2016 O problema do apotropismo: Hanna Levy, Max Raphael e as artes paleolítica e “primitiva”

May 29, 2017 | Autor: Daniela Kern | Categoria: Art History, Marxism, Historiography (in Art History), Modernism
Share Embed


Descrição do Produto

1

O problema do apotropismo: Hanna Levy, Max Raphael e as artes paleolítica e “primitiva”

Daniela Pinheiro Machado Kern PPGAV – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: Hanna Levy (1912-1984), entre 1933 e 1936, tinha como tutor intelectual, em Paris, o historiador da arte Max Raphael (1889-1952), como ela também marxista, judeu e alemão. A presente comunicação pretende investigar como Max Raphael e Hanna Levy abordaram teoricamente o problema do apotropismo, uma questão desafiadora dentro da ótica que privilegiam, a de busca da relação histórica e racional entre arte e meio social. Para tanto, será considerado em termos gerais o equilíbrio que ambos os historiadores estabelecem entre as noções de totemismo e magia quando consideram respectivamente a arte paleolítica e a dita “arte primitiva”. Palavras-chave: Arte pré-histórica; Arte dos povos tradicionais; Teoria marxista da arte.

Abstract: Hanna Levy (1912-1984) between 1933 and 1936 had as intellectual tutor in Paris the art historian Max Raphael (1889-1952), like her also Marxist, Jewish and German. This paper aims to investigate how Max Raphael and Hanna Levy theoretically addressed the apotropaic problem, a challenging issue from the perspective that both privilege, the pursuit of an historical and rational relationship between art and social environment. Therefore, it is considered here, in general terms the balance that both historians establish between totemism and magic notions when respectively consider Paleolithic and "primitive" arts. Keywords: Prehistoric Art; Native Art; Marxist Theory of Art.

2

Em agosto de 1937, pouco antes de se transferir para o Brasil com a ajuda de Max Horkheimer e Friedrich Pollock e desembarcar no Rio de Janeiro, em 17 de setembro, no vapor Siqueira Campos, Hanna Levy (1912-1984) apresentou no Deuxième Congrès International d’Esthétique et de Science de l’art, em Paris, a comunicação Sur la nécessité d’une sociologie de l’art,1 escrita a quatro mãos com Max Raphael (1889-1952). Neste texto estão sob ataque as teorias idealistas que embasavam então boa parte da historiografia da arte, sendo a de Wölfflin, estudada por Hanna Levy em sua tese de doutorado, o caso mais notório: Todas as teorias idealistas da arte, e mais particularmente a escola da história imanente da arte, se mostraram incapazes de estabelecer uma relação real entre a arte, sua história e a história geral. Devido a isso, essas teorias se encontraram impossibilitadas de mostrar que a história da arte é uma parte específica da história geral por não considerarem nem o caráter da arte, nem os fatos históricos.2

Hanna Levy e Max Raphael vinham trabalhando juntos há alguns anos, e concordavam com a necessidade de reescrever a história da arte a partir de uma perspectiva sociológica e materialista, embasada no pensamento marxista. Isso significaria abordar todos os períodos da história da arte, tarefa à qual Max Raphael iria se dedicar até o final da vida. Essa amplitude de interesse do projeto que compartilhavam já se depreende da comunicação de 1937:

Uma tal análise mostra, além do mais, que existem tipos de artistas relativamente constantes em quase todas as épocas da história da arte. Trata-se, então, de estabelecer uma tipologia que permita captar o essencial da criação artística em suas diferentes formas concretas, e de perseguir esses diferentes tipos no corte longitudinal da história.3

Quando já convivia com Hanna Levy, em 1935, Max Raphael irá empreender uma viagem pelo interior da França, e, além de visitas a catedrais, tema que na

LEVY, Hanna. Sur la nécessité d’une sociologie de l’art. Actes du Deuxième Congrès International d’Esthétique et de Science de l’art. Paris, 1937, p. 342-345. Todas as traduções citações de textos que, nas Referências Bibliográficas, se encontrem em língua estrangeira, são de minha autoria. 2 LEVY, 1937, p. 342. 3 LEVY, 1937, p. 344-345. 1

