(2016) Uma objectividade para a vida actual: algumas questões gerais de um arqueólogo

May 26, 2017 | Autor: V. Oliveira Jorge | Categoria: Arqueología, Arqueologia, Pré-História, Prehistoria, historia, arqueología
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Nota: este texto é um simples esboço. Divulgo como tal, e permito a sua utilização, desde que se indique a fonte. Mas não se trata de um trabalho acabado, apenas de algumas notas ocasionais.

Uma objectividade para a vida atual: algumas questões gerais de um arqueólogo Quando saímos do regime da opinião para o do conhecimento (ao menos como intenção) tentamos ser objectivos. Que significa tal? A criação de uma distância, de uma diferença tão clara quanto possível, entre observador (o sujeito, o que vê, descreve, conceptualiza, pensa, eventualmente classifica e julga) e observado (o objecto, o que é visto, descrito, conceptualizado, pensado, e eventualmente classificado e alvo de um juízo). A objectividade é movida pela intenção de convencer, de comprovar, ou seja, de estender as conclusões do sujeito a outros sujeitos, os quais, por meio de processo de objectivação semelhante, possam chegar a conclusões iguais ou muito aproximáveis das daquele. Portanto, a objectividade pressupõe comunidade, mesmo que contingente (os sujeitos que em comum partilham de uma mesma noção sobre um certo objecto ou conjunto de objectos), e desejo de verdade, ou

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seja, a de que a conclusão a que se chega, individual e colectivamente, pelo processo de objectivação, corresponda a uma realidade efetivamente existente, estável, de certo modo independente dos sujeitos. Torna-se óbvio que o desejo de objectividade está ligado ao que consideramos ser o sistema da ciência, ligada à racionalidade dos tempos modernos (a partir do século XVII), ou seja, à crença na existência de um mundo independente do (de cada) ser humano, regido por regras, ou leis, ou regularidades, que este pode atingir e formular rigorosamente desde que siga uma certa metodologia. Implica pois um certo carácter cumulativo das observações e conclusões, isto é, a noção de que o conhecimento “verdadeiro” pode ser progressivamente acrescentado, mesmo que deva ser corrigido, de quando em vez, nos seus detalhes ou mesmo nos seus fundamentos. Está aqui portanto presente a conotação da ciência e do saber racional com o progresso e em particular com o progresso técnico que permite a constante produção novos instrumentos que, interpondo-se entre sujeito e objecto, permitem ao primeiro uma muito mais detalhada, nítida, complexa, perfeita, formulação do segundo.



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É também evidente que essa atitude pressupõe, a montante, uma ontologia – uma ideia sobre o que existe, sobre o que é, sobre o Ser – e uma epistemologia – uma teoria sobre qual a forma mais correta de formular essa ideia, e de criar um método que permita delimitar um objecto e expurgar o mais possível o regime de opinião, ou seja, do parecer, para atingir o do conhecimento do ser, de uma realidade que corresponderia a uma verdade que, embora podendo ser corrigida, revista, alterada, seria de algum modo permanente, estável. Claro que imediatamente associamos esta atitude à vontade moderna de, pela razão (muitas vezes escrita com um R maiúsculo) substituir a fé, ou seja, a mera crença, que se não baseia na observação e prova, mas na convicção a priori de que uma determinada explicação está certa (por exemplo, Deus existe) e de que portanto todas as outras observações, mesmo as “científicas”, se subordinam a essa primeira e indiscutível verdade. Para o crente, não tem sentido pedir a prova da existência de Deus: ele é do domínio da evidência, quer dizer, a convicção é para ele sinónimo de legitimação de verdade, partilhada, indiscutível, e institucionalizada em Igreja (a comunidade dos crentes).



