução / Gustave Courbet, Homem do Cachimbo, Lisboa (rua da Barroca) ©DGPC·ADF·José Paulo Ruas.

O Museu introvertido ocupa a cidade e transforma-a em expositores para uma

sociedade que cada vez mais se imagina através desta espetacularização do museal. A colonização por práticas de museais também responderá à procura de autenticidade

alimentada pela amnésia cultural, rearticulando necessidades de consumo da indústria do turismo e entretenimento de hoje (HUYSSEN, 1995). Estes ambientes de consenso 14

criados pelo Museu revelam lugares estranhamente familiares porque certos aspetos já eram conhecidos, compartilhados por muitos – o objeto, o museu, o lugar, os

enquadramentos –, e, ao mesmo tempo, estranhos porque nestes ambientes assumem novas formas. Por outras palavras, a plasticidade dos objetos e dos lugares a que António

Filipe Pimentel alude (volumes, formas, cores, luz, materiais, som, etc.), despoletam

memórias físicas e emoções que, apesar da familiaridade, causam estranheza desencadeando a possibilidade de outros diálogos e interações. O corpóreo não será aqui mais fundamental que o intelectual, mas está profundamente enredado nele.

A exposição ComingOut tratava de construir um discurso sedutor que fosse

percetível como visita guiada a partir de marcas inscritas no território:

(…) definiu-se o próprio território com marcas que, umas vezes, tinham significado histórico, outras tinham um significado humorístico, e, portanto, houve de facto um desenho da exposição que podia ser percetível como uma visita guiada e que não era aleatório, sendo que ele foi constituído nessa dupla vertente de adaptar as obras aos espaços disponíveis e de simultaneamente

com elas construir esse outro discurso” enriquecendo “a textura da cidade com outro sedimento de tessitura” (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016)

Cada postura interpretativa é discurso. Significados sociais, formas de

conhecimento e experiência, relações de poder e ideologia são incorporadas e reproduzidas através da linguagem. A ideia de discurso aqui utilizada não se refere

simplesmente à utilização de determinadas obras e à organização da exposição, mas refere-se, igualmente, a formas de prática social, aos seus enquadramentos e, neste caso, aos efeitos museais que aqui se vêm apontando. A maneira como enquadramos certos

conceitos, temas ou discussões, a forma como os públicos são construídos, tem efeitos na medida em que constituem, constroem e regulam a compreensão, fruição e discussão destes “ambientes narrativos”. O discurso não só organiza a maneira como são compreendidos, mas também a maneira como agimos, as práticas sociais e técnicas que reproduzimos, e, enfim, a forma como construímos e reproduzimos o conhecimento.

O museu convida à partilha da experiência do encontro com estes objetos nas redes

sociais (através, por exemplo, do hashtag #ComingOutMNAA) e, na imprensa, as obras em exposição tratam-se por tu. O espaço da cidade é perturbado, geram-se equívocos, o olhar dos transeuntes interrompe-se e o corpo parece ter vida própria: “Passa-se no

elétrico e quase se pode esticar a mão e tocar-lhe. Os turistas apontam as máquinas

fotográficas, os que estão a pé atravessam a rua para ver melhor. Será mesmo uma obra 15

de arte ali, no meio da rua?” (CAETANO, 2015, s/n). Numa crónica do Público, Alexandra Prado Coelho (2015, s/n)8 descreve estes espaços ambíguos que a levam a colocar uma série de questões:

Há quadros — com molduras e tudo — nas ruas de Lisboa. São reproduções de obras do Museu de Arte Antiga. E alguma coisa acontece em nós quando nos cruzamos com eles.

A primeira vez que vi um fui apanhada de surpresa. O efeito foi exactamente aquele que imagino

que se pretenda. Passava pela Rua do Loreto e vi o quadro na parede exterior de um edifício.

Agora, quando penso nesse momento, tenho a sensação de que o meu cérebro demorou uma

fracção de segundo a conseguir transmitir a informação correcta: está um quadro de museu, com moldura e tudo, pendurado na rua.

Devo ter dado um passo atrás e parei para observar melhor. Dei uma olhadela rápida à minha volta para perceber se havia outras pessoas a olhar ou se tinha sido apanhada nalguma piada. Mas não,

o movimento continuava normal. Descansada, dispus-me a observar o quadro mais atentamente. Li a legenda ao lado. Reparei nas personagens, na cena. Voltei a olhar à minha volta para confirmar que estava a ter um comportamento adequado. Tudo calmo.