3

época pesquisava, visitou várias vezes cavernas na região de Les Eyzies, 4 e passou a pensar sobre a natureza das composições dos registros parietais préhistóricos que ali encontrou. Apenas quando se radica em Nova York, em 1941, é que irá aprofundar suas pesquisas sobre as pinturas paleolíticas, como veremos adiante. Hanna Levy, por sua vez, irá abordar tanto a arte pré-histórica como a então chamada “arte primitiva” no curso de história da arte que ministrou aos funcionários do SPHAN entre 1937 e 1940. A nós chegaram os apontamentos feitos por um aluno, o arquiteto José de Souza Reis, durante o curso,5 e não as notas da própria Hanna Levy. Ainda assim, através deles é possível ter uma clara noção dos princípios basilares de sua abordagem dos grandes períodos da história da arte, a começar pelos que aqui interessam, a arte paleolítica e a arte dita “primitiva”. Ao tratar dos dois temas Hanna Levy se concentra na descrição de motivos, materiais e técnicas, na enumeração de características concretas dos diferentes modos de representação e na detalhada identificação da proveniência ou localização, respectivamente, das peças ou sítios estudados. Por exemplo, ao tratar da arte parietal, elenca as técnicas mais empregadas, como ronde-bosse, pintura, petroglifo, baixo-relevo e alto-relevo. Hanna, além disso, apresenta as informações sobre arte pré-histórica e arte “primitiva” de acordo com algumas convenções da historiografia da arte tradicional, como a divisão por gêneros artísticos, tais quais escultura, relevo, gravura, pintura e ornamentação. Ao apresentar a arte da Idade Paleolítica, Hanna Levy aceita a teoria da magia predominantemente aplicada, à época, às pinturas parietais préhistóricas encontradas na França e na Espanha, ao mesmo tempo em que deixa explícita, mais uma vez, sua preferência pela descrição e análise de dados concretos e observáveis: Significação simbólica ou mitológica das figurações animais: a magia da caça ou da fecundidade. As numerosas esculturas de animais do magdaleniense. Caráter mais naturalista que as figuras humanas. Habilidade técnica perfeita, adequada aos diferentes materiais. Procedência comum: França meridional, 4

CHESNEY, Shirley. Max Raphael (1889-1952): A pioneer of the semiotic approach to palaeolithic art. Semiotica n. 100-2/4, p. 109-124, 1994, p. 111. 5 LEVY, Hanna. Curso de História da Arte para os técnicos do SPHAN. Anotações de José de Souza Reis. In: NAKAMUTA, Adriana Sanajotti (org.). Hanna Levy no SPHAN: história da arte e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/DAF/Copedoc, 2010, p. 49-270. (Série Pesquisa e Documentação do IPHAN, 5)

4 Bélgica. Exemplo: a “cabeça de cavalo relinchando” de Mas d’Azil.6

Na parte do programa dedicada aos “povos primitivos”, que se inicia pela África, Hanna Levy acrescenta preliminarmente uma digressão teórica, em que aponta as duas principais teorias que se costumava aplicar ao estudo da arte dita “primitiva”, uma evolucionista, e a outra, pela qual deixa evidente a sua simpatia pelo grau bem maior de aprofundamento, a que se liga à história da cultura, buscando subsídios na sociologia.7 O Totemismo é destacado quando aborda a arte da África: “O Totemismo: representações coletivas de caráter social-religioso relativas às potências sobrehumanas (forças da natureza, animais – oeste americano)”.8 E é novamente conceituado quando se refere aos índios da floresta da América do Norte: O “Totemismo”: base de todas as religiões americanas. Sua significação: força da natureza (ancestral de um grupo ou indivíduo). Colocação diante das casas; esculpidos em madeira; entrelaçamento de figuras humanas e animais – Combinações baseadas em legendas (pouco conhecidas).9

Veremos que Max Raphael dará especial atenção ao totemismo em sua teoria sobre a arte paleolítica, por considerá-lo uma hipótese que permite ligar boa parte das imagens produzidas à realidade social dos diferentes artistas préhistóricos. Ao tratar da arte pré-histórica, Hanna não avança na hipótese do totemismo, até porque na bibliografia disponível à época se evidenciava a preferência pelo conceito de magia. O totemismo é colocado em primeiro plano, no entanto, quanto ela aborda as artes primitivas, nas quais já há algum tempo se buscava identificar as conformações do totem.10 Hanna Levy também irá consultar os livros dos viajantes do século XIX, em busca de maior variedade de tribos e manifestações pontuais, como se percebe na passagem a seguir, em