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Ou seja, se aceitarmos a noção de que alguma forma de religião (de crença numa série de ideias básicas, verbalizadas ou não, de carácter abrangente e universal, e que se não põem em causa sob pena de desestabilizar a estrutura psíquica do sujeito) podemos dizer que a ciência se instaura, nos tempos modernos, e para muitas pessoas, como uma prática religiosa. Ou seja, a Razão, para elas, tornaria, com o tempo, qualquer religião, ou crença, inútil, espúria, residual, etc. Outros autores têm referido que o culto do lucro e da acumulação capitalista são, também, uma forma de religião moderna, aliás em íntima relação com a ciência e com as formas de domínio e de reforço dos sistemas de poder e de controlo que ela progressivamente permitiu, até à energia atómica ou à internet, apenas para dar dois exemplos. Evidentemente que todos estes temas, que aqui estou a abordar esquemática e simplificadamente, são muito mais complexos, mas apenas pretendo, nestas notas, expor claramente algumas ideias que podem ser úteis para ajudar ao esclarecimento de muitas das questões que comummente nos pomos, hoje. A época moderna é caracterizada, por um lado, por uma interrogação radical sobre si própria – o que é a modernidade, o que são as Luzes )a

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Razão), o que é o Homem (no sentido de ser humano) são questões recorrentes – e, por outro, por paradoxos ou contradições em todos os planos e de todos os tipos. Por exemplo, a acentuação do valor da razão (e da objectividade...), com muitos dos seus fenómenos conexos (biopoder, etc.) deu origem a inúmeras reações contrárias, que vão desde o Romantismo, no século XIX, aos movimentos dos trabalhadores contra as máquinas (que eles precocemente percepcionaram como suas inimigas, porque implicavam a desvalorização do trabalho, de início sobretudo braçal, e hoje “intelectual”), às vanguardas de vários tipos, a utopismos, etc., etc. E, sobretudo, à teoria marxista de valorização do proletariado, ou seja, da parte da sociedade que apenas tinha o seu trabalho para vender no mercado, como classe que continha a promessa de futuro, porque nada tinha a perder com o fim da exploração (maisvalia) capitalista. E fá-lo-ia (previu Marx) em dois tempos, primeiro através de uma ditadura que, pela força, retirasse o Estado do controlo da classe capitalista que ele representava, e, depois, generalizando-se a todo o mundo, eliminasse o próprio Estado como forma de organização social, instaurando a sociedade socialista, sem classes. Para além da genial e complexa teoria elaborada, era bem claro que Marx se tinha

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inspirado na escatologia cristã (salvação no fim dos tempos, considerados de forma linear), e enganado na temporalidade das mudanças, que ele julgou poderem ser relativamente rápidas, como rápido estava a ser tudo o que acontecia à sua volta na altura: desmantelamento das estruturas tradicionais e aparecimento de toda uma forma, na verdade desumana, de utilizar o trabalho humano em favor do capital. As coisas passaram-se de forma diferente como todos sabemos. A internacionalização, ou globalização fez-se, sim, mas foi a do capital e não a dos trabalhadores, e o valor do trabalho, sobretudo atualmente, encontra-se muito desqualificado, dada a sofisticação da maquinaria que, pouco a pouco, o vai realizando, segundo os interesses do capital. O comunismo, ou socialismo real, falhou. O capitalismo triunfou. E com ele uma certa ciência, uma certa arte, uma certa filosofia, um certo modo de vida – o do consumo – e um certo pensamento, incluindo o chamado pensamento de esquerda, que hoje não é mais do que o produto de pequenos grupos, que todavia se mantêm ativos e podem até publicar em grandes editoras, aumentando-lhes os lucros. A ideia de revolução tornou-se obsoleta, as áreas da ciência que interessam ao capital prosseguem a sua marcha triunfante, a “cultura” tornou-se indústria, e o

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“património” é cada vez mais abrangente e imaterial. Entretanto, o chamado Estado social (social democracia característica de uns trinta anos que se seguiram à última Grande Guerra) tende a ser progressivamente desmantelado, e o espectro dos extremismos de todo o tipo volta a pairar sobre o mundo e sobre a própria Europa. Apesar da intoxicação mediática, muitas pessoas estão conscientes da situação em que nos encontramos: só que a chamada pósmodernidade criou um novo tipo de indivíduo, profundamente cínico – sabe, mas procede como se não soubesse. Alguém (?) há de, mais cedo ou mais tarde, travar o caminho que se está a traçar, evitando o desastre ecológico (que já está aí) e a ameaça de guerra nuclear (que também se acentua). Alguém... e isto diz tudo sobre a estrutura psicológica da crença. O importante é acreditar que Alguém crê, e lá saberá como sair deste imbróglio: de forma que vamos vivendo, crendo, ou fingindo crer (e o fingimento pode ser tão perfeito que acaba por ser, mesmo, a verdade dos sujeitos)... No conhecimento contemporâneo reina, como seria de esperar, a maior confusão, apesar do nosso acesso atual a fontes de informação praticamente infinitas: mas também por causa disso – no meio de tanto ruído informativo, é