(…) São seis as personagens, são muitos os detalhes, do espaço, mas também dos gestos, dos olhares. Há muito a tentar perceber aqui: quem são estas pessoas, porque estão reunidas nesta sala,

de que falarão, que expressão terá o homem cuja cara está tapada pelo próprio braço e porque é

que uma rapariga o olha com um ar iluminado, quem é o homem que entra e ao qual apenas o cão parece prestar atenção, que quadros estão representados dentro deste quadro? Acabo na Internet,

claro, no site do MNAA, onde leio que nesta “obra de referência da colecção de pintura holandesa

do Museu, e uma das mais representativas deste contemporâneo de Vermeer, o significado da

composição supera a mera representação de uma cena galante do quotidiano de Amesterdão pelos meados do século XVII [e que] as diversas personagens à volta da mesa poderão aludir ao conceito dos Cinco Sentidos”.

Carol Duncan (1995, p. 1-2) explica que, embora os visitantes possam não o

descrever como tal, o museu atua como um palco que incita os visitantes a adotar comportamentos performativos de algum tipo.

Esses rituais de visita ao museu

dependem, sobretudo, de discursos disciplinares que enquadram os comportamentos dos visitantes. Apesar de se tratarem de reproduções e da vida da rua impor ritmos diferentes para o olhar (gaze), os rituais inculcados de visita a museus permanecem duradouros.

Observa-se atentamente, lê-se a legenda, analisa-se perspetiva e composição, repara-se 8

Os vários excertos citam o texto original, sem aplicação do Acordo Ortográfico em vigor. 16

em tudo. Mas a ambiguidade destes espaços museais é permanente e alguns transpõem o

espaço, as mãos tocam, deixam-se mensagens. As tecnologias museais de ComingOut reproduzem “a ordem das coisas” e, apesar das fissuras que se vão abrindo, será uma construção top-down que aqui surge, que pouco pensou como integrar participações mais ativas. Será a subversão e outras ações de guerrilha que irão alterar o rumo destes espaços,

propondo formas alternativas de apropriação e realçando as qualidades de elasticidade destes espaços.

Fig. 2 – ComingOut 2015, Reprodução - Tabela / Mestre Português Desconhecido Inferno, Lisboa ©Ramiro Gonçalves.

As questões que vão surgindo são múltiplas: por que estão reproduções

emolduradas do Museu, com tabelas explicativas, expostas nas ruas de Lisboa? Será que, desta forma, a coleção do Museu se torna mais acessível a públicos que não são visitantes de museus? O objeto autêntico é dispensável ou continua a ser necessário para a produção de experiência significativa? Um museu sem objetos “autênticos” pode ser considerado

um museu?” Qual é exatamente o efeito que estas reproduções têm sobre as pessoas, e

como é que o que aqui se passa, difere do que acontece em museus? Como é que estas reproduções "comunicam"? Será que a exposição sugere que a reprodução não é uma cópia do real, mas que se torna uma verdade, por direito próprio, aquilo a que Baudrillard

chamou de hiper-realidade? Ou, pelo contrário, estas reproduções, não têm qualquer importância? E, bem à maneira de Benjamin, se optarmos por estas estratégias podem os 17

museus e a arte ser de e para todos? Estes objetos têm agência? Se sim, inclui o poder de redefinir o mundo?

A natureza e agência dos objetos da exposição ComingOut abre algumas destas

dissonâncias. Em museus os objetos “autênticos” apresentam-se como “evidência”, autenticando a verdade da história. Esta caraterística crescentemente discutida no âmbito

da museologia crítica – representação do mundo assente em objetos – é fundamental para os distinguir de outras formas de narrativa histórica ou de tecnologias. Tendemos a ver os objetos do museu como âncoras não mediadas do passado, mas a "autenticidade" é uma construção ilusória. Em que momento é que um objeto é "mais autêntico"?

Supostamente a autenticidade evoca uma aura, uma experiência transcendente. Mas os

objetos têm muitas vidas (APPADURAI, 1986)9 Além disso, os nossos contextos moldam as nossas noções do que pensamos ser autêntico:

Some cultures admire the copy. In Chinese tradition, copying work by the masters is a sign of self-

cultivation and of intellectual and moral strength. The cult of authenticity in western culture today is a protective gesture against the relativism of postmodernism and the commodification of culture.