6

LEVY, 2010, p. 52. LEVY, 2010, p. 64. 8 LEVY, 2010, p. 64. 9 LEVY, 2010, p. 69. 10 Sobre o uso do conceito de totem a partir de finais do séc. XVIII, cf. DREWES, Werner E. Raphaels Hand – Annäherungen. In: RAPHAEL, Max. Prähistorische Höhlenmalerei. Aufsätze. Briefe. Köln: Bruckner & Trünker Verlag, 1993. p. 227-228. Sobre a história do conceito de totem a partir de Freud, cf. LUCAS, Gérard. The Vicissitudes of Totemism. One Hundred Years after Totem and Tabu. London: Karnac Books, 2015. 7

5

que quase todas as informações parecem ter sido extraídas das obras de Karl von den Steinen (1855-1929) sobre os grupos indígenas do Brasil Central: Escultura: Pouco desenvolvimento. Máscaras raramente esculpidas; máscaras em ráfia pintada, frequentemente ornadas de plumas; máscaras esculpidas representando demônios, animais; adjuração de espíritos. Maior força expressiva nas tribos Mehinaku, Trumai, Tupi. O Ornamento chamado “merechou”.11

Hanna Levy destaca aqui as máscaras rituais encontradas por von den Steinen sobretudo entre os Mehinaku e os Trumai,12 e resume as associações feitas por ele entre tais máscaras e rituais apotropaicos como o de adjuração de espíritos. Mais uma vez materiais e técnicas empregados nas máscaras são, dentro do possível, detalhados. As generalizações sobre a arte desses povos são explicitamente evitadas por Hanna Levy: “Impossibilidade de generalizações muito fáceis sobre a arte dos povos primitivos, no estado atual da etnografia e da arqueologia”.13 E as comparações entre as artes desses diferentes povos, às quais ela não se furta, são, no entanto, realizadas a partir de dados concretos como, ao considerar objetos, o estilo das figuras e da composição e os diferentes tipos de colorido.14 O que Hanna Levy em absoluto não faz, em sintonia com o posicionamento de Max Raphael, é apresentar uma psicologia simplificada dos povos ditos “primitivos” ou dos pré-históricos. Nisso ela segue contra a maré, como se pode ver quando comparamos a estrutura do seu curso com a de três outros oferecidos no Brasil mais ou menos na mesma época. Comecemos com o Curso de Filosofia e História da Arte preparado por Mário de Andrade em 1938, no qual um importante espaço é dedicado à investigação do “ser primitivo”, em termos psicológicos. Mário apresenta a visão corrente, que equipara sob o rótulo de “primitivo” tanto o selvagem, como o homem pré-histórico e a criança, todos eles considerados como portadores de um “estado mental diferente”, marcado pela dependência do mundo fenomênico (“a sua ação mental cessa com o

11

LEVY, 2010, p. 71. Para uma análise dos estudos atuais sobre essas máscaras, ver BARCELOS NETO, Aristóteles. As máscaras rituais do Alto Xingu um século depois de Karl von den Steinen. Société suisse des Américanistes / Schweizerische Amerikanisten-Gesellschaft, Bulletin 68, p. 51-71, 2004. 13 LEVY, 2010, p. 73. 14 LEVY, 2010, p. 72-73. 12