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difícil o silêncio da reflexão, no meio da gesticulação, e da obsessão opinativa, a paragem para o estudo e para o verdadeiro debate, o qual é sempre incómodo, porque, se é mesmo debate, envolve enfrentamento de posições. É político. Cada posição é posicionada, representa um certo tipo de interesses: não há conhecimento neutro. Não há, pois claro, conhecimento “objetivo” senão no sentido algo relativizado do que, aqui e agora, e cada grupo de competências e interesses, se apresenta como verdadeiro. A época do capitalismo atual é também a da ideologia pós-moderna da relativização geral da “verdade”: a “verdade” tornou-se tão dinâmica como o próprio capital que flui a velocidades fabulosas. Concorrência, atomização das organizações, concentração do capital, financeirização, fluidez, volatilização do valor, corrupção (o lado escuro da realidade legalizada), fragmentação das pessoas em seres que procuram experiências de instantaneidade corporizadas na comunicação frenética do nada que são e do nada que fazem, miragem de vedetismo fácil, entretenimentos embrutecedores: eis a nossa realidade. É possível pensar neste contexto? É possível sair do regime da simples descrição ou diagnóstico, e das soluções utópicas – por tantos autores

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cultivado – para o de uma análise global e integrada do mundo contemporâneo, em suma para um regime de objectividade que una, pelo menos, um grupo de cientistas sociais que queira romper com o pensamento oportunista e opinativo? Descendo mais na escala, e circunscrevendo-me às áreas em que julgo ter um mínimo de competência – arqueologia, história, antropologia – é possível elaborar, com base nesses corpos de conhecimento, uma visão do ser humano e da sociedade que aponte para uma realidade diferente da atual, póscapitalista? A pergunta, mil vezes formulada, e mil vezes frustrada, lembra, se me é permitida a dolorosa comparação, a questão da cura do cancro, esse “outro” que nos nasce, se alimenta de nós, e acaba por nos consumir. Aqui e ali os especialistas anunciam-nos progressos, mas a maleita não cessa de se metamorfosear e de nos inquietar profundamente. Formulamos o desejo, a pergunta, não encontramos a resposta: mas a esperança, essa, mantém-se, intemporal. A história deveria deixar de se basear no eixo do tempo linear. Espacializando esta temporalidade: um passado que existe para trás, um presente que é o agora, e um futuro que está em devir, essas noções não têm sentido. A

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narrativa histórica, quer seja do passado para a presente, quer seja às arrecuas, tem de se basear numa outra dinâmica. A dinâmica comparativa, contrastante, abstracta, de tempos e espaços diferentes, tentando ver diferenças e semelhanças, a diferentes escalas e segundo múltiplos critérios. Isso significa uma filosofia da história diferente, superando a tendência cristã, e por vezes messiânica, que a ela tem presidido: temos de quebrar o tempo onde nos importa, comparando fenómenos muito diversos, esboçando tendências, mas de forma a evitar qualquer teleologia, qualquer historicismo, na abordagem da historicidade humana. É preciso perceber fenómenos que se encontram por vezes submersos, ou são praticamente invisíveis, e por vezes emergem, sob diferentes aspectos. É preciso arriscar uma história que, o mais possível baseada em dados comprovados e rigorosos, saiba ser subjetiva, qualitativa, e finalmente útil para pensar, expurgada de pormenores pitorescos, curiosos, singulares sem refletirem nada de mais geral. É preciso discutir teoria da história, filosofia da história, aspectos em que a produção portuguesa é confrangedoramente pobre. É preciso que cada historiador explicite claramente as motivações e os pontos de vista de que partiu, e que necessariamente, em