It reflects a desire to find our own authentic selves. It is also a distraction from and validation of

the “othering” in which museums engage. Claiming “authenticity” is a way for museums to deny the imperialist and patriarchal structures that have informed their institutions. (Marstine, 2006 p. 3)

No trabalho de Gell (1998) encontra-se um modelo mais ativo para pensar os

objetos e as suas biografias no qual o objeto não só assume diferentes identidades, mas

pode também interagir com aqueles que o olham, utilizam, possuem10. A agência dos objetos encontra-se neste espaço de interação ao produzirem determinados efeitos:

deixando-nos felizes, levando-nos a colocar questões, a rejeitar o que nos é proposto… Neste sentido, estes objetos e ambientes narrativos têm agência, produzindo efeitos, que se tornarão bem visíveis nas geografias museais re-imaginadas.

9

A discussão atual em torno do estatuto do objeto é informada pela extensa investigação que nos chega da museologia crítica (ver, por exemplo, PEARCE, 1989) e da cultura material (ver, por exemplo, TILLEY at al, 2006).

Esta abordagem, nota Hoskins (2006, p.76), põe em causa as fronteiras entre sujeitos e representações coletivas, sublinhando a importância da dimensão fenomenológica das nossas interações com o mundo material, e da necessidade de interrogar os objetos que nos fascinam assim como as razões para tal. Enquanto objetificações de capital cultural, as reproduções de arte assumem um estatuto especial porque, como Fyfe (2004, p.51) sublinha, no momento do seu consumo colocamos frequentemente questões sobre o que é apresentado ao olhar (gaze); o que está ausente; e em que medida se cumprem as intenções da obra e do autor. 10

18

Na verdade, ComingOut pauta-se por uma mudança de ênfase que nos conduz da

autenticidade à experiência11. Por outro lado, se é verdade que a reprodução é vulnerável à acusação de que um significado completo está ausente ou que o significado original é

subvertido, de certa forma, a nossa sede de autenticidade é saciada e a descrença suspensa

pela veracidade dos lugares, palcos destes desempenhos ficcionais. Os objetos são continuadamente compreendidos não como inerentemente significativos, mas como sendo capazes de representar algo (ideias, valores, lugares, comunidades) quando colocados em redes de interpretação.

Voltamos a Alexandra Prado Coelho (2015) que nos fala do seu encontro com a

exposição, colocando algumas das questões que atravessam esses espaços:

Havia um quadro de museu na rua. E, no meio da estranheza da situação, a maior estranheza

continuava a ser a moldura. Como se esta fosse o elemento que fazia toda a diferença. Claro que existe street art e que temos peças originais nas ruas e que estamos habituados a isso, mas uma moldura é um elemento bastante mais estranho. Era ela que nos dizia “não sou um cartaz, sou um

quadro a sério e decidi sair do museu, onde vocês nunca me iam visitar, para vir mostrar-me aqui na rua”. Há alguma coisa de comovente na súbita humildade da pintura à minha frente. Como se

fosse ela a estender-nos a mão e a dizer que afinal somos importantes (ela pertence a todos, a verdade é essa) e que não faz sentido haver distância entre nós.

É curioso perceber como a simples deslocação no espaço de uma obra de arte — como o Museu

Nacional de Arte Antiga faz nesta iniciativa, que baptizou como ComingOut e que traz 31 reproduções de obras da sua colecção para as ruas de Lisboa (Chiado, Bairro Alto, Príncipe Real) durante três meses — lhe dá outros sentidos e pode alterar a nossa relação com ela.

O museu, todos sabemos, empresta uma solenidade às coisas. Mesmo que já tenham sido

inventadas muitas maneiras de o dessacralizar, nada altera o facto de estarmos entre aquelas paredes por vontade própria. E há uma intimidade diferente entre nós e um quadro. Muitas vezes

estamos sozinhos e com todo o tempo para o observar. Há tempo e silêncio — precisamente o que não existe na rua. (2015, s/n)

A utilização de molduras e a utilização de tabelas são elementos essenciais para a

construção do efeito museal apontado. Esta "sensibilidade museal", ao reproduzir tecnologias museais que reforçam concetualizações institucionalizadas, tende a

A noção de experiência a que aqui se alude tem sido amplamente discutida como um meio de acesso ao “real”, ao “verdadeiro”, contrapondo-se ao discurso da simulação e do “falso absoluto", associado a Jean Baudrillard (1983) e a Umberto Eco (1995). 11

19

apresentar estes ambientes como espaços neutros, não contestados que permanecem

ligados a espaços / coleções “cuja marca em si tem já um grande lastro de poder” (A. F.

Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016). As molduras não só estabelecem limites, mas facultam contextos narrativos ideológicos que imprimem a nossa compreensão sobre o

que é possível ser incluído. Mas, na verdade, um dos efeitos que aqui terá tido mais

impacto, acontece quando em vez de isolar as reproduções do que está à sua volta, a

moldura liga os dois mundos: o do museu e “o mundo lá fora, verdadeiro”; o da “coisa verdadeira” e da reprodução.

Um dos efeitos da exposição será, precisamente, a sua performatividade no

sentido em que desconstrói o efeito museal enquanto tecnologia, destacando o museu

como um meio para a produção cultural e identificando a exposição como um dispositivo de enquadramento:

Think of the museum, not as a place to which one brings technology, but as a technology in its own right - a set of skills, techniques, and methods. Think of the museum as a distinctive medium,

not as an empty vessel for all kinds of musealia. Consider it as a medium in its own right. A performing museology makes that medium transparent? A performing museology makes the

museum perform itself by making the museum visible qua museum visible to the visitor. (Kirshenblatt-Gimblett 2000, p. 11)

Assim – e esperando-o antecipadamente –, a exposição testa as “dinâmicas(s) do

uso”, abrindo-se a outras “intervenções plásticas” e narrativas. Os enquadramentos

apresentados são desafiados, interrogados, fragmentados e, na relocalização dos objetos-

reproduções, os mecanismos do museu tornam-se transparentes declarando o museu

como um jogador ativo na construção de significados. Lugares e espaços normalmente

marginalizados – ou que se encontram “além-moldura”, além-enquadramentos museais – deslocam-se para dentro destes espaços, perturbando-os, estriando os espaços lisos de entendimentos consensuais e criando outros espaços de possibilidades para imaginar o futuro. Espaços, como antes se argumentou, onde o poder brando melhor atuará. Haverá, portanto, dois momentos importantes de deslocamento destes objetos performativos: do lugar museu para a cidade museal imaginada; da cidade museal imaginada para lugares

além-moldura. Um terceiro momento, envolvendo a produção de outros objetos e espaços, complementaria o ciclo.

20

Fig. 3 – ComingOut 2015, Reprodução / Nicolas de Largillière Retrato do Senhor de Noirmont, Lisboa (rua Capelo) ©André Costa.

Fig. 4 – ComingOut 2015, Reprodução / Nicolas de Largillière Retrato do Senhor de Noirmont, Almada (Laranjeiro) ©André Costa. 21

Tal como no caso inglês, também em Lisboa, a par da admiração e interesse,

surgiu a vandalização de réplicas, e mesmo o seu furto.

Cerca de um terço das

reproduções foram furtadas e, algumas, “relocalizadas”. O Museu considerou que, "sem deixarem de ser atos condenáveis, parecem demonstrar um irrefreável "amor à arte' ou, melhor, 'amor à reprodução', por parte de alguns cidadãos"12.

O Inferno, Mestre Português Desconhecido, século XVI que se encontrava na rua

da Rosa, no Bairro Alto, desaparecia apenas 48 horas após a inauguração.13Algumas

semanas mais tarde, desapareceriam outras reproduções: Ruínas de Roma Antiga, de Pannini e A Feira da Ladra na Praça da Alegria de Delerive que se encontravam ao cimo

da rua das Taipas, junto ao miradouro de São Pedro de Alcântara. Foram ainda furtadas Cortesã, de Jacob Adriaenz Backer (rua das Salgadeiras), Obras de Misericórdia, de Peter Brueghel, o Jovem (calçada da Glória), São Damião, de Bartolomé Bermejo (travessa dos Teatros), Virgem e o Menino, de Hans Memling, e São Jerónimo, de Albrecht Dürer (ambas na rua Garrett), Retrato do Rei D. Sebastião, de Cristóvão de

Morais (rua do Loreto), Santo Agostinho, de Pierro della Francesca (calçada do Sacramento), Homem do Cachimbo de Gustave Courbet (rua da Barroca), e Retrato do

Conde de Farrobo, de Domingos António de Sequeira (largo do Picadeiro). Desaparecimentos compreendidos mais à luz de noções de apropriação, fazendo parte “da experiência antropológica, do lado mais rico do projeto” (A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016), que vandalismo.