6

fenômeno”) e pela dificuldade de abstração.15 Adiante ele irá procurar nuançar essas equiparações, ao afirmar que o caso da criança é diverso, e não se presta à comparação da mesma maneira que os demais. A arte paleolítica, por sua vez, segundo Mario tem caráter estético, provavelmente dimensão social, e pode ser religiosa ou não (ainda que os documentos apontem fortemente nesta primeira direção, como a localização de pinturas em cavernas, para Mário um sinal de “magia simpática, prisão do animal”).16 Outro curso de História da Arte que abordou a arte pré-histórica foi o de Antoine Bon (1901-1972), arqueólogo francês instalado no Brasil desde 1940 como professor de História da Antiguidade e da Idade Média na Universidade do Distrito Federal (IDF), no Rio de Janeiro, e autor citado por Hanna Levy em seu próprio curso no SPHAN. Bon ministrou, a partir de maio de 1941, sob os auspícios do recém-fundado Instituto Brasileiro de História da Arte, um curso de História da Arte, com 16 aulas previstas, que depois foram publicadas em livro, pelo mesmo Instituto. Sobre a arte parietal das cavernas da França e da Espanha, Bon adota a opinião de Georges-Henri Luquet (1876-1965),17 para quem naquele “vasto desfile de animais” não se nota nenhum sinal de composição.18 Aqueles artistas pré-históricos poderiam ser comparados ainda a primitivos, crianças, modernos, pois teriam todos em comum o fato de considerarem “a ingenuidade como uma fonte de inspiração”.19 Bon comenta também duas teorias então correntes sobre a finalidade da pintura parietal paleolítica: a da “arte pela arte” e, corrente predominante, a utilitarista, que entende essa pintura como fazendo parte de um ritual de magia.20 Para Bon ambas as correntes poderiam ser unidas: a arte decorativa ou figurada deve ter começado na pré-história de modo desinteressado, e, depois de já elaborada, se viu que poderia ter também um caráter mágico.21

15

ANDRADE, Mario de. Curso de filosofia e história da arte. Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1938). São Paulo: Centro de Estudos Folclóricos/GFAU, 1955. 16 ANDRADE, 1955. 17 Cf. LUQUET, G.H. L’Art Primitif. Paris: Gaston Doin et Cie, 1930. 18 BON, Antoine. Introduction Générale à l’Histoire de l’Art – I. Prehistoire; Orient Mediterranéen. Rio de Janeiro: Atlantica Editora, 1942, p. 20. 19 BON, 1942, p. 21. 20 BON, 1942, p. 22-23. 21 BON, 1942, p. 25.

7

Odorico Pires Pinto, membro do Instituto Brasileiro de História da Arte, em 1949 defendeu a dissertação Arte Primitiva Brasileira no concurso para professor de História da Arte e Estética promovido pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil. Nessa pesquisa, que deveria alimentar suas aulas, também destinou grande espaço à análise tanto do artista pré-histórico como do primitivo, outra vez sob perspectiva eminentemente psicológica. É assim que afirma que o “artista pré-histórico é um artista ingênuo”, e dessa ingenuidade é que viria a sua crença no poder da imagem, em seu caráter mágico. Também ele adota o posicionamento de Luquet, que defendia a ideia de que na préhistória primeiro houve “artistas puros”, e apenas depois artistas feiticeiros”. 22 A ingenuidade, de resto, é uma característica que tal artista compartilha com as crianças,23 e também com os alienados, portadores de uma “ingenuidade patológica” ocasionada por uma “atrofia do senso de percepção estética”.24 Além disso, o homem “primitivo” que pintou as cavernas na pré-história era, entre outras coisas, um “prisioneiro da magia”: Psicologicamente, o homem primitivo era um indivíduo atormentado pelo medo, e apavorado pelas influências sobrenaturais. Era portanto, um homem acorrentado a sua crença, prisioneiro da magia, fetichista obediente e fervoroso adepto da astrolatria, obrigado a cumprir sua missão, sujeito aos castigos supremos, representados pela fiscalização do semelhante.25

Tal é a “visão do primitivo” que Hanna Levy haveria de encontrar no Brasil mais ou menos à época em que foi encarregada de preparar o seu curso geral de História da Arte: generalizante e via de regra construída sobre verdadeiras caricaturas psicológicas, moldadas em um viés claramente evolucionista. Já em Nova York, em 1949, agora professora na New School for Social Research, Hanna Levy retoma a questão do “arcaico”, agora associado à arte moderna, um de seus temas preferidos, em um curso intitulado The Legacy of the Past in Modern Art, cujo programa se pode ver a seguir:26

22

PINTO, Odorico Pires. Arte Primitiva Brasileira. Rio de Janeiro: edição do autor, 1949, p. 46. PINTO, 1949, p. 77-79. 24 PINTO, 1949, p. 84. 25 PINTO, 1949, p. 99. 26 Cf. DEINHARD, Hanna. The Legacy of the Past in Modern Art (ementa de curso). New School Bulletin, v. 7.n. 1 september 5, 1949, 1949-1950. 23

8

Ementa do curso The Legacy of the Past in Modern Art, ministrado por Hanna Deinhard na New School for Social Research em 1949.