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filigrana, vão orientar todo o seu discurso, por mais “objectivo” (para melhor con-vencer) que se pretenda apresentar. A história não pode estar apartada das restantes ciências sociais e humanas e da discussão filosófica; não havendo esta, não há história, há estórias. Para estas, que são muito necessárias, fundamentais, temos o campo da literatura, incluindo o já antigo romance histórico. Passa-se com a história algo parecido com o cinema: certos autores têm começado com o documentário, por pensarem que é mais documental e objectivo; em seguida, percebendo como qualquer construção, representação, da realidade, é sempre produto de uma escolha, e essa escolha pode ser empobrecedora, têm-se voltado para a ficção como forma de, mais “realisticamente”, se aproximarem da realidade que pretendem transmitir... Assim em história, haverá sempre a necessidade de contar estórias, e a necessidade de problematizar historicamente a realidade na sua complexa espessura, sempre plástica, que só perspectivas orientadas filosoficamente podem elaborar. Sem formação filosófica – e aí há evidentemente que fazer escolhas, com todo o risco inerente – não se pode fazer pesquisa em ciências sociais. E é o embaraço em que também se encontra a filosofia que faz com muitos livros de ciências

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sociais sejam maçudos, inócuos, facilmente desatualizáveis. Porque ao quererem ser objectivos se aproximaram demasiado de uma realidade que entretanto sofreu profundas mutações. Poucos são os espíritos, infelizmente, capazes de as seguir, em termos de informação e de perspectiva, que são dois aspectos do mesmo. Na antropologia dá-se uma crise também. Ela nasceu com a ambição de abarcar tudo quanto é humano. Os seus horizontes dilataram-se progressivamente, por forma a qualquer um, praticamente, se poder intitular antropólogo, desde que pratique uma observação direta, com atores vivos, da realidade social. Para além do seu particionamento em duas, a biológica e a cultural (ou social), a antropologia abarca hoje um mundo, desde a questão da “hominização” e da chamada “cultura” de certos primatas não humanos, até aos estudos que por exemplo Latour tem feito das atuais comunidades científicas laboratoriais ou da “fabricação” do Direito, até aos trabalhos muito pessoais e abrangentes de Tim Ingold, de inspiração em grande parte fenomenológica, ou de Philippe Descola, na linha estruturalista de Lévi-Strauss, mas com uma ambição se possível ainda maior. Entretanto, muitos antropólogos vão estudando calmamente as suas “comunidades”, enquanto também muitos historiadores prosseguem

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tranquilos as suas pesquisas de arquivo, e muitos arqueólogos continuam a tentar esventrar o solo na busca de uma “verdade mais verdadeira”, eventualmente não filtrada pela palavra... Mas a palavra, a linguagem, aquele domínio a que podemos chamar o Simbólico, e que é o propriamente humano, ou seja, aquele plano em que a realidade se estrutura como ficção em que nos orientamos, é incontornável. De maneira que uma pessoa se pergunta se, na ausência da palavra, do interlocutor, do outro, é possível qualquer estudo que não seja um avatar no naturalismo; essa questão põe-se de maneira acutilante para a arqueologia pré-histórica, a área da arqueologia em que tem havido mais produção teórica (de G. Childe a L. Binford, a I. Hodder ou J. Thomas... entre muitos). Quando J. Guilaine queria que a pré-história, a partir do Neolítico, fosse já história, estava a levantar um problema interessante, porque se sabe o abismo que tradicionalmente diferencia em França (e não só) a arqueologia pré-histórica da histórica, esta última tranquilamente encostada aos estudos históricos em geral. Ele queria nobilitar a área a que se dedicava, e para a qual não tinha ainda a palavra, mas supostamente tinha já as bases da chamada