Situação particular da experiência portuguesa relacionada com o furto foi a

transposição de 4 das obras, com as respetivas fixações e tabelas, para a margem sul do Tejo, mais concretamente para as freguesias periféricas do Laranjeiro (Almada) e

Miratejo (Seixal), por um grupo cujo porta-voz se intitula “Robin das Artes”14. O MNAA soube aproveitar a ocasião, e a cada furto repunha uma tabela no anterior local onde se se encontrava a réplica com a inscrição "Retirada temporariamente para exposição

privada"15. O humor e a ironia fizeram parte da estratégia de comunicação do MNAA. Além disso, em dezembro são colocadas três novas réplicas na cidade, apresentadas pelo Museu como um presente de Natal, levando a um novo e crescente interesse pela

Disponível em: http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=801501 (acedido a 12 de abril de 2016). Disponível em: http://observador.pt/2015/10/01/ja-foi-roubado-um-dos-quadros-expostos-na-rua/ (acedido a 10 de março de 2016). 14 Disponível em: http://observador.pt/2015/12/06/robin-das-artes-tirou-quatro-quadros-do-chiado-e-deu-os-aomiratejo/ (acedido a 10 de março de 2016). 15 Disponível em: http://www.gazetadorossio.pt/mais-dois-quadros-roubados-a-exposicao-do-museu-nacional-dearte-antiga.html (acedido a 10 de março de 2016) 12 13

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iniciativa16. De notar, que nenhum destes últimos elementos incluídos na exposição de rua sofreu qualquer dano, furto ou intervenção, comprovando deste modo um possível efeito de consciencialização social do valor da exposição.

Fig. 5 – ComingOut 2015, Reprodução / Mestre Ibérico Desconhecido, Retrato de Senhora, Lisboa (rua do Alecrim) ©Paulo Duarte.

CONCLUSÃO Posso, no meio de tudo isto, ainda não ter visto o original, mas aquela moldura na rua fez-me parar e pensar. E nos tempos que correm (literalmente), isso parece-me já extraordinário.

Alexandra Prado Coelho - Os quadros estão na rua, Jornal O Público, 30 de outubro de 2015.

Por proposta de uma das principais leiloeiras nacionais, o Palácio do Correio

Velho, o MNAA acedeu a colocar em leilão as réplicas que foram resistindo e, com essa receita, potenciar a ação de aquisição da Adoração dos Magos de Domingos Sequeira, Disponível em: http://observador.pt/2015/12/12/chiado-acordou-tres-obras-arte-nas-ruas/ (acedido a 26 de fevereiro de 2016). 16

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entretanto iniciada, e que pretendia ser um projecto de crowdfunding17. O Leilão é repleto de peripécias dignas de relato: “algumas das réplicas furtadas reaparecem, desde o Banho

da Betsabé do Boucher, por exemplo, que foi cá trazido porque alguém o arrancou, até ao Retrato do Conde de Farrobo, que veio da margem esquerda e a junta de freguesia

devolveu-o ao leilão.” O evento “espantosamente atingiu também um paroxismo de disputa (…) mas não deixa de ser controverso se entendermos que chegou quase a haver,

enfim, coisas tão dramáticas como pessoas disputando réplicas por 3.000€ que duvidosamente dariam 3.000€ por uma obra de arte a sério, mas o fetichismo funcionou”.

(A. F. Pimentel, entrevista, 26 de fevereiro, 2016). No total venderam-se 27 reproduções, resultando num total de 33.290€18.

A interligação da exposição ComingOut com as atuais teorias e conceptualizações

acerca da utilização do poder brando por parte dos museus é percetível, e, neste caso,

percebe-se que a contrariedade do furto foi sabiamente aproveitada como um potenciador do efeito do mesmo. Nos espaços mais elásticos produzidos não se trata já de persuadir,

de intervir para alterar comportamentos, mas sim de facilitar a reflexividade complexa e as disposições criativas. A exposição torna-se espaço onde diferentes pontos de vista e opções conflituantes são levantados, examinados, refletidos e discutidos por diferentes

atores. Trata-se de operar dentro de fluxos complexos e de demonstrar inteligência contextual: “contextual intelligence, the ability to understand an evolving environment and capitalize on trends, will become a crucial skill in enabling leaders to convert power resources into successful strategies.” (NYE, 2006, p. 13).