De novo vemos prevalecer aqui a abordagem sociológica de Hanna Levy (agora Hanna Deinhard), que salienta o fenômeno do revival, o qual inclui, muitas vezes, uma visão idealizada sobre o período que está sendo “restaurado”. É importante lembrar, de resto, que o público nova-iorquino já havia há muito sido iniciado nos paralelos entre arte moderna e arte “arcaica”. Em 1937 ocorreu no MoMA uma exposição intitulada Prehistoric Rock Pictures in Europe and Africa, toda baseada em cópias, aquarelas em escala real e impressões fotográficas de pinturas parietais paleolíticas, de diferentes partes do mundo. As reproduções expostas, algumas em escala real, faziam parte do acervo do Forschungsinstitut für Kulturmorphologie, Frankfurt am Main, dirigido pelo etnólogo Leo Frobenius (1873-1938).27 A exposição foi concebida pelo diretor do MoMA, Alfred Barr Jr., que sustentava que as pinturas “murais” paleolíticas seriam superiores às pinturas murais encomendadas pelo governo americano na década de 1930, em geral a artistas de orientação socialista. O motivo da superioridade seria o fato de os “murais paleolíticos” resultarem de um esforço coletivo e com destinação social, enquanto os murais americanos seriam feitos por artistas individualistas.28 27

MEYER, Richard. Prehistoric modern (1937). In: _____. What was contemporary art? Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2013, p. 137. 28 MEYER, 2013, p. 147-148.

9

Também na crítica de arte essa “arte arcaica” se prestava à veiculação de diferentes ideários políticos. Não será diferente o procedimento de Hanna Levy e Max Raphael ao tratarem do tema. Ambos estão cientes de que a visão que se tem sobre a capacidade do artista, e mesmo sobre seu grau de “humanidade” ou “civilidade” interferem grandemente no conceito que se faz de sua obra. É assim que, como Hanna, Max Raphael, nas pesquisas sobre arte pré-histórica nas quais mergulha intensamente durante o exílio em Nova York, a partir de 1941, não deixará de lado sua perspectiva política.29 Pelo contrário, a transformará em elemento estruturante de seu método de pesquisa. Esse método, batizado por Denise Modigliani como “estética do método”,30 é marcado pelo amor ao anacronismo. Raphael foi aluno de Simmel em Berlim, e faz parte, juntamente com Carl Einstein, Walter Benjamin, Siegfried Kracauer e Rudolf Arnheim, do grupo que Michel Diers chamou de “Bande à part”, o dos intelectuais que passaram pela Universidade de Berlim e desenvolveram as suas teorias, em vários aspectos desviantes, às margens das grandes instituições europeias e americanas.31 Raphael teve a tese de doutorado recusada por Wölfflin e até o final da vida pesquisaria febrilmente em meio a grandes dificuldades financeiras. E seus temas de pesquisa várias vezes eram pouco ortodoxos. Como um historiador da arte cujo primeiro livro aborda Picasso termina seus dias investigando arte pré-histórica é algo que Denise Modigliani, por exemplo, procura explicar considerando as características peculiares de seu método de pesquisa:

O acento colocado sobre os dois polos extremos de sua pesquisa não deve, no entanto, mascarar a realidade. Entre esses dois polos, a saber o contemporâneo e o pré-histórico, Max Raphael jamais deixou de praticar a análise descritiva das mais variadas produções (histórica e geograficamente), nem de