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“economia produtiva”, até à Revolução Industrial: a agricultura e a criação de gado, ou seja, a terra como valor fundamental, que antecipou o capitalismo moderno. O problema é os investigadores – historiadores, antropólogos, arqueólogos, ou outros – quererem, no fundo, encontrar com a ciência aquilo que a religião antes fazia: a resposta abrangente, securizante, o suporte final explicativo da realidade. Mas a psicanálise, sobretudo a partir de Lacan, mostrou-nos como as coisas são muito mais complexas, como a realidade, como tem acentuado Zizek (o esloveno que se atreveu a conjugar Lacan com Hegel... e um pouco de Marx...) é ela própria incompleta, não-Toda, e portanto o nosso conhecimento, que faz parte dessa realidade, é por definição também ele incompleto, não-Todo, problemático, quer dizer, em última análise, conflitual, político. No sentido da polis como lugar do confronto, não já entre iguais, mas entre desiguais, aquilo que Marx genialmente designou a “luta de classes”. A luta pelo saber, pelo conhecimento, pela objectividade, é a luta de classes por “outros” meios, ou melhor, é uma expressão “purificada” abstrata, dessa luta. É uma luta, obviamente, pelo poder, pelos poderes no sentido difuso que Foucault e outros tão bem caracterizaram.

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Mesmo os “cientistas de bata branca”, quando no laboratório fabricam as suas descobertas ou nas suas elaborações matemáticas permitem a entrada em mundos especulativos com alta capacidade, depois, de aplicação numa miríade de aspectos da vida, estão a trabalhar dentro do Simbólico, são seres humanos como os seus colegas das ciências sociais e humanas, realizam objetos parciais de conhecimento e descartam, em cada campo segundo uma certa lógica própria, as teorias ou interpretações que se lhes revelam obsoletas. De modo que o conhecimento não procede tanto por acumulação, como por descarte; quer dizer, há “progresso” no conhecimento, mas ele não é no sentido de se aproximar de uma “verdade” que “está aí” desde sempre, mas da construção de “verdades” em que acreditamos durante um certo tempo. Porque há um princípio que subjaz, e esse princípio, partilhado por uma comunidade de cientistas, ou de pensadores em geral, é um princípio de verosimilhança, de convicção, alicerçada em observações e no refinamento das teorias explicativas. Nesse sentido, quando Hegel, nos inícios do século XIX, escreveu “A Fenomenologia do Espírito”, como grande trajetória da humanidade no sentido de adequação entre o que hoje chamamos a cultura, e a realidade, não

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estava tão longe da verdade, não era tão absolutista, totalizante, “finalizador” da história como muitos pensam, e continuam a propagar. O espírito humano, ao longo do tempo, por descarte de inocências, diria agora eu, vai como que amadurecendo, sempre por um processo dialéctico de contradições, das quais não emerge uma verdade que as resolve, mas uma perspectiva que revela essas contradições a nova luz, que reposiciona a própria contradição ou negação inicial. Este aspecto dialéctico é absolutamente crucial para perceber a historicidade humana, incluindo a do próprio pensamento. À partida, e voltando agora à problemática da pré-história, como ciência humana e social que se quer, mas desprovida da palavra, do texto, da escrita, é que ela nos confronta com realidades objectuais como as ciências da natureza. Mas, ao contrário da geologia, por exemplo, essas realidades objectuais não são produtos naturais, são uma mescla extremamente complexa e incompleta de processos naturais e humanos. E os processos humanos, sociais e individuais, envolvem não intencionalidades simples, funcionalidades simples, “simbolismos” e “ritualismos” simples, mas uma teia complexa de forças, nas quais há que incluir o inconsciente social e individual, e não só o Simbólico (o nível

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que, juntamente com o Imaginário, basicamente estrutura a realidade a partir da linguagem) mas também o Real, ou seja, como nos explicou Lacan, o âmbito da experiência humana em que esta se choca com o não simbolizável. Ora, este não simbolizável é, paradoxalmente, o que permite a própria humanidade. Para dar uma imagem tosca, é como o silêncio entre as palavras ou o espaço branco entre as letras: sem ele, sem esse “silêncio”, sem esse “branco” contra o qual chocam as nossas tentativas de simbolização, não haveria simbolização possível. É aí, aliás, que a arte, e em particular a poesia, ou a música, tentam fazer o seu caminho, criar o seu espaço. Foi esse o espaço em que as religiões durante muitos milénios, e ainda hoje, se desenvolveram: elas constituem modos por assim dizer demasiado simples de formulação do “fenómeno humano”, da sua complexidade. É por causa dessa complexidade que a maior parte das interpretações, nomeadamente em arqueologia pré-histórica, mesmo a que diz respeito a períodos mais recentes e sobre os quais temos mais elementos para pensar, parecem extremamente simples, caricatas mesmo. É preciso uma formação filosófica, repito, para abordar os fenómenos sobre os quais o