O MNAA soube aproveitar a realidade concreta da sua experiência em tempo útil

e se desde o início a Comunicação Social e a sociedade em geral esteve atenta ao que se

passava na cidade, a transposição de parte da Exposição para uma zona periférica mais

reteve o olhar e destacou o Museu como ator central deste evento. A comunidade interessou-se pelas reproduções, não só na sua trasladação e exposição em outros locais,

como até pela sua posse e, mais uma vez, o Museu conseguiu utilizar essa circunstância para angariar fundos para um outro projeto.

Vamos pôr o Sequeira no lugar certo, MNAA, Press Release. Disponível em: http://museudearteantiga.pt/content/files/modalidade_pagamento_sequeira.pdf?nonce=e9f7b7729e2ab65df072377a97 c45b7c (acedido a 6 de março de 2016) 18 Disponível em: https://www.pcv.pt/auction.php?n=1063&displaymode=resultssummary&ref=auctionspastinfo (acedido a 26 de fevereiro de 2016). 17

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Se a exposição teve sucesso como espaço para discutir visões plurais, despertar,

educar, renovar ou construir espaços de possibilidades para pensar a cidade / comunidade,

então operou, muito concretamente, como teoria-em-ação. Ao olharmos a exposição (e o

Museu) desta maneira, podemos compreendê-la como um processo moldado por múltiplas forças – por vezes dissonantes e /ou em conflito – que se abre a redes de governo mais amplas, a outros exercícios de poder. Embora a visão hierárquica da organização

das coisas, da posição dos sujeitos, ainda prevaleça,19outras geografias e possibilidades foram propostas para este museu-cidade-imaginário. Geografias que assentam no poder

distribuído, em configurações móveis e porosas. Ao mapear esta noção de poder plural

em museus, os públicos deixam de ser objeto de intervenção para serem sujeitos de ação. Pensa-se e atua-se para além de objetivos de legitimação.

O conceito de transvisualidade poderá bem evocar estas alterações que sublinham

a importância da abertura à construção de um modelo (de poder) distribuído de imagens e concetualizações da cidade imaginada, do museu imaginado. Mudanças proporcionadas

pelos "modos de vida que se cruzam" e de "transmediação". Outra ideia a reter relacionase com esse Museu introvertido que ocupa a cidade – de dentro para fora – mas que pouco

reconhece os transeuntes como participantes. Os lugares são, contudo, tomados de assalto. Em vez da cidade imaginada pelo museu surgem espaços amplos e irregulares,

propõem-se outras subjetividades e narrativas de caráter, porventura, nomádico (BRAIDOTTI, 2011); um outro olhar sobre a geografia da cidade que traz para os espaços

museais lugares além-moldura. Adota-se uma visão não totalizante da cidade (do

Museu?) como um objeto que não pode ser apreendido a partir de um só ponto (SOJA, 2000). Em vez de operar como poder bruto, poder disciplinar, ao mover-se nesses espaços

ambíguos o museu revela capacidades rizomáticas (DELEUZE e GUATTARI, 1987), estabelecendo conexões, abrindo-se ao inesperado e à transformação dos espaços. O corpo do Museu posiciona-se na fronteira, nas margens, esse imenso lugar de possibilidades de representação.

Um agradecimento especial ao Museu Nacional de Arte Antiga e sua equipa, pela cedência pronta de imagens e, ao seu Diretor, António Filipe Pimentel, pela conversa generosa.

“Esta será replicável por quem quiser (…); é isto que se espera do Museu Nacional de Arte Antiga: que dê a norma que depois os outros, por seu turno, replicam; que seja a Nau-Almirante que, quando se desloca no mar, cava o mar e permite que os outros barcos mais pequenos sigam também, e isso é fundamental, pois os outros barcos mais pequenos não têm calado para aguentar o tamanho das vagas; temos de ser nós à frente a fazer isso”. (A.F. Pimentel, Entrevista a 26 de fevereiro de 2016). 19

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