29

Sobre Prehistoric Cave Paintings e Prehistoric Pottery and Civilization in Egypt, obras publicadas em que Raphael trata da Pré-História, Tanja Frank, historiadora da arte da antiga DDR e com tese de doutorado sobre a obra de Max Raphael, escreve o seguinte: “Diese beiden Schriften stellen den Versuch dar, aus den erhaltenen Kunst- beziehungsweise Gebrauchsgegenständen jener Epochen die Kultur und Sozialstruktur der Gesellschaft zu erschliessen”.29 30 MODIGLIANI, Denise. Présentation: Voir la peinture. Avec Max Raphael (1889-1952). In: RAPHAEL, Max. Questions d’Art. Paris: Klincksieck, 2008, p. 37. 31 DIERS, Michael. Bande à part. Die Aussenseite(r) der Kunstgeschichte: Georg Simmel, Carl Einstein, Siegfried Kracauer, Max Raphael, Walter Benjamin und Rudolf Arnheim. In: BREDEKAMP, Horst; LABUDA, Adam S. (orgs.). In der Mitte Berlins: 200 jahre Kunstgeschichte an der Humboldt-Universität. Berlin: Gebr. Mann Verlag, 2010, p. 273-292.

10 estabelecer aproximações anacrônicas ou, em todo caso, não habituais [...].32

Um dos aspectos inovadores da teoria de Max Raphael sobre a arte paleolítica é o seguinte: ao invés de tratar das figuras isoladamente, como fizera a autoridade da pintura parietal paleolítica europeia, o Abade Breuil, com o qual Raphael se correspondeu, ele considerava os conjuntos de pintura, neles indicando intenção, composição e coerência.33 Uma pintura considerada intencional dificilmente poderia ter sido realizada por artistas “ingênuos”, dependentes por completo do mundo fenomênico ou ainda “prisioneiros da magia”. Assim sendo, em Prehistoric Cave Paintings, livro escrito em alemão34 em 1944, mas publicado pela primeira vez em inglês, em 1945, Max Raphael irá argumentar que é um equívoco afirmar que o homem paleolítico não consegue distinguir o seu eu daquele dos demais membros do grupo,35 que sua vida espiritual não pode ser comparada à de uma criança, nem seus desenhos aos infantis,36 além de deixar claro que, para esse grupo de artistas, não aceita a aplicação de teorias de mentalidade mística e pré-lógica.37 Para ele, os artistas paleolíticos capazes de conceber as composições de Altamira, a “Hagia Sofia da magia”, são inteligentes.38 É nesse livro também que Raphael propõe uma espécie de tipologia da magia vinculada à arte parietal paleolítica: a magia da fertilidade; a magia da caça, representada por mudanças dos tamanhos dos corpos e ainda pela oferenda de votos; a magia da transferência, com a transferência de qualidades invejadas em outros animais.39 A magia, em suas diferentes manifestações, nunca deixa de atender necessidades concretas, reais, o que a vincula ainda mais à intencionalidade de quem a pratica:

32

MODIGLIANI, 2008, p. 31. CHESNEY, Shirley. Max Raphael (1889-1952): A pioneer of the semiotic approach to palaeolithic art. Semiotica n. 100-2/4, p. 109-124, 1994, p. 10. Para uma síntese da abordagem de Max Raphael, tal como entendida hoje desde o campo da arqueologia, cf. TURRIÓN, Juan Francisco Pascua. El arte paleolítico: Historia de la investigación, escuelas interpretativas, y problemática sobre su significado. Arqueoweb: Revista sobre Arqueología en Internet, ISSN-e 1139-9201, Vol. 7, Nº. 2, 2005. 34 Esse livro seria publicado na Alemanha, pela primeira vez, apenas em 1993. Cf. RAPHAEL, Max. Prähistorische Höhlenmalerei. Aufsätze. Briefe. Köln: Bruckner & Trünker Verlag, 1993. 35 RAPHAEL, Max. Prehistoric Cave Paintings. Washington: Pantheon Books, 1945, p. 5. 33

36

RAPHAEL, 1945, p. 10. RAPHAEL, 1945, p. 12. 38 RAPHAEL, 1945, p. 11. 39 RAPHAEL, 1945, p. 5-6. 37

11 Sem dúvida, a base da mágica, assim como de todas as outras ciências, tinha uma necessidade material: alimentar, vestir, abrigar e defender contra todos os ataques uma sociedade de dado tamanho com dados meios de produção em um dado ambiente natural. Esta mágica foi fundada na crença de que, se uma imagem de um objeto fosse atingida, o objeto original seria atingido também, e por essa razão a imagem teria de ser feita de modo tão similar ao original quanto possível; e na crença de que um animal, uma vez tendo caído sob o feitiço, não mais poderia resistir ao poder do homem.40