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conhecimento, qualquer conhecimento, se debruça. Nuns domínios, por estarem mais formalizados, ou mais matematizados, ou mais sistematizados, do que noutros, pode haver ampliação de conhecimentos. Mas, como mostrou T. Kuhn, essa ampliação mais cedo ou mais tarde tem limites, e é preciso mudar de paradigmas. Há uma historicidade do conhecimento. E Hegel, o Hegel que tantos autores quiseram combater e fossilizar numa versão dogmática da história, estava consciente disso: é preciso perceber o sentido das suas palavras, que não é fácil, por ser um homem que viveu há dois séculos, e que pensou em alemão, língua (que tenho muita pena de não dominar) particularmente propícia para a filosofia, mas precisamente pela sua complexidade, dando lugar a muitos equívocos. Como C. Malabou, G. Lebrun, S. Zizek, e tantos outros mostraram, o pensamento de Hegel é plástico, tudo menos dogmático. Por essa linha, muitos dos que tentam pensar a arqueologia, hoje, talvez encontrassem um caminho mais fecundo do que aqueles a que tenho assistido, embora com todo o interesse, nos últimos tempos. Parece-me que a arqueologia (pré-histórica, é esta aquela a que me dediquei) caiu num impasse, desde o fim do século passado, não só devido a falta de meios objetivos de pesquisa, mas também, e

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articulando com esse aspecto, a carência de investigação teórica. De facto, ambos os aspectos são muito difíceis de conjugar num trabalho tão exigente, em termos logísticos, como é a pesquisa continuada de campo, com tudo o que ela pressupõe a montante e a jusante. Que tentam fazer os meus colegas, para conseguirem maior objectividade e rigor? Logicamente, efetuar um trabalho mais minucioso de escavação, de registo, de descrição; procurar o mais possível contributos de outras disciplinas. Esse trabalho é crucial, como sabemos bem. Mas a dificuldade está a montante e a jusante disso. Longe de se saltar da descrição para a interpretação – como a lógica das coisas e muitas vezes os colegas nos exigem – há que mostrar, incidir, sobre os impasses, sobre aquilo que vimos (e documentá-lo) e não entendemos; há que fazer ressaltar o Real que está por detrás – e às vezes de forma até tão patente – de cada descrição da realidade observada, sem querer logo atracá-la a um leque de hipóteses. “Está aqui, vimos assim, não sabemos o que isto é.” Eis o que seria a nossa objectividade, para não dizer mesmo a nossa honestidade. Não é uma questão de modéstia de principio, é uma opção metodológica: revelar as incongruências da realidade observada, como o mais importante de tudo.

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É que essas incongruências, e dificuldades, não são só porque nos falta o interlocutor, o “préhistórico” que “fez aquilo que vemos” e não entendemos. É que, se por absurdo ele ali estivesse, e nos desse uma explicação, ficaríamos na posição do etnólogo advertido perante o seu informador, e com a pergunta: que explicação estará este a querer impingir-me?... é que, como intitulou a N. Sarraute um dos livros dela, estamos n’ “A Era da Suspeita”... ou seja, há sempre que descartar o que nos parece mais evidente. Não como quem descasca uma cebola, para finalmente chegar à verdade interior do bolbo. Mas como quem caminha, com outros companheiros, atento a tudo, incluindo a imperfeição, a hesitação, o sem-sentido de muita coisa que se encontra ao prosseguir. E sempre com a sensação de que o mais importante jamais se encontra, e de que se não preenche com poesia, ou qualquer outra forma de sublimação. Olhamos o enigma, o enigma olha-nos, e é isso: uma confrontação de silêncios. Escrito em Loures, aproveitando o feriado de 8.12.2016 Vítor Oliveira Jorge

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IHC- UNL- FCSH



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