A confiança na inteligência e na intencionalidade artística dos responsáveis pela arte parietal paleolítica se fará sentir nos livros posteriores de Max Raphael. Em Wiedergeburtsmagie in der Altsteinzeit: zur Geschichte der Religion und religiöser Symbole, escrito em 1947 mas publicado postumamente, 41 Raphael procura identificar motivos iconográficos da arte parietal, com homens e animais, que tenham persistido na arte posterior, como os relativos ao renascimento mágico. No seu denso artigo de 1950, Sur la méthode d’interprétation de l’art paléolithique, também de publicação póstuma,42 aponta, por outro lado, algumas características de representações paleolíticas totêmicas, como as combinações de animais de espécies diferentes (cavalos e bisões, por exemplo), em Portel e Combarelles, que seriam um motivo totêmico, uma representação das fases da história do clã.43 O totem para Raphael, em suma, é a chave para se reestabelecer a dimensão histórica dos artistas do paleolítico. Motivos predominante totêmicos, na leitura de Max Raphael, serão minuciosamente identificados e descritos em seu último livro, Ikonographie der quaternären Kunst, de 1952, também publicado após sua morte.44 Max Raphael, fiel a sua formação marxista, procurou tratar da arte paleolítica como manifestação de uma sociedade concreta, com problemas reais a resolver. Hanna Levy, como vimos, mesmo não desenvolvendo teoria própria sobre esse tema, procurou cortar, de

40

RAPHAEL, 1945, p. 7. RAPHAEL, Max. Wiedergeburtsmagie in der Altsteinzeit: zur Geschichte der Religion und religiöser Symbole. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1979. 42 RAPHAEL, Max. Sur la méthode d’interprétation de l’art paléolithique. Raison Présente n. 32, p. 35-63, Oct., Nov., Dec. 1974. 43 RAPHAEL, 1974, p. 58-59. Shirley Chesney, ex-aluna de Raphael em Nova York, aproxima seu conceito de totemismo àquele do pensamento selvagem de Lévi-Strauss: “Für ihn ist Totemismus der Versuch analogischen Denkens des ‘pensée sauvage’”. CHESNEY, Shirley. Einführung. In: RAPHAEL, Max. Wiedergeburstmagie in der Altsteinzeit: zur Geschichte der Religion und religiöser Symbole. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1979. p. 13. 44 RAPHAEL, Max. Ikonographie der quaternären Kunst. In: _____. Die Hand in der Wand. Zürich: Diaphanes, 2013. p. 11-144. 41

12

sua abordagem, os potenciais clichês psicológicos correntes em sua época, e como Raphael se concentrou no que havia de real a analisar: a obra, os seus materiais, as suas dimensões, as suas técnicas. O totemismo defendido por Max Raphael e aceito por Hanna Levy foi deixado de lado pela arqueologia moderna. Mas talvez ainda haja algo importante a recuperar em um estudo mais aprofundado desses dois autores que apresentam tantos pontos em comum em seu pensamento sobre arte. Pois como afirmou Grube, a respeito do grande projeto de uma história da arte geral, acalentado por Max Raphael, mas também por Hanna Levy: “Esse projeto até hoje, passados mais de 60 anos desde que Raphael o iniciou, ainda não perdeu sua relevância original”.45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Mario de. Curso de filosofia e história da arte. Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1938). São Paulo: Centro de Estudos Folclóricos/GFAU, 1955.

BARCELOS NETO, Aristóteles. As máscaras rituais do Alto Xingu um século depois de Karl von den Steinen. Société suisse des Américanistes / Schweizerische Amerikanisten-Gesellschaft, Bulletin 68, p. 51-71, 2004. BON, Antoine. Introduction Générale à l’Histoire de l’Art – I. Prehistoire; Orient Mediterranéen. Rio de Janeiro: Atlantica Editora, 1942.

CHESNEY, Shirley. Einführung. In: RAPHAEL, Max. Wiedergeburstmagie in der Altsteinzeit: zur Geschichte der Religion und religiöser Symbole. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1979. p. 7-15.

CHESNEY, Shirley. Max Raphael (1889-1952): A pioneer of the semiotic approach to palaeolithic art. Semiotica n. 100-2/4, p. 109-124, 1994.

DIERS, Michael. Bande à part. Die Aussenseite(r) der Kunstgeschichte: Georg Simmel, Carl Einstein, Siegfried Kracauer, Max Raphael, Walter Benjamin und Rudolf Arnheim. In: BREDEKAMP, Horst; LABUDA, Adam S. (orgs.). In der Mitte Berlins: 200

45

GRUBE, Gernot. Raphaels Ikonographie jungpaläolithischer Kunst. In: RAPHAEL, Max. Die Hand in der Wand. Zürich: Diaphanes, 2013. p. 152.

13 jahre Kunstgeschichte an der Humboldt-Universität. Berlin: Gebr. Mann Verlag, 2010. p. 273-292.

DEINHARD, Hanna. The Legacy of the Past in Modern Art (ementa de curso). New School Bulletin, v. 7.n. 1 september 5, 1949, 1949-1950. DREWES, Werner E. Raphaels Hand – Annäherungen. In: RAPHAEL, Max. Prähistorische Höhlenmalerei. Aufsätze. Briefe. Köln: Bruckner & Trünker Verlag, 1993. p. 193-271.

FRANK, Tanja. Max Raphaels kunsttheoretische Konzeption. In: RAPHAEL, Max.Arbeiter, Kunst und Künstler. Dresden: VEB Verlag der Kunst, 1978. p. 391-410.

GRUBE, Gernot. Raphaels Ikonographie jungpaläolithischer Kunst. In: RAPHAEL, Max. Die Hand in der Wand. Zürich: Diaphanes, 2013. p. 145-173.

LEROI-GOURHAN, André. As religiões da pré-história. Lisboa: Ed. 70, s.d.

LEVY, Hanna. Curso de História da Arte para os técnicos do SPHAN. Anotações de José de Souza Reis. In: NAKAMUTA, Adriana Sanajotti (org.). Hanna Levy no SPHAN: história da arte e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/DAF/Copedoc, 2010, p. 49-270. (Série Pesquisa e Documentação do IPHAN, 5) LEVY, Hanna. Sur la nécessité d’une sociologie de l’art. Actes du Deuxième Congrès International d’Esthétique et de Science de l’art. Paris, 1937, p. 342-345.

LUCAS, Gérard. The Vicissitudes of Totemism. One Hundred Years after Totem and Tabu. London: Karnac Books, 2015.

LUQUET, G.H. L’Art Primitif. Paris: Gaston Doin et Cie, 1930.

MODIGLIANI, Denise. Présentation: Voir la peinture. Avec Max Raphael (1889-1952). In: RAPHAEL, Max. Questions d’Art. Paris: Klincksieck, 2008. p. 7-80.

PINTO, Odorico Pires. Arte Primitiva Brasileira. Rio de Janeiro: edição do autor, 1949.

RAPHAEL, Max. Ikonographie der quaternären Kunst. In: _____. Die Hand in der Wand. Zürich: Diaphanes, 2013. p. 11-144.

RAPHAEL, Max. Prähistorische Höhlenmalerei. Aufsätze. Briefe. Köln: Bruckner & Trünker Verlag, 1993.

14

RAPHAEL, Max. Prehistoric Cave Paintings. Washington: Pantheon Books, 1945. (The Bollingen Series IV) RAPHAEL, Max. Sur la méthode d’interprétation de l’art paléolithique. Raison Présente n. 32, p. 35-63, Oct., Nov., Dec. 1974.

RAPHAEL, Max. Wiedergeburtsmagie in der Altsteinzeit: zur Geschichte der Religion und religiöser Symbole. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1979.

TURRIÓN, Juan Francisco Pascua. El arte paleolítico: Historia de la investigación, escuelas interpretativas, y problemática sobre su significado. Arqueoweb: Revista sobre Arqueología en Internet, ISSN-e 1139-9201, Vol. 7, Nº. 2, 2005.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.